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Giovana Azzi de Camargo
A TENSÃO ENTRE O ORAL E O ESCRITO NA ALFABETIZAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS: UM ESTUDO / UM OLHAR
Universidade São Francisco
Itatiba - SP
2006
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Giovana Azzi de Camargo
A TENSÃO ENTRE O ORAL E O ESCRITO NA ALFABETIZAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS: UM ESTUDO / UM OLHAR
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Educação da
Universidade São Francisco, Campus de Itatiba,
elaborado sob orientação da Profa. Dra. Elizabeth dos
Santos Braga, como exigência parcial para a obtenção
do Título de Mestre em Educação.
Universidade São Francisco
Itatiba - SP
2006
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AGRADECIMENTOS
Sou grata à vida que na essência e existência das possibilidades dos encontros
singulares me auxiliaram na realização desse projeto.
Agradeço a toda minha família pela compreensão e apoio nos momentos mais
difíceis. À minha mãe, que me ensinou que era possível escrever outra história. À minha
irmã, companheira de todas as horas. Ao meu pai, pelo carinho e preocupação. Ao meu
irmão, pela colaboração em todos os momentos. À pequena Alice, por me ensinar tanto
sobre a vida.
À Profa. Dra. Elizabeth dos Santos, por aceitar caminhar comigo pelas vias da fala e
da escrita, pelo diálogo constante, pela leitura atenta e minuciosa de todos os escritos, pela
orientação, apoio e incentivo em todos os momentos.
À Profa. Dra. Marta Kohl de Oliveira e à Profa. Dra. Enid Abreu Dobránszky pela
participação nas bancas de qualificação e defesa, pela leitura comprometida do texto, e
pelas importantes colocações que nortearam o desenvolvimento dessa pesquisa.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, em
especial às Profas. Dras. Adair Mendes Nacarato e Maria Ângela Borges Salvadori pelas
contribuições significativas, acolhida e atenção cuidadosa.
Aos amigos que estiveram de forma tão especial e generosa envolvidos nesse
projeto. Ao Paulo Henrique, pela luz e orientação que fizeram ver a vida com outros olhos: o
coração. À Lorena, por me ensinar os primeiro passos da pesquisa, por estar comigo nessa
empreitada, mesmo distante fisicamente. Ao Nelson, amigo-irmão, pela partilha nesse
processo. À Cátia, pela compreensão e força em todos os momentos. Ao Paulo Donizete,
por todos os cuidados e pelo empréstimo de gravador que foi extremamente importante para
esta pesquisa. À Sirley e Elisangela, pela companhia, cuidado e atenção dispensado em
todos os momentos.
À Profa. Dra. Maria Angélica Lauretti Carneiro, por incentivar esse projeto, mesmo
ante de ele existir.
A Prefeitura Municipal de Bragança Paulista, pela concessão do afastamento do
cargo, no período da pesquisa, que foi de extrema importância para a realização dessa
pesquisa.
À Capes, pelo apoio financeiro.
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CAMARGO, Giovana Azzi de. A tensão entre o oral e o escrito na alfabetização de
jovens e adultos: um estudo / um olhar. 2006. 115f Dissertação Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco, Itatiba.
RESUMO
O presente trabalho discute como a oralidade é considerada na alfabetização de jovens e
adultos, enfocando a relação desta com a escrita. Nesse sentido, nos perguntamos: Como
essa relação se constitui em uma sala de aula destinada à alfabetização ? Que indícios da
tensão entre a escrita e a oralidade podemos depreender da observação dessas aulas? De
que forma o professor considera as falas dos alunos no processo de alfabetização? Para
isso, foi realizada uma pesquisa de campo, numa sala de primeira etapa do Programa de
Educação de Jovens e Adultos, de uma rede municipal de ensino, no interior do Estado de
São Paulo, através da observação das aulas e de entrevistas com as professoras e os
alunos, seguindo os princípios teórico-metodológicos da etnografia e da análise
microgenética. A pesquisa se pauta nas contribuições de estudiosos que consideram a
linguagem como constitutiva do humano (Vigotski, Bakhtin); nas discussões sobre a relação
entre oralidade e escrita (Havelock, Ong, Barthes e Marty, Zumthor, Marcuschi), sobre
letramento e oralidade como práticas sociais (Marcuschi, Kleiman, Soares, Tfouni, Oliveira);
em considerações sobre a presença da oralidade na escola (Belintane, Marcuschi) sobre a
importância da palavra no processo educativo (Freire) e da alfabetização como processo
discursivo e significativo (Vigotski, Smolka). Nossas análises, ancoradas nas elaborações de
Vigotski e Bakhtin, bem como de autores que discutem a questão da oralidade em uma
sociedade letrada, problematizam a consideração da oralidade no processo de alfabetização
em sala de aula. Como é feito o trabalho com o gênero oral? De que forma as falas dos
alunos são consideradas? Na reescrita de textos, como a participação dos alunos é
incorporada? Tendo isso em vista, enfocamos também a primazia do texto escrito no
processo de alfabetização e as concepções de aluno, de analfabeto, de apropriação do
conhecimento que norteiam o trabalho do professor.
Palavras-chave: Oralidade, Escrita, Alfabetização de Jovens e Adultos
6
ABSTRACT
This research discusses about how orality is considered during the young and adults’
alphabetization, focusing its relation with the writing process. At this point we ask: How does
this relation happen in an alphabetization classroom? How can we notice the tension
between writing and orality in this context? How does the teacher consider students' speech
in the alphabetization process? So, trying to answer these questions, a field research was
carried on in a first level Young and Adults’ Alphabetization Program classroom at a public
school in a town in the State of São Paulo, Brazil. Class observation and interviews with
teachers and students were the methodological procedures, according to the principles of
ethnography and microgenetic analysis. This study is based on schoolars’ contributions who
consider language as constitutive of human being (Vigotski, Bakhtin); on discussions about
the relation between orality and writing (Havelock, Ong, Barthes and Marty, Zumthor,
Marcuschi), about literacy and orality as social practices (Marcuschi, Kleiman, Soares,
Tfouni, Oliveira); as well as on considerations about the presence of orality at school
(Belintane, Marcuschi), the importance of the words on the education process (Freire) and of
alphabetization as a discursive and meaningful process (Vigotski, Smolka). Our analyses
consider the importance of orality during the education process in the classroom. How has
the work with oral gender been done? In which ways is the students' speech considered?
How is the students' participation incorporated? According to these considerations, we also
focus on the priority of written text during the alphabetization process and on conceptions of
student, illiterate people and of knowledge appropriation which guides teachers’ work.
Key-words: Orality, Writing, Young and Adults’ Alphabetization
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................Erro! Indicador não definido.
Capítulo 1 A palavra e a constituição do humano ...Erro! Indicador não definido.
1.1. A linguagem na perspectiva histórico-cultural Erro! Indicador não definido.
1.2. O princípio dialógico de Mikhail Bakhtin.........Erro! Indicador não definido.
Capítulo 2 A relação oral/escrito ...............................Erro! Indicador não definido.
2.1. Oralidade: estudos precursores.....................Erro! Indicador não definido.
2.1.1.
Relação oral-escrito: grande divisão versus continuum.... Erro! Indicador não
definido.
2.2. Oral e escrito em relação...............................Erro! Indicador não definido.
2.2.1.
Oral/escrito: uma relação não necessária?....... Erro! Indicador não definido.
2.2.2.
Poder da escrita: uma construção histórica...... Erro! Indicador não definido.
2.3. Oralidade e letramento...................................Erro! Indicador não definido.
2.3.1.
A oralidade em sociedades letradas................. Erro! Indicador não definido.
2.3.2.
Definições de oralidade: de que oralidade estamos falando? ..Erro! Indicador
não definido.
2.3.3.
Letramento e oralidade como práticas sociais.. Erro! Indicador não definido.
Capítulo 3 A oralidade e a escrita na escola.............Erro! Indicador não definido.
3.1. A fala e a escrita nos documentos oficiais, nos estudos lingüísticos e no
contexto escolar........................................................Erro! Indicador não definido.
3.2. A abordagem do oral na escola .....................Erro! Indicador não definido.
3.3. A oralidade e a alfabetização de adultos .......Erro! Indicador não definido.
3.3.1.
A palavra falada e a alfabetização de adultos .. Erro! Indicador não definido.
3.3.2.
Sobre o conceito de “diálogo” ........................... Erro! Indicador não definido.
3.4. A alfabetização como um processo discursivo ..............Erro! Indicador não
definido.
Capítulo 4 Pesquisando na sala de aula de Educação para Jovens e Adultos
Erro! Indicador não definido.
4.1. A escola e a sala de aula pesquisada............Erro! Indicador não definido.
4.2. Princípios teórico-metodológicos ...................Erro! Indicador não definido.
4.3. Inserção do pesquisador no campo...............Erro! Indicador não definido.
4.3.1.
As entrevistas.................................................... Erro! Indicador não definido.
4.4. Construção dos dados...................................Erro! Indicador não definido.
Capítulo 5 Falar para escrever? Falar para quê? O que é feito com a fala dos
alunos na sala de aula?.................................................Erro! Indicador não definido.
5.1. O gênero oral na escola: um debate na sala de EJA.....Erro! Indicador não
definido.
5.2. A reescrita: lugar de muitas tensões..............Erro! Indicador não definido.
5.3. Contar a história: saber o texto escrito?.........Erro! Indicador não definido.
Capítulo 6 Considerações finais................................Erro! Indicador não definido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................Erro! Indicador não definido.
Anexo 1 - Roteiro de Entrevista com a professora da sala de EJA Erro! Indicador
não definido.
Anexo 2 - Roteiro de Entrevista com os alunos da sala de EJA..... Erro! Indicador
não definido.
Anexo 3 - Roteiro de Entrevista com os alunos da sala de EJA – 2ª versão .Erro!
Indicador não definido.
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Anexo 4 - Roteiro de Entrevista com a professora da sala de EJA – 2ª Versão
.........................................................................................Erro! Indicador não definido.
Anexo 5 - Formato das transcrições ............................Erro! Indicador não definido.
INTRODUÇÃO
Várias questões referentes à alfabetização de jovens e adultos têm despertado o
interesse de pesquisadores. No entanto, a maioria delas dedica-se à escrita; quando se trata
do ensino da língua, a oralidade tem passado desapercebida.
Tomei contato com a EJA (Educação de Jovens e Adultos) em diversos momentos e
funções, como professora e coordenadora. Esse contato possibilitou o interesse pela
questão. Dentre essas experiências, participei do Programa Alfabetização Solidária,
realizado pela Comunidade Solidária mantida pela Organização Não-governamental AAPAS
(Associação de Apoio ao Programa Alfabetização Solidária), no período de fevereiro de
2000 a novembro de 2002. Exercia a função de coordenadora, cujas atribuições eram
coordenar as reuniões com os professores-alfabetizadores, que aconteciam
quinzenalmente, e acompanhar o trabalho desenvolvido nas salas de aula nesses encontros
e através de visitas às unidades. No primeiro semestre de 2002, lecionei em uma sala de
EJA de uma Rede Municipal de Ensino do Estado de São Paulo, multisseriada, freqüentada
por alunos da e etapas. Em 2003, coordenei encontros semanais com os professores
que lecionavam no Centro de Ressocialização do mesmo município para discutir temas
relacionados à educação e orientar no planejamento e encaminhamento das atividades.
Nesses contextos, pude observar que a problemática do trabalho com a oralidade se
destacava, dentre outras, na vivência de situações ora com professores em salas de aula ou
em reuniões pedagógicas, ora com alunos no ambiente escolar.
Com os professores, destacou-se a questão referente à norma padrão e à relação
entre fala e escrita, o que pude perceber por comentários, tais como: “Os alunos não
aprendem a escrever porque falam errado.Ou: Para que os alunos aprendam a escrever,
primeiro precisamos ensiná-los a falar”. Isso repercute na consideração dos professores de
que “corrigem” a fala dos alunos. Tal discurso coloca-se totalmente contra os postulados da
Proposta Curricular que reconhece as contribuições da Sociolingüística no que diz respeito
às variantes lingüísticas regionais.
9
os alunos, que dominam a modalidade oral de uso da língua e que ainda não
escrevem, muitas vezes se calam nas aulas alegando que nada sabem porque ainda não
sabem escrever. Essa relação que fazem entre conhecimento e registro escrito (e que os faz
desprezar os próprios conhecimentos e experiências) fundamenta-se em quê? Essa
questão, somada à consideração da fala dos alunos pelos professores, merece atenção,
pois pode ser uma das causas da evasão, na constatação (dos alunos) de que a escola
realmente não é para eles. Esse é um dos motivos de procurar entender melhor essa
problemática.
Essas primeiras questões foram tomando novas formas, novos contornos, no
decorrer da pesquisa, principalmente após o início da pesquisa de campo. No contato com a
sala pesquisada e pelos estudos teóricos que também estavam em desenvolvimento é que
a questão de pesquisa se (re)compôs.
Fui percebendo que não era possível abordar o oral sem relacioná-lo com a escrita.
Afinal, estamos em uma sociedade que existe em torno, sobre e com a / na escrita. Assim, a
discussão volta-se para a relação entre a oralidade e a escrita. Por um lado, é possível
atribuir valores a elas, tornando uma mais importante que outra e, desse modo, tratá-las
como diferentes e opostas. Por outro lado, é possível assumir a diferença existente e
considerá-las em relação, em um processo de constituição e influencias mútuas, sem avaliar
a melhor ou a pior, mas qual está adequada a determinada situação comunicativa
(Marcuschi, 2006).
Nesse sentido, passei a me preocupar com a forma como a escola trata essa relação
que é tensa no seu âmago, mas que pode ser acentuada ou atenuada pelo tratamento que
recebe. Sabe-se que em uma sociedade letrada, a escrita é a modalidade mais valorizada.
Investigar a constituição da relação oral/escrita foi um dos desafios, pois essa distinção
muitas vezes é responsável pela depreciação da fala. Observamos essa discussão nos
estudos e, depois, como isso é visto na escola.
Antes de abordar essas questões, apresento, no capítulo 1, a concepção de
linguagem que norteia este estudo. Considero a linguagem a partir da contribuição de dois
grandes teóricos, Vigotski e Bakhtin, para os quais a linguagem é o principal fator na
constituição do psiquismo humano. E ela é produzida na interação, entre os homens. Esse
caráter histórico-social da linguagem permite considerar toda a sua plasticidade, o
movimento que é inerente a ela. Assim, a linguagem não escongelada no tempo, mas
viva na boca e no pensamento de cada homem , em constante constituição.
No capítulo seguinte, procurei apresentar os principais estudos que versaram sobre a
oralidade e a sua relação com a escrita.
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No terceiro capítulo, abordo a questão no âmbito escolar. Primeiro, enfoco como os
documentos que norteiam o ensino abordam a questão. Ao mesmo tempo, trago discussões
sobre o impacto destes nas práticas escolares. Proponho-me uma questão: então, que
trabalho realizar com a oralidade na sala de aula de EJA? Não tenho a pretensão de
fornecer uma resposta, mas apontar alguns caminhos já percorridos por outros teóricos.
No quarto capítulo, descrevo a pesquisa de campo, com uma breve caracterização
da escola e da sala de aula. Relato como foi a inserção do pesquisador no campo e
apresento os princípios teórico-metodológicos da pesquisa.
No capítulo 5, as análises problematizam a consideração da oralidade no processo
de alfabetização em uma sala de aula de etapa da EJA. Como é feito o trabalho com o
gênero oral? De que forma as falas dos alunos são consideradas? Na reescrita de textos,
como a participação dos alunos é incorporada? Tendo isso em vista, enfoco também a
primazia do texto escrito no processo de alfabetização, e as concepções de aluno, de
analfabeto, de apropriação do conhecimento que norteiam o trabalho do professor.
Algumas das questões que nos provocam em relação à oralidade na EJA, que
envolvem a oralidade na sala de aula de alfabetização de pessoas jovens e adultas, são
realçadas por muitas pesquisas, entre as quais a de Melo (1997), que ouviu histórias de
leitura e de escrita de pessoas não alfabetizadas ou recém–alfabetizadas e relacionou-as
com o discurso oficial sobre alfabetização. Dentre esses depoimentos, a fala de Dionísio nos
incomoda e impulsiona a compreender as práticas pedagógicas presentes na alfabetização:
Eu era meio exibidinho, gostava de falar muito. Contava muitos ‘causos’.
Achava... e até escrevia um pouco... de jeito mais preciso do que os meus
companheiros. Mas, dona, depois que fui na aula vi que falo tudo errado.
Não sei nem falar. Estou muito pesaroso em não aprender aquele saber da
escola. O meu saberzinho não vale nada no mundo de hoje. Enquanto não
sai a coisa... vou ficando aqui... ... quieto. (Dionísio, 24 anos, trabalhador
da construção civil)
11
Capítulo 1
A palavra e a constituição do humano
Dá-me antes um barco que eu respeite e que possa respeitar-me a
mim, Essa linguagem é de marinheiro, mas tu o és marinheiro, Se
tenho a linguagem é como se o fosse. (José Saramago, Conto de
uma ilha desconhecida)
O diálogo entre as personagens de Saramago faz-nos pensar no alcance da
linguagem. O dizer “Se tenho a linguagem é como se o fosse” ultrapassa a idéia que,
comumente, temos sobre linguagem como comunicação ou expressão. Aqui, a linguagem
assume o papel de constituir e, assim, ter a linguagem o torna marinheiro, ou melhor, lhe
outorga o direito de ser.
1.1- A linguagem na perspectiva histórico-cultural
Na discussão cientifica, a importância da palavra na constituição do humano é
enfatizada por autores da perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano.
Vigotski, o mais destacado autor dessa perspectiva, explica como a linguagem nos torna
humanos - ele certamente é um dos pilares da psicologia do século XX. Suas pesquisas
tiveram início na Rússia, em um momento de crise na psicologia em que se discutia o
desenvolvimento humano sob duas concepções: empirista e idealista. Imbuído pelo
materialismo histórico de Marx e Engels, Vigotski discordou das concepções vigentes e
defendeu que no desenvolvimento humano uma transformação profunda dos fatores
biológicos, passando estes a serem governados por leis históricas.
De acordo com Braga (2000), para Vigotski, dois momentos na filogênese
humana: a evolução biológica (descrita e analisada por Darwin) e a história humana -
pautando-se, para explicação da segunda, nas elaborações de Marx e Engels. Mesmo
reconhecendo a evolução biológica, Vigotski distingue os homens dos animais pelo
surgimento da cultura que se sobrepõe à base genética do comportamento humano. Assim,
[a]s funções psicológicas são efeito/causa da atividade social dos homens,
resultado de um processo histórico de organização da atividade social. Para
12
tornar-se um ser ‘humano’, a criança terá de ‘reconstruir’ nela (não
simplesmente reproduzir) o que é aquisição da espécie. (Pino, 1991, p.
34-35)
A passagem da história natural animal para a história social humana é explicada por
Luria (1991), que parte da distinção entre a atividade consciente do homem e o
comportamento dos animais para, em seguida, discutir qual a origem da atividade
consciente.
Dessa forma, a atividade consciente humana é marcada por três traços responsáveis
pela distinção. Primeiramente, não há uma relação obrigatória entre a atividade consciente e
a motivação biológica, ou seja, os atos humanos, em sua maioria, não são pautados em
necessidades biológicas, mas em complexas necessidades chamadas de ‘superiores’ ou
‘intelectuais’, tais como o desejo de se comunicar, de estudar e adquirir novos
conhecimentos, de obter um bom emprego, entre outros.
Outro traço distintivo é que a atividade consciente do homem não se detém à
impressão evidente ou às marcas da experiência individual. Assim, o homem reflete sobre
as condições do meio e tem possibilidade de interpretar as diferentes situações. Com isso,
pode, ao sair de casa em dia ensolarado, levar um guarda-chuva porque conhece a
instabilidade do tempo em algumas estações do ano.
O último traço que distingue a atividade consciente humana dos animais é uma
terceira fonte de comportamento exclusiva dos seres humanos. O comportamento animal é
baseado nos programas hereditários de comportamento que estão no genótipo e os
resultados obtidos pelas experiências individuais. No entanto, “[...] a grande maioria dos
conhecimentos e habilidades do homem se forma por meio da assimilação da experiência
de toda a humanidade, acumulada no processo da história social e transmissível no
processo de aprendizagem” (Luria, 1991, p. 73).
Desse modo, a criança, desde que nasce, forma seu comportamento a partir dos
hábitos que se formaram na história, como sentar à mesa para fazer as refeições, usar
talheres, entre outros inúmeros exemplos. Assim, ela
[...] assimila aquelas habilidades que foram criadas pela história social ao
longo de milênios [...] A grande maioria de conhecimentos, habilidades e
procedimentos de comportamento de que dispõe o homem não são o
resultado de sua experiência própria mas adquiridos pela assimilação da
experiência histórico-social de gerações. (Ibidem, p. 73)
Esses traços surgiram no desenvolvimento filogenético humano, na passagem da
evolução natural para a história social, devido a dois grandes acontecimentos, segundo o
autor: o início do trabalho em grupo, com o uso de instrumentos, e o surgimento da
linguagem.
13
O trabalho, conforme Luria (1991), possibilita a organização social, a divisão das
funções e o surgimento da linguagem como meio de comunicação. No início de seu texto,
ele ressalta que a linguagem e o trabalho são responsáveis pela formação da consciência
humana que emerge nas relações sociais. No entanto, ao final, destaca que o trabalho
possibilita o surgimento da linguagem pela necessidade de comunicação do grupo durante
as atividades coletivas e que esta é tida como fator constitutivo da consciência, provocando
inúmeras transformações no psiquismo humano. Que transformações são essas?
Conforme Luria, o aparecimento da linguagem é responsável por três mudanças, ao
menos, fundamentais para a consciência: a possibilidade de diferenciar os objetos,
direcionar a atenção para eles e ainda retê-los na memória. Com isso, o homem, consegue
lidar com o objeto independentemente de sua presença concreta, apenas com a palavra que
o designa.
Outra transformação ocorre pela possibilidade de, pelas palavras generalização e
abstração. Assim, ao falar ‘livros’ sabemos da existência de diversos modelos, tamanhos e
cores desse objeto (livros de bolso, livros grandes com muitas páginas, outros com capa
dura, com gravura, sem gravura), mas abstraímos suas características e os relacionamos a
determinadas categorias. E, por fim, a linguagem é vista como uma importante possibilidade
de comunicação e “veículo” do pensamento.
A última mudança apresentada por Luria (1992) é problematizada por Braga (2000)
pela noção de linguagem assumida pelo primeiro autor que pode estar aliada à idéia de
instrumento, não assumindo completamente o aspecto constitutivo da linguagem. Vigotski
parece realçar mais esse caráter do que Luria, mesmo havendo algumas ambigüidades em
sua obra apontadas por Smolka (Cf. Braga). Em alguns momentos, a linguagem aparece
como instrumento na obra vigotskiana, mas não permanece assim, como assegura Smolka
(1995), pois outras possibilidades de conceber a linguagem no cerne dessa teoria, o que
possibilita a discussão sobre seu aspecto constitutivo.
Desse modo, a linguagem aparece como constitutiva do psiquismo humano, após um
longo processo de elaboração do texto Pensamento e palavra. Neste que é o último escrito
de Vigotski, a ênfase na relação complexa entre pensamento e palavra indica que uma
constituição recíproca, o que ultrapassa a noção da linguagem como instrumento.
Outro foco de análise dessa perspectiva é o desenvolvimento ontogenético humano.
Nesse enfoque, é discutida a constituição do humano. Como o homem se apropria da
produção histórico-cultural dos seus antepassados? E como ele será marcado e constituído
por ela? Dois conceitos o extremamente importantes para a compreensão das questões
levantadas: internalização e mediação.
A internalização é o processo de tornar interno, pessoal, o que é social. Esse
processo explica a constituição do psiquismo humano ao evidenciar que as funções
14
psicológicas superiores, tipicamente humanas, se formam a partir da internalização
realizada pelo sujeito do que era realizado na interação, no social (Vigotski).
De acordo com Smolka (2000), a internalização é uma questão bastante estudada.
Tal conceito foi elaborado por Vigotski na tentativa de “[...] compreender e explicar a
emergência e o funcionamento dos processos psicológicos de um ponto de vista histórico-
cultural” (Smolka, 2000, p.29). A autora parte da tese defendida por Vigotski de que as
funções psicológicas superiores são relações sociais internalizadas para problematizar a
relação do indivíduo com o outro e, nisso, aprofundar-se no conceito em questão. Dessa
forma, Smolka (2000) constata que não se pode conhecer o indivíduo por ele mesmo; mas,
conhecer as relações sociais das quais ele faz parte pode explicar suas atitudes, seu
pensamento. Sobre isso, Vigotski afirma que “[...] na sua esfera particular, privada, os seres
humanos retêm a função da interação social” (Vigotski, 1981 apud Smolka, 2000, p. 31). É a
palavra, principalmente, que possibilita essa constituição do sujeito pelas (inter-)relações e
pela produção de signos e sentidos.
Em outra discussão, Smolka (1992) afirma que não é possível entender a noção de
internalização sem mencionar a mediação simbólica, pela linguagem em especial, pois para
Vigotski, a palavra e o pensamento são mutuamente constitutivos.
O conceito de mediação pode ser entendido como toda intervenção de um terceiro
elemento que propicia a interação entre os termos. Sob uma perspectiva histórico-cultural,
toda atividade social humana é mediada, mesmo quando não conta com a presença
concreta do outro, ou seja, não ão humana que não seja mediada. Segundo Pino, a
mediação semiótica é o nome dado à “[...] função dos sistemas de signos na comunicação
entre homens e na construção de um universo sócio-cultural” (1991, p. 33) e ainda, é um
conceito central na obra de Vigotski, pois permite explicar “[...] os processos de
internalização e objetivação, as relações entre pensamento e linguagem ou a interação
entre sujeito e objeto do conhecimento” (Ibidem, p. 32).
Em Pensamento e palavra, conforme mencionamos, Vigotski analisa as relações entre
pensamento e linguagem. Inicialmente, o autor esclarece que essas relações “[...] surgem e
se constituem unicamente no processo de desenvolvimento histórico da consciência
humana, sendo elas próprias, um produto e não uma premissa da formação do homem”
(Vigotski, 2001, p. 395). Com isso, afasta a possibilidade da formação a priori da relação
pensamento e palavra e assume a constituição de ambos no processo histórico-cultural.
Essa discussão é retomada e ampliada na conclusão, quando Vigotski critica outras teorias
sobre o pensamento e a linguagem por “[...] um anti-historicismo sumamente profundo e de
princípio. Todas elas oscilam entre os pólos do naturalismo puro e do espiritualismo. Todas
elas abordam igualmente o pensamento e a linguagem fora da sua história” (Ibidem, p. 484).
15
O estudo o leva a concluir que “[...] o pensamento não se exprime na palavra mas
nela se realiza” (Ibidem, p. 409), discordando inteiramente de teses como a de que a
linguagem é a expressão do pensamento, por exemplo.
A palavra, para Vigotski,
[...] desempenha o papel central na consciência [...] Na consciência a
palavra é precisamente aquilo que [...] é absolutamente impossível para um
homem e possível para dois. Ela é a expressão mais direta da natureza
histórica da consciência humana. (Ibidem, p. 486)
Ela é um signo. Os signos, por sua vez, são criados e utilizados na relação com o
outro, surgem como meio de comunicação. Para Vigotski, os signos são meios de atividade
interna, dirigidos para o controle do indivíduo, modificando as operações psicológicas. E
ainda, segundo Vigotski (apud Smolka, 1995, p. 11), “o uso de signos muda
fundamentalmente toda atividade psicológica”.
Enfim, para essa perspectiva o
[...] homem produz linguagem, e se produz simultaneamente na/pela
linguagem. Neste trabalho social e simbólico de produção de signos e
sentidos, a linguagem não é meio e modo de (inter/oper)ação, mas é
também produto histórico, objetivado; é constitutiva/constituidora do homem
enquanto sujeito (da e na linguagem). (Smolka, 1995, p. 14)
1.2- O princípio dialógico de Mikhail Bakhtin
Como Vigotski, Bakhtin defende a linguagem como constitutiva da ação humana, nas
inter-ações e, segundo Smolka (1991) esse autor pode ampliar os conceitos vigotskianos.
Clark e Holquist apontam que “[e]m todos os escritos de Bakhtin, é a linguagem que torna os
humanos humanos. Mas a linguagem é, em sua natureza, coletiva e, portanto, as pessoas
são, em sua essência, sociais” (1998, p. 182), ou seja, é produto social e histórico.
Bakhtin (1999) atenta para a fala e para quem a produz - o falante da língua e, a
partir disso, elabora sua teoria que discorda das linhas de pensamento da Lingüística de sua
época defendendo que a “[...] língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal
concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo
individual dos falantes” ( p. 124). Em linhas gerais, a proposição desse autor volta-se para o
ser que fala a língua não como um sistema abstrato, mas como um produto histórico-cultural
disposto no diálogo com o outro.
Ao explicar essa constituição da língua, Bakhtin desenvolve, em Marxismo e filosofia
da linguagem, a teoria dos signos. Os signos, segundo este estudioso, compõem um
16
universo paralelo ao mundo material natural. E, “[a] consciência adquire forma e existência
nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos
são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete
sua lógica e suas leis” (1999, p. 35-36). Os signos emergem na interação social.
Para o autor, o produto do ato de fala é a enunciação, pois é “[...] o produto da
interação de dois indivíduos socialmente organizados” (Ibidem, p.112). Nessa interação “[...]
toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de
alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém” (Ibidem, p.113). A palavra não é
somente de quem a pronuncia, mas também para quem é pronunciada. Essa dinâmica
exposta por Bakhtin vida, ação e responsabilidade ao ouvinte, na interação, rompendo
com a teoria comunicativa unidirecional que atribui ação apenas ao falante, representada na
equação locutor – receptor.
Para essa perspectiva, “[a] enunciação é de natureza social” (Ibidem, p. 109). Ela é
formatada pelo contexto onde ocorre; é, por isso, social. Mas, mesmo na sua origem, antes
de ser expressa, a palavra já é social, pois a mente humana está impregnada de signos
sociais. Para Bakhtin, a enunciação individual sempre deve ser encarada como social. Ela
se concretiza na interação. Por isso, permite captar, observar a dinâmica da língua
produzida pelo homem, ao mesmo tempo em que ela o produz/constitui. Segundo o autor,
[...] a verdadeira substância da língua o é constituída por um sistema
abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada,
nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social
da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A
interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (Ibidem,
p. 123)
E, ainda, a relação com o outro é indispensável, uma vez que “[o] self bakhtiniano
nunca é completo, [...] pode existir dialogicamente, não é uma substância ou essência
por direito próprio, porém existe apenas num relacionamento tenso com tudo que é o outro
e, isto é o mais importante, com outros selves (Clark e Holquist, 1998, p. 91). Nesse
sentido,
[...] eu posso significar o que eu digo, mas indiretamente, num segundo
passo, em palavras que tomo da comunidade e lhe devolvo conforme os
protocolos que ela observa. Minha voz pode significar, mas somente com
outros às vezes em coro, porém o mais das vezes em diálogo. (Ibidem, p.
39)
A propósito do que é observado no diálogo, Faraco afirma que o Círculo de Bakhtin –
assim denominado o grupo de estudo do qual o autor fazia parte atenta-se para o que
acontece no dialogo, ou seja, preocupa-se com o ”[...] complexo de forças que atua e
17
condiciona a forma e as significações do que é dito ali” (Faraco, 2003, p. 59-60) e não, para
o diálogo em si. Acrescenta que
[...] o evento do diálogo face-a-face só interessa como um dos muitos
eventos em que se manifestam as relações ideológicas que são mais
amplas, mais variadas e mais complexas do que a relação existente entre
as réplicas numa conversa face-a-face. O objeto efetivo do dialogismo é
constituído [...] pelas relações dialógicas nesse sentido lato (mais amplas,
mais variadas e mais complexas). (Ibidem, p. 60)
Segundo Barros (1999), na obra de Bakhtin existem duas concepções de dialogismo.
A primeira é o dialogo entre interlocutores, discutida nesse trabalho. A outra se refere ao
diálogo entre discursos, isto é, “[...] não é individual porque se constrói como um ‘diálogo
entre discursos’, ou seja, porque mantém relações com outros discursos” (p. 33).
Laplane (2000) discute a amplitude do conceito de dialogismo de Bakhtin, que não
se limita à interação com a presença física ou imaginária dos interlocutores, mas estende-se
à vida.
A natureza dialógica da consciência, a natureza dialógica da própria vida
humana. O diálogo inconcluso é a única forma adequada de expressão
verbal de uma vida humana autêntica, a vida é dialógica pela sua natureza.
Viver significa participar de um diálogo; significa interrogar, ouvir, responder,
estar de acordo, etc. [...] (Bakhtin, 1985 apud Laplane, 2000, p. 63)
Ao considerar tudo o que foi exposto até aqui, vale ressaltar outra característica da
enunciação: constitui um evento único, pois acontece com determinados participantes e em
determinada situação, porém está relacionada a uma rede comunicativa que contém as
enunciações que foram ditas e as que serão ditas após essa. Assim, o fato de ser um
evento único não quer dizer que seja isolado. Nisso temos toda a dinâmica da língua
esboçada por esse autor. A forma do enunciado é uma questão retomada e aprofundada por
Bakhtin no texto Gêneros do discurso. No trecho seguinte, notamos a extrema importância
dessa questão para o autor
A fala existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um
indivíduo: do sujeito de um discurso fala. O discurso sempre se molda à
forma de enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir
fora dessa forma. Quaisquer que sejam o volume, o conteúdo, a
composição, os enunciados sempre possuem, como unidades de
comunicação verbal, características estruturais que lhes são comuns, e,
acima de tudo, fronteiras claramente delimitadas. (Bakhtin, 1992, p. 293)
O enunciado é considerado pelo autor como uma unidade da comunicação verbal.
Uma unidade de utilização da língua que reflete as necessidades e finalidades de
comunicação humana em cada situação da vida. Os tipos de enunciados que apresentam
18
uma certa estabilidade no uso da língua nas diversas esferas da vida humana são
considerados gêneros do discurso.
Bakhtin (1992) divide os gêneros em dois grupos: primários e secundários. Do
primeiro fazem parte enunciados simples, espontâneos, geralmente compostos por
produções orais. Já os gêneros secundários são mais complexos, não só escritos. Tal
divisão o indica uma polarização, mas um movimento de influências múltiplas; eles se
inter-relacionam. Um exemplo disso pode acontecer numa apresentação acadêmica (gênero
secundário), quando o palestrante conta uma piada (gênero primário). Isso indica a dinâmica
que os envolve (Faraco, 2003).
Conforme Machado (2005), o surgimento da prosa comunicativa solicita outros
parâmetros de análise. Dessa forma, Bakhtin desconsidera a mera classificação dos
gêneros, mas atenta para o dialogismo do processo comunicativo, no qual a interação é a
instância de produção da linguagem. Assim, os [...] gêneros e discursos passam a ser
focalizados como esferas de uso da linguagem verbal ou da comunicação fundada na
palavra” (Machado, 2005, p. 152).
Bakhtin altera o caminho dos estudos dos gêneros ao incluir as práticas prosaicas
que o produções cotidianas e plurais. Com isso, o autor distancia-se da teoria clássica
dos gêneros. A prosa, que havia ficado à margem da Poética e Retórica, é resgatada pelo
dialogismo. No romance, Bakhtin “[...] encontrou a representação da voz na figura dos
homens que falam, discutem idéias, procuram posicionar-se no mundo” (Ibidem, p.153);
nele, “[...] a cultura letrada se deixa conduzir por diversas formas da oralidade contra as
quais ela se insurgira” (Ibidem, p.153).
A respeito disso, Faraco (2003) aponta o rompimento do Romantismo, na Literatura,
com as formas literárias clássicas e o nascimento do romance, um novo gênero, que não
poderia ser analisado dentro da ótica clássica. Tal ruptura abre uma discussão em torno dos
gêneros.
Em linhas gerais, os gêneros foram da poética à prosaica, do puro ao confuso, misto.
Assim, a prosaica denomina um momento cultural do mundo ocidental, da mesma forma que
a poética denominou, outrora. A prosificação da cultura letrada se deu como uma nova
ordem cultural que instaura uma arena de luta que possibilita a discussão, a troca de idéias.
Dessa forma,
Bakhtin alcançou essa outra dimensão da cultura letrada, não analisando o
seu impacto sobre a cultura oral, nem polarizando tradições, mas
examinando a insurreição de uma forma dentro da outra, no mais
autêntico processo dialógico. Nela os discursos e processos de
transmissão de mensagem se deixam contaminar, permitindo o surgimento
dos híbridos. (Machado, 2005, p.154) [grifo meu]
19
20
Capítulo 2
A relação oral/escrito
[Menochio] viveu pessoalmente o salto histórico, de peso incalculável,
que separa a linguagem gesticulada, murmurada, gritada, da cultura
oral, para a linguagem da cultura escrita, desprovida da entonação e
cristalizada na página dos livros [...] Na possibilidade de emancipar-se
das situações particulares esta é a raiz do eixo que sempre ligou de
modo inextricável escritura e poder (Carlo Ginzburg, O queijo e os
vermes)
Em uma sala de aula para a alfabetização de jovens e adultos, encontramos alunos
com diferentes idades e experiências com a língua. Estão iniciando ou continuando o
aprendizado sistemático da escrita. É esse o momento escolhido para analisar que relação
é estabelecida entre o oral e o escrito no processo de alfabetização. A partir disso surgem
questões como: na sala de aula, em uma sociedade letrada que oralidade temos?
diferentes constituições da oralidade? A escrita interfere neste processo? Como? Que
oralidade é “valorizada” numa sociedade letrada?
Como definir oralidade? Oralidade refere-se a quê? Língua oral, linguagem oral, fala,
oral e oralidade são termos sinônimos ou definem processos diferentes? Para alguns
autores e documentos os termos podem significar a mesma coisa. Marcuschi (2005) propõe
uma distinção interessante entre fala e oralidade. A oralidade é a prática social com intenção
comunicativa, realizada pela fala dentro de um gênero textual. E a fala é tida como uma das
modalidades de uso da língua, que outras formas de usar a língua, como a escrita, por
exemplo.
Havelock (1995) alerta que o sentido do termo oralidade difere do sentido aplicado
nos primeiros estudos sobre a questão que versavam sobre a Grécia Antiga e a poesia
homérica. A distinção ocorre pela aparição e disseminação da escrita, pois os primeiros
estudos acontecem em culturas predominantemente orais. Assim, o termo oralidade em
sociedades usuárias da escrita não possui o mesmo sentido dos primeiros estudos, que,
nesse contexto, “[a]mbas, a oralidade e a escrita, individualizam-se ao serem contrapostas,
embora possam ser vistas ainda como interligadas em nossa própria sociedade” (Havelock,
1995, p. 17-18).
Havelock ainda ressalta que essa contraposição não indica uma polarização, já que
21
[a] relação entre elas tem o caráter de uma tensão mútua e criativa,
contendo uma dimensão histórica afinal, as sociedades com cultura
escrita surgiram a partir de grupos sociais com cultura oral - e outra
contemporânea a medida que buscamos um entendimento mais profundo
do que a cultura escrita pode significar para nós pois é superposta a uma
oralidade em que nascemos e governa dessa forma, as atividades normais
da vida cotidiana. Essa tensão pode, por vezes, manifestar-se como
tendência em favor de uma oralidade resgatada e, em outras ocasiões
e contrariamente, como tendência em favor de sua total substituição
por uma sofisticada cultura escrita (Ibidem, p. 17-18) [grifo meu]
Assim, oralidade e escrita estão relacionadas, de forma tensa. Tensão que pode ser
mais acentuada ou não, dependendo da superposição de uma sobre a outra. Desse modo,
procuramos apresentar alguns aspectos dessa relação, partindo dos estudos sobre a
oralidade que se instauram a partir da cultura escrita.
2.1- Oralidade: estudos precursores
Os estudos sobre a oralidade ficaram muito tempo à margem da discussão
acadêmica, por inúmeras razões. Havelock (1995) faz uma importante análise sobre os
surgimentos destes estudos, situando-os. Segundo ele, a oralidade passa a ser tematizada,
em Harvard, a partir das pesquisas de Milman Parry e Albert Lord, no início da segunda
metade do século passado sobre a poesia homérica, mas não adesão de todos para essa
questão. Os mais conservadores relutavam em aceitar o estudo sobre o oral. Isso é um forte
indicio de como a oralidade era uma questão pouco falada.
No percurso dos estudos sobre a oralidade, Havelock enumera cinco deles como
precursores no trato da oralidade. O primeiro é o estudo de Milman Parry que deu início à
moderna teoria oralista homérica da composição. Tais estudos foram divulgados
principalmente por Albert Lord, que organizou os dados coletados por Parry nos Bálcãs,
comparando a produção oral que ainda se mantinha com a produção homérica.
Outro estudo pioneiro, segundo o autor, é o de Harold Innis, economista atento às
questões sobre a natureza e sistemas de transporte, que se volta para a história da
tecnologia das comunicações no final de sua vida. O elo dos interesses está na produção
do papel que alimenta a imprensa. Primeiramente, atenta para a questão econômica do
setor, depois observa a voracidade da comunicação de massa devido à impressão. Ao
comparar a forma como se dava a comunicação em sua cidade natal, na sua infância – sem
pressa, pessoal, e até reflexiva - com a comunicação de massa,
22
[...] chegou à conclusão de que os meios de comunicação atuais não
deixam ao homem tempo para pensar. Notícias instantâneas roubam-lhe o
sentido histórico. Impedem-no de olhar para o passado e tiram-lhe a
capacidade de ver o futuro, de enxergar as prováveis conseqüências das
decisões do presente. (Havelock, 1995, p. 20).
Estes são efeitos da tecnologia na comunicação para Innis. Busca, então, entender
como as antigas tecnologias da palavra produziram efeitos sociais e cognitivos. Nesse
momento, atenta para a questão do oralismo versus cultura escrita, deixando transparecer
em sua obra uma preferência pelas vantagens da palavra oral sobre a escrita,
principalmente a impressa.
Outra publicação citada por Havelock como tendo influenciado a compreensão da
equação aqui discutida é a de I. J. Gelb A study of writing, mesmo que sua contribuição
ainda o tenha sido avaliada. Essa obra, segundo ele, antecede os escritos de Derrida
(Sobre a gramatologia).
A publicação de Walter Ong Ramus: método e decadência do diálogo –, é também
considerada uma antecipação, pois aborda uma problemática ligada à equação oralidade
cultura escrita. Trata do estudo e da prática da retórica, que esteve presente na educação
das elites até pouco tempo atrás e configura-se como uma disciplina predominantemente
oral. Ong nota a limitação sofrida no discurso retórico quando suas regras são textualizadas,
formuladas na escrita, considerando que esta última imobiliza a vitalidade presente na
linguagem falada. Assim, “[o] ‘diálogo oral’, em suas próprias palavras, quando tabulado sob
essa forma para fins educativos, simplesmente ‘deteriora-se’” (Havelock, 1995, p. 21). Por
essa discussão, Ong torna-se referência na discussão da equação oral/escrito e estimula
novos estudos sobre isso.
Havelock (1995) assegura que tais estudos influenciaram as discussões posteriores
sobre a oralidade, tendo uma repercussão inimaginável. No inicio da década de 60, surgem
quatro publicações em diferentes países que ressaltam a necessidade de enfocar a
oralidade nos estudos. Os estudos coincidiam pela proximidade temporal e pelo enfoque
adotado, mas não havia nenhuma relação entre os estudiosos. O autor considera que essas
produções representam um marco para o que chamou “equação oralidade cultura escrita”.
As publicações enfocavam a oralidade em diferentes contextos. Em The Gutenberg Galaxy,
de McLuhan, aparece a preocupação com a transformação da oralidade nas sociedades
modernas possibilitada pelos meios de comunicação - telefone, rádio e televisão. Lévy-
Strauss (La pensée sauvage) preocupa-se com o passado, analisando mitos tribais orais
considerados primitivos por serem anteriores à escrita. O próprio Havelock, em seu Preface
to Plato, aborda a oralidade no mundo grego antigo (Havelock, 1995). E, por fim, o artigo
de Goody e Watt (The consequences of literacy). Estas pesquisas, além de anunciar a
23
atenção para a questão da equação cultura escrita-oralidade, também se tornam um marco
para os estudos sobre a referida questão, segundo Havelock (1995).
Após esses estudos que compõem um divisor de águas, surgem outros que
Havelock não se atém a listar, no entanto abordam diferentes campos do saber que tocam
consciente ou inconscientemente a equação aqui referida. Alguns desses estudos dedicam-
se ao oralismo apenas, já outros voltam sua atenção apenas para a cultura escrita.
O marco teórico apontado por Havelock, constitui uma referência para os estudos da
relação oral-escrita. Como discutiremos adiante, esses estudos são revistos sob outros
ângulos: como concebem a relação oral-escrito?
2.1.1 – Relação oral-escrito: grande divisão versus continuum
Havelock (1995) situa os estudos sobre a equação oralidade-escrita, ressaltando as
produções teóricas que compõem um divisor de águas nos estudos dessa problemática.
Além desses estudos, investigações que se ocupam das concepções sobre a relação
oral/escrito. De um lado estão os diversos estudos que vêem a relação oral/escrito como
dicotômica, polarizada, e de outro, as investigações que consideram essa relação num
continuum.
Vários autores tratam da análise dessas concepções, como Marcuschi (2001, 2005),
Kleiman (1995), Tfouni (2002) e os efeitos destas no trato da fala e da escrita. Marcuschi
(2001) ressalta que, até meados do século XX, as questões que envolviam a relação em
questão não apareciam, devido à concepção de língua corrente na época que
desconsiderava os seus usos sociais
1
. Nas décadas seguintes, até os anos 80, o olhar de
pesquisadores de diversas áreas volta-se para a relação oral-escrito. Tais estudos
defendem que houve uma “grande divisão” a partir da inserção da escrita nas sociedades,
como uma nova forma de conhecer e de ampliar a capacidade cognitiva. Assim, instaura-se
“[...] a supremacia da escrita e sua condição de tecnologia autônoma, percebida como
diferente da oralidade do ponto de vista do sistema, da cognição e dos usos” (Marcuschi,
2001, p. 26).
Esta tendência, que ficou conhecida como grande divisão, buscava as diferenças
entre fala e escrita, polarizando-as, sendo que a análise centrava-se no código. Desse
modo, a escrita é tida como descontextualizada, planejada, normatizada. a fala é tida
como contextualizada, não-planejada, não-normatizada e, por isso, inferior à primeira
(Marcuschi, 2005).
1
O autor remete-se aos estudos de Ferdinand Saussure que defendia a língua como um sistema.
24
Nessa visão dicotômica, atribuem-se fatores positivos à escrita e, o contrário, à fala.
Busca-se comprovar a superioridade da escrita, partindo de um olhar etnocêntrico, ou seja,
analisa-se a fala a partir de pressupostos da cultura escrita. Dentro desse escopo teórico, a
escrita representa a norma, o desejável, e a fala, por sua vez, é o espaço da desordem, do
improviso (Marcuschi, 2005).
Conforme Marcuschi (2001, 2005) e Tfouni (1995), os postulados da grande divisão
foram fortemente criticados, o que possibilitou uma nova forma de conceber tal relação,
denominada como continuum ou contínuo tipológico. Dessa forma,
[s]urgia uma visão que permitia observar a fala e a escrita mais em suas
relações de semelhança do que diferença numa certa mistura de gêneros e
estilos evitando as dicotomias em sentido estrito. (Marcuschi, 2001, p. 28)
Além disso, essa nova visão avança em relação às anteriores, ao considerar as
semelhanças e não só as diferenças entre fala e escrita, como faziam os estudos da
chamada “grande divisão”, segundo Marcuschi (2001,2005) e Kleiman (1995). Outra
importante inovação é tomar como âmbito para a análise a relação entre oralidade e
letramento, e não apenas entre fala e escrita
2
, questão que será posteriormente abordada.
Assim, “[n]ão se pode observar um texto [falado ou escrito] em si e isolado de seu contexto
sóciocomunicativo numa dada prática social de uso da língua” (Marcuschi, 2001, p. 32)
Desse modo, ao comparar uma conversa informal com um texto acadêmico, ou uma
conferência com um bilhete, teremos produções discursivas extremas. No entanto, se
olharmos para os gêneros e não apenas a forma como se oral ou escrita
encontraremos semelhanças, como por exemplo, entre uma conferência (oral) e um texto
acadêmico (escrito) (Marcuschi, 2001, 2005).
Como foi discutido até aqui, duas “grandes” concepções sobre a relação oral-
escrito, que orientaram os estudos sobre essa relação. Entretanto, Marcuschi (2005)
ressalta a existência atual de diversas tendências de estudos sobre a relação em questão.
Em cada tendência, o autor agrupou os estudos que possuem proximidades teóricas.
A primeira tendência descrita por Marcuschi (2005) é a das dicotomias, assumida
principalmente pelos lingüistas que se ocupam da relação fala/escrita como fala versus
escrita. Entre os principais representantes, aponta Bernstein e Labov, que se ocupam da
visão restrita e polarizada e Chafe, Tannen e Gumperz, que assumem a relação como um
contínuo tipológico ou da realidade cognitivo-social. Os primeiros centram-se na análise do
código e não ultrapassam o fato lingüístico. Esse posicionamento, por exemplo, deu origem
à noção de norma culta da língua, ao prescrever uma norma lingüística considerada padrão,
e está muito presente nos manuais didáticos de língua portuguesa.
2
A distinção entre os termos oralidade/letramento - fala/escrita é feita por Marcuschi (2005).
25
Outra tendência é a fenomenológica, de caráter culturalista, que observa as práticas
da oralidade versus escrita, analisando-as a partir dos interesses cognitivos, antropológicos
e sociais e, assim, desenvolvem “[...] uma fenomenologia da escrita e seus efeitos na forma
de organização e produção de conhecimento” (Marcuschi, 2005, p. 28). Essa visão, segundo
o autor, é defendida por antropólogos, psicólogos e sociólogos como Ong, Goody, Scribner
e Olson, que procuram identificar o que aconteceu nas sociedades em que a escrita foi
introduzida. Mas, não se atêm à análise dos fatos da língua. Aqui a escrita é tida como “[...]
um avanço na capacidade cognitiva dos indivíduos e, como tal, uma evolução nos
processos noéticos (relativos ao pensamento em geral), que medeiam a fala e a escrita”
(Ibidem, p. 29). autores que criticam essa linha, como Biber e Gnerre (Cf. Marcuschi,
2005) que discordam desse poder intrínseco atribuído à escrita pelos estudiosos dessa
linha.
A terceira visão discutida é a variacionista, considerada pelo autor como
intermediária entre as anteriores e isenta da maioria dos problemas encontrados nelas. Essa
tendência “[...] trata do papel da escrita e da fala sob o ponto de vista dos processos
educacionais e faz propostas específicas a respeito do tratamento da variação na relação
entre o padrão e não-padrão lingüístico nos contextos de ensino formal” (Ibidem, p. 31). O
currículo bidialetal é um exemplo dessa atuação. Abandonam distinções dicotômicas e se
preocupam com as regularidades e variações da língua. Desse modo, utilizam uma
metodologia mais adequada para o estudo da ngua do que os outros estudos expostos.
Entre os principais representantes dessa linha no Brasil estão Bortoni, Kleiman e Soares.
Marcuschi (2005), no entanto, faz ressalvas sobre a concepção bidialetal, pois ela considera
o padrão para a escrita e o não-padrão para o oral. Para ele, a fala e a escrita não são dois
dialetos, e sim modalidades de uso da língua. Desse modo, a pessoa torna-se bimodal
quando aprende a escrever por dominar duas formas de usar a língua, e o padrão e o não-
padrão podem existir nas duas modalidades.
A quarta e última tendência exposta por Marcuschi é a sociointereacionista, que a
relação em questão numa perspectiva dialógica. A língua é tida como um fenômeno
interativo e dinâmico. A análise do discurso, juntamente com a pesquisa etnográfica, pode
ser uma das melhores formas para observar o letramento e oralidade como práticas sociais,
conforme o autor. Discordam das tendências anteriores, porém enfrentam dificuldades para
analisar os aspectos da língua, o que provoca uma deficiência nesse aspecto. Dessa forma,
a solução seria a fusão com a análise da conversação e a lingüística do texto, segundo o
autor, o que poderia assegurar os resultados, garantindo maior adequação empírica e
teórica. Assim, “[t]alvez seja esse o caminho mais sensato no tratamento das correlações
entre formas lingüísticas (dimensão lingüística), contextualidade (dimensão funcional),
interação (dimensão interpessoal) e cognição no tratamento das semelhanças e diferenças
26
entre fala e escrita nas atividades de formulação textual-discursiva” (Ibidem, p. 33). Os
principais pesquisadores dessa tendência, segundo o autor, são Preti, Koch, Marcuschi,
Kleiman e Urbano.
Essa última tendência traz importantes contribuições para a análise da relação.
Principalmente, porque assume que a língua é dialógica e constituída nas práticas sociais, o
que evita que recaiam nos erros cometidos por outras linhas. Assim, os usos da língua (oral
ou escrito) “configuram-se” nas práticas sociais. Fato que muda o foco da análise,
permitindo que a fala seja equiparada à escrita, como uma das modalidades de uso da
língua e não mais como uma forma primitiva, inacabada e imperfeita da língua.
Enfim, esse panorama traçado por Marcuschi dos estudos dedicados à relação
oral/escrito mostra-nos as diversas abordagens que partem de áreas distintas e se esforçam
para compreender esta questão que se mostra extremamente complexa. Por este percurso
podemos apreender como essa relação foi analisada pelas diversas óticas e como os
estudos, também, contribuíram para olhares diferentes sobre a relação.
Desse modo, os estudos da variante dicotômica apostam nas características
positivas da escrita em detrimento de um oral “deficiente”, inacabado. Fato que certamente
influenciou (e ainda influencia?) a concepção sobre a fala vigente nos dias atuais. Outros
indícios que essas investigações deixam é que a relação entre oral e escrito não é
harmônica, mas constituída na tensão.
A contribuição de alguns autores (Marcuschi, Kleiman, Tfouni) redimensiona a tensão
oral-escrito ao considerar a situação de produção da fala e da escrita, o atentando para a
fala e a escrita em si. Desse modo, eles centram-se na oralidade e no letramento, o que
abre inúmeras possibilidades para análises que vêm ao encontro da concepção de
linguagem adotada nesse trabalho.
Considerar a oralidade e não a fala, o letramento e não a escrita apenas, transforma
a análise, não a situando no plano lingüístico, pois de acordo com Kleiman (1995) “[...] as
diferenças [entre oralidade e letramento] são bem mais relativas quando o foco não está nas
diferenças e quando a concepção não é polarizada” (p. 28). Assim, a escrita não é somente
formal, como a fala não é somente informal. A formalidade ou informalidade, por exemplo,
não está relacionada à fala ou à escrita, mas à situação em que ambas são usadas.
2.2 - Oral e escrito em relação
2.2.1 - Oral/escrito: uma relação não necessária?
27
A relação oral/escrito sempre existiu? Muitas vezes, tal relação parece evidente, e a
escrita é vista como uma transcrição da fala, ou até, como um “desenvolvimento” da fala ou
como um instrumento mais elaborado, numa visão grafocêntrica extrema. Para Barthes e
Marty (1987), a escrita não nasce do oral. A relação com a fala se constitui na evolução
descontínua da escrita. Desse modo, para esses autores a relação oral/escrito é uma
relação não necesária, pois a escrita não surge da palavra ou do auditivo, mas é
independente e surge no visual escrita pictográfica, por exemplo. Para isso argumentam
que o homem aprendeu primeiro a ler do que a escrever; que os caçadores liam as
pegadas dos animais para decifrar de que animal se tratava. Nesse sentido,
[t]udo se passa como se a escrita tivesse sido inventada antes de ser
posta em relação com a língua, antes de ser fonetizada: o avento da escrita
é o avento de algo que é escrita [...] e que depois de uma evolução lenta
e descontínua, acaba por servir de suporte ao som. (Barthes e Marty, 1987,
p. 32)
Com isso, os autores desestabilizam noções aparentemente óbvias como a de que a
fala surgiu antes da escrita, e que esta é uma transcrição da primeira. Eles apresentam
teses que redimensionam o óbvio. Sobre isso acrescentam: “[a] escrita não nasce do fato
auditivo, o é apenas transcrição do falado no acto gráfico, tem origem no reconhecimento
visual da marca” (Ibidem, p. 32).
Um dos argumentos apresentados é baseado na tese de Ginneken, que defende
que a escrita é anterior à fala. Nela, os gestos são tidos como a primeira linguagem, anterior
à verbal e os pictogramas que são a transcrição dos gestos surgiriam antes da fala. Mesmo
havendo vários questionamentos quanto à validade deste estudo, os autores realçam a
contribuição deste para a discussão da relação oral/escrito, que não é vista sob a forma de
uma determinação mecanicista, assinalando outros aspectos que possibilitaram o
surgimento da escrita, como os gestos e o desenho.
O desenvolvimento da escrita até a forma que conhecemos hoje, fonetizada, não se
deu de forma linear. Para os autores, paralelamente, surgiam e conviviam diferentes
grafias, como as que serviam de suporte para o oral como os entalhes e os nós
destinados principalmente à marcação da contagem. Estas são caracterizadas, segundo
Barthes e Marty, pela linearização do modo de produção gráfica, o desenvolvimento do
aspecto fônico e a apreensão do real baseada mais no tempo do que no espaço.
Tais grafias possuíam uma linearidade e seu desenvolvimento esteve relacionado à
produção de objetos, pois o ritmo, os movimentos repetidos envolvidos nessa atividade
como as marteladas regulares, que acionam músculos, olhos e ouvidos, colaboram para o
28
surgimento de um controle simbólico do real. Com isso o homem pôde contar o tempo,
objetos, animais, entre outras coisas, reorganizando, assim, as relações humanas. As
marcas das primeiras contagens eram feitas por fragmentos de ossos ou pedras que
tendiam a quantificar os animais e o tempo evidenciando, os indícios do progresso
econômico.
Essa nova forma de registrar aproxima-se da língua e da palavra principalmente
pela linearização, pois avançou em relação à palavra que não acontecia na escrita
pictográfica. A relação com o oral se na ritmicidade das marcas e da palavra, corpo e
voz, distanciando-se do visual, não se configurando numa relação de dependência, mas de
coordenação. Um exemplo dessas marcas que permanece até hoje é o rosário recitam-se
as orações acompanhando o movimento das mãos e vice-versa.
Pelo percurso de desenvolvimento da escrita , os autores asseguram que ela “[...]
não é uma simples transcrição mas produção da língua; a escrita deve ser considerada,
antes de mais nada, como modo de produção da língua, cujos meios conheceram variações
notáveis” (Ibidem, p. 39). Na relação oral/escrito a fonetização do escrito é o argumento que
desconstrói a idéia de que a escrita é uma transcrição da fala. Ou seja, “[...] pode-se afirmar
que o advento da escrita é o advento de algo que é escrita e que deste modo pode servir
de suporte ao som” (Ibidem, p. 42).
Enfim, os argumentos discutidos por Barthes e Marty invertem a noção da relação
oral/escrito, colocando-os numa relação não necessária. O que redimensiona um olhar
“tradicional” da relação que aposta na escrita como transcrição da fala, numa relação
dependente. Outra discussão sobre o oral e o escrito é apresentada nos estudos de Ong
(1998), que uma impossibilidade de se abordar a oralidade, mesmo em sociedades sem
a escrita, sem a comparação com a escrita. Isto implica que fala e escrita estão sempre em
relação, mesmo quando esta não está explicita.
A maioria dos estudos dessa relação não consegue fugir da comparação entre fala e
escrita. Desse modo, Ong (1998) se propõe a enfatizar a oralidade como forma de resgate
de suas especificidades dentro desta relação, que, nos estudos, ela sempre esteve à
sombra da escrita. Ainda para este autor, a complexidade da questão da oralidade e da
cultura escrita é acentuada por preconceitos; por isso, é preciso romper com os tabus
impostos pela cultura escrita que estão inculcados nos participantes dessa cultura,
indicando que a escrita é melhor do que a fala. Tais preconceitos são frutos de uma
construção histórica de privilégios da escrita.
Ao resgatar peculiaridades da oralidade, Ong (1998) discute a supremacia da escrita,
lembrando-nos que o movimento da linguagem é essencialmente oral, pois onde
29
homens, eles estão falando e, ainda, muitas línguas faladas e pouquíssimas delas são
escritas. Além disso, a “[...] fala é inseparável da nossa consciência e tem fascinado os
seres humanos, além de trazer à tona reflexões importantes sobre si mesma, desde os mais
antigos estágios da consciência, muito tempo antes do surgimento da escrita” (Ong, 1998, p.
17).
No entanto, para o autor a fala ainda é importante, mesmo com toda a supremacia
da escrita; sem a fala, ela está isolada.
[A] despeito dos mundos maravilhosos que a escrita abre, a palavra falada
ainda subsiste e vive. Todos os textos escritos devem, de algum modo,
estar direta ou indiretamente relacionados ao mundo sonoro, habitat natural
da linguagem, para comunicar seus significados [...] A expressão oral pode
existir – e na maioria das vezes existiu – sem qualquer escrita; mas nunca a
escrita sem a oralidade. (Ong, 1998, p. 16)
Ou seja, mesmo com toda a sofisticação da escrita, ela é dependente da forma oral
da língua. Podemos pensar que essa dependência acontece após a fonetização da escrita,
segundo Barthes e Marty? Pensando nesse movimento tenso, contraditório, entre fala e
escrita, somos levados a indagar: como podemos atribuir superioridade a uma ou outra?
Nesse sentido, Marcuschi (2005) assegura que poderíamos definir a natureza
humana como o ser que fala e não o ser que escreve. Mas isso não significa uma
superioridade da oralidade em relação à escrita, nem que a fala é primária e a escrita
derivada. E também que a escrita não pode ser vista como uma representação da fala por
não reproduzir muitos recursos da fala como a gestualidade, a expressão facial e também,
porque tem marcas próprias como o tamanho das letras, entre outros.
Dessa forma, para o autor, “[o]ralidade e escrita são práticas e usos da língua com
características próprias, mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas
lingüísticos nem uma dicotomia” (Marcuschi, 2005, p.17).
2.2.2 - Poder da escrita: uma construção histórica
Nos estudos referentes à visão dicotômica, discutidos anteriormente, a escrita
aparece numa condição privilegiada em relação à fala pois é tida como possuidora de um
poder inerente, superior. Outros estudos observam que isso é fruto de uma construção
histórica e política que envolve mitos em torno da escrita. Um desses mitos é a relação entre
a escrita e o conhecimento racional, científico, e entre o oral e o mítico, o não-científico.
Assim, o escrito é ressaltado e o oral inferiorizado. Isso não quer dizer que se desconsidere
toda a relevância da escrita e da imprensa para a divulgação científica (Barthes e Marty,
30
1987), mas que isso não acontece de forma estanque e determinada, como veremos
adiante.
Barthes e Marty (1987) apontam que a supremacia da escrita ganha força ao aliar-se
com a racionalidade, principalmente, frente aos povos sem escrita. Assim, a função da
escrita é “[...] reforçar as instâncias coercitivas de poder intelectual e econômico e, ao
mesmo tempo, a de reforçar a racionalidade face às civilizações sem escrita que viveriam
apenas no espaço mítico de um imaginário sem rédeas ”(Barthes e Marty, 1987, p. 53). Com
isso, se produz a dicotomia entre pensamento racional ligado à escrita, de um lado, e
pensamento mítico nas culturas sem escrita, orais, de outro. E constrói-se, assim, a visão da
escrita como espaço da racionalidade. O saber ocidental é veiculado via escrita livros e
através dela pode ser apropriado. No entanto, essa forma recente de saber, segundo os
autores, é suficiente para ser uma forma de poder, que nem todos têm acesso à mesma.
Como em uma sociedade letrada, as pessoas não alfabetizadas; não terão pleno acesso à
organização baseada na escrita.
Para Detienne (Cf. Braga, 2002), a passagem do mítico ao racional na Grécia antiga
não foi fruto de nenhum milagre ou “decantação progressiva”, mas de profundas
transformações ocasionadas pelo surgimento institucional da moeda, do calendário, da
escrita alfabética e da ampliação do comércio e da navegação. Assim, o surgimento da
cidade, com todas as modificações embutidas nesse processo provocam o surgimento do
pensamento racional e da palavra, cada vez mais distanciada do poder divino, pelos estudos
da retórica, direito, pelos princípios de democracia que instauram a lei para os homens.
De acordo com Barthes e Marty (1987), a racionalização ocidental é marcante. Ela se
não pela escrita, mas pela escrita amparada e veiculada pela imprensa. Dessa forma,
“[m]ais que a escrita, o que fundou o sujeito ocidental como sujeito de razão foi a imprensa,
ou seja, a Escrita suportada por uma tecnologia, por um lado, e a Escrita como técnica, por
outro” (Barthes e Marty, 1987, p. 54). No entanto, os autores asseguram que não uma
relação necessária entre escrita e racionalidade, pois, de acordo com McLuhan, o oral pode
vir a ser o novo suporte para a racionalidade, graças aos recursos eletrônicos que nos
fariam abandonar o escrito. Assim:
[o] olho não é mais racional que a orelha; é a familiaridade do olhar com a
superfície impressa que aqui importa. A racionalidade não passa pela
escrita ou pelo oral; a racionalidade constitui-se, a pouco e pouco, a
partir do momento em que a linguagem e técnica se encontraram, é
certo, no terreno da escrita, tal como amanhã pode acontecer com o
oral. (Ibidem, p. 54) [grifo meu]
No entanto, a imprensa, na ótica dos autores, provoca mudanças significativas, pois
“[...] dispõe o mundo como um espaço a dissecar, analisar, um mundo cortado do tempo da
palavra, transcrito sobre os mostradores dos aparelhos de medida e sobre os caracteres
31
móveis das tipografias” (Ibidem, p. 55). E ainda, ela esteve aliada à lógica cartesiana
pautada na verificação e comprovação do que é verdadeiro, compondo a formatação do
pensamento ocidental. Daí, a validade do escrito, ao invés da palavra falada.
Retornando à equação inicial, nota-se em Barthes e Marty (1987) que a relação
conhecimento mítico / oral e o racional / escrito, não é tão certa e determinada como se
pensou, pois inúmeros exemplos que evidenciam a escrita atrelada a um poder mítico ou
mágico, e o oral, ligado à busca do verdadeiro conhecimento.
Como exemplo disso, podemos citar as pílulas do Frei Galvão, na qual uma oração é
escrita em um papel que depois de enrolado é cortado em pequenas partes. Essas pílulas
são ingeridas pelas pessoas que buscam um milagre. Outro evento semelhante ocorre
numa tribo indígena, em que a palavra é escrita com carvão numa madeira; em seguida,
joga-se água e deixa-se escorrer, para depois o líquido ser ingerido como representação de
estar tornando sua aquela “escrita poderosa”. Nesses casos, a escrita possui um efeito
mágico, mítico.
3
Assim, não é possível confirmar a equação escrita / racionalidade pois a escrita o
é somente usada para veicular o racional. Ela também pode estar atrelada ao mítico, como
nos exemplos acima. Essa relação é mais um mito em torno da escrita, é mais uma
construção histórica que concede poder a ela. O contrário também ocorre, que o oral o
está relacionado ao mítico apenas, pois está a serviço do pensamento racional no ensino e
na prática da retórica, que foram a base da educação das elites desde a Antiguidade até
poucos anos atrás (Havelock, 1995). Assim, não é possível manter essa visão estreita e
dicotômica entre racionalidade e escrita, de um lado, e oral e mítico de outro. Isso deixa
evidente que a distinção aqui não é oral ou o escrito apenas, mas o poder que ambos
possam ter socialmente. Nesse sentido, a escrita na sociedade ocidental, apresenta uma
vantagem considerável. Como isso foi construído? Como a escrita foi se tornando tão
poderosa a ponto de se sobrepor à fala?
Como foi mencionado anteriormente, a escrita não se desenvolve linearmente,
pois coexistem diversos sistemas num mesmo momento. Ela se fonetiza lentamente,
tornando-se suporte para o som, e dissemina-se, através do comércio e das cidades. Nesse
contexto, os primeiros usos são relacionados exclusivamente a atividades econômicas.
Esses e outros usos que foram feitos da escrita fundam uma relação de poder,
principalmente nas sociedades em que o acesso a ela não foi democratizado (Barthes e
Marty, 1987).
3
Esses comentários foram feitos pela professora Profª. Drª. Jackeline Rodrigues Mendes, durante o Curso de
Extensão “Práticas sociais de leitura no contexto escolar”, realizado no segundo semestre de 2005, na
Universidade São Francisco, Campus de Itatiba.
32
Gnerre (1985) traz uma importante contribuição para essa discussão, ao pontuar
aspectos da constituição da relação entre escrita e poder. Segundo o autor, a Europa
ocidental concebia a existência de um único sistema de escrita ao século XVII a escrita
alfabética. Após a descoberta da existência de outras escritas, como a chinesa,
classificaram-se as diferentes culturas num continuum crescente: as comunidades ágrafas,
as que usam outros sistemas de escrita e as que possuem a escrita alfabética. Desse modo,
cria-se uma distinção entre os povos, partindo-se do mais “primitivo” para o mais “evoluído”.
Outra forma de distinção ocorre dentro da sociedade européia, na qual separam-se os
poucos alfabetizados pertencentes às elites e a grande massa de analfabetos.
Essa forma de conceber a escrita traz em seu bojo a construção de uma
superioridade (da escrita alfabética) e um instrumento de poder (só para os iniciados). Essa
concepção foi duramente criticada por diversos autores como Olson (1987), que comprovam
que a escrita alfabética não tem nenhum componente intrínseco superior, mostrando que tal
superioridade é fundada em crenças ou mitos.
No entanto, esse modo de conceber a escrita percorre o tempo e acumula outras
crenças com outro foco, mas mantendo o status da escrita como algo superior. No século
XX, a escrita deixa de ser posse de poucos para se tornar um bem desejável para todos. O
lema é alfabetizar a todos como meta para o desenvolvimento. Assim, “[a] alfabetização
seria o passo decisivo para que grandes massas mergulhadas nas culturas orais
abandonassem valores e formas de comportamento ‘pré-industrial’, se tornassem mais
disponíveis para processos de industrialização e cooperassem de forma ativa no processo
de expansão do poder do estado” (Gnerre, 1985, p. 31-32).
Entre as ações que comprovam isso, está o destino de verbas governamentais ao
ensino da escrita e aos conhecimentos provindos dela que são equivalentes às despesas
com a saúde e a defesa civil. Outro “sintoma” dessa disseminação da escrita é a presença
constante da preocupação com a alfabetização de todos nas pautas governamentais um
século, nas democracias ocidentais. E ainda, a alfabetização é tida como solução para
problemas sociais como a pobreza, segundo Olson (1997).
Nesse sentido, as campanhas de alfabetização têm o mesmo posicionamento.
Muitas delas, incentivadas pela UNESCO, acreditam que a alfabetização é algo positivo e o
analfabetismo, o contrário, relacionando-o à pobreza, ao subdesenvolvimento, entre outros.
Desse modo, deixam transparecer uma relação entre progresso e alfabetização; o país
tornar-se-ia desenvolvido à medida que todos estivessem alfabetizados, segundo Graff (Cf.
Marcuschi, 2005).
A partir de toda uma construção histórica de atributos positivos da escrita, o oral foi
sendo constantemente diminuído e visto como a ausência da escrita. Um possível resgate
33
do oral aconteceria, se houvesse uma nova compreensão da escrita, que a partir de uma
análise crítica problematizasse os mitos construídos em seu entorno (Olson, 1997). Nesse
sentido, é preciso desapegar-se do ‘dogma’ antigo que dá suporte para as más políticas
sociais e educacionais, ou seja, deixar “[...] a crença ingênua no mágico poder
transformador do mero aprendizado da leitura, da escrita e do cálculo” (Olson, 1997, p. 19).
Enfim, é necessário despir a escrita dos superpoderes depositados nela nos últimos
séculos.
Isso não quer dizer que é preciso anular a escrita ou desconsiderar seus verdadeiros
atributos, mas que é preciso ponderar e reconhecer outras modalidades de uso da língua
que possuem outras características, como a fala. Essas diferenças não são suficientes para
torná-la superior ou inferior. Desse modo, diversos autores asseguram que não podemos
negar a importância da escrita, principalmente nas sociedades letradas, mas continuamos,
como disse Ong (Cf. Marcuschi), sendo “povos orais”.
A oralidade jamais desaparecerá e sempre será, ao lado da escrita o grande
meio de expressão e de atividade comunicativa. A oralidade enquanto
prática social é inerente ao ser humano e não será substituída por nenhuma
outra tecnologia. Ela será sempre a porta de nossa iniciação à racionalidade
e fator de identidade social, regional, grupal de indivíduos. (Marcuschi,
2005, p. 36)
Mesmo com todo o alcance da escrita e a crença de que ela teria absoluto
predomínio com referência à fala, esta não desapareceu, “continua na moda”.
O certo é que a oralidade continua na moda. Parece que hoje
redescobrimos que somos seres eminentemente orais, mesmo em culturas
tidas como amplamente alfabetizadas. É, no entanto, bastante interessante
refletir melhor sobre o lugar da oralidade hoje, seja nos contextos de uso da
vida diária ou nos contextos de formação escolar formal. (Ibidem, p. 24)
Para Marcuschi (2005), a fala não possui propriedades internas negativas, assim
como a escrita não possui nenhum atributo interno positivo que consistiria numa possível
superioridade. Na verdade,
[s]ão modos de representação cognitiva e social que se revelam em práticas
específicas. Postular algum tipo de supremacia ou superioridade de alguma
das duas modalidades seria uma visão equivocada, pois não se pode
afirmar que a fala é superior à escrita ou vice-versa. Em primeiro lugar,
deve-se considerar o aspecto que se está comparando e, em segundo,
deve-se considerar que esta relação não é homogênea nem constante.
(Ibidem, p. 35)
2.3 - Oralidade e letramento
34
Até aqui, a discussão foi ancorada na relação entre o oral e o escrito. Ao
problematizar essa relação, como comentamos anteriormente, há duas visões
predominantes: grande divisão e o continuum. Segundo os defensores da primeira visão,
esta destina-se a buscar as diferenças entre fala e escrita. Para isso centram suas análises
nos código, não se atentando para as situações em que a fala e a escrita acontecem. A
outra visão discorda da primeira, principalmente por considerar as práticas sociais em que a
fala e a escrita aparecem. Para essa análise os estudos do letramento o uma importante
colaboração, como veremos adiante.
Tais estudos compõem um amplo campo de investigações em busca de respostas
que promovam “[...] uma transformação de uma realidade tão preocupante como é a
crescente marginalização de grupos sociais que não conhecem a escrita” (Kleiman, 1995, p.
15). Nesse sentido, os pesquisadores se deparam com questões, como: analisar que
mudanças sócio-discursivas operam quando uma sociedade torna-se letrada; se as pessoas
não-alfabetizadas que vivem numa sociedade letrada têm as mesmas características de
indivíduos pertencentes a grupos iletrados; e por fim, como fazer para conhecer mais
profundamente os grupos não-alfabetizados que vivem num mundo perpassado pela escrita
(Tfouni, 2002).
Esses estudos aparecem em países distantes geográfica e culturalmente (França,
Estados Unidos, Brasil) e as discussões tomam rumos distintos. Nos países desenvolvidos,
o letramento surge a partir de uma preocupação com as pessoas alfabetizadas, mas que
não estavam preparadas para as exigências de um mundo escrito. Já no Brasil, essa
discussão está profundamente ligada à alfabetização, tanto que um esforço da produção
acadêmica é distinguir os dois processos (Soares, 2004).
Isto se reflete ano uso do termo. Segundo Kleiman (1995), a palavra “letramento”
começou a ser usada para diferenciar tais estudos das análises sobre alfabetização,
considerando-se o letramento como o impacto da escrita em uma determinada sociedade.
Para Tfouni (2002), a alfabetização difere do letramento, pois ela acontece em um processo
individual ou de um grupo de indivíduos; o letramento é um processo social. Marcuschi
(2005) compreende a alfabetização como o aprendizado ou a apropriação da leitura e da
escrita, e o letramento, como os usos ou papéis que a leitura e escrita assumem na
sociedade.
Alfabetização e letramento diferem também pela forma como ocorrem. Desse modo,
para Marcuschi, alfabetização é um aprendizado da escrita mediante o ensino não
necessariamente escolar, pois “[...] compreende o domínio ativo e sistemático das
habilidades de ler e escrever” (2005, p. 21), mas implica um ensino. letramento é a
aprendizagem sócio-histórica da leitura e escrita em ambientes sociais em que a escrita
circula, independente de uma situação de ensino sistemático. Assim, é possível que
35
pessoas não alfabetizadas sejam letradas, pois participam de situações que evolvem a
escrita (Kleiman, Oliveira, Soares, Marcuschi, Tfouni).
A escola, segundo Kleiman (1995), tem uma finalidade específica no processo de
letramento, já que é a principal agência de letramento da sociedade e tem como função
ensinar a escrita, mas não é a única. Existem outras agências como a igreja, a família, o
local de trabalho entre outras; no entanto, essas diferenciam da escola porque não tem
como finalidade ensinar a escrita, apenas fazem uso da escrita.
Outro ponto interessante dessa discussão é que a escola é a principal agência de
letramento, mas não é a única. Assim, o contato com a escrita não está restrito a ela, ou
seja, a escrita não é conhecida apenas na escola. Ao participarmos de uma sociedade
letrada obtemos inúmeros conhecimentos sobre o funcionamento da escrita, independente
do conhecimento estrito do código, ou seja, ser alfabetizado (Tfouni, 2002).
Dessa forma, conforme Kleiman (1995), a noção de letramento considera esses usos
sociais da escrita, e com isso, rompe com a dicotomia disseminada pela/na escola entre
alfabetizado e não-alfabetizado, na qual sabem a respeito da escrita aqueles que sabem
escrever. A esse respeito, Marcuschi (2005) defende que o analfabeto desconhece a
escrita, mas seu desempenho lingüístico é influenciado pela escrita, devido à participação
em eventos de letramento, como os mencionados acima. Ou seja, para conhecer o
funcionamento da escrita, não é preciso estar alfabetizado.
É preciso ressaltar que toda essa discussão está ancorada em uma concepção de
letramento, pois outras formas de conceber esse processo. Segundo Street (Apud
Kleiman), o letramento é concebido segundo dois modelos: modelo autônomo e modelo
ideológico. Aqui o letramento é tratado de acordo com segundo modelo, o qual
[...] afirma que as práticas de letramento, no plural, são social e
culturalmente determinadas, e, [...] os significados específicos que a escrita
assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em
que ela foi adquirida. (Kleiman, 1995 p. 21)
Este difere do modelo autônomo, que defende a existência de uma única forma do
letramento acontecer desconsiderando a multiplicidade de eventos em que pode estar
presente e leva a crer que é ele o responsável pelo progresso e a civilização. É esse modelo
que muitas vezes ampara o trabalho feito com a escrita na escola. Ele também é
responsável pela disseminação dos ‘mitos’ da alfabetização, a qual seria responsável pela
elevação social.
A própria palavra “autônomo” indícios sobre esse modelo, pois traz a idéia da
escrita como um sistema autônomo independente do contexto de produção. Assim, ela
deve ser analisada e interpretada por ela mesma, desconsiderando-se outros fatores. Entre
36
as características desse modelo estão: a relação entre o letramento e o desenvolvimento
cognitivo; a fala e a escrita vistas de forma dicotômica; e, por último, a atribuição à escrita de
poderes e qualidades intrínsecas (Kleiman, 1995).
Considerando-se as características expostas acima, o modelo de letramento
autônomo revitaliza os postulados da grande divisão que tomavam a aquisição da escrita
como transformadora da comunicação na sociedade e que as modalidades de uso da língua
- oral e escrita - possuem características distintas: o oral marcado pelo raciocínio emocional,
contextualizado e ambíguo; a escrita, o oposto, pelo raciocínio abstrato, descontextualizado
e lógico (Tfouni, 2002). Sobre isso, Street (Cf. Tfouni, 2002) identifica uma moderna teoria
da grande divisão com as produções de Greenfield, Hildyard e Olson. Nessas produções
modernas, o etnocentrismo evidente da antiga geração é disfarçado, e também surgem
novos termos que evidenciam a divisão como: letrado/não-letrado.
Desse modo, para Street (Cf. Tfouni, 2002), nessa nova versão da grande divisão o
letramento refere-se exclusivamente à produção escrita, como a uma única direção para o
desenvolvimento. Assim, a alfabetização, para alguns defensores desse modelo, é sinônimo
de letramento, e portadora do progresso, civilização, mobilidade social, entre outros, para as
sociedades em que é introduzida.
Contrária a essa visão, Tfouni assegura que
[...] o letramento pode atuar indiretamente, e influenciar até mesmo culturas
e indivíduos que não dominam a escrita. Esse movimento mostra que o
letramento é um processo mais amplo do que a alfabetização, porém
intimamente relacionado com a existência e a influência de um código
escrito. Assim, culturas ou indivíduos, ágrafos ou iletrados, são somente os
pertencentes a uma sociedade que não possui, nem sofre a influência,
mesmo que indireta, de um sistema de escrita. (Tfouni, 2002, p. 38)
Enfim, o estudo do letramento ocupa-se somente da escrita? De acordo com
Kleiman (1995), a oralidade também é objeto de interesse nesses estudos. Exemplo desse
interesse são os estudos sobre as oralidades letradas, que se constituem a partir da
participação do indivíduo em eventos de letramento, e aqueles que apresentam a oralidade
como mediadora do aprendizado da escrita (Terzi, 1995)
2.3.1 – A oralidade em sociedades letradas
Numa sociedade letrada como a nossa, que tem grupos analfabetos, essas pessoas
não apresentam uma oralidade pura como numa sociedade ágrafa. Dessa forma, para
Tfouni (2002), o iletrado não pode ser o oposto do letrado nas sociedades modernas, pois
37
não há um grau zero de letramento nessas sociedades. “Do ponto de vista do processo
histórico, o que existe de fato nas sociedades industriais modernas são ‘graus de
letramento’, sem que com isso pressuponha sua inexistência” (Tfouni, 2002, p. 23). Ou seja,
se a pessoa participa de uma sociedade letrada, ela apreende informações sobre a escrita e
seus usos sociais, ela não possui um grau zero de letramento e por isso, não pode ser
equiparada a povos que desconhecem a escrita.
Essa discussão é pertinente, pois a confusão entre não-alfabetizado e iletrado
aparece em muitos estudos de cunho etnocêntrico, segundo Tfouni, que sugere uma revisão
urgente nessa conceituação, pois não é possível ser iletrado nas sociedades industriais
modernas, nem tampouco haver o iletramento nesse contexto. Distante de uma visão
tradicional, na qual o conhecimento da escrita possibilita desenvolver o raciocínio lógico-
dedutivo, por exemplo. Essa concepção pode considerar “[...] o pensamento dos
alfabetizados como ‘racional’, e por um deslizamento preconceituoso coloca também que os
indivíduos não-alfabetizados são incapazes de raciocinar logicamente, de fazer inferências
[...] bem como seu pensamento é ‘emocional’” (Ibidem, p. 24).
No entanto, segundo a autora, para se encerrar com essa visão etnocêntrica é
preciso pensar na relação entre alfabetização e letramento que deve acontecer de forma
interligada, respeitando a natureza e amplitude de cada instância. Outra possibilidade é
pensar num ‘continuum’ que evitaria as classificações do tipo letrado e iletrado, ou mesmo
entre alfabetizado e não-alfabetizado.
A partir dessa concepção de letramento pode-se afirmar que não há uma oralidade
pura, nem uma escrita pura, nas sociedades letradas. Mas uma constante inter-
constituição entre essas modalidades, em uma relação de influência mútua, independente
da alfabetização dos participantes Assim, como conceber a oralidade numa sociedade
letrada?
2.3.2 - Definições de oralidade: de que oralidade estamos falando?
Como definir a oralidade? A partir da inserção da escrita nas sociedades, uma
nova forma de se conceber a oralidade? Sobre isso, Havelock (1995) aponta que a cultura
escrita é responsável para a definição do que é oralidade. Assim, conforme
mencionamos, numa sociedade letrada, a oralidade possui características que não são
encontradas nas sociedades iletradas, pela interferência da escrita.
Sobre isso, Ong (1998) define dois tipos de oralidade: primária e secundária. A
“oralidade primária”, segundo ele, é
38
[...] a oralidade de uma cultura totalmente desprovida de qualquer
conhecimento da escrita ou da impressão. É ‘primária’ por oposição à
‘oralidade secundária’ da atual cultura de alta tecnologia, na qual uma nova
oralidade é alimentada pelo telefone, pelo rádio, pela televisão ou por outros
dispositivos eletrônicos, cuja existência e funcionamento dependem da
escrita e da impressão. (Ong, 1998, p. 19)
Assim, a “oralidade secundária” existe nas culturas perpassadas pela escrita. Para
esse autor, a escrita exerce uma intensa influência nas sociedades em que é introduzida.
Imaginar uma cultura tipicamente oral é uma atividade muito difícil para a cultura letrada,
pois temos contato com a palavra visual, os sinais de pontuação, entre outros aspectos que
não existem numa sociedade ágrafa.
Conforme Ong (1998), nos dias atuais, dificilmente existiriam comunidades
completamente orais, que não estabeleceram nenhum contato com a escrita. No entanto, as
sociedades estabelecem diferentes contatos com a escrita, podendo existir grupos que
preservam a estrutura mental da oralidade, em sociedades letradas. Assim, o contato com a
escrita não é uniforme.
Nesse sentido, a contribuição de Zumthor (1993) para a definição de oralidade
avança em relação à distinção feita por Ong (1998), ao estabelecer uma subdivisão para a
oralidade secundária. Para ele, três definições para a oralidade. A primeira delas é a
chamada “primária”, que segue a mesma definição de Ong: a ausência de contato com a
escrita. As outras duas situam-se numa sociedade permeada pela escrita. Zumthor (1993)
faz uma distinção nesse momento devido ao contato com a escrita. Dessa forma, propõe a
“oralidade mista” e a “secundária”. A primeira é influenciada pela escrita, externamente; já a
“secundária” é constituída a partir da escrita. Assim, a “oralidade mista” está presente numa
sociedade com escrita e a “secundária” numa cultura erudita. Isto é,
[i]nvertendo o ponto de vista, dir-se-ia que a oralidade mista procede da
existência de uma cultura ‘escrita’ (no sentido de ‘possuidora’); e a oralidade
segunda, de uma cultura ‘letrada’ (na qual toda expressão é marcada mais
ou menos pela presença da escrita). (Zumthor, 1993, p.18)
Tal distinção é interessante para esta investigação, pois numa sociedade letrada
nuances da oralidade. Nosso interesse de pesquisa foca a oralidade mista de Zumthor
(1993), pela maior precisão de descrição do fenômeno, ainda que a distinção de Ong seja
relevante. Ela abrange apenas a distinção entre duas sociedades - ágrafa e letrada -, pois
define uma oralidade nas sociedades letradas - a secundária.
O contexto do presente estudo é o processo de alfabetização de adultos, no qual os
alunos ainda não sabem ler e escrever, mas participam de uma sociedade perpassada pela
escrita. Os alunos interagem nos ambientes urbanos, impregnados pela escrita, estão em
contato com meios de comunicação como televisão e rádio, que veiculam pela oralidade,
39
mas têm como base um texto escrito entre outras inúmeras situações que entram em
contato com a escrita.
Enfim, nesse contexto, é evidente que não temos uma oralidade primária (Ong,
Zumthor), pois não se trata de membros de uma sociedade ágrafa, pelo contrário pertencem
a uma sociedade letrada. A presença da escrita descaracteriza sua oralidade como primária.
Como discutido acima, o fato de estar em uma sociedade que faz uso da escrita a
caracterizaria, segundo Ong (1999), como uma oralidade secundária. No entanto, Zumthor
(1993) define dois tipos de oralidade no contexto letrado, depende da intensidade em que se
relaciona com a escrita: mista e secundária. Dentre essas definições, a mista aproxima-se
mais da oralidade que investigamos nesse trabalho, devido à intensidade de contato com a
escrita que os alunos (sujeitos dessa investigação) possuem.
2.3.3 – Letramento e oralidade como práticas sociais
De acordo com as questões apontadas sobre oralidade e letramento, é possível
pensar que estes não podem ou não devem ser abordados independentemente das práticas
sociais que os produzem.
Assim, não é possível pesquisar oralidade e letramento sem considerar o que
representam nas sociedades atuais. Nem tampouco, olhar para a fala e a escrita, buscando
semelhanças e diferenças, sem levar em conta os usos que se fazem delas no dia-a-dia.
Partindo dessas considerações, não é possível centrar a análise das relações apenas no
código, ou seja, ater-se apenas aos diferentes registrossom e grafia. Dessa forma, não se
tem apenas uma mudança de prisma, mas “[...] a construção de um novo objeto de análise e
uma nova concepção de língua e de texto, agora vistos como um conjunto de práticas
sociais” (Marcuschi, 2005, p.15).
A tese das supremacias surge da análise centrada no digo, e não nas práticas em
que fala e escrita estão inseridas. Desse modo, para não cair nesse erro é preciso
[...] esclarecer a natureza das práticas sociais que envolvem o uso da língua
(escrita e falada) de um modo geral. Essas práticas determinam o lugar, o
papel, e o grau de relevância da oralidade e das práticas do letramento
numa sociedade e justificam que a questão da relação entre ambos seja
posta no eixo de um contínuo sócio histórico de práticas [...] Tudo
dependerá do ponto de vista observado e das realidades comparadas.
(Ibidem, p. 18)
A partir dessa perspectiva discutida por Marcuschi (2005), percebe-se que a análise
da fala e da escrita depende da abordagem que recebe. Dessa forma, é a abordagem que
40
definirá o tipo de relação que será estabelecida entre fala e escrita, se elas serão vistas num
contínuo ou polarizadas.
A escrita está presente em quase todas as práticas sociais nas sociedades em que
penetrou. Exemplo disso é que até os analfabetos são influenciados pelas práticas de
letramento (que é diferente de alfabetização), ou seja, sabem sobre o funcionamento da
escrita em determinadas situações. É preciso ter cuidado com uma tendência reducionista
do letramento que o como único: a escolarização do letramento. E, ainda, o letramento
não se refere à aquisição/aprendizado da escrita, pois “[e]xistem ‘letramentos sociais’ que
surgem e se desenvolvem à margem da escola, não precisando por isso serem
depreciados” (Ibidem, p. 19).
A respeito das práticas sociais que envolvem a escrita, Oliveira investiga a inserção
do analfabeto nas sociedades urbanas, altamente letradas. Nesse contexto a autora discute
que o analfabetismo não é “[...] um problema de alfabetização em si, mas [...] um problema
que diz respeito às relações entre cultura e modos de pensamento” (Oliveira, 1999, p. 24).
Com isso acrescenta um fator determinante para compreender esse processo: a relação
entre modos de pensamento e cultura.
Tal relação é possível ao considerarmos que o analfabeto vive em um mundo letrado
e não domina plenamente o modo de pensar desse mundo, que possui a sua própria
lógica relacionada a sua cultura. Para essa discussão, a autora assume os pressupostos da
teoria histórico-cultural, no qual a relação entre modos de pensamento e cultura
[...] se baseia na idéia de que grupos humanos funcionam psicologicamente
em resposta as demandas do contexto em que vivem. Isto é, não haveria
um percurso universal para o desenvolvimento humano, mas ao contrário,
os modos de pensamento e a atividade psicológica em geral seriam
definidos na relação do ser humano com as situações reais que enfrenta em
sua vida concreta. (Oliveira, 1999, p. 25)
Um dos precursores dos estudos sobre essa questão foi Luria, nos anos trinta,
segundo Oliveira (1996), que investigou os modos de pensamento de pessoas em contato
com a escrita, que foram à escola em algum momento, e outros que o tiveram esse
contato e viviam em uma comunidade ágrafa. O grupo que tinha esse pequeno
conhecimento da escrita resolvia os problemas utilizando categorias abstratas, num tipo de
pensamento “categorial”. o outro grupo, que não tinha contato com a escrita, resolvia as
situações baseando-se em situações concretas que foram classificadas como “gráfico
funcional”. Além do contato com a escrita, outro fator determinante era a participação
desses adultos em grupos sociais.
Ong (1998) problematiza as perguntas feitas por Luria aos camponeses nesta
pesquisa. Mesmo com toda preocupação em contextualizá-las, as questões faziam parte do
41
pensamento moldado pela cultura escrita, dentro de um raciocínio típico dessa cultura,
podendo interferir nos resultados, que os sujeitos da pesquisa viviam em sociedades
ágrafas.
A questão abordada por Oliveira (1999) difere da de Luria, por tratar de uma
sociedade letrada, na qual pessoas que o sabem ler e escrever presenciam, diariamente,
situações permeadas pela linguagem escrita. Essas pessoas, segundo a autora, não fazem
uso da escrita com eficiência; por isso são chamadas de analfabetas, mas isso não indica
um desconhecimento total da escrita. São analfabetas, mas não iletradas. Assim, a
participação em diferentes práticas de uso da escrita possibilita conhecimentos diferentes
que Oliveira (1999) denomina como graus de analfabetismo.
Isso desmonta a consideração de letrados e alfabetizados ao se referirem aos
analfabetos como “eles não sabem nada”. Não sabem nada sobre o quê? Sobre a escrita?
Podem não codificar e decodificar, mas podem saber como funciona um texto escrito, qual a
utilidade de uma placa, de um cartaz, de um jornal, etc. Enfim, essas experiências com a
escrita, nesses casos, são desconsideradas.
Essa problemática é vivida principalmente nas metrópoles, onde grupos de origens
sócio-cultural diferentes convivem: aqui, [...] a questão central parece ser o enfrentamento
de um grupo cultural de origem iletrada (e rural, tradicional, sem qualificação profissional)
como o modo de pensar dominante na sociedade letrada (e urbana, escolarizada,
industrializada, marcada pelo conhecimento científico e tecnológico)” (Ibidem, p. 25). Ou
seja, essa questão ultrapassa o conhecimento da escrita.
Ainda nessa discussão, Oliveira (1999) aponta a escola como um fator determinante
nessa diferença cultural, pois essa instituição toma o conhecimento como objeto de sua
ação. Assim, o diferencial não é saber a escrita, mas o modo de pensar que é aprendido na
escola. Desse modo, “[a] escola é o lugar onde trabalhamos com o conhecimento em si
mesmo, independente de suas ligações com a vida imediata, isto é, na escola o indivíduo
aprende a se relacionar com o conhecimento descontextualizado” (Oliveira, 1999, p 27).
Enfim, segundo Oliveira (1999), a diferenciação entre alfabetizados e não-
alfabetizados em nossa sociedade, não se apenas pelo saber ou não saber a escrita.
Essa distinção ocorre pelos modos de pensar que são típicos de cada cultura. Assim, o
modo de pensar predominante nas grandes cidades é organizado pela escrita. Essa forma
de pensar é ensinada pela escola que desconsidera outras formas além desta. Isso pode
constituir mais uma tensão dentro da escola: o pensamento pautado numa cultura,
predominantemente oral, de um lado, e em uma cultura escrita, de outro.
42
Capítulo 3
A oralidade e a escrita na escola
na minha sala fala quem sabe ler alguma coisa. Eu mesmo
fico calado o tempo todo, fazendo de conta que estou aprendendo
tudo. Mas, sabe, não tenho peito nem pra perguntar se o meu nome
está certo do jeito que faço. (Celso, 15 anos, trabalhador da
construção civil)
4
3.1- A fala e a escrita nos documentos oficiais, nos estudos lingüísticos e no
contexto escolar
A relação oral/escrito é bastante complexa, presente em inúmeros estudos
pertencentes a diferentes áreas, conforme foi apontado no capítulo anterior. Contudo,
focamos nossa preocupação no contexto escolar com a finalidade de observar como essa
relação é constituída no processo de alfabetização de adultos. Sabe-se que a escola surge
com a finalidade de ensinar a língua escrita, tomando para si essa função. E a fala, sempre
foi preocupação da escola? Como ela é considerada?
No âmbito educacional, segundo Belintane (2000), o trabalho com a linguagem oral
está presente em documentos oficiais que orientam o ensino muito tempo, porém, de
forma muito tímida. O autor ressalta a existência de um número razoável de estudos que
“[...] recomendam o ensino explícito e planejado da língua oral ou, no mínimo, que se tenha
o oral como referência e contraponto às/das divisões monolíticas da língua” (p. 55). Nota-se,
no entanto, uma resistência ao ensino dessa modalidade da língua devido à supremacia
atribuída ao ensino da escrita, bem como alguns equívocos referentes à concepção de
língua e fala que estão presentes nos currículos e materiais didáticos.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997) recomendam o ensino da
linguagem oral pautado na noção de gêneros do discurso de Bakhtin, considerando que
esse ensino vai além da fala cotidiana, alcançando as situações discursivas que os alunos
ainda não dominam no âmbito da fala pública, conforme Belintane.
Dessa forma, esse documento sugere e espera que o trabalho com o oral esteja “[...]
embasado na diversidade de gênero do oral e das situações de uso público da fala”
(Belintane, 2000, p. 56). Sobre essa noção de uso da fala, discutiremos adiante.
4
Melo, 1997.
43
O documento em questão apresenta um avanço na abordagem do oral, entretanto,
Belintane aponta uma fragilidade referente à relação entre a modalidade falada e escrita,
vistas de maneira estanque, ou seja, de um lado, o campo da escrita e, de outro, o do oral,
como se fossem processos distintos e sem possibilidades de conexão. Conforme o autor,
[é] preciso [...] articular esses dois campos de uma forma dinâmica tal que o
tratamento da linguagem oral e da escrita não fique tão distante da profunda
impregnação mútua que as práticas cotidianas de linguagem requerem de
qualquer cidadão falar, escutar, escrever, ler, nas práticas sociais
contemporâneas são atividades profundamente complementares e
imbricadas. (Ibidem, p. 56)
A Proposta Curricular para o segmento (Educação de Jovens e Adultos), assim
como os Parâmetros para a Educação Básica, propõe o trabalho com a linguagem oral, mas
privilegia outros pontos. Esse documento parte da discussão de que os alunos falam e
que o trabalho com a oralidade teria como finalidade mediar a aprendizagem da língua
escrita: “[...] a aprendizagem da leitura e escrita depende fundamentalmente do comentário
oral sobre o texto escrito” (1999, p. 52).
Sobre isso, Ribeiro, que coordenou a discussão e elaboração dessa proposta,
assegura que o trabalho com a linguagem oral precisa considerar, principalmente, as “[...]
interfaces com o desenvolvimento da escrita” (1996, p. 83) Outra questão apontada pela
autora reafirma o posicionamento do referido documento em relação à abordagem do oral
na Educação de Jovens e Adultos: “[c]om relação às interfaces entre oral e escrito,
destacamos o valor do comentário oral sobre o texto escrito e da leitura em voz alta
realizada por um leitor fluente e compartilhada por um grupo de ouvintes” (Ibidem, p. 83).
Nota-se, nessa afirmação, que o trabalho com a oralidade es pautado na escrita.
Entretanto, alguma sugestão de trabalho com a oralidade sem a finalidade direta de
desenvolvimento da escrita, especificamente com o gênero oral?
A proposta em questão o apresenta uma discussão sobre gêneros de discurso,
traz apenas, uma organização dos textos seguindo os pressupostos da tipologia textual que
não enfatiza as condições sócio-históricas de produção do discurso. Dessa forma, apresenta
os tipos textuais orais ou escritos que devem ser trabalhados. Entre eles, atividades que
enfocam especificamente o oral, como contar fatos do cotidiano, contar histórias, descrever
acontecimentos, debate, entre outros. No entanto, a ênfase é na leitura em voz alta tida
como o conectivo entre fala e escrita.
Outra questão trazida por esse documento reporta-se às discussões da
Sociolingüística, considerando que “[o]s modos de falar das pessoas analfabetas ou pouco
escolarizadas são a expressão forte de toda a bagagem cultural que possuem, de suas
experiências de vida” (Brasil, 1999, p. 52) e ressalta que muitos alunos têm “um domínio
excepcional da expressão oral”; é o caso dos repentistas, por exemplo. Quanto aos outros,
44
que têm o discurso marcado pelo silêncio, o documento alerta para a diversidade de relação
com a língua oral, tanto em questões regionais, com as diferentes variantes lingüísticas
como às diferentes exposições e usos da língua falada. Consideram-se as diferenças
dialetais e, nas orientações para o professor, indica que “[...] mais do que coibir essa
flexibilidade da linguagem oral o trabalho pedagógico na área de Língua Portuguesa deve
acolher a diversidade, propiciando aos educandos a ampliação de suas formas de
expressão, possibilitando-lhes o uso de modos de falar adequados a diferentes situações e
intenções comunicativas” (Ibidem, p. 53). A proposta orienta o professor a trabalhar com a
língua oral promovendo situação para desinibir seus alunos, encorajando-os e sem corrigir.
Nessa perspectiva de trabalho com a oralidade, são essenciais as discussões da
Sociolingüística. Bagno (2002) discute os mitos e preconceitos em relação à língua falada
no país. Entre as suas discussões, o autor alerta para a confusão entre língua e gramática
normativa, pois, para falar uma língua não é preciso saber a sua gramática; exemplo disso é
que as pessoas que não sabem ler e escrever e falam muito bem, usam a ngua. No
entanto, as regras da gramática normativa, os clássicos da literatura, entre outros, compõem
um padrão de fala e escrita que se sobrepõe a outras formas.
Entre os mitos discutidos, o mito de que as pessoas sem instrução falam tudo
errado”. A crença de uma língua única e correta que está nas escolas, gramáticas e
dicionários é responsável pela discriminação das variantes desprivilegiadas. A atribuição ao
modo de falar dessas variantes de adjetivos como “feio”, “errado” para eventos que também
ocorrem nas variedades de prestígio comprova que a questão não é o que se fala, mas
quem fala.
O argumento da gramática internalizada reforça a discussão com essas crenças,
pois acredita-se que todo falante domina regras que são “[...] conhecimentos que [o]
habilitam [...] a produzir frases ou seqüências de palavras de maneira tal que essas frases e
seqüências são compreensíveis e reconhecidas como pertencendo a uma língua” (Possenti,
2002, p. 69). Esse conhecimento pode ser de ordem lexical - saber utilizar as palavras ou
de ordem sintático-semântica - implica em relacionar a ordem das palavras na sentença com
o sentido. Assim, esse conhecimento permite que o falante utilize a língua sem fazer uso de
uma gramática normativa.
No entanto, Possenti (2002) alerta que a norma padrão deve ser ensinada na escola
ou que a escola deve possibilitar essa aprendizagem, pois é a sua função, ensiná-la não de
forma isolada, mas juntamente com a discussão sobre as variedades lingüísticas. Com isso
estaria colaborando na dissolução dos preconceitos lingüísticos.
Para Marcuschi (2005), a estigmatização do indivíduo ocorre muito mais na
modalidade falada da língua do que na escrita, pois esta é normatizada por um padrão. E
“[p]arece que a fala, por atestar a variação e em geral pautar-se por algum desvio da norma,
45
tem caráter identificador. É possível que identidade seja um tipo de desvio da norma padrão”
(Marcuschi, 2005, p. 36). Sobre esse desvio, o autor exemplifica com a seguinte situação: foi
pedido para pessoas pertencentes a um grupo letrado escreverem um texto sobre a inflação
na vida do brasileiro. Na análise dessa produção, atenta-se principalmente para os
argumentos utilizados e não para a forma - esta será observada se ocorrer uma
transgressão grave à norma. Diferente seria se as pessoas fossem convidadas a falar sobre
o tema; a atenção recairia sobre a “[...] particular forma de ‘falar’ o conteúdo” (Ibidem, p. 36)
e não sobre ele próprio.
3.1.1- A abordagem do oral na escola
Como considerar a fala na escola? Aqui foi assumido o termo “abordagem do oral”,
mas, na discussão dos documentos acima, nota-se que vários termos para designar o
que é feito com a fala na escola. Alguns documentos e estudiosos do assunto defendem
os termos “ensino da língua oral”, “trabalho com a língua oral”, ou “análise da língua”.
Marcuschi (1997) assegura que o oral não é ensinado na escola, pois, quando o aluno vai
para a escola, ele aprendeu a falar. Assim, o trato da oralidade ou o trabalho com a
oralidade são expressões mais indicadas para a abordagem da oralidade pela escola.
Para Marcuschi (1997, 2003), a análise do oral permite discutir a variação e a
mudança lingüística, e, com isso, desmistificar a homogeneidade da língua a partir da noção
de conceitos como dialeto, norma padrão, entre outros. Outra possibilidade de análise
centra-se nos níveis de uso da língua, do coloquial para o mais formal, problematizando as
características do interlocutor (posição social, idade, sexo), entre outros aspectos. O autor
ressalta que o trabalho com a fala não deve ser visto como um conteúdo autônomo, mas
esta deve ser tratada “[...] integradamente, e na relação com a escrita” (Marcuschi, 1997,
p.42).
Discutir sobre oralidade e letramento implica considerar que “[...] as línguas se
fundam em usos e não o contrário“ (Marcuschi, 2005, p.16). Com isso, o autor não se atenta
para questões formais da língua como a morfologia, por exemplo, mas ao uso que se faz
dela. Assim, as regras da língua se adequam aos usos. E não como se pensa, em uma
perspectiva contrária que elas fundam os usos. Exemplo disso é o discurso bastante
difundido de que para falar e escrever bem é preciso conhecer bem todas as normas
gramaticais.
Na direção de Marcuschi (2005), podemos acrescentar a contribuição de Schneuwly
(2004) e seu grupo que propõem uma abordagem do oral fundada nos usos. Para isso,
partem do conceito bakhtiniano de gêneros do discurso. De acordo com esse autor, a escola
46
deve trabalhar com os gêneros secundários que são gêneros mais complexos ainda
não dominados pelos alunos, e esses são importantes para uma comunicação efetiva.
Desse modo, os gêneros considerados primários são aprendidos durante a conversação
cotidiana, por isso não necessitam de intervenção. Isso é a base para compreender o que
esses autores chamam de “gênero oral formal público”, ou seja, os gêneros orais que
necessitam de um aprendizado. Entre eles estão a entrevista, o seminário e o debate.
Toda essa reflexão é uma importante discussão para o trabalho de língua materna
que tem perpetuado equívocos.
A questão que preocupa este estudo é
[...] em que contextos e condições são usadas a oralidade e a escrita, isto é,
quais são os usos da oralidade e da escrita em nossa sociedade? Por
exemplo, quais são as demandas básicas da escrita em nossa sociedade,
relativamente ao trabalho? Em que condições e para que fins a escrita é
usada? Em que condições e para que fins a oralidade é usada? Qual a
interface entre a escola e a vida diária no que respeita à alfabetização?
Como se comportam os nossos manuais escolares neste particular? Que
habilidades são ensinadas na escola e com que tipo de visão se passa a
escrita? O que é que o indivíduo aprende quando aprende a ler e a
escrever? Que tipo de conhecimento é o conhecimento da escrita?
(Marcuschi, 2005, p. 22)
A partir desses estudos e discussões pode-se problematizar: Que trabalho é
realizado com a oralidade, especificamente na EJA? Qual a importância dela para a
alfabetização? Qual a concepção de língua dos profissionais que atuam nessa modalidade?
3.2 - A oralidade e a alfabetização de adultos
A sala de alfabetização de jovens e adultos é composta por pessoas que estão na
escola pela primeira vez, ou que nela estiveram, mas não permaneceram por inúmeros
motivos. Um desses motivos é a dificuldade de acesso à escola, conforme assegura o
seguinte relato:
A minha juventude não foi muito boa não. Não tinha jeito, devia dar a média
de 8 léguas só pra andar, pra poder estudar. a gente não teve
oportunidade nenhuma. Então, o negócio era na roça mesmo. (Homem, de
30 a 40 anos, Teófilo Otôni – MG)
Esse depoimento integra a pesquisa qualitativa requisitada pela extinta Secretaria
Especial de Erradicação do Analfabetismo, em 2003, mencionada no capítulo 1, que ouviu
210 pessoas analfabetas seguindo os critérios etário, de gênero e de localidade.
47
Outro dado é fornecido pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que
aponta a extensão do analfabetismo no Brasil. Em 2003, foi realizada uma pesquisa que
constatou: 14,6 milhões de brasileiros com mais de quinze anos não lêem nem escrevem.
A motivação para o retorno à escola é a alfabetização: aprender a ler e escrever.
Essa motivação decorre de uma série de fatores: pessoal, econômico, entre outros. Esse
último, por exemplo, reflete a busca de uma melhor qualificação para pleitear outro emprego
mais rentável e qualificado.
Nesse contexto, qual é a importância do trabalho com a oralidade?
É comum nessas salas que os alunos falem pouco e, ao serem questionados pelo
professor, geralmente respondem: “Não sei, não tenho estudo”, “Estou na escola pra
aprender, isso pra mim é muito difícil, não é para mim, só quero aprender a ler e a escrever”.
A partir dessas respostas, em uma análise superficial, pode-se dizer que o “saber” para eles
só é possível através da escolarização formal e que eles se negam a dar a sua opinião, todo
o seu histórico de vida, por não terem esse conhecimento e, ainda supõem que a sua
opinião não terá valor para a escola. Esses alunos acreditam que o professor não está
executando o seu trabalho quando propõe uma situação dialógica. Querem aula, matéria,
pois é esta escola que esperam, uma escola do passado, da qual foram excluídos, aquela
que garantia ascensão social aos grupos minoritários que a freqüentavam. E é essa
concepção de escola que os acompanha em um ritual mítico que distancia muito a escola
real da imaginária. Na pesquisa realizada pela extinta Secretaria Especial de Erradicação do
Analfabetismo, citada anteriormente, encontram-se relatos sobre a problemática discutida
que caminham no mesmo sentido, tais como:
que a gente não tem muito diálogo, a gente não tem muita cabeça para
falar muitas coisas. A gente fica mais parado do que conversa, mas não é
igual às outras pessoas. (Homem, de 18 a 25 anos, Foz do Iguaçu – PR)
e
Porque a pessoa que não sabe ler parece que tem a língua ruim no modo
de falar. A língua da gente puxa muito, para quem não sabe ler, vai dizer
uma palavra, ele diz pela metade. (Homem, de 50 anos ou mais, Caxias -
MA)
Depoimentos como estes ajudam-nos a pensar como essas pessoas consideram sua
forma de falar. Quando vão para a escola, podem carregar esses preconceitos. No segundo
relato, a escrita parece produzir a fala. Em uma a sociedade letrada as regras são impostas
pela escrita.
A respeito da discussão central dessa pesquisa, encontramos duas discussões que
abordam a fala e a escrita na educação de adultos. A primeira é de Faundez (1989), filósofo
48
chileno que se dedica a examinar os programas de educação popular ancorados na
proposta freiriana. Situa a questão oral e escrita principalmente no âmbito cultural. A
contradição existente entre a cultura oral e a escrita, segundo ele, é um dos fatores
responsáveis pelo fracasso dos programas de educação de adultos. Essas questões são
extremamente acentuadas, pois o autor refere-se a alguns programas de educação
desenvolvidos na África e América Latina com comunidades estritamente orais. Mesmo
assim, os pontos que levanta podem nos ajudar a ver o movimento dessa contradição em
sociedades letradas, como a nossa.
Os programas de alfabetização apresentam a escrita como uma forma de
transmissão de conhecimento em contraposição ao oral. Isso gera dois problemas, na ótica
de Faundez (1989) por um lado, a oralidade não é reconhecida como veículo do saber, do
conhecimento e, por outro, desconsidera-se todo o conhecimento produzido e veiculado por
ela. A superação dessa contradição se pelo reconhecimento da cultura popular que
acontece no diálogo com a cultura escrita. Assim, “[...] alguns cadernos de cultura popular
são inteiramente confeccionados com base na cultura oral, sendo imaginados pelo povo,
escritos por ele e para ele” (Faundez, 1989, p. 95).
A contradição acima apontada é um dos pontos discutidos por Kleiman (1995), na
análise de um episódio em uma sala de EJA. A professora dessa sala de aula,
representante da cultura letrada, não legitima o saber de seus alunos sobre ervas
medicinais. Na sua fala, ela vai desconstruindo a validade desse recurso medicinal para
introduzir os valores da medicina tradicional.
Melo (1997) analisa os depoimentos de jovens e adultos que estão se alfabetizando
e os organiza em categorias; entre elas aparece a negação da própria fala, por parte de
alguns. Na discussão desses relatos, a autora aponta a existência de mecanismos
ideológicos na sociedade capitalista que validam uma supremacia da escrita. Questiona-se:
por que os alunos rejeitam suas falas? De onde vem essa rejeição? Não saem ilesos ao
discurso oficial que propaga a supremacia da escrita.
Para Moysés, a escrita escolarizada
[...] submete e mata o falante que tem a sua oralidade desqualificada pela
normatividade. Em alfabetização, se tem discutido bastante que a escrita
não é transcrição da fala. No entanto, não chegamos a propor o que fazer
com a oralidade em sala de aula, porque o que temos ouvido é uma escrita
oralizada. O oral não é o escrito; o que é oral? Como seria a oralidade na
escola, de acordo com a perspectiva de construção de língua? Se não é
mais o falar bem para ouvir bem para escrever bem, o que é ser esse falar,
constituído no confronto de tantos falares, nas características da
expressividade, do timbre, do ritmo, da entoação? Não se trataria de outra
gramaticalidade e até de outro (não no sentido de oposição, de contrário)
sujeito lingüístico? (Moysés apud Melo, 1997, p. 66).
49
Uma professora da EJA, durante um curso de formação continuada de professores,
afirmou que “Para os alunos aprenderem a escrever, primeiro precisamos ensiná-los a
falar”. Essa colocação nos suscitou indagações quanto ao trabalho com a oralidade nas
salas de alfabetização de jovens e adultos. A Proposta Curricular para o segundo segmento
do Ensino Fundamental (2002) apresenta uma pesquisa realizada com professores e revela
que 86,3% afirmam que corrigem a fala de seus alunos.
Nos depoimentos de alunos analfabetos, citados anteriormente, existem evidências
do estigma da sua condição. Essas pessoas que “[...] procuram a escola, o fazem após uma
decisão difícil, pois, para isso, têm que assumir publicamente sua condição de analfabetos.
É essa decisão difícil que impede muitos de voltar a estudar” (Terzi, mimeo). No entanto,
precisam vencer outros obstáculos para garantir a permanência na instituição. Segundo
Oliveira, “[...] a escola funciona com base em regras específicas e com uma linguagem
particular que deve ser conhecida por aqueles que nela estão envolvidos” (1999a, p. 62).
Esse posicionamento da escola e dos professores, mencionado acima, não estaria
colaborando para uma nova exclusão desses alunos?
De acordo com Marcuschi (2005), a fala é aprendida em situações cotidianas pelas
relações sociais e dialógicas, desde o nascimento do bebê. o aprendizado da escrita
acontece em um contexto formal a escola sendo um fator que traz prestígio à escrita e a
torna um bem desejável. No entanto, estudos, como o de Graff (Cf. Marcuschi, 2005),
que desvinculam a alfabetização da escolarização em países como a Suécia, no qual a
alfabetização não é uma exclusividade da escolarização, o que indica que ela também pode
ocorrer em espaços informais. No entanto, o aprendizado da escrita estará sempre
condicionado a um ensino sistemático diferente da fala, que é apropriada nas interações.
Por que, então, trabalhar com a oralidade na escola?
Na ótica de Marcuschi (2003), quando é proposto um trabalho com a oralidade na
escola, não é esperado que o professor ensine os alunos a falar, pois isso eles fazem e
aprendem a fazer fora da escola. Mas “[t]rata-se de identificar a imensa riqueza e
variedades de usos da ngua” (Marcuschi, 2003, p. 24). Tais usos tanto podem ser por
meio do escrito como do falado. No entanto, o que se tem visto na escola é o cumprimento
da sua primeira finalidade (quando consegue) ensinar a escrita -, desconsiderando-se o
trabalho com a fala. É preciso considerar, no entanto, o movimento dos estudos da
linguagem que colocou em pauta os estudos sobre a fala e a oralidade.
A fala despertou interesse nos estudos lingüísticos há poucas décadas. Saussure, o
pioneiro nos estudos sistemáticos sobre a língua, defende que “[...] a língua é um sistema
abstrato, um fato social, geral, virtual; a fala, ao contrário, é a realização concreta da língua
pelo sujeito falante, sendo circunstancial e variável” (Orlandi, 1987, p. 24). Os estudos da
50
fala são desconsiderados, por essa perspectiva, que ela é circunstancial e variável, uma
realização do falante, o que impossibilita uma sistematização. Tal discussão é
redimensionada pelos estudos de Bakhtin que critica a concepção de língua de Saussure.
A língua não se transmite; ela dura e perdura sob a nova forma de um
processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta pa
ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor,
somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta
e começa a operar. (Bakhtin, 1999, p. 82-83)
Nesse sentido, a língua não é um sistema pronto que recebemos para apenas usar.
De acordo com Bakhtin, ela é apropriada à medida que fazemos parte dela, ou seja, ao
estarmos inseridos em sua dinâmica, em sua evolução. O mergulho na língua, defendido por
Bakhtin, é responsável pela formação da mente humana. Desse modo, mergulha-se na
língua no/pelo diálogo com o outro, na produção de enunciados.
A produção de enunciados é um outro ponto distintivo na obra de Saussure e
Bakhtin, já que, para o primeiro “[o]s atos individuais de fala constituem, do ponto de vista da
língua, simples refrações ou variações fortuitas ou mesmo deformações das formas
normativas” (Bakhtin, 1999, p. 82-83). Para Bakhtin, no entanto, a língua é constituída nas
interações sociais, em um processo dialético: ao mesmo tempo em que ela constitui o
falante, este a constitui; também, e por isso, trata-se de uma evolução histórica e não de um
sistema regular apenas.
A partir dessas considerações, surgem disciplinas da Lingüística como a
Sociolingüística, a Análise do Discurso, a Pragmática, entre outras, que se preocupam com
os usos que o falante faz da língua. Com isso, cresce o interesse pela oralidade e, também,
disseminam-se tais estudos para outras áreas, como a Educação, por exemplo.
3.2.1- A palavra falada e a alfabetização de adultos
Ao abordar o tema Alfabetização de jovens e adultos é preciso considerar a importante
contribuição de Paulo Freire. O educador ficou conhecido por uma iniciativa na alfabetização
de adultos nos meados da cada de 50. Essa experiência ficou conhecida como Método
Paulo Freire.
Brandão (1988) comenta sobre o “método Paulo Freire” de alfabetização de adultos,
devido ao qual ele foi considerado subversivo durante o Período Militar e foi exilado. O autor
ressalta que o método e a atuação nos Círculos de Cultura contribuíram sobremaneira para
o desenvolvimento da obra de Freire, posteriormente. :
51
Paulo Freire pensou que um método de educação construído em
cima da idéia de um diálogo entre educador e educando, onde
sempre partes de cada um no outro, não poderia começar com o
educador trazendo pronto, de seu mundo, do seu saber, o seu
método e o material da fala dele [...] este é um método que se
constrói a cada vez que é coletivamente usado nos círculos de cultura
de educadores - e - educandos. E o trabalho de construir o repertório
já é o começo do trabalho de aprender. (Brandão, 1988, p. 21, 24)
Para Gadotti, “[...] não se poderia falar em ‘Método Paulo Freire’, pois se trata muito
mais de uma teoria de conhecimento e de uma filosofia da educação do que de um método
de ensino” (1996 p. 82). Dessa forma, alerta para o risco de reduzir a obra de Freire ao
método apenas.
A necessidade de ter cautela para não reduzir a obra desse pensador, também, é
apontada por Scocuglia (1999), que enumera os “váriosFreires que vão se constituindo no
seu percurso teórico. Para isso, Scocuglia analisa o pensamento político pedagógico
freiriano a partir de uma divisão da obra em três momentos históricos: ”[...] o primeiro
correspondente aos escritos realizados entre 1959 e 1970; o segundo, correspondente à
década de 70; e o terceiro com seus escritos mais recentes nos anos oitenta e noventa”
(1999, p. 28).
Muitos autores, conforme Scocuglia (1999), discutem apenas as produções
correspondentes ao primeiro momento, o que é um engano, pois, na trajetória toda, Freire
repensou, reformulou e ampliou seus conceitos. Tal leitura, ainda, impede uma visão global
dessa obra. Esse fato pode estar relacionado ao livro Pedagogia do oprimido que, segundo
o autor, é responsável pela difusão do pensamento freiriano em vários países. Nessa obra,
a concepção de educação é expressa na crítica à “educação bancária” e na proposição da
“educação problematizadora”.
A primeira refere-se ao ensino tido como um “depósito”: os professores despejam o
saber e os alunos o recebem passivamente, pois são tidos como seres vazios que precisam
ser enchidos”: ”[...] o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real
sujeito, cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração”. E
ainda critica os conteúdos “[...] que são retalhados da realidade, desconcertados da
totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação” (Freire, 1984, p.
65).
A outra concepção de educação, que constitui a proposta de Freire, refuta “as armas
de dominação” utilizada pela primeira conhecida como “educação problematizadora”. Ela
difere da concepção anterior ao defender que “[...] o educador já não é o que apenas educa,
mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado,
também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em
52
que os ‘argumentos de autoridade’ já não valem” (Ibidem, p. 78-79). Assim, a relação
educador/educando não é polarizada, mas ambos fazem parte do processo, como “sujeitos”.
E os conteúdos são extraídos do contexto e elaborados e preparados pelo educador.
Ao discutir sobre alfabetização, parece-nos natural abordar questões sobre a escrita.
Porém Freire (1984, 2002) ressalta que antes de escrever/ler é preciso falar sobre os
assuntos cotidianos – fazer a leitura de mundo. Nessa perspectiva, a fala tem grande
importância, como responsável para o posicionamento do homem no mundo, bem como do
seu reconhecimento enquanto sujeito histórico e para a conscientização política. Assim, a
dimensão da palavra, nesse aporte teórico é assim considerada: “[s]e é dizendo a palavra
com que pronunciando o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como
caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens” (Freire, 1984, p. 93).
E complementa: “[...] o diálogo é uma exigência existencial” (Ibidem, p. 93).
O diálogo aparece como condição para um novo modelo educacional que se
contrapõe às práticas tradicionais. Ele traz a fala, a discussão para ocupar o lugar do
silêncio esperado na sala de aula, na qual era permitido soar uma voz apenas: a do
professor. Dessa forma, o primeiro momento da aula, nos moldes freirianos, é o debate de
idéias que deve contar com a participação de todos os alunos. Assim, a alfabetização não
acontece se a “leitura do mundo” estiver separada da leitura da palavra”. “A leitura do
mundo precede mesmo a leitura da palavra. Os alfabetizandos precisam compreender o
mundo, o que implica falar a respeito do mundo” (Freire, 1994, p. 32).
Ao falar, o aluno estará se reportando à sua realidade, fornecendo ao professor
indícios para elaborar as aulas que venham ao encontro do anseio daquele grupo. Com
isso, o professor planeja suas aulas a partir do que os alunos sabem e do que querem
saber, tornando, assim, a atividade em sala significativa para eles.
Essa concepção freiriana de “diálogo” abre espaço para que o aluno fale e, mais do
que isso, o que ele diz é considerado e valorizado pela escola. O professor posiciona-se
como um ouvinte atento e conversa com os alunos. Dessa forma, redimensiona a
participação do aluno em sala; ele não é mais um ser que ouve e escreve, ele também
participa, dá sua opinião, discute. A fala do aluno não é um comentário sobre o texto escrito,
ou um mero pretexto para escrever.
Enfim, esse posicionamento insere o aluno como participante ativo no contexto
escolar, fazendo emergir a vontade para aprender. O aprendizado da escrita é portador de
sentidos, pois a significação das palavras é algo importante e fruto da discussão e escolha
dos alunos. O conteúdo não é um assunto lançado ao acaso para ser meramente treinado.
3.2.2- Sobre o conceito de “diálogo”
53
Assim como faz Paulo Freire, Bakhtin discute o conceito de diálogo. Embora situado
em uma perspectiva diferente da de Freire, nos perguntamos em que medida as duas
concepções se aproximam e se distanciam.
Conforme foi discutido no capítulo 1, o diálogo bakhtiniano não se preocupa com a
forma, mas com o que acontece nele (processos de significação), pois “[as] relações
dialógicas, [...] não coincidem de modo algum [...] com relações entre réplicas do diálogo
concreto elas são muito mais amplas, mais variadas, e mais complexas” (Bakhtin apud
Faraco, 2003, p. 59). Enfim, a amplitude do diálogo para Bakhtin alcança toda a vida
humana, é condição de humanização.
Para Freire, o diálogo, enquanto proposta de ensino, não ultrapassa a situação face-
a-face, pois o autor o coloca na situação de comunicação oral. Este autor aponta que o
diálogo não pode ser uma mera transposição de idéias, tampouco, discussões polêmicas no
intuito de impor idéias. Freire e Shor (1996), ao comentarem por que seus últimos livros têm
a forma de diálogos, afirmam que optam por um “livro falado“, que fique mais próximo do
leitor, dando mais abertura a ele. Avançam ao considerar o leitor ausente um interlocutor, no
entanto, a situação face-a-face é mais ‘ampla:
[...] no diálogo você está se recriando de forma mais ampla do que quando
você escreve, solitário, em seu escritório [...]. E do ponto de vista humano a
necessidade de dialogar é tão grande que, quando o escritor está sozinho
na biblioteca, olhando as folhas em branco à sua frente, precisa, pelo
menos mentalmente, chegar até os possíveis leitores do livro, [...] (1996,
p.13)
Vale ressaltar, na fala de Freire , a necessidade humana do diálogo, que mesmo
sozinhos buscamos o outro ‘mentalmente, o que se aproxima muito do diálogo com o outro
bakhtiniano, a palavra sempre dirigida para os outros.
A palavra, para Freire (1984), é composta pela reflexão e ão que geram a práxis
que possibilita a transformação do mundo. Como também a pode impedir. Perceber a
profunda significação das palavras é possível quando os alunos refletem sobre palavras
pertinentes ao meio social e essa é uma das finalidades da educação crítica. O autor alerta
que a palavra sem a reflexão torna-se palavra oca, apenas som, e insiste na importância da
significação das palavras na crítica às palavras “vazias” das cartilhas, cuja finalidade é
escandir em sílabas para melhor assimilá-las.
em Bakhtin (1999), a palavra não existe sem sua significação. Para o autor, é
apenas um som ou um desenho. É pelo significado que homem e mundo se relacionam.
Essa atividade humana semiótica é também ideológica, ou seja, faz parte da produção
54
imaterial humana. O autor critica o livro didático de língua pelo tratamento dado à linguagem
como algo estático, morto (Bakhtin, 1992).
A concepção de educação de Freire (1984, 2002) se constrói na crítica à “educação
bancária”, cujo ensino é tido como um “depósito”: os professores despejam o saber nos
alunos vistos como seres vazios que precisam ser “enchidos”. Essa narrativa do professor
acontece em um monólogo descontextualizado para os alunos tidos como passivos
receptores nesse processo comunicativo. No entanto, Bakhtin defende a constância do
diálogo; para ele, mesmo um monólogo é dialógico, pois o locutor dialoga com outras vozes
que compõem sua consciência. Na situação apontada acima por Freire, a narração feita
pelo professor pode ser vista como um discurso monologizante que espera ser uma única
voz, para Bakhtin.
Na utopia freiriana, o diálogo é o instrumento para alcançar a conscientização, e com
ela, o pensamento crítico responsável pela libertação da dominação. A concepção crítica de
educação é a via de realização dessa proposta. Já a utopia bakhtiniana está no diálogo,
metáfora para todo o seu pensamento, na polifonia, o “[...] universo em que todas as vozes
são eqüipolentes” (Faraco, 2003, p.75), no diálogo inconcluso dessas vozes e no
inacabamento do ser humano.
Geraldi procura aproximar os pensadores aqui discutidos. Em sua análise, o autor
evidencia que o diálogo é “a estratégia de construção social”, para ambos, e a linguagem
“[...] o lugar do encontro e desencontro dos homens. Significar o mundo pode ser o ponto
nevrálgico de aproximação dos dois autores” (Geraldi, 2003, p. 65).
3.3- A alfabetização como um processo discursivo
Apesar da discussão, já de tantas décadas, iniciada por Freire, na escola, o processo
de alfabetização muitas vezes ainda é resumido ao codificar e decodificar. Então, qual
escrita é ensinada? A escrita, na escola, torna-se apenas um objeto de ensino e
aprendizagem?
Em seu livro, A formação social da mente, Vigotski discute sobre o aprendizado da
escrita, que, a princípio, está relacionada com a fala, mas assim que é apropriada, “[...]
converte-se em um sistema de signos que simboliza diretamente as entidades reais e as
relações entre elas” (Vigotski, 1994, p. 120). Assim sendo, deixa de “depender” da fala.
Na trilha do desenvolvimento da pré-história do aprendizado da escrita, Vigotski
(1984) levanta três aspectos que devem ser observados em termos práticos, de acordo com
uma visão histórica. Primeiramente, a escrita e a leitura precisam ser necessárias a quem
aprende, e a escrita, considerada como uma atividade cultural complexa e o um ato
55
mecânico de transcrição do som apenas. Outra questão apontada é que se deve considerar
o que a escrita significa para o aprendiz, tornando-a necessária e relevante para a vida e
não como um mero hábito. E por fim, a necessidade de a escrita ser ensinada naturalmente,
no sentido de torná-la própria do indivíduo, como a fala, e não um exercício mecânico.
Desse modo, “[...] o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita, e não
apenas a escrita das letras” (Vigotski, 1984, p. 134). Essa colocação evidencia a escrita
como uma produção cultural.
Smolka (2003) partilha dos pressupostos vigotskianos para problematizar as práticas
de alfabetização no Brasil. Seu estudo A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização
como processo discursivoaborda a década de oitenta, que presenciava os altos índices de
repetência na série, o que chamava a atenção dos pesquisadores, os quais buscavam
compreender essa situação. Pairava no ar a questão: Qual a dificuldade das crianças
brasileiras em aprender a ler e a escrever?
Nesse estudo, surgem questões importantes: Como o professor interage com os
alunos e com a escrita? Como as crianças interagem com a escrita? Com qual escrita?
Na observação das práticas de alfabetização, constata-se que, na escola, uma
espécie de silenciamento da voz e da letra, pois as atividades com a linguagem acabam
nelas mesmas, o comunicam nada a ninguém e resumem-se ao exercício de copiar.
Assim “[...] a alfabetização, na escola, reduz-se a um processo, individualista, solitário [...]”
(Smolka, 2003, p. 50) e silencioso.
A perspectiva construtivista faz críticas a esse modelo de alfabetização, afirmando
que a escola não considera a criança como sujeito da sua aprendizagem e, ainda,
desconsidera o aprendizado da escrita como um processo de elaboração.
Ferreiro e Teberosky (apud Smolka, 2003) pesquisam a aquisição da escrita dentro
dessa linha teórica. Sua investigação organiza as hipóteses infantis sobre a escrita, a partir
das respostas dadas nas entrevistas e propõe um paralelo entre essas idéias sobre a
psicogênese da língua escrita – com a história natural.
As autoras assumem a concepção piagetiana, na qual o sujeito constrói o
conhecimento interagindo com o objeto. Nesse caso, o aluno aprende a linguagem escrita
interagindo com ela, independente das relações sociais e da participação em situações de
ensino. Tanto que, para Piaget, ensinar algo a uma criança é desperdiçar uma oportunidade
de ela descobrir sozinha, desconsiderando a interação com o outro, pois o aprendizado é
visto como um acontecimento individual.
Nessa perspectiva, a linguagem ocupa um papel marginal, segundo Smolka. Ferreiro
e Teberosky compartilham, conforme a autora, as idéias dos estruturalistas sobre a língua -
tida como um sistema ideal e imutável que desconsidera a produção do falante a fala.
56
Assim, elas propõem a escrita de palavras que apenas enfatizam a relação entre som e
grafia, desconsiderando outras dimensões da linguagem, como o sentido, por exemplo.
Smolka problematiza tal perspectiva, pois se trata de uma pesquisa cognitiva, mas
no âmbito pedagógico sua contribuição precisa ser discutida, mesmo porque influencia
fortemente o trabalho pedagógico de alfabetização no Brasil.
5
Essa autora destaca fatores
importantes a partir da leitura de Vigotski, como a importância da interação na
aprendizagem da língua escrita, pois esta ocorre primeiramente no social para depois
acontecer internamente no indivíduo.
Sobre essa questão, Smolka propõe o conceito de relações de ensino que
desmistifica o processo de ensino e aprendizagem no qual o professor ensina e o aluno,
obviamente, aprende. Enfatiza as relações interpessoais na aprendizagem e alerta que
esses papéis não são tão definidos assim, na dinâmica da sala de aula.
A autora aponta que as relações de ensino, muitas vezes, se confundem com a
tarefa de ensinar que são as “obrigaçõesque o professor toma para si ou são dadas a ele
pela escola. Desse modo, o professor tem a ilusão de que possui o conhecimento e cabe
somente a ele ensinar, desconsiderando as interações de outros que estão envolvidos no
processo.
Nesse sentido, a autora aponta que as relações humanas são mediadas e
constituídas pela linguagem. O homem produz linguagem ao mesmo tempo em que é
produzido por ela, como vimos em Bakhtin, no capítulo 1. Para Vigotski, a linguagem e o
pensamento estão relacionados. “[O]s signos gestos, desenho, linguagem falada, escrita,
matemática, etc. constituem um instrumental cultural, através do qual novas formas de
comportamento, relacionamento e pensamento humanos vão sendo elaborados” (Smolka,
2003, 56-57). Dessa forma, o biológico torna-se sócio-histórico no desenvolvimento humano.
Desse modo, a escrita a ser ensinada precisa ser considerada como um produto do
processo histórico-cultural e uma forma de linguagem, conforme Smolka, pois “[n]ão se trata
[...] apenas de ‘ensinar’ a escrita no sentido de transmitir, mas de usar, fazer funcionar a
escrita como interação e interlocução na sala de aula, experienciando a linguagem nas suas
várias possibilidades ” (Ibidem, p.45).
Assim, a escrita, desde o inicio da alfabetização, é vista como forma de dizer, o que,
segundo a autora, implica considerar: De quem? Para quem? Como? Onde? Nesse
processo, a criança ocupa o lugar de escritora (e leitora) que só seria ocupado na escola
tradicional depois de vencer a codificação e decodificação.
5
O PROFA Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - pode ser um exemplo da influência atual
dos estudos de Ferreiro e Teberosky, no Brasil. O programa é destinado à formação de professores
alfabetizadores, em todo o país; e tem como sustentação teórica esses estudos, principalmente.
57
Nessa dimensão, aprende-se a linguagem escrita, fazendo-se uso dela e percebendo
seu funcionamento, apropriando-se desse bem cultural, ao mesmo tempo em que pode
transformá-la e usá-la como ação no mundo.
58
Capítulo 4
Pesquisando na sala de aula de Educação para Jovens e Adultos
4.1- A escola e a sala de aula pesquisada
A pesquisa de campo foi realizada em uma sala de alfabetização (primeira etapa) da
EJA (Educação de Jovens e Adultos) de uma Rede Municipal de Ensino, no interior do
Estado de São Paulo, durante o segundo semestre de 2005. As salas de EJA são
implantadas nas escolas municipais que apresentam um número mínimo de pessoas
interessadas, suficientes para se instalar uma sala. Com isso, as salas podem começar a
funcionar a qualquer momento do ano, como também, na ausência de alunos, podem ser
encerradas. No início do ano de 2005, neste município, havia 29 salas em funcionamento
em 19 escolas, atendendo a cerca de 563 alunos.
O ensino é organizado em etapas (1ª, e 3ª), com duração de um ano letivo cada,
totalizando três anos para a conclusão do que equivale ao primeiro segmento do Ensino
Fundamental. Ao final de cada período, os alunos podem ser promovidos para a etapa
seguinte, ou retidos na mesma.
O setor administrativo conta com uma diretora para todas as salas, que permanece
em uma sede central, e uma supervisora. As salas funcionam nas escolas municipais que
atendem ao Ensino Fundamental e à Educação Infantil. Dessa forma, a EJA é a única
modalidade a ter uma direção única que não está presente na escola e, diferente da direção
da unidade escolar.
Essa questão estrutural gera uma série de tensões, apontadas pelos professores da
escola pesquisada. Uma delas é a “impressão” de que a escola não lhes pertence, pois nem
sempre podem utilizar todos os recursos materiais disponíveis como a TV, por exemplo, ou
para qualquer problema que surge os culpados são os alunos da EJA. Nesse modelo a EJA
paira sobre as escolas, mas não faz parte delas, não as integra.
A direção é feita da seguinte forma: o diretor comunica-se com seus professores
durante uma reunião semanal e principalmente pelo telefone. Isso se durante a aula. O
professor sai para atender a diretora e resolver questões burocráticas. Mostra-se, dessa
forma, um sistema estruturalmente muito complicado com diversas deficiências.
59
o setor pedagógico é responsabilidade da coordenadora, que realiza reuniões
semanais com os professores e acompanha o andamento das salas de aula, através de
visitas e da observação das pastas de avaliação
6
. A coordenadora também permanece
numa sede, onde tem outras atribuições além da coordenação da EJA, como ministrar
cursos de formação continuada para professores e analisar as pastas de avaliação,
mencionadas, de outras modalidades de ensino. No entanto, esse é o primeiro ano que a
EJA conta com uma pessoa para desempenhar essa função; nos outros anos a
coordenação era responsabilidade da supervisora também.
Para as professoras, o apoio pedagógico que recebem é importante, porém
insuficiente, devido ao grande número de salas que a coordenadora precisa atender, além
das outras funções que desempenha, o que não permitiu uma presença assídua na escola.
A escola escolhida situa-se num bairro periférico da cidade, cuja característica é
dispor de muitos imóveis pequenos e a baixo custo para locação, o que produz uma
rotatividade dos moradores. No seu entorno, bairros formados há menos tempo,
derivados de programas habitacionais. Juntos, eles formam um forte núcleo de recepção de
migrantes da zona rural da região e de outras regiões do país, principalmente o Nordeste.
No primeiro contato com a escola, soubemos que a sala de etapa escom 23
alunos matriculados e 27 alunos freqüentes. Essa diferença é esclarecida por um acordo
interno firmado entre os professores da escola para que os alunos que estão
matriculados em outras etapas (2ª e 3ª) e não estão alfabetizados voltassem a freqüentar a
primeira etapa. No entanto, os nomes dos alunos permanecem na etapa em que estão
matriculados.
No segundo semestre, o número de matrículas é sempre alterado. Mesmo sendo um
curso anual, recebem matrículas novas no início de cada semestre. Além dessa alteração
no grupo, há a freqüência irregular dos alunos: em média 14 deles estão presentes em cada
aula, como se houvesse um revezamento natural, ou seja, os alunos alternam a ida à
escola. Assim, a cada aula, a classe está com um grupo diferente e dificilmente a sala está
com todos os alunos.
A heterogeneidade é a característica principal da sala. Primeiramente, pela faixa
etária dos alunos que varia entre 14 e 74 anos. Em seguida, pelo tempo de permanência na
escola: alunos ingressantes e outros que freqüentam a mesma etapa anos cerca de
seis anos. Outra peculiaridade da sala é uma tentativa de incluir alguns alunos com
6
Nessa secretaria adotou-se um sistema de avaliação para acompanhar o aprendizado em Língua Portuguesa.
Entre os professores de todas as modalidades Infantil, Fundamental e EJA tal avaliação é conhecida como
“avaliação de escrita” devido ao objeto que visa, principalmente: o aprendizado da escrita. Os professores devem
entregar mensalmente uma avaliação que fez com os alunos para ser analisada por um grupo de coordenadores
da rede municipal. Na primeira etapa da EJA, a avaliação é feita a partir de um ditado de quatro palavras com o
objetivo de identificar a hipótese de escrita desses alunos, com base na teoria de Emilia Ferreiro veiculada pelo
PROFA – Programa de Formação de Professores Alfabetizadores.
60
necessidades especiais que freqüentaram instituições como a APAE Associação de
Pais e Amigos dos Excepcionais. E, por último, o caso dos alunos que freqüentaram o
Ensino Fundamental regular na idade apropriada, mas o obtiveram êxito e quando
alcançam a idade mínima - 14 anos - prosseguem os estudos na EJA.
Os alunos são, na maioria, migrantes de outros estados e da zona rural da região.
Os homens trabalham na construção civil, nas indústrias da cidade; as mulheres ocupam-
se do serviço doméstico para outras famílias ou trabalham em oficinas de confecção de
roupas, em diversas funções como costureira, revisora, entre outras.
Na sala de aula, a disposição das carteiras é feita em duplas. No entanto, as
atividades são realizadas individualmente. Os alunos com necessidades especiais agrupam-
se entre si, tendo pouca interação com os outros alunos da sala. Em alguns momentos, a
professora divide a lousa e apresenta dois tipos de atividade, atendendo a esses dois
agrupamentos.
Nos anos anteriores, essa sala estava dividida; os alunos portadores de
necessidades especiais e alunos considerados com dificuldade de aprendizagem ficavam
em uma sala, e os alunos que estavam em um outro momento no processo de alfabetização
ficavam em outra sala, como se fosse uma turma de pré-alfabetização e uma alfabetização.
A proposta declarada era tentar uma solução para os alunos que estavam na EJA
anos sem sucesso na aprendizagem. Tal modelo foi uma adaptação do projeto Sala de
Apoio da Rede Municipal que atendia os alunos do Ensino Fundamental que não
conseguiam se alfabetizar até o final do ciclo e que estavam com defasagem de idade e
série.
As duas salas de EJA, no entanto, trabalhavam juntas. Devido à orientação
pedagógica, os alunos precisavam de parceiros mais avançados para desenvolvimento de
alguma atividade; então, era feito um intercâmbio entre os alunos. Desse modo, alguns
educandos da classe de alfabetização participavam de uma aula na “sala de apoio” uma vez
na semana. Esse modelo permaneceu durante dois anos e encerrou-se, fundindo-se as
duas salas em uma.
A professora da sala de aula que pesquisamos trabalha nessa modalidade de ensino
14 anos, mas é a primeira vez que assume uma sala de alfabetização. Ela atua também
na Educação Infantil no período alternado. Marlene
7
possui curso superior e, no momento da
pesquisa, cursava a segunda graduação na área de Educação, ela também, recebe suporte
pedagógico nas reuniões de H.T.P.C. Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo - e nos
cursos de formação continuada oferecidos pela Secretaria Municipal.
7
O nome, da professora e dos alunos da sala de aula pesquisada, é fictício para preservar a identidade dos
mesmos.
61
4.2 - Princípios teórico-metodológicos
A metodologia de pesquisa adotada para essa investigação é a qualitativa, que “[...]
envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a
situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa em retratar a
perspectiva dos participantes” (Lüdke e André, 1986, p. 13).
Essa metodologia surgiu no anseio de compreender melhor os fenômenos humanos
que não eram apreendidos em sua totalidade, pela pesquisa quantitativa, conforme André
(2004). Nesse sentido, a principal característica que define esse modelo de pesquisa é a
defesa de “[...] uma visão holística que leve em conta todos os componentes de uma
situação em suas interações e influências recíprocas” (André, 2004, p. 17).
Nessa investigação, optamos por incorporar elementos do estudo do tipo etnográfico.
Os autores Lüdke e André (1986), André (2004), Rockwell (1989) discutem o histórico dessa
metodologia, que nasce com os antropólogos, no intuito de estudar outras sociedades e
culturas. Migra para a educação na década de 70, como um auxílio aos educadores que
buscavam compreender o processo de ensino.
Nas ciências de origem, a etnografia constitui “[...] a descrição de um sistema de
significados culturais de um determinado grupo” (Lüdke e André, 1986, p. 14). na
educação deve estar relacionada com o processo educativo, isto é, “[...] reconstruir os
processos e as relações que configuram a experiência escolar diária” (André, 2004 p.41),
através do contato direto do pesquisador com o ambiente pesquisado.
Os procedimentos utilizados no trabalho de campo foram a observação e a entrevista
(Lüdke e André 1986). As observações foram registradas através de audiogravação das
aulas, bem como, de anotações no diário de campo. Elas aconteceram entre junho e
novembro de 2005, uma vez por semana com duração de três horas. Quanto ao segundo
procedimento, optamos pela entrevista semi-estruturada, que conta com o roteiro elaborado
previamente com a função de nortear a interação sem restringi-la. Entrevistamos todos os
sujeitos da pesquisa: professor e alunos. Os primeiros roteiros encontram-se nos anexos 1 e
2.
O material empírico foi selecionado e analisado a partir dos pressupostos da teoria
bakhtiniana da enunciação (Bakhtin,1992, 1999; Faraco, 2003; Brait, 2005) e das
implicações da abordagem microgenética de análise na perspectiva histórico-cultural
(Vigotski, 1984, 1989; Smolka, 1985, 1992; Góes, 2000).
Para Bakhtin (1992, 1999), a unidade de análise da língua é o enunciado, pois, [a]
utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais ou escritos), concretos e
únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana” (1999, p.
62
279). Desse modo, ao considerar os enunciados estamos assumindo que a língua é um
produto histórico-social.
Vigotski (1984) também problematiza os métodos de pesquisa utilizados nas
investigações em psicologia na sua época e propõe alterações como: a explicação do
processo ao invés da descrição, a observação do processo e não do produto. De acordo
com Vigotski, a psicologia de sua época analisava os processos psicológicos como objetos,
desconsiderando toda a dinâmica envolvida nestes. Ele propõe a observação do movimento,
do desenvolvimento. Assim , “[s]e substituímos a análise de objeto pela análise de processo,
[...], a tarefa básica da pesquisa obviamente se torna uma reconstrução do processo: deve-
se fazer que o processo retorne aos estágios iniciais” (Vigotski, 1984, p. 71). Nesse primeiro
ponto discutido pelo autor, a gênese do processo aparece como traço importante para suas
investigações. Essa questão é retomada no segundo princípio, que propõe a explicação ao
invés da descrição. Nele, Vigotski considera que a explicação possibilita encontrar e expor a
gênese e as bases dinâmico-causais do processo, o que não é conseguido pela mera
descrição do fenômeno. O último princípio proposto aborda o cuidado que o pesquisador
deve ter com os processos fossilizados, processos que acontecem por um longo tempo e
tornam-se mecanizados, dificultando o encontro de suas origens. O procedimento frente a
esses processos é reconstruir o desenvolvimento até chegar à gênese.
Os continuadores da obra de Vigotski partem desses princípios para prosseguir no
desenvolvimento de suas idéias sobre metodologia de pesquisa. Essa forma de análise
passa a ser denominada microgenética. Tal análise “contrapõe-se à analise por elementos,
propondo a busca de uma análise por unidades e definindo a unidade como aquela instância
de recorte que conserva as propriedades do todo que se pretende investigar (Góes, 2000,
p. 14)
Góes (2000) esclarece que essa abordagem é
[...] uma forma de construção de dados que requer a atenção a detalhes e
o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o
funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as
condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos
acontecimentos. (Ibidem, p. 9)
A autora preocupa-se nesse texto em diferenciar a análise microgenética de outros
tipos de análise de microeventos. A distinção se dá pela consideração da gênese social. Isto
é, parte da formulação de Vigotski, “[...] segundo a qual os processos humanos têm gênese
nas relações com o outro e com a cultura, e são essas relações que devem ser investigadas
ao se examinar o curso da ão do sujeito” (Ibidem, p. 11). Ainda para autora, o fato de se
denominar microgenética não tem relação com a duração de tempo; é micro por se
preocupar com as minúcias.
63
Essa modalidade de análise pode estar aliada a outros métodos. Assim, uma
possibilidade de composição, pode ser a união com a análise do discurso e com a teoria
enunciativa bakhtiniana, como faz Smolka, segundo Góes (2000).
4.3- Inserção do pesquisador no campo
Tendo em vista que o nosso trabalho tem como objetivo analisar o lugar que a
oralidade ocupa numa sala de alfabetização de adultos, a pesquisa de campo iniciou-se com
uma conversa com a supervisora de ensino da EJA - Educação de Jovens e Adultos - sobre
uma sala de aula de alfabetização onde esta poderia se realizar. Ela pediu uma solicitação
formal à Secretaria Municipal de Educação. Assim que obtive a resposta da secretaria, fiz
contato com o diretor que me falou brevemente sobre o perfil das salas. Com essas
informações, optei por uma das salas da EJA de um município do interior do Estado de São
Paulo, conforme já exposto anteriormente.
A diretora fez o primeiro contato com a professora, expondo o pedido. A professora
fez o seguinte comentário A única coisa é que eu não trabalho com o PROFA”.
Provavelmente, disse isso porque antes de iniciar o mestrado eu trabalhava nesta rede de
ensino como formadora do PROFA Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores.
A professora possivelmente imaginava que eu continuava nesta função, pois na
nossa primeira conversa sobre a pesquisa ela continuava a dizer que não utilizava o
PROFA. Expus minha situação, explicando que estava afastada da Rede Municipal,
dedicando-me exclusivamente à pesquisa, que não estava ocupando esse cargo e o
PROFA o fazia parte do meu interesse de pesquisa. Esclareci qual seria a finalidade da
minha pesquisa.
No decorrer das idas à escola, notei a professora cada vez mais à vontade, e que
sua preocupação inicial foi se dissolvendo. Sempre à disposição, contribuindo quando
solicitada. Mesmo tendo sido exposto várias vezes qual era o meu papel, sentia que a
professora não tinha dimensão do que fazia em sua sala. Ela me via como uma estagiária,
pois na minha segunda visita à sua sala, perguntou-me quantas horas de estágio eu tinha
que cumprir. Aproveitei e expliquei novamente que não se tratava de um estágio, mas de
uma pesquisa. Mesmo tomando ciência de que se tratava de uma pesquisa, ainda tenho a
impressão de que ela não se sentia pesquisada, pela naturalidade com que fazia os
comentários comigo.
Antes de ir até a sala de aula, a professora havia conversado com os alunos sobre a
minha presença. Num primeiro momento, os únicos alunos que conversavam comigo
64
durante a aula eram os alunos portadores de necessidades especiais. Quando entrava na
sala, um deles me recebia com um beijo e um abraço. Aproximavam-se da minha mesa e
perguntavam: “Você não vai ensina(r) a gente?” ... “Eu quero aprende(r) a faze(r) conta!...
“O que você tá fazendo aqui que não ensina a gente?” O restante da turma não me
perguntava nada; era como se eu não estivesse ali. Algumas vezes, cheguei antes do
horário; nessa situação, eles conversavam comigo sobre o tempo, a merenda, mas,
entrando na sala, era assunto encerrado.
A partir do momento em que conversei com eles sobre a pesquisa, li o termo de
consentimento
8
e pedi a autorização para a sua realização, o meu relacionamento com os
alunos mudou. Como se, a partir daquele momento, eu passasse a integrar o grupo. Os
alunos concordaram em participar da pesquisa, assinaram e começaram a me fazer
perguntas, conversar durante a aula. Por exemplo, um aluno perguntou qual era a minha
família, pelo meu sobrenome, de onde era a minha família, entre outras.
Outro momento interessante foi quando comecei a fazer as entrevistas. Todos
queriam saber quem seria o próximo a falar comigo. Um dos motivos desse interesse foi o
gravador que chamou muito a atenção deles e propiciou uma boa conversa. No último
encontro, ouvi os comentários de um casal: “Essa mulher é quieta, ela dá pra escrever livro.
“É que ela tá observando a gente.”
4.3.1- As entrevistas
Quando comecei a formular, a ler e a pensar sobre os aspectos metodológicos da
pesquisa, achei importante fazer uma entrevista com a professora e os alunos. Pretendia
entrevistá-los para conhecê-los melhor e, também, porque poderia encontrar nos seus
relatos questões importantes para a pesquisa.
A primeira dificuldade surge quando estava elaborando o roteiro da entrevista,
durante a escrita do projeto que seria encaminhado ao Comitê de Ética para apreciação.
Definir as questões que seriam feitas e, ainda, como elaborá-las para que atingisse o
objetivo, mas não expusesse o entrevistado, foi um desafio. Outra dificuldade desse
momento foi apurar o foco, pois muitas das perguntas não estavam relacionadas com a
problemática estudada.
Enfim o roteiro ficou pronto (anexo 2). Utilizá-lo foi outra experiência interessante.
Entrevistei inicialmente três alunos. Eu perguntava e tinha muitas vezes como resposta
apenas “sim” e “não”. Um dos alunos entrevistados que iniciou na EJA naquele ano e tinha
8
O termo de consentimento é um documento exigido pelo Comitê de Ética da Universidade São Francisco, que
consiste na autorização formal por parte dos voluntários para participar da pesquisa.
65
catorze anos respondia “não sei e em minutos estava pronta a entrevista, sem nenhuma
informação nova.
Percebi que daquela forma não conseguiria o que pretendia; por isso reelaborei o
roteiro (anexo 3), pois, nesse momento, acreditava que a falha estava na formulação do
roteiro.
Analisando a condução da entrevista, fui percebendo outras dificuldades no
processo. Uma delas foi causada pelo fato de haver seguido estritamente o roteiro, fazendo
uma pergunta após a outra, o que não possibilitou um diálogo com o entrevistado, mas
apenas repostas curtas e diretas às perguntas.
Outro problema foi em relação a minha concepção de entrevista; esperava
“encontrar” todas as respostas nessa situação. Percebemos, numa conversa durante um
encontro de orientação, que esta é a razão de usarmos diferentes procedimentos de
pesquisa, que a entrevista não daria conta de todas as questões que pretendia investigar.
Isso seria possível pela junção de outros procedimentos. Também, repensamos o que seria
realmente importante conhecer pelas entrevistas e o que conseguiríamos perceber pela
observação do cotidiano da sala.
Após todas essas questões em torno da entrevista, fiz uma nova tentativa. No
entanto, quando convidava os alunos para “conversar” alguns se recusavam; outros iam,
mas não ficavam à vontade, sentiam-se intimidados. E novamente não obtive sucesso.
Analisando tal tentativa, percebo que o contexto e a condução da entrevista aproximavam-
se muito de entrevistas institucionais. De acordo com Pinheiro (1999), essas entrevistas
ocorrem normalmente numa consulta médica, ou em repartições blicas; não se
estabelece uma relação dialógica mais aberta com o entrevistado, mas espera-se que ele
responda às perguntas como se estivesse preenchendo uma ficha. Assim, os alunos eram
convidados a sair da sala de aula e a se dirigirem a outra sala para conversarem comigo,
que fazia inúmeras perguntas e obtinha respostas curtas a cada questão.
Nas primeiras tentativas da entrevista, percebi que eles ficavam intimidados, tanto
que uma aluna se recusou a sair da sala para conversar comigo, alegando que não estava
preparada psicologicamente para isso. Em uma aula, surgiu uma oportunidade de
“conversar” com uma aluna dentro da sala, durante as atividades. Foi uma situação muito
interessante; a aluna falou bem mais do que os outros quando entrevistados fora de sala. A
partir desse dia, expliquei à professora que em alguns momentos estaria conversando com
os alunos. Expus minha dificuldade anterior e ela concordou em tolerar o burburinho que
isso poderia causar.
Dessa forma, realizei todas as entrevistas: a cada aula escolhia um local para sentar
e ali conversava com os alunos próximos, e assim fiz até falar com todos. Esperava o
professor propor a atividade e, no momento em que estavam realizando a tarefa, ficava
66
atenta, aguardando uma brecha para iniciar uma conversa. Através desse estilo de
entrevista como uma “conversa paralela”, os alunos respondiam às minhas questões.
Inclusive, os papéis se invertiam, em alguns desses diálogos, também fui entrevistada por
eles, que me perguntavam se era casada, tinha filhos, onde morava e coisas assim.
Qual a validade científica desse bate-papo aparentemente informal durante as aulas?
Menegon (1999) discute sobre o uso de conversas do cotidiano na prática de pesquisa e
comenta que tais conversas estão presentes nas diferentes situações sociais, mas, devido
ao caráter trivial, comum que apresenta, não damos a devida atenção e desconhecemos a
riqueza presente nessa forma de interação. As conversas são práticas discursivas,
entendidas como linguagem em ação, conforme a autora.
Essa forma de interação informal é um contexto privilegiado para a investigação
sobre a produção dos sentidos. Os estudos de Bakhtin (Cf. Menegon) são uma grande
contribuição para refletirmos sobre a importância da conversa. A comunicação cotidiana
ocupa papel de destaque nas formulações desse autor, considerada como um espaço rico e
conflituoso da comunicação rotineira, e relacionado às diversas esferas ideológicas.
Segundo esse teórico, a conversa é formatada pela situação e pelos participantes
imediatos. No nosso caso, a situação configura-se como um bate-papo durante a aula. Vale
ressaltar que o papel que ocupava nessa sala não estava muito claro, mesmo tendo ficado
explícito que meu objetivo ali era realizar uma pesquisa. Inclusive, um aluno perguntou se
eu estava estudando Direito, para ter uma idéia do papel que ocupava, pois não era tratada
como professora, nem como uma colega de classe.
Assim, as entrevistas com os alunos aconteceram nesse formato de conversas do
cotidiano, como uma conversa paralela em sala de aula. No entanto, com algumas
diferenças do modelo exposto por Menegon (1999). O contexto ficou mais informal,
descontraído, pois o aluno não se retirava da sala e aparentemente não estava numa
situação clássica de entrevista - frente a frente com um entrevistador que aplicava um
questionário -, mas também o aconteceu como uma conversa espontânea. Todos os
diálogos foram direcionados pelas minhas questões e meus interesses de pesquisa. Então,
pontuava questões solicitando que comentassem mais sobre um fato, ou fazia outras
perguntas para aprofundar em alguma informação mencionada. Desse modo, a conversa
em grande parte era conduzida por mim.
A entrevista dentro da sala de aula deixava-os mais à vontade; eles falavam
normalmente, como num bate-papo; os papéis de entrevistador e entrevistado não eram
fixos, já que muitos alunos faziam perguntas sobre a minha vida.
A informalidade, característica fundamental da entrevista realizada com os alunos,
possibilitou conhecer um pouco mais sobre as experiências dessas pessoas. A professora,
67
no entanto, foi entrevistada em um modelo mais formal que contou com auxílio de um roteiro
(anexo 4). Este norteou toda a entrevista, pois eu perguntava e as professoras respondiam.
Esta entrevista também não ocorreu da forma prevista. Planejei entrevistar apenas a
professora da sala pesquisada; no entanto, no dia combinado, não havia aula na escola. Por
isso, uma colega da professora em questão quis participar da entrevista e quando
estávamos quase terminando, uma terceira professora da escola também veio participar e
respondeu a algumas questões. As duas professoras entrevistadas respondiam às questões
separadamente; cada uma dava a sua opinião e, muitas vezes, começavam a dialogar ou a
debater sobre o que estava em pauta. Elas davam exemplos de suas experiências, dizendo
lembra daquela vez que...”, pois trabalham juntas há catorze anos.
Desse modo, essa entrevista apresentou vários retratos da EJA, a partir das
experiências dessas professoras. A análise, no entanto, centrou-se na fala da professora da
sala pesquisada.
4.4- Construção dos dados
O material empírico analisado foi constituído a partir de um longo processo de idas e
vindas com a discussão teórica e as informações que emergiam na sala pesquisada.
As aulas observadas foram registradas no diário de campo ou gravadas e transcritas,
em seguida. Observei, durante o segundo semestre letivo de 2005, cerca de vinte aulas
com três horas de duração, perfazendo um total de aproximadamente sessenta horas de
observação. Deste material, os recortes que compõem os episódios foram circunscritos
pelas questões de interesse, com auxílio das discussões teóricas.
O mesmo ocorreu com as entrevistas, pois, entrevistei todos os alunos freqüentes,
mas nem todas as entrevistas, principalmente as dos alunos, aparecem neste texto. Elas
contribuíram muito para a composição dos dados, o esclarecimento de algumas questões, a
contextualização da realidade dos sujeitos pesquisados, embora tenham sido explicitadas
no texto quando isto se fez necessário. Além disso, também recolhemos e levamos em
consideração as produções coletivas dos alunos nas atividades de reescrita, bem como os
textos lidos pela professora para fazer a versão.
Também tivemos acesso a outros materiais escritos como o planejamento anual e a
avaliação final do desempenho da turma feita pela professora.
68
Capítulo 5
Falar para escrever? Falar para quê?
O que é feito com a fala dos alunos na sala de aula?
A ida para a escola de Educação de Jovens e Adultos contou com pressupostos
teóricos, questões e leituras prévias sobre o objeto de interesse: a oralidade. Inicialmente, o
interesse de pesquisa voltava-se para essa questão apenas. No entanto, o problema da
pesquisa foi “redescoberto” durante o decorrer da mesma, o que é uma marca da
metodologia adotada. Assim, o contato com a escola pesquisada, o aparecimento de novas
questões e a contribuição dos teóricos possibilitaram o redimensionamento do problema de
pesquisa.
Primeiramente, eu esperava observar o trabalho realizado com a oralidade. Para isso
supunha a existência de atividades que contemplariam o que estava previsto no
planejamento anual da professora, no item destinado aos conteúdos da linguagem oral
9
.
Nesse item, a professora listava os seguintes conteúdos: discursos, relatos e argumentação.
Além dessa questão, também tinha interesse pela forma como a professora considerava a
fala dos seus alunos. Essa preocupação surge, principalmente, da minha experiência como
coordenadora da EJA de uma rede municipal, na qual pude notar uma série de colocações,
por parte dos professores, sobre a fala de seus alunos, como: Para que os alunos
aprendam a escrever, primeiro precisamos ensiná-los a falar”.
Após as primeiras observações, eu constatei que o trabalho com a linguagem oral
estava apenas previsto no plano da professora, mas não acontecia em sala. Isto é, não
havia um momento específico para a oralidade, uma atividade com ela ou sobre ela. Até
então, concebia desse modo o trabalho com a oralidade, em um momento para ele e de
forma explícita.
Constatar que a oralidade não era tratada dessa forma promoveu o
redimensionamento da questão de pesquisa e das hipóteses iniciais. No intuito de deixar
claro como isso se deu, peço licença aos leitores, para retroceder ao percurso que constituiu
essa pesquisa e relatar alguns fatos.
9
Esses conteúdos foram extraídos da Proposta Curricular para Educação de Jovens e Adultos (1999).
69
Dentre eles está a reconsideração da minha própria concepção acerca do objeto de
estudo, pois, até então, supunha que a fala era “pura” e deveria ser trabalhada na escola por
ela mesma, sem relação com a escrita, um contraponto à concepção grafocêntrica. Percebo
hoje que tomava a fala sob uma perspectiva oralcêntrica. Esse olhar sobre a oralidade não
considerava a relação oral/escrito na sociedade letrada em que a sala de aula estava
inserida.
A partir da leitura de estudos de autores como Havelock e Ong, comentados no
segundo capítulo, pudemos perceber que essa primeira noção sobre oralidade foi se
transformando. Isso ocorreu por considerar a relação de tensão que perpassa a oralidade
como integrante de uma sociedade letrada e, a partir daí, a influência/interferência da escrita
sobre a oralidade e vice-versa nesses contextos passou a ser considerada. Assim, tomamos
a oralidade como permeada pela escrita numa relação de influência mútua: marcas da
escrita na fala, como sinais da fala na escrita. A escrita, por sua vez, também se
posiciona como uma baliza para definir a oralidade, ou seja, nas sociedades ágrafas há uma
certa oralidade determinada pela não convivência com a escrita.
Conhecer essa definição de oralidade, considerando que a pesquisa acontece em
uma sociedade letrada, foi muito significativo para uma mudança do olhar sobre a oralidade
e a escrita. Agora, elas são encaradas em um processo contínuo de práticas sociais, pois
nas situações em que são utilizadas não divisão estanque entre elas (Marcuschi). Com
isso, o foco é deslocado: o olhar para a oralidade não pode desconsiderar a escrita, já que
elas se encontram em relação. Novas questões surgem: Como essa relação se constitui na
sala de aula? Que indício da tensão entre escrita e oralidade em uma sociedade letrada é
possível depreender da observação na escola? Como são conduzidas atividades com a
linguagem (oral e escrita) nesta sala de EJA?
Nessa trilha, eu tinha algumas suspeitas sobre como a escola considerava a escrita,
atribuindo a ela extrema importância. Em relação à oralidade, como seria? Seria
simplesmente o oposto? Alguns indícios, que serão aprofundados durante as análises, nos
apontavam que a questão não era tão simples assim; não se tratava de uma mera oposição,
mas de uma preferência por uma certa oralidade e a desconsideração de uma outra. Quais
seriam essas “oralidades”?
O contato com a sala pesquisada foi intenso. Observava as aulas semanalmente,
acompanhando desde a entrada dos alunos até a saída, o que me possibilitou presenciar
inúmeras situações. No trabalho com a ngua portuguesa, observei atividades de escrita e
leitura, tais como: listas, como a dos alimentos que compõem uma cesta básica, reescrita de
contos narrativos, um convite para um sarau lido para a turma. Já, em matemática, a
atividade mais freqüente eram os cálculos aritméticos realizados em todas as aulas,
praticamente. Havia também as aulas de informática que aconteciam quinzenalmente, na
70
qual os alunos aprendiam a digitar o próprio nome e listas de palavras. A observação era
registrada no diário de campo e em audiogravações, conforme comentado no capítulo
anterior.
A sala de aula onde essa pesquisa foi realizada tem as características recorrentes na
maioria dos grupos da EJA como: diversidade etária (14 a 74 anos); diversidade de
experiências escolares anteriores alguns alunos estiveram na escola quando crianças,
outros alunos ingressaram na escola adultos em programas de alfabetização para
adultos. Nesse grupo uma tentativa de incluir alguns alunos considerados especiais.
Nesse grupo, a escola incluiu alunos com dificuldades de aprendizagem e alunos portadores
de necessidades especiais.
Ao mesmo tempo que realizava as observações nessa sala, iniciei o processo de
seleção dos dados que compuseram o presente corpus . A princípio, o que olhar? Que
recorte fazer? Eram questões complexas, considerando que a questão de pesquisa estava
se constituindo, também. Tudo isso, acompanhado pela discussão teórica. Enfim, foi dentro
desse movimento que uma atividade saltou aos olhos na sala de aula observada – a
reescrita de textos. Nessa atividade, parecia ser possível observar a relação oral/escrito
que ela é composta justamente pelo movimento entre o oral e o escrito e, também, por ser
uma atividade muito realizada nessa sala. A atividade de reescrita, apresentada para esse
grupo, compreende a leitura de uma fábula ou lenda, normalmente feita pela professora e no
reconto da história, feito pelos alunos, como um ditado para a professora que se posiciona
como uma escriba, anotando o que é falado pelos alunos na lousa. No desenrolar dessa
atividade, fala e escrita estão intercaladas. Mas, é possível dizer que fala e escrita atuam
harmonicamente dentro dessa situação? Essa questão emerge no processo de constituição
dos episódios.
Outro ponto relevante é como essa atividade é conduzida na escola pela professora
observada. Como a linguagem circula nessa situação? Como as modalidades de uso da
língua (fala e escrita) são trabalhadas na escola? Como essas modalidades se relacionam
no processo de alfabetização? Tais questões trazem indícios de uma tensão entre a fala e a
escrita e muitas delas emergem ou se intensificam no processo de análise dos episódios.
Neste capítulo, serão analisados três episódios: dois deles foram recortados dentre
as situações que abordavam atividades de reescrita; um outro, primeiro a ser discutido, trata
de um debate realizado na sala de aula pesquisada, que aborda o trabalho com um gênero
oral. Durante o período de observação, essa foi a única atividade escolar que tratou de um
gênero oral, especificamente; por isso, ela será analisada. O intuito é discutir como essa
atividade transcorre na sala de aula. Como o gênero oral é trabalhado nesse contexto?
71
Além dos episódios, no decorrer do capítulo, as entrevistas realizadas para este
estudo, com a professora e os alunos, também serão objeto de análise e auxiliarão no
desenvolvimento das discussões.
5.1- O gênero oral na escola: um debate na sala de EJA
Durante a atividade a ser relatada, o tema de um debate nacional é levado para a sala
de aula. Os alunos estavam na semana que antecedia o referendo
10
no país. Nesse
contexto, surge a idéia dessa atividade: um debate. Assim que cheguei na escola, a
professora comentou que nesta aula faria um debate sobre o referendo com os alunos. No
início da aula um aluno aborda a professora e pergunta sobre a votação. Ele queria saber
em que local deveria ir para votar. A professora responde que depois conversariam sobre
esse assunto e inicia a aula.
Episódio 1
11
Data:17/10/2005
((Após uma atividade de reescrita, a professora inicia a discussão sobre o referendo, fazendo a
seguinte pergunta:))
P.: Gente! Essa semana, no domingo, vai te(r) o quê?
Adr.: Votação.
P.: Referendo. Que é o quê? (.) É quando que(r) sabe(r) a opinião da população sobre
determinado assunto. E qual é o assunto que eles querem saber a respeito?
A.: Sobre arma.
P.: Sobre arma.
Pri.: O que quer dizer arma? Explica pra mim, professora.
P.: Arma?
Pri.: É
P.: Revólver.
Pau: Arma que a gente tem na casa da gente ou não?
P.: Calma, aí! Uma coisa por vez! Então, o que que (es)tá sendo votado? O que que é? Alguém
sabe me dize(r)?
A.: Sobre o desarmamento.
P.: Sobre o DESARMAMENTO. O que é desarmamento?
Adr.: É desarma(r) o povo que tem arma.
P.: Desarmar é tira(r) a arma das pessoas para que elas não possam mais comprar e não
possam compra(r) munição.
...
P.: Vocês acham que isso resolve?
Jos.: Resolve, não. Na minha opinião resolve assim. Se for pra mim fala(r) numa câmera de
televisão, eu falo sem medo nem pudor. Se o juiz de direito ro(u)bo(u) coloca ele no paredão e
fuzila ele.
Ben.: Não, senhor!
Jos.: O presidente ro(u)bo(u), fuzila ele.
Ben.: Ô José, fé em Deus! ((Reclamando))
10
Trata-se do Referendo de 23 de outubro de 2005. Nele, a população brasileira votaria a favor ou contra a
proibição da comercialização e uso de armas e munições no território nacional.
11
Os símbolos utilizados na transcrição estão disponíveis no Anexo 5.
72
Jos.: Não, não. Mas eu, na minha opinião. Mas se o cara ro(u)ba, tem que fuzila(r). Porque se
você ro(u)bo(u) o bujão de gás, se ele for primário, dá uma chance pra esse cara.
Ben.: Se o meu filho for rouba(r), você que(r) que mate?
Jos.: Inclusive ele. Então é o seguinte: o cara ro(u)bo(u) o bujão de gás. É primário? É. Então
uma chance pra ele ( ) mas de olho nele, se ele ro(u)ba(r), fuzila ele. Agora o cara estupra
quatro ou cinco vezes, ro(u)ba, seqüestra, mata e quando o cabra fica comendo com o dinheiro
que a gente paga imposto, eu não concordo. A minha idéia é essa. Me desculpa, Benedita. Eu
vo(u) vota(r) a favor de fica(r) o armamento porque o bandido pode usa(r) a arma.
Ben.: (Es)tá certo, porque desarma o povo, desarma os pais de família.
P.: Então você acha que não pode desarma(r) a população?
Ben.: Eu acho que não, professora, porque se os bandidos s(o)uberem que os pais de família
(es)tão sem revólver... (.) Eu não tenho porque eu creio, Deus me guarda ( ) mas se os ladrão
s(o)ube(r) que a gente tá desarmado vão faze(r) o que quise(r) com a gente. ( ) Não acho certo
desarma(r) a humanidade, mas também, mata(r) eu não acho certo porque quem tem direito de
tirar a vida da gente é Deus. Porque muitos bandido(s) que matava(m), ro(u)bava(m). O
apóstolo Paulo mesmo, lá no tempo da lei. Ele era um (preceptor), ele maltratava o povo e nem
por isso Jesus não salvo(u) ele. A bíblia fala que Deus coloca o arrependimento em nosso
coração, por exemplo, um bandido que matando e roubando, mas se a gente pode prega(r) pra
ele e ele pode percebe(r) que [aquilo não é certo, pode se arrepende(r) e Deus pode perdoa(r)
ele [...]
Jos.: [Eu sei, Benedita!
P.: O que José quis dizer, Benedita, é que tem gente que vive fazendo e não se arrepende do
que faz e que não tá nem aí.
((A aluna continua argumentando.))
...
A.: Professora, você quer que desarme?
P.: E você, o que acha? (.) Nem sabe do que se trata.
((Os alunos José e Benedita continuam discutindo e apresentando seus argumentos. José
conta três histórias para reforçar sua posição. Uma das histórias é sobre sua própria vida:
quando tinha dezessete anos, envolveu-se em uma situação no Acre que poderia levá-lo ao
mundo do crime. Conta como foi honesto e recusou uma oportunidade de roubar uma pasta
repleta de dinheiro. Benedita argumenta com José que muitos roubam porque a situação
econômica está difícil; muitos desempregados que se desesperam e roubam para alimentar
a família. José discorda da opinião da esposa dizendo que casos e casos. Nesse momento,
a professora diz:))
Prof.: Calma, gente! Nós (es)tamo(s) fugindo do assunto! (.) Vamo(s) volta(r) pro assunto!
Então, qual é a questão que está sendo discutida? Se a população tem que ser desarmada ou
não. Se a gente é a favor ou não.
((Benedita responde à professora com os mesmos argumentos apresentados anteriormente. E
finaliza afirmando, novamente, que é contra o desarmamento e a pena de morte.))
...
P.: E todo mundo tem que votar? ((Alguns alunos respondem que votam porque é obrigatório.))
P.: ((Chama alguns alunos.)) Vamo(s) lá , quem mais quer dar a opinião?
((Os alunos respondem e justificam a escolha que fizeram.))
...
((Ao final do debate, a professora diz:))
P.: Então, gente, eu acho assim: tem que pensa(r) bem antes de vota(r). Tem que pensa(r)
direitinho.
...
((A professora encerra o debate dizendo para os alunos pensarem mais uma vez sobre a
questão:))
P.: Eu vou trazer direitinho a pergunta pra gente pensa(r) de novo. Daí a gente volta a
conversa(r). Daí vejam se vocês têm alguma dúvida, prestem atenção na televisão, tanto a
campanha do sim quanto a do não. Aí, a gente conversa mais um pouco.
...
((Novamente a professora pede para os alunos prestarem atenção na propaganda, “pra ver o
que eles falam”.))
A princípio, essa proposta se destaca por ser a única atividade que aborda um nero
oral na escola, durante as observações realizadas. Ao escolher comentar sobre essa
73
atividade que prioriza o oral, vale notar que a fala não é vista por nós como uma oposição à
escrita. Pelo contrário, neste trabalho, a fala e a escrita são vistas em um contínuo. Um
exemplo disso é a composição do processo eleitoral que se por neros orais e escritos.
Desse modo, a propaganda eleitoral é veiculada pela fala, mas segue um roteiro escrito, ou
é permeada por textos escritos, o que indica que não uma oralidade pura, sem contato
ou interferência do escrito e o mesmo ocorre com a escrita. Assim, ao realçar o trabalho
com o gênero oral, distante de assumir uma visão dicotômica dos usos da língua, procura-se
salientar o aparecimento deste em uma atividade escolar que, predominantemente, aborda
gêneros escritos, como foi discutido no terceiro capítulo. Desse modo, ao primeiro contato
com esse episódio aparecem as seguintes questões: Como o debate se desenvolve? Qual a
finalidade da professora ao organizar o debate? Havia uma preocupação em trabalhar as
características do gênero oral? Como o debate foi conduzido?
O debate se realiza na modalidade falada da língua e pode ser considerado um
gênero formal público, segundo Schneuwly (2004), ou seja, é um gênero que necessita de
uma abordagem didática para apropriação de sua estrutura. Ele é diferente da conversa
informal, por exemplo, que se desenvolve em situações interativas informais do cotidiano.
Tal gênero assemelha-se à dissertação argumentativa, normalmente escrita na escola,
utilizando-se de argumentos orais, o que implica um ensino sistemático.
Essa classificação - gêneros formais públicos - baseia-se na definição bakhtiniana que
os considera gêneros secundários pois são mais complexos, conforme Schneuwly (2004).
Logo são os gêneros mais complexos que precisam ser trabalhados na escola.
Sob esse prisma, nessa atividade, ao observar a condução da professora, nota-se
que a apropriação da estrutura do gênero “debate” não era o seu foco, que em nenhum
momento orientações sobre esse gênero ou reporta os alunos a exemplos de situações
que eles já conhecem. A professora atua na organização dos turnos de fala ou na retomada
da questão que está sendo discutida, o que aprofundaremos adiante. Dessa forma, essa
atividade parece estar mais voltada para a exploração do assunto abordado o referendo
apenas, e não para o trabalho com o gênero em questão, como podemos observar no
trecho a seguir:
P.: Gente! Essa semana, no domingo, vai te(r) o quê?
Adr.: Votação.
P.: Referendo, que é o quê? (.) É quando que(r) sabe(r) a opinião da população sobre
determinado assunto. E qual é o assunto que eles querem saber a respeito?
A.: Sobre arma.
P.: Sobre arma.
Pri.: O que quer dizer arma? Explica pra mim, professora.
P.: Arma?
Pri.: É
P.: Revólver.
Pau: Arma que a gente tem na casa da gente ou não?
74
P.:Calma, aí! Uma coisa por vez! Então, o que que sendo votado? O que que é ? Alguém
sabe me dizer?
A.: Sobre o desarmamento.
P.: Sobre o DESARMAMENTO. O que é desarmamento?
Adr.: É desarma(r) o povo que tem arma.
P.: Desarmar é tira(r) a arma das pessoas para que elas não possam mais comprar e não
possam compra(r) munição.
Vale ressaltar que o trabalho com a língua por meio de gêneros é uma discussão
recente. As orientações didáticas disponíveis para esse trabalho são ainda restritas. Brait
(2004) descreve esse movimento no Brasil e aponta que tal discussão chegou até os
professores com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, há cerca de uma
década.
Com isso, o foco da nossa discussão o é a abordagem do gênero oral em si, mas
como desconsiderá-lo altera a atividade; nesse caso, o debate passa a ter o aspecto do
questionário tradicionalmente conhecido na escola para interpretação de texto, o que não
corresponde às características do gênero em questão. A professora centra toda a discussão
na pergunta inicial e sempre retorna a ela, retoma as respostas, fornecendo conclusões ou a
definição como Desarmar é tira(r) a arma das pessoas para que elas não possam mais
comprar e não possam compra(r) munição”.
Há também, uma preocupação em deixar claro o assunto discutido, como se os alunos
não soubessem do que se tratava, voltando toda a atenção da discussão para a sua
questão, e não para os argumentos dos alunos: “Calma, aí! Uma coisa por vez! Então, o que
que sendo votado? O que que é ? Alguém sabe me dizer?”. O “Calma aí! dito pela
professora é uma forma de buscar uma unidade, uma “organização” nas discussões e, com
isso, retornar à questão que os alunos precisam responder. A expressão novamente é
utilizada no trecho a seguir
Calma, aí gente! Nós estamo(s) fugindo do assunto! (.) Vamo(s) voltar pro assunto! Então, qual
é a questão que está sendo discutida? Se a população tem que ser desarmada ou não. Se a
gente é a favor ou não.
Novamente a expressão calma, aí” cumpre a função de assegurar à professora o
seu lugar no discurso pedagógico autoritário dando indícios de que quem controla o que
pode ser dito ali é ela. Para ela, os inúmeros argumentos dos alunos sobre a questão são
formas de fugir do assunto; não percebe ou não aceita que eles possuem uma tese e a
estão sustentando com argumentos. Essa desconsideração da professora parece revelar
que a pauta é o “sim” ou o “não” no referendo e, não, o aprendizado ou o exercício do
debate, o que é revelado no trecho acima. Assim, é o formato de um questionário oral que
predomina na atividade, para o qual só interessam as respostas para as questões feitas pela
75
professora. a problemática abordada pelos alunos, suas opiniões são consideradas fora
do assunto.
Os alunos, no entanto, não se ajustam ao modelo e realmente promovem um debate,
apesar da professora tentar manter uma unidade na discussão, o tempo todo. Eles atuam
no debate com inúmeros argumentos. Entre eles, José e Benedita
12
discutem por um longo
tempo, trazendo vários argumentos para defender sua posição.
José compõe sua argumentação através de narrativas, de sua própria experiência de vida -
vou contar o que aconteceu comigo” - e sempre retomando sua posição ao final de cada
história - “Eu vota(r) a favor de fica(r) o armamento” -, e ainda, reafirmando a defesa da sua
tese para solucionar a questão de segurança, no país: instaurar a pena de morte.
Benedita, por sua vez, argumenta também com base em fatos vividos com um irmão
presidiário, mas é o discurso religioso que sustenta sua argumentação e a discordância das
idéias de José.
Na composição da sua argumentação, emergem várias vozes sociais, em termos
bakhtinianos. O sujeito, dentro dessa perspectiva, está imerso num mundo de vozes e de
relações dialógicas que vão constituindo-o e ao seu dizer, pois se apropria das vozes que
perpassam os discursos ditos, de acordo com Faraco (2003). Nesse sentido, somos
compostos por muitas vozes, jamais por uma única voz e, por isso, segundo o autor, ”[...] o
mundo interior é uma arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas relações de
consonâncias e dissonâncias; e em permanente movimento, que a interação
socioideológica é um contínuo devir” (p. 81), o que indica uma constante e conflituosa
constituição.
Pelo debate, a professora concede uma abertura para os alunos falarem, darem sua
opinião, se posicionarem. Nesse espaço, emergem diversas vozes sociais e sentidos.
Tomando a fala de José, podemos traçar indícios de algumas vozes que a compõem. A fala
sobre os presidiários faz parte de um discurso presente na sociedade civil que critica o
Estado por assumir as despesas dessas pessoas - cabra fica comendo com o dinheiro que
a gente paga imposto”. Em um outro trecho, afirma a mesma idéia sobre os presidiários que
“vivem com o bom e o melhor”. também vozes do discurso jurídico, perpassando seus
enunciados, como por exemplo: “se é [réu] primário”...
12
Para preservar a identidade dos alunos, utilizamos nomes fictícios. José é alagoano, cinqüenta e um
anos, vigilante aposentado, mas continua trabalhando como pedreiro. Conheceu Benedita, colega de classe na
EJA, e se casaram, no início de 2005. Ele participa muito das aulas, faz perguntas, comentários, sempre pede o
auxílio da professora e quando consegue uma oportunidade, recita alguma história mostrando seu lado de
repentista. Por isso, foi convidado para representar a escola no sarau, promovido pela Secretaria Municipal de
Educação, para todos os alunos da EJA.
Benedita é paranaense, cinqüenta e quatro anos, e está iniciando a etapa da EJA pela quarta vez. Nos outros
anos, deixava de freqüentar as aulas antes do término do ano letivo e, assim, retornava no ano seguinte na
mesma etapa. Muitos dos comentários em sala evidenciam sua escolha religiosa e, em todas as discussões,
discorda da fala do marido.
76
com relação aos seguintes enunciados de Benedita, pode-se dizer que são
atravessados por um certo discurso religioso: “A bíblia fala que Deus coloca o
arrependimento em nosso coração”. Pode-se observar também relações de interdiscurso
13
,
ao mencionar uma passagem bíblica sobre a conversão de Paulo: O apóstolo Paulo
mesmo, no tempo da lei. Ele era um (preceptor), ele maltratava o povo e nem por isso
Jesus não salvo(u) ele”. Podemos perceber também outras vozes, como a do discurso
contrário ao desarmamento, que propagava, naquele momento, que a população estaria
vulnerável: porque se os bandidos s(o)uberem que os pais de família estão sem revólver...
[...] mas se os ladrão s(o)ube(r) que a gente desarmado vão faze(r) o que quise(r)”. Na
mídia circulavam informações como essas, colocadas por Benedita, principalmente nos
programas da Propaganda Oficial.
No entanto, como toda essa heteroglossia é tratada na escola? Ao mesmo tempo em
que é dada a possibilidade de falar, “controle” sobre o que pode ser dito. Nesse intenso
movimento de muitas vozes, o discurso da professora é monologizante, ou, como explica
Faraco (2003), marcado por forças centrípetas. Essas forças buscam conter a
multiplicidade, centrar em uma única voz, um único sentido.
Nesse sentido, Bezerra parte de pressupostos bakhtinianos sobre o romance e
assegura que, no modelo monológico, “[...] o monólogo é algo concluído e surdo à resposta
do outro [...] Descarta o outro como entidade viva, falante e veiculadora das múltiplas
facetas da realidade social [...] pretende ser a última palavra” (2005, p. 192). Em atividades
escolares, muitas vezes o professor assume esse modelo monológico que desconsidera o
outro e suas formas de participação.
Nesse episódio, indícios de uma desconsideração das questões apontadas pelos
alunos. Primeiro, quando um dos alunos solicita à professora maiores informações sobre o
local de votação e não sobre a questão do referendo. Essa pergunta acaba ficando sem
resposta. Depois, durante o debate, eles lançam várias opiniões, concepções e idéias que
não são discutidas pela professora. E, ainda, muitas dessas colocações são consideradas
como uma fuga do assunto.
O fato de a professora desconsiderar os alunos, as suas histórias, as suas falas e
preocupar-se extremamente se os alunos saberiam em que votar ou como votar foi que
regulou toda a atividade. Dessa forma, ela não considera, ou subestima o que os alunos já
sabiam sobre o assunto. Supõe que eles conhecerão o assunto da maneira correta, naquele
momento, por seu intermédio. Freire (1984, 1989, 2002) critica esse posicionamento da
13
Interdiscurso, conforme Maingueneau (apud Brandão, 2004) é considerar discursos que se inter-relacionam.
Para Charaudeau e Maingueneau “[t]odo discurso é atravessado pela interdiscursividade, tem a propriedade de
estar em relação multiforme com outros discursos, de entrar no interdiscurso ” (2004, p. 286).
77
escola e propõe o diálogo como uma possibilidade de transcender o monólogo do professor,
no qual só ele tem voz e é autorizado a falar.
O fragmento seguinte aponta o monólogo (em termos freirianos) vivido nessa sala de
aula e indica a quem é permitido falar:
A.: Professora, você quer que desarme?
P.: E você, o que acha? (.) Nem sabe do que se trata.
Nessa fala da professora, além de haver desrespeito ao aluno - Nem sabe do que
se trata” - desprezo pela sua colocação, não resposta à questão, ou seja, a professora
não permite que o aluno ocupe o lugar que pertence só a ela: o de quem pergunta, de quem
ensina (Smolka, 2003). Como pode ocorrer um “diálogo” entre professor e aluno, com
posicionamentos como esse?
O diálogo freiriano critica o monólogo do professor. Para esse autor, o diálogo entre
os envolvidos no processo educacional é uma nova possibilidade para a educação.
Diferentemente de Freire, conforme apontamos no capítulo 3, para Bakhtin (1999), não
monólogo, toda a comunicação humana é dialógica. Para esse autor, a consciência humana
é constituída por discursos ditos, escritos, pelos inúmeros outros e vozes no movimento da
vida. Assim, o diálogo bakhtiniano extrapola a comunicação face-a-face. Ele representa a
seguinte dinâmica, na visão de Faraco:
[...] o Círculo as vozes sociais como estando numa intrincada cadeia de
responsividade: os enunciados, ao mesmo tempo em que respondem ao já-
dito (‘não há uma palavra que seja a primeira ou a última’), provocam
continuamente as mais diversas respostas (adesões, recusas, aplausos
incondicionais, críticas, ironias, concordâncias e dissonâncias,
revalorizações, etc. – ‘não há limites para o contexto dialógico’) (2003, p. 57)
A partir dessa definição, não é possível o monólogo, pois os enunciados estão em
uma corrente ininterrupta da comunicação, ou seja, não primeira e nem última fala, isso
indica que mesmo sem haver um interlocutor aparente, esse enunciado é composto por
outras vozes e em resposta a outros discursos ditos (Faraco, 2003). Todo esse processo
não é pacífico, ele é composto por forças centrípetas e centrífugas. As primeiras buscam
uma centralização sobre o plurilingüismo, as outras fazem o movimento contrário,
procurando destruir as forças centralizadoras.
Outro momento que evidencia essa desconsideração em relação à fala do aluno é
quando a professora encerra a discussão e recomenda várias vezes que os alunos
assistam às propagandas, tragam dúvidas para continuar a conversa, como se não
soubessem do assunto. Através das palavras de Sawaya, em seu estudo sobre a narrativa
oral de crianças da periferia de São Paulo, podemos refletir sobre o posicionamento da
78
professora nessa atividade. “Olhando as crianças, conforme a sua imagem e semelhança, o
professor não tem ouvidos, e o seu olhar, turvo pelo preconceito, tem virado as costas à
fala, à narrativa desses alunos” (Sawaya, 1995, p. 47). Prossegue dizendo que o professor
que não está acostumado a trocar experiências, a ouvir histórias, “[...] recusa a possibilidade
da comunicação, e as crianças voltam para o bairro, para a rua onde sua existência e sua
experiência podem fazer sentido” (Ibidem, p. 48).
O debate era a atividade central nos Círculo de Cultura
14
, fundamentados nas idéias
de Paulo Freire, segundo Brandão (1988). Neles, professores e alunos discutiam,
analisavam temas de seu cotidiano, antes de ler a palavra escrita. Na concepção freiriana,
compreender o mundo pressupõe falar sobre ele, ou seja, “[s]aber narrar é não apenas
exercício de memória, mas é também estimular a tomada de posição. Penso que essa é
uma das características da oralidade” (Freire e Nogueira, 1989, p. 28).
A oralidade como tomada de posição é uma das premissas freirianas, que embasam
os momentos do debate na alfabetização de adultos. Assim, falar nas aulas da Educação
de Jovens e Adultos é uma atividade relevante e que deve preceder o saber escrever. Ao
falar, os alunos trazem para a escola os seus conhecimentos, participam da aula, não são
meros espectadores. No episódio em questão, os alunos trazem para a discussão os
conhecimentos e experiências que conquistaram durante sua vida. José fala sobre a
solução que daria para a violência, sem desarmar a população, pois isso não é solução.
Para acabar com esses problemas é preciso romper com a impunidade para todos.
Mas na sala de aula pesquisada, os alunos falam para quê? A escola considera sua
fala? Pelos pontos destacados, notamos que o debate é um acontecimento esporádico e
relacionado a uma temática em especial. Outro ponto, é que nessa situação o que os alunos
tinham a dizer sobre o assunto não foi tematizado. Nesses moldes, o falar dos alunos está
submetido ao questionamento do professor e a sua aprovação, e não propriamente um
diálogo, nos termos freirianos. Pensamos que deixar falar na escola não é apenas permitir
que os alunos falem em um determinado momento da aula e falem o que a escola espera
ouvir, mas considerar o que eles têem a dizer.
Assim, estarão “pronunciando o seu mundo” que, segundo Freire, é condição para a
transformação.
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem
tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras,
com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é
pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, [...] se volta,
problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles um novo
pronunciar. (1984, p. 92)
14
Círculos de Cultura ou Centros de Cultura são termos usados para denominar as salas de aula formadas pelo
Movimento de Cultura Popular. Sobre isso, ver Brandão, 1988.
79
Assim, é pelo diálogo, pela palavra, que as pessoas atuam no mundo. E a palavra
os torna conscientes de sua posição no mundo e das formas de mudá-lo. Nessa sala de
aula, essa possibilidade é garantida?
5.2- A reescrita: lugar de muitas tensões
Das observações na sala de aula, algumas situações se destacaram. Entre elas,
estão aquelas em que a professora trabalha com a reescrita de textos. Essas atividades,
preparadas pela professora, apresentam uma seqüência semelhante em toda aula. Ou seja,
a professora normalmente inicia a atividade fazendo algumas perguntas sobre o texto que
será lido, faz a leitura desse texto e, em seguida, solicita que os alunos contem a história
que foi lida. Enquanto alguns alunos estão contando, a professora registra na lousa a
história. Ao final desse processo, um texto que foi reescrito coletivamente com a
participação de alguns alunos.
Essa atividade é sugerida pelo PROFA Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores – que foi elaborado pelo MEC – Ministério de Educação e Cultura - e
oferecido aos professores em parceira com os municípios. Trata-se de um “[...] curso de
aprofundamento, destinado a professores e formadores, que se orienta pelo objetivo de
desenvolver as competências profissionais necessárias a todo professor que ensina a ler e a
escrever” (PROFA, 2001a, p. 5).
15
A professora da sala que pesquisamos participou desse
curso e segue as orientações da coordenação pedagógica da EJA, que adota a metodologia
proposta nesse programa e supervisiona a aplicação em sala.
A atividade de reescrita consiste em ler para os alunos um texto e, em seguida, pedir
para eles reescreverem com a finalidade de recuperar “[...] os acontecimentos da narrativa,
utilizando [...] elementos da linguagem que se escreve” (PROFA, 2001b, p. 2). Reescrever,
para o PROFA, é fazer uma nova versão da história lida. Trata-se de uma produção de texto
com apoio, de acordo com os PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais – de Língua
Portuguesa, que seria conhecer a história a ser escrita através da leitura anterior do texto.
Assim, “[a]o realizar essa tarefa os alunos estarão aprendendo sobre o processo de
compreensão de um texto escrito”.
16
15
A partir de 2002, o curso começa a ser ministrado na Rede Municipal em questão, para duas turmas, mas com
o objetivo de ampliar as vagas e se estender a todos os professores da rede. Atualmente, o curso continua
sendo oferecido e seus princípios norteiam a orientação pedagógica e a avaliação do trabalho docente.
16
O PROFA oferece aos professores cursistas uma Coletânea de Textos organizados em módulos, que se
subdividem em unidades compostas por textos. Ver M2U6T4 (Módulo 2, Unidade 6, Texto 4).
80
Outra forma de apropriação da linguagem escrita, para esse programa, é através das
atividades de reconto, que consistem em ler um texto para o aluno recontar em seguida,
preocupando-se com as marcas da escrita na narrativa.
Assim, uma distinção entre reconto e reescrita. Na primeira atividade, espera-se
que o aluno conte a história novamente, recuperando alguns aspectos da linguagem escrita,
mas utilizando-se da modalidade falada, como se fosse uma escrita oralizada. a reescrita
é a escrita de uma nova versão do texto lido. De acordo com o PROFA, essa atividade pode
acontecer de diferentes formas: como produção coletiva, tendo o professor como escriba;
em duplas, sendo que um aluno dita a história e o outro escreve; ou cada aluno produz a
sua reescrita
17
. A escolha da forma como será realizada a atividade está condicionada ao
nível de alfabetização dos alunos; por exemplo, ao formar as duplas para essa atividade, a
professora pode pedir para os alunos que não estão alfabetizados ainda ditarem para o
colega (que e escreve) anotar o texto. Na sala pesquisada, a forma utilizada pela
professora é sempre a mesma, tornando-se uma espécie de modelo alguns alunos ditam
partes da história e ela seleciona e organiza o que será escrito na lousa. Perguntamos por
que ela não propõe outra forma de realizar essa atividade. Após a reescrita, o professor
anota o texto em seu caderno com o objetivo de revisá-lo, em outra aula, com os alunos,
etapa que não costuma acontecer na sala observada.
No episódio que será analisado em seguida, a professora propõe a reescrita da
lenda do Negrinho do pastoreio. Nesse dia, a coordenadora veio visitar a sala de aula.
Assim que entrou, a professora comentou com ela a respeito do repente que o Sr. Jo
havia feito na aula anterior, sobre a mula-sem-cabeça (episódio que será analisado no
próximo capítulo). Ela aproveita, então, a oportunidade para ler a produção do aluno e
convidá-lo para participar do sarau da EJA. Logo depois, a professora começa a aula,
falando sobre a lenda.
Episódio 2
Data: 30/08/2005
P.: Vocês conhecem essa lenda?
A. : Acho que fala sobre cavalo.
((Lê a lenda. Após a leitura, pergunta para a turma:))
P.: Vocês conseguiram entende(r) a lenda?
A.: É muito grande para decorar.
P.: DECORAR? (.) A gente tem que entender para escrever do nosso jeito.
((Os alunos tentam fazer um reconto da lenda, mas se lembram de poucas partes da história.
Em seguida, a professora novamente lê diante da sala, sentada, olhando para os alunos.))
...
((Encerrada a leitura, uma aluna comenta:))
17
Essas orientações são veiculadas nas videogravações do PROFA, que apresentam situações em algumas
salas de aula.
81
A.: É a história de São Longuinho.
P.: Bom, VAMO(S) AGORA FAZER O TEXTO. (.) Como a gente vai escrever essa história para
que a pessoa entenda o que a gente quis escrever?
((José começa a recontar a lenda para a professora.))
Jos.: Era um fazendeiro que morava lá no Sul.
...
((A professora diz para José:))
P.: Depois a [nome da coordenadora] quer vir faze(r) com você [o repente]. Então, gente, o que
nós vamos escreve(r)?
((A professora vai à lousa escrever o que os alunos estão ditando.))
A.:Tem que faze(r) ? ((Pergunta à professora))
P.: Não, depois vocês vão escreve(r).
...
((Nessa atividade, três ou quatro alunos apenas ditam para a professora, os outros se
apressam em copiar.))
P.: Como é que a gente põe o filho do fazendeiro?
A.: Pra fazer maldade.
((A professora escreve na lousa : O filho maldoso do fazendeiro espantou os cavalos.))
...
A.: Estava com cavalo bague?
P.: BAIO. ((Corrige a pronúncia do aluno.))
...
P.: Acabamos? (.) Vamo(s) le(r)? Ve(r) se está completo? (.) Tudo bem, José? Depois você faz
do seu jeito. ((A professora faz referência aos repentes que o aluno costuma fazer.))
...
P.: DONA CÍCERA, NÃO PRECISA [copiar]. (.) JÁ (ES)TÁ FINDANDO?
...
Conforme evidenciado no episódio, após uma única pergunta sobre a lenda, a
professora inicia com a leitura. Logo que termina, pergunta para a turma: ”Vocês
conseguiram entende(r) a lenda?” Esse questionamento da professora nos chama a
atenção, pois, diferentemente das outras vezes em que ele leu uma lenda, essa foi a
primeira vez em que ela procura saber se os alunos conseguiram entender. Por que ela tem
essa dúvida? Seria a pressuposição de que os alunos teriam pouco conhecimento sobre a
lenda, que faz parte do folclore do Sul do país? Mas ela não explora a colocação feita pelo
aluno - “acho que fala sobre cavalo” - e segue para a leitura do texto.
Considerando essas questões, podemos supor que a pergunta da professora emerge
porque ela pressupõe que os alunos conheceram essa lenda a partir da leitura, ou seja, não
a conheceram pela tradição oral, como ocorre com o lobisomem, a mula-sem-cabeça. E, por
isso, ela precisa se certificar de que eles compreenderam o texto lido.
Desse modo, parece que o entendimento do texto escrito está relacionado à
capacidade de decodificá-lo; assim sendo, os alunos alfabetizandos teriam dificuldade de
entendê-lo, pois o decodificam ainda. Nisso pode estar implícita a idéia de que o
alfabetizando compreende um texto lido, somente quando este faz parte do seu repertório
oral (como veremos nos episódios 3 e 4). Se ele não tem informações e conhece a história
pela leitura da professora, então, não é considerado capaz de entender o texto.
82
A partir desses questionamentos, pode ser pertinente uma reflexão: como os alunos
são considerados nessa sala de aula? Durante a entrevista realizada com as professoras da
escola pesquisada
18
, quando lhes perguntei quem é o aluno da EJA, uma delas responde:
[...] normalmente são pessoas muito carentes ou que vieram de lugares muito distantes, ou
moraram em sítio a vida inteira e tiveram que trabalhar e não puderam estudar porque
moravam longe da escola.
Essa fala, em termos bakhtinianos, é constituída por vozes do discurso oficial sobre a
EJA que justifica a existência dessa modalidade, isto é, a escola para adultos é destinada
àqueles que não tiveram oportunidade antes. Esse discurso, no entanto, descreve o motivo
desses alunos não terem freqüentado a escola antes, mas não explica as reais razões do
analfabetismo no Brasil. Enfim, o relato da professora não revela como ela concebe os
alunos da EJA. Isso surge no decorrer da entrevista, indiretamente, quando elas falam sobre
outras questões relacionadas à EJA.
No percurso da entrevista, as palavras fracase espertas são usadas inúmeras
vezes pela professora da sala pesquisada para definir sua turma, no sentido de que
algumas atividades podem ser feitas pelos mais espertos e outras são destinadas aos mais
fracos. Percebe-se que os alunos mais fracos são os alunos que não se alfabetizaram
ainda, e os que já lêem e escrevem são os mais fortes. Sobre isso, vale lembrar que se trata
de uma sala destinada à alfabetização. As professoras desta escola até sugerem uma sala
de pré-alfabetização para esses alunos fracos, pois o rendimento dos mais espertos ficou
prejudicado porque ela “foi buscar lá atrás” os mais fracos.
Em outro momento, a professora comenta sobre o seu planejamento anual para essa
turma, e afirma que sua prioridade com os alunos (fracos e que são considerados
deficientes) é trabalhar apenas o social”, ou seja, a socialização deles; a aprendizagem dos
conteúdos pode ficar para depois, segundo ela. A concepção de aprendizagem
apresentada pela professora é muito restrita. Os alunos que ela julga capazes de aprender
nessa sala são poucos. São os que estão mais próximos de concluir o processo de
alfabetização. Os outros alunos são “muito fracos em sua ótica. A partir disso, essa
pergunta que ela faz para a turma - Vocês conseguiram entende(r) a lenda?” - pode trazer
indícios de que a dificuldade causada no entendimento é provocada pela leitura do texto.
Assim, os alunos teriam dificuldade de entender uma história que eles conheceram pela
leitura de um texto.
O aluno, no entanto, expressa o que é esperado dele nessa atividade, ou melhor, o
que ele necessita fazer para realizá-la bem, como no fragmento a seguir:
18
Entrevista realizada no dia 14/12/2005. Essa entrevista prevista com a professora da sala que pesquisamos foi
realizada com a presença de mais uma professora, conforme comentado no Capítulo 4.
83
P.: Vocês conseguiram entende(r) a lenda?
A.: É muito grande para decorar
P.: DECORAR? (.) A gente tem que entender para escrever do nosso jeito.
Assim, na fala desse aluno, marcas do que ele percebeu sobre o funcionamento
dessa atividade que é uma prática recorrente nesse grupo. Por essa participação, ele
parece notar o que precisa ser feito para ser bem sucedido nessa atividade. Ou seja, é
preciso decorar o texto, saber falar o texto escrito para depois reescrevê-lo. A reescrita está
ancorada, na verdade, não no entendimento do texto, mas na repetição do que está escrito.
A professora não gosta da expressão utilizada pelo aluno. Fica indignada com a
palavra e explica que não precisa decorar, deixando implícito o discurso: fazer do seu jeito e
ressalta que é preciso entender o texto. O que seria esse entendimento do texto para ela? O
incômodo da professora com a palavra decorar pode indicar um repúdio a essa palavra,
relacionada muitas vezes a uma prática da pedagogia tradicional, em especial pelo discurso
pedagógico construtivista. Vale ressaltar que, no material escrito do PROFA, uma
orientação expressa sobre o decorar: “A reescrita é a produção de mais uma versão, e não
a reprodução idêntica. Não é condição para uma atividade de reescrita - e nem é desejável
que o aluno memorize o texto” (PROFA, 2001b, p. 2). Isso pode ser mais um indício que
justifica a indignação da professora com essa palavra, que não poderia fazer parte da sua
prática.
No entanto, a forma como ela conduz a atividade se distancia das orientações dadas
pelo PROFA. Primeiramente, uma nova versão do texto pressupõe algumas alterações, as
quais a professora o aceita durante a atividade, que ela espera uma versão mais
próxima da versão escrita. Outro ponto é que a atividade de reescrita, conforme proposta no
programa, deveria acontecer após sucessivas leituras de textos do nero escolhido, em
diversos momentos, não antes da reescrita. Na situação analisada, os alunos leriam
lendas recolhidas por diferentes autores, ou provindas de diferentes lugares. Recontariam
algumas dessas lendas e depois fariam uma reescrita.
A professora assume o discurso construtivista, principalmente ao contrapor decorar a
fazer do seu jeito como na seguinte fala: “DECORAR? A gente tem que entender para
escrever do nosso jeito”. Ela se apropria do discurso, mas não o incorpora em sua prática.
Durante a entrevista, há uma fala da professora que aponta para uma tensão na apropriação
de discursos e práticas sociais (Smolka, 2000).
Me lembrei de quando você veio fala(r) comigo. E eu disse: “Giovana, não
repare porque eu mesclo tudo, eu junto tudo. Tem hora que tem que voltar
para o tradicional. Então eu volto porque é um tipo de atividade que eles
cansam.” ((referindo-se às reescritas)) (Entrevista com a professora,
realizada em 14/12/2005)
84
O enunciado da professora A gente tem que entender para escrever do nosso jeito”
é perpassado por vozes do discurso construtivista, segundo o qual o aluno deve realizar a
atividade como sabe e como pode. Sempre é permito escrever do seu jeito”, na escola?
Qual é o nosso jeito expresso na fala da professora? É o “jeito” esperado pela escola? Na
fala abaixo, José começa a ditar a lenda para a professora escrever:
Jos.: Era um fazendeiro que morava lá no Sul.
...
((A professora diz para José:))
P.: Depois a [nome da coordenadora] quer vir faze(r) com você [o repente]. Então, gente, o que
nós vamos escreve(r)?
((A professora vai à lousa escrever o que os alunos estão ditando.))
A professora desconsidera a participação de José na reescrita, dizendo que depois ele
faria o repente com a coordenadora, o que não o impediria de realizar as duas atividades.
Com isso, fica implícito: hoje é do meu jeito ou deixe outros alunos participarem; e o repente
(que é do seu jeito) você faz depois. No entanto, a expressão fazer do seu jeito, no
propagado discurso construtivista parece ter o sentido de respeito ao saber dos alunos, à
produção deles, ao estágio em que estão, ao que já sabem e ao que ainda não sabem. Se a
escrita é um bem constituído socialmente e disseminado em uma sociedade letrada, os
participantes dela possuem diferentes condições de acesso ao escrito. Assim, o que é fazer
do seu jeito? É reconhecer essas diferentes experiências com a escrita? E, de toda forma,
essas experiências das pessoas não são sempre sociais?
No referido trecho do episódio, o que ocorre é um silenciamento velado. Ao
desconsiderar o primeiro trecho da reescrita, ditado por José, ela ignora a participação do
aluno nessa aula. Isso fica evidente, quando ela percebe, ao terminar a reescrita, que José
não participou e pergunta se está tudo bem com ele. Aproveita para se justificar, dizendo
que ele faria depois.
Outra questão que se sobressai nesse episódio é como a professora considera a
participação de outros alunos durante a reescrita do texto. Os alunos vão ditando trechos da
história, como nesta parte:
P.: Como é que a gente põe o filho do fazendeiro?
A.: Pra fazer maldade.
((A professora escreve na lousa: O filho maldoso do fazendeiro espantou os cavalos.))
A fala do aluno não foi incorporada ao texto. A professora escreve a lenda conforme
está no livro (anexo 5), mesmo tendo dito que não era preciso decorar, que eles iriam “fazer
o texto”. Por que ela não incorpora essa fala? A escolha dela é determinada pela força que o
escrito tem na escola? Isso diz respeito à apropriação dela de orientações do PROFA de
85
“recuperar as partes escritas do texto”? Não seria por isso que os alunos se recusam tanto a
participar desse “ditado”, no qual o professor escolhe o que deve ser escrito?
19
Com isso, poucos alunos participam dessa atividade, e são sempre os mesmos
alunos, como é percebido pela professora, conforme no episódio 3, no próximo item: “Não
adianta, não. Ontem foi a Maria que falou a história. Essa pequena participação dos
alfabetizandos, recorrente nessa atividade, indica que o momento destinado para aprender
a linguagem que se escreveacaba excluindo os alunos que têm pouco conhecimento do
texto escrito. A atividade realizada desse modo não cumpre sua finalidade; pelo contrário,
coloca a escrita muito distante dos alunos. Considerando as características dessa
modalidade de ensino, na qual muitos alunos trazem experiências de fracasso e
insegurança em relação à escola, atividades conduzidas desse modo não propiciam uma
verdadeira aproximação da escrita.
A atividade de reescrita sugerida pelo PROFA tem o intuito de letrar e atentar para
as características do texto escrito, como condição para a produção de futuros textos. Dessa
forma, a escrita é o centro das atividades propostas por esse programa; inclusive, o reconto
é falado, mas tem a incumbência de recuperar partes do escrito. Como esse curso visa
formar o professor alfabetizador, intensifica suas discussões sobre o aprendizado da
escrita. O espaço para a oralidade dentro desse programa é colaborar para esse
aprendizado enquanto o aluno não domina o escrito. No entanto, esse curso não aborda
discussões sobre a relação entre oral e escrito; considerando que eles se inter-constituem e
são duas modalidades de uso da língua diferentes. A ausência dessas discussões e a
ênfase na escrita podem levar a interpretações como: os alunos devem repetir oralmente o
texto escrito, ditar “partes do texto” (para o professor), mas eles, de fato, supõem que
necessitam decorar o texto lido para poder reescrevê-lo.
Além dessas discussões em torno do processo de reescrever o texto, questões
próprias da oralidade que emergem durante esse “ditado” do aluno para o professor, como
no seguinte trecho:
A.: Estava com cavalo bague?
P.: BAIO ((corrigindo a pronúncia do aluno))
O encaminhamento da professora para a questão é corrigir a fala do aluno
imediatamente. Como foi discutido no capítulo três, a Proposta Pedagógica da EJA assume
a existência de variantes lingüísticas e, a partir disso, aponta como encaminhamento
didático a consideração dessa diferença e o encorajamento para que os alunos falem nas
aulas. A atitude da professora é contrária a essas recomendações. Ela acredita em uma
19
A recusa dos alunos em iniciar a reescrita é problematizada nas análises dos episódios 2, 3 e 4.
86
língua certa e única, na qual falares diferentes representam desvios, erros que necessitam
de correção.Toda essa discussão é amparada pelos estudos da Sociolingüística.
Os professores têm acesso a essas informações, mas a atuação em sala parece
estar distante dessas recomendações. Corrigir a fala do aluno é recorrente durante as aulas
para essa turma. Durante a entrevista, uma das professoras chegou a falar: Como eles vão
continuar usar o dialetinho deles, por isso você precisa da gramática”. Dessa forma, a
escola não desconsidera apenas o que falam, mas como falam e ao fazer isso
desconsidera quem fala. Ao fazer isso, a escola cria um abismo e deixa implícito que eles
nada sabem, nem falar.
20
Sobre isso, durante a entrevista, uma das professoras diz: “Ainda tem o dialeto deles
que a gente tem que respeitar [...]”. Percebe-se que um certo discurso da Sociolingüística,
sobre o respeito às diferentes variedades dialetais perpassa essa fala. Mas, ao dizer “a
gente tem que respeitar”, evidencia-se o quanto essa questão é conflituosa. Ou seja, a
professora conhece essa discussão; por isso, diz tem o dialeto deles” e respeitar”, mas ela
não concorda com isso, o que é perceptível no uso do aindae do tem que”. O que parece
considerar é que os alunos falam errado e, por isso, precisam estudar a gramática, devem
ser corrigidos para aprender o certo, e assim deixar de falar seus dialetinhos”.
Ao final do episódio, um indício de que a apropriação do discurso não é linear, mas
tensa e conflituosa. A professora, que defende os pressupostos ditos acima, usa uma
palavra própria das variedades de seus alunos, desprestigiadas socialmente (“um
dialetinho”, na definição da professora) e não desejáveis para uma situação formal de sala
de aula e para uma professora: “JÁ (ES)TÁ FINDANDO?”.
Enfim, é preciso repensar a abordagem da linguagem nos contextos de formação de
professores. Nesses contextos, muitas vezes, o foco é a escrita, em uma visão grafocêntrica
que desconsidera a modalidade oral de uso da língua, que é a que os alunos mais usam.
5.3- Contar a história: saber o texto escrito?
Episódio 3
Data: 11/08/2005
((A professora inicia a aula retomando o assunto discutido na aula anterior.))
P.: Sobre o que estávamos conversando ontem?
A.: ( )
P.: ONTEM ESTAVA CONVERSANDO SOBRE O FOLCLORE. QUE HISTÓRIA NÓS
CONTAMOS ONTEM? O QUE É LOBISOMEM?
A.: LOBISOMEM ANDA de noite.
P.: Alguém já viu? (.) EULÁLIA.
Eul.: Eu já vi.
20
Ver Melo, 1987.
87
P.: Onde viu?
Eul.: Lá perto de onde eu morava. (.) Ele vira cachorro. Depois ele vira gente.
Jos.: Posso conta(r) a minha história. Se (v)oceis deixasse eu conta(r), se a conversa para(r). (.)
Era uma sexta-feira maior, eu vi uma assombração (...) Pra nós lá a gente fala venta pelo nariz.
((O aluno explica uma expressão usada e continua a sua história. Ao término da história contada
por José, os alunos comentam sobre ela.))
...
P.: Por isso que são chamadas de lenda, porque a gente não sabe. Tem um fundo de verdade e
de mentira.
((Os alunos continuam contando as histórias que conhecem.))
P.: Dá medo, essas coisas.
Jos.: Eu vou fala(r) uma coisa, vocês vão acha(r) que vão duvida(r). O cabelo de mulhe(r) vira
cobra.
Ben.: É macumbaria.
P.: Ah, José! (.) É verdade, Seu Joaquim?
((Muitos alunos queriam falar.))
Ben.: Você acha que Deus que criou nós tão formosa pros nosso(s) cabelo(s) vira(r) cobra? Nós
somo(s) imagem e semelhança de Deus.
Jos.: Sabe que aquelas água cai crina de égua fêmea.
A.: Diziam que não podia lava(r) a cabeça na sexta-feira maior que [o cabelo] virava cobra.
P.: Como dizia minha vó. Não podia faze(r) nada na sexta-feira santa.
Ben.: Jesus é maior que tudo. A gente o tem medo de mais nada. Antes, quando eu não
conhecia a palavra, eu tinha. (.) O que é pecado é pecado, seu!
...
Ben.: Superstição.
P.: Vamo(s) volta(r) pra nossa história. Vamo(s) fica(r) quietinho(s) que eu vou conta(r) a história.
((Lê a história. Lê as partes do livro e mostra para os alunos a ilustração.))
A.: Nós vamos copia(r) a história?
P.: Hoje nós vamos faze(r) diferente. ((Escreve o nome da história na lousa.)) Agora vocês vão
conta(r) a história.
A.: Não, mas eu não sei a história.
P.: Não adianta, não. Ontem foi a Maria que falou a história. (.) Então eu vou le(r) o livro de
novo. ((A professora lê a história novamente.))
P.: Como a gente pode conta(r) essa história de uma outra maneira, de um jeito que a pessoa
entenda.
((Um aluno começa e a professora interrompe.))
P.: Vamos pôr ordem no nosso pensamento.
((Um aluno começa a contar, fazendo gestos.))
P.: Vamos devagarzinho para conta(r) a história.
A.: Mas, eu já falei, professora.
P.: Não, vamos devagarzinho.
((Um aluno começa a ditar.))
Jos. : Na quaresma ((o aluno pronuncia a palavra de uma outra forma))
P.: Só na QUARESMA?
Jos.: É. Segundo a tradição, é.
((Enquanto a professora escreve na lousa.))
Jos. .: Santa (.) Quinta para Sexta-feira... Santa. ((Ditando.))
((A professora não escreve “santa”.))
P.: Como é o lobisomem? A gente não vai fala(r)?
...
((Os alunos continuam ditando a história para a professora. Assim que terminam a produção, a
professora pergunta para os alunos.))
P.: Será que dá para entende(r) a nossa história?
((Em seguida, lê a história para eles.))
Jos.: Tinha uma história de lobisomem que dizia assim “Recitou” no canto da sala.
((A professora continua falando mais alto. Não dá atenção.))
P.: Vamo(s) tenta(r) le(r) junto? (.) Calma, Marcos! ((A professora interrompe o aluno que iniciou
a leitura antes dos colegas)) (.) O LO-BI-SO-MEM...
((Lêem o texto todo assim, separando em sílabas.))
P.: ((Lendo o texto.)) Ele apa-re-ce na noi-te de lua che-ia de quin-ta pa-ra sex-ta-fei-ra =
88
Jos.: = Santa.
((Continua a leitura da mesma forma. Assim que termina a leitura, a professora pergunta.))
P.: Se a professora [nome de outra professora] ouvir essa história, ela vai entende(r)?
A.: Não tem fim.
P.: O que faltou?
Jos.: A sexta-feira santa que você não pois. (.) Que eu saiba, ele só aparece na sexta-feira santa,
na quaresma.
A.: Pra nós ele aparece na quaresma.
((José começou a contar outros “causos”. A professora, enfim, completou na lousa: santa.))
Nesse episódio, temos mais uma atividade de reescrita. Nela, a professora altera a
seqüência adotada normalmente, que consiste na leitura da história e depois, na reescrita
coletiva desse texto. Antes dessa leitura, ela pergunta para os alunos sobre o assunto da
lenda: o lobisomem. Ao perguntar “Alguém viu?”, abre espaço para os alunos falarem
sobre o assunto e apresentarem suas crenças e casos. Essa questão, no entanto, apresenta
uma confusão, pois a professora não pergunta o que sabem sobre a lenda, trata-a como se
fosse real. Por que a professora faz a pergunta desse modo, ao invés de perguntar se eles
conhecem a lenda do lobisomem?
A pergunta, no entanto, permite que os alunos contem suas experiências com/sobre
o lobisomem e outros acontecimentos fantásticos e inexplicáveis. Dessa forma, os alunos
participam intensamente da atividade contando inúmeras histórias sobre essa figura
folclórica. Alguns contam situações em que viram o lobisomem, outros relatam apenas que
algum parente viu e contou o que aconteceu. Assim, eles relatam diversas versões da
lenda, estabelecem comparações entre elas, lembram-se de personagens da infância e de
pessoas que contavam esses “causos”, comentam sobre outros mitos e histórias de
assombro. Os alunos falam com os colegas do lado, com o professor, pois cada um tem
algo para falar; a empolgação é tamanha que é difícil para o professor coordenar as falas.
21
Isso fica claro quando José quer contar a sua história e requer a atenção da turma:
Jos.: Posso conta(r) a minha história. Se (v)oceis deixasse eu conta(r), se a conversa para(r). (.)
Era uma sexta-feira maior, eu vi uma assombração (...) Pra nós lá a gente fala venta pelo nariz.
A sala toda participa dessa atividade, inclusive os alunos que são considerados
especiais, que, em outras situações, realizavam atividades diferentes do restante da turma.
Nessa atividade, a professora solicita a participação de Eulália
22
, ao chamá-la para
responder a sua questão. Como a participação desses alunos na sala de aula é restrita, por
que Eulália foi escolhida para dar essa resposta: se tinha visto o lobisomem? Por que,
21
A riqueza da participação dos alunos não fica explícita na transcrição do episódio, pois esta aula foi
registrada no diário de campo, e não consegui anotar muitas das falas; várias histórias eram contadas
ao mesmo tempo.
22
Eulália já está na escola há alguns anos e faz parte do “patrimônio da EJA”, segundo os professores dessa
escola. Ela e seus dois filhos estudam na mesma sala, e são considerados casos para inclusão. Apenas um
deles possui um diagnóstico que indica uma necessidade especial.
89
nesse momento , foi garantido um espaço para a participação dessa aluna? Isso nos chama
a atenção, pois, em outros momentos das aulas, quando ela falava, não tinha a
credibilidade da professora nem dos colegas. O que essa contradição no posicionamento da
professora indica?
A questão feita pela professora poderia ser apenas uma motivação para o trabalho
com a lenda, mas perguntar sobre o lobisomem nesse contexto pode indicar sua concepção
de alunos da EJA. Desse modo, quem poderia ter visto o lobisomem? Essa questão seria
feita para outros grupos, como o de universitários, por exemplo? Certamente, não. Nesse
questionamento, espresente como a professora concebe os alunos da EJA: como são
normalmente pessoas não ou pouco escolarizadas, provenientes de ambientes rurais,
integrantes de uma cultura predominantemente oral, em geral estigmatizada, acreditariam
em lobisomem. Pode ser por isso que a atividade é iniciada desse modo.
O começo da discussão e a participação dos alunos indicam um espaço para as
versões orais da lenda? O que é feito com essas histórias contadas pelos alunos no
decorrer da atividade? Qual a finalidade de pedir para os alunos falarem sobre o assunto?
No episódio, em um determinado momento, a professora fala: “Vamo(s) volta(r) pra nossa
história. Vamo(s) fica(r) quietinho(s) que eu vou conta(r) a história”. E assim, procura
silenciar os alunos para ler a lenda escrita. Com isso, a professora deixa marcados dois
momentos distintos da atividade: de um lado, a história dos alunos (oral), e de outro, a
versão da professora (escrita), que ela chama de “nossa história” ou “a história”. A condução
dessa atividade lembra os postulados da grande divisão que viam fala e escrita de forma
dicotômica. Aqui fala e escrita são tidas desse modo, bem separadas, sem possibilidade de
ocupar o mesmo espaço da atividade, pois a história contada pelos alunos não é retomada,
nem incorporada na escrita coletiva da lenda. Ela permanece no momento de introdução da
aula.
Em nenhum momento, a professora parece considerar que o texto em questão (a
lenda) é um gênero oral que nasceu na cultura popular e, por isso, possui diferentes
versões, que foram recolhidas e transcritas para permanecer em outro registro: a escrita.
Esse percurso de um gênero oral para um escrito não é mencionado, pois parece não ter
relevância. Assim, as diferentes versões não são trabalhadas, ocupam o lugar de preâmbulo
para a versão escrita. Para Marcuschi (2005), a fala e a escrita podem ser vistas em um
continuum, ou seja, a lenda pode acontecer pela modalidade oral e escrita (assim como
gêneros predominantemente escritos que se apresentam de forma oralizada), mas, na
escola, assim como em outros contextos de uma sociedade letrada, essa relação não é
harmônica. Desse modo, o ensino da escrita, ancorado nessa perspectiva, poderia
comparar os gêneros (oral e escrito), as diferentes versões da lenda, partir das histórias
contadas para escrever uma coletânea de histórias desse grupo. E assim, validar essas
90
versões, as diferentes modalidades de uso da língua (oral e escrita) e respeitar as
diferenças que compõem cada uma.
Porém o que prevalece como centro dessa atividade é uma versão escrita da lenda
a que se torna oficial). Segundo alguns autores como Gnerre (1985) e Marcuschi (2001,
2005), a escrita possui uma supremacia, principalmente nas sociedades letradas, conforme
comentado no capítulo 2. Sobre isso, Gnerre (1985) traz uma importante contribuição ao
definir sociedades grafocêntricas, como as que estão centradas no escrito, ou seja,
contextos em que a escrita é extremamente valorizada. Exemplos disso são os mitos em
torno da alfabetização, como: saber ler e escrever como sinônimo de melhores condições de
vida, de desenvolvimento econômico do país, eliminação da pobreza e da marginalidade,
entre outros (Gnerre, 1985; Marcuschi, 2005). Todas essas considerações sobre a escrita
refletem-se na sala de aula, ao se validar nesse espaço apenas a versão escrita e lida pela
professora.
Assim, a escola, que tem como finalidade disseminar o escrito, costuma atuar
pautando-se em preceitos grafocêntricos e supervalorizar a escrita, ou mesmo reconhecer
essa modalidade de uso da língua. Desse modo, as histórias contadas pelos alunos, os
comentários que fizeram sobre fatos acontecidos e ouvidos em suas vivências parecem não
ser legítimos nessa instituição. A legitimação da história é garantida pela voz da pessoa
autorizada pela escola e pela sociedade o professor que pode contar a história escrita.
Na sua fala Vamo(s) fica(r) quietinho(s) que eu vou conta(r) a história- uma relação
de poder entre classes sociais, entre aqueles que dominam o escrito e os que não dominam.
Assim, a posição da professora referente à cultura de seus alunos pode ser discutida a partir
da contribuição de Freire e Macedo (1994) sobre a tensão vivida na escola entre o saber
dos alunos e o saber escolar. Além disso, uma tensão no posicionamento do professor
frente à cultura dos alunos que pode ser mais ou menos acentuada, dependendo da sua
concepção. Nesse sentido, essa relação mostra-se muito conflituosa, em um
posicionamento de embate mútuo. No entanto, em alguns momentos, a professora
aproxima-se da história dos alunos, como quando fala medo, essas coisas”,
verbalizando sua crença e expondo seu ponto de vista pessoal. Outra fala que mostra essa
aproximação é Como dizia minha vó. Não podia fazer nada na sexta-feira santa”, em que
ela compartilha com os alunos as crenças que estiveram presentes no seu contexto familiar.
Com isso, notamos que o posicionamento da professora não é linear e que seu dizer é
atravessado pelas palavras dos alunos e de outros que fizeram parte de sua história.
Nessa sala de aula, as histórias (a lida e as contadas) não possuem um valor
equivalente. A história lida pela professora ocupa o centro da aula, mas para os alunos, ela
parece estar muito distante, como no fragmento a seguir:
91
P.: Hoje nós vamos faze(r) diferente. ((Escreve o nome da história na lousa.)) Agora vocês vão
conta(r) a história.
A.: Não, mas eu não sei a história.
P.: Não adianta, não. Ontem foi a Maria que falou a história. (.) Então eu vou le(r) o livro de
novo. ((A professora lê a história novamente.))
Nesse momento, a professora parte para a reescrita e pede para que os alunos
contem a história que ela acabou de ler. Os alunos se recusam a participar; um deles alega
não saber a história. Por que isso aconteceu se eles falaram tanto sobre o mito em
questão? Por que alegam não saber “a história”? Ambas aluna e professora referem-se
à história como “a história”. Elas não precisam explicitar o referente. Está implícito, pela
história de relações, que se trata da versão escrita, e não de outras.
Esse não saber a história não é o que aconteceu no momento anterior, pois se trata
de uma narrativa que todos conhecem, que faz parte da cultura deles. Muitos provêm da
zona rural, de diversas regiões do país (Nordeste, Sul, Sudeste), onde é comum ouvir
“causos”, histórias de assombração como esta. E, na fala da professora o adianta, não.
Ontem foi a Maria que falou a história”, indícios de que a ‘reclamação’ dos alunos é
rotineira. O que os intimida na realização dessa reescrita? É o não saber ler e escrever? O
lobisomem que ataca, devora e cala pode ser visto como uma metáfora do texto escrito.
Outro ponto interessante é como a professora interpreta esse “não saber” dos alunos
e o que ela faz para reverter isso. A solução adotada, na maioria das ocasiões observadas,
é muito parecida: ler novamente o texto, reportar-se única e exclusivamente ao texto escrito.
Em nenhum momento, nesse episódio, ela retoma as lendas contadas antes da leitura, não
estabelece relação entre a história lida e as contadas. Nem tampouco pergunta: o que vocês
não sabem? Tudo isso indica que a professora pressupõe que a dificuldade dos alunos está
na reprodução do texto escrito. Por que os alunos teriam dificuldade em realizar essa
atividade?
Assim, a lenda escrita, que amedronta os alunos, representa o escrito nesse contexto.
A forma como ela é tratada nessa sala de aula mostra o valor que ela tem. Desse modo, em
outra situação fica clara a importância da produção escrita nessa sala de aula, em que não
reescrever a história implica uma atividade incompleta:
Adr.: Marlene, você já contou essa história!
P.: Não.
A.: Você já contou, sim.
P.: Mas a gente não reescreveu ela?
A.: Não.
((A professora continua a leitura. pausadamente e vai mostrando as figuras do livro. Assim
que termina a leitura, fala com a aluna Adriana.))
P.: Adriana, já que você sabe a história, então, me conta a história.
Adr.: Eu não sei, não, professora.
P.: Então, quem é que vai me conta(r) a história?
A.: A gente tem que conta(r) do jeito que ta aí [no livro], no caderno?
92
A pergunta da professora - Mas a gente não reescreveu ela? - traz evidências da
relevância da escrita nessas atividades. Dessa forma, todo texto lido precisa ser reescrito,
seguindo o mesmo procedimento, a mesma seqüência. Isso na ótica da professora, pois o
PROFA recomenda outras possibilidades para as atividades com o texto, como o reconto. É
possível recontar oralmente a história, ouvir várias vezes a leitura da mesma, para depois
reescrevê-la, o que pode ser feito individualmente, em duplas ou no coletivo. Mas,
independente da modalidade (oral ou escrita), o texto escrito é a base dessas atividades,
mesmo no reconto; esse é o enfoque dado pelo programa em questão.
Ainda sobre esse episódio, o posicionamento da professora sobre a reescrita
indícios para os alunos do que realmente vale nessa sala de aula: o texto escrito. Isso
emerge nas situações observadas, quando, por exemplo, um dos alunos diz: A gente tem
que conta(r) do jeito que ta aí [no livro], no caderno? Ou quando outro responde a um
questionamento da professora:
P.: Vocês conseguiram entende(r) a lenda?
A.: É muito grande para decorar.
Nas duas falas, os alunos demonstram saber que precisam contar a história como está
no livro para realizar essa atividade. Isso pode explicar porque muitos alunos se calam
nesse momento, pois é uma escrita oralizada que se espera, e o apenas o enredo da
história. Será que “aprender a linguagem que se escreve”, segundo o PROFA, leva o
professor a esperar do aluno “partes do texto escrito” e desconsiderar o conhecimento de
mundo que eles haviam partilhado oralmente? Isso colabora para o aprendizado do escrito
ou promove um distanciamento ainda maior deste?
A forma como a escrita circula nesse ambiente escolar, indica que a prática dos
professores se pauta no modelo autônomo de letramento, segundo Street (Cf. Kleiman,
1995), por considerarem a escrita como um sistema autônomo, independente do seu
contexto de produção e, por isso, é ensinada por ela mesma. Ou seja, desconsidera-se a
finalidade do ato de escrever, os usos da escrita além da escola; escreve-se para aprender
a escrever apenas. Com esse posicionamento, os postulados da grande divisão são
reafirmados, nos quais fala e escrita estão polarizadas.
Aprender a escrita, reconhecer as suas características implica conhecer as diferentes
situações em que ela é usada, de acordo com o modelo ideológico de letramento, como foi
discutido no segundo capítulo. Para esse modelo, a escrita não é conhecida apenas na
escola; pelo contrário, ela circula e constitui-se nas diferentes práticas sociais, nos
diferentes eventos de letramento, como por exemplo, os rituais religiosos.
93
Sobre a aprendizagem da escrita, Vigotski (1984) alerta que esta deve ser tratada
como um bem cultural, como uma forma de linguagem, plena de significado(s), e não como
mera repetição das letras e das palavras, através de um aprendizado mecânico.
As atividades de reescrita fazem parte das atividades para a alfabetização. Se não
um processo mecânico de memorização das palavras, nem um trabalho que considere a
escrita como produto cultural, o que é feito na alfabetização?
Então, as atividades acabam somente sendo realizadas para se seguir as orientações
de oferecer uma alfabetização baseada em textos? As recentes orientações, trazidas pelos
PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e a Proposta Pedagógica da Educação para
Jovens e Adultos, indicam a alfabetização como um processo que deve considerar os usos
sociais da linguagem oral e escrita. Para isso, uma possibilidade para se repensar o trabalho
com a linguagem seria considerar elementos da teoria dos gêneros discursivos proposta por
Bakhtin (1992), como foi apresentado no primeiro capítulo. Desse modo, se o intuito da
escola é possibilitar aos alunos diferentes práticas de letramento e resgatar aspectos das
que eles participam fora da escola, o trabalho a ser feito deveria proporcionar um contato
com a leitura e a escrita nas diferentes situações, e não procurando realçar “partes do
escrito”.
A forma como a escrita é tratada nessa sala de aula, evidencia o poder que ela tem
nesse contexto. Isso não ocorre ao enfatizar a história escrita em detrimento da falada,
mas por outras relações que podemos perceber que se estabelecem entre elas durante as
atividades. Uma delas diz respeito à relação que se estabelece na equação oral/escrito: a
primeira vista como o lugar do mítico, irracional e a segunda, pelo contrário, como a
representação da racionalidade.
Tal mito, discutido por autores como Barthes e Marty (1987), Gnerre (1985) e
Marcuschi (2005) e comentado no segundo capítulo, surge a partir de um processo
histórico que atribuiu poderes ao escrito. A racionalização do pensamento não nasce com a
escrita, mas com o surgimento da imprensa, que disseminou esse pensamento pela escrita,
levando à construção de uma relação próxima entre escrita e conhecimento racional,
segundo Barthes e Marty (1987). Essa relação foi fortemente consolidada, a ponto de a
escrita ser considerada como a produtora da racionalidade, e conseqüentemente a fala,
como o oposto, como o espaço do mito, do irracional.
Sobre isso, Ong (Cf. Havelock, 1995) em um dos primeiros estudos sobre a relação,
aponta que muitos dos conhecimentos filosóficos foram produzidos pela oralidade. A
retórica, disciplina predominantemente oral, imperou como metodologia de ensino durante
muito tempo, por exemplo, na educação das elites. Mas para o olhar grafocêntrico isso
parece ser desconhecido ou, assim, pretende ser. Da mesma forma, a escrita também está
relacionada ao mítico em muitas situações.
94
A consideração apontada no segundo capítulo, do oral como disseminador do
conhecimento irracional e o contrário com o escrito, pode ser vista no episódio em questão.
A forma como a professora introduz o trabalho com a lenda traz um indício dessa relação
histórica. Como esses alunos usam apenas a fala para expor seu conhecimento, não
escrevem ainda, e não lêem autonomamente, é como se soubessem somente o que é
veiculado pela oralidade. Pois, como foi discutido no episódio anterior, na concepção desta
e de muitos professores de turmas de alfabetização (de adultos e crianças), é capaz de
compreender um texto escrito aquele que o decodifica, assim, os alunos teriam acesso
aos saberes pela oralidade. Eles não teriam conhecimentos relevantes antes do contato
sistemático com a leitura e nem teriam seus conhecimentos anteriores se entrecruzando
com os novos. Marca disso é o fato da professora ler tantas vezes o mesmo texto, em
outras atividades de reescrita, quando os alunos mostravam dificuldade para reescrevê-lo.
Na maioria dos episódios, o problema é a não leitura, como se a habilidade de interpretação
estivesse estritamente relacionada com a decodificação. Ou seja, na concepção da
professora, os alunos não entendem um texto escrito que não é lido porque não dominam o
código convencional. São evidências de que possuem apenas o conhecimento oral e que
não teriam acesso a outros conhecimentos. E, ainda, a concepção de oralidade que se
evidencia aqui é de uma oralidade pura, ou primária (Cf. Ong, 1998), não presente nas
sociedades letradas. (aqui, se quiser, é interessante falar mais um pouquinho de letramento
– pode trazer o par, para Marcuschi)
A professora parece acreditar que os alunos têm, então, um tipo de pensamento mítico,
distante do racional veiculado pela escrita. O lobisomem pode ser trazido para dar
motivação, mas a crença dos alunos é tida como irracional. Quando os alunos contam os
seus “causos”, como no trecho abaixo, qual é a reação da professora?
Jos.: Eu vou fala(r) uma coisa, vocês vão acha(r) que vão duvida(r). O cabelo de mulhe(r)
vira cobra.
Ben.: É macumbaria.
P.: Ah, José! (.) É verdade, Seu Joaquim?
A professora a pergunta a um outro aluno sobre a veracidade do fato relatado por
José. Tratar essas questões como verdade ou mentira permeia toda a condução da
professora. Ela sabe que são contos fantásticos, porém não um acolhimento dessas
histórias e uma discussão das mesmas, que poderia levar a tratá-las como contos presentes
na tradição oral da humanidade, como histórias contadas para orientar conduta moral de
um determinado grupo, como as fábulas, por exemplo.
Trata a questão apenas no âmbito de ser verdade ou mentira, talvez acreditando ser
papel da escola esclarecer os ignorantes, livrá-los de suas crenças irracionais. Por isso
que são chamadas de lenda, porque a gente não sabe. Tem um fundo de verdade e de
95
mentira”. Perguntamos: o que é fictício, mas é escrito, está nos livros, é valorizado como
bem cultural como os romances, como literatura e criação da humanidade, inclusive os de
realismo fantástico, por exemplo. E o que é fictício, mas tem origem na tradição oral de
pessoas simples, da zona rural, como é tratado?
Para Freire (1984), o processo educativo deve partir dos conhecimentos que os
alunos possuem, ou seja, acolher esse conhecimento como objeto de ensino. Mas o autor
alerta que se deve partir desse saber e não permanecer nele. É preciso considerar,
valorizar, respeitar esses conhecimentos, mas promover o diálogo com outras informações.
Essa é a função da escola, pois os alunos precisam ter acesso a outros conhecimentos
produzidos pela humanidade. Desse modo, os alunos terão acesso a determinadas
informações e bens culturais somente na escola. Assim, os mitos poderiam ser recolhidos e
escritos como histórias da turma, como ficção integrante da literatura oral e o como um
fato constatado “que não adianta explicar”.
Com o espaço para os contos, José, aproveita para contar o que sabe, mas supõe
que não terá a credibilidade dos ouvintes, ao dizer:
Jos.: Eu vou fala(r) uma coisa, vocês vão acha(r) que vão duvida(r). O cabelo de mulher vira
cobra.
Ben.: É macumbaria.
...
Ben.: Jesus é maior que tudo. A gente não tem medo de mais nada. Antes quando eu não
conhecia a palavra eu tinha. (.) O que é pecado é pecado, seu!
...
Ben.: Superstição.
Aqui a rejeição da crença é feita pela aluna Benedita que chama o fato relatado
por José de macumbaria, superstição”. Sua análise é sustentada por uma outra crença,
porém mais validada: a crença religiosa. A aluna se apropria de um certo discurso religioso
que destitui a lenda, ou a crença na lenda, por parte de José (assume que quem acredita
em lendas, não crê em Deus). A diferença entre elas é a crença religiosa teve um percurso
histórico que a consolidou como uma quase não-crença, pelo poder institucional desta na
sociedade. O que não ocorre com as crenças populares. Assim, até entre as crenças um
diferencial que também pode ser associado às relações que se estabelecem com o oral e o
escrito e os poderes que as envolve. Por isso a crença de Benedita fundamentada pela
“palavra” (forma usual de nomear a Bíblia ou as Sagradas Escrituras) - Antes, quando eu
não conhecia a palavra- parece ser mais racional do que as crenças populares, pois está
pautada em escritos e por instituições que a legitimam.
A concepção de aluno da EJA e dos conhecimentos que possui perpassam esse
episódio em diferentes momentos. Em um deles, outro indício de como a professora
concebe a sua forma de pensar:
96
((Um aluno começa e a professora interrompe.))
P.: Vamos pôr ordem no nosso pensamento.
O que significa pôr ordem em nosso pensamento”? Essa fala nos remete à sua
concepção de linguagem, ou seja, para ela a linguagem é a expressão do pensamento.
Assim, para eles contarem ordenadamente precisam colocar o pensamento em ordem. E
por que o pensamento deles o está em ordem? Ela parece considerar que a forma de
contar desses alunos é desordenada, ou seja, eles precisam melhorar a forma de falar a
história. Este pode ser um indício de como ela vê também o seu pensamento.
Ainda, ao final desse episódio, emerge outro conflito que indícios da tensão entre
oral e escrito, na escola. No momento do reconto, o aluno dita para o professor escrever
Quinta para Sexta-feira... santa”, mas a professora não escreve santa”. Quando a
professora o texto reescrito para a turma, o aluno fala santa”, percebendo que a palavra
não foi escrita, e reclama, pois para ele e para os colegas essa é uma informação
imprescindível - o lobisomem só aparece nessa noite.
Indagamos: como a escola considera os conhecimentos populares que estão fora
dos livros e presentes na tradição oral. Além da palavra santa não estar no texto do livro, ela
representa uma crença popular que acaba sendo ignorada pela professora e ganha o
estatuto de escrita pela exigência dos alunos que não permitiram esse apagamento.
Para finalizar, no seguinte diálogo entre professora e pesquisadora após essa aula
apresentam-se indícios fortes para algumas questões colocadas no inicio desse capítulo:
Por que e para quê os alunos falam na escola? O que é feito com o que é falado pelos
alunos?
P.: Você viu, que absurdo, cabelo vira(r) cobra?! E eles acreditam nessas coisas e não
adianta explicar.
Gio.: É interessante, as histórias que eles contam.
P.: Hoje deixei eles falarem porque sei que te interessa.
Assim, alguns indícios de como o aluno da EJA é visto em sua sala de aula de
uma sociedade letrada. Nesse contexto, seus saberes o considerados crenças
enraizadas. Não adianta explicar”, segundo a professora. Não possibilidade de
racionalidade, pois, nessa lógica, os conhecimentos válidos são veiculados pela escrita,
apenas. Assim, quem o sabe escrever nessa sociedade, não tem acesso a esses
conhecimentos. Para Oliveira (1995, 1999), esse é um enfrentamento de duas culturas que
possuem formas de pensar diferentes. A diferenciação entre alfabetizados e não-
alfabetizados em nossa sociedade, não se dá apenas em saber ou não a escrita. Tal
distinção é marcada pelos modos de pensar que são típicos de cada cultura e que têm
diferentes valores na sociedade. O modo de pensar predominante nas grandes cidades é
organizado pela escrita ensinada nas escolas que desconsideram outras formas além desta.
97
Isso pode contribuir para a constituição da tensão, que vimos discutindo, que ocorre dentro
da escola: o pensamento pautado numa cultura predominantemente oral, de um lado, e em
uma cultura escrita, de outro.
Diante das colocações apresentadas nesse episódio, nota-se que a relação entre a
fala e a escrita na escola é tensa por inúmeros fatores, não sendo uma mera tensão entre
modalidades diferentes de uso da língua. Nelas perpassam valores e julgamentos sociais
acumulados no decorrer dos tempos, que consideram a escrita mais poderosa. Entre eles
está o momento em que não saber ler e escrever passou a ser uma forma de distinção
social que produziu os analfabetos, os sujeitos da negação, segundo Oliveira (1999). Essas
pessoas que dizem eu sou um nada ou eu sou um cego. E o que a escola faz com isso?
98
Considerações finais
Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas
mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade
maior. É o que a vida me ensinou.
João Guimarães Rosa
As palavras de Guimarães Rosa indicam a incompletude do humano, que também é
discutida por estudiosos como Vigotski, Bakhtin, que colaboram para a concepção da
constituição do humano e da linguagem que ampara esta pesquisa. Na tentativa de
“encerrar” a discussão realizada no limite desse estudo, procuramos traçar algumas
considerações sobre a relação entre a oralidade e a escrita na escola que possam de
alguma forma orientar o olhar dos profissionais que atuam na educação. Para isso é
importante retomar a noção de humano como um ser inacabado e que se interconstitui
continuamente, pois na atividade humana não linearidade porque sempre a
possibilidade de se re-inventar, re-criar.
As análises realizadas no capítulo anterior abordam situações escolhidas entre todas
que foram observadas no percurso da pesquisa. A princípio, o intuito era investigar o
trabalho realizado com a oralidade na escola, especificamente, na Educação de Jovens e
Adultos. Mas, após algumas observações, a questão inicial modificou-se e, a partir daí,
passou a nos interessar a fala e a escrita em relação. Observar essa questão na EJA
justifica-se pela relevância dessa relação nesse momento da escolarização e pelas
peculiaridades dessa modalidade de ensino.
Assim, a tensão entre o oral e o escrito na alfabetização de jovens e adultos foi vista
e analisada em diferentes momentos da dinâmica escolar. Na análise do corpus, observam-
se situações pedagógicas que intensificaram a tensão entre fala e escrita (episódio 3),
principalmente, pelo trato acentuado dado à escrita, polarizando-a com a oralidade. Outras
situações (com a do episódio 2) abordam essa centralidade do escrito nas atividades
escolares, especificamente na reescrita, e nos documentos e programas destinados ao
trabalho com alfabetização. Dessa forma, o espaço do oral, na maioria das vezes, está
atrelado ao desenrolar das atividades escritas, como uma prévia delas, e com um fim nas
mesmas. Quando o oral é a modalidade usada para a atividade, as especificidades dos
gêneros não são trabalhadas e as falas dos alunos, desconsideradas (episódio 1).
99
Por esses encaminhamentos no trabalho com a linguagem em sala de aula, a
relação entre fala e escrita mostra-se polarizada. Mas o que fazer com essa tensão em sala
de aula? Ou seja, como tratar a tensão constituída entre a fala e a escrita escolarizadas e as
variedades lingüísticas faladas pelos alunos, normalmente desprestigiada socialmente,
juntamente com o fato de não saber ler e escrever , apesar de participar de eventos de
letramento ?
Para apontar algumas implicações pedagógicas, um novo episódio conduzirá as
discussões. Neste, a professora propõe mais uma atividade de reescrita. O texto que será
reescrito é outra lenda: “A mula-sem-cabeça”. A atividade apresenta um encaminhamento
diferente, comparado às outras vezes em que foi realizada nessa sala de aula.
Episódio 4
Data: 17/08/05
P.: O que vocês sabem sobre a lenda?
((Os alunos ficam em silêncio.))
P.: Nada, NADA?
Eul.: É compadre que ando(u) com a comadre.
P.: É?
A.: Lá onde nós morava, tinha uma moça muito bonita. E virou a mula-sem-cabeça e saiu
correndo. Não pode conta(r) pra ninguém. É igual a história do lobisome(m) porque não
pode conta(r) quem é a mula. (.) A pessoa que vira lobisome(m) é uma pessoa quieta,
amarelada...
((Um aluno contou mais uma história sobre lobisomem.))
A.: A minha cunhada Dita conta essa história. Quando ela era pequena foi pega por um
lobisomem...
Mar.: Lá na minha região, lobisomem e mula-sem-cabeça existe. Isso eu sei.
((Os alunos continuam contando várias histórias sobre lobisomem, o poder das rezas -
“reza braba” - entre outros. Contam que muitas das histórias foram ouvidas; outras
realmente aconteceram com eles, conforme garantem.))
A.: Não vai passa(r) lição?
P.: Isso não é lição?
...
((A professora então começa a ler a história. uma parte e mostra a ilustração do
livro.))
...
((Escreve na lousa: A MULA SEM CABEÇA. E propõe a escrita da história para os
alunos que respondem.))
A.: Não entendi a história.
P.: Quando eu falo de escrever, vocês sempre dizem que não entendem.
((Lê novamente.))
P.: Vocês conhecem outra história de mula-sem-cabeça?
Eul.: Comadre com cumpadre (.) Assim diz a lenda pra nós. A gente tem que fechar a
unha ( ) senão ela toca na gente.
A.: Agora sete irmão(s), um deles vira lobisomem.
Eul.: O rastro da mulher sem cabeça é redondo, e um buraquinho. Se pegar no
buraquinho sai um bichão.
...
P.: Vamo(s) escreve(r) a história. Como a gente pode contar essa história?
A.: De quinta pra sexta-feira a mula fica sem cabeça.
P.: Não, a moça vira mula sem cabeça.
Jos.: Se’u fosse pra mim escreve(r) eu fazia uma poesia sobre mula sem cabeça.
100
P.: Como?
Jos.: Eu vou contar poesia. (.) Eu sou do Nordeste, de Alagoas. (.) Conta uma poesia,
de nossa terra.
Ben.: Eu acho quadrado. Nós estamos no interior de São Paulo.
Jos.: Cada um fala uma poesia. (.) Eu vou começa(r). ((Dita para a professora))
No estado de São Paulo. Uma história ouvi conta(r). Um grande “pivuado”...
Ben.: Professora, coloque na língua da senhora porque ele fala assim mesmo. (.)
‘Povoado’. É que ele não sabe falar. ((referindo-se à palavra que José não consegue
pronunciar))
Jos.: Povoado! Isso, professora!
((José vai compondo e alterando o texto.))
Jos.: Fazendo perversidade, por onde passava.
P.: Não se preocupe em copia(r). Depois vocês copiam.
Jos.: Assombrando toda a população. Eu peno aqui. (.) Dá urros gigantados.
P.: Urro gigantado?
Jos.: Que até os cachorros / ficavam de cabelo arrepiado.
P.: CALMA, AÍ. ((Fala para os outros alunos:)) Ele tá fazendo tipo um repente, lá da terra
dele.
Jos.: Eu tinha mais 60 fitas de repente. (.) Cada estado tem uma história. São Paulo tem
um jeito de poesia. Paraná tem outro. (.) Tem um livro que a gente compra que tem...
((Começa a recitar outros repentes.))
A atividade se inicia com a pergunta da professora para os alunos: “O que vocês
sabem sobre a lenda?” Por esse questionamento, a professora uma abertura para os
alunos contarem o que sabem sobre a mula-sem-cabeça, diferentemente do que acontece
nas outras situações observadas, em que a professora parte diretamente do texto escrito,
exceto no episódio 3, em que ela pergunta Vocês viram o lobisomem?” que também
possibilita a participação dos alunos. Nesse episódio, os alunos demoram a responder a
pergunta da professora, mas logo começam a falar o que conhecem sobre a lenda.
Durante esses relatos, um aluno interpela a professora: “Não vai passa(r) lição?” A
partir desse questionamento do aluno, indagamos: O que é lição para ele? É escrever?
Copiar da lousa? Qual o modelo de atividade escolar que conhece? Falar durante a aula
não faz parte da atividade escolar? Esse posicionamento do aluno está relacionado à
expectativa que tem da experiência escolar que pode indicar vestígios dos valores de uma
sociedade grafocêntrica a lição na escola é escrita. Dessa forma, ele percebe que a
atividade valorizada nesse contexto está relacionada à escrita e, não, à fala.
Assim, na história das práticas escolares desse grupo, contar histórias, falar,
conversar, não é considerado aula, pois, em outros momentos, quando os alunos estavam
na mesma situação contando histórias, conversando a professora interrompe, como se
estivesse pedindo para os alunos retornarem à aula, dizendo:
Vamo(s) volta(r) pra nossa história. Vamo(s) fica(r) quietinho que eu vou conta(r) a
história. (episódio 3)
PRONTO. ((Os alunos estavam conversando sobre documentos (renovação do CPF)
quando a professora começa a ler a fábula, sentada na sua mesa em frente à sala.))
101
Além da história desse grupo, é preciso considerar as práticas que foram se
consagrando na tradição escolar, como a cópia, a resolução de exercícios, por exemplo,
que foram configurando as imagens de escola. Com isso, as atividades que os alunos
esperam encontrar na escola não são centradas na fala, mas na escrita. Os alunos vivem e
interagem em uma sociedade grafocêntrica. Eles conhecem o valor atribuído socialmente à
escrita, ou seja, sabem o que ela representa nessa sociedade. Sabem melhor ainda o que o
não sabê-la representa em um mundo letrado. Por isso, para muitos, a escola é lugar para
aprender a escrever, ou seja, aquilo que ainda “não sabem” e que lhes falta saber (Melo,
1997).
A escrita, nesse contexto, é tida como um bem precioso para os analfabetos. Esse
é um dos reflexos dos mitos da alfabetização, descritos por Graff (apud Olson, Gnerre,
Marcuschi) que a escrita como extremamente poderosa, capaz de solucionar problemas
sócio-econômicos pelo seu aprendizado. Dessa forma, o contrário disso é o responsável
pelo atraso, isto é, não saber ler e escrever é tido como a causa do não desenvolvimento de
um país ou, simplesmente, do emprego não qualificado, do desemprego, e a reversão
disso só é possível pelo “milagre” da alfabetização.
A partir dessas crenças que perpassam a nossa sociedade, o que esses alunos
esperam da escola? É natural que esperem aprender o saber valorizado que lhes falta: a
escrita que possibilitaria “mudar de vida” ou “não ser mais cego”. Outra faceta, desse poder
do escrito é ressaltada por Melo (1997), a partir do relato de alguns alfabetizandos, que vêm
a escola não como o lugar para aprender a escrever, mas para aprender a falar também.
Isso porque consideram sua forma de falar errada e o correto pode ser aprendido na
escola. Assim, fala corretamente quem sabe ler
23
. Assim, ao aprender a escrita, também
aprende-se a falar corretamente. A extensão do poder da escrita é tamanha que a pessoa,
além de não saber escrever, também supõe que não sabe falar. Essa concepção pode estar
aliada à imagem que o analfabeto faz de si mesmo numa sociedade letrada. De acordo com
Oliveira, “[a] identidade de um membro desse grupo constrói-se, em grande parte, por uma
negação: ele é o não-alfabetizado, não domina o sistema de escrita, não tem acesso a
certos modos de funcionamento claramente presentes na sociedade em que vive” (1999, p.
26)
Assim, a escola precisa se questionar sobre a concepção de escrita que assume, e
verificar se não reproduz ou perpetua tais conceitos que circulam socialmente. Rever essa
23
Depoimento apresentado no capítulo 3: Porque a pessoa que não sabe ler parece que tem a língua ruim no
modo de falar. A língua da gente puxa muito, para quem não sabe ler, vai dizer uma palavra, ele diz pela
metade”. (Homem, de 50 anos ou mais, Caxias - MA)
102
questão implica em rever o modelo de letramento (Street apud Kleiman, 1996) assumido
por esta instituição. Assumir o modelo autônomo é ratificar todos os mitos em torno da
escrita e considerar que ela pode ser conhecida na e pela escola. E assim, produzir um
abismo ainda maior entre os alunos e a escrita. Se o modelo assumido for o ideológico, é
possível estabelecer uma ponte entre os eventos de letramento vivenciados pelos alunos
fora e dentro da escola. Isto dependerá de como essa instituição assume a relação entre o
oral e escrito, também. Se tal relação é vista em um continuum de práticas, fala e escrita
são tidas como dois modos de usar a língua. Mas, se está visão é polarizada, o problema (?)
está nas diferenças entre elas.
Desta vez, a professora responde desta forma à pergunta do aluno: “Isso não é
lição?” Com isso, ela assume que essa atividade faz parte da aula, o que não acontece em
outros momentos, como foi discutido acima. Consideramos, aqui, o ser humano em sua
complexidade. Não como esperar uma linearidade, uma sincronia de atitudes, mas a
condição humana é dinâmica, repleta de contradições (Vigotski, Bakhtin).
A partir dessas questões, perguntamos como é o trabalho com a oralidade na
escola? Segundo, Belintane, o trabalho com a língua oral é recomendado pelas propostas
curriculares há décadas, mas não alcança as práticas pedagógicas em sala de aula. Um dos
possíveis entraves, talvez o principal, é a tensão com a escrita. Todo os espaços das aulas
de língua portuguesa estão direcionados ao trabalho com a modalidade escrita. Assim, os
poucos momentos em que se ampara na atividade oral são considerados como desvios de
percurso, ou melhor, como não lição (não atividade escolar).
Ao prosseguir com a atividade, a professora lê a lenda e propõe a reescrita do texto.
Sobre essa atividade os alunos falam:
A.: Não entendi a história.
P.: Quando eu falo de escrever, vocês sempre dizem que não entendem.
Respostas desse tipo dadas pelos alunos são recorrentes em outras atividades. Mas,
aqui, a professora trata a questão diferente das outras vezes. Nos outros episódios, ela não
fazia nenhum comentário e se oferecia para ler o texto mais uma vez, crendo (ou querendo
acreditar) que dessa forma sanaria a dificuldade, supondo que o problema estava na
compreensão da leitura. nessa fala, ela explicita que a dificuldade é na escrita da nova
versão (“quando eu falo de escrever”) e não mais na compreensão do texto lido. Ao
responder ao aluno, a professora reflete, verbaliza uma questão que provavelmente a vinha
incomodando. Parece saber que o problema é outro, mas como não outra solução,
novamente a história para a turma.
103
A percepção da professora, em outros momentos, de que o problema é o
entendimento do texto por parte dos alunos, parece ser amparada no que concebe como
analfabeto. Assim, como o aluno não sabe ler, ele enfrenta dificuldades para compreender
um texto escrito (lido por outra pessoa). Isso foi discutido no capítulo anterior, no comentário
do segundo episódio, no qual a professora uma lenda que poucos alunos conheciam, O
negrinho do pastoreio , e pergunta:
P. Vocês conhecem essa lenda?
A. Acho que fala sobre cavalo.
((Após a leitura da lenda, pergunta para a turma.))
P. Vocês conseguiram entende(r) a lenda?
Essa última pergunta feita pela professora nessa situação leva a crer que os
alunos não teriam entendido a lenda porque não sabiam ler e, por isso, teriam dificuldade
em compreender/conhecer, além de não conhecê-la oralmente pois não faz parte do
repertório dos alunos. Diferentemente dessa situação, a professora nota que o problema é a
reescrita. Desse modo, a resistência que os alunos apresentam, num primeiro momento, é
motivada por um não saber fazer essa atividade escrita.
Essa constatação feita pela professora, no episódio em questão, promove uma série
de transformações na condução da atividade. Desse modo, ela pergunta após a leitura:
“Vocês conhecem outra história de mula-sem-cabeça? Poderíamos pensar que ela uma
possibilidade de solução, ao convidá-los a contar as outras versões da história? Assim,
retorna pela primeira vez, para a história contada, falada, após a leitura. Com isso, ela muda
a estratégia e acaba intercalando a história lida com a contada, o deixando tão marcado
que o centro ou a única possibilidade é o texto escrito, dando espaço novamente para a
história oral, ao convidá-los, mais uma vez, para contar suas versões. Nesses momentos,
todos os alunos participam, inclusive os que são considerados como portadores de
necessidades especiais.
No momento da reescrita, em outro episódio, a professora convocava os alunos a
falar, a ditar a história para que ela escrevesse na lousa: “Agora vocês vão conta(r) a
história” (episódio 3). O mesmo ocorre em uma situação que não se configurou em episódio,
em que a professora diz: “Então quem é que vai me conta(r) a história?”
Aqui, no entanto, convida-os a escrever: “Vamo(s) escreve(r) a história. Como a
gente pode contar essa história?” Além de convidar, reparte com eles a produção desse
texto, ou melhor, a oportunidade para eles comporem o texto. Assim, não precisa ser a
forma normalmente utilizada nesta atividade, na qual alguns alunos vão ditando partes e ela
escreve, ao mesmo tempo em que pergunta o que está faltando. O formato da atividade é
predeterminado, diferente do que acontece nessa reescrita . Os alunos, então, começam a
104
ditar para a professora da forma que conheciam, até que José toma a palavra e sugere
como gostaria de escrever essa lenda: “Se’u fosse pra mim escreve(r) eu fazia uma poesia
sobre mula sem cabeça.”
Ao dizer isso, aproveita a oportunidade dada pela professora e responde ao ”como a
gente poderia contar” e se coloca, como se, respeitosamente, estivesse pedindo licença
para colocar a sua opinião Pede permissão (“Se’u fosse pra mim escrever”). A professora
não como ousadia a colocação do aluno e permissão ao perguntar “Como?” Jo
posiciona-se dessa forma, pois a professora, ao descentrar a atividade do texto escrito (e
dela) o escrito não é o mais importante nessa aula deixando espaço para as histórias
orais (e para os alunos) e para o gênero repente, originalmente oral , cuja presença não é
usual em salas de aula. Com isso, o aluno toma a palavra, sua voz aparece e ocupa o
centro da aula, não para “reproduzir” um texto escrito, mas para produzir o seu texto.
Quando diz “se fosse pra mim escreve(r)”, ocupa a posição de escritor. Não diz “contar”,
como poderia se esperar que não escreve ainda, mas fala com a autoridade de quem
pode escrever, de autor, ao dizer: “Eu vou contar poesia. (.) Eu sou do Nordeste, de
Alagoas. (.) Conta uma poesia, lá de nossa terra.”
Assim, a história oral alcança o tablado da sala de aula e divide o espaço supremo
da escrita. O aluno também pode ocupar o lugar do professor, pois são lugares cambiáveis.
Isso fica marcado quando convida os colegas para comporem com ele a poesia.
Durante a composição da poesia, a professora vai escrevendo na lousa. A
professora permite a José ocupar esse lugar, porém, isso não é aceito por todos,
principalmente por sua esposa, Benedita. Ela critica a proposta do marido (que também é
colega de sala), dizendo: “Eu acho quadrado. Nós estamos no interior de São Paulo”. Nessa
fala, vozes sociais de um discurso etnocêntrico, no qual São Paulo é modelo cultural,
moderno, e, nesse contexto, a poesia nordestina é “quadrada”, antiquada. José continua seu
repente, sem nada dizer.
Benedita prossegue com as críticas. Agora, de forma mais contundente do que a
anterior, ela recrimina a fala de José:
Jos.: [...] No estado de São Paulo. Uma história ouvi conta(r). Um grande pivuado”...
Ben.: Professora, coloque na língua da senhora porque ele fala assim mesmo. (.) Povoado. É
que ele não sabe falar ((refere-se à palavra que José não consegue pronunciar))
Ao dizer “coloque na língua da senhora”, deixa indícios de como o preconceito
lingüístico é forte e disseminado. Na verdade, na sua fala aparecem as vozes (Bakhtin) que
permeiam as interações na escola, na sociedade, de que há o falar errado e o falar certo, de
que analfabetos e, ainda, nordestinos não sabem falar, ou não falam direito (Bagno).
105
Algumas falas de professores sobre o assunto foram, inclusive, motivadoras das primeiras
questões dessa pesquisa. Assim, diziam: “Os alunos não aprendem a escrever porque falam
errado”. “Para que os alunos aprendam a escrever, primeiro precisamos ensiná-los a falar”.
José, novamente, não se intimida e repete a palavra da forma que a professora
pronunciou e pergunta se é assim mesmo. Assim que termina o repente, comenta:
Eu tinha mais 60 fitas de repente. (.) Cada estado tem uma história. São Paulo tem um
jeito de poesia. Paraná tem outro. (.) Tem um livro que a gente compra que tem...
Ao dizer “Cada estado tem uma história. São Paulo tem um jeito de poesia. Paraná
tem outro”, José responde ao enunciado dito anteriormente pela sua esposa (“Eu acho
quadrado. Nós estamos no interior de São Paulo”) como reprovação a sua proposta de fazer
um repente. De acordo com Bakhtin, “[...] qualquer enunciação, por mais significativa e
complexa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal
ininterrupta (concerne à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política, etc.)” (1989,
p.123). Nessa corrente ininterrupta respostas aos enunciados ditos anteriormente no
diálogo do casal em questão. Nessa resposta, José tenta desconstruir a crítica feita a sua
poesia tida como “quadrada” no contexto em que estavam (São Paulo), explicando que cada
lugar tem a sua poesia, como São Paulo e Paraná, que não foi dito ao acaso, pois é o
Estado natal de Benedita. Essa resposta não é dirigida apenas a Benedita, que nessa
situação assume esse discurso, mas é resposta a um discurso preconceituoso em relação
às outras culturas.
Essa análise nos instiga a a discutir ainda de alguns pontos sobre a relação
oral/escrito nas sociedades letradas. Durante a entrevista, realizada em sala com os alunos,
José conta algumas passagens de sua vida, entre elas, que veio para São Paulo aos cinco
anos após a morte do pai em Alagoas. Então perguntei a ele: “Se o senhor veio muito
criança para São Paulo, como aprendeu a fazer as poesias, os repentes?” Disse que havia
aprendido através das revistas de cordel que ele comprava e os amigos liam para ele. Essa
colocação do aluno foi surpreendente, pois o esperado é que tivesse aprendido esse gênero
ouvindo outras pessoas produzindo os repentes, na sua originalidade, ou seja, como um
gênero oral. E não dessa forma, com um suporte escrito.
O contato de José com o repente, relatado em nossa entrevista, evidencia como a
fala e a escrita estão imbricadas em nossa sociedade. Numa situação parecida, está
Madalena, contadora de histórias, analfabeta que traz em suas narrativas marcas da escrita
(Tfouni, 2002). Ambos vivem numa sociedade letrada e, apesar de analfabetos, têm sua
linguagem e suas práticas permeadas pela escrita. Assim, não é possível dizer que
possuem uma oralidade primária, semelhante à fala encontrada nos grupos sem escrita.
106
Com isso, o é possível sustentar que fala e escrita são estanques, polarizadas, numa
sociedade letrada pois se interpenetram nas práticas sociais de que fazem parte. As duas
situações descritas acima comprovam isso.
Ainda, sobre o relato de José, podemos pensar no movimento dinâmico entre fala e
escrita, pois ele se apropria de um gênero originalmente oral, via registro escrito lido por
outra pessoa. Numa visão dicotômica da relação oral/escrito e no modelo autônomo de
letramento (Kleiman), isso seria impossível, pois ele desconhece o código escrito. No
entanto, José participa de situações sociais em que esses textos são lidos (“E ficava
guardando na minha cabeça o que eles liam”), conta novamente essas histórias, compõe
seu repertório.
E o que a escola faz com suas histórias, seus repentes? Eles contam para a escola?
O que eles contam para a escola? José está cursando pela terceira vez a 1ª etapa Ciclo I da
EJA. Resultado final: está retido mais uma vez e no relatório da professora consta:
O aluno possui dificuldade para entender a atividade proposta pela
professora. Seu nível varia entre silábico com valor e silábico
alfabético. Se houver intervenção, ele percebe se falta alguma letra
ou não. É muito participativo nas aulas.
107
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112
Anexo 1
Roteiro de Entrevista com a professora da sala de EJA
Que conteúdos você considera importantes no período de alfabetização dos jovens e
adultos?
Que atividades você considera importantes para alfabetizar o aluno?
Quais são suas prioridades no trabalho com a Língua Portuguesa?
Você encontra dificuldades na alfabetização de adultos? Quais?
Como você organiza os conteúdos que serão ministrados nas aulas?
O planejamento anual auxilia na organização das atividades?
Você conhece a Proposta Curricular da EJA? Como teve contato com ela?
Qual a sua opinião sobre a Proposta? Ela auxilia na preparação das aulas?
Como é o relacionamento com os alunos?
Você utiliza algum material didático para preparar e ministrar suas aulas? Qual?
O que você acha desse material?
Em sua opinião, é preciso desenvolver algum trabalho com a fala dos alunos? Por que?
Como você considera o modo de falar dos seus alunos?
Você propõe atividades para trabalhar a oralidade? Quais?
Você considera importante para a realização da atividade que os alunos discutam sobre
ela?
Em que momentos da sua aula você considera importante que o aluno fale?
113
Anexo 2
Roteiro de Entrevista com os alunos da sala de EJA
É o primeiro ano que você está na escola?
Por que não estudou antes?
Já estudou em outra escola antes?
O que significa o estudo para você?
Por que resolveu (voltar a) estudar?
Na sua família quem está na escola também?
Qual é a sua profissão? Você exerce sua profissão?
Em sua opinião, como são as aulas?
Você encontra dificuldades? Quais?
Você sempre morou aqui?
Você costuma participar das aulas?
De que maneira?
Dá a sua opinião em alguma discussão ou explicação? Por que?
Você é incentivado ou não a participar das aulas (pela professora, pelos colegas)?
Costuma dar exemplos de sua experiência fora da escola?
114
Anexo 3
Roteiro de Entrevista com os alunos da sala de EJA – 2ª versão
Experiências escolares
É o primeiro ano que você está na escola?
Já estudou em outra escola antes?
O que significa o estudo para você?
Por que resolveu (voltar a) estudar?
Na sua família quem está na escola também?
Qual é a sua profissão? Você exerce sua profissão?
Em sua opinião, como são as aulas?
Você encontra dificuldades? Quais?
Por que não estudou antes?
Você sempre morou aqui?
Como é pra você participar das aulas / estar na escola. O que você deve fazer na escola
para aprender?
De que maneira?
Dá a sua opinião em alguma discussão ou explicação? Por que?
Você é incentivado ou não a participar das aulas (pela professora, pelos colegas)?
Costuma dar exemplos de sua experiência fora da escola?
Uso da linguagem
Que atividade/ disciplina você mais gosta de fazer na escola? Por que?
Fora da escola a maioria dos problemas você resolve falando ou escrevendo? Como é isso?
Fale mais sobre a fala
Na sua opinião as pessoas falam iguais? E dentro da sala como é? Os alunos falam do
mesmo jeito? Por que cada um fala diferente, então? E a fala da professora?
Você lembra de alguma situação da qual você não entendeu o que falaram para você ou o
contrário? Por que você acha que acontece isso?
Na escola também se ensina a falar, na sua opinião? Como a professora ensina isso? Ou
como deveria ensinar?
Isso é importante?
115
Anexo 4
Roteiro de Entrevista com a professora da sala de EJA – 2ª Versão
O que você acha da EJA em nosso município?
O que você acha de trabalhar na EJA?
Tem algum autor que embasa seu trabalho, que te ajuda a pensar a educação de
adultos?
O que você acha da proposta curricular?
Essa proposta vale de alguma coisa para o seu trabalho?
Você se baseou nela para fazer o planejamento?
O planejamento anual te ajuda na prática de sala de aula?
A sua diretora te exige alguma coisa em termo de planejamento?
Isso te ajuda no dia-a-dia na organização de atividades?
Então como que você faz para organizar as atividades?
Que conteúdos você acha importante para trabalhar com os alunos?
No caso de Língua Portuguesa como você distribui os conteúdos?
O que você considera mais importante trabalhar?
O que você acha do livro didático viver, aprender? (você usa, as atividades te ajudam?)
O que esse aluno precisa dominar para aprender a escrever?
Você acha que é preciso trabalhar com a fala dos alunos?
O que você acha do trabalho com a reescrita de textos?
Você acha que pode deixar os falarem ajuda nesse trabalho? Por que?
Quem é o aluno da EJA pra você?
Você acha que eles vão aprender? Vão conseguir prosseguir nos estudos?
O que você acha que precisaria acontecer para mudar isso?
116
Anexo 5
Formato das transcrições
. Os nomes dos sujeitos vêm abreviados pelas letras iniciais, à frente dos turnos de fala.
. Os sujeitos A.. são alunos não identificados
. Utilizamos P. para a professora
. Utilizamos os seguintes símbolos:
(.) pausas
= falas imediatamente consecutivas
[ falas simultâneas
[
[ ] [com algo escrito dentro] indicação de nome de pessoa ou lugar suprimido
[...] supressão de trechos no mesmo turno de fala
... supressão de trechos com mais de um turno de fala
( ) falas inaudíveis
( ) (com algo escrito dentro) compreensão duvidosa
( ) ( com partes da palavra escrita dentro) escrita convencional da palavra
(( )) gestos ou detalhes do contexto
. Letras maiúsculas para falas em tom mais elevado.
. Letras repetidas para falas prolongadas.
. Palavras e trechos sublinhados na reprodução de parte de fragmentos para indicar
aspectos destacados nas análises.
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