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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEA
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
A PRÓXIMA ESTAÇÃO
Trabalho, memória e percursos dos trabalhadores aposentados da Ferrovia.
Daniela Márcia Medina Pereira
Fortaleza
Outubro,2004
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24
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEA
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
A PRÓXIMA ESTAÇÃO
Trabalho, memória e percursos dos trabalhadores aposentados da Ferrovia.
Daniela Márcia Medina Pereira
Dissertação apresentada como exigência
parcial para a obtenção do grau de mestre
em História Social à comissão Julgadora
da Universidade Federal do Ceará, sob a
orientação do prof. Dr. Francisco Régis
Lopes Ramos
Fortaleza
Outubro,2004
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEA
CENTRO DE HUMANIDADES
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
A PRÓXIMA ESTAÇÃO
Trabalho, memória e percursos dos trabalhadores aposentados da Ferrovia.
Daniela Márcia Medina Pereira
Esta Dissertação foi julgada e aprovada, em sua forma final, pelo orientador
e membros da banca examinadora, composta pelos professores:
__________________________________
Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos
__________________________________
Prof. Dr. Franck Pierre Gilbert Ribard
___________________________________
Prof. Dr. Fancisco Carlos Jacinto Barbosa
Fortaleza
Outubro,2004
FICHA CATALOGRÁFICA
26
Dedico este trabalho à memória de meu pai,
como agradecimento e homenagem ao meu querido “velho”.
Para Antônio,
por Antônio.
27
Resumo
Este trabalho interpreta a memória de trabalhadores ferroviários
aposentados do Ceará. Elaborado a partir do diálogo com diversas fontes, tendo
como elemento central a História oral, tomada em conjugação com outras fontes
como jornais associativos, textos literários e documentos do Ministério dos
Transportes. Através da análise dessas fontes e do exercício de percorrer espaços
e instalações da ferrovia no Ceará, fui entendendo que a memória do ferroviário
aposentado opera no sentido de recompor e propor percursos que significam
resistência e projetos que dão sentidos à velhice.
28
1.1 Trilhas de sonho e sucata
Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína
5
5
VELOSO, Caetano . Fora da ordem. Circuladô de Fulô. Polygram,1992. faixa 3.
introdução
introduçãointrodução
introdução
29
Em fevereiro de 2002, enquanto subia o primeiro lance de degraus do
prédio da Associação Beneficente dos ferroviários
6
, deparei-me com um painel que
retrata a seguinte cena: em primeiro plano, vemos um belo riacho de águas
cristalinas, viçosas e extensas plantações ao sopé de verdes serras
7
; e
atravessando um vale cercado de flores e árvores surge uma maria-fumaça.
Inferimos que há profundas diferenças entre a imagem idealizada, o que se
viveu e o que hoje é vivido nos trilhos cearenses. Não é meu objetivo explorar a
possível veracidade de tal cena, mas salta aos olhos que a idílica imagem retratada
na pintura apresenta um sonho de funcionalidade, harmonia e progresso. Nessa
idealização da técnica, triunfante e solucionadora, é que se concentra o objeto de
discussão.
A imagem no painel
8
sintetiza uma idéia de ferrovia: harmônica,
competente, vetor de desenvolvimento e riquezas, uma ferrovia-projeto. Podemos
entender essa ferrovia-projeto como a desejada e pensada, a que deveria ter
acontecido e funcionado.
As especulações e projetos em torno da instalação da ferrovia em território
cearense possuem um teor comparável ao afresco: o trem resolveria tudo e
seguiria tranqüilo, seguro e impassível, levando fartura e conforto enquanto seguia
incrustado na paisagem.
Tratando-se do Ceará, a paisagem retratada merece especial destaque:
toda sua verdura significa fartura, riqueza, desenvolvimento e bem-estar. A ferrovia-
projeto cearense é fruto do sonho de um sistema de transportes que providenciasse
6
A Sociedade Beneficente do pessoal da RVC” fica na rua 24 de Maio n
o
230, esquina com
Senador Alencar, n
o
596, no centro de Fortaleza. Esta associação foi fundada em 29 de março
de 1932 e apesar da RVC (Rede de Viação Cearense) ter sido englobada pela RFFSA a
sociedade mantém a sigla RVC.
7
Pintado sobre azulejos, o painel foi feito por encomenda de um diretor da Beneficente.
8
Voltaremos a tratar especificamente deste objeto no segundo capítulo.
30
desenvolvimento, cuidados e amparo para o campo, tantas vezes castigado pelo
fantasma da estiagem.
Diante do exuberante painel me detive algumas vezes, pensando e
tentando desarrumar o que parecia tão perfeito. Que perfeição é essa? Em que
consiste a beleza dessa cena que nunca existiu e que, contudo, de certa forma, eu
conseguia reconhecer?
Comecei a perceber que a sugerida "perfeição" existe. Sim, um trem
belo, perfeito; um conjunto de imagens-textos onde a máquina domina a
natureza sem destruí-la - a ferrovia-projeto, calculada, divulgada e negociada desde
a segunda metade do século XIX. Essa mesma "perfeição" caracteriza a ferrovia-
memória: eivada de saudade, matizada pelo sedutor brilho dos anos dourados.
Num passado idealizado ou nos projetos irrealizados "só existem paraísos
perdidos"
9
. A ferrovia descrita pelos aposentados não pode mais ser vista, não
pode ser tocada, somos levados pelas descrições a um “paraíso perdido”.
Memórias e desejos se confrontam e se aproximam. Não ocupam lugares
distintos e isolados, navegam e reinventam os tempos, os “muitos tempos da
memória”
10
.
Sim, eu conseguia ver ali, naquela imagem, a carta do Ministro pedindo a
liberação das obras emergenciais, que supostamente ajudariam o Ceará a se livrar
permanentemente do flagelo da seca. Eu via o trem que traria socorro e amparo ao
sertão; via os trilhos e as máquinas que gerariam progresso e empregos. Era
também a maria-fumaça da qual o Sr. Antônio Serafim me falava; lembro dele
dizendo que sua fumaça era cheirosa, "se ela voltasse, eu me butava pra trabalhar
de novo".
9
CERTEAU,Michel de. A invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução Ephaim Ferreira
Alves- Petrópolis, RJ: Vozes, 1994
10
PINTO, Júlio Pimentel. “Os muitos tempos da memória” In Projeto História N
o
17. p211.
31
Não foi apenas no painel da escadaria da Beneficente que notei a
possibilidade de ltiplas interpretações do universo ferroviário. As conversas, a
documentação e alguns periódicos me auxiliaram na construção da minha
percepção. As interpretações que elaborei foram, muitas vezes, contraditórias e
tensas. Confrontei-me com imagens, vozes, textos, diversos olhares e perspectivas
que convivem na construção das memórias do ambiente ferroviário de outros
tempos.
E a memória também projeta, deseja e sonha. O que chamei ferrovia-
projeto possui aproximações do que denomenei de ferrovia-memória.
A memória não é meramente retrospectiva, é também prospectiva. A
memória uma perspectiva para a investigação das nossas
experiências no presente e para a previsão do que virá a seguir
11
As muitas memórias dos trabalhadores da ferrovia acabaram sendo as
principais fontes dos meus questionamentos. Tive o privilégio, após alguns anos de
pesquisa, mesmo que intermitente, de conviver com vários grupos e perceber
nessa convivência vários momentos. É delicado pensar o quanto e como se
distanciam os aposentados de suas memórias do universo do trabalho, que
mesclam equipamentos, colegas, paisagens; tal distanciamento se complexifica à
medida que ferroviários e ferrovia se confundem.
Nas entrevistas vislumbramos um tempo em que certas identidades
pessoais podiam ser forjadas pelo mundo do trabalho, um tempo passado, como
ressalta Michelle Perrot.
12
11
FRENTESS, James e WICKHAM, Chris. Memória social - Novas perspectivas sobre o passado.
Ed. Teorema
12
PERROT, Michelle entrevistada por Sant'anna, Denise Berluzzi “A força da memória na pesquisa
histórica” In Projeto História N
o
17 p.257
32
Ocorre que estamos vivendo um momento de desaparecimento de
profissões inteiras: não mais mineiros, quase não existem mais
metalúrgicos. A indústria têxtil foi bastante reduzida. Assim, os
operários são uma categoria social em vias de desaparecimento! As
grandes profissões atuais se desenvolvem no domínio do terciário,
dos empregados do setor de informática, entre outros. Ora, aqueles
operários viveram uma verdadeira crise de identidade social.
Enfrentar o convívio com essas memórias é um desafio para o historiador.
Tentamos construir a partir de uma desconstrução. Revendo e revivendo as
questões sugeridas pela leitura teórica e pelo exercício da pesquisa, penso que
uma das primeiras tarefas para o historiador que lida com a memória é a de
estabelecer e assumir o seu papel enquanto intérprete. Suas escolhas e seu olhar
estarão presentes em todas as etapas do trabalho, tornando assim as fronteiras
imprecisas ou, como coloca Júlio Pimentel, fronteiras porosas:
Do historiador ao memorioso, do memorioso ao historiador.
Passagens, divisões, é claro, imperfeitas, tramadas numa fronteira
porosa. Bordas em que tudo que perdemos é instantaneamente
nosso, tudo que é próprio pode instantaneamente desfazer-se. Trama
que assegura a duvidosa possessão do passado, a fascinante
construção do passado. Dos muitos passados, dos muitos tempos
em que vivem nossas memórias
13
Essas fronteiras me encantaram e me desafiaram. Se, por um lado, interfiro
e escolho, sei também que todo um campo inexplorado, sempre existe o lado
que o vi, não entendi ou silenciei. Mas isso o me aflige. Primeiro porque
reconheço que tudo é inesgotável e, segundo, porque além das amplas
13
PINTO, Júlio Pimentel. “Os muitos tempos da memória” In Projeto História N
o
17. p211.
33
possibilidades do objeto de estudo, nos deparamos ainda com a largueza do campo
de produção do conhecimento histórico.
A ferrovia, além de lugar de trabalho, era espaço de sociabilidade,
aprendizado e convivência. O ferroviário está de tal forma ligado à imagem que a
sociedade tem da ferrovia que é como se esta ela fosse uma interface de sua
relação com o mundo. Fica a impressão, colhida nas falas e nos escritos, de que a
ferrovia é um ingrediente fundamental da auto-imagem desse indivíduo.
A memória do ambiente de trabalho, da lida diária nas estações e oficinas,
mistura-se às lembranças de um tempo em que o trabalho da ferrovia parecia ser
mais valorizado. A esse trabalho eram dados outros significados por usuários e
trabalhadores. Encontramos essas referências em um trecho do editorial do jornal
da Associação dos Ferroviários Aposentados, com data de setembro de 2001.
Com mais de dezoito anos de aposentado ainda me lembro das horas de
trabalho duro, mas alegre, porque naquela época éramos como uma
família (...)
Sentimos também muita saudade das nossas velhas MARIA FUMAÇA
com aquela sua tradicional composição de carros de passageiros lotados
de gente humilde, mas honrada e generosa.
Os trens da RVC proporcionavam ao interiorano aquele prazer de
esperarem na calçada das estações: parentes, amigos e outras pessoas
do povo. Era aquela festa, as moçoilas vestiam o melhor vestido e, de
braços dados, belos grupos de garotas compareciam a estação para
receberem o TREM que vinha da capital.
Como era saudável assistir aquelas cenas!
O trem não podia faltar para aquelas pessoas, como um ritual. Os
empregados da RVC eram tidos como melhores partidos para as moças
(...) nos sentíamos orgulhosos e vaidosos.
34
Olhando o presente, acordo de um sonho dourado, o que se vê hoje é só
sucata e ninguém dando a mínima importância ao pouco que restou
daqueles tempos áureos
14
.
Os “tempos áureos” contrastam com a “sucata”, e o tempo vivido parece
separar dois pólos. O ferroviário recompõe sua trajetória de vida em paralelo com a
própria história da ferrovia. Numa trajetória em que passam de "orgulhosos e
vaidosos” operadores e mantenedores de um complexo sistema para homens que
alimentam uma saudade dolorosa, referindo-se a um tempo que já não existe.
As marcas desse tempo vão esmaecendo na cidade e na memória com a
velocidade com que paisagem, objetos e máquinas são continuamente
transformados, revelando um dos elementos mais destacados da modernidade.
O dinamismo inato da economia moderna e da cultura que nasce desta
economia aniquila tudo que cria - ambientes físicos, instituições sociais,
idéias metafísicas, valores morais - a fim de criar mais, de continuar
infindavelmente criando o mundo de outra forma.
15
Não é apenas o sólido do ferro e das edificações a desmanchar-se. As
lembranças, os percursos pessoais pela cidade, o gosto de provar uma certa
velocidade, tudo pode ser pulverizado. Pensemos a partir desse viés enquanto falo
das linhas paralelas dos trilhos, instaladas aqui num tempo fugidio. O sólido do
conviver e do saber ferroviário é um sólido forjado por jornadas de trabalho, anos
de aprendizado na escola de ofício e nas viagens. Ele também entra nessa
composição volátil.
14
Jornal A VOZ DO APOSENTADO.Órgão oficial da Associação dos Ferroviários aposentados do
Ceará Ano 2 no.06.Editorial p.01 (Setembro de 2001)
15
BERMAN, Marshal Tudo que é sólido se desmancha no ar: A aventura da modernidade. São
Paulo: Companhia das letras, 1986.p. 273
35
Vivemos em um tempo no qual o ferroviário o é mais o melhor partido
para as moças e o trem não chega à estação trazendo novidades e pessoas,
agitando pequenas comunidades ou cidades inteiras à sua passagem. Mas, o autor
das linhas aqui transcritas nos faz perceber e pensar sobre isso, convidando-nos a
um tempo distante.
Inicialmente podemos desenvolver a seguinte discussão: o Sr. Etevaldo,
autor do texto, não está escrevendo num jornal qualquer, ele redige o editorial do
jornal da Associação dos Ferroviários Aposentados do Ceará. Na época de sua
publicação, o autor era presidente da entidade. A Informação é relevante para
notarmos que o público alvo era formado por seus próprios colegas, aposentados
como ele. Ora, a conversa sobre os velhos tempos é muito comum, faz parte do
cotidiano dos encontros dos aposentados. Então para que ocupar as linhas do
jornal para falar dos velhos tempos, do que passou, se eles falam sobre isso
sempre que se encontram?
A escrita publicada serve para manter um canal de comunicação, um elo
que se fortifica com elementos partilhados pelos aposentados. Eles se identificam e
se vêem nas palavras escritas pelo presidente.
Nesse sentido, o texto do Sr Etevaldo pode ser lido de duas formas.
Primeira, como uma memória, um esforço de elaborar sentimentos e desejos. Ele
se aproxima de vários depoimentos que tratam de uma memória urdida entre as
lembranças dos dias passados, o orgulho que tinham em ser trabalhadores da
ferrovia, e que ainda têm, o descontentamento ou a revolta com o atual estado da
ferrovia. Os sentimentos destacados pelo texto remetem a expressões presentes
nas narrativas como a saudade, o cansaço e o medo da morte, estes e outros
elementos entrelaçados no tecido da memória.
36
Outra interpretação, que o chega a contradizer a primeira, é que a
narrativa do Sr. Etevaldo funciona como comunicação com os colegas, algo que
reforça seu papel enquanto representante de uma classe.
Partindo da leitura que privilegia o aspecto memória, e explorando-a um
pouco mais, podemos destacar que a rememoração da rotina árdua das oficinas e
estações parece ter recebido um toque de Midas: aparece dourada e bela, em bons
e velhos dias.
Para esses homens, cuja faixa etária vai de sessenta a setenta e cinco
anos, a forma de falar do passado compromete o falar de si. Falar do passado de
uma forma idealizada pode significar o desejo de afirmar-se como um portador de
conhecimentos. Fatores psicológicos característicos do processo de envelhecer
contribuem para a construção do passado ideal, como infere Maria Letícia
Mazzucchi:
Com o passar dos anos, a intensificação da evocação do passado vem
associada, em geral, à consciência do fim iminente e dando sentido às
vivências do presente. Ao mesmo tempo a reminiscência em idosos
pode ser considerada (...) como obscurecendo a consciência das
realidades do presente, mecanismo de fuga do momento atual para um
passado idealizado, matizado por noções de felicidade e realização.
16
Os "bons tempos" são assunto recorrente nas rodas de aposentados que
se formam no jardim da AFAC
17
. Velhas histórias, troca de apelidos e piadas
animam o grupo que discute as notícias do dia e o andamento dos processos
trabalhistas que tramitam na justiça. Alguns estão diariamente, é quase
16
FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi. “ Memória e velhice: do lugar da lembrança” In Velhice ou
Terceira idade
17
Associação dos Ferroviários aposentados do Ceará, fundada em 25 de Maio de 1985. Praça
Castro Carreira SN-Centro
37
imperativo
18
. Vestem-se e saem de casa para reencontrar o lugar e as pessoas
que fazem parte de sua vida e identidade. Um dos mais falantes é o Sr. Cristino,
que sempre de jornal em punho, falava de forma bem humorada da política.
Trabalhou nas oficinas e foi também motorista. Explicou-me que dirigia um jeep
com rodas adaptadas à bitola dos trilhos. Em sua fala, gravada em 2001, coloca
questões atuais e constrói uma narrativa pessoal em torno da ferrovia.
Eu não vou dizer que eu gostei desse negócio da estrada de ferro se
acabar. Empregava muita gente, pagava bem. Porque o próprio
presidente
19
não gosta de estrada de ferro mais, né? Acabou as estrada
de ferro tudo, vendeu tudo e pronto. Hoje em dia tá tudo privatizado (...)
Agora, eu acredito que tem um negócio político, porque os político hoje
tudo é empresário, né? Os político de hoje tudo é empresário e eles não
queriam movimento de trem, que trem é coisa pra pobre, como se diz,
né? eles tiraram os trem pra botar ônibus. O movimento ficou melhor,
sobre o movimento ficou melhor. Pra ir daqui pro Crato você pegava um
trem aqui, rodava a noite todinha pra chegar no outro dia, hoje tem
ônibus pra toda parte, mas tem o preço da passage e o pessoal hoje
viaja menos, porque no trem todo mundo podia viajar, né?
Suas palavras sugerem diversas problemáticas, como a construção da
idéia do trem como “coisa de pobre”, e, ainda, as questões conjunturais que se
entrelaçam com a memória gerando uma interpretação de mundo. Que ferrovia
acabou para o Sr. Cristino? Atualmente, o sucateamento e o despreparo dos
trabalhadores são apontados como fatores preocupantes
20
. Contudo não é apenas
18
PINTO, Júlio Pimentel. “Os muitos tempos da memória” In Projeto História N
o
17 P.209. “Da
sensação de perda à ânsia de recuperar o passado: nesse trajeto enuncia-se a vontade da memória
e, mais, o dever, a ordem de lembrar”
19
Refere-se ao presidente Fernando Henrique Cardoso
20
Os constantes acidentes envolvendo a ferrovia surgem como uma das evidências da
fragilidade da atual administração da rede, distribuída entre várias empresas, enquanto a
RFFSA está em processo de liquidação. Uma das piores situações é registrada pela
“Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN), empresa que administra a ferrovia no Ceará.
CFN é recordista em acidentes - A quarta reportagem da série sobre o desmonte da malha
do Nordeste revela que após a privatização da RFFSA, em 1997, os acidentes tornaram-se
38
a isso que Sr. Cristino se refere. A ferrovia que acabou não está apenas na sucata
e no abandono dos equipamentos. Sua transformação pode ser sentida no num
novo olhar sobre o ferroviário, agora menos "importante".
A rotina de trabalho também é outra: o uso de novos equipamentos
margem à idéia de que em outros tempos o trabalho era “mais pesado”, e, assim,
considerado o “trabalho" devido ao esforço físico que exigia pela precariedade das
máquinas e dos rudes instrumentos disponíveis.
Outro aspecto que podemos destacar é a idéia, também recorrente, de que
decisões políticas interferiram nos destinos da ferrovia. O discurso técnico não
convence nenhum dos ferroviários com os quais tive contato, eles afirmam
renovadas vezes que o trem acabou por falta de interesse político e não por ser um
investimento sem retorno.
Revendo melhor alguns pontos da fala do Sr. Cristino, é possível elaborar
uma reflexão mais profunda sobre essa ferrovia como "coisa de pobre". Podemos
destacar que a elaboração refere-se aos usuários da ferrovia, pessoas que tinham
acesso ao trem e que foram prejudicados com o fim das rotas intermunicipais,
que o custo das passagens de ônibus era maior. “Coisa de pobre”, portanto, refere-
se ao baixo custo das passagens de trem, comparativamente mais acessíveis que
os preços das empresas rodoviárias.
A desativação das linhas atingiu todo interior do Estado, deixando milhares
de usuários sem acesso ao serviço. Essa situação é recorrentemente interpretada
constantes. Segundo dados do Ministério dos Transportes, a CFN registra o maior número de
desastres entre os seis grupos privados que operam ferrovias no país. O contrato de venda
da RFFSA previa que a empresa tinha que fechar o primeiro ano de operações com 161,5
acidentes por milhão de trem/Km, mas ocorreram 391,3 acidentes por milhão de trem/Km no
período. Na avaliação dos sindicalistas, a conservação das locomotivas e dos vagões e a
falta de investimento provocaram o crescimento do número de descarrilamentos. Problemas
com o roubo de peças e equipamentos ao longo da ferrovia também ampliam os riscos para
quem trabalha na malha Nordeste.” Jornal do Commercio. Recife, 12/07/01.
39
como uma injustiça cometida com os “excluídos”, gerando um discurso político que
denuncia a atuação do poder público por relegar a população à mercê dos
empresários de ônibus. Será que o Sr. Cristino está defendendo as classes "menos
favorecidas"?
Porque o trem é do pobre? Só porque é barato?
Ressaltemos que dentro de um trem de passageiros existiam várias classes.
Os trens que circulavam à época da extinção do transporte intermunicipal possuíam
pelo menos três categorias de serviço. No jornal O Povo, de janeiro de 1980,
encontramos a seguinte notícia
21
:
Passagens de trem com novo aumento
Desde o dia primeiro de Janeiro que as passagens de trens
intermunicipais e interestaduais sofreram um aumento de 40 por
cento(...)Com o aumento, são esses os preços das passagens para as
principais cidades do estado:
Cidade Preço atual
Preço antigo
Poltrona Cr$290,00 Cr$207,00
1
a
. Classe Cr$203,00 Cr$145,00
Crato
2
a
. Classe Cr$152,00 Cr$110,00
Poltrona Cr$270,00 Cr$193,00
1
a
. Classe Cr$189,00 Cr$135,00
Juazeiro
2
a
. Classe Cr$142,00 Cr$102,00
Poltrona Cr$211,00 Cr$151,00
1
a
. Classe Cr$147,00 Cr$105,00
Iguatu
2
a
. Classe Cr$111,00 Cr$80,00
Poltrona Cr$131,00 Cr$94,00
1
a
. Classe Cr$92,00 Cr$66,00
Sobral
2
a
. Classe Cr$69,00 Cr$50,00
Poltrona Cr$488,00 Cr$349,00 Recife
1
a
. Classe Cr$342,00 Cr$349,00
Terezina
Poltrona Cr$333,00 Cr$235,00
1
a
. Classe Cr$231,00 Cr$165,00
21
O POVO 5 de Janeiro de 1980 / Passagens de trem com novo aumento.
40
2
a
. Classe Cr$173,00 Cr$125,00
Tabela 1: Preços de passagem para o trem intermunicipal. Jornal O Povo, janeiro de 1980.
Na ferrovia, até seus últimos anos de funcionamento, havia classes
distintas dentro do trem. Elas estavam divididas,entre outros aspectos, por uma
significativa diferença de preços: observamos, em certos casos, uma diferença de
quase 100% entre as “poltronas” e a “segunda classe”.
Quem viajou de trem sabe que o espaço interno é bem mais amplo que o
do ônibus. maior distância entre as poltronas, as bagagens não precisam ir
apertadas numa prateleira estreita, as pessoas podem andar e se mover com mais
facilidade. Era possível transportar um balaio de frutas, uma gaiola, um saco da
feira e aum animal de pequeno porte
22
. Se isso representava certa comodidade,
por outro lado, o espaço quase desordenado pode surgir como elemento
fundamental para a caracterização do trem como "coisa de pobre".
Não será apenas o preço que define os usuários. O ônibus surge como uma
alternativa mais rápida e limpa. Não existem caixotes empilhados nem vendedores
trabalhando dentro do veículo, a postura corporal do seu usuário é diferente,
inexoravelmente mais comedida ou limitada, nem que determinada pelo reduzido
espaço interno. Contudo, não devemos esquecer que o ambiente na “primeira
classe” ou nas “poltronas” dos trens, certamente, era controlado e regrado, e
servido de luxos que os ônibus não ofereciam.
Podemos explorar um pouco mais o tema, agora pensando como o discurso
do trem como “coisa de pobre” foi incorporado por Sr. Cristino e outros ferroviários
aposentados. A forma como defendem tal caracterização em suas falas revela a
22
Havia normas para o transporte de animais, e às vezes mais de um vagão era destinado a esta
função.
41
presença do que ouviram e viram ser elaborado depois da extinção dos trens
intermunicipais: o governo não pensa nos pobres e os abandona à própria sorte,os
políticos só ajudam os empresários
Os protestos e os apelos populares estimularam a construção de uma leitura
política. O fim dos trens é entendido como uma injustiça contra os pobres, o trem
acabou por causa dos políticos. Logo abaixo transcrevo um trecho da entrevista
realizada em janeiro de 2004 com o Sr. Antônio Serafim, maquinista:
Daniela: O senhor acha que ainda daria para o trem continuar como
era?
Antônio Serafim: Dava sim, se houvesse uma recuperação, das
estradas, das linhas de ferro.
Daniela: Enquanto o senhor trabalhou sempre teve passageiro? O
número não chegou a cair?
Antônio Serafim: Não, tudo era lotado, saía o trem daqui, na sexta feira,
saía cinco horas pro Crateús, saía cinco horas para Sousa, na Paraíba,
e saía um dezessete horas, que era para Teresina. E era lotado os carro.
Onze carros, nove de passageiro, um era restaurante e outro bagageiro.
Tanto ia como voltava lotado. O movimento era grande e passagem
barata. Agora, digo que acabou-se por causa dos ônibus.Os empresário
dos ônibus queria que o produto deles tivesse saída e parece que se
combinaram com ministro, essa coisa assim...
Daniela: Quer dizer que enquanto teve trem, teve passageiro?
Antônio Serafim: Num foi falta de passageiro, não! Era lotado aqui todo
tempo. Eu queria que você estivesse aqui no dia em que saía um trem
de sexta feira, 18:45h, pra cá, e 19:00 pro Crato. Lotado tudinho, tinha
até ar condicionado nos de classe.
Há em suas falas uma necessidade de reafirmar a "injustiça" que foi "acabar"
com os trens intermunicipais, prejudicando seus usuários e também o desmonte da
ferrovia. Se não existe mais o trabalho do ferroviário que servia àquela população,
42
conseqüentemente esse trabalhador passa a ter outro valor dentro da sociedade,
como descreve Cid Carvalho
23
:
A redução da malha ferroviária e o desaparecimento gradual do
transporte de passageiros também faz com que o trem deixe de ser uma
referência para aquelas milhares de pessoas que utilizavam o sistema.
Ser ferroviário torna-se sinônimo de algo obsoleto.
O que significa ser ferroviário? Como esta questão aparece nas falas e
memórias? Como ser ferroviário é afetado pelo "desmonte" da ferrovia? E como a
profissão "torna-se sinônimo de algo obsoleto"?
Relembremos o texto escrito pelo Sr. Etevaldo no editorial do jornal da
Afac: "(...) é sucata e ninguém dando a mínima importância ao pouco que restou
daqueles tempos áureos". O que restou daqueles tempos áureos? está inserida
a figura do ferroviário. Junto com a ferrovia em crise o ferroviário vê-se esquecido,
ninguém parece dar mínima importância ao que restou daqueles tempos.
O Sr. Cristino declarou em certo momento da nossa entrevista: "Nós era
valorizado, hoje nós é igual um gari". A comparação sugere um paralelo entre o
prestígio do ferroviário e a desvalorização do trabalho do gari. Ontem, o ferroviário
era valorizado, hoje não é mais, não é visto e não se da mesma forma. A
comparação ressalta ainda a idéia pessoal que o Sr. Cristino tem do gari, ele
reproduz a idéia de desqualificação e do status inferior atribuído a esse
trabalhador
24
.
Mas o que faz o gari? Cuida do lixo, dos dejetos da cidade. Outra
aproximação possível? Os restos, o homem que lida com os restos, o gari, o
23
CARVALHO, Cid Vasconcelos de. O trem em Camocim: Modernização e Memória. Dissertação de
Mestrado UFC Agosto /2001
24
LOPES. Rosana Miziara. Os restos e a cidade. In Cidades São Paulo: Programa de História/PUC
-SP e Editora Olho d'Água.1999
43
ferroviário. O homem que trabalha com o lixo, com o imprestável, inútil, sujo. O
homem que lida com aquilo que é bem melhor esquecer, com aquele elemento
estranho que deixa uma marca desconcertante e incômoda na paisagem: o vagão
parado, o monturo.
Lixo e ruína, uma aproximação palpável, uma fronteira imprecisa.
Quem deseja ser o senhor da ruína? Não, os ferroviários não querem, eles
a negam de formas sofisticadíssimas. Mesmo quando reclamam do sucateamento
e do abandono da ferrovia, sublinham que se trata da ferrovia de hoje, não daquela
que conheceram e na qual trabalharam. Quanto ao "valor" do trabalhador
ferroviário, e a forma como ele é encarado pela sociedade, nossos depoentes
fazem questão de afirmar que já “foram muito bem vistos”.
Podemos perceber a memória como uma arena em que as disputas variam.
Elementos subjetivos, frustrações pessoais, desejos, tudo permeia o memorável.
As elaborações podem tentar negar ou reforçar o vínculo com o mundo do trabalho.
Os depoimentos, e também outras fontes, buscam "dourar" esse passado, o
trabalho e a ferrovia que não há. E o reforço do brilho de um outro tempo pode
partir da depreciação do presente.
Tomaremos agora mais um trecho da entrevista com o Sr. Antônio Serafim.
O Sr. Antônio foi maquinista, é filho de maquinista e junto com os irmãos trabalhou
na rede. É um negro magro, com cerca de um metro e oitenta de altura, bem
vestido, camisa engomada e sapato brilhante. Muito elegante e simpático, possui
uma voz forte e grave, que enche o ambiente. Gosta de dançar e de falar sobre as
festas com os amigos.
44
O trecho em destaque transcreve o momento de nossa entrevista no qual eu
tentava saber o que ele acha do atual estado de conservação da ferrovia. Tentava
tocar mais uma vez num assunto que ele evitara anteriormente:
Daniela: Hoje em dia eu noto a estrada muito sem conservação, o que o
senhor acha disso?
Antônio Serafim: Eu com dezessete anos que não sei nada por
mais.. Dezessete anos que não sei mais de nada
Daniela: O senhor nunca mais viajou?
Antônio Serafim: Nem daqui ali pro Maracanaú.
Daniela: Não usa mais nem o urbano aqui?
Antônio Serafim: Não, nada. Dezessete anos agora no dia 30 de
dezembro.
Daniela: E o senhor não tem saudade, não?
Antônio Serafim: Tenho não.
Daniela: O senhor vem aqui por causa dos amigos...
Antônio Serafim: Até os amigos tá difícil. A maior parte dos meus
colegas já morrero.
Daniela: E o senhor está com quantos anos?
Antônio Serafim: De idade?
Daniela: É
Antônio Serafim: Meia oito. No dia 31 de dezembro de 86 eu me afastei,
e eu sou de 35.
Daniela: Qual foi o último trem que o senhor trabalhou?
Antônio Serafim: Foi um trem por nome PN11, que era que saía daqui
na quinta-feira e ía para Teresina. Eu ficava no Crateús e o trem passava
pra Teresina. eu era substituído. Tinha dia de sábado de manhãzinha
saía um pro Crateús, saía daqui cinco horas, quando era sete hora da
noite, saía outro, pra Teresina, chegava no sábado, dez e meia do
dia, e saía domingo doze horas, chegava aqui na segunda-feira cinco
horas da manhã. Era o chamado PN9/PN10, era nove por dez. E o PN11
saía na quinta e chegava no sábado aqui. Os dois ía pra Teresina, agora
o PN7 saía daqui cinco horas e ficava no Crateús.
Daniela: O senhor se lembra bem dos horários!
Antônio Serafim: Eu tenho tudo guardado.
45
Daniela: Partidas e chegadas...
Antônio Serafim: E o roteiro das parada. Eu saía daqui cinco horas,
chegava ali na Floresta cinco e sete e saía cinco e nove; passava dois
minutos parado, e saía cinco e nove e chegava no Antônio Bezerra
cinco e quinze; passava dois minutos parado e saía cinco e dezessete;
era sempre um minuto ou dois na estação. Pra descer, subir e carga, né?
Ele inicialmente nega saber alguma coisa sobre a atual ferrovia, afirma não
saber nada e nem sequer anda de trem. Em seguida, desdobra parte de seu
potencial de conhecimento e memória acerca da ferrovia do seu tempo. Esta, sim,
ele conhece; e, mesmo hoje, guarda todos os horários de cor. Negar o contato ou
furtar-se de opinar sobre como é operado o transporte ferroviário é uma tática para
defender-se do que veio em seguida, o fim das linhas interestaduais e
intermunicipais? Em outros momentos da entrevista libera uma avalanche de
informações, reafirmando seu conhecimento. Contudo, o Sr.Antônio Serafim opina
de forma vaga sobre a ferrovia de hoje, parecendo não se importar e até mesmo
negando-a.
Ele diz não ter saudade. Mas a precisão das datas - do dia em que saiu e o
tempo da aposentadoria bem contado em anos - comunica uma relação para a qual
a palavra saudade talvez não seja suficiente. Penso que minhas perguntas foram,
de certa forma, descompassadas, meu interlocutor possui uma linguagem muito
peculiar e assim organiza sua memória.
Em vários momentos das nossas conversas e entrevistas ele aciona essa
espécie de arquivo de dados, citando minuciosamente datas, horários, roteiro de
trens. Nesses momentos lembro que sua postura corporal mudava um pouco,
parecia mais ereta, empertigava-se; eu o compararia a um escolar que decorou a
lição e a recita para a professora.
46
Voltaremos a encontrar o Sr. Antônio Serafim em outros momentos deste
trabalho, mas antes de nos despedirmos dele, e reforçando o tema dos significados
do que é "ser ferroviário", vejamos como ele compara seu trabalho aos atuais
maquinistas:
D: Este trabalho de maquinista hoje é como era no seu tempo?
Antônio Serafim: Ah.. Eu acho que não é mais como no meu tempo,
não. Esses maquinista que tem aqui sabe ir até o Marcanaú. O sujeito
pra ser maquinista tem que conhecer o trecho, tem que conhecer o trecho
pra fazer a marcha do trem. Onde é descida, onde é os alto, pra máquina
não deslizar na rampa. esses aqui sabe ao Maracanaú e pra
eles não sabe nem o nome das estação...Se voltasse o trem de
passageiro pra lá, tinha que treinar muito (estala os dedos)
O maquinista de hoje tem muito a aprender, muito a treinar, "só sabe até o
Maracanaú e pra lá eles não sabe nem o nome das estação". O Sr. Antõnio Serafim
valoriza o conhecimento que possui, as dificuldades do traçado que enfrentava,
tanto na Linha Norte como na Linha Sul. Para ele, o maquinista de hoje, pela
brevidade do percurso no qual opera, precisaria treinar muito, precisaria de muita
qualificação para fazer o que ele fazia.
O Sr. Vicente, ex-trabalhador da conserva, também teceu uma comparação
entre o seu trabalho e o atual. Baixo, calvo e corpulento, costuma usar camisas de
xadrez largas e beber num bar próximo à Praça da Estação. Falava rápido, mas às
vezes fazia longas pausas. Quando lhe foi sugerido comparar o seu serviço com o
do trabalhador da "conserva " de hoje, colocou:
Tá muito mais fácil, num tem que levar o trole, é tudo de carro a motor na
linha, máquina ligada na eletricidade. As ferramenta tudo moderna,
manera, muito bom agora. No meu tempo a gente fazia acampamento
47
era no mei do tempo. Agora pra puxar energia elétrica de quase todo
canto.
Em outubro de 2001 quando fiz essas perguntas tinha em mente explorar
como eles sabiam ou imaginavam o cotidiano do ferroviário de hoje. Este recorte
ontem/hoje serve - não para traçar uma comparação efetiva com o trabalho atual, o
que seria uma discussão estéril, posto que fechada em si mesma - para provocar
memórias sobre como era o trabalho. Meu objetivo é tentar desvendar um pouco
mais daqueles dias e o trabalho exercido outrora: teria sido difícil e pesado?
Haveria muita pressão externa no controle do tempo das tarefas?
A fala do Sr. Vicente, que antes resistia a mencionar as dificuldades,
ressaltando apenas os "bons tempos", fornece elementos para que imaginemos
como era desgastante levar o carro com tração manual até o ponto do trecho com
defeito. Os operários da “conserva” levavam e traziam o carro carregado de
pessoas, ferramentas e materiais para a obra.
Ressalto, a partir da narrativa do Sr. Vicente, a qualidade que é dada ao
trabalho mais árduo, exercido no passado, em contraposição ao que imagina ser
executado atualmente, mais “manero”, ou seja, menos árduo.
25
Os acidentes e o
trabalho árduo continuam a fazer parte da rotina do operário da ferrovia:
Enquanto estiver vivo o recifense Marcos Vieira de Andrade, de 47
anos, nunca esquecerá o dia 08 de Março de 1999. Naquela noite,
trabalhando em Sousa, na Paraíba, o ferroviário perdeu a perna direita
num grave acidente, quando o equipamento de socorro em que viajava
tombou na linha. O fato trágico é que o acidente ocorreu no momento
em que a equipe de Marcos Andrade estava se deslocando até a divisa
com o Ceará, para socorrer uma locomotiva acidentada. No mesmo
acidente, um colega de Marcos Andrade morreu. O acidente foi
provocado por um grampo na linha (prego que fixa os dormentes nos
trilhos), mas as condições de trabalho agravaram o sinistro.
25
Recife 12/07/01. Jornal do commercio. CFN é recordista em acidentes (manchete)
48
“Viajávamos em uma caminhonete adaptada para correr sobre os
trilhos. Trabalhávamos à noite e o veículo não tinha iluminação
adequada, como uma locomotiva de socorro. Além disso, os cinco
reboques que estavam sendo puxados tinham excesso de peso. O
comboio devia pegar 1,2 mil quilos, mas estava com 5 mil quilos,
incluindo até tambores de gasolina. Dos cinco reboques, três
carregavam dormentes”, conta Marcos Andrade.
Longe de constituir casos isolados, os acidentes na malha nordeste são
cada vez mais freqüentes, especialmente após a privatização da
RFFSA em 1997.
A rotina de trabalho na ferrovia é ainda muito fatigante e exige um bom
estado dos equipamentos e preparo das turmas.
No tempo descrito pelo Sr. Vicente as turmas de manutenção de linha
passavam até quinze dias longe de casa, a disciplina e a hierarquia eram muito
rígidas
26
. Geralmente isso não é mencionado e quase sempre prevalecem
depoimentos como os do próprio Sr. Vicente, que ressalta a importância da ferrovia
em sua vida: “Eu me fiz gente na RFFSA, aprendi a ler, aprendi tudo mais. Tudo
que eu sei e aprendi, as amizades importantes, tudo foi nela. do roçado eu não
trouxe nada, só os filho, né?”
Nas rememorações, a trajetória de vida é recomposta como um grande
aprendizado, a lida e o universo do trabalho atuariam como agentes fundamentais
na formação do caráter do ferroviário através da convivência.
Divergentes, esparsas, tecidas entre o pessoal e o coletivo, essas
memórias apresentam a vontade de viver, um exercício de resistência, um desejo
de reconhecimento numa sociedade que não respeita o velho, que sabe cada vez
26
Caracterizando o que Hardman considera uma organização mecânico-militar” Os negativos da
História: A ferrovia-fantasma e o fotógrafo cronista" In Resgate Revista de Cultura. Centro de
Memória UNICAMP. Papirus. Campinas 1993
49
menos o que significam suas memórias de onde emergem máquinas e rotinas
desconhecidas. Sobre a questão, Marilena Chauí
27
avalia:
Que é pois ser velho na sociedade capitalista? É sobreviver. Sem
projeto, impedido de lembrar e de ensinar, sofrendo as adversidades de
um corpo que se desagrega à medida que a memória vai-se tornando
cada vez mais viva, a velhice, que não existe para si mas somente para
o outro. E este outro é um opressor.
Podemos interpretar as falas dos ferroviários como apresentação de um
projeto de memória - em que cabe o idílio de dias passados - que se reafirma e se
compõe de cores contrastantes para superar o cinza pálido que cerca a ruína-lixo-
ferrovia.
A ferrovia-projeto e a ferrovia-memória tanto convergem quanto se opõem,
e em suas margens emerge e floresce todo um universo de indícios: vozes, objetos,
textos.
Sobre a ferrovia-projeto trataremos no próximo item, onde discutiremos as
muitas “razões” da ferrovia no Ceae os descompassos que acompanharam sua
efetivação.
27
CHAUÍ,Marilena Introdução In BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.pp 18-19
50
1.2 Entre o Cataclisma climatérico e o creme de aspargos: tensões e
contradições no desenhar da ferrovia
Ao chegar no Ceará no século XIX, a ferrovia era o sinônimo máximo de
progresso. A expansão do equipamento ferroviário invadia o território cearense e
levava novas noções de tempo, velocidade e potencial de carga. Para termos uma
idéia, o transporte terrestre de cargas era geralmente feito em carroças e tropas de
burros.A estrutura dessas composições é assim descrita por Estevão Pinto:
As cargas eram transportadas pela tropas, comboios de cerca de
cinqüenta animais estavam divididos em lotes de sete animais, com seus
respectivos tocadores. Cada animal conduzia uma carga média de 500
libras
28
, vencendo um percurso de perto de seis léguas
29
. Ao tempo de
James Henderson (1819-1820), dois mil burros carregados entravam
diariamente no Rio de Janeiro. O tropeiro, apesar da impressão penosa
que deixou em A. de Saint-Hilaire, era como que um bandeirante: o
carreão, o mensageiro, o condutor, o ferreiro, o estafeta, o seleiro, o
homem enfim que transportava as utilidades e as idéias, os bens
materiais e notícias do mundo
30
A descrição possibilita o vislumbre do que foi o impacto dos trens no setor
de transportes de carga. Comparado às modalidades terrestres, até então
existentes, o trem possui expressivas vantagens, não no quesito velocidade,
mas também no potencial de carga que chega a milhares de toneladas. Explorando
28
Unidade de medida de massa, igual a 0,45359237kg, utilizada no sistema inglês de pesos e
medidas.
29
Antiga unidade brasileira de medida itinerária, equivalente a 3.000 braças, ou seja, 6.600m; légua
brasileira.
30
PINTO, Estevão. História de uma estrada de ferro do nordeste. Coleção Documentos Brasileiros.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio , 1949.
51
um pouco mais a passagem, observamos que ela proporciona uma reflexão acerca
do papel multifuncional que os transportes desempenham. Parte da gama de
atividades executadas pelos tropeiros, cujo esforço é louvado pelo autor, passaram
a ser também exercidas e vivenciadas pelos ferroviários. Cartas, encomendas,
notícias, animais, tudo sob a responsabilidade da ferrovia que transportava “as
utilidades e as idéias”.
A velocidade e a periodicidade das passagens regulares dos trens pelas
estações geraram uma nova percepção do tempo. Esse é um dos aspectos
destacados quando se trata das implicações do advento das ferrovias no cotidiano.
Em muitos aspectos a estrada de ferro mudou a face das cidades,
introduziu os diferentes aspectos da vida moderna, e chegou a
transformar as noções de tempo, de pressa, de pontualidade, de hora
certa e valor comercial do tempo. O “horário do trem” se sobrepôs à hora
local, solar e relativa, dada pela igreja. As diferenças de minutos
passaram a ser importantes e, nas cidades maiores, as torres das
estações introduziram relógios marcando a hora exata, conceito até
então injustificável. “Perder o trem” tornou-se expressão de
incompetência e ridículo.
31
O trem impôs um novo olhar sobre o tempo e requalificou o transporte de
cargas de grandes volumes, de animais e outros produtos, causando impacto na
economia e no cotidiano. As estações passaram a ser locais centrais,
principalmente para as pequenas vilas que floresceram ao seu redor . O impacto da
chegada da ferrovia não se deu de forma homogênea nem simultânea, ao contrário,
essa é uma história cheia de sinuosidades.
31
COSTA, Cacilda Teixeira da. O sonho e a técnica : A Arquitetura de Ferro no Brasil 2
a
. ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.p.123.
52
Tratando-se especificamente do estado do Ceará, encontraremos alguns
descompassos entre as expectativas de implantação da ferrovia - mesmo antes do
primeiro trem circular sobre os trilhos - e sua efetivação. Vale a pena discorrer um
pouco sobre aqueles primeiros anos, pois assim teremos elementos para
estabelecer conexões com a problematização das idéias de progresso e
decadência.
A ferrovia avançou a passos lentos. Sua construção foi iniciada em 1872 e
paralisada em 1876 por motivos econômicos, sendo retomada apenas em 1878,
ano de seca. De tragédia a estiagem transformou-se em mote para o pedido de
verbas para que as frentes de serviço se ocupassem do trabalho de construção da
estrada de ferro. Episódio significativo foi o envio de uma mensagem, do então
conselheiro Cansanção de Sininbú, na qual solicitava a liberação de verbas para
uma frente de serviços que auxiliaria os flagelados da seca e atuaria na construção
da ferrovia no Ceará.
O episódio deu origem a um documento muito citado pelos pesquisadores
que se dedicaram a escrever sobre o assunto. Um dos primeiros livros que tratam
diretamente do tema ferrovia no Ceará, é o “Origem da Viação férrea Cearence”, de
Otávio Memória, publicado em 1923. Eis um trecho da introdução de Otávio
Memória sobre a Carta de Cansanção de Sininbú:
Concluídos os serviços da 1
a
secção, com a inauguração da estação de
Pacatuba, aggravaram-se as condições financeiras da companhia, não
obstante a dilatação do tráfego até aquelle ponto, cuja receita
augmentara com o transporte dos productos dessa então florescente
villa, e localidades limitrophes.
Ante o cataclisma climaterico de 1877-1879, de triste celebridade, o
governo imperial que não poupará esforços no sentido de attenuar os
soffrimentos dos filhos da província, incumbio o Ministério, sob a
53
presidência do egrégio estadista, o conselheiro João Lins Viera
Cansansão de Sinimbú, de estudar as medidas que lhe parecessem mais
consentâneas a fim de dar combate efficiente às causas oriundas do
terrível flagelo.
32
Um dos elementos que mais chama atenção é o destaque dado à seca. Ela
é a protagonista, a ferrovia vem graças ao “cataclisma climatérico”. Contudo, essa
formulação não se limita às primeiras pesquisas sobre o tema: até mesmo em
obras recentes encontraremos a idéia do fator climático como definitivo para a
implantação da ferrovia no Ceará.
Entre os vários fatores (econômicos, políticos, administrativos, etc) que
determinaram a implantação, construção e o desempenho das estradas
de ferro, sobressai o fator climático, principalmente sob a forma de secas
periódicas
33
.
De fato, a necessidade das frentes de serviço foi usada como argumento.
Mas ressaltemos que a construção das ferrovias estava na ordem do dia, era uma
verdadeira febre no final do século XIX. Assim, mesmo depois da suspensão das
frentes de serviço muitas obras paravam ou eram dadas por acabadas, com
exceção das ferrovias
34
que continuavam a empregar mão-de-obra barata e farta.
Destaquemos que desde sua implantação, o projeto ferroviário foi um celeiro
de contradições. O Ceará implantou uma ferrovia sem que, tecnicamente,
32
MEMÓRIA, Octávio. Origem da Viação Férrea Cearense Tipografia Comercial, Fortaleza
1923.p.431
33
FERREIRA,Benedito Genésio. A Estrada de Ferro de Baturité.:1870-1930. Fortaleza: Edições
UFC/Stylus, 1989.p.51
34
“Pelos motivos expostos em meu relatório anterior de 11 de Julho de 1870 foram suspensas todas
as obras em que eram empregados os indigentes socorridos pelo estado, a excepção das
estradas de ferro de Baturité e Sobral(...)Entretanto, dos relatórios das comissões e do resumo
que fez a secretaria dos mappas de 49 municípios, vê-se que nelles empreggaram-se os
indigentes em mais de 500 obras adiante especificadas, sendo:Açudes 73/Egrejas
64/Cemiterios50/Estradas e ladeiras 60/Cadeias 48/Poços de alvenaria 31/Escholas 29/Casa de
Camara 25/ Pontes 19/ Calçamentos de estadas e ruas/Aterros(viaductos etc)23// Mercados
14/Canos de Esgoto 7/Quarteis 7/Asylos 3/ Obras diversas 30”-Relatóro do Presidente da
Província de 1890.
54
possuísse demanda real para sua utilização. O símbolo do capitalismo
internacionalizado teve sua construção viabilizada sob o flagelo da seca. As
frentes de serviço faziam a ferrovia avançar, transformando a paisagem e inovando
as relações de trabalho, como destaca o pesquisador Tyrone Cândido:
Os retirantes viram, no trabalho da ferrovia, um modo de garantia da sua
sobrevivência imediata. Em situação de carência extrema, dispuseram-se
a trabalhar por roupas, alimentos e um parco salário que quase nada
podia comprar. Em contraste com as pretensões dos homens de
negócios e proprietários
_
que buscavam, na construção da estrada de
ferro de Baturité, além de um meio de incentivo ao crescimento
comercial, um instrumento para a educação da população alheia às
novas concepções produtivistas, e que em momentos de crise pareciam
se dispor a contrair qualquer relação de trabalho
_
, os sertanejos
demonstraram peculiar resistência ao trabalho disciplinado.
35
A tabela abaixo, apresentada por Otávio Memória em 1923, relaciona as
datas de construção e a distância entre as estações:
35
CÂNDIDO, Tyrone Apolo. Os trilhos do progresso: episódios das lutas operárias na construção da
estrada de Ferro de Baturité.In Trajetos. Revista do Programa de Pós-Graduação em História
Social e do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. V.1,n.2 (jun2002)-
Fortaleza:Departamento de História da UFC, 2002.
Estações Posição Km Data da Inauguração
Central 0,00 29 de Novembro de 1873
Matadouro 3,468 06 de Janeiro de 1923
Porangaba (Arronches) 7,559 29 de Novembro de 1873
Mondubim 11,691 14 de Janeiro de 1875
Pajuçara 17,526 24 de Maio de 1918
Maracanahú 21,201 14 de Janeiro de 1875
Monguba 27,004 09 de Janeiro de 1876
Pacatuba 33,570 Idem
Guayúba 40,388 14 de Junho de 1879
Bahú 51,623 14 de Março de 1880
Água –verde 57,591 28 de Setembro de 1879
Acarape 65,862 26 de Outubro de 1879
Itapahy 72,95 20 de Setembro de 1896
Canafístula 78,893 04 de Março de 1880
Aracoyaba 91,004 Idem
Baturité 100,987 02 de Fevereiro de 1882
Açudinho 110,540 23 de Dezembro de 1921
55
Tabela 2: Estações da linha Sul
Por um lado, havia os trabalhadores das frentes emergenciais de serviço,
do outro, engenheiros “importados” conjuntamente com os projetos de ferrovia. Daí
as casas de funcionários e estações em estilo inglês. Essa diversidade de
temporalidades se apresenta desde os primeiros anos e caracteriza as
contradições e desencontros da tecnificação
36
.
As características das atividades econômicas brasileiras de meados do
século XIX justificam a implantação dos sistemas ferroviários em algumas regiões.
Esses sistemas apresentavam um sentido funcional dentro de um quadro político-
36
SILVA FILHO, Antônio Luíz Macedo e. Paisagens do consumo: Fortaleza no tempo da Segunda
Grande Guerra. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 2002.
36
Araújo, Hermetes Reis de.Técnica e Natureza na Sociedade Escravista. In Revista Brasileira de
História, v.18, no. 35, p287-305.1998
Riachão 120,016 08 de Dezembro de 1890
Itaúna(Castro) 133,276 01 de Junho de 1891
Cangaty 146,477 08 de Dezembro de 1890
Junco 169,804 07 de Setembro de 1891
Quixadá 187,740 Idem
Floriano Peixoto (Juá) 201,435 04 de Agosto de 1894
Francisco Holanda 210,506 27 de Abril de 1919
Uruquê 219,710 04 de Agosto de 1894
Quixeramobim 235,379 Idem
Salva-vidas 249,00 09 de Janeiro de 1921
Prudente de Moraes(Muxuré) 258,187 04 de Julho de 1899
S. de Lacerda 267,839 Idem
Senador Pompeu (Humayá) 287,299 02 de Julho de 1900
Girau 316,837 15 de Novembro de 1907
Miguel Calmon 335,184 08 de Maio de 1908
Affonso Penna 362,253 10 de Julho de 1910
São José 382,487 05 de Agosto de 1910
Suassurana 397,982 05 de Novembro de1910
Iguatú 413,482 Idem
Jaguaribe 423,665 31 de Dezembro de1922
J. Alencar 433,243 30 de Março de 1916
Várzea da Conceição 445,030 15 de Agosto de 1916
Malhada Grande 450,360 Idem
Cedro 465,037 05 de Novembro de 1916
Paiano 476,435 31 de Dezembro de1922
Lavras 488,017 01 de Dezembro de 1917
Riacho Fundo 500,075 07 de Setembro de 1920
Aurora 513,235 Idem
Ingazeiras 537,321 07 de Setembro de 1922
56
econômico agro-exportador. A principal função da ferrovia seria o "escoamento dos
fluxos de produção agrícola e extrativa no sentido interior-litoral"
37
, ligando as zonas
produtoras de matéria-prima aos portos. Essa justificativa econômica também foi
evocada para a construção de linhas férreas no Ceará.
Notemos que se a ferrovia foi construída, em parte, pela necessidade de
um sistema de transportes, ela também atendia o desejo de colocar a província
cearense nos trilhos do progresso. Diversas "razões" que se confundiram:
vaidades, disputas políticas, proveito da mão de obra barata e do dinheiro público.
Necessidades e aspirações muito bem efetivadas pelo senso de oportunidade.
A predominância das verbas públicas e o uso das frentes de serviço
caracterizam bem a conjunção de "arcaísmo social e inovação tecnológica"
38
, que
não foi um fenômeno particular do Ceará, segundo Hermetes Reis:
A distância entre os ideais de modernização técnica e sua efetiva
realização social sempre foi muito grande no Brasil, onde a construção
do Estado nacional se fez sobre uma base escrava e ao mesmo tempo
em que um sistema técnico e um novo modo de produção faziam sua
aparição na Europa.
Logo depois do início das obras da estrada de ferro de Baturité, se
pensava ligação do município de Sobral a Camocim, esta, à época, o porto de
referência da região Norte. As obras da estrada de ferro de Sobral começaram em
março de 1879, antes mesmo que a estação de Baturité tivesse sido inaugurada.
Estava sendo desenhado o traçado dos trilhos em solo cearense, que tem a cidade
de Fortaleza como ponto central. Ela é o vértice de duas linhas, a Norte e a Sul,
cujos traçados tiveram suas principais obras realizadas até os anos 1920.
As obras iniciais para a estrada de Sobral também provêm da verba para
frentes de serviço. Apesar da euforia com a chegada do progresso, materializado
pela ferrovia, houve quem achasse impróprio ou precipitado seu traçado. A Sobral-
37
BARAT, Josef A evolução dos transportes no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; IPEA, 1978,
57
Camocim foi criticada por razões técnicas
39
, e inspirou críticas severas, como a de
Antônio Bezerra, que, em 1884, visitou a região Norte do estado e registrou sua
impressão sobre o projeto da Estrada de Ferro de Sobral:
Estrada de ferro de Sobral!
Aquilo significava para mim a última palavra da vaidade humana, a
ostentação caprichosa da falta de patriotismo, a impunidade do extravio
de dinheiros públicos sob fútil motivo, o ridículo mais cruciante aos
sacrifícios de um povo inconsciente de seus direitos!
Adiante me encarregarei de provar o que vem a ser aquele luxo de
despesa, aquela gargalhada de escárnio modulada em escala
ascendente, desde Camucim até Sobral, que nem o futuro, com todas as
suas promessas de grandeza será capaz de emudecer.
Presentemente contento-me com dizer que não conheço nesta Província
nada mais inútil, nem mais ilusório, que aquela grande mentira escrita em
131 quilômetros de trilhos de ferro.
Não me engano e duvido que os homens profissionais, em quem palpite
no coração resto de amor da pátria, sejam capazes de me contestar
seriamente.
40
As palavras ácidas de Antônio Bezerra dão margem à questão: foi
precipitada a construção daquelas estradas? Em que medida era um "luxo de
despesa"?
Outro fator que lança novos significados ao texto de Antônio Bezerra é o
fato de a referida estrada ser ameaçada de desativação poucos anos depois de seu
cinqüentenário, o que para uma obra ferroviária, cujos custos são recuperados a
longo prazo, significa malogro. Curioso é observar que nem a possibilidade de
sucesso seduzia o crítico, que considera tão discrepante a idéia a ponto de achá-la
imprópria, mesmo que com o tempo viesse a construção da Estrada de Ferro de
Sobral se proveitosa.
39
Um artigo publicado jornal Pedro II, Nov, 1878 sugeria o traçado Acaraú-Marco-Sobral.
40
BEZERRA, Antônio, Notas de agem, Fortaleza, Imprensa Universitária, 1965
58
Quando em 1908 foi encampada a idéia de prolongamento da Sobral-
Camocim até Crateús, a chegada do Engenheiro João Tomé e de uma comitiva de
autoridades deu a dimensão dos significados sociais e dos desdobramentos que a
implantação de uma ferrovia poderia atingir. Aqui transcrevo um trecho de artigo
escrito em exaltação ao ilustre engenheiro. Seu conteúdo me estimulou a imaginar
sobre o quanto de "vaidade humana e ostentação caprichosa" não estariam
impregnando o ar.
Ao passar o navio pelo morro "Testa Branca", foi o ilustre viajante
saudado com uma salva de 21 tiros, tendo desembarcado debaixo de rijo
foguetório e ao som dos acordes da banda de música "Eutherpe
Sobralense". Nesse artigo, intitulado "Dr. João Thomé - chegada", dá-
nos Vicente Loiola o programa completo das festividades do dia que
incluíram, além da recepção no pôrto, um banquete ao meio-dia e um
sarau no edifício da estação central. E, curiosidade graças à qual
podemos comprovar o grau de finura da sociedade local àquela época,
cita o cardápio do banquete, de uma variedade rara em nossos dias:
mais de dez pratos, incluindo creme de aspargos, salada de camarões,
torta de pombos, várias qualidades de galinha, carneiro com legumes,
peru, fiambre, sobremesas variadas além de champanha, vermute,
licores e conhaque"
41
Entre bandas de música e concorridos eventos públicos, a ferrovia
adentra o Ceará. O creme de aspargos nem sempre estava no cardápio, mas o
gosto pela ostentação técnica era certamente mais inebriante que o melhor
champanha.
Enquanto gozava de sua fase de expansão, a ferrovia acumulou diversas
funções como o serviço de correio e telégrafos, entrega sistemática de
41
TÁVORA, Fernandes. Dr João Thomé Saboya e Silva. Revista do Instituto do Ceará. v.88 Jan/dez
1970p 156-167.
59
encomendas, jornais e correspondência. Além de uma rotina criada em torno das
chegadas e partidas dos trens.
O trabalho na ferrovia e a capacidade de lidar com seu equipamento
ganhavam importância dada a novidade da tecnologia e sua função que mesclava
transporte e comunicação. Em seu artigo sobre a cidade de Castanhal no Pará,
Franciane Lacerda
42
destaca as diversas atividades que cercavam a estação local
de múltiplos significados, inclusive como pólo irradiador de comunicação. Através
de sua descrição podemos imaginar a movimentação nas estações:
A estação nas cidades do interior do Pará acabavam sendo um espaço
público que permitia uma variedade de atividades, sobretudo as de um
pequeno comércio ambulante cujos horários de venda correspondiam
aos horários do próprio trem; tapiocas, pirulitos de maracujá ou
caramelo, pipocas, bolo, pastéis, refrescos e cafés, eram iguarias
facilmente encontradas no pátio da estação.
As mudanças provocadas pela chegada da ferrovia ainda estavam sendo
assimiladas. As estações eram locais de convivência e a chegada dos trens,
cumprindo horários bem delimitados, impunha um novo ritmo. Também para buscar
socorro e ajuda as pessoas acorriam às estações
43
, que foram implantadas no
sertão sob a expectativa de amparar os que sofriam o flagelo da seca.
42
LACERDA, Franciane Gama. “Cidade, memória e experiência ou o cotidiano de uma cidade do
Pará nas primeiras décadas do século XX”. In Pesquisa em História. São Paulo, PUC/ Olho
d’água, 1999.p210
43
“As regiões mais atingidas pela seca aglomeravam nas suas estações de trem uma imensa
quantidade de famintos. Desses lugares saiam todos os dias, locomotivas com todos os seus
vagões completamente lotados. Muitas estações ferroviárias transformaram-se em espaços de
grande tensão entre os retirante e as forças policiais”.RIOS, Kênia Souza .Isolamento e poder:
Fortaleza e os campos de concentração na seca de 1932. Dissertação de Mestrado: PUC-SP
1997p.20
60
A ferrovia foi desenhada: tendo como ponto central a cidade de Fortaleza, de
onde partem as linhas Norte e Sul, sua extensão
44
sofreu poucas alterações ao
longo do século XX.
Anos Extensão em Km
1937 1240
1938 1242
1939 1235
1940 1274
1941 1288
1942 1290
1943 1290
1944 1291
1945 1291
1946 1284
1947 1284
1948 1331
1949 1380
1950 1395
1951 1395
1952 1395
1953 1395
1954 1395
1955 1395
1956 1395
1957 1395
1958 1387
1959 1387
1960 1384
1961 1266
1962 -
1963 -
1964 -
1965 -
1966 -
1967 -
1968 -
1969 -
1970 1319
1971 1319
44
Anuário Estatístico do IBGE. Secretaria de Planejamento da Presidência da República/ Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
Tabela 03:Extensão da Rede
Ferroviária em tráfego / Estado do
Ceará
61
Podemos analisar na tabela que discriminada a extensão da rede ferroviária
em Km. Os números apresentados dão conta de que a ferrovia cearense, a partir
do final dos anos 1930, praticamente não teve sua área aumentada. Notemos,
ainda, a desativação de ramais, momento em que a extensão da linha decresce.
No final dos anos 1950 - época em que a implantação das locomotivas a
diesel sei consolidava no Ceará e a integração com outros estados começava a se
tornar realidade
45
- assistimos ao desaquecimento do setor ferroviário. Ramais
ferroviários passaram a ser extintos sob o rótulo de “anti-econômicos”. Josef Barat
destaca as tendências da política de transporte nesse período:
Rodovias assumindo papel preponderante no deslocamento dos fluxos
de média e longa distâncias; deterioração dos sistemas ferroviário e de
navegação de cabotagem, desorganização administrativa das autarquias
responsáveis pelos investimentos e operação dos sistemas de
transportes e ausência de coordenação intermodal.
46
No Ceará, a ferrovia não deixou de crescer como passou a ser
desmontada: ramais foram desativados e em alguns trechos de obras
abandonados. A maioria dos ferroviários aposentados, que entrevistei, entrou na
“estrada de ferro” justamente nesse período, na década de 1950.
Eram os anos de juventude desses operários e o trabalho na ferrovia surgia
como uma boa opção. O empreendimento ferroviário parecia sólido e não se
esperava um desaquecimento do setor. Contudo, as expectativas tanto do
ferroviário quanto do usuário não seriam contempladas pela política de transportes
45
“Ligação à RVC da Rede Ferroviária do Nordeste” Esta foi a manchete de primeira página d'O
Povo, a reportagem prossegue: Foi inaugurado o trecho ferroviário entre Campina Grande e
Juazeirinho de 99 quilômetros de extensão”. Jornal O Povo 19/01/1957.
46
BARAT, Josef. A evolução dos transportes no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE;IPEA, 1978.
62
vigente. Tal política começou a privilegiar o investimento nas rodovias e não
conseguiu equacionar os problemas de gerenciamento das ferrovias.
Os trechos ferroviários, quando da sua implantação, serviam basicamente
para escoar a produção para os portos. Essa era uma característica comum aos
projetos brasileiros para ferrovia. Assim, o traçado ferroviário interior-litoral
dependia da produção agrícola para manter-se rentável, que as viagens da zona
produtiva ao porto eram bem carregadas; todavia o trajeto inverso servia
basicamente ao transporte de passageiros.
Mesmo com problemas de investimento a ferrovia operou no Ceará com
considerável êxito tanto para carga como para transporte de passageiros. Uma
evidência da tentativa de atualização dos equipamentos pode ser percebida na
mudança, a partir da década de 1940, para as locomotivas movidas a diesel. Esse
investimento continuou até meados de 1960.
Entre a utilização efetiva e o jogo de desejos, o trem passa a fazer parte da
paisagem cearense, revelando as mais diversas formas daquilo que Antônio Luís
Macedo descreve como:
Caráter profundamente ambíguo da modernidade latino-americana,
que elege inovações técnicas como fetiche, ovacionando seu papel
como instrumento de distinção social em detrimento da funcionalidade
desses mesmos objetos por aquisições ditas modernas.
47
Em 1959, um relatório do Ministério dos Transportes
48
- descrevendo a
situação das estradas de ferro do Nordeste e discutir a viabilidade das empresas
que aqui operavam - assim apresenta a RVC:
47
SILVA FILHO, Antônio Luís Macedo. Na senda do moderno: Fortaleza paisagem e técnica nos
anos 1940. Dissertação de Mestrado PUC-SP Março/2002 p.11
48
Relatório do Ministério dos Transportes: Ferrovias do Nordeste. 1959.
63
Foi formada mediante a reunião, em 1920, de duas antigas ferrovias: a
Estrada de Ferro Baturité e a Estrada de Ferro de Sobral. Em fins de
1957 a Rêde de Viação Cearense foi incorporada à Rêde Ferroviária
Federal S.A ( RFFSA).
A sua extensão total é de 1639 quilômetros, no estado do Ceará. Um
dos ramais penetra alguns quilômetros no estado da Paraíba para fazer
ligação com a Rede Ferroviária RFN em Souza. Serve ao porto do
Mucuripe (Fortaleza), pelo qual se escoa grande parte da produção do
estado. Liga também a região de Sobral com o pequeno porto de
Camocim.
O mesmo relatório descreve as linhas principais: a “Norte, com 500 Km
entre Fortaleza e Oiticica, passando por Sobral e a linha Sul, com 601 Km, entre
Fortaleza e Crato que é a de maior movimento, servindo a zona do Cariri.” O
mesmo relatório apresenta os ramais mais importantes e mais movimentados.
Neles circulavam trens que serviam a trechos específicos:
Ramal da Paraíba, com 224 Km entre arrojado e Souza
Ramal Camocim, com 129 Km entre Sobral e Camocim.
Ramal Orós, com 43 Km entre Alencar e Orós
49
.
Sobre o estado de conservação das linhas e do equipamento, o relatório
considera o seguinte:
O estado dos trilhos é, de um modo geral precário, sendo necessário
fazer substituições em mais de 200 Km de linha. Muito crítica também
é a situação dos acessórios da linha, incluindo aparelhos de mudança.
Em 1958 a RVC tinha apenas 250 Km de linha com lastro de pedra
britada. Atualmente está sendo executado o programa de lastramento
de 350 Km. Contemporaneamente está sendo substituído quase meio
49
Idem p.188
64
milhão de dormentes. No programa está prevista a ampliação do
número de dormentes por Km de 1400/1500 a 1700
50
.
Em um outro trecho desse documento uma avaliação econômica da
ferrovia no Ceará. Podemos encontrar dados sobre a fragilidade financeira da
empresa, que possuía um significativo número de usuários no transporte de
passageiros, mas que apresentava déficit no transporte de cargas.
A Rêde de Viação Cearense apresenta um caso muito difícil. É uma
estrada de ferro importante pela extensão de suas linhas: 1600Km. O
seu serviço de passageiros não é pequeno: 2,7 milhões em 1957, mas o
seu tráfego de cargas é decepcionante: 21100 toneladas das quais 2600
toneladas de caroço de algodão, 2500 toneladas de lenha, 1600
toneladas de mamona e 1500 toneladas de gesso, em 1957. O seu
déficit de exploração foi de 241 milhões de cruzeiros, ou seja, três vezes
e meia a receita bruta.
51
Sobre a situação das ferrovias no Nordeste, podemos interpretar que o que
está colocado no relatório foi certamente decisivo para a implementação de
políticas para o setor ferroviário nessa região.
Todas as ferrovias do Nordeste são altamente deficitárias - algumas
delas em grau superlativo - e para manterem os serviços necessitam de
uma subvenção várias vêzes superior à sua receita bruta total de
exploração.
52
Há um trecho que faz referência às ferrovias “que deveriam ser mantidas”,
e, por conseqüência, aquelas que seriam desativadas. São ainda “considerados
50
Idem p.189
51
Idem p.222
52
Idem p.221
65
imprescindíveis” os serviços da Rêde Ferroviária do Nordeste
53
e da Viação Férrea
Federal Leste Brasileiro
54
.
A Rêde Ferroviária do Nordeste e a Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro (...) achamos que os serviços prestados pelas duas estradas
de ferro mencionadas poderiam ser considerados imprescindíveis e,
portanto, elas deveriam ser mantidas.
O mesmo relatório esboça as possíveis causas do fracasso das ferrovias
da região Nordeste, referindo-se à concorrência como fator preponderante do
transporte rodoviário. Contudo, a documentação explicita que a concorrência com a
rodovia não é um problema regional, e, sim, um desafio nacional.
O período de expansão do sistema ferroviário do Nordeste terminou
pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, época em que
começou a tomar impulso a construção de estradas de rodagem e a
aumentar o volume de transportes por caminhão e ônibus. As ferrovias
nordestinas como as de todo o país começaram então a sentir os efeitos
da concorrência rodoviária.
55
Em maio de 1969, enquanto a proeza da chegada do homem à lua povoava
a imaginação popular, a ferrovia parecia ter desaparecido das páginas dos jornais.
Mesmo no caderno especial
56
"Ceará uma nova imagem do progresso", que
pretendia oferecer um panorama geral do desenvolvimento econômico do estado
do Ceará, não encontramos uma linha sequer sobre o transporte ferroviáro no
estado. Ao tratar da questão dos transportes o referido caderno se detém no projeto
53
Ex- The Great Western of Brazil Company Limited, que serve os estados de Pernanbuco,
Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte./ Ligou-se à RVC através da linha Campina-Grande- Patos
54
Incorporou quatro pequenas empresas: Estrada de Ferro São Francisco, Estrada de Ferro Cental
da Bahia, Estrada de Ferro Santo Amaro e Estrada de Ferro Petrolina -Terezina / Estava ligada à
Estrada de Ferro Central do Brasil
55
Idem p.154/155
56
Caderno especial publicado no Correio do Ceará de 30 de maio de 1969.
66
da avenida do contorno. A ferrovia não compunha a "nova imagem do
progresso".
Na década de 1970, a especulação em torno de projetos grandiosos
conviveu com a crítica ao estado de conservação das vias férreas, a relação entre o
plano e a ruína pode ser mostrada de forma contundente.
“O Ministério dos transportes é favorável e apóia a idéia de
encurtamento da ligação ferroviária entre São Paulo e Rio de Janeiro”
disse o Ministro Dirceu de Araújo Nogueira, embora tenha recebido
uma proposta concreta dos japoneses, visando à redução do tempo de
vigem de trem entre os dois centros de 9 para 3 horas, através de um
novo traçado ferroviário que inclui um túnel de oito quilômetros na
serra da Mantiqueira.
57
O projeto seria executado em seis ou sete anos e dependeria de uma
demanda considerável de passageiros, algo que a nota aponta logo em seguida:
Para o Ministro dos Transportes essa idéia somente será viável dentro
de um prazo de 7 a 8 anos, tempo necessário inclusive para sua
execução. Informou que o fluxo de passageiros entre São Paulo e Rio
de Janeiro é atualmente de 25 mil por dia e quando este fluxo atingir o
número de 100 mil a redução do tempo de viagem ferroviária será
plenamente exeqüível. Para o Ministro com o fluxo atual de
passageiros o encurtamento do tempo de viagem ferroviária trará
problemas para os transportes rodoviários e aéreos.
58
A magnitude do projeto pode significar a falta de planejamento e também
os excessos das obras do período da ditadura militar. Estimular a imaginação
57
O POVO. 19 /07/1978. Trem Rio-São Paulo poderá ser de 3h.
58
Idem
67
popular com uma obra desse porte, e caríssima, poderia gerar dividendos políticos.
Enquanto amargava crises reais a ferrovia era usada para ilustrar mega-projetos e
canalizar expectativas, talvez pelo apelo emocional que ainda despertava e que
aparece colado ao grande túnel que cortaria a Serra da Mantiqueira.
A política de transportes para o setor ferroviário era fiscalizar o lucro e
excluir os trechos que não correspondiam às expectativas financeiras.Item
transporte da Mensagem ao Congresso Nacional
59
.
No setor de transportes, o objetivo fundamental a ser alcançado é
assegurar a satisfação do conjunto das necessidades da Nação pelo
menor custo para a economia. Para isso, está sendo implantada uma
concepção unificada dos transportes nacionais com vistas a obter
racional coordenação entre os sistemas federal, estaduais e
municipais, bem como entre diferentes modalidades de transporte
existentes (...) Em particular, efetuando a concentração das dotações
disponíveis nas obras prioritárias, é propósito do Govêrno obter maior
produtividade na utilização dos recursos financeiros e humanos e das
instalações físicas, constituindo de seus objetivos primordiais a
redução progressiva dos déficits operacionais de várias entidades,
como as ferrovias e empresas de navegação.(...) No setor ferroviário, o
principal objetivo da ação governamental será a redução do déficit
operacional, numa taxa de 10 a 15% ao ano, por meio de melhor
utilização da capacidade existente, a fim de nas etapas seguintes,
voltar-se para a expansão do sistema. Com êsse objetivo, no decorrer
do ano será concluído o atual programa de supressão de ramais
antieconômicos, no total de 7.500 km, associado à concomitante
redução de estações desnecessárias. No tocante a pessoal,
prosseguir-se-á o programa, já em curso, de redução de efetivos, a fim
de se atingir o nível de apenas 120.000 servidores para tôda a Rêde
Ferroviária Federal. No campo operacional, será adotada política
tarifária, ao mesmo tempo atuante e enérgica, com base nos custos
59
Emílio Garrastazu Médici / Mensagem ao Congresso Nacional 1970 (Art. 81, item XXI da
Constituição Federal) 31 de Março de 1970
68
dos respectivos serviços; simultaneamente, envidar-se-ão esforços no
sentido do estabelecimento de integral coordenação da operação das
ferrovias da Rêde e das concedidas ao Estado de São Paulo, bem
como no sentido da conclusão da estruturação das ferrovias daquela
em sistemas de regionais. Tais medidas estão sendo acompanhadas
de renovação do material rodante, de melhoria das linhas existentes e
de construção de variantes, colimando-se com isso a melhor
produtividade de todo sistema.
Quando da desativação dos ramais e das linhas interestaduais, a
circulação de trens era intensa. Em 1980, por exemplo, podemos perceber a
variedade e a extensão das linhas através de notícias como a seguinte:
A partir do dia 7, os trens de passageiros que trafegam pela linha
Norte terão seus horários alterados, conforme discrimina a
Superintendência de produção-Fortaleza
Para Crateús: Partidas de Fortaleza às 19h30min, nas segundas e
sextas-feiras; chegada em Crateús 5h20min das terças e sábados.
Para Teresina: Partidas de Fortaleza 17h15min, aos sábados,
chegando em Teresina às 12h30min de domingo, chegando em
Fortaleza às 5h25min de segunda-feira
60
Quando começou o tão propalado desmonte da ferrovia?
Tal questão remete a tempos plurais. Por exemplo, em termos de
incentivos do governo, após um longo período de défcit, a RFFSA do Ceará ganhou
um maciço investimento em finais dos anos 1980. Esse aporte serviu para prepará-
la para a privatização. Então, se olharmos apenas para os números do
investimento e não para a aplicação dos recursos, correremos o risco de fazer uma
dedução falsa.
60
O Povo.4 de Janeiro de 1980p.15 “ Trens de passageiros com novos horários”
69
Na verdade, não pretendo estabelecer um marco sob o título de “começo
do fim", pois percebo que uma diversidade de fatores no realizar desse
processo.
Partindo das falas dos ferroviários aposentados, encontraremos diversos
marcos para entender como eles percebem mudanças na ferrovia, mudanças que
eles caracterizam como decadência ou enfraquecimento do sistema ferroviário.
Descrever a atual situação como caótica é muito comum por parte do aposentado,
mas as tentativas de demarcar desde quando se iniciou essa fase exige uma
elaboração pessoal que envolve memórias e práticas sociais.
Destaco agora alguns trechos de entrevistas em que o tema da
“decadência” da ferrovia é tratado:
Até cinco anos depois que eu me aposentei tava tudo normal, mas
depois da época de 90 pra cá, começou tudo a cair, cair... Tiraram os
trem de passageiro, tiraram e ficou os cargueiro. No tempo do
presidente Sarney ainda ficou ainda três por semana daqui pro Crato,
era um até dia de sábado, passou pra ser uma vez na semana e
acabou tudo.
O Sr. Antônio Serafim entende que enquanto havia trem para o interior, e
as linhas eram mantidas, tudo continuava normal. Ele usa como marco o “tempo do
presidente Sarney”, meados dos anos 1980. o Sr. Vicente destaca a renovação
do pessoal da administração. Ele não se remete à política de transporte e explora a
idéia de que os novos quadros da ferrovia não teriam sabido mantê-la, mesmo
dispondo de facilidades técnicas e máquinas mais avançadas:
Era bom até uns tempo desse. foro saindo um bocado e os novo
não sabe assumir com a força que tinha antes, com a mesma coisa
70
que era. deixa tudo se acabar. Hoje tem as facilidade, mas num
sabe usar as facilidade de hoje.
Quanto ao Sr. Cristino, ele reafirma a leitura política que esboçou em
trechos nos quais estabeleceu uma relação entre empresários e governo. Sua
versão destaca a realidade atual dos trabalhadores da ferrovia, em grande número
terceirizados, e que não gozam da antiga “estabilidade” da categoria. Ele destaca,
ainda, a luta dos aposentados que buscam a reparação de perdas salariais:
Enquanto eu tava na ativa era tudo até bem. Depois eles pioraram muito,
ficou difícil. O emprego deles agora é terceirizado, não tem mais o
funcionário mesmo da rede, é descartável. Tá hoje aqui e amanhã pode
sem direito. Assim como pode? Se nós que tinha alguma garantia ainda
estamos aqui lutando por isto e por aquilo que o governo não dá.
O Sr. Cícero Belarmino conseguiu sintetizar seu pensamento numa frase:
“Acabaro as linha, acabou-se o trem do povo”. Como maquinista certamente tinha
idéia do impacto que foi operar transportando apenas com carga. Talvez a função
de maquinista, que ele e o Sr. Antônio exerceram, proporcionasse uma
proximidade maior com os usuários dos trens de passageiros. Sentiu na pele o que
é “passar por um trecho onde subia passageiro e nem parar mais”, como colocou
em certa altura.
O entendimento e as elaborações sobre o que seriam os indícios de
decadência estão relacionados com a função exercida por nossos interlocutores, o
momento de suas aposentadorias e também o contato com notícias recentes sobre
a ferrovia arrendada. Essa pluralidade de referências interfere na proposição de
marcos temporais que procuram dar conta de experiências coletivas, mas que
acabam revelando leituras pessoais. Falar do desmonte da ferrovia não se refere
71
apenas a um processo essencialmente técnico, datado, pontual; antes, esse ato
narrativo libera emoções, memórias e escolhas políticas de cada um.
72
2.1 Caminhadas
Percebo que, atualmente, a permanência de edificações, objetos e dos
próprios trilhos, que cortam cidades e sertões, instiga os sentidos: a matéria da
ferrovia enche os olhos, o cheiro da ferrugem se mistura às resinas do mato que
cresce ao redor de velhas máquinas, que, desprovidas da magia do movimento,
perecem.
Esta experimentação sensorial esteve presente no cotidiano da pesquisa e
também na escrita. Entendo que diversas idéias nasceram de sensações e que
este trabalho pretende dar conta de uma das possibilidades de interpretação
historicamente fundamentada a partir de uma certa gama de elementos:O mundo
não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo,
comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.”
61
Uma experiência que rendeu vastos desdobramentos no campo do
exercício perceptivo foi a de circular a pelos arredores da praça da estação
(Praça Castro Carreira)
62
e da Estação Central (Estação Luís Felipe),
63
em
Fortaleza. Caminhar pelos arredores da estação, explorar novos ângulos, adentrar
espaços que oscilam entre abandonados e vigiados, perceber as fronteiras sutis
entre o que está em desuso e o que está operando.
Correr o risco de experimentar algo que de certa forma era de simples
acesso, mas que foge aos usuais caminhos da pesquisa histórica.
61
MERLEAU-PONTY, Maurice, Fenomenologia da Percepção. .2
a
. Ed. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p.14
62
Margeada pelas ruas Senador Pompeu, João Moreira, 24 de maio e Castro e Silva.
63
Cruzamento das ruas João Moreira e General Sampaio no centro de Fortaleza.
73
Consta que os historiadores devem chegar ao passado sempre através
de textos, às vezes através de imagens; coisas que colhem, sem nenhum
risco, na redoma das convenções acadêmicas, devem olhar, mas não
tocar.
64
Experimentar, descrever e discutir essa experiência, tentar elaborar uma
discussão tendo como uma das principais fontes o "arquivo dos pés"
65
. É isso que
faço neste primeiro item.
Em minhas andanças pela estação tive, por exemplo, a oportunidade de
viver, num dado momento, a experiência de ser confundida com alguém que
tentava entrar na plataforma sem pagar o bilhete e noutro ser gentilmente advertida
sobre os perigos de roubos e assaltos, caso insistisse em circular pelos espaços
ermos, onde a vigilância não alcança. Entre transgressora e vítima potencial, num
circuito aparentemente impreciso, mas que posso classificar como entre o que
funciona, opera e o que está abandonado, ermo, sucateado, tudo isto dentro de um
espaço aparentemente coeso: os arredores da estação.
Esta vivência acabou proporcionando boas descobertas, que deram origem
a questionamentos fundamentais no desenvolvimento do trabalho, como a idéia das
diversas "ferrovias". Foi caminhando por ali que comecei a observar alguns marcos
64
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória; tradução Hildegard Feist - São Paulo: Companhia das
letras, 1996.p.33
65
Id.Ibdem; p.34
74
dispersos das várias ferrovias que o Ceará usufruiu, não há apenas uma ferrovia,
monolítica, coerente, acabada. A ferrovia é equipamento, operação e espaço
facetados em múltiplos usos e temporalidades.
Tive, também, a possibilidade de observar os percursos pessoais que
levam tantos aposentados em visitas à sede da Afac, de repensar esses percursos,
e entender a caminhada como "realização espacial do lugar"
66
, não a minha
própria caminhada, mas também aquela praticada por tantos homens e mulheres
que acorrem diariamente àquele espaço.
Uma das coisas que logo podem notadas pelo visitante é a forma como as
empresas (CBTU, Metrofor, CFN, RFFSA e RVC) deixam/deixaram suas marcas.
As marcas são legíveis através do logotipo das empresas em portas, carros oficiais,
vagões, galpões. Chega a ser confuso entender onde e o quê funciona ou
funcionou.
A idéia de "ferrovias" foi amadurecendo não apenas a partir dessa
embaraçada visibilidade das diversas empresas que administraram ou administram
o equipamento ferroviário. As edificações, as sucatas e os galpões das oficinas de
manutenção, além do sistema de circulação de trens urbanos em pleno
funcionamento, remetem às diversas temporalidades.
No espaço da Estação Central a ferrovia do vai-e-vem diário dos
usuários do sistema de trens urbanos, a ferrovia dos escritórios do Metrofor, a dos
trens e vagões abandonados, tomados de lixo e mato; a ferrovia dos funcionários
dos diversos órgãos que se mesclam dentro desse espaço e a dos aposentados
que saem de casa, alguns quase que diariamente, para tomar café e conversar...
66
CERTEAU,Michel de. A invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução Ephaim Ferreira Alves-
Petrópolis, RJ: Vozes, 1994
75
Num esforço de tentar explorar melhor, aquilo que inicialmente me chegou
de forma confusa e dispersa, posso seguir destacando alguns elementos da
paisagem viva, no sentido de efetivar uma discussão histórica que, às vezes,
dialogará com a polifonia alimentada pelos lugares, noutras tratará de elementos
pontuais.
Por exemplo, explorando-se as edificações que formam o conjunto da
Estação Central encontramos prédios antigos completamente abandonados, e que
não recebem nenhum tratamento. Neste estado esparte da área sul, depois da
plataforma de embarque: prédios sujos, trancados, com janelas e vidraças
quebradas que em alguns pontos revelam seu interior. Aparentemente não há
circulação de pessoas. Parte da construção se comunica com um grande
estacionamento que aproveita um galpão de depósito desativado.
Nesse conjunto encontra-se o que teria sido um amplo alojamento, com
banheiros coletivos e vestiários. Certamente recebia um número expressivo de
trabalhadores, dedutível pela quantidade de chuveiros e da grande quantidade de
escaninhos para guardar pertences. Isto nos faz pensar como deve ter sido o lugar,
a intensa circulação de trabalhadores, com turmas chegando e saindo. O espaço
do alojamento certamente era um ponto de encontro e reencontro, observá-lo de
perto deu sentido e significado a trechos de entrevistas, pude imaginar as turmas
pegando as tabelas das escalas, as partidas e a volta pra casa, tudo isto
certamente confluía para lugares como aquele.
Estação Central, central pelo entroncamento de linhas, central para os
usuários, para os trabalhadores, que iam pegar a escala, que chegavam e que
partiam para viagens. A palavra central, neste caso, começa a se desdobrar em
significados, começo e vislumbrar a idéia de "centralidade".
76
Além dos equipamentos outrora usados pelos trabalhadores aposentados,
bem ali, ao lado, está a Associação dos aposentados. Seria uma espécie de foco,
transformado com o tempo em ponto de encontro. Isto explica o fato de tantos
aposentados se dirigirem à sede da Afac, situada, como já foi descrito, bem ao lado
da estação. Alguns aposentados passam horas e horas botando a conversa em
dia. De vez em quando, chega um do interior com notícias sobre outros colegas. A
estação continua sendo "central" para eles. Chegam de moto, carro, ônibus, trem,
vindos de diversos bairros. Bem na frente da Associação dos Aposentados um
pequeno jardim, com quatro bancos dispostos em forma circular. Muitos não
passam dali, pois o recebidos pelos colegas e iniciam a conversa, o
encontro/reencontro amistoso dá sentido à pequena peregrinação.
Quando visitei estações no interior, tive a oportunidade de notar em pelo
menos em dois lugares, Caucaia e Iguatu, a existência de um pequeno bar nos
arredores das estações, onde ferroviários aposentados costumam se encontrar,
conversar, beber, jogar damas.
Lugar, amigos, encontro, renovação/rememoração do percurso que em
outros tempos levava aos locais de trabalho. Renovação do percurso parece pouco
para definir este hábito, talvez um exercício de memória, um rito, um desejo de
afirmação e ocupação resistente do espaço, cuja significação essencial não reside
no final do percurso (estação, bar ou pracinha) e sim na conjugação do ponto final
com o trajeto, com o próprio exercício de ir e vir.
77
Definir ou mapear estes percursos é um problema que não julgo pertinente,
registro apenas a observação desta questão, de contornos sutis e que se estende
em tempo, espaço e usos das mais diversas formas.
Tentei sintetizar, descrever algumas impressões, mas a confusão de
impressões que o ambiente propicia pode ter deixado suas marcas no texto. Quero
pensar sobre as marcas que se aglutinam nos arredores da Estação Central, o
com um olhar técnico ou tentando datá-las, mas percebendo como um espaço
78
pode abrigar marcas de tempos e usos diferenciados e ainda continuar a ter a
mesma função: central de administração da ferrovia, desde sua implantação no
século XIX.
Sobrepostas, justapostas, as construções causam um certo incômodo. A
tempestade de progresso
67
deixa marcas dissonantes. Os espaços da ferrovia com
sua extensa trilha que entrecorta e é invadida por bairros- em alguns trechos casas
construídas a pouco mais de um metro da linha, esgotos despejados no muro de
proteção empoçam água e apodrecem os dormentes- explicita um confronto entre o
espaço ferroviário e a ocupação urbana, não apenas por causa da construção de
casas sobre o leito da ferrovia, como também pela interferência mútua entre
equipamentos urbanos e ferroviários.
O terreno da ferrovia é muitas vezes usado como depósito de lixo, pois os
trechos por onde passam o trem urbano (CBTU) são cercados por um muro de
proteção que acaba escondendo o lixo. A sujeira e os dejetos são visíveis pelos
usuários do trem.
Por outro lado, se nos afastarmos dos centros urbanos é possível encontrar
as estações mais distantes, onde veremos as pequenas vilas de casa de turma da
ferrovia, e a linha, quando ainda linha e dormentes.A ferrovia não é confrontada
pela urbe, suas marcas destoam por outro motivo: o abandono.
Os relatos sobre os trilhos abandonados dão conta de quanto significativa
pode ser essa imagem, não apenas a visão da cena mas o convívio diário com
esse corpo estranho que é o leito dos trilhos em desuso. A descrição do cronista
68
67
BENJAMIN. Walter. Magia e Técnica. Arte e Política- Ensaios sobre Literatura e História da
Cultura” Obras escolhidas v.I . São Pauilo Brasiliense 1994 p.226
68
XIMENES, Luís. Paixão Ferroviária. Edição do Autor.Fortaleza:1984p.47
79
que fala sobre o ramal ferroviário Sobral-Camocim (Estrada de Ferro de Sobral)
sintetiza uma interpretação dessa imagem:
Os trilhos paralelos que se estiravam diante da plataforma da antiga
estação de Angica, estirados continuam, morando no mesmo lugar e
exercendo a mesma função de leito para a passagem dos trens que
nunca mais passaram(...)As duas pautas negras dos trilhos
abandonados onde escreve-se a palavra saudade.
O complexo de edifícios e equipamentos, as marcas visíveis da ferrovia
geram um estranhamento, muito dessa matéria parece não ter conexão alguma
com o mundo ao redor, como ressalta Michel de Certeau:
Eles são testemunhas de uma história que, ao contrário daquelas dos
museus ou dos livros, não tem mais linguagem. Historicamente, de
fato, eles têm uma função que consiste em abrir uma profundidade no
presente, mas não têm mais o conteúdo que provê de sentido a
estranheza do passado. Suas histórias deixam de ser pedagógicas; não
são mais "pacificadas" nem colonizadas por uma semântica. Como
entregues à sua existência, selvagens, delinqüentes
69
.
Essa existência selvagem e delinqüente da qual Certeau fala, referindo-se a
pontos da cidade de Paris, evoca uma idéia que me parece apropriada para definir
como a malha de trilho, de forma desconexa, inútil e melancólica, estende-se por
certas regiões. É um marca selvagem, delinqüente, sem sentido e habitada por
fantasmas cuja matéria constitui-se não de éter e e sim do ferro, do quase
imperecível ferro, que o tempo corrói lentamente, cujo peso não facilita a operação
de retirada e desobstrução da paisagem. Pesados e duradouros, por causa da
69
CERTEAU, Michel de A invenção do Cotidiano: 2. Morar , cozinhar; Tradução de Ephraim F. Alves
e Lúcia Endlich Orth. Petrópolis,: Vozes, 1996.p.193
80
sólida matéria, os equipamentos ferroviários não podem ser facilmente colonizados
ou pacificados.
Abrindo uma profundidade no presente, talvez uma ferida. Uma ferida árida e
incômoda, que não cicatriza, que o tempo (remédio para os todos os males?) torna
mais dolorida.
Esta máquina incrível que já significou o fio condutor das mudanças
revolucionárias é passada, agora, para trás. É expulsa do terreno da
história. Dinossauro resfolegante e inclassificável, a locomotiva está
condenada a vagar incontinenti pelos campos e redutos aflitos da
solidão. Iluminada de modo surreal, suas aparições serão repentinas, no
meio de noites escuras e imprevistas, inteiramente alheia à tabela de
horários. Núcleos de habitantes mais isolados terão boas chances de
surpreender o espetáculo de sua rápida passagem. Trilhos nos sertões.
Comboios vazios. Cidades mortas, estaçõezinhas abandonadas.
Cemitérios de trens. Máquinas nas selvas, trabalhadores desterrados de
todo o planeta em novas babéis. Fantasmagorias, dispersão.
70
Minhas caminhadas me levaram algumas vezes à avenida Francisco Sá,
onde funcionam alguns escritórios da CFN, e funcionavam escritórios e oficinas da
RFFSA. Certa vez, em outubro de 2002, assisti da calçada, através das bonitas
grades de ferro, à seguinte cena: estava sendo realizada uma solenidade, muitas
pessoas bem vestidas, um círculo em torno de alguém que falava ao microfone.
Havia um serviço de bufet e algumas mesas. A solenidade se realizava no jardim, e
nele uma locomotiva do tipo maria-fumaça, de dentro dela estava saindo
fumaça, fumaça de gelo seco!
A locomotiva, pintadinha e bem conservada, decora aquele jardim há anos, e
isso me causava um certo incômodo. Ornamento de jardim? Que uso esdrúxulo
70
HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma : a modernidade na selva. São Paulo: Companhia
das letras, 1988.p.40
81
para uma máquina! Talvez uma tentativa de compor uma relação pacífica com o
objeto; escolhe-se um, coloca-se no jardim e pronto. Abstraída do movimento e
transformada em monumento através da arte decorativa.
Mas, e o gelo seco? O gelo seco e a máquina parada no jardim?
Depois de ouvir os relatos sobre o funcionamento da máquina a vapor, os
quais inclusive serão objeto de discussão neste mesmo capítulo, depois de saber
do trabalho do foguista, maquinista e do guarda-freios, passei a olhar aquela
máquina de forma diferente. Os detalhes da descrição dos aposentados cercaram
aquele objeto de qualidades
71
. Havia som, movimento e odores, havia a complexa
composição homem-máquina a efetivar-se.
Ali, na festa da CFN, havia uma triste pantomima orquestrada pelo desejo de
reverenciar o passado. Deslocado de sentido, o objeto-máquina é tomado por seus
novos usuários, é reapropriado e reinserido no convívio com os homens. Não me
furto ao direito de declarar meu mal-estar, uma náusea que me era familiar, fruto
dos sucessivos estranhamentos que um historiador-caminhante está sujeito.
Limpinha e cercada de grama e flores, a locomotiva do jardim não é menos
fantasmagórica, não deixa de ferir o presente. Talvez por isso seja melhor esvaziá-
la de sentido e tomá-la como peça decorativa. Será tão simples assim?
Todo o conjunto de máquinas que não tem mais resultado prático, acha-se
presente unicamente para significar
72
.Estão paradas, enfeitam jardins ou foram
depredadas e abandonadas. E mesmo estando ali, brilhando sob a recente camada
de tinta látex, a locomotiva do jardim não é afuncional nem simplesmente
71
“A qualidade é o que singulariza as coisas e cria uma atmosfera de significados à sua volta. Os
objetos tornam-se expressivos” Gonçalves Filho, José Moura “ Memória e Sociedade” In Revista d
Arquivo Municipal-Memória e ação cultural. São Paulo v.200 1991
72
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993p82
82
decorativa, tem uma função bem específica dentro do quadro do sistema: significa
o tempo
73
. Neste conjunto de objetos antigos aglomeram-se ruína, lixo, sucata...
Diversos significados, marcas do tempo, dos usos. O contato com aqueles
objetos pode "fazer vir à baila um pequeno lapso desta grande noite chamada
passado para revolver de inquietude as estratificações do tempo presente."
74
Percebo essas experiências como um emaranhado de símbolos, e o tempo
como uma incessante matriz de novos significados. A ferrovia operante e a ferrovia-
ruína como uma floresta entrecortada por veredas individuais. E a memória? A
memória recompondo passos, as narrativas traçando itinerários próprios.
73
Idem p.82
74
HARDMAN , Francisco Foot.Trem Fantasma - Modernidade na selva.......
83
2.1 Imagem e Memória
Eis aqui reproduzido o painel do qual falei no primeiro capítulo, pintado sobre
uma camada de azulejos, provavelmente colocados com o objetivo de receber a
pintura. Esta imagem e outras tantas que vi (ou imaginei a partir de descrições)
84
referenciaram a construção de algumas problemáticas, principalmente a relação
natureza, técnica e cultura.
As imagens também compõem o tecido da memória, pensamos por meio
delas. Esta capacidade deve ser explorada sempre que possível, contudo devemos
atentar para a massiva quantidade de informações visuais a que estamos
submetidos, pois poderá haver interferência na capacidade de abstração
imaginativa ou na compreensão das narrativas memoriais.
O que lembramos está misturado a imagens de tempos recentes ou mais
distantes. Devemos ter essa premissa em mente ao adentrar no mundo das
descrições narrativas memoriais que são tantas vezes composições imagéticas.
Proponho, assim, uma discussão que tangencia esta questão, ciente do desafio de
perceber o imperativo de pensar os labirintos da visibilidade.
Se incluí a Visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para
advertir que estamos perdendo uma capacidade humana fundamental: a
capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar
cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros
sobre uma página branca, de pensar por imagens.
75
Aqui a visibilidade é um ponto fundamental para o que a narrativa memorial
traz em si, conjugado-a com a que é expressa por artistas que realizaram as obras
aqui discutidas. Entre essas visibilidades vou tecendo meu fio dissertativo.
No quadro reproduzido no início deste item, a ferrovia aparece num cenário
de fartura e abundância, o equipamento ferroviário (trem, trilhos, ponte) está
75
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução Ivo Barroso - São Paulo:
Companhia das Letras, 1990
85
harmoniosamente inserido na paisagem, como se não houvesse nenhum choque
entre a natureza e o equipamento.
Como estão articuladas técnica e natureza? A questão nos remete ao
debate sobre a relação homem-natureza:
Que fez a ciência moderna? Transformou natureza em um gigantesco
juízo analítico, obrigou-a a falar a linguagem do número,
matematizando-a, formalizando-a. Em outras palavras: se o iluminismo
pretendeu desmistificar a natureza, desenfeitiçá-la, desencantá-la pelo
recurso razão explicadora dos fenômenos naturais, o resultado foi,
segundo Adorno e Horkheimer “uma triunfante desventura.”
76
A obra apresenta uma idealização do movimento. Movimento, beleza e
harmonia compõem o conjunto que remete à discussão sobre estética. Pensando a
relação entre estética e movimento, refleti sobre as possibilidades da relação
encanto e movimento.
Em sua dissertação, cujo objetivo é perceber como a cidade de Camocim
convive com as memórias da ferrovia, Cid Vasconcelos dedica um capítulo,
intitulado “O trem e o cinema: Modernidade e Memória”, para discutir a relação
entre estética e ferrovia.
Como não identificar o facho de luz emanado do farol da locomotiva a
vapor na escuridão da noite e a luz igualmente direcionada que atravessa
a sala escura do cinema, elementos que realçam o caráter fantasmagórico
de ambos os mecanismos?
77
76
MATOS, Olgária. A escola de Frankfurt: Luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Editora
Moderna, 1993.p.4.
77
CARVALHO, Cid Vasconcelos de. O trem em Camocim: Modernização e Memória. Dissertação de
Mestrado UFC Agosto /2001
86
Talvez caiba no caso da locomotiva a idéia de técno-estética
78
, ou seja, a
articulação entre o belo e técnica, uma beleza que flui em diversas temporalidades.
O autor que cunhou este termo refere-se a um moderno viaduto, mas penso que
em outros tempos as obras técnicas despertaram outros apelos estéticos. Assim, a
imagem do trem, por mais corriqueira que pareça atualmente, possuiu um apelo
de beleza e magia, hoje guardado na memória.
Essa máquina, que seguia deixando para trás um rastro de fumaça, é a
inesquecível companheira de trabalho do Sr. Antônio Serafim. E o difícil trabalho de
fazê-la funcionar aparece como prazeroso. Em certa altura da entrevista, o Sr.
Antônio afirma que se a maria-fumaça voltasse a rodar, ele se ofereceria para
trabalhar.
Daniela: Como o senhor aprendeu?
Antônio: Ah, primeiro eu fui foguista e fui conhecendo as linha.
Daniela E como era o trabalho do foguista? Por exemplo, antes do trem
sair...
Antônio: Tinha um estoque de lenha.Tinha um tanque atrás que era para
lenha e água, depósito de lenha e água, saía daqui e quando chegava na
Guaiúba abastecia de lenha e água
Daniela Na Guaiúba abastecia? Daqui pra já gastava o estoque
todinho de lenha e água?
Antônio: Não, gastava mais a àgua, a lenha às vezes era na Água
Verde. Tomava lenha na Água Verde, tomava água no Acarape, Tomava
lenha na Aracoiaba ... Tomava lenha na Aracoiaba, tomava no Baturité,
tomava no Capistrano...Até o fim da viagem...
Daniela: O foguista tinha que trabalhar não colocando na fornalha,
tinha que carregar, abastecer...
78
O termo técno-estética é usado por Gilbert Simodon para falar de um viaduto: “trata-se
propriamente de uma obra técno-estética, perfeitamente funcional, inteiramente bem sucedida e
bela, simultaneamente técnica e estética, estética porque técnica, técnica porque estética.
fusão intercategórica. SIMONDON. Gilbert. Sobre a técno-estética: carta a Jacques Derrida” In
Tecnociência e Cultura: Ensaios sobre o tempo presente. ARAÚJO, Hermetes Reis de (org) e
Seiler Achim São Paulo: Estação Liberdade 1998 p.253-266
87
Antônio: Era, era abastecendo. Quando saía o trem de passageiro aqui
no tempo da maria-fumaça, era quatro guarda freio pra fazer o serviço da
manutenção do trem e abastecimento da locomotiva. O guarda-freio que
abastecia com a água e a lenha. Quando tinha assim um ponto de lenha
dizia: "Três bitola". Chamava bitola, quer dizer, assim, tipo metro. Eles
botava dentro e se jogava no meio do mundo, quando dava cinquenta
quilômetrios, mais três bitola, cinco, dez... Se no outro posto não tivesse,
tinha que abastecer no outro...
Daniela:E eram quantos foguistas?
Antônio: um, eu. Eu saía daqui às três horas da madrugada e
chegava lá às onze horas da noite.
Daniela: Era muito pesado.
Antônio: Era pesado e tinha que aguentar, velho e novo tinha que
aguentar.
Daniela :É muito pesado...Tinha ainda a quentura, o calor..
Antônio: A gente se acostumava, quando a lenha tava verde, aquele
cheirinho... ô, era bom demais, a lenha queimando, chega saía aquele
cheirinho. Nunca viu não queimando em padaria? Pois é daquele jeitinho
das padaria... Nós saía do Quixeramobim na máquina maria-fumaça de
passageiro, era onze e meia do dia, chegava aqui oito hora das noite,
maria-fumaça.
Daniela: O trem é todo de ferro, a fornalha de ferro... Ferro conduz o
calor, eu imagino que era quente demais...Não era demais? Vocês não
se queimavam?
Antônio: Ora, era quente mas enquanto tava botando lenha, depois
fechava a tampa da fornalha e ía tomar vento.
Daniela: Era pesado...
Antônio: Era, era pesado, pesado mas eu gostava, era pesado
mas eu gostava...Ave Maria! Se ainda tivesse maria-fumaça aqui
eu ainda me butava pra trabalhar...
A descrição de Sr. Antônio nos faz imaginar uma locomotiva do tipo maria-
fumaça, sua enorme chaminé expelindo uma fumaça branquinha, parecendo uma
nuvem que suavemente se dissipa. Esse modelo de locomotiva era considerado
88
mais limpo que a movida a diesel - sem óleo queimando, sem o motor sujo e a
fumaça escura que impregnava a cabine. Esse contraste aparece no relato de Sr.
Antônio, que continua sua comparação reforçando que o cheiro da diesel era
desagradável.
Daniela: Porque vocês gostam mais da maria-fumaça?
Antônio: Ah... Porque ela era sadia. Era umas máquina sadia, você num
via ninguém mal com elas não. Se você vê a diesel, sai logo uma catinga
de óleo, o óleo cru. Quando estôra um cano daquele de diesel, é catinga
no meio do mundo, pior que um ônibus desse... Aquela catinga no meio
do mundo...
Daniela: E dá um mal estar...
Antônio: É, logo um mal estar. Eu adorava a maria-fumaça. Ora, eu
fui limpador de maria-fumaça, fui foguista, fui maquinista.
A maria-fumaça possui um defensor apaixonado, que lembra com detalhes
seu funcionamento e que, mesmo descrevendo a dureza daquele trabalho, não
perderia a oportunidade de trabalhar nela outra vez. Que máquina está presente na
memória do Sr. Antônio? Que máquina é aquela na pintura?
Da narrativa ela surge bonita, eficiente e cheirosa. O que se falou até aqui de
ruína, sucata e lixo não parece combinar com a rememoração dessas máquinas.
Elas são composições ideais.
Sabemos, por exemplo, que o volume de fumaça produzido era muito grande
e que a caracterização “nuvenzinha” é uma construção posterior. Isso reforça o que
considero a idealização de uma inserção harmônica do equipamento na paisagem.
Será também uma idealização dizer que o trabalho na caldeira deixou saudades?
Na pintura observamos ainda que os seis vagões são para passageiros, e
não de carga. Essa imagem peculiar remete à idéia de um trem do povo, trem
89
popular. Se o objetivo era rememorar e fazer um belo painel, para que vagões de
madeira carregados de carga? Se o objetivo era lembrar, a imagem insiste que
lembremos do trem cheio de gente; gente que compartilha aquela paisagem junto
com o maquinista e o foguista.
2.3 Escrita e Memória
Um outro exemplar da recriação ou reinvenção das paisagens a partir de
matizes da memória me chegou de forma inesperada. Estava na AFAC, numa
manhã de janeiro de 2004, quando conheci o Seu Luís. Ele estava recitando para
um pequeno grupo um poema, de sua autoria, sobre o piloto Airton Sena. Depois,
dedicou-se a falar sobre outros poemas e vender uma pequena brochura em cópia
xerox. De início não pensei que fosse um ferroviário aposentado, mas depois
conversamos um pouco e eu soube que fora telegrafista da rede.
Seu nome é Luís Gonçalves Lemos, natural de Lavras da Mangabeira, e além
de telegrafista foi agente de estação substituto. O nome artístico, ou seja, o nome
com o qual assina seus versos, é Luís de Janu. Apressou-se em me explicar que é
desta forma que é conhecido em sua cidade e que Janu refere-se ao nome de sua
mãe, Joana. Folheando o livrinho de Luís, entitulado “Louvação em Versos”,
encontrei o poema que transcrevo logo abaixo
79
. Cheguei a reencontrar o Seu Luís
de Janu naquela mesma semana, mas não tive oportunidade entrevistá-lo.
79
Poema do livro editado em cópias xerox “Louvação em versos”. Páginas 19 a 22.
90
Seu poema,
80
“O Rio ficou sem trem”, versa sobre a relação entre o Rio
Salgado e a linha do trem. Considero-o significativo para a discussão que
desenvolvo neste item, pois os versos são frutos de uma construção de memória
que envolve o mundo do trabalho na ferrovia e as paisagens da região do Cariri. Ao
mesmo tempo uma memória e um apelo, o que revela mais uma vez a projeção da
memória como expressão de desejo e aspiração.
O Rio ficou sem trem
O Rio Salgado nasce
Na pedra da batateira
De Crato para Barbalha
Sua margem verde cheira
Passando por Missão Velha
Com destino a Ingazeira
Aurora com Iborepí
Sem deixar meu Cariri
Em Lavras da Mangabeira
Logo de início, mesmo sem citar o trem, a descrição do rio Salgado
passando pelas cidades sugere a idéia de viagem: somos conduzidos pela
sensação de deslocamento, mudança. um esboço de inversão temporal, parece
que o rio segue as cidades, fazendo-nos esquecer que elas foram surgindo ao
longo do tempo nas margens dele. É mencionada uma construção de fundo
mitológico acerca das nascentes do Rio na Serra da Batateira.
No caso do trem da feira
80
Sobre a relação entre literatura e o mundo ferroviário ver MEYER, Marlyse. O imaginário dos
trilhos. In Literatura e Sociedade/Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada/
Universidade de São Paulo. São Paulo: USP/FFLCH/DTLLC, 1996.
91
Também saía do Crato
O rio na sua frente
Mais veloz do que um jato
Os dois pegando pareia
Correndo em busca dos pato
A disputa era bonita
Lembro a máquina que apita
Jogando brasa no mato
Agora o trem aparece num verso que é protagonizado pela velocidade. A
passagem “Os dois pegando pareia” sugere ao leitor uma disputa entre rio e trem,
não exatamente uma corrida com um ponto final. Pegar “pareia” é expressão usada
para designar o ato de correr lado a lado. Uma outra conotação é a idéia de par,
duo de semelhantes, os dois, trem e rio se assemelham na dinamicidade e no
percurso
81
. A máquina a que se refere o verso é a maria-fumaça, que seguia
“jogando brasa no mato”.
A máquina disputa com o rio. Ela deixa sua marca na paisagem não apenas
pela presença dos trilhos, mas porque a cada nova passagem da máquina essa
relação se dinamiza e se intensifica. Seus resíduos vão se incrustando e
recompondo o cenário.
Nos primeiros versos vemos também o famoso trem da feira, muito citado
pelos antigos usuários da ferrovia, lotado de pessoas e mercadorias. relatos do
ambiente festivo em seu interior quando saía do Crato.
No último trecho da estrofe, Luís de Janu usa o verbo lembrar para falar da
máquina. É a primeira vez que o autor o utiliza para reforçar o caráter memorial de
81
No dicionário encontramos a seguinte definição: “Parelha”: Par de alguns animais, especialmente
muares e cavalares; um par; pessoa ou coisa que se emparelha com outra, ou que lhe é muito
semelhante; número igual de pontos no jogo de dados; dístico ou estrofe de dois. Podemos ainda
encontrar “Parelho”: Semelhante, igual, parceiro, par/ igual.
FEREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2
a
. Edição 26
a
.
reimpressão. Editora Nova Fronteira/Rio de Janeiro
92
sua construção poética. Considero relevante -lo feito exatamente no momento
que evoca a máquina.
Transporte e água é um fato
Que no passado se via
O trem por cima do trilho
Do seu lado a água ia
Molhando aterro e barreira
Estragando a ferrovia
A cachoeira zuando
A fumaça atrás ficando
Enquanto a máquina corria
Agora o rio interfere no equipamento ferroviário, molhando os aterros e
“estragando a ferrovia”. A contenda continua firme, e não se trata apenas de uma
disputa de velocidade, o rio cheio interfere no leito da ferrovia; água e máquina
correm de fato lado a lado por alguns quilômetros
82
.
O aproveitamento dos vale dos rios em virtude do relevo menos acidentado
é usado como estratégia pelos construtores e projetistas de ferrovias. O projeto do
trecho que corre paralelo ao Rio Salgado provavelmente foi pensado segundo esse
cálculo.
A máquina corre deixando vestígios, marcando passagem com sua efêmera
assinatura de fumaça, que era reconhecida até por quem estivesse a alguns
quilômetros de distância da linha. Mais uma vez destaca-se que a ferrovia não é
o trilho, é o trem passando por ali.
Observamos, ainda, na segunda estrofe a relação entre transporte
ferroviário e abundância, trem e fartura, o rio cheio e o trem correndo. Essa
82
Observar mapa nos anexos.
93
analogia é um recurso do poeta para falar do tempo de cheia e da maria-fumaça e
logo depois estabelecer o contraste com o par rio seco e ausência do trem.
Não esqueço o dia a dia
De tal dupla no passado
Na cidade onde eu nasci
Um do outro é separado
O trem segue seu destino
Não vê mais o rio Salgado
De Lavras para Icó
O Rio fica e vai só
O trem chega em Arrojado
A cidade natal do autor é Lavras da Mangabeira. Tive a curiosidade de
observar no mapa detalhes desse traçado, e observei que rio e ferrovia realmente
seguem um ao lado do outro por vários quilômetros na região do Cariri, “separando-
se” a partir de Lavras.
Luis de Janu rememora a viagem de trem Crato-Fortaleza. O trem fazia
também o sentido inverso do descrito por ele, mas como devia ser bonito ver rio e
maria-fumaça correndo lado a lado, ele escolhe descrever o trem saindo do Crato e
que segue junto com o rio. Além da beleza da cena temos ainda a idéia do paralelo
que o poeta deseja elaborar.
Ali não fica parado
Porque tem Cedro na frente
Onde existia de tudo
Para o trem de antigamente
Depósito com inspetor
Guarda chave, conferente
94
Manobreiro, Maquinista
Condutor, telegrafista
Fiscal, foguista e agente
Quando saía de Arrojado o trem ía para o Cedro. Havia neste município
uma grande estrutura com galpões, casas de turma, uma escola ferroviária e
oficinas. A cidade vive ainda a lembrança de tão estrita relação, tanto que a câmara
municipal decretou, em 1999, a data de 20 de outubro para comemorar o dia do
ferroviário naquela cidade
83
.
A listagem das diversas funções e especializações dos trabalhadores nos
revela a variedade de encargos para o funcionamento de uma estação de grande
porte.
Lembro a via permanente
Eficiente e ligeira
Desobstruindo a linha
Trocando trilho e madeira
Mudando grampos com talas
Aprofundando bueira
Com vento chuva e sereno
Do feitor ao mais pequeno
Trabalhando a noite inteira
A “via permanente” é a equipe que cuida da estrutura dos trilhos, zelando o
leito da estrada para que não seja invadida pelo mato, trocando dormentes e
83
LEI n
o
.056/99 de 21 de Setembro de 1999/Prefeitura de Cedro/Dispõe sobre a criação do dia
municipal do ferroviário e toma outras providências.
O Prefeito Municipal de Cedro-Ceará, no uso de suas atribuições legais, em pleno exercício do
cargo a LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO – LOM:
Faço saber que a Câmara Municipal de Cedro aprovou e eu sanciono e promulgo a seguinte
lei:Artigo 1
o
. Fica criado o DIA MUNICIPAL DO FERROVIÁRIO, em data fixa no dia 20 de
Outubro de cada ano, com a finalidade de homenagear os ferroviários da RVC/RFFSA que se
integraram à comunidade cedrence, engrandecendo-a ECONÔMICA, FAMILIAR E
SOCIALMENTE para promover o desenvolvimento do município.
Artigo 2
o
. O DIA DO FERROVIÁRIO passará obrigatoriamente a fazer parte das festividades
programadas.
95
fazendo concertos. Dependendo da demanda, as equipes tinham que trabalhar
horas a fio, pois qualquer defeito na linha prejudicava o tráfego. Para automóveis e
caminhões uma obra numa estrada ou um buraco podem ser contornados com um
pequeno desvio, mas na ferrovia é bem diferente: o trabalho da equipe de
“conserva” não pode parar e acaba quando o trilho está liberado para a
passagem do trem. Tal rotina é descrita como sendo muito tensa e difícil.
Vicente: Num tinha sol, nem chuva, nem dia nem noite nem nada. Pra
num parar o serviço, tinha vez que ía até um cozinhero que fazia as
comida da turma e lá mesmo nós comia, bebia um café voltava pra lida.
Daniela: Um acampamento?
Vicente: Pudia ser debaixo dum cajuero, uma árvore, ou no mei do
nada.
As turmas de serviço da "conserva", ou "via permanente", podiam ser
especializadas em pontes, na parte elétrica ou alguma outra função específica, mas
geralmente trabalhavam na manutenção das linhas e de suas encostas, jogando
brita, desmatando, trocando dormentes.
Escrevi desta maneira
Não fiz nada porque não pude
Aqui tem rios demais
Barragem, córrego e açude
O problema é falta d’água
Que Deus nosso pai ajude
Trem com água é importante
Doutor meu representante
Melhore nossa saúde
96
Agora, depois de rememorar os tempos passados, Luís de Janu começa a
falar de sua impotência frente às transformações da natureza e da ferrovia.
Discorre sobre a seca que castiga o rio e depois retoma o trem. Os dois estão
juntos no trajeto e na importância. O apelo final é para o “Doutor”, termo usado não
para o praticante da Medicina, mas para políticos e funcionários da
administração pública, evidenciados pelo uso da expressão “meu representante”.
Respeito vossa atitude
Seu diploma de doutor
Mande nosso trem de volta
Com a velha máquina a vapor
Fale lá com o Presidente
Procure o Governador
Traz Doutor nosso transporte
Barato seguro e forte
Que você também usou.
Num apelo mais direto, pede ao “doutor” a volta do trem. Declara
reconhecer o valor do diploma, que chancela o conhecimento técnico e serve para
justificar o lugar de poder ocupado pela autoridade. não trem, o transporte
“barato, seguro e forte”. E ele o pede a volta do trem como especifica que
deveria voltar com a velha máquina a vapor. Não apresenta um motivo formal ou
utilitário, pede o trem do seu tempo, um trem que nunca voltará. Apesar de apelar
às autoridades técnicas, ele apresenta uma justificativa pessoal que perpassa sua
memória, seus sentimentos e sonhos.
O trem do agricultor
Transporte do nordestino
Trazia e levava tudo
97
Cabra, jumento e bovino
Carga de qualquer espécie
Velho mulher e menino
Pobre, cego e aleijado
Dentro e fora do estado
Fosse onde fosse o destino
Este é o trem que deve voltar, um trem para todos, que transporta os mais
carentes; um transporte que levava todo tipo de carga e encomenda, misturando
pessoas e animais
84
, sem fazer distinção
85
.
Terminando eu mesmo assino
Cansei de tal desafio
Cheguei no fim da jornada
Não tem mais água no rio
Olhei daqui só vi lama
Parada sobre o baixio
Falei numa dupla antiga
Juntando os dois sem intriga
Botando o trem no desvio.
Chegamos ao “fim da jornada”, o poema termina assumindo-se como uma
espécie de viagem. A última imagem, a última visão do rio num período de
estiagem. Rio vazio, ausência do trem de passageiros.
84
A freqüência do transporte de carga viva gera a necessidade de um posto de desinfecção de
vagões e denota uma multiplicidade funcional do transporte ferroviário: Será concluído ainda
este mês o Posto de desinfecção de vagões, serviço que a defesa sanitária animal está
procedendo no quilômetro Oito, nesta capital. À medida que é das mais elogiáveis visa a
possibilitar um melhor exame nos animais que forem transportados em composições ferroviárias
do interior a Fortaleza”.O Povo, 23/01/1957
85
Relembremos aqui um trecho citado do editorial do jornal da AFAC: Sentimos também muita
saudade das nossas velhas MARIA FUMAÇA com aquela sua tradicional composição de carros
de passageiros lotados de gente humilde, mas honrada e generosa.”
98
O texto de Luís de Janu é composto em cordel, uma forma de escrita que
remete à oralidade. Sua produção não é isolada, não é raro encontrar poemas e
textos escritos por aposentados da ferrovia. Como o objetivo da discussão aqui
proposta é debater o diálogo das memórias dos ferroviários e a forma como
relacionam paisagem e ferrovia, apresento outro poema, de Francisco das Chagas
Soares, agente aposentado, transcrito no jornal da Sociedade Beneficente:
Estação do Ipu
Estação do Ipu – templo elegante
Sobre o leito de ferro, na cidade
tranquila, ao sopé da serra, que saudade
reflete aos olhos meus a cada instante.
Pátio arqueado e sólido – mirante
altivo – que retinta gravidade.
Serena arquitetura. Amenidade.
O trem chegando calmo e fumegante.
O galpão. Comprido pavimento.
Os pedestres. Manhã de sol e vento.
E o comboio na marcha regular
A sumir-se na curva, lá no corte.
Meu trem! Minha estação da Linha Norte!
Sumidos! Eu ficando a suspirar.
Agente de estação aposentado, o autor do poema homenageia a estação
do Ipu, falando com saudade sua imponência. Ao final, o poeta refere-se ao local
em que trabalhou como “meu trem” e “minha estação”, lamentando o
desaparecimento de ambos e dizendo : “eu ficando a suspirar”.
99
Entendo que “eu ficando” significa o trem e a estação que se foram e o
autor que ficou. Ele assistiu ao final do lugar e dos equipamentos e alimenta
saudade e pesar com relação ao fato.
“Meu trem”, “minha estação”. Observemos o uso do possessivo. A forma
como se refere à estação indica posse, pertencimento. É sua por estar guardada
em sua memória, como também lhe pertence pelo tempo dedicado de trabalho.
Essa relação de posse pode ser desdobrada também na perspectiva de
pensar no quanto o próprio Francisco das Chagas pertence ao lugar. Elaborações
como essas construídas pelos ferroviários retomam a imagem da ferrovia
operando: cortava o estado e era bem acolhida pelos usuários. É uma composição
memorial que reconta lugares, pessoas trabalho passados.
100
2.4 Corpo, máquina e memória
Ao saber que eu estava fazendo uma pesquisa sobre a ferrovia, o seu
Zabulon
86
disparou esta:
– Era RVC, depois foi RFFSA, depois CBTU. E agora? Agora é tapuru.
Dita de maneira tão jocosa e seguida de uma sonora gargalhada, a
colocação deste velho homem me inquietou instantaneamente, pois sintetiza suas
impressões sobre a trajetória da ferrovia ao unir diversas temporalidades de forma
descendente, fazendo-a chegar no tapuru, o bichinho que vive nas coisas podres,
mortas.
Um dos problemas a colocação desperta é o seguinte: o trem, as estações,
os trilhos possuem uma “vida”? Como entender a organicidade que me foi
comunicada através de olhares, falas e gestos?
A idéia de perecibilidade é um dos aspectos da estreita e estranha relação
entre máquina e corpo. Em certo sentido, a quina é um corpo, tem vontades,
modos. O corpo lembra a máquina, recorda gestos, redesenha o espaço. A “alma
das coisas” é uma questão antiga que, explorada pela literatura, rendeu boas
histórias de ficção que tangenciam algumas das questões que discuto neste item,
entre elas a paradigmática história de Frankenstein:
Mary Shelley escreveu profeticamente no alvorecer da era tecnológica.
Ela não trata o monstro como uma máquina, mas ele também não é
humano, embora seja capaz de forma inteligente e até com sentimento.
86
Sr. Zabulon Alencar Teixeira, ferroviário aposentado com o qual conversei algumas vezes, mas
que não aceitou ser entrevistado.
101
Muito menos um animal. Nem seu criador nem qualquer outro
personagem da história lhe atribui um nome próprio. Ele é uma espécie
de sistema, uma criatura com emoções imprevistas, incluindo ódio e
desejo de vingar-se do seu criador.
87
No trecho destacado, Edward Tenner enfoca as tensões que permeiam o
híbrido Frankenstein: humano ou não humano? Outras criações literárias, e mais
uma vasta filmografia, exploram esse problema, talvez como uma maneira entender
o próprio homem moderno.
Para entendermos como idéia de máquina enquanto corpo relaciona-se à
memória dos trabalhadores da ferrovia, vejamos a narrativa de Cícero, um
maquinista aposentado, filho de um ferroviário e que cresceu nos arredores de uma
residência de via em Crateús. No trecho abaixo, ele descreve a primeira vez que
conduziu uma locomotiva, em 1950. Na ocasião, atuava como foguista poucos
meses, mas tinha o que ele mesmo chama de “dom para ser maquinista”, pois
sonhava com isto desde a infância. Voltemos nossa atenção para o episódio, trata-
se da primeira vez que Cícero conduz uma locomotiva:
(...) quando foi de manhãzinha, não sei por que, acho que ele tava com
sono e disse assim: -Crateús, ele me chamava de Crateús, faz essa
manobra por mim, que eu vou deitar aqui em cima da lenha. ele
deitou-se por cima da tenda que tem lenha, essas coisas... -Eu vou dormir
aqui um cochilozinho, enquanto chega a hora da partida. Aí eu fui e digo: -
Vixe! Será que eu vou fazer? Mas eu já sabia mais ou menos de tudinho,
né? Abri as purgação, esgotei o cilindro da alemã, a quina alemã ela
junta muita água no cilindro, se não tirar, ela corre sozinha e vai-se
embora e num atende ninguém, não.
87
TENNER, Edward. A vingança da tecnologia, as irônicas conseqüências das inovações
mecânicas, químicas, biológicas e médicas. Tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.
102
Querendo demonstrar a habilidade com que executou sua primeira manobra,
Cícero fornece detalhes sobre a “Alemã”, uma máquina que se não fosse tratada de
maneira correta, não se sujeitava à vontade do operador. Colocá-la para funcionar?
Não. Despertá-la, “tirar da cama”. O dia estava começando e a “alemã” se
preparava para os seus primeiros movimentos, estava até então adormecida,
respeitando assim a hora do trabalho e do descanso (dia/noite). Se não fosse bem
tratada logo cedo, não obedeceria aos comandos de ninguém, correria sozinha.
Quem consegue ter um bom dia se for acordado de uma maneira desastrada?
A máquina não é humanizada, como também é cheia de vontades e
descrita de forma feminil. Lembremos, ainda, que se no trecho citado Edward
Tenner destaca a ausência do nome do híbrido como dado significativo - “nem seu
criador nem qualquer outro personagem da história lhe atribui um nome próprio” - a
máquina, por sua vez, tinha seu nome, Alemã, e “gênio” bem conhecidos por seus
operadores.
Podemos pensar que tal organicidade seja inerente à função do maquinista
que viaja e cuida do equipamento. Mas a explicação não é suficiente, já que
noutros setores a relação se repete, entre os metalúrgicos ou os da “conserva”.
Observo que esse olhar possui vinculação com o trabalho manual, que propicia um
encurtamento das fronteiras entre corpo e máquina.
A imprecisão desta fronteira está presente na narrativa memorial, que no
caso citado reconta a primeira experiência de trabalho de forma idealizada, retoma
a máquina “Alemã” como uma personagem.
Podemos pensar aqui na forma como a narrativa é percebida por Walter
Benjamin: como tecido, como trabalho artesanal, como arte de manuseios e
delicados aprendizados. Tecelão, oleiro, marinheiro, o narrador-artesão-trabalhador
103
domina as artes do narrar. Ela é aberta e por isso podeser contada e recontada
repetidas vezes. Não tece contextos complexos, estimula a interpretação do
ouvinte ou leitor. Tratando da narração Benjamim destaca o papel dos gestos:
Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus
gestos apreendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem
maneiras o fluxo do que é dito.
88
O apego ao equipamento, o fato de lembrarem o nome das locomotivas, o
saudosismo em torno da maria-fumaça, que foi a máquina com a qual aprenderam
a trabalhar nos primeiros anos de ofício, estabelecem uma relação com a matéria e
os espaços de trabalho mais usuais. Tal relação pode ser apreendida de maneiras
diferentes. E uma das formas de pensar essa questão é entender o apego ao
equipamento e ao ambiente de trabalho apenas como alienação:
Em Borgo S. Paolo, um setor de Turim que fornece força de trabalho às
fábricas da Fiat, Laura Passenini encontrou uma memorização da
experiência de trabalho dos anos trinta que freqüentemente faz dos
carros os sujeitos reais da comemoração em vez do trabalhador –
memorização que, ao mesmo tempo que representa o orgulho da
competência, é uma interiorização real da alienação do trabalho fabril.
89
A máquina desumaniza o homem. E em que medida o homem humaniza a
máquina? Em que medida reinventa a máquina para tornar tolerável ou prazeroso o
convívio?
88
Op. Cit, p.221 fazer citação completa
89
FRENTESS, James; WICKHAM, Chris. Memória social: novas perspectivas sobre o passado.
Teorema. p.148
104
Observando o que está colocado em alguns documentos e falas, penso
que para além da “alienação do trabalho fabril” há toda uma necessidade de
identificar-se com o equipamento ferroviário, com as rotinas, com os colegas e com
o tempo da ferrovia.
Será alienação do trabalho o que faz o Seu Antônio Serafim saber de cor,
até hoje, o prefixo dos trens e horário de partida e chegada, além do horário de
parada em cada estação?
Não nos parece suficiente falar de “alienação do trabalho”. Essas
memórias não ignoram o grau de cobrança e responsabilidade, a exploração do
trabalho. Havia uma expectativa em torno do trabalho do ferroviário, em especial
com relação à função do maquinista. Nas últimas páginas da obra de Estevão Pinto
sobre a ferrovia em Pernambuco, encontramos reproduzida a foto de um
maquinista e logo abaixo dela a seguinte legenda:
No posto de honra. Pesa sobre o maquinista do comboio uma grande
responsabilidade: tem a seu cargo a guarda de um vultoso patrimônio
nacional e, ainda mais, a guarda da vida de numerosas pessoas que
confiam na sua aptidão e no seu senso de responsabilidade
90
.
A descrição de Estevão Pinto ressalta o lugar de destaque do maquinista,
que goza do status em seu “posto de honra”, em seguida o autor fala da
responsabilidade, do dever que “pesa” sobre ele. Entre as imagens do trabalhador
responsável pelo “vultoso patrimônio” e o “trabalhador alienado”, tento discutir
neste capítulo os lugares do trabalhador da ferrovia e as marcas deixadas em seu
repertório de gestos, marcas de um aprendizado e um exercício repetido que se
deve à pressão, ao rigor do tempo e ao peso das responsabilidades: muitos
90
PINTO. Estevão. Legenda da figura da página 221
105
elementos subjetivos inseridos numa operação que prepara um corpo de forma
exaustiva para que repita gestos precisos e sincronizados.
Esse desdobramento da relação corpo-máquina-memória pode ser
discutido a partir de mais um momento da entrevista com Cícero, que foi
particularmente rica. Ainda falando de seus primeiros tempos na ferrovia, descreve
o teste que um maquinista fez para avaliar sua competência como foguista.
Eu me apresentei lá, era um velho já, por nome Caboclo. Era Angelino
Ferreira Maia o nome dele, mas chamavam ele de Caboclo. Você é
foguista? Eu digo não. Eu sei mais ou menos o que é o serviço de um
foguista. Pois suba aí, bote esse monitor pra trabalhar, do lado L, lado L
é o lado do foguista. Eu botei, fechei. Bote o monitor do lado R. Eu
acho que ele pensava que eu não sabia o que era o lado L e o R
91
,
botei! Abra o repuxo. O repuxo é quando a gente vai abrir a fornalha, a
máquina estando parada, que você vai abrir a fornalha pra botar a lenha
dentro. Você tem que abrir o repuxo que é pra puxar o fogo pra fora,
pra num vim pra gente. Abra o repuxo. Eu abri. Abra a luz. Eu abri.
Aonde é a válvula de retenção? Eu fui e digo: L ou R? Eu fui abri e
fechei. É tá certo, tá bom, aí ficou comigo.
Cada vez que descrevia uma ordem do maquinista, Cícero gesticulava.
Hora apontando e agindo, imitava seu interlocutor; em seguida, levantava as mãos,
girando, abrindo e fechando válvulas. O espaço ao nosso redor passava a ser
cabine do trem, gestos rápidos e medidos de quem opera num espaço limitado.
Uma memória gestual, uma coreografia forjada na repetição e agora rememorada.
O corpo descreve no ar o espaço da máquina, não bastavam as palavras, palavras
não seriam suficientes. Ele mais uma vez estava falando dos primeiros tempos de
91
Deduzi que seria do inglês L (left/esquerda) e R ( right/direita)
106
ferrovia, queria mostrar que sabia fazer direito, e o saber fazer, neste caso, não
pode ser expresso apenas pela oralidade.
Percebemos a relação entre espaço e narrativa, o ato de contar exige o
gesto e ocupa o espaço. O gesto revela um corpo que se adaptou aos repetidos
esforços.
Ao descrever os pequenos prazeres de um café da manhã, Walter
Benjamin sugere com uma palavra cadência uma leitura dos gestos
relacionados com o tempo e espaço. Nada de muito complicado, apenas a preciosa
sugestão de como num mesmo momento e lugar fluem distintas temporalidades:
Em nenhuma refeição as cadências são mais distintas, desde o manejar
mecânico do empregado, que apóia no zinco seu copo de café com leite,
até o prazer contemplativo, com que, na pausa entre dois goles, o
viajante vagarosamente esvazia a xícara.
92
Melhor que “ritmo” (que sugere constância, repetição e mecanicidade),
cadência sugere a subjetividade do colocar-se, do agir. O que está posto com o uso
de “cadência” é o corpo em movimento, isto me faz pensar nas cadências possíveis
numa estação ferroviária, num vagão ou numa turma de manutenção de vias. Que
cadências distintas entre trabalhadores da rede - bilheteiros, bagageiros,
maquinistas? E ainda mais, certamente diferentes sujeitos cumprem a mesma
função com cadências distintas, mesmo que o façam sob a regência de um mesmo
tempo.
92
Idem. Ibdem. p.214.
107
A relação entre o corpo e os artefatos mecânicos foi objeto de reflexão da
filósofa Simone Weil
93
, que experimentou a árdua rotinas das fábricas, de onde
refletiu sobre as condições do trabalho fabril. Descreve uma máquina que oprime o
corpo, violenta-o, “não há nada menos instrutivo que uma máquina”
94
. Haveria
espaço para uma relação não opressiva entre homem e máquina? Uma
possibilidade é apontada por Simone, ao descrever o trabalho do condutor:
Conrad: tamanha união entre o velho marinheiro (chefe,
evidentemente...) e o seu barco, que cada ordem deve vir por
inspiração, sem hesitação nem incerteza. O que supõe um regime de
atenção muito diferente tanto da reflexão quanto do trabalho servil.(...)
Há, às vezes, uma semelhante união entre um operário e sua máquina?
( Difícil saber). Quais as condições de uma união como esta? Na
estrutura da máquina? Na cultura do operário? Na natureza do
trabalho?cultura
Essa união é, evidentemente, a condição de uma felicidade. ela faz
do trabalho um equivalente da arte
95
.
Podemos entender o maquinista como este condutor descrito por Simone
Weil? Haveria em sua relação com o equipamento um aspecto que o diferenciaria?
Estaria estabelecida ali uma “união”?
Dentro da fábrica o calor e o bruto regime das máquinas oprime de tal
forma, que Simone Weil propõe uma revolução técnica, não bastaria apropriar-se
da fábrica se ‘a escravidão continuasse disfarçada na maquinaria industrial”
96
. O
regime descrito pela autora aproxima-se do trabalho de alguns setores da ferrovia
como a metalurgia, as pedreiras e oficinas.
93
WEIL. Simone A condição operária e outros estudos sobre a opressão/ seleção e apresentação
Ecléia Bosi. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
94
Idem.Ibdem. p.116.
95
Idem.Ibdem. p.114.
96
Idem.Ibdem. p. 32
108
O peso dos dias dentro da fábrica é, em alguns poucos momentos esquecido
graças ao contato com os colegas “lembranças que põem um pouco de orgulho no
coração, que deixaram um pouco de calor humano em cima de todo esse metal”
97
.
Como a rememoração opera com estes elementos?
Este é um campo que exige cuidados, não é simples tentar esta
aproximação. O envelhecer permite novas configurações desta questão, o que faz
da lida com a memória um desafio. Por exemplo, entrevistas com ex-ferroviários
pode fazer parte de um trabalho que chega questões que não foram pensadas
agora. Um exemplo é o trabalho de Liliana Garcia Bueno dos Reis
98
. A autora
escolhe uma forma diferente da que trabalhamos aqui para apresentar seus
interlocutores, seus nomes não aparecem, uma nota de rodapé onde podemos
ler: “Depoente: mestre do setor de carros” ou Depoente: soldador” ou ainda,
“Depoente:mestre da marcenaria” “mestre do setor de vagões” “ajudante de
serralheiro” os nomes não aparecem, aparecem os cargos. Penso que cita os
nomes significa deixar claro que antes de ser maquinista ou soldador, o trabalhador
é um ser humano, que e o mundo do trabalho é um dos aspectos de sua vida, e
por maior que seja sua importância, não define a vida e as escolhas do trabalhador.
Alem disso, um ferroviário poderia ocupar diversas funções o longo de sua
carreira, O Sr. Targinio, por exemplo, foi trabalhou nos escritórios, na burocracia,
mas também foi mecânico e trabalhou como auxiliar nas estações. Os maquinistas,
por exemplo, foram pelo menos foguistas ou guarda-freios.
97
Idem.Ibdem. p. 128.
98
GARCIA, Liliana Bueno dos Reis.O mundo do trabalho dos ferroviários aposentados das oficinas
da companhia Paulista de Estrada de Ferro de Rio Claro – 1930 1 1940. In Outros olhares, Centro
de Memória UNICAMP. Campinas, 1996.
109
O Sr. Targino é baixinho, magro, “pouquinho” como ele mesmo diz. Tem uma
moto e quando conversamos pela primeira vez, em 2002, estava se recuperando e
um pequeno acidente, o reencontraremos ainda neste item.
Além de não apresentar o nome dos entrevistados, Liliana Bueno entende
que as entrevistas seriam um caminho para “uma visão do mundo do trabalho das
décadas estudadas”, um problema que enfrenta para alcançar seu objetivo é:
o discurso ideológico da empresa foi introjetado pelo ferroviário, porém,
demonstram ser o melhor caminho para a visão do mundo do trabalho
nas décadas estudadas, haja vista que as oficinas hoje não espelham
mais a eficiência e o progresso alcançados nas décadas passadas,
processo que começa a se tornar visível já nos anos 50
99
.
O apego ao equipamento ou o gosto de relembrar os dias de trabalho é
interpretado com o ”introjeção” do projeto patronal, esta idéia desconsidera a
experiência humana, as trocas e os arranjos para lidar com o mundo do trabalho.
A disciplina desenvolvida é a garantia do aumento da produtividade. As
formas encontradas pela direção da empresa para difundir estas normas
disciplinares percorrem os diferentes níveis da produção (...) A relações
daí advindas deixam transparecer relações paternalistas que
sustentaram o amor dos ferroviários pela ferrovia. Os ferroviários
amaram a ferrovia acima de suas próprias vidas”
100
O amor pela ferrovia diferencia-se do amor pela vida? O trabalho está
recortado e isolado, ocupando um espaço limitado por rígidas fronteiras? Os
ferroviários não amaram ou amam a ferrovia acima de suas próprias vidas. Eles
amam o que viveram na ferrovia; vida e ferrovia, para estes homens não ocupam
lugares distintos.
99
Idem. Ibdem. p. 36
100
Idem.Ibdem. p. 40
110
Quando perguntei ao Sr. Targino como era trabalhar nas oficinas na época
da mudança da Maria-fumaça para a diesel, sua resposta revelou aspectos de sua
vida pessoal.
Daniela: O senhor foi mecânico da diesel. Quando começou a trabalhar
com essas máquinas?
Sr. Targino: Mil novecentos e cinqüenta e pouco...
Daniela: E como era, naquele tempo, o trabalho? Qual era a sua
função?
Sr. Targino: Eu casei em 56, casei não, me bombardeei todinho. Casei
e com um ano e meio de casado, eu não vou mentir não, falo o que é
verdade, com uns tempo eu passei pra trabalhar no rodízio da noite. Eu
era mecânico do motor diesel, no tempo do Mestre Mula Preta... Eu
saía pra trabalhar, a mulher ficava em casa, tinha uma budega vizinho e
o homem era separado da mulher, eu num vou mentir, eu vou falar o
que é a verdade né? Aí com uns poucos a mulher começou a namorar,
o negócio num prestou não. Eu trabalhava a noite e a mulher de
ficava em casa .(...) o negócio se espalhou no meio do mundo e foi
pegado (...) Eu saía de casa às cinco horas pra receber as máquinas
que chegavam às sete horas e passava a noite e chegava oito horas
do dia em casa.”
Ora, a mudança do motor e o trabalho em novos turnos que a nova
máquina exigia aparece como coadjuvante de um drama pessoal, a rememoração
também é polifórmica. Depois do momento destacado, o Sr. Targino dedicou-se a
falar sobre como era bom ser solteiro e livre para “aproveitar enquanto é novo pra
depois de velho num fazer besteira e se lascar”.O rememorar a ferrovia é
rememorar a vida, e também estabelecer um lugar no mundo de hoje.
111
3.1 A Associação dos Ferroviários Aposentados do Ceará - Afac
Ouvi falar na Afac, pela primeira vez, numa conversa com o Sr Raimundo,
um agente de estação aposentado, que mora em Caucaia, nas imediações da
estação da cidade. Ele tinha em casa a convocação para uma assembléia e me
falou sobre a entidade que congrega os ferroviários aposentados do Ceará. Cuidei
de anotar o endereço e o dia da assembléia. A reunião ocorreu no auditório da
RFFSA
101
e tratou de questões do cotidiano dos aposentados, como plano dentário
e horário de atendimento aos associados. A partir dali, comecei a visitar a sede
para me aproximar do dia-a-dia da instituição, o que foi de fundamental importância
para o andamento da pesquisa.
Desde os primeiros contatos, em meados do ano 2000, tive possibilidades de
conhecer melhor a organização dos trabalhadores aposentados da ferrovia.
Somente após a última eleição da entidade, em março de 2004, quando
acompanhei a efervescência política e a agitação que sacudiram a entidade, foi que
decidi tomá-la como tema central de um capítulo. Tratava-se da primeira eleição
com disputa, até então só havia "aclamação" de chapa única.
Essa mesma eleição, que exaltou os ânimos e me fez pensar de outra forma
a Afac, também gerou certa instabilidade interna na entidade, provocando até
mesmo a perda de alguns documentos, o que acabou dificultando a pesquisa.
Componentes da antiga diretoria se apossaram de documentos, como atas e
exemplares dos jornais antigos, até agora se negocia a devolução completa do
material.
101
Especificamente, o auditório do Centro de Formação Profissional, situado à Praça Castro Carreira
(Praça da Estação).
112
A chapa vencedora da eleição tinha em seu panfleto de propostas a
sugestiva chamada: "Embarque também neste trem". Escolhi esta frase como título
do capítulo final, por entender que ela representa bem a idéia de convite a uma
viagem. Mas devo alertar que o ponto final deste trabalho não é o esgotamento do
tema nem das vidas e sonhos aqui pensados e discutidos. muito a ser
conquistado e vivido.
A pertinência do tema explica-se principalmente porque a organização e as
lutas dos aposentados manifestam seus projetos e desejos. E a memória está
articulada com os projetos e as lutas coletivas. Propomos aqui, neste capítulo, uma
exploração mais focada na memória da instituição. Articularemos sua história com
aspectos da sociabilidade e convivência dos aposentados da ferrovia no Ceará.
O objetivo não é fazer uma “história administrativa da Associação”, mas
tentar discutir aspectos históricos da entidade, retomando questões sobre o
trabalho, a aposentadoria e a relação com a ferrovia.
Os problemas com a documentação também impossibilitam, pelo menos
enquanto a situação perdurar, a efetivação de um apanhado que pretenda ser mais
completo, devido ao desfalque no arquivo da entidade. expectativas de que os
antigos dirigentes devolvam a documentação, que pertence ao arquivo e merece
ser cuidada, organizada e disponibilizada.
Os aposentados brasileiros, de uma forma geral, possuem uma agenda de
discussões bem particular, pois são afetados de maneira específica pelas políticas
públicas e nem sempre contaram com entidades que os congregassem e
atuassem tratando prioritariamente de suas reivindicações. A organização das
associações de aposentados possui características próprias e passou por
transformações históricas significativas, principalmente a partir dos anos 1980. Para
113
entendermos melhor algumas dessas transformações é preciso saber um pouco
sobre as mudanças no tratamento dado ao aposentado.
No período que se extende de 1930 a 1964 as demandas relativas ao seguro
da Previdência eram segmentadas por categoria. Segundo Júlio Assis Simões
102
,
conquistavam melhores resultados as categorias mais organizadas - cita como
exemplos os bancários, marítimos e ferroviários - que conseguiam fazer pressão,
via sindicato, junto aos institutos de aposentadorias e pensões (IAPs). A
aposentadoria era, nesse momento, uma forte pauta para os sindicatos, e a
garantia de um benefício mais justo dependia, em certa medida, da articulação
sindical.
O regime militar instituiu a unificação do sistema previdenciário,
desarticulando assim a pressão dos sindicatos que possuíam reivindicações
específicas relativas às categorias que representavam, por exemplo, os bancários
aposentados eram representados diretamente pelos sindicatos da categoria.
Em 1974, o Ministério do Trabalho foi desmembrado, sendo criado o
Ministério da Previdência Social. Esse desdobramento político-institucional
provocou amplas conseqüências e no caso dos aposentados foi definitivo: o
rearranjo gerou uma desarticulação entre a luta sindical e a luta pelos direitos
relativos à previdência. Os aposentados ficaram numa espécie de “orfandade
política”, já que os sindicatos centralizavam as ações nas lutas do pessoal da ativa.
Em 1985, a criação da Confederação Brasileira de Aposentados e
Pensionistas (Cobap) revelou a emergência de uma nova forma de mobilização
protagonizada pelos aposentados. O pesquisador Júlio Assis Simões fala do
102
SIMÕES. Júlio Assis. A maior categoria do país: o aposentado como ator político. In: BARROS,
Myriam Moraes Lins de.Velhice ou terceira idade?: Estudos antropológicos sobre identidade
memória e política. Rio de Janeiro: Ed.FGV, 1998.
114
sentimento de abandono vivido pelos aposentados e daquilo que consideravam
descaso por parte dos sindicatos:
Foi esse “descaso” que as novas associações de aposentados passaram
a denunciar e a combater, em nome de uma ação reivindicativa ampla,
unificada e autônoma em relação “as distintas categorias profissionais. Ao
longo dos anos 80 até depois da mobilização dos 147%, no início dos
anos 90, diversas associações de aposentados, ligadas ou não a
sindicatos, articularam-se em federações regionais e formaram uma
organização nacional - A Confederação Brasileira de Aposentados e
Pensionistas (Cobap). Neste percurso deixaram de ter um papel
assistencialista e pontual e despontaram como novos representantes
reconhecidos dos interesses dos beneficiários da Previdência.
103
A Afac foi pensada dentro de tal contexto. Fundada em 25 de maio de
1985, ela surgiu da necessidade de uma entidade que congregasse os
aposentados e suas reivindicações específicas, pois esse grupo não encontrava
eco no sindicato, que legalmente já não representava o ferroviário aposentado.
Esta Associação, registrada sob o n
o
55.159, e 30.12.85 no Cartório Melo
Júnior, de Títulos e Documentos, foi fundada na data de 25 de Maio de
1985, atendendo a imperiosa necessidade que se fazia sentir de
congregar os ferroviários aposentados que se encontravam
desorientados, sem um apoio para a condução e trato dos seus
interesses junto aos órgãos oficiais; chegou em boa hora.
104
No caso dos ferroviários brasileiros, pude notar, dentro do universo de
documentos consultados, que a Associação de Aposentados do Rio de Janeiro
105
103
Idem. Ibidem. p.17.
104
AFAC. Relatório Anual das Atividades desenvolvidas pela diretoria no período de 25/05/85 a
25/05/86. Fortaleza, 1986.
105
Fundada em 16/05/1884. Av. Presidente Vargas, 1733-S/N CEP 20210- Sede própria- Centro RJ
115
pode ser considerada pioneira. Como relata seu órgão de divulgação, "Jornal do
Aposentado", a entidade começou a ser idealizada no ano de 1983:
Informamos a todos os interessados que consideramos como
"idealizadores" da Associação dos Aposentados da RFFSA os nove
ferroviários que participaram da reunião, realizada em 29/08/83,
para discutir a criação de uma Associação.
106
Contudo, não foi apenas a situação de “orfandade política” que motivou a
fundação da Afac. Um texto do então diretor da Afac, Sr.Paiva Lima, resume a
missão e os objetivos da entidade, além de descrever as condições que impuseram
a necessidade de sua criação:
A Associação dos ferroviários aposentados do Ceará - AFAC, entidade
sócio-classista, sem fins lucrativos, fundada em 25 de maio de 1985,
tendo por finalidade congregar os ferroviários, aposentados e
pensionistas em geral; zelar pelos seus direitos; prestar-lhes
assistência sócio-cultural e recreativa; promover a sua valorização
procurando manter vivo os vínculos profissionais que nortearam a sua
vida funcional dentro da empresa ferroviária, e conseguir palestras,
conferências, cursos e outros meios a fim de manter a categoria
sempre bem informada.
107
O principal foco de atuação da instituição passava pela questão dos direitos
relativos à previdência, apesar dos objetivos de integrar, congregar e propiciar um
espaço de convivência para o aposentado.
106
INÍCIO. Jornal do Aposentado: órgão de divulgação oficial da Associação dos Aposentados da
RFFSA, Rio de Janeiro, n.1, mar.1990.
107
LIMA, Francisco Paiva. Associação Ferroviária: pronunciamento alusivo à comemoração do
primeiro ano da Afac. Fortaleza, 10 jun.1986.
116
A mobilização para a obtenção de direitos previdenciários foi o motivo inicial
e continuou sendo a questão aglutinadora. O apoio e o estímulo do sindicato foram
necessários e, no caso do Ceará, de fato houve espaço para essa cooperação. A
idéia da fundação da entidade local, segundo o relato que segue, teria partido de
um membro do sindicato. Podemos entender que, em certa medida, havia uma
relação de proximidade e cooperação entre Afac e Sindicato, mas a especificidade
da luta dos aposentados tornou necessária a criação de sua entidade.
Os ferroviários cearenses optantes do regime CLT/FGTS, com a
obtenção de aposentadoria pela Previdência Social, ao se afastarem da
RFFSA ficaram sem a assistência do sindicato da classe do Serviço
Social da Empresa. Sem dispor de um órgão oficial por intermédio do
qual pudessem fazer suas reivindicações individuais e a defesa da
classe, nos momentos necessários, um grupo de líderes da classe
resolveu, incentivado pelo Presidente do Sindicato dos Ferroviários, em
boa hora fundar a Associação Cearense de Ferroviários Aposentados.
108
Quando se reconheceram como grupo, com um forte potencial de
mobilização, os aposentados se organizaram e afirmaram suas particularidades. O
que os diferencia de outros grupos?
Se o isolamento provocado pelas mudanças políticas pode ser retomado
como marco inicial de uma história de lutas, a especificidade dos problemas
enfrentados pelos aposentados acabou sendo um ponto de convergência que os
aglutinou. O que antes os fazia isolados torna-se marca distintiva do grupo:o "existir
socialmente é também ser percebido como distinto".
109
108
Idem. Ibidem.
109
109
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
117
A “maior categoria do país
110
ainda enfrenta diversos problemas, sua
visibilidade política não tem redefinido a esfera doméstica e o envelhecer pode ser
muito diferente entre aposentados, pensionistas, entre pobres e ricos.
Com o passar das décadas cada vez mais o velho foi sendo
marginalizado, principalmente se considerarmos a posição social do
idoso. É sobretudo entre os pobres que os velhos são relegados a um
segundo plano, vivendo na dependência de familiares ou isolados em
abrigos, quando têm oportunidade de apoio. Muitas vezes a assistência
prestada relaciona-se à aposentadoria recebida pelo idoso, que passa a
ser manipulada pelo responsável por ele.
111
O que importa destacar é que a mobilização dos aposentados tem
provocado um impacto social significativo; destratar, maltratar ou desrespeitar o
idoso pode acarretar sérias conseqüências políticas. Um bom exemplo foi o
destaque dado pela imprensa ao “deslize” do ex-Presidente da República,
Fernando Henrique Cardoso, que usou o termo “vagabundos” quando se referiu à
categoria.
110
“Entre os vários elementos básicos e recorrentes na elaboração discursiva da identidade do
aposentado, podemos destacar, em primeiro lugar, a afirmação de seu vasto contingente numérico,
que se sintetiza na expressão ’somos a maior categoria do país’. Como afirmou, por exemplo Cid
Ferreira, ex-presidente da Associação de Aposentados Metalúrgicos de Campinas” SIMÕES,
Ibidem, p.20.
111
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. A história de Fortaleza através da imprensa e dos depoimentos
dos idosos. Trajetos, Fortaleza, v.1, nov. 2001.
118
3.2 A sede da Afac.
A atual sede da Afac, localizada na rua João Moreira, bem ao lado da
Estação Central, é um ponto de encontro e de convivência. Mas nem sempre
funcionou no mesmo lugar, possuindo pelo menos outros dois endereços. Na
documentação do seu primeiro ano de existência, em especial no relatório sobre
esse período, encontramos as seguintes referências a respeito da sede:
Associação de Ferroviários do Ceará, na Rua Castro e Silva n
o
684,
mudou-se em Novembro de 1985, para nova sede, junto a RFFSA, na
Praça Castro Carreira s/n, embora provisoriamente, onde funciona e
atende diariamente.
112
112
AFAC. Relatório Anual das Atividades desenvolvidas pela diretoria no período de 25/05/85 a
25/05/86. Fortaleza, 1986.
F. 08 Jardim e entrada da sede da Afac. Foto de Daniela Medina.
119
Não fica bem claro onde, dentro da área de considerável extensão da
RFFSA, ficava o local. Em outro relato, dessa vez no primeiro número do
informativo da Afac, ainda sem título, encontramos o seguinte trecho que descreve
a localização da sede dentro do espaço da RFFSA:
Inicialmente funcionou numa dependência do Sindicato dos
Ferroviários na rua Castro e Silva, transferindo-se no mês de
novembro do ano passado para a sala que foi gentilmente cedida pela
administração da SP1.1, no prédio da Central, vizinho à Inspetoria de
Movimento, para nela funcionar o nosso escritório sede.
113
Observamos que os primeiros espaços que abrigaram a Associação foram
salas, locais relativamente pequenos e impessoais, principalmente se comparados
à atual sede, um lugar com espaço interno e externo bem amplos. A proximidade
com a ferrovia é uma constante de todos os endereços das sedes. Contudo, não
encontrei evidências de que houvesse a premeditação de construir a sede
exatamente no atual endereço.
Na documentação da solenidade de comemoração do primeiro ano de
fundação da Afac, observei indícios da estreita relação com a ferrovia da “ativa”.
Nas solenidades, por exemplo, as homenagens foram acompanhadas de pequenos
discursos
114
. Através deles é possível ter uma idéia das articulações com os
gestores da ferrovia, no sentido da conquista da sede, e, provavelmente, em outros
aspectos, como apoio jurídico.
Dr. Ruy do Ceará Engenheiro Chefe de Superintendência de Produção
113
INFORMATIVO mensal: órgão de divulgação da Afac. Fortaleza, v.1, n.1, 5 fev.1986.
114
AFAC. Discursos de homenagem no primeiro aniversário da fundação. Fortaleza, 25 mai. 1986.
Manuscrito.
120
(...) não tem medido esforços em prestar a esta Associação a sua valiosa
colaboração, facilitando todos os meios de que temos necessitado para o
bom desempenho de nossas atribuições para o funcionamento da
entidade, no trabalho desenvolvido para atingir os objetivos de sua
finalidade.
Dr. José Rêgo Filho, Engenheiro assessor da S.P 1.1
(...) tem prestado a esta Associação a sua irrestrita solidariedade, desde a
sua fundação, ao seu funcionamento no início e, por último, interessando-
se na solução do acolhimento, numa das dependências da Rêde, de
nossa sede, quando enfrentamos sério problema nesse sentido no mês de
novembro do ano passado.
Dr. José Maria Braga Costa, Engenheiro Chefe do Departamento de
Transportes, prestou sua valiosa colaboração, autorizando com presteza a
desocupação da sala onde hoje funciona a nossa sede, não tendo faltado,
com sua franca ajuda quando tem sido procurado nesse sentido.
A partir da documentação observamos através da documentação as
mudanças de sede, de uma sala no sindicato para uma outra na RFFSA, até
finalmente fixar-se no prédio onde hoje se encontra instalada.
Nos agradecimentos ao engenheiro José Rêgo Filho, fala-se de um "sério
problema", que, infelizmente, o podemos caracterizar aqui por falta de
documentação. podemos deduzir que após o período de maio a novembro de
1988, a Afac teve que sair da sede do sindicato, passando a ocupar a sala situada
"vizinho a Inspetoria de Movimento", e que essa transferência deve ter ocorrido em
virtude de alguma pressão.
A possibilidade de mudança para uma nova sede é anunciada no primeiro
ano. A sala na RFFSA é chamada de "sede provisória" nos documentos timbrados
da entidade.
A proximidade física e os laços de cooperação que se estabeleceram entre a
Afac e a ferrovia da ativa podem acabar confundindo e dificultando a demarcação
de fronteiras. Caso levemos em conta que o primeiro jornal se chamava "A voz do
121
ferroviário" notaremos a questão da difícil separação entre aposentados e não
aposentados. Essa problemática será explorada no próximo item.
3.3 Jornal, logotipo e outras marcas legíveis.
Atualmente “A voz do Aposentado” é nome do órgão oficial da entidade.
Mas os detalhes sobre sua periodicidade e tiragem não podem ser expressos,
pois não existe um arquivo dos números anteriores. Saí coletando alguns
exemplares com associados e encontrei outros em pastas e caixas antigas na
sede. Enquanto preparava o levantamento dos jornais e informativos da Afac,
acabei percebendo um detalhe significativo: o primeiro jornal da entidade
chamava-se "A voz do Ferroviário". Pensar sobre o nome do jornal, que na
realidade é muito mais do que um “detalhe”, me fez refletir acerca das vagas
fronteiras entre ser aposentado e ser “da ativa”.
O aposentado se diz ferroviário em suas falas, como já tratamos em
outros momentos deste trabalho. Ele se considera detentor de um saber que
manteria em funcionamento todo o complexo da ferrovia. Orgulha-se e apega-se
a isso. A maioria ainda se descreve como ferroviário, e fala do fim dos
“ferroviários” como se os atuais trabalhadores da ferrovia pertencessem a outra
categoria.
O aposentado se afirma como ferroviário. Contudo, é um processo
delicado descobrir-se fora do mundo da ferrovia; saber-se aposentado envolve o
desafio de trilhar um novo caminho.
Lembremos, ainda, que na época em que o jornal intitulava-se “A voz do
Ferroviário”, a “categoria” dos aposentados estava apenas ensaiando sua
122
articulação. Isso nos leva a pensar na sinuosidade do caminho e no tempo
necessário para o ex-ferroviário descobrir-se aposentado.
De fato, o “A voz do ferroviário” não foi exatamente o primeiro boletim a
circular. Antes dele havia um informativo, mas sem nome. Em seu cabeçalho
lemos apenas Informativo Mensal, com data de fevereiro de 1886.
O mais antigo exemplar do “Voz do Ferroviário” encontrado tem data de
Julho de 1987. Não foi possível determinar quando saiu seu primeiro número e
nem até quando circulou. Provavelmente durou até o final do ano de 1987, como
podemos deduzir a partir de um documento encontrado numa pasta de
prestação de contas e recibos do ano de 1987. Trata-se de um recibo referente a
trabalhos de datilografia.
Recibo R120 de 04/11/1987
Recebi da Afac (Associação dos Ferroviários Aposentados do Ceará) a
quantia de Cz$ 120,00 (Cento e vinte Cruzados) referente a serviços de
datilográficos para o jornal "A voz do Ferroviário".
115
Em algum momento, cuja data não pudemos estabelecer, o jornal passou a
receber o título de "A voz do Aposentado". Ocupar praticamente o mesmo espaço
115
AFAC. Prestação de contas do ano de 1987. Fortaleza, 1988.
F. 09 Reprodução do original do Informativo Mensal da Afac.
123
físico das instalações da ferrovia pode ter colaborado para o estreitamento da
relação entre aposentados e trabalhadores da ativa. Tal aproximação foi mesclando
os grupos de uma maneira que a fronteira entre eles tornou-se imprecisa. Nesse
sentido, o nome do jornal é um exemplo que se soma a outros. A memória, o apego
ao ambiente de trabalho, a submissão à rígida rotina de horários imposta pela
ferrovia e a relação com o equipamento contribuem para o entrecruzar do universo
do aposentado com o do ferroviário em atividade.
Ao explorar o antigo título do jornal, reafirmo o meu o objetivo de tentar
perceber nessas fontes, aparentemente burocráticas (jornais, boletins, relatórios e
outros), alguns elementos que redimensionam questões essenciais do mundo
trabalho, tais como a memória e seu papel nas relações construídas e
reconstruídas com o mundo do trabalho na estrada de ferro.
A incursão na documentação da Afac proporcionou ainda um prazeroso
exercício do contato com a polifonia de fontes, que alimentam e alargam minhas
impressões sobre o tema e que deram sentido a todos os momentos de elaboração
do trabalho.
F. 10 Reprodução de detalhe do papel timbrado da Afac.
F. 11
Reprodução de detalhe de cabeçalho do jornal da Afac do ano de 2001.
124
O logotipo da associação, encomendado ao artista plástico Descartes
Gadelha, é mais uma das “frestas” através da qual tento perceber o universo dos
aposentados da ferrovia. O planejamento da figura do logotipo e anotações que
explicam os elementos de sua composição foram guardados. Um poema, de
autoria de Descartes, com o título “Tarefa cumprida”, inicia a apresentação do
logotipo:
TAREFA CUMPRIDA
O trabalhador levanta-se com a alvorada
E enxuga o suor de seu rosto
No espelho do ocaso;
Sendo testemunho de uma tarefa de trabalho
Honrosamente cumprida,
O ocaso não significa o fim,
Mas, o anúncio do merecido repouso.
O sol se põe nos deixando
F. 12
Reprodução de detalhe de cabeçalho do jornal da Afac do ano de 2003.
125
O manto aconchegante da noite;
Pela janela as estrelas iluminam
A nossa reflexão sobre a estrada percorrida ...
116
Em seguida, o autor dos versos e do logotipo explica que “esta reflexão
serviu de roteiro para a construção gráfica do símbolo da associação dos
Ferroviários aposentados”.
O artista esclarece os elementos da figura num texto que intitulou “legendas
significativas”. Ele procura esclarecer o que significa cada componente do logotipo.
Em suas palavras “a aposentadoria aqui é representada pelo ocaso, o instante
solene e iluminado do término de uma missão”. Relembremos que “o ocaso não
significa o fim”, segundo vimos no poema. Outro componente da figura são os
trilhos que “evidenciam o longo da meta percorrida”. Até mesmo o aspecto
geométrico das figuras como “a curvatura da esquerda para a direita atingindo o
extremo direito superior significa progressão estatística e o apogeu da chegada”.
Noto na composição e na explicação da figura um sentido solene, o aposentado
116
GADELHA Descartes. Tarefa cumprida, Fortaleza 11 out. 1985. Datilografado.
F. 13 Reprodução do estudo de Descartes Gadelha para a criação da
logomarca da Afac.
126
deixa a árdua rotina de trabalho e encontra reconhecimento por sua missão
cumprida.
É dado também destaque “a forma retangular do enquadramento do
símbolo” que, por sua vez, “significa a janela por onde o trabalhador, agora em seu
repouso, vislumbra a paisagem do seu trabalho concluído e faz sua reflexão sobre
o cumprimento da missão”.
127
3.4 Passeios de trem
Passeios de trem faziam parte das comemorações da Afac. Desde
o primeiro aniversário da instituição, entre solenidades e palestras, havia um
momento de embarcar numa viagem. O "programa" das comemorações do
primeiro aniversário descreve os seguintes eventos:
1º Dia
Palestra do representante do INPS, sobre os benefícios de um modo
geral a que todos tem direito, os aposentados e pensionistas da
previdência Social.
2º Dia
Passeio de trem a Maracanaú, com retorno às 08:48 horas. Após o
regresso Manhã recreativa no Grêmio Recreativo Ferroviário, Av.
Francisco Sá, com disputa de jogos de salão ao som de música para
dançar (forró).
3º Dia Sessão Solene.
117
Vale destacar que as solenidades homenagearam os altos cargos da
empresa ferroviária no Ceará
118
- engenheiros e chefes da "ativa". A justificativa
117
AFAC. Programa de comemoração do primeiro ano de fundação. Fortaleza, 19 maio 1986.
Datilografado.
118
Na lista dos homenageados encontramos os seguintes nomes acompanhados da respectiva
descrição da função: Dr. Ruy do Ceará - Engenheiro Chefe da Superintendência de Produção de
Fortaleza- SP 1.1; Dr José Rego Filho- Engenheiro assessor da SP1.1; Dr. José Maria Braga Costa
- Engenheiro Chefe do Departamento Regional de Transportes; Dr Raimundo Wagner Vieira Ramos
- Engenheiro Chefe do Centro de Trenamento de Fortaleza; Dr. José Maria Andrade Sales Neto -
128
encontrada para a escolha dos nomes foi o reconhecimento ao apoio que altos
funcionários da "ativa" deram à fundação da associação.
Não foi possível ter acesso ao programa das comemorações do segundo
ano, mas a viagem de trem, como podemos observar no artigo do jornal “A
verdade” de Baturité, foi novamente realizada:
No dia 24 de Maio último, o Museu Comendador Ananias Arruda, desta
cidade, foi visitado pela Associação dos Ferroviários Aposentados do
Ceará, tendo à frente seu presidente Francisco Fernandes Maia e os
diretores: Aldamir da Silva, Joel Ferreira da Silva, Francisco Paiva Lima,
Etevaldo Pereira dos Santos, Wilson Rodrigues e Waldemiro Leite, que
se faziam acompanhar do Sr. Osías Silveira da Silva, Presidente do
Sindicato dos Ferroviários, familiares e amigos.
A excursão fez parte do programa comemorativo do aniversário da
Associação.
Os visitantes que vieram de Fortaleza, numa litorina atrelada ao trem
turístico que periodicamente visita esta cidade e a serra de Baturité.,
manifestaram-se muito bem impressionados com o que viram em nosso
museu.
Agradecemos a honrosa visita.
119
Nesse segundo aniversário começou a ser desenvolvido o programa de trens
turísticos que saíam de Fortaleza com destino a Baturité, logo desativado no início
dos anos 1990. Pelo descrito no jornal “A Voz do Ferroviário” houve uma intensa
mobilização na cidade, que recepcionou os participantes do evento.
A viagem de recreio empreendida no dia 24/0587 á Baturité, promovida
pela diretoria da AFAC, agradou a todos. Naquela cidade, estavam
Engenheiro Chefe do Departamento de Eletrotécnica; Dr. José Aurilo Cavalcante Lima, Advogado-
Chefe do Serviço Pessoal da SR 1.1; Dr. Carlos Alberto Gomes Borba - Engenheiro Chefe da
Unidade de Movimento; Dr. Raimundo Macedo Pinto - coordenador da Secretaria de Benefícios do
INPS e Dr. José Mardônio Sampaio de Meneses, Advogado - Presidente do Sindicato dos
Empregados em Empresas Ferroviárias do Estado do Ceará.
119
VISITANTES.Jornal A Verdade, Baturité, n.2980, 28 jun. 1987.
129
presentes na estação centenária para recepcionar os aposentados,
familiares e convidados, o agente José Eias, o Secretário de Cultura do
Município Jornalista Miguel Arruda e a Banda de Música da
municipalidade. A caravana seguiu em ônibus especial para o centro da
cidade, onde visitou o Museu Comendador Ananias Arruda, de valor
incomensurável, e depois rumou pra o “Balneário Clube Itamaracá” para
uma manhã de sol, almoço e distração ao som de músicas sertanejas. A
diretoria da AFAC contou, para a efetivação da viagem, com a concessão
do transporte ferroviário ”Litorina”, gentileza do Engo. RUY do Ceará
Superintendente de Produção- Fortaleza-RFFSA.
120
no programa do terceiro ano, também consta uma viagem, dessa vez o
destino foi Quixadá: “Viagem de recreio de ‘Litorina’ à Quixadá, dos diretores,
sócios, familiares e convidados”.
121
Não conseguimos saber quantas vezes esse tipo de evento aconteceu, mas
parece certo que estimulava a memória e a imaginação de quem dele participava.
Encontrei um relato numa pasta da associação feito por um convidado e publicado
em um jornal. Mesmo que não saibamos a fonte do recorte podemos notar no texto
alguns elementos que certamente foram comuns a muitas viagens:
Como convidado da Associação dos ferroviários aposentados do Ceará,
que tem na presidência Etevaldo Pereira Santos, e juntamente com
outros diretores da ACEJI, Paiva Lima e Rodrigues Araújo, participei de
uma excussão à cidade de Baturité como passageiro de uma composição
da companhia Brasileira de trens urbanos (CBTU) cedida pelo Diretor
Regional Dr. Francisco Roberto Santana. Cerca de 1200 pessoas
participaram da aventura, lotando os nove carros puxados pela
locomotiva 2215, dirigida pelo velho Maquinista Severiano Celestino da
Costa, que tinha como auxiliares, os também maquinistas Francisco
Oliveira e Raimundo Ivan. Severiano confessou ao repórter que até se
120
DOIS anos de Afac. A Voz do Ferroviáro, Fortaleza, v.1, edição especial, 25 maio 1987.
121
AFAC. Programa de comemoração do terceiro ano de fundação. Fortaleza, 25 mai. 1988.
Datilografado.
130
emocionou na viagem Fortaleza-Baturité, conduzindo a composição , ao
passar na estações, com os aplausos das populações residentes as
margens da ferrovia, saudando o apito do trem, como que acreditando na
volta dos trens de passageiros para o interior.
122
Um dos componentes mais significativos dessas viagens é o desejo de
visibilidade. A repercussão desses eventos pode significar a materialização de um
reconhecimento, uma distinção. Nesse sentido, Pierre Bordieu nos sugere uma
possibilidade de interpretação quando nos fala dos significados que perpassam a
experiência da percepção dos sujeitos no mundo, numa esfera que envolve o
tornar-se visível para os outros, ou seja, "um ser que existe fundamentalmente pelo
reconhecimento dos outros"
123
A Afac empenha-se no sentido de tornar visível seu
trabalho e de provocar na sociedade uma reflexão sobre o transporte ferroviário, o
aplauso popular à passagem do trem pode ser pensado em tal contexto.
O desejo de dar visibilidade à associação e de promover o reencontro
entre o ferroviário e a ferrovia está presente no planejamento e na execução de
eventos como esses . Numa carta
1124
, datada de 21 de maio de 1987, endereçada
ao Sr. Ruy do Ceará, então Superintendente de operações da RFFSA, um
pedido para que seja autorizada uma viagem de trem durante as comemorações
do aniversário da Afac. Um dos argumentos utilizados para justificar o pedido foi a
“solicitação unânime” de “uma viagem de recreio a Baturité, no dia 24, para
diretores, familiares, sócios e convidados”. A mesma missiva detalhes sobre o
trem e horário planejado para a viagem e pede providências “no sentido de
conceder o transporte por meio ferroviário, para ida e volta no mesmo dia, saindo
122
XIMENES, Raimundo. Crônica de uma viagem. Diário do Nordeste 5 jun.1986.
123
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.p.117.
124
AFAC. Carta n.112/PR/87. Fortaleza 21 maio 1987.
131
da estação Central às 07:00 horas”. O trecho mais interessante, do ponto de vista
das problemáticas históricas, vem em seguida:
Esta viagem terá, também, a finalidade de satisfazer o desejo dos
ferroviários aposentados de sanar as saudades revendo o ambiente
do trabalho no qual conviveram durante muitos anos, contribuindo
com a sua parcela de esforço conjugado, percorrendo o trecho
citado.
125
Observo que mesmo num documento formal está expresso o desejo de
rever ou reviver o ambiente de trabalho, “sanar as saudades”. E para tal, seria
preciso fazê-lo em grupo, coletivamente. Provavelmente o ato de tomar um trem
urbano não daria conta de remediar as saudades.
O desejo de desfrutar da ferrovia que os aposentados ajudaram a construir
também é usado como argumento. Procura-se justificar uma espécie de direito,
afinal a estrada de ferro e o trem também foram obras do esforço coletivo e
“conjugado” das antigas turmas da ferrovia.
125
Idem. Ibidem.
132
3.5 Uma roda, um monumento.
Nos primeiros meses da atual gestão da Afac, foi inaugurado, no jardim da
sede, um monumento: uma roda de trem sobre um pedestal, elevada cerca de um
metro do chão. O monumento não traz nenhuma legenda para explicar sua origem
e o motivo de sua colocação.
No mural da associação encontrei um poema de Luís de Janú, o mesmo
poeta do qual falamos em outro momento da dissertação. Desta vez “A roda que
não roda mais“ título a um poema que fala de aposentadoria, memória e
ferrovia. O texto foi escolhido como ponto final deste item, no qual refletimos sobre
a Afac, não por definir ou fechar o tema, mas por provocar novas inquietações.
F. 14 Monumento no jardim da Afac, ao fundo, vista da Praça da Estação.
Foto de Daniela Medina
133
Roda que não roda mais
Venho falar numa roda
De ferro velha querida
Que estava desprezada
Transportou mais de uma vida
Subiu e desceu ladeira
Com chuva sol e poeira
Jamais será esquecida
Há tempo desprotegida
A sós sem dono sem guia
Rodou quando era nova
À noite e durante o dia
Hoje quem por ela passa
Lembra a Maria Fumaça
Da antiga ferrovia
Roda amiga quem diria
Um dia te ver parada
Sem lenha sem maquinista
Sem água fogo sem nada
Morta pensando estar viva
Com uma locomotiva
Rodando em qualquer estrada
Na mais alta madrugada
No passado em outra data
Você por cima do trilho
Passou por corte e por mata
Presa sem poder fugir
Solta hoje está aqui
Livre de qualquer sucata
Feita de ferro sem prata
Quem te fabricou morreu
Não tem mais RVC
134
Do tempo que tu correu
O vagão que te puxou
Antes de ti se acabou
Só você sobreviveu
Teu largo friso encolheu
Ficou estreito e mais fino
A máquina que te puxou
Perdeu a força e o sino
Sua caldeira furou
O velho engate amassou
Não fecha a falta de pino
Tu foi nova eu fui menino
Queria ter tua sorte
Durar mil anos na terra
Sem nunca pensar na morte
Fazer zuada sem ver
Pegar peso sem ver
Embaixo do meu transporte
Sair daqui para o norte
Regressar trazendo um geep
Ficar na associação
Com aposentado e equipe
Para quem passar me olhar
De perto me admirar
Na Central de João Felipe
Viver distante da elite
Morar com o meu companheiro
Do mais humilde operário
Até o nobre engenheiro
Pedir a quem tem direito
Trazer com maior respeito
Restante do meu rodeio
135
Em frente a Castro Carreiro
Onde estou quero ficar
Ninguém me tira daqui
Nunca mais quero rodar
Sem opção de salário
Junto do ferroviário
Cheguei no último lugar
Poeta popular Luís de Janú
Fortaleza 20/07/04
De peça mecânica a monumento. O que acontece entre estar acoplado à
engrenagem e estar sozinho?
Comparando a roda-sucata-monumento ao ferroviário aposentado, o poeta
fala da matéria inorgânica do ferro, que sobrevive quase sem marcas a todos
esses anos. Ele queria ser assim, e expressa seu desejo. Mas a resistência do
material não é suficiente para que seja um olhar tranqüilo. Onde está a máquina?
Os outros componentes?
À certa altura aquela roda parece um membro amputado, que sobrevive ao
corpo: “O vagão que te puxou/ Antes de ti se acabou/Só você sobreviveu/Teu
largo friso encolheu/Ficou estreito e mais fino/A máquina que te puxou/Perdeu a
força e o sino/Sua caldeira furou/O velho engate amassou.”
Vencer o deslocamento e o isolamento causados pela aposentadoria é um
desafio. A memória pode articular-se a esse processo; ela perpassa relações e é
retomada tanto em embates políticos quanto em festas, jogos e passeios.
136
Lembremos aqui a relação entre memória e lugar. Pierre Nora
126
destaca
dois tipos de memória: uma tradicional (imediata) e outra redimensionada por sua
transformação em história. medida que desaparece a memória tradicional, nós
nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos,
documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi”. Para o autor, os
lugares de memória existem em diversos sentidos: material, funcional e simbólico,
ou seja, esses lugares têm materialidade e tangibilidade.
(...) museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários,
tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações (...) os
lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não memória
espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter
aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar
atas, porque essas operações não são naturais
127
Os lugares de memória dos nossos aposentados bem representam o
desejo de ser visível, de organizar: é necessário criar arquivos, é preciso celebrar,
referenciar o passado, construir uma história.
Foi curioso que ao falarem sobre a Afac, alguns aposentados se deram
conta da trajetória da entidade. Eles puderam rever os sentidos do que significa
estar fora das atividades cotidianas do trabalho na ferrovia e integrar um novo
grupo.
Raimundo: Não é nem que eles num queriam ajudar, mas o que tem a ver o
sindicato com a gente?
Daniela: E como vocês ficaram?
Raimundo: Era isso aí, tudo de ruim fica pro velho. Até nome de
vagabundo, você num sabe não? Depois a gente teve a Afac. Teve o tempo
do seu Etevaldo e agora os menino aí, o Sobreira e outros. Muita coisa
126
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto história. São
Paulo, 10: 7-28, 1993.
127
Idem. Ibidem.
137
teve ali dentro.Tem que dar os direito da gente. Se nós num cuidar quem
vai? Eu até vou nas assembléia, nunca mais fui, mas vou.
Daniela: Quando o Sr. foi pela primeira vez a uma assembléia?
Raimundo: A primeira que eu fui, rapaz, tem umas pouca de tempo. Foi
no noventa e um, aqueles tempo do Collor. Era em noventa e um que eu fui.
Daniela: Mais de dez anos
Raimundo: É mesmo. Já tá aí com tempo mesmo. O velho tem que ter o
seu valor, paga imposto igual um novo, até num quilo de feijão.
O tempo da Afac, segundo leio nas palavras de seu Raimundo, contrapõe-
se ao desrespeito infligido ao velho. Ele mistura a época da fundação com o
episódio em que o Presidente Fernando Henrique Cardoso usou um termo
inadequado para falar dos aposentados.
Congregando aposentados e sendo por eles organizada e vivida, a Afac
propicia espaços para uma tessitura coletiva que pode ser tomada como alternativa
de construção frente aos renovados desafios do envelhecer e do conviver.
138
Considerações Finais
O momento em que o título desta dissertação ganha mais sentido é
este.Todo trabalho que por hora se encerra nada mais é do que uma estação.
Penso no passageiro/leitor chegando até a estação: curioso, cansado, atento...
como terá chegado? Como veio aqui? Sei que agora parte. Algo mudou, o breve
tempo deixou alguma marca. Estação e tempo estão ligados. A passagem das
estações ensinou o homem a contar o tempo em anos
Deparando-me com a necessidade de escrever este item, lembro de minha
chegada a essa “estação” e, parando um pouco para pensar em como tudo
aconteceu, posso ter uma perspectiva da intensidade das trocas que essa
experiência tem me proporcionado. Tive a oportunidade de conhecer os amigos
ferroviários, re-experimentar o espaço da estação e do trem, rever meu bairro e a
cidade enquanto as vozes daqueles velhos senhores faziam brotar significados
novos para elementos do mosaico cotidiano.
Neste trabalho explorei o mundo do ferroviário e da ferrovia com um olhar
panorâmico, que aqui e ali deteve-se na paisagem ou nos objetos, atiçando
questionamentos historicamente fundamentados.
O meu objetivo principal foi adentrar no universo da memória do
trabalhador ferroviário. Penso que este objetivo foi atingido, porém a efetivação do
trabalho não representa um ponto final. Existem outras falas e outros indícios e a
possibilidade da releitura das falas e dos indícios aqui contemplados.
139
A interpretação das memórias do trabalhador ferroviário buscava
compreender como estes sujeitos percebem e recriam as transformações da
ferrovia e como se utilizam dessas memórias como tática de sobrevivência e
reconhecimento social. Com o desenrolar da pesquisa, as leituras e a convivência
com os ferroviários, acabei me deparando com questões que não eram percebidas
à época da montagem do projeto para o Mestrado. Problematizar os significados da
aposentadoria, por exemplo, era algo com que não me preocupava e que acabou
ganhando certo espaço. Pensar a articulação ente velhice e a aposentadoria
passou ser uma questão tão relevante que gerou um capítulo sobre o tema.
Em muitos momentos percebi como as memórias dos ferroviários são
compostas como extensão do equipamento técnico. Comparam suas vidas à
ferrovia e articularam seus relatos de tal forma que é difícil destacar uma da outra.
Isto é perceptível na medida em que traçam trajetórias ascendentes e decadentes
para a ferrovia e para suas vidas.
O diálogo com diversas fontes me proporcionou um amadurecimento.
Vivenciei o fazer histórico e pude notar que a crítica e o olhar do historiador devem
estar presentes em toda fase de contato com a documentação.
-se com expressões admiradas ao lado da ruidosa locomotiva cujo barulho,
calor e potência do motor funcionando são impressionantes.
Um episódio significativo dos últimos dias de trabalho foi uma conversa
com um dirigente da Afac, que em determinados momentos me ajudou a explorar
as caixas de documentos.
Tudo começou quando ele e seu colega conversavam sobre a
necessidade de organizar o arquivo da entidade e recuperar a documentação. Ele
140
me disse que a associação já possuía uma história e que ele só se deu conta disso
quando me viu por lá trabalhando. Espero que a organização da documentação de
fato seja feita e que novos pesquisadores descubram o prazer de trabalhar com
esses velhos senhores e suas memórias.
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