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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Estratégias de distinção entre moradores de periferia urbana: uma análise do
caso da Vila Urlândia, Santa Maria/ RS - Brasil
Dissertação de Mestrado
Clovis Schmitt Souza
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Kunrath Silva
Porto Alegre, março de 2006.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Estratégias de distinção entre moradores de periferia urbana: uma análise do
caso da Vila Urlândia, Santa Maria/ RS - Brasil
Clovis Schmitt Souza
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Kunrath Silva
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia, do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em
Sociologia.
Porto Alegre, março de 2006.
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Clovis Schmitt Souza
Estratégias de distinção entre moradores de periferia urbana: uma análise do
caso da Vila Urlândia, Santa Maria / RS - Brasil
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Sociologia.
Aprovada em 2006
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof. Dr. Joel Gusmão Outtes Wanderley Filho
______________________________________________
Prof. Dr. Claudia Turra Magni
______________________________________________
Prof. Dr. Eva Barbosa Samios
Agradecimentos
Gostaria de agradecer a todos que estiveram presentes nesta jornada de
dois anos.
A meus pais, Vilma e Laury pelo apoio prestado ao longo de todos os anos
de estudo. A meu irmão Gerson, pelo assessoramento logístico na parte de
informática.
Aos colegas do mestrado pelas discussões travadas em sala que auxiliaram
no amadurecimento das questões da pesquisa.
Aos “amigos do 12” pelo apoio e amizade sincera; pela acolhida em sua casa
nos primeiros meses na cidade de Porto Alegre. Amigos que se transformaram em
vizinhos fundamentais presentes nos momentos mais angustiantes de redação da
dissertação. Em especial, agradeço ao Francis pelo cuidado que dispensou na
leitura dos esboços dos capítulos da dissertação. A colega Nadia pelo “olhar
antropológico” que muito auxiliou na compreensão dos fenômenos observados em
campo. Ao contagiante amigo Edemar pelo espírito empolgante capaz de animar
todos a sua volta. Ao senhor Onivaldo pela camaradagem que mostrou ter para com
o “arquiteto”.
Aos colegas de apartamento, Luciane, Natalia e Pilar pela convivência
harmônica e agradável. Um agradecimento singular a Luciane pelo ombro amigo
dos meses de dezembro e janeiro de 2005, imprescindível para finalização da
dissertação.
Ao amigo Rafael, pelo ajuda técnica na elaboração dos mapas.
A sempre “professora” Fernanda Valli Nummer, pelo incentivo para dar
continuidade nos estudos nas ciências sociais. Principalmente, para prestar seleção
ao mestrado da sociologia.
A minha amada “Lindinha” pelo sentimento de amor e afeto que sempre
demonstrou; Mesmo longe, teu retrato, teu sorriso a me fitar sobre a mesa,
acalentou meus dias.
Ao professor Marcelo Kunrath Silva por ter aceitado o desafio de orientação
da pesquisa. Pelos comentários precisos para alteração do curso da dissertação
ainda quando era apenas um projeto.
Aos moradores da Vila Urlândia que gentilmente me acolheram em suas
residências e permitiram fazer das entrevistas uma tarefa tão agradável quanto
esclarecedora. Pessoas com quem pude compartilhar idéias, lembranças e sonhos.
A CAPES pela bolsa de estudos, fundamental para a concretização da
pesquisa.
RESUMO
Este estudo busca analisar o processo de distinção e estigmatização existentes
entre os moradores da Vila Urlândia, uma localidade situada na periferia da cidade
de Santa Maria identificada socialmente como sendo uma área violenta da cidade.
A partir da imagem pública negativa da localidade, um grupo de moradores, na
tentativa de se afastarem deste estigma social, transfere aos moradores, por eles
considerados inferiores, a responsabilidade pelo desprestigio local. Para isso,
empregam um conjunto de critérios “objetivos” centrados em juízos moralizantes
para construir a noção da existência de duas sub-áreas na localidade: a alta e a
baixa. Dessa maneira, através de práticas diversas, produzem um processo de
distinção entre os moradores da vila, operando uma projeção do estigma aos
moradores considerados inferiores.
Palavras-chave: periferia; estigma; prestigio grupal, distinção
Resumé
Cette étude tente d’analyser le processus de distintion et stigmatisation existents
parmi les habitants de la Vila Urlândia, localité située à la periphérie de la ville de
Santa Maria socialement connue comme étant une région violent de la ville. A partir
de l’image publique négative de cet endroit, um groupe d’habitants, en espérant
s’eloigner de ce stigmate social, repasse aux habitants, consideres comme
inferieurs por ce groupe, la responsabilité de ce discrédit local. Por cela, ils utilisent
un ensemble de critères objectifs centres sur des considerations moralisantes pour
construir ela notion de l’existence de deux espaces differents: le haut et le bas.
Ainsi, por des pratiques diverses, ils produisent un processus de distinction entre les
habitants de la ville, faisant une projection de stigmate aux habitants considérés
comme inferieurs.
Mots-clés: periphérie, stigmate, prestige de greaupe, distinction
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Taxa de crescimento da população - Santa Maria................................. 46
Tabela 2: Número de Habitantes do Bairro Urlândia segundo unidade
familiar.................................................................................................................... 48
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Anos de estudo da pessoa responsável pela unidade residencial........ 49
Gráfico 2: Classe de rendimento nominal mensal da pessoa responsável pela
unidade residencial................................................................................................ 49
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Mapa da Cidade de Santa Maria............................................................ 45
Figura 2: Mapa da Vila........................................................................................... 48
Figura 3: Mapa da Alta e baixa.............................................................................. 56
Figura 4: Rua Frederico Ozanan........................................................................... 59
Figura 5: Rua São Carlos....................................................................................... 59
Figura 6: Rua Valdir C. da Costa, visão da parte baixa da Vila Urlândia............... 62
Figura 7: Dia de visita domiciliar nas casas do “Beco da Landa”.......................... 63
Figura 8: Capela São Carlos.................................................................................. 83
Figura 9: Capela Nossa Senhora da Medianeira................................................... 84
Figura 10: Dia de “Sopão” no salão paroquial....................................................... 87
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 1
1. O ESPAÇO DA CIDADE COMO UM LOCAL DE DIFERENCIAÇÃO.................... 5
1.1. As distâncias sociais inscritas nas localidades................................................ 5
1.2 Segregação espaço-social ............................................................................. 14
1.3 Estudos sobre comunidades pobres nas ciências sociais.............................. 16
1.4 O processo de urbanização no território brasileiro......................................... 17
1.5 Pobres com “P” minúsculo ............................................................................. 20
2. A DESCOBERTA DA VILA URLÂNDIA ............................................................... 31
2.1 Entrada em Campo ........................................................................................ 31
2.2 A importância das redes de confiança ........................................................... 33
2.3 Coleta e analise dos dados ............................................................................ 36
3. O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA VILA URLÂNDIA: MARCOS
HISTÓRICO............................................................................................................. 42
3.1 O processo de Desenvolvimento e Urbanização do município de Santa Maria
............................................................................................................................. 42
3.1.1 As periferias de Santa Maria.................................................................... 46
3.2 A formação do loteamento Vila Urlândia ........................................................ 50
3.3 A Urlândia vista como dois pedaços .............................................................. 54
3.3.2 Parte “Baixa”............................................................................................ 60
3.4 A Vila Urlândia vista do ponto de vista externo .............................................. 63
3.5 Mostre respeito, senão................................................................................... 64
4. AS ESTRATÉGIAS INTERNAS DE ESTIGMATIZAÇÃO NA VILA URLÂNDIA... 70
4.1 Estratégias de fuga do estigma...................................................................... 70
4.2 Disjunção da “comunidade”............................................................................ 72
4.3 A Urlândia não é uma coisa só....................................................................... 75
4.4 Espaços de diferenciação: Capela Católica ................................................... 81
4.5 Pastoral da Criança........................................................................................ 86
4.6 As ações da associação de moradores.......................................................... 89
4.7 O campo de futebol e suas possibilidades ..................................................... 90
4.8 Termos que definem ...................................................................................... 91
4.9 Não sou da Urlândia, sou do Parque ............................................................. 93
4.10 Escola como dispositivo diferenciador ......................................................... 96
4.11 A culpa é do beco......................................................................................... 99
4.12 Contato entre vizinhos................................................................................ 102
Considerações Finais ............................................................................................ 104
Referências Bibliográficas ..................................................................................... 108
ANEXOS......................................................................................................... 112
1
INTRODUÇÃO
O interesse pela temática de estudos no meio urbano está vinculado à
trajetória acadêmica que percorri ao longo do período de graduação em Ciências
Sociais, na Universidade Federal de Santa Maria. Meu interesse particular sempre
foi compreender os sentidos que circundam o ato do indivíduo dizer onde reside:
porque certas localidades são mais valorizadas ao passo que outras são
estigmatizadas ou de que forma o local de moradia pode obstaculizar possibilidades
de interação social, foram questões que orientaram e auxiliaram na elaboração do
estudo aqui apresentado.
Uma vez que residi, durante 12 anos de minha vida, numa localidade
chamada oficialmente Vila Campestre do Menino Deus, popularmente conhecida
por Campestre, convivi num ambiente no qual a hierarquia dos espaços na cidade
eram sentidas cotidianamente por seus residentes. Como havia desenvolvido,
durante meu trabalho de conclusão do curso de graduação, uma pesquisa nesta
localidade
1
, para dissertação defini como objeto de estudo o processo de
estigmatização social derivado do fato de viver numa localidade socialmente
considerada como violenta e, particularmente, como isto é elaborado pelos
moradores destas localidades.
Diante disso, a diretriz adotada para escolha da região a ser analisada
centrou-se na busca de uma localidade onde a representação social de seus
habitantes fosse marcada pelo estigma de habitar uma vila considerada como
inferior dentro da estrutura hierárquica dos espaços da cidade. Portanto, o objeto da
investigação foi verificar de que forma indivíduos localizados numa região de
periferia da cidade de Santa Maria convivem com o estigma social.
Circunscrito o tema da dissertação, a segunda etapa no desenvolvimento da
pesquisa consistiu na escolha da região que melhor se ajustava aos objetivos do
estudo. Através dos conhecimentos que dispunha acerca das diferentes vilas
1
Neste trabalho, analisei o processo de construção das identidades que se formam dentro dos
espaços urbanos dos bairros, onde os espaços geográficos constituem um espaço social de
convivência no qual diferentes identidades são construídas, posicionando os indivíduos em espaços
distintos conforme a forma como são percebidos dentro da cidade. No caso especifico da Vila
Campestre, os moradores inseridos neste contexto subvertem a lógica que o posiciona com morador
de uma “vila” e se apresentam socialmente como moradores de um bairro.
2
situadas na cidade de Santa Maria, a escolha recaiu sobre a Vila Urlândia. Esta vila
insere-se no processo de ocupação que marcou o início da década de 1960, logo
que o município ingressou numa fase de desenvolvimento econômico promovido
pela instalação da Universidade Federal de Santa Maria, a qual atraiu um
contingente expressivo de novos habitantes à cidade. Neste contexto, localidades
afastadas do centro da cidade e menos valorizadas economicamente foram
ocupadas por famílias com poucos recursos financeiros. O fluxo de moradores com
estas características ajudou a constituir as vilas da cidade. Entre as vilas existentes
na cidade de Santa Maria, a Vila Urlândia foi marcada por dois movimentos distintos
de moradores: o primeiro, composto por famílias que compraram os lotes de terra e
construíram sua residência na área; um segundo, por outras famílias que ocuparam
as porções de terra menos valorizadas da localidade.
Este fator vai contribuir para formulação de duas sub-áreas no interior da vila:
a “parte alta”, na qual se localizam os moradores de lotes regularizados e
urbanizados; e a “parte baixa”, na qual se localizam os moradores de áreas
ocupadas irregularmente e com urbanização deficiente. Neste contexto, os
moradores que se consideram superiores na escala hierárquica local – os
ocupantes da “parte alta” – vão desenvolver estratégias de diferenciação interna
entre aqueles habitantes considerados moralmente superiores (ou seja, eles
próprios) e aqueles considerados moralmente inferiores (ou seja, os “ocupantes” da
“parte baixa”), através do processo de transferência do estigma de morar numa
localidade que foi historicamente representada no imaginário social da cidade como
um local marcado pela violência.
Deste modo, o mote de meu interesse pelo objeto de investigação desta
dissertação foram questões atinentes ao processo de diferenciação social existente
em áreas de periferia urbana das cidades brasileiras. Mais especificamente, meu
argumento intentava verificar empiricamente como um pequeno cenário de uma vila
periférica como a Vila Urlândia, no qual habitam pessoas em condições
socioeconômicas mais ou menos simétricas, pode ser o palco de um processo
interno de construção de um campo de disputa social que diferencia e hierarquiza
seus habitantes a partir de fatores como o tempo de moradia dos indivíduos, a
condição jurídica dos imóveis, as condições físicas e localização das moradias, as
“qualidades morais” das pessoas, entre outros atributos.
3
A partir disso, a própria noção de “comunidade”, bastante presente na forma
de referenciar aos espaços de moradia das classes populares no Brasil, deixa de
ser um termo possível de ser empregado para apreender tal realidade. Isto ocorre
na medida em que, ao contrário de observarmos uma “comunidade” constituída por
indivíduos supostamente homogêneos, identificamos que os moradores residentes
dentro das localidades da periferia executam um processo de diferenciação interna,
se percebendo como não tão iguais e, por isso, desenvolvem estratégias de
diferenciação entre os grupos de maneira a revitalizar a hierarquia dos espaços
existentes na sociedade, atualizando-a nos contextos locais. Assim, o presente
estudo busca analisar como os habitantes de uma periferia processam a lógica de
distinção e estigmatização social.
O presente trabalho está dividido em quatro capítulos. O Capítulo I
estabelece o referencial teórico que orientou a pesquisa, a partir de autores que
trabalham com os conceitos de distinção e estigmatização social dentro das
ciências sociais. No corpo deste, é apresentada uma interpretação teórica da
maneira como o processo de urbanização no Brasil acaba por constituir práticas
sociais que, além de aprofundar as desigualdades, instituem uma realidade na qual
os habitantes possuem cargas valorativas desiguais. Neste sentido, é colocada em
apreciação crítica da categoria social “comunidade”, geralmente utilizada para
descrever os espaços de moradia das camadas populares nas cidades. Através do
embasamento de alguns estudos empíricos, é mostrado que, na verdade,
internamente os moradores destas localidades desenvolvem um conjunto de
processos e mecanismos de diferenciação social entre seus membros.
No Capítulo II, descrevo o processo de entrada em campo, as redes de
relações estabelecidas, as entrevistas realizadas, o tratamento adotado nestas,
bem como os espaços de sociabilidade onde foram empregadas as observações.
No Capítulo III, em sua primeira seção, é apresentado o processo de
urbanização do município de Santa Maria. Na segunda seção, nos voltamos para a
descrição do processo de formação da Vila Urlândia, uma localidade estigmatizada
pelo conjunto da sociedade local como região “violenta”. Sobre isso, apresentamos
a caracterização de sua população, as diferenças no processo de ocupação da
localidade e, por fim, preparamos o leitor para o tratamento analítico que será
desenvolvido no capítulo seguinte.
4
No Capítulo IV o argumento central da dissertação é exposto, através da
caracterização e análise do processo de elaboração das distinções e
estigmatizações no âmbito da Vila Urlândia. Por meio da análise das entrevistas
realizadas com os moradores, as categorias sociais êmicas utilizadas pelos nativos
para estabelecer as diferenciações e hierarquizações nos espaços da “vila” são
discutidas. Nesta parte do trabalho, o tratamento analítico apresenta de que modo à
lógica de distinção existente na sociedade mais ampla pode ser apropriado por
certos moradores para se legitimarem como indivíduos de status superior em
comparação aos seus vizinhos. Discute-se, na parte final do Capítulo, como a
desigualdade nas relações de poder local é capaz de engendrar clivagens sociais
no interior de um grupamento humano relativamente homogêneo, sob vários
aspectos.
Na conclusão, apresentam-se as considerações finais da pesquisa. Nela, são
retomados os principais aspectos teóricos e empíricos desenvolvidos no âmbito da
dissertação. Apresenta as dimensões que constituem as práticas de distinção na
localidade, quais seus fundamentos, seus argumentos e justificativas. Conclui-se,
também, que o intento dos moradores distintos de produzir uma separação no
interior da vila tem surtido pouco ou nenhum efeito fora do âmbito local, pois o
estigma territorial de residir numa localidade considerada violenta ainda é muito
forte na sociedade santamariense, marcando indistintamente todos os seus
moradores.
5
1. O ESPAÇO DA CIDADE COMO UM LOCAL DE DIFERENCIAÇÃO
A cidade, normalmente, é vista como um espaço no qual os indivíduos vivem
o drama e o desafio de conviver com certa coesão social. Neste sentido, suas áreas
estabelecem mais do que a simples extensão de seu perímetro. Estabelecem as
posições sociais de seus ocupantes dentro do conjunto da sociedade a que fazem
parte. Tal dinâmica de produção do espaço urbano organiza o tecido social das
cidades em múltiplos laços de sociabilidade. Seus habitantes estão, assim,
organizados segundo padrões de separação e diferenciação social. Dependendo
dos recursos que dispuser, o agente vai ocupar diferentes espaços, os quais estão
associados a distintas posições sociais. Assim, o ato de dizer onde se habita passa
de mera conceituação geográfica, para adquirir status de bem simbólico.
Frente a esta concepção, ao longo deste capítulo será discutido como o
tecido urbano está tramado. Mais especificamente, como diferentes tipos de
relações e múltiplos sentidos que são aprendidos e compartilhados dentro deste
ambiente que acaba por instituir uma gramática social orientando a vida dos
indivíduos, os diferenciando e hierarquizando.
1.1. As distâncias sociais inscritas nas localidades
As áreas que compõem o meio urbano revelam diferentes formas de
organizar e estruturar os indivíduos que estão inscritos em seu meio. Segundo
Bourdieu (1998), essa forma de organizar e diferenciar o mundo social é operada
segundo uma construção, tanto individual como coletiva, que distribui os indivíduos
em posições diferenciadas de acordo com dois princípios de diferenciação: o capital
econômico e o capital cultural
2
. O arranjo desses dois princípios auxilia no
posicionamento dos agentes dentro da estrutura social vigente. De maneira geral,
na estrutura da cidade, ganha destaque a primeira dimensão: dependendo da
quantidade de recursos financeiros de seus detentores, a posição de seus
2
Embora, na análise do autor, o princípio de diferenciação seja apontado para sociedades como os
Estados Unidos, o Japão ou a França interpretamos que tais princípios também sejam operados na
realidade brasileira (Bourdieu:1997).
6
ocupantes no espaço social recebe uma conotação prestigiosa (distinção) ou
desvalorizante (estigma).
Segundo Bourdieu (1998), a noção de lugar indica uma das dimensões na
qual o poder se afirma e se exerce. Ou seja, o “lugar” não constitui simplesmente
um ponto físico onde um agente ou uma coisa se encontra situado. Pelo contrário, o
“lugar” se constitui dentro de uma estrutura na qual os agentes sociais estão
situados de forma relativa. Sua posição decorre do cruzamento de outros eixos de
sentido, como, por exemplo, as noções de perto, longe, acima, abaixo; enfim um
conjunto de referências simbólicas que definem e informam, entre si, as distâncias
dos agentes na sociedade. Este espaço hierarquizado é, portanto, um espaço de
distinção, pois materializa para os agentes sociais diferentes posições sociais
conforme o jogo de disputa que está sendo travado no local. Assim, as distâncias
espaciais envolvidas na idéia de centro e periferia urbana, por exemplo, informam
distâncias sociais nas quais seus agentes se encontram situados dentro desta
estratificação. Ou seja, a cidade é vista como a “objetivação” de um espaço social
diferenciado e hierarquizado.
A estrutura do espaço social se manifesta, em contextos mais diversos, sob a
forma de oposições espaciais, o espaço habitado (ou apropriado) funcionando como
uma espécie de simbolização espontânea do espaço social. Não há espaço em
uma sociedade hierarquizada que não seja hierarquizado e que não exprima as
hierarquias e as distâncias sociais, sob uma forma (mais ou menos) deformada e,
sobretudo, mascarada pelo efeito de naturalização que implica a inscrição durável
das realidades sociais no mundo natural: as diferenças produzidas pela lógica
histórica podem assim parecer surgidas da natureza das coisas (é suficiente pensar
na idéia de “fronteira natural”) (BOURDIEU, 1998:160).
A hierarquia social que ordena a sociedade afirma distâncias entre os
indivíduos dentro da sociedade. Neste sentido, dependendo do arranjo das
características objetivas e subjetivas
3
identificados dentro do bairro, um tipo de
discurso que informa, ao conjunto da sociedade, a posição de cada lugar em sua
3
Por características objetivas entendemos a infra-estrutura urbana da localidade (tipo de
calcamento das vias, iluminação pública, saneamento básico, etc), o aspecto de conservação das
casas e pátios. Já por subjetivos estão inseridos noções que levam em conta, o “tipo” de morador da
localidade, a distância do bairro em relação ao centro da cidade, as impressões a respeito da
violência da área entre outros fatores.
7
estrutura. Isto porque, na avaliação do autor, o conceito de lugar possui um sentido
de apropriação de um significado, isto é, cada lugar possui um tipo de prestígio que
vai variar conforme o modo como o lugar é reconhecido socialmente. Dentro desta
postura de análise, o lugar é visto segundo duas possibilidades de vantagens
simbólicas. Na primeira, definida como ganhos de localização, as vantagens
atribuídas ao lugar estão associadas ao fato de estar próximo de bens raros ou
cobiçados como, por exemplo, casas localizadas nos arredores de locais que
inspiram segurança, próximo a shopping centers, etc. No segundo caso, as
vantagens do lugar se dão sob a forma de ganhos de ocupação: a posse de um
espaço físico funciona para se manter distância ou excluir intrusos indesejáveis
(Bourdieu: 1998).
No contexto das cidades brasileiras, o segundo tipo de ganho normalmente
pode ser verificado no interior de localidades
4
que apresentam um núcleo de
habitantes com relativa coesão interna e que desenvolvem mecanismos para se
afastar simbolicamente de vizinhos considerados indesejáveis. Nesse sentido, a
posição ocupada dentro do espaço social hierarquizado percebe os moradores das
regiões periféricas através de representações estereotipadas, pois seus ocupantes,
destituídos da maioria das características socialmente reconhecidas e valorizadas,
estão em posições de desvantagem simbólica. No entanto, Bourdieu (1997)
deslegitima concepções substancialista, que consideram certas atividades como
qualidades próprias a determinados indivíduos ou a certos grupos, como se estas
fossem propriedades intrínsecas a seus membros. O que ocorre, ao invés disso, é
que a estrutura dos diferentes tipos de representações acabam por tornar real uma
“realidade” que visualiza com reservas as áreas situadas em espaços identificados
com atributos negativos. Posto que, destituídos da posse de capital (econômico ou
cultural) em quantidade suficiente para alterar o estigma pelo qual são reconhecidos
socialmente - através dos veículos de comunicação, produto de idealizações ou de
experiências pessoais –, viram alvo de todo tipo de estereótipo que sua condição
pode suscitar.
4
O termo localidade utilizado aqui faz referência ao utilizado por Leeds e Leeds onde localidade
“refere-se, no contexto das distribuições geográficas humanas, aos loci de organização visivelmente
distintos, caracterizados por coisas tais como um agregado de pessoas mais ou menos permanentes
ou um agregado de casas, geralmente incluindo e cercadas por espaços relativamente vazios,
embora não necessariamente sem utilização” (LEEDS; LEEDS: 1978:31-32). Desta forma, consiste
uma unidade de análise que pode se referir tanto a uma composição social homogênea ou a um
lugar de maior densidade e mais ampla variedade de categorias de comportamento humano.
8
Segundo Sorokin (1961), os conceitos de espaço e de distância sociais,
utilizados na sociologia para desvendar os mecanismos que regulam os processos
de interação humana nas formas societárias de vida coletiva, seriam categorias
classificatórias que aproximam ou distanciam os grupos humanos como resultado
da sua inserção num mundo social hierarquizado. Uma hierarquia formulada
segundo a elaboração de diferentes posições dentro do conjunto do “universo”.
Assim, o espaço social seria “algo completamente diferente de espaço geográfico”
(p.232), pois dois indivíduos situados no mesmo espaço geográfico – dimensão
horizontal - podem ocupar espaços sociais distintos. Além disso, o tipo de relação
que o indivíduo desenvolve com os demais membros do grupo informa uma
localização vertical que, dentro deste sistema de coordenadas sociais, indica uma
separação entre os membros. Em termos ilustrativos, isto significa dizer que um rei
e seu súdito, embora estejam situados na mesma área geográfica, devido ao tipo de
relação que desenvolvem entre si, ocupam espaços sociais diferenciados, logo,
posições sociais distintas. Ou seja, a pluralidade de indivíduos neste meio auxilia a
compor a cidade como um grande mosaico de pequenos mundos que se justapõe,
mas, algumas vezes, não se inter-relacionam.
Dando seqüência a esta linha de argumentação, segundo Bourdieu
(1991;1997), a idéia da construção da diferença, de separação e de construção de
proximidades e distanciamentos entre os grupos é o que fundamenta a noção de
espaço social. Este seria uma realidade invisível, mas capaz de organizar as
práticas e as representações dos agentes dentro da estrutura social instituída na
sociedade. Seu emprego compõe uma lógica que, além de diferenciar os espaços
existentes no tecido urbano, atribui a cada qual um peso valorativo distinto. Tais
diferenças (signos de distinção ou estigmatização), para serem percebidas e
compreendidas, necessitam que o conjunto de agentes sociais da cidade tenha
incorporado a estrutura de diferenças, isto é, que os sentidos atribuídos aos lugares
e o princípio de classificação posto em prática na vida social correspondam ao
campo semântico dos habitantes do meio urbano. Portanto, quando alguém se
refere a determinado local da cidade, os demais interlocutores sabem ou tem certa
noção dos sentidos relacionados ao lugar descrito
5
. Mas, a partir do momento no
5
Um exemplo simples de como as diferentes formas de perceber os espaços da cidade se
processam pode ser verificado nas diferenças existentes no tipo de visibilidade social que recaia
9
qual reduzimos a personalidade do indivíduo a um determinado ponto, a uma
determinada característica reconhecida como do lugar, estar-se-á infligindo a este
uma distinção ou um estigma social, pois a pessoa passa a ser vista socialmente
como detentora de qualidades ou de defeitos derivados de sua vinculação espacial.
Para Goffman (1978), o estigma, antes de ser um atributo meramente social,
é uma linguagem que vai equacionar diferentes relações sociais, pois faz com que
os indivíduos direcionem seu olhar para determinado traço do indivíduo, alterando a
possibilidade de que outros atributos sejam percebidos, uma vez que o olhar se fixa
sobre um ponto específico. Um atributo que, na maioria das vezes, é considerado
como uma fraqueza, uma desvantagem de quem o possui.
Ao contrário do que se verifica na composição da identidade pessoal, na qual
a combinação de traços diversos é incorporada pelos indivíduos para estruturar e
organizar sua identidade, o recurso da identificação pública converte o que seria
uma característica, entre tantas outras do indivíduo, num símbolo de informação
social para substanciar sua identidade social. Logo, na ótica de Goffman, existe
uma clivagem entre a identidade pessoal e a identidade social: a primeira, origina-
se entre as pessoas que conhecem o indivíduo; a segunda, por sua vez, é de
domínio das pessoas que o desconhecem, para quem o indivíduo não passa de
perfeito estranho, formulando uma identidade segundo alguma característica
pontualmente escolhida.
Quando um indivíduo tem uma imagem pública, ela parece estar constituída a partir
de uma pequena seleção de fatos sobre ele que podem ser verdadeiros e que se
expandem até adquirir uma aparência dramática e digna de atenção, sendo,
posteriormente, usadas como um retrato global. Como conseqüência, pode ocorrer
um tipo especial de estigmatização (GOFFMAN, 1978:82).
Sua conceituação diferencia as pessoas estigmatizadas sob duas
perspectivas: a desacreditada, quando a característica distintiva já é conhecida ou é
imediatamente evidente como, por exemplo, a falta de um membro do corpo
humano; e a desacreditável, quando o traço estigmatizante da pessoa não é nem
conhecido e nem imediatamente perceptível pelos presentes. O segundo tipo de
estigma pode ser demonstrado através de dois exemplos que seguem: a dificuldade
sobre o habitante do Bairro da Restinga e Bairro Moinhos de Vento; sobre cada um dos moradores
são formulados diferentes cargas valorativas.
10
que se depara uma pessoa que tem algum problema no aparelho fonatório, mas
precisa fazer um pronunciamento em público e a situação com a qual se depara
uma pessoa cega (oculta detrás dos óculos escuros) que necessita se deslocar
entre uma multidão de transeuntes. Esses casos mostram que as características
estigmatizantes de seus detentores, para serem notadas, exigem a exposição do
indivíduo, pois, do contrário, sua identidade social permanece como se o indivíduo
fosse uma pessoa normal (GOFFMAN:1978).
Ao se expor, o indivíduo abandona a identidade social “verdadeira” e adquire
uma identidade social com a qual será reconhecido nos contatos mistos, nos
momentos de convívio social com outros indivíduos fora do seu grupo doméstico.
Além disso, um conjunto de símbolos sociais é acionado para reforçar a atenção
sobre seu atributo
6
. Os indivíduos assumem, assim, características distintivas com
as quais são conhecidos e reconhecidos socialmente.
No caso do objeto da presente pesquisa, os moradores das regiões
periféricas das cidades brasileiras, sua “imperfeição” original não se apresenta
como um traço de seus corpos, mas na sua condição de habitantes de um local
situado numa posição inferior, situado na periferia das cidades. Esse
reconhecimento social faz destes moradores pessoas desacreditáveis, pois por
mais que possam transitar anonimamente pelas ruas das cidades, ao terem o local
de sua residência revelado, recebem a identidade social estigmatizada. Embora
estes moradores possam tentar encombrir o estigma, acionando artifícios que
escondam sua condição (por exemplo, não divulgando o local de sua residência),
não podem furtar-se a reconhecer o caráter coletivo da situação em que se
encontram e, portanto, procuram desenvolver estratégias de distanciamento. Ao
buscar o distanciamento dos lugares estigmatizados, acabam fortalecendo o
desprezo público que desvaloriza as residências localizadas na periferia das
cidades. Desta forma, o marcador do desprestigio do indivíduo é identificado pelo
local de sua residência, sua localização está inserida, assim, dentro de uma
hierarquiza dos espaços da cidade.
6
Como símbolos de estigma, o autor aponta uma série de instrumentos utilizados pelos indivíduos
portadores de estigma: a bengala da pessoa portadora de deficiência visual, o aparelho auditivo da
pessoa com deficiência auditiva etc.
11
Para Wacquant (2001), o estigma vinculado ao local de moradia seria algo
que nas últimas décadas tem caracterizado as sociedades de maneira geral, com
destaque para as sociedades norte-americana e francesa. Suas pesquisas apontam
que o recente regime de clausura excludente e de exílio socioespacial surgido
nestas sociedades tem propiciado o desenvolvimento, respectivamente, dos guetos
e das periferias urbanas. As transformações econômicas que estas nações têm
sofrido resultaram na desarticulação do Estado de Bem-Estar e, com isso, tem-se a
incapacidade dos setores administrativos de fazer frente e reagir às novas
condições que impõem às camadas pobres da população uma nova forma de
estigmatização. Devido ao processo de reestruturação capitalista, o número de
postos de trabalho reduziu-se e, principalmente, o número de empregos destinados
tradicionalmente aos trabalhadores pobres encolheu mais ainda. Com isso, uma
nova configuração reacendeu formas de marginalização socioeconômica e de
discriminações com componente étnico. Modalidade de desigualdade urbana que
polariza as camadas médias e superiores da estrutura de classe, de um lado, e os
habitantes dos bairros identificados como lugares a serem evitados, temidos e
condenados, de outro. Este processo de exclusão social, o autor nomeia como um
estigma territorial impregnado (Wacquant: 2001).
Sua análise propõe uma concepção do gueto que rompa com posturas
interpretativas que atribuíam à pobreza uma tendência ao exótico ou que transpõem
as condições sociológicas de formação de cada localidade como se fossem traços
psicológicos de seus membros. Diverge das análises moralizadoras das “classes
perigosas”, nas quais os pobres e seus territórios são identificados como ameaças
ou como camadas da população que ainda não foram assimiladas ao restante da
sociedade.
7
Com isso, o autor desloca o eixo das discussões essencialistas para
uma postura de investigação na qual a cidade deve ser pensada como uma
instituição e não como um agregado de pessoas e organizações sociais fruto do
trabalho não-intencional. Neste ambiente, interesses privados e políticos encontram
expressão, ditam mecanismos de controle, estruturam e produzem uma
7
Esta interpretação de que as parcelas marginais da população deveriam ser assimiladas remonta
uma matriz de análise dos estudos desenvolvidos pela Escola de Chicago que se destacou pela
orientação ou perspectiva de teorização da estrutura espacial da cidade como um fenômeno onde os
grupos estão integrados ou permanecem isolados em guetos. Seus estudos de intervenção estavam
interessados em investigar como os grupos de migrantes que aportavam na cidade de Chicago a
partir da década de 1920 estavam sendo assimilados pela estrutura da cidade. A este respeito ver
Velho (1979), Coulon (1995), Eufrásio (1999) e Valladares (2005).
12
estigmatização crescente através da exposição na sociedade em geral de
concepções nada casuais.
Esta configuração produz um tipo de discurso que coloca a população
ativamente excluída do mercado de trabalho na condição de “nova pobreza” urbana.
Na medida em que os pobres já não são mais úteis como “exército de reserva da
produção”, eles se transformam em consumidores incapazes e inúteis, passando a
serem vistos sob um prisma de estigmatização crescente na vida cotidiana e no
discurso público. Assim, é produzida uma cisão cada vez mais profunda entre ricos
e pobres; entre aqueles estavelmente empregados nos setores centrais de classe
média da economia e os indivíduos apanhados nas margens de um mercado de
trabalho cada vez mais inseguro, de baixa qualidade e de serviços.
Sob este pano de fundo, o cercamento social sentido pelos jovens urbanos
sem emprego e sem perspectivas é o componente necessário para uma onda
crescente de vandalismo ganhar expressão nas ruas das grandes cidades como
resposta à violência socioeconômica e simbólica à qual se sentem submetidos por
serem relegados a um lugar tão desprestigiado socialmente.
8
Mas o autor chama a atenção para o fato da experiência de exclusão
promovida nestas sociedades poder ser diferente entre si. Nas áreas de periferia
francesa, chamadas de banlieues ou cité, composta socialmente por descendentes
de migrantes das antigas colônias francesas no continente africano, ocorre um
processo de exclusão dos jovens do mercado de trabalho cuja matriz se dá pelo
local de moradia. Assim, por exemplo, quando preenchem uma ficha de solicitação
de emprego, ao informarem o local no qual residem são, na maioria das vezes,
considerados desqualificados e descartados. Já na sociedade norte-americana, a
localização geográfica não é a única característica de deterioração de seus
habitantes. Sobressaem a isto elementos de ordem racial que colocam em posição
inferior os agentes sociais identificados como negros. No entanto, os dois estigmas
que os moradores dos guetos norte-americanos carregam (cor da pele e local de
moradia) não se confundem em sua natureza nem são idênticos em seus efeitos,
pois, como aponta o autor,
8
Wacquant faz menção ao surto de conflitos violentos ocorridos na década de 1990 nas cidades
francesas, inglesas e norte-americanas envolvendo os jovens de áreas pobres e segregadas
(Wacquant, 2001:24-26).
13
É impossível para quase todos os afro-americanos eliminar as marcas sociais, mas
o significado destas pode ao menos ser investido e revalorizado a partir de dentro (
de acordo com o paradigma ‘negro é lindo’). A nódua residencial pode, em muitas
situações ser limpa com o emprego de técnicas adequadas de dissimulação de
aparências. Mas ter de esconder de estranhos (inclusive outros negros) o local de
moradia, especialmente quando esses estranhos são agentes oficiais de instituições
dominantes como firmas, escolas ou repartições governamentais – que muitas vezes
têm meios de descobri-lo de alguma maneira –, reativa constantemente o senso de
indignidade social, e não há forma de reverter o valor simbólico de morar no gueto
(poucos hoje em dia poderiam efetivamente advogar que ‘morar no gueto é lindo’)
(WACQUANT, 2001: 71-72).
No contexto da sociedade brasileira, as populações identificadas e
estigmatizadas com o rótulo de moradores de favelas, vilas, palafitas e demais
congêneres não teriam uma experiência igual de confinamento social. Embora
exista semelhança entre os moradores residentes das favelas brasileiras, guetos
norte-americanos e periferias francesas do ponto de vista de sua condição social
(compostos por camadas empobrecidas da sociedade), sob o prisma de suas
posições dentro do espaço social de cada realidade, verificam-se diferenças
substantivas, pois os moradores das áreas de periferia no Brasil permanecem
inseridos, embora em posição inferior, dentro das relações de troca na sociedade
mais ampla. Além disso, não verificaria aqui uma experiência de “nova pobreza”
9
.
Ainda segundo Wacquant, na sociedade norte-americana o estigma territorial
é vivenciado diariamente como algo “real”, que cumpre a função de impedir que
determinado agregado de pessoas possa sair e transitar livremente pela cidade,
conformando uma espécie de prisão sedimentada na dupla rejeição que
impossibilita aos seus habitantes atravessar um bairro branco adjacente de forma
despercebida sem que seja alvo de constrangimentos por parte da polícia, pois não
faz parte daquele lugar. Já na sociedade brasileira, a noção de gueto está muito
mais vinculada a idéia de impedir a entrada de intrusos indesejados. A partir da
proposta de Bauman (2003:106) sobre a formação do “gueto voluntário” oriundo de
um confinamento espacial e de um fechamento social, é possível pensar as cidades
brasileiras segundo um modelo que combina proximidade física e separação social.
Ao mesmo tempo em que existe uma proximidade territorial entre, por exemplo, a
população das favelas e a dos condomínios da classe media alta, existe uma
enorme distância social entre estas duas populações. Cada uma sabe exatamente
9
Para Brandão (2004) o conceito de “nova pobre” seria inadequado para a sociedade brasileira. Sua
análise defende que não teria ocorrido um processo de absorção de certas camadas sociais e sua
posterior exclusão. O que se verifica aqui seria um contínuo processo de desprestigio de grupos
posicionados na escala mais baixa da hierarquia social.
14
que lugar ocupa dentro da estrutura do espaço social. Cada qual sabe, para usar os
termos de Bourdieu (1998), seu lugar dentro do tabuleiro que estrutura a sociedade.
1.2 Segregação espaço-social
O trabalho do sociólogo André Augusto Brandão (2004) chama atenção ao
fato da exclusão social ser um fenômeno multidimensional, envolvendo aspectos
econômicos, políticos, culturais, étnicos e de gênero. Indica que o impedimento de
acesso a determinados bens, serviços e direitos tem caracterizado a realidade
urbana brasileira, a qual se caracteriza por uma distribuição de renda perversa, que
confina grande parte da população trabalhadora em áreas empobrecidas de seu
perímetro urbano. Segundo este autor, o processo de incorporação da economia
brasileira à nova economia global, desde o início da década de 1990, significou, por
um lado, que determinada elite do segmento produtivo da população pudesse
participar da concorrência internacional. O custo disto, por outro lado, foi a exclusão
de parte da população da possibilidade de entrar, mesmo que de forma
subordinada, no mercado de trabalho formal. Estruturalmente, intensificou a
concentração das parcelas mais pauperizadas dos trabalhadores dentro do que
ficou conhecido como padrão periférico de urbanização. Espaços habitados por
uma população pobre que, diferente do verificado nas sociedades analisadas por
Wacquant, não está excluída do restante da sociedade, mas configura uma
realidade estruturada dentro de um processo de ocupação diferenciada dos
territórios das cidades brasileiras.
Logo, a informação do local de moradia é convertida em um símbolo social
importante. De maneira que as noções de distinção e estigma dentro do meio
urbano reforçam a idéia da cidade como um local que estrutura seus territórios (e os
habitantes destes) segundo certos critérios valorativos. Assim, para Bourdieu
(2004), o morador passa a ser socialmente compreendido dentro de uma identidade
regional, sua identidade passa a ser pautada pelos elementos presentes na
localidade e, da mesma forma que um local expressa posição diferenciada segundo
sua posição dentro do jogo de disputa simbólica, os indivíduos inscritos dentro
deste local possuem relações sociais com características distintas.
15
O antropólogo Gilberto Velho (2002) descreve a sociedade brasileira como
um espaço marcado por relações estruturadas. Por conta disso, o ambiente urbano
apresenta um conjunto de estratos demarcados por posições ocupadas pelos
indivíduos. Cada posição é representada por símbolos que expressam o prestígio, o
status de seus ocupantes, bem como sua possível falta. Isto porque a distribuição
diferenciada de poder dentro da sociedade forja um “mapa social” repleto de pontos
com diferentes cargas valorativas. Desse modo, por exemplo, para os moradores de
bairros como o de Copacabana, o local de sua residência converte-se num símbolo
de sucesso, um indício de ascensão social que identifica todo um conjunto de
atributos sociais positivos que sua localidade representa. Ao afirmarem que moram
onde moram, os moradores destas áreas prestigiadas passam a compartilhar e
usufruir do status social do seu lugar.
10
Isto ocorre, segundo a ótica do sociólogo Jean Lojkine (1981), devido à
distribuição das pessoas dentro do espaço social das cidades acompanhar um
arranjo marcado por interesses econômicos de apropriação e uso do solo. Assim,
as áreas urbanas com baixo prestígio têm concentrado as parcelas mais
pauperizadas dos trabalhadores, enquanto as áreas de status elevado estariam
destinadas às que detêm maior poder aquisitivo. Em face a isto, a segregação
existente no meio urbano é tanto espacial como social, pois empurra a população
mais empobrecida às regiões afastadas e destituídas dos bens estruturais,
instituindo um arranjo que, além de separar por distâncias geográficas pobres e
ricos, produz tipos de habitação e qualidade de vida urbana diferentes. Conforme o
capital econômico que o indivíduo dispuser, irá ocupar diferentes regiões e, por
conseguinte carregará marcas de distinção diferenciadas.
10
“Essa sociedade é, para essas pessoas, constituída por estratos que têm como uma de suas
definições essenciais a sua distribuição espacial que vai ser fundamental para definir os status dos
indivíduos, atribuindo-lhes mais ou menos vantagens ou privilégios que são, basicamente, as
oportunidades de acesso a determinados padrões materiais e não-materiais. Os estratos têm limites
claros, à medida que se definem espacialmente. Não se confunde um morador de Copacabana com
um de Ramos, porque estão identificados socialmente pelo bairro em que moram” (VELHO, 2002:81-
82).
16
1.3 Estudos sobre comunidades pobres nas ciências sociais
A percepção da sociedade diferenciada e segregada fez com que as ciências
sociais, nas décadas de 60 e 70, estivessem interessadas em investigar a estrutura
existente entre as populações posicionadas nas áreas mais empobrecidas. Sua
perspectiva de análise, em geral, fora marcada pela idéia de “cultura da pobreza”,
segundo a qual os habitantes destas áreas, considerados marginais por não
incorporarem os valores da classe dominante, estariam enredados num meio social
que produziria indivíduos homogêneos no seu tradicionalismo, na incapacidade de
adaptação ao meio urbano e, no limite, na sua condição anômica e irracional. A
adoção deste tipo de discurso “objetivo” operou uma prática cuja orientação
produzia um efeito social: hierarquizar e classificar os habitantes das cidades.
Como referencia Lago e Ribeiro (2001), essa perspectiva de interpretação
produziu a visão de que os atributos sociais dos grupos pudessem ser explicados
por si mesmos, estabelecendo, assim, uma correlação direta entre o local de
moradia e condições social de seus moradores (pessoas desacreditáveis e de
condição moral duvidosa). Do ponto de vista analítico, no entanto, esta perspectiva
se insere em um embate de forças, no qual estão em disputa o poder de imputar a
determinados locais e populações certas distinções e estigmatizações. Isto ocorre
porque no meio urbano se produz um discurso de diferenciação dos espaços. Desta
forma, a população urbana produz e reproduz o discurso que organiza as áreas da
cidade conforme uma segregação social e espacial. De modo que, a situação dos
moradores da periferia das cidades, encerra-os dentro de um locus que concentra
características materiais e simbólicas negativas.
Além disso, o produto do meio socialmente estruturado dá sentido à
experiência da prática do dia-a-dia do indivíduo. Assim, a legitimação social desta
discriminação atua na produção da classificação com a qual os sujeitos interpretam
o mundo social e a si mesmos. Logo, para descrição do campo de disputas
existentes nas áreas periféricas das cidades, estariam implicadas não somente
questões relacionadas à insuficiência das condições de infra-estrutura material
(questões objetivas), mas também aquelas vinculadas à consciência desta disputa
como uma decorrência do processo de construção simbólica da desigualdade.
17
1.4 O processo de urbanização no território brasileiro
Para Caldeira (2003), a marcha dos habitantes em direção as cidades
brasileiras e, em especial para cidade de São Paulo, foi resultante de um processo
lento, mas intenso de deslocamento das populações das áreas rurais em direção às
áreas urbanas. Inicialmente, os novos moradores se instalaram nos arredores das
fábricas onde trabalhavam ou pretendiam trabalhar, nas chamadas “vilas operárias”.
A estrutura urbana de então não estava preparada para acompanhar o fluxo de
novos habitantes, especialmente a partir de sua intensificação, entre as décadas de
1640 e 1960. Assim, diferentes grupos sociais se aglomeravam numa mesma área
geográfica, impondo à elite paulista uma situação desconfortável, pois não era de
seu apreço a condição de vizinhos de uma população alojada em precárias
condições de habitação.
Diante disso, dizendo estar interessada na saúde e na higiene da população
migrante, busca expulsar os trabalhadores do centro. Coloca em prática medidas de
planejamento urbano e um discurso modernizador que escondia forte preocupação
com o controle social
11
. Realizou obras de abertura de grandes avenidas partindo
do centro em direção ao subúrbio, substitui o investimento em bondes por ônibus,
entre outras medidas que possibilitaram que a mancha urbana se expandisse para
áreas até então destinadas para agricultura. Para Caldeira, esse novo padrão de
organização do tecido urbano teve início em meados da década de 1940, quando a
organização do espaço urbano passou a ser caracterizada com o padrão centro-
periferia, segundo o qual os diferentes habitantes deixam de ocupar uma mesma
área da cidade e passam a se distribuir de maneira desigual pelo tecido urbano: as
classes sociais passam a viver afastadas umas das outras, a aquisição da casa
própria torna-se uma regra para grande maioria dos moradores e o sistema de
transporte baseia-se no uso do ônibus para a classe trabalhadora e automóvel para
as classe média e alta (p.218).
11
O caso emblemático desse processo ocorreu no ano de 1904 no que ficou conhecido como A
Revolta da Vacina. A população do Rio de Janeiro se revoltou com as medidas tomadas pelo
governo que além de vacinar a população contra varíola lançou um programa de reforma urbana
abrindo grandes avenidas no centro da cidade destruindo muitas habitações dos moradores. Essa
medida pretendia higienizar o centro e transferir a população para áreas mais afastadas. Uma
postura que revelava um controle e diferenciação dos espaços. Sobre isto ver o trabalho de Carvalho
(1989).
18
Para planejadores urbanos, como Maricato (2001), a consolidação das
cidades brasileiras é resultante do processo industrial desencadeado no início da
década de 1930. Neste momento, a população localizada no meio rural, até então
superior à do meio urbano, começou a se deslocar para as cidades
12
em busca dos
empregos nas fábricas. Os novos moradores passam a usufruir de um conjunto de
bens que até então não tinham acesso no meio rural (com destaque para os eletro-
eletrônicos como aparelhos de televisão), o que acaba por produzir entre eles a
sensação de “melhoria de vida”. No entanto, se na esfera privada existe a sensação
de melhora, em termos de direitos sociais permanecem desassistidos pelo Estado,
pois a administração municipal das cidades, incapaz de acompanhar o fluxo de
pessoas, se ausentou nas áreas periféricas e deixou o espaço aberto para o
surgimento de ocupações irregulares dentro de uma orientação composta por duas
fases: primeiro, a iniciativa privada vende e, após, corre por conta do poder público
dotar estes espaços de infra-estrutura de bens e serviços urbanos.
Os planejadores operacionais das cidades
13
, incapazes de acompanhar o
fluxo sistemático das pessoas que buscavam melhores condições de vida, aliadas
às brechas jurídicas e práticas clientelistas de parcela significativa dos agentes
políticos, acabam por permitir a formação de muitos loteamentos sem infra-estrutura
mínima adequada, bem como de loteamentos clandestinos e os loteamentos após
ocupação ilegal
14
. Com isso, a comercialização de lotes em longo prazo e com
preços suficientemente baixos possibilitou que famílias impedidas de adquirir
residência nas regiões já urbanizadas da cidade, em virtude dos preços elevados,
pudessem se aventurar na compra de lotes a baixo custo localizados nas regiões
afastadas, as quais pouco a pouco foram sendo incorporadas ao tecido urbano das
cidades.
Como aponta Kowarick (1979), os habitantes destas áreas estão imersos
numa realidade de espoliação urbana, na medida em que residem em péssimas
12
Em 1940 a população urbana brasileira era de 26,3 % no total já no ano de 2000 seria de 81,2%
(Maricato, 2001:16).
13
Este conceito, elaborado por Campos Filhos (1999) e Gonzalez (1994) refere-se aos técnicos
municipais que desenvolvem as políticas urbanas dentro da cidade.
14
No ano de 2001, por meio da Lei 10.57 foi aprovado o chamado “Estatuto da Cidade”, um
dispositivo legal que introduziu a obrigatoriedade dos municípios realizarem um reforma urbanística.
No entanto, Estatuto da Cidade serve apenas como um instrumento legal jurídico que, para ser
operacionalizado, precisa estar adaptado a realidade de cada município. Sua aplicação prática
carece da criação de ferramentas e metodologias que pensem a cidade não só em sua legislação
urbanística, mas também em sua vida real.
19
condições de habitação, estão desassistidos de investimentos em saneamento
básico, de calçamento das vias, de saúde pública, de escolas, entre outros recursos
de infra-estrutura e serviços. Além disso, são obrigados a gastar várias horas no
deslocamento de sua residência até o local de seu trabalho, reduzindo a
disponibilidade de tempo para as atividades de lazer e convívio social e familiar.
Devido a isto tudo, tem-se uma realidade segregada, do ponto de vista social, e
caótica, no plano urbano, cujo resultado é a criação de espaços de diferenciação
entre os indivíduos, nos quais as marcas sociais do lugar assumem tonalidades
fortes e imprimem distinções entre os agentes sociais.
Além disso, apesar das áreas situadas nos espaços periféricos possuírem
custos relativamente baixos, viabilizando a instalação da população pobre, tal
processo teve (e tem) um ônus social extremamente alto. O imaginário social acaba
sugerindo uma visão que imagina a periferia como um local perigoso para se morar,
onde residem pessoas de caráter duvidoso. Assim, a condição econômica
desfavorecida se articula à depreciação simbólica, configurando a imagem de áreas
e populações “marginais”.
No livro O Mito da Marginalidade (1977), Perlman tenta entender quais
seriam as razões implicadas no uso do termo “marginal”, com o qual os segmentos
“integrados” ao meio urbano identificam e classificam os habitantes das áreas de
periferia. Ao longo do trabalho, a autora mostra que tal postura está assentada
segundo uma série de vetores que dão está visibilidade depreciativa: localização
geográfica, tipo de construção com baixo padrão, alta densidade populacional,
precariedade de infra-estrutura, ausência de condições higiênicas, situação inferior
na escala de econômica (falta de trabalho ou emprego mal-remunerado) e a
situação de recém-chegados. Assim, a falta de poder para definir sua própria
condição coloca esses moradores em situação de marginalidade. Contudo, isso não
significa falta de integração na sociedade, pois, ainda que de modo subordinado,
estão a ela ligados.
Eu sustento que os moradores da favela não são econômica nem politicamente
marginais, mas são explorados e reprimidos; que não socialmente ou culturalmente
marginais, mas são estigmatizados e excluídos de um sistema social fechado
(PERLMAN, 1977:235).
20
Como fica exposto acima, os moradores das periferias não seriam marginais
em termos de suas próprias atitudes e comportamentos. Pelo contrário, de acordo
com Perlman, estariam sendo ativamente marginalizados pelo sistema e pela
política oficial. Ainda que excluídos, eles se identificam fortemente com os princípios
e valores socialmente dominantes, mas continuam sendo rejeitados por serem
pobres e porque estão geograficamente isolados da maioria das oportunidades que
a vida urbana tem a oferecer. No entanto, autores como Oliven (1982) e Fonseca
(2000), criticam uma postura “paternalista” de Perlman, presente em sua defesa das
virtudes do “bom caráter” dos favelados
15
. Advogando a necessidade de
assimilação e integração dos residentes das zonas periféricas, dotando-os das
“virtudes admiradas pelas classes médias (assiduidade ao trabalho, estabilidade
familiar, cooperação comunitária), eles contribuem para desqualificação daqueles
que, seja por opção, seja por necessidade têm outras práticas.” (FONSECA,
2000:16). Além disso, agindo assim, os pesquisadores deixam de estudar o
conjunto de práticas diárias que conforma a realidade do grupo, isto é, sua
coerência interna.
1.5 Pobres com “P” minúsculo
As escolhas envolvidas na utilização dos termos com os quais definimos e
instrumentalizamos o tema de investigação, indicam nossas filiações em termos de
escolhas conceituais. Dentro do campo de estudos que tem o urbano como foco de
análise, as ciências sociais brasileiras, durante a década de 1970, adjetivaram o
termo “pobre” como uma categoria capaz de descrever indistintamente todos os
moradores das periferias urbanas. Assim, os “pobres” foram pensados como se
fossem ou devessem ser compreendidos exclusivamente a partir de sua
determinação de classe, ou, de outro ponto de vista, como se suas ações fossem
uma expressão das ambições de satisfazer certas necessidades materiais, uma vez
que eles foram definidos por esta carência básica (Sarti, 1996:20-21).
15
“Ela também está por demais preocupada em averiguar as características das classes
subordinadas em vez de analisar a estrutura social na qual estão inseridas e comparar diferentes
grupos e classes sociais e assim obter um quadro mais global da questão. Esta abordagem
freqüentemente também aceita todo o modelo na qual encaixa as classes dominadas sem questionar
para que serve esta ideologia” (OLIVEN, 1982:54).
21
Diferentemente do que apontavam os estudos da sociologia e antropologia
urbana orientados pela perspectiva marxista
16
, questiona-se, nesta pesquisa, a
relação determinista e mecânica entre precariedade de vida e a estruturação das
práticas e representações dos moradores das áreas periféricas. Ou seja, a condição
de morador destas áreas não atua de forma homogênea sobre a população que
nelas habitam. Isso porque, de acordo com Durham (2004), malgrado a condição de
morador de áreas destituídas da maioria dos bens coletivos, não existe uma
homogeneidade “natural” entre seus moradores. Pelo contrário, a formação social
destas áreas congrega uma pluralidade de visões e comportamentos que não se
esgotam numa categoria pouco explicativa como proletariado pobre. Frente à
composição social heterogênea existente dentro das localidades seria necessário
desenvolver pesquisas que analisem “de dentro” da realidade local para, assim, ser
possível compreender a organização dos diferentes grupos que se configuram
nesse locus.
17
Neste sentido, ganham relevo as contribuições seminais das pesquisas
antropológicas de autores como Caldeira (1984), Sarti (1984) e Zaluar (1985), que
se abrem para elaborações orientadas por perspectivas analíticas menos
homogeneizantes. Por conta disso, passam a utilizar termos como “grupo popular”,
“grupos urbanos”, “bairros populares”, no intuito de descrever os agrupamentos
antes vistos como sendo um todo único e totalizador (utilizado, muitas vezes, como
contraponto com a cultura hegemônica ou dominante), mas que agora passam a ser
vistos como espaços conformados por grupos orientados por lógicas diferentes de
atuação e que estabelecem relações complexas entre si.
Estas autoras estudam deferentes bairros periféricos nas cidades de São
Paulo e Rio de Janeiro, que se expandiram como conseqüência do intenso
processo de deslocamento da população trabalhadora (sobretudo nas décadas de
1960 e 1970) do campo para cidade, enfocado anteriormente. Através de uma
abordagem interessada na dinâmica existente nestes ambientes, conseguem captar
16
A este respeito ver. Marx; Engels (1984) Castell (1979; 2000).
17
A postura analítica da autora revela muito do que a antropologia tenta fazer ao estudar os grupos
existentes nas áreas urbanas segundo a contribuição de Geertz (1989) ao afirmar que não se faz
antropologia das aldeias, mas sim nas aldeias. Assim, ao invés de uma abordagem de pesquisa da
cidade, buscam uma análise antropológica na cidade. Não estão interessados numa interpretação
em si mesma, mas sim em pesquisas que lidam com um tema, um conceito através de métodos
próprios. “A cidade é, portanto, antes o lugar da pesquisa do que seu objeto” (DURHAM, 2004:262).
22
a realidade das camadas populares, sua composição e organização interna, suas
contradições e seus códigos. Contudo, como comenta Machado (2003: 15-16),
entre os trabalhos que se debruçaram sobre este tema não existe consenso na
definição da categoria “grupos populares”.
Segundo Caldeira (1984), as “periferias” seriam regiões que apresentam os
contrastes da urbanização acelerada, que deslocou para longe a população
trabalhadora empobrecida, onde os serviços urbanos não estão presentes,
composta por ruas irregulares, abertas sem um plano prévio, formada por casas
construídas pelo processo de autoconstrução, com esgoto correndo a céu aberto,
enfim, “um cenário imediatamente identificável: trata-se do local de moradia das
camadas mais pobres da população” (p.26). Ela conclui sua análise afirmando que
o processo de segregação espacial não se esgota no plano das carências em
termos de infra-estrutura física. Mais do que isto, sofre um efeito cumulativo,
constituindo um círculo vicioso composto no qual se somam e se reforçam a
inexistência dos equipamentos básicos de infra-estrutura e as características da
forma de vida e de trabalho de seus moradores.
Para Zaluar (1985), dentro de uma postura meramente estatística objetivista,
poder-se-ia definir como ocupantes das periferias das cidades aqueles moradores
pobres incluídos nas faixas de renda mais baixa (até 3 a 5 salários mínimos) ou os
que exercem as atividades mal remuneradas na economia nacional. No entanto,
este ponto de vista meramente descritivo oculta os mecanismos de auto-
reconhecimento que os moradores inseridos neste locus elaboram em suas práticas
cotidianas, pois ainda que fragmentárias, a sociabilidade tecida dentro deste espaço
favorece a consolidação de representações compartilhadas, distintas das
formulações externas que tendem a homogeneizar seus moradores como se todas
as regiões periféricas das cidades brasileiras fossem iguais.
Em sua pesquisa, Zaluar verificou a existência de uma realidade repleta de
divisões internas dentro do grupo. Desta maneira, questiona as idéias correntes no
senso comum que pensava a localidade como um todo único e coeso. Ao contrário
desta acepção totalizante, a autora verificou que os moradores da periferia
estudada desenvolvem um conjunto de categorias classificatórias internas de
diferenciação.
23
Ao contrário de uma população homogênea na sua marginalidade, a
pesquisa de Zaluar identificou a existência de uma clara oposição moral entre duas
noções: os “trabalhadores” e os “bandidos”. À primeira, o valor moral estava
atrelado à condição do ofício de trabalhador, status de provedor do grupo doméstico
sob seus cuidados. À segunda, por outro lado, pertenceriam aqueles que não
exerciam ou não eram identificados como exercendo atividades de trabalhador.
Nesta linha de análise, o trabalho da antropologa Cyntia Sarti (1996)
apresenta os pobres envolvidos numa disputa pela construção e sustentação de
uma auto-imagem positiva que compense as desigualdades socialmente dadas.
Esta auto-imagem se constitui dentro de outro referencial simbólico, diferente
daquele que os “desqualifica” socialmente. Ou seja, buscam estruturar um campo
de referências simbólicas no qual poderiam até mesmo adquirir superioridade. Tais
referências seriam originadas de um código moral para além da lógica do mercado.
Embora no mundo moderno o que defina a pessoa como grupo popular seja
essencialmente um critério estabelecido por ditames políticos e econômicos, no
plano da moralidade, os pobres se igualariam aos ricos na medida que criam
positividades de si.
Sarti aponta como indicador de sua positividade o fato de ser um
trabalhador, um “trabalhador pobre”, isto é, um modo particular de se colocar no
mundo social. Um entrelaçamento de duas referências: uma advinda da lógica do
capital, que os converte em trabalhadores; e outro da lógica não-capitalista, mas
hierárquica e tradicional, que os faz pobres (Sarti, 1996:87). Os pobres, através da
honestidade como trabalhador e de sua disposição de vencer, produzem uma auto-
imagem positiva de si. Este atributo moral elaborado internamente pelo grupo
mostra como eles se relacionam internamente, definindo quem detém mais moral,
quem são os “iguais” e os “desiguais”. No entanto, ainda que Sarti produza com
êxito uma reflexão investigativa dos moradores da periferia, igualar todas as
condutas e posturas dos moradores da localidade como se fosse “a atitude do
pobre” seria um equívoco, pois deixa de verificar que mesmo entre os membros
deste grupo existem contradições e especificidades.
Para entender a vida social que sustenta o comportamento dos moradores
das classes populares, pessoas que partilham do universo de sentido da sociedade
mais ampla, mas que possuem diferenças, é necessária uma postura relativizadora.
24
Nesse sentido, Fonseca (2000) sugere uma análise do vivido dentro destes espaços
de interação social segundo um olhar que interprete os grupos populares com um
“P” minúsculo, pois os códigos que regulam e modulam as condutas destes
indivíduos dentro de sua hierarquia apresenta um conjunto de nuances incapaz de
agrupá-los numa única categoria. Os processos de ascensão econômica que alguns
moradores das camadas populares enfrentam, por exemplo, acaba originando
novas categorias de auto-classificação, desdobrando a noção de “pobre” em novas
categorias como: “não tão pobres”, “mais pobres que”.
Este ponto, segundo Fonseca, seria o foco de grande parte dos conflitos
entre os membros do grupo, pois, na realidade estudada pela autora, as pessoas
que ascendem economicamente, ao invés de trocarem de bairro - o que poderia
evitar os conflitos-, acionavam uma série de estratégias para se afastar
simbolicamente de seus vizinhos. Através do uso das palavras, dos gestos e
atitudes pretendem sublinhar sua condição de distinção.
Com isso, executam um progressivo isolamento das atividades de
sociabilidade da localidade, matriculam seus filhos em escolas fora do bairro e se
valem do investimento econômico na melhoria de suas moradias para expressarem
a posse de certos símbolos de prestígio social, que os distinguem dos demais
moradores da localidade, configurando o que a autora nomeia de “vida em
sanduíche”. Como a situação econômica não permite que se instalem em áreas
mais valorizadas, optam por se entrincheirar em suas moradias, na esperança que
a localidade atinja um padrão de vida que julgam mais adequado: ”que as ruas
sejam higienizadas, que as malocas sejam retiradas e os terrenos ocupados, por
‘pessoas de bem’.” (Fonseca, 2000:93). Todavia, o esforço erigido pelos moradores
ascendentes para se distinguirem de seus vizinhos desencadeia sentimentos
ambivalentes, pois, na medida que a clivagem se institui, seus idealizadores
passam a ser encarados não mais como membros da mesma rede social de
sentido, logo passíveis de sofrer sanções violentas
18
.
Além desta forma de estruturar e organizar a vida dentro da localidade, a
pesquisa de Fonseca (2000:21) destaca a figura da honra como pedra angular na
18
“É na frente desse tipo de moradia que aparecem a grade alta, a campainha elétrica, o cão de
guarda. As janelas são grandes, mas as grades criam uma cortina impenetrável entre os residentes
da casa e as pessoas na rua” (FONSECA, 2000:95).
25
estrutura moral das camadas populares. Condenados moralmente pelo mundo
exterior, realizam uma “vingança simbólica” através de um filtro imaginário que lhes
possibilita visualizar sua vida de acordo com uma auto-imagem socialmente
aceitável. Conforme a imagem pública e as qualidades de cada grupo existente
neste sistema de auto-regulação social, a honra das diferentes categorias sociais e
seus valores constituem um prestígio pessoal diversificado. Assim, o prestígio de
um homem varia de acordo com a categoria social em que se encontre situado.
Todavia, os códigos de honra, antes de serem códigos partilhados por todos
os membros do grupo, apresentam diferentes níveis de aceitação. Uma
exemplificação disso, encontra-se no ato de roubar que, dependendo das
circunstâncias que o cercam, será mais ou menos aceito pelos demais membros do
grupo. Tudo vai depender de quem pratica o ato, qual sua intenção e de quem o
bem foi subtraído. A estrutura interna dessa camada popular, apesar de diferenciar
o poder entre fortes e fracos, está longe de se igualar a visões simplistas, pois
“Dentro do código da vila, os ‘fracos’ encontram brechas e forjam táticas para
neutralizar a influência dos outros” (FONSECA, 2000:25). Por meio do uso da
fofoca, uma força niveladora, mesmo os indivíduos considerados fracos conseguem
agenciar vantagens para si, engendrando um cenário que, para um bom
entendimento, necessita de um olhar que visualize os diferentes tons que compõem
o quadro de interação existente na localidade.
Sendo assim, coloca-se em questão o termo “comunidade”, utilizado
frequentemente para descrever um espaço comum, no qual convive um grupo
humano, pressupondo a idéia da existência de uma identidade comum a qual todos
estão efetivamente vinculados, compartilhando interesses. Essa acepção do termo
“comunidade” ganha força na interpretação da realidade das periferias urbanas,
pois devido à sua condição de vulnerabilidade social poderia acreditar-se que seus
habitantes, através da rede de vizinhança, reforçam os laços de sociabilidade e de
ajuda mútua, originando, com isso, um espaço interno de relações igualitárias. Mas
para Durham (2004:221), o princípio da comunidade como sinônimo de harmonia
nas relações sociais nada mais seria que um mito do nosso tempo, “pois o ideal que
ela representa opõe-se à realidade do conflito de interesses e de impessoalidade
das relações sociais próprias da nossa sociedade”.
26
Deste modo, a vinculação do termo às áreas periféricas da cidade, não
constituem um emprego no sentido sociológico estrito, pois, a “comunidade” tal,
como é empregada no Brasil, segundo a autora, ocorre num tipo de organização
frequentemente transitória formada por interesses e objetivos específicos e restritos.
Assim, o apelo para um enquadramento dos contextos das áreas de periferia dentro
da idéia de “comunidade” carrega consigo, a idéia de que todos os moradores deste
ambiente são ou têm ações semelhantes, de maneira a, assim, serem percebidos
como iguais
19
.
Mas em termos conceituais, dentro da sociologia, comunidade adquiriu
grande importância por meio da obra de Ferdinand Tönnies que circunscreveu o
termo “comunidade” em contraste ao termo “sociedade” dentro de uma oposição de
significados. Segundo este autor, comunidade configura um tipo de relação social
caracterizada por uma vontade voltada para concordância às regras; o protótipo
deste conceito seria a família da qual surgem formas de organizar a vida cotidiana
segundo um regramento social de todos os membros do grupo. Oposto a este, a
sociedade caracteriza-se por ser uma organização baseada na convenção, na
legislação a partir de normas estabelecidas pelo e para o grupo. Neste sentido, o
conceito de sociedade pressupõe uma pluralidade de pessoas com interesses
particulares que vão estabelecer vínculos de natureza racional no interesse de obter
interesses específicos
20
.
A formulação de Tönnies aproxima-se da análise que Weber (2004) faz das
relações sociais estabelecidas entre indivíduos no sentido de construir uma ação
consensual. Enquanto na comunidade a orientação da ação está baseada em um
sentido de solidariedade, de qualquer espécie de ligação emocional ou afetiva dos
19
Neste sentido, Maffesoli (1987) fala que a sociedade atualmente estaria marcada pelo surgimento
de “comunidades emocionais” ou “nebulosas afetivas”, nas quais a adesão seria sempre fugaz, não
existindo, por conta disso, um objetivo permanente que possa assegurar a sua continuidade. Tratar-
se-iam apenas de redes de amizade circunstanciais, que se reúnem ritualisticamente com a função
exclusiva de reafirmar o sentimento que é dado a si mesmo. Assim, a sociedade estaria
presenciando o surgimento de novas expressões sociais que tentam dar conta de uma pluralidade
de manifestações sociais como, por exemplo, manifestações religiosas, esportivas, hedonistas,
musicais, tecnológicas etc. Seu conceito trata tais manifestações como sendo um “neotribalismos”,
uma decorrência da atualidade que busca dar vazão a uma gama de manifestações sociais que
ocorrem nos centros urbanos. Ver neste sentido também, Duarte (1986) e Viana (1997) que
trabalham com diferentes tipos de manifestações no meio urbano.
20
A este respeito, ver a obra de Miranda (1995) que faz um apanhado de textos a respeito da obra
de Ferdinand Tönnies desenhando as linhas semânticas em torno dos conceitos de “comunidade” e
“sociedade”.
27
membros de um grupo homogêneo e fechado. Na sociedade, nota-se a presença de
uma pluralidade de indivíduos com interesses, muitas vezes antagônicos. Em face
disso, tem-se a necessidade da imposição de uma vontade geral a todos os
membros do grupo, não somente a favor dos interesses de uma parte, isto é, de um
grupo específico.
A dimensão que o termo comunidade assume neste trabalho, caminha no
sentido de verificar seu emprego como sinônimo de grupo coeso, mas que, ao ser
empregado em contextos de localidades periféricas, está longe de compor um
cenário de coesão como, muitas vezes, tem sido utilizado. Embora se tenha o
elemento da proximidade espacial entre os membros da localidade, onde todos
estão sujeitos a condições de vida similar, estas circunstâncias, ainda assim, não
vão significar que todos os indivíduos compartilhem dos mesmos valores, ou se
percebam com semelhantes. Pelo contrário, exatamente pela condição de
estigmatização social em que se encontram, podem instituir certas clivagens sociais
dentro deste espaço de interação social para, com isso, conseguir se afastar dos
atributos estigmatizadores da localidade.
Dentro desta linha de raciocínio Bauman (2003), mostra que a adoção de
clivagens sociais no interior de localidades consideradas externamente como
homogêneas reflete o processo de individualização que os indivíduos deste
ambiente buscam instituir. Assim, os vínculos mais comunitários seriam substituídos
por vínculos do tipo societários; tipo de grupos originados nestas localidades será
uma decorrência de interesses específicos de modo que, particularmente no
contexto das cidades, estas comunidades de interesse vão agrupar pessoas em
torno da fixação da idéia de um “nós” oposto a outro grupo apresentado como os
“outros”.
Neste sentido, Magnani (1984:137) ocupa-se com a noção de pedaço para
mostrar que a formação do grupo é constituída por um elemento de ”ordem
espacial”, mas também deve corresponder a uma determinada rede de relações
sociais tecidas neste ambiente, tais como os laços de parentesco, vizinhança e
procedência. Em vista disso, aquilo que, do ponto de vista externo, parece ser um
conjunto monolítico, na perspectiva de seus moradores é um emaranhado de
diferentes pedaços, visto que a relação entre as pessoas e o espaço de sua
localidade gera diferentes tipos de apropriação. Cada parte possui marcas sociais
28
internas que permitem o estabelecimento de relações personalizadas, que agem no
sentido de fornecer às pessoas uma identidade e uma referência grupal, uma idéia
de “nós”. Logo, não existe de imediato uma homogeneidade entre os moradores de
uma mesma área; pelo contrário, sua formação social congrega uma pluralidade de
visões e divisões no comportamento dos membros deste locus.
Neste sentido, Elias (2000) mostra como uma zona urbana da Inglaterra, na
qual os residentes apresentam condições econômicas e sociais relativamente
semelhantes, produz internamente uma diferenciação social entre seus moradores.
Nesta área, os moradores estabelecidos a três ou quatro gerações conseguem,
através de práticas de estigmatização e de dominação dos espaços existentes na
área, colocar os novos moradores em posição de inferioridade social. Com isso, os
moradores antigos instituem uma ordem social que coloca os moradores recentes
na condição de membros estigmatizados, sendo que a condição estigmatizada dos
novos moradores não decorre das qualidades individuais das pessoas, mas sim do
fato de pertencerem a um grupo coletivamente considerado diferente e inferior. O
emprego deste tipo de fala transmite a avaliação que os membros da localidade
fazem de suas respectivas posições, uma ordem hierárquica compreendida e
legitimada por todos, pois os novos moradores não conseguiam revidar o estigma.
Ao contrário disso, dão segmento ao discurso, isto é, assumem sua posição de
inferioridade dentro da estrutura social. Neste caso, o poder de colocar em posição
inferior um conjunto de pessoas é exercido de forma eficiente, pois tem legitimidade
e institui uma realidade de diferenciação.
O carisma grupal compartilhado por todos os membros do grupo antigo
formula entre eles a idéia de um “nós” com prestígio social. O fato de seus membros
estabelecerem ou não vínculos mais estreitos entre si não importa tanto, pois a
idéia desse “nós” cumpre a função primordial de expor ao conjunto as
características apontadas como distintas e diferentes das existentes no grupo
identificado como outsiders.
Assim, por exemplo, o valor de distinção atribuído a alguma família passa a
ser vista pelos demais não como um qualidade específica de certos agentes, mas
como qualidade de todos os membros do grupo. Ou seja, as características
valorizadas de seus membros servem como indicadores capazes de grifar uma
qualidade de todo o conjunto dos membros. Os novos moradores, devido à falta de
29
laços sociais semelhantes aos encontrados no grupo antigo, não conseguem
consolidar para si a idéia de grupo. Apesar de vizinhos, a condição de morador
recente impossibilitava a coesão, fazendo com que estes não conseguissem cerrar
fileiras e revidar o discurso estigmatizador que os colocava na condição de
inferioridade social. O poder exercido pelos antigos era tão presente nas práticas
diárias que os moradores estigmatizados aceitavam com certa resignação a idéia
de pertencerem a um grupo com menor respeitabilidade. E, de forma semelhante a
verificada no comportamento dos membros antigos, só que de forma inversa, as
qualidades denigritórias de alguns membros do grupo recente são irradiadas como
se estas fossem qualidades negativas de todos os membros.
Diante deste par de homologias (nós/eles), o processo de exclusão e a
estigmatização que os membros do grupo estabelecido praticava junto aos recém-
chegados funcionava como uma arma, uma barreira imaginária contra a
possibilidade de serem “infectados” pelo estigma desses. Assim, a capacidade de
certos indivíduos detentores de poder instituírem internamente uma hierarquia entre
seus membros coloca em debate visões simplistas que percebem as realidades
locais como estruturas onde a igualdade seria uma constante.
O estudo de Caldeira (2003), por sua vez, demonstra como os moradores do
bairro paulista da Moóca realizam um processo semelhante de estigmatização entre
vizinhos. Este bairro, que sempre foi reconhecido como constituído por migrantes,
principalmente por italianos, vê a chegada de nordestinos ao bairro como um
elemento nocivo à estrutura local. Os moradores já instalados não assimilaram os
recém-chegados. Pelo contrário, faziam questão de vincular a imagem dos
nordestinos com o processo de violência encontrado no bairro. Numa postura
essencialista, dividiam a história local em “antes” e “depois” da chegada dos
vizinhos, onde o “antes” era visto idealisticamente como o período da paz, da
tranqüilidade, ao passo que o “depois” seria marcado pela violência, pela
intranqüilidade, pela preocupação.
Segundo comenta Caldeira (2003), os moradores antigos sentiam que existia
uma diferenciação social no bairro que precisava ser mantida. Entretanto,
impedidos de se distanciar fisicamente da localidade devido aos laços sociais
arraigados ao bairro ou a fatores econômicos, “Escolhem, então, os recém-
chegados, migrantes como eles, mas que vieram depois e são mais pobres, para
30
expressar os limites de sua comunidade e acentuar sua própria superioridade
social” (p.37) (grifo meu). Se produz, assim, um sistema de atitudes e crenças que
enfatiza e justifica a superioridade dos antigos moradores e rotula os demais como
sendo detentores de características inferiores.
Desta forma, observa-se que, mesmo em ambientes externamente
percebidos como ocupado por indivíduos iguais, ou seja, como uma “comunidade”,
a reprodução de formas de distinção e hierarquização presentes na sociedade mais
ampla tende a desencadear processos internos de diferenciação social entre os
seus moradores. Teríamos, assim, um palco no qual o processo de estigmatização
dos habitantes de uma localidade é apropriado por alguns grupos e, numa
estratégia de se afastar do estigma direcionam o estigma aos “outros” instituindo,
assim, uma separação entre os indivíduos. Logo, frente ao exposto, no contexto que
será analisado a seguir, o processo de construção da distinção social através da
transferência do estigma dentro de uma área assume uma importância analítica
interessante de ser verificada empiricamente, pois o gerenciamento deste estigma
com vistas a transferir para determinados indivíduos os atributos depreciativos se
mostra como uma possibilidade. Como destaca Wacquant, “Muitas vezes, o senso
de indignidade social só pode ser desviado empurrando o estigma para outro
grupo.” (WACQUANT, 2001:169). Frente a isto, nos capítulos seguintes, será
analisado de que forma se processam tais critérios de diferenciação, isto é, em que
bases a diferença está assentada e como ela opera cotidianamente no ambiente
empírico desta pesquisa: a Vila Urlândia.
31
2. A DESCOBERTA DA VILA URLÂNDIA
No capítulo anterior, apresentamos, em linhas gerais, como o processo de
urbanização das cidades brasileiras se produziu, estruturando um espaço urbano
que segmenta e hierarquiza as distintas áreas e populações. Cada área da cidade
possui visibilidade social correspondente à sua posição no interior desta estrutura
urbana. Neste segundo capítulo, nosso objetivo é relatar a metodologia de pesquisa
utilizada no trabalho, o processo de entrada em campo, o estabelecimento das
redes de informante e procedimento adotados de coleta e sistematização dos
dados.
2.1 Entrada em Campo
A Vila Urlândia é uma área de periferia, constituída por uma população
dotada de poucos recursos econômicos que, devido a fatores históricos e sociais,
possui uma visibilidade social negativa, constituindo uma área estigmatizada.
Primeiramente, os fatores que levaram a esta imagem negativa são: sua localização
geográfica, estando situada numa região relativamente afastada da cidade, para a
qual convergiram, ao longo dos anos, pessoas com baixo poder aquisitivo; e o fato
de estar marcada por relatos, que reiteradamente referem à existência de vários
episódios de violência em seu interior.
A existência destes fatores desencadeou o surgimento, entre a população de
outros bairros da cidade, de uma série de impressões moralizantes, que tiveram o
efeito de desqualificar os moradores ali inseridos. Embora os motivos alegados para
estigmatizar a vila possuam algum fundamento objetivo, esta representação
negativa decorre de estereótipos e preconceitos construídos em torno daquilo que
se acredita ser a vida dentro da vila.
Durante os primeiros contatos da fase exploratória da pesquisa, nas
conversas com alguns moradores, percebi que os habitantes da localidade sentem-
se injustiçados e incomodados com o estigma de a Vila Urlândia ser considerada
32
violenta
21
. Contudo, ao invés de adotarem uma fala de enfrentamento do discurso
exterior, forjando uma união dos moradores contra o estigma social com o qual são
percebidos, o que chegava a meus ouvidos, ao invés disso, era a produção de um
discurso que redirecionava o estigma para determinadas áreas da vila. Alguns
moradores, na tentativa de se afastarem deste estigma social, justificavam o
estigma como um atributo de “certas pessoas” da localidade. De modo deliberado,
certas diferenças internas entre os habitantes serviam para a produção de um
campo de disputa, marcado por diversas estratégias que tinham a finalidade de
distinguir indivíduos e espaços da vila em grupos distintos.
Para verificar empiricamente como era processada esta distinção social
dentro da localidade e em que bases estaria assentada, concentrei a investigação
entre os habitantes que adotavam ações visando uma separação dentro da vila,
estendendo a observação aos locais de encontro dos indivíduos que moram na
localidade. No entanto, ainda sim, foram desenvolvidas entrevistas e observações
entre os demais moradores, para observar se adotavam para si uma postura de
resignação ou de combate ao discurso de diferenciação social entre vizinhos. Desta
forma, defini uma perspectiva de análise voltada ao entendimento da lógica interna
existente na localidade de produção da diferença através de práticas de
transferência do estigma territorial (Wacquant: 2001). Frente a isso, as seguintes
hipóteses provisórias nortearam a pesquisa:
a) Os grupos de indivíduos que compõem as camadas pobres, percebidos
socialmente como indivíduos desvalorizados e inferiores, desenvolvem diferentes
formas de responder ao discurso produzido externamente. Em particular, criam, de
maneira similar à sociedade mais ampla, hierarquias sociais dentro de seu grupo;
b) Os moradores que possuem condições econômicas mais favoráveis,
acionam uma série de estratégias para se afastar simbolicamente de seus vizinhos,
realizando a transferência de seu estigma;
21
Embora a noção de violência possa encontrar diferentes sentidos, na perspectiva deste trabalho,
seu significado possui duas dimensões: i)dimensão prática: vinculada a questões que dão conta dos
roubos, arrombamento de casas entre outras atividades de subtração de bem alheio ii) dimensão
simbólica: toda prática de violência suave e muitas vezes invisível que os agentes inseridos em
ambientes considerados desvalorizados são vitimas.
33
c) A transferência do estigma está centrada em dois atributos sociais: os
“objetivos” relacionados as condições diferenciais da disposição da infra-estrutura
local e, em segundo lugar, por juízos moralizadores que diferenciam os moradores
da vila.
2.2 A importância das redes de confiança
Esta pesquisa foi desenvolvida em dois períodos: nos meses de abril a junho
de 2005; e agosto a novembro de 2005. Com o objetivo de dar conta das questões
analíticas sobre o processo de construção da diferenciação dentro da vila, fiz uso de
duas técnicas qualitativas de investigação: a observação participante e a aplicação
de entrevistas. Além disso, utilizei fontes estatísticas fornecidas pelo IBGE sobre a
localidade para obter dados referentes ao contexto social no qual os moradores da
Vila Urlândia estão inseridos. Outra fonte de informações foram as imagens
fotográficas produzidas por mim durante o trabalho de campo.
Para entrada em campo, me inseri em três redes de relações, na tentativa de
conseguir, desse modo, abranger uma maior pluralidade de discursos sobre a
localidade: 1ª) via de representação local legitimada: Associação de Moradores da
Vila Urlândia; 2º) Membros das Agentes Comunitárias de Saúde que atendem os
moradores da vila; 3º) Dona Marta, moradora há aproximadamente 6 anos na vila,
uma informante-chave.
Dos diferentes tipos de redes acionadas durante o trabalho de campo,
centrei-me nas duas últimas, pois embora o presidente da Associação de
Moradores da Vila Urlândia tenha se mostrado bastante solícito e interessado no
desenvolvimento da pesquisa, o fato de sua atividade profissional o absorver
durante todos os dias da semana, tornou praticamente impossível que pudesse
viabilizar o acesso a outros moradores da localidade. Diante disso, restringi-me no
desenvolvimento de entrevistas com ele e sua esposa. Sobre as demais redes, a
possibilidade de acompanhar as atividades de visita domiciliar das agentes
comunitárias de saúde nas residências dos moradores permitiu estabelecer um
vínculo maior com estes, pois, na medida em que era apresentado aos moradores
por uma pessoa conhecida e respeitada, a entrada nas residências pode ser
facilitada.
34
No caso específico da rede estabelecida por meio de Dona Marta, o fato de
possuir um importante vínculo pessoal com seus vizinhos facilitou o processo de
aproximação de alguns moradores, principalmente com aqueles nos quais percebia
certa resistência à visita de estranhos. Sobre isso, cabe relatar um interessante
episódio etnográfico que ajuda a visualizar um pouco das dificuldades existentes
para entrada em campo. Ainda quando estava desenvolvendo os primeiros contatos
com os moradores e não havia sido apresentado a Dona Marta, dirigi-me a uma
casa onde um senhor, sentado na frente de seu pátio (protegido por uma cerca de
metal que separava o pátio da calçada), tomava chimarrão. Apresentei-me e
informei o objeto da pesquisa que começava a desenvolver. Com olhar de
desconfiança fui prontamente repelido com dizeres de não estar interessado. Meses
após o ocorrido, retornei a mesma casa a convite de Dona Marta. Lá estava o
mesmo senhor tomando chimarrão em frente de sua casa. Ao perceber nossa
aproximação, a cerca, antes fechada, foi prontamente aberta. Dentro de sua
propriedade, antes de dizermos qualquer coisa, ele já me oferecia um mate, como
se nos conhecêssemos de longa data, pois eu estava ao lado de “alguém de
confiança”. A familiaridade dele com Dona Marta foi estendida a mim. Desta
maneira, fui inserido em uma rede de interconhecimento, o que gerou uma idéia de
pertencimento ao grupo, levando a que, às vezes, tenha sido identificado como
“parente da Dona Marta”.
Percebi, com isso, que para ter acesso a alguns moradores seria preciso me
valer da confiança representada por esta informante-chave, que também me
possibilitava ser mantido a par das novidades que ocorriam na localidade: quem
mora a quanto tempo, quem brigou com quem, quem teve a casa invadida, enfim,
um conjunto de informações que me deixavam atualizado sobre o cotidiano da
localidade. A confiança despertada por esta rede possibilitou situações nas quais
parte dos moradores me colocou numa posição de proximidade tal, que sobre mim
recaiam certas expectativas. Fiquei sabendo disso ao ouvir o relato de Dona Marta
sobre um episódio ocorrido numa ocasião em que estivera conversando com sua
vizinha de pátio - que entrevistei posteriormente - sobre vários assuntos. Em
determinado momento da fala, a vizinha conta à Marta sobre a dificuldade que sua
filha estava enfrentando para encontrar material sobre história necessário à
disciplina da faculdade da filha. Ao ouvir isso, Dona Marta lembrou que, se ela
35
precisasse, poderia recorrer a mim para ajudar, afinal eu era “alguém de confiança,
que entende das coisas”. No fim, não foi preciso ajudar. Mas, ouvindo tal
depoimento, percebi que as pessoas, ao estabelecerem vínculos comigo, quando
necessitassem de auxilio viriam solicitar minha ajuda. Ter conhecimento deste fato
auxiliou, posteriormente, em diversos momentos, quando nossas conversas
tocavam em assuntos considerados tabu na localidade, tais como a violência no
bairro ou a sensação de insegurança relatada pela ampla maioria dos moradores da
vila.
22
Em diferentes ocasiões, a aura de confiança representada por Dona Marta
aparecia em frases do tipo: “ah, você é o rapaz amigo da Marta! Pode entrar”. Ao
me deparar com isso, era como estivesse ouvindo as palavras de Doc, informante-
chave de Willian Foot-Whyte: “Lembre-se apenas de que você é meu amigo. Isso é
tudo que precisam saber. Conheço esses lugares, e se eu disser que é meu amigo
ninguém vai incomodá-lo” (WHYTE, 2005:294). Afinal, boa parte dos moradores não
estava interessado no tipo de resposta ou justificativa que eu expusesse para
explicar a minha presença na vila. O que assumia importância era a forma como eu
cheguei a eles, quem havia me indicado. Dependendo da resposta que fornecesse,
seria considerado “alguém de confiança”.
Em poucos dias de visitação, consegui transitar pelos diferentes espaços da
vila. Contudo, a estratégia de acompanhar as agentes de saúde em suas visitas
domiciliares ocorreu apenas durante as fases iniciais de campo. Quando consegui
estabelecer uma rede própria de informantes, as novas incursões a campo foram
realizadas sem acompanhamento.
A observação participante foi empregada nos espaços de sociabilidade que
propiciavam um maior contato entre os deferentes moradores da vila. Dessa forma,
privilegiei a observação dos espaços públicos das ruas, nas atividades de pesagem
realizadas pelas voluntárias da Pastoral da Criança e no Posto de Saúde da vila.
Para captar as concepções de diferenciação social existentes, utilizei também os
recursos de entrevistas gravadas. Meu corpus de pesquisa (Bauer, Aarts 2003)
constitui-se de 14 entrevistas, num total de 22 horas de gravação. O critério
amostral foi a saturação, tendo como referência as hipóteses da pesquisa.
22
Sobre este ponto específico do capítulo III, seção 3.5.
36
2.3 Coleta e analise dos dados
A maioria das entrevistas foi gravada mediante agendamento prévio, sendo
que todas ocorrem na casa dos entrevistados. A seleção das pessoas visitadas
deu-se entre aquelas que estavam disponíveis e receptivas, uma vez que as visitas
a campo ocorreram, na maior parte do tempo, durante os dias de semana. Das 14
entrevistas, quatro foram realizadas na presença dos maridos/esposas. O
encadeamento das perguntas respeitou um roteiro de tópicos condizente com as
hipóteses teóricas. Durante a conversa, caso percebia certo desconforto por parte
do entrevistado em comentar algum tema especifico na presença do gravador,
oferecia a possibilidade de interromper a gravação. A adoção desse procedimento
se mostrou necessária em três casos, quando a conversa estava se encaminhando
ao tema da violência existente na vila
23
. Embora tenha abdicado do registro da fala
do entrevistado nestes casos, tenho a convicção que os ganhos decorrentes
superam possíveis perdas, pois dificilmente este tema teria sido abordado da
mesma forma caso o gravador permanecesse ligado. Ao final do processo de
escuta, o caderno de anotações desempenhou o papel de registrar os pontos
desenvolvidos durante a conversa. Cabe ressaltar ainda que os nomes dos
entrevistados foram alterados para evitar sua identificação. Em seu lugar, nomes
fictícios foram criados. Para facilitar a compreensão das informações de cada
entrevistado, ao final deste capítulo, é apresentado um quadro com algumas
características gerais destes moradores.
A fase de análise das entrevistas foi realizada paralelamente ao
desenvolvimento do trabalho de campo. Este procedimento teve como motivo
principal a percepção de que alguns dos elementos que, na fase exploratória da
pesquisa, eu julgava pertinentes ser levantado nas entrevistas não se mostraram
muito relevantes, ao passo que outros tantos, que não havia sido cogitados
previamente, ganhavam densidade. Isso exigiu que certos acertos e
redirecionamentos fossem incorporados ao instrumento de pesquisa de modo a
adaptá-lo ao estudo.
23
Entender os medos que conformam o grupo, assim como estratégias de proteção, revelou-se uma
chave fundamental para o acesso ao universo pesquisado. A discussão acerca deste ponto está
presente no capítulo 3.
37
Vários elementos envolvidos no trabalho de campo e na realização das
entrevistas certamente influíram nos dados que foram apreendidos. No caso da
pesquisa na Vila Urlândia, talvez as principais interferências estejam relacionadas à
forma como a aproximação com o grupo se processou. O acesso via agentes de
saúde, involuntariamente, produziu certa visibilidade social que me vinculou,
durante certo tempo, ao Posto de Saúde, visto que, como ouvi em algumas
ocasiões, seria mais um “universitário que sempre aparece por aqui”. Para fugir
deste tipo de enquadramento, nas visitas subseqüentes, procurei demarcar um
lugar de pesquisador. Desta forma, ao perceberem que nossa conversa não estava
direcionada somente a assuntos ligados à temática da saúde, a vinculação ao Posto
de Saúde se dissipou e novos enquadramentos apareceram
24
.
Ao longo do trabalho de campo, identifiquei as diferentes formas utilizadas
pelos moradores da vila para localizar-me nos seus quadros de referência.
Inicialmente, conforme indicado acima, a marca do estranhamento se evidenciou no
seguinte enquadramento: estudante universitário. Em virtude dos primeiros vínculos
terem sido estabelecidos através das Agentes Comunitárias de Saúde, alguns
moradores supuseram que eu estava fazendo algum estágio no Posto de Saúde.
Seguidamente, era solicitado a dar esclarecimentos sobre o funcionamento do
Posto, como, por exemplo, se haveria atendimento do dentista naquela semana.
Ou, ainda, faziam relatos do caso de amigos ou parentes que estavam internados
no Hospital Universitário e queriam saber quando seria a liberação – sua “alta” – do
hospital. Rapidamente, no entanto, começaram a perceber que minha formação não
era na área da saúde, pois minha postura e, especialmente, minhas perguntas não
condiziam com as expectativas que tinham sobre um universitário desta área.
Delineou-se, assim, uma outra classificação que me afastou do Posto de Saúde e
me identificou com as profissões de jornalista e historiador. Assim, virei o estudante
que está escrevendo um livro sobre a Urlândia.
Neste segundo enquadramento, viam a possibilidade de “alguém ouvir
nossos problemas”, que se interessava pelas “dificuldades e deficiências da vila”.
24
No contexto de Santa Maria, a Universidade Federal historicamente vem desenvolvendo um papel
de intervenção social nas vilas do município, através de vários projetos, principalmente na área da
saúde. Deste modo, existe uma familiaridade com a presença de estudantes circulando nas ruas das
vilas desempenhando uma função de intervenção social nestas localidades.
38
Contavam sobre a falta de saneamento básico, o problema do desemprego que
assolava boa parte dos moradores, o descaso da prefeitura em solucionar os
problemas das ruas, a falta de iluminação, a carência de escola de ensino médio.
Ou seja, expressavam um conjunto de reivindicações que acreditavam que eu
poderia encaminhar junto à prefeitura municipal de Santa Maria. Em determinado
momento, quando perceberam que minha intenção não seria buscar soluções aos
problemas da vila, o grau de envolvimento caminhou em outro sentido. Os
moradores passaram a fazer perguntas, são reveladas informações, “achados” são
compartilhados, ou seja, começo a fazer parte do cotidiano da vila, de maneira que
as entrevistas sempre eram seguidas de algum tipo de refeição (almoço ou lanche).
Constitui-se, neste momento, uma relação em que recorriam a frases que
buscavam saber como a pesquisa estava andando, sendo também ofertado
conselhos das senhoras de mais idade “para que não estudasse muito, pois ficaria
cansado”. Assim, de pesquisador passei à categoria de um morador de Santa Maria
que está estudando na capital.
Por fim, quando foram reveladas informações da vila onde morei, a interação
com os membros da localidade alcança um novo estágio. Em face desse conjunto
de fatores objetivos e subjetivos, passei a ser percebido como o rapaz que morava
na Vila Campestre e estuda a Vila Urlândia. Essa informação, por sua vez, se
converteu num capital simbólico capaz de mediar muitas de nossas relações, visto
que, de maneira geral, apareceram sentimentos de que compartilhávamos um
mesmo cenário de carências e, por isso, teríamos experiências semelhantes. Tal
identificação se expressa nas seguintes falas de entrevistados: “tu sabe como é
viver em vila” ou “quem não mora na vila não sabe do que a gente ta falando, né”.
Por mais que não existisse uma real compreensão espacial de onde estava
localizado o local onde residia atualmente (Porto Alegre), havia uma noção de
distanciamento, que se apresenta em afirmações como: “é longe heim“, “e tu vem
todos os dias de lá?”. Isso impressionava os moradores, além de colocar um caráter
de valorização: era sinal de que o seu local de moradia era importante e merecia
ser estudado, afinal “tu vem lá de longe para falar com a gente”. Além destes
fatores, recaia sobre mim um conjunto de expectativas e esperança das pessoas,
que visualizavam no ensino superior um instrumento de “melhora de vida”, um
caminho para “ser alguém”.
39
Como se vê nos fatos apresentados, o grupo desenvolveu um jogo de
reconhecimento com diferentes sentidos. Embora os estágios não tenham seguido
uma ordem linear de sucessão, é possível afirmar que cada etapa demarcou um
determinado grau de afastamento-aproximação em relação aos moradores da
localidade. Assim, minha aceitação na localidade vinculou-se muito mais ao tipo de
relações que estabeleci, nas quais uma identidade me era atribuída pelos
moradores, do que a qualquer explicação que pude ter elaborado ou discurso
empregado para explicar minha presença na Vila Urlândia.
40
Características dos moradores entrevistados da Vila Urlândia
Sub-
área
Idade Ocupação Escolaridade
Tempo de
Moradia
Filhos em
Idade
Escolar
43
anos
Aposentado e
proprietário de
estabelecimento
comercial
Ensino Superior
Incompleto
Paulo
e
Rosa
ALTA
43
anos
Professora
Ensino Superior
Completo
43 anos 1
MARIA BAIXA
39
anos
Agente de Saúde
1º Grau
Incompleto
19 anos 0
CARLOS BAIXA
25
anos
Funcionário da
prefeitura (cargo
de confiança)
2º Grau Completo 25 anos 1
ANTONIA ALTA
52
anos
Aposentada 2º Grau Completo 38 anos 0
ENEIDA ALTA
60
anos
Do lar 2º Grau Completo 10 anos 0
MARILENE ALTA
35
anos
Do lar 2º Grau Completo 6 anos 1
SILVIA ALTA
55
anos
Do lar 1º Grau Completo 55 anos 0
60
anos
Aposentada 2º Grau Completo
MARTA
E
PAULO
ALTA
65
anos
Aposentado
1º Grau
Incompleto
52 anos 0
VALDENEI ALTA
26
anos
Proprietário de
Sala de beleza
2º Grau
Completo0
36 anos 0
CHICA ALTA
33
anos
Cabeleireira 2º Grau Completo 36 anos 0
MAURO ALTA
55
anjos
Aposentado 2º Grau Completo 8 anos 0
VALTÉRCIO ALTA
76
Aposentado 1º Grau Completo 39 anos 0
41
anos
55
ANOS
VIAGANTE
1º Grau
Incompleto
ARLINDO
E
CLARISSA
ALTA
50
ANOS
DO LAR
1º Grau
Incompleto
35 anos 1
75
ANOS
APOSENTADO
1º Grau
incompleto
JOSÉ
E
JOANA
ALTA
64
ANOS
APOSENTADA
1º Grau
incompleto
46 ANOS 0
42
3. O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA VILA URLÂNDIA: MARCOS
HISTÓRICO
O objetivo neste terceiro capítulo é apresentar alguns fatos históricos
importantes para formação da cidade de Santa Maria. Num segundo momento, é
relatado o movimento de origem da formação da Vila Urlândia e sua organização
interna em duas sub-áreas. Ao final são apresentadas às razões que ancoram o
estigma existente na localidade e como os processos de arrombamentos das casas
pode ser reconhecido como uma estratégia de combate executada pelo grupo de
jovens contra o processo de diferenciação social que os moradores “distintos”
tentam instituir no interior da vila.
3.1 O processo de Desenvolvimento e Urbanização do município de Santa
Maria
O município de Santa Maria está localizado na região central do Estado do
Rio Grande do Sul. Por sua importância estratégica foi uma área de disputa entre a
coroa portuguesa e espanhola por todo século XVIII. Somente no ano de 1777, os
confrontos bélicos começam a arrefecer, a partir da assinatura do Tratado de Santo
Ildefonso. No início do século seguinte, o povoado de Santa Maria começou a
receber o incremento populacional de açorianos e paulistas. Pouco a pouco, o
rancho do acampamento militar da coroa portuguesa instalado ali começa a receber
construções mais sólidas, de modo que no ano de 1819 o povoado passaria a
compor o distrito de Vila Nova de São João da Cachoeira. A categoria de cidade só
foi conseguida no ano de 1858, conferindo-lhe o nome de Santa Maria da Boca do
Monte.
25
Os numerosos confrontos bélicos travados com os “orientais”, entre os anos
de 1826 a 1831, acabam transformando a região no centro de atividades militares,
enquanto seu comércio, embora incipiente, movimenta a economia regional,
atraindo uma população que se instala de modo lento. Sua importância militar para
25
De acordo com Rechia (1985) o acampamento militar que deu origem a localidade foi instalado
nas proximidades da “Boca” do Monte Grande que seria um apelido dado pelos espanhóis à região
por ficar na entrada da Serra Geral da cidade de São Martinho.
43
o Brasil sempre foi fundamental, visto que sua posição no centro do Estado do Rio
Grande do Sul permite o rápido deslocamento das forças armadas em caso de
conflito com os países que fazem fronteira com o estado. Ainda hoje, o município é
dotado de 18 guarnições do Exército e uma Base Aérea, constituindo, assim, a
segunda maior concentração de tropas do país, só inferior ao contingente da cidade
do Rio de Janeiro.
Além disso, durante os anos de 1885 a 1960, o município de Santa Maria se
notabilizou como sendo um importante entroncamento ferroviário, ligando as
cidades de Uruguaiana e São Paulo. Devido à forte presença ferroviária, o
município formou uma identidade social vinculava aos trens, pois a malha ferroviária
instalada no município foi responsável por grande parte do crescimento da cidade e
auxiliou a fixar as características de economia, baseada predominantemente no
comércio de bens e serviços
26
.
A composição econômico-social de Santa Maria, até o início da década de
1960, não sofreu alterações significativas, permanecendo com um comércio de tipo
varejista e de prestação de serviços. Sua população era composta, em sua maioria,
por funcionários da viação férrea, militares que serviam nas guarnições das duas
forças armadas e por empregados do comércio de serviços do local. Mas, na
segunda metade da década de 1960, o município de Santa Maria entra num novo
ciclo de desenvolvimento, através da instalação da primeira universidade federal
fora das capitais.
A instalação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) representou o
elemento motriz que engendrou nova dinâmica neste município gaúcho, do ponto
de vista econômico e social.
27
Em grande medida, a instalação de um núcleo
educacional de ensino superior pela primeira vez numa cidade do interior do país
atraiu um contingente de novos moradores: estudantes em busca de formação
acadêmica, funcionários e professores da instituição, além de um afluxo crescente
de indivíduos das cidades circunvizinhas e de áreas mais distantes, que acaba se
26
Para um apanhado histórico do processo de formação do município ver Belém (1989), Beltrão
(1979), Rechia (1985) e Rio Grande do Sul (2002).
27
Embora desde 1955, a cidade de Santa Maria já dispunha da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras (FIC) com os cursos de Pedagogia e Letras Anglo-Germânicas e posteriormente, em 1957,
com a criação da Escola Superior de Enfermagem Nossa Senhora Medianeira (Facen), a instituição
de ensino que iria desencadear uma alteração mais profunda do ponto de vista de seu
desenvolvimento urbano seria representado com a instalação da UFSM.
44
instalando na periferia da cidade na busca de empregos que a instituição de ensino
gerou direta e indiretamente.
Dentro disso, a atividade vinculada ao ramo de indústria de construção civil
se notabilizou como atividade que absorveu parte da mão-de-obra deste fluxo de
indivíduos, uma vez que necessitava de trabalhadores na construção dos prédios
destinados à instituição e novas moradias e serviços.
A disposição urbana da cidade acompanhou cada uma de suas fases de
desenvolvimento. Num primeiro momento, o comércio se organizou no núcleo
central existente próximo ao acampamento militar. Com a vinda da rede ferroviária,
vários hotéis e pousadas foram construídos ao redor da estação férrea,
consolidando o centro como local destinado ao comércio e à hospedagem dos
passageiros dos trens, sendo que nas ruas adjacentes ao comércio local residia a
população santa-mariense. Contudo, somente com a vinda da UFSM ocorreu um
salto na dispersão populacional no município, pois até aquele momento a cidade
era marcada como cidade de passagem, de trânsito de pessoas que desejam sair
de alguma cidade do Rio Grande do Sul em direção ao resto do país. Como o
núcleo antigo não comportava novos habitantes, foi necessário que os limites da
área urbana fossem estendidos em direção a outras regiões. Assim, nos arredores
da instituição federal de ensino, formou-se um bairro que absorveu parte da
população com maior número de recursos financeiros. Outra parte desta população
ocupou núcleos habitacionais próximos ao centro. Enquanto isso, nas porções de
terra localizadas em áreas mais distantes do núcleo central, particularmente em
antigas fazendas situadas próximos aos campos de instrução do Exército, teve
inicio outro processo de formação de núcleos habitacionais, estes destinados à
população com baixo poder aquisitivo. Conforme assinalado no mapa do
município
28
, os núcleos habitacionais destinados à população de baixa renda estão
localizados em áreas mais afastadas tanto do núcleo central da cidade, como
também da UFSM.
28
A conformação geográfica do município de Santa Maria é de uma depressão central cercada por
elevações de terra (morros). Embora isto possa sugerir que a população com menor poder aquisitivo
vá se localizar nestas regiões, o que se verifica é uma concentração nas áreas planas localizadas
nas regiões mais afastadas do centro.
45
Figura 1: Mapa da Cidade de Santa Maria
46
3.1.1 As periferias de Santa Maria
Como mencionam as obras de Castells (2000) e Lojkine (1981), a cidade
corresponde a um quadro no qual a estrutura hierárquica da sociedade capitalista
se expressa, discriminando as áreas. A lógica capitalista transforma o solo numa
mercadoria, uma propriedade privada que, dependendo do local onde esteja situado
dentro do espaço da cidade, será mais ou menos valorizado pela especulação
imobiliária. Nesse caso, os habitantes com poucos recursos econômicos acabam
ocupando as áreas mais afastadas da cidade, vão ocupar as vilas.
29
No caso da cidade de Santa Maria o processo acentuado de aumento
populacional verificado no município, dotada nos dias atuais de uma composição de
243 mil habitantes, distribuídos por 24 bairros urbanos, vai apresentar uma
conformação espacial de discriminação das áreas no seu interior.
Tabela 1
Taxa de crescimento da população - Santa Maria
População residente
Situação
1970 1980 1991 2000
Urbana 124.716 154.528 196.342 230.696
Rural 31.893 27.043 21.250 12.915
Total 156.609 181.571 217.592 243.611
Fonte: IBGE -Banco de Dados Agregados – SIDRA
Entre as 96 vilas existentes na cidade de Santa Maria, segundo dados da
Secretaria de Planejamento do Município, a Vila Urlândia é um loteamento irregular
situado administrativamente no Bairro Urlândia, bairro este que dispõe de outras
cinco vilas, dentre as quais, a Vila Urlândia é a mais antiga. Quando o poder
municipal dividiu administrativamente a cidade em bairros, nos anos de 1981,
buscou manter as denominações que já estavam estabelecidas socialmente
30
.
29
A noção que caracteriza uma “vila” enfrenta a mesma dificuldade de definição do termo favela. O
sentido empregado na realidade estudada, para além de uma conceituação do ponto de vista do
planejamento urbano que a define como sendo uma região sub-normal marcada pela falta de
urbanização ou fruto de um loteamento irregular, ganha expressão em dois pontos primordiais: uma
localidade da cidade considerada inferior dá qual as pessoas buscam um afastamento e, um local
onde estão impregnadas visões que dão conta da existência de práticas sociais cotidianas distintas e
destoantes do restante da sociedade.
30
Como ficou fixado no relatório do projeto de lei que regulamentou os bairros da cidade: “Alguns
bairros conservarão os nomes que popularmente são conhecidos o que entendemos ser de justiça
47
Assim, o nome da vila foi convertido também em nome de bairro, isto é, atualmente
a região do Bairro Urlândia possui em seu interior uma localidade denominada Vila
Urlândia. Para os fins desta pesquisa, estarei trabalhando apenas com a população
residente na Vila Urlândia
31
.
Embora não se possa precisar a quantidade de pessoas que habitam a Vila
Urlândia, pauto-me nos dados produzidos pelas agentes de saúde que atendem a
localidade. Segundo seu levantamento, em virtude do processo de implantação do
Programa de Saúde da Família na região, no ano de 2004, a área compreende
aproximadamente 6.500 habitantes. Esta estimativa foi confirmada pela direção da
Associação de Moradores da Vila Urlândia. Deste modo, esta informação foi tomada
como parâmetro para a compreensão do contingente populacional existente na
localidade, o que confirmaria a informação que dá conta do fato da vila ser a maior
dentre todas as vilas do bairro, seja em número de habitantes seja em extensão
geográfica, como se verifica no próximo mapa.
Os dados fornecidos pelo IBGE apresenta o número total de habitantes do
Bairro Urlândia, em torno de 9 mil. Destes a Vila Urlândia corresponde a
aproximadamente 6.500 habitantes do bairro, o que corresponde a mais de 65 % da
população do bairro. Deste modo, os dados apresentados nas tabelas e gráficos
abaixo, dizem respeito não somente a população da Vila Urlândia, mas também, as
demais vilas que compõem o bairro. Estes índices podem ser generalizados para
ilustrar o segmento social desta camada popular do município de Santa Maria por
duas razões primordiais: devido ao peso que a Vila Urlândia representa dentro da
estrutura do bairro e, em segundo lugar, devido ao fato das demais vilas apresentar
uma composição social similar a encontrada na vila estudada.
Os dados apresentados nos gráficos 1 e 2 estão organizados de acordo com
a categoria de análise formulada pelo IBGE – Domicílios particular permanente –,
que analisa os dados segundo as unidades residências e não cada habitante como
um indicador isolado. Com isso, as variáveis de análise se reportam ao número de
pois assim os nomes terão seus nomes homologados, com as suas delimitações, para melhor
conhecimento da população de nossa cidade” (Relatório do Projeto de Lei 2939).
31
No ano de 2005 tramitou na Câmara de Vereadores um projeto de lei do Executivo dispondo sobre
o plano de zoneamento urbano da cidade. Através deste, certas vilas da cidade seriam alçadas a
categoria de Bairro para facilitar o ordenamento da cidade. Desse modo, no tocante ao Bairro
Urlândia, seus limites geográficos sofreriam um redimensionamento, o bairro seria desmembrado em
outros três, com isso a localidade da Vila Urlândia passaria a categoria de bairro. Contudo, até o
momento, o projeto não foi aprovado na Câmara de Vereadores do Município.
48
indivíduos distribuídos pelas residências da localidade conforme as informações
dispostas na tabela abaixo.
Figura 2: Mapa da Vila
Tabela 2
Número de Habitantes do Bairro Urlândia segundo unidade familiar
Categoria Total
Número de habitantes 9.969
Domicílio particular permanente 2.678
Média de habitantes por domicílio 3,59
Fonte: IBGE -Banco de Dados Agregados – SIDRA
Como vemos, segundo o Banco de Dados Agregados referentes ao Bairro
Urlândia, presente nos gráficos abaixo, existe uma concentração de mais de 68%
49
da população no recorte da variável “ano de estudo” entre 4 e 8 anos, isto é,
constituem uma camada da população que concluiu ou ainda vai concluiu o ensino
fundamental enquanto que, aproximadamente 10% já terminou ou esta terminando
o ensino médio.
Gráfico - 1
Anos de estudo da pessoa responsável pela unidade
residencial (2.765)
11,57%
36,56%
32,83 %
2,6 %
2,39 %
10,2%
3,76 %
0 10203040
Sem instrução e menos de 1 ano
4 anos/ 1º a 4 série
5 a 8 anos/ 5º a 8 série
9 anos de estudo/ 1º ano do ensino médio
10 anos/ 2º ano do ensino médio
11 anos/ 3º ano do ensino médio
12 anos ou mais/ Ensino superior
Fonte: IBGE -Banco de Dados Agregados – SIDRA
Gráfico - 2
Classe de rendimento nominal mensal da pessoa responsável
pela unidade residencial (2.765)
21,55%
23,46%
15,7%
17,83%
12,66%
1,81%
0,98%
0,29%
0,33%
5,39%
0 5 10 15 20 25
Menos de 1 SM
1 a 2 SM
2 a 3 SM
3 a 5 SM
5 a 10 SM
10 a 15 SM
15 a 20 SM
20 a 30 SM
Mais de 30 SM
Sem rendimento
Fonte: IBGE -Banco de Dados Agregados – SIDRA
Neste bairro de periferia urbana da cidade de Santa Maria, conforme os
dados “objetivos” apresentados acima, a ampla maioria da população possui renda
e escolaridade baixas. Contudo, somente a observância destas informações não
50
explica as razões pelas quais seus moradores são estigmatizados pelo conjunto da
sociedade santa-mariense. Os dados apenas apontam, assim como referencia Sarti
(1996), o tipo de relações de dominação que vai estruturar as relações do meio
urbano e fazer com que algumas pessoas sejam incorporadas na sociedade mais
amplas dentro da categoria pobre. Porém, ao adotarmos estas medidas fixas,
incorremos no risco de recair numa lógica que estrutura a realidade como falta ou
carência de certos bens materiais cultuados segundo a ótica da cultura dominante.
32
As “camadas populares urbanas” quando analisadas de forma relacional, isto é, em
oposição às manifestações consagradas de outros grupos, delimitam fronteiras e
instituem algumas distinções sociais
33
. Em face disso, o sentido do “popular”
empregado no estudo da Vila Urlândia busca ressaltar certas particularidades do
lugar, apresentando seus moradores como indivíduos que constroem determinadas
narrativas e fornecem certas categorias de entendimento do mundo. Deste modo, a
partir deste quadro que posiciona os moradores da Vila Urlândia como pertencentes
as camadas populares, é possivel o entendimento do tipo de relações que seus
moradores desenvolvem internamente no sentido de um grupo buscar um
afastamento do estigma social que sua condição de residentes da vila origina.
3.2 A formação do loteamento Vila Urlândia
A Vila Urlândia teve suas primeiras ocupações por volta da década de 1960,
quando o então proprietário do terreno, senhor Luiz Lothario Uhr, dá início ao
processo de desmembramento em lotes de sua antiga fazenda. Sob a
responsabilidade da Urbanizadora Seibel, inicia-se o processo de comercialização
dos terrenos. A responsabilidade da empresa loteadora era realizar o arruamento e
calçamento das vias dentro da área loteada. Contudo, no que tange à legislação
municipal que regulamenta a formação dos loteamentos particulares, a Secretaria
de Obras e Serviços da prefeitura de Santa Maria indica apenas a existência de um
32
A este respeito ver Zaluar (1985: 41-50); Boff (1998:45-50); Fonseca (2000); Machado (2003:15-
18).
33
Como ilustra Velho (2002:21) acerca da realidade carioca: “Uma vez dentro da grande metrópole,
vamos encontrar diferentes graus de participação nestes ‘bens urbanos’. Ora, um dos problemas
para o investigador, especialmente para o antropólogo, é buscar definir que padrões são esses,
como são definidos e quais são os símbolos que indicam esta participação maior ou menor. Desta
problemática estarão participando não só as pessoas que chegam à grande cidade como seus
próprios naturais e o fato primordial é a desigualdade no acesso a estes bens”. (grifo meu).
51
documento de registro do Loteamento Vila Urlândia, datado de 1977, referente ao
plano de zoneamento da área indicada como obra em processo de execução.
A não realização do devido parcelamento do solo irá caracterizar a
localidade como sendo uma área de ocupação do tipo irregular, similar a outros
tantos loteamentos irregulares existentes no município de Santa Maria. Esta
modalidade de ocupação retrata parte de um processo de expansão periférico, que
permitiu a obtenção da casa própria para famílias pobres e com baixo rendimento. A
combinação entre a existência de brechas jurídicas na legislação municipal e uma
atuação pouco eficiente dos órgãos de fiscalização possibilitou, assim, a formação
de muitos loteamentos clandestinos e sem infra-estrutura mínima adequada para
habitação, cujos lotes, exatamente por estas precariedades, eram baratos o
suficiente para serem adquiridos por aquelas famílias.
No que tange especificamente à Vila Urlândia, a falta de uma documentação
legal que atestasse a condição da localidade como área legal fez com que os
moradores que adquiriram lotes, para legalizar sua condição no Registro de
Imóveis, precisassem recorrer ao expediente do Usucapião. Tal situação se
expressa no seguinte relato de um morador:
comprei, paguei a vista não recebi a escritura e pensava que, no meu modesto
conhecimento, que uma vez que tu compra tu recebe a escritura, falei vamos lá que
vamos passar no escritório para passar o recibo de plena e geral quitação desse
terreno(...) Paguei e foram dar escritura só com o usucapião(...) O dinheiro que dei
não valeu nada para comprar a vista. Ai recebi o usucapião do juiz depois de quatro
anos. (Valtercio, morador há 39 anos na parte alta da Vila)
A venda em longo prazo, através de prestações fixas, viabilizou que um
contingente de famílias viesse a se instalar na localidade ao longo dos sucessivos
anos. Como a área está posicionada num declive (sentido centro-vila), a distribuição
das residências, de uma maneira geral, acompanhou a conformação geográfica
existente. A comercialização dos lotes se concentrou na parte superior, enquanto
que uma extensão de terra existente na parte mais baixa da localidade, que fazia
divisa natural com um curso de água, permaneceu inalterada.
No ano de 1975, duas olarias se instalam ao lado da Vila Urlândia, gerando
modificações importantes na região. Para conseguir o barro necessário para
produção do tijolo (matéria prima de seu produto), constroem um sistema de
52
represamento das águas do córrego. Em decorrência disso, a água represada pela
barragem vai formar um lago artificial. Como o volume de chuvas que assola a
região nos meses de inverno é muito intenso e como a água não tem para onde
escoar, periodicamente o lago artificial acaba transbordando e invadindo a parte
baixa da Vila Urlândia.
Em vista disso, o desprestigio da área aumenta. Situação que se amplia em
virtude dos herdeiros do antigo proprietário se mudarem da cidade, não dando
continuidade ao processo de venda dos terrenos. Esta condição favoreceu o
surgimento de duas situações na região: pessoas que se dizem detentoras da
procuração do proprietário dão início à comercialização dos lotes localizados na
área baixa e um grande número de famílias, de forma constante embora
individualizada, começa a ocupar irregularmente a área baixa da vila.
Os novos moradores que afluíram para a parte baixa da Vila Urlândia, desde
o início são obrigados a conviver com uma realidade em que as águas represadas
do córrego constantemente invadiam as casas. Por conta disto, os moradores
precisavam buscar refúgio na Capela Católica, localizada na parte elevada da vila,
onde permaneciam pelo tempo necessário para as águas voltarem ao nível normal.
Tal situação aparece descrita nestes dois trechos de entrevistas de moradores que
presenciaram o fato:
a fabrica de tijolos do Naidon que era no fim da Frederico Ozanan dobra a direita e
vai nas olarias, duas ou três que tem. Então tinha a olaria do Naidon que eles
represavam a água e a represa era muito alta que, onde tu vê aquela ponte que tem
na Santos, ficava um mar de água e foi muita enchentes. E como já existia muita
gente ribeirinha aqui na Vila Urlândia o prejuízo era muito grande então uma vez
fizeram, as forças políticas com o Exército, foram examinar onde era e viram que era
na taipa que represava. O Exército chegou lá e explodiu e foi embora. (Valtercio,
morado há 39 anos na parte alta da Vila).
Quando tinha alagamento o pessoal vinha para igreja, para capela e era hospedada
ali. E muitas vezes o Exército trazia alimentação para abastecer as famílias com
roupas e agasalhos. O pessoal da comunidade ajudava até baixar as águas e
poderem voltar, mas hoje graças a Deus, já há um bom tempo não tem acontecido
isso. Apesar de que falta muito saneamento básico naquela parte, digo a
canalização (Paulo, moradora há 43 anos na parte alta da Vila).
Essa situação de constante alagamento da região vai perdurar até o ano de
1982, quando o poder público municipal intervém nas olarias e exige a remoção das
represas. Com sua destruição, os alagamentos cessaram, mas na memória de
53
muitos dos moradores, tanto entre os que sofreram quanto entre os que auxiliaram
no trabalho de ajuda as vítimas, permanecem vivos os anos de dificuldade. Além
disso, o fato de a parte baixa da vila sofrer com as enchentes acabou servindo para
acentuar as diferenças entre as duas áreas. Uma das formas utilizadas para fixar
tal diferença se verifica no tratamento utilizado para descrever os moradores
residentes na área que sofria alagamento:
lá em baixo é Sapolândia. Isso ai o pessoal inventou. Dava muita enchente ali para
baixo. Antigamente colocaram essa gentarada ai para baixo e o pessoal chamava
assim. Mas isso dito por eles mesmo, se chamavam assim mesmo. Porque dava
muita enchente ali até a terceira rua (Marta, moradora há 52 anos na parte alta da
Vila).
Esta peculiar forma de estruturar a localidade acabou por gerar um campo de
disputas marcado pela desigualdade entre seus moradores. Ancorados nos critérios
de conformação geográficos e situação de ocupação do lotes, seus moradores
desenvolveram uma categorização interna que separa seus membros em dois
agrupamentos: os moradores da parte alta e os moradores da parte baixa. Tal
distinção se expressa no seguinte trecho de entrevista de uma moradora residente
na parte alta da vila,
Mas a área do seu Uhr se estendia até lá, só que nessa parte de cima geralmente os
terrenos foram comprados e legalizados enfim, todo processo legal que passou pela
prefeitura e lá em baixo (...) as pessoas foram vindo de fora e se alojando, se
colocando em terrenos baldios que tinha lá em baixo sem escritura. Ai até teve um
processo de regularização fundiária, acho que alguma coisa foi feita em termos
disso, não tenho muito conhecimento sobre isso (...) pessoas que vieram de diversas
localidades e foram se instalando lá em baixo sem aquela compra do terreno. (Rosa,
moradora há 43 anos na parte alta da vila)
Fica patente neste processo de formação e consolidação da Vila Urlândia a
existência de dois movimentos distintos na formação do loteamento, marcados por
duas dicotomias: a situação de moradia (compra X ocupação) e o tempo de moradia
(antigo X recente). Estas diferenças internas foram, ao longo dos anos, trabalhadas
por seus moradores, levando à conformação de uma diferenciação entre distintos
“tipos de moradores”.
54
Uma outra realidade econômica. Até porque aquelas pessoas que moram ali não
ocuparam, na sua grande maioria elas compraram. Então tu faz uma análise, e o
cara teve dinheiro para comprar é porque tem um bom emprego, tem uma vida
econômica estabilizada. Por conta disso o cara tem uma cultura diferente, uma
realidade diferente. Os problemas que se tem aqui nessa parte da Vila Urlândia não
se têm ali. Esses problemas de esgoto sanitários, que te falei, ali têm esgoto o
esgoto passa ali o ônibus sempre passou ali na frente, tem asfalto tem a calçada
tudo definida, tem a lâmpada é uma realidade diferente. E por conta disso, os caras
se acham diferentes, que moram mais para o centro. Não querem dizer que moram
na Vila Urlândia, há um preconceito com a parte baixa, vamos dizer assim. (Carlos,
morador há 25 anos na parte baixa da vila).
3.3 A Urlândia vista como dois pedaços
O processo de urbanização da Vila Urlândia foi marcado pela distribuição
desigual de sua infra-estrutura pelas ruas que compõem a localidade. Como já foi
dito em outras passagens, a vila está localizada em uma área particular. Desse
modo, seria de responsabilidade do loteador e não da prefeitura a execução da
urbanização da área (entre outras ações: calçamento das ruas, instalação de poste
de iluminação, esgoto pluvial e croacal, destinação de área verde na localidade,
etc.). Porém, este compromisso não foi, em nenhum de seus aspectos, cumprido.
As melhorias que advieram para localidade ao longo dos anos foram fruto da
reivindicação de seus moradores junto a prefeitura.
Na medida em que novas famílias se instalaram na localidade, o transporte
coletivo começa a trafegar pelas ruas da vila. Através desse, a população ganha
força para solicitar o calçamento das ruas pelas quais os ônibus trafegam. Mas
somente no ano de 1981, parte das reivindicações será atendida pelo então prefeito
da cidade, Osvaldo Nascimento, que instala a rede de esgoto pluvial e croacal em
parte das ruas, calça com pedra irregular três de suas ruas e asfalta uma quarta. As
demais ruas que compõem a Vila permanecem até hoje com “chão-batido”.
Embora não exista um consenso sobre os limites específicos de cada sub-
área, haja visto que as “fronteiras” são muito mais simbólicas do que territoriais, em
diversas falas percebe-se a tentativa de estabelecer determinadas ruas como
marcos desta delimitação. Tal tentativa pode ser verificada neste trecho:
tem essas ruas aqui Agostinho Escolari, Frederico Ozanan, São Carlos... é até a São
Carlos, até uma parte assim. Tem também a Valdir C da Costa, São Gabriel tem
55
partes da vila assim que a população não é tão carente economicamente, tem as
ruas calçadas e tudo mais... é o núcleo antigo. E na outra parte mais lá de baixo da
vila, bem mais baixo da vila, a população tem nível econômico mais baixo, as ruas
são, como se diz.... de chão batido, ali fica a outra parte. (Paulo, moradora há 43
anos na parte alta da vila).
Como dito, não é possível precisar exatamente onde começa e onde termina
cada pedaço, pois as fronteiras entre as áreas, antes de serem pontuadas somente
segundo preceitos geográficos, se ancoram em tipologias que instituem juízos
morais, fixam oposições que estão permeadas por valores, pois, como coloca uma
entrevistada, “Na realidade se tu fores analisar tem gente que se acha da parte alta,
mas se tu for olhar é parte baixa. Se tu for analisar em termos geográficos” (Eneida,
10 anos moradora da Vila). Em face disto, para pertencer ao pedaço não basta
morar perto ou frequentar uma determinada rua assiduamente. Deve-se estar
situado no interior de uma rede de relações que o identifiquem como morador da
área sob diversos aspectos: econômicos, de estrutura urbana, de tempo de
moradia. Além disso, para tarefa da definição de cada sub-área soma-se critérios
“subjetivos” que identificada moralmente o morador da alta como “superior” e o
morador da baixa como “inferior” dentro da hierarquia existente na Vila Urlândia.
Assim, entendo que, através do esforço de diferenciação e delimitação das
fronteiras entre moradores da alta e da baixa, identifica-se a constituição de dois
grupos de pessoas, que estão residindo em partes mais ou menos delimitadas e
são caracterizados como membros de uma rede de interconhecimento que
estabelecem um conjunto de regras mínimas de reconhecimento e convivência. A
partir deste horizonte de sentido, nas duas seções que seguem serão apresentadas
mais detalhadamente cada uma das sub-áreas identificadas, de modo a poder
mostrar o ambiente e os diferentes tipos de moradias existentes neste espaço
periférico da cidade de Santa Maria. Para tanto, detenho-me nas diferenças que
ganham relevo nas falas dos entrevistados como aspectos diferenciadores dos
moradores destas áreas. Deste modo, o mapa que aparece descrevendo as duas
sub-áreas da Vila Urlândia e da “Invasão da BR” mostra o que é mais ou menos
consensualmente estabelecido como os limites de cada uma das partes.
56
Figura 3: Mapa da Alta e baixa
57
3.3.1 Parte “Alta”
No percurso que um transeunte deve fazer para entrar na Vila Urlândia, pelas
ruas que compõem a parte identificada como alta, chama a atenção o conjunto de
casas de diferentes estilos de construção: são casas de alvenaria, de madeira ou
mistas. Em sua maioria, dotadas de terreno amplo, algumas de dois pisos e com
entrada para automóvel. Quem vê este cenário urbano, identifica ali uma típica
localidade, similar a tantos outros bairros das cidades brasileiras, que apresentam
ruas dotadas de calçamento de pedra irregular, de asfalto e de chão-batido; onde os
abrigos de ônibus podem ou não estar dotado da cobertura de zinco que, nos dias
de chuva ou de sol forte, irão proteger seus ocupantes. Trata-se aqui de um
contexto no qual existem ainda casas para alugar, vender ou que estão, a contar
pelo material de construção depositado na frente das casas, sofrendo
melhoramentos.
As casas apresentam um aspecto de conservação. Poucas delas dispõem de
varandas com jardins na parte da frente. A maioria dispõe de cerca de metal
separando a via pública do pátio interno, janelas com grade, portões de ferro,
fachadas com poucas aberturas, alarmes e cadeados das portas. Além disso, nas
fachadas das casas não raramente é possível notar a existência de um adesivo
fixado na parede indicando que a casa dispõe do serviço de Vigilância Privada.
Trata-se de um serviço prestado por uma empresa não legalizada, que contrata,
sem carteira assinada, vigilantes noturnos incumbidos de fazer a ronda em
determinado perímetro (normalmente uma quadra), para a segurança das “casas
com pagamento em dia”.
Ao caminhar por suas diferentes ruas, nota-se a inexistência de cães latindo
dentro ou fora dos pátios. Este é um dado interessante, visto que os animais, além
de representarem a figura de bicho de estimação, dado os dispositivos de
segurança identificados, seriam mais um a auxiliar a busca de garantir a segurança
à propriedade. Mas, como vim saber posteriormente, a falta destes animais decorre
de uma escolha forçada, pois muitos dos animais existentes na localidade foram, ao
longo dos anos, envenenados. Como salientam alguns entrevistados: “foi gente sem
coração que fez isso”; “fizeram isso só para poder roubar”. Tal fato, no entanto, não
se restringe a Vila Urlândia. Segundo matérias dos jornais da cidade, em outras
58
localidades também ocorreram casos de envenenamento de animais de estimação.
Em vista disso, as pessoas que teriam o animal para sua segurança, optam pelo
investimento em outros dispositivos.
Parte expressiva dos moradores da parte alta são proprietários antigos e,
por isso, tendem a recordar, por participação direta ou indireta, nos principais
acontecimentos históricos ocorridos na localidade: a instalação da Capela Católica
São Carlos; a construção da escola que atende os alunos do ensino fundamental da
vila; o processo lento de calçamento das ruas; a fundação da associação de
moradores da Vila Urlândia; entre outros fatos que marcam a história da localidade.
A exceção a esta presença de moradores antigos, que caracteriza a parte
alta, se verifica na porção de terra ocupada há cerca de dois anos, na beira da auto-
estrada da BR- 287, por famílias e indivíduos de várias partes da cidade, inclusive
da própria vila mesmo. Nesta porção de terra, um conjunto de moradores se
organizou e ocupou a faixa de terra que faz divisa com o leito da Br. Até o
momento, o impasse sobre a permanência ou não destes moradores não foi
solucionado, mantendo-se a disputa judicial entre ocupantes e União. Enquanto
isso, as casas vão sendo melhoradas. No inicio da pesquisa, em 2004, só existiam
casas de madeira. Ao final desta, já é possível de se ver casas mistas ou, mesmo,
de alvenaria, dentro do processo de autoconstrução das casas. Além disso, a rua
que surgiu naturalmente pela disposição dos lotes, já possui iluminação pública e
água encanada em todas as residências.
Em termos do tipo de ocupação profissional dos moradores da alta, esta é
dotada de uma parcela significativa de pessoas com emprego fixo. Embora a área
disponha de uma série de pequenos estabelecimentos de serviços e comércio
distribuídos por várias de suas ruas (tais como: uma agropecuária, uma loja de
materiais elétrico-eletrônicos, duas lojas de móveis, uma loja de material de
bicicleta, um açougue, uma auto-mecânica e uma marmoraria, além de três
pequenos mercados), apenas uma pequena minoria das pessoas trabalha nestes
locais. A ampla maioria é assalariada nas empresas e no comércio varejista
localizado no centro da cidade.
59
Figura 4: Rua Frederico Ozanan
Figura 5: Rua São Carlos
60
3.3.2 Parte “Baixa”
A maioria das casas visitadas na parte baixa se situa em áreas invadidas.
Algumas delas localizam-se no que estava destinado a ser a área verde do
loteamento. Expressando esta situação de irregularidade, uma entrevistada destaca
que “até hoje o IPTU vem no nome do proprietário o senhor Lothário” (Antonia,
moradora há 38 anos na parte alta da vila). As ruas, em sua maioria, são destituídas
de saneamento básico e a iluminação pública é precária. No percurso pelas ruas,
encontramos algumas casas mistas, mas o que predomina são as de madeira. Nas
esquinas de suas ruas, nota-se a presença de jovens adultos (homens na maioria)
envolvidos em conversas animadas.
Seguidamente, avistava alguns homens entregues a pequenos consertos ou
reformas nos telhados, remendando ou trocando alguma madeira da parede das
casas, após um dia de chuva intensa. Caminhando em direção às proximidades do
córrego, chama a atenção o número elevado de casas que tem sua estrutura
elevada do chão. São palafitas de madeira, fixadas a um ou dois metros de altura,
mantidas através de pilares de sustentação. Nestas casas, para ter acesso ao
domicilio é necessário o auxílio de uma rampa. O que poderia parecer, num
primeiro momento, resquício dos tempos das enchentes, é desfeito ao ser
informado que mesmo entre os novos moradores a casa elevada é uma precaução
necessária, pois, como diz um morador desta área, “quem me garante que não vai
ter cheia de novo”.
Nos dias de chuva, nos meses de inverno, me lembrava das histórias sobre
as enchentes ocorridas na localidade. Em um destes dias de céu nublado, quando
estava registrando algumas cenas com a máquina fotográfica, fui surpreendido
pelos pingos de água que começavam a cair. Minha única solução foi pedir abrigo
na casa de uma moradora, que já havia conversado dias antes no Posto de Saúde,
mas nunca tinha tido a oportunidade de visitar sua residência. Para poder entrar
precisei me abaixar, caso contrário bateria a cabeça no marco da porta. No interior
da casa, contei cinco pessoas além de Dona Carla: três homens de meia idade, que
aproveitavam o dia chuvoso para tramar couro e fazer laços, chibatas ou chaveiros,
que seriam revendidos posteriormente no centro da cidade; e mais duas crianças
pequenas, que fitavam a chuva lá fora. Com o sibilo do vento, a casa sacudia,
61
causando a impressão de que a qualquer momento o teto poderia tombar sobre
nossas cabeças. Por um tempo, ainda tentei desviar dos pingos que teimavam em
cair em minhas costas. Depois de tentar e não conseguir encontrar uma posição
mais confortável, me resignei às circunstâncias e não desviei mais. O cheiro da
fumaça envolvia todo o recinto, proveniente do fogão a lenha em que dona Carla
preparava a refeição do almoço. Deduzi que a chaminé devia estar entupida, pois a
fumaça não ganhava altura e descia intoxicando a todos no recinto.
Em outros trechos da área que compõe a baixa, a disposição das casas ao
longo das ruas acompanha um ordenamento próprio, não raramente me perdi em
meio a becos e vielas. Neste trecho da área, predominam terrenos com mais de
uma casa: são puxados destinados a acolher parentes de longe ou filhos que
casaram e não têm onde morar. As casas aí existentes são construídas sobre um
solo há pouco tempo aterrado. Segundo relatos dos moradores, até um ano atrás
está área, que ainda hoje recebe novos ocupantes, fazia parte da rota de despejo
dos caminhões de “Tele-Entulho”, que recolhem o resto das construções da cidade
e depositavam na vila. Este afluxo de novos ocupantes tem se situado num beco, “o
Beco da Landa”.
34
Trata-se de uma área que concentra parte das famílias mais
carentes da localidade. São famílias que trabalham com material reciclado. Durante
o dia, saem pela cidade com seus carrinhos a recolher papelão, garrafas pet e latas
de alumínio. Ao final do dia, utilizam o pátio de suas casas para separar os
materiais, que serão vendidos posteriormente para uma empresa de reciclagem que
busca o material no local.
Em face disso, as imediações das casas estão repletas das sobras de
material que foram descartados para venda. Mesmo num ambiente assim, a área da
casa das famílias permanece investida de positivação. O lar, dentro das
possibilidades estabelecidas pela precariedade das condições de seus moradores,
é valorizado e preservado de alguma maneira, como, por exemplo, num pedaço de
papelão afixado na frente da cerca do pátio de uma dessas casas dizendo: “Seja
educado, não suje o pátio alheio”.
34
Esta área é assim chamada, pois a agente comunitária de saúde que atende os moradores do
beco tem o nome de Iolanda, devido a isto, ficou carinhosamente conhecido na região como o “Beco
da Landa”.
62
Em termos da sua urbanização, com exceção do “Beco da Landa”, as demais
ruas apresentam uma organização similar àquela encontrada na alta, posto que as
ruas calçadas do início da vila cortam toda a extensão da localidade, sendo as
artérias principais pela qual a população costuma transitar. Já as ruas vicinais, são
ruas de chão-batido, com saneamento básico em precárias condições. Em dias de
chuva forte, algumas ruas mais próximas ao córrego ou com a falta de um
arruamento eficiente, acabam alagando em certos trechos.
Em termos de ocupação, os moradores da localidade são constituídos por
trabalhadores da construção civil, empregadas domésticas, seguranças noturnos,
aposentados, empregados das olarias e desempregados. Se levarmos em conta o
investimento que as residências dispõem, é possível deduzir que os níveis de
consumo são extremamente baixos. Algumas famílias, inclusive, precisam contar
com o auxilio da Pastoral da Criança, que distribui mantimentos entre aquelas mais
necessitadas.
Figura 6: Rua Valdir C. da Costa, visão da parte baixa da Vila Urlândia
63
Figura 7: Dia de visita domiciliar nas casas do “Beco da Landa”
3.4 A Vila Urlândia vista do ponto de vista externo
A partir da classificação social de seus moradores como membros residentes
numa área marginalizada da cidade santa-mariense, a vila, no seu conjunto, ficou
estigmatizada como um lugar violento, perigoso. Além disso, a posição geográfica
da Vila Urlândia, em seu sentido centro-vila, tem na BR – 287 um marco limitador
que catalisa a idéia de “outra realidade”. A existência deste componente visual
contribuiu para solidificar a imagem da localidade como um lugar separado do resto
da cidade, na medida em que instituiu uma descontinuidade física entre os espaços.
Contudo, as razões que justificam tal visão pejorativa sobre a vila e seus
moradores não se baseiam apenas em elementos “objetivos” relacionados à sua
localização geográfica. Para além deste fato, recai sobre a área estudada uma
imagem fundada em um conjunto de fatos ocorridos na região e que contribuíram
para sua identificação como área violenta. Tais fatos aparecem nos seguintes
depoimentos:
Por 1976, 77 ou 78 uma coisa assim. Ai uma duas e três e dava esses troços assim.
Era tiro, tinha muito. Como é que se diz, tinha uns caras muito famosos ai que
64
brigavam, esfaqueavam os caras e surravam. Daí depois foram ficando velhos,
eram uns caras de idade ai foi terminando. Parou um pouco terminou na Urlândia, foi
para outra vila. Daí de uns anos para cá, uns quatro ou cinco anos começou essa
gurizada ai para baixo. Veio a nova fase. Mas no mais é maconha e assalto, fumam
e daí assaltam a casa dos outros. (Maria, moradora há 19 anos na parte baixa da
vila)
No principio, como te disse aqui era um fundão tinha mato, tinha banhado, difícil
acesso não tinha nem ônibus e tal. Então ocorreu uma época que muitas pessoas
mal intencionadas, vamos dizer assim, marginalizadas que estavam à margem da
lei; o pessoal veio buscar refugio na Vila Urlândia, era um lugar que a polícia não
vinha e tal, então ocorreu isso. E ocorreu também que muitas pessoas
marginalizadas pela sociedade virem para cá. Era o cara que não tinha dinheiro para
pagar aluguel ou que morava na rua ou que veio de uma outra cidade e tal, ou seja,
o cara que era marginalizado pela sociedade, não tinha um bom emprego não tinha
condições, o cara veio morar na Vila Urlândia. Então a Vila Urlândia foi sendo
discriminada por isso. Pela questão de discriminação da lei e da sociedade, muito
mais da sociedade do que da lei (...) Por tudo isso, começou a ocorrer essa
marginalização, dizerem “ah, o cara vem lá da Urlândia”. Aconteceu alguns assaltos
antigamente, mortes memoráveis, vamos dizer assim, de grande repercussão e ficou
impregnado isso na sociedade (Carlos, moradora há 25 anos na parte baixa da vila).
A expressão “mortes memoráveis”, utilizada pelo entrevistado, mostra um
pouco do ambiente social presente no interior da vila. Dado que a localidade está
situada numa área afastada do centro da cidade, cercada por um campo do
Exército e pelas demais vilas que compõem o Bairro Urlândia, o processo de fuga
das pessoas que cometiam algum delito seria facilitada, pois poderiam encontrar
esconderijo “no meio do mato” ou buscar refúgio em outra vila.
O somatório destes fatos ajudou a instituir uma imagem da Vila Urlândia
marcada pelo preconceito que, devido ao reforço contínuo através dos comentários
e do tratamento dado pelos meios de comunicação da cidade, se transformou em
estigma social do grupo. Deste modo, a localidade concentra um conjunto de
características materiais e simbólicas percebidas como negativas como aparece
retratado em reportagem do jornal local. (ver anexo).
3.5 Mostre respeito, senão...
Dentro da Vila Urlândia, existe atualmente uma compreensão socialmente
estabelecida de que os responsáveis pelos assaltos e roubos ao patrimônio dos
moradores são causados pelos membros do “grupo de jovens”, que ficam nas
esquinas ou imediações da entrada da vila. A maioria dos jovens é menor de
65
dezoito anos, sendo, em sua maioria, estudantes da escola local. Embora não se
tenha indício suficiente para afirmar em que pedaço da vila residam, socialmente
são identificados como moradores das imediações do “Beco da Landa”.
Assim, os moradores da parte alta da Vila Urlândia identificam nos
moradores da parte baixa as pessoa responsáveis pelos problemas da vila, pois “se
não são os pais, são seus filhos”. Assim, vão considerar os moradores mais
empobrecidos enconomicamente como os responsáveis pelos delitos reforçando a
idéia da necessidade de evitar o contato como os moradores inferiores, pois o
contato mais estreito pode trazer problemas como o roubo de sua casa.
Mas, na mesma medida que os moradores da alta conseguem instituir uma
diferenciação no âmbito local, são alvo de manifestações de descontentamento
daqueles assim estigmatizados. Tal descontentamento tem nas formas de violência
contra o patrimônio uma de suas expressões mais destacáveis.
houve um tempo que disseram “vamos entrar em todas as ruas da Agostinho
Scolari”. Eles fazem, o projeto deles, o plano deles é entrar em todas as casas da
Agostinho Scolari. Eles vão de dia, vão de noite e as pessoas saem, eles cuidam.
Saem para roubar. Esses dias nós saímos, eu e a (...), eles estavam na esquina,
cuidaram não deu quinze minutos de nós termos saído e estavam roubando a casa.
Porque eu tenho duas casas, da frente e a do fundo, então só nós morávamos.
Morávamos na casa do fundo, a dá frente estava vazia ai telefonaram avisando que
estavam assaltando a casa do fundo. (Antonia, moradora há 38 anos na parte alta
da vila).
A violência dirigida contra os moradores melhor posicionados na hierarquia
local pode ser compreendida, em parte, como uma forma limite de contestação
daquela hierarquia, indicando um descontentamento com a estrutura de relações
estabelecida na vila. Assim, os agentes sociais que praticam o roubo estão, em
certa medida, informando ao grupo “distinto” que o preço da diferenciação é virar
uma vítima potencial. Não quero, contudo, estabelecer uma relação causal entre
desprestígio e roubo, mas sim indicar que a instituição de uma representação dos
membros da alta como membros distintos por possuírem determinados atributos e
recursos considerados “valiosos”, em certa medida, acaba por torná-los um grupo
potencialmente vulnerável às ações violentas dos despossuídos de tais atributos e
recursos.
Contrariando a idéia romântica, de que só se rouba dos ricos e de que existe
uma solidariedade entre os grupos de camadas pobres, a realidade da Vila Urlândia
66
vai mostrar que o critério definidor de quem será roubado ou não está, em parte,
assentado na noção do “ter respeito”, do “saber conviver”. Assim, o morador da
parte alta deve mostrar que possui “respeito” com os moradores inferiores, caso
contrário, vai ser convertido numa vítima.
tu pega um determinado cidadão que mora na Vila Urlândia e faz de conta que mora
no edifício Taperinha
35
. Além da antipatia da comunidade, primeira coisa que se
consolida, com certeza com esse cara que vão ocorrer os problemas, com ele que
vão brigar, vão jogar uma pedra na casa e tal. Infelizmente há isso ai, certas
pessoas como te disse, pensa que mora no edifício Taperinha, nada contra as
pessoas que moram no edifício Taperinha, só estou querendo dizer que no
Taperinha é uma realidade diferente, lá o cara mora num apartamento, é diferente as
realidades. Aqui é diferente, temos pátios abertos, convivo com vizinho. (...) Tu tem
que saber conviver com as diferenças, muito mais do que se tu mora num
apartamento onde tu te fecha e não convive com ninguém. E ai há, sem sombra de
dúvida, a versão do restante, sem sombra de dúvida (...) passa na frente da casa do
cara “há esse fulano aqui te mete a ricão, não sei o que” atira uma pedra na casa do
cara. Quer dizer, isso acontece o cara não vai conseguir conviver. (Carlos, morador
há 25 anos na parte baixa da vila).
Assim, no contexto da Vila Urlândia, a prática da violência assume um
sentido que não se limita à busca de determinados bens materiais. Além disto, que
não pode ser negado, ocorre também uma espécie de “punição” àquelas pessoas
que são identificadas com sendo, em parte, responsáveis pela situação de
inferioridade dos moradores da parte baixa. Deste modo, seriam pessoas que
“merecem sofrer” o roubo, pois tentam ser diferentes.
Entre as pessoas com quem conversei, localizadas na área reconhecida
como “rica”, a referência a episódios de assaltos a suas residências ou a pedestres
foi recorrente. Ao passo que, entre os moradores da área estigmatizada, os relatos
não apresentaram a mesma carga dramática, embora não se furtassem em dizer
que também existe roubos nesta área. Como salienta uma entrevistada da parte
baixa: “Aqui eles não saem, é o contrário. Ao invés deles respeitarem o pessoal
daqui e irem roubar longe, de quem tem dinheiro lá para longe. Eles roubam aqui,
roubam aqui dentro da vila” (Maria, 19 anos moradora da Vila).
Um aspecto, dos discursos sobre as práticas de roubo, que apresenta
variações refere-se aos argumentos que os moradores usam para explicar tais
35
O edifício Taperinha está localizado no centro da cidade de Santa Maria, por muitos anos
permaneceu com a imagem social de ser um local habitado por membros da elite econômica santa-
mariense. Embora tal posição de destaque tenha declinado atualmente, a referência ao edifício como
local valorizado socialmente permanece forte.
67
práticas. De modo geral, têm-se dois argumentos. O primeiro, vocalizado em grande
medida pelos moradores da alta, afirma categoricamente serem os “de lá de baixo
os responsáveis”, pois
Tu tem que ver, não dá para ficar em frente de casa tomando chimarrão com o som
ligado que eles já passam cuidando para depois roubar. Esse pessoal ai de baixo é
complicado, é tudo ladrão na maioria. (Silvia, moradora há 55 na parte alta da vila).
O segundo argumento, defendido pelo restante dos moradores da alta e
pelos da baixa, percebe o roubo as casas como um desdobramento de uma
realidade mais ambrangente, que contempla toda sociedade brasileira, indicando
que o problema não seria uma exclusividade da Vila Urlândia. Segundo uma
entrevistada, “Violência tem em todo lugar, aqui não é diferente. Se tu for ao centro
também pode ser assaltando. O negócio é tomar cuidado e entregar para
Deus”(Marilene, 6 anos moradora da Vila).
A sensação de insegurança que os moradores da parte alta relatam, num
primeiro momento, poderia originar entre seus vizinhos um sentimento de
solidariedade entre vizinhos contra os “ladrões”. Contudo, as entrevistas mostraram
que a busca pela segurança do patrimônio deve ocorrer no plano individual. Cada
família é responsável pela defesa de seu patrimônio, não cabe aos demais esta
atribuição. Por isso, cada morador precisa acionar medidas de proteção como
segurança privada, alarme, muros altos, vigilante noturno, sensores de movimento
e, quando necessitam se ausentar por um período de tempo mais longo deixam um
caseiro tomando conta da residência como medida de precaução.
As motivações que gravitam nas justificativas da não responsabilização dos
vizinhos pela casa dos outros não decorre de um individualismo puro e simples,
acontece que o medo de ser visto como um delator de “algo que não te diz respeito”
pode trazer sérios riscos a família.
Quando não arrombam depois de pronta, arrombam antes. No caso está amarela
aqui, arrombaram quando estava só a pecinha, levaram tudo. Alguns vêm, mas não
gostam de comentar não falam para não... preferem ficar na dele. Se falam, tem que
testemunhar com vão falar de algo que acham. Então preferem não dizer nada,
embora saibam. (Antonia, moradora há 38 na parte alta da vila).
Assim, a intervenção no “problema dos outros” pode trazer problemas à
pessoa que o fizer. Um caso interessante mostrando os preceitos tácitos desta
68
relação apareceu no relato de uma entrevistada sobre um incidente protagonizado
por seu filho. O rapaz, ao passar em frente da casa de um vizinho, avistou duas
pessoas estranhas espreitando a residência. O proprietário, no momento, estava na
parte interna da casa e, na parte externa, seu carro estava estacionado. Poucos
instantes depois, o rapaz vê os “ladrões” sinalizando como quem se prepara para
arrombar o carro. Enquanto vai alertar o proprietário sobre o perigo que estava
correndo, os “ladrões” vão embora. Dias depois disso: “O Mano fui buscar duas
cervejas ali na esquina e atacaram ele, pegaram as garrafas e deram um tapa nele
e ficou por isso. A troco de nada quebraram as garrafas. Disseram para ele não se
meter nas coisa dos outros.”(Antonia, 38 anos moradora da Vila).
Deste episódio, pelo menos dois indícios podem ser constatados. Primeiro
que o roubo, em certo sentido, é aceito como quase inevitável: ”Eu ainda sou
privilegiada porque aqui ainda não bateram o ladrão” (Eneida, moradora há 10 anos
na parte alta da vila). Sendo que a única coisa para tentar evitar é mostram ter
respeito e saber conviver com as regra de condutas exigidas: cumprimentar quando
for “encarado”, não ficar “se exibindo” mostrando os bens que dispõem e quando
solicitado ajudar com dinheiro ou comida.
Em segundo lugar, existe um obstáculo interposto impedindo aos moradores
de fazer as denuncias seja pelo risco a integridade física que isto possa envolver,
como também, pelo descrédito na eficiência da policia em solucionar
definitivamente a situação.
Agora a pouco tempo, ai para baixo, arrombaram, ainda bem que o irmão do dono
da casa viu na hora chamou a policia e atacaram os caras. Ai conseguiram, pegaram
televisão, aparelho de som, só não pegaram... Dali uma semana na mesma rua ali
em cima levaram a televisão, o vídeo-cassete e não sei o que mais os mesmos
caras que tinham sido presos, quando não foi dois três dias tinham sido largados. Ai
é brabo (Maria, moradora há 19 anos na parte baixa da vila).
Existe, dessa forma, uma relação velada entre os grupos de moradores da
Vila Urlândia, onde o roubo estabelece um vínculo entre os grupos mostrando que
os moradores estão vulneráveis. Caso alguém tente romper a relação denunciando,
a violência física se apresenta como dispositivo disciplinador. Assim, devido a
delicada trama presentes na vila, talvez tenha sido por isso que foi tão delicado
discutir o tema da violência durante as conversas e, principalmente nas entrevistas
gravadas onde “minha fala fica guardada”.
69
Frente a isto, alguns moradores da Vila Urlândia, como forma de
contraposição à marginalização que lhes é imposta, desenvolveram estratégias de
afastamento simbólico em relação àquilo que é visto como negativo na vila, no
sentido de poderem, assim, se apresentar socialmente numa posição menos
inferiorizada.
No capítulo subseqüente apresento as razões pelas quais alguns moradores,
em posição socialmente favorecida, produzem argumentos estereotipados que
explicam as diferenças internas como diferenças na “qualidade moral” das pessoas
que moram na vila. Sua fala tenta, desta forma, tornar manifesto para si mesmos e
para os outros moradores a sua existência como grupo conhecido e reconhecido
como distinto e, especialmente, superior. Na tentativa de se afastarem deste
estigma social, identificam os moradores da baixa como responsáveis por seus
estigmas, utilizando, para isso, um discurso performático (Bourdieu: 2004) que tenta
construir e legitimar uma nova definição da realidade na vila, que rompa com a
homogeneização imposta pelo processo de estigmatização e institua uma nova
representação na qual a Vila Urlândia configure não uma, mas duas “realidades”.
70
4. AS ESTRATÉGIAS INTERNAS DE ESTIGMATIZAÇÃO NA VILA URLÂNDIA
Nos capítulos anteriores, vimos que os moradores das cidades estão
situados geográfica e socialmente dentro de uma demarcação espacial e social que
estabelece uma hierarquização das áreas e de seus moradores. Dentro deste
campo de poder, as localidades identificadas como centro e periferia vão se inserir
num jogo estruturado a partir das diferentes posições de seus ocupantes. A
argumentação desenvolvido até o momento dedicou-se a apresentar um conjunto
articulado de hipóteses com vistas à caracterização deste campo de disputa tal
como encontrado na Vila Urlândia. Neste Capítulo, procuro mostrar como, no
interior da vila, se desenvolve um conjunto de práticas e representações sociais que
engendram diferenças entre seus membros, a partir de preconceitos morais.
4.1 Estratégias de fuga do estigma
Na realização do estudo, tive condições de visualizar várias representações
que os moradores constroem para estruturar o espaço de sociabilidade dentro da
Vila Urlândia. Em face disto, as relações estabelecidas entre os membros deste
contexto podem ser divididas em dois níveis. O primeiro, corresponde à imagem
existente no tecido urbano da cidade de Santa Maria, que tende a separar os
indivíduos conforme os recursos econômicos que dispõem. Como visto no capítulo
anterior, dentro deste campo de relações hierárquicas, os habitantes da Vila
Urlândia estão localizados num “lugar” considerado inferior com relação ao restante
de Santa Maria, numa posição que é traduzida pelo estigma que carregam. O
segundo nível diz respeito aos desdobramentos que este “lugar” inferior assume
dentro do contexto local, pois a presença de indivíduos vindos de movimentos de
ocupação diferentes, localizados em áreas dotadas de características estruturais
específicas e com históricos de consolidação das residências em tonalidades
singulares, vai possibilitar o desenvolvimento de um campo de disputa que
(re)produz, agora ao nível local, uma hierarquia entre seus membros.
Embora todos os moradores da Vila Urlândia enfrentem o estigma de morar
numa área considera desprestigiada, certos moradores procuram superar o estigma
71
através da instituição da separação dos habitantes em dois grupos: os moradores
da alta e os moradores da baixa. Simbólica e materialmente, essa estratégia opera
com várias nuances, pois estabelece uma forma de distinção, uma descontinuidade
dentro da vila. Por meio destas duas categorias – alta e baixa –, forma-se um
conjunto de representações que engendram uma ordem de valores entre os grupos.
Ou seja, as expressões categoriais alta e baixa exprimem duas sub-áreas e dois
grupos de moradores dotadas de sentidos diferenciados. Entretanto, o emprego das
categorias alta e baixa, ainda assim, não encontra um sentido único entre os
moradores, pois mesmo na área considerada alta não existe em torno de si um
consenso sobre qual sua abrangência. Ao contrário, cada morador molda os limites
de acordo com o conjunto de informações, interpretações e sentidos que deseja
atribuir à expressão demarcadora. Assim, a atitude de inclusão e exclusão das
pessoas obedece a critérios muito mais sociais do que geográficos. Neste sentido, o
prestígio ou o estigma que a pessoa possui vai depender das relações que os
indivíduos estabelecem no interior da Vila Urlândia.
Elias e Scotson (2000) falam de uma sociodinâmica da estigmatização. No
contexto que estudaram, a possiblidade de um grupo afixar em outro um estigma de
inferioridade humana e fazê-lo prevalecer seria uma decorrência da relação que os
dois grupos estabeleciam entre si. No caso da Vila Urlândia, os termos que
catalizam o prestígio e o estigma são, respectivamente, alta e baixa. Logo, o
morador que deseja estar investido de prestígio vai se identificar como morador da
alta. Cabe lembrar, ainda, que o emprego do estigma utilizado no plano individual
tem seu sentido galvanizado socialmente, pois sua percepção obedece a preceitos
vinculados ao nível do grupo, assim,
Em Winston Parva, como em outros lugares, viam-se membros de um grupo
estigmatizando os de outro, não por suas qualidades individuais como pessoas, mas
por eles pertencerem a um grupo coletivamente considerado diferente e inferior ao
próprio grupo.(...) Ela só pode ser encontrada ao se considerar a figuração formada
pelos dois (ou mais) grupos implicados ou, em outras palavras, a natureza de sua
interdependência. (ELIAS, SCOTSON,2000:23)
No estudo dos autores citados, o tempo é um fator objetivo que estrutura a
hierarquia local. Seu emprego centra as diferenças entre o grupo antigo
(estabelecidos) e o novo (moradores dos bairros recentes) de modo a estabelecer
as marcas de estigmatização moral que o grupo recente sofre. Entretanto, no caso
72
da Vila Urlândia, o fator tempo de moradia não é o único e, mesmo, o principal fator
de diferenciação social do grupo. Mas, nos dois casos, a diferenciação se constrói
principalmente através da imposição de juízos morais que prestigiam alguns e
desqualificam outros.
Há uma tentativa dos moradores que se consideram “superiores” se
afastarem de todos os atributos sociais identificados como pertencentes aos grupos
considerados inferiores. Por meio disto, revelam uma situação na qual do simples
preconceito passa-se para a discriminação e desta para a estigmatização. Logo,
alguns moradores da Vila Urlândia desejam encobrir (Goffman: 1978) que são
moradores de uma área considerada degradada. A forma que vão encontrar para
reforçar sua condição distinta é a reafirmação de que pertencem a um grupo à parte
dentro desta vila. Assim, a aparente unidade geográfica da vila, observada pelo
olhar externo, vai ser codificada internamente em diferentes posições que os
indivíduos vão ocupar.
Assim, o contexto da Vila Urlândia retrata um campo de disputas que coloca,
de um lado, os moradores que se consideram superiores e, de outro, os moradores
considerados inferiores. Esta forma de organizar a vida no interior da vila vai
originar processos de instituição da estigmatização e da distinção entre os
moradores da localidade. Conforme a posse de determinados recursos e relações,
que se expressam espacialmente na localização em determinadas partes da vila, o
indivíduo vai ser reconhecido como dotado de prestígio ou de um estigma. Logo, o
ponto central do estudo é identificar de que modo operam estes recursos e relações
nos processos de diferenciação presentes na Vila Urlândia.
4.2 Disjunção da “comunidade”
Como visto, dentro da compreensão social existente na cidade de Santa
Maria, ser morador da Vila Urlândia corresponde a uma condição social inferior.
Assim, os moradores que podem se distanciar simbolicamente deste estigma
tentam fazê-lo, mas não por uma estratégia de confrontação do estigma e sim por
uma busca de redirecionamento do mesmo para outras pessoas. Através de
práticas diversas, produzem um processo de distinção entre os moradores da vila,
operando uma projeção do estigma aos moradores considerados inferiores. Esta
73
delimitação de um espaço de diferenças implica na conformação de uma hierarquia
interna, que reflete e reproduz eixos de identificação e de distinção entre seus
moradores. Como num espelho invertido, a identificação distintiva com o vizinho
serve de parâmetro para os esforços de posicionar-se no mundo de uma forma
depreciada.
Trata-se de uma construção que é feita a partir da ruptura com a noção de
“comunidade”. Percebe-se, na Vila Urlândia, um processo de diferenciação que
rompe com a idéia de relações do tipo comunitárias, nas quais todos os indivíduos
compartilhariam, de forma mais ou menos igualitária, o mesmo campo de relações
sociais. Ao contrário, institui-se uma clivagem social a partir de alguns atributos
definidos como marcas distintivas de diferenciação. A infra-estrutura urbana das
ruas, a presença da capela e da escola, a criação de uma entidade de
representação, entre outros aspectos, marcam a alta como área detentora do
prestígio social local. No extremo dessa relação, é projetado todo um conjunto de
características desqualificantes aos “outros” ocupantes da vila, fazendo com que
fatos isolados sejam hiperdimensionados e representados como características
indeléveis de todos os moradores da baixa.
Ao agirem assim, os moradores da alta expressam reações preconceituosas
e procuram se afastar dos locais de convivência social. Deste modo, há uma
desvalorização dos espaços das ruas como local da interação social dos
moradores. Comparando as posturas adotadas nas duas sub-áreas da Vila
Urlândia, notei uma diferença de tratamento do espaço público: enquanto os
moradores da alta faziam questão de que nossas conversas e entrevistas
ocorressem no interior das residências – espaço privado- os moradores da baixa
não se importavam que fossem na frente ou no pátio de suas residências. Isto
porque, os moradores da alta compreendiam o espaço público das ruas da vila
como um espaço de passagem, de deslocamento das pessoas, não seria um lugar
para as pessoas ficarem conversando, pois posturas como esta poderiam ser
interpretadas como “coisa de quem não tem o que fazer” e, seus moradores se
consideravam pessoas “que tinham mais o que fazer” do que “ficar jogando
conversa fora pelas ruas”. Já entre os moradores da baixa, a exposição pública
reforçava a condição de morador que mantém relações mais comunitárias, onde a
rua é, em certa medida, uma extensão da casa.
74
Em face disso, tem se uma trama social que converte o espaço da rua como
mais um atributo que diferencia o comportamento dos moradores da vila. Onde
atitudes consideradas comunitária são vistas, pelos moradores que querem se
diferenciar, como uma atitude que não deve ser adotada, pois caracteriza “coisa de
vileiro”: “Não sou de ficar conversando na porta de casa. Isso para mim é coisa de
quem não tem o que fazer”. ( Joana, 46 anos moradora da vila, parte alta).
Além disso, cada pedaço desenvolve determinadas práticas e vínculos,
verdadeiros sinais de reconhecimento dos membros de cada grupo, de forma que
seja possível definir quem é e quem não é membro do “pedaço”. Assim, as
expressões alta e baixa são marcadas por tipos distintos de indivíduos dentro de
dicotomia “nós”, os distintos, e os “outros”, onde estes “outros” são sempre os
responsáveis pelo estigma da vila. Deste modo, por exemplo, os moradores da alta,
ao avistarem um homem desconhecido transitando pela rua numa segunda-feira
vão afirmar que só pode ser morador “ai de baixo” ou então “deve ser morador
novo”, porque os homens da alta neste momento estão fora de casa, trabalhando.
Ou seja, a identificação de um “nós” se define relacionalmente e por contraste a um
“outro”, assim “nós” somos os trabalhadores, temos o que fazer, os “outros” ficam
perambulando pelas ruas, sem uma ocupação fixa. Este tipo de identificação vai
oferecer certos parâmetros para o reconhecimento do que é considerado valorizável
em termos de prestígio e estigma.
Embora este “outro” nunca apareça nomeado, nunca é alguém específico,
será alguém que entre sussurros e sinais de braços sinalizando uma direção ganha
um lugar, ganha vida. Aparece, por exemplo, em referências negativas sobre “ali em
baixo”, pois “depois que eles vieram tudo ficou ruim”. Estas expressões indicam que
os “outros” são membros da baixa, o grupo de indivíduos posicionados num espaço
de inferioridade dentro da estrutura da vila. O peso do local onde moram afeta a
avaliação de onde estão inseridos, tanto que os moradores da alta sempre
evidenciavam sua condição de “moradores da parte boa”, pois “lá embaixo, a coisa
é diferente”. Demonstrando estarem contentes em morar na alta, seus moradores
não se furtavam em reafirmar recorrentemente que “ali” era diferente do “pessoal lá
de baixo”. Tanto que, frequentemente, procuravam chamar a atenção para essa
distinção usando expressões como: “a metade melhor”, dotada “das famílias mais
estruturadas”, “de gente boa, de bem”.
75
4.3 A Urlândia não é uma coisa só
As diferenças estruturais presentes nas duas sub-áreas, servem de critério
“objetivo” para instituir a separação na localidade. Este tipo de evidência aparece
descrito através de expressões do tipo: “é só tu caminhar pela Urlândia que vai ver
que são realidades diferentes”. Contudo, além da presença desse atributo, os
moradores da alta executam a tática de enfrentamento do “outro”, por meio da
imposição e naturalização de determinados atributos morais. Os moradores da alta
realizam uma oposição entre as regiões, na qual se colocam positivamente em
contraposição aos da baixa. Desse modo, temos um conjunto de critérios de
distinção que os membros do grupo de prestígio estabelecem e valoriza.
Construção moralizante dos moradores da alta para com os moradores
da baixa
Pares de Oposição
Urlândia Alta
X
Urlândia Baixa
Antigos X Novos
Trabalhador X Carente
Proprietário X Ocupante/Invasor
Ricos X Pobre
Dentro desta teia de significados, através da construção de si contraposta ao
estereótipo do outro, os moradores da alta tornam seu discurso implacável no
sentido de se colocarem moralmente como superiores. Por mais que se
reconheçam como pessoas com limitações financeiras, motivo pelo qual residem na
vila, o fato de terem uma situação de trabalho e condições de moradia relativamente
boas se constitui não apenas em um capital econômico, mas, também, em um
capital simbólico perante seus vizinhos, que “não tem emprego fixo e por isso tem
que ocupar as áreas dos outros”. Deste modo, se comparados aos moradores dos
bairros mais centrais da cidade, os moradores da alta se consideram pobres, mas
são “ricos” no interior da vila, em virtude do tipo de relação que estabelecem com os
moradores da baixa.
76
O que se observa, então, é a produção de juízos moralizantes entre aqueles
que têm “mais” e os que têm “menos”, não apenas recursos econômicos, mas
também morais. Isso porque as distinções num grupo social considerado como
igual, por serem sutis, para existirem precisam estar nitidamente demarcadas
através de categorias morais (Sarti: 1996).
chegavam aqui não tinham estudo e acabavam se concentrando na cidade, não
tinham uma profissão, não tinham um estudo, a maioria não tem formação, pouca
formação e acabavam se aglomerando naquela área lá de baixo. É uma área
precária, onde as pessoas que lá estão de fato têm uma grande necessidade
econômica, cultural e de formação (...) é uma grande diferença entre a “Urlândia
baixa” e o pessoal lá de cima. (Padre responsável pelo catequismo na Capela São
Carlos)
Dentro destas classificações, está embutida uma linguagem utilizada para
descrever e apreender o campo de disputas instaurados na Vila Urlândia. Quando
empregadas, as falas ouvidas em campo sempre eram acompanhadas por adjetivos
qualificadores de ambos os lados: de um lado, “os mais ricos”, “os melhores” e, do
outro lado, “aqueles que querem se diferenciar de nós”. Como se percebe, os
moradores da alta se consideram moralmente superiores aos moradores da baixa
dentro desta relação hierarquizada. Enfatizam qualidades como dignidade, limpeza,
sua condição de proprietários dos lotes, enquanto seus vizinhos por serem
homogeneamente percebidos como ocupantes/invasores estão em posição inferior.
O trabalho dos moradores da alta de buscar a “distinção” no interior da vila
caminha no sentido de um afastamento dos atributos considerados socialmente
como pertencentes aos moradores desta localidade de periferia da cidade de Santa
Maria e, consequentemente, direcionam o olhar a certos traços como se fossem
marcas do estigma desacreditável (Goffman: 1978) dos moradores da baixa. A
“imperfeição” dos moradores inferiores é trabalhada pelos moradores superiores no
sentido de apresentar os atributos opostos aos seus como “características” dos
moradores da baixa, de maneira a desacreditar seus residentes e, com isso,
alcançar uma posição distinta. Assim, retratam seus vizinhos como a cristalização
de tudo aquilo de que querem se afastar e, devido à sua superioridade na hierarquia
de poder constituída nas relações entre os moradores da vila, conseguem
manipular o estigma, e com isso, se apresentar socialmente como detentores de
prestígio.
77
Deste modo, produzem um discurso no qual se representam com prestígio
social. Apontam sua condição de moradores bem localizados no interior da vila,
dotados de uma infra-estrutura melhor distribuida, se consideram como sendo
pessoas com responsabilidade e que tem uma ocupação definida, não andam nas
ruas “fuxicando a vida dos outros”.
Nem na casa de meus vizinhos eu vivo indo. Prefiro ficar em casa (...) Fecho a casa
e vou dormir é melhor que andar nas casas colhendo coisas na casa dos outros
como faz o pessoal ai de baixo. (Antonia, 38 anos moradora na para Alta da vila).
A postura de construção do prestigio social dos moradores da alta, aparece
evidenciado por meio da fala de seus moradores que destacam os diferentes “tipos”
de moradores existentes no interior da Vila Urlândia. O campo de distinções que
estou identificando existir na localidade se expressa, mais claramente, no
depoimento de uma moradora da alta registrado no caderno de anotações de
campo:
Olha ali, tá vendo! É desse tipo de coisa que tava te falando [aponta em direção a
um senhor que puxa um carrinho repleto de papel e material para reciclar em direção
à parte baixa da vila], esse tipo de pessoa tu não vê morando aqui. É tudo lá de
baixo, aqui em cima mora gente que tem trabalho, que não precisa se sujeitar a isso.
O problema é que eles ficam passando sempre aqui.
Em relação a esta passagem transcrita, pode-se fazer duas interpretações no
sentido de demonstrar como as estratégias de distinção existentes no interior da
Vila Urlândia estabelecem uma relação estigmatizante. Em primeiro lugar, a
moradora, ao utilizar a expressão “tipo de pessoa”, reforça a idéia da existência de
categoria diferenciada de indivíduos que moraria na parte inferior da vila. Seriam
pessoas sem emprego formal, que precisam recolher os materiais que a população
da cidade de Santa Maria considera lixo para vender como material reciclavel,
dotada de baixo poder aquisitivo e, por isso, moradora da parte baixa da vila.
Em segundo lugar, este depoimento mostra o quanto a convivência com este
“tipo de pessoa” é algo desagradável para aqueles que se consideram não apenas
diferentes, mas melhores. Sua presença faz o morador da alta lembrar que mora
numa vila estigmatizada, reforçando os atributos negativos que os moradores de
78
Santa Maria projetam sobre a vila, isto é, uma área da cidade no qual residem
indivíduos pobres e perigosos.
Os moradores da baixa estão envolvidos, assim, num duplo processo de
estigmatização: primeiro são estigmatizados pela cidade, através do estigma social
impregnado (Wacquant: 2001), pois habitam uma vila de periferia que os habitantes
de Santa Maria consideram desvalorizada, no qual residem indivíduos
empobrecidos; segundo, também são estigmatizados por seus vizinhos, que
estabelecem distinções internas. Os moradores da alta, agindo assim, legitimam a
estrutura que diferencia os moradores e consideram as regiões periféricas como
“lugar” dotado de todo um conjunto de estereótipos que são reencenados
cotidianamente. Além disso, este sistema de hierarquização promove a separação
dos indivíduos no interior da vila, pois a diferença de poder existente na localidade
permite a instituição de distinções entre indivíduos.
Dentro desta gramática social de produção de distinções, os moradores da
alta se concebem como tendo ascendido socialmente, pois possuem casa própria,
têm bons empregos, estão bem localizados espacialmente na vila, enfim, um
conjunto de atributos que legitimam sua distinção social em relação aos seus
vizinhos e, em certa medida, encobrem sua condição de morador de periferia
afirmando “que moram na parte alta da vila”. Todavia, ainda que existam diferenças
materiais e estruturais entre as áreas, as ruas calçadas e asfaltadas, que poderiam
servir de elementos “objetivos” na tarefa de distinguir as duas áreas, perde parte de
sua força como elemento distintivo na medida em que cortam toda extensão da vila.
Assim, uma vez mais o elemento de descuntinuidade separando as áreas é
formulado segundo o interesse do morador incluir e excluir outros moradores
considerados “não tão da alta” ou “não tão da baixa”.
Ainda assim, os atributos estruturais são utilizados neste campo de disputas
para informar que existem diferenças entre as áreas, tal como se observa no
seguinte depoimento de uma entrevistada: “tu não vê, são realidades distintas, é só
tu sair na rua e ver” (Antonia, 38 anos moradora da parte alta da Vila).
Entretanto, interpõe-se nesta visão espacializada das diferenças um
componente desagregador, pois frente a presença dos moradores da “Invasão da
BR”, que estão espacialmente situados na “parte nobre” da vila, se constata o
quanto as fronteiras entre os grupos são forjadas por processos de atribuição de
sentido e não apenas por separações “objetivas” relacionadas à ocupação do
79
espaço. Por si só, o próprio termo nominativo como são descritos aqueles
moradores já lança mão de critérios valorativos a respeito de seus membros:
“invasores”. Além disso, os moradores da invasão estão localizados numa das ruas
principais da vila. Qualquer pessoa que passe ou entre na Vila Urlândia, antes de
ver as casa da alta enxerga a “Invasão da BR”.
Este enlace peculiar faz com que os moradores distintos se sintam
posicionados entre dois grupos de moradores desprestigiados. Fonseca (2000) usa
a expressão “vida em sanduíche” para retratar a experiência dos moradores de
outra vila, situada em Porto Alegre, que buscam subir na escala social através da
ênfase em certos atributos valorativos, expressos por suas casas ao estilo da classe
média, assim como pelo isolamento progressivo das relações com seus vizinhos.
Tentam, com isso, se afastar da vila e se aproximar das áreas valorizadas. No caso
da Vila Urlândia, a presença de membros destoantes da imagem que os moradores
da alta tentam produzir acaba enlaçando-os numa situação semelhante, pois
tendem a se sentir cercados pela presença tão próxima de indivíduos
desqualificados. Como não dispõe de recursos financeiros para adquirir um terreno
numa área mais valorizada socialmente, sentem que seu prestígio foi abalado
devido à presença de intrusos tão próximos.
Isso foi algo que me deixou muito chateada. Eu sei que a vida está difícil que as
pessoas... Mas nós, por exemplo, há cinco anos pagamos dez mil por esse terreno.
Pagou, tu desembolsou. Agora vem um pessoal e invade, tem água, luz
gratuitamente, bem dizer. No meio... a eu acho que não devia. Acho que devia ser lá
como foi na Santa Marta
36
não acho ruim porque era uma terra que estava lá mas
eles vem para um local que prejudica os outros sem querer... fica tudo mais difícil
ali.(...)É uma coisa complicada, tu paga imposto, dá emprego é bem difícil. Eu acho
complicado, meu marido ficou revoltado, não é que a gente pensa eu posso compra
o outro não pode, mas tinha que ter uma legislação, uma área para fazer um
loteamento. (...) fica ruim o visual tu vai entrar e tem aquela invasão isso que é
o chato. (Marilene, moradora há 6 anos na parte Alta da vila).
Este trecho de entrevista evidencia o sentimento de desprestigio que a
presença dos moradores da invasão desenvolvem nos moradores da alta e mostra
a contraposição entre o direito de alguns pelo fato de terem comprado e a falta de
direito de outros pelo fato de não terem comprado a terra. Assim, ao ocuparem e,
com isso, conseguirem se estabelecer em um espaço valorizado da vila, os
36
O Núcleo Habitacional Cohab Santa Marta é uma área localizada em outra região da periferia de
Santa Maria. Na década de 1990 sofreu um processo de ocupação semelhante ao verificado na Vila
Urlândia. Devido ao número crescente de novas famílias que ocuparam a área, formou-se um novo
Núcleo Habitacional denominado “Nova Santa Marta”.
80
“invasores” desvalorizam o esforço dos moradores “regulares” e, mais do que isto,
atingem seu esforço de constituir um espaço simbolicamente superior exatamente
por ser constituído por pessoas capazes de adquirir sua propriedade através dos
mecanismos socialmente valorizados, no caso, o mercado imobiliário.
A perspectiva que enseja a distinção é muito mais o fato do indivíduo se
apresentar socialmente como uma pessoa que não possui os atributos
considerados degrinitórios. Contudo, esta assertiva coloca em questão quais
seriam, afinal de contas, os atributos que os moradores qualificados como
possuidores de “índole duvidosa” ou, visto sob outro ângulo, quais os atributos
distintivos que os moradores da alta detém. Como já mencionado em outras
passagens, o fator de diferenciação dentro de áreas consideradas homogêneas vai
se dar por intermédio de critérios valorativos. Uma das estratégias utilizadas pelos
moradores da alta é dividir a história local em “antes” e “depois” da vinda dos novos
moradores. Entre lembranças e idealizações de um tempo de outrora, um tempo
mítico “onde tudo era bom”, os moradores se vêem inclinados a fixar certas
diferenças:
logo que eu comprei aqui não tinha disso (...) Olha, não tinha quase ninguém, mas tu
podia dormir de porta aberta que ninguém entrava. A porta aberta e ficava uma
tranqüilidade agora não tem mais tranqüilidade. O meu filho saiu para jantar no
primeiro do ano na casa da sogra, ficou uma hora e meia fora e foi o tempo de
levarem o vídeo cassete dele, a televisão dele. Mas é que eles cuidaram, eles
cuidam tudo. (Valtercio, morador há 39 anos na parte alta da vila).
A proposta por detrás deste marcos temporais é dividir a história local em
dois momentos distintos. Normalmente, os moradores apresentam visões e relatos
simplistas, criando caricaturas como uma reação preconceituosa direcionada aos
moradores identificados com o “depois”. Ao fazerem isso, esquecem que a imagem
de violência, se analisada dentro de uma série histórica, é produto de fatos
ocorridos muito tempo antes da vinda dos moradores do segundo movimento. Não
digo, entretanto, que outros fenômenos de insegurança não tenham ocorrido após a
incorporação de novos moradores, mas o que gostaria de frisar seria a forma
seletiva como os marcos “antes” e “depois” são utilizados para responsabilizar os
moradores posicionados na parte baixa, como se fossem estes os únicos
causadores dos transtornos verificados na localidade.
81
Além disto, em termos do tipo de laços sociais que julgam desenvolver, o
trecho acima mostra que “antes” a Vila Urlândia estava marcada por relações
sociais do tipo comunitárias, onde tudo era tranqüilo, dava para deixar a casa
sozinha, pois todos os moradores se conheciam, mas o “depois” alterou os laços
sociais, desenvolveu relações do tipo societárias marcada pelo sentimento de
perigo e vulnerabilidade.
A adoção de um discurso centrado nestes elementos de oposição vai ter
desdobramento nas práticas cotidianas, pois os indivíduos vão organizar sua
vivência local em volta deste horizonte semântico, indicando as posições ocupadas,
os espaços permitidos, os constrangimentos e as dificuldades de se desvincular
destes juízos. E, com base neste conjunto de visões, os moradores desenvolvem
práticas cotidianas de manutenção da distinção.
Mas o que torna peculiar este quadro de oposições verificado na localidade é
o fato dos moradores da alta não aceitarem a existência de algum tipo de exclusão
por sua parte. Ao contrário, o que afirmam existir é uma “auto-exclusão” destes
moradores.
Existia uma certa rivalidade, porque? Porque às vezes, não diria que pela exclusão,
porque não acredito que o pessoal aqui de cima exclui o pessoal de baixo. Mas,
às vezes, as pessoas se auto-excluem ou se sentem excluídas e uma pessoa
quando se sente excluída às vezes parte para o outro lado, desenvolve a
agressividade e assim por diante, tem muito disso (Padre, responsável pelo
catequismo na Capela São Carlos).
O processo de exclusão exercido pelos moradores hierarquicamente
superiores em relação aos inferiores no interior da Vila Urlândia vai se manifestar
nos espaços de sociabilidade presentes na localidade. Deste modo, na seção
seguinte é apresentado alguns dos espaços de sociabilidade existentes na vila onde
é possivel percebermos como o processo de exclusão dos moradores considerados
inferiores ocorre.
4.4 Espaços de diferenciação: Capela Católica
A Capela Católica São Carlos, por muitos anos, esteve sob a direção de um
pequeno grupo de moradores da alta, que desempenharam um papel ativo para
82
organização da vida religiosa da vila. A capela encontra-se numa rua central da vila,
no que os moradores da vila chamam de “núcleo antigo da vila”, em área cedida
pelo loteador logo no início do processo de venda dos lotes
37
. De inicio, a capela
congregava duas funções principais: além do ser o local das celebrações religiosas,
durante os dias de semana, funcionava como escola de ensino fundamental das
crianças da vila. Com o tempo, devido ao processo de aumento do número de
novos moradores, as dependências da escola localizadas na capela não
conseguiram suprir as necessidades, ocorrendo a falta salas de aula. Assim, a
escola acaba por se transferir para outra área, localizada numa rua paralela a
capela.
38
Por meio de várias atividades destinadas a angariar fundos para o
melhoramento do templo religioso, várias alterações em sua estrutura foram
executadas ao longo dos anos. Dentre as principais, destacam-se: a substituição
das paredes de madeira por alvenaria; a substituição da cobertura; o cercamento da
área com muro; a construção de um salão paroquial, destinado às atividades de
catequese, festas de casamento, batizado, aniversário, etc. Além disso, suas
dependências sempre serviram de alojamento das famílias desabrigadas pelas
enchentes. Hoje em dia, seu espaço incorpora ainda outras atividades, como a
pesagem das crianças, promovida pela Pastoral da Criança mensalmente, e, mais
recentemente, parte de suas dependências foi alugada à prefeitura municipal para a
instalação do Posto de Saúde Familiar (PSF).
Como símbolo de reconhecimento pelo empenho das famílias que iniciaram
a construção da capela, encontra-se afixada na sua fachada uma placa constando
os nomes das famílias que auxiliaram nas obras. São famílias dotadas ainda hoje
de prestígio. Por diversas vezes, ouvi relatos contando os anos difíceis de início da
capela-escola, quando os membros dessas famílias se dispunham a ir arrumar o
local, ao final do dia de sexta-feira, para celebração religiosa do dia seguinte e,
devotadamente, no domingo, reorganizavam tudo para servir de escola na manhã
37
O total da área doada foi de 28.880 m2, equivalente a 8 lotes de terra (4 doadas e 4 vendidas).
Uma das cláusulas do termo de doação foi que o nome do padroeiro da capela fosse São Carlos
Barromeu, padroeiro de devoção da familiar Uhr.
38
Atualmente, a Vila Urlândia conta com outras denominações religiosas. Contudo, para o estudo,
nos centramos na observação das atividades promovidas na Capela Católica, em função de sua
vinculação histórica na localidade. Porém, cabe mencionar que estas novas igrejas e templos
religiosos encontram-se situados na parte baixa da vila, o que permite supor que o processo de
desconforto sentido pelos moradores desprestigiados possa ser um dos fatores que contribuíram
para a geração de uma migração para novas religiões.
83
de segunda-feira. Embora algumas destas pessoas já tenham falecido, grande parte
ainda permanece residindo na área. Por vezes, quando me eram relatado esses
fatos, não se furtavam em apontar em direção às casas onde morava cada uma das
famílias ou, ainda, onde residem seus filhos e filhas, mostrando com isso, um baixo
nível de mobilidade migratória, visto que os filhos permaneciam e criavam família no
mesmo lugar.
Em meio a isso, nos depoimentos, alguns moradores se queixaram da forma
de atuação deste grupo de moradores na condução da capela. Disseram que estes
moradores “não gostavam” que moradores “pobres” participassem em suas
atividades religiosas. O descontentamento com a participação de pessoas “sem
prestígio” ocorria de forma velada, através de jogos de olhares, interpretados por
expressões como: “eles ficavam cuidando o seu jeito de andar” ou “a roupa que
usávamos”. Por isso, conforme os depoimentos colhidos, os moradores da baixa
não se sentiam bem em participar dos cultos religiosos.
Figura 8: Capela São Carlos
Este sentimento de desaprovação vai originar, entre os moradores da baixa,
o pedido à direção da paróquia para que fosse edificada outra capela, localizada
“mais embaixo da vila”. A solicitação foi acatada, sendo então construída a Capela
Nossa Senhora de Fátima, nas imediações do “Beco da Landa”. A organização das
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atividades de culto e celebração, pessagem das crianças e distribuição de roupas
e mantimentos às famílias da localidade esteve sob a responsabilidade de algumas
voluntárias ligadas a Pastoral da Criança que residiam fora da Vila Urlândia.
Através de rede de relações que as voluntárias mantinham, conseguiam
arrecadar vários mantimentos e agasalhos para distribuição entre as famílias mais
carentes da localidade. Contudo, a medida que a interação com as famílias se
fortalecia através da prática de doação e atividades religiosas, o grupo de
moradores que não estava interessado na presença de “estranhos” no beco começa
a hostilizar as voluntárias e a depredar a capela. Nos dias de culto, adotavam
posturas marcando seu descontentemento com a presença das voluntárias através
de música alta, algazarra na frente da capela entre outras posturas que sinalizavam
seu desacordo com a movimentação que a capela estava gerando no beco e
arredores.
A adoção de atitudes hostis ao trabalho voluntário executado na Capela
Nossa Senhora Medianeira, acaba por catalizar, ainda mais, um conjunto de visões
preconceituosos acerca dos moradores da parte baixa: “Ali tem uma montoeira de
marginal então tu não tem sucesso para trabalhar ali. Quando tu vê estão
quebrando tudo” (Eneida, moradora há 10 anos da parte Alta da Vila Urlândia).
Assim, as pessoas da alta tendiam a ver os delitos promovidos por um grupo de
moradores da área como sendo atitudes típicas da população inteira, “lá é tudo
assim”.
Figura 9: Capela Nossa Senhora da Medianeira
85
A falta de pessoas responsáveis em dar andamento às atividades de
Celebração dos Cultos na Capela Nossa Senhora de Fátima acabou inviabilizando
sua continuidade. Atualmente, esta capela encontra-se fechada, só permanecendo
com sua estrutura física.
Na realidade essa aqui de baixo não funciona, também não tem como, não teria
como tu ter duas igrejas numa comunidade, mas isso já fui fruto da discriminação, ou
seja, o pessoal queria ir na missa lá em cima chega lá tinha ido com uma roupa mais
simples já era olhado por alguém que estava lá na época, se sentia discriminado,
não se sentia a vontade para ir à missa daquele jeito. Então vamos fundar uma
Capela aqui em baixo, para o nosso povo, o que é uma forma de discriminação, de
autodiscriminação. (...) Se alguma época houve, e até acho que ouve uma
discriminação, não existe mais isso. Por isso que acho que não tem mais razão de
ser essa divisão. (Carlos, morador há 25 anos morador da parte baixa da vila).
Durante o transcurso da pesquisa, uma nova diretoria da Comunidade da
Capela localizada na alta fora eleita. Sob novos coordenadores, a sensação de
desconforto parece ter diminuído: “Hoje te diria que não tem mais razão de ser [as
duas capelas] porque até o próprio pessoal que está na igreja católica é bem mais
acessível do que algumas pessoas que estavam antigamente” (Carlos, morador há
25 anos morador da parte baixa da vila). Além disso, durante as atividades da
Pastoral da Criança, seguido apareciam expressões que apontavam o tratamento
que a nova direção tinha para com os moradores da baixa. Segundo relatos das
voluntárias da pastoral, seriam pessoas mais interessadas em “ajudar as pessoas
mais carente”, pessoas que “tinham ascendido economicamente, mas se
importavam em abrir a capela a todo mundo da vila”.
O que não neutralizou, contudo, as práticas discursivas, ressaltando as
qualidades diferenciadas de cada grupo através de expressões que apontavam as
condições econômicas e “culturais” diferentes, isto é, enquanto o grupo de
moradores identificados da alta é visto como dotado de recursos econômicos
melhores e grau de educação elevado, os moradores da baixa sempre são
apontados como carentes e dotados de posturas agressivas, sem educação.
Além disso, quando informava aos moradores da alta minha intenção de
realizar entrevistas e observações com todos os moradores, como resposta obtinha
certos “conselhos” sobre os cuidados que deveria ter ao transitar por determinadas
ruas da parte de baixa. Estes conselhos me pareceram dotados de dois sentidos:
por um lado, indicavam uma preocupação com minha segurança; por outro,
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buscavam definir as pessoas com que deveria ou não conversar, pois julgavam
desnecessário que fosse ver/conversar com os moradores “daquela área”. Segundo
os moradores da alta, estes teriam muito pouco a dizer e, aquilo que porventura
dissessem, com certeza não seria “coisa boa de ser ouvida”. Isto também ocorreu
quando alguma das agentes comunitárias de saúde da localidade indicava as
pessoas que eu deveria entrevistar. Ao mesmo tempo em que indicava os
moradores que pudesse projetar aquilo que considerava uma imagem positiva da
vila, sinalizava que não se deve falar com “qualquer um”.
4.5 Pastoral da Criança
Outro espaço onde foi possível perceber o processo de diferenciação dos
moradores ocorreu nas atividades de pesagem executada pelas voluntárias da
Pastoral da Criança, que é feita mensalmente entre as crianças menores de sete
anos. Caso a criança esteja muito abaixo do peso recomendado, é distribuído um
suplemento alimentar às mães. Além disso, neste dia, uma refeição é preparada e
distribuída às famílias. Normalmente, o cardápio consistia num “Sopão” bem
nutritivo, com ingredientes, na maioria das vezes, adquiridos por doação. O detalhe,
é que poucos estabelecimentos comerciais da região colaboram com doações.
Estas, na sua maior parte, vinham de fora da vila, através da rede de contatos que
as voluntárias estabeleciam para este propósito. Como salienta uma entrevistada:
afinal “aqui ninguém se ajuda”.
Nestes dias, era recorrente ver inúmeras mães com crianças de colo ou
mesmo com idade superior a sete anos se aglomerando a espera da refeição que
fervia no caldeirão. Muitas portavam consigo recipientes plásticos, pois quando
sobrava alimento poderiam levar para casa um pouco mais. Durante o preparo da
refeição, quando só estávamos nós a descascar e triturar os condimentos, os
diálogos entabulados, vez por outra, grifavam a pobreza existente na parte baixa, o
quanto às famílias que vinham buscar a refeição eram carentes, pobres: “se tu for
ver, são todos daqui de baixo, este tipo de pessoa não tem aqui em cima”.
87
Figura 10: Dia de “Sopão” no salão paroquial
Como não existiam portas separando o refeitório da cozinha, era normal
haver crianças transitando por estes dois ambientes. Por isso, logo na primeira vez
em que participei da atividade do “Sopão”, fui alertado para não deixar meus
pertences a mostra, pois “alguém podia roubar”. Esta forma de perceber as coisas
ficou ainda mais patente numa atividade posterior, quando surgiu a suspeita de que
uma das crianças teria roubado um rolo de fios de cobre que seria utilizado na
instalação elétrica e encontrava-se, no momento, depositado nos fundos da
cozinha. Quando deram falta do material, rapidamente uma das voluntárias lembrou
que há poucos instantes atrás viu por ali um “daqueles que moram lá no beco”,
afirmando que “só pode ser ele, também com a família que tem... começou cedo”.
Agindo assim, tanto as agentes de saúde quanto as demais voluntárias,
adotavam ações reforçando a visão desprestigiada da parte baixa. Através de
comentários como deste tipo, reforçam o estigma de que os moradores da área
seriam moralmente inferiores.
A maioria das voluntárias é composta pelas agentes comunitárias de saúde e
outras mulheres da região vinculadas à capela. Todas são residentes da Vila
Urlândia, em suas diferentes sub-áreas. No entanto, quando uma das mulheres
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residentes na parte identificada como baixa tecia um comentário sobre os
moradores desta área, normalmente utilizava expressões do tipo “eles os pobres”
ou “eles os carentes”, sempre se colocando numa posição de exterioridade. A razão
implicada nesta postura ocorria devido a sua condição de membro atuante na
organização das atividades da Pastoral, um atributo diferenciador capaz de afastá-
la do conjunto de visões estigmatiza de seus vizinhos. Conseguia, assim, uma
posição de destaque em relação aos demais moradores da parte baixa que
permaneciam enredados no estigma que sua condição dentro da estrutura
hierárquica da vila posicionava-os.
Por residir em diferentes pontos da localidade e atender diferentes áreas,
cada agente comunitária de saúde possui uma visão particular da realidade
existente dentro da vila. Isso ficou evidenciado quando estávamos realizando uma
das atividades da Pastoral da Criança, ao final da qual fui agendar os dias em que
iria acompanhar cada uma das agentes naquela semana. A cada nome escolhido,
surgiam comentários sobre as pessoas que encontraria: “Ah! Amanhã tu vai à parte
mais pobre da vila”, “depois tu vai à parte nobre, na parte rica!”. Algumas vezes, tais
comentários geravam uma réplica das agentes que atendiam a área mais
estigmatizada: “não fale mal do meu povo”, “eles são pobres, mas não são o que
todo mundo pensa”.
A busca por parte de alguns moradores de instituir uma distinção na Vila
Urlândia também se expressa por meio das visões que projetavam em relação à
atividade de visita domiciliar das agentes de saúde. Segundo o trecho de entrevista
abaixo a visita das agentes de saúde é identificado como um atributo vinculado aos
moradores da baixa, pois este é que “necessitam de ajuda”, uma vez que sua
condição de inferioridade social exige a adoção de posturas de assistência.
Enquanto que, os moradores superiores, por sua condição elevada dentro da
estrutura da vila não precisam deste tipo de serviço. Deste modo, fortalecem a visão
estigmatizada de que os moradores da baixa estão inseridos num ambiente
moralmente inferior.
eles priorizam mais a população mais... Mais carentes. Aqui elas não vem muito,
elas nunca vem aqui. Acho que elas priorizam a população mais carente, mais
necessitada eu acho que é isso. (Rosa, 43 anos moradora da parte alta Vila).
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Entretanto, cabe ressaltar que todas as residências da vila em algum
momento eram visitadas pelas agentes comunitárias de saúde. Ao que parece os
moradores superiores não valorizam este tipo de serviço como um atributo
importante, pelo contrário, afirmavam muitas vezes que, caso precisassem recorrer
a um serviço médico, optam em ir diretamente ao Pronto Socorro do Município ao
invés de terem um encaminhamento via posto de saúde da localidade ou informam,
ainda, dispor de plano de saúde particular. Deste modo, visualizam a existência do
serviço das agentes de saúde e, em certa medida, do posto de saúde da localidade
– PSF- como um espaço destinado aos moradores da parte baixa.
4.6 As ações da associação de moradores
A Vila Urlândia não dispõe de um Centro Comunitário, deste modo, as
atividades de confraternização dos moradores da localidade ocorrem, na maioria
das vezes, nas dependências do salão paroquial da Capela São Carlos. Durante o
período do trabalho de campo, foi promovida uma festa comemorativa no salão
paroquial em alusão ao aniversário da Associação de Moradores da Vila Urlândia. A
confraternização consistiu num almoço dançante que teve como público os
membros do grupo de Hipertensos que freqüentam o Posto de Saúde por dois
motivos principais. Primeiro devido aos custos que envolveriam a realização de uma
atividade destinada a um público maior e, a segunda razão, decorrente da primeira,
foi privilegiado um grupo já organizado, pois, assim, saberiam ao certo o número
total de participantes. Embora não foi possível descobrir de que sub-áreas as
pessoas que participaram eram provenientes, nas conversas relatadas
posteriormente ao ocorrido soube que a maioria foi composta por moradores da
alta.
Sobre a atuação da direção da Associação de Moradores da vila, por
diversas ocasiões, ouvi relatos de moradores que consideram o trabalho de seu
presidente aquém do que julgam necessário ser feito, dada a carência existente na
localidade. Afirmam que ele não “desce no fim da vila”, que seu trabalho fica
concentrado apenas na parte “rica” da localidade. De maneira geral, apontam que
as necessidades dos moradores da baixa são distintas dos problemas enfrentados
pelos demais moradores. Dessa maneira, seria necessário que existisse uma
90
liderança mais interessada em solucionar as demandas do “povo de baixo”. No
limite, defendem que a liderança escolhida devesse ser um morador residente na
parte inferior da vila, pois assim estaria mais consciente dos problemas locais, não
ficando somente interessado nas questões “políticas” de autopromoção.
Bom aqui na vila ele não aparece (...) Ele não conhece a metade dos problemas
daqui para baixo. Eu nem sei como é que se elegeu.(...) O certo seria um cara daqui
da vila, um cara que se interessa (Maria, moradora há 19 anos na parte baixa da
vila).
Outra atividade, que reforçou o sentimento de desprestígio por parte da
direção da associação em relação aos moradores da baixa, teria sido a festividade
de Natal do ano de 2004. A princípio, estava marcada uma atividade de distribuição
de doces às crianças de toda a vila. Entretanto, segundo comentários dos
moradores, a atividade ocorreu apenas numa pequena área da vila que o
presidente da associação considerava importante ser visitada, seria uma área
localizada na parte alta da vila. Da parte do presidente da entidade, o motivo
alegado para distribuição parcial foi provocado pela morte, na véspera do dia de
distribuição, do seu vice-presidente. Como ele é que estava responsável pela
atividade, o presidente não teve como transferir para outro dia a distribuição. Por
isso, achou por bem escolher uma área para a entrega. Esta postura ocasionou
certo desconforto entre os moradores da baixa, pois muitos viram nisso mais uma
forma de discriminar a “população de baixo”, pois, no momento em que deixou de
atender toda a população da vila se centrando apenas numa área na qual teria
maior influência eleitoral, não estaria interessado em atender os moradores da Vila
Urlândia, mas sim uma pequena porção desta.
4.7 O campo de futebol e suas possibilidades
A Vila Urlândia é dotada de três times de futebol amador, que jogam nos três
campos existentes dentro da vila: dois na parte baixa e um terceiro na alta da vila.
Não foi possível estabelecer um contato mais estreito com os times, o que poderia
nos permitir saber quem participa e assiste aos jogos. Contudo, nas entrevistas, os
moradores da alta afirmam que não assistem ou participam dos jogos de futebol por
91
considerar que o local oferece risco, podendo acontecer alguma briga ou violência.
Por isso, preferem “não se misturar”. Como lazer, optam por atividades em clubes
da cidade ou alegam não ter o hábito de realizar atividades recreativas, preferindo
ficar em casa.
Especificamente em relação a um dos campos de futebol existente na parte
baixa da vila, um grupo de moradores ligado ao time de futebol, estava recolhendo
documentos sobre o time, sediado neste campo, para enviar a um deputado
estadual da região interessado em desenvolver um projeto de construção de uma
sede esportiva na vila através da emenda parlamentar. Contudo, o projeto não teve
prosseguimento, pois, a área onde o campo de futebol está localizado encontra-se
em condição irregular (trata-se da área que seria destinada a área verde do
loteamento). Deste modo, para viabilizar o projeto seria necessário que toda a
extensão de terra fosse regularizada, inclusive os lotes de terra que estão
localizados nas imediações do campo de futebol, ocupados por famílias
provenientes do segundo movimento de moradia ocorrido na Vila Urlândia.
Os moradores nesta condição de irregularidade, ao tomarem conhecimento
da necessidade de realizar a regularização fundiária, ficaram divididos em duas
opiniões contrapostas. Enquanto uma parte se mostrou desfavoráveis ao projeto,
pois viam na legalização da área o risco de serem obrigados a pagar os impostos
municipais, e por isso recusaram participar de qualquer movimento que tencionasse
mudar o estado dos lotes; preferindo que as coisas ficassem do jeito que estavam.
Já a outra parte dos moradores da área percebeu na construção do centro esportivo
a possibilidade de desenvolver a localidade e mostrar, assim, que a parte de baixo
“não é o que as pessoas imaginam”. Assim, os melhoramentos que o campo de
futebol iria receber seriam irradiados a todos os moradores, se constituindo como
um atributo capaz de contrapor o estigma existente na área. Até o final da atividade
de coleta de dados nenhuma atitude no sentido de viabilizar a regularização
fundiária foi encaminhada.
4.8 Termos que definem
Transcorrido dois meses de pesquisa de campo, em um dia em que estava
conversando com o presidente da Associação de Moradores da vila sobre os
92
problemas de alagamento das ruas e da falta de saneamento básico existente em
certos trechos, uso a palavra Sapolândia para me referir a população residente na
parte baixa da vila supondo que a expressão ouvida no Posto de Saúde fosse
utilizada correntemente. Mal termino de dizê-la, me deparo com uma fisionomia que
retrata um misto de surpresa e constrangimento, seguido da frase: “Faz tempo que
não ouvia isso! Quem te disse isso?”.
Por detrás do termo, está em jogo a própria definição dos moradores da
baixa, pois identificá-los como “sapos”, habitantes de um “brejo”, expressa uma
atribuição de valor (ou melhor, de desvalor), que os coloca como figuras de baixo
prestígio dentro da hierarquia local. Neste caso, a capacidade de exercer o poder,
objetiva e subjetivamente, se expressa na capacidade de fazer com que o termo
pejorativo seja aceito sem reação pelos próprios moradores por ele depreciados.
Entretanto, o emprego do termo depreciativo Sapolândia, dentro da vila, não é
utilizado por todos os moradores, como visto nos exemplos do presidente da
associação de moradores e na fala de uma entrevistada: “isso dito por eles mesmo,
se chamavam assim mesmo” (Marta, moradora há 52 anos na parte alta da Vila).
Mas entre os moradores residentes nas áreas próximas do córrego seu uso aparece
em contextos específicos como uma forma de rir de sua própria tragédia.
Tive esta impressão ao presenciar o seguinte episódio: estava na frente do
Posto de Saúde da Vila Urlândia esperando a agente de saúde que iria acompanhar
no trabalho de visita domiciliar nesta manhã. Este dia estava chovendo, para me
proteger da chuva permanecia de baixo da cobertura do posto de saúde, além de
mim, duas outras senhoras me faziam companhia, mas por motivos outros.
Aguardavam o posto de saúde abrir, pois tinham uma consultar agendada para este
dia. Eram senhoras de aproximadamente trinta anos residentes na parte de baixo
da vila, como as reconheci das atividades da Pastoral me aproximo e iniciamos uma
conversa. Em dado momento do diálogo, faço um comentário sobre a chuva que,
naquele momento, ficara mais intensa e, por isso, achava que a agente de saúde
não viria mais. Ao ouvirem tais comentários, uma das mulheres afirma que,
dificilmente, a agente de saúde poderia cumprir seu compromisso, pois “com essa
chuva, lá em baixo fica tudo alagado, não dá para sair... Não é à toa que lá em
baixo é a Sapolândia... com essa chuva também”. E começam a rir. Ou seja, num
contexto social marcado por diferenças históricas, a força normativa presente na
93
denominação Sapolândia, expressa e, ao mesmo tempo, naturaliza um juizo sobre
si mesmo, e dado a impossibilidade de alterar esta condição, a única coisa a fazer é
rir da situação adversa.
Assim, por mais que o presidente da associação de moradores desaprove o
termo, tentando apresentar um discurso de integração e unidade ou mesmo os
moradores da alta não utilizem o termo, existe, por parte dos moradores vitimas do
estigma uma utilização como que “naturalizada” ou, utilizando a terminologia de
Bourdieu, “incorporada”, de fixar em si uma posição de inferioridade, pois embora
rindo de sua situação, no momento que verbalizam o termo este os define como um
grupo posicionado numa condição de inferioridade dentro da hierarquica local.
4.9 Não sou da Urlândia, sou do Parque
Como apresenta RIBEIRO (2001), em sua pesquisa na cidade de Barra das
Garças, no Mato Grosso do Sul, uma vila pode ser vista como um recorte físico que
define a condição de morador de periferia e representa um lugar dos pobres. Neste
sentido, a diferenciação social perpetrada por parte dos moradores da Vila Urlândia
ganha um sentido mais forte quando analisamos o processo instaurado na Rua
Agostinho Scolari. Para parte de seus moradores, a clivagem social entre parte alta
e parte baixa da Urlândia “é uma outra coisa”, “diz respeito a outra vila”. Segundo
contam, sua rua pertence a uma outra localidade, faz parte de um contexto social
distinto da Vila Urlândia.
Em sua fala, alguns moradores daquela rua dizem pertencer, não à Vila
Urlândia, mas ao Parque Residencial São Carlos, que seria uma outra região, “ao
lado da Urlândia, mas não na Urlândia”. Este processo, de tentativa de separação
da rua em relação ao restante da Vila Urlândia, teve início no ano de 1994, a partir
da iniciativa de um grupo de famílias descontentes com os encaminhamentos que a
Associação de Moradores da Vila Urlândia estaria tendo, em reivindicar junto a
prefeitura municipal o calçamento de sua rua. A razão que justificava sua
reivindicação estava assentada no juízo que faziam sobre a importância singular da
rua para a economia do município, pois em sua extensão encontram-se situadas
três pequenas indústrias familiares: duas fábricas de móveis e uma olaria. Alegando
que as deficiências estruturais da rua estariam prejudicando seus negócios,
94
principalmente no inverno, quando “a rua ficava intransitável, os clientes não
conseguiam vir”, resolvem criar uma entidade que representasse seus interesses.
Fundam, assim, a ACOPAC (Associação Comunitária do Parque Residencial São
Carlos). A partir disso, vão buscar, junto a alguns vereadores da época, apoio
econômico para execução do calçamento da via. Num curto período de tempo,
conseguem que sua reivindicação seja acatada e a obra de calçamento com pedra
irregular é executada. Mas, segundo outra versão dos fatos, defendida pelos atuais
membros da direção da Associação de Moradores da Vila Urlândia, o que ocorreu
ali teria sido a tentativa:
de um grupo que queria participar da associação, segundo relatos que eu ouvi, e
como não conseguiram participar da eleição, era um grupo de pessoas que tinham
uma certa posição social, financeira, resolveram fundar uma outra associação. E aí
se deu esse novo grupo dentro da Urlândia, que acabaram fundando essa nova
associação, só que essa nova associação não funciona junto aos meios legais, por
exemplo, quando há a reunião junto a UAC (União das Associações Comunitárias), o
próprio PSF quando faz as reuniões, a prefeitura quando organiza reuniões, eles
não participam com entidade. Eu não sei qual a idéia deles nesse sentido, eles não
participam disso (Valdenei, morador há 36 na parte alta da vila).
Os caras tentaram criar uma entidade, mas tu não pode ter uma entidade de algo
que não existe. Por exemplo, se tu pegares a associação dos moradores da Vila
Urlândia é uma sociedade com registro no cartório de Registros Especiais, tem o
Estatuto registrado, tem sua ata de fundação registrada é filiada à UAC [União das
Associações Comunitárias], portanto é filiada a FRACAB e a Conam [Confederação
Nacional das Associações de Moradores]. Tem toda essa história, quando os caras
fundaram uma associação que não existe, não são filiados a UAC, não tem registros
em lugar nenhum, não são reconhecidos na prefeitura municipal então quer dizer,
não existe. Existe na cabeça de algumas pessoas. Tanto é que a grande maioria dos
moradores da Rua Agostinho Scolari são filiados a associação de moradores da Vila
Urlândia até porque muitas das pessoas de lá foram fundadoras da associação de
moradores da Vila Urlândia(...)“ah, nós não queremos ser da Vila Urlândia. Então
nós somos do Parque Residencial São Carlos” só que de fato e de direito isso não
existe, é mais uma forma de discriminar de não querer dizer que mora na Vila
Urlândia.(Carlos, morador há 25 na parte baixa da vila).
Não obstante as disputas de legitimidade política existente entre as duas
entidades, a atuação da direção da ACOPAC acaba servindo como indicador de
prestígio social de seus moradores, pois revela a capacidade de organização para
buscarem uma solução do problema que enfrentavam na época. Desta forma o ato
de dizer que pertencem a uma outra categoria social – moradores do parque- é
convertido num atributo que os posiciona externamente em relação aos problemas
existentes no restante da vila. Tanto que, afirmam que o único problema de “sua
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rua” é o fato do “pessoal ai de baixo que, quando passa fica fazendo algazarra,
batendo nos portões”.
Indagados sobre sua relação com a Vila Urlândia, disseram compreender a
existência de duas áreas com formações distintas. A tendência de suas respostas
foi reproduzir a noção de que a alta seria “superior” por ser composta pelas famílias
mais antigas, onde todos são trabalhadores, entre outros juízos qualificantes que
ressaltam as virtudes de seus moradores. Do ponto de vista de sua relação de
sociabilidade, afirmam ter contato estreito com os moradores da alta, vão à capela
católica, conhecem seus moradores, embora não se visitem muito. Já em relação
aos moradores da baixa, comungam da percepção desqualificante de seus
membros, identificando todos como “marginais”, que nutririam uma revolta para com
qualquer morador que não seja do seu pedaço.
Uma vez eu desci lá para baixo, eu e as gurias daqui, só mulher quatro ou cinco.
Nossa turma, o pessoal de lá eu acho que cem por cento me conhecem ou cem por
cento não digo, mas noventa me conhecem porque eu tinha uma loja aqui. (...) Bom,
descemos, meu Deus, para descer tudo bem, foi indo, mas para voltar eu não sabia
como fazer para voltar de tão... Tu olhava as caras e te apavorava, te apavorava e
jurava que não iria ter condições para sair de lá, parecia que ficavam te marcando do
tipo “que vem fazer aqui, nos explorar ou coisa parecida. Acho que é o que eles
imaginavam ou coisa parecida”. Ficava assim que, bom para encurtar, eu tive
pesadelo de noite de pensar como é lá para baixo, é horrível, horrível. Não sei a
gente não é acostumada, acostumou aqui aberto, todo mundo conhecido. Tu desce
para lá e... De dia é difícil, de noite nem pensar. (Silvia, moradora há 55 anos na
parte alta da vila).
Entretanto, como dito, a posição defendida por alguns moradores da Rua
Agostinho Scolari, de pertencerem a uma outra realidade fora da Vila Urlândia, não
é consensualmente aceita. Outros moradores da rua, ao contrário, se consideram
como moradores da vila: “isso de separar foi coisa de uns aí de baixo da rua”. Em
parte, a divergência de discursos decorre do fato da entidade não permanecer com
uma atuação mais intensa hoje em dia, afinal “está tudo bom” (Mauro, há 8 anos
morador da Vila, presidente da ACOPAC). Sobre isso, cabe mencionar, também,
que o período da gestão do atual presidente já expirou há a um ano (a gestão é de
dois anos) e não houve nova eleição, devido ao desinteresse dos moradores. Tal
desinteresse se expressa no fato de que nas duas reuniões convocadas para
deliberarem sobre o novo pleito não houve participação de moradores. Deste modo,
o atual presidente permanece no cargo.
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A tentativa de separação em relação ao restante da Vila, desenvolvida pelos
moradores da Rua Agostinho Scolari, está revestida da idéia da construção da
diferença entre os grupos, fundamentada em uma noção de espaço social distinto
(Bourdieu:1997). A construção de um discurso, que busca a valorização do Parque
como “realidade à parte da Vila Urlândia”, desempenha a função de estabelecer
uma fronteira simbólica entre os grupos. A partir do momento que instituem um
discurso da rua como não pertencente à Vila Urlândia, mas ao Parque Residencial
São Carlos, almejam se afastar do estigma existente em relação àquela. Como
estratégia de distinção, buscam projetar uma imagem pública de prestígio,
ressignificando, através de deslocamentos discursivos tal como encontrado na
substituição da denominação de “vila” para a de “parque”, o seu local de moradia. É
importante destacar que esta marca, impressa nos moradores em virtude do local
de sua residência, é de grande importância, particularmente no que se refere à
definição de sua posição no universo de relações sociais mais amplas, ao nível
municipal. Ou seja, a construção da noção de que constituem uma realidade distinta
e superior àquela que é projetada na Vila Urlândia, é um importante elemento para
a definição do status destes moradores.
Contudo, as pessoas entrevistadas que afirmaram pertencer ao Parque
Residencial reconhecem que, na maioria das vezes, a categoria Parque não é um
código reconhecido fora dos limites da vila e arredores. A situação mais recorrente
na qual esta dificuldade se apresenta se dá no momento em que precisam informar
o endereço de sua residência a um estranho: “Olha, tu vai falar Parque São Carlos
o pessoal não sabe, então eu digo Vila Urlândia mesmo, que é mais fácil” (Marilene,
moradora há 6 anos na parte alta da vila). Assim, apesar de seus esforços de
diferenciação, para poderem se apresentar socialmente fora do espaço da vila,
estes moradores precisam apelar para identificação com a Vila Urlândia,
fragilizando sua posição.
4.10 Escola como dispositivo diferenciador
Outro espaço, no qual são empregadas as estratégias de estigmatização
verificados no contexto da Vila Urlândia, é a escola local. Este ambiente privilegiado
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de contato entre os jovens foi convertido num lugar demarcador de diferenças. A
escola da rede municipal funciona nos turnos da manhã e tarde, atendendo às
crianças da primeira a oitava série do ensino fundamental, totalizando
aproximadamente 600 alunos. Como já foi destacado, inicialmente a escola
funcionava junto à Capela Católica São Carlos. Posteriormente, mudou-se para um
terreno localizado na rua Agostinho Scolari, o qual foi doado ao município.
Entre as quatro pessoas entrevistadas das duas sub-áreas que tinham filho
em idade para freqüentar o ensino fundamental, três tinham filhos matriculados em
escolas, públicas ou particulares, localizadas fora do perímetro da vila. Ao contrário
do que poderia se supor inicialmente de que somente os pais da alta desejassem
evitar que seus filhos tomassem contato com as crianças filhas dos moradores da
baixa, mesmo pais residentes na parte baixa que dispõem de condições
econômicas para matricular seus filhos fora da escola da vila o fazem. As razões
alegadas para adoção desse tipo de medida, além de avaliações que ressaltam a
qualidade do ensino da escola local ser inferior ao prestado em outras instituições
de ensino, destacavam o objetivo de evitar que seus filhos “tomem contato” com os
demais moradores da vila. Desta forma, buscam neutraliza possiveis contatos dos
filhos com as crianças que estudam na localidade e, entre a família residente na
área considerada inferior que tem filho estudando fora da vila, este fator se converte
num atributo diferenciador, pois, embora, resida na área estigmatizada, o local de
ensino serve como elemento que distancia a criança do restante das crianças da
localidade.
O que está acontecendo na escola aqui, o pessoal com um pouquinho de poder
aquisitivo estão tirando os filhos daqui. Estão ficando só os que não tem opção.
Porque não dá, é a violência, é isso, é aquilo. E as realidades são diferentes, basta
dizer, desde um banho, tu chega numa sala de aula e o professor tem vontade de
sair porta fora de volta. (Chica, moradora há 36 na parte alta da vila).
Ao que parece, existe uma atmosfera de receio envolvendo a aproximação
entre seus filhos e as demais crianças da Vila Urlândia. Desde cedo, os pais que
podem, retiram os filhos do grupo escolar local. Em certa medida, tal postura se
aproxima da lógica adotada pelos moradores de Winston Parva, ao se afastarem
dos bares locais – pubs – como forma de manifestar sua desaprovação com a vinda
dos novos moradores, reservando para si um bar diferenciado (Elias; Scotson:
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2000). Contudo, na Vila Urlândia, o processo de exclusão dos espaços de
convivência assume tonalidades mais fortes, pois além de buscar evitar o contato
na escola, os pais ampliam sua ação diferenciadora através da retirada das
crianças de todos os espaços de sociabilidade local. Em especial, do espaço da
rua. Tal esforço se expressa quando afirmam, aliviados, que seus filhos não
participam da vida social nas áreas públicas nem tampouco recebem ou têm amigos
residentes na vila:
Tem até uns que vem aqui conversar com ele [filho] é sabemos que os pais não são
grandes coisas. A gente diz olha, tu abre o olho com esse guri, pode ser uma rica
pessoa, mas o pai a gente sabe que não é. (...)de uma hora para outra pode mudar.
Olha hoje para cuidar um filho é fogo na roupa. Deus o livre. (Clarissa, moradora há
35 anos na parte alta da vila).
Assim, o local onde se estuda serve como um atributo que qualifica o
indivíduo. Deste modo, a entidade de ensino é reconhecida com um importante
espaço social da vila que vai reforçar nos estudantes o estigma de estudar na
localidade. Logo nos primeiros dias de campo, pude verificar como o espaço da
escola reforça juízos moralizantes entre os agentes sociais que atuam na
localidade. Ao final de um dia de conversa com o presidente da associação de
moradores da vila, já estava me despedindo, quando vimos passar na rua um
automóvel com velocidade reduzida. A poucos metros de onde estávamos, o carro
pára e de seu interior saiu uma senhora, de aproximadamente cinqüenta anos, que
caminhou em direção à frente de seu veículo. Ao ver esta cena, a liderança
comunitária foi ao encontro da mulher. Supus que fosse alguma conhecida sua e,
assim, fui junto. No momento que nos aproximávamos, a mulher que estava
abaixada, olhando a roda dianteira, detectou que o pneu estava esvaziando.
Imediatamente, ela elevou o tom da voz e começou a falar frases de desabafo.
Dizia ela: “Estes marginais é que fizeram isso. Só pode ser coisa dessa gente...
para esse povo não dá para dar nada mesmo. São um bando de ladrões. Agora vou
me atrasar para o médico. Essa gurizada que sai da aula e fica na frente da escola
são tudo um bando de marginal!”. Já recomposta, o presidente da vila tentou
acalmá-la, dizendo que na esquina havia uma borracharia e que poderia arrumar
rapidamente o pneu. Como a borracharia era muito próxima mesmo, fomos
caminhando junto. Depois que o trabalho de conserto do automóvel foi concluído, o
presidente que, como supus, conhecia a mulher, acha por bem me apresentar:
99
Diretora, este é um rapaz que está fazendo um estudo na vila”. Dessa maneira,
acabei sendo apresentado à diretora do grupo escolar da vila.
O forte traço de estigmatização dos estudantes da escola local, presente na
fala da diretora, reforça as motivações alegadas pelos pais que tem seus filhos
matriculados fora da escola. Além de buscar afastar seus filhos deste ambiente
estigmatizador, numa tentativa de neutralizar uma “contaminação”, almejam
fortalecer sua condição de distinção na medida em que reforçam o fato dos filhos
não estudarem ali. Desta forma estão imunes ao estigma local e não serão vistos
como crianças “sem opção” ou “marginais”.
4.11 A culpa é do beco
Caminhando pelas ruas que cortam a extensão da Vila Urlândia em direção a
parte baixa, o que se constata é uma realidade, do ponto de vista urbanístico,
diferente da parte alta. São ruas, como dito anteriormente, calçadas ou asfaltadas.
Contudo, pela condição de estar localizada numa área mais baixa, próximo ao
córrego que margeia a vila, com o volume das chuvas, alguns trechos das ruas não
conseguem escoar as águas, desta forma, ficam empossadas. Além disso, percebe-
se uma diferença no tipo de infra-estrutura das casas, pois na parte baixa, raro são
as residências que dispõem de muros altos, portões com grade e demais
dispositivos de segurança. Nas ruas vicinais desta área, o que se observa, são
residências comparativamente mais empobrecidas, com ruas e viela estreitas, nas
quais pessoas ficam nas esquinas, estabelecendo diálogos sobre a dificuldade que
enfrentam em conseguir um emprego fixo, que trabalhar com material reciclado é
uma atividade muito cansativa e desgastante, mas como não tem outra
possibilidade tem que se sujeitar a este tipo de trabalho.
Além disso, observando os diálogos e preocupações dos moradores das
duas partes da Vila Urlândia, nota-se uma diferença importante em seu conteúdo.
Os moradores da alta mostravam ter uma forte preocupação com a violência, com
uma sensação de insegurança a todo o momento, apresentando como justificativas
a ameaça constituída pela “presença do pessoal aí de baixo”. Já por parte dos
moradores identificados na área baixa, as preocupações giravam em torno de
100
temas como falta de trabalho, falta de saneamento básico nas ruas, iluminação
pública e, de forma mais branda, os assaltos que ocorrem na vila. Conversando
com alguns dos representantes dessa segunda área, percebe-se que a
transferência do estigma através da condenação moral de seus membros não é
aceito em sua plenitude. Os moradores identificados como da baixa, por mais que
saibam que “eles dizem que somos assim”, afirmam que os motivos para
desprestigiá-los é fruto de algumas “áreas violenta da vila” e não “de todo mundo
daqui”.
O esforço de diferenciação realizado pelos moradores “de cima”, tão
presente em suas falas, não provoca, entre os moradores da baixa, simplesmente
resignação ou aceitação de uma posição inferior dentro da estrutura local. Pelo
contrário, estes informavam que a justificativa “para nos discriminar” seria em
grande medida produzida pela existência de focos de violência e tráfico de drogas
que estão localizados em pontos determinados da área “de baixo”. Seriam pontos
isolados, mas devido ao desenvolvimento de atividades criminosas,
fundamentariam um estigma que é convertido em atributo de todos os moradores
da área. Como as agentes comunitárias de saúde mencionavam, “tem áreas da vila
que eu mesmo tenho medo de ir, não fosse este casaco que diz que sou agente de
saúde, dificilmente teria conseguido entrar”. Em certa medida, os moradores destas
áreas construíam a explicação sobre a visão negativa da qual eram objeto pela
existência desses focos de tráfico.
Durante o trabalho de campo tive oportunidade de presenciar intensamente
como está situação de convivência com o tráfico acaba por fortalecer o estigma
entre seus membros. Numa manhã, estava, juntamente com uma agente de saúde,
visitando algumas casas da região do “Beco da Landa”. Numa das casas visitadas,
onde residem aproximadamente quatro famílias que trabalham recolhendo lixo da
cidade, conversávamos com três mulheres de diferentes faixas etárias no pátio,
entre a pilha de material a ser selecionado. Em meio ao diálogo sobre a atividade
mensal da pastoral, que seria dali três dias, percebo a presença de um senhor de
aproximadamente cinqüenta anos, que fica observando a cena. Depois de certo
tempo, me chama para conversar numa área mais afastada do pátio. Ele, sabendo
que eu tinha vinculação com a universidade, inquiria sobre a possibilidade da
instalação de um catavento na área, capaz de produzir energia elétrica necessária
para colocar em funcionamento as prensas que dispunha no local, para poder,
101
assim, prensar o material reciclável e vendê-lo com uma margem de lucro maior.
Em meio às justificativas que apresentava, afirmando não dispor de conhecimento
sobre esta questão, sou surpreendido com a entrada, em alta velocidade, de uma
viatura da polícia civil. De arma em punho, um policial vem em nossa direção. Em
meio a isso, ouço a voz da agente de saúde chamando por meu nome e me dirijo
junto a ela, enquanto o policial já dá voz de prisão ao senhor
39
. Logo em seguida, as
três mulheres vão até a viatura policial e, cercando os policiais, reivindicam a
liberação do senhor, que, em meio a isto, já estava algemado. Enquanto nos
afastávamos do local, ouvia-se ao fundo o barulho de disparos de armas de fogo. “-
São os amigos dele.... acontece que ali é um ponto de venda de droga. Seguido a
policia tá dando batida ali” diz a agente de saúde.
Assim, a presença constante da viatura da polícia, a constituição de uma
população mais empobrecida marcada por um histórico de recorrente perda dos
bens no período das enchentes e pela presença de um ponto de tráfico, entre
outros fatores, acaba por catalisar uma série de sentimentos que engendram
práticas de distinção social dentro da vila. Frente tais situações de visibilidade
negativa, é compreensível o esforço feito pelas famílias da alta para querer se
distinguir de seus “vizinhos perigosos”.
Paira na localidade a suposição de que cada membro do grupo inferior está
marcado pela mesma mácula da criminalidade. Por mais que os moradores da
baixa tentem rejeitar os motivos de sua condenação moral, não conseguem
escapar, individualmente, da estigmatização grupal, assim como não conseguem
escapar individualmente do status inferior de sua vila. Sempre existe um fato que
serve como “prova objetiva” da negatividade dos moradores da baixa, afinal como
afirmavam as expressões ouvidas na vila: “eles não trabalham, não tem educação,
moram em terreno invadido”.
Os moradores da baixa conviviam com a classificação depreciativa porque
não podiam evitá-lo. O que poderiam fazer e faziam, dentro dos limites
estabelecidos pela sua posição inferiorizada na hierarquia local, era produzir
discursos que questionavam a superioridade dos moradores da alta, veiculando-os
39
Posteriormente, fiquei sabendo que o senhor estava foragido da penitenciaria do município. Por
isso, a abordagem foi somente nele, sem me envolver. Além disso, o fato do policial ter ouvido
quando fui chamado pela agente, talvez tenha indicado que eu estaria com a profissional e não
envolvido com algum fato ilícito, como o contexto poderia sugerir.
102
por meio da fofoca. Ou seja, como uma estratégia usada para desqualificar os
membros da alta, produziam expressões do tipo: “elas mal sabem, mas seus filhos
estão sempre ali em baixo comprando droga”. Assim, a fofoca converte-se numa
“arma dos fracos”, pois, os moradores que estão por definição numa posição de
desvantagem estrutural e sujeitos as visões estigmatizadas, usam a fofoca como
uma tática para tentar alterar sua condição de inferioridade.
Scott (2002), no estudo sobre os camponeses da Malásia, mostra como os
trabalhadores rurais, na incapacidade de empregar uma luta aberta como greve e
rebeliões contra o regime e condições de trabalho que estão sujeitos, empregam
um conjunto de atitudes cotidianas como sabotagem das máquinas, saques,
dissimulação, submissão falsa, incêndios premeditados, emprego de fofoca entre
outras armas dessa natureza como única forma de reação contra a dominação que
estão sujeitos cotidianamente. Deste modo, no caso dos moradores inferiorizados
da Vila Urlândia, os moradores da baixa incapazes de nivelar as posições desiguais
têm no emprego da difamação dos moradores distintos o principal meio para tentar
macular seu prestígio. Seria uma forma de questionar a dominação que o contexto
da vila produz na vila.
4.12 Contato entre vizinhos
Do ponto de vista das relações de sociabilidade entre vizinhos, a alta mostra
que a insegurança é um dos eixos que tecem a trama da diferenciação. O medo faz
uma reoganização simbólica de seu universo, de modo que a vizinhança deixa de
ser “alguém com quem se pode contar” para virar um inimigo em potencial (VELHO:
2002). Sobre isso, vale lembrar a tentativa frustada que tive, logo no inicio da
pesquisa, quando tentei estabelecer contato com um morador e só tive sucesso
quando foi acompanhado pela Dona Marta. Segundo os dados do campo, seus
moradores não têm por hábito estabelecer contatos mais estreitos com seus
vizinhos, ficando concentrados no seu espaço doméstico e restringindo o seu
mundo significativo e de confiança aos familiares mais próximos e alguns poucos
amigos.
Entrevistador: A senhora gosta de visitar os vizinhos?
103
Entrevistada: Não, visitar assim... Se tu sabe que tem alguém doente ai tu faz uma
visita. Mas a gente conversa na ida para o mercado, mas assim visitar não. Todo
mundo tem sua vida. (Marilene, 6 anos moradora na parte alta da vila).
A postura de evitar os contatos com os vizinhos marca uma idéia de
individualidade das famílias. Desta forma, valores considerados mais comunitários
como a troca de favores, o compartilhamento das questões do dia-a-dia entre as
famílias não são considerados como prioridades entre os moradores da parte alta.
Além disso, o somatório dos dispositivos de segurança das residências e da forma
como recebem os estranhos que batem a sua porta mostra que a convivência com
o “outro”, isto é, aquele de quem se busca evitar o contato, vai exigir posturas
individualistas e de evitação do contato mesmo entre vizinhos distintos.
Certa ocasião, ao visitar uma residência na parte alta vila cuja fachada era
dotada de um muro alto e de grades em todas as janelas, me surpreendi, já dentro
da propriedade, quando observo no teto a presença de sensores de movimento
similares aos comercializados para indústrias, bancos, fábricas e demais
estabelecimentos comerciais. Nunca havia visto um desses aparelhos numa
residência particular. Ao notar minha curiosidade sobre o que avistava, a senhora
logo diz “é necessário porque tem um povinho ai para baixo que é fogo”.
Assim, face do conjunto de postura adotadas pelos moradores da alta de
instituir uma distinção social no interior da Vila Urlândia colocam-se em
questionamento as noções, muitas vezes correntes no senso comum, que
percebem o local da vizinhança como um espaço “predisposto” para interação
social entre vizinhos vistos como indivíduos iguais. Esta noção, quando transposta
para o contexto estudado vai revelar que a igualdade entre vizinhos pode ser uma
doce ilusão.
104
Considerações Finais
O objetivo com este estudo foi viabilizar a compreensão dos processos que
engendram práticas de transferência de estigma no interior de uma vila periférica da
cidade de Santa Maria. O foco investigativo tencionava compreender as motivações
que cercavam um grupo de moradores da Vila Urlândia para separar a localidade
em duas sub-áreas moralmente distintas.
Através da análise do histórico da vila, verificamos que a localidade ocupa
um “lugar” de baixo prestigio na cidade de Santa Maria. Deste modo, dentro da
hierárquica de posições da cidade, seus moradores estão situados numa condição
estigmatizada. Contudo, internamente um grupo de moradores dotados de prestigio
social local desenvolve medidas visando transferir o estigma do “lugar” ao grupo de
moradores que consideram inferiores.
Ao adotarem uma postura de diferenciação, o grupo de moradores superiores
mostra que a proximidade geográfica pode não significar a existência de
semelhanças internas. Neste caso, pelo contrário, devido a posição social de baixo
prestígio que a vila ocupa dentro da estrutura da cidade, os indivíduos que se
consideram “distintos” vão desenvolver estratégias de distanciamento dos
moradores vistos por eles como “inferiores”. Para conseguir instituir sua posição
elevada, fundamentam a separação na vila segundo critérios como, tempo de
moradia, condição legal dos lotes, condição física das residências e atributos morais
dos indivíduos.
Sobre a primeira caracteristica, os moradores superiores dividem a história
da localidade em dois momentos, o “antes” e o “depois” da vinda dos moradores
inferiores. A adoção de marcos temporais como este ignora o fato de historicamente
já recair sobre a Vila Urlândia o estigma por sua condição periférica. Sendo assim,
na verdade, o que ocorre é a construção de uma resposta que assume a vinda dos
moradores do segundo movimento de ocupação como os causadores dos
transtornos da localidade.
Sobre a localização da moradia, a visão espacializada de diferenciação das
duas sub-áreas percebe uma correspondência entre lugar onde a família está
localizada e a condição de ocupação dos lotes. Desta forma, o inicio da vila, no
105
sentido centro-vila, é visto como uma área que foi ocupado pelos moradores
antigos, que compraram os lotes e construiram suas casas. Enquanto isso, a parte
baixa da vila, é tida como área ocupada irregularmente por famílias provenientes do
segundo movimento. Estas diferenças legitimam expressões moralizantes adotadas
pelos moradores que se consideram superiores. Desta maneira, apresentam-se
como grupo de moradores que possuem emprego formal -contraposto ao grupo de
moradores de baixo que trabalham catando lixo pela cidade-, são pessoas que não
“jogam conversa fora”, pois tem mais o que fazer e são dotados de casas que não
alagam nos dias de chuva intensa.
Defendem assim, uma posição que organiza e diferencia os espaços no
interior da vila. Cada área composta por um “tipo” de morador. Contudo, a
proximidade dos moradores da “Invasão da BR” é um fator que consideram
manchar seu prestigio, pois destoa do que julgam ser correto. Por este motivo,
empregam falas mostrando que estes habitantes são desqualificados, que recebem
tudo de graça, e, por receber “tudo de graça” não são dignos de conviver ao lado de
moradores que compraram os lotes e investiram seus recursos durante vários anos
na construção e melhoria das residências.
A hipótese que se tinha de que os moradores distintos perceberiam na
disposição da infra-estrutura local um atributo “objetivo” das diferenças na vila não
foi verificada em sua plenitude. Este foi um fator de diferenciação que aparecia com
algo naturalizado, como uma diferença “evidente”, pois se as residências dos
moradores de cada área são distintas do ponto de vista do material empregado , as
pessoas também seriam diferentes. Com base nisto, constituiem uam justificativa
alegando que os moradores da baixa seriam pessoas desprovidas de emprego fixo,
residentes numa área irregular- fruto de invasão- e que tem na presença constante
das viaturas da polícia, “indo lá para baixo”, fatores que posicionam seus ocupantes
de forma inferiorizada no interior da vila. Desta forma, passam a ser vistos como
membros detentores de moralidade duvidosa, que se não são, pelo menos, se
relacinam com os indivíduos identificados como os causadores pelos roubos que
ocorrem na vila.
Adiciona-se a este caldo de inferioridade, ingredientes como o processo
histórico de enchentes que assolou a localidade até anos de 1980, incidentes de
alagamentos de certos trechos ainda hoje, a presença de moradias do tipo palafitas
106
na proximidade do córrego e a existência do tráfico de drogas em seu interior. Ao
final de tudo isso, têm-se a formação de um sentimento de desprestigio que enreda
todos os moradores da parte baixa dentro de uma posição de inferioridade grupal.
Além disso, o conjunto de estratégias que os moradores da alta utilizam para
grifar sua condição elevada reproduz a lógica de estigmatização que marca a
sociedade em que os moradores da Vila Urlândia estão inseridos, desta maneira, a
hierarquia dos espaços da cidade são atualizadas no plano local. Assim, a
possibilidade de uma classificação social com base na identificação de atributos
sociais diferenciadores dentro do contexto da Vila Urlândia vai permitir a operação
de diferenças entre “iguais”.
A capacidade do grupo de moradores da alta de deter poder dentro da
localidade e institui uma hierarquia de posições coloca, conseqüentemente, em
debate as visões que percebem o contexto das periferias como áreas onde estão
presentes indivíduos economica e socialmente “iguais”. Contrariando esta assertiva,
o caso da Vila Urlândia, retrata que não existe uma imediata homogeneidade entre
os moradores inseridos neste contexto. Seu interior apresenta, ao invés disso, uma
relação que é mediada por práticas de transferênica do estigma, onde um grupo de
moradores tenta intituir “legitimamente” uma realidade que os perceba como
superiores e posicione os membros do outro grupo como inferiores.
Frente a isto, o que se percebeu no contexto da Vila Urlândia é a existência
de uma relação hierarquizada entre dois grupos. Logo, a chave interpretativa que
marca o contexto da localidade é justamente o fato dos moradores distintos se
considerarem agredidos quando tem sua imagem vinculada a uma localidade de
periferia, assim, tornam-se agressores na medida que retrabalham o estigma e
instauram clivagens locais. Ao adotarem uma postura de transferência do estigma
mostrando que a proximidade pode, muitas vezes, não significar a existência de
relações igualitárias. Contudo, a ação de instituir a inferioridade para um grupo não
ocorre apenas num sentido, pois os moradores da baixa embora estejam numa
posição de estigmatização adotam ações no sentido de desconstruir e macular os
anseios dos moradores da alta.
Nesta tarefa, como visto, a fofoca deprecitiva desempenha a função de arma
capaz de colocar em questionamento o prestigio dos moradores que se consideram
107
distintos, pois, ainda que seja uma “arma dos fracos”, seu emprego tenta nivelar o
campo de disputa existente no interior da vila.
Os moradores da alta e da baixa estão inseridos, assim, dentro de um jogo
de oposição complementar, isto é, os moradores superiores, para existirem como
tal, necessitam, necessariamente, da existência de um grupo inferior para, com
isso, poder se apresentar socialmente como distintos, visto que, caso contrário,
permaneceriam como grupo estigmatizado pela cidade. Por este motivo, do ponto
de vista da relação existente na vila, expressões como: nós os “ricos” e eles “os
pobres” são aceitas, pois tais categorias valorativas vão prescrever as diferenças
existentes dentro deste grupo popular. O estudo da Vila Urlândia mostra, com isso,
a reprodução da hierarquização das posições dos indivíduos existente na sociedade
mais ampla revelando como um grupo de moradores que ascenderam a uma
posição de prestigio interno vão instituir separações no interior de uma localidade
de periferia através do desenvolvimento de mecanismos para “fugir” do estigma
territorial. Com isso, acabam gerenciando o estigma que são vítimas, através de
sua tranferência ao grupo de moradores identificados como inferiores.
Além disso, o contexto da Vila Urlândia nos permite perceber que mesmo
entre habitantes identificados sob o espectro da estigmatização territorial está
presente todo um processo de hierarquização similar ao existente na sociedade
brasileira. Como seus indivíduos não têm condições de tentar edificar posturas de
contraposição da imagem social que são vitimas, pelo menos no plano local, vão
reproduzir a hierarquia da sociedade apresentando-se, consequentemente, como
superiores em relação aos outros moradores. Apresentando-se como moradores
“distintos”, moradores residentes da parte nobre, na parte “superior”. Contudo, ao
sair de seu domínio, desfazendo as relações hierarquizadas existentes no interior
da vila continuam a ser, na avaliação dos moradores da cidade, um morador da Vila
Urlândia.
108
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