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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE TEATRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
JOICE AGLAE BRONDANI
CLOWN, ABSURDO E ENCENAÇÃO
PROCESSOS DE MONTAGEM DOS ESPETÁCULOS
“GODÔ”, “TRATTORIA” E “JOGUETE”
Salvador
2006
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JOICE AGLAE BRONDANI
CLOWN: ABSURDO E ENCENAÇÃO
PROCESSOS DE MONTAGEM DOS ESPETÁCULOS
“GODÔ”, “TRATTORIA” E “JOGUETE”
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia –
UFBA, como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre.
Orientação: Profº Drº Antonia Pereira
Salvador
2006
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Biblioteca Nelson de Araújo - UFBA
B869 Brondani, Joice Aglae.
Clown, absurdo e encenação: processos de montagem dos espetáculos “godô ” ,
“trattoria” e “joguete”/ Joice Aglae Brondani. - 2006.
211 f. : il.
Orientadora : Profª Drª Antonia Pereira.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas. Escola de Teatro/Escola de Dança.
1. Teatro. 2. Teatro do absurdo. 3.
Antonia Pereira. I. Universidade Federal
da Bahia. Escola de Teatro /Escola de Dança. II. Título.
CDD - 792
A
Pedro José Brondani e Zenita Stefanello Brondani, meus pais e “totens”, por me ensinarem a
viver, a sonhar e a amar.
A
Vanderlei Brondani e Sidnei Brondani, meus queridos irmãos e “super-heróis”.
AGRADECIMENTOS
Em especial, para Erico José, pelo carinho e ternura que percorrem nossas vidas.
Às tias Osvilda, Alzira, Inês, Brunislava e Benilda.
Aos tios Selvino, Emídio, Gilberto e Abílio (in memorian).
A Thereza Verônica Grassi e Maria Scapin Grassi (in memorian).
Aos clowns que foram nascendo ao longo de minha trajetória.
Às amizades acolhedoras de Andréa Rabello, Diana Ramos, Silvana Baggio, Guilhermina
Willet, Fernando Lopes, Jorge Baia e Simone Araújo.
A Léo Azevedo, pelo afeto e olhar atento atrás da câmera fotográfica.
A Jacyan Castilho pela generosa contribuição.
A Samuel André, pelos dias de luz.
A Lúcia Royes, Daniela Varotto, Daniel Plá, Marina Pelle, Giovana Spadini, Maurício da
Fontoura Martins, Vilmar Rossi Júnior, Francisco André Fleig, Vládia Queiroz, Flávia
Gaudêncio e Fabiana Monçalu pela convivência, amizade, dedicação, entusiasmo e horas de
ensaio.
A Serge Pechinè, Stanley e Gláucia Gladston, Paulo Fernando Machado, Bando Marques,
Tatiana Vinadé e Fábio Araújo, pelos momentos de amizade, profissionalismo e
companheirismo.
A Rosana Alves pela compreensão.
A Cristina Zanni pelo apoio.
A Critiane Vendruscollo, pela amizade contínua.
A Zita, Mayra e Iana de Souza Buzatto, pelas presenças verdadeiras.
A Eric Jansen, pela terna e intensa companhia.
A Yves Ghoel, pelas conversas amistosas.
A Paulo Márcio, por me apresentar o teatro.
A Nair D’Agostini, Inês Marocco, Adriana Dall’Forno, Beatriz Pippi e Gisele Biancalana,
pelos anos de ensinamentos.
A Eliéne Benício pela disponibilidade e atenção.
A Antônia Pereira, pela sinceridade, sabedoria, paciência e orientação.
A Bonna Bonacha, Pelúcia, Quitéria Cacáca, Matilde, Queridônia Açolina, Jujubinha Bonier,
Espiga, Zimborrão, Ximía Bóia, Mutcha, Porcarélia, Galíncola, Bumbino, Nhoque e
Umbigolina Goiabenta, pelas delicadas, intensas e preciosas presenças.
RESUMO
Figura 1 – Foto: Léo Azevedo
Esta dissertação tem a intenção de investigar, analisar e registrar o processo de encenação dos
espetáculos de clown, GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE, criados a partir de textos
dramatúrgicos do teatro do absurdo, a fim de suscitar uma reflexão sobre os procedimentos
adotados na montagem dos mesmos. O processo de encenação é construído através das inter-
relações e da união entre as teorias e as técnicas de Dario Fo, Lecoq e Burnier; através dos
métodos de Stanislavski e de Viola Spolin, de textos do teatro do absurdo, contendo, ainda, a
influência do cinema mudo, desenho animado e circo. Através do aprendizado com os mestres
Nair D’Agostini, Inês Marocco, Thomas Leabhart, Kai Berthold e Ana Elvira Wuo, os
processos de encenação ganharam “corpo” na intertextualidade formadora da escritura cênica
das montagens de GODÔ; TRATTORIA e JOGUETE, espetáculos criados a partir de uma
dramaturgia escrita (“Esperando Godot” de Samuel Beckett, “O Montacarga” de Harold
Pinter e “Fim de Jogo” de Samuel Beckett – na ordem respectiva), utilizada como impulso
para um vôo criativo tanto do encenador, quanto do ator.
RÉSUMÉ
Cette dissertation se veut étudier, analyser et enregistrer le processus de mise en scène des
spectacles de clown - GODÔ, TRATTORIA et JOGUETE - qui furent créés à partir de textes
dramaturgiques du théâtre de l´absurde, l’objectif étant de susciter une réflexion sur les
formes adoptées lors du montage de ces derniers. La mise en scène est construite selon des
relations qui peuvent faire parler les théories et les techniques de Dario Fo, Lecoq e Burnier
ainsi que les méthodes de Stanislavski et de Viola Spolin. On se souviendra que le théâtre de
l’absurde fait référence au cinéma muet, aux dessins animés et au cirque.
D’enseignements de maîtres comme Nair D’Agostini, Inês Marocco, Thomas Leabhart, Kai
Berthold e Ana Elvira Wuo, la mise en scène gagne « corps » lors de l`écriture scénique des
montages de GODÔ; TRATTORIA e JOGUETE, spectacles créés à partir de dramaturgies
tels que : « En Attendant Godot » et “Fin de Partie” de Samuel Beckett, et “Le Monte Plats”
de Harold Pinter. Ceux-ci donnant l’élan d’un vol créatif pour le metteur en scène que pour
l’acteur.
LISTA DE FIGURAS
Nas figuras, os nomes dos atores estão dispostos sempre da esquerda para a direita. Fazem
parte das fotos: Andréa Rabello - Pelúcia; Diana Ramos - Bonna Bonacha; Daniela Varotto -
Porcarélia; Daniel Plá - Galíncola; Fernando Lopes - Espiga; Fernanda Pinheiro Lima -
Pedincha; Giovana Spadini – Mutcha; Gilson Garcia dos Santos - Barichnikov; Joice Aglae –
Umbigolina Goiabenta; Jorge Baia - Zimborrão; Lúcia Royes - Ximía Bóia; Luis Maurício da
Fontoura Martins - Nhoque; Mônica Mello - Merengosa Guloseima; Simone Araújo -
Queridônia Açolina; Vilmar Rossi Júnior – Bumbino; Vládia Queiroz – Jujubinha Bonier;
Francisco André Fleig e Marina Pelle.
Figura 1- Detalhe de pesquisa de maquiagem .......................................................... 06
Figura 2 - Treinamento de clown: Diana Ramos, Andréa Rabelo, Jorge Baia e Vládia Queiroz
................................................................................................................................... 14
Figura 3 - Treinamento de clown: Jorge Baia, Diana Ramos, (embaixo) Andréa Rabelo,
Vládia Queiroz e Simone Araújo............................................................................... 16
Figura 4 - Treinamento de clown: Diana Ramos e Jorge Baia ................................. 22
Figura 5 - Saída de clown “Um dia na Praia”: Joice Aglae ...................................... 23
Figura 6 - Encontro de clowns: Andréa Rabelo, Fernanda Pinheiro Lima, Gilson Garcia dos
Santos, Diana Ramos e Mônica Mello ...................................................................... 30
Figura 7 - Treinamento de clown: Jorge Baia, Andréa Rabelo, Diana Ramos, Vládia Queiroz e
Simone Araújo .......................................................................................................... 42
Figura 8 - Treinamento de clown: Jorge Baia ........................................................... 43
Figura 9 - Cena do espetáculo JOGUETE: Diana Ramos e Jorge Baia ................... 49
Figura 10 - Encontro de clowns: Diana Ramos......................................................... 52
Figura 11 - Cena do espetáculo JOGUETE: Andréa Rabello ................................... 62
Figura 12 - Encontro de clowns: (embaixo) Gilson Garcia dos Santos, (encima) Diana Ramos,
e Mônica Mello.......................................................................................................... 63
Figura 13 - Treinamento de clown: Jorge Baia, Diana Ramos, Vládia Queiroz, e Simone
Araújo ....................................................................................................................... 69
Figura 14 - Treinamento de clown: Andréa Rabello, Diana Ramos e Vládia Queiroz
................................................................................................................................... 87
Figura 15 - Cena do espetáculo JOGUETE: (encima) Diana Ramos, (embaixo) Jorge Baia
................................................................................................................................... 107
Figura 16 - Cena do espetáculo JOGUETE: Fernando Lopes .................................. 107
Figura 17 - Cena do espetáculo JOGUETE: Fernando Lopes................................... 107
Figura 18 - Cena do espetáculo JOGUETE: Diana Ramos e Jorge Baia ................. 107
Figura 19 - Cena do espetáculo JOGUETE: Joice Aglae ......................................... 112
Figura 20 - Treinamento de clown: Simone Araújo e Diana Ramos ........................ 113
Figura 21 - Cena do espetáculo JOGUETE: Diana Ramos ...................................... 125
Figura 22 - Cena do espetáculo JOGUETE: André Rabello e Fernando Lopes ...... 126
Figura 23 - Cena do espetáculo JOGUETE: Diana Ramos ...................................... 133
Figura 24 - Cena do espetáculo JOGUETE: André Rabello e Fernando Lopes ...... 143
Figura 25 - Cena do espetáculo JOGUETE: Jacyan Castilho e Diana Ramos ......... 150
Figura 26 - Cena do espetáculo JOGUETE: Diana Ramos ...................................... 151
Figura 27 – Saída de clown: Diana Ramos e Joice Aglae ........................................ 159
Figura 28 - Cena do espetáculo GODÔ: (encima) Lúcia Royes, Francisco André, (embaixo)
Luis Maurício e Vilmar Júnior .................................................................................. 165
Figura 29 - Cena do espetáculo GODÔ: Vilmar Júnior ............................................ 165
Figura 30 - Cena do espetáculo GODÔ: Luis Maurício e Vilmar Júnior.................. 166
Figura 31 - Cena do espetáculo GODÔ: Vilmar Júnior e Luis Maurício ................. 166
Figura 32 - Cena do espetáculo TRATTORIA: Daniel Plá, Daniela Varotto, Giovana Spadini
e Marina Pelle ........................................................................................................... 178
Figura 33 - Cena do espetáculo TRATTORIA: Daniela Varotto, (embaixo) Daniel Plá,
Giovana Spadini, e Marina Pelle............................................................................... 178
Figura 34 - Cena do espetáculo TRATTORIA: (embaixo) Giovana Spadini e Daniel Plá
................................................................................................................................. 178
Figura 35 - Cena do espetáculo TRATTORIA: (em pé) Daniela Varotto e Marina Pelle,
(sentados) Daniel Plá e Giovana Spadini ................................................................. 178
Figura 36 - Cena do espetáculo TRATTORIA: Daniela Varotto, Daniel Plá, Giovana Spadini
e Marina Pelle ........................................................................................................... 179
Figura 37 - Cena do espetáculo TRATTORIA: Daniela Varotto, Giovana Spadini, Daniel Plá,
e Marina Pelle ........................................................................................................... 180
Figura 38 - Cena do espetáculo TRATTORIA: Daniel Plá, Daniela Varotto, Marina Pelle e
Giovana Spadini ....................................................................................................... 180
Figura 39 - Cena do espetáculo TRATTORIA: (primeiro plano) Daniel Plá, e Giovana
Spadini, (ao fundo) Daniela Varotto e Marina Pelle ................................................ 180
Figura 40 - Cena do espetáculo JOGUETE: Jorge Baia ........................................... 189
Figura 41 - Cena do espetáculo JOGUETE: Jorge Baia e Diana Ramos ................. 189
Figura 42 - Cena do espetáculo JOGUETE: Jorge Baia e Diana Ramos ................. 190
Figura 43 - Cena do espetáculo JOGUETE: Jorge Baia e Diana Ramos ................. 190
Figura 44 - Cena do espetáculo JOGUETE: Diana Ramos ...................................... 191
Figura 45 - Cena do espetáculo JOGUETE: Jorge Baia e Diana Ramos .................. 201
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................... 14
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 16
CAPÍTULO I – “EM TESE E EM PRÁTICA” ..................................................................... 22
I.1.Clown: Concepções e Terminologia .................................................................................... 22
I.2.Sobre o clown: Reflexões e Considerações ......................................................................... 30
I.3.O diálogo
................................................................................................................................ 42
I.3.1. Dario Fo : O Grotesco , a Crueldade e o Grammelot .................................................... 43
I.3.2. Jaques Lecoq: O Sublime e o Sentimento Existencialista ............................................ 49
I.3.3. Luís Otávio Burnier: A Mistura Brasileira ................................................................... 52
CAPÍTULO II – “O PRAGMATISMO” ................................................................................ 62
II.1. Experiências e contribuições para o complexo
...............................................................63
II.1.1. Odin Teatret - Kai Berthold: O encontro ....................................................................64
II.1.2. LUME – Ana Elvira Wuo: A experimentação do universo Clownesco ..................... 64
II.1.3. Thomas Leabhart – Um anjo que deu alma à ação ..................................................... 66
II.1.4. Inês Marocco– A simplicidade e a genialidade ............................................................66
II.1.5. Nair D’Agostini – A disciplina, a eficácia e o coração ................................................. 67
II.2. A Encenação ....................................................................................................................... 68
II.2.1. O Texto ............................................................................................................................ 69
II.2.2. A Intertextualidade ........................................................................................................79
II.2.3. A Unidade ........................................................................................................................ 85
II.3. O processo clownesco construído ....................................................................................87
II.3.1. 1ª Descoberta do clown ..................................................................................................88
II.3.2. 2ª Clown e Codificação ..................................................................................................94
II.3.3. 3ª Imaginário/Realidade e Codificação ........................................................................ 101
II.3.4. 4ªConstrução do roteiro................................................................................................. 105
II.3.5. 5ª“Afinação” do espetáculo ...........................................................................................107
CAPÍTULO III - “INTERSEÇÕES ....................................................................................... 112
III.1. O clown e o absurdo ......................................................................................................... 113
III.2. O produto – Outras influências ...................................................................................... 125
III.2.1. O Circo .......................................................................................................................... 126
III.2.2. O Cinema Mudo ............................................................................................................ 132
III.2.3. O Desenho Animado .....................................................................................................143
CAPÍTULO IV – “DAS ESCRITURAS: DA DRAMÁTICA À CÊNICA”..........................150
IV.1. Impressões e impulsões acerca da dramaturgia e dos dramaturgos
........................... 151
IV.1.1. Acerca de Beckett - dramaturgo/dramaturgia ..........................................................152
IV.1.2. Acerca de Pinter - dramaturgo/dramaturgia ............................................................156
IV.2.Outras informações sobre as montagens de GODÔ, TRATTORIA, JOGUETE........ 159
IV.2.1. GODÔ – Nosso Espetáculo e outras informações ....................................................... 160
IV. 2.2. TRATTORIA – Nosso Espetáculo e outras informações .......................................... 175
IV.2.3. JOGUETE – Nosso Espetáculo e outras informações ................................................185
CONCLUSÃO............................................................................................................................. 201
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 205
ANEXOS – DVD ......................................................................................................................... 211
APRESENTAÇÃO
Figura 2 - Foto: Léo Azevedo
A presente dissertação tem como principal objetivo favorecer uma reflexão
sobre os procedimentos adotados para a encenação de espetáculos de clown, criados a partir
de textos pertencentes à estética do teatro do absurdo.
A reflexão gira em torno dos procedimentos adotados para a construção dos
espetáculos GODÔ (1998), TRATTORIA (2001) e JOGUETE (2003), criados,
respectivamente, a partir das obras: “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, “O Montacarga”,
de Harold Pinter e “Fim de Jogo”, de Samuel Beckett. Os espetáculos citados possuem como
eixo central o clown e, para desenvolver e suprir as necessidades desta linguagem foram
adotadas as técnicas e teorias de Dario Fo, Jacques Lecoq e Luís Otávio Burnier, olhares que
são expostos no primeiro capítulo da dissertação. É no primeiro capítulo, também, que
expomos nosso próprio olhar sobre o clown.
Os espetáculos possuem roteiros originados nos textos dramatúrgicos do teatro
do absurdo. Para tanto, foi adotado o método da análise ativa de texto de Stanislavski,
adicionando, ao resultado deste, o método de criação de cena a partir de jogos, de Viola
Spolin, o qual proporciona ao roteiro novas características e acrescenta outras situações. A
descrição deste procedimento faz parte do conteúdo do segundo capítulo da dissertação, onde,
na esperança de sermos mais claros, fazemos alguns relatórios de ensaios, utilizando-os como
exemplo de encaminhamento da construção das cenas. Este capítulo traz também as
influências, ou seria melhor dizermos as contribuições, de alguns de nossos mestres como
Nair D’Agostini, Inês Marocco, Thomas Leabhart, Ana Elvira Wuo e Kai Berthold, para o
encaminhamento prático da construção dos espetáculos.
O terceiro capítulo tem como conteúdo a abordagem das semelhanças entre o
clown e o absurdo, como também, o relato das influências do cinema mudo, do circo e do
15
desenho animado, nos espetáculos resultantes do processo de encenação ao qual nos
propomos organizar para fins de realizar uma reflexão sobre o mesmo.
No quarto capítulo, estão contidas informações adicionais sobre a concepção
dos espetáculos e grupos participantes dos processos, complementando os capítulos
anteriores.
Para auxiliar e constatar algumas afirmações feitas ao longo da dissertação,
utilizamos como recurso três DVDs. Cada DVD contém o registro filmográfico de um dos
espetáculos e algumas fotografias dos mesmos.
Desejamos que, com o acervo de descrições, delineamentos de pensamentos,
recortes, apontamentos e informações contidos nesta dissertação, possamos auxiliar o leitor na
reflexão sobre os processos de encenação que apresentaremos a seguir.
INTRODUÇÃO
“Se me imagino um clown, creio que
sou um augusto. Mas também um
branco ou, talvez, o diretor do circo. O
médico de loucos que, por sua vez,
enlouqueceu.”
Federico Felinni
Figura 3 – Foto: Léo Azevedo
Nossos caminhos na área de direção teatral se iniciaram no ano de 1998, na
Universidade Federal de Santa Maria – RS, sob os olhares cuidadosos e vigilantes de Nair
D’Agostini e Inês Marocco. E foi nesta “casa” que os primeiros impulsos para iniciarmos um
processo de encenação e “defender” uma estética própria foram dados. Desde então, nossas
encenações teatrais foram direcionadas para a pesquisa que será apresentada nos capítulos que
constituem o corpo desta dissertação.
Com o passar do tempo, a pesquisa foi ganhando corpo através dos processos
de montagem dos espetáculos GODÔ
1
, TRATTORIA
2
e JOGUETE
3
, e em 2004 o Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, sob a orientação
competente da Doutora Antônia Pereira, nos acolheu.
Em sua origem, o processo possuía apenas vagas idéias para a construção de
um espetáculo de clown
4
(linguagem e técnica que nos fascinam). O aprendizado adquirido
com teorias, técnicas e métodos de interpretação e encenação não dava conta do “emaranhado
de idéias” que construíam o espetáculo. Não estamos dizendo que esse aprendizado era
insuficiente, mas cada técnica, teoria ou método contemplava uma determinada carência e
tornava-se falha em outras. A partir desta constatação, deu-se início à “garimpagem” das
técnicas, teorias e métodos que integrariam o processo de encenação para, após, efetuar a
justaposição e conexão das mesmas e, então, dar início ao processo prático de construção do
espetáculo. Com a organização de nossos referenciais, o “emaranhado de idéias” transformou-
se em uma rede de conexões entre conceitos, teorias e práticas, que tentamos apresentar no
17
esquema a seguir e descrevê-lo em detalhes, posteriormente, nos espaços destinados à
descrição do processo em questão.
Sabendo que esta é uma representação simples de uma rede complexa de
conexões entre conceitos, técnicas e práticas que se encontram, se atravessam e dialogam
entre si, apresentamos este complexo
5
como uma tentativa de criar uma representação visível
e “palpável” do mesmo, numa expectativa de torná-lo mais compreensível. Apesar de
configurá-lo graficamente, não podemos esquecer que as mesmas “peças”
6
que formam este
complexo são ligadas ao imenso movimento histórico teatral, de onde ele é pinçado e
direcionado para o processo em questão.
É preciso ressaltar que nosso processo de encenação possui o clown como
“válvula impulsionadora”. Foi através de nossas experiências e práticas dentro das técnicas de
clown que este processo, aqui organizado para fins reflexivos, teve origem. Dialogando com o
clown e todo seu universo
7
, estão todas as outras peças que fazem parte do desenvolvimento
deste complexo.
18
O clown possui em sua natureza o poder relativizador da realidade, ele, através
do jogo em cena, nos envolve e nos devolve características e sentimentos inerentes ao ser
humano, perdidos no decorrer dos tempos. O clown é “[...] a dilatação da ingenuidade e da
pureza inerentes a cada pessoa. O clown é lírico, inocente, ingênuo, angelical, frágil [...]”
8
,
mas também possui em si o olhar diferenciado sobre a realidade a ele apresentada e imposta.
Através de sua liberdade e descomprometimento, ele relativiza a sociedade que o reprime e o
marginaliza por ser diferente. Com este ato, ele nos delata com toda a propriedade, “[...]a
fome: a fome de comida, a fome de sexo, mas também fome de dignidade, de identidade, de
poder”
9
e neste processo de “[...]luta pela sobrevivência, encontramos freqüentemente o
cinismo destrutivo em relação a todos os valores convencionais da moral: honestidade,
respeito humano e fidelidade”
10
. É por este conjunto de características, que se percebe a união
entre o grotesco e o sublime e a relatividade da sociedade e do indivíduo deste sistema social
em todos os seus sentimentos, que o clown nos traz o que é essencialmente humano. Através
da ingenuidade, da sinceridade, do lirismo, da fragilidade e, ao mesmo tempo, do grotesco, da
perversidade e da crueldade, o clown nos desvela a complexidade do ser humano através de
sua própria exposição e ridículo.
No que diz respeito ao jogo do ator, as técnicas que envolvem o clown nos
fascinam porque seu princípio fundamental é de que o ator que deseja trabalhar com esta
linguagem não pode interpretar um clown, ele tem de ser um. Não se trata de representar um
personagem, o clown deve ser verdadeiro, sentir tudo sensivelmente e transformar todas as
“energias/emoções”
11
em corpo. O ator de clown deve ter uma “[...] relação real, verdadeira e
humana, com tudo que se encontra a sua volta [...]”
12
. Este princípio básico da arte do clown
traz com ele a magia que seduz aqueles que o fazem e o admiram. O clown é SER/ESTAR, é
ESSÊNCIA/ESTADO, não é um personagem ou um papel criado/inventado.
O capítulo I tem como objetivo esclarecer os conceitos e teorias que adotamos
sobre o clown, bem como, trazer um pouco mais de informações sobre o mesmo. Estaremos
explicando e, até mesmo, compreendendo, a partir de nossas próprias reflexões, os princípios
que envolvem o clown. Dessa forma, deixaremos para tal momento as explanações dos pontos
citados.
Seguindo a introdução às peças que integram o complexo, no Capítulo II
estaremos realizando breves comentários sobre os mestres que influenciaram nosso caminho
para, posteriormente, falarmos do trabalho do diretor. Falaremos no procedimento utilizado
para auxiliar na compreensão do texto, na criação do roteiro, para daí criar o espetáculo.
19
Efetuaremos uma reflexão acerca da análise ativa de Stanislavski
13
, uma análise que permite a
descoberta da ação que move cada cena, da ação motivadora do personagem dentro da cena e
da “ação” do encaminhamento da história, ou melhor, da “linha direta de ação” da peça.
Assim, temos o texto dramatúrgico “catalogado” em ações (conseqüentemente, também, em
obstáculos). Com isso, acreditamos que, para um espetáculo no qual o texto é transformado
em ação, esta análise é a que melhor nos satisfaz.
Como auxílio para transformar os verbos geradores de ações, encontrados
através da análise ativa, em ações para as cenas, é conciliado ao universo do clown o método
de Viola Spolin, mais precisamente, os jogos dramáticos
14
, os quais são transformados em
jogos teatrais, partindo, assim, para a criação de cenas. Os jogos teatrais utilizados por Spolin
contêm um caráter lúdico e brincante que despertam, juntamente com a linguagem do clown,
a criatividade do ator, que entra, naturalmente, num “estado” criativo, produzindo
possibilidades e leituras variadas de uma determinada situação dada pelo encenador e retirada
do texto. Este procedimento terá sua resolução na ação/metáfora desejada para o espetáculo,
com os princípios da ação encontrada no texto, mas que, para acontecer, caminha com a
lógica do clown. Assim, nos espetáculos, têm-se as ações, as intenções, as situações e as
circunstâncias dadas existentes no texto, apresentadas em um outro contexto, mas ainda assim
dentro do universo apresentado pelo texto.
No Capítulo III, apresentamos as similaridades entre o teatro do absurdo e o
clown, justificando a escolha desta dramaturgia para a criação dos espetáculos. Num processo
de leituras e estudos de textos que possuíssem como tema a condição humana e suas
contradições, nos deparamos com o teatro do absurdo, um teatro que traz o ser humano e toda
a sua complexidade de maneira jocosa e profunda, similarmente à linguagem clownesca. O
teatro do absurdo e sua conexão com todo o complexo formador do processo de encenação
em questão, também serão esclarecidos no Capítulo III.
Neste mesmo capítulo, falaremos de outras influências que as encenações
recebem, como do cinema mudo, do circo e do desenho animado. Estes meios são, na
verdade, “casas” em que o clown encontrou e encontra abrigo durante seu “passeio” pela
história.
O Capítulo IV tem como conteúdo outras informações sobre os processos de
montagens dos espetáculos GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE. Estas informações dizem
respeito à transição da escrita dramática para a escrita cênica, a partir de considerações mais
pessoais e que contenham anotações relevantes para o ato de reflexão sobre os processos.
20
Uma vez que esta dissertação objetiva realizar uma reflexão sobre os processos
e encenações dos espetáculos citados anteriormente, pensamos ser de total importância para
esta avaliação, o acompanhamento das gravações e de fotografias das encenações. Para
melhor organização de mídia, cada espetáculo e suas fotos respectivas, estão dispostos em um
DVD, sendo a dissertação acompanhada por três DVDs. O primeiro contendo os registros do
espetáculo GODÔ, o segundo com os registros de TRATTORIA e o terceiro com os registros
de JOGUETE.
É importante reafirmar nesta introdução, o desejo de refletir sobre um processo
de encenação que tem como principal mecanismo a transformação da dramaturgia literária ou
textual em dramaturgia cênica. A transposição das “células” acontece com o auxílio da
análise ativa de Stanislavski, justaposta ao método de criação de cenas e a partir de jogos
dramáticos propostos por Viola Spolin, realizando, assim, uma transformação das “células
dramáticas da escritura dramatúrgica” para “células dramáticas da escritura cênica”. A
concepção recebe, também, influências do cinema mudo, desenho animado, circo e de
aprendizados práticos adquiridos ao longo de uma trajetória.
Todas estas inter-relações entre técnicas, métodos, teorias, estéticas,
linguagens e experiências práticas criam a intertextualidade peculiar dos espetáculos teatrais
resultantes e afirmam a estética específica da encenação.
Nos capítulos que constituem o corpo desta dissertação, serão apresentadas
tentativas incessantes de descrever e analisar o processo adotado na construção dos
espetáculos GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE, para, com isso, evidenciar a estética própria
abordada, validando assim a reflexão sobre os processos e procedimentos dos mesmos.
NOTAS
1
Criado a partir de “Esperando Godot” de Samuel Beckett, estreou em novembro de 1998.
2
Criado a partir de “O Montacarga” de Harold Peinter, estreou em janeiro de 2001.
3
Criado a partir de “Fim de Partida” de Samuel Beckett, estreou em junho de 2003.
4
O uso desta terminologia dentro do processo apresentado, será argumentada no capítulo a seguir.
5
Nome que adotamos para o conjunto formador do processo de encenação apresentado.
6
Refiro-me aos conceitos, métodos e influências que constituem o complexo formador do processo de
encenação
aqui apresentado.
21
7
A partir dos três teóricos práticos adotados como pilares para o processo apresentado.
8
FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. 2001, p. 217.
9
FO, Dario. Manual Mínimo do Ator. 1997, p.305
10
Ibidem, p. 306
11
FERRACINI utiliza esta expressão para definir as características do clown.. FERRACINI, Renato. A arte de
não interpretar como poesia corpórea do ator.2001, p.217
12
Ibidem, p. 218.
13
A análise ativa é o método de análise de texto criado por Stanislavski. Possui como principal objetivo
esmiuçar o texto em todo o seu conteúdo (diálogos, didascálias, silêncios) para encontrar o objetivo, o obstáculo
e o verbo de ação que move cada cena e cada ator, traçando, assim, os caminhos de todos os personagens e do
próprio texto.
14
Os jogos dramáticos são chamados também de brincadeiras ou faz-de-conta (SPOLIN, Viola. 2001, p.13).
CAPÍTULO I – EM TESE E EM PRÁTICA
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Este primeiro capítulo volta o olhar para a teoria e prática do clown, nele,
realizamos um panorama dos conceitos, práticas e técnicas de Lecoq, Dario Fo e Burnier,
fazendo a relação entre os três “pilares clownescos” do processo de encenação em questão.
Como estaremos enfatizando, tanto a teoria destes estudiosos do clown, como a prática dos
mesmos, pensamos que é válido utilizar a expressão “Em tese e em prática” para nominar este
capítulo.
Começamos o primeiro capítulo desta dissertação falando do clown, válvula
impulsionadora do processo em questão, transgressor por natureza e provocador do riso, ele é
quem vem abrir as portas para adentrarmos no complexo formador do processo de encenação
proposto.
Falando sobre o clown, do seu universo e das técnicas adotadas para o trabalho
desenvolvido com os atores e para a encenação, no primeiro momento deste capítulo,
estaremos apresentando e abrindo discussão sobre o tema, através das teorias de Dario Fo,
Lecoq e Burnier. Também, no segundo momento, estaremos fazendo uma exposição sobre
aspectos da natureza clownesca, “pincelando” alguns fatos históricos que, a nosso ver,
influenciam nesta natureza.
I. 1. Clown: Concepções e terminologia
23
Figura 5 - Foto Léo Azevedo
Apresentaremos,
aqui, as razões pelas quais
optamos em utilizar, neste
processo, a terminologia clown e
não palhaço. Na tentativa de
mostrar o ponto de vista adotado e
acalmar inquietações sobre o uso
do termo, o esclarecimento será
desenvolvido pelo viés dos
referenciais teóricos que norteiam a pesquisa, para após apresentar nosso próprio olhar sobre
o assunto.
Num primeiro momento, para efetuar uma explicação rápida, podemos afirmar
que tanto Burnier, quanto Lecoq e Dario Fo fazem uso da palavra “clown” para definirem
seus trabalhos. Os materiais teóricos destes estudiosos, quando publicados em português,
francês ou italiano apresentam em seu conteúdo a palavra clown; portanto, seguindo os
referenciais norteadores para a pesquisa e prática do ofício de clown
1
, é mantido o nome em
comum utilizado por todos os três estudiosos, citados anteriormente.
Adentrando as teorias, conceitos e práticas realizadas por Burnier, Lecoq e
Dario Fo, pilares teórico-práticos do ofício e dos domínios do clown neste processo,
afirmamos que a resposta, acima apresentada, é somente o vislumbre de uma mais completa e
consistente em que se toma os estudos sobre o clown, expostos em registros (publicações e
vídeos) dos pesquisadores mencionados, como referência para o uso desta terminologia.
Luis Otavio Burnier, em sua tese de doutoramento, inicia o capítulo referente
ao clown com a seguinte frase e citação: “Segundo Roberto Ruiz a palavra clown vem de clod
que se liga etimologicamente ao termo inglês “camponês” e ao seu meio rústico, a terra.
(Ruiz.1987 :12)”
2
. Em seguida, para criar um efeito comparativo, Burnier fala do termo
palhaço, citando novamente Ruiz :
Por outro lado, palhaço vem do italiano paglia (palha), material usado no
revestimento de colchões. Isto porque a primitiva roupa deste cômico era feita do
mesmo pano dos colchões: um tecido grosso e listrado, e afofado nas partes mais
salientes do corpo, fazendo de quem a vestia um verdadeiro “colchão” ambulante,
protegendo-o de suas constantes quedas. (Ruiz.1987 :12)
3
Fazendo uma conclusão breve, pois sua intenção não era de explicar ou discutir
o uso do termo utilizado, mas sim de apresentar sua visão sobre o clown e a técnica
24
construída, o teórico finaliza com a seguinte frase: “Assim, o palhaço é hoje um tipo que tenta
fazer graça e divertir seu público por meio de suas extravagâncias; ao passo que o clown tenta
ser sincero consigo mesmo”
4
. A partir destas afirmações, entende-se que a diferença no modo
de agir é o motivo principal pelo qual Burnier identifica a tal terminologia com o seu trabalho.
Lecoq também utiliza a terminologia clown para nominar a técnica que criou.
Tanto ele, quanto Burnier compartilham da mesma perspectiva no que diz respeito ao modo
de ver o clown como uma revelação do ridículo e da essência do ser humano. Lecoq afirma
que “Esta descoberta da transformação de uma fraqueza pessoal em força teatral foi da maior
importância para a elaboração de uma abordagem personalizada dos clowns, para a busca do
seu próprio clown que se tornou um princípio fundamental”
5
para o trabalho do ator dentro
deste ofício.
Burnier, em sua tese de doutoramento, no item denominado “Os tipos
Cômicos: elementos de uma genealogia” comenta sobre este princípio fundamental do ofício
de clown. Ele nos mostra que esta característica vem de muito longe, vem das suas origens
antigas em que “Os tipos característicos da baixa comédia grega e romana; os bufões e bobos
da idade média; os personagens fixos da commedia dell’arte; o palhaço circense e o clown
possuem uma mesma essência: colocar em exposição a estupidez do ser humano,
relativizando normas e verdades sociais”
6
. O ato de evidenciar a estupidez humana se dá
através da exposição do ator e da sua própria estupidez, mostrando, com suas fraquezas, as do
espectador, fazendo com que este perceba sua condição e a realidade e suas estruturas. Para
Burnier:
O clown também desempenha função semelhante à dos bufões e bobos medievais,
quando brinca com as instituições e com os valores oficiais. Ele, pelos nomes que
ostenta, pelas roupas que veste, pela maquiagem (deformação do rosto), pelos
gestos, pela fala e pelos traços que o caracterizam, sugere a falta de compromisso
com qualquer estilo de vida, ideal ou instituição, é um ser ingênuo e ridículo.
Entretanto, seu descomprometimento e aparente ingenuidade lhe dão o poder de
zombar de tudo e de todos, impunemente.
7
Essa liberdade e “descompromisso” são os causadores do olhar diferenciado e
relativizador das estruturas sociais, como também, do desvelamento da realidade causado no
espectador.
Burnier concorda com Lecoq sobre o clown apresentar as fraquezas e os
ridículos do ser humano, mas também, como colocado na citação anterior, concorda com
Dario Fo sobre o mesmo ser relativizador da sociedade, tendo uma proximidade com o bufão
- “figura” que teve seu “ápice” na Idade Média, cuja principal “moradia” eram as ruas e que
25
provocava o riso pela sua imagem ridícula e, além disso, ironizava, “brincava” e burlava a
ordem social, criticando e caçoando dos indivíduos pertencentes a esta. Sua conduta era
regida por este princípio desmistificador da realidade e por uma busca insaciável de suprir
suas necessidades mais instintivas, ligadas ao baixo ventre, ou seja, suas ações tinham como
princípio saciar a fome de comida, de sexo e de justiça.
Dario Fo também compara o clown com os commicos dell’arte – atores da
commedia dell’arte, um gênero que, segundo Sandra Chacra, teve origem nos coros Gregos e
Romanos, passou pelas comédias Atelanas e, na Idade Média, ganhou força. Este teatro se
destaca pela aparente improvisação e espontaneidade dos atores e por conter o mesmo
princípio de revelar a realidade social, contido nos bufões. Seus personagens/tipos possuem,
também, a conduta ligada às forças do baixo ventre.
Como podemos perceber, o clown que Fo nos apresenta possui fortes
características que permeiam seu modo de agir e traz uma preocupação que nem Lecoq, nem
Burnier apresentam, ele relata que:
Hoje, o clown passou a ser um personagem destinado a divertir as crianças. Ele é
sinônimo de puerilidades ingênuas, de um candor um pouco bobo e de
sentimentalismo. O palhaço perdeu sua capacidade de provocação, seu engajamento
político. Com efeito, outrora ele expressou a violência, a crueldade, a necessidade de
justiça..."
8
Através deste comentário sobre a natureza clownesca, Fo nos mostra que sua
percepção e compreensão a este respeito são diferentes da de Lecoq, não estamos falando de
uma compreensão oposta a de Lecoq, mas sim com pontos que se diferenciam. Para ele, o
clown traz em si a crueldade e o grotesco e, com isso, não o vê somente como “[...] a dilatação
da ingenuidade e da pureza inerentes a cada pessoa. [...]”
9
ele apresenta-o com uma certa
“agressividade”, por carregar em si as características de seus antepassados “[...] de um
personagem obsceno, depravado, mau, diabólico [...]”
10
. Esta compreensão vai, de certa
maneira, contra a explicação de Burnier sobre o uso da nomenclatura clown, no que diz ter
sua origem na palavra clod, significando o homem do campo e ingênuo. Mas Dario Fo não
fala especificadamente sobre a nomenclatura, sua principal ressalva é em relação à visão do
clown como ser “ingênuo” e infantil.
Esta nossa afirmação vem calcada na pesquisa dos materiais teóricos dos
estudiosos que sustentam esta dissertação, porque é nos textos de Dario Fo, traduzidos para
português e francês, ou mesmo em italiano, que se encontra maior variedade de terminologias
para referir-se ao clown. Ao longo da pesquisa e da leitura das obras de Lecoq, Burnier e Fo,
26
foram encontradas as seguintes nomeações: livros em francês – clown, Auguste, clown blanc;
em português – speaker, clown, palhaço, clown branco, Louis, clown camponês, Augusto,
Tony, Tony Excêntrico, Tony de soireé, cafona; livros em Italiano – speaker, clown,
pagliaccio, Augusto, Louis, clown-Pagliaccio, Clown Bianco. A partir deste exemplo de
utilização de termos, percebe-se que Dario Fo não concentra sua atenção no que diz respeito à
nomenclatura utilizada, mas, em compensação, faz uma grande observação de como o clown
deve ser executado:
O clown é um conjunto de elementos que podemos dificilmente definir com
precisão. Qualquer homem de teatro deve ser capaz de utilizar-se de todos os meios
de expressão: a voz, o corpo, o gestual, o canto, a máscara. Ele deve ser um
saltimbanco; ele deve saber executar o salto mortal, ter conhecimentos no domínio
da cenografia. Ele deve saber manusear objetos, manusear marionetes. O clown é
uma das chaves fundamentais do teatro, pois não há teatro possível se não foram
adquiridas as técnicas expressivas e gestuais que um palhaço é capaz de dominar
(…) pois, o clown torna-se o que ele é ao preço de uma disciplina muito precisa e
rigorosa. Um clown não se improvisa
11
Lecoq e Burnier também se colocam firmemente quanto ao jogo do ator
perante esta técnica, ambos falam que o ator do ofício de clown, quando vestir o nariz
vermelho, deve entrar num “estado de clown”, este se iguala ao “estado de máscara” a que
Dario Fo se refere. Segundo Burnier, “A máscara do clown, o nariz, é a menor do mundo
[...]”
12
, e sendo ele uma máscara, exige daquele que o veste um estado diferenciado.
Burnier e Lecoq afirmam que uma maneira do ator chegar a este “estado de
clown” é colocando-se frente a frente com seus fracassos, quebrando sua máscara social e
fazendo de seus defeitos uma possibilidade de jogar e brincar, alcançando um momento em
que se entrega sem raciocinar, um estado de disponibilidade sem defesa, isto é, o ato de se
desfazer das convenções sociais lhe proporciona uma tal liberdade, que o deixa mover-se por
este estado, passando a SER/ESTAR clown e não a interpretar um.
Todos os três, Lecoq, Fo e Burnier, concordam com o fato de que o ator do
ofício de clown tem de entrar num estado, seja ele denominado de máscara ou de clown, cada
qual afirma, de acordo com seu olhar e trabalho, que é necessário um estado diferenciado.
Lecoq, por exemplo, afirma da seguinte maneira:
“O ator deve jogar o jogo da verdade: quanto mais ele for ele mesmo, flagrado na
sua fraqueza, mais é engraçado. Ele não deve de forma alguma representar um
papel, mas [sim] deixar surgir, de maneira muito psicológica, a inocência que está
nele e que se manifesta na ocasião do fiasco, do fracasso da sua apresentação. (…)
Quando o ator entra em cena com o seu nariz vermelho, seu rosto apresenta um
estado de disponibilidade indefesa (…) O clown, ultra-sensível aos outros, reage
27
então a tudo o que lhe ocorre, e desta forma viaja entre um sorriso simpático e uma
expressão triste”.
13
Antes de dar continuidade às reflexões de Fo e Burnier, é necessário fazer um
aparte para chamar a atenção à expressão utilizada por Lecoq “manière très psychologique”,
ou seja, “maneira psicológica” e especificar que, quando Lecoq refere-se ao clown dizendo
“deixar surgir de maneira psicológica”, ele não está se referindo a uma psicologia/dramática
ou psicanalítica/dramática, mas a uma busca interna intensa e profunda que deve vasculhar a
alma do ator, procurando aquilo que lhe é negado, proibido ou escondido em sociedade e
revelá-la para o público e para ele mesmo. Neste período de auto-procura “Eles têm liberdade
de fazer o que querem, e esta liberdade faz surgir comportamentos pessoais inesperados”
14
.
Estes comportamentos fugidios revelam a natureza suprimida pela sociedade e assim, através
do “(…) fiasco [fracasso], descortina sua natureza humana profunda que nos comove e nos
faz rir”
15
.
Retomando os comentários sobre o ofício de clown, agora nas palavras de
Dario Fo, que conduz seu discurso afirmando que não se pode vestir uma máscara, um nariz
vermelho e crer que está se fazendo clown, pois “O ofício do clown é formado por um
conjunto de bagagens e filões de origem muitas vezes contraditórias”
16
. Ele está ligado à
magia das máscaras e “Certamente, é na origem da história humana que encontramos às
máscaras [...]”
17
e estas estão ligadas ao “[...] aflorar de um ritual muito antigo, um jogo
simultaneamente mágico e religioso”
18
. Por toda esta magia e história que a máscara de clown
aporta com ela, é necessário saber que “[...] alguém só se torna um clown em conseqüência de
um grande trabalho, constante, disciplinado e exaustivo, além da prática de muitos anos. Um
clown não se improvisa.”
19
. Dario Fo possui um discurso consistente e severo sobre a magia
que acompanha esta máscara e, para ele, é justamente o “ritual” que a envolve que não
permite que o ator a transgrida.
Burnier também é incisivo quanto ao estado que o ator deve encontrar quando
trabalha o clown. Para ele, também é um estado que aflora do uso da máscara e que tem
ligação com cultos sagrados, rituais religiosos e profanos e que este estado atua de acordo
com “[...] o princípio desmistificador do riso, [o qual era] presente na cultura popular
medieval renascentista, [e que] apareceu no cômico circense, fundamentada basicamente na
figura do palhaço”
20
. Este princípio desmistificador do riso foi “personagem” intenso na Idade
Média, ele estava presente nos bufões e loucos, onde tanto uns, quanto outros, não
representavam papéis, eles “eram”. É com base neste primeiro princípio que Burnier se apega
para dizer que “O clown, portanto, não representa, ele é [...] [onde] Não se trata de um
28
personagem, ou seja, uma entidade externa a nós, mas da ampliação e dilatação dos aspectos
ingênuos puros e humanos (como nos clods), portanto, “estúpidos” do nosso próprio ser.”
Burnier, na sua tese, une o princípio do riso, o mesmo que é característica forte no trabalho de
Dario Fo, com os aspectos ingênuos que Lecoq vê no clown. Burnier é o “pilar” que abraça,
em sua teoria e prática, os princípios defendidos por Dario Fo e Lecoq e, como tais, adota a
terminologia clown como referência de seu trabalho.
Com esta rápida exposição dos conceitos dos “pilares clownescos” desta
pesquisa, em que são sublinhadas as diferenças e similaridades das três visões sobre o ofício
do clown, procuramos esclarecer a utilização do termo clown neste processo. É certo que o
fato de utilizar três estudiosos que escrevem em idiomas diferentes (português, francês e
italiano) e do mesmo termo ser encontrado em todos os três idiomas, influenciou para sua
adoção no trabalho, mas existem, também, outras razões. A seguir, nos parágrafos abaixo,
tentaremos esclarecer nosso modo de ver este “sujeito” que atrai tantos conceitos, críticas e
visões.
A partir dos estudos e da prática do ofício de clown, foi sendo desenvolvido um
pensamento próprio sobre este “sujeito”. Para nós o clown é, em primeira instância, a
“essência” do ser humano e esta, efêmera e impalpável, é sentida pelo ator e passada para o
público, para que este possa ver e sentir a identificação com a mesma. Para buscar o contato
com a “essência”, o ator deve chegar a um estado tal em que se vê livre das estruturas sociais,
mostrando-se nu, ou seja, sem preconceitos, arriado de todas as suas defesas e deixar que a
máscara, o nariz vermelho, o guie. Esse “estado é busca importante para todo ator que se
acerca do ofício de clown, ele nos revela um ator/SER humano em toda a sua complexidade,
sem a roupagem que a sociedade lhe impõe. Esse momento de desnudamento é percebido
através de seu corpo (forma, energia e ação), “matéria” onde aflora todos os seus defeitos e
qualidades.
Para revelar essa experiência ao espectador, o ator do ofício de clown traz em
seu corpo o registro e a memória de suas emoções, tudo é expressado e compreendido através
de sua lógica física-corpórea
21
. Tal lógica é descoberta através desse “estado de clown”, onde
cada clown descobre sua própria maneira de pensar/agir e de articulação de idéias/lógica.
Temos, então, que o “estado de clown”, a aproximação da “essência humana”,
pode ser encontrado na tradição circense, no cinema ou no teatro, pois em cada uma destas
manifestações encontra-se, de diferentes maneiras, a busca da exposição da estupidez humana
e de suas pretensões, bem como do absurdo das estruturas sociais que o homem cria para sua
convivência. Esses aspectos são refletidos (clowns como espelhos da sociedade) e postos em
29
reflexão (clowns que relativizam as estruturas sociais); sendo assim, a “essência”, o estado e o
objetivo apresentados pelo clown, é comum a qualquer contexto em que ele se insira.
Na frase anterior fora utilizada a palavra que acreditamos ser a chave de muitas
inquietações entre estudiosos do clown: contexto. As denominações para referirem-se a este
“sujeito” são dadas de acordo com o contexto em que o próprio está inserido, diferenciando as
diversas manifestações do mesmo. Percebemos que o contexto (teatro, circo, cinema, desenho
animado, rua) influencia na maneira de manifestar-se: suas roupas, seu estilo, sua lógica, suas
ações e reações e seu modo de expressar-se (minimalista ou para multidões). O clown é SER
humano e tem em si a comunicação latente, seja ela verbal, ou não. A vontade de comunicar-
se faz com que ele busque o modo ideal para efetivar a comunicação e aproximar-se do
espectador. Quando ele escolhe um contexto para inserir-se, ele também está se protegendo, já
que é marginalizado por ser diferente, neste espaço (circo, cinema ou teatro) ele está dentro de
uma atmosfera fantástica, sendo livre para dizer e fazer o que quiser, do modo que quiser.
Então, o clown escolhe o contexto e linguagem que melhor lhe convém.
Podemos exemplificar da seguinte forma: se temos de um lado Arrelia
22
e do
outro Carlitos
23
, diremos que ambos apresentam o “estado de clown”, porém cada qual
impregnado do contexto em que está inserido (circo ou cinema). Já que o clown “joga” com
tudo a sua volta, é possível que ele jogue com o meio em que se encontra, sendo assim, este
contexto pode influenciar no seu agir, em seu estilo de vestir, na maquiagem, na ação e na
reação. Este nosso entendimento sobre o clown, que o integra ao circo, ao teatro e ao cinema,
está alicerçado em nossos pilares clownescos, principalmente, nas visões de Burnier e Lecoq.
Burnier afirma que “Em suas andanças através do tempo, o clown ocupou
diversos espaços: a rua, a praça, a feira, o picadeiro, o palco. Com o advento do cinema, no
início do século XX, ele encontrou um novo lugar para continuar revelando à humanidade seu
lado ridículo e patético”
24
. Também, ao longo de seu capítulo sobre o clown, Burnier utiliza
tanto aqueles que se inserem no circo, quanto no cinema para exemplificar seu texto e afirma,
ainda, que foi neste último que eles ganharam um grande requinte.
Lecoq também afirma que “[...] o clown não está mais ligado ao Circo, deixou
a pista pelo palco e pela estrada.”
25
e comenta sobre Laurel e Hardy e Buster Keaton. Na
verdade, a nosso ver, o que Lecoq diz com essa afirmação é que o clown não abandonou o
circo, e sim que ganhou outros espaços, como o palco do teatro e o cinema.
Fo também tece comentários sobre os clowns e os espaços que ganharam e suas
“linguagens”. Para ele, o clown, como todo ser/sujeito que participa da história, é “mutável”,
adaptável ou “transformável”, caminhando ao longo dos tempos. Segundo Fo, “Também para
30
o mundo do clown existem níveis diferentes. [e] Seguramente os Circenses são aqueles mais
fechados”
26
e faz uma observação em que chama a atenção para o trabalho do ator do ofício
de clown: “Se pensarmos nas comédias de Totò, ou nas de Buster Keaton ou do cinema mudo
em geral, se pensarmos nos vários tombos, o dublê, a bundada, ou as várias cenas de
equívocos de pessoas, de qui-pro-quo, que nasceram e foram usadas em tempos
remotíssimos”
27
, podemos perceber, então, que “Há quem sabe usá-las de modo perfeito e
criativo [...]”
28
. Foi a partir dessas observações que percebemos a relação de Dario Fo com os
clowns do cinema mudo, as quais intensificaram nossa certeza de que o meio em que o clown
se apresenta e se insere pode influenciar na sua linguagem/conduta.
No caso dos espetáculos resultantes do processo de encenação apresentado, o
meio em que os clowns estão inseridos é o teatro, mas é importante ressaltar que existem
outras linguagens e referências que influenciam na concepção do espetáculo e na linguagem
destes clowns. Porém, estas interferências foram colocadas nos espetáculos, os clowns se
inserem no universo que constitui o espetáculo, no momento destes, em outras circunstâncias
seus comportamentos seguem suas ações próprias. Mais tarde, no item que trata sobre a
concepção dos espetáculos, estas influências e interferências das linguagens serão mais bem
esclarecidas. Neste momento, iremos deter-nos sobre o clown e o olhar sobre ele, antes de
conectá-lo ao “complexo” que envolve a concepção dos espetáculos.
Para finalizar, no trabalho prático que envolve esta pesquisa, a terminologia
clown é mantida, também porque, seguindo a idéia de que o nome recebido surge de acordo
com o contexto em que está inserido, pensamos ser a denominação que mais tem proximidade
com o trabalho que os atores de GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE realizam no palco.
I.2. Sobre o clown: reflexões e considerações
Figura 6 – Foto: Léo Azevedo
Reservamos este espaço para
apresentar um breve olhar sobre a natureza do clown
e, para melhor desenvolver nosso pensamento,
consideramos conveniente definir algumas das
figuras que serão comparadas ao mesmo ou citadas
ao longo de nossas reflexões.
Anteriormente, já fizemos uma observação sobre o bufão e o cômico dell’arte,
então, partiremos para a descrição do “louco”, personagem que habitou as ruas da
31
Antigüidade e da Idade Média e, no século XVII, ganhou espaço nos palácios, conhecido,
também, como “Bobo da Corte”. Suas principais características, segundo Serge Martin, eram:
um fiel servidor, divertido, imprevisível, malicioso, irônico, sábio conselheiro, revelador e
provocador, cujas palavras e presença tocavam a realidade como um “portal” da verdade,
revelando toda e qualquer “falsa intenção”, desvelando a frágil estrutura da sociedade.
Para completar, falaremos sobre o próprio clown, mais especificamente,
sobre a dupla, constituída pelo Branco e pelo Augusto. Segundo Dario Fo:
“No mundo dos clowns só existem duas alternativas: ser dominado, resultando no
eterno submisso, a vítima (...); ou dominar, assim surge o clown branco (o Louis),
que já conhecemos. É ele que conduz o jogo, que dá as ordens, insulta, manda e
desmanda. E os Toni, os Pagliacci, os Augustos lutam para sobreviver, rebelando-se
algumas vezes... mas, normalmente, se viram.”
29
Esta é a estrutura da dupla de clowns e, segundo Viganò, a criação desta foi
uma necessidade de identificação do ser humano, pois, diante de uma situação ou de pessoas,
sempre nos colocamos como dominadores ou dominados e foi por isso que:
Precisava que o clown se dividisse em dois personagens um aristocrático e um
cotidiano. Um moralista brilhante e um caipira muito idiota a quem inculcar as boas
maneiras e dar ponta pés no traseiro de modo a demonstrar a pedagogia do professor
e para permitir a tal estudante pouco dotado, de ser vítima eterna da própria
idiotice.
30
A relação que se estabelece entre o Branco e o Augusto reflete as relações
entre os seres humanos, ressaltando nossa postura diante do outro e das situações, mostrando-
nos como dominador ou dominado. Mais adiante, ao longo deste item, vamos desenvolvendo,
um pouco mais, as características da dupla de clowns.
Voltamos nosso olhar para a natureza do clown e, para tanto, faremos uma
rápida exposição da sua origem e trajetória. Porém, não entraremos numa sondagem histórica
e geográfica detalhada, uma vez que acreditamos que esta seria objeto de uma pesquisa longa
e aprofundada, voltada especificamente para um registro histórico. Ao longo de nossas
leituras, encontramos pesquisas dedicadas ao clown e a sua origem, que possuem pareceres
um pouco conflitantes, pois, conforme assinala Viganò em seu estudo sobre o clown, “Nasi
rossi – il clown tra circo e teatro”, “A primeira hipótese a esclarecer é referente ao “lugar
comum” que faz nascer o clown no Circo [...]”
31
. Mas, segundo o mesmo, “todos nós somos
propensos a associar a figura do clown àquela do espetáculo circense[...]”
32
, e que “[...], se de
um ponto de vista literário, a associação pode ser válida, não o é, se olharmos esta máscara de
um ponto de vista dramático e de personagem cômico.
33
32
Quanto a esta referência histórica, Dario Fo afirma que:
O clown não é uma invenção do circo ou de quem sabe lá. O clown é feito de
centenas de personagens cômicos diferentes. Tanto é verdade que as características
do clown são muito diferentes. É impossível fazer uma caracterização
esquematizada do mundo do clown. Dá-se ao invés a repetição de alguns fatos que
vêm de toda a história da comédia, porque o clown tem suas origens não somente na
Comedia dell’arte, mas sem dúvida no teatro Romano, e naquele Grego.
34
Viganò também fala sobre a origem do clown e da relação deste com o
circo, afirmando que:
O clown tem raízes muito mais antigas do que as circenses e podemos afirmar que
seu nascimento, com um nome diferente está ligado às primeiras formas de teatro. O
circo tem o mérito de ter apresentado e tornado famosa a sua máscara e de ter lhe
dado o nome de “clown”, que o torna hoje reconhecível em qualquer parte do
mundo. As origens do clown podem remontar, encontrar referência ou memória, em
tempos muitos distantes na antiga Grécia. No oitavo século antes de Cristo,
descobrimos o primeiro exemplo daquilo que, com bastante fantasia, podemos
aceitar como possível ancestral do clown. Trata-se do “bufão” que em cima das
carroças rodavam pela Grécia antiga
35
.
Para Viganò, falar sobre o clown é, inevitavelmente, se aproximar do bufão,
pois o primeiro faz parte de uma história de “Uma corja de cômicos errantes, cujos
descendentes podem talvez reencontrar-se em certos autores nômades da Magna Grécia e
depois nos menestréis e nos jograis Medievais e ainda nos comici dell’arte do final do
Renascimento, até chegar, no curso do tempo, aos atuais clowns do circo e do teatro”
36
.
A partir destas observações, pensamos que seria necessário um estudo
historicamente profundo para buscarmos as raízes deste “personagem cômico”, que ele nos
aponta. Mas nosso objetivo não é discutir ou defender algum tipo de afirmação em volta da
origem do clown, embora saibamos que a sua participação no surgimento do novo circo é
importantíssima tanto para este, quanto para a sua própria história e estaremos fazendo um
breve comentário sobre o clown e o circo, no segundo momento do terceiro capítulo, espaço
destinado às influências que os espetáculos receberam. Pois, conforme afirma Bolognesi, “O
circo é a exposição do corpo humano em seus limites biológico e social. O espetáculo
fundamenta-se na relação do homem com a natureza, expondo a dominação e a superação
humana.”
37
, dentro desta mesma perspectiva, os clowns entram em cena para “explorar os
estereótipos e situações extremas, [eles] evidenciam os limites psicológicos e sociais de
existir”
38
, através da união entre o grotesco e o sublime, personificados nas figuras do
33
Augusto e do Branco, que trazem em si “a tensão, própria do sublime e o relaxamento,
próprio do cômico grotesco.”
39
Contudo, este estudo não tem como principal objetivo identificar a
“verdadeira” origem do clown e, sim, tecer comentários consideráveis para a nossa pesquisa,
que venham ao encontro de nosso olhar sobre o mesmo. Dessa forma, faremos como um
clown e “brincaremos” um pouco com as “verdades históricas”, citando uma observação de
Dario Fo, que se refere à origem do clown como possuidora de muitas contradições. Ele,
sabendo que é necessário aproveitar os “personagens” que esta história nos traz, nos oferece
uma versão que nos serve largamente, já que não entraremos nesta discussão. Para ele:
O clown vem de muito longe: eles já existiam antes do nascimento da Commedia
dell’Arte. Podemos dizer que as máscaras à italiana nasceram de um casamento
obsceno entre jogralesas, fabuladores e clowns; e, posteriormente, depois de um
incesto, a Commedia pariu dezenas de outros clowns.
40
Eis aqui uma eficiente explicação, pois várias figuras fantásticas, como os
bufões, saltimbancos, loucos, clowns e os personagens da commedia dell’arte, possuem suas
origens fortemente entrelaçadas, sendo difícil de constatar os momentos de alianças,
similaridades e diferenças, já que os limiares são tão próximos que suas origens e histórias,
em nosso imaginário, fundem-se e confundem-se. Com certeza, esta maneira de Dario Fo
explicar as origens do clown vem de um olhar próprio sobre o sujeito, visto que percebemos,
em seu discurso, uma grande proximidade entre o clown e o bufão.
Esta nossa compreensão surgiu com base no seu discurso, acima citado,
sobre a origem do clown e numa outra observação em que Dario Fo apresenta-o com raízes
obscenas e “cruéis”, isto nos dá a impressão de que, para ele, o limiar entre clown e bufão é
difuso. Não estamos falando de limiares confusos, mas daqueles que se aproximam e se
difundem por possuírem muitas semelhanças. Fo nos diz que:
Hoje, o clown tornou-se um personagem destinado a divertir as crianças. Ele é
sinônimo de puerilidades ingênuas, de um candor um pouco bobo e de
sentimentalismo. O palhaço perdeu a sua capacidade de provocação, seu
engajamento político. Com efeito, outrora ele expressou a violência, a crueldade, a
necessidade de justiça. Na realidade, trata-se originalmente de um personagem
obsceno, depravado, mau, diabólico. Nas catedrais da Idade Média, encontra-se
representações de « bateleurs »(NDT: palavra antiga para palhaço/acrobata...)
exibindo seu sexo. Não se deve esquecer que o clown mais antigo mencionado nos
documentos da Inglaterra usava a máscara de Polichinelle, o corcunda, o maldito.
41
A partir deste discurso, compreendemos que, para Dario Fo, o clown tem o
mesmo perfil e objetivo que o bufão, que quase não se diferencia o caráter de um e de outro,
34
pois, para ele, segundo nossa compreensão, os dois possuem origens na Antigüidade e, num
campo imaginário, viveram e vivem harmoniosamente.
Mas Lecoq possui um ponto de vista um pouco diferenciado do de Dario Fo,
ele não vê agressividade ou perversidade no clown. Segundo ele, “O clown ultra-sensível aos
demais, reage então a tudo que lhe acontece e viaja assim entre um sorriso simpático e uma
expressão triste”
42
, ele carrega as dores do mundo, ele é a “essência do ser humano” que
revela suas dores deixando “(...) surgir de maneira muito psicológica a inocência que está nele
e que se manifesta na ocasião do fiasco, do fracasso da sua apresentação”
43
. Em nossa
compreensão, Lecoq o vê mais triste, sensível e “existencialista”, que perverso e provocador.
Então, pode-se afirmar que enquanto Dario Fo vê o clown mais grotesco, Lecoq o vê mais
sublime e ele, como figura fantástica que é, traz em si o grotesco e o sublime, numa união
harmoniosa e contrastante.
Estas observações revelam a principal diferença de olhares e concepções de
Dario Fo e Jacques Lecoq, porém, nestes dois pesquisadores, existe a concordância sobre a
proximidade do clown com a natureza do ser humano. Também, para ambos, o clown vive em
um “estado”, no qual sua visão de realidade não é a visão social ordinária; ele vive numa
espécie de “realidade paralela” e, perante o público, serve como portal para esta.
Fo e Lecoq possuem, em seus conceitos sobre a natureza do clown, pontos
que concordam e divergem, enquanto que, vemos na teoria de Luis Otávio Burnier, no que se
refere a natureza clownesca, uma mesclagem harmoniosa destes componentes. Este
pesquisador possui um discurso sobre o clown que nos serve como “intermediário”. Burnier
vê o bufão de forma muito diferente do clown, mas, ao mesmo tempo, muito próximos um do
outro. Para melhor explicar seu olhar e para se fazer compreender, ele explica sua visão a
respeito da problemática, utilizando-se de imagens metafóricas. Para ele, “(...) o bufão é uma
pepita de ouro e o clown é a pepita lapidada”
44
. Ainda, Burnier vê os dois como se fizessem
parte de uma mesma família, em que desempenham papéis similares:
O clown também desempenha função semelhante à dos bufões e bobos medievais,
quando brinca com as instituições e valores oficiais. Ele, pelos nomes que ostenta,
pelas roupas que veste, pela maquiagem (deformação do rosto), pelos gestos, fala e
traços que o caracterizam, sugere a falta de compromisso com qualquer estilo de
vida, ideal ou instituição. É um ser ingênuo e ridículo; entretanto, seu
descompromisso e aparente ingenuidade lhe dão o poder de zombar de tudo e de
todos, impunemente.
45
A zombaria revela as “verdadeiras intenções” das convenções e normas
sociais, expondo o absurdo e a fragilidade das mesmas; para aquele que é alvo desta zombaria
35
o riso provocador traz consigo a crueldade, pois desnuda o “alvo” das máscaras utilizadas na
convivência em sociedade, denunciando a falsa aparência e revelando a verdade oculta. Por
estas razões, o clown torna-se portador da verdade, e sabemos que toda a verdade é cruel e
dolorosa por revelar as “feridas” escondidas da sociedade e do homem, então,
consequentemente, o clown é também portador da crueldade.
A crueldade abordada pelo clown intensifica-se no jogo que acontece em
cena, o espaço que a dupla Branco e Augusto ocupa é obscuro e cruel. Nos jogos os clown
suscitam uma reflexão sobre as relações humanas e toda a sociedade, com sua aparente
ingenuidade ele zomba e ri de tudo: do poder, da guerra, da fome, da riqueza, da pobreza, da
morte, do diabo, de Deus e do próprio homem. Conforme a afirmação de Lecoq (citada
anteriormente), o clown sente tudo profundamente, ele é sensível àquele que o assiste, logo,
ele sabe que “Cada individuo é único, insubstituível: é isso que faz a sua dignidade, mas
também a sua fraqueza.
46
. Na cena, ele aproveita para revelar estas fraquezas através de
situações cômicas, que apesar do caráter brincante, não são menos duras e cruéis. Esta
característica sempre o acompanhou ao longo de sua travessia pela história:
[...]é muito revelador constatar que, desde o início, a tentação cômica está presente;
percebe-se que basta pouquíssima coisa para que uma face nobre vire ridícula, [e]
que a máscara da dignidade de cada homem é extremamente fina e que atrás [dela],
sempre percebível para o olho exercitado, transparece a face grotesca. Ninguém
escapa disso: cada um de nós tem seu aspecto ridículo e todo homem sério tem seu
revés cômico..
47
É este lado cômico e ridículo que o clown revela através da auto-exposição.
Através da ausência de compromisso com a sociedade que lhe rejeita, ele mostra-se como um
espelho da mesma, mas apresenta-se como um espelho deformado. Ele mostra, revela a
verdadeira sociedade através da sua lógica própria e com seu aparente absurdo toca as
estruturas sociais e brinca com os tabus desta, evidenciando-os e, conseqüentemente,
provocando uma reflexão sobre os mesmos.
Quando o público vê a dupla de clowns, faz uma auto-transferência, ele se
vê na condição que está sendo apresentada no palco, ou como opressor ou como oprimido. O
ser humano tem sentimentos complexos e os clowns Branco e Augusto nos fazem reencontrar
esta complexidade através de suas características contrárias, através da união entre o sublime
e o grotesco e o cômico e o trágico.
Esta união entre o grotesco e o sublime já foi citada anteriormente sem ser
tocada em minúcias, aproveitamos esta segunda oportunidade, para adentrá-la um pouco mais.
36
Para tanto, servimo-nos das observações de Vitor Hugo sobre esta união que se faz presente
em toda a natureza, pois “tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado
do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a
sombra com a luz.”
48
. Utilizando esta mesma citação para falar do clown, parece que estamos
nos referindo à dupla clownesca: em que o Branco é a personificação do perfeito e o Augusto
da imperfeição; o Branco é a elegância e o Augusto a mendicância; o Branco é o inteligente e
o Augusto o estúpido. Ainda que ambos tragam em si todas as características citadas, no jogo
entre as duplas, sempre um possui a superioridade em relação ao outro em determinado
aspecto. Transferindo as observações de Vitor Hugo sobre o grotesco e o sublime no drama,
aproveitando de um sentimento existencialista beckttiano, em que nenhum drama é maior que
o de viver e visionando o clown segundo os “pilares clownescos” deste processo, ou seja,
como o SER humano em toda sua complexidade, vê-se o clown como portador desta união
entre o feio e o belo, carregando em si o grotesco e o sublime harmoniosamente.
As duplas de clowns mostram-nos esta união e revelam-nos a complexidade
do ser humano. O Branco e o Augusto mostram-nos como eles são “[…] o impulso para cima
e o impulso para baixo, divididos, separados[...]”
49
, desta forma, os dois formam um conjunto
que nos é familiar, “Porque as duas figuras encarnam um mito que está dentro de cada um de
nós – a reconciliação dos opostos, a unidade do ser.”
50
. Cada vez que o clown se mostra diante
do público para nos revelar a verdade, ele “[...] sacrifica, diante de nossos olhos, sua
identidade ao representar a todos nós, oferecendo à nossa crueldade seu corpo e sua honra”
51
.
Durante o espetáculo, nós aproveitamos para ver-nos na figura elegante e inteligente do
Branco ou para confrontar-nos com o fracasso do Augusto, ou ainda, podemos ver-nos como
o cúmplice da crueldade do primeiro para com o segundo, porque nós estamos lá e não
fazemos nada para defender o Augusto; e mais, nós rimos, nós temos prazer vendo o
sofrimento dele.
Neste momento de riso, nós somos capturados pelo “efeito cômico” e pelo
próprio riso que compreende “[...] a embriaguez da relatividade das coisas humanas, o prazer
estranho da certeza de que não há certeza. Este riso […]é profundamente ambíguo.”
52
. E por
esta reação de rir, consolamo-nos dizendo que “Além do burlesco de superfície [...] [se
tomamos] o partido de rir, é porque não serviria de nada chorar.”
53
. O riso, resultado desta
reação, é extraordinário, porque ele nos faz sair do mundo real e entrar num mundo onde tudo
é relativo, porque se rimos do sofrimento do outro é por não termos mais medo de sermos
punidos ou reprimidos por uma força divina superior ou, talvez, porque seja:
37
[...] o riso do alívio, que arruina os esforços terroristas da pastoral oficial; é a divina
surpresa, o relaxamento brutal da tensão, no qual os analistas encontram uma das
principais fontes do riso. Ele exorciza o medo, sem negar a existência do inferno .
[...] O riso aparece como a arma suprema para dominar o medo. Quem ri do inferno
pode rir de tudo.
54
Como dito anteriormente, o ser humano possui sentimentos complexos e
“Rir, chorar: a diferença é menor do que se pensa, como já o dizia Rabelais ‘Muitas vezes,
choramos e rimos de uma mesma coisa’”
55
. O clown deixa esta complexidade evidente,
produzindo, através do jogo cômico, uma tomada de consciência da “Ambivalência do real e a
ambivalência do riso”
56
onde ele nos faz enxergar, através de um jogo de espelhos, a nós
mesmos enquanto membros de uma sociedade e as nossas estruturas sociais.
O riso e tudo aquilo que lhe concerne, faz parte da história da humanidade e
os clowns Branco e Augusto são herdeiros desta longa tradição que passou por vários estágios
de desenvolvimento e ganhou diferentes nomes: riso farsesco, burlesco, grotesco, cômico e
muitos outros. O riso se apresenta sob várias formas, passando pelo humor discreto, pela
ironia, pelo cinismo, pelo escárnio até chegar à gargalhada; o mais importante, porém, não é o
nome dado, mas a sua presença. Os clowns são sempre associados à presença do riso, mas isso
não significa que eles estejam no palco somente para divertir o público, pois o riso também
libera em nós uma outra consciência, ele nos ajuda a decifrar a realidade, ele tem um efeito
particular sobre o público porque “O riso não é apenas um divertimento, ele também pode ser
uma filosofia: aí reside uma das grandes descobertas de Rabelais. [...]”
57
. Então, por detrás do
riso, esconde-se a complexidade do conflito humano e o clown leva o público a descobri-la.
É por isso que os clowns são especiais, com seus narizes vermelhos eles
fascinam os homens, e é certo que este fascínio ocorre por causa da identificação com os
mesmos, por que:
[...] o clown encarna os traços da criatura fantástica, que exprime o lado irracional
do homem, a parte do instinto, o rebelde a contestar a ordem superior que há em
cada um de nós. É a caricatura do homem como animal e criança, como o enganado
e o enganador. É um espelho em que o homem reflete-se de maneira grotesca,
deformada, e vê a sua imagem torpe.
58
O clown, através de seu jogo no palco, mostra e afirma a “verdade”, ele traz
e exprime as dores do ser humano: o desejo de liberdade, a opressão, a humilhação, a
dominação, a hipocrisia, as estruturas sociais e os jogos de interesse. Com seu jogo e sua
lógica própria, os clowns foram “figuras” importantes na história da humanidade, como já
citado anteriormente. Burnier defende que o clown, tanto quanto seus antepassados (tipos
característicos da baixa comédia grega e romana; bufões, bobos da Idade Média;
38
personagens/tipos/máscaras das da commedia dell’arte e o palhaço circense), possui mesma
“essência” e objetivo: “colocar em exposição a estupidez do ser humano, relativizando
normas e verdades sociais.”
59
Logicamente, esta função encontra-se ainda viva na conjuntura atual, pois o
clown está sempre engajado na história e no contexto no qual está inserido, para colocar em
evidência a verdade sobre estes.
Mas, no decorrer da história, o clown foi e é seguido por muitos conflitos.
Como sublinhou Dario Fo, a tradição da qual é herdeiro vem de personagens que apresentam
um perfil incorreto aos olhos da Igreja e da sociedade cristã. A ordem religiosa teve um
grande poder durante um importante período da história ocidental e, durante este período, o
clown e toda sua família foram amaldiçoados pela Igreja, pois faziam parte de uma tradição e
de uma manifestação popular
60
condenada durante muitos séculos: o riso.
Para sustentar um pouco estas afirmações, seguindo as observações de Jorge
Minois, tomamos a Bíblia como exemplo. A Bíblia é um livro de muitos estudos e graças às
escrituras sagradas – registro do passado “religioso e de sofrimento” da humanidade – os
pesquisadores podem certificar-se de que jamais é mencionado um só riso de Jesus; muito
pelo contrário, o riso esteve sempre do lado dos inimigos de Cristo, estes tiveram grandes
gargalhadas assistindo ao seu sofrimento. Então, durante um largo período da história
ocidental cristã, esta constatação de que Jesus jamais riu e que o riso esteve sempre presente
em seus inimigos, trouxe a falsa idéia de que o riso era uma manifestação demoníaca.
Criando uma visão um pouco mais fantástica deste pensamento, talvez,
quando o diabo ofereceu a maçã para Eva e esta a ofereceu para Adão, o riso dele tenha sido
escutado em todo o mundo, do inferno ao paraíso. Neste momento, quando surgiu o primeiro
pecado, o diabo gargalhou tão intensamente que se fez ouvir por todos, inclusive por Deus,
que percebeu sua presença através do riso e para espantá-lo negou esse ato de satisfação e
gozo a todos que lhe seguissem ou lhe representassem.
Então, depois do seu fracasso diante da tentação do diabo, o homem passou
a ser um ser fraco e penitente e, por conseqüência, ele não tinha razão para sentir-se feliz e rir:
Desde a maçã, o homem é irremediavelmente maldito, mau, perdido e cada um
expressa à sua maneira seu ódio da condição humana, seu desejo de fugir dela, de
acabar com ela: perdendo a sua identidade na fusão com o divino ou esmagando-a
na infâmia sob um riso diabólico.
61
Por esta razão, durante muito tempo, aquele que, mesmo sabendo de sua
pobre e execrável condição humana, ria grotescamente, era considerado em estado de loucura
39
e sob um poder diabólico. Para a Igreja, aquele que ria não compreendia o mundo da razão.
Para ela:
O riso grotesco diz [dizia] respeito à própria essência do real, [fazendo com] que
esta perde [perdesse] a sua consistência. [Era a] Verdadeira revanche do diabo no
sentido em que ele pulveriza [pulverizava] a ontologia, desintegra [desintegrava] a
criação divina, reduzida [a reduzindo] ao estado de ilusão”.
62
Assim, após ter perdido a ligação com o divino, o homem se encontrava
totalmente perdido na sua miserável condição humana, ficando na companhia do demônio.
Este pensamento do riso como visão diabólica prolongou-se durante toda a
Idade Média e, por isso, o que era de sentido cômico ficou de fora do domínio sacro. A
proibição e exclusão de qualquer manifestação cômica dentro dos conventos ou seminários foi
radical e aquele que acreditava que rir era uma manifestação do demônio sentia mais que
certeza da existência de Deus, a convicção da presença do diabo. Para os cristãos, o riso era
um sinal de perigo e aqueles que viviam com esta manifestação ou buscavam provocá-la
também o eram; os bufões, os clowns, os mimos e outros fanfarrões eram considerados como
pessoas que viam o mundo ao inverso, e a Igreja julgava esta visão de mundo inadequada,
afirmando que “A perversão e a transgressão das leis naturais podem fazer rir, mas [é] do riso
do diabo que se deleita a embaralhar tudo deixando nos na maior confusão; e este riso [...]
assusta...”
63
. Os religiosos tinham um verdadeiro pavor de serem contaminados pelo riso e,
assim, ficarem sob a presença e domínio do diabo e para se prevenirem contra este perigo
iminente, expulsaram-no dos domínios religiosos.
Por outro lado, o riso que foi expulso dos domínios sacros, encontrou seu
lugar cativo na rua, com os bufões, saltimbancos, trovadores e clowns; “[...] e passou a ser a
característica essencial da cultura popular, que evoluiu fora da esfera oficial, e é graças a esta
existência extra-oficial que a cultura do riso se distinguiu pelos seus radicalismo e liberdade
excepcionais, pela sua implacável lucidez”
64
.
O riso, através de seus “porta-vozes” (clowns, bufões, loucos...), os quais
nos levam a uma constatação do absurdo mostrando-nos uma visão inversa do mundo, é
ligado a várias manifestações da cultura popular, nas quais encontramos como ascendentes e
descendentes do clown, personagens que são desconhecidos na cultura atual. Se formos
estudar a história do clown, ela revela que:
Atrás da sua máscara esconde-se outra figura, a do terrível Hellequin, o qual, na
Idade Media, conduzia a tropa dos espectros que vinham assombrar os vivos, uma
vez por ano, nos dias de carnaval. Estes ímpetos pagãos começavam numa noite para
acabar na noite seguinte numa fogueira expiatória. Assim, quando o Branco [briga,
40
bate e] conversa sobre tudo e nada com o Augusto, ele interpreta as liturgias
liberatórias dos antigos carnavais.
65
Nestas manifestações e cortejos acontecia o encontro do riso com o
sofrimento, a dor e a crueldade, ali se davam à união de sentimentos e sensações divergentes.
Por todo o seu caminho na história, o clown carrega e causa o riso por
diferentes meios, para ele tudo pode ser relativizado e é digno de uma brincadeira: desde o
nascimento até a morte, desde o sublime até o grotesco, pois o riso é ambíguo por natureza.
Georges Minois, em seu estudo sobre o riso e o escárnio, cita Bakhtin, que descreve esta
ambigüidade como “[...] uma transposição para o registro grotesco da imortalidade histórica
do povo [,] a visão cósmica do mundo passa assim [,] a ser o meio através do qual a cultura
popular afirma seu caráter indestrutível e triunfante.”
66
Nos meios populares o clown percorreu a história, com toda a sua família
(bufões, brincantes, loucos), com uma grande liberdade, trazendo-nos um novo olhar sobre o
mundo, apoiado sobre a constatação do absurdo das estruturas e convenções sociais as quais
ele denuncia, desmistifica e relativiza através do cômico. A “ação cômica” pode revelar uma
outra realidade e causar um riso revolucionário que “[...] resulta da verificação da
incompreensibilidade do mundo, verificação [esta,] consecutiva a traumatismos coletivos que
abalaram [abalam] a fachada lógica das coisas, [e] que permitiram [permitem] que fosse
vislumbrada, por trás das aparências, uma realidade proteiforma, sobre a qual não temos
domínio”
67
; este olhar desmistificado sobre o mundo reduz também o ser humano a uma
condição absurda – o homem vê-se num mundo mentiroso e numa condição miserável onde
tudo aquilo que está ao seu redor é falso. Consequentemente, quando se percebe integrado
neste falso mundo, ele se vê, também, como um ser de falsos valores. Quando o clown,
através de seu jogo, chega a um riso burlesco, farsesco, cômico, irônico, cínico, hipócrita,
cáustico, grotesco ou qualquer que seja o nome que possa receber, ele toca a consciência do
homem e, sensível a reação daquele que o assiste, o clown se utiliza desta tomada de
consciência para se defender, aprender, atacar ou revelar.
Com o passar do tempo, o clown foi adquirindo um novo espaço na
sociedade que o rejeitava e hoje ele não é mais visto como um ser que faz parte de uma
conspiração diabólica, mas, por outro lado, ele encontra um outro problema: depois de ter sido
posto ao lado do demônio durante muito tempo, atualmente é visto sob uma outra perspectiva,
ele é encarado como alguém que não possui um papel importante dentro da sociedade, ele
perdeu o seu perfil complexo e passou a ser um personagem destinado a divertir as crianças.
Então, a afirmação de Dario Fo, dizendo que hoje, para muitos “Ele é sinônimo de
41
puerilidades ingênuas, de um candor um pouco bobo, de sentimentalismo, [que ele] perdeu a
sua capacidade de provocação [e] o seu engajamento político”
68
, tem seu lado verdadeiro.
Muitas vezes as pessoas quando vêem um clown, jamais pensam que aquela figura de sorriso
simpático e doce possui, também, um perfil malicioso.
Esta idéia do clown como alguém que tem como objetivo fazer “palhaçada”
somente para divertir o público, é uma idéia que apareceu pouco a pouco durante o percurso
de sua história. Durante séculos, após a rejeição de sua figura, pelo cristianismo e
protestantismo, ele sofreu da tentativa social e religiosa de converter o mal em bem e é, sem
sombra de dúvida, por esta razão que a sociedade esforçou-se para “catequizá-lo” e
transformar o riso grotesco em um “só-riso” simpático. Para tanto, foi escolhida a maneira
mais eficiente de fazer esta transformação: através do mundo infantil. De acordo com esta
hipótese sobre o caminho percorrido dentro do espaço social até os tempos de hoje, pode-se
interpretar que o “sorriso simpático” que Lecoq afirma ser uma característica do clown, pode
ser o resultado desta tentativa de inseri-lo dentro de uma sociedade formalizada.
Falamos em “tentativa de inseri-lo dentro de uma sociedade formalizada”,
pois o clown é revolucionário por natureza e conhece muito bem o contexto social que o
envolve. Ele, porém, não faz parte da sociedade como ela é estruturada e, justamente por
conhecer as estruturas formadoras e formadas pela mesma, é que ele pode trabalhar nas bases
desta para confrontar e abalar os seus valores. Se a sociedade tenta integrá-lo num quadro ou
estrutura social, para aceitá-lo, o clown começa a jogar e, por detrás do aparente “sorriso
simpático”, ele carrega a crueldade, levando o público para um universo de total absurdo. Em
última instância, o clown mostra que “O mais cômico é o próprio homem e suas pretensões”
69
.
O clown nos faz ver que, na verdade, nós, seres humanos, “Somos todos clowns, todos nós
acreditamos que somos belos, inteligentes e fortes, enquanto que temos nossas fraquezas, [e]
nossa [parte] irrisória, características que provocam o riso ao aparecerem
70
. Esse riso é
ambíguo, uma vez que rimos daquele que se mostra fracassado diante de nós, mas nos vemos
tão fracos quanto ele, então, estamos rindo de nós mesmos - transformamo-nos em seres
cruéis e fracos. A percepção desta ambigüidade nos traz outros valores, essa tomada de
consciência da insignificância da natureza do homem é o principal “jogo” do clown, objetivo
que ele esconde por trás de uma aparente ingenuidade e graça.
Nos dias de hoje, a violência e a agressividade gratuita são características
presentes na vida ordinária. A nosso ver, muitas vezes, para tocar o público, o clown utiliza-se
de um jogo sensível, em que a agressividade e a violência estão implícitas, sutis e atingem
profundamente a sensibilidade do espectador. O clown, tanto quanto o ser humano, é um
42
conjunto de elementos complexos e difíceis de serem definidos e desvendados com uma
“precisão clínica”. Ele pode ser abordado de diversas maneiras, dependendo da teoria e da
prática adotadas, mas acreditamos que ele jamais desaparecerá da história, pois vem
sobrevivendo a ela desde a Antigüidade. Acreditamos, ainda, que ele jamais perderá seu
principal objetivo e tradição, que é de colocar em evidência a complexidade da natureza do
ser humano - fato que lhe dá seu caráter cruel.
É esta a crueldade utilizada nos espetáculos GODÔ, TRATTORIA e
JOGUETE. Relações de manipulação, chantagem e opressão, expostas através da sutileza e
graça do clown, com a precisão e a poesia do mimo e com imagens que procuram criar a
atmosfera dos filmes do cinema mudo; apresentamos o clown como espelho deformado do ser
humano, exercendo um desvelamento das imperfeições, que revela o absurdo da condição
humana e da “cruel” convivência com o seu duplo. O que nos interessa, principalmente, são
as pequenas crueldades que o ser humano exerce sobre o outro, aquelas que, aos olhos de
quem está de fora, parece “quase nada”, mas, para aquele que a sofre regularmente, é ferida
aberta. Nosso foco está nas pequenas decepções, frustrações e manipulações do dia-a-dia, que
se acumulam e se transformam em situações insustentáveis, como diz Beckett, através de
Clov, em “Fim de Partida”, nas relações cotidianas “os grãos juntam-se aos grãos, um a um e,
de repente, é um monte, um monte quase impossível”. Isto é o que buscamos mostrar no
palco através do jogo de cena e do cômico, um espetáculo em que a relação entre o Branco e o
Augusto denuncia nossos impulsos mais baixos e grotescos ao lado de nossos anseios mais
nobres e sublimes, mostrando a complexa e controversa natureza humana, tendo como base
situações de simples convivência.
I. 3. O diálogo
Figura 7 - Foto: Léo Azevedo
Este processo de encenação,
no que concerne à linguagem clownesca,
como mencionado anteriormente, possui um
diálogo entre os conceitos e as técnicas de
Burnier, Lecoq e Dario Fo. Como visto no
primeiro momento do capítulo anterior, seus
conceitos nos apontam olhares um pouco divergentes sobre o “sujeito”, mas todos concordam
quanto ao fato de que o ator do ofício de clown deve SER e jamais “interpretar” um clown.
Todos estão de acordo com o fato de que, enquanto estiver dentro da atividade clownesca, o
43
ator deve estar no “estado de clown”, pois este proporciona-lhe uma organicidade, onde ele é
clown. Este princípio une os três teórico-práticos, que embora, passem por caminhos que
muitas vezes parecem distantes, apontam para o mesmo ponto de chegada: a organicidade do
SER clown. Então, as técnicas e as teorias de Burnier, Lecoq e Dario Fo, possuem idéias que
se tocam, cruzam-se, entrepassam-se, permeiam-se e, também, que se distanciam, fazendo
cada um o seu próprio caminho, até chegarem ao mesmo ponto de conclusão.
O motivo de não escolhermos uma só visão sobre o clown é que, ao deparar-
nos com três olhares, foi necessário o estudo detalhado dos mesmos, para que pudesse ser
avaliado e percebido qual se encaixaria na proposta de processo de encenação. Entretanto, o
estudo sobre as técnicas fez com que as mesmas se aproximassem, podendo, assim, uni-las,
principalmente, na prática. Foi preciso, para tanto, saber até onde cada uma se aproximava ou
tocava a outra e observar com atenção como este encontro acontecia, pois isto deveria, na
prática com os atores, ser de maneira natural, fazendo com que as três técnicas dialogassem.
No início, a dúvida sobre como fazer um só caminho a partir dos olhares apresentados pelos
“pilares clownescos” desta pesquisa se apresentou e a prática foi o grande auxílio para
encontrá-lo.
Vamos retomar alguns aspectos dos conceitos de Burnier, Lecoq e Dario Fo
sobre o clown, para assinalarmos as intervenções destes no processo com os atores e nos
espetáculos.
Veremos alguns conceitos e observações sobre o clown do italiano Dario Fo;
em seguida, retomaremos a percepção e os conceitos de Jaques Lecoq, para depois,
adentrarmos a visão de Burnier, que ao que nos parece aproxima-se ora de Dario Fo, ora de
Lecoq, aproximando as duas práticas. Logo após, no capítulo posterior, entraremos na questão
da prática simultânea entre as três técnicas.
I.3.1. Dario Fo : O Grotesco , a Crueldade e o Grammelot
Figura 8 - Foto: Léo Azevedo
Dario Fo apresenta o clown como sendo muito
próximo do bufão, trazendo consigo o grotesco, a crueldade e as
pulsões latentes. Os dois sofrem e enfrentam a discriminação e os
preconceitos da sociedade, vivendo à margem desta e, por isso,
“Intrinsecamente a esse feroz esquema de luta pela sobrevivência, encontramos
freqüentemente o cinismo destrutivo em relação a todos os valores convencionais da moral:
honestidade, respeito humano e fidelidade.”
71
. Porém, no jogo do clown, ao contrário do que
44
acontece com os bufões e “loucos”, esta destruição dos valores sociais não se apresenta na
forma de um escárnio corrosivo, mas como agente “desestabilizador” destas estruturas, o jogo
cômico que provoca o riso é mais humorístico que degradante e derrisivo.
Dario Fo acredita no riso como um agente revolucionário, capaz de quebrar as
estruturas sociais formadas. Quanto no que diz respeito ao poder do clown de relativizar e
denunciar a ordem social, todos os três (Burnier, Lecoq e Dario Fo) estão de acordo, porém,
para Dario Fo, o comportamento do clown é quase que o mesmo do bufão e o limite entre um
e outro torna-se quase invisível. Para ele, o clown possui em si o poder, a crueldade e o
engajamento político necessários para fazer a ruptura com a sociedade, relativizando-a e
causando, no público que o assiste, o estranhamento desta. Então, a partir do estranhamento, o
clown incita a relativização dos valores pertencentes a esta ordem social, fazendo com que o
público reavalie esta ordem e faça sua auto-análise também.
Quando Dario Fo assinala a ausência de provocação, de engajamento político e
da necessidade deste de expressar, outra vez, a busca por justiça, conforme citação anterior,
ele chama nossa atenção para uma das raízes do clown que está ligada a uma figura muito
mais “agressiva” que aquela que aparece nas festas infantis. O clown também possui em si as
características herdadas de seus antepassados, como as do Arlequinda commedia dell’arte,
outro ancestral malicioso citado por Fo, um personagem que também possui engajamento
político e compromisso em denunciar a pobre realidade vivida, relativizando as estruturas
sociais.
Essas características de revelação, quebra e denúncia do sistema social através
do riso, Dario Fo coloca como dentre as principais características dos bufões, clowns, loucos e
personagens da commedia dell’arte, nos quais a energia do baixo ventre (sexo, fome e
escatologia) impulsiona a conduta de todos. Quando as necessidades ligadas ao baixo ventre
são elevadas à potência máxima, têm como objetivo afirmar a mera condição humana e
também libertá-la das castradoras “fórmulas” de viver em sociedade, pois são estas
necessidades básicas que afirmam a condição de “ser humano” e causam o estranhamento, o
efeito cômico e as situações de aparente absurdo.
As energias do baixo ventre presentes no clown, influenciam na conduta do
mesmo, levando-o a fazer tudo para saciar sua pulsão. Nesta busca insaciável, vale
principalmente “deflorar” a realidade que lhe é apresentada como idéia de sociedade, pois
nesta ordem social suas pulsões são reprimidas pelo bom comportamento moral. Para
suplantar os valores que o reprimem, ele precisa quebrar as estruturas que o cercam e aí é que
45
se firmam a crueldade e o engajamento político existente no clown, tão defendidos por Dario
Fo.
O clown que Dario Fo nos revela é portador de uma crueldade que se mostra
nas ações e na conduta do mesmo, provocando no espectador uma perda dos referenciais tidos
como “corretos” por conseqüência de uma tomada de consciência da vulnerabilidade e
falsidade destes valores adquiridos pela sociedade. Tais valores são desconstruídos através da
denúncia das falhas deste sistema e do que está por detrás das “boas intenções”, das “boas
condutas” e da “moral e bons costumes” e, de certa maneira, culpando, também, quem está
dentro dele. O “sentimento de culpa” a que nos referimos, é trazido através do jogo de
espelhos, momento em que o público se vê nas figuras dos clowns Branco ou Augusto, vendo
sua imagem na figura do opressor ou do oprimido, do dominador ou do dominado, do
manipulador ou do manipulado.
Como visto anteriormente, a dupla de clowns espelha a sociedade que os
rejeita, ela mostra a situação de dominante e dominado, situação que predomina dentro da
estrutura social. Ao fazer com que o público perceba este sistema social, o clown denuncia
aquilo que pode estar disfarçado em falsas bondades e pequenas chantagens emocionais.
Através de suas necessidades e pulsões elevadas ao extremo e da busca de
saciá-las, os clowns revelam, o sistema social e como cada um contribui para que este sistema
se estabeleça, causando a percepção de seu funcionamento em cadeia. Esta tomada de
consciência é visto, também, como o “engajamento político” inerente ao clown. Como Dario
Fo nos diz, “Os clowns, assim como os jograis e o comici dell’arte, sempre tratam do mesmo
problema, qual seja, da fome: a fome de comida, a fome do sexo, mas também fome de
dignidade, de identidade, de poder”
72
.
Fazendo um rápido comentário sobre a relação dos clowns e o teatro do
absurdo, estas características sobre a fome dos clowns, segundo o olhar de Dario Fo, se
assemelham aos personagens de Beckett, porém seus personagens, em sua concepção, não
possuem um engajamento político, mas denunciam a pobre condição humana. Mas, o clown e
o teatro do absurdo serão estudados posteriormente, quando destinaremos um espaço para
tratar, especificamente, desse ponto.
Quanto ao que diz respeito ao ator que quer ser um clown, Dario Fo defende
ferozmente a idéia de que este ator deve se cercar de outras técnicas, como malabarismo,
acrobacias, mágicas, pirofagia, pirotecnia e, ainda, ter total domínio sobre a técnica e o corpo.
Ele afirma que um clown não é o uso “descuidado” da máscara, condenando os atores que se
servem desta sem terem os devidos meios para portá-la, pois, para ele, o nariz vermelho é uma
46
máscara que merece muito respeito e “[...] alguém só se torna um clown em conseqüência de
um grande trabalho, constante, disciplinado e exaustivo, além da prática alcançada depois de
muitos anos. [pois] Um clown não se improvisa”
73
. Dario Fo é exigente e severo para com o
ator de clown:
O ofício do clown é formado por um conjunto de bagagens e filões de origem muitas
vezes contraditória. É um ofício afim ao do jogral e do mimo greco-romano, para o
qual concorrem os mesmos meios de expressão: voz, gestualidade acrobática,
música, canto, acrescido da prestidigitação, além de uma certa prática e
familiaridade com animais – ferozes, inclusive.
74
De acordo com Dario Fo, o ator que trabalha com o ofício de clown deve ter
total maestria de seu corpo e das técnicas utilizadas e faz uma comparação do ator com o
músico virtuoso:
O ator colocado diante do público é como o violinista virtuoso que não olha mais
para os próprios dedos e muito menos controla o arco enquanto toca. Ele tem a
percepção das notas emitidas e escuta o retorno, o andamento (...) O mesmo faz o
grande ator em relação a sua voz e o seu corpo. (...) Devemos, isso sim, aprender a
agir com perfeito equilíbrio e controle, desenvolvendo uma grande potência em
progressão inteligente, programada, localizando cuidadosamente pausas e
respirações, de maneira a dar a impressão de que não estamos fazendo
absolutamente nenhuma força.
75
A partir desta visão de um “ator completo” para o ofício do clown, Dario Fo
afirma que, quando este ator se vê trabalhando com tantas técnicas que exigem uma atenção
constante ao ato e ao corpo em cena, ele terá toda a capacidade para adaptar-se a todo e
qualquer papel, uma vez que “Um ator dotado da complexidade e variedade de técnicas de um
clown possui grande vantagem, não apenas nos papéis cômico, mas (...) também nos
trágicos.”
76
Para nós, os pontos conceituais, do discurso e da prática de Dario Fo, que se
fazem presentes nos espetáculos resultantes do processo de encenação sobre o qual estamos
refletindo, são: o ator do ofício de clown que deve cercar-se de outras técnicas e ter total
consciência destas e de seu corpo e o clown como portador da crueldade (tomada de
consciência), do grotesco, do deboche, do poder e da necessidade de justiça. Isto tudo, de
maneira sutil, dentro das perspectivas pontuadas anteriormente e integrado/mesclado às outras
linguagens que fazem parte do complexo, o que resulta num espetáculo híbrido, com
características diferenciadas daquele princípio que o originou, mas, ainda assim, com seu
gérmen.
47
Agora entraremos em outro ponto abordado por Dario Fo e que faz parte da
integração de linguagens que constitui, sutilmente, os espetáculos: o Grammelot.
O grammelot, segundo Dario Fo é:
(...) uma palavra de origem francesa, inventada pelos cômicos dell’arte e italianizada
pelos venezianos, que pronunciavam gramlotto. Apesar de não possuir um
significado intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do discurso.
Trata-se, portanto, de um jogo onomatopéico, articulado com arbitrariedade, mas
capaz de transmitir, com acréscimo de gestos, ritmos e sonoridades particulares, um
discurso completo.
77
Primeiro, entramos na significação da palavra grammelot. Como dito por Dario
Fo, grammelot possui origem francesa, vindo da palavra grommeler:
Grommeler - v. conj. nominado (grommer no séc. XII; grummeler no séc. XIII). 1.
murmurar, lamentar-se por entre os dentes. V. Resmungar, rosnar, bramir,
murmurar. 2°. V. tr. Dizer en grommelant. « A gente não entende nada do que ele
grommelle entre seus dentes. » (Rouss). (Robert: Grande Dicionário da Língua
Francesa)
78
A partir daí, podemos dizer que a palavra de origem era grommeler, mas,
conforme a explicação de Fo, ela foi italianizada e transformou-se em grammeler. Além da
palavra de origem, todavia, o grammelot aporta também um sufixo francês, a terminação “ot”,
que segundo a explicação gramatical lhe traz um outro caráter:
OT - OTE - sufixo de adjetivos diminutivos (às vezes pejorativo), sobre uma base
adjetiva: ... queridinho. (Robert: Grande Dicionário da Língua Francesa)
79
Então, juntamos a palavra grommeler com o sufixo “ot”, a italianizamos e
temos a palavra na forma divulgada por Dario Fo: grammelot.
Esta forma de comunicação não articulada em língua conhecida é o tipo de
“texto falado” que trabalhamos para os espetáculos, mas como é uma técnica que necessita de
um total domínio, vamos utilizando-a com cuidado. Nos espetáculos, há uma busca do
alcance da técnica do grammelot, porém com o devido limite que temos, não a empregamos
em grandes discursos estruturados, é como se levássemos a público nossa “introdução” a esta,
somos “aprendizes”. Faz-se necessário dizer quer não utilizamos o grammelot como texto
falado, durante todos os espetáculos; na maior parte do tempo, o texto sonoro é constituído de
música e movimentação, usamos os pequenos “discursos grammelóticos” eventualmente, em
algumas cenas. No que diz respeito ao texto falado, servimo-nos de sons, onomatopéias e
sonoridades específicas com a intenção de “criar” um discurso, de forma que o espectador
48
imagine o conteúdo do que é falado, entendendo as informações principais por assimilação do
conjunto (gestos, ritmos, inflexões e sonoridades). Esta era a maneira de comunicação dos
cômicos dell’arte, que faziam uso deste artifício para circularem com seus espetáculos por
várias cidades de dialetos diferentes e até mesmo por países de diferentes idiomas. É com este
olhar sobre a possibilidade de explorar uma conversação compreensível através da articulação
de sons e gestos, e não de um idioma formatado, que o grammelot interfere nos espetáculos
como linguagem relevante e significativa, embora, como dito anteriormente, de forma
limitada, pois o uso dessa técnica é uma busca que não encontrou fim, necessita de uma
prática assídua.
Para o ator desenvolver o grammelot, o clown, no processo de descoberta da
sua própria voz e potencialidades sonoras, descobre seu ritmo de conversação e aproxima-se
de um idioma que lhe é familiar, sendo que não é necessário o ator saber o idioma em que seu
clown irá “se expressar”, mas sim as particularidades sonoras deste, seus ritmos e cadências,
fazendo com que o discurso seja entendido através da sugestão sonora com o acréscimo de
gestos. É possível perceber como utilizamos o grammelot quando observamos algumas cenas
dos espetáculos em questão, nas quais os atores fazem uso do discurso “grammelótico”, há o
entendimento do discurso e da situação apresentados, embora não haja a “tradução” fiel do
mesmo.
No caso dos espetáculos, o texto que origina a encenação, também está
incorporado às ações dos atores, às reações e relações dos clowns com os objetos e entre eles
próprios. Assim, tem-se a união do texto sonoro aos “gestos/ações” necessários para a criação
do grammelot específico de cada clown e do espetáculo. Cada espetáculo possui grau
diferente de discursos “grammelóticos”; ele foi ganhando espaço crescente em GODÔ,
TRATTORIA e JOGUETE e, neste último, é onde possui maior desenvolvimento. Porém,
devemos esclarecer que não construímos longos discursos, pois isto requereria um grande
domínio sobre a técnica, que somente foi exercitada um pouco mais em relação aos
espetáculos anteriores. Este crescimento do discurso “grammelótico” nas encenações foi
sendo explorado de acordo com a familiaridade e treino dentro da técnica, daí seu maior uso
na terceira produção.
Para chegar até os “gestos” necessários ao auxílio do entendimento do texto
cênico, foi preciso fazer a transformação dos signos verbais do texto dramatúrgico em signos
não-verbais, aliando a análise da dramaturgia escrita e a transformação da mesma em imagens
através de ações/reações/relações com as influências desejadas e os processos teórico-práticos
adotados. Este tipo de transformações e conexões entre texto dramatúrgico, técnicas,
49
conceitos e procedimentos foi sendo construído através do complexo formador do processo
apresentado.
Como falado anteriormente, cada clown possui o seu grammelot que interfere
na cena com seu “idioma grammelótico” e dialoga com os outros, o que traz um colorido
sonoro à cena, além dos gestos, da entonação e da ênfase do discurso para transmiti-lo. As
informações e afirmações sobre o uso do grammelot nos espetáculos em questão, podem ser
observadas nos registros dos espetáculos, nos DVDs que acompanham esta dissertação.
É então desta maneira que o grammelot faz parte deste processo de encenação,
que juntamente com a crueldade, o grotesco e as energias do baixo ventre compõem os pontos
específicos extraídos do olhar de Dario Fo sobre o clown, sendo parte ativa da concepção que
envolve a criação dos espetáculos resultantes do processo de encenação apresentado.
Continuaremos, retornando ao olhar voltado para os sentimentos nobres,
existencialistas e sublimes do clown, estamos falando do olhar de Jaques Lecoq.
I.3.2. Jaques Lecoq: O Sublime e o Sentimento Existencialista
Figura 9 - Foto: Léo Azevedo
Jaques Lecoq nos traz outra visão do
clown. Quando falamos da visão do sublime em Lecoq é
porque ele coloca as energias do baixo ventre de forma
sublimada, transformando-a em sentimentos interiores,
“nobres”, introspectivos e existencialistas. Para este
estudioso do clown e pedagogo, o clown não é agressivo,
obsceno ou perverso em sua maneira de agir, ele pode trazer consigo a crueldade, mas esta
não é revelada através da obscenidade ou da perversidade, ela vem como conseqüência de seu
ato de revelação da realidade, através de um olhar profundamente existencialista.
Neste processo de desvelamento da realidade, o clown expõe para o público
todas as “dores do mundo”, isto é, através de sua imagem em cena, ele se faz reflexo daquele
que o assiste, mostra a estrutura social em que vive e todas as falhas da mesma, como
também, as fraquezas de cada indivíduo como ser humano e parte deste sistema opressor.
Contudo, para que o clown possa realizar este ato de desvelamento da
realidade, o ator primeiramente tem de passar por um desvelamento de si mesmo. Este
processo de descoberta do próprio clown, Lecoq afirma que “[...] é em primeiro lugar a busca
do que há de irrisório em si próprio”
80
, onde o ator deverá entregar-se ao trabalho e “[...] ele
50
precisa descobrir nele mesmo a porção clownesca que habita nele”
81
desde sempre e que foi
reprimida pela ordem social.
Para Lecoq, esta pequena máscara, o nariz vermelho, é mágica, pois ela “Que
irá permitir retirar do indivíduo, sua ingenuidade e sua fragilidade”
82
. O ator de clown deve
empenhar-se profundamente num mergulho interior, sem medo de confrontar-se com seu
próprio ridículo, pois somente assim ele descobrirá seu próprio clown. Na concepção de
Lecoq, “quanto menos se defende, menos tenta representar um personagem, quanto mais o
ator se deixa surpreender pelas suas próprias fraquezas, mais seu clown aparece com força”
83
e, neste processo de descoberta, o ator deve desnudar-se de todo e qualquer preconceito contra
sua própria pessoa, ele deve aceitar-se tal como ele é, com todas as suas imperfeições.
É com um sentimento de satisfação consigo mesmo que o clown exibe com
orgulho seus defeitos: as pernas magras, o cabelo rebelde, as gorduras localizadas, o quadril
largo, os pés grandes e outras características que não se encaixam no padrão de beleza social.
Estas “extravagâncias” ganham importância e são motivos de muito orgulho para o clown,
pois é o que o torna único. Mas ele sabe que as mesmas características que lhe causam
orgulho, também o obrigam a viver à margem de uma sociedade que prima por um modelo de
beleza e conduta e isto o deixa frágil. Esta dialética entre agradar e, ao mesmo tempo, ser
marginalizado o faz pairar entre os “estados” alegre e triste. Considerando que ser como é lhe
agrada e também o deixa vulnerável, é através deste ato de mostrar-se “frágil” como ser
humano e de, principalmente, confiar no público como uma espécie de “amigo e confessor”
para revelar suas fragilidades, fraquezas e sofrimentos, que o clown acaba por ganhar a
empatia e cumplicidade do espectador.
Lecoq nos diz que a partir do momento em que o clown se frente ao público
sem máscaras sociais e percebe-se acolhido calorosamente (por meio de aplausos e risos),
pensa ser uma pessoa muito importante e isto, também, faz com que ele tenha orgulho de suas
fraquezas e defeitos. Outro fator que, para Lecoq, faz com que o público simpatize com o
clown é que o primeiro se vê, a partir de seus referenciais de valores em sociedade, muito
superior a este, por não se mostrar fraco e julgar ter maior inteligência que aquele que está em
cena.
Lecoq afirma que o ator de clown deve, a partir da superioridade que o público
acredita ter, aproveitar-se desta “vaidade” e incentivar este pensamento explorando seu
próprio fracasso. Este modo de explorar o próprio fracasso é denominado pelo mesmo de
exploit, cujo princípio é utilizar-se de algum talento para mostrar e evidenciar seu fracasso
perante os acontecimentos. Para esclarecer o que é o exploit, Lecoq utiliza o exemplo de um
51
número onde fica evidenciado que “O trabalho clownesco consiste em relacionar a façanha e
o “fiasco”. Peça a um clown de dar um salto mortal, ele não consegue. Dê-lhe um pontapé no
traseiro, ele o fará sem nem se dar conta!”
84
.
A partir do exemplo supracitado, pode-se encontrar um ponto de semelhança
entre Lecoq e Dario Fo, no que diz respeito ao ator do ofício do clown necessitar de outros
dotes artísticos para adicionar ao seu trabalho (tocar um instrumento, fazer mágicas,
acrobacias, cantar...). Para Lecoq, este dote adicional deve ser realizado com total maestria, ao
ponto do clown poder brincar de não saber fazê-lo, para que possa instaurar o suspense sobre
a cena e depois o riso, caso ele faça ou não.
Outro ponto importantíssimo para o ator de clown, é que este esteja “[...]
sempre em estado de reação e de surpresa sem que o seu jogo deixe de ser “conduzido”
85
, ou
seja, deve estar entregue ao momento e ao jogo, sem racionalizar sobre ele, deixando que o
Monsieur o conduza. Para que esta total entrega aconteça, o ator deve “[...] jogar o jogo da
verdade: quanto mais ele é ele mesmo, flagrado no seu delito de fraqueza, mais ele fica
engraçado [...] Quando o ator entra em cena com o seu narizinho vermelho, seu rosto
apresenta um estado de disponibilidade sem defesa”
86
e este estado é o que diferencia o SER
clown de interpretar um clown.
Outra característica da técnica de Lecoq, a qual faz parte da pesquisa, é o uso
de situações que colocam o clown no limiar da realidade e da ficção, para que assim o ator
possa experenciar seu universo misturado a situações do cotidiano social compartilhado. Estas
situações limítrofes são postas através do imaginário, tais como fazer um acampamento, fazer
compras, ter uma família, cuidar da casa, mudar-se, fazer uma viagem, plantar flores ou fazer
uma horta, ou ainda, trabalhar num escritório, ser um policial, um guarda de trânsito ou
professor, tudo isso para que ele se integre num “papel social”, podendo assim mostrá-lo com
mais propriedade e minúcias, como também, revelar-nos os clowns/clods que vivem
escondidos na sociedade. Durante este tipo de exercício, o ator descobre a forma de seu clown
pensar, desenvolve sua lógica própria e, durante o período em que desempenha as funções que
lhe são confiadas, suas características pueris, ingênuas, ridículas e até mesmo trágicas,
aparecem de maneira natural e intensamente.
Esta capacidade de engajar-se dentro de situações pré-estabelecidas, é muito
utilizada para a composição das cenas dos espetáculos resultantes do processo de encenação
apresentado. Mas entraremos neste campo posteriormente.
Depois de vermos o grotesco e a crueldade, o sublime e o existencial,
partiremos para a visão de clown do brasileiro Luis Otávio Burnier.
52
I.3.3. Luis Otávio Burnier: A Mistura Brasileira
Figura 10 - Foto: Léo Azevedo
Luis Otávio Burnier,a nosso ver, é uma
união da visão do grotesco e do cruel com o sublime e o
existencial. Para ele, “Esta combinação do cômico e do
trágico acentua a percepção de emoções contrapostas e é
muito peculiar ao clown
87
”. Burnier possui uma visão
larga do que vem a ser o clown, ele o vê como um ser
que possui a complexidade do ser humano, logo, ele é
todos os sentimentos, vai do grotesco até o sublime, traz
em si o gérmen do bufão, mas traz, também, a alma pura
e ingênua. Ele afirma que “O clown é herdeiro do bufão.
Ele também é marginal [...] Todas as características e
comportamentos do bufão aparecem no clown, mas de
maneira sutil”
88
. Conforme citação anterior, Burnier aproxima o clown e o bufão,
exemplificando este “parentesco” com a seguinte frase “O Bufão é como uma pepita de ouro,
o clown é a pepita lapidada.”
89
, então, de acordo com esta afirmação, temos “seres” feitos do
mesmo material, mas com aparências diferentes. A partir daí, pode-se crer que, o clown traz
em si o paradoxo existencial do ser humano, ora besta, ora anjo; dividido em corpo e alma,
mas ocupando o mesmo espaço – o próprio ser humano. No clown, os desejos do baixo ventre
levam-no até o grotesco, enquanto que sentimentos puros e nobres encaminham-no ao
sublime. Assim, com este contraste em seu próprio ser, o clown revelado por Burnier nos traz
a percepção do grotesco e do sublime impressos no ser humano, cuja natureza é revelada
através de sua própria exposição.
É através da figura do clown que percebemos que o contraste entre grotesco e
sublime são opostos que se complementam, ele “funde sob um mesmo alento o grotesco e o
sublime, o terrível e o bufo, a tragédia e a comédia”
90
mostrando-nos o grande drama que é
viver.
Nesta revelação do drama humano, o clown nos delata a verdadeira realidade,
brinca e zomba das estruturas criadas pelo homem em sociedade, ele, com sua “aparente
ingenuidade”
91
, provoca por meio do riso uma tomada de consciência da realidade e de seus
valores.
53
Este poder de relativizar tudo é trazido através da reação física do riso. E se o
riso é uma reação física, então ele possui uma “força ativa” e o clown sabe usá-la com
maestria. Ele traz em si o riso e todo o seu poder desmistificador. Segundo Burnier, “o
princípio desmistificador do riso, presente na cultura popular medieval renascentista, apareceu
no cômico circense, fundamentada basicamente na figura do palhaço”
92
. Abrimos uma fenda
para lembrar que, para Burnier, clown e palhaço possuem os mesmos princípios, que apesar
de ver o palhaço de circo como “um tipo que tenta fazer graça e divertir seu público por meio
de extravagâncias; ao passo que o clown tenta ser sincero consigo mesmo” e “os tipos
característicos da baixa comédia grega e romana; os bufões e bobos da Idade Média; os
personagens fixos da Commedia dell’Arte italiana [...] possuem uma mesma essência: colocar
em exposição a estupidez do ser humano”
93
. Com isso, como os dois possuem os mesmos
princípios e objetivos: denunciar o ser humano, seus defeitos e qualidades e denunciar o
esquema social e suas estruturas. Podemos chegar à conclusão de que esta vontade de fazer o
outro rir e esta sinceridade são partes de um todo, são comportamentos naturais, derivados da
complexidade que é a natureza humana e, portanto, clownesca. Tendo em vista que o clown é
o ser humano em toda a sua “essência”, é certo que ele traga consigo, também, a
complexidade e o paradoxo que envolve o mesmo.
Pode-se dizer que tanto o palhaço, como o clown, funcionam com os mesmos
princípios revolucionários, porém possuem maneiras diferentes de se expressarem, pois vivem
em contextos diferentes e isto influencia em sua maneira de agir, é o que os torna
aparentemente distintos, embora possuam uma grande familiaridade. Ambos trazem em si o
riso e seu poder, um por meio de extravagâncias, outro por meio da exposição do próprio
ridículo. Para que aconteça esta exposição da estupidez do ser humano, é necessário que o
ator do ofício de clown passe por um processo de auto-conhecimento, ele deve confrontar-se,
explorar seus fracassos, defeitos, aspectos ridículos e mostrar “[...] os recantos mais
escondidos de sua pessoa; [e] vem daí [,deste processo doloroso,] seu caráter profundamente
humano”
94
.
Para o ator do ofício de clown, Burnier também afirma que este deve ter um
domínio preciso de seu corpo e possuir outras habilidades (tocar instrumentos, fazer
acrobacias e outros), pois estes dotes servirão como apoio para as cenas. Outra grande
contribuição de Burnier para este processo é o conceito de “improvisação codificada”
95
. Para
ele, o clown possui uma das técnicas mais requintadas, pois ele deve ter em si uma verdade,
mas também um auto-conhecimento do corpo, que o torna capaz de reconhecer todas as
emoções e sentimentos impressos nos seus músculos, a partir de uma “memória física-
54
corpórea”. Tudo o que ocorre com o clown, passa pelo seu corpo. O ator do ofício de clown
deve ter “uma relação profunda [...] consigo mesmo e a projeção para fora de si por meio das
ações físicas resultantes desta relação”
96
. Durante o treinamento, o ator passa por muitos
exercícios que buscam colocá-lo em contato com seu “eu interior”, trazendo à tona seus
aspectos ridículos, ingênuos, grotescos, obscenos e nobres, para que assim os mostre ao
público. Para poder mostrar toda a sua verdade para o espectador, ele deve ter a capacidade de
memorizar e codificar a corporeidade das ações. Somente com o domínio de suas emoções e
corpo é que o ator poderá se mostrar verdadeiro em qualquer momento.
É necessário abrirmos um espaço para explicar como Burnier diferencia a
corporeidade da fisicidade:
A fisicidade de uma ação é [...] a forma dada ao corpo, o puro itinerário da ação. Já a
corporeidade, além da fisicidade, é a forma do corpo habitada pela pessoa. Assim a
corporeidade envolve também as qualidades de vibrações que emanam deste corpo,
as cores que ele, por meio de suas ações físicas, irradiam [...]
97
Então, o ator do ofício de clown deve ter a percepção de todas as emoções e
tensões que lhe ocorrem, num grau físico e muscular, além das informações da questão
motora da ação. Tendo esta compreensão do total controle que envolve tal ator, entendemos
que Burnier se refere ao “atleta afetivo” de Artaud. Para este, “É preciso admitir, no ator, uma
espécie de musculatura afetiva que corresponde a localizações físicas dos sentimentos”
98
. O
que Artaud afirma como “atleta afetivo” e sendo o caminho necessário para o ator, Burnier
aponta como fundamento para a técnica de clown. Consequentemente, o ator do ofício de
clown deve ser um atleta afetivo.
Agora, se compreendemos as emoções como ações e reações que são impressas
na musculatura, então todas as emoções são “ações físicas” e, neste ponto, encontramos a
ligação com o método das ações físicas de Stanislavski. É desta forma que Burnier, em sua
técnica de clown, auxilia-nos para conectarmos com outros estudiosos e procedimentos do
fazer teatral. Mas aqui somente assinalamos como o clown tem sua conexão com o método de
Stanislavski, mais adiante, veremos como este é integrado ao complexo formador deste
processo.
O ator após o auto-conhecimento gerado pelo processo de descoberta de seu
clown e durante o trabalho para conhecer e compreender seu corpo, busca codificá-lo
minuciosamente para poder manipulá-lo, controlá-lo e utilizá-lo da maneira que lhe convém,
conforme a exigência de cada cena.
55
Cada cena terá uma exigência de fisicidade e corporeidade, cabendo ao atleta
afetivo do ofício de clown, portanto, encontrá-las em seu acervo codificado e mantê-las a cada
apresentação da cena.
Chegamos, então, à questão da improvisação, outra característica do clown.
Aqui, entramos em outro ponto fundamental para o desenvolvimento dos espetáculos. Burnier
lembra dos cômicos dell’arte, que trabalhavam com o jogo de improvisação em cima de uma
estrutura fixa. Mas se compreendemos esta estrutura como um roteiro, podemos considerar
que as gags
99
também são roteiros e cada clown improvisa a maneira de executá-los. Trata-se
de como cada ator vai organizar seus códigos para executar as seqüências, realizando uma
“improvisação codificada”, em que os mesmos, em seus corpos, “são precisos e rígidos,
porém não estratificados”
100
.
Esta “improvisação codificada” é muito utilizada nos espetáculos, nos quais
são construídos roteiros, a partir da lógica dos clowns e das vivências dos ensaios, criando as
cenas (estrutura fixa), para que os mesmos, no momento da apresentação, exerçam-na. Este
processo de codificação das cenas é o mesmo que ocorre com a de execução de números
clássicos (também chamados de gags), em que temos o clown e sua codificação de
corporeidades, executando e codificando para si as ações pré-estabelecidas do número
101
.
Nos espetáculos, todos os números e ações são criados pelos clowns durante o
treinamento, de maneira que é ele quem dá origem a tudo que está em cena, nada é imposto
pelo diretor. Porém, este, através dos jogos e do imaginário do próprio ator, induz o clown a
criar as ações que irão constituir a ação dramática da cena. A partir do momento em que o
clown origina as ações das cenas, este precisa codificá-las (ações e corporeidades), pois
somente depois da codificação será possível criar um roteiro. As ações criadas pelo próprio
clown dão origem a determinadas seqüências, originando o roteiro do espetáculo. Ou seja, as
ações já assimiladas (codificadas) são organizadas em seqüência (recodificação) através de
um direcionamento dado pelo diretor. Esta organização das ações, feita pelo diretor, é que
instituirá o roteiro do espetáculo.
Para terminar, entramos nos pontos em que temos a concordância dos três
“pilares clownescos” deste processo. Como dito anteriormente, tanto para Burnier, como para
Lecoq ou Dario Fo, o clown é “regido” pelo verbo SER. ele é tão sincero consigo mesmo que
é incapaz de mentir sobre seus sentimentos e isto fundamenta o princípio de que ele “é”, de
que vive e sente tudo intensamente, não sendo um personagem construído para a
interpretação.
56
Após termos visto, de certo ângulo, as concepções de Dario Fo, Lecoq e
Burnier sobre o clown, estes diferentes olhares que se cruzam, se assemelham, se distanciam e
se aproximam, abordaremos, no próximo capítulo, a observação da prática deste conjunto no
processo de encenação dos espetáculos GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE.
NOTAS
1
A expressão “ator do ofício de clown”, foi encontrada no livro de Dario Fo, O Manual Mínimo e entendida
como uma expressão que traz consigo toda a técnica, trabalho e disciplina a que o ator deve se submeter.
2
BURNIER, Luis Otavio. A arte de ator: da técnica à representação. Elaboração, codificação e sistematização
de ações físicas e vocais para o ator. 1994 - Tese de Doutorado em Semiótica - PUC, São Paulo / Brasil , p. 245
3
Ibidem, p. 245
4
Ibidem, p. 246
5
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “...Cette découverte de la transformation d’une faiblesse personelle en
force théâtrale, fut de la plus grande importance pour la mise au point d’une approche personnalisée des
clowns, pour une recherche ‘de son propre clown’ qui est devenu un principe fondamental.” LECOQ, Jacques.
Le Corps Poétique. Paris: Actes Sud-Papiers, 1997, p. 153
6
BURNIER, op. cit., p. 247
7
Ibidem, p. 250
8
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Aujourd’hui le clown est devenu un personnage destiné à amuser les
enfants. Il est synonyme d’enfantillages naïfs, de candeur un peu niaise et de sentimentalisme. Le clown a perdu
sa capacité de provocation, son engagement politique. Il a en effet autrefois exprimé la violence, la cruauté, le
besoin de justice..” ADRIAN. Clown et Farceurs. Paris: Bordas, 1982, p. 83
9
FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. 2001, p. 217
10
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] d’un personnage obscène, vicieux, méchant, diabolique [...].”
ADRIAN, op. cit. , p. 83
11
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Le clown c’est un ensemble d’élément qu’il est très difficile de définir
avec précision. Tout homme de Théâtre doit pouvoir se servir de tous le moyen d’expression : la voix, le corps,
la gestuelle, le chant, le masque. Il doit être saltimbanque ; il doit savoir le saut perilleux, avoir des
conaissances dans le domaine de la scénographie. Il doit savoir manipuler des Objets, manipuler des
marionnettes. Le clown est l’une des cléfs fondamentales du théâtre, car il n’y a pas de théâtre possible si, au
probable, n’ont pas été acquises les techniques expressives et gestuelles qu’un clown est en mesure de maîtriser
(…) car le clown devient tel au prix d’une discipline très precise et rigoureuse. Un clown ne s’improvise pas.
ADRIAN, op. cit. , p. 83
12
BURNIER, op. cit., p. 263.
13
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “…l’acteur doit jouer au jeu de la vérité : plus il est lui-même, pris en
flagrant délit de faiblesse, plus il est drôle. Il ne doit surtout pas jouer un rôle, mais laisser surgir de manière
très psychologique l’innocence qui est en lui et qui se manifesta à l’occasion du « bide » de l’échec de sa
présentation (…) Quand l’acteur entre en scène porteur de sont petit nez rouge, son visage présent un état de
disponibilité sans défense (…) Le clown, ultrasensible aux autres, réagit alors à tout ce qui lui arrive et voyage
ainsi entre un sourire sympathique et une expression triste.” LECOQ, op. cit. , p. 154
57
14
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Ils ont la liberté de faire « ce qu’ils veulent », et cette liberté fait
surgir des comportements personnels insoupçonnés.” LECOQ, op. cit, p. 155
15
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “(…) cet échec, il dévoile sa nature humaine profonde qui nous émeut
et nous fait rire..” LECOQ, op. cit, p. 155.
16
FO, Dario. O Manual Mínimo do Ator. Franca Rame (org.); Trad. Lucas Baldovino, Carlos David Szlak. São
Paulo: SENAC, 1997, p.303.
17
Ibidem, p. 303
18
Ibidem, p. 303
19
Ibidem, p. 304
20
BURNIER, op. cit., p. 208
21
“A lógica do clown é físico-corpórea, ele pensa com o corpo”. BURNIER, Luis Otávio. 1994, p. 261.
22
Nome do palhaço de Waldemar Seyssel
23
Nome do clown de Charles Chaplin.
24
BURNIER, op. cit, p. 249
25
Tradução de Lys Mireia Santanché: “Ma il clown non è più legato al Circo, há lasciato la pista per
palcoscenico e la strada” LECOQ, apud VIGANÒ, Antonio. Nasi Rossi il clown tra circo e teatro. Italia,
Montepulciano: Del Grifo, 1985, p. 64.
26
Tradução de Lys Mieria Santanché: “Anche per il mondo del clown esistono livelli differenti. Sicuramente i
Circensi sono quelli più chiusi”.FO, apud VIGANÒ, 1985, p. 54
27
Tradução de Lys Mieria Santanché: “Si noi pensiamo alle comiche di Totò, oppure a quelle di Buster Keaton o
del cinema muto generale, se pensiamo alle varie cadute, il cascatore, la culata, o i vari lazzi sugli equivoci de
persona, sul qui-pro-quo, sono nate ed usate in tempi remotissimi” FO, apud VIGANÒ, 1985, p.56
28
Tradução de Lys Mireia Santanché: “C’è poi chi li as usare in modo perfetto e creativo [...]” FO, apud
VIGANÒ, 1985, p.56
29
FO, op. cit. , p.305
30
Tradução de Lys Mieria Santanché: Bisognava che il clown si dividesse in due personaggi: uno aristocrático e
uno cotidiano. Um moralista brilhante e um paesano um po’troppo stupido a cui incultare le buone maniere e
pedate nel sedere im modo da rendere la pedagogia del maestro dimostrativa e per permettere a questo studente
poco dotato, di essere vitima eterna della propria stupidità. VIGANÒ, op. cit, p. 25
31
Tradução de Lys Mieria Santanché: “La prima ipotesi da chiarire riguarda il “luogo comune” che fa nascere il
clown nel Circo” Ibidem, p. 9
32
Tradução de Lys Mieria Santanché: “(...) tutti noi siamo propensi ad associare la figura del clown a quella
dello spettacolo circensi (...). Ibidem, p. 9
33
Tradução de Lys Mireia Santanché: “[...] se da un punto de vista letterario, l’associazione può essere valida,
nom lo è se guardiamo a questa maschera da um punto de vista drammatico e di personaggio comico”. Ibidem,
p. 9
34
Tradução de Lys Mireia Santanché: “Il clown nom è un’unvenzione del circo o di chissà chi. Il clown è fatto di
centinaia di personaggio comici differenti. Tant’è vero che le caratteristiche del clown sono moldo diverge (...)
58
È impossibile fare una caratterizzazione “a gabbia” del mondo del clown. C’è invece il ripetersi di alcuni fatti
che vengono da tutta la storia della comicitá, perchè il clown há le sue origine non solo nella Commedia
dell’Arte, ma addirittura nel teatro Romano, in quello Greco.Ibidem, p. 53.
35 Tradução de Lys Mireia Santanché: “Il clown ha radici molto più lontane de quelle circensi e possiamo
affermare que la nascitá , con un nome differente, è legata alle prime forme di teatro. Il circo ha il merito di
avere presentato e resa famosa la sua maschera e di avergli dato il nome “clown” che lo rende oggi
riconoscibile in qualsiasi parte del mondo. Le origini del clown possono risalire, trovare riferimento o richiamo,
in tempi lontanissimi nell’antica Grecia. Nell’ottavo secolo avanti Cristo, scopriamo il primo esempio di quello
che, com apprezzabile fantasia, possiamo accetare come possibile progenitore del clown. Si tratta del “buffone
che su dei carri girava per l’antica Grécia.” Ibidem, p. 15
36
Tradução de Lys Mireia Santanché: “Una genia di comici erranti, i cui epigioni potranno forse ritrovarsi in
certi attori nomadi della Magna Grecia e poi nei menestrelli e nei giullari del Medioevo e ancora nei comici
dell’arte dell’ultimo Rinascimento, sino a giungere, via via nel tempo, agli attualio clown da circo e da teatro.”
Ibidem, p. 15
37
BOLOGNESI, Mario. Palhaços. Brasil, São Paulo: Unesp, 2003, p. 13
38
Ibidem, p. 14
39
Ibidem, p. 15.
40
FO, Dario. opus cit. , p.305
41
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Aujourd’hui le clown est devenu un personnage destiné à amuser les
enfants. Il est synonyme d’enfantillages naïfs, de candeur un peu niaise et de sentimentalisme. Le clown a perdu
sa capacité de provocation, son engagement politique. Il a en effet autrefois exprimé la violence, la cruauté, le
besoin de justice. En realité, il s’agit, à l’origine, d’un personnage obscène, vicieux, méchant, diabolique : dans
les cathédrales du Moyen-Âge, on trouve des représentations de « bateleurs » montrant leur sexe. Il ne faut pas
oublier que le clown le plus ancien mentionné dans des documents d’Angleterre, portait le masque de
Polichinelle, le bossu, le maudit.” ADRIAN, opus cit, p. 83
42
Tradução de Christine Nicole Zonzon:Le clown, ultrasensible aux autres, réagit alors à tout ce qui lui arrive
et voyage ainsi entre un sourire sympathique et une expression triste” LECOQ, opus cit. 1997, p. 154
43
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “(...) surgir de manière très psychologique l’innocence qui est en lui et
qui se manifest[e] à l’occasion du ‘bide’ de l’échec de sa présentation” Ibidem, p. 154
44
BURNIER, opus cit, p.248
45
Ibidem, p.250
46
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Chaque individu est unique, irremplaçable: c’est ce qui fait sa
dignité, mais aussi sa faiblesse.” MINOIS, Georges. Histoire du rire et de la dérision , 2000, p. 271
47
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “ [...] il est très révélateur de constater que, dès le départ, la tentation
comique est présente; on s’aperçoit qu’il suffit de très peu de chose pour faire basculer un visage noble dans le
ridicule, que le masque de dignité de chaque homme est d’une extrême minceur et que derrière, toujours
perceptible à l’œil exercé, transparaît le visage grotesque. Personne n’y échappe: chacun de nous a son aspect
ridicule, et tout homme sérieux a un envers comique.” Ibid., p. 271
48
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 26.
49
FELLINI, Federico. Sobre o clown – Extraído do site http://www.grupotempo.com.br/tex_fellini.html
50
Ibidem.
59
51
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] sacrifie, devant nos yeux, son identité en nous représentant tous,
offrant à notre cruauté son corps et son honneur.” RANSON-ENGUIALE, Valérie. In. Le cirque et les arts.
2002, p.12
52
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] l’ivresse de la relativité des choses humaines, le plaisir étrange
de la certitude qu’il n’y a pas de certitude. Ce rire […] est profondément ambigu.” MINOIS, opus cit., p.247
53
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Au-delà de la bouffonnerie de surface [...] [si nous prenons] le parti
d’en rire, c’est parce qu’il ne servirait à rien d’en pleurer.” Ibid., p. 247
54
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] le rire du soulagement, qui ruine les efforts terroristes de la
pastorale officielle; c’est la divine surprise, le relâchement brutal de tension, dans lequel les analystes voient
une des sources principales du rire. Il exorcise la peur, sans nier l’existence de l’enfer. [...] Le rire apparaît
comme l’arme suprême pour surmonter la peur. Qui rit de l’enfer peut rire de tout.” MINOIS, opus cit., p. 249
55
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Rire, pleurer: la différence est plus mince qu’on ne croit, comme
l’avait déjà dit Rabelais. Souvent, nous pleurons et rions d’une même chose’”. MINOIS, opus cit., p. 250
56
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Ambivalence du réel et l’ambivalence du rire.” Ibidem, p. 255
57
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Le rire n’est pas qu’un divertissement, il peut aussi être une
philosophie: c’est là l’une des grandes découvertes de Rabelais [...]” Ibidem, p. 266
58
FELLINI, Federico. Sobre o Clown – Extraído do site http://www.grupotempo.com.br/tex_fellini.html
59
BURNIER, opus cit., p.247
60
Não entraremos na questão sobre a implicação e conceitos do uso da palavra popular, tomaremos a palavra no
sentido de que aquilo que é popular é “Do, ou próprio do povo”. (Michaelis Moderno Dicionário Da Língua
Portuguesa. Ed. Melhoramentos, Ed.109ª, 2002).
61
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Depuis la pomme l’homme est irrémédiablement maudit, mauvais,
perdu, et chacun exprime à sa façon sa haine de la condition humaine, son désir de la déserter, d’en finir avec
elle: en perdant son identité dans la fusion avec le divin, ou en l’écrasant dans l’infamie sous un rire
diabolique.” MINOIS, opus cit., p. 273
62
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Le rire grotesque porte sur l’essence même du réel, qui perd sa
consistance. Véritable revanche du diable dans le sens où il pulvérise l’ontologie, il désintègre la création
divine, réduite à l’état d’illusion.” Ibidem, p. 81
63
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “La perversion et la transgression des lois naturelles peuvent faire
rire, mais du rire du diable, qui se plaît à tout brouiller pour notre plus grande confusion; et ce rire [...] fait
peur...” Ibidem, p. 82.
64
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] et devenu la caractéristique essentielle de la culture populaire,
qui a évolué dehors de la sphère officielle, ‘et c’est grâce à cette existence extra-officielle que la culture du rire
s’est distinguée par son radicalisme et sa liberté exceptionnels, par son impitoyable lucidité’.” MINOIS, opus
cit., p.136.
65
Tradução de Christine Nicole Zonzon : “Derrière son masque se cache une autre figure, celle du terrible
Hellequin qui, au Moyen Âge, conduisait la troupe des spectres qui hantaient les vivants une fois l’an, les jours
de carnaval. Ces déchaînements païens commençaient un soir pour se terminer la nuit suivante par un bûcher
expiratoire. Aussi, quand le Blanc dialogue à “bâtons rompus” avec l’Auguste, il interprète les liturgies
libératoires des anciens carnavals GOURARIER, Zeev. Le cirque et les arts,
2002, p.8
66
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] une transposition dans le registre grotesque de l’immortalité
historique du peuple[ ;] la vision comique du monde devient ainsi le moyen par lequel la culture populaire
affirme son caractère indestructible et triomphant.” MINOIS, opus cit., p. 246
60
67
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] résulte du constat de l’incompréhensibilité du monde, constat
consécutif à des traumatismes collectifs qui ont lézardé la façade logique des choses, qui ont fait entrevoir
derrière les apparences une réalité protéiforme, sur laquelle nous n’avons pas de prise.” MINOIS, opus cit., p.
82
68
Tradução de Christine Nicole Zonzon : “Il est synonyme d’enfantillages naïfs, de candeur un peu niaise, de
sentimentalisme, [qu’il] a perdu sa capacité de provocation, [et] son engagement politique”. ADRIAN, opus
cit., p. 83
69
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Le plus comique, c’est l’homme lui-même et ses prétentions [...]”
MINOIS, opus cit., p. 254
70
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Nous sommes tous des clowns, nous nous croyons tous beaux,
intelligents et forts, alors que nous avons chacun nos faiblesses, notre dérisoire, qui, en s’exprimant, font rire”
LECOQ, opus cit., p.153
71
FO, opus cit., p. 306.
72
FO, opus cit., p.305
73
Ibidem, p. 304
74
Ibidem, p. 304
75
Ibidem, p. 131
76
Ibidem, p. 304
77
Ibidem, p. 97
78
Grommeler – v.; conj. appeler (grommer; XIIéme siecle; grummeler XIIIéme siecle). 1.murmurer, se plaindre
entre ses dents. V. Bougonner; grogner; gronder, murmurer. 2°. V. tr. Dire en grommelant. « L’on n’entend rien
à ce qu’il grommelle entre ses dents » (Rouss). (Le Grand Robert de la Langue Française)
79
OT -OTE - sufixe d’adjectifs diminutif (parfois pejoratif) , sur une base adjectif: pâlot, chérot... (Le Grand
Robert de la Langue Française)
80
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] c’est d’abord la recherche de son propre dérisoire.” LECOQ,
opus cit., p. 154
81
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] il doit découvrir en lui la part clownesque qui l’habite.” LECOQ,
opus cit., p. 154
82
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] Qui allait permettre de sortir de l’indivídu sa naïvité et sa
fragilité.” LECOQ, opus cit., p. 154
83
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Moins il se défend, moins il essaie de jouer un personnage, plus
l’acteur se laisse surprendre par ses propres faiblesses, plus son clown apparaît avec force.” LECOQ, opus cit.,
p. 154
84
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Le travail clownesque consiste alors à mettre en relation l’exploit et le
“bide”. Demandez à um clown de faire un saut périlleux, il n’y arrive pas. Mettez-lui un coup de pied au
derrière, il le fait sans s’en rendre compte! LECOQ, opus cit., p. 155
85
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] toujours en état de réaction et de surprise sans que son jeu ne soit
pas ‘conduit’LECOQ, opus cit., p. 155
61
86
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] l’acteur doit jouer au jeu de la verité: plus il est lui-même, pris en
flagrant délit de faiblesse, plus il est drôle [...]Quand l’acteur entre en scène porteur de son petit nez rouge, son
visage présente un état de disponibilité sans défense.”
LECOQ, opus cit., p. 154
87
BURNIER, opus cit., p.246.
88
Ibidem, p. 260
89
Ibidem, p. 248
90
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 40.
91
BURNIER, opus cit., p.250
92
Ibidem , p. 250
93
Ibidem, p. 247
94
Ibidem, p.252
95
Codificação é o ato de codificar em seu corpo as reações, imprimindo nele todos os detalhes físicos emotivos
de uma reação. Improvisação codificada é a capacidade de improvisar estas codificações em sua ordem, dentro
de uma estrutura fixa (gag)
96
BURNIER, opus cit., p.266.
97
Ibidem, p.220.
98
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 151.
99
Gags – nomes dados aos números cômicos executados pelas duplas de clowns. Existem algumas gags que já
são consideradas clássicas, como o número da zebra amestrada, onde um clown se fantasia de zebra e o outro é o
domador. Como este número, existem muitas gags que são apresentadas por várias duplas.
100
BURNIER, opus cit., p.266
101
Citamos o exemplo dos números dos músicos e da zebra adestrada, os quais cada clown executa de maneira
diversa. Na gag dos músicos o Augusto entra no picadeiro, se posiciona e toca um instrumento, o Branco entra e
diz que ali não se pode tocar música. O Augusto pega suas coisas e vai para o outro lado do picadeiro, o Branco
vai até lá e diz que ali também não se pode fazer música e assim eles percorrem todo o picadeiro, a apresentação
termina com o Augusto se rebelando e tocando música alta e o Branco o empurra para dentro, às vezes, o
Augusto sai do palco apanhando. Na gag da zebra amestrada dois clowns se vestem de zebra e um terceiro, ou o
dono do circo faz o papel de domador, faz com que elas, as zebras, executem números como sentar, comer
educadamente, dançar, ou dar saltos. Após algum tempo de execução dos comandos, a zebra fica preguiçosa e
não quer mais fazer números, a apresentação finaliza com a mesma soltando “puns” pelo picadeiro.
CAPÍTULO II – “O PRAGMATISMO”
N Figura 11 - Foto: Léo Azevedo
A palavra “pragmatismo” possui a seguinte definição: Pragmatismo Sm. Filos.
Doutrina segundo a qual as idéias são instrumentos de ação que só valem se produzem efeitos
práticos
1
. Analisando este conceito dado, achamos que ele descreve a “intenção” deste
capítulo, o qual é destinado ao complexo formador do processo de encenação em questão e ao
trabalho clownesco realizado com os atores. Iremos ver como algumas conexões do processo
acontecem, como as três práticas da técnica do clown dialogam entre si quando se
encaminham para a construção do espetáculo e teremos algumas descrições dos ensaios
realizados com os atores, utilizando exemplos práticos, para ilustrarmos e com a intenção de
tornar a explicação eficaz.
Como tudo que vivemos interfere em nossa sintaxe, fazendo parte de nosso
acervo de vivências, consequentemente, as experiências vividas com mestres como Inês
Marocco, Nair D’Agostini, Kai Berthold - Odin Teatret; Thomas Leabhart e Ana Elvira Wuo
– LUME possuem sua contribuição no processo construído. Abriremos um espaço destinado a
essas experiências, apontando como se integram à construção dos espetáculos, ora no
processo destinado aos atores, ora no processo do diretor.
Sob nosso olhar, este processo de encenação traz consigo um momento em que
o diretor deve dedicar-se a um trabalho solitário. Este momento de “reclusão” é aquele em
que se recolhe para conceber o espetáculo em todo o seu complexo formador, isto é, coleta de
dados sobre o autor, obra, análise do texto e transformação desta em jogos possíveis de serem
63
aplicados. Após esta etapa, o diretor irá dar continuidade à encenação, encontrando-se com os
atores e encaminhando o processo prático. Os dois processos, do diretor e do ator, são
intimamente ligados. O trabalho realizado com os atores está inserido na encenação, tendo
como primeira etapa a iniciação ao clown. Contudo, não nos prolongaremos neste resumo e
partiremos para a descrição do complexo formador da concepção dos espetáculos.
Este capítulo está dividido em três momentos: no primeiro, falaremos dos
mestres que causaram influência em nosso próprio caminho como encenadores; no segundo,
falaremos sobre questões ligadas ao encaminhamento da encenação dos espetáculos; enquanto
que, no terceiro, abordaremos o processo de clown desenvolvido com os atores, integrantes
dos espetáculos.
II.1. Experiências e contribuições para o complexo
Figura 12 - Foto: Léo Azevedo
Para os devidos esclarecimentos no que diz
respeito ao complexo
2
formador do processo de encenação
proposto, observemos, outra vez, o esquema apresentado na
introdução desta dissertação (vide p. 12). A partir da
observação de tal esquema, tentaremos, em teoria, neste
primeiro momento, prestar os esclarecimentos necessários
às conexões e diálogos existentes no processo de encenação
proposto. Vale lembrar que o esquema apresentado, como
já mencionado, é uma representação muito simples de uma
rede intrincada de conexões que tentamos tornar mais
compreensível através de uma visualização e que as
“peças” formadoras deste complexo são trazidas, sem
serem extraídas, do movimento histórico teatral e
focalizadas para o processo em questão.
Para a criação dos espetáculos, percorrendo o caminho que vai desde a idéia da
concepção, passando pelo treinamento e chegando até a encenação, propomos a união de
alguns aspectos das técnicas de clown de Burnier, Lecoq e Dario Fo, juntamente com as
propostas de jogos para a criação de cena, de Viola Spolin, aliados à análise de texto de
Constantin Stanislavski. Toda esta rede de procedimentos, técnicas e métodos é somada às
experiências práticas vivificadas com Nair D’Agostini, Inês Marocco, Thomas Leabhart,
LUME e Odin Teatret.
64
No esquema, estes mestres são colocados ao centro e se comunicam com todo
o processo, pois foi a partir da soma de seus ensinamentos que o complexo teve origem.
Objetivando e sistematizando o processo de encenação, identificamos estes mestres como
seus cinco “suportes”, enquanto que Burnier, Lecoq, Dario Fo, Viola Spolin e Stanislavski são
vistos como os cinco “pilares” do processo e todo o restante, o teatro do absurdo, o cinema
mudo, o circo e o desenho animado são identificados como as “escoras”. Pensamos que esta
nomenclatura, também ajuda a mostrar de que maneira cada “peça” interfere no conjunto
formador do complexo.
Numa prática, as influências que recebemos se fundem e constituem a nossa
sintaxe, mas não podemos esquecer que alguns mestres deixam plantado o desafio de procurar
o próprio caminho e nos incentivam a isso. Destinaremos um espaço para descrever como
cada mestre contribuiu na formação do complexo e tornou-se parte do suporte do mesmo,
influenciando na construção deste processo de encenação e mostrando que é necessário um
olhar além dos ensinamentos adquiridos, para que possamos enxergar o caminho que devemos
percorrer só.
II.1.1. Odin Teatret - Kai Berthold: o encontro
O encontro com Kai Berthold, integrante do Odin Teatret, foi rápido, mas
muito intenso. Encontramo-nos durante uma semana, período em que ministrou o curso de
“Teatralização e Musicalisação”, no Festival Internacional de Londrina, no Paraná, no ano de
1999. Além do curso, a contribuição de Kai veio através de conversas e uma análise de
GODÔ, espetáculo que apresentamos no festival. Sua sutil participação foi preciosa e incisiva,
foi com ele que tivemos a noção do “desenho sonoro” que o espetáculo deve apresentar, onde
todo e qualquer som, desde a sonoplastia musical, até o barulho dos passos e da manipulação
dos objetos devem ser relacionados ao conjunto, dando origem à sonoridade do espetáculo.
O curso, as conversas e os comentários tecidos por este mestre, sobre o
espetáculo GODÔ, foram de grande valia para a continuação da pesquisa do processo de
encenação. Um refinamento na percepção e na técnica.
II.1.2. LUME – Ana Elvira Wuo: a experimentação do universo clownesco
65
Os encontros com o LUME, grupo criado por Burnier e vinculado a
UNICAMP – SP, foram especiais. Especiais porque revelaram um novo universo – o universo
clownesco. O LUME esteve muitas vezes em Santa Maria para ministrar cursos de teatro, a
partir das pesquisas realizadas pelo próprio grupo. A oportunidade de experienciar, vivenciar
e vivificar os exercícios construídos por Burnier, passados e monitorados pelo integrantes do
LUME, foi ímpar. Passar corporalmente pelos exercícios, compreendê-los, fazê-los, senti-los
e codificá-los na musculatura – este, realmente, foi o melhor caminho para estudarmos a
técnica desenvolvida por Burnier.
Entender nos músculos os exercícios, passando pelo processo de exaustão do
corpo através dos elementos plásticos, da dança dos ventos, do enraizamento do corpo, dos
impulsos, da dinâmica com objetos, do trabalho de voz e ser comandado pelo “Monsieur
3
,
foram experiências que deram suporte para entrarmos na busca de uma prática com
características próprias.
No LUME, tinha alguém que recebia um carinho especial por conta de uma
aproximação que só o processo de iniciação ao clown pode trazer: Ana Elvira Wuo (na época
integrante do grupo, agora não mais). Ela nos revelou o universo clownesco e trouxe à tona
Umbigolina Goiabenta
4
, a partir daí o clown ganhava cada vez mais espaço e importância
dentro de nossas pesquisas. Com a descoberta de nosso próprio clown, iniciamos a pesquisa
de técnicas e conceitos que envolvem este ser.
Nosso aprendizado da técnica de clown desenvolvido por Burnier, nos veio
através do filtro de Ana Elvira Wuo. Refiro-me ao “filtro de Ana Elvira Wuo”, porque a
técnica de Burnier nos era transmitida através da visão, da percepção e da pesquisa individual
com clown que Ana Elvira Wuo desenvolvia dentro do LUME.
Foram muitos encontros com o LUME e com Ana Elvira Wuo, durante os
quais fomos recebendo as práticas e a teoria de Burnier de muitas maneiras: através de
conversas que aconteciam durante os cursos ou por e-mail, seminários, aulas demonstrativas
ou ainda debates sobre o processo de criação e treinamento do grupo, cursos e leituras da
bibliografia do grupo.
Como dito anteriormente, não iremos nos deter na descrição dos exercícios e
da técnica apreendida através de todos estes encontros com o grupo e com Ana Elvira Wuo,
pois estaríamos adiantando o assunto que será detalhado num próximo momento deste
capítulo, mas devemos sublinhar que todos os contatos sempre foram ricos e cooperaram para
nosso crescimento dentro das técnicas do ator e para a compreensão dos exercícios
desenvolvidos na tese de Luís Otávio Burnier.
66
II.1.3. Thomas Leabhart – um anjo que deu alma à ação
Thomas Leabhart, discípulo de Decroux, ministra aulas no Departamento de
Teatro de Pomona College, na Califórnia – EUA e no Théâtre de la Danse, em Paris – FR e
durante o ano de 1995 esteve na Universidade Federal de Santa Maria – RS para dar o curso
“Poética e Gramática do Mimo Corpóreo”, com 108 h/a.
Com sua simplicidade, destreza e vigor, Thomas Leabhart ensinou-nos a dar
alma para a ação, através de seu filtro, nos trouxe toda sua experiência da mime corporel de
Decroux. Leabhart ofereceu-nos a limpeza e a clareza dos movimentos, o ator como centro do
espetáculo, o corpo organizado e a disciplina do próprio ator, num estágio intenso, com
manhãs e tardes completas - um período que trouxe a compreensão de que o simples é genial
e que um espetáculo precisa de “ator”.
II.1.4. Inês Marocco – a simplicidade e a genialidade
Inês Marocco e Nair D’Agostini, com toda a certeza, são as principais válvulas
impulsionadoras desta pesquisa.
O encontro com Inês foi no ano de 1997, quando voltou para a Universidade
Federal de Santa Maria, depois de um período na França. Durante este período em Paris, fez
D.E.A. na Universidade de Paris VIII – FR e o Doutorado em Esthétique Sciences et
Technologies des Arts opção “Etudes Théâtrales et Chorégraphiques", também na
Universidade de Paris VIII – FR. Em sua formação artística constam os cursos de Mime-
Théâtre-Mouvement, e L.E.M (Laboratório do Estudo do Movimento), todos os dois
realizados na Escola de Jacques Lecoq, em Paris/FR e durante este período, também
participou do Colégio Europeu de Práticas Espetaculares e Ciências da Vida.
A Pedagoga, Atriz e Diretora, foi uma das criadoras do Departamento de Artes
Cênicas da UFSM assim como do T.E.U. (Teatro Experimental Universitário) da mesma
instituição, onde lecionou por muitos anos. Porém, desde janeiro de 2000, Marocco faz parte
do corpo docente do Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) onde ministra aulas para a graduação e pós-graduação em Teorias do
Teatro Contemporâneo. Atualmente, faz parte do Projeto Itinerante de Fronteiras Culturais do
CELP (Centro de Estudos Literários e de Psicanálise Cyro Martins) em Porto Alegre e do
Centro Francês de Ethnoscénologie, com sede em Paris - FR. Seus mestres foram muitos:
67
Patrícia Stokoe, Klauss Vianna, Philippe Gaulier, Monika Pagneux, Jean Pierre Ryngaert,
Oscar Fessler, Eugenio Barba, Torgeir Werthal, Daniel Trenner, Richard Schechner, entre
outros especialistas.
Apesar de ter percorrido um longo caminho, conforme seu breve histórico
descrito acima, Inês possui uma enorme simplicidade na maneira de se comunicar com seus
alunos, isso nos deixava completamente à vontade. Durante seu período na UFSM, tivemos a
oportunidade de tê-la como professora, orientadora de pesquisa de extensão, orientadora de
encenação e diretora. Tínhamos confiança na sua sabedoria e paixão pelo teatro. Seu olhar
simples e questionador nos instigava a procurar nossos próprios caminhos.
Mestre que nos presenteou durante quatro anos com sua presença simples,
direta e intensa, trouxe-nos as práticas e os conceitos de Lecoq, Dario Fo, Decroux e
Commedia dell’Arte, além de dirigir-nos em espetáculos, o que nos permitia observá-la em
ação, como encenadora.
Inês Marocco mantém uma relação tranqüila e verdadeira com seus alunos,
sempre exigiu, acima de tudo, a nossa disciplina, seriedade para com o teatro e, em sala de
aula ou ensaios, queria aquilo que o ator pudesse dar de melhor – a verdade. Com certeza, seu
olhar questionador e inquieto muito influenciou aqueles que a admiram.
II.1.5. Nair D’Agostini – a disciplina, a eficácia e o coração
Nair D’Agostini foi professora da Universidade Federal de Santa Maria/RS,
durante muito tempo. Nosso primeiro encontro foi no ano de 1994. Pós-Graduada na Rússia,
em Direção de Teatro Dramático e Maestria do Ator no Instituto Estatal de Cinema, Teatro e
Música de Leningrado – URSS, teve como orientadores os Doutores Georgei Tovstonogov e
Arkadi Katsman. Também fez, na mesma instituição, Maestria do Ator, com os professores
Arkadi Katsman e Liev Dodin, onde realizou a defesa prática e teórica dos trabalhos:
"Plasticidade e Expressão do Movimento" e a adaptação e montagem do conto "As Lágrimas
de Kuko", de Vassile Shoukschin. Estagiou no Grã Teatro Dramático M. Gorki, de
Leningrado, URSS, acompanhando o processo de ensaios e criação de espetáculos teatrais sob
direção de G.A. Tovstonogov. No Brasil, D’Agostini é mestra em Filosofia Moderna e
Contemporânea, com a pesquisa "Mimesis de Práxis como Eudaimonia: Aristóteles e
Lukacs", no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa
Maria, RS. No momento, ela é doutoranda da USP do curso de Pos-Graduação em Literatura
68
e Cultura Russa, onde tem como pesquisa "O Método de Análise Ativa de Stanislavski como
base para a análise da leitura dramática” e, em Porto Alegre – RS, desenvolve seu trabalho e
pesquisa como diretora teatral.
Nair D’Agostini marcou presença em nosso “aprender teatral” durante sete
anos. É necessário sublinhar “marcou presença”, pois ela é destes mestres que não se deixam
passar despercebidos, por tamanha paixão e sabedoria. D’Agostini revelou-nos Stanislavski,
Grotowski, Meyerhold e Artaud, em todas as suas sutilezas, força e aprofundamento. O
treinamento com ela era vivificado de forma intensa, visceral e verdadeira. Costumávamos
dizer que todos tínhamos uma relação de amor, admiração, medo e ódio para com ela.
Amávamos Nair por sua generosidade em ensinar-nos, pois, muitas vezes, ficava durante a
madrugada conosco, auxiliando-nos com sua orientação, mostrando os problemas dos
espetáculos e apontando possíveis soluções; admirávamos sua sabedoria e dedicação.
Tínhamos medo de seus comentários sobre os ensaios e espetáculos, pois ela apontava as
falhas cruciais da encenação e da atuação, na verdade, tínhamos medo de errar com ela e de
não conseguir chegar até onde acreditava que conseguiríamos. E, por fim, tínhamos ódio de
seus apontamentos, uma vez que a verdade dói e Nair sempre foi verdadeira, apresentava-nos
uma análise precisa de todo o processo de encenação e mostrava-nos, exatamente, onde
tínhamos falhado ou nos equivocado. Porém, o mais tocante era que, após detalhar todas as
“faltas”, ela nos olhava e nos dizia: “Você pode fazer melhor, não minta para mim!”.
Durante todo o tempo em que ficamos na Universidade, Nair despertava em
nós o desafio, olhávamos para ela como quem observa um totem ou um mito. Os sentimentos
que permanecem em relação a ela são de admiração, amor e gratidão.
Nair D’Agostini e Inês Marocco, o que temos a dizer sobre elas é, na verdade,
uma afirmação: “Tivemos a oportunidade de trabalhar com mestres geniais!”.
II.2. A encenação
Os ensinamentos recebidos de Kai Berthold – Odin Teatret, Ana Elvira Wuo –
LUME, Thomas Leabhart e, em especial, de Inês Marocco e Nair D’Agostini foram muitos,
todos registrados, impressos e assimilados por nossos ouvidos e corpos atentos. Mestres que
ensinaram/ensinam e instigaram/instigam a partir de nossos próprios propósitos com o teatro.
69
Figura 13 - Foto: Léo Azevedo
Estes
ensinamentos, entre outros,
fazem parte de nossa sintaxe na
aprendizagem teatral e possuem
ligação direta com o complexo
construído para a encenação dos
espetáculos GODÔ, criado a partir do texto “Esperando Godot” de Samuel Beckett, com
orientação de Inês Marocco e Nair D’Agostini; TRATTORIA, a partir da obra “O
Montacarga” de Harold Pinter, com orientação de Adriane Gomes; e JOGUETE, a partir da
obra “Fim de Partida” de Samuel Beckett, “o passo solitário”, sem orientação ou supervisão.
Todos os três espetáculos, resultantes do processo de encenação aqui proposto.
Para melhor nos organizar, dividimos o processo em quatro momentos: 1 -
trabalho com o texto; 2 - trabalho com os atores; 3 - intertextualidade; 4 – a unidade/ o
conjunto.
Começaremos com o texto, um trabalho “artesanal” aprendido com Nair
D’Agostini. Apesar dos espetáculos não serem adaptações dos textos, Nair dizia que era
necessário termos total compreensão da obra que nos serviu de “inspiração” para “viajarmos”
na encenação; para ela, isso era preciso para que não perdêssemos a “Linha Direta de Ação”
do espetáculo. Mesmo que os resultados não sejam adaptações dos textos, foi a leitura das
obras de Beckett e Pinter que nos serviu de impulso para as encenações, então, era necessário
estudarmos estas obras e criarmos uma possível direção para nossas idéias do espetáculo. Se a
leitura “despretensiosa” nos inspirou ou despertou alguma imagem da encenação, a leitura
atenta e a análise desta mesma obra alimentaram os vislumbres das cenas e nos encaminharam
para uma espécie de “imagens paralelas”, pois, conforme vamos avançando no processo com
o texto, vamos “descobrindo” nosso próprio espetáculo. Num processo antropofágico, nos
alimentamos da obra, a “condimentamos” com nosso imaginário (que, por sua vez, se
alimenta das outras peças do complexo), a digerimos e a transformamos em outra obra, que
nada tem a ver com o texto. Porém, o impulso que a obra dramatúrgica nos dá é de tamanha
importância para nós, que não podemos negar sua participação no processo de “criação” do
espetáculo. Por este motivo, é que pensamos ser necessário falar desta etapa dos processos de
montagem.
II.2.1. O Texto
70
Neste momento, apesar de falarmos do texto, estaremos focalizando sobre o
trabalho de análise e transformação do mesmo. Então, deixaremos para entrar na questão
referente ao teatro do absurdo e ao clown, no próximo capítulo, onde estes assuntos poderão
ser abordados com mais atenção.
Para compreendermos o texto em todas as suas possibilidades, é necessário que
saibamos sobre o período em que foi escrito, período e local em que a história acontece,
informações sobre o autor, influências recebidas e informações sobre o próprio texto (artigos,
críticas, etc.). Após recolher estes dados, passamos à Análise Ativa, de Stanislavski. As
informações adicionais não interferem na análise ativa, mas servem para compreendermos o
universo do autor, de seus personagens e assim, também, as várias instâncias que o texto pode
abordar.
A análise ativa revela ao diretor detalhes importantes para que ele não se perca
do enredo e também mostra o texto de uma maneira eficaz para quem trabalha diretamente
com a ação. Através dela temos a análise integral da peça, na qual se desvenda a Linha Direta
de Ação da peça e da personagem, revelando seu super objetivo no percurso da história e
trazendo o objetivo/obstáculo da personagem e a ação que move esta a cada.
Segundo Nair D’Agostini, as informações encontradas no texto através da
análise ativa são importantes para a construção de qualquer espetáculo, dentro de qualquer
proposta, pois assim, o diretor tem uma estrutura para desconstruir, ou recriar com metáforas,
que é o caso de nosso processo de encenação. A análise ativa nos possibilita encontrar as
seguintes respostas:
Análise Ativa (AA)
A - Circunstância Anterior (CA):
A circunstância anterior é o Universo em que o texto está
envolvido (causa a situação anterior) e que se mantém em cada situação.
A’ - Situação Anterior (AS)
: Está situada no grande círculo. O grande círculo traz o contexto
em que a peça acontece e a situação anterior mostra o universo presente neste contexto (é a
situação que mostra como “as coisas são”).
B - Principal Circunstância Dada (PCD) ou Principal Conflito da Peça (PCP) - Nasce do
acontecimento que gera a “luta da peça”, pois é conflitante com o universo e com a situação
anterior (gera o super objetivo da peça).
71
B’ - Situação Fundamental (SF): Situação em que é revelada a principal circunstância dada da
peça. Ela traz o acontecimento fundamental para a peça acontecer.
C - Situação Central (SC): Situação em que se dá o acontecimento resultante do conflito da
Linha direta de ação da peça (a linha direta de ação carrega o conflito do super objetivo com o
universo).
D - Situação Final (SFin): Também chamada de acontecimento principal , porque há uma
mudança, ainda que possa ser ideológica, no grande círculo (contexto da peça).
E - Linha Direta de Ação (LDA) ou Super Objetivo:
E’ - L.D.A da Peça (LDA’)
: Carrega o tema e o conflito da peça, tem início na
primeira cena, chegando até a última. É o conflito entre a situação anterior e/mais a principal
circunstância dada.
E” - L.D.A. da Personagem (LDA”): Carrega o conflito da personagem entre seu
objetivo e seus obstáculos.
F - Tema da Peça (TP): “Palavra central” da história, cuja presença, ainda que imperceptível
ou sutil, está em todas as situações.
G - Idéia da Peça (IP): Reflexão que o texto expõe.
OBS.: Para nossa melhor organização, os esquemas da análise serão expostos nas páginas a
seguir. O primeiro é o esquema da análise ativa do texto integral e, em seguida, o quadro de
cenas do espetáculo, onde o texto é esmiuçado para encontrarmos as divisões e subdivisões
das cenas.
72
UNIVERSO
73
74
Como destacado anteriormente, é a partir desta análise que estruturamos o
roteiro para o espetáculo, realizamos um estudo das principais situações apresentadas no
texto, observamos cuidadosamente quais seriam essenciais para a história.
A obra inspiradora possui algumas características e situações próprias: o tema,
o universo, a linha direta de ação da peça e dos personagens, a situação anterior, a situação
fundamental, a principal circunstância dada, a situação central, a situação final e as situações
em que a linha direta de ação de cada personagem é fortalecida e, consequentemente, o
principal obstáculo que deve ultrapassar. Encontradas tais situações, temos a sucessão das
principais cenas que constróem a história em toda a sua complexidade. Como não
trabalhamos com a adaptação do texto, então, não fazemos tais cenas trabalhamos com a
intenção da cena e a ação encontrada, podendo trabalhar estes dois “elementos” através de
situações metafóricas.
Esta análise necessita de muitas leituras da peça, prestando atenção em todo o
texto escrito, falas dos personagens e didascálias, de onde podemos retirar muitas informações
sobre a cena e sobre os personagens.
Uma vez que esta primeira etapa tenha sido realizada, passamos para a
seguinte, na qual ainda se trabalha com o texto. A partir das análises das cenas, pegamos os
verbos de ação encontrados dos personagens e fazemos uma busca de jogos que possuem
ação/atividade similar – e temos, assim, a união com o método de Viola Spolin – de forma
que o próprio jogo e a ação de jogar dos clowns irão sugerir a metáfora para o espetáculo.
Antes de nos deter sobre o método de Viola Spolin, é necessário fazermos um
esclarecimento em detrimento de uma discussão entre jogo dramático
5
e/ou teatral
6
: Neste
processo, utilizamos ambos os jogos, dependendo do encaminhamento do processo de clown e
da necessidade que a cena demande e não entraremos nas minúcias de conceituação e
diferenciação entre jogo dramático e/ou teatral, pois este não é o objetivo desta pesquisa.
Para Spolin, os jogos possuem uma estrutura: Onde? Quem? O que?. Esta
estrutura envolve um espaço [Onde (Cenário e/ou Ambiente)], um alguém [Quem
(Personagem e/ou Relacionamento]) e um conflito [O Quê (Ação de Cena/Atividade)] e,
segundo ela, são itens necessários para o desenvolvimento de uma cena. Spolin defende o uso
de jogos nos ensaios porque cria o hábito do ator ser espontâneo dentro de regras
estabelecidas, além de produzir a união e sintonia do grupo, trazendo “[...] todos os jogadores
para o mesmo espaço, não importando a diversidade de sua formação e treinamento”
7
.
Através deste nivelamento natural que o jogo instaura, temos um sentido de cooperação e um
sentimento de confiança dos atores/jogadores, onde cada um está aberto para a interferência
75
do outro, produzindo um fluxo e uma força de energia. O jogo faz com que o ator esqueça o
subjetivo e entre na linguagem física, ele deixa de lado a situação psicológica para agir, assim,
“[...] todos [os jogadores] se encontram no tempo presente, envolvidos uns com os outros,
fora do subjetivo, prontos para a livre relação, comunicação, resposta, experimentação e
fluência”
8
, é onde o ator se entrega estabelecendo uma relação espontânea com o grupo.
O jogo traz, além da espontaneidade para os atores, a dinâmica para a cena.
Através das possibilidades de resoluções e soluções de problemas, o ator experimenta todas as
suas habilidades, fazendo com que as técnicas surjam “[...] a partir do eu total”
9
. “É pela
consciência direta e dinâmica de uma experiência de atuação que a experimentação e as
técnicas são tecidas, liberando o ator para o modelo fluente e infinito de comportamento de
palco.”
10
O jogo faz com que o ator traga suas habilidades e técnicas adquiridas,
naturalmente, para a cena.
Para fazer a transformação da análise ativa para os jogos, devemos trabalhar
com o estudo de possibilidades e com a intuição. Primeiro, devemos sublinhar que o diretor, a
partir do trabalho de iniciação do clown
11
com os atores, no qual assume a figura do
“Monsieur”
12
, deve obter um conhecimento das características de cada clown, podendo, de
certa forma, pensar nas possibilidades de respostas do mesmo ao jogo proposto.
O jogo escolhido deve produzir situações e ações similares às encontradas na
análise. Pensamos que, para obtermos uma melhor compreensão do encaminhamento, é
necessário utilizarmos um exemplo de construção de uma cena. Escolhemos o processo de
JOGUETE, por ser o espetáculo mais recente e ter realizado várias temporadas em Salvador.
Exemplo:
Jogo: “Cabo de Guerra”
Objetivo: Criar situação de combate e luta corporal.
Atores e seus respectivos clowns: Diana Ramos – Bonna Bonacha e Jacyan Castilho –
Matilde.
Após o aquecimento individual e a dança dos clowns
13
, o “Monsieur” introduz o jogo “Cabo
de guerra”, o qual foi utilizado para fazer um aquecimento ativo dos atores, com a intenção de
trabalharem a situação de combate, sendo que, durante o jogo, ele faz interferências através da
“instrução”
14
, para que os clowns construam a situação. A instrução pode ser dada para o
grupo, ou separadamente “ao pé do ouvido”, criando as relações e tensões necessárias para a
situação da cena.
76
Os clowns estão dançando, na própria dança, introduzimos a corda, com a qual
eles passam a dançar. Vamos estabelecendo a relação de combate:
Monsieur: Vocês passam a apresentar, neste momento, a dança da corda. Uma dança
folclórica que mostra a bravura dos combatentes, a resistência dos povos contra o colonizador.
De um lado temos a dança do oprimido, resistente (tocando em Matilde) e do outro a dança do
opressor, tirano (tocando Bonna Bonacha).
Depois de um tempo de dança.
Monsieur: A dança se torna o próprio combate, a terrível luta entre dois líderes de povos
diferentes que se enfrentam. O ganhador tem o direito de escravizar o povo perdedor.
Depois de um tempo de jogo.
Monsieur: Estas lutas se prolongam, muitas vezes, durante todo o dia. Vocês estão lutando
durante muito tempo e se sentem cansados.
Monsieur - Instrução para Bonna Bonacha: Você se senta, mas não desiste da luta. Monsieur -
Instrução para Matilde, que está no outro lado da corda: Vocês estão lutando a tanto tempo
que você sente muita fome e está ficando sem forças. (tempo) Lá longe passa uma carrocinha
de cachorro-quente e hoje é dia de promoção: você compra um e leva três. (tempo) A fome é
tanta que você é hipnotizado pelo cheiro da comida.
Monsieur - Instrução para Bonna Bonacha: Você percebe que ele está distraído. É a sua
chance de vencer! Puxa! Puxa!
Monsieur - Instrução para Matilde, que está no outro lado da corda: A sua vontade maior é de
ir até a carrocinha, você quer comer, sente o cheiro... o cachorro-quente deve estar delicioso.
Monsieur - Instrução para Bonna Bonacha: Chegou a hora de vencer, de ter um povo à sua
disposição. Você será o rei. Você terá súditos. Vai puxando até que ele tenha vindo para o seu
lado. Traga ele até você e mostre que você é o rei, que você é o vencedor.
Monsieur - Instrução para Matilde, que já está diante de Bonna: Você foi derrotado. Nem
conseguiu vencer, nem conseguiu comer... e a carrocinha de cachorro-quente vai embora...
você ficou sem nada...
Este jogo resultou numa cena que, após ter passado pelo processo de
codificação e re-codificação, ganhou novo contexto e integrou-se à história contada no
espetáculo (na análise do espetáculo é a 18ª cena e no DVD, a partitura re-codificada está na
cena de nome “Cobranças”).
A codificação das ações foi feita da seguinte forma: após o trabalho de
exaustão física, introduzimos o tema da cena através da dança, conforme descrição acima,
77
depois, o jogo juntamente com o tema e, então, dávamos as instruções para as atrizes e
observávamos suas reações, quando “encontrávamos” algo interessante, enumerávamos esta
ação, construindo uma seqüência numerada. Depois, a dança começava novamente e os
números da seqüência eram ditos de maneira aleatória e precisa, sendo repetidos com alguma
velocidade, para que a codificação fosse assimilada e as atrizes continuassem seguindo o
fluxo de energia, sem raciocinar. Como as ações envolviam as duas atrizes, iniciamos a
recodificação através da construção de uma partitura, que consistia na fixação da numeração
anterior na ordem que nos parecia propícia ao uso em cena. Depois de criada a seqüência,
começamos um trabalho de “passagem” de uma ação a outra; a partitura foi sendo repetida
constantemente até que, a partir de um comando, as atrizes deveriam “congelar” na
numeração indicada e, lentamente, com total controle do corpo, passar para a ação seguinte.
Quando finalizavam a passagem e terminavam a ação, havia nova repetição das outras ações,
no ritmo que estavam antes de congelar, até que novo número fosse indicado e realizassem o
mesmo com as novas ações. Desta forma, as ações, que antes eram fragmentadas, foram
ganhando uma fluidez e “limpeza” na gestualidade e movimentação.
Mas nem sempre a resposta ao jogo é a esperada, os clowns são
revolucionários por natureza e, muitas vezes, nos surpreendem. Devemos, portanto, saber
trabalhar com esta riqueza, pois um jogo pode trazer consigo soluções para mais de uma cena
ou para nenhuma. Por este motivo, o “Monsieur” deve ter um grande “arquivo” de jogos para
propor e ter total compreensão da análise ativa realizada.
A transformação das situações da análise em jogos é feita através da
comparação da estrutura de jogo de Viola Spolin com a estrutura da análise ativa de
Stanislavski.
Estrutura de jogo de Viola SPOLIN :
Onde? Quem? O que?
Estrutura da análise ativa de STANISLAVSKI:
Cena Situação Objetivo da
Situação
Circunstância
Dada
Personagem
Objetivo
do Pers.
Obstáculo
do Pers.
Ação
78
Para a transformação das situações do texto em jogos, aproximamos as duas
estruturas. Mas, como mostra a tabela abaixo, para nos auxiliar neste trabalho, adicionamos
um novo “O que?”, o qual também pode ser entendido como “Como?”. Esta repetição do “O
que?” e a aparição do “Como” irá objetivar a situação quanto aos acontecimentos que movem
a ação do jogo e nos possibilitar uma estratégia para este jogo.
Tabela de transformação de situações para jogos:
S
T
A
N
I
S
L
A
V
S
K
I
Cena Situação Objetivo
da
Situação
Circunstância
Dada
Personagem
Objetivo
do
Personagem
Obstáculo
Do
Personagem
Ação
S
P
O
L
I
N
Onde ?
Cenário e/ou
Ambiente
O que?
Ação de Cena
Quem ?
Personagem
e/ou
Relacionamento
O quê? (Como?)
Ação de Cena/Atividade
É verdadeiro afirmar que a estrutura da análise ativa é mais completa que a
estrutura de jogo, mas quem irá suprir as lacunas é o “Monsieur”, através da “instrução”,
“uma das facetas geradoras (energizadoras) do processo de jogos teatrais”
15
. A “instrução” “É
uma instigação, provocação, estímulo através do qual o instrutor-diretor catalisa a energia do
jogo”
16
, ela estimula o ator no processo de gerar e manter a energia crescente e “A partir
79
dessa liberação de energia o personagem [ para nós – o clown], a emoção e os
relacionamentos tomam forma dentro do espetáculo desejado”
17
.
Segundo Viola Spolin, a “instrução” é uma maneira eficaz de manter o
ator/jogador ligado à realidade objetiva (ou seja, realidade fora do jogo), pois ela “atinge o eu
interno/externo total sem parar o jogo e o jogador se movimenta de acordo”
18
com as
instruções dadas, encontrando seu próprio modo de resolver o problema, utilizando, para
tanto, suas habilidades (acrobacias, mágica, equilíbrio, etc.).
Consideramos, ainda, que a “instrução” traz o instrutor e os atores/jogadores,
como partes de um processo de crescimento simultâneo, o qual exige a
reciprocidade/cooperação das partes e esta aproximação faz surgir as ações que serão
codificadas para as cenas. É por meio da “instrução” nos jogos que o “Monsieur” induz a ação
dos clowns para criar metáforas das situações da peça. Os jogos, por sua vez, trazem em si o
lúdico e é característico do clown explorar a ludicidade ao extremo. Quando um jogo é
proposto ao clown, este o compreende de forma singular e isso faz com que descubra outras
possibilidades de metáforas e paródias para as situações das cenas, que aquelas levantadas
pelo diretor.
Apesar dos clowns criarem as situações metafóricas, é o diretor que as instiga e
as idealiza direcionando-as para a “linha” condutora do espetáculo. É conveniente ter o
devido cuidado na escolha dos jogos a serem propostos, dessa maneira, mesmo dentro de sua
lógica própria, o clown será movido pela mesma linha direta de ação que a personagem no
texto.
Porém, para que esta etapa de transformação de texto dramatúrgico para texto
cênico possa acontecer, os atores devem ter passado pelo processo de iniciação ao clown, o
qual faz parte do trabalho com os atores.
O trabalho realizado com os atores seria o segundo momento do processo, mas,
por se tratar de um trabalho extenso e específico, acreditamos que, para nossa organização, é
melhor destinarmos um outro momento para a descrição de todas as suas etapas. Sendo assim,
não vemos a necessidade de descrevê-lo duas vezes e passamos, então, para a terceira etapa.
II.2.2. A intertextualidade
80
A intertextualidade
19
é fato resultante do processo e visível nos espetáculos
20
concluídos. Ela é construída ao longo da estruturação dos espetáculos, mas é com os mesmos
“afinados”, que a percebemos com clareza no texto cênico.
O processo desenvolvido e aqui apresentado por nós tem como principal
“mecanismo” a transformação das “células dramáticas da escritura dramatúrgica” em “células
dramáticas da escritura cênica”, desenvolvendo a intertextualidade cênica dos espetáculos.
Falamos em “transformar as células (...)”, pois não fazemos uma transposição das células
dramáticas, e sim, as transformamos de acordo com nossa idéia de espetáculo, a qual surgiu
com a leitura do texto dramático e se serviu deste para não “se perder” durante o processo de
montagem.
Neste processo, as encenações recebem influências variadas (cinema mudo,
desenho animado, circo, teatro do absurdo) que, juntamente com os procedimentos teórico-
práticos, inscrevem harmoniosamente a intertextualidade do texto cênico, mostrando nos
espetáculos uma estética própria. Este conjunto textual cênico é composto pelos textos
sonoros (ruídos de movimentação e manipulação dos objetos, trilha sonora, grammelot e
respiração) e pelas imagens, sejam elas somente visuais (composição corporal de cada ator,
composição corporal do conjunto de atores, iluminação, cenário, objetos e acessórios), de
movimentação da cena ou da manipulação dos objetos.
Começaremos falando sobre o texto sonoro dos espetáculos. Tal como Kai
Berthold nos fez compreender, todo ruído produzido no palco deve ser avaliado como
“música” pertencente à cena, fazendo com que este som pertença à partitura musical do
espetáculo. Estas também são as anotações de Patrice Pavis, o qual nos chama a atenção
afirmando que:
Na análise sonora, devemos revelar o trabalho físico da respiração, medir os
esforços e as energias gastos, determinar se a respiração (expiração e inspiração) é
claramente audível e que sensações e emoções ela veicula, avaliar a corporeidade
que o sopro dá a entender e a sentir.
21
Para tanto, deveríamos fazer esta análise individual, de cada ator e do elenco
como conjunto, mas iremos nos deter no conjunto do texto sonoro da cena, agregando todos
os sons que dela participam sem categoriza-los.
Iniciaremos com o texto verbal, pois os espetáculos em questão apresentam
uma peculiaridade: o texto verbalizado/falado não é articulado em língua conhecida,
utilizamos o “sistema oral” denominado por Dario Fo de grammelot, que intenciona criar um
discurso, de forma que o espectador imagina o conteúdo do que é dito, entendendo as
81
informações principais por assimilação do conjunto (gestos, ritmos, inflexões, onomatopéias e
sonoridades particulares).
O grammelot é trabalhado, quanto a sua eficácia em cena, como qualquer outro
discurso, utilizam-se todas as capacidades de nosso aparelho fonador, com os fatores
objetivos que, segundo Patrice Pavis, são a freqüência, a intensidade e o timbre; e os
subjetivos, que ele aponta como todos aqueles fatores que tocam o espectador/auditor “por
meios de efeitos e afetos que ultrapassam a comunicação semântica de informações, e usam a
materialidade corporal da voz e seus efeitos imprevisíveis, ou até mesmo indescritíveis.”
22
. Os
fatores objetivos e subjetivos do discurso grammelótico devem trazer uma compreensão “do
valor dramatúrgico dos efeitos vocais”
23
e passar para o público a “intenção” sem possuir a
articulação de um idioma conhecido.
Mas é necessário sublinhar que o uso do grammelot não é regra e que o
utilizamos de forma muito econômica. Nem todos os clowns, no espetáculo, fazem uso deste
meio de comunicação e aqueles que o fazem, não o utilizam em todas as cenas. Servimo-nos
do grammelot de acordo com as necessidades da cena, tendo como prioridade a ação; por isso,
muitas vezes incorporamos o texto que origina a encenação às ações, reações e relações dos
clowns com objetos, entre eles próprios e com o público.
Para chegarmos à gestualidade necessária ao entendimento do texto
cênico/texto dramatúrgico, é preciso fazer a transformação dos signos verbais em signos não-
verbais, aliando a análise da dramaturgia escrita e a transformação da mesma em
imagens/ações. Este processo acontece através dos jogos e da codificação, conforme descrição
feita anteriormente.
A sonoplastia ou música, também, faz parte do texto sonoro. A trilha utilizada
é escolhida através da experimentação durante os ensaios, mas temos preferência por músicas
instrumentais e do tipo “caixinha de música” - presentes nos três espetáculos. Utilizamos a
música com as seguintes funções: para distanciar, na qual faz parte de uma intervenção alheia
à cena, recurso muito utilizado no desenho animado; para dar ritmo às cenas, como no cinema
mudo, marcando a movimentação e/ou intensificando a ação dramática; ou para criar uma
atmosfera de “espetacularidade” como no circo, situando a ação num “cenário acústico”; e
como “tema”, para tornar a situação reconhecível, criando a identificação imediata pelo
espectador.
Constituindo o texto sonoro do espetáculo, além do grammelot, cuja técnica,
conforme explicação anterior, entre as páginas 35 e 40, utilizamos como aprendizes, e da
sonoplastia, temos ainda, os sons criados pela movimentação dos atores e pela manipulação
82
dos objetos. Estes tipos de sons são cuidadosamente “impressos” na cena, pois possuem uma
ligação com a situação apresentada, auxiliando na impressão de caos, organização, segredo,
suspense, opressão, etc. Este é o conjunto de sons que constitui o “colorido” texto sonoro dos
espetáculos
24
.
Quanto ao texto visual, este também é criado a partir de muitos itens, a
iluminação, o figurino, a maquiagem, o cenário, os objetos, as ações e a movimentação dos
atores. Nestes dois últimos casos, seria necessário integrar-lhes o ritmo (tempo) e o espaço,
pois ambos se manifestam em um espaço e com um ritmo e podemos avaliá-las (ação e
movimentação) somente quando as vimos ocupando um tempo e desenhando-se no espaço.
Iniciamos falando da iluminação dos espetáculos e assinalamos que, além de
sua função primeira de iluminar o espaço cênico, ela tem como objetivo criar uma atmosfera
que não seja realista, que pareça ser outra época/realidade, mas sem situá-la no tempo
histórico. Trabalhamos com contrastes de claro escuro e temos a cor âmbar como base da
iluminação. A cor âmbar é utilizada para criar um efeito, que na fotografia chama-se sépia,
dando a impressão que o espetáculo tem “tom envelhecido”, como nos filmes do cinema
mudo. No caso dos espetáculos GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE, a iluminação auxilia na
criação da estética de cena, conferindo à maquiagem e ao figurino características acentuadas,
e, também, na compreensão das situações propostas, criando as atmosferas. Apesar da
iluminação possuir tal importância, os espetáculos possuem poucos focos, não apresentam
muitas mudanças de luz e todas as que existem, possuem forte ligação com a ação dramática;
intensificando a situação (suspense, romantismo, medo) ou destacando determinado
acontecimento (focos em determinadas cenas). Como dito anteriormente, a iluminação dos
espetáculos mencionados possui planos de luz (ou light design
25
) simples, mas é
importantíssima para o conjunto do universo da peça, é parte fundamental para criar o texto
cênico dentro da proposta da encenação, juntamente com os outros elementos
26
.
Comentamos agora o cenário. Em todos os três espetáculos os cenários são
“econômicos”, isto é, nada é usado para “decoração”, tudo possui uma função/atuação direta
com a encenação. Temos que, por princípio, conforme as influências dos mestres, dar
prioridade ao jogo do ator, utilizando somente o necessário para o espetáculo.
Na composição do cenário, utilizamos a cor preta como fundo, evidenciando o
contraste de cores entre cenário, objetos, figurino e iluminação e contribuindo para uma
melhor “definição” da ação. Isto acontece porque a cor preta ao fundo, juntamente com a luz
âmbar, ressaltam o “desenho” da movimentação dos atores num cenário econômico e com um
figurino onde predominam as cores em tons pastéis, marrons e cinza.
83
O espetáculo GODÔ possuía a estrutura de cena em semi-arena, como do circo
e não havia coxias, somente a cortina preta ao fundo, com um mastro da mesma cor do papel
Kraft com um pequeno guarda chuva no topo, de cores preto e bege; ao redor do mastro, tinha
uma “zebra”
27
de madeira, sem pintar e sem verniz. Os clowns que faziam Pozzo e Lucky
utilizavam os corredores das arquibancadas para entrarem e saírem de cena, os que faziam
Didi e Gogo permaneciam no palco desde a entrada do público até os agradecimentos.
TRATTORIA era apresentado em estrutura de palco italiano e tinha o teto
rebaixado, dando a impressão de um porão. As paredes e o teto tinham a cor preta A peça
iniciava com o palco vazio e, posteriormente, eram levadas para a cena duas cadeiras de cor
bege e marrom e desciam do teto duas “panelas” de iluminação de cor preta, que, também,
faziam parte do cenário.
Em JOGUETE, o palco é utilizado na forma de um trapézio, com a base maior
abrindo a cena para o público, como se as paredes da casa “continuassem”. Cada parede
lateral tem uma janela (1,10 x 0,90). No palco, há três caixas de madeira. A primeira de 1,40 x
1,40 x 1,40 e a segunda de 1m x 1m x 1,40, ambas possuem uma porta na frente e uma tampa
superior. Ficam do lado esquerdo do palco, no fundo. A terceira caixa tem 0,65 x 0,50 x 0,50
com apenas uma porta na frente e fica à direita do palco, também ao fundo.
Juntamente com o cenário, podemos citar os objetos utilizados nas cenas, os
quais, muitas vezes ganham a mesma importância. Como no caso de TRATTORIA, onde as
cadeiras e as “panelas” eram o cenário, encontravam-se no centro da ação, mas eram
manipulados como objetos, ou seja, eles saíam e entravam de cena carregadas/manipuladas
pelos clowns. Os objetos fazem parte da estética e são cuidadosamente trabalhados para isso.
Dependendo da situação, os objetos encontrados nos espetáculos podem ser coloridos, sendo
este recurso utilizado para destacá-los e evidenciá-los na trama, já que muitas vezes revelam
um perfil, podem servir de códigos ou fazem a ligação entre personagens ou cenas. Algumas
vezes, os objetos podem ter as cores do cenário, geralmente, este recurso é utilizado para
aqueles que fazem parte do universo da peça (estamos falando do universo que a análise ativa
nos traz). Então, podemos dizer que os objetos que seguem as características do cenário fazem
parte do universo principal da peça, enquanto que os coloridos fazem parte do universo de
cada personagem ou de uma situação alheia ao universo principal (como num momento de
sonho ou romântico - que é cortado pela realidade do universo principal da peça).
O figurino também pode estar ligado ao cenário e aos objetos, pois em alguns
casos é utilizado e manipulado como tal. Esta situação não é a regra dos espetáculos em
questão, contudo, há uma exceção no figurino do clown Bonna Bonacha, que desempenha um
84
papel no espetáculo JOGUETE. No texto “Fim de Jogo” de Samuel Beckett, o personagem
Hamm utiliza uma cadeira de rodas, em JOGUETE, este objeto de cena “transformou-se”
num saco de dormir e tornou-se parte do figurino do personagem.
Nos espetáculos GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE o figurino é criado a partir
dos clowns de cinema, com características sóbrias e discretas. Temos preferência por ternos,
fraques, xales, lenços, vestidos sóbrios, roupas que não denunciam uma época, ou que
poderiam fazer parte de algumas épocas. As cores também são discretas: bege, marrom, cinza,
preto, branco, azul e rosa, estes últimos em tons pastel. As cores vivas são utilizadas somente
nos detalhes, como lenço, gravata, acessório (apito, corda, balão) e objetos. Isto é feito com a
intenção de evidenciá-los e realçar a importância dos mesmos na cena ou de criar a
identificação entre os personagens representados pelos clowns, como dito anteriormente.
Temos alguns casos específicos, como em GODÔ, em que a roupa de Pozzo possui brilhos,
pois foi inspirada na figura do domador de feras do circo e em TRATTORIA, no qual os
clowns que fazem as interferências nas cenas são inspirados no desenho animado, possuindo
figurinos que fogem à estética do cinema mudo.
A maquiagem da peça é a do próprio clown. Cada clown possui uma
maquiagem específica, ela funciona como reveladora de sua personalidade e tem a ver com as
suas características (o processo da maquiagem será visto posteriormente, no momento em que
está destinado ao processo com os atores, pois um está ligado ao outro). Algumas delas
possuem cores fortes, vivas, outras em tom pastel, com traços marcantes ou suaves e são
feitas através da observação do próprio clown e da experimentação. Como o espetáculo é feito
pelos clowns, eles permanecem com a sua maquiagem original.
A movimentação e manipulação dos objetos também fazem parte do texto
visual. Podemos dizer que estes dois últimos itens “colocam em movimento a estética do
espetáculo” e fazem a interligação com o texto sonoro, pois produzem um desenho no espaço,
mas também produzem uma sonoridade. É necessário reafirmar que nenhum destes sons são
feitos aleatoriamente, a “limpeza” e a exatidão na movimentação e manipulação dos objetos
também geram sons que fazem parte da “tensão” da cena. A união entre as sonoridades e os
aspectos visuais é feita de maneira a produzir um texto cênico com várias nuances, “texturas”
e atmosferas, procurando dinamizar os silêncios do teatro do absurdo com os ritmos do
cinema mudo, a irreverência do desenho animado e a magia do circo.
Os itens acima apresentados formam o conjunto que escreve no palco o texto
cênico, em que a unidade dramática do espetáculo é levada ao público com a naturalidade da
anarquia poética que o clown possui, revelando o ridículo e as fraquezas do ser humano com
85
ingenuidade, jocosidade e lirismo. Tal conjunto compõe a intertextualidade dos espetáculos, e
pode ser visto e analisado durante a apreciação dos registros (filmagens e fotos) dos
espetáculos, os quais acompanham esta dissertação.
II.2.3. A Unidade
A unidade vai se estruturando ao longo da encenação e tem como finalidade
preparar a atmosfera que envolve o espetáculo. Na verdade, quando nos referimos a unidade,
estamos falando do conjunto que envolve os primeiros contatos do público com o espetáculo,
cartaz e programa, como também, do teatro/espaço físico, como o local que irá receber o
público. Estes itens (cartazes, programas e espaço físico) fazem os primeiros contatos e, de
certa maneira, ligam-se ao processo de encenação, pois a idéia destes (cartaz, programa e
ambiente) vai surgindo no decorrer da construção do espetáculo, concebida pela própria
direção e tem como função “apresentar e convidar” o público para assisti-lo. Portanto, eles
possuem forte ligação com o conteúdo do espetáculo e é por isso, que achamos pertinente
fazermos comentários sobre estes elementos. Teceremos os comentários, tomando os
espetáculos como exemplo.
Apesar das imagens de cena terem mais semelhança com o cinema mudo,
GODÔ possuía nas músicas, no cenário, no figurino e nos objetos de cena, forte ligação com
o circo e esta influência também transpareceu no cartaz, programa e ambientação, que tiveram
inspiração circense. Através da observação de cartazes de divulgação de pequenos circos,
seguimos o modelo com duas cores primárias (azul e amarelo – fundo amarelo com impressão
em azul turquesa) e a imagem das principais atrações (no caso do espetáculo, eram os atores).
O programa dado ao público era um saco de pipocas e eles assistiam ao espetáculo comendo
pipocas (como fazem as pessoas quando vão ao circo). Na entrada da sala de teatro, em cima
da porta, colocávamos um letreiro com luzes onde estava escrito “GODÔ”, imitando a
fachada do circo. Completando a atmosfera do ambiente, enquanto o público aguardava para
entrar, escutavam músicas de características circenses.
No espetáculo TRATTORIA, o cinema mudo e os desenhos animados
ganharam mais espaço. Por isso, pensamos num cartaz que parecesse uma fotografia antiga,
mas cujo conteúdo estivesse ligado ao espetáculo. Para ficarem com a aparência de
envelhecidos, tanto o cartaz quanto o programa foram feitos em papel kenya, com a impressão
em tons de preto, aproximando-se assim, do efeito desejado. A imagem escolhida para o
86
cartaz foi a de um chapéu “panamá”, com a abertura para cima, transbordando macarrão.
Utilizamos o macarrão porque, na história de Pinter, tudo acontece no porão de um
restaurante, e o chapéu porque faz referência ao universo dos personagens que representam a
opressão, mas também são objetos e imagens que aparecem ao longo do espetáculo. No
espetáculo, os personagens que simbolizam a organização que contratou os dois matadores
aparecem usando o chapéu. Para criar a ambientação, o hall do teatro foi arrumado como se
fosse a entrada de um restaurante, onde havia uma mesa com variedades de azeitonas que
eram oferecidas ao público e faziam o “elo cênico”
28
. Enquanto aguardavam o momento de
entrar, o público escutava músicas italianas tradicionais e para dar mais veracidade, todo o
teatro havia sido “inundado” por cheiros de molhos de macarrão (um fogão foi levado para o
teatro e enquanto o elenco se arrumava e a peça acontecia, na coxia era preparado uma
macarronada, com muitos molhos). O programa foi inserido na decoração da mesa da entrada,
junto das azeitonas e tinha a aparência de um guardanapo de papel.
Em nossa opinião, JOGUETE é o espetáculo que possui maior equilíbrio entre
cinema mudo, circo e desenho animado, e isso foi levado em consideração para a confecção
do material gráfico de divulgação do mesmo. Os cartazes e programas são impressos em papel
Kraft, lembrando o aspecto rústico do cenário, feito em madeira e sem um aparente
acabamento. No cartaz, a imagem dos dois clowns que desempenham os papéis dos
personagens principais forma um “jogo da velha”, enquanto que os outros dois clowns espiam
o andamento do jogo. O programa é impresso numa pequena embalagem, em papel Kraft de
maior gramatura, contendo, em seu interior, um pacote de biscoitos salgados de 30g. O
biscoito dado ao público é o elemento realizador do “elo cênico” do espetáculo. Na entrada,
os espectadores são recebidos por um “mestre de cerimônias”, que entrega os programas e os
encaminha para a sala do espetáculo. O clown que faz a recepção do público tem a mesma
função dos recepcionistas dos circos modernos: organizar e inserir o público na atmosfera
proposta. O mesmo procedimento é adotado ao final, após os clowns saírem de cena, o
“mestre de cerimônias”, na saída da sala de espetáculo, despede-se de todos e agradece a
presença do público. Esta despedida é “embalada” por uma “caixinha de música”
29
.
Os cartazes e programas de cada espetáculo podem ser vistos no seu respectivo
DVD, inseridos no final do item “Fotos”, porém os programas foram colocados abertos, como
eram impressos e não no formato que o público o recebia.
Desta maneira, falando resumidamente da união dos itens que constituem os
primeiros contatos com o público, especificamente do cartaz, programa e do ambiente de
87
recepção do espectador, finalizamos este momento destinado à unidade e partimos para a
descrição do processo realizado com os atores.
II.3. O Processo Clownesco Construído
Figura 14 - Foto: Léo Azevedo
Ocuparemos este espaço para tentarmos realizar a descrição do processo
desenvolvido com os atores participantes dos espetáculos GODÔ
30
, TRATTORIA
31
e
JOGUETE
32
, dentro da prática das técnicas de clown que utilizamos. Contudo, o processo de
clown está inserido na construção da encenação e constitui a sua segunda etapa.
Como encaminhamento estruturado, o trabalho com os atores também segue
um caminho de etapas. Em primeiro lugar, está a descoberta do clown. Em segundo, está o
trabalho de “desenvolvimento” do clown (a permanência no estado) e a codificação das ações,
quando são realizadas também as sessões de assistência de filmes e documentários. Em
terceiro lugar, trabalhamos com a capacidade do ator, dentro do estado de clown, permanecer
no limiar entre o imaginário e a realidade, é onde se inicia o encaminhamento para as cenas.
Em quarto, está a construção do roteiro do espetáculo e, em quinto lugar, temos a etapa de
“afinação” do mesmo.
1ª Descoberta do clown;
Clown e Codificação;
1ª etapa
2ª etapa 3ª etapa 4ª etapa 5ªetapa
ESPETÁCULO
88
3ª Imaginário/Realidade e Codificação;
4ª Construção do roteiro;
5ª “Afinação” do espetáculo.
Para a construção do espetáculo resultante, o encaminhamento acontece de
forma organizada, cada etapa é um círculo com sua forma/conteúdo definido e se sobrepõem
parcialmente, servindo de apoio para que a etapa posterior possa, a partir da anterior, evoluir e
ganhar a sua própria forma/conteúdo, dando uma continuidade crescente ao processo. Para
tanto, a partir da segunda etapa, começamos a introduzir as influências que fazem parte da
estética do espetáculo (circo, desenho animado, cinema mudo) e, na terceira fase, tem-se a
interferência das situações encontradas no texto escolhido em forma de jogo dramático/teatral.
Como comentado anteriormente, o processo de concepção do espetáculo
contém o processo de descoberta do clown. Após o trabalho do diretor em relação ao texto, o
qual já foi visto no segundo momento deste capítulo, iniciamos o trabalho em conjunto com o
grupo - é o processo de clown. O qual iremos descrever neste terceiro momento, mantendo-
nos focalizados no trabalho com os atores.
A descrição do processo com os atores será feita em etapas, seguindo a
ilustração anterior. Também é necessário dizer que estaremos descrevendo o trabalho
realizado com os elencos dos espetáculos, sem entrar na questão do processo de substituição
de atores, mas devemos citar que, no decorrer de sua vida ativa, houve modificações no
elenco de GODÔ e JOGUETE. Apesar de não descrevermos o processo de substituição,
pensamos ser prudente mencionar que os atores substitutos também passaram pela descoberta
do clown e, posteriormente, para assimilarem as ações e partituras do espetáculo, pelo
processo semelhante ao de codificação de gags clássicas – no qual o clown toma para si e
codifica/re-codifica ações de uma partitura para a sua fisicidade e corporeidade. O motivo de
não descrevermos o trabalho realizado com os atores substitutos é que nosso objetivo é de
relatar o processo de descoberta do clown dos atores e a criação das partituras para as cenas,
compreendendo que, se nos estendêssemos para o processo de substituição dos atores, iríamos
prolongar demasiado e desnecessariamente este capítulo.
Partimos, então, para a descrição sobre o processo com os atores.
II.3.1. 1ª Descoberta do clown:
89
Esta etapa consiste num trabalho de entrega do ator, num mergulho dentro de
si, um período em que o ator entrega-se ao trabalho, arriando suas defesas e deixando aflorar
seu “eu”. Para acontecer este “mergulho dentro de seu próprio eu”, todo o processo é feito
através da exaustão física e dinamização de energias, prática criada, implantada e difundida
por Burnier e pelo LUME. Essa prática é fundamentada no princípio de que, quando o corpo
se encontra na fadiga total, o cérebro não o coordena mais, eliminando o racional, isto é, o
ator age seguindo o fluxo de energia produzida pelo próprio corpo em movimento e sendo
levado pela mesma.
A exaustão do corpo e o abandono do racional fazem com que o ator encontre
um novo estado, que une o físico e o mental e é porta aberta para a descoberta do “estado de
clown”. Todo este processo conta com a presença do diretor, que no contato com os atores na
iniciação ao clown, exerce também o papel de “Monsieur”, que encaminha as ações para as
situações encontradas no roteiro, criado a partir do texto escolhido.
Segundo Burnier, quando o ator atinge este estado físico e mental de abandono
das referências racionais, ele está abrindo caminho para a reflexão dos próprios valores, uma
vez que os abandonou, não os possui mais e, por isso, pode meditar sobre eles de maneira
distanciada. Mas esta reflexão dos valores e das estruturas sociais acontecem naturalmente e
através da figura do “Monsieur” que vai instigá-la por meio das situações geradas pelos
exercícios e jogos.
Cada dia de treinamento é elaborado para dar um encaminhamento crescente
ao processo de iniciação
33
do clown. Fazemos o alongamento e o aquecimento do corpo e da
mente, ou seja, o ator deve concentrar-se em si, a partir do primeiro momento, sua atenção
deve ser totalmente voltada para seu corpo, buscando o contato com o seu interior. Este
“aquecimento da mente”, nada mais é do que a pré-disponibilização ao trabalho, ou a
permissão consciente para o ator executar o “mergulho no seu eu”.
Depois de alongado e desperto para o trabalho, inicia-se o aquecimento
individual e, depois, coletivo. Começamos, então, a fase de exaustão física e potencialização
de energia, pois como Burnier afirma “A premissa humana para o clown, que significa todo
este processo de arriamento de defesas e contato com elementos sensíveis e interiores do ator,
nada mais é do que um outro caminho para a busca de se dinamizar energias potenciais”
34
.
Para tanto, trabalhamos com os exercícios propostos por Burnier (estes mesmos exercícios
também são encontrados, diferenciados ou mesclados, no trabalho de outros profissionais,
conforme observado nas experiências vivificadas em cursos com o LUME, Odin Teatret,
Thomas Leabhart, Nair D’Agostini e Inês Marocco): elementos plásticos, dança dos ventos,
90
enraizamento do corpo, gravidade – peso, saltos e quedas, articulações, koshi, impulsos,
lançamentos, voz e dinâmicas com objetos.
É de total relevância explicar, brevemente, os exercícios citados acima
35
:
- Elementos plásticos – divisão do corpo em cabeça, peito, ombros, bacia, cotovelos, mãos,
joelhos e pés. São trabalhados de maneira dinâmica e plástica, explorando as articulações,
primeiramente de forma individual e, posteriormente, relacionando-as com outras. O aumento
da dinâmica e dos impulsos, inclusive mentais, gera reais desbloqueios físico-mentais.
- Dança dos ventos – dança com passo ternário, harmonizada com a respiração, que
transforma a expiração em energia; desencadeia ciclos de cansaço, os quais se objetiva
ultrapassar. No seu desenvolvimento, possui momentos de introspecção e de relação com o
espaço e com o outro.
- Enraizamento do corpo – divide o corpo em duas partes, a primeira relacionada ao ar, que
compreende a coluna vertebral, do cóccix à cabeça, inclusos braços e mãos; e a segunda,
relacionada a terra, que vai dos dedos dos pés até a bacia – sendo que a bacia possui a relação
tanto com o ar quanto com a terra. Consiste em enraizar (inserir, fincar, firmar, ancorar) o
corpo no chão procurando um controle de equilíbrio, chegando ao equilíbrio precário de
Decroux.
- Gravidade-peso – explora a relação do corpo/gravidade/peso e o espaço.
- Saltos e quedas – utilização dos membros como amortecedores e propulsores para explorar
quedas e saltos pelo espaço.
- Articulações – consiste na divisão do corpo e exploração máxima das articulações com a
variação da dinâmica.
- Koshi – palavra japonesa que significa bacia e consiste na exploração da força oriunda desta
mesma região do corpo.
- Impulsos – atividade direcionada para o impulso de energias pelo corpo, buscando um
trabalho interno e depois externo e, ainda, a relação com o espaço e com o outro.
- Lançamentos – explorar possibilidades de lançamento de energia ou objetos imaginário para
o espaço, explorando a precisão física e o imaginário.
- Dinâmica com objetos – consiste em explorar exaustivamente o objeto, primeiro em relação
às suas características, depois com a sua manipulação, a transformação do mesmo e, por
último, a relação ator-objeto-ator.
- Voz – explorar a voz a partir do conjunto de movimentos com intensidade, nível e
qualidades diferentes.
91
É necessário ressaltar que estes dois últimos exercícios (dinâmicas com objetos
e voz), em nosso processo com os atores, são encaminhados somente na segunda etapa e
sofrem algumas adaptações ao processo de encenação, com o fim de direcioná-los para os
espetáculos. O exercício “dinâmica com objetos” é direcionado da seguinte forma: enquanto
Burnier aponta-o apenas com o bastão e o tecido, nós inserimos os objetos que serão
utilizados em cena, adquirindo assim, uma gama de possibilidades de uso dos mesmos. O
exercício com a voz sofre outro tipo de interferência uma vez que aproveitamos esta
exploração proposta para entrarmos na técnica do grammelot (Dario Fo) e descobrir, desta
forma, a voz e o ritmo do “idioma” que cada clown usará para desenvolver o seu grammelot.
Burnier propõe todos estes exercícios para o ator desenvolver um auto-
conhecimento e um domínio de seu corpo. No trabalho voltado para o clown, o “Monsieur”, a
partir da observação do ator, pode conhecer as suas potencialidades e sua lógica físico-
corpórea, pois como afirma Lecoq, é extremamente pedagógico, delicado e sensível o trabalho
daquele que está provocando o clown. O “Monsieur” deve saber observar e identificar quais
são as dificuldades e bloqueios do ator, para que assim, possa encaminhar o processo até que
este se entregue ao trabalho, sem defesas racionais. E, para isto, não há um número certo de
horas e dias, tudo depende do grupo, do tempo e das dificuldades de cada ator. Então, cabe ao
olhar sensível do “Monsieur” detectar quando o ator está pronto e quando o grupo está em
harmonia para o trabalho em conjunto.
Os exercícios são feitos exaustivamente para que o racional desapareça e o ator
seja um fluxo contínuo de energia orgânica. Quando ele atinge este estado físico mental, ele
adentra também o “estado de clown”.
Foi através dos integrantes do LUME, mas, principalmente, de Ana Elvira Wuo
que o conhecimento e a prática dos exercícios criados por Burnier nos chegaram e foram
absorvidos. Através das experiências vivificadas, compreendemos como nossas emoções
ficam registradas em nossos músculos (codificação), que os mesmos estão ligados à coluna
vertebral e, logo, que estes registros passam, também, pela coluna vertebral.
Thomas Leabhart, aluno e discípulo de Decroux, trouxe-nos o referencial
prático da técnica de mimo, a “limpeza” e a precisão do movimento, foi ele o provocador de
uma grande revelação (ao menos para o encaminhamento deste processo): ele aborda a
energia que produzimos na região do baixo ventre (koshi) de maneira especial, ele denominou
o ponto localizado abaixo do umbigo (duas polegadas) de “anjinho”, explicando que é ele o
responsável pela produção e sustentação da energia de nosso corpo em cena, energia que
denominou de “alma”. Esta energia presente no corpo é a “alma” da ação. Tal maneira de
92
referir-se ao processo energético desenvolveu toda a compreensão da expressão “estar vivo
em cena” e o entendimento da mesma originou a busca pela prática.
A partir destas experiências vivificadas no processo desenvolvido, utilizamos
estes ensinamentos conjuntamente e vemos a total relevância de descrever o procedimento,
ainda que resumidamente, pois acreditamos que ele é o diferencial em relação a outros
encaminhamentos de iniciação ao clown.
A energia produzida pelo “anjinho” é utilizada da seguinte forma: através dos
exercícios propostos por Burnier, citados anteriormente, produzimos energia e concentramos
grande parte na região do ventre. Depois, fazemos a ligação do “anjinho” com a coluna
vertebral, empurrando a energia para o cóccix e fazendo com que ela suba passando por todas
as vértebras. Pensamos que com este procedimento teremos uma corrente de energia pelo
corpo, pois se nossa musculatura está ligada à coluna, então, ao enviarmos a energia
produzida pelo “anjinho” para a coluna vertebral, estaremos enviando, também, para todo o
nosso corpo, distribuindo-a fluidamente/organicamente e fazendo com que a musculatura
emotiva ganhe “alma”. É o corpo que ganha vida através da “alma” produzida (enquanto
energia) pelo “anjinho”.
Continuamos com o procedimento. Como esta energia é empurrada para que
alcance o cóccix, prolongue-se pela coluna e estenda-se até a musculatura, mantemos o fluxo
forte sobre a coluna e o empurramos para que chegue até a última vértebra do pescoço e, com
mais força ainda, o empurramos para que ele ultrapasse a estrutura óssea da coluna. O fluxo,
então, é empurrado da coluna para o nariz, encontrando o contato e a troca de energia com o
espaço e com o outro. Para fazermos este “caminho de energia” pelo corpo, a produção tem
de ser forte e contínua para que o fluxo passe pela coluna, musculatura e se exteriorize.
Quando esta energia alcança o nariz, aflorando para o exterior, ela se coloca à
nossa frente, assim, temos uma extensão de nossa “alma” para fora de nosso corpo, é o ato de
mostrar-se para o outro.
Antes do momento do contato do interior com o exterior, trabalhávamos com a
“alma” presente na musculatura, dando vida ao corpo, agora, trabalhamos com o corpo vivo e
a mesma em contato com o exterior. Com isso temos a seguinte dedução: se é a nossa “alma”
que se encontra ligada com o exterior, então estamos expondo aquilo que temos de mais puro
e íntimo, é o nosso “ser” humano evidenciado. E esta alma que nos mostra e nos revela para o
mundo, também o revela para nós, já que esta energia/alma se exterioriza e se encontra com
este mundo em frente aos nossos olhos.
93
Durante esta primeira etapa, buscamos, num primeiro momento, desbloquear o
corpo para que a energia possa fluir; num segundo momento, uma produção de energia; num
terceiro momento, encaminhamos a energia produzida para o corpo; e num quarto momento,
buscamos encaminhá-la, também, para fora do corpo, mantendo-a ainda presente em toda a
musculatura. Utilizamos como metáfora a imagem de um grande rio, o qual tem sua nascente
no “anjinho”, o seu leito é a coluna, tendo afluência nos músculos e deságua no mar através
do nariz e como todo encontro de águas, possui o seu encanto.
Além dos exercícios propostos por Burnier, o procedimento é acompanhado
por uma seleção musical. Sendo assim, o ator possui, além do “Monsieur”, outro estimulo
externo, mantendo o clown em contato com a realidade objetiva. Mas vamos um pouco mais
longe que o simples acompanhamento musical, pois, às vezes, os exercícios são feitos com
participação “ativa” da música, como por exemplo: nos exercícios de “lançamento de energia
ou impulsos” (citados e descritos anteriormente) quando a energia que corre pelo corpo e pelo
espaço ganha o ritmo e a intensidade da música; ou quando o corpo “torna-se” o instrumento
que toca a música, ganhando dinâmica e variedade, ou quando o clown é o instrumento
tocado, o músico que o toca e a platéia que admira e reage. Utilizamos a música, não como
“pano de fundo”, mas como um elemento com o qual podemos trabalhar o raciocínio
físico/corpóreo e a máscara.
Também, nesta primeira etapa, após a descoberta do clown de cada ator,
fazemos a descoberta de sua roupa e maquiagem. Conforme Lecoq e Burnier, a roupagem
deve valorizar e denunciar as fraquezas e os aspectos ridículos de cada ator (pernas finas,
barriga saliente, cabelos arrepiados, magreza, etc.), mas também outras características
específicas do clown (elegante, mendigo, etc.). Para a descoberta da maquiagem são
necessárias algumas sessões e ela deve ter os mesmos aspectos da roupagem. Estes dois
elementos são feitos sob o olhar e aprovação do “Monsieur”. O figurino é escolhido pelo
próprio clown, que, tomado pelo “estado de clown” e por todas as razões já explicadas
anteriormente, jamais escolherá uma roupa que esconda seu aspecto ridículo; no caso de
acontecer, o Monsieur poderá indicar uma roupa que não o esconda, que o revele com todos
os “defeitos/qualidades” que não mostra no dia-a-dia. A maquiagem do clown é estudada
minuciosamente pelo ator, e sua elaboração necessita de muitas tentativas, pois ele deve
redescobrir-se neste conjunto de cores e traços. Ela deve ser uma síntese do seu perfil, como
se suas características estivessem ali, transformadas em um colorido código, podendo ser
altamente elaborada ou simples, o que, neste caso, não quer dizer que não seja complexa.
Após esta pequena observação da descoberta do figurino e da maquiagem, as quais
94
consideramos informações relevantes para a descrição e compreensão do desenvolvimento da
descoberta do clown e das encenações, voltemos à descrição do processo.
A primeira etapa possui dois encaminhamentos paralelos, o primeiro técnico e
o segundo “sensível”, isto é, o ator passa pelo trabalho técnico dos exercícios, mas é levado
também a um encontro sensível e profundo com ele mesmo. Somente se estes dois caminhos
seguirem juntos, é que o ator pode receber a máscara do nariz vermelho com toda a
propriedade de quem entra em um estado e continua em contato com a realidade. Este
caminho de desbloqueio do corpo, potencialização e dinamização de energia, “perícia técnica”
e revelação dos impulsos sensíveis do ator é realizado pelo “Monsieur”, que, através de sua
sensível condução, leva-o a entregar-se ao “estado de clown”.
II.3.2. 2ª Clown e Codificação
Após a iniciação, cada ator aprende sobre o universo do clown e a sua visão do
mundo, o “estado” é mantido durante todo o treinamento e a partir das atividades com o grupo
cada ator detecta que:
As características de ingenuidade, fragilidade e espontaneidade estão presentes na
experiência humana [...] [e que]. A linguagem do clown enfatiza essas qualidades
humanas de estar no mundo. Em outras palavras, o clown vai explorar a questão:
como seria a existência humana se essas características fossem as únicas a compor a
experiência do homem no mundo?
36
É nesta exploração do mundo e do funcionamento deste que a segunda etapa
tem seu encaminhamento. Ela tem início sutil na etapa anterior, quando trabalhamos a figura
do “Monsieur” como condutor dos exercícios, exercendo o “poder” de pai, mestre e patrão
37
.
Agora, nesta etapa, o “Monsieur” explora as habilidades dos atores, descobre os aspectos que
lhe causam vergonha (a magreza, as pernas grossas, sobrancelhas grossas...) e atitudes que lhe
fogem do controle e, a partir daí, o limiar entre o real e o imaginário, situação base da terceira
etapa, mas que também é utilizada nesta. Para Lecoq, esta exploração do limiar
real/imaginário é de suma importância para o clown, ela é que vai permitir a coexistência
entre o universo clownesco e a realidade cotidiana.
Para auxiliar na compreensão do universo clownesco e da sua visão de mundo,
além do treinamento, fazemos uma investigação dos vários ambientes permeados pelos
clowns. Visitamos circos, assistimos a filmes, procuramos livros/documentários e
95
aproveitamos para conversar sobre a história do clown e “parentescos”, realizando uma boa
conversa entre os trabalhos desenvolvidos por Burnier, Lecoq e Dario Fo.
Nas sessões de filmes, damos preferência aos filmes de clowns do cinema
mudo, principalmente os de Charles Chaplin e Buster Keaton, uma escolha determinada pela
destreza e perfil destes dois clowns. O cinema vem adicionar um requinte à técnica de clown,
que segundo Burnier, “Do ponto de vista da técnica de clown utilizada, alguns desses tipos do
cinema chegaram a um grande nível de requinte”
38
. Depois das sessões, conversamos sobre as
situações apresentadas no filme, as técnicas que servem como “exploit” para o ator (conforme
a explicação e o exemplo dado por Lecoq em citações, nas páginas 45 e 46 do Capítulo I), as
características grotescas e sublimes que são apresentadas e como o acaso age sobre o destino
do clown. Mas além de termos Chaplin e Keaton como figuras centrais de nosso
desenvolvimento, os quais influenciam também no processo de encenação
39
, não deixamos de
assistir a filmes de Jacques Tatti, Karl Valentin, O Gordo e o Magro, Irmãos Marx, Caulouch,
Fernand Reynald e Fellini, pois todos contribuem para alargar o universo clownesco e suas
possibilidades.
Para conhecer outro espaço ocupado pelo clown, fazemos sessões de desenho
animado, nos quais podemos observar a relação dos vários pares de personagens criados com
a estrutura das duplas clownescas (Timão e Pumba, Mickey e Pateta, Os Irmãos Warner, Tom
e Jerry, Pink e Cérebro, O Máskara, Shrek e outros). Também, podemos perceber a lógica não
estruturada dentro das normas sociais, as situações absurdas e irreais e a reação física aos
acontecimentos
40
. Todas estas características encontradas no desenho animado fazem parte,
também, dos princípios ativos do clown. Dessa maneira, o ator vai tendo a percepção do
universo clownesco e incorporando este, ainda que irracionalmente, às suas ações.
O acervo de informações inserido na memória do ator é “trazido” à tona de
maneira indireta. Durante os exercícios, jogos dramáticos e teatrais, o “Monsieur” instiga a
imaginação do ator para que este crie seu próprio universo, passando de uma relação de
dependência total (mundo desconhecido) para uma “independência” (pois conhece o mundo
que constrói). Neste processo de construção das ações, o clown transforma a subjetividade
(imaginação) em objetividade através da ação, fazendo-nos “participar” de seu universo.
Este método de utilização de jogos dramáticos ou teatrais para a criação de
cenas, estruturado por Viola Spolin, faz parte do mecanismo que aplicamos para o clown
expor sua relação com o parceiro, com o grupo e com as coisas. Na estrutura do jogo,
intensificada pela figura do “Monsieur”, a regra se torna a lei e como “Na instituição lúdica, a
regra do jogo pressupõe o processo de interação. O sentido de cooperação leva ao declínio do
96
misticismo da regra quando ela não aparece como lei exterior, mas como o resultado de uma
decisão livre, porque mutuamente consentida.”
41
. Deste modo, o grupo constrói as relações
entre si. O uso do jogo permite que o clown e o grupo desenvolvam a “[...] liberdade pessoal
dentro de regras estabelecidas, [como também, as] habilidades pessoais necessárias para jogar
o jogo [...] [internalizando] essas habilidades e esta liberdade ou espontaneidade”
42
. Para o
Monsieur”, este é o momento de observar o clown atentamente para descobrir como funciona
a lógica de cada um deles e assim, posteriormente, trabalhar as situações extraídas do texto.
Sabendo como a lógica de cada clown funciona, o “Monsieur” terá mais facilidade em
encontrar o jogo dramático ou teatral que originará as ações e desencadearão as cenas do
roteiro.
Os jogos dramáticos e/ou teatrais são encaminhados da mesma maneira e com
a mesma velocidade que o trabalho de exaustão física, ou seja, as informações são dadas para
não deixar o ator pensar, assim, ele não transforma o jogo teatral em uma “historinha”, pois
não há tempo de racionalizar e, sim, de deixar que o corpo siga o fluxo de sua energia, que
siga as instruções do Monsieur. Estamos falando de um processo de encenação com clowns,
que, a partir da sua compreensão da realidade totalmente solta das convenções sociais,
compreendem as instruções diferentemente de nós, o que favorece o processo de criação, pois
não há o limite da compreensão da linguagem como a conhecemos e assimilamos. O
ator/clown segue seu fluxo exercendo as instruções conforme seu entendimento, cabe ao
diretor raciocinar e encontrar, no rico material trazido pelo ator, as ações que podem ser
codificadas para serem recodificadas no contexto do espetáculo.
Todo dia de treinamento possui a etapa de exaustão física, para daí entrarmos
nos jogos, depois de ter o corpo cansado e encontrar o “estado de clown”, o ator instaura um
limiar sensível entre o imaginário/subjetivo e a realidade/objetiva
43
por meio dos jogos
dramáticos e teatrais. Os jogos encaminhados possuem um problema a ser resolvido, que na
verdade é uma paródia ou metáfora do conflito encontrado na cena através de análise ativa.
Podemos retirar do jogo apenas uma ou mais partituras de ações
44
para integrar determinada
cena através da codificação das mesmas.
O encaminhamento dos jogos dramáticos e teatrais acontece de maneira
introdutiva. Após a exaustão física, começamos a dança clownesca, a partir deste momento, o
Monsieur” introduz o jogo e após, realiza a “instrução” dentro do mesmo, encorajando o
clown a resolver o problema, lembrando que, tanto o jogo quanto as instruções, são dados de
maneira a não deixar que o ator raciocine, forçando-o a executá-las imediatamente.
97
Durante o processo de criação, é claro que o Monsieur irá induzir o ator a dar
um tipo de “material” para determinada cena do espetáculo. Isto acontece através da escolha
dos jogos dramáticos, das situações metafóricas do jogo teatral e das ações para serem
codificadas, mas isto acontece à revelia do ator, ele não raciocina para produzir aquilo que o
diretor deseja, simplesmente segue sua lógica físico-corpórea, que, por sua vez, foi estudada
pelo “Monsieur” e responde às instruções assim que elas são ditadas.
Tentando sermos mais claros, daremos o exemplo de um jogo feito com os
clowns, que originou partituras de diferentes cenas de JOGUETE.
Exemplo:
O ensaio começou como todos os outros. Primeiro, o alongamento individual,
segundo, o aquecimento individual (exercícios propostos por Burnier), depois a dança do
clown
45
(individual, em duplas e em grupo). A partir da dança, entramos nos jogos,
comandados pelo “Monsieur”.
Jogo: “Acorda seu Urso” - Uma pessoa deita como se estivesse dormindo, os outros têm de
acordá-la, assim que ela acordar, deve pegar alguém para substitui-la, enquanto os outros
jogadores devem fugir para não serem pegos - há um limite estabelecido até onde o “seu urso”
pode correr para pegar o substituto.
Objetivo: Trabalhar com a atenção e o estado de alerta.
Atores e seus respectivos clowns: Andréa Rabello – Pelúcia; Diana Ramos – Bonna Bonacha;
Fernando Lopes – Espiga; e Jacyan Castilho - Matilde
Os clowns dançavam, o “Monsieur” interferiu dando a instrução.
Monsieur – Vocês estão se preparando para o dia de provas. O dia em que os clowns se
encontram para uma prova de inteligência e habilidades. A prova necessita muita disciplina e
destreza, é a terrível prova do “Despertar do urso”.
O Monsieur mostrou quem seria o primeiro “urso” e o jogo seguiu dessa maneira por algum
tempo. Depois, o Monsieur, através das instruções, modificou o “ambiente imaginário” do
jogo, criando uma nova tensão no jogo.
Monsieur - O seu “urso” é um vigilante de um grande tesouro, mas há terríveis ladrões
querendo roubar este tesouro, que fica escondido numa caverna. O seu “urso” faz a segurança
da porta da caverna, os ladrões criam táticas para entrar, porém, o “urso” tem poderes
mágicos, e aquele ladrão que for pego passa a ser outro “urso”, assim o tesouro permanece
mais protegido ainda. Para conseguir mais guardiões, o seu “urso” também cria táticas e fica
pronto para transformar em “urso” aquele que quer o tesouro.
98
Para preparar e utilizar ações que surgiram durante este jogo, trabalhamos da
seguinte forma: cada vez que percebíamos alguma ação interessante, isto é, que poderia servir
para o espetáculo, o “Monsieur” aproximava-se do clown e numerava a ação, assim, cada
clown construiu uma seqüência numerada de ações. Através deste jogo, obtivemos, para o
espetáculo, as ações e reações de dormir, acordar e cuidados para não acordar o outro,
situações encontradas no texto e que também são encontradas no espetáculo.
Nos ensaios, também trabalhamos com jogos teatrais criados num ambiente
cotidiano. Daremos, a seguir, um exemplo:
Jogo: “Limpeza da casa” – O clown tem de fazer a faxina da sua casa.
Objetivo: Trabalhar com imaginário. A partir da situação dada, o clown constrói em seu
imaginário como é a sua casa. Mas não ficamos na imaginação subjetiva, partimos para uma
“realidade imaginária”, isto é, a casa vai se erguendo de acordo com as funções que ele
exerce.
Atores e seus respectivos clowns: Andréa Rabello – Pelúcia; Diana Ramos – Bonna Bonacha;
Fernando Lopes – Espiga; e Jacyan Castilho - Matilde
As tarefas são induzidas pela voz do “Monsieur”, mas o clown as toma como parte de sua
consciência. O “Monsieur” interfere encaminhando os acontecimentos, inclusive com
situações absurdas, para daí retirar partituras para as cenas ou até cenas completas.
O ensaio teve início da mesma maneira que a descrição anterior (alongamento individual,
aquecimento individual, aquecimento em grupo e a dança do clown)
Monsieur – Hoje é dia de faxina. A casa está uma bagunça, não há mais louça ou roupa limpa
e hoje é o dia de pôr ordem nesta bagunça. Começaremos limpando a cozinha. Primeiro,
limparemos a pia, lavando toda a louça. Quanta coisa suja... Olha! Ainda tem um pedaço de
pizza grudado no prato, talvez ainda esteja bom. Hiii! Aquela panela que você fez pipoca e
queimou, o fundo descolou, não tem mais jeito, tem de jogá-la fora. Mas que coisa... era uma
panela tão boa, faz muito tempo que você a tem, você tem até certa afeição por ela e não é
fácil jogá-la fora desta maneira.... procure uma solução, procure outra utilidade para ela, assim
você não terá que jogá-la no lixo, mas para cozinhar ela não serve mais.
O “Monsieur” deixou que os clowns explorassem o objeto e suas possibilidades, depois deu
novas instruções.
Monsieur – Pronto, agora vamos começar a lavar a louça... quanta coisa, quanta sujeira...
Mãos à obra!
A situação permaneceu por algum tempo, para que todos a explorassem. Depois, o
Monsieur” interferiu novamente.
99
Monsieur – É bonito de ver a pia assim, limpinha! Que coisa, embaixo de toda aquela sujeira,
vocês até encontraram o cachorro, ele estava sumido há três dias... É bom ter a companhia
dele novamente. Que felicidade! Poder brincar, fazer carinho... é verdadeiramente uma boa
companhia!
Enquanto o “Monsieur” falava sobre o cachorro, os clowns foram construindo a relação que
tinham com o cachorro e a raça do mesmo.
Monsieur – Mas de repente, um barulho estranho invade a casa... É um barulho horrível, que
dá medo! O coitado do cachorro sente muito medo e você tem de protegê-lo... Mas protegê-lo
de quê? De quem? Você não sabe o que é... Mas você é valente e presta toda a atenção para
descobrir de onde vem o barulho... Você chega perto da pia e o barulho aumenta... fica mais
forte ... Você descobre. A pia está entupida, também, com tanta sujeira... o barulho vem da
encanação. Bem, você precisa dar um jeito nisso! Pegue suas ferramentas e seu equipamento
de mergulho, vamos dar um fim neste problema!
Os equipamentos para a “operação” foram muitos, Bonna Bonacha / Diana, Espiga / Fernando
e Matilde / Jacyan criaram um enorme equipamento de mergulho, enquanto que Pelúcia /
Andréa possuía apenas uma máscara. As ferramentas também eram variadas, Espiga /
Fernando tinha apenas um alicate e uma “chave de boca”, Bonna / Diana tinha um aparelho
que se transformava em tudo, Matilde / Jacyan tinha um cinto com muitas ferramentas e
Pelúcia / Andréa estava apenas com uma chave de fenda.
Monsieur - Vamos primeiro traçar uma estratégia... Quando uma pessoa se afoga, é porque
ela engoliu muita água e é preciso tirar a água, “desentupi-la”. Então, é preciso fazer uma
respiração “boca-a-boca” e tudo está resolvido! Quem sabe essa é a saída... se preparem...
vamos fazer uma respiração “boca-a-boca” na pia!
Os clowns se prepararam.
Monsieur – Um, dois e já!... Com força, com fôlego... Parece que está dando certo, a pia está
desentupindo... Vamos lá, você está tendo sucesso na operação... Desentupiu!!!!!! Que
maravilha! Você é um excelente encanador! Que orgulho! Mas há um outro problema, parece
que tem alguma coisa que está “entalado na encanação”. Não tem jeito, você terá que entrar!
Se preparem, vamos mergulhar!
Os clowns se prepararam.
Monsieur – Coragem! É preciso enfrentar mais este problema. Preparar para o mergulho no
ralo da pia. Um, dois e... pulando. Ho! Você engordou um pouquinho... não está conseguindo
passar... força... um pouquinho mais e... pronto! Nada como um mergulho! Como é bom ter
este momento de lazer em meio a tanto trabalho. Lá longe você vê alguma coisa, tem algo
100
muito grande que está impedindo a água de passar. Chega mais perto. Mais perto e... que
surpresa, é o sapato que você estava procurando... Mas como ele foi parar ali? Só pode ter
sido o cachorro... é assim, é só a gente se descuidar um pouquinho e a folia está pronta!
Vamos lá, pegue o sapato.... ele está realmente entalado, não quer sair. Puxa com força... mais
força! Mais! Em vão, não adianta... Você tem a idéia de usar sabão. Se você passar sabão
nele, ele vai escorregar e será fácil de tirá-lo dali. Como você é inteligente!
Bonna / Diana, Matilde / Jacyan e Espiga / Fernando tinham sabão com eles, nas coisas que
haviam levado, mas Pelúcia / Andréa mergulhou rápido até a pia, pegou o sabão e voltou para
o local.
Monsieur - Passa sabão “bem passadinho”, assim será fácil! Muito bem, agora se prepare para
retirar o sapato! E um, e dois, e já!
Os clowns puxaram os sapatos.
Monsieur – O sapato saiu e a água está descendo... e vocês também, a corrente está forte, é
impossível lutar contra ela... vocês estão indo com a água ... cuidado! Toda água desemboca
em algum lugar, então é melhor ir e depois tentar resolver o problema. Não se separem de
suas ferramentas, vocês podem precisar delas depois. Segurem o sapato, é o único que não
está furado. A corrente da água está diminuindo. Tem uma claridade lá no fundo... é a saída.
Nadem! Nadem! Você está perto... é a saída... é a saída... Saiu!... Espera aí, saiu onde? Onde
vocês estão? Tudo é branco... é estranho... observe bem... onde você está? Que lugar é este?
Tem um “negócio” estranho pendurado, um “negócio” verde com um cheiro forte .... Você
tenta alcançar o “negócio”. ... Você alcança e começa a subir... Pronto, agora você reconheceu
o lugar, você está no banheiro da sua casa... Que alívio! Em casa novamente! Lar, doce lar! ...
Bem, mas depois desta aventura pela encanação da casa e este banho no vaso sanitário, é
melhor descansar. Limpar a casa dá um cansaço, uma trabalheira. A limpeza continuará
amanhã, agora é preciso descansar.
Os clowns tiraram o equipamento de mergulho, colocaram as ferramentas de lado e dormiram.
Este tipo de exercício é utilizado para instigar a imaginação a partir do limiar
entre uma situação real e o absurdo. Ainda nesta etapa, realizamos algumas saídas de clown
46
,
para que o ator pudesse ter o contato com a sociedade e interagir com ela. Desta maneira,
colocamos o clown e sua percepção perante o mundo e a razão social. Nestas saídas, é
inevitável a presença do “Monsieur”, é que, como os pais, ele traz o clown para a convivência
social, até que este se torne “independente”.
A companhia assídua do “Monsieur” também se torna indispensável para que
este observe todas as interações do clown, compreenda sua lógica, comportamento e perfil -
101
Branco ou Augusto – e verifique quais são as duplas clownescas ou grupos que se formam,
prestando muita atenção para fazer a correspondência com os personagens do texto. Porém,
neste processo, nenhum ator deve saber em qual personagem seu clown irá se encaixar, na
verdade, nem mesmo o diretor o sabe. O trabalho, neste sentido, é uma incógnita para todos, a
distribuição dos papéis acontece de acordo com o jogo dos clowns e sua escolha natural do
parceiro. O papel do “Monsieur”, na figura do diretor, é compreender o perfil/lógica de cada
clown, instigar o trabalho em grupo através dos jogos dramáticos e teatrais, para que cada um
encontre seu “oposto complementar” nas duplas que se formam espontaneamente durante o
jogo, o que proporciona, de certa forma, a distribuição natural dos papéis dentro do
espetáculo.
A partir do acervo de experiências, da codificação de ações e dos referenciais
obtidos através dos materiais assistidos, começamos a encaminhar o espetáculo. Assim,
entramos na terceira etapa.
II.3.3. 3ªImaginário/Realidade e Codificação
Nesta etapa, o processo de clown se encaminha para o processo de encenação,
como se este tomasse aquele para si, pois os exercícios são direcionados para a construção do
roteiro que dará origem ao espetáculo.
Para realizar esta fase do processo de encenação, é fundamental que o diretor já
tenha realizado todo o encaminhamento do itemo texto”, descrito anteriormente neste
segundo capítulo. Ele deve ter feito a análise ativa do texto escolhido para servir inspiração da
construção do roteiro do espetáculo, ter criado o roteiro das cenas, ter feito o plano dos
ensaios com os possíveis jogos que irão servir de base para gerar as cenas do espetáculo e
principalmente, efetuado, a partir da observação dos clowns, a distribuição dos papéis. Porém,
os atores só saberão os papéis que seus clowns irão desempenhar no espetáculo, na metade
desta etapa, para que eles não criem um personagem para o seu clown.
O trabalho de análise do texto, a transformação para os jogos e processos
descritos anteriormente, aprendidos e vivificados nas experiências com Nair D’Agostini, são
“colocados em prática” na terceira e na quarta etapa do processo de encenação.
Para seguir com a descrição, é necessário esclarecer outros pontos que fazem
parte do processo de encenação. Propomos um trabalho onde o ator tem como ponto de
partida o clown e seu universo. Os atores não lêem o texto, nem sabem qual papel seus clowns
102
desempenharão, tudo para que não caiam na armadilha de criarem personagens, ou se
esforçarem para desempenhar determinado papel da trama. Tudo faz parte de um jogo teatral,
onde as relações se estabelecem por afinidade e consentimento, inclusive a distribuição de
papéis.
Retomemos o processo clown/encenação.
Como mencionado anteriormente, cada ensaio inicia com alongamento e
aquecimento individual, depois, partimos para a dança dos ventos, daí para a dança do clown
e, então, para a dança em grupo ou/e em duplas. A partir do estabelecimento da relação entre
os clowns, intensificamos o trabalho em duplas, ainda sem designar o desempenho dos papéis.
A partir desta dança, o “Monsieur” encaminha os clowns para a situação real/imaginária, ou
seja, da “realidade da peça”, que se constitui no plano imaginário, de onde iremos retirar as
cenas para o espetáculo.
Exemplificamos com a descrição de um ensaio de preparação do espetáculo
JOGUETE, no qual encontramos muitos códigos utilizados no espetáculo.
Exemplo:
Os atores fazem o alongamento e o aquecimento individual. Do aquecimento individual,
partimos para a exaustão física e a música começa a interferir e começamos a executar a
dança dos clowns. Em algum momento, durante a dança clownesca, o “Monsieur” dá a
instrução.
Monsieur - Quando soar o apito, as danças devem ser em duplas (o apito soa imediatamente).
É necessário deixar os clowns dançarem durante um tempo, para que as afinidades possam
aparecer.
Monsieur - Quando soar o apito, vocês devem trocar de duplas (o apito soa imediatamente).
O apito soa várias vezes para que possamos experimentar as combinações entre os clowns,
sempre dando tempo para que as duplas se harmonizem. Depois de um tempo, o “Monsieur”
dá outro comando.
Monsieur - Quando o apito soar, vocês devem se separar, pois serão convidados a dançar com
o parceiro perfeito. Um parceiro ou parceira, que tem leveza, habilidade e vocês dois fazem o
mais elegante par de dança.
O apito soa e em seguida o “Monsieur” dá outro comando.
Monsieur - Quando o apito soar vocês estarão num grande baile.
O apito soa e, a partir deste momento, a voz do “Monsieur” segue com a “instrução”
encaminhando as situações do jogo.
Monsieur - O salão está lotado e é preciso “lutar” por um espaço para dançar.
103
É dado um tempo para que os clowns se estabeleçam na situação.
Monsieur - A multidão interfere cada vez mais na sua dança com seu parceiro e acaba
separando-os, levando-os para direções opostas. ... Vocês tentam ver seus parceiros, mas
acabam se perdendo. Neste momento, o Mestre de Cerimônias do baile anuncia que dentro de
poucos instantes o concurso de dança irá começar e os últimos momentos serão destinados ao
ensaio de uma dança original. Vocês precisam encontrar o seu par, pois estão inscritos e são
os favoritos a ganhar o prêmio: uma viagem de férias, com tudo pago numa ilha paradisíaca.
Vocês iniciam imediatamente uma busca desesperada, a multidão está agitada, o barulho é
intenso... De repente, vocês avistam seu parceiro no outro lado da pista, mas o salão é enorme,
não daria tempo de ir até lá e voltar, então a melhor solução é tentar chamar a sua atenção...
Vocês começam a tentar tudo, o espaço é pequeno, pois o salão está cheio... É preciso se
esforçar, para que ele perceba que você o está chamando.
A partir deste jogo, os clowns criaram várias maneiras de chamar alguém e cada vez que era
observada alguma ação que poderia servir para o espetáculo, o “Monsieur” se aproximava e
dava uma “instrução” individual.
Monsieur – Acho que ele reagiu, ele deve ter ouvido ou percebido alguma coisa. Tente repetir
este chamado, quem sabe ele te vê agora... Esta maneira de chamá-lo será a número “X” - é
melhor não esquecer, você pode tentar outra vez, mais tarde. Continue tentando, você tem que
fazer com que ele o veja.
Depois de cada clown ter uma seqüência numerada de ações, o “Monsieur” fez nova
interferência, agora para todo o grupo.
Monsieur - O Mestre de Cerimônias avisa que faltam cinco minutos para o concurso começar
e vocês, numa última tentativa desesperada, tentam todos os apelos que surtiram algum efeito
anteriormente.
O “Monsieur” diz os números da seqüência anterior, aleatoriamente, fazendo com que o
clown retome as ações anteriores e as codifique. As ações são repetidas durante algum tempo,
sempre em ordem aleatória, depois, o “Monsieur” dá nova instrução.
Monsieur - Seu parceiro finalmente o enxergou. Combina com ele de se encontrarem no
centro do salão, ensaiarem e participarem do concurso... Tudo combinado, agora é necessário
passar por todo mundo para que vocês possam se encontrar.
É dado um tempo para que os clowns possam fazer o caminho até o centro da sala, então, é
dada nova instrução.
Monsieur - O concurso começa e vocês nem tiveram tempo para ensaiar. Mas vocês
participam assim mesmo... Todos os pares são bons, mas vocês estão dispostos a vencer.
104
Várias músicas são colocadas, durante um tempo indeterminado, para que os clowns explorem
diferentes modalidades até que o “Monsieur” faz nova interferência.
Monsieur - Os jurados estão quase certos de que há um par vencedor, mas o que irá decidir a
vitória são os pontos destinados à originalidade... Chegou a hora em que o par deverá
apresentar a dança de sua criação ... E agora? Vocês não tiveram tempo para ensaiar a dança
porque estavam procurando seu parceiro, vocês não possuem uma dança original e podem ser
desclassificados... Vocês estão desesperados... Mas o que é isso? Vocês são excelentes
dançarinos e muito inteligentes, vocês vão apresentar para o júri a “dança do apelo”! É uma
dança moderna, que utiliza todos os meios de chamar a atenção de alguém... E vocês, como
são espertos, utilizam tudo aquilo que fizeram para conseguir chamar a atenção do seu
parceiro, numa dança originalíssima. A chamada de número 1, 4, 7, 2... não desperdicem
nada, tudo se transforma na maravilhosa “dança do apelo”.
Os clowns retomam as ações codificadas anteriormente e o “Monsieur” os estimula.
Monsieur - Os jurados estão gostando e estão admirados com tamanha criatividade,
originalidade e habilidade em diferentes estilos de dança.
São colocadas várias músicas, testando as mesmas ações em vários ritmos. Depois de ter
experimentado por algum tempo, o “Monsieur” dá nova instrução.
Monsieur - Vocês acabam de ganhar o concurso e a multidão aplaude. Vocês são aclamados
como reis. Por onde vocês passam, são reconhecidos. Na rua, no supermercado, no banheiro
público, em todos os lugares vocês são reconhecidos, vocês se tornaram celebridades. São
chamados para entrevistas e programas de televisão, para mostrar a “coreografia genial”.
Neste momento, o “Monsieur” falava nomes de programas e de apresentadores e dava
comandos para que encaixassem a coreografia no pedido do entrevistador.
Monsieur - No jornal das 21hs, pediram para que dançasse em ritmo de guerra.
Tempo.
Monsieur – No programa das 10hs, pediram que dançassem no ritmo de uma cozinha de
restaurante em dia intenso de trabalho.
Tempo.
Monsieur - Às 18hs, vocês dançam como numa despedida.
As propostas são variadas, fazendo com que o clown possa exercer a mesma ação com
intenções e finalidades diferentes. Após algumas experiências, o “Monsieur” faz nova
interferência.
Monsieur - Vocês já passaram em vários países, divulgando a coreografia vencedora e agora
irão desfrutar do prêmio do concurso: a viagem de férias. Vocês estão tão cansados que nem
105
passam em casa para pegar malas, vão direto para o aeroporto, entram no avião e adormecem,
agora é só descansar até chegar ao destino e aproveitar o merecido prêmio.
Com os clowns “adormecendo”, o ensaio chegou ao fim. Para finalizar, o “Monsieur”
encaminhou o exercício contrário ao do início, os atores recolhem a energia do corpo e, aos
poucos, vão deixando o estado de clown e retornando à noção da realidade objetiva, ou seja,
voltando ao estágio anterior ao trabalho.
O ensaio descrito acima serviu para criar vários códigos utilizados no
espetáculo. Podemos dar outros exemplos de construção de códigos e ações para as cenas,
mas nos prolongaríamos nesta descrição. Para transformar os códigos e ações criados em
partículas da cena, retomamos aquelas seqüências construídas em ensaios anteriores, mas a
retomada de códigos e recriação de outros, para a conseqüente criação do roteiro, faz parte da
quarta etapa, que será vista a seguir.
II.3.4. 4ª Construção do roteiro
Esta etapa tem como finalidade a elaboração do roteiro do espetáculo, tendo
sua origem na construção das ações e dos códigos da etapa anterior. Nesta fase, os atores já
sabem qual papel seu clown irá desempenhar na trama, pois grande parte das ações que
realizarão no palco foram construídas a partir de suas próprias experiências em situações
reais/imaginárias.
Como exemplificado anteriormente, as partituras são construídas a partir de um
jogo ou situação real/imaginária e utilizadas em vários outros contextos, ganhando nova
codificação e versatilidade. Para ligar uma partitura à outra, o “Monsieur” introduz outras
situações, criando um conjunto de “perguntas e respostas”, ações e reações e encaminhando o
roteiro do espetáculo. Aproveitamos o ensaio descrito anteriormente, para darmos
continuidade ao processo de montagem do espetáculo, exemplificando o encaminhamento.
Exemplo:
Num outro dia, retomamos a seqüência das ações. Depois do alongamento, do aquecimento,
da exaustão e da dança do clown, o “Monsieur” interfere.
Monsieur – Vendo vocês dançando desta maneira... Vocês são maravilhosos. Vocês têm
estilo. Vocês são o máximo! ... Mas é claro, vocês foram os grandes vencedores do concurso
106
de dança. Vocês ganharam a glória com uma coreografia originalíssima. Hoje é o aniversário
de um ano do concurso e para comemorar a data vocês vão dançar para milhões de pessoas.
Um espetáculo num grande estádio.
Os clowns começaram a dançar como se estivessem num estádio e as ações ganharam a
dilatação dos movimentos. O “Monsieur” dá nova instrução.
Monsieur - Uma micro-câmera foi desenvolvida para acompanhar todos os seus movimentos
e tentar capturar a complexidade dos mínimos movimentos da coreografia.
Com esta instrução, os clowns minimizaram os movimentos das ações, que ganharam outras
dimensões. Depois das experimentações, “Monsieur” fez nova interferência.
Monsieur - Vocês foram aclamados como grandes intérpretes e a coreografia tornou-se código
compreensível para todas as nações. Então, a partir dela e de sua infinita combinação a ONU
criou uma linguagem mundial. Esta linguagem passou a ser utilizada por jornais televisivos
para darem notícias de interesse mundial e como vocês são os especialistas desta linguagem,
vocês foram contratados pelo principal jornal do mundo... Preparem-se, porque está entrando
no ar o “Jornal Mundial”.
O “Monsieur” cria notícias que contém metáforas das situações do texto e os clowns agem
noticiando a reportagem através dos códigos.
Monsieur - Nesta madrugada, houve uma tentativa de fuga na prisão de segurança máxima do
mundo. Os fugitivos fizeram um plano observando o sistema de segurança, depois cavaram
um túnel, saíram do outro lado do muro, mas percebendo que estavam sendo observados se
intimidaram.
O “Monsieur” vai incluindo, na história dos fugitivos, situações do texto, encaminhando,
através da “notícia”, a construção do roteiro da cena. No roteiro, as ações ganham novo
significado, novo número e, consequentemente, nova codificação. Este jogo deu origem à
cena em que o clown Bonna Bonacha, que desempenha o papel de Hamm no espetáculo,
revela, para o clown que desempenha o papel de Clov, que sabe sobre a sua tentativa de fuga.
Mas precisávamos da reação de quem havia sido descoberto, então, o “Monsieur” interfere
novamente.
Monsieur – Notícia de última hora. Neste momento, os fugitivos estão sendo interrogados. E
para conseguirem descobrir tudo, os policiais utilizam de todos os meios, de pressão
psicológica até a mediunidade.
O “Monsieur” forma duplas, onde um é o investigador e o outro o fugitivo, com isso, foram
criadas seqüências de ação e reação que integram cenas do espetáculo JOGUETE (no DVD
107
do espetáculo, podemos ver estas partituras nas cenas nominadas de “Punições”,
“Sobreviventes” e “Profecias” – Fotografias: Léo Azevedo).
Figura 15 - Punições
Figura 16 – Sobreviventes
Figura 17 - Sobreviventes
Figura 18 – Profecias
Dessa maneira, o espetáculo vai se desenvolvendo e ganhando a “linha direta
de ação”
47
através do encaminhamento do “Monsieur”. As partituras criadas em um jogo, dão
origem a novas partituras de ações e a uma nova codificação, originando as partituras de
cenas que integram o roteiro do espetáculo.
Com o roteiro estruturado, partimos para a quinta etapa, na qual é realizada a
“afinação” do espetáculo.
II.3.5. 5ª “Afinação” do espetáculo
108
Esta etapa tem por objetivo aprimorar as cenas construídas anteriormente
através de exercícios e jogos. Aqui, percebemos claramente a influência de Nair D’Agostini,
Inês Marocco e Thomas Leabhart, presente na “lapidação” e refinamento de uma ação, no
cuidado com os movimentos até chegarmos a um “desenho”, claro e preciso, mas orgânico - o
espetáculo torna-se uma “coreografia” bem ensaiada.
Esta etapa retoma o que foi falado no capítulo anterior, no que diz respeito ao
clown e à consciência de seu próprio corpo, fazendo uma referência à comparação que Dario
Fo faz entre o ator do ofício de clown e o violinista, quando ele afirma que:
O ator colocado diante do público é como o violinista virtuoso que não olha mais
para os próprios dedos e muito menos controla o arco enquanto toca. Ele tem a
percepção das notas emitidas e escuta o retorno, o andamento (...) O mesmo faz o
grande ator em relação a sua voz e o seu corpo. (...) Devemos, isso sim, aprender a
agir com perfeito equilíbrio e controle, desenvolvendo uma grande potência em
progressão inteligente, programada, localizando cuidadosamente pausas e
respirações, de maneira a dar a impressão de que não estamos fazendo
absolutamente nenhuma força.
48
Neste momento do processo, o ator tem de se preparar como o violinista
virtuoso para, na apresentação da peça, simplesmente “tocar o espetáculo” sem qualquer
esforço. Para tanto, trabalhamos com a limpeza dos movimentos, da movimentação de cena e
da manipulação dos objetos, “lapidamos” tecnicamente o espetáculo com grande afinco.
Para levar o clown a esta consciência de espetáculo, entramos num novo jogo
teatral, no qual ele é um grande ator interpretando o papel que marcará sua carreira. O
espetáculo tem esta característica de “limiar entre a realidade objetiva e a realidade cênica”. O
“Monsieur” instaura o jogo, afirmando que os clowns são atores famosos mundialmente e irão
apresentar ao público o melhor espetáculo de sua vida. Os atores entram no palco como
clowns atores, apresentam o espetáculo como profissionais da área, inclusive, fazem os
agradecimentos ao público imbuídos do jogo da apresentação. Os atores só retiram a máscara
e saem do “estado de clown”, após saírem do palco.
Lançamos mão deste artifício para trabalharmos o espetáculo sem perder a
ludicidade que criamos durante a iniciação do clown e os ensaios, dando também uma
“justificativa” para as várias apresentações e para a estrutura fixa, pois todos sabemos que o
clown tem a improvisação latente, mas também sabemos que tudo que ele faz, ele assume
seriamente. Então, se tem como profissão, naquele momento, atuar, ele acredita que vai
apresentar o “melhor” espetáculo de todo o meio teatral. Na verdade, o espetáculo e sua
apresentação, fazem parte de um jogo teatral.
109
Assim, chegamos ao final do processo clownesco dos atores e entramos, ainda
que rapidamente, em algumas questões que fazem parte do processo de encenação já descrito
anteriormente.
No próximo capítulo, partiremos para outras influências e referências que
permeiam a encenação. O espaço será destinado ao teatro do absurdo e a sua conexão com o
complexo formador do processo, e falaremos também de outros aspectos constituintes deste
complexo, participantes da concepção e estética dos espetáculos.
NOTAS
1
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993.
2
Nome dado ao conjunto formador do processo de encenação apresentado.
3
Os exercícios citados serão descritos no momento seguinte, no espaço destinado ao processo realizado com os
atores, penso que explicá-los neste momento iria tornar o texto repetitivo e poderia nos afastar do foco deste
momento, que são os papéis dos mestres.
4
Umbigolina Goiabenta, clown de Joice Aglae Brondani.
5
Os Jogos Dramáticos também são conhecidos como “faz-de-conta” ou brincadeira, segundo Viola Spolin.
SPOLIN, Viola. O jogo teatral no livro do diretor. São Paulo: Perspectiva, 2001, p.13.
6
O Jogo Teatral possui uma regra que inclui a estrutura dramática “Onde, Quem, O quê”, além do foco, que é o
problema a ser solucionado, mais o “acordo” entre o grupo, que se estabelece para solucionar o problema –
segundo. Ibidem, p.12.
7
Ibidem, p.16
8
Ibidem, p. 18
9
Ibidem, p. 20
10
Ibidem, p. 20
11
O processo de iniciação de clown será descrito no momento seguinte.
12
Monsieur Loyal” é a personalidade externa ao grupo, é aquele que comanda, conforme os esclarecimentos de
Burnier em sua tese de doutorado em semiótica (1994 – PUC, SP), no espaço nominado “O Bufão, ancestral do
clown”. Burnier afirma que um clown, uma dupla ou um grupo de clowns necessitam de alguém para ser
referência, uma vez que não se encaixam mais nas estruturas sociais, eles necessitam de parâmetros para
poderem viver fora da sociedade clownesca e estes limites são dados pelo “Monsieur Loyal”, que dita as leis,
pune e afaga, conforme o comportamento de cada um. No processo de encenação que apresentamos, no trabalho
com os atores e no de construção do espetáculo, a figura do “Monsieur” se estende à figura do diretor.
13
O aquecimento individual e a dança do clown serão descritas posteriormente, no momento destinado,
especificamente, ao processo com os atores.
14
Viola Spolin utiliza a “instrução como “elo entre o diretor /instrutor e os atores/jogadores. São instruções
dadas enquanto o jogo está sendo jogado [...]; o ator/jogador em última análise faz da instrução parte de sua
consciência.” SPOLIN, opus cit, p. 10.
110
15
SPOLIN, opus cit, p. 25
16
Ibidem, p. 25
17
Ibidem, p. 25
18
Ibidem, p. 25
19
Apesar do termo intertextualidade ser utilizado, quase sempre, para designar um texto escrito a partir de outro,
percebemos que seu uso para designar um texto cênico criado a partir de um texto escrito somado a outras
influências, procedimentos teórico-práticos e técnicas teatrais, poderá nos auxiliar para designar a escrita cênica
que acontece no palco, alargando a compreensão do próprio termo e estendendo seu campo de apreensão.
20
Não iremos, aqui, objetivar a intertextualidade de cada espetáculo, falaremos dos espetáculos e suas
concepções, deixando que esta intertextualidade se defina ao longo dos esclarecimentos do processo.
21
PAVIS, Patrice. A Análise dos Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 122.
22
Ibid., p. 125
23
Ibid., p. 128
24
Tais desenhos sonoros dos espetáculos podem ser percebidos ao longo da apreciação dos registros dos
espetáculos, gravados nos DVDs que acompanham esta dissertação.
25
PAVIS, opus cit, p. 180.
26
Os “desenhos da iluminação” dos espetáculos, também podem ser percebidos durante a apreciação dos
registros dos espetáculos, nos DVDs que acompanham esta dissertação.
27
Estrutura utilizada nos circos para delimitar o picadeiro.
28
Objeto que faz a relação situação/personagem/público, no espetáculo
29
No registro filmográfico do espetáculo em DVD, o Mestre de Cerimônia não aparece, mas é possível ver sua
participação na galeria de fotos. É a última fotografia, antes de aparecer o programa e o cartaz do espetáculo.
30
Atores: Vilmar Rossi Júnior, Luíz Maurício Fontoura Martins, Márcio Angst, Francisco André Fleig e Lúcia
Royes Nunes.
31
Atores: Daniel Plá, Daniela Varotto, Giovana Spadini e Marina Pelle.
32
Atores: Andréa Rabello, Diana Ramos, Fernando Lopes, Jacyan Castilho, Jorge Baia e Simone Araújo.
33
Segundo Burnier, “O processo de iniciação do clown nada mais é do que a condensação no tempo de uma série
de experiências que o ator clownesco passa e que o ajudam a encontrar ou confirmar seu clown.” BURNIER,
Luís Otávio. A arte do ator: da técnica à representação. Elaboração, codificação e sistematização de ações
físicas e vocais para o ator. 1994 - Tese de Doutorado em Semiótica - PUC, São Paulo/Brasil, p.253.
34
Ibidem, p. 264.
35
Para maiores esclarecimentos, ver BURNIER, PUC – SP, 1994; FERRACINI, UNICAMP – SP, 2001; PEZIN,
L’Entretemps, 2003.
36
MACHADO, Maria Ângela de Ambrosis Pinheiro. Cartografia do Conhecimento Artístico: O Processo de
Criação do Ator. 2000 – Mestrado em Comunicação e Semiótica. São Paulo, PUC.
37
O “Monsieur passa a ser, para o clown, aquele que possui a verdade absoluta, ele é a lei, ele afaga e castiga,
ele deprecia e elogia.
111
38
BURNIER, opus cit, p. 251.
39
Os detalhes das influências do cinema mudo na estética da encenação serão vistos posteriormente, iremos aqui,
nos deter sobre o processo de clown.
40
Também não iremos nos deter sobre as influências do desenho animado, na estética do processo de encenação,
faremos isso posteriormente.
41
KOUDELA apud SPOLIN, 2001, p. 11.
42
Ibidem, p. 11-12.
43
Os termos “imaginário/subjetivo” e “realidade/objetiva” são termos utilizados por Viola para diferenciar e
caracterizar o jogo e a realidade cotidiana.
44
Se a partitura musical é formada de frases musicais, que por sua vez são formadas por notas musicais.
Tomamos por partitura de ações o mesmo mecanismo, uma ação que se liga a outras ações , formando as frases
(seqüência) e originando a partitura.
45
Dança que o clown desenvolve a partir dos impulsos internos que lhe correm pelo corpo, estimulados pela
música.
46
“Uma saída de clown é uma intervenção do clown em espaços diversos: rua, praça, feiras, restaurantes,
terminais de ônibus, supermercados, festas... Uma saída de clown é, na maioria das vezes, improvisada, mas
também pode ter números previamente preparados. Em geral uma saída é realizada em duplas (um augusto e um
branco), e trabalha sobretudo a relação com os transeuntes (o público), com o ambiente e a relação com o
parceiro.” BURNIER, opus cit, p. 264.
47
Parte da análise ativa de Stanislavski que carrega a idéia que o texto apresenta, é fio condutor do espetáculo.
48
FO, Dario. O Manual Mínimo do Ator. Franca Rame (org.); Trad. Lucas Baldovino, Carlos David Szlak. São
Paulo: SENAC, 1997, p.131
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Figura 19 Foto: Léo Azevedo
Este capítulo tem como objetivo continuar os esclarecimentos referentes ao
complexo formador do processo de encenação proposto, no que diz respeito às influências que
este recebeu ao longo de seu encaminhamento. No primeiro capítulo, tecemos comentários
sobre o clown, as concepções de Dario Fo, Lecoq e Burnier, nossa própria visão e
considerações relevantes sobre o assunto para os processos e as montagens. No segundo
capítulo, falamos de nossos mestres e de suas contribuições para o complexo, do trabalho com
o texto e com os atores. Aqui, estaremos falando sobre as influências que permeiam as
montagens e que estão presentes nos espetáculos.
Adotamos o termo “interseções” para denominar este capítulo, porque
acreditamos que ele conceitua com eficácia a maneira com que as influências se integram ao
processo apresentado, pois o “Novo Aurélio – O Dicionário da Língua Portuguesa – Século
XXI” (Versão 3.0, Ed. Nova Fronteira) traz “interseção” como: S.f. 1. Ato de cortar; corte;
cruzamento: & 2 .Mat. V. produto (10). 3. Mat. Operação por meio da qual se forma o
conjunto de todos os elementos que pertencem simultaneamente a dois ou mais conjuntos;
produto. [Cf. interseção.].
Partindo da terceira definição, percebemos que é desta maneira que o cinema
mudo, o desenho animado, o circo e o teatro do absurdo integram o processo de encenação
aqui apresentado, o qual possui como elementos formadores: estéticas, conceitos, técnicas e
práticas “pinçados” do movimento teatral histórico. Ainda no primeiro item, é utilizada a
113
palavra cruzamento como uma das definições de “interseção” e, em paralelo, percebemos que
estes elementos formadores do complexo cruzam e interagem com o mesmo para, então, a
partir de um determinado momento, fazer parte dele. Sendo assim, tendo como definições
elementos que cruzam e participam simultaneamente de dois ou mais conjuntos, pensamos
que a adoção do termo “interseções”, para denominar este terceiro capítulo, é compatível com
sua abordagem.
No primeiro momento deste capítulo, falaremos da relação entre o clown e o
teatro do absurdo, quando tentaremos fazer as ligações entre estes dois universos. No segundo
momento, tentaremos descrever como o cinema mudo, o circo e o desenho animado
participam do complexo formador e influenciam os espetáculos resultantes deste processo de
encenação.
III.1. O clown e o absurdo
Figura 20 –Foto: Léo Azevedo
Seguiremos com a
introdução ao teatro do absurdo.
Posteriormente, desenvolveremos
as relações do clown com o
absurdo, as razões que nos
levaram a escolher o teatro do
absurdo como movimento teatral
integrante do processo de
encenação proposto e suas obras
como ponto de partida para
elaborar o roteiro dos espetáculos.
O movimento
denominado de Teatro do Absurdo desenvolveu-se nos anos 50, tendo como foco a cidade de
Paris. De acordo com Paulo Francis, na apresentação do livro de Martin Esslin “O Teatro do
Absurdo”, “Em termos filosóficos gerais, o Absurdo representa a condição de
ininteligibilidade a que chegou o homem moderno em face de suas pretensões humanistas e
da realidade em que vive (...)”
1
e este movimento surgiu como uma reação ao Realismo.
Mas os autores deste teatro ou literatura jamais se auto-proclamaram
pertencentes a qualquer escola, na verdade, o “rótulo” de “Absurdo” lhes foi imposto, como
114
assinalou a Doutora Antônia Pereira em seu seminário “O Termo Avant-Garde é Absurdo ou
Absurdo é também Avant-Garde”, no dia 18 de outubro de 2005, no Goethe-Institut/ICBA, na
cidade de Salvador. Os autores deste período foram “(...) etiquetados sob o denominador
comum de teatro de “Avant-Garde”, propício a muitos mal-entendidos, ou ao de “Teatro do
Absurdo”, o qual os reduziria a um sistema tenso e estreito (...)”. Tudo indica que os críticos
“criaram” a escola do absurdo, isto porque era necessário nominar o “movimento” que estava
acontecendo, como assinalou a Doutora Antônia Pereira. A nominação é necessária para os
críticos, a história precisa de “nomes organizados em prateleiras” e, de acordo com a Doutora
Antônia Pereira, “(...) basta uma etiqueta cômoda para que a preguiça se instale e se
generalize. E assim sucedeu, os dados foram jogados, uma ‘Escola Fantasma’ nasceu!” – o
Teatro do Absurdo.
É através deste “rótulo” que hoje conhecemos as obras dos autores desta era,
mas, segundo Martin Esslin e Geneviève Serreau, cada um deles se vê como um escritor
solitário e proclama que suas obras nasceram de uma profunda necessidade de se questionar
acerca da existência e da essência do ser humano e que as obras são sensíveis reflexões de
suas angústias. As peças e os personagens apresentados, portanto, são espelhos das
inquietações de cada indivíduo.
Com isso, Esslin chama nossa atenção para uma característica importantíssima
do teatro do absurdo: as peças desta escola, escritas por Beckett, Ionesco, Pinter, Arrabal,
Genet e Adamov, não possuem um fim, mas constituem um meio, um instrumento de
“visitação” à essência humana.
Demorou para as peças destes autores serem entendidas desta maneira e,
durante algum tempo, os mesmos foram incompreendidos e até insultados e, ainda assim,
muito encenados. Acreditamos que as montagens de suas peças aconteciam (e acontecem)
devido aos temas ligados à natureza humana e, tamm, devido à época em que este ser
humano se encontrava (e se encontra), estamos falando de uma sociedade de pessoas perdidas
na própria fragilidade das coisas em que se fundamentam para existirem.
Conforme Martin Esslin, o teatro do absurdo “procura expressar a sua noção da
falta de sentido da condição humana e da sua insuficiência da atitude racional por um repúdio
aberto dos recursos racionais e do pensamento discursivo”
2
. O teatro do absurdo exerce esta
apresentação da absurda condição humana através de imagens concretas, as quais acontecem
em cena, diante do público, e esta, segundo Esslin, constitui a grande diferença dos
dramaturgos existencialistas para os do absurdo. Ele assinala ainda que o teatro do absurdo
deve ser diferenciado da “vanguarda poética” e nos faz observar que:
115
“A vanguarda poética” depende tanto quanto o Teatro do Absurdo da fantasia e da
realidade dos sonhos; também ignora os axiomas tradicionais tais como a unidade e
consistência básica de cada personagem ou a necessidade de enredo. No entanto,
basicamente, a “vanguarda poética” representa um modo diferente de ver as coisas; é
mais lírica, muito menos violenta e grotesca.”
3
Por acharmos que este não é o momento de nos estendermos em explicações
sobre teatro existencialista e Avant-Garde, é que reduzimos suas definições a alguma
característica e as utilizamos somente como referências para evidenciarmos o teatro do
absurdo, que é nosso enfoque maior como caminho para o desenvolvimento do assunto “o
absurdo e o clown”.
Quando surgiu, o absurdo ganhou a incompreensão dos críticos, mas não do
público leigo, queremos dizer, daqueles que assistem a uma peça com a pretensão, apenas, de
ver um espetáculo, livres de conceitos ou postura intelectual. Ele, o público, foi o primeiro a
perceber e compreender as inquietações dos autores apontados como integrantes do teatro do
absurdo.
A partir das inquietações das almas dos próprios autores, várias peças foram
sendo escritas, mas isso não bastava, era preciso que fossem montadas, encenadas. Para tanto,
era preciso a identificação mínima do encenador em relação aos textos, o que de fato
aconteceu, pois, desde que o teatro do absurdo surgiu, suas peças fazem parte da cena teatral.
Contudo, era ainda insuficiente as peças serem escritas e encenadas, era necessário que o
público as recebesse bem. E assim também aconteceu, o mesmo sempre assistiu e assiste às
montagens de peças como “Esperando Godot”, “As Cadeiras”, “A Bicicleta do Condenado” e
outras que fazem parte do repertório do teatro do absurdo.
O teatro do absurdo, conforme Martin Esslin, apresenta situações familiares ao
cotidiano, em contextos diferentes e sob visões “dilatadas” das mesmas,
combinadas/mescladas/organizadas com cenas de antigas tradições do espetáculo. Na
verdade, o teatro do absurdo é, segundo ele, “(...) uma volta a tradições antigas e menos
arcaicas”
4
. As tradições antigas a que Esslin se refere são pertencentes ao circo, com seus
malabaristas, aramistas, trapezistas, adestradores de animais e palhaços (tomamos o termo
palhaço com o mesmo sentido do termo clown, conforme as explicações contidas no primeiro
capítulo).
As combinações entre tradições antigas e cenas familiares, as quais Esslin se
refere como características do teatro do absurdo, são classificadas por ele da seguinte forma:
116
Teatro “puro”; isto é, efeitos cênicos abstratos tais como os que nos são familiares
no circo ou na revista, no trabalho dos malabaristas, acrobatas, toureiros e
funâmbulos. Palhaçadas, brincadeiras e cenas de loucura. Nonsense Verbal.
Literatura de sonho e fantasia, freqüentemente contendo forte elemento de alegoria.
5
Partindo desta classificação, compreendemos melhor as conexões do teatro do
absurdo com nosso complexo formador dos processos de encenação, no qual o teatro “puro”,
o clown, o nonsense
6
, a literatura de sonho e elemento de alegoria
7
têm grande participação,
principalmente, no que diz respeito aos espetáculos resultantes. Sob nosso olhar, acreditamos
que estes elementos são utilizados nos espetáculos, até mesmo o nonsense verbal, quando não
usamos o texto falado como modo de comunicação eficiente e tentamos colocar o grammelot
como a forma de comunicação verbal.
Com base nestas características, partimos para o desenvolvimento da relação
entre o clown e o absurdo, pois já vimos que esta conexão faz parte das características do
teatro do absurdo e, com toda a certeza, esta ligação foi responsável, em parte, por nosso
interesse por esse teatro. Conforme avançarmos com a relação do clown e do absurdo,
desenvolveremos, com mais propriedade, os elementos acima relacionados.
O clown possui em sua natureza, como já visto anteriormente, elevada
influência de seus instintos e energias do baixo ventre, sejam eles sublimados ou grotescos,
conforme nossas explanações no primeiro capítulo desta dissertação. Para extingui-los, age
livremente, sem possuir uma lógica explicável no âmbito social/racional. Michael Chekhov,
em suas considerações sobre os “diferentes tipos de desempenho”, vê a necessidade de
assinalar a diferença entre o clown e qualquer outro cômico, chamando a atenção para estes
dois tipos de desempenhos. Chekhov assinala que “a personagem de comédia sempre reage
naturalmente, por assim dizer, não importa até que ponto a personagem e a situação possam
ser peculiares [...] Suas transições de um estado psicológico para o outro são sempre
justificáveis”
8
, isto é, as ações possuem um ponto mínimo em comum com a lógica social,
enquanto que “[...] a coisa é muito diferente com a psicologia de um bom palhaço. Suas
reações a uma circunstância em seu meio circundante são completamente injustificadas,
“absurdas” e inesperadas [...] Suas transições de uma emoção para outra não requerem
qualquer justificação psicológica [...] [podendo] poderá desfilar em sucessão espontânea e
mudar como um relâmpago sem quaisquer razões visíveis”
9
. Esta “aparente” falta de conexão
entre uma ação e outra também é uma característica dos personagens do teatro do absurdo,
onde notamos que “[...] as preocupações e ações dos seres humanos não têm nenhum
significado, já que carecem de uma finalidade”
10
. O teatro do absurdo deixa esta “necessidade
117
de justificativa” através de uma razão lógica em suspensão ou com finalidade alheia ao
objetivo da cena, construindo uma sucessão de ações absurdas ou de significação.
Alguns leitores, porém, podem perceber o teatro do absurdo como portador de
um sentimento niilista e pessimista, expondo o absurdo das estruturas sociais, das convenções,
da tentativa de comunicação e uso da linguagem, da própria vida perante a situação de ser
humano e seu envolvimento com a insignificância das coisas como elas são. Esta exposição
também é realizada pelos clowns, mas com um profundo sentimento de indagação sobre sua
integração com o mundo, familiar ao que está presente nas peças do teatro do absurdo, porém,
ao contrário deste último, é apresentado sem pessimismo ou niilismo. Para o clown, seu
material é, pura e simplesmente, as relações humanas, seja com o tempo, com as emoções,
com os outros, enfim, ele trabalha com o que é essencial para o homem, deixando que o
próprio espectador se coloque perante as revelações.
Podemos afirmar que ambos, clown e teatro do absurdo, almejam revelar uma
realidade escondida através do desvelamento do absurdo da realidade compartilhada. No
entanto, o clown mostra-se vivendo tudo de maneira verdadeira e intensa, enquanto que o
teatro do absurdo mostra “que a vida tinha perdido toda a sua significação [...] [que] Seu
exílio é irremediável [...] [e] Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu
cenário, em verdade constitui o sentimento do Absurdo”
11
mostrando de forma crítica e até
pessimista esta relação entre o homem e sua condição. O clown, mesmo tendo a finalidade de
revelar a condição humana, não se coloca de maneira negativa diante disso, ele sempre se
resolve, ao seu modo, dentro do absurdo da realidade imposta, sem lhe dar uma conotação
positiva ou negativa, ele simplesmente vive. Embora os personagens do teatro do absurdo
também vivam a vida como uma sucessão de acontecimentos, eles vêem a isto com profunda
desesperança, tudo faz parte de um plano alheio a eles mesmos.
Outro ponto de conexão entre o clown e os personagens do teatro do absurdo é
a interdependência entre os seres humanos. Como falado no primeiro capítulo, um clown
necessita do outro, seu oposto e complementar. Ele precisa ver-se unido ao seu contrário e
refletido no mesmo, o outro é o seu duplo, é o seu igual ao avesso. É desta maneira que as
duplas de clowns convivem e, segundo Lecoq, “Encontramos [tamm] essas duplas em
Laurel e Hardy, Vladimir e Estragon de “Esperando Godot” de Beckett, um mais forte que o
outro na sua absurda hierarquia ”
12
. Esta exposição do modo de relação entre as pessoas são
bem utilizadas nas peças escolhidas para servir de guia para os espetáculos. Em “Esperando
Godot” e “Fim de Partida”, de Beckett, e em “O Montacarga”, de Pinter, as duplas possuem
118
personagens com personalidades opostas e complementares e são estas diferenças que, na
verdade, constroem as intrigas das peças, segundo Martin Esslin.
(...) o contraste entre seus temperamentos dá origem a intermináveis implicâncias
mútuas e, muitas vezes, leva a sugestão de que eles deveriam se separar. Entretanto,
sendo de naturezas complementares, eles são mutuamente dependentes e têm
necessidade de ficar juntos.
13
Esta necessidade que as duplas de personagens têm de não se separarem é uma
das razões que nos fizeram escolher as peças de Beckett e Pinter para trabalhar no roteiro dos
espetáculos. Contudo, esta dependência do outro, no teatro do absurdo, é tida como fracasso,
um medo de encarar o que não é conhecido, uma covardia perante a possibilidade de solidão.
Enquanto que no jogo clownesco a interdependência é percebida como a união de duas
metades que se completam, como a ligação inegável com seu reflexo e a identificação de seu
“eu”, estranho e familiar, no outro. Embora por razões diferentes, é fato que, em ambos os
casos, os personagens se complementam e mesmo no teatro do absurdo, quando a necessidade
de passar o tempo é a razão pela qual estão juntos, a similaridade com as duplas clownescas é
inegável. As ações, realizadas pelos personagens para passar o tempo, assemelham-se aos
números de circo ou de teatro de variedades
14
e os jogos, sem razão aparente, são propostos e
explorados até as últimas possibilidades, sendo introduzido outro logo a seguir (“Você tem
razão, somos inesgotáveis.”
15
), tal qual no jogo clownesco.
Nas peças do teatro do absurdo são introduzidas muitas situações inspiradas no
circo e teatro de variedades, tais como malabarismos, danças e, até mesmo dentro das ações e
diálogos dos personagens, há indicações de que estão assistindo ou participando de um
espetáculo. O teatro do absurdo trouxe estas possibilidades para a cena, porque o público
vinha sendo acostumado a peças que imitavam a realidade, onde tudo era comum e possuía a
lógica do cotidiano: o cenário, o figurino, a maquiagem, a atuação e a situação.
Para chamar a atenção do público à situação do próprio ser humano, causando
uma reação de tomada de consciência, o teatro do absurdo introduz algumas “cenas
alegóricas”, as quais possuem o objetivo de criar um estranhamento na lógica e nas situações
cotidianas, fazendo com que o espectador passe a adotar outros referenciais para apreciar o
espetáculo e entre no universo do mesmo, deparando-se com outra realidade.
Esta capacidade de fazer com que o público adquira outros referenciais lógicos
para apreciar um espetáculo e de confrontá-lo com a realidade, também, é característica dos
espetáculos clownescos. Aliás, tudo indica que foi neste universo do clown e do circo que o
teatro do absurdo foi buscar a “alegoria” para suas peças, trazendo para o palco as habilidades
119
dos artistas. Antes mesmo do absurdo surgir como movimento teatral, a tradição dos artistas
circenses, principalmente dos clowns, era de paródias de números periculosos, estabelecendo
a relação entre a tensão e o riso, mostrando ainda que podemos ter destreza com coisas
complicadas e dificuldade com coisas óbvias e fáceis. Portanto, podemos pensar que esta
relativização do perigo, do riso, dos graus de dificuldade e do raciocínio lógico foi pinçada do
mundo clownesco, para o teatro do absurdo.
No decorrer da história das artes, o uso de habilidades saiu das ruas e circos e
foi para os teatros de variedades e, posteriormente, ganharam espaço em peças teatrais e no
cinema. No teatro de variedades, a maioria das apresentações tinha como argumento a
habilidade do artista (exploit), esta característica fez com que a imagem e o jogo dos artistas
ficassem em destaque, deixando o discurso num plano secundário. Vendo desta maneira,
podemos dizer que muitas destas características da transição das habilidades circenses para os
palcos contribuíram para o surgimento das idéias formadoras do teatro do absurdo.
Posteriormente, o teatro de variedade ganhou espaço nas peças do teatro do
absurdo, através da inclusão de cenas aparentemente abstratas e alegóricas, as quais
objetivavam uma ruptura na estrutura da peça e na lógica cotidiana. Conforme o movimento
teatral foi se desenvolvendo, as cenas foram ganhando outros conteúdos e, além das
habilidades dos artistas, foi introduzido o nonsense verbal. A partir disso, podemos supor que
a característica de colocar o discurso em segundo plano para deixar sobressair a
ação/habilidade dos artistas causou uma percepção de que as relações humanas podem ser
estabelecidas sem uma linguagem verbal estruturada, podendo utilizar, também, o próprio
discurso para desconstruir a linguagem verbal como veículo de comunicação.
A desvalorização da linguagem, como veículo transmissor de um discurso
coerente/racional, tornou-se característica marcante do teatro do absurdo. Com a palavra
sendo desvalorizada, o teatro do absurdo deu nova importância à imagem que fazia a
construção da poesia da peça. A poesia surge de um “espírito irracional” e não da linguagem
como conceito e opõe-se a toda interpretação lógica.
Segundo Esslin, “O Teatro do Absurdo [...] tende para uma desvalorização
radical da linguagem, para [que] a poesia [possa] [...] emergir das imagens concretas e
objetivadas do próprio palco”
16
. Mas Esslin nos diz que mesmo esta desvalorização da
linguagem constitui uma característica importante da estética, pois é através de sua
desconstrução que a estética trabalha as suas idéias. Muitas das peças teatrais do teatro do
absurdo fazem uso da contradição entre a palavra e a ação, onde “[...] o que acontece no palco
transcende e, muitas vezes, contradiz as palavras ditas”
17
e o jogo dos atores, indicado pelas
120
didascálias do autor, vai no sentido contrário ao do discurso do personagem. Dessa maneira,
através deste artifício, a ação ganha muito mais importância na cena.
A idéia de desconstrução da linguagem traz, também, a desvalorização da
mesma, e isto é intensificado com a utilização de longos silêncios que contêm significações
escondidas, ou de grandes diálogos de nonsense verbal. Para o movimento do teatro do
absurdo, a arte teatral é mais do que a mera palavra, ela pode servir para mostrar que a palavra
e a linguagem não nos traduzem e não nos satisfazem como sistema de comunicação.
Tal problema com a linguagem é constantemente apresentado nas peças do
absurdo, aparecendo como uma barreira a toda e qualquer forma de conhecimento do eu e do
outro, mostrando que a linguagem não cumpre a sua função primeira que é de comunicar, pois
a distância da coisa em si, do conceito/linguagem e do objeto representado não são
satisfatórios. É com a intenção de intensificar tal idéia, que o teatro do absurdo desvaloriza a
língua como veículo do pensamento ou como instrumento de comunicação, ao ponto de
desconstruí-la. O clown também faz uso da desconstrução da linguagem, mas numa tentativa
de expor sua lógica e de traduzir sua maneira de compreensão das coisas e não carrega nisso
um pessimismo, mas sim um desejo inesgotável de viver/ser, de extinguir sua curiosidade, de
fazer-se entender, por isso, ele tenta novamente.
Segundo Artaud, “O que falta, certamente, não são sistemas de pensamento;
sua quantidade e suas contradições caracterizam nossa velha cultura [...] mas quando foi que a
vida, a nossa vida, foi afetada por esses sistemas?”
18
. Para ele, o teatro se serve de todas as
linguagens (gestos, sons, palavras, fogo, gritos) e chega “[...] exatamente no ponto em que o
espírito precisa de uma linguagem para produzir suas manifestações.”
19
. Percebemos que estas
tentativas de manifestar as inquietações da alma são a matéria-prima do teatro do absurdo e do
clown, os quais tentam “romper a linguagem para tocar na vida”
20
. Como Artaud afirma e os
dramaturgos do teatro do absurdo também, toda linguagem é limitada e o teatro do absurdo
tenta, a partir da invenção de uma comunicação (com gestos, sons, palavras, fogo e gritos
articulados arbitrariamente) sair da limitação de um idioma estruturado.
Tal qualidade de desconstrução da linguagem, a qual podemos denominar de
nonsense verbal, é alicerçada na profunda sensação de libertação da lógica, e ambos, teatro do
absurdo e o clown, são totalmente livres de qualquer estrutura lógica de pensamento.
Nas peças do absurdo, é possível ver que a necessidade de sair da lógica social
do pensamento nasce do próprio aprisionamento a esta. Na estrutura social, a ordem criada
aparenta uma situação “normal”, mas quando a mesma é apresentada sob um olhar
diferenciado demonstra que os valores adotados são tão distorcidos que chegam a ser
121
absurdos e, para o ser humano sobreviver a tamanha “irracionalidade”, é necessário extrapolar
esta ordem. É assim, através de uma libertação da lógica que o teatro do absurdo e o clown
constroem o nonsense na ação e no verbo. Entretanto, esta ação de extrapolar a lógica social,
vista por aqueles que estão dentro da estrutura da sociedade sem se darem conta de sua
absurda condição, é tida como absurda, irracional ou ilógica. Podemos dizer que funciona, de
certa forma, da seguinte maneira: todos estamos dentro de uma estrutura social, aqueles que
percebem o quão absurda ela é, tentam livrar-se dela através da negação dos meios utilizados
pela mesma, mas, aos olhos daqueles que estão integrados a esta estrutura sem percebê-la, os
tais mecanismos de negação são vistos como “absurdos”.
Nos textos do teatro do absurdo, a dificuldade e a incapacidade de
comunicação entre os seres humanos são mostradas de várias maneiras, trazendo para a cena
personagens que repetem seus diálogos, ou que agem como se tivessem perda de memórias,
ou ainda, diálogos que seguem uma lógica irracional ou diferenciada, buscando as palavras
que se encaixam na tradução de seus pensamentos e sentimentos, sempre sem sucesso. Os
autores, através dos personagens, buscam uma linguagem simples e eficaz, que traduza o ser
humano em toda a sua complexidade e, para isso, chegam a adotar, não mais palavras, mas
sons, balbucios e murmúrios incoerentes.
Podemos dizer que esta tentativa de comunicação, onde a articulação de um
idioma é posta em segundo plano e busca-se transmitir mensagens através de sons articulados
com arbitrariedade, aproxima-se do grammelot, o meio de comunicação utilizado pelos
comicos dell’arte para se fazerem compreender em regiões de dialetos e idiomas diferentes.
Sendo o nonsense uma junção desconexa de sons, sílabas ou palavras, pensamos poder
compará-lo ao grammelot, mas percebemos que a relação entre os dois é estreita. O
grammelot foi criado com a intenção de comunicar, fazendo uma junção desconexa de sons e
gestos, desconstruindo uma linguagem para construir um outro meio de contato, realizável
através de um conjunto e não somente da palavra falada. Enquanto que o nonsense verbal é a
desconstrução de uma linguagem com a intenção de mostrar a incapacidade de comunicação
através da palavra. Apesar de possuírem finalidades diferentes (embora não saibamos até
onde, pois o grammelot também mostra que a comunicação através de um sistema estruturado
de palavras não é satisfatória, mesmo que seja de uma maneira indireta), tanto o grammelot,
quanto o nonsense utilizam de forma arbitrária, desconexa e desconstruída, a linguagem
verbal sistematizada de um idioma.
Chamamos a atenção para o fato de que o nonsense e o grammelot
assemelham-se pelo uso de sons e ritmos e não de um idioma estruturado, porém as razões da
122
busca por esta nova maneira e tentativa de comunicação são totalmente diferentes.
Acreditamos que o nonsense, talvez, nem seja uma tentativa de comunicação, mas um
descrédito da mesma, enquanto que o grammelot é, verdadeiramente, uma tentativa de
comunicação; mas ambos são construídos a partir da desconstrução de um idioma, do uso de
sons e de uma articulação arbitrária dos mesmos, dando origem a uma sonoridade que, de
certa forma, passa uma idéia.
O grammelot e o nonsense têm ligação com o imaginário e com a libertação de
uma estrutura, seja ela funcional, literal, ou verbal. Falando desta maneira, parece que ambos
são criações racionalizadas em detalhes, mas fazem parte do ser humano e estão presentes em
muitas fases de seu desenvolvimento: nos bebês – quando ainda não estruturaram seu
pensamento dentro de um código verbal; na infância - nas brincadeiras de trava-língua ou
canções de sílabas soltas; nos velhos – quando a memória se torna falha e as palavras,
enquanto vocabulários aparentemente propícios, não são encontradas para traduzirem seus
pensamentos e desejos e, também, nas pessoas que possuem dificuldades na articulação da
fala, quando a repetição de sílabas ou falhas na articulação de alguma letra nos soa como
palavra desconhecida dentro do vocabulário compartilhado na sociedade
21
.
Mas o nonsense verbal e o grammelot expressam mais do que uma brincadeira
ou problema físico, ambos abstraem os limiares da lógica e da linguagem e constituem uma
investida contra a própria condição humana, tentando transcender a matéria, o objeto, o
sujeito e sua lógica, através da transgressão do sistema de comunicação imposto.
Ambas as linguagens, clown e absurdo, deixam claro que “a vida no palco tem
outra lógica” e isto faz com que o espectador tamm adote uma lógica diferenciada de
compreensão, que se opõe a qualquer tipo de interpretação ordinária e cotidiana. Esta lógica
aparentemente insana dos personagens do teatro do absurdo e do clown extrapola o limiar da
lógica comum e foge de sua “sanidade”/realidade. Porém, o que devemos perceber é que
nada, do que é apresentado nos textos deste teatro e na relação do clown com o mundo, é
absurdo. O que se mostra nos palcos, cinemas e ruas é apenas um enfoque da vida cotidiana
através de uma visão dilatada desta realidade e elevada a possibilidades de interpretação de
potência extrema. Todo este conjunto formador da estética do teatro do absurdo mostra ao
espectador o quão disparatada é a estrutura social vivida e que somos passageiros de uma
realidade que não nos pertence.
Para desvelar esta realidade, são colocados em cena questionamentos sobre o
tempo e sua relatividade, as lembranças que não temos, a falta de memória, a palavra e a
incomunicabilidade da linguagem falada, as atividades repetidas na rotina, a negação da
123
racionalidade e a incapacidade do pensamento e todos os seus recursos. Todas estas questões
são encontradas tanto no teatro do absurdo, quanto na natureza do clown.
O clown explora suas relações de acordo com seus desejos, sem agir
racionalmente ou com razão visível, ele é impulsionado pelas questões/relações/problemas
que o envolvem. A afirmação de Dario Fo, que o clown trata sempre da fome, seja de sexo,
comida ou justiça, quer dizer que suas ações estão sempre ligadas às necessidades básicas do
ser humano, tal qual os personagens do teatro do absurdo, principalmente, os de Beckett, já
que alguns deles são reduzidos às relações do baixo ventre, mostrando-se numa condição
irremediável, onde as únicas coisas que lhes sobram são a fisiologia e a escatologia (e por que
não dizer a bufonaria?). Conforme a afirmação de Burnier, o bufão e o clown são
estreitamente ligados, ambos tratam das questões do ser humano, sua natureza e sua condição.
Portanto, os personagens de Beckett possuem semelhanças com o clown e com o bufão. Os
três revelam as deformidades da sociedade e suas estruturas, cada qual com seus meios.
Retomando o discurso sobre os personagens dos textos do teatro do absurdo,
alguns deles são postos em duplas e possuem um caráter ingênuo, outros são como terríveis
monstros cruéis; uns possuem o olhar “inocente”, outros maliciosos; uns são estúpidos, outros
inteligentes; uns são comandados, outros comandantes; uns são oprimidos, outros opressores.
Esta divisão dos personagens em duplas é mantida em muitos textos do teatro do absurdo, o
que nos leva a relacioná-los com a dupla clownesca: Branco - Augusto. Nos textos escolhidos
para servir de guia para a construção dos espetáculos do processo de encenação proposto, esta
característica está presente. Em “Esperando Godot” de Samuel Beckett, que originou o
espetáculo GODÔ, a interdependência entre as duplas Vladimir e Estragon e Pozzo e Lucky é
temática forte, os personagens tentam se separar, mas nunca executam este desejo, pois estão
tão ligados uns aos outros, que não se vêem sem o outro e não conseguem viver longe de seu
duplo. Em “O Montacarga” de Harold Pinter, que deu origem ao espetáculo TRATTORIA,
Gus necessita de Ben e vice-versa. As dúvidas, sobre os acontecimentos no andar de cima,
servem para intensificar a união dos dois, que juntos elaboram soluções, juntos tentam
executar as ordens e juntos passam o tempo. Quando Gus descobre que deverá matar Ben, a
ação da cena fica suspendida, o silêncio se instaura e a peça termina, uma vez que a
necessidade da presença do outro é tanta que no momento que Gus matar Ben, ele estará
matando a si mesmo também. Na peça “Fim de Jogo” de Samuel Beckett, ponto de partida
para a criação do espetáculo JOGUETE, acontece a mesma interdependência. Os personagens
Hamm e Clov se despedem muitas vezes, mas não conseguem se separar. Negg e Nell têm
124
tanta necessidade um do outro que quando um morre, logo em seguida o outro fica paralisado,
a vida sem seu duplo é nada.
Na interdependência entre os clowns, a dupla Branco - Augusto não consegue
se separar e, apesar das desavenças e aparente incompatibilidade, um busca calor humano no
outro, em seu duplo. Mas, no teatro do absurdo, a interdependência tem outra razão, segundo
Beckett, o que faz as pessoas ficarem unidas é o medo e a covardia. Nas peças do absurdo, é
possível perceber nos personagens o medo do desconhecido, porém adotamos o termo
covardia como uma interpretação pessimista deste medo. Ver este medo do desconhecido
como covardia é mais uma característica do teatro do absurdo, característica esta que Beckett
já prenunciava em seu ensaio sobre a obra de Proust, onde afirma que “...se o amor... é uma
função da tristeza do homem, a amizade é uma função de sua covardia; e se nem uma coisa
nem outra podem ser alcançadas em virtude da impenetrabilidade de tudo o que é “cosa
mentale”, ao menos o fracasso na posse pode ter algo de trágico”
22
.
Este pessimismo é muito visível nos diálogos dos personagens de Beckett e nos
silêncios indicados no texto, mas esta é, também, característica de todo o movimento do teatro
do absurdo. Contudo, acreditamos que se todo texto do teatro do absurdo se resumisse ao
pessimismo, as peças, geralmente, com tramas simples, não seriam interessantes ao leitor e ao
espectador. É neste ponto que se percebe a relevância das outras características deste teatro, as
quais já foram mencionadas anteriormente: a falta de memória, a rotina, as repetições de
tentativas em ocupar o tempo, a insistência em encontrar uma solução e a exploração de
vários caminhos para tal objetivo, seja simplesmente para terem o que fazer ou para impedir a
comunicação que pode acontecer.
Neste jogo de tentativas e fracassos, temos a relação do teatro do absurdo com
o clown. Isto acontece através do “exploit” e do “bide”, mencionados anteriormente, no
primeiro capítulo, segundo Lecoq, é nestes dois momentos que o clown explora suas
habilidades e possibilidades (exploit) e, na maioria das vezes, fracassa (bide). Porém, como
ele tende a extinguir seus desejos, tenta inúmeras vezes, até se cansar e esgotar as
possibilidades de resolução do problema. A diferença é que, com o clown, as tentativas fazem
parte de um impulso natural, enquanto que, no teatro do absurdo, são parte de uma “visão
desesperançosa da convivência e da realidade” e, muitas vezes, fazem com que as cenas
pareçam um ciclo, dando a impressão de perpetuidade, uma rotina de tentativas, fracassos e
interdependências que se repete numa história da qual não se sabe o início ou o fim. No teatro
do absurdo a tentativa traz a repetição e esta, novamente, a tentativa, ambas impulsionadas
125
pelo fracasso e alimentadas pela interdependência. Tudo isto para questionar e tentar
descobrir a “verdade humana”.
Como tema central do teatro do absurdo, temos o “ser humano”, sua natureza,
sua condição e sua condenação de viver numa realidade que não lhe pertence. Estas questões
sobre a “verdade humana” são inerentes ao homem e, por isso, ao clown, que é o ser humano
em toda a sua complexidade e intimismo, como visto no primeiro capítulo, e também são de
propriedade dos personagens do teatro do absurdo, criados pelo próprio homem com o
objetivo de questionar-se.
Aproveitamos para chamar a atenção ao fato de que algumas destas
características do clown, em relação ao absurdo, são encontradas em outras áreas e linguagens
além do teatro. Como falado anteriormente, o clown faz parte da história da civilização e, no
percurso da história, ele recebeu e influenciou muitas áreas: rua, circo, teatro de variedades,
teatro, cinema mudo, cinema e desenho animado. Na rua, o clown obteve sua perpetuidade; no
circo, a sua sobrevivência e popularidade; no teatro de variedades, encontrou um caminho; no
teatro, teve uma casa; no cinema mudo, ganhou requinte; no cinema falado, ganhou a voz e no
desenho animado, teve o alcance e aceitação do grande público e a possibilidade de extrapolar
os recantos do imaginário até as últimas conseqüências. Já comentamos, brevemente, sobre o
clown e sua relação com estes espaços (a rua, o circo, o teatro e o cinema) e estaremos
dirigindo um olhar mais específico para a sua união com o cinema mudo e o desenho
animado, no espaço destinado a estas conexões e interseções com outras influências – no
segundo momento deste capítulo.
III.2. O Produto – Outras influências
Figura 21: Foto Léo Azevedo
Ocuparemos este espaço para
falarmos sobre as influências introduzidas ao
longo do encaminhamento do processo de
encenação dos espetáculos, que a dissertação
traz consigo como objetos a serem
observados
Conforme fomos dando
esclarecimentos sobre o complexo formador
do processo, mencionamos as influências que este recebe do cinema mudo, do circo e do
126
desenho animado, ambientes em que o clown e seu universo estão presentes. Isto se dá por
conseqüência de sua capacidade e qualidade de permear e transitar entre diferentes meios,
conforme mencionamos anteriormente, porém sempre de maneira generalizada, pois não eram
assuntos do momento. Neste momento deste terceiro capítulo, falaremos destes elementos,
pontuando o modo como interagem no complexo e nos espetáculos criados com o processo de
encenação proposto.
Iniciaremos falando do circo, uma das principais casas do clown.
III.2.1. O Circo
Figura 22 – Foto: Léo Azevedo
Em primeiro
lugar, é necessário destacar que
nossa proposta não é de fazer
um estudo aprofundado e
histórico do circo e sim, de falar
como o mesmo faz sua
interseção no processo de
encenação. No entanto, para
falarmos dos elementos e “personagens” que integram o circo e permeiam o processo,
teremos que tecer eventuais comentários sobre os mesmos.
O circo, tal como o clown, também possui origens longínquas, segundo
Benício:
A origem do circo, entretanto, remonta aos espetáculos análogos de animais
selvagens, apresentados no Coliseu e nos anfiteatros da Roma antiga, derivados das
exibições de espécimes de animais exóticos, das corridas de carros do Egito e da
Grécia e das diversas formas populares do teatro grego (...).
23
No entanto, os circos da Grécia e Roma Antiga tinham, como atrações, corridas
de cavalos, exibições atléticas e disputas de força, que “não deixavam de ser a celebração das
vitórias, aliados ao culto aos deuses”
24
. Mas o circo moderno, como o conhecemos hoje, deve
sua origem ao inglês Philip Astley que, segundo Benício em sua tese “Saltimbancos Urbanos:
a influência do circo na renovação do teatro brasileiro das décadas de 80 e 92”, no capítulo
“Percurso Histórico do Circo e suas Interfaces com o Teatro”
25
, ao se afastar do exército,
127
dedicou-se aos espetáculos eqüestres e percebeu que a força centrífuga de um “palco circular”
melhorava as condições para os cavaleiros evoluírem em suas demonstrações. Assim, foi
desenvolvido o picadeiro. Depois, com uma visão empreendedora, Astley, segundo
Bolognesi, transferiu estes espetáculos eqüestres para um ambiente fechado, o que lhe
possibilitou cobrar uma taxa dos espectadores. Mas Astley desejava alcançar um grande
público e foi por este motivo que, segundo Benício, seus espetáculos foram sendo
enriquecidos com clowns, acrobatas, ventríloquos, funâmbulos e outros artistas, organizando
o espetáculo circense.
Astley organizou os números de modo intercalado: ou entrava o Mestre de
Cerimônias (ele mesmo), que apresentava o número seguinte com muita “pompa”, ou entrava
o clown, parodiando algum número ou trazendo gags. Esta estrutura é usada até os dias de
hoje, como tivemos a oportunidade de conferir nos espetáculos do tradicional Cirque
D’Hiver, em Paris, pertencente à tradicional família circense Bouglione; no grande, mas não
tão tradicional, Stardus Circus Internacional, na Alemanha; no circo brasileiro Sarrasani, em
Santa Maria-RS e em outros circos brasileiros, que se mantêm desse tipo de espetáculo.
Astley sabia exatamente a necessidade do público, e entre um número perigoso
ou de suspense e outro, entrava o clown - uma maneira de fazer a platéia respirar aliviada. Ele
percebeu que a mesma precisava de momentos de tensão e de relaxamento, e foi assim que o
clown ganhou destaque na programação do circo, como até hoje. “O Clown e o Augusto são
antes de tudo uma necessidade dentro do Circo: os seus números permitem ao espectador
respirar o espetáculo normalmente”
26
.
Sendo assim, nos espetáculos circenses de Astley, o clown sempre foi muito
bem acolhido, o qual, concordando com Eliene Benício, “(...)o carinho do público acabou por
transformar no símbolo maior do mundo circense”
27
.
Num artigo para a revista “Le cirque & Les Arts”, Bernard Latarjet, presidente
do Comitê de Organização do Ano do Circo, na França, afirma que o circo é uma arte popular
que contribui com nosso imaginário mais íntimo:
[... ] [o circo] reúne as obras que tentam fornecer aos mitos, aos medos e aos sonhos,
as formas nas quais ressoem a indestrutível parte da inocência dos espíritos e dos
corações [...] e reencontram e reinventam o casamento das mais altas façanhas do
corpo com a mais visível poesia. A aliança da façanha e da alegoria faz o circo.
28
Latarjet diz ainda que o circo e, consequentemente, seus artistas, jamais
deixaram de inspirar as artes da vanguarda, eles sempre estiveram, de uma forma ou de outra,
em contato com os artistas de outros meios, percorrendo um caminho que vai “de Flaubert e
128
Barbey d’Aureville a Cocteau e Genet, de Daumier, Degas, Seurat a Picasso, Léger, Calder,
Dubuffet et Nauman; de Satie e Milhaud a Kagel; de Méliès e Chaplin a Bergman e a Fellini,
de Meyerhold a Dario Fo”
29
.
Em qualquer época, o circo nunca deixou de ser atual, sempre com
características de espetáculo, explora as habilidades dos artistas e os sentimentos dos
espectadores. Esta “alquimia” entre artista e espectador faz parte das mais antigas
manifestações humanas. De acordo com Valèria Ranson-Enguiale, pesquisadora francesa de
História da Arte, em seu artigo “La noblesse du cirque”, na revista “Le cirque & les arts”, é
preciso reavaliarmos as raízes do circo, porque, depois de verificar exaustivamente a natureza
do mesmo, pode-se dizer que durante toda a história da humanidade sempre que as pessoas,
adultos ou crianças, se reúnem para fins de “diversão”, ali neste encontro, está a origem do
circo, na união de espetáculo/diversão/emoção.
O ser humano, suas potencialidades e a capacidade de despertar sentimentos,
em geral contraditórios, já faziam parte de rituais da Grécia antiga, quando os homens faziam
os coros dionisíacos que eram finalizados com o sacrifício de um bode, nas lutas de
gladiadores, onde havia o sacrifício do animal ou do lutador, nos rituais de carnaval da Idade
Média, nos quais Hellequien conduzia um grupo de “espectros” para assustar os humanos e
terminava com um sacrifício. Todos estes rituais afloravam os instintos de prazer e medo no
espectador. O circo, através da exploração da habilidade do artista, também toca estes
instintos. No circo, o artista intensifica nosso prazer, expondo-se ao perigo, isto é, colocando-
se em sacrifício, e neste mesmo momento o espectador suspira inebriado e a arena circense é
tomada pelo medo, pelas expectativas e pelos desejos de superação. Quando o artista vence o
obstáculo, o espectador sente um grande prazer e satisfação, ainda que, em sua memória,
fique presente a sensação de que o número poderia ter dado errado e a lembrança/imagem de
um final trágico.
No circo, todas estas sensações foram enriquecidas e intensificadas pela figura
do clown, que também sempre esteve ligado as mais antigas manifestações ritualísticas,
misteriosas ou sacras, pois a necessidade de rir é inerente ao ser humano. O clown esteve
presente em toda a história da humanidade, recebendo nomes e influenciando outros gêneros.
Desde a Grécia antiga, onde, segundo Steele, já havia um tipo de clown. Posteriormente, os
clowns estiveram em Roma e tinham representantes até nas tribos norte-americanas,
especificamente na dos índios Hopi do Novo-México, onde desempenhavam a função de
xamã. Na mitologia indiana, ele foi, na verdade, um bufão e na egípcia, os faraós tinham a
satisfação de ter, para sua diversão, clowns pigmeus. Já na Europa, tinham a imunidade e o
129
reconhecimento como os “loucos do rei” e na China, os clowns eram dispostos em três
categorias: os wenchou - clowns civis, os wuchou - clowns guerreiros e os choudanclowns
femininos. Em cada época e cultura o clown teve seu espaço e representação
30
. Num caminho
que percorre todas as culturas, o riso e o clown sempre encontraram suas manifestações, mas
desde que o circo se estruturou como “lugar de espetáculos”, o clown sempre esteve com ele.
Por sua estrutura e espaço físico, em sua origem, os números circenses não
tinham sua base no discurso e até hoje esta característica se mantém (com exceção dos “circo-
teatros”, comuns no Brasil, em que são apresentadas peças teatrais com enredo e diálogos, nas
quais o personagem principal da trama é o palhaço). Sem a palavra, o principal argumento do
número circense é a habilidade do artista e tudo aquilo que a envolve, colocando a imagem, o
jogo e a emoção/sentimento em primeiro e deixando a palavra em segundo plano.
Mas, no clown, esta característica se intensificou depois de um determinado
acontecimento histórico. Entretanto, para caminhar com nosso objetivo, nos permitimos não
comentar toda a história do circo e partimos para a entrada do mimo neste mundo. Segundo
Viganò, a chegada do mimo no circo teve influência sobre sua linguagem:
Na segunda metade do século XIX, depois do fechamento dos Teatros de
Pantomima na França, um bom número de Mímicos procuraram trabalho no Circo.
Esses não eram acrobatas como os Clowns que trabalhavam na pista, mas podiam
recompensar esta insuficiência com suas qualidades de dançarinos. Naturalmente
sua chegada dentro do Circo influenciou o ambiente.
31
Neste momento da história circense, o clown do circo recebeu nova influência,
e sua linguagem, principalmente física, ganhou outra dimensão, de acordo com Viganò:
O clown se transformou em um personagem mais preciso, redondo e ingênuo como
na sua origem mais já enriquecido com uma certa classe. Estas inovações, no início
só tendências, se envolveram até entrar a fazer parte da mesma realidade do clown,
assim como se desenvolveu até os dias de hoje.
32
Para nosso trabalho, esta “parceria” entre o mundo circense e a pantomima
constitui uma forte característica, na qual, “O silêncio alimenta a palavra, e o mimo explode
trazendo o “não dito””
33
. É o que tentamos explorar em nossos espetáculos, através das
imagens, dos jogos dos atores e do texto sonoro. Em última análise, talvez, tenha sido o
trabalho com mimo que tenha nos “aproximado” do clown circense, já que, como afirma
Lecoq, “Muitos clowns modernos partiram dos mimos”
34
e se “refugiaram” no circo. Lecoq
diz, ainda, que esta contribuição foi muito importante, pois “O mimo distribui assim um fundo
poético comum reconhecido no corpo. Perdendo o próprio nome encontra assim a sua
130
verdadeira dimensão em diferentes direções dramáticas, entre as quais o clown.”
35
. Nos
percebemos compartilhando desse ponto de vista e pensamos que esta “poesia reconhecida no
corpo” é levada pelos atores para o texto cênico escrito por eles durante as apresentações dos
espetáculos.
Mas o circo possui grande riqueza humana e variedade de habilidades e, por
isso, também fizemos referências a outros artistas que povoam o mundo circense, como o
mágico, o domador e sua relação com os animais. Tanto quanto estes artistas, o clown
também trabalha no limiar entre o prazer e o perigo, e estas emoções são intensificadas e
instigadas através do riso. Este é um dos motivos pelo qual Fo, Lecoq e Burnier afirmam que
o ator do ofício de clown deve ter outras habilidades, pois somente assim ele poderá brincar
com a técnica, parodiando, zombando, desafiando ou fazer tudo de maneira a parecer que ele
está “perdido” ou é inexperiente, a ponto de despertar, no espectador, os sentimentos de
medo, expectativa, compaixão e desejo de sucesso. Os números realizados pelos clowns
devem possuir as características de sua natureza complexa e, através de sua inversão e
subversão às ordens, pela paródia social, pela crueldade do espectador, pelo seu ridículo e
pelo seu “caos psicológico/intelectual”, o riso é provocado.
Após tecermos algumas observações sobre o circo, sem nos aprofundarmos em
seu desenvolvimento pela história, tentaremos falar sobre sua influência no texto cênico dos
atores dos espetáculos GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE.
Tanto em GODÔ, quanto em JOGUETE, foram criados jogos entre os atores
com inspiração na figura do domador e na relação deste com as feras. Em GODÔ, podemos
perceber este jogo entre os clowns que fazem Pozzo e Lucky, não somente entre si, mas
também na maneira como se colocam diante dos outros dois clowns. Pozzo assume a figura
do domador e Lucky da fera. Para observarmos o processo de doma e a relação domador/fera,
fizemos visitas a dois circos: um grande (Vostok) e outro pequeno (Sarrasane). Entrevistamos
os domadores e os observamos trabalhando. Depois, os elementos que observamos eram
inseridos, de maneira natural, nos jogos de preparação das cenas, conforme explicação do
processo de encaminhamento dos ensaios, realizado no capítulo anterior. Enquanto Pozzo
tinha como referência o domador, Lucky foi inspirado nos cavalos, cachorros e leões dos
circos e, dessa forma, um observava o domador de feras, o outro, os animais, verificando
como os estes reagiam ao processo de doma - a postura perante cada comando e os momentos
de rebeldia. Assim, construímos a relação entre os personagens Pozzo e Lucky, através dos
jogos dos clowns e criando as partituras corporais individuais, através da codificação e da
recodificação (conforme exemplos citados no segundo capítulo).
131
Em JOGUETE, as figuras do domador e da fera, também, foram utilizadas nas
relações dos atores. O clown que desempenha o papel de Hamm, Bonna Bonacha, possui, no
espetáculo, muitas vezes, a postura do domador e aquele que desempenha o papel de Clov age
como o animal domado. Também na relação com os outros clowns que desempenham os
papéis de Negg e Nell, Hamm/Bonna adquire a postura de domador. A construção das
relações e das cenas foi desenvolvida através de jogos, a partir da interação entre domador e
fera (neste caso, o cachorro), passando pela codificação e recodificação.
Em TRATTORIA, as figuras do domador e da fera não estavam presentes,
porém dois clowns tiveram suas posturas inspiradas nos “patrões” do circo, os quais dão as
ordens a serem cumpridas. Essa relação de patrão e empregado não foi inspirada no
espetáculo circense, mas na relação dos integrantes do circo fora do picadeiro.
O circo ainda influenciou o figurino de Pozzo, no qual tentamos manter a
característica de revelador do ator e, completando sua caracterização, ele utilizava um chicote
rígido (usado pelos domadores para tocar a fera e exercer um comando mais específico).
Em JOGUETE, Nagg e Nell também possuem um momento em que se
transformam em “domadores”. Eles se entretêm fazendo um número com uma pulga
adestrada, momento em que a atmosfera circense se instaura no espaço de convivência do
casal, através da música, do foco de luz que ganha mais intensidade e da ação dos dois que
comandam o show da pulga, que logo foge, dando fim à brincadeira. Esta cena pode ser
observada no registro da peça, “impresso” no DVD do espetáculo e que, no sumário deste,
está catalogada com o nome de “Causos”.
Também em JOGUETE, foi utilizada outra figura circense: o prestidigitador. O
clown que desempenha o papel de Nagg, o Sr. Espiga, ao longo do espetáculo, apresenta
números de mágica. No texto de Beckett, Nagg e Nell possuem um pouco mais de contato
humano, em relação à dupla Hamm e Clov, mesmo que esta relação seja através de
lembranças ou tentativas frustradas de aproximação física. Para trabalharmos os contrastes
dos tipos de relações das duplas, utilizamos a prestidigitação, criando na cena um efeito de
magia, sonho ou de outra realidade. No texto, todas as iniciativas de relembrar ou tentar o
contato entre eles partem de Nagg e, para nós, ele é que tem “a magia” de transformar a dura
realidade em “um suspiro”. Este “caminho” vai se desenvolvendo ao longo do espetáculo, a
transformação de uma bolinha de sabão em cristal, a mudança de um pinico em um vaso de
flores, a metamorfose de um bicho de espuma em um monstro aterrorizante para defendê-los,
a transfiguração de uma chama de fogo em uma flor e do lenço branco em lenço preto,
significando a entrega de si mesmo à morte, e a ação de dar o lenço de luto para Clov, para
132
que ele busque, através da magia, uma solução para suas questões. No figurino, Nagg utiliza
uma cartola, acessório que remete à figura do prestidigitador.
Ainda em JOGUETE, o circo também influenciou a recepção do público ao
teatro, feita por um clown que, como nos circos modernos, recebe e encaminha o espectador
para a sala de espetáculo.
No espetáculo GODÔ, também utilizamos a paródia de alguns números, como
malabarismos, prestidigitação, arame e doma e, para a intervenção cuja inspiração vinha do
personagem do menino, utilizamos um boneco que descia do teto em um trapézio,
acompanhado pelo som de um “sino de vento” e com um bilhete preso nas mãos. No segundo
ato, o boneco nem entrava em cena, escutava-se o som do “sino de vento”, e o bilhete caía do
teto.
Em TRATTORIA, não utilizamos outros elementos além do patrão, mas foi na
estrutura do espetáculo circense que nos inspiramos para construir a do nosso espetáculo: uma
seqüência de cenas/números de tensão, entrecortadas por cenas que provocam o riso.
Estas foram as influências do circo nos espetáculos, todavia, achamos
importante comentar que aproveitamos as visitas aos circos para conversarmos com os
clowns, sabermos sobre a tradição circense e o processo de trabalho. Em alguns circos,
tivemos visitas e conversas curtas e diretas, mas no circo Sarrasane, fomos recebidos
diferentemente. Além de vermos os ensaios de todos os palhaços (eram três), o palhaço mais
antigo nos deu uma entrevista e a diretoria nos cedeu um espaço para nos apresentarmos na
noite seguinte, fazendo uma “reprise” - conforme chamavam as entradas dos palhaços.
Abrimos um parêntesis para dizer que, neste circo, como em muitos circos brasileiros, o
clown Augusto era chamado de Excêntrico – segundo Burnier, o Augusto ficou conhecido, no
Brasil como Excêntrico ou Toni Excêntrico, enquanto que o Branco recebia o nome de
Clown. Os nomes de Excêntrico e Clown também são utilizados por Roger Avanzi e Verônica
Tamaoki, no livro “Circo Nerino”, onde se referem aos tipos de palhaços do circo e como são
classificados. Muitos são os nomes dados para classificar os tipos de clown, mas o mais
importante é saber que há sempre o “elegante e inteligente” e o “mal vestido e estúpido”,
quaisquer que sejam os nomes atribuídos para as duplas de clowns, a estrutura é sempre a
mesma.
Depois de comentarmos sobre as influências do circo nos espetáculos, partimos
para outra peça do complexo que também imprime sua marca nestes, o cinema mudo.
III.2.2. O Cinema Mudo
133
Figura 23– Foto: Léo Azevedo
No dia 22 de março de
1895, Louis Lumière apresentou a
“cinematografia” à “Societé
d’Encouragement aux Sciences”, em
Paris. A partir daí, o cinema começou a
ser efetivamente aprimorado, antes de
Louis as pesquisas eram tentativas
falhas.
Durante os primeiros
anos (1895 a 1925 ou 30), o cinema mudo recebeu o nome de “cinematografia”, ou seja,
“escritura do movimento”, pois tinha como principal característica o visual. Sem palavras ou
música, a cinematografia criou uma linguagem feita de ritmos, símbolos e mímica. Segundo
Pierre Leprohon, na época de sua invenção, a crítica acreditava que “[...] o cinema mudo seria
a forma embrionária de uma arte – ou melhor, de uma expressão [...]”
36
. Esta visão sobre o
cinema acontecia porque os artistas daquela época se dedicavam a dar a esta linguagem tal
grau de perfeição em seu modo de comunicar que, quando vemos estas obras, ainda hoje
deparamo-nos com cenas que nos prendem a atenção.
Por volta de 1896-97, Lumière começa a utilizar a cinematografia para registrar
cenas da vida e a apresentá-las no “Grand Café”. Para Louis, a cinematografia era um
testemunho da vida do ser humano. Mas as apresentações das cenas registradas e levadas a
público se tornaram populares e os artistas do music-hall perceberam que o aparelho poderia
não somente ser usado para a ciência, mas para a arte. Os artistas viram que, naquele
aparelho, podia-se criar uma ilusão, um espetáculo.
Desde então, o cinema mudo tornou-se um meio de difusão de espetáculos de
variedade, tanto que, na época, surgiu a definição de que “O cinema mudo é a arte de cunhar,
fixar e difundir a pantomima”
37
e, em pouco tempo, veio a ser um prolongamento do teatro.
Esta maneira de utilização da cinematografia se desenvolveu por algum tempo, de 1898 a
1908, mas os pesquisadores do cinema queriam mais. Eles queriam descobrir as
características próprias desta arte, não se limitando somente a reproduzir um espetáculo
cênico de pantomima ou teatro mudo, mas produzir seu próprio “espetáculo”.
Assim, os artistas foram transformando seus números, os gestos foram
reduzidos em relação ao teatro, a pantomima e as expressões de fisionomia ganharam
134
importância. E, deste modo, os artistas do teatro de variedades passaram a se engajar nesta
nova arte.
Sem palavras, o cinema também se utilizava das habilidades dos artistas para
fazer seu próprio espetáculo. O gênero cômico ganhou espaço, e os artistas do teatro de
variedade juntamente com o absurdo das situações propostas como enredo das cenas
conquistaram este espaço.
Os filmes do cinema mudo apossaram-se de elementos circenses e, também, do
teatro do absurdo. Segundo Burnier, no cinema mudo, foi onde os clowns tiveram maior grau
de requinte, desenvolvendo uma técnica altamente apurada.
Em alguns filmes desta época, aparece a transposição de cenas do teatro do
absurdo para a “grande tela”, mostrando, muitas vezes, um aspecto de sonho ou pesadelo ou,
ainda, um mundo em movimento constante e sem objetivo.
Em 1914, Chaplin, que era um artista de teatro de variedades, foi absorvido
pela arte cinematográfica. Esta sua ligação com o absurdo e com o teatro de variedade pode
ser percebida em seus filmes, dentre os quais podemos citar como exemplo “Tempos
Modernos” e “Em Busca do Ouro”. Segundo Leprohon, Chaplin teve como mestre Max
Linder e enriqueceu o cinema mudo com sua experiência do music-hall inglês, ele
transformou essa “linguagem” em “disciplina/modelo”. Apesar de Chaplin ter sido seu
antecessor, foi através do sucesso de seus filmes e do seu estilo, que, segundo Pierre
Leoprohon, o trabalho de Buster Keaton, o clown que não ria, ganhou grande importância
como expoente do cinema mudo. Foi, tamm, a credibilidade de Chaplin, que revelou outros
grandes clowns do cinema mudo, como Harold Lloyd.
Nos filmes de Keaton, é possível perceber a semelhança com as obras de
Chaplin, principalmente, no tipo de humor, que mistura ingenuidade e habilidade, despertando
o riso e a piedade. Podemos citar como exemplos destas características visíveis, os filmes “A
General” e “Nossa hospitalidade”.
Para Leprohon, Chaplin e Keaton foram duas grandes personalidades do
cinema mudo, eles desenvolveram uma verdadeira “matemática” do humor, mostrando grande
inteligência e singularidade. Esta matemática criada por estes artistas era a soma de cenas com
grande plasticidade, intensidade dramática e imagens simbólicas, tocando o imaginário do
público através do visual e provocando as emoções em um determinado senso. Em seus
filmes, a pantomima do ator supera e sublima o silêncio da sua voz, os jogos de contraste
claro-escuro tomam o lugar das cores e os símbolos inseridos nas cenas tocam o psicológico
do espectador. Com simplicidade, destreza e habilidade, eles mostram a dificuldade do ser
135
humano de se relacionar com o mundo, sua organização e estruturação, onde o homem não
possui mais o controle de seu próprio espaço, ou seja, sua lógica é avessa à do mundo. Com o
cinema mudo e sua difusão “[...] nasceu uma consciência nova do mundo e das sociedades
que o povoam [...]”
38
.
Vemos claramente que as características de plasticidade da cena, imagens
simbólicas que tocam o imaginário e provocam emoções em determinado senso e a
pantomima do ator que sublima o silêncio da sua voz, são aspectos que buscamos alcançar em
nossos espetáculos.
Nos filmes de Chaplin e Keaton, percebemos que a falta de autoridade para
com a sua realidade faz com que tudo fique sob interferência do acaso, e esta característica, a
nosso ver, talvez seja uma generosa contribuição do cinema para fazer-nos compreender como
o acaso age no “destino” do clown. A ação do acaso sobre o clown é inegável, ele é
vulnerável a esta situação que ora lhe favorece, ora lhe coloca em “perigo”.
É necessário dizer que esta combinação entre o clown e o acaso é encontrada
com intensidade no cinema mudo e no desenho animado, talvez, porque têm mais recursos
para mostrá-la. O acaso também é encontrado nos personagens do teatro do absurdo, eles
vivem “condenados” a seu destino. Esta visão pessimista de condenação acaba por restringi-
los à posição de “inércia”, pois estes personagens se entregam totalmente passivos à ação do
acaso. No entanto, o clown vive ao “sabor” do acaso, o qual encaminha seu destino. Através
desta postura, ele acaba sendo ajudado pelo mesmo, é como se ele não “trancasse” o fluxo
natural dos acontecimentos, agindo em conjunto com ele. Compreendemos, então, que o
clown é passivo/ativo em relação à ação do acaso. A passividade com que o clown o recebe é
diferente daquela com que os personagens do teatro do absurdo o recebem, com ele, por mais
que o acaso o coloque em aparente perigo, dá-se sempre uma solução. Segundo Bernard
Faivre, pesquisador francês respeitado no que diz respeito a jogos burlescos e farsas, esta
solução acontece porque o clown se deixa levar pelo mesmo, atua nele e com ele. O clown
sabe usar o acaso a seu favor.
O clown, segundo Burnier, mantém sua relação lúdica com tudo o que o
envolve e tudo isso joga com ele e, em conseqüência, o mesmo vem a ser um jogo nas mãos
do acaso. Tudo o que lhe acontece é por conta deste jogo, os acontecimentos se desenvolvem
como uma sucessão de causas e efeitos que escapam ao seu controle e toda a sua desgraça e
felicidade são resultados dos jogos de acasos que lhe acontecem.
Como exemplo desta maneira do clown integrar-se às situações trazidas pelo
acaso, podemos citar o filme “Em busca do ouro” de Chaplin. Numa análise realizada na
136
disciplina “Farce et Jeu Burlesque” do departamento de “Arts du Spectacle” da Universidade
de Paris X, ministrada pelo Dr. Bernard Faivre, percebe-se que o clown “acolhe” o acaso
sempre no seu aspecto positivo e isso faz com que, involuntariamente, ele facilite o acaso a
lhe ajudar. Em “Em busca do Ouro”, Carlitos é um “pobre homem” solitário, toda a sua luta é
para conquistar seu grande amor e, através de sua ingenuidade, o acaso acaba transformando-
o num milionário muito amado. Neste filme, nós podemos perceber que o acaso é o principal
aliado do clown, permitindo-lhe a sobrevivência fora de sua lógica própria.
Ao longo dos filmes de Chaplin e Keaton, podemos pontuar uma variedade de
acasos, desde pequenos detalhes na construção da sucessão dos fatos, até grandes catástrofes.
Buster Keaton e Charles Chaplin, antes de entrarem para o mundo do cinema,
eram atores do teatro de variedades, possuíam habilidades circenses e um total domínio do
corpo. Seus filmes são plenos de poesia, críticas sociais, sentimentos sublimes e grotescos. Os
clowns dos filmes destes artistas são dignos de despertar a piedade e a chacota no espectador,
característica inerente a qualquer clown.
Utilizamos como exemplos os filmes de Chaplin e Keaton, porque como já dito
eles possuíam técnicas de circo e levaram estas técnicas para o cinema. Nos números
circenses, o acaso atua revelando as habilidades do ator, isto é, o clown se prepara para fazer
um salto perigoso e não consegue, mas quando alguém lhe dá um pontapé, ou quando
escorrega numa casca de banana, ele executa o número. Esta maneira de mostrar as
habilidades do ator de maneira que pareça casual, sem a intenção de fazer, foi levada do circo
para o cinema mudo.
Os perigos pelos quais Carlitos passa são numerosos, mas ele sempre possui
uma solução, que de uma maneira ou de outra o satisfaz, quer dizer, ele adapta sua
necessidade à situação momentânea e, assim, consegue sobreviver a ela. Na primeira cena do
filme, aparecem inúmeros garimpeiros que seguem a trilha do ouro de maneira sofrida e, logo
em seguida, mostra Carlitos, numa trilha totalmente diferente e possivelmente mais difícil, já
que não é utilizada por outros garimpeiros. Ele segue sem nenhum mantimento ou
equipamento, a não ser sua bengala e um papel com as anotações dos pontos cardeais e,
conforme o abre, segue para um dos lados, sem se preocupar se aquele é mesmo o sul ou o
norte. As cenas dos garimpeiros e de Carlitos são mostradas em seqüência e servem para
comparar as diferentes maneiras de “levar” a vida e introduzir o espectador no universo que o
filme apresenta.
Na cena seguinte, Carlitos continua subindo a montanha e no caminho tem uma
encruzilhada. Sem que ele perceba, um urso sai de dentro de uma caverna e o segue por um
137
bom tempo, quando Carlitos passa por outro cruzamento de caminhos, o urso pega também
outro caminho diferente. Nesta cena, Carlitos está tão compenetrado em seguir seu “mapa”,
que nem percebe o perigo que se aproxima. Aqui, é anunciado ao espectador como o filme irá
se desenvolver, o perigo se aproxima e se afasta de maneira casual, Chaplin sempre segue o
fluxo natural das coisas, agindo junto com ele.
O acaso segue agindo e levando Carlitos para seu destino. Seguindo o seu
mapa, ele anda por um caminho desconhecido. A cena seguinte revela ao público um outro
personagem, Big Jin, que está em seu acampamento, no qual encontra uma grande pepita de
ouro. A impressão que temos é que Carlitos irá encontrar abrigo no acampamento de Big Jin,
mas não, ele chega no acampamento de Larsen, um perigoso ladrão, que, ao ouvir barulho,
pensando que poderia ser a polícia, sai pela porta da esquerda. Carlitos consegue entrar na
cabana pela porta dos fundos, encontra apenas um cachorro e senta-se ao lado deste. O vento
fora da cabana é tão forte que abre um furo na parede, perto dele, levando seu chapéu para o
outro lado da cabana, quando ele vai pegá-lo, encontra comida. Ele come “furiosamente” e
nem percebe Larsen se aproximar. Nesta cena, temos a intromissão do acaso num pequeno
detalhe, o vento “age” sobre o chapéu para que Carlitos encontre a comida.
Larsen faz algumas perguntas a Carlitos e vendo que ele não oferece perigo, o
expulsa, mas quando abre a porta da direita para que o mesmo saia, o vento é tão forte que o
impede de ir para fora. Quando Larsen resolve empurrá-lo, a porta da esquerda abre, fazendo
um corredor de vento e levando o próprio para fora da cabana. Esta mesma tempestade acaba
arrastando Big Jin de seu acampamento e o leva para a cabana de Larsen. Num jogo de
entradas e saídas, numa luta contra o vento e contra Larsen, Carlitos e Big Jin se conhecem e
é este que obriga Larsen a aceitá-lo dentro da cabana. Nesta cena, o acaso aparece como uma
força da natureza: impedindo Carlitos de sair, empurrando Larsen para fora e trazendo Big Jin
para junto do primeiro. A partir deste momento, Big Jin se torna seu protetor e, mais tarde, é
através dele que o mesmo se torna milionário.
Mas a amizade de Carlitos e Big Jin é ameaçada pela fome. Os mantimentos
acabam e alguém terá de sair para buscar comida. A tarefa é disputada num jogo de palitos,
onde o perdedor é Larsen. Neste momento, pensamos que a sorte está ao lado de Carlitos, a
comida, porém, demora para chegar e Big Jin começa a ter alucinações de fome, acreditando
que seu amigo é um suculento frango. Percebemos, então, um novo jogo do acaso e Carlitos
fica em grande perigo. Big Jin quer matá-lo para comê-lo e os dois entram num combate
físico.
138
Durante a briga, um cobertor cai sobre a cabeça de Carlitos por acaso,
impedindo-o de enxergar, mas mesmo assim ele luta valentemente com Big Jin, que veste um
enorme casaco de pele de urso. A briga está acontecendo, e um urso entra na cabana, Big Jin
foge assustado, enquanto Carlitos luta com o urso, pensando ser Big Jin. Quando consegue
tirar o cobertor da cabeça, fica tão assustado que seu impulso é pegar a arma e dar um tiro.
Desta maneira, eles têm comida para muitos dias. Nesta cena, o acaso ajuda Carlitos não
mostrando a realidade, pois se visse o urso, também fugiria e os problemas aumentariam, uma
vez que além de Big Jin ainda estar com fome, ameaçando comê-lo, ele ficaria sem o abrigo
da cabana, pois o urso estava dentro dela.
Poderíamos fazer uma descrição de todos os acontecimentos que envolvem o
acaso no filme de Chaplin “Em Busca do Ouro”, mas seria prolongar demasiadamente este
momento, então, deixaremos apenas os exemplos acima descritos.
Esta forma de “utilização do acaso” na construção da seqüência dos
acontecimentos e no desenvolvimento da peça nos deu inspiração para a elaboração de
algumas cenas dos espetáculos, e, posteriormente, buscamos a sua concretização através dos
jogos, da codificação e da recodificação, até chegarmos ao resultado delas, tais como estão no
texto cênico. Mas, como dito anteriormente, nem toda idéia é passível de ser concretizada,
principalmente, quando se trabalha com um grupo de clowns, com os quais as respostas aos
jogos propostos podem ser e são, em sua maioria, avessas ao esperado; então, esta tentativa do
uso do acaso transformou-se nos detalhes, que muitas vezes passam despercebidos, mas se
olharmos cuidadosamente o conjunto, eles constituem a ligação entre vários pequenos
acontecimentos das cenas. Podemos descrever, em JOGUETE, uma destas tentativas de uso
do acaso.
Na cena em que Nagg (clown Espiga) e Nell (clown Pelúcia) apresentam o
número circense da pulga amestrada, ela foge em direção aos pés de Clov (clown Zimborrão).
Algumas cenas depois, Clov, após ser humilhado por Hamm (clown Bonna Bonacha), deita-se
ao lado deste e começa a sentir uma coceira que começa no pé e sobe pelo corpo todo. A
pulga pula de um corpo para outro, incomodando Hamm. Porém, quando a pulga está
“mordendo” Hamm, este pede para Clov o ajudar na captura. Enquanto o outro se debate para
matar a pulga, Clov descobre que ali se apresenta uma maneira de se vingar fisicamente dele,
sem que demonstre abertamente sua vontade, e aproveita para “ir à forra” batendo avidamente
em Hamm. Até que este, percebendo a “rebeldia” de Clov, retoma o comando da situação.
Então, a pulga, como numa espécie de castigo, volta para o corpo de Clov, que consegue
pegá-la depois de muito se debater. Seu impulso primeiro é de matá-la, o que constitui uma
139
tentativa de desculpar-se com Hamm. Esta seqüência de cenas é uma tentativa do uso do
acaso, ainda que de maneira sutil. Quando a pulga foge do número circense, ela poderia pular
para qualquer direção, mas vai em direção a Clov, para depois continuar sua intervenção
ajudando-o a se vingar de Hamm, de alguma maneira. A cena do número circense surgiu da
necessidade de criar uma “desculpa” para a existência da pulga e como o casal, Nagg e Nell
tem ligação com o mundo circense, que no espetáculo simboliza um mundo onde a vida ganha
certo “romantismo”, é deste mundo “vivo” que ela parte para interferir no universo
contrastante, frio e cruel de Hamm e Clov e acaba sendo “assassinada”. No texto de Beckett,
quando Clov avisa a Hamm sobre a existência da pulga na casa, este pensa que ela é a
possibilidade do homem e do mundo “revigorarem-se” e, a partir desta reflexão, ele a vê
como uma ameaça, concluindo que o melhor que há a fazer é matá-la. No espetáculo, os dois
chegam a esta mesma conclusão, porém, por questões diferentes, e matam-na com requintes
de crueldade que só uma tradicional gag feita por clowns pode oferecer.
O exemplo descrito acima, pode ser conferido no DVD destinado ao
espetáculo. As cenas que nos referimos, da pulga com Nagg e Nell, aparecem no sumário
nominadas de “Comentários” e “Causos”. A cena em que a pulga aparece com Hamm e Clov,
no DVD, tem o nome de “Possibilidades” - cena que contém a tradicional gag da pulga, a que
nos referimos anteriormente. Aproveitamos a relação entre a peça e o espetáculo, acima
citado, para fortalecermos a idéia de que os textos nos serviram de inspiração para a
elaboração dos roteiros e que os espetáculos não são uma montagens das peças.
Keaton, em seus filmes, também trabalha com o acaso. A destreza e a
habilidade com que ele enfrenta as correntezas de um rio em “Nossa hospitalidade” ou que
comanda a locomotiva “A General” são dignas de um bom acrobata que sabe se deixar levar
pelo fluxo dos acontecimentos (destino).
Em “A General”, Keaton quer muito ir à guerra para impressionar sua amada,
mas este pedido lhe é negado. Depois de várias tentativas de enganar o comandante para obter
a permissão, ele senta-se para descansar e acaba sendo levado, por acaso, para a guerra e é,
por acaso, que termina vencendo a batalha, tornando-se um herói. Uma vitória digna de um
clown que se deixa levar pela sucessão casual de acontecimentos.
Nos espetáculos, procuramos adotar esta maneira de conduzir a história. A
sucessão de acontecimentos que construímos para desenvolver o roteiro da peça e organizar o
espetáculo, fazendo a conexão entre os fatos, através do acaso, é inspirada na estrutura de
roteiros, criada por Chaplin e Keaton.
140
É necessário pontuarmos que não estamos afirmando que esta maneira de
organizar uma história/espetáculo foi inaugurada por Keaton e Chaplin, queremos dizer que
eles, nos filmes que dirigiram e atuaram, deixaram isto evidente e, foi a partir deles, que
percebemos esta atuação do acaso sobre o clown.
Também, foi a partir da observação e análise dos filmes destes artistas, que
tivemos a percepção do refinamento que a técnica de clown pode adquirir. Percebemos que
um clown pode trabalhar sem o contato direto com o público, característica do cinema, que
tanto Keaton, quanto Chaplin utilizavam. O olhar dirigido à câmera tem a mesma função do
jogo direto com o público. O momento em que o artista direciona o olhar para a
câmera/público é como se estivesse “pensando”, assim, ele joga esta reflexão para os que o
estão observando. Este modo de jogar com a platéia faz com que ela se sinta participando da
ação da cena, ela é o “catalisador” da ação, tudo é informado a ela, construindo assim um elo
entre a mesma e a situação. Este tipo de contato é adotado nos espetáculos, onde os clowns
participam ao espectador suas reflexões e decisões, então, através do olhar reflexivo ou
conclusivo, interagem com o público, colocando-o em parceria com toda a ação de cena. O
público, por sua vez, é colocado em situação “delicada”, ele participa das ações dos Brancos e
dos Augustos, ele se vê na ação do opressor e do oprimido, do esperto e do ingênuo, enfim, de
todas as situações, analisando-as de maneira diferenciada e criando em si uma dialética.
O cinema mudo também nos trouxe a compreensão de que é possível ter um
espetáculo de clown com um roteiro fixo, sem perdermos a improvisação. Nos documentários
sobre Chaplin e Keaton, percebemos o que Nair D’Agostini nos ensinava sobre as teorias da
improvisação dentro de uma partitura.
A arte do cinema mudo nos fez compreender o apuro e requinte a que um ator
do ofício de clown pode chegar, nos trouxe a percepção da importância da técnica, da poesia
da imagem, da música integrada à imagem, do contato com o imaginário do espectador,
direcionando a emoção em um determinado senso, e da importância do acaso para o clown.
Mas há outros elementos nos espetáculos que receberam influências do cinema
mudo ou, ao menos, nos inspiraram.
O figurino dos três espetáculos foi inspirado no cinema mudo, constituindo um
conjunto harmônico com vestimentas sóbrias, como ternos, casacas e casacos, cujas cores
compõem uma palheta de variações de branco, passando pelos diversos tons de cinza, azul,
bege, marrom e preto. Porém, Pozzo, de GODÔ, tinha a roupa inspirada no domador de circo,
e, em TRATTORIA, os clowns das cenas de intermezzi, tinham roupas de inspirações
variadas.
141
A iluminação de todos os três espetáculos, também é um conjunto harmônico.
Novamente, é conveniente ressaltar a exceção das cenas de alegoria de TRATTORIA. Todos
os três tinham a cor âmbar como luz principal, tentando dar a impressão de uma imagem
“envelhecida”, antiga, e queríamos, com isso, aparentar as imagens dos filmes do cinema
mudo. Mas cada espetáculo possuía uma pequena diferença: em GODÔ, além da luz geral
âmbar, tínhamos um foco branco para o trapézio que descia do teto, uma luz levemente
amarela no guarda chuva/ mastro central e uma segunda luz geral azul, para a noite; em
TRATTORIA, a âmbar e o azul intensificavam o “tom” sombrio da peça e contrastavam com
a iluminação colorida das cenas alegóricas; em JOGUETE, a iluminação âmbar se sobressaía,
mas tínhamos os focos das caixas de Nagg e Nell nas cores azul e rosa, criando a atmosfera de
sonho e, posteriormente, na morte dos dois, era utilizada uma luz com gelatina de cor
“lavanda”, as caixas tinham luzes interior de cor levemente amarelada, a peça tinha, ainda,
três focos de cor branca, um para Hamm, um para Clov e outro que fazia o corredor para este
sair da casa, as janelas, também, tinham foco âmbar.
A trilha sonora, em todos os espetáculos, foi escolhida cuidadosamente, sempre
com inspiração no cinema mudo e no desenho animado, mas estaremos dedicando um espaço
a esta influência, posteriormente. A música fazia parte da atmosfera e da ação das cenas, ora
intensificando, ora causando distanciamento, este último ocorria, principalmente, nas cenas
alegóricas de TRATTORIA. Nos filmes do cinema mudo, pode-se perceber que, nas cenas
cômicas, o ritmo ganha uma aceleração, é claro que devemos levar em conta a maneira como
o cinema era feito naquele tempo. Contudo, quando observamos os filmes daquela época,
percebemos que, mesmo com as limitações de tecnologia, há variação nos ritmos das cenas.
Quando a cena é dramática, ela necessita de um tempo/ritmo mais lento e quando possui
caráter cômico, ganha um ritmo mais acelerado. Chekhov, na obra “Para o Ator”, ao falar
sobre o ator do gênero cômico, já sublinhava que este gênero necessita de um ritmo
“acelerado”, diferente das cenas dramáticas. Era assim que analisávamos o ritmo dos
espetáculos, criando uma seqüência de cenas com diferentes ritmos, de acordo com a situação
proposta. Então, nos espetáculos, as cenas de caráter cômico, tinham um ritmo acelerado em
relação às outras que traziam uma dramaticidade densa, e isso era intensificado pelas
diferentes músicas que compunham a trilha sonora. As cenas que fazem parte dos intermezzi,
de TRATTORIA, são exemplos facilmente identificáveis. No que diz respeito à trilha sonora,
tanto em GODÔ, quanto em TRATTORIA e em JOGUETE, tínhamos como principal
objetivo não antecipar, nem ilustrar as situações, mas deixar que ela fizesse parte da ação da
cena e interagisse com esta na construção do texto cênico.
142
Mas, a nosso ver, o cinema mudo teve uma grande contribuição para
TRATTORIA: observando os clowns do cinema, foi decidido que, naquele espetáculo, os
atores não usariam a máscara – o nariz vermelho. Pensamos nos clowns do cinema e
decidimos nos aproximarmos ainda mais deles, pois vimos que, embora eles não usassem o
objeto, a “máscara”, todo seu trabalho físico era calcado num corpo expressivo. O resultado,
que pode ser observado no DVD de TRATTORIA, é um trabalho físico baseado no uso da
máscara, no estado de clown, mas sem o “objeto”, o que trouxe para nós uma ótima
experiência do trabalho de máscara e seu “estado”.
As características acima citadas (trilha sonora, iluminação, figurino e ritmo)
são elementos dos espetáculos que tiveram inspiração no cinema mudo e podem ser
observadas nos registros filmográficos e fotográficos, gravados nos DVDs dos espetáculos.
Antes de finalizarmos, não podemos deixar de mencionar outros filmes que nos serviram de
inspiração e que nos fizeram perceber outros aspectos da tradição do teatro de variedades, do
absurdo e do circo. Os filmes de Laurel e Hardy, Karl Valentin, Jacques Tati, Irmãos Marx,
entre outros, possuem suas relações com o clown e com os espetáculos, pois a ingenuidade, o
absurdo e a habilidade destes artistas também satisfazem o desejo humano de brincadeira.
Reconhecemos uma espécie de fio que aparece na tragédia, com o mimus da Antigüidade,
passando pelos jograis e bobos da Idade Média, se reconhece nos Zanni e Arlequini da
commedia dell’arte, emerge com os cômicos do teatro de variedades e abriga-se nas comédias
do cinema mudo em figuras como Chaplin e Buster Keaton. Posteriormente, com o cinema
falado, os clowns ganharam espaços para explorar a linguagem e os Irmãos Marx
desempenharam esta função com maestria. Groucho, Chico e Harpo Marx, além de explorar
as habilidades humanas, também exploravam o nonsense verbal. Isto, porém, é assunto que
cabe a outro “recorte”, vamos nos manter dentro do viés do cinema mudo.
Talvez, as características pertencentes ao cinema mudo, citadas acima, não
sejam percebidas em nossos espetáculos pelos olhos dos espectadores, mas nos vemos com a
possibilidade e obrigação de dizer as fontes que nos inspiraram para que fossem construídos.
Por outro lado, talvez, seja redundante falar desta influência nos espetáculos GODÔ,
TRATTORIA e JOGUETE, já que os tipos de gags e o ritmo acelerado da grotesca comédia
do cinema mudo têm origem nas outras casas que o clown habitou até ganhar um lugar na
“tela mágica”.
Partiremos agora para outro elemento que influenciou os espetáculos
resultantes do processo de encenação aqui apresentado e que, também, se utiliza de um meio
de difusão diferenciado, o desenho animado.
143
III.2.3. O Desenho Animado
Figura 24– Foto: Léo Azevedo
Tal como o cinema mudo, o
desenho animado foi muito influenciado pelo
teatro de variedades, pelo teatro do absurdo, pelo
circo e pelo próprio cinema mudo. A animação
traz com ela algumas características herdadas
destes outros meios e são estas características em
comum que nos influenciaram na construção dos
espetáculos.
O desenho animado faz parte da história da descoberta da cinematografia, e
devemos lembrar e sublinhar que sempre que falamos de “desenho animado” ou “animação”
estamos nos referindo, também, ao seu instante primeiro, que é o desenho no papel. Não há
como ignorar o desenho em quadrinhos, local de onde a animação surgiu e que contém todos
os seus princípios. Segundo Leprohon, as primeiras tentativas de registro da imagem em
movimento foram em desenho, depois, Lumière inventou a cinematografia e, a partir daí, o
cinema progrediu. Com a evolução do cinema, o desenho o seguiu e o acompanhou
evoluindo, também, progressivamente. Através do desenho dos personagens, é criada a
movimentação e o desenrolar de uma história. Porém, como esta arte é “desenvolvida” por
personagens irreais, pode-se assim ter situações fantásticas, criadas e baseadas em um
surrealismo e um nonsense elevados a grandes potências.
O desenho animado cômico é, sobretudo, baseado no absurdo e no surrealismo,
onde o mundo criado não tem as mesmas características do mundo real. Numa história
contada por desenho animado, podemos encontrar situações inverossímeis, inesperadas e
exageros, tais como encontramos nas gags circenses, nos números do teatro de variedades,
nas cenas alegóricas ou com aspecto de sonho do teatro do absurdo e do cinema mudo, porém,
na animação, o potencial para extrapolar a realidade é muito maior que em todas as outras
linguagens citadas, pois se trabalha com desenhos, não com pessoas, e os truques são muito
mais acessíveis e compatíveis com os mesmos.
Podemos dizer que o desenho animado tem maior possibilidade de
“concretizar” aquilo que a imaginação cria. Num desenho animado os animais falam como
pessoas e possuem expressões faciais de emoções, que o cinema, quando trabalha com
animais de verdade, nem com todos os artifícios da tecnologia consegue chegar. Por mais que
144
o cinema avance e pratique a mistura entre gente e computação, ainda é no desenho animado
que a imaginação ganha maior concretude e liberdade.
O desenho animado desperta o imaginário do espectador. Quando alguém senta
para assistir um desenho animado, já se disponibiliza para entrar nummundo paralelo”, sabe
que deverá compreender a história com outras referências de realidade. Esta capacidade de
fazer com que o público aceite e compreenda outra realidade, tocando-o no imaginário, é,
também, característica do circo, do teatro de variedades, do cinema mudo e do teatro do
absurdo. Nós tentamos levar esta capacidade de integrar o espectador a um outro mundo às
características dos espetáculos construídos. Lembramos que podemos dizer que todo teatro e
cinema têm o intuito de colocar o espectador em contato com outra realidade e tocar seu
imaginário, mas o que destacamos é que: o circo, o teatro de variedades, o cinema mudo, o
desenho animado e o teatro do absurdo fazem isso se utilizando da quebra da lógica comum,
sem buscar uma justificativa para tal. Nestas linguagens, a noção de “realismo”, em que se
deve reagir ao inverossímil, negando-o, é desconstruída, e o espectador aceita e “joga” com o
nonsense, com o absurdo e com o impossível – esta é a principal diferença.
O desenho animado, tal como o cinema, tamm se tornou uma linguagem com
características próprias. No seu irrealismo, temos uma libertação dos aspectos fantásticos de
nossa condição, esta linguagem trabalha diretamente com os aspectos lúdicos do ser humano,
mas isto não quer dizer que não sejam trágicos. Não estamos falando da tragédia como
gênero, mas como situação. Através da ludicidade, brincamos com a trágica situação de
sermos humanos, rimos e superamos a morte e o tempo, instituímos uma ligação com nossos
anseios e desejos de vencer as barreiras da condição humana. Nesta linguagem, um piano,
uma bigorna, um prédio inteiro podem cair sobre o personagem, que ele sobrevive e, dessa
forma, nos vemos espelhados neste sobrevivente, tal como nos vemos espelhados no Augusto
que apanha do Branco, ou no clown que sobrevive às intempéries do acaso. Todavia, não
estamos afirmando que toda situação ou história de desenho e animação contém estes
elementos, nossa afirmação é de que identificamos nesta linguagem características recebidas
de outras áreas. Na verdade, o desenho animado nos inspirou, tocando nosso imaginário
através do lúdico, na idéia de cenas para os espetáculos; posteriormente, é que fomos fazendo
a inter-relação desta linguagem com as outras influências pertencentes ao complexo formador
do processo de encenação dos espetáculos em questão.
Alguns efeitos do desenho animado são retirados de gags circenses, porém,
nesta linguagem, os personagens têm a possibilidade de torná-las mais exageradas, de
145
extrapolar os limites, devido aos recursos da tecnologia e pelo fato de não serem pessoas. A
seguir, destacaremos alguns exemplos participantes do efeito cômico no desenho animado
39
:
Hipérbole progressiva – onde a ação é progressivamente intensificada, chegando no absurdo
ou a própria ação absurda é intensificada. Ex.1: Um personagem prega, com o martelo, um
prego na parede. Na primeira tentativa, acerta o dedo indicador, grita, chora e volta a tentar;
na segunda tentativa, bate no dedo polegar e assim por diante, até acertar todos os dedos das
mãos. Ex. 2: Um personagem caminha pela rua, de repente, uma bigorna cai na cabeça dele,
depois um carro, depois um prédio, depois um navio e, por último, um avião. -- Este tipo de
jogo é muito utilizado nos quadrinhos e na animação, aqui, nós, espectadores e leitores,
enfrentamos a dor e a morte através de uma situação lúdica e cômica.
Incompatibilidade de conteúdo – geralmente, está ligada à hipérbole progressiva. É quando
um personagem retira de um pequeno espaço, uma grande quantidade de objetos. Ex. 1: Do
bolso, um personagem retira sua carteira, depois um cofre, depois um banco e depois um
esquadrão da polícia. Ex.2: De dentro de um carro pequeno sai o motorista, depois sua esposa,
depois seus dois filhos e depois um time de futebol ou uma multidão. – Nesta situação, nós,
juntamente com o personagem, estamos extrapolando a lei da física, de alguma maneira,
superamos os limites que nos são impostos pela realidade e pela nossa condição.
Reparação imediata do corpo – quando um personagem é mutilado, ou sofre um acidente,
após o impacto da ação, seu corpo se regenera facilmente. Ex.1: Depois de cair num
precipício e ficar achatado no chão, o personagem coloca o dedo na boca, assopra com força e
seu corpo retoma sua forma normal. – Aqui, nos vemos enfrentando e vencendo o maior medo
do ser humano, aquilo que lhe confere o “título” de vulnerável: a morte
Assimilação corpo/objeto – onde o personagem toma a forma do objeto. Ex.1: Quando um
piano cai sobre um personagem, ele aparece sorrindo e sua dentadura é o teclado do piano.
Ex.2: Quando um personagem quer correr rapidamente e seus pés se transformam em
foguetes. – Aqui também entramos em contato com o desejo de extrapolar a triste condição e
limitação do ser humano.
Os jogos de imagens, citados acima, no desenho e na animação, são colocados
em contextos brincantes, que acabam por apresentar as situações de maneira lúdica, mas isto
não indica que eles não tragam em si as questões que dizem respeito aos questionamentos do
homem, os quais são ligados à trágica condição de “ser” humano. O lúdico também é uma
necessidade do homem, através da brincadeira é possível questionar e relativisar nossos
valores nossa condição.
146
No circo, estas tradicionais gags circenses são utilizadas com menos exageros,
pois são seres humanos que as apresentam, porém, através de alguns recursos, do jogo e do
lúdico, os clowns conseguem extrapolar a lógica e a realidade comum.
Mas, a principal característica do desenho animado, que se integra ao processo
de encenação, é a reação física aos acontecimentos. Esta característica, como visto no
primeiro e segundo capítulos, faz parte da técnica do clown, herança deixada pelo mimo.
Porém, foi através da apreciação de quadrinhos e animação, que tivemos consciência da
reação “físico-corpórea” que o ator do ofício de clown deve ter.
No livro “A Arte Secreta do Ator”, Barba destaca as oposições que o corpo do
ator deve ter, dando o exemplo das mãos do Pato Donald, desenho da Disney. Quando os
desenhistas fazem o desenho, ele é feito em etapas e sem animação e para tornar este desenho
interessante, é necessário criar tensões no corpo dele, para que ele passe, visualmente,
determinadas situações sofridas pelo personagem. Estas tensões são realizadas através das
oposições do corpo.
No desenho animado, todas as situações são passadas através do visual, ou
melhor, do registro de determinada situação/ação no corpo do personagem. Os corpos dos
personagens do desenho animado têm a precisão de um gesto feito por um mimo. É também
com a intenção de assimilar esta maneira de reagir às ações sofridas e termos um “desenho
definido” das ações e reações, que, durante o processo de descoberta do clown, assistimos a
vários desenhos animados. Desta forma, quando no processo de descoberta do clown fazemos
o trabalho de mantê-lo no limiar entre realidade e imaginário, o ator integra ao seu corpo,
naturalmente, os elementos trazidos pelo desenho animado e, através da codificação, são
aperfeiçoados para a cena. Tanto GODÔ, quanto TRATTORIA, ou JOGUETE possuem a
preocupação de desenhar o gesto/ação do ator no espaço da cena. Na verdade, esta
característica foi percebida no desenho, e fomos buscar as ferramentas, para utilizá-la, no
mimo.
No desenho animado, também, encontramos e observamos as relações de
várias duplas clownescas. Ele adota o perfil do Branco e do Augusto para a criação de vários
personagens cômicos, que se encontram, se estabelecem como dupla e, a partir daí, a relação
entre inteligência e estupidez, mandão e mandado, esperto e ingênuo, sonhador e cruel,
sempre aparece como elemento infalível para a construção de um bom desenho cômico.
Os personagens criados com inspiração clownesca trazem com eles alguns
princípios dessa linguagem, pois, em sua maioria, são figuras portadoras/causadoras do riso,
da tomada de consciência e inquisidores da condição humana. Porém, ganham um caráter
147
lúdico, que é típico da animação e que constitui uma das características que procuramos levar
para os espetáculos GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE.
Apesar de tentarmos ordenar a inter-relação das influências que fazem parte do
complexo formador do processo de encenação apresentado nesta dissertação, é preciso dizer
que o que percebemos é que eles fazem parte de um processo cíclico de referências onde um
meio “alimenta e alimenta-se” do outro e todos “alimentaram” um processo de encenação.
Sob nosso ponto de vista, há sempre uma busca pela evolução e um retorno à origem. Para
nós, o circo, o teatro, teatro de variedades, o cinema mudo, o cinema, o desenho e a animação,
a interseção existe e os caminhos que se cruzam têm como principais agentes o riso, o cômico
e o clown.
Assim terminamos este capítulo, reafirmando que os esclarecimentos sobre os
elementos que fizeram parte do complexo formador do processo de encenação, os quais
trazemos para a realização de uma reflexão sobre seu encaminhamento e resultados, não são
uma justificativa dos mesmos, pois pensamos que estes elementos se justificam no próprio
histórico do clown, do riso e da evolução da história. Trata-se de uma afirmação dos mesmos
como agentes que “construíram” e cooperaram nos espetáculos GODÔ, TRATTORIA e
JOGUETE.
Para obtermos uma visão mais completa do processo elaborado e do
encaminhamento da construção dos espetáculos supracitados, no Capítulo IV, será exposta a
concepção dos espetáculos e algumas informações adicionais sobre os mesmos, que
acreditamos contribuir para a realização da reflexão proposta nesta dissertação.
NOTAS
1
ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 11
2
Ibidem, p. 20
3
Ibidem, p. 21-22
4
Ibidem, p.277
5
Ibidem, p.278
6
Nonsense, segundo o dicionário Grande Robert de la Langue Française, quer dizer de “caráter absurdo e
paradoxal”, movimento que teve grande desenvolvimento nas artes narrativas, como a literatura e o cinema e tem
como maior expoente da literatura britânica, Levis Carrol. Segundo Esslin, o nonsense é uma tentativa de
transcender os limites do universo material e sua lógica.
7
No dicionário encontramos a seguinte definição: [Do gr. allegoría, pelo lat. allegoria.]. S. f. - 1. Exposição de
um pensamento sob forma figurada. 2. Ficção que representa uma coisa para dar idéia de outra. 3. Seqüência de
metáforas que significam uma coisa nas palavras e outra no sentido. 4. Obra de pintura ou de escultura que
148
representa uma idéia abstrata por meio de formas que a tornam compreensível. 5. Simbolismo concreto que
abrange o conjunto de toda uma narrativa ou quadro, de maneira que a cada elemento do símbolo corresponda
um elemento significado ou simbolizado. – Acreditamos que todas estas definições de alegoria, com certo
cuidado com os itens 4 e 5, são válidas para o teatro do absurdo. Entendemos que as cenas alegóricas fazem
parte da atmosfera do nonsense.
8
CHEKHOV, Michael. Para o ator. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 160
9
Ibidem, p. 60
10
Tradução: “Por tanto, las preocupaciones y acciones de los seres humanos no tienem ningúm significado, ya
que carecen de una finalidad última.” WELLWARTH, George E. Teatro de protesta y paradoja. Barcelona:
Lumen, 1974, p.63.
11
CAMUS, apud ESSLIN, 1968, p. 19
12
Tradução de Lis Mireia Santanché: “Ritroviamo queste coppie in Laurel e Hardy, Vladimir e Estragon do
"Aspettando Godot” di Beckett; l’uno più forte dell’altro nella loro assurda gerarchia”. VIGANÒ, Antonio.
Nasi Rossi il clown tra circo e teatro. Italia, Montepulciano: Del Grifo, 1985, p.64.
13
Ibidem, p. 42
14
Encaramos o teatro de variedade como um espetáculo em que vários artistas se apresentam mostrando suas
habilidades, sejam elas na poesia, malabarismos, prestidigitação, dança, canto, etc., como no music hall, ou no
vaudeville.
15
Fala de Vladimir em “Esperando Godot” de Samuel Beckett.
16
ESSLIN, op. cit, p. 22.
17
Ibidem, p. 22
18
ARTAUD Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 1-2.
19
Ibidem, p. 6
20
Ibidem, p. 7
21
Neste último caso, é necessário dizer que o nonsense se instaura na dificuldade de compreensão do receptor do
discurso. Acreditamos na relevância desta observação, mas não entraremos nas questões que tocam as teorias de
recepção, pois este assunto não possui enfoque neste processo de encenação e, também, nos fariam percorrer
outros caminhos, nos afastando do objetivo primeiro, que é a reflexão sobre o processo de encenação e seu
complexo formador.
22
ESSLIN, op. cit, p.28-29.
23
BENÍCIO, Eliene. Saltimbancos Urbanos: a influência do circo na renovação do teatro brasileiro das décadas
de 80 e 90. 1994. Tese (Doutorado), CA, Universidade do Estado de São Paulo, p.11
24
BOLOGNESI, Mario Fernando. Palhaços. Brasil, São Paulo: Unesp, 2003, p. 28
25
BENÍCIO, op. cit., p. 11.
26
Tradução de Lis Mireia Santanché: “Il Clown e L’Augusto sono prima di tutto una necessità all’interno del
Circo: i loro numeri permettono allo spettatore di respirare lo spettacolo normalmente.” VIGANÒ, op. cit., p.
23
27
BENÍCIO, op. cit., p. 35
149
28
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] rassemble les oeuvres qui s’efforcent de donner aux mythes, aux
peurs et aux rêves les formes où résonne l’indestructible par d’innocence des esprits et des coeurs [...] et
retrouvent et réinventent le mariage des plus hautes prouesses du corps et de la plus visible poésie. La alliance
de l’exploit et de l’allégorie fait le cirque.” LATARJET, Bernard. In: Le Cirque & Les Arts, Paris: Beaux Arts
SA. 2002, p. 2
29
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “De Flaubert et Barbey d’Aureville à Cocteau et Genet, de Daumier,
Degas, Seurat à Picasso, Léger, Calder, Dubuffet et Nauman; de Satie et Milhaud à Kagel; de Méliès et Chaplin
à Bergman et à Fellini, de Meyerhold à Dario Fo. Ibidem, p. 2
30
Este caminho percorrido pelo clown nas diferentes culturas, que Steele nos apresenta, é um panorama geral,
pois ele não discute os tipos de clowns, ele tem apenas a intenção de mostrar que houve um representante em
cada época e em cada cultura, sobrevivendo ao longo da história da humanidade.
31
Tradução de Lys Mireia Santanché: Nella seconda metá del secolo XIX, dopo la chiusura in Francia dei Teatri
di Pantomima, un bun numero di Mimi cercarono lavoro al Circo. Essi non erano acrobati come i Clowns che
lavoravano in pista, ma potevano ricompensare questa insufficienza com le loro qualità di danzatori.
Naturalmente il loro arrivo all’interno del Circo influenzò l’ambiente. VIGANÒ, op. cit., p. 25
32
Tradução de Lys Mireia Santanché: Il clown è diventato un personaggio più preciso, rotondo e ingenuo come
alla sua origine ma oramai arrichito con una certa classe (...) Queste innovazioni, all’inizio solo tendenze, si
evolveranno fino ad entrare a far parte della realtà stessa del clown, cosi come si è sviluppata fino ai giorni
nostri. VIGANÒ, op. cit., p. 25
33
Tradução de Lys Mireia Santanché: “Il silenzio alimenta la parola, e il mimo esplode portando il “non detto”"
LECOQ, apud VIGANÒ, 1985, p.67
34
Tradução de Lys Mireia Santanché: “Molti clowns moderni sono partiti dal mimo.” LECOQ, apud VIGANÒ,
1985, p.67
35
Tradução de Lys Mireia Santanché: “Il mimo distribuisce cosi un fondo poetico comune riconosciuto nel
corpo. Perdendo il proprio nome trova cosi la sua vera dimensione in differenti direzioni drammatiche, tra le
quali il clown.” LECOQ, apud VIGANÒ, 1985, p.67
36
Tradução de Christine Nicole Zonzon : “[...] le cinéma muet était la forme embryonnaire d’un art – ou mieux
d’une expression [ ...]
37
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Le cinéma muet est l’art d’imprimer, de fixer et de diffuser la
pantomime.” Pagnol apud LEPROHON, Pierre. Histoire du Cinéma Muet. Vie et mort du Cinématographe
(1895 - 1930). Paris: D’Aujourd’hui, 1961, p.37
38
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] est née une conscience nouvelle du monde et des sociétés qui le
peuplent [...]”. Ibidem, p. 60
39
Os nomes dados aos exemplos foram extraídos do estudo sobre “Les Causalités du Rire, Chez l’Enfant” do
estudante Durieux Sicaire de Maitrise d’Arts du Spectacle – Paris VIII, Vincennes-Saint-Denis, p.30 e 31, mas as
explicações e exemplos são de nossa autoria.
CAPÍTULO IV – DAS ESCRITURAS: DA DRAMÁTICA À CÊNICA
“Compreender e analisar o texto e a cena é antes de tudo
(...) seguir o ator pelo pensamento e o sopro.”
Patrice Pavis
Figura 25 - Foto: Léo Azevedo
Este capítulo está destinado à exposição da concepção dos espetáculos GODÔ,
TRATTORIA e JOGUETE e ao acréscimo de informações sobre os mesmos. Através do
trabalho com o texto que origina o espetáculo, que abrange o estudo, não só da obra, mas
também dos dramaturgos, e do trabalho com o grupo participante do processo, este capítulo
objetiva relatar nossa concepção sobre o texto cênico, cujas primeiras “imagens” foram
originadas da leitura de um texto dramático, embora este esteja invisível no espetáculo, e, por
este motivo, é que ele recebe o nome de “Das Escrituras: da dramática à cênica”.
Até então, descrevemos como as teorias, conceitos, técnicas e influências se
relacionam e originam o complexo formador do processo. Neste espaço, estaremos
mencionando aspectos que dizem respeito ao caminho percorrido para a construção dos
espetáculos, porém os mostraremos a partir de uma visão mais pessoal.
Ao longo dos três capítulos anteriores, falamos sobre o clown, sobre a união
das teorias e práticas de Dario Fo, Lecoq e Burnier, nossos “pilares clownescos”; de nosso
trabalho com o texto e com os atores, sobre a relação do clown com o teatro do absurdo; dos
mestres que nos ensinaram a procurar nossos caminhos nos procedimentos adotados; das
outras linguagens que exerceram influência na encenação e na intertextualidade que os
espetáculos apresentam. Sempre falamos de maneira conceptual, neste momento, contudo,
abordaremos o processo numa forma mais geral e pessoal. Desse modo, as informações aqui
acrescentadas terão o aspecto de complemento daquilo que já está esmiuçado nos capítulos
anteriores. Também não faremos a descrição minuciosa dos ensaios, pois isto iria transformar-
151
se numa narração demasiadamente longa. Iremos nos deter somente em informações e
momentos que consideramos significativos para a reflexão do processo em questão.
Visto que os espetáculos foram criados a partir da leitura e análise de textos
dramatúrgicos, conforme explicações no segundo capítulo, dentre os quais dois são de Samuel
Beckett e um de Harold Pinter, estaremos, no primeiro momento do capítulo, destinando um
breve espaço para falarmos de nosso olhar sobre os dramaturgos, seus textos e nosso impulso
em direção a estes. A fim de não cansar o leitor, falaremos conjuntamente de nossas
considerações pessoais sobre os dois textos de Beckett (“Esperando Godot” e “Fim de
Partida”) e do próprio dramaturgo, para depois comentarmos sobre Harold Pinter e nossa
relação com sua dramaturgia.
No segundo momento deste capítulo, relataremos mais especificamente a
concepção de cada espetáculo e o grupo que esteve integrado ao processo, pois não podemos
esquecer que se o processo aconteceu, foi porque houve outras pessoas, além de nós, que
acreditaram nele.
Daremos início, então, às informações sobre nossos impulsos em direção aos
autores e a sua obra.
IV.1. Impressões e impulsões acerca da dramaturgia e dos dramaturgos
Figura 26 – Foto: Léo Azevedo
No caminho percorrido para a
estruturação desta dissertação, comentamos sobre as
peças participantes do complexo formador do processo
de encenação, porém, neste espaço, estaremos falando
de nossa relação com os textos escolhidos sob um
olhar ligado a nossa sensibilidade.
É necessário sublinhar que não se trata
de uma análise ou descrição da vida e da obra dos
dramaturgos, até porque os textos serviram de
inspiração para os espetáculos. Aquilo que lemos, nas obras de Beckett e Pinter, alimentou
nosso imaginário para respirarmos dentro de nosso processo de encenação e não nos
perdermos em meio ao processo criativo do ator e de montagem do espetáculo. Neste
momento da dissertação, temos a pretensão de expor nossos impulsos sensíveis para com os
propósitos do dramaturgo e da dramaturgia escrita, os quais direcionaram nosso olhar de
152
encenador durante os processos de montagem dos espetáculos. Pensamos que este momento é
importante porque, no plano técnico, ainda que não exaustivamente, já comentamos sobre as
relações entre as peças constituintes do complexo formador do processo de encenação, mas
sabemos que, embora possamos nos cercar de argumentos conceituais, todo e qualquer
impulso interno surge da união dos aspectos e acontecimentos que formam a história e a
vivência de uma pessoa. Então, é necessário falar de como o dramaturgo e sua obra nos
chegam aos olhos, através do filtro de nossa sintaxe, nos aproximando de um plano mais
sensível.
IV.1.1. Acerca de Beckett - dramaturgo/dramaturgia
Para nós, através de sua obra e de seus personagens, Beckett coloca o paradoxo
do ser humano em cena, tal qual o clown. Segundo Lecoq, “Beckett trouxe uma nova
dimensão ao clown, fazendo com que descobrisse os grandes suspiros da existência. Visto que
o herói trágico se tornou inacessível, o clown o substitui esperando”
1
, estas afirmações são
compartilhadas por nós e, de certa maneira, traduzem o sentimento que temos quando lemos
um texto de Beckett.
Léo Schlafman, no prefácio de “Molloy”, cuja autoria é de Beckett, descreve
este e sua obra como pessimistas e sombrios, mas também com humor revelado através de
seus personagens, na repetição de fatos, gestos e palavras, que mostram o quanto o ser
humano é ridículo, miserável e cômico. Comenta, ainda, que suas peças contêm muita
semelhança com o circo, ou melhor, com o lado grotesco do mesmo e iguala seus personagens
a heróis patéticos e palhaços que dão grosseiras cambalhotas e caem por terra.
Pensamos que foi a semelhança dos personagens de Beckett com os clowns que
nos levaram a criar imagens, pensar e acreditar na possibilidade de trabalhar um espetáculo
clownesco a partir de um texto dramatúrgico. Estes personagens trazem em si o paradoxo da
comédia e da tragédia andando lado a lado e suas peças contam, de maneira poética, a história
da sobrevivência e da condição humana, tal qual os assuntos abordados, de maneira jocosa,
pelo clown.
Beckett possuía ligação estreita com a filosofia e com o existencialismo, e isto
nós percebemos em seus textos, nos quais os personagens nos trazem questões que tocam o
âmago do ser humano. Para nós, sua dramaturgia é especial, ela revela aquilo que está por
debaixo da palavra, pois Beckett utiliza não só os diálogos ou monólogos, mas também as
153
didascálias para, através de indicações de movimentação ou silêncios, desvelar aquilo que o
ser humano tenta esconder, embora um olhar profundo e atento possa decifrar.
Quando Beckett diz, através do personagem Clov de “Fim de Partida”, “[...] os
grãos juntam-se aos grãos, um a um e quando percebemos é um monte... um monte
impossível!”, ele nos faz perceber que tudo acontece pouco a pouco, dia após dia, e quando
percebemos, já vivemos uma vida.
Outra questão que Beckett apresenta para a cena é o ser humano e sua natureza
contraditória e dialética. No palco, o homem se contradiz, se constrói e se destrói numa
mesma respiração. Através de seus personagens, principalmente, nos textos que nos
instigaram, e acreditamos que esta seja a principal razão de termos “Esperando Godot” e “Fim
de Jogo” como ponto de partida para a construção dos espetáculos, Beckett mostra que o ser
humano possui impulsos contraditórios na alma, podendo ser ele muito generoso ou
totalmente tirano. Pode-se ver tais oposições nas relações entre Hamm e Clov, ou entre Pozzo
e Lucky. Podemos afirmar que, nestas duplas, a tirania e a generosidade causam uma relação
de interdependência entre os personagens e que quando se diz que as duplas Pozzo / Lucky e
Hamm / Clov representam “o absurdo da exploração humana”, reproduzindo o protótipo da
relação patrão / empregado, opressor / oprimido, talvez seja uma visão bem mais leve daquilo
que Beckett quer mostrar. Para nós, os personagens de Beckett trazem uma escravidão que
não está ligada ao aspecto social ou político e sim a um aspecto sensível, onde sentimentos de
gratidão, culpa, generosidade, lealdade, fraquezas, amizade e amor tornam-se elos de uma
relação escravizadora e tirana. Esta mesma situação de “exploração” também é apresentada
pela dupla de clowns Branco - Augusto, e esta relação de poder sobre o outro acaba
representando os indivíduos, a sociedade e seu sistema. Mas acreditamos, e tentamos
transferir esta afirmação para nossos espetáculos, que esta representação e esta identificação
se dão por questões sensíveis e não políticas. Também os outros personagens das peças
possuem as características das duplas de clowns: Vladimir e Estragon, de “Esperando Godot”,
os quais tentam, mas não conseguem se separar, e Negg e Nell, de “Fim de Jogo”, que
necessitam da presença um do outro para sobreviverem ao universo de opressão em que
vivem. Por isso, acreditamos que não foi com intenção de fazer um discurso político que
Beckett escreveu seus textos, para nós, ele queria mostrar a “depreciável” condição humana e
suas relações. A capacidade e maestria deste dramaturgo em colocar “farrapos” humanos em
cena, tramando, numa mesma ação, a tragédia e a comédia, se iguala à capacidade que o
clown possui de demonstrar o “oposto complementar” entre o grotesco e o sublime.
154
A vontade de comandar, o poder de testar exaustivamente o limite do outro, de
se deixar levar pelas vontades do outro ou não conseguir se opor a estas, deixando-se
manipular, sem conseguir se desfazer da rede e dos fios que o prendem, são assuntos
abordados por Beckett e pelos clowns de maneira a desvelar as dialéticas relações humanas.
Beckett é tão minucioso nesta arte, que utiliza diferentes relações. Numa delas há a
interdependência por conta de uma cumplicidade e do compartilhamento de sentimentos, nem
que seja o de abandono, que sob nosso olhar é o que acontece com Nagg e Nell e Didi e
Gogo. A outra se dá através da chantagem emocional, da manipulação e da tirania, em que a
relação dos personagens pode ser vista como “parasita e hospedeiro”, que, a nosso ver, é o
caso de Hamm e Clov e Pozzo e Lucky.
Beckett, através de seus personagens, nos mostra a incapacidade e os fracassos
do ser humano. A busca incessante de Didi e Gogo, em “Esperando Godot”, por se ocuparem,
assemelha-se aos jogos de descoberta de possibilidades dos clowns. Os dois personagens
acham-se incapazes de fazer alguma coisa por eles mesmos, aguardam que a solução venha
através de Godot e o esperam infinitamente. Enquanto esperam, ocupam-se e, apesar da
aparente incompatibilidade que se cria entre eles, não conseguem se separar.
Em “Fim de Jogo”, as exaustivas tentativas de Clov para abandonar Hamm se
repetem ao longo da obra, e quando ele parece decidido a sair, despede-se e permanece
imóvel - algum motivo o impede de deixá-lo. Clov, em um de seus diálogos com Hamm,
comenta “[...] Disseram-me - mas isto é amizade! Disseram-me – é assim!”. No final da peça,
podemos dizer que, talvez, a imobilidade de Clov esteja de acordo com o pensamento que
permeava as mentes dos dramaturgos existencialistas, da Avant-Garde (e) do absurdo,
conforme esclarecimentos no capítulo anterior, de que a amizade e o amor sejam atos de
covardia, porque o mais generoso, aquele capaz de sublimar seu instinto em nome da amizade
e do amor, não consegue se libertar daquilo/daquele que o aprisiona.
Este “mecanismo” acontece com os personagens de “Esperando Godot” e “Fim
de Partida”, onde estes permanecem unidos, sem conseguir se separar, a não ser através da
morte. Mas até mesmo este ato, voluntariamente, não lhes é possível, eles têm de esperar o
fluxo das coisas, pois acreditam que estão “condenados” a este fluxo. As relações e
semelhanças entre absurdo e clown já foram comentadas no capítulo anterior, onde
comparamos estes dois universos, portanto pensamos não ser necessária a repetição destes
apontamentos, pois, com toda a certeza, as afirmações realizadas anteriormente são válidas
para os personagens dos dramaturgos e textos escolhidos.
155
Para decidirmos nos inspirar nas obras e nos “sentimentos” dos dramaturgos
em questão, além da semelhança entre os personagens de Beckett e os clowns, acreditamos
que foram nossas próprias inquietações como seres humanos e semelhanças, tanto com os
primeiros, quanto com os segundos, que nos levaram a considerar as obras como ponto de
partida para a criação dos espetáculos.
No primeiro capítulo, falamos da capacidade que o clown possui de fazer com
que o espectador se identifique com ele e, no terceiro capítulo, comentamos as relações entre
o clown e o absurdo. Acreditamos que as características mencionadas também possuem
semelhanças com nossa própria natureza, pois temos a sensação de sermos levados pelos
“jogo de acasos” e de sermos clods dentro de um universo que nos impõe uma linguagem e
uma estrutura que não faz parte de nós. Na verdade, o que nos “empurra” para a dramaturgia
do teatro do absurdo é a consciência de que, realmente, nada daquilo que está escrito é
absurdo, tal é nossa condição humana, presa numa estrutura previamente construída e
imposta. Talvez, os silêncios contidos nos textos de Beckett nos tragam as perguntas que
ecoam em nossa alma e, enquanto ele trabalha com o discurso e a desconstrução deste para
negar a eficácia da linguagem como meio de comunicação, nós, como crianças manhosas, a
negamos permanecendo em silêncio. Sabemos que, desta forma, não criamos os paradoxos ou
contrapontos através da linguagem, tal como Beckett o faz em seus textos, mas trabalhá-la e a
sua desvalorização através do próprio discurso, não é nosso objetivo, e esta característica da
dramaturgia foi mais um elemento que nos serviu de respiração para o processo. Negamos a
palavra discursiva com nosso silêncio. A ausência do verbo permanece, o silêncio e todos os
seus significados se instauram, as ações ajudam a preencher o tempo e o vazio e as grosseiras
cambalhotas dos personagens de Beckett se igualam às nossas tentativas fracassadas de nos
incorporarmos a uma realidade que não nos pertence.
Podemos afirmar que os “farrapos humanos” que Beckett coloca em cena não
são mais esfarrapados que nós mesmos e, na esperança de nos engrandecer, os representamos.
Crueldade de nossa parte ou necessidade de conforto? Não sabemos ao certo, mas
sacrificamos a imagem do clown para sanar nossas feridas e refletir sobre estas através de uma
gargalhada.
Esta identificação com os personagens de Beckett e, consequentemente, com o
clown nos causa uma reflexão sobre nós mesmos e, desejosos de compartilhar ou pedir
socorro, nos delatamos em cena.
156
Na verdade, nossas identificações e reflexões em torno do absurdo, do clown e
de nós mesmos nos impulsionaram para uma busca que se justificasse conceitualmente,
tecnicamente e praticamente, nos cercando de “defesas” e “disfarçando” nossa confissão.
Se pararmos para refletir sobre nossos atos cotidianos, veremos que: ora somos
Didi, tentando manter nossa dignidade e fidelidade a um propósito; ora somos Gogo,
implorando pelos restos de comida de um Pozzo-ninguém; ora nos comportamos como Pozzo,
tiranizando e impondo nossa tão “generosa e sábia” presença; outras vezes, somos Lucky,
quando vociferamos contra todos, mas não nos desvinculamos da rede que nos aprisiona;
também somos Hamm, buscando no sonho ou na morte uma possível solução para nosso
sofrimento, nos importando apenas com nosso próprio umbigo e, de vez em quando,
percebendo que temos “um dodói imenso no peito”; mas também somos Clov, e tentamos,
incessantemente, sermos livres, mas cedemos aos primeiros impecilhos; algumas vezes,
agimos como Negg, implorando companhia e brigando por migalhas de gratidão e alimento;
outras vezes, somos Nell, com natureza frágil, mas mesmo assim guardando algumas boas
lembranças e sentimentos e tendo na morte um asilo; outras vezes, nos comportamos como “o
menino”, trazendo recados de Godot; mas não nos decepcionemos conosco, somos versáteis e,
muitas vezes, agimos como o próprio Godot e mandamos dizer que não iremos.
Seguindo nosso relatório em torno de nossos impulsos, partiremos para o
dramaturgo Harold Pinter e sua obra.
IV.1.2. Acerca de Pinter - dramaturgo/dramaturgia
Peça que se passa em um só ambiente, com trama simples e apenas dois
personagens, “O Montacarga” é um texto que traz as características típicas da dramaturgia de
Harold Pinter. Apesar de fazer parte do teatro do absurdo e de abordar os assuntos comuns a
este movimento teatral e, como visto anteriormente, também ao clown, Pinter o faz de
maneira diferenciada da de Beckett. Pinter utiliza o diálogo sobre assuntos supérfluos como
estratégia do ser humano para não entrar em temáticas profundas, ele mostra a banalização da
comunicação.
“O Montacarga” apresenta apenas dois personagens em cena, Gus e Ben,
amigos e companheiros de trabalho, dois matadores de aluguel, que, num porão, esperam pelo
comando da organização que os contratou. Não sabem para quem estão trabalhando nem qual
será o serviço. Eles escutam barulhos no andar de cima e se sentem ameaçados pela presença
157
daquelas pessoas. Através de um montacarga, estas enviam pedidos de pratos exóticos, e eles,
com medo de desagradarem aquelas pessoas, enviam tudo que possuem. Mas as interferências
continuam e os dois permanecem acuados e amedrontados. Cansado, Gus sai para beber água
e Ben recebe a ordem - deverá matar a primeira pessoa que entrar. Porém, a primeira pessoa a
entrar é Gus.
No decorrer da peça, vemos que a trama, aparentemente simples, apresenta-se
repleta de nuanças e metáforas bem construídas do mundo em que o ser humano vive e
convive. Pinter utiliza-se de situações de aparência simples e descomplicada para mostrar o
que há de mais absurdo no mundo - o ser humano e suas relações. Enquanto que Beckett,
conforme esclarecimentos no item anterior, desconstrói a linguagem para mostrar que ela não
é um veículo de comunicação eficiente, Pinter se utiliza da conversa banal para mostrar a
dificuldade em estabelecer a verdadeira comunicação. Nas duas maneiras, tanto de Beckett
como de Pinter, há a desvalorização da linguagem, porém por diferentes estratagemas.
No texto “O Montacarga”, o universo que Pinter traz é de total instabilidade, os
personagens se encontram num determinado local, e o leitor nem sabe, inicialmente, o que
aquelas duas pessoas fazem ali. Nem mesmo os personagens sabem porque estão ali, a única
coisa de que eles têm conhecimento é que foram contratados e devem esperar pelas ordens.
Podemos dizer que estas situações, postas no texto por Pinter, criam a identificação com
nosso cotidiano. A situação que Gus e Ben vivem se assemelha à própria condição humana –
estamos num local, num lugar, num mundo, que nos é desconhecido e não sabemos o porquê,
nem o que devemos fazer, nosso destino se resume a esperar e acatar ordens superiores.
No texto de Pinter, enquanto esperam, Gus e Ben conversam, mas o autor
coloca o diálogo como uma tentativa de preencher o tempo, constituindo um obstáculo para
um conhecimento profundo entre os interlocutores. Em meio a assuntos sem importância, os
dois criam hipóteses sobre a organização que os contratou e acabam revelando que estão
perante uma situação inusitada e vulneráveis à ação daquilo que lhes é desconhecido. Esta
trama nos causa outra identificação com esta dramaturgia: estamos sempre “à mercê” do
desconhecido, e isto amedronta, pois não sabemos o que será exigido de nós.
Em suas peças, o dramaturgo revela a verdadeira tragédia humana através de
seus personagens, os quais se envolvem em situações densas e trágicas, mas que chegam a
conclusões e resoluções cômicas. Talvez, seja esta a nossa visão de realidade: somos todos
participantes de um cotidiano feito de ilusões e, com a incapacidade de nos aprofundarmos na
alma humana, resolvemos nossa trágica condição não nos “envolvendo” com ela.
158
Em “O Montacarga”, Pinter exibe um terreno de instabilidade, tal qual nossa
realidade. Gus e Ben têm seu “espaço seguro”, o porão em que se encontram, violado pela
interferência de outras pessoas. As pessoas que estão no andar superior interferem através de
sons vindo de um tubo acústico e de bilhetes que chegam pelo montacarga, com pedidos de
pratos “exóticos”. Com este tipo de situação, Pinter nos deixa desconfortáveis, pois, ao
vermos o pavor que os dois personagens sentem cada vez que sofrem uma interferência,
também nos sentimos violados pelo desconhecido. É como se o perigo que ronda lá fora
entrasse dentro de casa, de nossa privacidade, de nosso “espaço seguro”, situação a qual, em
nosso cotidiano, sempre estamos expostos. Compartilhamos desta postura de impotência
perante os fatos, nos vemos vivendo numa realidade em que estamos em constante angústia
pela vida. Neste universo em que vivemos, onde o desconhecido é incontrolável e amedronta,
a “realidade” nos aprisiona, nos manipula e nos condiciona.
Com a criação deste universo de instabilidade que Pinter constrói para seus
personagens, ele delata a mais pura realidade da vida cotidiana - estamos sempre diante do
desconhecido e sendo violados em nossa intimidade e proteção. O que ele nos mostra é que,
para nós, seres humanos, não há lugar seguro, nem verdadeiro. Esta constatação de tamanha
fragilidade perante o fluxo das coisas nos causa pavor, e concluímos que nunca estamos
seguros e protegidos. Pinter, através do uso de linguagem simples, da falta de capacidade para
ouvir o outro, da impaciência para a convivência, da repetição dos assuntos e da diferença de
velocidade de raciocínio, delata a sua, e também a nossa, visão da realidade, uma realidade
feita de ilusões: a ilusão do conhecimento sobre o outro, do auto-conhecimento e de sentir-se
humano. Esta é a verdade sobre o ser humano, esta é a ferida que Pinter nos revela, o horror
de nossa trágica condição humana.
Para fugir deste sentimento de pavor, os personagens de Harold Pinter utilizam
a estratégia que muitas pessoas fazem no dia-a-dia, até mesmo sem perceber, que é a
desconectar-se da realidade, extrapolando-a até chegar ao absurdo; ou ainda, não se
envolvendo com ela, mantendo-se em sua superfície, sem se aprofundar nas questões que
dizem respeito ao próprio fato de existir e estar ali.
Na verdade, o texto “O Montacarga”, de Pinter, nos impulsionou para a criação
do texto cênico, tocando em nossa própria culpa e causando identificação com a situação de
Gus e Ben. Culpamo-nos por ver-nos como empregados contratados para alguma missão que
não sabemos qual, compartilhamos com as indagações que não se calam, querendo saber onde
estamos, o que devemos fazer, quem é o responsável por estarmos aqui e porque estamos
aguardando. Enxergamo-nos ludibriando a verdade, falando de assuntos banais para não
159
sabermos o que se passa além da superfície visível. Vemo-nos como Gus e Ben,
amedrontados por algo ou alguém, que não conhecemos, mas que tem todo o poder sobre nós.
Pensamos que o espetáculo TRATTORIA foi uma tentativa de nos redimir
dessas falhas, delatando às pessoas nossas próprias fugas e mostrando como nos sentimos
vulneráveis à interferência daquilo que não conhecemos. Acreditamos que foram estes
impulsos que nos levaram a ver no texto dramatúrgico de Pinter a possibilidade de inspirar
sua obra e expirar um espetáculo com um texto cênico que apresentava nossas inquietações
perante o cotidiano e a convivência.
Através da leitura dos textos e de nossa identificação com as situações e com
os personagens apresentados, com a união das idéias e com a maneira como os dramaturgos
nos apresentam as questões humanas, as quais fazem parte de nossa própria visão, é que
desvelamos nossa própria história. Foi a impressão de sentimentos compartilhados, que
encontramos registrados na dramaturgia de Pinter e Beckett, que nos serviu de impulso para
chegarmos até a dramaturgia cênica dos espetáculos.
A mesma identificação aconteceu em relação à natureza do clown, o qual,
como esclarecido ao longo da dissertação, também faz parte do universo absurdo e humano.
Na verdade, não sabemos ao certo onde está o maior grau de identificação, se com o clown ou
se com os personagens do teatro do absurdo, pois os dois se relacionam intimamente conosco
e nos fazem buscar ferramentas conceituais, técnicas e metodológicas para construirmos
nosso próprio caminho dentro da encenação.
IV.2. Outras informações sobre as montagens de GODÔ, TRATTORIA e
JOGUETE
Figura 27 - Foto: Léo Azevedo
Neste momento do Capítulo
IV, iremos falar, em termos gerais, sobre a
concepção dos espetáculos e adicionar
outras informações sobre os processos de
montagens dos mesmos. Estes processos
foram sendo citados ao longo do corpo
desta dissertação, mas acreditamos que
teremos aqui algumas informações
160
complementares que nos auxiliarão para realizarmos a reflexão a que nos propomos, pois
estaremos lançando um olhar voltado a nossa relação sensível com os mesmos.
No momento anterior, quando falamos sobre os dramaturgos e a obra que nos
inspirou, comentamos sobre Samuel Beckett, “Esperando Godot” e “Fim de Partida” em
conjunto, pois constituíam um “bloco”, em que se tratava do mesmo autor e de duas obras
com características semelhantes, mas agora voltaremos a estabelecer a ordem cronológica das
montagens, devido ao fato de que estas foram montadas com atores e grupos diferentes.
Antes de falarmos sobre a concepção dos espetáculos, lembramos que os textos
cênicos, dos quais falaremos, não são transposições dos textos dramáticos citados, é preciso
reafirmar nossa inspiração nas dramaturgias para que pudéssemos respirar nosso processo de
encenação sem nos perdemos. Dando seguimento ao assunto a que nos propomos tratar neste
momento, teremos, primeiramente, a concepção e os comentários sobre GODÔ, em segundo
lugar, de TRATTORIA e, por último, sobre JOGUETE.
IV.2.1. GODÔ – Nosso Espetáculo e Outras Informações
GODÔ teve origem, em nosso imaginário, a partir da leitura do texto de
Beckett, “Esperando Godot”, em conjunto com nossa paixão pelo clown. Conforme íamos
relendo a peça, criávamos as relações com as linguagens que queríamos trabalhar e fomos
“armazenando” as imagens que surgiam em nossa imaginação. Queríamos um espetáculo em
que a principal atração fosse o jogo dos atores e que estes possuíssem a precisão corporal e a
poesia do mimo, sem texto verbal falado, sem cenário e com um visual que se parecesse com
as imagens do cinema mudo. GODÔ tinha sua rede de conexão ligada ao clown e contava, em
sua concepção, com as influências diretas do teatro do absurdo, do circo e do cinema mudo. O
teatro do absurdo nos trouxe as idéias para a construção do roteiro e para a criação do
espetáculo, o circo nos “serviu” para a “ambientação” e o cinema mudo para a construção do
jogo dos atores e da estética das imagens.
Na época, estávamos sob a orientação de Nair D’Agostini. Quando nos
reunimos pela primeira vez e falamos de nossas ambições para o espetáculo, fomos
aconselhadas a voltarmos nosso olhar ao texto que originou as idéias para que nos
alimentássemos dele, ainda mais. Era necessário fazer a análise da obra, pois assim
construiríamos uma linha direta de ação para encaminharmos o processo de criação, sem nos
perdermos em nossas próprias idéias. Através da análise do texto, estruturamos um roteiro
161
para seguir, o qual foi transposto para jogos que possuíam situações semelhantes às da análise
ativa. Durante os ensaios, estes foram absorvidos e transformados pela lógica dos clowns,
resultando em outros jogos de cena, que com a codificação e recodificação ganharam novo
sentido e construíram o texto cênico.
Desde o início, sempre imaginamos GODÔ em semi-arena e queríamos que
aquele espaço mostrasse um circo sem perspectivas, mas, na época, pensamos que uma lona
em cima do palco iria dificultar a iluminação, então, a mesma se reduziu a um pequeno
guarda-chuva. Os figurinos foram inspirados no cinema mudo, com exceção daquele do clown
que fazia Pozzo, o qual foi inspirado no circo. Todos os elementos que colocamos em cena
tiveram inspiração no texto, mas não foram transpostos do mesmo, procuramos encontrar algo
que pudesse instigar o jogo dos atores, tanto quanto os elementos que Beckett traz em seus
textos. Durante todo o processo, não tínhamos a preocupação de transpor para o palco as cena
do texto, nosso “compromisso” era com a situação em que os personagens se encontravam,
com o jogo dos clowns e a criação de uma “história”.
Nos ensaios, trabalhamos o clown em todos os seus aspectos, indo do grotesco
até o sublime, porque era importante para os atores, para nós e para o processo, mas tínhamos
consciência de que queríamos, em cena, trabalhar com a poesia do mimo, pois queríamos o
requinte dos atores do cinema mudo. Apesar do espetáculo ser ambientado no circo, não
queríamos construir um espetáculo com “cara de circo”, e sim nos aproximarmos da
linguagem que os clowns do cinema conseguiram atingir. Com isso, achamos que era
necessário “burilar” e diminuir o excesso do grotesco e, assim, chegamos às ações
apresentadas no espetáculo.
O processo de montagem de GODO teve 121 ensaios, e na sua equipe
contávamos com 10 pessoas, porém o grupo que constituía a Cia Bufa de Teatro, na época
vinculada ao TEU - Teatro Experimental Universitário – Studio I – do Departamento de Artes
Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria, eram apenas seis integrantes: Francisco
André Fleig, Joice Aglae Brondani, Luíz Maurício da Fontoura Martins, Lúcia Royes Nunes,
Vilmar Rossi Júnior e Tatiana Vinadé. No elenco, contávamos ainda com a participação de
Márcio Angst, que posteriormente foi substituído por Francisco André Fleig, e na equipe
técnica, na operação da luz, tínhamos o auxílio de Leonardo Roat.
Esta equipe trabalhou em GODÔ durante os anos em que ficamos em cartaz
com o espetáculo e era composta, em sua maioria, por alunos da Universidade Federal de
Santa Maria: Francisco André Fleig, Joice Aglae Brondani, Leonardo Roat, Tatiana Vinadé e
Vilmar Rossi Júnior eram alunos do Curso de Artes Cênicas; Marcio Angst e, também,
162
Vilmar Rossi Júnior, cursavam Desenho Industrial; Luíz Maurício Martins era formado em
Filosofia e Lúcia Royes Nunes era formada em Educação Artística – Teatro. Todos os
procedimentos para a montagem de GODÔ foram orientados e seguidos de perto pelas
professoras Nair D’Agostini e Inês Marocco, as duas acompanharam toda a pesquisa e os
ensaios que construíram o espetáculo.
Os ensaios do espetáculo começaram no dia 10 de abril de 1998 e se
prolongaram até a data da estréia. Os ensaios eram comandados pelo Monsieur, que propunha,
para os atores/jogadores, jogos que poderiam resultar em material “potencial” para as cenas e,
após a proposição destes, mantinha o olhar atento para a “produção/jogo” do grupo,
aproveitando ações interessantes para construir cenas do espetáculo.
Cada ensaio de GODÔ foi planejado em forma de itens, como se fossem etapas
que tínhamos de cumprir. Eram preparados com uma relação de atividades que se
encaminhava de maneira evolutiva até alcançar o objetivo – situação da cena encontrada no
texto - através da metáfora.
Apesar de começarmos o treinamento com os atores em abril, o trabalho de
encenação começou no mês de março de 1998. Sob a orientação de Nair D’Agostini, foi
realizada a análise do texto de Beckett e, a partir desta, foi construído o roteiro do espetáculo.
Estudávamos as cenas e o universo do texto para depois estruturarmos os ensaios, trabalhando
na questão situação/jogo, criando possibilidades de leituras e metáforas para o texto.
O trabalho com o elenco de GODÔ foi longo e intenso. Penso que isto
aconteceu porque estávamos “tateando” nossas “ferramentas”, então, agíamos de maneira
cautelosa, estávamos “procurando nossos caminhos”. No primeiro contato com o elenco,
expomos a concepção e os encaminhamentos que seriam adotados para a construção do
espetáculo e o segundo passo foi a aproximação dos membros do elenco. O período de
aproximação entre os integrantes teve a duração de algumas semanas, quando nos
encontrávamos para a prática de jogos e sessões de apreciação de filmes.
A apreciação de filmes tinha o objetivo de estudar os diversos universos
clownescos e permitir que tivéssemos contato com a linguagem dos clowns, tanto do cinema
mudo, quanto do teatro e do desenho animado. Nos reunimos para assistir os filmes “O
Malandro”, “O Emigrante”, “O Aventureiro”, “Tempos Modernos”, “Em Busca do Ouro” e
“O Circo”, de Chaplin e um documentário produzido pela GNT, denominado “Cem Anos de
Comédia”, onde havia uma parte do documentário direcionada para o trabalho de Chaplin, sua
maneira de criar os filmes, sua atuação e improvisação durante as filmagens. Também,
assistimos “I Clowns” e “A Estrada”. de Federico Fellini, “Animal Crackers” e “Loucos de
163
Amor”, dos Irmãos Marxs e outra parte do documentário produzido pela GNT, “Cem Anos
de Comédia”, cujo conteúdo foi direcionado para o trabalho dos Irmãos Marxs, o absurdo, o
nonsense e a criação dos roteiros e cenas dos filmes. Assistimos, ainda, “Nossa
Hospitalidade” e “A General”, de Buster Keaton e “Um Amigo Trapalhão” e “Entrega em
Domicílio” de “O Gordo e o Magro”.
Tivemos, também, sessões de apreciação de vídeos de espetáculos teatrais
clownescos, foram eles: “Shazam” - espetáculo com direção e atuação do ator francês Gabriel
Guimard e “Goiabada com Queijo” - espetáculo com direção do diretor gaúcho Helquer Paez.
Realizamos, ainda, a pesquisa sobre o universo clownesco no desenho
animado, apreciando os seguintes filmes: “A Bela e a Fera” do Walt Disney - observando a
dupla “Gaston e Lumière ”; “Alladin” do Walt Disney, observando a dupla “Iago e Abú ”;
“O Rei Leão” do Walt Disney, observando a dupla “Timão e Pumba” e episódios da série de
“Tom e Jerry”, da Metro Goldwin Meyer. No final das sessões, conversávamos e
sublinhávamos as situações absurdas e similaridades que encontrávamos, nos desenhos, com o
universo clownesco.
Durante o processo de ensaio de GODO, apareceram, na cidade de Santa
Maria, dois circos (Sarrasani e Vostok), o que facilitou a nossa compreensão e observação da
linguagem do palhaço de circo, bem como do próprio universo circense. O grupo se reuniu
para assistir aos espetáculos circenses dos dois circos e, no circo Sarrasani, tivemos a
oportunidade de nos aproximar um pouco mais do “mundo maravilhoso” do circo.
Conforme mencionado no capítulo anterior, o circo SARRASANI nos acolheu
com mais simpatia. Tivemos a possibilidade de conversar com os palhaços e observarmos
seus ensaios. O circo nos permitiu utilizar seu picadeiro para nossos ensaios e fomos
convidados para apresentarmos uma ‘reprise’ durante uma noite de espetáculo. Para nós,
experimentar o picadeiro daquela forma era uma grande oportunidade. Na noite esperada,
aguardávamos nossa hora de entrar nos bastidores. Enquanto isso, observávamos o
funcionamento do circo atrás do picadeiro. A preparação dos artistas para entrar em cena e a
montagem dos números (entrada e saída de cenários). O apresentador nos anunciou como um
grupo da Universidade Federal de Santa Maria e ressaltou a importância do circo e do
intercâmbio deste com outras áreas. As luzes estavam voltadas para o picadeiro. Entramos! ...
A sensação de estarmos num picadeiro de circo é indescritível, tamanha é a magia que ocorre
naquele espaço. Nossa “reprise” foi rápida e pequena, mas nos serviu largamente como uma
experiência de picadeiro, observação do mundo circense, colocação dos atores no espaço e a
164
energia que devem desprender para atingir e chamar a atenção do público. Sempre seremos
gratos pela generosidade dos integrantes do circo SARRASANI.
Como experiência, também, fizemos várias saídas de clown, nos
experimentamos em muitas situações. Desde campanhas “sérias das prefeituras até bares,
boîtes e feiras. Isso nos ajudava a trabalhar com a capacidade de improvisação, o jogo e a
cumplicidade entre os atores.
A partir das várias experimentações, podemos dizer que os ensaios de GODÔ,
nos serviram de guia para os outros espetáculos. Foi com o processo de GODÔ que
começamos a delinear nosso encaminhamento dentro das técnicas de clown; o processo de
descoberta do “estado de clown” e sua “energia ativa”, de codificação, re-codificação e
criação das estruturas das cenas.
Penso que o espetáculo GODÔ funcionava pela sua simplicidade e
ingenuidade. O espetáculo acontecia em dois atos, ou melhor, em dois dias, sinalizados pela
mudança de iluminação, como sugere o texto de Beckett, o que nos inspirou para a criação de
uma mudança de atitude dos personagens a partir de um acontecimento externo. No palco, um
mastro com uma pequena “zebra” ao redor e, no alto, uma “pequena lona”, feita com um
guarda-chuva. Neste local, inicialmente vazio, dois clowns se encontravam e, como num
pacto mudo, ali permaneciam sem saber, exatamente, o por quê. Em meio a mudos
desentendimentos e cambalhotas, os dois clowns brincavam de ser a humanidade, sem rumo
nem paradeiro, perdidos na encruzilhada de arquibancadas do espetáculo da vida - um circo
sem números. Em determinado momento, surgiam outros dois clowns, inspirados em Pozzo e
Lucky. No espetáculo, não se sabia de onde vinham, nem para onde iam, somente que
estavam passando e que um comandava o outro e o tratava sem nenhuma dignidade, como se
fosse um servo, um escravo. Com a dupla de clowns que permanecia no palco e a dupla dos
clowns “passantes”, estabelecíamos, no espetáculo, dois tipos de relação: uma voltada para a
interdependência e a cumplicidade e a outra de interdependência e opressão/submissão, tal
como falamos anteriormente.
“Esperando Godot” nos inspirou para uma linda cena: o discurso que Lucky faz
no texto de Beckett, a partir dos jogos dos clowns, no espetáculo, transformou-se em um
grande balão que ele estourava e de dentro saltavam letras de marshmallow, as quais eram
ingeridas pelos atores e também jogadas para o público (cena denominada de “Fracasso” no
DVD, foto abaixo).
165
Figura 28 - 13ª cena – “Fracasso” - Foto: Paulo Fernando Machado
Como dito no segundo capítulo,
utilizamos a palavra “transformou-se” com a
intenção de dizer “deixou de ser, virou outra coisa”,
reafirmando a idéia de que o texto, de alguma forma,
contribuiu para a nossa criação das cenas.
Após a saída dos clowns que estavam
ali de passagem, um rústico trapézio desce do teto,
trazendo um bilhete (cena de nome “Visita I”, no
DVD, foto a baixo). Esta cena teve inspiração na
cena de “Esperando Godot” em que Didi e Gogo
recebem o mensageiro de Godot, nela, não temos a
intenção de afirmar que é o mesmo mensageiro,
estamos utilizando a situação, somente.
Figura 29 – 15ª cena – “Visita I” - Foto: Paulo Fernando Machado
Os dois se decepcionavam com a
leitura da mensagem, a noite caía e os dois se
preparavam para partir. Ensaiavam uma possível
morte e iam em direção ao fundo do palco,
permanecendo imóveis. Novamente, a luz âmbar
ganhava intensidade, era como se o dia clareasse, a
pequena lona ganhava uma sutil iluminação
interna, detalhe inspirado na árvore que o texto tem, a qual no segundo ato ganha folhas
verdes. Os dois se encontravam novamente, porém havia um estranhamento do local. Os dois
clowns chegavam até a se divertir com o chapéu que um dos “passantes” do dia anterior havia
esquecido. Quando os mesmos “passantes” reapareciam no local, acontecia uma surpresa – o
comandante estava cego e sua figura já não era tão imponente. Os dois clowns aproveitam
para se vingarem do “ex-tirano” e queriam que o outro, o comandado, fizesse novo show com
o balão, porém, a única coisa que surge é um balãozinho. Os dois deixam os “passantes”
seguirem o caminho. Novamente, ouvia-se o barulho anunciando a chegada do trapezista
mensageiro, mas ele não aparecia e o bilhete caia no meio do palco, como se fosse jogado por
alguém. E numa tentativa desesperada e ato de desistência, com uma fita, tentavam, um
auxiliando o outro, se enforcar, como não conseguiam, partiam para nova jornada,
166
caminhavam até o fundo e permaneciam imóveis. As luzes se apagavam e, quando eram
acesas, os quatro clowns agradeciam ao público e saíam de cena.
Muitas situações do texto nos inspiraram para a construção do roteiro do
espetáculo, o qual, através do jogo dos clowns e das metáforas propostas, transformaram-se
em outras situações ou elementos de cena, como o discurso de Lucky, já mencionado
anteriormente. Outro assunto bastante significativo é o momento em que, no texto de Beckett,
Didi e Gogo falam sobre a Bíblia, esta situação nos inspirou para prepararmos jogos com
livros e, no processo de codificação e recodificação, o resultado que aparece no espetáculo é o
momento em que um livro cai no palco, e os dois clowns jogam a partir deste elemento que
surge (no DVD, pode-se ver esta cena, no item “Condenação”).
Figura 30 – 1ª cena – “Condenação” - Foto: Paulo Fernando Machado
Outra situação que podemos citar é aquela em
que, no texto de Beckett, Didi e Gogo comentam sobre se
abandonarem e de como os dois não conseguiriam viver sem
o outro; este momento nos inspirou para propormos jogos
que tivessem como temas o perigo da morte e este
encaminhamento resultou, no espetáculo, nas cenas em que
os dois jogam com uma fita, imitando um número circense
(no DVD, estas cenas estão denominadas como “Desafios” e
“Desorientação”).
Figura 31 – 4ª cena “Desafios” - Foto: Paulo Fernando Machado
Poderíamos citar todas as
transformações pelas quais a dramaturgia
escrita passou até chegar a escritura cênica,
mas isto seria uma narrativa extensa. Então,
para criarmos uma aproximação maior com
o espetáculo, segue abaixo a análise ativa do
texto, realizada em conjunto com Nair D’Agostini, o qual nos inspirou para criarmos o roteiro
e as cenas do espetáculo, delineando, a partir destes, sua dramaturgia cênica.
167
Para exemplificar e facilitar a compreensão desta conexão/transformação entre
a escritura dramática e a escritura cênica, na descrição da análise ativa, indicamos a
verificação, também, das cenas do espetáculo que foram inspiradas pela situação apresentada.
A análise e o quadro de cenas, se for de interesse do leitor, poderão servir para guiar o
espectador na apreciação do DVD do espetáculo, realizando uma comparação entre análise do
texto/quadro de cenas/espetáculo. Para nossa melhor organização e identificação das
situações, os nomes dos personagens de Beckett são mantidos, tanto na análise ativa do texto,
como no quadro de cenas espetáculo, mas isto não quer dizer que haja a transposição das
“células”.
O Texto: “Esperando Godot” de Samuel Beckett, tradução de Flávio Rangel.
Peça em dois atos.
Personagens: Estragon (Gogo); Vladimir (Didi); Pozzo; Lucky; Menino
Análise Ativa Do Texto – realizada conforme explicação dada no segundo capítulo, nas
páginas 65 à 69. Não reproduziremos aqui o gráfico da análise, por acreditarmos que a
mesma, ordenada em etapas, é suficiente para a compreendermos:
A) Circunstância Anterior:
Universo: mundo de indeterminações, abandono, sem referencial, vazio.
A’) Situação Anterior:
Mostra a condenação em que estão os personagens, obrigados a viver num mundo de
indeterminações, de abandono, de vazio.
* Se dá na 1
a
cena da peça - Situação: Condenação
* Se dá na 1
a
cena do espetáculo - Situação: Condenação
* Circunstância dada: Universo de indeterminações.
B) Principal Circunstância Dada /Principal Conflito:
Luta contra esse universo de indeterminações, mostra que os personagem têm um motivo
para permanecerem vivos.
* Se dá na 2
a
cena da peça - Situação: Achado
* Se dá na 2
a
cena do espetáculo - Situação: Achado
* Circunstância dada: Lembrança de que possuem um objetivo para estarem ali.
B’) Situação Fundamental:
Os dois personagens decidem esperar pela vinda de Godot.
168
* Se dá na 2
a
cena da peça - Situação: Achado
* Se dá na 2
a
cena do espetáculo - Situação: Achado
* Circunstância dada: Principal Circunstância Dada - Lembrança de que possuem um
objetivo para estarem ali.
C) Acontecimento Central:
O universo de abandono ganha forças, os personagens perdem a esperança, cansam de esperar
pela salvação, por Godot, resolvem se matar. Tentativa de suicídio coletivo.
* Se dá na 39
a
cena da peça - Situação: Acordo
* Se dá na 29
a
cena do espetáculo - Situação: Pacto
* Circunstância dada: O 2
o
recado de que Godot não virá.
D) Acontecimento Final ou Principal:
Os personagens retomam a esperança, continuam esperando por Godot, o mundo de
indeterminações volta a perder forças.
* Se dá na 40
a
cena da peça - Situação: Partida
* Se dá na 30
a
cena do espetáculo - Situação: Partida
* Circunstância dada: O fracasso da tentativa do suicídio coletivo.
E) Linha Direta de Ação / Super Objetivo:
E’) Da peça:
“Luta por uma verdade”. Precisa-se de uma esperança para conseguir viver, um objetivo a
seguir. Uma esperança de salvação, senão, cai-se no vazio.
E”) Do personagem:
Estragon e Vladimir: Luta para se manterem fiéis a essa esperança de salvação. Esta salvação
implica em espera e essa espera implica em tempo. Luta para passarem o tempo enquanto
esperam pela salvação.
Pozzo: Ostentar sua posição de patrão, mostrar-se superior. Desfazer, livrar-se do vínculo de
dependência que tem de Lucky.
Lucky: Sobreviver. Para isso, ele precisa agradar a Pozzo e, assim, manter a dependência do
mesmo em relação a ele.
F) Tema da peça: Luta por uma existência. (“Esperança”)
169
G) Idéia da peça:
Num mundo de indeterminações, a possibilidade (esperança) de uma finalidade, de um
significado (de uma salvação), leva à luta pela existência ( uma persistência nessa espera).
A seguir, veremos o quadro de cenas do espetáculo, porém, achamos que se
tornaria prolongado, desnecessário e repetitivo colocar, também, o quadro de análise das
cenas do texto. Porém, o quadro abaixo contém somente as situações que utilizamos como
roteiro para a construção das cenas, não contendo as situações do texto de Beckett que não
fizeram parte de nossa “respiração” do processo. Também, por razão de uma melhor
organização e integração com o DVD do mesmo, julgamos que seria mais conveniente a
presença do quadro das cenas do espetáculo, já que acima temos a análise ativa geral do texto
que serviu de guia para a construção do roteiro do espetáculo.
Quadro de Cenas do Espetáculo, partindo da Análise Ativa do Texto:
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
1
a
Condenação Mostrar a
condenação dos
personagens e o
universo de
abandono em que
eles vivem.
Universo de
indeterminações,
sem referencial,
abandono.
ESTRAGON
VLADIMIR
Aliviar-se da dor.
Estimular Estragon a
não desistir da vida.
} Próprio universo
Livrar-se
Persuadir
2
a
Achado Mostrar que pos-
suem um motivo
para permanece-
rem vivos.
Lembrança de que
possuem um obje-
tivo para estarem
ali.
ESTRAGON
VLADIMIR
Agarrar-se a uma sal-
vação.
Afirmar sua crença.
Incertezas de Vladimir.
Suas próprias incerte-
zas, que Estragon trás à
tona.
Confron-
tar
Afirmar
3
a
Desenten-
dimento
Mostrar a intole-
rância e depen-
dência dos per-
sonagens
Necessidade do
outro, do seu du-
plo
ESTRAGON
VLADIMIR
Cobrar pela sua com-
panhia.
Buscar uma compa-
nhia.
Fragilidade de Vladi-
mir.
Intolerância de Estra-
gon.
Exigir
Solicitar
4
a
Desafio Mostrar que os
personagens
necessitam
preencher o
tempo.
Retorno ao vazio. ESTRAGON
VLADIMIR
} Fugir do tédio e da
dor.
} Seus próprios medos
(que a ação não seja
eficaz).
} Simular
5
a
Desorienta-
ção
Mostrar que os
personagens estão
confusos.
Desistência da
idéia de se matar.
ESTRAGON
VLADIMIR
Indagar a importância
desta espera.
Afirmar o propósito
de esperar.
Vladimir e suas utopias.
As indagações de Estra-
gon.
Desvendar
Situar
6
a
Trégua I Mostrar que os
personagens se
conformam com
suas diferenças.
O cansaço que
caiu sobre os dois
personagens.
ESTRAGON
VLADIMIR
Suprir suas carências.
Agradar Estragon.
} Controlar seus pró-
prios impulsos.
Deleitar
Apaziguar
170
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
7
a
e
Invasão /
Espetáculo
Mostrar a desu-
manização do
homem pelo ho-
mem, através de
uma relação de
poder (revelação
de Pozzo e Lu-
cky).
Necessidade de se
apresentar (dar-se
a conhecer).
ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
} Conhecer Pozzo e
Lucky.
Dar uma demonstra-
ção de seu poder.
Descansar
} Medo do desconhe-
cido.
Cansaço de Lucky.
Exigências de Pozzo.
} Inspe-
cionar
Comandar
Executar
9
a
Humilhação Mostrar as con-
dições sociais e
existenciais dos
personagens.
A fartura do ban-
quete de Pozzo.
ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
Satisfazer sua gula.
Manter a dignidade.
Mostrar sua superio-
ridade.
Descansar
Vladimir, Pozzo e Lu-
cky.
Estragon e seus impul-
sos (fome e indigna-
ção).
Desprezo pelos seres
humanos inferiores.
Exigências de Pozzo.
Saciar-se
Repreen-
der
Controlar
Executar
10ª Julgamento Mostrar que a
verdade e a justiça
são relativas
Ameaça de Pozzo
a Lucky
ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
} Descobrir a verdade
Convencer o júri de
sua inocência
Rejeitar a piedade e
manter a dignidade.
} Discernir culpados de
inocentes
Condenação de Estra-
gon e Vladimir
Sua fragilidade imposta
por sua condição
}
Condenar
e consolar
Simular
Agredir
11
a
Formalida-
des
Mostrar que as
formalidades não
passam de
representações,
teatralizações
Necessidade de
Pozzo de ostentar
sua posição
ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
Fazer Pozzo se sentir à
vontade, agradar, pu-
xar o saco.
Controlar-se, manter
sua postura
Ostentar formalidades
de sua classe
Descansar
Saber se Pozzo está, ou
não, satisfeito
Perceber a realidade da
situação
Não saber se está agra-
dando
Os outros
Conven-
cer
Controlar-
se
Repre-
sentar
Descansar
12
a
Retribuição Mostrar a necessi-
dade de aprova-
ção, de comunica-
ção
Busca de um reco-
nhecimento, de
uma aprovação de
Pozzo.
ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
Conseguir um benefí-
cio que lhe agrade,
tirar vantagem.
Manter seus princí-
pios, a dignidade, o
respeito
Ser agradável, mos-
trar-se bondoso; pro-
var que é superior a
Vladimir e Estragon
pelas regalias que
possui e pelo fato de
dividi-las com eles
Empenhar-se em agra-
dar o Patrão
Princípios, censura, de
Vladimir
Ostentação de Pozzo.
Falta de compostura de
Gogo
O tédio de Vladimir e
Estragon, o que ele
ofereceu não satisfez.
Maus tratos e medo
Explorar
Repudiar
Exibir
Esforçar-
se
171
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
13
a
Fracasso Mostrar a inutili-
dade da
linguagem
humana
Retorno ao vazio
(desistência de
Pozzo)
ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
} Compreender Lucky
Exibir-se por intermé-
dio de Lucky
Ser eficaz.
} Estranheza do
discurso e das reações
de Lucky
Incompetência de
Lucky
Pozzo
} Compe-
netrar-se
Conter-se
Vociferar
14ª
Partida Mostrar a dificul-
dade em se desfa-
zer os vínculos, o
medo da solidão e
a necessidade do
outro
O fracasso de
Lucky
ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
} Ser prestativo,
colaborar com Pozzo
na organização das
coisas
Reter a partida
Obedecer as ordens do
patrão.
} Dificuldade de orga-
nizá-las
Falta de coragem de
separar-se, dificuldade
em despedir-se
Cansaço.
}
Colaborar
Retardar
Executar
15
a
Visita Mostrar que o
motivo da espera
é verdadeiro, não
é uma invenção
deles
Chegada do me-
nino, notícias de
Godot.
ESTRAGON
VLADIMIR
MENINO
Ter certeza sobre Go-
dot
Descobrir a mensagem
de Godot, saber o que
o menino tem a dizer
Entregar o recado de
Godot
Censura de Vladimir
Impaciência
Medo da “violência”
dos dois.
Indagar
Reter
Cumprir
16
a
Desgaste Mostrar a resigna-
ção de Estragon e
Vladimir
Chegada da noite
( não-chegada de
Godot )
ESTRAGON
VLADIMIR
Desistir de esperar
Godot
Reanimar, salvar Es-
tragon.
Insistência do Vladimir
Desânimo de Estragon
Fugir
Confortar
SEGUNDO ATO
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA-
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
17
a
Repetição Mostrar a
incapacidade dos
personagens de se
livrarem da con-
denação
A ausência de
Godot no dia ante-
rior
ESTRAGON
VLADIMIR
Buscar um alento
Animar Estragon
} Seus destinos de
condenados
Con-
quistar
Estimular
18
a
Recapitula-
ção
Mostrar que as
lembranças não
são concretas, são
relativas.
Lembrança de que
estão esperando
Godot
ESTRAGON
VLADIMIR
Escapar das lembran-
ças
Refrescar a memória
de Estragon
Evidências que Vladi-
mir trás à tona
Relutância de Estragon
Rebelar-se
Esclarecer
19ª
Reconheci-
mento
Mostrar novas
evidências de que
estiveram ali no
dia anterior
Tentativa anterior
de fazer Estragon
lembrar a
experiência
fracassada
ESTRAGON
VLADIMIR
Fugir do cerco de Vla-
dimir
Fazer Estragon lem-
brar do dia anterior
As provas que Vladimir
apresenta
As provas não são efi-
cazes
Desviar
Insistir
172
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
20ª
Trégua II Mostrar que os
personagens estão
se cansando
Desistência de
Estragon
ESTRAGON
VLADIMIR
Amenizar sua situação
Amenizar o desespero
de Estragon
} O cansaço que está se
abatendo sobre eles
Participar
Propor
21
a
Pesadelo Mostrar que está
se formando uma
tensão, eles estão
perdendo o con-
trole da situação
Estragon tenta
dormir
ESTRAGON
VLADIMIR
Descansar
Acalentar Estragon
} Os pesadelos de
Estragon
Livrar-se
Proteger
22
a
Descoberta Mostrar que os
personagens
‘cavam’ uma
saída para
passarem o tempo
Achado do chapéu
de Lucky
ESTRAGON
VLADIMIR
Chamar a atenção
sobre si
Buscar no chapéu um
novo passatempo
Vladimir está
‘encantado’ com seu
achado
Estragon não comparti-
lha desse achado
Con-
quistar
Desvendar
23
a
Imitação Mostrar que os
dois lembram-se
de Pozzo e Lucky.
Chapéu de Lucky ESTRAGON
VLADIMIR
Se cobrar de Vladimir,
pela falta de atenção
Distrair Estragon e se
distrair
Seriedade de Vladimir
Peças que Estragon
prega nele
Vingar
Distrair
24
a
Reforços Mostrar que a
condenação não
caiu somente so-
bre eles
Chegada de Pozzo
e Lucky
ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
} Conseguirem
benefícios
Conseguir se levantar
Descansar
} Medo de Lucky e de
fracassarem
Sua própria situação
Pozzo
}Avaliar
Insistir
Descansar
25
a
Decisão Mostrar que o
poder é relativo
(Pozzo que se
considerava supe-
rior agora é vulne-
rável)
Queda de Pozzo ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
Conseguir benefícios
Agir conforme os seus
princípios
Conseguir se levantar
Descansar
Vladimir e seus discur-
sos
Entusiasmo com seu
discurso
Depende da boa ação
de Vladimir e Estragon
Os outros
Negociar
Insuflar
Subornar
Descansar
26
a
Ajuda Mostrar que todos
são passíveis do
mesmo erro
(todos acabam
caindo)
Queda de
Vladimir
ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
Livrar-se da situação
Recompor-se
Conseguir ajuda
Descansar
Os problemas que vão
surgindo
Fica à mercê de Estra-
gon
Vladimir e Estragon
estão ocupados com
seus próprios
problemas
Os outros
}Negociar
Suplicar
Descansar
173
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
27
a
Investigação Mostrar que as
certezas de
Vladimir são
relativas
Sucesso em colo-
carem-se em pé
ESTRAGON
VLADIMIR
POZZO
LUCKY
Por em dúvida os
acontecimentos
Certificar-se de quem
eles são
Seguir seu caminho
Aproveitar-se da
queda para descansar
Resolução de Vladimir
Confusão que se instala
Sua desorientação
Pozzo quer partir, tem
de obedecer às ordens
Confundir
Investigar
Organizar
-se
Executar
28
a
2ª Visita Mostrar que eles
começam a se dar
conta do ciclo de
qual fazem parte
Chegada do me-
nino com o recado
de Godot
VLADIMIR
MENINO
Buscar uma última
certeza
Cumprir seu dever de
mensageiro
A falta de memória,
também, do menino
Medo de Vladimir
Certificar-
se
Colaborar
29
a
Pacto Mostrar que, ape-
sar de tudo, resta
uma última espe-
rança
A desesperança de
Vladimir
ESTRAGON
VLADIMIR
Livrarem-se da conde-
nação
A esperança de Vladi-
mir
A esperança de que
amanhã Godot virá
Liquidar
Conter
30
a
Partida Mostrar que se
inicia novamente
o ciclo
Tentativa de suicí-
dio frustrada
ESTRAGON
VLADIMIR
Ir embora de uma vez
Acima de tudo, manter
a dignidade
Os princípios de Vladi-
mir
O desleixo de Estragon
Acatar
Repreen-
der
Pensamos que GODÔ tocava o público pela sua simplicidade e, para nós, as
atividades desenvolvidas com aquele grupo foram bons pontos de partida para seguirmos
nossos próprios caminhos.
Podemos afirmar que o grupo que se dedicou à criação do espetáculo GO
teve importância ímpar na estruturação do processo apresentado. Temos muito a agradecer a
Vilmar Rossi Júnior, Lúcia Royes, Luis Maurício da Fontoura Martins, Márcio Angst e
Francisco André Fleig que, ao substituir Marcio Angst, aceitou passar por todo o processo de
clown, codificação e re-codificação, para “alcançar” o trabalho dos outros atores,
harmonizando seu trabalho ao deles.
Com GODÔ participamos de alguns festivais e mostras, levando nosso
trabalho, ganhando críticas e trocando experiências com outros artistas, que nos ajudaram a
crescer profissionalmente e a amadurecer nossos propósitos. Segue, abaixo, a relação das
apresentações de GODÔ, realizadas ao longo de sua existência.
Apresentações, eventos e locais:
- 09/04/2000 – Festival Internacional de Teatro (FIT - 2000) – Teatro Cine Santana - São
José dos Campos – SP.
174
- 11/11/1999 – Festival Iznard Azevedo – Teatro Ademir Rosa - Florianópolis – SC.
- 07/08/1999 – Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente (FENTEPP) – Teatro
Cesar Cava da Unoeste – Presidente Prudente - SP.
- 30/04/1999 – Festival Internacional de Londrina (FILO) - Circo Funcarte – Londrina –
PR.
- 20/04/1999, 30/01/1999 e 28/11/1998 – Produção da Cia Buffa de Teatro – Teatro Caixa
Preta - Santa Maria – RS.
Premiações e Indicações conquistadas:
- FIT/2000:
- Indicação: Maquiagem - Joice Aglae Brondani
- Festival Iznard Azevedo/99:
- Prêmios: Conjunto de Atores – Cia Buffa de Teatro; Ator Protagonista - Luíz
Maurício Martins; Direção - Joice Aglae Brondani
- Indicações: Figurino- Joice Aglae Brondani; Espetáculo - Cia Buffa de Teatro /
TEU- Studio 1; Atriz Coadjuvante - Lúcia Royes; Ator Coadjuvante - Vilmar Rossi
Júnior; Sonoplastia - Joice Aglae Brondani
- FENTEPP/99:
- Prêmios: Ator Coadjuvante - Luíz Maurício Martins; Melhor Espetáculo Júri Popular
– GODÔ / Cia Buffa de Teatro; 2° Melhor Espetáculo Júri Técnico – GODÔ / Cia
Buffa de Teatro; Menção Honrosa à Direção - Joice Aglae Brondani.
- Indicações: Maquiagem - Joice Aglae Brondani; Sonoplastia - Joice Aglae Brondani;
Direção - Joice Aglae Brondani; Ator Coadjuvante - Vilmar Rossi Júnior
- FILO – Festival Internacional de Londrina 1999:
- O FILO, como membro da Rede de Promotores Culturais da América Latina e do
Caribe (La Red), apresentou o material de GODÔ na Assembléia Anual de 1999, da
Rede, avaliando-o como um trabalho teatral de muito boa qualidade.
Com o acréscimo das informações sobre GODÔ, pensamos que podemos ter
contribuído para uma visão mais completa do processo de montagem do espetáculo.
Partiremos, agora, às informações que dizem respeito ao segundo espetáculo –
TRATTORIA.
175
IV.2.2. TRATTORIA – Nosso espetáculo e outras informações
Nossa intenção com o espetáculo TRATTORIA, tanto como com GODÔ, não
era de transpor o texto “O Montacarga”, de Harold Pinter para a escritura cênica, mas nos
servirmos dele para criar um espetáculo que tivesse uma estrutura diferenciada. Nossas
principais inspirações, além do texto de Pinter, eram o nonsense, a alegoria e o cinema mudo.
Novamente, queríamos trabalhar com imagens que se assemelhassem ao
cinema, e que os atores tivessem a precisão corporal da pantomima, mas, desejávamos,
também, trazer cenas de total nonsense, destruindo qualquer justificativa de sua existência e
com alegorias que interferissem na lógica que iria se criar ao longo da história. Nossa idéia
era trabalhar com uma história entrecortada, em que houvesse algumas cenas de intervenções
que causassem um estranhamento e distanciassem o espectador da trama principal e, logo
depois, o inserisse. Em nossa concepção imaginária, queríamos a “elasticidade” dos sonhos,
com situações que se assemelham ao cotidiano e se misturam com cenas de total
inverossimilhança, um espaço onde as coisas acontecem sem justificativa e sem lógica
racional.
Quando lemos o texto de Pinter, sua dramaturgia nos sugeriu imagens com
atmosfera de sonho, permeadas de alegorias que se instauraram em nosso imaginário, a partir
da situação absurda em que os personagens se encontravam. O espetáculo que foi criado em
nosso imaginário tinha todo o visual inspirado no cinema - figurinos, cores, luz, linguagem
dos atores, com exceção das cenas alegóricas, para as quais fomos buscar inspiração no
espetáculo circense e no desenho animado, de acordo com os comentários realizados no
capítulo anterior. Também não queríamos trabalhar com o grotesco explícito, seguindo as
influências do cinema e do mimo, preferíamos imagens poéticas, explorando os assuntos
propostos (opressão, medo, amizade, vulnerabilidade) de maneira sutil e, até mesmo, leve. No
entanto, para nós, havia a certeza de que, apesar de trabalharmos com uma linguagem menos
“agressiva” e direta, não iríamos deixar de tocar nas questões abordadas na dramaturgia
verbal escrita, a qual foi nossa “inquisidora” para a construção do espetáculo e é
compartilhada, conforme nossas reflexões expostas no primeiro capítulo, pelo universo
clownesco.
Com o espetáculo TRATTORIA, desejávamos colocar o espectador numa
encenação de “desenvolvimento instável”, ou seja, não queríamos uma peça com início, meio
e fim, mas algo que “perturbasse” um pouco a construção da lógica do espectador, deixando-o
176
“incomodado”, tal qual a peça de Pinter nos deixava. Para nós, era importante passar a
situação de instabilidade, vulnerabilidade e insegurança que Pinter apresentava no texto,
através de situações que ora possuíam “semelhança” com o cotidiano, ora total
inverossimilhança, parecendo um caminho entre sonho e realidade, como o momento em que
estamos meio dormindo meio acordando e não distinguimos bem esses limiares. Por esses
motivos, em TRATTORIA, não tínhamos a real preocupação de deixar claro para o
espectador quais as cenas que faziam parte da “realidade” da situação apresentada aos
personagens/clowns e as que eram sonho/imaginação/alegoria.
Em TRATTORIA fica muito claro que nosso objetivo não era a montagem do
texto de Pinter, e que a obra era utilizada para “respirar” o processo de encenação. A
dramaturgia do autor era “processada” e “transformada” em outra dramaturgia.
O processo de encenação de TRATTORIA foi relativamente curto, em termos
de dias de ensaios e em comparação com o tempo de montagem de GODÔ. Porém, os ensaios
se prolongavam pela madrugada, tínhamos hora para entrar, mas não para sair. Tivemos 27
longos ensaios, em sua maioria, com mais de cinco horas de duração, alguns duraram até oito
horas, sem interrupção. Podemos afirmar que o elenco de TRATTORIA foi excepcional, eles
se entregavam ao trabalho e à experimentação do processo.
O elenco era formado por alunos do Curso de Artes Cênicas da Universidade
Federal da Santa Maria: Daniel Plá, Daniela Varotto, Giovana Spadini e Marina Pelle e o
espetáculo teve a orientação da professora Adriane Gomes. Contávamos ainda, com a
colaboração de Rafael Sieg e Nivaldo Cordeiro.
O elenco que fazia parte deste processo não era o mesmo do anterior, neste, os
atores envolvidos já tinham passado pela descoberta do clown e trabalhávamos nossos clowns
há algum tempo. Com esta convivência anterior à montagem, nós nos conhecíamos e
conhecíamos a “energia ativa” de cada clown, e isto fez com que a montagem fluísse mais
rapidamente.
Quando começamos a montar o espetáculo, os ensaios foram totalmente
direcionados para a criação da codificação através de jogos, para a re-codificação e
estruturação das cenas e os encontros para assistirmos filmes. Desta vez, porém, nos
demoramos mais sobre os filmes dos Irmãos Marx e de desenhos animados. Mas isso não
quer dizer que deixamos de ver os filmes de Chaplin, Fellini, “O Gordo e o Magro” e Buster
Keaton. O que aconteceu foi a doação de um tempo maior para aqueles filmes que, para
aquele espetáculo, eram mais importantes. Apreciamos “A Bela e a Fera” do Walt Disney ,
para observarmos a dupla “Gaston e Lumière ”; “Alladin” do Walt Disney, observando a
177
dupla “Iago e Abú ” e o “Gênio”, que possui quadros de total nonsense; vários desenhos das
séries “Timão e Pumba”, do Walt Disney, “Tom e Jerry” da Metro Goldwin Meyer e “O Pink
e o Cérebro” e “Os Irmãos Warner”, da Warner Brothers. No fim, sublinhávamos as
características absurdas e clownescas que apareciam nas histórias e nos personagens.
Os ensaios de TRATTORIA, também foram estruturados em forma de etapas a
serem cumpridas, preparados com uma relação de atividades que se encaminhavam de
maneira evolutiva até alcançar o objetivo – situação da cena encontrada no texto, através da
metáfora e do jogo clownesco (não queríamos chegar à cena e sim a situação que ela trazia).
Decidimos que TRATTORIA teria no roteiro dois personagens centrais. A
partir da análise ativa, estudamos quais seriam as cenas indispensáveis para que a história
acontecesse – tal qual o processo de GODÔ - e estruturamos os ensaios de maneira a trabalhar
com os jogos e as metáforas e, criando assim, a dramaturgia do espetáculo.
As interferências que, no texto eram feitas pelas pessoas que estavam no andar
de cima, foram as inspirações para as cenas alegóricas do espetáculo e, desta maneira, além de
contribuírem para a criação da atmosfera de sonho que desejávamos, faziam parte dos
momentos em que, em nossa idéia, colocávamos o espectador na situação de incerteza, no que
diz respeito à realidade dos acontecimentos dentro do espetáculo. Inspirados pelos desenhos
animados e no nonsense dos Irmãos Marx, abstraímos e extrapolamos ao máximo aquelas
intervenções, o que gerou uma seqüência de quadros sem nenhuma lógica e sem aparente
ligação com o texto de Pinter. Mas nosso objetivo não era de criar uma lógica e, sim, criar
quadros que quebrassem a linearidade da história criada a partir do texto dramático e
causassem efeitos de estranhamento, distanciamento e/ou de irrealidade.
As cenas inspiradas nas intervenções das “pessoas do andar de cima” foram
criadas com a intervenção de outros dois clowns, que, em nossa organização dos ensaios e do
processo, passamos a chamar de “personificação” ou “organização”. Contudo, no espetáculo,
não tinham a intenção de ser a transposição daquelas pessoas ou organização. Em cena, estes
outros dois clowns perambulavam pelo palco e interagiam nas ações dos personagens centrais,
manipulando e/ou impondo situações de maneira jocosa ou imperativa.
Pensamos que a “personificação” dos ruídos, bilhetes e vozes que, no texto
dramático vinham do andar de cima, foi um recurso de nossa própria razão para a
extrapolação da lógica que a peça apresentava. Este recurso causava a desconstrução de
qualquer pensamento lógico que o espectador pudesse tentar construir em torno da situação
apresentada em cena.
178
Figura 32 - 1ª Cena “Contratação”
No texto dramático, nas
primeiras cenas, Gus e Ben falam sobre o
contrato que fizeram com a organização e
comentam sobre as dificuldades que tiveram
para chegarem até ali. Esta situação nos
suscitou a possibilidade de utilização de
jogos com obstáculos e competição entre equipes, os quais desencadearam, através da
codificação, as cenas em que os dois clowns recebem um papel e seguem as indicações
contidas nele até chegarem ao local (no
DVD, estas cenas estão denominadas de
“Contratação”, “Percurso”, “Ameaça”,
“Tentativas/ Torturas” e “Planejamentos”.
Fotografias de Paulo Fernando Machado).
Figura 33 - 2ª Cena -“Percurso”
Figura 34 - 5ª Cena “Cuidados”
Figura 35 - 4ª Cena “Tentativas / Torturas”
No texto de Pinter, numa procura de coisas para passar o tempo, os dois falam
do local e de como o vêem. Os jogos que esta situação inspirou resultaram numa cena em que
os dois clowns observam o local e procuram se ocupar com coisas banais, numa tentativa de
179
passar o tempo e disfarçar o incômodo que sentem ali (no DVD do espetáculo, esta cena é
denominada de “Cuidados”).
No espetáculo, um dos sons que amedrontava os dois clowns era de passos. Tal
elemento foi inspirado, no texto dramático, pela intervenção das vozes das pessoas. Este som
percorre o espetáculo em vários momentos e sempre é causador de medo.
Em meio a cenas densas em que a ação dramática se instaurava, eram
introduzidas cenas alegóricas, numa tentativa de criar a atmosfera de sonho/realidade
desejada. Como, por exemplo, na cena em que dois outros clowns entram dançando samba,
parando a ação dramática e fazendo com que todos os personagens dancem também, para logo
depois retomarem a ação normalmente (no DVD, a cena recebe o nome de “Dialética”).
Figura 36 - 7ª Cena “Dialética (Entremezzo I)” - Foto:Paulo Fernando Machado.
Esta cena nada
tem a ver com a situação do
texto dramático que a
inspirou, onde Gus e Ben
percebem que há uma grande
movimentação no andar
superior. E assim aconteceu
também com todas as cenas de alegoria e nonsense do espetáculo, que foram inspiradas nos
momentos em que havia a interferência das pessoas do andar de cima na ação dos
personagens da peça, através de vozes, barulhos e uso do montacarga.
No texto de Pinter, Gus e Ben conversam sobre as acomodações, roupas e
armas, até que ouvem, outra vez, barulhos que vêm do andar de cima, o que lhes causa certo
incômodo. Estas situações inspiraram jogos de “espionagem” e “ameaças” e resultaram, no
texto cênico, nas cenas em que os dois clowns, desconfiados, investigam o local e encontram
um objeto que lhes causa incômodo, o qual se torna o desencadeador de uma série de
desentendimentos entre eles. Neste momento, uma tensão dramática se instaura e o quadro
que segue é de total nonsense, os outros dois clowns entram, todos simulam um desfile de
moda e dançam ao som de uma música “tecno”. Finalizando o entremezzi, os dois clowns
permanecem sem entender o que aconteceu, o que causa total desconforto entre eles (no
DVD, estas cenas recebem os nomes de “Enganos”, “Desenganos”, “Aparências” e “
Percepção”).
180
Figura 37 - 10ª Cena “Aparências (Entremezzo II)” - Foto:Paulo Fernando Machado.
Em TRATTORIA,
temos outra cena de total
nonsense, acontece um aparente
sonho em que os dois
personagens comem, bebem e
dormem. Tal situação foi
inspirada nas interferências das
pessoas do andar de cima, em que
elas faziam pedidos de pratos exóticos, através do montacarga (no DVD esta cena é
denominada “Ilusões”). Nas cenas acima citadas, podemos perceber claramente que o texto
dramático não possui ligação com o texto cênico.
Figura 38 - 12ª Cena “Ilusões (Entremezzo III)” - Foto:Paulo Fernando Machado.
Seguindo o
roteiro criado a partir do texto
dramático, transposto para os
jogos e transformado pelos
clowns, conforme explicações
anteriores, TRATTORIA chega
ao fim reafirmando a situação
de total vulnerabilidade dos dois personagens. Em meio a ordens, brincadeiras e despedidas,
os dois seguem o “destino” que já está resolvido (estas cenas, no DVD são nominadas de
“Realidades”, “Condenação”, “Aceitação”, “Imposição/Resignação” e “Acordantes”).
Figura 39 - 17ª Cena “Acordantes” - Foto:Paulo Fernando Machado.
Acreditamos que
TRATTORIA extrapolou toda e
qualquer busca de lógica ou
justificativa, o principal conflito do
espetáculo construído era: os dois
clowns iam até aquele local e eram
obrigados a comer azeitonas, algo que
181
detestavam, tentavam resistir, mas eram condenados a fazê-lo. Este conflito surgiu durante o
processo de montagem do espetáculo, oriundo das situações que os clowns criavam através de
um exaustivo processo de exploração dos jogos, nos quais eles extrapolavam cada
metáfora/jogo lançado, trabalhando com o puro nonsense. Todo o processo de transformação
do texto dramatúrgico para o texto cênico aconteceu com a permissão de exacerbar os limites
das “referências” iniciais, que não eram o texto, e sim os jogos que surgiram a partir da
análise do texto, deixávamos que a imaginação e a ludicidade clownesca transformassem,
relativizassem e brincassem com a toda e qualquer metáfora criada.
Desta vez, a análise ativa do texto teve a orientação da professora Adriane
Gomes, porém vale lembrar que não somos profundas conhecedoras da “arte” da análise ativa
e, com toda a certeza, ela deve conter alguns pequenos equívocos ou deslizes que nós não
identificamos, mas que o olhar apurado de quem já tem uma prática maior, facilmente o
detectaria, então, esta análise não deve tomada como “verdade absoluta”. Seguindo o modelo
anterior, segue abaixo a análise ativa da obra de Pinter, a qual inspirou a criação do roteiro
para a transformação e criação do texto cênico e, posteriormente, o quadro de cenas do
espetáculo. Também, neste momento, estaremos sinalizando as cenas do espetáculo criadas
com inspiração nas situações indicadas.
Texto: O Montacarga
Autor: Harold Pinter
Personagens: Gus; Ben.
Análise Ativa Do Texto
A) Circunstância Anterior:
Universo: desconhecido, de ameaças.
A’) Situação Anterior:
Mostra que os dois se sentem seguros naquele espaço e que, fora dali, o universo os pressiona
e amedronta e para não mostrarem-se medrosos, mascaram a realidade.
* Se dá na 1
a
cena da peça - Situação: Ameaça
* Se dá na 1
a
cena do espetáculo - Situação: Contratação
* Circunstância dada: Contratação da organização sem nenhuma informação adicional
- Universo desconhecido e de ameaças.
B) Principal Circunstância Dada/Principal Conflito:
182
Luta para manterem-se seguros. Mostra que trocam constantemente de assunto quando se
sentem amedrontados, pois têm reservas quanto a saberem os verdadeiros motivos para
estarem ali.
* Se dá na 2
a
cena da peça - Situação: Tentativas
* Se dá na 2
a
cena do espetáculo - Situação: Percurso
* Circunstância dada: Foram contratados.
B’) Situação Fundamental:
Os dois personagens lutam para não cair em desespero.
* Se dá na 1ª e 2
a
cenas da peça - Situações: Ameaça e Tentativas
* Se dá na 3
a
e 4ª cenas do espetáculo - Situações: Ameaça e Planejamento
* Circunstância dada: Foram contratados por desconhecidos, sem saberem para quê.
C) Acontecimento Central:
O universo de ameaças, o desconhecido adentra o “mundo seguro” em que se encontravam.
* Se dá na 18
a
cena da peça - Situação: Esgotamento/Revolta
* Se dá na 12
a
e na 13ª cenas do espetáculo - Situações: Ilusões e Realidades
* Circunstância dada: Bilhetes das pessoas que estão no andar de cima.
D) Acontecimento Final ou Principal:
São envolvidos pelo medo e perdem suas forças.
* Se dá no segundo momento da 19
a
cena da peça - Situação: Resignação
* Se dá na 16ª e 17ª cenas do espetáculo - Situações: Imposição/Resignação e
Acordantes
* Circunstância dada: Ordens recebidas.
E) Linha Direta de Ação / Super Objetivo:
E’) Da peça:
“Luta por uma verdade”. Precisam de um “porto seguro”, um lugar onde não haja espaço para
o medo.
E”) Do personagem:
Ben: Luta por uma proteção.
Gus: Luta para sobreviver ao desconhecido e ao medo.
F) Tema da peça: Insegurança / Vulnerabilbidade
183
G) Idéia da peça:
O medo se faz presente por mais que o homem lute. O desconhecido traz o desespero e, para
não sermos derrotados, mascara-se a realidade, prendendo-se a questões com menos
importância que a de conhecer a si próprio e ao outro.
Quadro de cenas do espetáculo, construído a partir da análise ativa do texto:
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA-
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
Contratação Mostrar que Gus e
Ben foram
contratados pela
organização.
Contratação dos
dois.
Gus
Ben
“Organização”
- Acompanhar Ben.
- Oficializar a
contratação e pegar o
mapa para chegarem ao
local.
- Contratar e certificar-se
de que chegarão ao local.
- Não sabe o que está
acontecendo.
- Não sabe para onde vão.
- Atordoamento dos dois.
- Acompa-
nhar
- Conferir
- Despachar
Percurso Mostrar que os dois
não sabem para
onde vão.
Receberam o mapa. Gus
}
Ben
“Organização”
- Descobrir o caminho.
- Fazer com que os dois
cheguem até o local.
- Medo do desconhecido.
- Não se sentem bem com
a situação em que estão.
- Executar
- Comandar
Ameaça / Mostrar que Gus e
Bem foram
contratados.
Quase não
encontram o local
Gus
}
Ben
“Organização”
- Seguir o mapa.
- Fazer com que
cheguem ao local.
- Não conhecem o local.
- Os dois não conhecem o
local.
- Efetivar
Encaminhar
4ª Tentativas /
Torturas
Mostrar que Gus e
Ben terão de
cumprir ordens.
Os dois tiveram
“dificuldades” com a
situação – medo
Gus
}
Ben
“Organização”
- Resistir à situação.
- Fazer com que
compreendam que devem
cumprir ordens.
- Medo do desconhecido.
- Resistência dos dois.
- Resistir.
- Insistir.
5ª Planejamen-
tos
Mostrar que a
“organização” tem
estratégias para
obrigá-los a cumprir
as ordens.
Resistência dos dois. Gus
}
Ben
“Organização”
- Resistir à situação.
- Forçá-los a cumprir as
ordens.
- Medo do desconhecido.
- Resistência dos dois.
- Resistir.
- Inquerir
Cuidados Mostrar que os dois
sabem do perigo que
há lá fora.
A ameaça da
presença da
“organização”
Gus
}
Ben
- Certificarem-se de que
não serão ouvidos.
- Medo de serem
percebidos.
- Certificar-
se
7ª Dialética
(entremezzo
1)
Mostrar que os dois
sentem necessidade
de esquecerem da
situação em que
estão.
Presença da
“organização”
Gus
}
Ben
“Organização”
- Esquecer a situação em
que estão.
- Fazer-se presentes.
- Lembranças e medos.
- Medo que os dois têm.
- Disfarçar
- Persuadir
8ª Enganos Mostrar que
começam a
desconfiar deles
mesmos.
Os dois sentiram a
presença da
“Organização”
Gus
Ben
- Descobrir se Bem sabe
de algo mais.
- Descobrir se Gus sabe
de algo mais.
- Desconfiança de Ben.
- Desconfiança de Gus.
- Investigar
184
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA-
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
Desenganos Mostrar que o medo
e a instabilidade
provocada pela
“organização” está
presente.
Lembrança e
percepção da
existência da
“organização”
Gus
Ben
Defender-se de Bem e da
“organização”.
Fazer Gus entender que
os dois estão à mercê da
“organização”.
- Conformidade de Ben
com a situação.
- Gus cria defesas para ele.
- Defender-
se
-Impressio-
nar
10ª Aparências
(entremezzo
2)
Mostrar que os dois
são manipuláveis.
Interferência da
“organização”
Gus
}
Ben
“Organização”
- Compreender a situação
que se instaura.
- Manipular os dois
através do medo.
- Estranhamento da
situação.
- Percepção e
estranhamento dos dois.
-
Conjeturar
- Manipular
11ª Percepção Mostrar que os dois
ficam confusos com
as interferências da
“organização”
Interferência da
“organização”
Gus
}
Ben
- Compreender a situação
em que se encontram.
- Desconfiança do outro e
da relação deste com a
“organização”
- Atinar /
Investigar
12ª Ilusões
(entremezzo
3)
Mostrar que os dois
perdem o senso da
realidade.
Cansaço que se
instaura, juntamente
com a interferência
da “Organização”.
Gus
}
Ben
“Organização”
- Satisfazerem seus
impulsos.
- Manipular os dois.
- Percebem de que estão
em uma situação de risco.
- Satisfaze-
rem-se
- Manipular
13ª Realidades Mostrar que o
universo
desconhecido se
impõe.
Interferência e
lembrança da
existência da
“organização”.
Gus
Ben
“organização”
- Descobrir qual foi a
mensagem que Ben
recebeu.
- Prestar atenção às
ordens dadas.
- Fazer com que Ben
receba a mensagem.
- Ben tem cuidados com a
mensagem recebida.
- Gus tenta descobrir qual
foi a mensagem que Bem
recebeu
- Fazer com que Ben
receba a mensagem.
- Inquirir
-Concentrar
- Impor
14 Condenação Mostrar que os dois
entendem que
deverão cumprir as
ordens.
Imposição /
interferência da
“organização”.
Gus
Ben
“Organização”
-Tenta fugir da execução
da ordem
- Executar as ordens.
- Informar as ordens.
- Ben aceita as ordens.
- Gus disfarça.
- Os dois tentam resistir.
- Burlar
- Cumprir
- Determi-
nar
15ª Aceitação Mostrar que o
universo de medo
ganha forças.
Presença da
“organização”
Gus
}
Ben
“organização”
- Perceber a situação em
que estão.
- Persuadir para execução
das ordens
- Não querem ser
derrotados.
Desconforto, dos dois,
com a situação.
- Encorajar-
se
- Incutir
16ª Imposição /
Resignação
Mostrar que os dois
são vencidos pelo
universo
desconhecido e pelo
medo
Ordens enviadas. Gus
}
Ben
“Organização”
- Resignar-se ao destino.
- Impor a execução das
ordens.
- Inconformidade com a
opressão.
Inconformidade dos dois.
- Confortar-
se
Imputar
17ª Acordantes Mostrar que o
universo
desconhecido e de
medo vence.
Imposições, ordens e
manipulações da
“organização”
Gus
}
Ben
“organização”
-Resignar-se ao destino.
- Certificar-se de que as
ordens serão cumpridas.
- Sentimentos de derrota.
- Protelação da execução
das ordens pelos dois.
- Resignar-
se
- Certificar
TRATTORIA teve sua estréia no dia 15 de janeiro de 2001 e não cumpriu
temporada, nem viajou para festivais. Isto, por conta do nosso desejo de fazer um novo
185
experimento, refleti-lo e concebê-lo academicamente, num programa de pós-graduação,
desejo este, que nos levou a nos despedir da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em
busca de novos horizontes.
Para finalizarmos os apontamentos sobre as montagens dos espetáculos,
partiremos para as anotações do último espetáculo construído com o processo apresentado –
JOGUETE.
IV.2.3. JOGUETE – Nosso espetáculo e outras informações
A leitura da obra de Beckett nos tocou o imaginário de maneira marcante, as
imagens que vislumbrávamos eram nítidas. Novamente, o cinema mudo e a pantomima se
faziam muito presentes. JOGUETE foi concebido, primeiramente, no plano imaginário, com
nossos olhos voltados para o trabalho do ator, queríamos chegar num alto grau de codificação
corporal, com a precisão e o controle do corpo de um mimo, mas também com sua poesia e
sutileza. Mais uma vez, buscávamos imagens que se assemelhassem com o cinema, mas que
trouxessem a ludicidade do desenho animado. Almejávamos abordar os assuntos que o texto
dramatúrgico nos trazia de maneira jocosa, embora não menos trágica ou cruel. Queríamos
trabalhar com aquela “crueldadezinha” da convivência cotidiana, das pequenas chantagens,
das pequenas manipulações, das pequenas feridas que são machucadas muitas vezes e acabam
se transformando numa úlcera incurável, enfim, tratar da crueldade e da tragicidade sutil,
aquela que se torna imperceptível aos olhos de quem não a sofre, aquela que, ao longo de uma
vida, acaba se tornando um “costume”. Ninguém melhor que um clown para falar do
infortúnio de uma vida, de uma situação que vai se acumulando até se tornar insustentável.
Para nós, o cinema mudo e o desenho animado iriam trazer estas características
para o espetáculo. Todo o processo com os atores exigia um grande esforço físico, o trabalho
exaustivo com a pantomima para que o corpo desenhasse a ação no espaço e para que o
movimento tivesse a suavidade e a poesia do mimo aliadas às imagens envolvidas na
atmosfera do cinema mudo e com a ludicidade do desenho animado.
Os elementos do espetáculo, figurinos, iluminação, trilha sonora, objetos foram
concebidos com os olhos voltados para a construção visual de imagens que se aproximassem
do cinema, principalmente nos momentos tensos/dramáticos. Os momentos de relaxamento,
dentro da encenação, tiveram influência do desenho animado, em sua ludicidade e maneira
jocosa de abordar os assuntos que fazem parte das questões do ser humano, conforme
186
explicações no capítulo anterior. Durante o treinamento e os ensaios, buscamos explorar todas
as linguagens para que pudéssemos extrair de cada uma aquilo que queríamos, indo do
grotesco, das necessidades do baixo ventre, até o sublime e os sentimentos nobres da alma.
Mas sabíamos que não íamos pôr em cena o “exagero”, desejávamos um equilíbrio entre o
grotesco e sublime e pensamos que quem iria executar isso seria a poesia da imagem e da
ação. Essa foi a “construção” de JOGUETE, inicialmente, em nosso imaginário e que
tentamos levar para o texto cênico ao longo do processo.
JOGUETE foi montado durante o ano de 2003. Os ensaios iniciaram em
meados de março e estreamos no dia 27 de junho, do mesmo ano. Ao longo destes quatro
meses, somamos 77 ensaios, mais os encontros para assistirmos filmes.
Os ensaios de JOGUETE tiveram grande significação para nosso trabalho.
Saímos de Santa Maria, no Rio Grande do Sul e chegamos a Salvador da Bahia, não
conhecíamos as pessoas, nem as instituições, tudo fazia parte de uma nova fase e, de certa
forma, de um recomeço.
Iniciamos bem, fizemos amizades e tivemos a colaboração e o empenho de um
grande amigo - Érico José, na época colega de disciplina no Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal da Bahia, agora, professor desta mesma instituição. Ele nos serviu de
“Mestre de Cerimônias”. Foi através de sua amizade, simplicidade e entusiasmo que fomos
sendo apresentados a cada uma daquelas pessoas que integrariam, posteriormente, o elenco do
espetáculo.
Através das intervenções competentes de Erico José, formamos um grupo de
trabalho com diversos referenciais culturais - como costumávamos brincar. Além do
referencial gaúcho da direção, fazia parte do grupo, a pernambucana Diana Ramos, a
“carioquíssima” Jacyan Castilho, o carioca “abaianado” Fernando Lopes, a baiana “legítima”
Andréa Rabello e, para completar, posteriormente, ganhamos a companhia da potiguar
Simone de Araújo. Para nós, esta “mistura cultural” constituía um “material humano”
especial, pois tínhamos sintaxes de vida com referenciais diferentes, o que enriquecia, ainda
mais, as possibilidades de jogos que seriam propostos.
O grupo teve grande harmonia, e os ensaios, estruturados da mesma maneira
das montagens anteriores, de forma evolutiva, foram resultando na construção do espetáculo.
Como o grupo era constituído por integrantes que “estavam se conhecendo”, os
primeiros encontros foram destinados a uma aproximação entre as pessoas e posterior a esta
etapa de entrosamento e conhecimento, trabalhamos no processo de descoberta dos clowns – a
energia ativa de cada um, a “sincronia” do grupo e as duplas que melhor se “encaixavam”.
187
Também nos reuníamos para assistir filmes e além daqueles filmes e séries de desenhos
animados que citamos anteriormente, também, assistimos gravações de peças de commedia
dell’arte - os espetáculos “Misterio Buffo”, com direção de Dario Fo e atuação de Dario Fo e
Franca Rame e “Vida e Morte de Arlequin” com direção de Patrick Pezin.
Tal como nos outros processos de montagem, o trabalho de estudo e análise do
texto teve início antes do trabalho com os atores, mas desta vez não contávamos com uma
orientação ou supervisão e, por isso, acreditamos que ela contenha pequenas falhas, mas que,
mesmo assim, serviu-nos como uma segurança. O trabalho com o texto teve início em janeiro
de 2003 e o trabalho com os atores, em março deste mesmo ano. Finalizado o processo de
iniciação dentro das técnicas de clown, começamos a articular os possíveis jogos e metáforas
do texto, descobrindo, a partir da personalidade de cada um, novas possibilidades de
abordarmos os assuntos inspirados no texto de Beckett.
Desta maneira, fomos construindo o espetáculo, descobrindo possibilidades,
codificando, re-codificando partituras e dando forma ao espetáculo.
No dia 27 de junho de 2003, no Teatro Gregório de Mattos, em Salvador – BA,
estreou JOGUETE, e a equipe que esteve envolvida nos revela o porto que é Salvador. A
potiguar Simone Araújo recebia o público e o encaminhava para as arquibancadas, o recifense
Erico José iluminava o palco, a cearense Vládia Queiroz embalava o público operando a trilha
sonora e, no palco, carioca, baiana, carioca/baiano e pernambucana atuavam sob a direção de
uma gaúcha.
Acreditamos que tínhamos uma boa equipe. Diferentes “brasis” envolvidos e
unidos pelo teatro. Não podemos esquecer de mencionar que, posteriormente, em 2004,
Jacyan Castilho teve de se ausentar do espetáculo e ganhamos o esforço, o companheirismo e
a dedicação do ator caruaruense (PE) Jorge Baia, que se empenhou, juntamente com seu
clown, Zimborrão, numa jornada de ensaios que rendeu uma ótima harmonia no palco e no
grupo.
Em sua trajetória, JOGUETE também nos trouxe outras grandes parcerias,
ganhamos o companheirismo, a amizade e, acima de tudo, o trabalho com dedicação e
qualidades incomparáveis de Samuel André, um soteropolitano que chegou à equipe para
substituir Erico José na montagem e execução do plano de luz, e Léo Azevedo, tamm
morador de Salvador, um fotógrafo sensível que, através de sua lente, registrou momentos
belíssimos do espetáculo e do grupo.
188
Sabemos que estes comentários podem, talvez, aparentar uma visão romântica,
mas JOGUETE ainda está muito próximo de nossa memória, e é difícil nos distanciarmos
destes pequenos detalhes - sotaques e brincadeiras - que enriqueciam nossos encontros.
Voltamos ao período de estréia do espetáculo. Durante toda a temporada dos
meses de junho, julho e agosto de 2003, todos nós éramos artistas e espectadores, fazíamos
nosso teatro e “espectávamos” a reação do público.
JOGUETE era, para nós, uma visão jocosa daquilo que o texto de Beckett nos
apresentava, mas isso não quer dizer que se tratava de um espetáculo simples ou fácil.
Primeiro, percebíamos o estranhamento do público e, a partir da segunda cena do espetáculo,
o espectador compreendia como funcionava aquele universo. No palco, eram apresentados
quatro clowns dentro de uma casa - este era o universo apresentado ao espectador, que o
tomava como única referência para o desenvolvimento da história, num universo mesquinho,
tirano, de opressão, manipulação e interdependências que impediam a sucessão de tentativas
de libertação daquele mundo. A análise do texto “Fim de Jogo” de Beckett nos serviu como
inspiração para criarmos o pequeno universo de cada clown e o grande universo da peça. A
luta por desejos diferentes, a interdependência em vários níveis, a escravidão através de
sentimentos generosos ou pela falta de crença no próprio ser humano eram mostradas com
várias facetas e de maneira chistosa, através de metáforas que somente a imaginação e a
lógica de um clown poderiam criar.
A história que mostrávamos no palco tinha uma trama muito próxima da obra
de Beckett, porém não havia os parentescos, as pessoas estavam ali e pronto, não havia
justificativa para a “união” destas dentro daquele espaço.
“Fim de Jogo” traz como personagens Hamm, cego e paraplégico, que vive
numa cadeira de rodas, e, apesar de depender de Clov para todas suas necessidades vitais
(comer, dormir, fazer xixi), é quem domina a todos. Clov faz todos os serviços da casa, cuida
de Hamm e de seus pais, Negg e Nell, os quais ficam “largados” dentro de latas de lixo e o
incentivam a partir, este quer ir, mas sente-se responsável por todos e, de certa forma, grato
pelo fato de estar ali, já que Hamm o aceitou quando foi abandonado ainda criança. A história
destes quatro personagens gira em torno do desejo de Clov de libertar-se, de experimentar o
mundo que está lá fora ou de permanecer ligado a quem lhe deu abrigo.
No espetáculo, também há a dominação de um clown/personagem sobre todos
os outros. Dois deles, apesar de estarem sob as ameaças do “tirano”, vivendo reservados a um
pequeno espaço, sofrendo os desmandos e os abusos de poder do dominador, incentivam o
189
outro a partir. Para Clov, é tempo de descobrir se há outra possibilidade de vida, embora se
sinta preso àquele mundo de alegrias miúdas.
Para a construção do espetáculo, trabalhamos com os temas e as situações que
Beckett aborda no texto. Podemos dar o exemplo da cena em que Hamm pergunta, de forma
insistente, se Clov tem prestado atenção nos feijões, se viu algum broto, se estão nascendo.
Em primeira instância, o que Hamm investiga é se, naquele universo seco e árido em que
vivem, há a possibilidade de brotar vida. O receio que Hamm tem é de que o surgimento de
uma vida nova possa fazer com que Clov pense numa vida diferente para si, longe dali. Para
ele, aqueles brotos significam uma vida nova, que pode instigar Clov a sair. Sendo assim, no
momento em que este anuncia que eles não brotaram, Hamm entende como a constatação da
morte e também como o fim das expectativas de Clov.
Figura 40 - 5ª Cena “Reflexões” - Foto: Léo Azevedo.
Esta situação inspirou e se
transformou na observação do plantio de
um fio de cabelo de Zimborrão (Clov),
retirado por Bonna Bonacha (Hamm), num
ato de tortura, (no DVD, a cena está
nominada de “Reflexões”). Para nós, no
espetáculo, o mais importante era fazer
alusão a uma tentativa frustrada de fazer
surgir uma nova vida, uma tentativa que é
levada ao fracasso. Porém, a questão é colocada de maneira lúdica e brincante, tal como no
desenho animado.
Figura 41 - 15ª Cena “Possibilidades” - Foto: Léo Azevedo
No texto de Beckett, a
cena em que Clov encontra uma
pulga e, juntamente com Hamm,
decide que é melhor matá-la tem
grande significado para nossa
percepção da relação dos dois. Esta
cena inspirou uma situação no
espetáculo que, a nosso ver, revela
muito da relação entre os personagens, depois de matar a pulga em acordo com Hamm,
Zimborrão/Clov percebe que aquele ato o aproximou do mesmo e tem novo ímpeto de fugir.
190
Bonna/Hamm, como vingança, o compara à pulga, mostrando o quão insignificante ele é. Para
nós, estas cenas, inspiradas nas relações entre os personagens que Beckett nos apresenta no
texto, no espetáculo, tinham o objetivo de mostrar como aquelas duas pessoas se viam na
relação e de como cada um via o outro.
Figura42 - 16ª Cena “Metáforas” - Foto: Léo Azevedo
No texto
dramático, Beckett usa
diálogos em que Hamm fala
de Clov como se estivesse
falando de um cachorro, tais
rubricas nos inspiraram a
criar jogos de adestramento e
resultaram, em JOGUETE,
nas cenas “Possibilidades” e
“Metáforas”, nas quais, a nosso ver, era demonstrado o tipo de relação que existia entre eles
(no DVD as cenas possuem os mesmos nomes).
Podemos citar outra situação que nos inspirou a construir outra cena, a qual, no
espetáculo se transformou num momento de “tensão”. Em “Fim de Jogo”, Hamm diz que não
dará mais de comer a Clov e este responde “Então morreremos”. Hamm, percebendo que se
Clov morrer, ele também morrerá, diz “Te darei um biscoito por dia, biscoito e meio. Assim,
não morrerás” e o outro responde “Então não morreremos”. Em primeira instância, sob nosso
ponto de vista, Hamm quer dizer que tem o poder sobre a vida de Clov, como no texto ele é o
“guardião” de toda a alimentação da casa e, de certa forma, das vidas, ele decide quem vive e
quem morre. Esta situação fez com que propuséssemos aos clowns jogos teatrais de
“chantagem” e “tortura” (seguindo o mesmo desenvolvimento dos exemplos dados nos
capítulos II e III), que se transformaram, após o
trabalho de codificação e re-codificação, numa
cena em que Bonna/Hamm provoca
Zimborrão/Clov com biscoitos, “manipula-o” e,
por último, tortura-o até que desfaleça; depois,
receoso por sua própria vida, reanima-o (no DVD,
a cena é denominada de “Punições” e
“Intromissão”).
Figura 43 - 3ª Cena “Punições” - Foto: Léo Azevedo
191
Mais um exemplo de nosso processo: no texto de Beckett, Hamm conta como
Clov chegou a sua casa e também sobre o romance que está criando. A partir desta situação,
no espetáculo, criou-se uma
apresentação de teatro de
bonecos, em que era contada
a história da chegada de
Zimborrão/Clov naquela
casa (no DVD, a cena é
nominada de
“Negociações”).
Figura 44 - 17ª Cena “Negociações” - Foto: Léo Azevedo
A relação dos pais de Hamm com Clov também nos inspirou a estabelecer a
relação Zimborrão/Clov – Pelúcia/Nell – Espiga/Negg dentro do espetáculo. Em “Fim de
Partida”, Nell, segurando o braço de Clov, diz “Deserta!”, para nós, isto quer dizer que ela
sabe que ali dentro ele não terá futuro diferente do deles, que é o de viver sob a tirania de
Hamm, e o incentiva a partir. No espetáculo, Pelúcia/Nell e Espiga/Nagg incentivam
Zimborrão/Clov a partir, entregando-lhe os acessórios para que se prepare para a viagem.
Primeiro é o chapéu, depois, os sapatos e, por último, antes de morrerem, o aceno de adeus.
Enfim, poderíamos discorrer todas as transformações que a dramaturgia textual de “Fim de
Jogo” sofreu para chegar à dramaturgia cênica de JOGUETE, mas isto seria uma longa
narrativa.
Ao longo de sua existência, JOGUETE foi conquistando o público, cumprindo
temporadas e viajando por cidades do interior da Bahia, Pernambuco e Ceará. Consideramos
serem relevantes os caminhos percorridos pelo espetáculo, pois podem revelar o quanto o
espetáculo “funcionava”. Apresentamos para públicos diversificados, desde um público culto
ou acadêmico até leigos ou populares. A nomenclatura utilizada não nos interessa
verdadeiramente, o que nos interessa é que JOGUETE chegou a platéias diferenciadas, e
todos se viam refletidos nos dilemas apresentados no palco. As experiências de debates e
depoimentos do público sobre o espetáculo sempre foram proveitosas e, muitas vezes, nos
mostravam leituras diferentes daquilo que esteve no palco.
Continuando nossa visão romântica de nosso teatro - em Guaramiranga,
durante o debate, houve um depoimento de um espectador que nos surpreendeu e emocionou.
192
Um rapaz disse que no final do espetáculo ele pensou que não havia entendido nada, pois
enquanto todos riam e batiam palmas, ele chorava e que, para ele, aquele espetáculo o fazia
lembrar dos retirantes, que devido ao problema da seca não sabiam se ficavam no sertão ou se
partiam para São Paulo, rumo ao desconhecido e a uma possível vida nova. Aquele
depoimento nos emocionou e nos fez ver que, enquanto os membros da banca, respeitados
doutores e estudiosos do teatro, em conjunto com a direção do espetáculo, faziam ligações
entre técnicas, teorias e filosofias, a simplicidade do rapaz nos dizia algo muito maior – no
palco, via-se o ser humano e seus dilemas, pois ele se viu e identificou-se com aquilo.
Outra apresentação que nos marcou foi recente, no Largo Pedro Archanjo, no
Pelourinho, em Salvador. A peça foi apresentada a céu aberto e para um público que muitos
diziam “é muito popular, não vai entender”. Todas as noites entrávamos prontos para ver e
ouvir o público reclamando e saindo no meio do espetáculo. Qual não foi nossa surpresa em
ver que aquele público “popular” acompanhava o espetáculo com atenção e torcia pelo final
que, para ele, era feliz. Uma noite, na primeira fileira, estavam sentados uma criança, por
volta de cinco anos, e um adolescente que necessitava de cuidados especiais, pois tinha
deficiências físicas. Um acompanhava o outro, um era o companheiro do outro e eram irmãos.
Na cena em que Bonna (desempenhando o papel de Hamm) sufocava Zimborrão (que
desempenhava o papel de Clov) com biscoitos, até seu desfalecimento, a criança chorava e
apontava para o palco dizendo que o palhaço tinha morrido, enquanto que o irmão adolescente
olhava tocado e chocado para a cena. O que passava pela cabeça dos dois, não sabemos, mas
quando o palhaço acordou, os dois se mostraram contentes, prestando atenção em cada ação
que o palhaço fazia. O modo como eles se envolveram na trama foi, para nós, mais uma vez,
uma revelação – o espetáculo tocava as pessoas e os envolvia de maneira verdadeira.
Nesta praça, fizemos quatro apresentações e, a cada dia, nos surpreendíamos.
Outra noite, o público estava participativo, não se conformava com o tipo de vida retratada no
palco, davam palpites, reclamavam e, no final, quando Zimborrão (Clov) saiu da casa, o
público se comportou como numa torcida de futebol, eles comemoravam um gol muito
esperado e que definia o jogo. Outra vez, saímos satisfeitos da apresentação.
Para finalizarmos, segue abaixo a análise ativa do texto, onde temos a certeza
de conter algumas falhas e a mesma não deve ser tomada como “verdade absoluta” e,
posteriormente, o quadro de cenas do espetáculo. Seguindo os exemplos anteriores, tamm
colocamos, na análise do texto, as cenas inspiradas nas situações apresentadas.
193
Texto: “Fim de Jogo”
Autor: Samuel Beckett
Personagens: Hamm; Clov; Negg; Nell
Análise Ativa Do Texto:
A) Circunstância Anterior:
Universo: de opressão (opressão e manipulação, através da interdependência)
A’) Situação Anterior:
Mostra que os personagens são obrigados a viver num mundo de interdependência, opressão e
manipulação, sem perspectivas.
* Se dá na 1
a
cena da peça - Situação: Visagem
* Se dá na 1ª cena do espetáculo - Situação: Visagem
*Circunstância dada: Universo de interdependência e opressão.
B) Principal Circunstância Dada / Principal Conflito:
Luta contra o universo de opressão e interdependência, mostra que os personagem têm
desejos de liberdade.
* Se dá na 1ª e 2
a
cena da peça: Situações: Visagem e Sondagem
* Se dá na 1ª e 2
a
cena do espetáculo: Situações: Visagem e Sondagem
* Circunstância dada: Possibilidade de outro modo de vida.
B’) Situação Fundamental:
Os personagens percebem que há possibilidade de outro modo de vida.
* Se dá na 2
a
cena da peça - Situação: Sondagem
* Se dá na 2
a
cena do espetáculo - Situação: Sondagem
* Circunstância dada: Percepção de que há outro modo de viver.
C) Acontecimento Central:
O universo de interdependência, opressão e manipulação ganha força, os personagens se vêm
presos àquele tipo de vida.
* Se dá na 24ª cenas da peça - Situação: Averiguações
* Se dá na 19
a
cena do espetáculo - Situação: Incomodações/Averiguações
* Circunstância dada: Hamm impede Clov de partir, afirmando que deve a vida a ele.
D) Acontecimento Final ou Principal:
194
Clov retoma forças para partir.
* Se dá na 25
a
cena da peça - Situação: Desabafos
* Se dá na 20
a
cena do espetáculo - Situação: Desabafos
* Circunstância dada: Desistência de viver de Nell e Negg.
E) Linha Direta de Ação / Super Objetivo:
E’) Da peça:
“Luta por uma liberdade”. É preciso libertar-se das interdependências.
E”) Do personagem:
Clov: Libertar-se da opressão e tirania de Hamm.
Hamm: Mostrar-se superior, convencendo Clov que este necessita dele.
Negg: Lutar para sobreviver. Lutar pela companhia de Nell. Lutar contra a opressão de
Hamm.
Nell: Lutar para sobreviver ao descaso e opressão de Hamm.
F) Tema da peça: Luta por uma liberdade.
G) Idéia da peça:
Num mundo de interdependências e opressão, a possibilidade de viver de outra maneira leva à
luta por uma liberdade.
Abaixo, apresentaremos o quadro das cenas do espetáculo, de acordo com
modelos anteriores.
Quadro de cenas do espetáculo, criado a partir da análise ativa do texto:
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA-
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
Visagem Mostrar que Clov
tem desejos de viver
de outra maneira.
Tomada de
consciência de que
há outro modo de se
viver – Cansaço do
universo de
opressão.
Clov Preparar-se para partir. Presença de Hamm. Preparar-se
Sondagem Mostrar que Hamm
percebe o que está
acontecendo com
Clov.
Clov prepara-se para
partir.
Clov
Hamm
Partir.
Saber quais são as
verdadeiras intenções de
Clov.
Presença de Hamm.
Cuidados de Clov para não
se delatar.
Espreitar
Espionar
195
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA-
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
Punições Mostrar que Hamm
detém o poder sobre
Clov e o manipula.
Hamm percebe a
vontade de mudança
de Clov.
Clov
Hamm
Negg
Não deixar que Hamm
perceba seu desejo.
Fazer Clov perceber que
é ele quem comanda.
Inteirar-se dos fatos.
Investigação e provas que
Hamm o submete.
Resistência de Clov.
Medo de Hamm.
Executar
Testar
Espiar
Intromissão Mostrar que todos
estão sob as ordens
de Hamm e vivem
sua tirania.
Punições a que
Hamm submete
Clov.
Clov
Hamm
Negg
Recuperar suas forças.
Dominar a todos.
Saciar suas necessidades.
Ordens de Hamm.
Receio de Clov.
Tirania de Hamm.
Intermediar
Comandar
Solicitar
Reflexões Mostrar que vivem
num universo sem
perspectivas.
Comandos de
Hamm.
Clov
Hamm
Vislumbrar nova
perspectiva de vida .
Convencer Clov de que
não há outras
perspectivas.
Persuasão de Hamm.
Esperança de Clov.
Esperar
Persuadir
Sobreviventes Mostrar que há mais
gente na casa que
sobrevive àquela
situação.
Hamm dorme. Negg
}
Nell
Terem a companhia do
outro.
Medo que Hamm acorde.
Conforta-
rem-se
Comentários Mostrar que os dois
mantêm uma relação
diferente da de Clov
e Hamm.
Encontram no outro
o conforto para
sobreviverem ao
universo
Negg
}
Nell
Manterem-se salvos da
tirania de Hamm, para
tanto, mantém relação de
carinho e cuidados
recíprocos.
Medo de que Hamm
acorde.
Conforta-
rem-se /
animarem-
se
“Causos” Mostrar que Negg e
Nell mantêm boas
lembranças e
relações entre eles.
Estarem juntos. Negg
}
Nell
Se ocuparem
conjuntamente.
Receio de que Hamm
acorde.
Fortalece-
rem-se
Resolução Mostrar que os dois
têm apenas um ao
outro.
Necessidade de
confortarem-se
Negg
}
Nell
Hamm
Se ocuparem
conjuntamente.
Fugir da realidade,
dormindo.
Hamm acorda.
Barulho realizado por
Negg e Nell.
Consolarem
-se
Descansar
10ª Descrição /
Passeios
Mostrar que Hamm
comanda Clov
conforme sua
vontade.
Hamm é acordado
pelo barulho
produzido por Negg
e Nell.
Clov
Hamm
Obedecer a Hamm.
Criar ordens para Clov
executar.
Caprichos de Hamm.
Cansaço de Clov.
Efetivar
Coordenar
11ª Apoio Mostrar que Negg e
Nell incentivam
Clov a partir.
Cansaço de Clov. Clov
Hamm
Negg
}
Nell
Recuperar forças.
Manter Clov sob suas
ordens.
Incentivar Clov
Despotismo de Hamm.
Cansaço de Clov.
Medo de Hamm.
Recobrar
Exigir
Incentivar
12ª Considera-
ções
Mostrar que apesar
da crueldade de
Hamm, Clov tem
preocupações em
relação a ele.
Chantagens de
Hamm.
Clov
Hamm
Não afastar-se de seu
desejo.
Não deixar Clov partir.
Preocupações e
considerações com Hamm.
Desejo de Clov em
conhecer outro modo de
viver.
Ponderar
Persuadir
13ª Destinos Mostrar que todos
naquela casa
possuem os mesmos
destinos.
Clov desiste de
partir.
Clov
Hamm
Negg
}
Nell
Sobreviver.
Manter Clov consigo.
Permanecerem juntos.
Possessividade de Hamm.
Desejos de Clov.
Medo de Hamm.
Suportar
Segurar
Confraterni
zar
196
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA-
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
14ª Profecias Mostrar como
Hamm anuncia o
mundo fora dali para
Clov.
Hamm sabe que
Clov quer partir.
Clov
Hamm
Não deixar que Hamm
descubra sua intenção de
partir.
Fazer com que Clov
saiba que fora dali não há
como sobreviver.
Investigações de Hamm.
Dissimulação de Clov.
Dissimular
Convencer
15ª Possibilida-
des
Mostrar que todos
possuem crueldade e
que não há
possibilidade de
outras vidas
Surge outra vida na
casa / universo, que
não a deles.
Clov
Hamm
Tentativa de se igualar a
Hamm.
Induzir Clov a crer que
eles são iguais.
Sua própria natureza.
Natureza de Clov.
Projetar
Elucidar
16ª Metáforas Mostrar como
Hamm vê Clov,
realmente.
Clov não se iguala a
Hamm.
Clov
Hamm
Retratar-se com Hamm e
obter um momento de
relaxamento
Convencer Clov de que
ele não é nada sem a sua
companhia.
Mágoas que Hamm
carrega.
Desejos de liberdade de
Clov.
Retratar
Dispersar /
Manipular
17ª Negociações Mostrar como Clov
chegou até Hamm.
Hamm quer acabar
com a vontade de
Clov.
Clov
Hamm
Negg
}
Nell
Não se deixar levar pelo
sentimento de “gratidão”
Convencer Clov de que
deve ser grato a ele por
estar vivo.
Fazer um acordo com
Hamm.
Argumentos / Cobranças
de Hamm.
Dúvidas de Clov.
Despotismo de Hamm
Constatar /
Reconhecer
Simular
Acordar
18ª Cobranças Mostrar que Hamm
também tem
obrigações para com
os outros.
Provocações de
Hamm.
Clov
Hamm
Negg
Nell
Compreender a situação
em que está.
Se manter com o poder.
Exigir a “gratidão” de
Hamm para com eles.
Apoiar Negg e
sobreviver
Tirania e exigências de
Hamm.
“Ameaças” de Negg.
Dissimulação de Hamm.
Sua natureza frágil.
Analisar
Lograr
Exigir
Acompa-
nhar
19ª Incomoda-
ções /
Averiguações
Mostrar que o
universo de
opressão ganha
forças.
Tirania de Hamm. Clov
Hamm
Negg
}
Nell
Executar as ordens de
Hamm.
Livrar-se das cobranças
de Negg e Nell e manter
Clov sob seu comando
Resistirem ao tiranismo
de Hamm e incentivar
Clov a tentar uma nova
vida
Tomada de consciência de
que ali dentro a realidade é
opressora.
Tomada de consciência de
Clov.
Estado frágil em que se
encontram.
Analisar
Assegurar
Estimular /
aduzir
20ª Desabafos Mostrar que Clov
toma consciência da
dura realidade em
que vive e volta a ter
desejos de partir.
Morte de Nell e
desistência de Negg,
causa da Tomada de
consciência de Clov.
Clov
Hamm
Livrar-se do universo de
opressão, acabar com a
interdependêndia.
Manter Clov sob seu
comando.
Possessividade e egoísmo
de Hamm.
Desejos de Clov.
Escapar
Reter
197
CE-
NA
SITUAÇÃO OBJETIVO DA
SITUAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIA
DADA
PERSONA-
GEM
OBJETIVO DO
PERSONAGEM
OBSTÁCULO AÇÃO
21ª Repreensão /
Preparações
Mostrar que Clov
decidiu-se em partir.
Hamm percebe que
ali dentro não há
outro tipo de
relação, senão a
interdependência e a
opressão.
Clov
Hamm
Partir.
Impedir que Clov parta.
Hamm.
Desejo de Clov.
Preparar
Deter
22ª Reforço Mostrar que Hamm
quer a companhia de
Clov.
Hamm percebe que
Clov já se decidiu
em partir.
Clov
Hamm
Partir.
Ficar na companhia de
Clov.
Hamm.
Clov quer partir só.
Despistar
Impedir /
Argumentar
23ª Resignação Mostrar que Clov
não é mais
manipulável por
Hamm.
Tentativas de Hamm
em convencê-lo de
permanecer em sua
companhia.
Clov
Hamm
Partir.
Tentar manter sua
dignidade e a companhia
de Clov.
Gratidão para com Hamm.
Libertação de Clov da
interdependência.
Libertar-se
Argumentar
24ª Posfácio Mostrar que, apesar
de Clov decidir
partir, Hamm não
aceita ser
abandonado.
Libertação de Clov. Clov
Hamm
Buscar outra
possibilidade de modo de
vida.
Manter seu poder e a
companhia de Clov.
Hamm.
Clov sai da casa.
Buscar
Perseguir
Através das apresentações de JOGUETE para públicos diferenciados,
percebemos que as encenações dos espetáculos possuem a possibilidade de falar ao
“intelecto” e ao “coloquial”. Recebíamos críticas de alto teor intelectual, fazendo relações
entre o jogo dos clowns, o grotesco, o sublime, o existencialismo, o socialismo e outras
questões complexas que nos faziam pensar ainda mais. Mas, por outro lado, também
recebíamos comentários de uma simplicidade formidável, comparações e relações com o
cotidiano do próprio feitor do discurso e, algumas vezes, singelos poemas ou olhares
mareados em lágrimas.
Estes dois universos que se complementam, elucubrações teóricas e fatos
simplórios da vida cotidiana, nos eram relatados ao mesmo instante e nos faziam pensar que,
de alguma maneira, tocávamos aquelas pessoas e este era, para nós, o valor do espetáculo.
Em seu percurso, JOGUETE participou dos seguintes eventos:
Apresentações, eventos e locais:
- 09 / 12 / 2005 – Fórum Cultural Mundial - V Mercado Cultural – Evento Associado –
Teatro Xisto Baia –– Salvador – BA.
- 18, 19, 20 / 11 / 2005 - Intercâmbio Teatral - Teatro João Lyra Filho – Caruaru – PE
- 22/09/2005 – 3º Festival de Artes do Centro Educacional Sagrado Coração - Centro
Cultural Ceciliano de Carvalho – Senhor do Bonfim – BA.
198
- 21/04/2005 – Comemorações Petrobrás. - Teatro Sesi do Rio Vermelho. Salvador – BA.
- 04, 11, 18, 25 / 04/2005 – Projeto Pelourinho Dia e Noite – Secretaria de Cultura e
Turismo – Fundação Cultural do Estado da Bahia. - Largo Pedro Archanjo – Salvador –
BA.
- 30, 31/10/04 - Projeto Circuladô Cultural – Secretaria de Cultura e Turismo – Fundação
Cultural do Estado da Bahia. - Teatro Municipal. - Ilhéus/BA
- 29/10/04 – Projeto Circuladô Cultural – Secretaria de Cultura e Turismo – Fundação
Cultural do Estado da Bahia. - Centro de Cultura Adonias Filho - Itabuna - BA.
- 27 e 28/08/04 – Projeto Circuladô Cultural – Secretaria de Cultura e Turismo – Fundação
Cultural do Estado da Bahia. - Centro de Cultura João Gilberto - Juazeiro – BA.
- 01/ 07 a 19/08/04 – Temporada – Produção Cia Buffa de Teatro - Teatro SESI Rio
Vermelho – Salvador - BA.
- 30/04 a 29/05/04 – Temporada – Produção Cia Buffa de Teatro - Espaço Xisto Baia –
Salvador - BA.
- 31/ 01 e 01/02/04 – Festival Janeiro de Grandes Espetáculos - Teatro Armazém 14 –
Recife - PE .
- 11/ 12/ 03 – II Seminário Pernambucano de Artes Cênicas – Teatro do Centro Cultural -
Garanhuns - PE .
- 05/ 12/03 – Fórum Cultural Mundial - V Mercado Cultural – Evento Associado - Teatro
SESC Pelourinho –– Salvador – BA.
- 19 e 22/ 11/03 – V Mostra SESC Cariri - Teatro Objetivo / Teatro do SESC – Crato – CE.
- 21/ 11/ 03 – Mostra - Circuito Patativa do Assaré – Teatro Violeta Arraes – Nova Olinda –
CE.
- 05, 06, 12, 13/ 11/03 – Temporada – Produção Teatro XVIII – Teatro XVIII - Salvador –
BA .
- 14/ 09/03 – X Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga - Teatro Rachel de Queiroz
–– Guaramiranga - CE .
- 01,02,08,09,15,16,22,23,29,30/ 08/ 03 – Temporada – Produção Cia Buffa de Teatro -
Teatro Gregório de Mattos –Salvador-BA.
- 04,05,11,12,18,19,25,26/ 07/03 - Temporada – Produção Cia Buffa de Teatro - Teatro
Gregório de Mattos –Salvador-BA.
- 27,28/ 06/03 - Temporada – Produção Cia Buffa de Teatro - Teatro Gregório de Mattos –
Salvador-BA
Premiações:
199
- X Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga - CE
- Melhor Espetáculo
- Melhor Atriz Principal – Diana Ramos
- Melhor Atriz Coadjuvante - Jacyan Castilho
Indicações:
- X Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga - CE
- Direção - Joice Aglae
- Iluminação - Érico José
- Melhor Atriz Coadjuvante - Andréa Rabello
- Prêmio Flor de Piqui 2003 – Crato – CE
- Melhor Espetáculo
É com vários sentimentos misturados que finalizamos este último capítulo da
dissertação. É certo que aqui relatamos aquilo que nos é pertinente, que nos chegou de
maneira sensível, por isso, nos vemos no dever de afirmar que tudo que escrevemos tem a ver
com nossa própria visão do universo clownesco, e que os espetáculos são resultantes dessa
compreensão. Nesta dissertação, não estamos afirmando nenhuma “verdade” sobre o clown,
seu universo e suas inter-relações com outras linguagens e meios. Também não estamos
afirmando que este processo de encenação é o “bom caminho” para a criação espetáculos
clownescos. Estamos apenas relatando, analisando e considerando o que constitui nossa visão,
compreensão e prática do clown e da encenação, elementos que fazem parte da “nossa
verdade”. Consideramos que a utilização da linguagem com várias influências advindas do
modo de abordar os temas que o teatro do absurdo traz, da poesia do mimo, das imagens com
influência do cinema mudo, da ludicidade do desenho animado e da tragicidade/comicidade
do clown é uma opção estética de encenação própria, nada mais que isso.
Da mesma forma que, o que escrevemos sobre os espetáculos, faz parte de
nossa compreensão destes, de nosso imaginário e de nossas lembranças permeadas pelos
processos, pelas intenções durante a construção dos mesmos e pela riqueza do material
humano que tínhamos junto àquelas pessoas. Para alguns espectadores, GODÔ, TRATTORIA
e JOGUETE podem não dizer nada e, para outros, podem dizer coisas que nem pensávamos
em abordar. Para uns, estes espetáculos podem ser simples tentativas de espetáculos
clownescos em busca de uma afirmação como encenação; para outros, podem ser espetáculos
com simplicidade poética e uma encenação sutil e sensível. Para nós, além de serem reflexões
200
com a ansiedade de compreensão do mundo, do ser humano e de nós mesmos, é uma maneira
de abordar o universo que nos apaixona - o clown, e também faz parte de uma pesquisa que
buscou um caminho e uma estética pessoal no campo da encenação.
Esperamos que as novas informações contidas neste capítulo, ainda que
românticas, tenham colaborado para a realização da reflexão a que nos dispomos inicialmente
e temos esperança de poder ainda com o teatro, com o riso e com o clown “tocar” muitas
platéias.
Esta dissertação contém, em DVD, os registros das encenações realizadas. Na
verdade, pensamos que estes registros servem para comprovar a realização teatral do
complexo a que nos referimos e fomos “construindo” ao longo da dissertação, como também,
para ilustrar a prática do processo e do texto cênico criado, facilitando a reflexão sobre o
mesmo.
NOTAS
1 Tradução de Lys Mireia Santanché: “Beckett ha portato una nuova dimensione al clown, facendogli scoprire
i grandi respiri dell’esistenza. Poichè l’eroe tragico è diventato inabbordabile, il Clown lo sostituisce
aspettando” VIGANÒ, Antonio. Nasi Rossi il clown tra circo e teatro. Italia, Montepulciano: Del Grifo, 1985,
p.67
CONCLUSÃO
“Ora, uma das características da brincadeira é que brincamos
sem motivo e não precisa haver qualquer motivo para ela.
Brincar é um bom motivo em si mesmo.”
Lin YUTANG
Figura 45 – Foto: Léo Azevedo
Através da reflexão sobre os encaminhamentos dos processos de
encenação dos espetáculos GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE, pensamos que
estamos buscando, também, uma validação dos processos dos mesmos, como uma
via possível para a construção de espetáculos de clown criados a partir de textos
dramatúrgicos do teatro do absurdo.
Organizar, observar com olhar atento e refletir sobre o processo, nos
fez perceber que, no complexo apresentado ao longo desta dissertação, há ligações e
relações sutis, podemos dizer até frágeis, mas que, em conjunto, se tornam sólidas e
possíveis tanto no âmbito teórico, como no prático. Por outro lado, o mesmo
complexo contém outras relações tão fortes e notáveis que, embora se torne
202
repetitivo falar sobre as mesmas, para nos reiterar da rede formadora do complexo,
será necessário mencioná-las.
Ao percorrermos um caminho que passou por momentos onde
tínhamos somente um emaranhado de idéias, até chegarmos a uma organização
teórica e prática, fomos “garimpando” e “polindo” as técnicas, práticas e métodos
que melhor nos serviam e se encaixavam em nossa concepção. A busca por
encaminhamentos que possibilitassem a concretização de nossa concepção para a
prática da cena nos fez organizar um processo de encenação, o qual resultou nas
criações dos espetáculos GODÔ, TRATTORIA e JOGUETE. A reflexão sobre os
processos de encenação destes espetáculos traz o clown como a peça principal, ele
funciona como “inter-conector” dos participantes do complexo.
Pensamos que, através de apontamentos e das reflexões sobre os
mesmos, mostramos nosso olhar e conceituação sobre o clown e seu universo. Para
tanto, percorremos um caminho que vai da técnica do ofício de clown, passando
pelas influências e mestres que nos ensinaram e contribuíram para a formação e
construção deste olhar sobre o assunto e sobre a encenação, até chegarmos à
linguagem adotada nos espetáculos resultantes.
Na descrição dos procedimentos adotados para estes espetáculos,
deixamos claro como pensamos a respeito do jogo dos atores e de como chegamos às
cenas que estão nos mesmos. É claro que nos utilizamos de exemplos esporádicos,
pois se nos empenhássemos em descrever cada ensaio, esta dissertação iria se tornar
uma grande “novela”, já que o número da soma dos ensaios dos três espetáculos é
superior a duzentos. Com isso, tentamos pontuar alguns aspectos relevantes de cada
encaminhamento e de como as peças do complexo se complementam e
intervencionam para a concretização do processo de encenação.
Apresentamos as técnicas e teorias de nossos pilares clownescos
Dario Fo, Lecoq e Burnier - nosso próprio olhar sobre o assunto e como o clown
interage dentro dos processos e encenações. Mostramos como a análise ativa de
Stanislavski “age” sobre o texto escolhido e nos direciona para a construção do
roteiro dos espetáculos e também como as ações encontradas na análise, a partir da
energia ativa de cada clown e dos jogos dramáticos e teatrais do método de Viola
Spolin, se transformam em metáforas, apresentando o universo do texto através do
mundo clownesco. Sublinhamos o texto do teatro do absurdo e todas as suas
similaridades com o universo clownesco e falamos ainda de outros meios em que o
203
clown perambula, como o cinema mudo, o circo e o desenho animado, e quais são as
influências recebidas destes meios nas encenações. Acreditamos que poderíamos ir
mais fundo para descobrir outras similaridades, ou até mesmo fatos registrados na
história do desenvolvimento da tecnologia que envolve o entretenimento (circo,
cinema e desenho) e obtermos dados mais concretos, falando em termos científicos,
pois a inter-relação destes meios, para nós que estudamos a linguagem clownesca, é
visível.
Tratamos, também, ainda que sem grandes aprofundamentos, sobre
toda a intertextualidade que aparece no palco, durante as apresentações dos
espetáculos: iluminação, sonoplastia, sons, cenografia, figurinos, espaço, objetos. E,
para não deixarmos passar em branco, fizemos uma breve observação sobre os
primeiros contatos que o público tem com o espetáculo ou, pelo menos, os mais
usuais – os cartazes, os programas e a ambientação do espaço para receber o
espectador.
Não poderíamos deixar de falar daqueles que foram os principais
responsáveis pela percepção e apreensão deste conjunto de técnicas, métodos e
conceitos e dedicamos um momento do segundo capítulo para a sinalização e a
consciência de como cada mestre nos apontou o caminho que deveríamos seguir sós,
em busca de nossa própria experiência.
Buscando apontamentos mais específicos sobre a transposição das
escrituras, as quais fazem parte do processo prático de montagem dos espetáculos,
passando de escritura dramática, para escritura cênica, finalizamos os apontamentos
sobre o complexo. Com isso, esperamos que nossas observações possam servir para
validar os processos de montagens dos espetáculos GODÔ, TRATTORIA e
JOGUETE, assim como a eles mesmos, como experimentos relevantes, no que diz
respeito ao desejo de construir e descobrir processos de encenação.
Mas a busca não finda, o desejo de validar experimentos e de procurar
por processos de encenação pulsa a cada momento, e é certo que esta dissertação foi
um passo concreto para a organização de nossa própria sintaxe e reflexão sobre
nossos referenciais e propostas. Não podemos aquietar nossos anseios. É preciso que
sejamos como o clown, devemos esgotar nossas possibilidades, esgotarmos a nós
mesmos como fonte de experiências. Devemos, como no teatro do absurdo,
extrapolar e, principalmente, refletir sobre a realidade social, buscar além das
aparências, fazendo com que os nossos experimentos se igualem a um jogo, que
204
segue seu fluxo natural de energia e que possamos nos entregar ao acaso, ajudando-o
e sendo ajudados.
O circo continua com suas “reprises”, não podemos parar nem nos
descuidar, precisamos que cada etapa seja “a nova e grande atração” e nós devemos
apresentá-la ao público como única e verdadeira, ao menos no que se refere àquele
momento. Seguimos em frente, levando bigornas na cabeça, vendo e vivendo sonhos
e pesadelos em cada situação e para nos empurrar para a longa caminhada que ainda
deve ser feita... RIMOS. Rimos porque é preciso tomar consciência, é preciso
relativisar, refletir e perceber nova visão de tudo.
O Monsieur chama a atenção do público: “Respeitável público! Hoje o
espetáculo terminou, mas, amanhã, teremos nova sessão!”
Esta nova sessão objetiva uma nova pesquisa, um estudo mais
aprofundado e a procura de um caminho autêntico - o doutorado requer novos
caminhos a serem trilhados. Continuaremos no campo da encenação e dos processos,
pois este é o nosso “caminho dos tijolos amarelos”. O riso, a improvisação, o
grotesco e o sublime estarão presentes, mas além destes assuntos que já nos são, não
em sua totalidade, mas em parte, familiares, iremos buscar a apropriação de técnicas
direcionadas ao ator e ao seu desenvolvimento em determinado gênero. No primeiro
capítulo, comentamos rapidamente a ligação dos clowns com os tipos da commedia
dell’arte e, nesta nova pesquisa, iremos buscar tais ligações, pesquisando os tipos e
buscando elementos para a preparação ator comico dell’arte, com a intenção de nos
aproximarmos do gênero e, ainda assim, mantermos nossa identidade cultural. O
Monsieur tem razão quando finda o espetáculo: é preciso anunciar ao público que
amanhã terá nova sessão. É preciso afirmar que o circo não irá levantar a tenda
naquele momento, que ainda restam números acrobáticos para serem realizados,
muitos risos e suspense serão provocados, e o arame, a “corda-bamba”, continuará
instalado para que o palhaço-pesquisador o atravesse com seus sapatos grandes.
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______.O Clown Visitador no tratamento de crianças hospitalizadas. 1999
Dissertação (Mestrado da Faculdade de Educação Física) – UNICAMP, Campinas.
ANEXO
É necessário fazer algumas observações sobre os registros que estão contidos
nos DVDs.
Todos os três registros filmográficos não possuem excelentes imagens, pois
não foram gravados com câmera especial, ou específica para este fim, além de terem sido
feitos somente com o objetivo de fazer parte de um acervo e registros dos espetáculos para
uso pessoal. Porém, acreditamos que as filmagens contidas possam oferecer uma visão
completa da escritura cênica dos espetáculos.
A filmagem do espetáculo GODÔ foi feita em uma “apresentação” realizada
somente para este fim. O espetáculo que, originalmente era feito em semi-arena, foi
apresentado em palco italiano, pois quando filmado em seu formato original restringia a
área de imagem captada pela câmera, ficando cenas sem serem vistas. Pensamos que, como
nossa intenção era ter acesso e registro de toda a ação que acontecia em cena, o melhor
modo de obtermos uma visão integral era adaptando o espetáculo para o “palco italiano”.
Como se trata de uma “apresentação” para a gravação, não há a presença de público.
O registro do espetáculo TRATTORIA é especial, pois se trata da filmagem
da única apresentação do espetáculo. Também, por motivo de não estarmos utilizando uma
câmera especial para este fim, pois nosso objetivo era de possuir apenas um registro do
espetáculo para acervo pessoal, a filmagem apresenta problemas de iluminação e, em
decorrência desta falha, tem algumas cenas em que a imagem fica “desfocada”.
O registro do espetáculo JOGUETE, apesar de ter sido feito com câmera
digital, apresenta também um problema de iluminação. Isso acontece nas cenas em que
foco de luz muito claro, direcionado para os atores que utilizam um figurino também de cor
clara, refletindo a luz sobreposta.
Os DVDs foram organizados em uma seqüência de “cortes”. Pode-se assistir
o espetáculo em sua totalidade ou seguir uma seleção de cenas.
O DVD foi organizado da seguinte maneira: quando acionado, surge na tela,
no lado esquerdo, o cartaz da peça e, no lado direito, uma seqüência de nomes que
corresponde aos cortes das cenas realizados de acordo com a análise ativa do espetáculo, a
212
qual pode ser observada nos itens do Capítulo IV, que dizem respeito às informações
complementares de cada espetáculo.
O “sumário” das cenas contém um primeiro corte, denominado “Play”, que
se refere aos créditos do espetáculo, seguido pelo espetáculo integral. Mas, devido às
referências a cenas específicas ao longo da dissertação, temos os cortes das cenas de acordo
com a análise ativa dos espetáculos. No sumário, as “teclas” das cenas possuem a mesma
nomenclatura da análise ativa do espetáculo, e o espectador pode selecioná-las de acordo
com sua vontade. Finalizando o sumário, temos a “tecla” de nome “Fotos”, que contém
uma série de quinze fotografias, o cartaz e o programa do espetáculo.
Filmagem: CIA BUFFA DE TEATRO
Novembro/1998.
Fotografia: Paulo Fernando Machado
Nome da Empresa
GODÔ
Direção:
Joice Aglae
Data da
Versão
PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO
EM ARTES
CÊNICAS DA
UNIVERSIDADE
FEDERAL DA
BAHIA-BR
Número de
Série
TÍTULO DO CD
Nome da Empresa
Filmagem: CIA BUFFA DE TEATRO
Agosto/2003
Fotografia: Léo Azevedo
Nome da Empresa
JOGUETE
Direção:
Joice Aglae
Data da
Versão
PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO
EM ARTES
CÊNICAS DA
UNIVERSIDADE
FEDERAL DA
BAHIA-BR
Número de
Série
Conteúdo do CD:
01) Primeiro Ítem;
02) Segundo Ítem;
03) Terceiro Ítem
TÍTULO DO CD
Nome da Empresa
Filmagem: CIA BUFFA DE TEATRO
Janeiro/2001
Fotografia: Paulo Fernando Machado
Nome da Empresa
TRATTORI
A
Direção:
Joice Aglae
Data da
Versão
PROGRAMA DE PÓS-
GRADUAÇÃO EM
ARTES CÊNICAS DA
UNIVERSIDADE
FEDERAL DA BAHIA-
BR
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