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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
BRINCADEIRAS INFANTIS E CONSTRUÇÃO DAS
IDENTIDADES DE GÊNERO
ALÉSSIA COSTA DE ARAÚJO CRAVO
SALVADOR-BAHIA-BRASIL
2006
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
BRINCADEIRAS INFANTIS E CONSTRUÇÃO DAS
IDENTIDADES DE GÊNERO
ALÉSSIA COSTA DE ARAÚJO CRAVO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Educação da
Faculdade de Educação da Universidade
Federal, para obtenção do grau de Mestre
em Educação.
Orientadora: Profª Drª Tereza Cristina Pereira Carvalho Fagundes
SALVADOR-BAHIA-BRASIL
2006
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Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Iza Cristina. CRB 5/1042
C898b CRAVO, Alessia Costa de Araújo.
Brincadeiras infantis e construção das identidades de gênero /
Alessia Costa de Araújo Cravo, 2006.
120 fls: il; 30cm
Orientadora: Profª Drª Tereza Cristina P. Carvalho Fagundes.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia.
Faculdade de Educação, 2006.
1. Brincadeiras infantis 2. Identidade de gênero – Brincadeiras
3. Cotidiano Escolar. I. Fagundes, Tereza Cristina Pereira Carvalho.
II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III.
Brincadeiras infantis e construção das identidades de gênero.
CDU: 371.69
C
D
U
:
3
41.
33
7
3
ALESSIA COSTA DE ARAUJO CRAVO
BRINCADEIRAS INFANTIS E CONSTRUÇÃO DAS
IDENTIDADES DE GÊNERO
15 de dezembro de 2006
Salvador - Bahia - Brasil
Tereza Cristina Pereira Carvalho Fagundes – Orientadora
Doutora em Educação, Universidade Federal da Bahia
Ângela Maria Freire de Lima e Souza
Doutora em Educação, Universidade Federal da Bahia
Edivalda Alves Araújo
Doutora em Letras, Universidade Federal da Bahia
4
DEDICATÓRIA
A meu pai Juarez e minha mãe Hildete, meus maiores exemplos de vida, que
tornaram todos os meus sonhos possíveis e que até agora continuam me ensinando
como ser mulher, amiga, mãe e educadora. Sem vocês nada teria sentido e eu não
seria a pessoa que sou. A vocês o meu eterno amor!
Aos meus irmãos Christian e Fabrizio, sempre presentes e incentivando à minha
caminhada. A nossa energia e o nosso amor são necessários para nossa vida. Amo
vocês!
À minha cunhada e irmã Cíntia, sempre solícita, sincera e amável. Você é
especial!
À Amanda minha filha, razão número um da existência desse trabalho. Desculpe
filha pelas ausências, mas tudo que fiz foi pensando em você, para que se torne
uma mulher plena e feliz. Minha vida!
A Joel de Alessia, pelo amor, paciência e orgulho que sempre demonstrou sentir
pela mulher e pela profissional. Cresço para o nosso crescimento. Amo você!
5
AGRADECIMENTOS
Se hoje este trabalho existe, é porque muitas pessoas estiveram ao meu lado
e contribuíram para que o meu sonho se realizasse. Em nome desse sonho, gostaria
de agradecer sem hierarquia, a todos que direta ou indiretamente partilharam
comigo da trajetória desta pesquisa e dos estudos em si:
A Deus, por estar sempre ao meu lado me guiando e fortalecendo os meus
passos e as minhas idéias, quando tudo de repente ficou tão vazio. Você é minha
luz e minha vida!
As irmãs do Colégio e da Faculdade Santíssimo Sacramento, que
acompanham a minha formação desde os 3 anos de idade, até o momento presente,
já no exercício da minha prática pedagógica. Graças a vocês estou aqui!
Às amigas, Irmã Queila e Irmã Izabel, pela confiança e carinho de todos os
dias;
À minha dinda e Madre Superiora desta Congregação Irmã Lúcia, pelas
cobranças, ensinamentos, apoio e contribuições para a pesquisa. É bom ter você
ao meu lado sempre!
À grande amiga Prof
a
Valmira que, antes mesmo desse momento acontecer,
já acreditava no meu percusso profissional e me incentivava a prosseguir. Você é
um exemplo de educadora!
Ao amigo Roberto Seixas, o primeiro a ler e opinar sobre o anteprojeto,
sempre dialogando comigo de forma enriquecedora. Valeu pelo incentivo de todos
os dias!
Aos meus amigos de trabalho e de caminhada, pelo constante apoio, pelo
carinho e acolhimento de sempre. Agradeço imensamente a Adilsson, Alzenira, Ana
Carla, Ana Regina, Ane, Elizângela, Fabrício, Fabrizio, Francis, Iêda, Irangá, Izimar,
Márcia Margarida, Márcia, Osmar, Rujane e Virginia, Isamara, Edlan e Emília;
6
À Áurea, Ana Regina, Iramayre e Maria José, colegas e amigas, que me
ajudaram na difícil tarefa de reler esta pesquisa;
À Thaís, pelo apoio e carinho necessários para que eu pudesse escrever com
tranqüilidade este trabalho;
À minha orientadora Prof
a
Dr
a
.Tereza Cristina, que acredita na Educação e
utiliza toda sua competência e inteligência para fazer os outros crescerem.
Cuidadosa, atenciosa, sensível e amiga, sempre me orientou a trilhar os passos
certos na construção dessa pesquisa. A sua disponibilidade e o seu acreditar em
alguém que você só conhecia através do anteprojeto, faz você merecer mais do que
os meus agradecimentos. Este trabalho é seu também!
À Prof
a
Dr
a
Ângela Maria Souza pelos ensinamentos e carinho. O seu jeito
acolhedor e inteligente me encantaram!
À Edivalda Alves Araújo por acolher este estudo como examinadora;
À minha companheira de Mestrado que sempre dividiu comigo os momentos
alegres e difíceis desta caminhada. A você Sheila o meu carinho e respeito. Deus
ilumine você!
À minha irmã do coração Gabriela Guerreiro que, mesmo tão atarefada, foi
uma grande incentivadora e de forma especial zelou por mim e demonstrou como o
amor e respeito que nutrimos uma pela outra, foram importantes nesta caminhada;
Aos meus familiares, pelo apoio e amor incondicionais;
Ao GEFIGE Grupo de Estudos em Filosofia, Gênero e Educação do
PPGE/UFBA, pela oportunidade de crescer como mulher e pesquisadora.
Obrigada a todos vocês pelo calor humano e solidariedade para comigo!
7
Não pode haver diversão sem prazer, o
que nem sempre depende da razão,
porém, mais freqüentemente, da
imaginação; deve-se permitir que a
criança não apenas se divirta, mas que o
faça a seu próprio modo (JOHN LOCKE).
8
RESUMO
Este trabalho objetivou investigar, no cotidiano escolar de crianças de turmas do
Ensino Fundamental I em uma escola particular, a relação entre brincadeiras infantis
e construção das identidades de gênero. Este estudo, de caráter qualitativo, tem
como respaldo teórico autoras e autores, cuja produção trazem contribuições quanto
às brincadeiras infantis: Bettelheim (1988), Moyles (2002;2006), Winnicott
(1971;1965), Huzinga (1980) e Kishimoto (2002;2005), identidades de gênero:
Beauvoir (1980), Badinter (1993), Mead (1971) e Saffioti (1987) e teorias de
aprendizagem Vygotsky (1998). Do ponto de vista metodológico, privilegiou-se a
observação in loco, com registro fotográfico, entrevistas com as educadoras das
turmas selecionadas para a pesquisa e a análise do Projeto Político Pedagógico do
Colégio, analisando como se estabelecem estas relações no processo de
significação do mundo, na medida em que novos sentidos e significados são
estabelecidos através das brincadeiras. Destaca-se neste estudo a relação existente
entre o ato de brincar e a construção da identidade de gênero, apresentando
reflexões conceituais que enfocam as brincadeiras consideradas inadequadas às
meninas e meninos. O estudo proporciona a compreensão do universo lúdico das
crianças, bem como possibilita a reflexão de educadoras sobre suas práticas
pedagógicas tanto nas salas de aula como no recreio. A análise dos achados da
pesquisa possibilitou a identificação de modos através dos quais as brincadeiras
vêm reforçando estereótipos sobre masculinidade e feminilidade, permitindo,
também, a reflexão sobre até que ponto é aconselhável discriminar as brincadeiras
com base no sexo, considerando o quanto esta prática pode repercutir na formação
das identidades de gênero.
Palavras-chave: Brincadeiras Infantis; Identidade de Gênero; Cotidiano Escolar.
9
ABSTRACT
This work aimed to search, in the school quotidian of children in the first grades of
elementary school, in a private school, the relation between child plays and the
gender identity construction. This study, by qualitative features, has its theoretical
bases in writers whose productions bring constructions about child plays: Bettelheim
(1988), Moyles (2002; 2006), Winnicott (1971; 1965), Huzinga (1980) e Kishimoto
(2002; 2005), gender identity: Beauvoir (1980), Badinter (1993), Mead (1971) e
Saffioti (1987) and learning theories Vygotsky (1998). In the methodological point of
view, it favoured the in loco observation, with photographic record, interviews with the
teachers of the selected groups to the serch and the analyses of the Political
Pedagogic Project of the school, for analysing how this relations set up in the process
of meaning construction, in proportion to new meanings are set by the plays. It’s
outstanding in this study the relation between the play act and the gender identity
construction, showing conceptual reflections that focus the plays regarded unsuitable
to girls or boys. The study offers the comprehension of the ludic universe of the
children, as well as make possible the reflection, to the teachers, about their
pedagogic pratices either in the class or in the break time. The analyses of the
search results made possible the identification of the ways in wich the plays reinforce
stereotypes about masculinity and femininity, empowering too the reflection about
until where is advisable to discriminate plays by the gender, considering how this
practice can influence the gender identity formation.
Keywords: Child plays, Gender identity; School Quotidian.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
13
1 BRINCADEIRAS INFANTIS: TEORIZANDO SOBRE SUA IMPORTÂNCIA
21
1.1 AS BRINCADEIRAS INFANTIS FAZENDO HISTÓRIA 24
1.2 A FUNÇÃO PEDAGÓGICA DO BRINCAR 29
1.3 BRINCADEIRAS INFANTIS NA ESCOLA – LIMITES E DESCOBERTAS 32
2 IDENTIDADES DE GENÊRO E BRINCADEIRAS INFANTIS: UMA
RELAÇÃO INEVITÁ
V
EL
39
2.1 IDENTIDADES DE GÊNERO – REFLEXÕES CONCEITUAIS 43
2.2 CONSTRUINDO A IDENTIDADE POR MEIO DO BRINCAR 46
2.3 BRINCADEIRAS DE MENINAS E BRINCADEIRAS DE MENINOS 53
3 BRINCADEIRAS INFANTIS NO COTIDIANO DO COLÉGIO SANTÍSSIMO
SACRAMENTO
62
3.1 O COLÉGIO SANTÍSSIMO SACRAMENTO 64
3.1.1 O perfil do Colégio Santíssimo Sacramento no Ensino Fundamental I
65
3.1.2 O projeto político-pedagógico do Colégio Santíssimo Sacramento
68
3.2 AS CRIANÇAS DO ENSINO FUNDAMENTAL I DO COLÉGIO
SANTÍSSIMO SACRAMENTO
72
3.2.1 Brincadeiras infantis vivenciadas por meninas e meninos
75
3.3 O TRABALHO DAS EDUCADORAS E A IMPORTÂNCIA DAS
BRINCADEIRAS INFANTIS
87
3.4 O PAPEL DAS BRINCADEIRAS NA CONSTRUÇAO DAS IDENTIDADES
DE GÊNERO
92
3.4.1 Entendimento das educadoras sobre os conceitos de gênero e de
identidade
97
11
3.4.2 Condicionamentos recebidos das crianças pelos pais, na opinião
das educadoras
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
110
REFERÊNCIAS
114
APÊNDICE
119
APÊNDICE – Roteiro da entrevista realizada com as educadoras 119
12
INTRODUÇÃO
13
Brincadeiras infantis e suas implicações na construção de identidades se
constituem o cerne desta pesquisa. A polêmica que cerca o brincar e a construção
das identidades de gênero vem se configurando como uma inquietante situação na
escola e na sociedade, quando se separam as brincadeiras das meninas e dos
meninos. Isto porque uma série de equívocos está presente nas discussões
relacionadas a esta polêmica, principalmente quando envolve a distinção entre
brincadeiras de meninas e brincadeiras de meninos.
Ao chegarem às primeiras séries do Ensino Fundamental, as crianças já se
encontram, muitas vezes, centradas no seu desejo de brincar, mas ocorre um corte
brusco nas possibilidades de exercitá-lo por conta de normas e padrões
estabelecidos pela escola. Tais normas, ao invés de permitirem às crianças
construírem sua liberdade e autonomia, dispondo-lhes possibilidades de escolhas,
reprimem suas relações e comportamentos, fazendo com que elas renunciem a
aspectos significativos para a sua formação.
O cotidiano escolar é um ambiente propício a essas manifestações, pois nos
coloca perante constantes desafios no que se refere à diversidade sócio-cultural e
econômica das crianças, sobretudo quando se entende a escola como uma
instituição estritamente vinculada à sociedade. Por isto, faz-se necessário identificar
alternativas que possam contribuir para a construção coletiva de uma forma de ver e
pensar os lugares sociais de mulheres e homens. A compreensão dessas
representações sociais contribuem para a construção de um trabalho harmonioso no
ambiente escolar, pois aponta indicativos de minimização dos possíveis efeitos
considerados negativos da influência das imagens de uma sociedade androcêntrica
construída, também, a partir das brincadeiras vivenciadas na infância.
Emerge desse contexto o objetivo definido deste estudo, que consiste em
analisar como as brincadeiras infantis vivenciadas no Colégio Santíssimo
Sacramento vêm influenciando a construção das identidades de gênero de crianças
das séries iniciais do Ensino Fundamental I.
A partir dessa problemática central emergiram os seguintes objetivos
específicos: 1) caracterizar as brincadeiras infantis vivenciadas pelas crianças no
cotidiano escolar; 2) identificar elementos de construção de gênero nestas
brincadeiras; 3) analisar o Projeto Político Pedagógico da escola e 4) inventariar as
concepções das educadoras em relação a estas brincadeiras, associando-as à
questão de gênero no contexto da análise do projeto em estudo.
14
Segundo Bettelheim (1993, p. 80), “[...] a experiência lúdica na infância é uma
ponte para a realidade”. Por isto, através das brincadeiras infantis, meninas e
meninos começam a entender como as coisas acontecem, o que podem e o que não
podem fazer, ou seja, a questão dos limites, ao tempo em que seu corpo e
inteligência se desenvolvem.
No contexto escolar, percebemos que as brincadeiras infantis vêm reforçando
estereótipos sobre masculinidade e feminilidade, estabelecendo relações de poder e
de subordinação das meninas em relação às meninos. Diante dessa realidade, o
professor precisa ter uma formação profissional específica para lidar com essas
“verdades” na escola. Esta instituição tem uma responsabilidade importante na
organização da sociedade, pois participa do processo de construção dos futuros
adultos, quer sejam homens, quer sejam mulheres. Trata-se do local onde as
crianças se encontram, trocam experiências, aprendem e estão em constante
interação e desenvolvimento. Para que a escola não limite as potencialidades de
meninas e meninos na sua formação social e intelectual, criando modelos culturais
divididos, ela necessita munir-se, teórica e praticamente, de um quadro profissional
que compreenda as implicações inerentes a essa delicada discussão, no sentido de
que não continue reproduzindo a história que privilegiou o homem em detrimento da
mulher, cabendo-lhe o rótulo de submissa, frágil, incompetente.
Dessa forma, as discussões sobre gênero precisam ser analisadas como um
dos eixos que constituem as relações sociais, impedindo que os valores atribuídos a
mulheres e homens interfiram nas regras de funcionamento da vida cotidiana,
individuais e coletivas, a que, desde cedo, as crianças são submetidas. Entendemos
que novas relações podem ser pensadas de tal forma que meninas e meninos,
biologicamente diferentes, possam ser tratados como seres humanos iguais em
direitos perante a vida.
Em desacordo com certos pensamentos que perpassam gerações, a natureza
não determina que as “moças devem lavar a louça e os rapazes se prepararem para
o trabalho no mundo público”. Ainda assim, meninas e meninos continuam chegando
à sala de aula com idéias pré-estabelecidas devido à herança cultural transmitida
pela sociedade (família, amigos, professores e outros grupos de convívio).
A sociedade, ao prescrever que as brincadeiras de meninas não servem para
meninos e vice-versa, vem sufocando a vida emocional das crianças, impedindo-as
de se expressarem e, por conseguinte, causando-lhes danos sociais. Neste
15
contexto, a escola é uma das principais instituições que têm se encarregado de
reforçar papéis sociais de gênero, como se estes fossem conseqüências das
diferenças anatômicas entre indivíduos dos sexos feminino e masculino. Assim
sendo, as meninas são afastadas de certas brincadeiras como “cavalinho”, “bola”,
“pipa”, entre outras, porque são consideradas, historicamente, brincadeiras mais
convenientes para meninos do que para meninas.
Por outro lado, o brincar vem sendo cada vez mais utilizado na educação,
constituindo-se em uma peça muito importante na formação da personalidade, nos
domínios da inteligência, na evolução do pensamento e de todas as funções
mentais. Logo, o brincar pode ser enfocado tanto como um fenômeno filosófico,
como sociológico, psicológico, criativo, psicoterapêutico e/ou pedagógico.
No desenvolvimento da pesquisa, estabelecemos relações entre a
observação da realidade do Colégio Santíssimo Sacramento e as teorias que a
explicam, apoiando-nos nos seguintes autores: Badinter (1986), Bettelheim (1988),
Beauvoir (1980), Ciampa (1989), Fagundes (2001), Mead (1971), Moreno (1999),
Moyles (2006), Passos (1999), Saffioti (1987), entre outros.
Pautando-nos em atividades sistematizadas, buscamos desenvolver os
objetivos definidos para este estudo, e, como toda pesquisa se constitui em um meio
de obtenção de conhecimentos, lembramos Chizzotti (2000, p. 11): “Transformar o
mundo, criar objetos e concepções, encontrar explicações e avançar previsões,
trabalhar a natureza e elaborar as suas ações e idéias são fins subjacentes a todo
esforço de pesquisa.” Neste sentido, do ponto de vista metodológico, este estudo
está voltado para uma determinada realidade, o locus da pesquisa, o Colégio
Santíssimo Sacramento, analisando como os sujeitos envolvidos – professores e
alunos – lidam com as brincadeiras:
[...] todo o universo da ciência é construído sobre o ‘mundo vivido’ e, se
quisermos pensar na própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu
sentido e seu alcance, convém despertarmos primeiramente esta
experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda (TRIVIÑOS,
1987, p. 43).
Neste estudo, o desenvolvimento do tema proposto ultrapassa o senso
comum através de uma metodologia que permite analisar a realidade estudada,
unindo, dialeticamente, teoria e prática. Isto porque sabemos que uma pesquisa
deve contemplar a individualidade e o inesperado, buscando as peculiaridades de
16
cada sujeito no processo de construir sua própria história. Com base nesses
princípios e na necessidade de investigar a influência das brincadeiras na
construção das identidades de gênero, esse estudo se fundamenta na análise
qualitativa dos dados, uma vez que foi estabelecido um contato direto do
pesquisador com o ambiente e a situação pesquisada. Tal contato aconteceu
seguindo alguns princípios, como recomenda Chizotti (2001, p. 82):
[...] despojar-se de preconceitos, predisposições para assumir uma atitude
aberta a todas as manifestações que observa, sem adiantar explicações
nem conduzir-se pelas aparências imediatas, a fim de alcançar uma
compreensão global do fenômeno.
Ainda com relação à pesquisa qualitativa, Chizzotti (2001, p. 79) afirma que
esta “[...] parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e
o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo
indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito”. Partindo desses
pressupostos, definimos a necessidade de realizar um estudo de caso que nos
permitisse atingir os objetivos previstos, sugerindo reflexões ou futuras intervenções
na realidade em estudo. O estudo de caso, conforme Lüdke (2001, p. 19), [...] “é rico
em dados descritivos, tem um plano aberto e flexível e focaliza a realidade de forma
complexa e contextualizada”.
Para a elaboração do estudo de caso, selecionamos uma determinada
unidade para poder compreendê-la, sendo esta tomada como uma unidade
significativa do todo e, desse modo, suficiente para, não só fundamentar um
julgamento, como também propor uma intervenção, uma ação transformadora. A
natureza e abrangência da unidade como ainda a complexidade do próprio estudo
de caso determinada pelo suporte teórico que orienta quem dele faz uso constituem
características das circunstâncias da técnica. Ou seja, no desenvolvimento do seu
trabalho e tendo feito a opção metodológica por este tipo de abordagem, a
pesquisadora
[...] estará sempre buscando novas respostas e novas indagações;
valorizam a interpretação do contexto; buscam retratar a realidade de forma
densa, refinada e profunda, estabelecendo planos de relações com o objeto
pesquisado, revelando-se aí a multiplicidade de âmbitos e referências
presentes em determinadas situações ou problemas [...] (MACEDO, 2004,
p. 150).
17
Desse modo, para a efetivação deste trabalho realizamos a observação in
loco e entrevistas com as educadoras das turmas selecionadas para a pesquisa e a
análise do Projeto Pedagógico do Colégio. Como procedimento auxiliar, utilizamos o
registro fotográfico, porque a todo instante estávamos “[...] centrando o nosso olhar
nas relações expressas no cotidiano escolar, preocupando-nos mais atentamente
com os movimentos de dominação-resistência que nele estão presentes”. (ANDRÉ,
1995, p. 73). Para tanto, acompanhamos o dia-a-dia das educadoras, das crianças e
das suas brincadeiras, analisando como se estabelecem estas relações no processo
de significação do mundo, na medida em que novos sentidos e significados são
estabelecidos através das brincadeiras.
A pesquisa em questão aconteceu na cidade de Alagoinhas/BA, no Colégio
Santíssimo Sacramento, tendo como foco o Ensino Fundamental I. O Colégio, que
possui sessenta e seis anos de existência, é administrado pelas Irmãs da
Congregação do Santíssimo Sacramento e Maria Imaculada e funciona desde a
Educação Infantil até o Ensino Superior , com um quadro docente formado de cem
professores, sendo, em sua maioria, mulheres. Contou, em 2005, com trezentos e
oitenta alunas e alunos de 1ª à 4ª séries, com doze educadoras do Ensino
Fundamental I, sendo que observamos, intencionalmente, quatro delas, sendo uma
de cada série, para analisarmos as atividades desenvolvidas na escola tais como:
aulas, recreio, aulas de Educação Física, festejos e planejamentos.
Para discussão da nossa temática, “Brincadeiras infantis e construção das
identidades de gênero”, o estudo foi estruturado em três capítulos e percorreu a
seguinte trajetória: no Capítulo 1, “Brincadeiras infantis: teorizando sobre sua
importância”, apresentamos algumas considerações iniciais sobre as brincadeiras,
sua função pedagógica, limites e descobertas na escola. Embora as brincadeiras
sempre tenham feito parte do cotidiano infantil, nem sempre são observadas e
analisadas atentando-se para os elementos que estão presentes nas relações
sociais estabelecidas, valores, conceitos, preconceitos e significados que são
partilhados pelas crianças quando brincam. Ainda neste capítulo, destacamos as
brincadeiras infantis como fundamentais na constituição do ser humano porque
promovem a interação com o outro, além de contribuírem para o exercício criativo no
plano imaginário de realizações concretas.
No Capítulo 2, “Identidades de gênero e brincadeiras infantis: uma relação
inevitável”, abordamos a relação das identidades de gênero com as brincadeiras
18
infantis, examinando suas implicações na cultura lúdica das crianças. Refletimos,
também, acerca do conceito de gênero, apresentando as brincadeiras de meninas e
meninos, suas vivências e transformações sociais e o processo de construção das
identidades por meio das brincadeiras. Considerando a análise anterior, é importante
destacar a influência das brincadeiras infantis na construção das identidades de
gênero das crianças, visto que, através das brincadeiras, não só se aprende, mas
também, se incorporam conceitos, preconceitos e valores.
No Capítulo 3, “Brincadeiras infantis no cotidiano do Colégio Santíssimo
Sacramento”, apresentamos o perfil do Colégio Santíssimo Sacramento no Ensino
Fundamental, das suas educadoras e das crianças do Ensino Fundamental I,
juntamente com o Projeto Político Pedagógico do Colégio, as brincadeiras
vivenciadas por meninas e meninos no seu cotidiano. Analisamos, também, o
trabalho das educadoras e a importância das brincadeiras infantis. E, por fim,
analisamos as idéias apresentadas pelas educadoras sobre gênero e identidade e
sua relação com as brincadeiras, considerando também as opiniões dos pais a partir
dos relatos das profissionais.
Nas “Considerações finais”, sintetizamos o estudo, destacando que meninas e
meninos precisam ser educados de modo a minimizar-se os preconceitos para que
convivam harmoniosamente, chorem, brinquem e divirtam-se juntos, a fim de que a
sociedade aprenda a valorizar o ser humano pelo seu caráter e valor moral,
respeitando as suas múltiplas identidades.
Como educadoras, devemos ir ao encontro das histórias e das brincadeiras
dessas crianças, como também das suas inúmeras maneiras de atribuírem
significados ao mundo e às suas relações, como ainda de se compreenderem no
mundo. As reflexões sobre o tema consistem na possibilidade de contribuir para a
formação de uma nova concepção de educação, em que o prazer, a alegria, a
liberdade e o desenvolvimento da criança possam ser respeitados e garantidos.
É nessa interface de encontros e desencontros entre o brincar e a construção
das identidades de gênero que crianças e educadoras buscam se descobrir para
que sejam respeitadas e valorizadas, pessoal e socialmente, traduzindo os seus
anseios, dúvidas e descobertas.
Sem a pretensão de esgotar a temática, apresentamos e discutimos as idéias
centrais pensadas para esse texto, proporcionando reflexões acerca do brincar e
suas implicações na construção das identidades de gênero, a fim de que pais e
19
educadoras dêem oportunidade a si mesmos e às crianças de viverem do seu jeito,
vislumbrando escolas e instituições mais democráticas, abertas às transformações
sociais e que reconheçam a liberdade de expressão e a criatividade a que temos
direito.
20
CAPÍTULO 1
BRINCADEIRAS INFANTIS: TEORIZANDO SOBRE SUA
IMPORTÂNCIA
21
Este capítulo tem como principal objetivo apresentar reflexões sobre a
importância do brincar, especificamente, conhecendo a história das brincadeiras
infantis, seu valor na socialização infantil e sua relação com a aprendizagem das
crianças. Para tal, precisamos considerar o brincar como um processo que envolve
uma variedade de comportamentos e oportunidades que se fazem presentes no
universo infantil.
A brincadeira é universal, facilita o crescimento, as relações sociais, amplia a
comunicação consigo e com os outros, dando oportunidade à criança de expressar
os seus sentimentos e emoções. Brincar deriva do latim vinculum, que significa laço,
união e criação de vínculos. Segundo Friedmann (1992, p. 77), “[...] brincar é o mais
completo dos processos educativos, pois influencia o intelecto, a parte emocional e o
corpo da criança”.
O brincar evolui com a criança e lhe oferece a oportunidade de cantar,
dançar, pintar, pular, representar e criar um mundo mais sintonizado consigo
mesmo, pois é o caminho da construção, da plenitude, sem restrições, ameaças e
punições, precisando de liberdade para acontecer, manifestando-se de múltiplas
maneiras.
É significativa a influência das brincadeiras no desenvolvimento de uma
criança, principalmente quando ela interage e se envolve numa situação imaginária,
apresentando novos comportamentos, livres de restrições impostas pelo ambiente.
Contribuindo para a discussão sobre o tema, Vygotsky (1998, p. 130) afirma
que “[...] a criação de uma situação imaginária não é algo fortuito na vida da criança;
pelo contrário, é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às
restrições situacionais”. Neste sentido, é necessário atentar para a seriedade do
brincar, buscando prazer sem culpas, medos e ansiedades, respeitando as ações
espontâneas das crianças, sua maneira de ser e de pensar, para poder, também,
colaborar significativamente na construção das identidades destas.
Enriquecendo a discussão, Maluf (2003, p. 17) assevera: “[...] o verbo brincar
nos acompanha diariamente. Brincar sempre foi e sempre será uma atividade
espontânea e muito prazerosa, acessível a todo ser humano, de qualquer faixa
etária, classe social ou condição econômica”.
Brincar é tarefa do dia-a-dia das crianças, promovendo, da melhor maneira, o
desenvolvimento do pensamento, da afetividade e de sua socialização,
22
desempenhando, também, um importante papel na formação do caráter de meninas
e meninos.
Enfatizando a importância das brincadeiras para a infância, Huizinga (1980, p.
320) afirma que: “[...] as crianças e os animais brincam porque gostam de brincar, e
é precisamente em tal fato que reside a sua liberdade”. Já Winnicott (1965, p.71)
“[...] considera o brincar como uma área intermediária de experimentação para a
qual contribuem a realidade interna e externa”. Neste sentido, brincar é
comunicação, exploração, ação e meio de aprender a viver. Em cada brincadeira, a
criança encontra o sujeito de sua história, amplia o conhecimento de sua realidade,
ressignificando o mundo ao seu redor.
Na maioria das vezes, os adultos (pais, educadores) não se dão conta da
avalanche de mudanças que ocorreram nas crianças quando brincam juntas,
podendo, às vezes, impedir que um mundo mágico, com encantos, conquistas e
descobertas venha à tona, o que contribui para o desenvolvimento da personalidade,
e atendendo às necessidades múltiplas das crianças.
A brincadeira é importante porque estimula a socialização, amplia as relações
e contribui para a construção das identidades, formando a imagem que a criança
tem de si, do outro, e do mundo que a cerca com menos preconceitos e
competições. Assim sendo, “[...] participar de brincadeiras é uma excelente
oportunidade para que a criança viva experiências que irão ajudá-la a amadurecer
emocionalmente e aprender uma forma de convivência mais rica” (MALUF, 2003, p.
21).
As crianças, muitas vezes, deparam-se com dilemas morais em relação aos
seus desejos, respostas, escolhas, e as ordens e normas propostas pelo mundo
adulto. Mundo, este, que não vê o brincar como algo livre e de motivação intrínseca,
que carrega o medo de errar e que não traz expectativas, impossibilitando a
espontaneidade e o prazer sem culpas. Assim, o ato de brincar é um ato de criação,
quando permite que as crianças encontrem maneiras novas de lidar com
determinados dilemas, novas experiências, confirmando ou negando as conexões
que fazem com o seu mundo através de encenações e de experiências vividas.
Como analisa Moyles (2002, p. 76), “[...] a possibilidade de brincar de forma
intencional, livre e exploratória proporciona à criança uma aprendizagem ativa por
meio da qual as muitas ‘preliminares’ do ser capaz de compreender e resolver
problemas serão encontradas”.
23
Através das brincadeiras, a criança faz novas amizades, melhora sua
comunicação, convivência e interação grupal, copia modelos e se prepara para o
futuro, experimentando a realidade de seu meio. Convivendo com outras crianças,
enfatiza Maluf (2003, p. 94), “[...] ela aprende a dar e receber ordens, a esperar a
sua vez de brincar, a emprestar e tomar emprestado, compartilhar momentos bons e
ruins, a ter tolerância e a respeitar, enfim, seu raciocínio é desenvolvido de forma
prazerosa”.
Assim sendo, fica evidenciada a importância das brincadeiras infantis, pois a
multiplicidade de ações que ela proporciona leva a criança a se encontrar e se
desenvolver, buscando estratégias para organizar seus conflitos e sua participação
no mundo.
Ampliando a discussão, Benjamim (1984, p. 77) afirma que:
[...] as crianças formam seu próprio mundo de coisas, mundo pequeno
inserido em um maior. Dever-se-ia ter sempre em mente as normas desse
pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e
não se prefere deixar que a própria atividade – com todos os seus requisitos
e instrumentos – encontre por si mesma o caminho até elas.
O verdadeiro sentido das brincadeiras consiste em tornar as crianças mais
soltas, independentes e seguras, com a auto-estima elevada, podendo construir uma
história de vida mais emocionante e rica de experiências.
Com esta compreensão, admitimos que quem brinca se serve de elementos
culturais para construir sua própria história, ou seja, a experiência lúdica aparece
como um processo histórico-cultural suficientemente rico para merecer uma
criteriosa análise científica para que determinados preceitos construídos ao longo de
nossas histórias de vida sejam desmistificados e reconstruídos, a exemplo de: “é
chegado o momento das brincadeiras”, ou, “este é o momento para estudar e não
para brincar” e, ainda, “agora podem brincar”.
Dos conceitos apresentados, depreendemos que a brincadeira é um meio
pelo qual as crianças tomam conhecimento de si, dos outros e do mundo à sua volta,
e criam vínculos no seu cotidiano, além de reordenarem idéias e encontrarem uma
forma de se estruturar e agir no ambiente.
Entretanto, ao longo dos anos, as brincadeiras nem sempre estiveram
voltadas aos reais interesses das crianças, ajudando-as a fazerem suas escolhas e
terem uma boa imagem de si mesmas e dos outros, desde cedo, quando
24
preconceitos e convenções sociais acompanham as brincadeiras, não só no que diz
respeito ao gênero, mas também, a raça e a classe social.
O brincar tem uma história, uma origem e desenvolvimento que começa nas
primeiras relações entre mãe e bebê, ressaltando, ainda, a importância de ser visto,
reconhecido e respeitado na própria singularidade, evoluindo do brincar sozinho
para o brincar compartilhado, e deste para as experiências culturais.
1.1 AS BRINCADEIRAS INFANTIS FAZENDO HISTÓRIAS
Definir o passado lúdico da criança no Brasil, entre Colônia e Império, é algo
muito difícil, uma vez que estes períodos foram marcados por grande instabilidade
social. As crianças indígenas, há muito mais de 500 anos, brincavam com as folhas,
o vento, os pássaros, a chuva, o sol e a lua, extraindo da natureza a arte de brincar
e viver. Segundo Del Priore (2004, p. 245),
[...] muito pouco se sabe da influência, na vida infantil, das invasões
holandesas a partir de 1587; dos ataques de ingleses, franceses e
holandeses ao Recife, em 1595; das sucessivas tentativas de dominação
pelos franceses do Rio de Janeiro e do Maranhão, e da campanha de quase
trinta anos dos holandeses que conseguiram espalhar suas tropas de
Sergipe ao Maranhão, passando por Pernambuco. Mas é principalmente a
partir do século XIX, com o ingresso de levas de imigrantes no país que,
além da miscigenação étnica e a aquisição de hábitos e costumes
diferentes, muitas brincadeiras, principalmente as cantigas de roda, as
adivinhas, as formas de escolha, se incorporam ao brincar das crianças
brasileiras.
Ao analisar a literatura, percebemos que as brincadeiras infantis estão
presentes em todas as épocas, povos e contextos, compreendendo, atualmente,
uma vasta rede de conhecimentos. As brincadeiras integram uma teoria
sistematizada e uma prática atuante, buscando discutir as relações múltiplas do ser
humano em seu contexto histórico, social, cultural, psicológico, enfatizando a
liberdade das relações pessoais, levando o outro a refletir, criar, descobrir e se
socializar com prazer e satisfação.
Todos os povos, dos considerados mais primitivos aos mais civilizados,
tiveram e têm seus brinquedos, seus jogos, suas brincadeiras. Como analisa Del
25
Priore (1992, p. 23) “[...] no ciclo da vida a criança é seu próprio brinquedo, a mãe é
seu brinquedo, o espaço que a cerca, tudo é brinquedo, tudo é brincadeira”.
Meninas e meninos interagem por meio da música, das “brincadeiras de
chateação”, das brincadeiras de roda, cabra-cega e tantas outras brincadeiras
coletivas tradicionais, que, por meio do folclore, da miscigenação, da colonização e
da industrialização, multiplicam-se e atravessam gerações em quaisquer espaços,
das cidades à zona rural.
Toda brincadeira tem uma história que precisa ser percebida, acolhida,
cuidadosamente, para ser compreendida. Esta assertiva é ratificada por Riviere
(1991, p. 70) ao admitir que “[...] em cada ação do sujeito, em cada conduta, em
cada coisa que faz ou diz, em cada momento, sempre estão incluídos seu passado,
seu presente e seu futuro”.
De modo geral, é na brincadeira que a criança expressa suas emoções mais
íntimas, mostrando-se, realmente, como é, ou como deseja ser, sem evidenciar
desigualdades e discriminações nos relacionamentos, considerando-se um ser livre,
com prazer, alegria e sonhos, que se recusa a aceitar os critérios sociais vigentes,
os quais impedem mulheres e homens de viverem submissos a estereótipos.
Ao longo dos anos, a brincadeira foi definida por vários teóricos. Vygotsky
(1998) considera a brincadeira como zona proximal
1
, porque acredita que, no
brincar, a criança supera sua própria condição infantil, sendo desafiada e agindo
como se fosse uma pessoa adulta. Para Leontiev (apud VYGOTSKY, 1998), brincar
é uma ação objetiva que media as relações e percepções do meio ambiente e dos
sujeitos; Winnicott (1971) define a brincadeira como saúde e essência do equilíbrio
humano; e Bettelheim (1988), como um estágio primitivo, livre de regras, cheio de
fantasias e sem objetivos definidos.
Da literatura, depreendemos que, por meio das brincadeiras, as crianças em
todos os tempos, estabelecem vínculos sociais, formando grupos e transmitindo a
cultura de um povo de uma geração para outra. Cada cultura confere um valor
diferenciado ao ato de brincar: ela serve para divertir, socializar, unir grupos,
transmitir conhecimentos e, até, para rituais religiosos.
1
Zona de desenvolvimento proximal – é a distância final entre o nível de desenvolvimento real, que se
determina através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado pela solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1991, p. 97).
26
Até o século XIX, não existiam indústrias de brinquedos e eram em oficinas
que os artesãos os fabricavam. Com a Revolução Industrial, o brincar começa a virar
moda e objeto de consumo, quando aparecem brinquedos de meninas e meninos.
Em decorrência, acontece o declínio das brincadeiras tradicionais, em que meninas
e meninos brincam juntos, em clima de parceria e complementaridade, vivendo
situações que as preparam para a vida adulta.
No conjunto das atividades humanas, a brincadeira é dotada de uma grande
significação social, envolvendo e se apoderando de elementos da cultura local da
criança. Nesta perspectiva, as brincadeiras infantis aparecem entre meninas e
meninos, produzindo relações socialmente construídas e culturalmente
estabelecidas – a brincadeira possibilita a auto-interação com o outro e com o
mundo.
Segundo Chateau (1987, p. 14), “[...] perguntar por que a criança brinca, é
perguntar por que é criança”. A infância não pode existir sem risos, gritos, pulos,
criação, descobertas e alegria, uma vez que é pela brincadeira que a humanidade se
manifesta.
A brincadeira possui características próprias, aproximando-se, muitas vezes
do jogo, só que este é mais estruturado e abrangente. Para Bettelheim (1988, p.
181) “[...] os jogos em geral, são competitivos e caracterizam-se por regras e por
uma exigência de usar os instrumentos da atividade para o qual foram criados, e não
como a imaginação ditar”.
Logo cedo, as crianças percebem a diferença entre jogar e brincar; quando se
sentem mais livres, aproximam a ficção do humor, sem imposições, seguindo um
roteiro incerto, muitas vezes fora da realidade. Como analisa Santin (1994, p. 28)
“[...] brincar é acima de tudo exercer o poder criativo do imaginário humano,
construindo o universo real de quem brinca”. As crianças interpretam os papéis dos
adultos à sua volta para compreender a vida, elas não teorizam, e sim, jogam e
brincam.
As brincadeiras infantis transformaram-se com o passar dos tempos.
Inicialmente, as crianças brincavam com “areia”, “barro”, “bola”, “peteca”, “pião”,
“roda”, “pipa”, “cabra-cega”, “gato e rato”, “esconde-esconde”, “amarelinha”, “pernas
de pau”, entre outras modalidades. Meninas e meninos misturavam-se e se
espalhavam pelas ruas, pátios escolares, aldeias, bairros e campos, desenvolvendo
a criatividade, estimulando a parceria e formando seu caráter.
27
Atualmente, a maioria das brincadeiras faz parte da infância das crianças e da
lembrança dos adultos quando não é roubada pelos afazeres domésticos, invadida
pela mídia e pelos mais variados brinquedos industrializados que separam as
crianças e definem os seus lugares e papéis com base no sexo. Tais situações não
permitem que meninas e meninos partilhem suas emoções, conquistas e
descobertas, e que criem um mundo de fantasias, abrindo possibilidades para a
construção de novos sonhos e aventuras.
As crianças do século XXI satisfazem suas necessidades lúdicas brincando
individualmente com vídeo games, Internet, televisão ou outras brincadeiras
passageiras que revelam, muitas vezes, apenas um certo modismo. Segundo Belotti
(1983, p. 81), “[...] o assim chamado lazer das crianças é muitas vezes a
necessidade, comum também ao adulto, de pensar nos próprios assuntos em santa
paz, dar livre curso à imaginação, restabelecer os canais de comunicação com o
próprio íntimo”. Na sociedade atual, a comunicação entre pessoas e grupos se
tornou algo precário, que não estimula a troca, a emoção e a parceria entre as
crianças, deixando o universo infantil mais solitário, competitivo e empobrecido.
Essas considerações acerca das brincadeiras reforçam a posição de que elas
são um componente da cultura, com conceito abrangente, sem estar preso a um
tempo e um espaço definido. A cultura lúdica infantil precisa de espaço e
possibilidades de promover a vivência de relações entre as pessoas para a
satisfação das suas necessidades sociais e afetivas.
Vivendo em uma época marcadamente capitalista e competitiva, o brincar, o
simular, o divertir-se e o fantasiar precisam fazer parte do universo infantil para que
possamos alcançar, num futuro próximo, subsídios mais favoráveis ao
desenvolvimento da personalidade humana e possamos comungar com o
pensamento de Rubem Alves (1986, p. 86) quando diz que “[...] a liberdade é
fundamental. [...] Através do lúdico, não se está perdendo uma evasão da realidade,
mas, ao contrário, procura-se construir e recriar esta realidade, desistindo da lógica
dominante do presente estado de coisas e tornando-se criativo”.
As brincadeiras de meninas e meninos estão investidas de sentidos e
voltadas para cada momento histórico, levando as crianças a descobrirem sua
essência. Qualquer que seja a brincadeira, ela está inserida numa experiência
complexa, nunca isolada, formando ações heterogêneas, que também levam o
28
adulto, que observa a criança brincando, a descobrir como essa criança está
inserida no seu meio social. Segundo Brougère (2004, p. 249):
[...] hoje em dia não podemos aceitar a idéia da relação causal simplista que
permitiria considerar que a brincadeira de guerra corresponderia
automaticamente uma vida feita de violência, nem imaginar que uma criança
que brinca de médico se tornará um deles. Se um bombeiro brincou com um
caminhão vermelho na sua infância, como inúmeras crianças nessa idade,
isso não pode ser considerado como a causa da sua escolha profissional.
Essa experiência adquire sentido na situação em que é vivida, no momento
em que a criança usa o objeto e não no futuro.
Podemos perceber então que, quando a brincadeira infantil é valorizada pelo
adulto, a criança também se sente importante pela sua própria capacidade de fazer
coisas importantes. Ao passo que se a brincadeira não for agradável aos olhos dos
adultos, ela será conduzida de tal modo que o prazer pela brincadeira será reduzido
gradativamente, intervindo no desenvolvimento da sua inteligência e da sua
personalidade. Acreditamos que certas vivências lúdicas do passado estejam na
origem do que somos hoje em dia.
A criança, hoje, tem cada vez menos oportunidades e espaços para brincar. O
trabalho, a escola, a violência e os rótulos criados para as brincadeiras e
comportamentos infantis privam meninas e meninos de sonharem, transformarem e
descobrirem um mundo novo, acreditando mais em si, em suas idéias e nos outros,
como parceiros importantes para a construção de uma sociedade mais humana.
Como nos lembra Alves (1986, p. 107), “[...] a menos que você desista da lógica
dominante da presente ordem de coisas e se torne criativo, não viverá para ver o
futuro. Estará condenado à extinção”.
Sabemos que a liberdade não nos é dada gratuitamente; é preciso aprender a
construir e a não aceitar modelos prontos, mas dispor de muitas possibilidades de
escolha para que possamos nos encontrar e ocupar lugares significativos na
sociedade.
Certamente, para que isso ocorra, precisamos de interação, liberdade de
expressão, desafios e muitas novidades acompanhando o desenvolvimento infantil,
e nada mais significativo do que fazer do processo de aprendizagem um momento
de prazer e alegria através das brincadeiras, que contribuem para a formação do
caráter da criança e para criar oportunidades que convidem à comunicação, à troca
e ao envolvimento com o outro, criando oportunidades para a educadora ouvir e
acolher as crianças.
29
1.2 A FUNÇÃO PEDAGÓGICA DO BRINCAR
Uma educação lúdica consiste em uma mudança de postura das educadoras
e das crianças, buscando uma parceria de ambos, para a construção de um saber
significativo e prazeroso, pois a capacidade de aprender depende, sobretudo, de
estimulação.
Quando a criança conhece por meio do brincar, ela adquire com mais
facilidade conceitos, segue regras, faz generalizações, tira conclusões, descobre e
resolve problemas do seu cotidiano familiar e escolar. As brincadeiras contribuem
para o processo de aprendizagem, porque apresentam inúmeras possibilidades para
as crianças elevarem o seu padrão intelectual. Cantar, dançar, pintar, representar e
desenhar, entre outras atividades, estimulam e exercitam habilidades básicas para o
desenvolvimento do educando. De acordo com a análise de Moyles (2006, p. 94)
“[...] ignorar o papel do brincar como meio educacional é negar a resposta natural da
criança ao ambiente e, na verdade, a própria vida! [...] o brincar pode desempenhar
um papel central no currículo”.
Desse modo, planejar um currículo
2
para as séries iniciais do Ensino
Fundamental I requer um corpo docente competente e articulado, que faça uso de
variadas técnicas para atingirem diferentes objetivos em torno da aprendizagem.
Sendo assim, uma questão-chave, na visão de Abbott (2006, p. 103), para os
professores do Ensino Fundamental “[...] relaciona-se à maneira pela qual as
experiências lúdicas, adequadas se encaixam na estrutura e nos requerimentos do
Currículo Nacional”. A importância dada à ludicidade está, inclusive, chamando a
atenção para que, no planejamento curricular, os professores olhem com a mesma
atenção os conteúdos e o contexto, incluindo, ainda, segundo Abbott (2006, p. 103),
“[...] o ato de colaborar, fazer escolhas, organizar, explicar, falar e se comunicar,
registrar, interpretar, predizer, lembrar e refletir”.
Sendo assim, planejar um currículo que acredita no valor do brincar é pensar
na educação da criança como um sujeito integral. Tal abordagem não pode
2
Segundo Silva (2002, p. 150), [...] “O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos
quais as teorias tradicionais nos confinaram. [...] é um lugar, espaço, território. [...] é relação de poder.
[...] é trajetória, viagem, percurso. [...] autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja
nossa vida. [...] é texto, discurso, documento. [...] é documento de identidade”.
30
acontecer sem educadores sensíveis, informados e dispostos a planejarem com
coerência e consistência para que o comprometimento com o papel pedagógico do
brincar aconteça de modo contextualizado e voltado para necessidades reais das
crianças. Sendo assim, o papel pedagógico do brincar possui grande importância no
desenvolvimento físico, intelectual, social, ético, afetivo, criativo, crítico, racional e
emocional das crianças, pois aumenta a incorporação de novas aprendizagens,
quando estimula a oralidade, a imaginação, a interpretação, a lógica e a
experimentação na construção do conhecimento que se processa na escola.
Também como analisa Dohme (2003, p. 111):
[...] o convívio com regras e as histórias são importantes para dar contexto a
situações abstratas que trabalham com valores éticos. As dramatizações
são importantes para habilidades de comunicação e o artesanato para o
desenvolvimento estético. Porém, existem características atribuídas às
atividades lúdicas comuns a todas as suas aplicações.
Percebemos, então, que, trazendo as brincadeiras para a sala de aula o
educando passa a ter uma participação mais ativa no processo de aprendizagem,
desenvolvendo habilidades em diversas áreas, aprende a fazer exercitando e
aumenta a automotivação para participar de todas as outras atividades escolares. As
brincadeiras podem levar as crianças a viverem diversas situações, pois ao brincar
elas pesquisam e experimentam, conhecem suas habilidades e limitações, exercitam
o diálogo e tornam-se capazes de construírem conhecimentos mais sólidos e
atitudes mais éticas.
Em meio às discussões apresentadas e elaboradas por Dohme (2003, p.
121), destacamos a idéia de que “[...] trabalhar com o interesse do aluno é,
sobretudo, trabalhar com respeito. Entendendo que não é porque ele tem menor
tamanho e menor poder de argumentação que terá menor dignidade ou merecerá
ser levado menos a sério”.
As educadoras precisam despertar o interesse das crianças utilizando, em
sua prática, mais do que argumentos, uma visão ampla da riqueza que as
brincadeiras infantis podem promover na sua formação, melhorando o seu nível
intelectual, social e cultural. Como afirma Dohme (2003, p. 122) “[...] as atividades
lúdicas podem colaborar com o desenvolvimento pessoal, a formação do homem
autônomo, e ao mesmo tempo, com a melhoria na participação comunitária [...]”.
31
Neste sentido, a utilização das brincadeiras, pela escola, pode contribuir para
a formação do saber de modo mais ativo e para a construção de uma sociedade
mais igualitária, próspera e feliz. Quando isto acontece, as crianças passam a se
respeitar mais, a trocar opiniões e a aprender umas com as outras, criando um clima
agradável de convivência e de confiança mútua. Para tanto, a escola precisa ser
olhada como um espaço da sociedade em que, desde cedo, educandos(as) e
educadores(as) desenvolvam atividades com responsabilidade social, utilizando o
brincar e a criatividade como bases primordiais para a elaboração de um currículo
que se efetive em torno da necessidade de aprendizagens significativas para as
crianças.
Precisamos, neste contexto, salientar que a educação das crianças
fundamenta-se no brincar e que este brincar pode ser transformado em um poderoso
instrumento de aprendizagem. As crianças têm ricas possibilidades de interagir com
o mundo e dentre elas está o lúdico, desde que se lhes sejam dadas as devidas
oportunidades. As educadoras, principalmente do Ensino Fundamental I, precisam
estar atentas para a riqueza do brincar, que desenvolve várias habilidades quando
cria oportunidades de lidar com as letras, as estórias, as artes, a ciência, e com os
números. A aprendizagem por meio das brincadeiras não é passiva, é intencional e
significativa.
Para Kishimoto (2002, p. 151), “[...] a brincadeira tem papel preponderante na
perspectiva de uma aprendizagem exploratória, ao favorecer a conduta divergente, a
busca de alternativas não usuais, integrando o pensamento intuitivo”. Para isso,
cabe a escola ampliar o acervo cultural que dá conteúdo à expressão imaginativa da
criança, estudando outros elementos da cultura que não a escolarizada.
Dessa forma, a brincadeira favorece o desenvolvimento cognitivo das
crianças quando a escola promove o equilíbrio entre o desenvolvimento pessoal e
social, oferecendo às crianças os elementos da cultura local e universal e
explorando qualquer conteúdo, valorizando o pensamento divergente e estimulando
a criatividade.
Neste sentido, a escola de hoje, muitas vezes, ainda apresenta uma relação
confusa entre o brincar e o aprender, quando reduz a liberdade e o prazer na
construção do conhecimento, impedindo que as brincadeiras infantis, na escola e na
vida, se multipliquem e possam ser vividas com mais igualdade e prazer, gerando
novas descobertas e aprendizagens.
32
1.3 BRINCADEIRAS INFANTIS NA ESCOLA – LIMITES E DESCOBERTAS
Na atualidade, ainda são poucas as educadoras e educadores que, na
educação das crianças, desenvolvem suas atividades ludicamente, priorizando as
brincadeiras, sobretudo, como um recurso de promoção da socialização. Na maioria
das vezes, as brincadeiras são vistas e utilizadas como um passatempo infantil, sem
tolerância, interesse e intenção por parte da escola.
Vivemos o conflito entre dever e prazer, como se ambos não pudessem estar
juntos. A escola assume o lugar do dever e da obrigação, deixando pouco espaço
para amizades, brincadeiras e descobertas, atividades muito importantes para o
desenvolvimento infantil.
O mundo infantil foi invadido por tarefas, disciplina, cultivo à atenção, não
sobrando espaço para as brincadeiras e outras vivências lúdicas ou direcionadas.
Neste sentido, Marcelino (2003, p. 18) afirma que “[...] nossa conformação social
tende a nos empurrar cada vez mais para dentro da sociedade neoliberal:
racionalidade, produtividade, eficiência, competitividade, sucesso financeiro”.
Como pode a escola educar sem levar em consideração os reais interesses
das crianças? Que mulheres e que homens a escola pode formar com a sugestão,
orientação, e até mesmo imposição de atividades de natureza fria, competitiva e sem
vida? A escola precisa ser o espaço da troca, da diversidade, da descoberta do
prazer e da alegria. Para que isto aconteça, é preciso trilhar por um caminho na
direção da felicidade a partir do momento presente, da promoção da interação entre
as crianças, e do respeito às diferenças sociais, culturais e econômicas. O sonho, a
magia, os sentimentos e os desejos não podem ficar fora da escola ou presos a
pacotes pedagógicos que fingem ter o caráter lúdico humanizador. Como avalia
Marcelino (2003, p. 23), “[...] permitir que as crianças sejam crianças e vivam como
crianças; é ocupar-se do presente, porque o futuro dele decorre”.
Preservar a infância é zelar pelo direito à brincadeira, afastando-se do padrão
e experiências dos adultos, que impedem, muitas vezes, as crianças de ousarem,
inovarem e expressarem suas preferências com segurança, energia e tranqüilidade.
E isto porque as crianças aprendem muitas coisas sem, necessariamente, estarem
na sala de aula. Constantemente, investigam, trocam, experimentam, ousam,
acertam e erram, buscando soluções para as inúmeras dúvidas que permeiam seu
33
universo. Este é um cuidado que a escola precisa ter, respeitando as experiências
infantis e considerando que a brincadeira, a alegria de fazer junto, a cooperação, o
amor e o respeito ajudam a construir as identidades dessas criaturas em processo
de formação.
Visto nesta perspectiva, o brincar é uma atividade altamente sofisticada,
quando possibilita à criança externar o seu mundo, para viver de forma criativa,
desenvolvendo o pensar, o conhecer e o aprender de forma significativa. Brincando,
as crianças descobrem e aprendem a respeitar as diferenças de gostos e de
escolhas de cada uma.
No dia-a-dia da escola, as educadoras ficam presas à disciplina, à ordem, aos
conteúdos, ajudando as crianças na leitura, escrita e resolução de problemas,
esquecendo da importância da contribuição das brincadeiras para o
desenvolvimento de uma humanidade mais justa e fraterna por toda vida. É
importante que a escola reconheça a importância do brincar não somente em
atividades educacionais, mas também na recreação, para promover a socialização e
a saúde física e mental das crianças. Para Moyles (2002, p.12):
[...] O brincar, em situações educacionais, proporciona não só um meio real
de aprendizagem como permite também que adultos perceptivos e
competentes aprendam sobre as crianças e suas necessidades. No
contexto escolar, isso significa professores capazes de compreender onde
as crianças ‘estão’ em sua aprendizagem e desenvolvimento geral, o que,
por sua vez, dá aos educadores o ponto de partida para promover novas
aprendizagens nos domínios cognitivos e afetivos.
Existem evidências, através de estudos em fontes secundárias e da própria
experiência, de que o ato de brincar na escola é quase sempre relegado a
atividades, brinquedos ou jogos que as crianças realizam após terminadas as tarefas
escolares tradicionais, conforme veremos no capítulo três. Com esta visão
equivocada, as educadoras, o ambiente escolar, perdem a oportunidade de
promover na escola momentos lúdicos em que o brincar possa ser um fim em si
mesmo, desenvolvendo o físico, o intelectual e o sócio-emocional de meninas e
meninos. A escola precisa facilitar os relacionamentos entre as crianças, valorizando
as interações, ajudando as crianças a se compreenderem e, deste modo, adquiram
confiança nas suas capacidades rumo à autonomia e respeito pelo outro. Segundo
Marcelino (1989, p. 78),
34
[...] não se justifica que a escola não considere toda a cultura da criança, o valor
do componente lúdico, apesar de todas as barreiras verificadas no plano
social, e principalmente procurando minimizar seus efeitos; não promova
essa cultura, sem esmagá-la pela dominação; [...] e desconsidere que a
criança continua imersa numa cultura da criança, extra-escola.
É brincando que a criança aprende a transformar e a usar os objetos do
mundo para nele se realizar, sem perder o contato com a sua própria subjetividade,
podendo manipular e colorir fenômenos da realidade com significados e sentimentos
próprios, além de poder dominar a angústia, controlar os impulsos e ter uma atitude
positiva diante da vida.
Por meio do brincar, podemos fazer coisas; não simplesmente pensar ou
desejar, pois tudo que a criança, dentro ou fora da escola, toma como forma de
brincar, fantasiar, pensar, falar, sentir e até sonhar, sofre influência da auto-imagem
e da idéia pensada sobre o outro. As crianças não fazem distinções entre
brincadeiras de meninas e meninos no início da sua escolarização; os adultos é que
se preocupam excessivamente com a sexualidade das crianças e acreditam que, se
as meninas brincarem de futebol, poderão ser menos femininas e os meninos, se
brincarem de bonecas, poderão ser menos masculinos.
De acordo com Moreno (1999, p.28):
[...] esta imagem, nós não fabricamos do nada, mas a construímos a partir
dos modelos que a sociedade nos oferece. E é a sociedade e não a biologia
ou os genes quem determina como devemos ser e nos comportar, quais são
nossas possibilidades e nossos limites.
Nós, adultos, tentamos adivinhar aquilo que as crianças desejam ou
necessitam, lembrando-nos dos nossos próprios desejos quando crianças,
recorrendo a estruturas antigas de há muito ultrapassadas, ou correspondemos às
exigências das crianças oriundas freqüentemente de impulsos repentinos que nada
evidenciam daquilo que elas, no fundo, aspiram.
Por isso, na escola, as crianças, muitas vezes, escolhem as brincadeiras
conforme padrões sociais aprendidos, ou seja, as mais apropriadas para meninas e
para meninos, deixando de desfrutar o prazer e a alegria de viverem novas situações
de descoberta e interação, que poderiam experimentar se lhes fossem
oportunizadas brincadeiras independentes de sexo.
Maior respeito pelas brincadeiras dos meninos e meninas é sinal de respeito
pelo lazer, dando livre curso à imaginação. Conforme analisa Rocha (2003, p. 219),
“[...] o brincar reflete o corpo da criança e pode evoluir a partir das ações que
35
dependem da influência e do estímulo externo, mas só terá significado quando o seu
simbolismo estiver inserido na realidade externa”. A representação simbólica tende a
ser amparada pelos elementos temporais e espaciais onde o momento histórico e o
local de análise interferem nas significações do que seja a atividade de homens e
mulheres.
Essa análise pode ser utilizada e interpretada como exemplo ao compararmos
a prática de carregar cerca de 20 litros de água sobre a cabeça (como ocorre nas
favelas cariocas, em nossa zona rural nordestina e nas aldeias do Xingu, entre
tantos outros lugares do Brasil e do mundo), esforço físico muito maior do que
manejar um arco e uma flecha, visualizada a primeira como uma atividade feminina
e a segunda como exclusividade dos homens. Este e qualquer outro sistema de
divisão sexual do trabalho e do lazer revelam determinação cultural e não
racionalidade biológica. Com o respaldo antropológico de Mead (1971, p. 72),
acreditamos que “[...] mesmo as diferenças determinadas pelo aparelho reprodutor
humano apresentam diferentes manifestações culturais”.
Nesse contexto, evidenciamos a necessidade de uma educação mais livre,
estimulante e inovadora, possibilitando à criança uma gama variada de condutas
sem discriminação ou exclusão por sexo, raça ou outra categoria dicotomizante.
A escola precisa tratar a criança como um ser social atuante, incansável,
atenta, lúdica e curiosa, que usa tanto os sentidos quanto o intelecto com todas as
suas energias para encontrar o saber. A criança vive intensamente e merece receber
do adulto oportunidades para o desenvolvimento da autonomia e do respeito,
garantindo-lhe um espaço para a valorização das diferenças, renovando as relações
nos grupos, nas filas da escola, no esporte e nas brincadeiras, com um olhar mais
atento e questionador. Segundo Moreno (1999, p. 30), “[...] nas brincadeiras infantis
livres é que se exercitam espontaneamente os modelos aprendidos de conduta, é
aíque aparece a fantasia com a qual cada indivíduo se identifica”.
Precisamos respeitar as necessidades das crianças, resgatando o lúdico e
considerando a existência de várias crianças, com sua diversidade cultural,
entendendo-as como uns seres plenos, com direitos respeitados e que vivem em um
mundo autônomo e diferente dos adultos.
O olhar negativo, as propostas educativas, o tempo, a organização espacial, a
preocupação com um futuro incerto e as normas impostas pela sociedade são sérios
36
limites colocados pela escola para evitar o “riso”, a “espontaneidade” e a alegria do
aparecimento das brincadeiras infantis. Para Alves (1986, p. 95):
[...] os processos chamados socialização e educação são programas pelos
quais impomos a nossa realidade aos mais fracos – quer dizer, às crianças
– através de um sutil processo de lavagem cerebral ou de um nem tão sutil
exercício de coerção física e psicológica. É assim que elas se tornam
adultas.
Por isso, reafirmamos que, no espaço escolar, o brincar deve ser mais
encorajado para que os contatos com outras crianças possam ser ampliados,
possibilitando trocas culturais, afetivas e sociais, rompendo com uma cultura
dominadora em busca de uma nova consciência social. É através do brincar na
escola que a criança deve ter oportunidade de vivenciar desafios, estimular sua
imaginação, trabalhar a sua curiosidade, reorganizar seus pensamentos e emoções
com mais criatividade e prazer, para se alcançar o desenvolvimento integral. Como
analisa Maluf (2003, p. 33):
[...] não é possível conceber a escola apenas como mediadora de
conhecimentos, e sim como um lugar de construção coletiva do saber
organizado, no qual professores e alunos, a partir de suas experiências,
possam criar, ousar, buscar alternativas para suas práticas, ir além do que
está proposto, inovar.
Idéias, como esta, nos levam a reafirmar que, na escola, as crianças têm a
oportunidade de se comunicar, movimentar, experimentar, sentir e planejar,
expressando sentimentos, desenvolvendo talentos e se abrindo para um mundo
mais encorajado, convivendo com outras crianças que pensam e agem de maneira
diferente. Neste sentido, o papel das educadoras é de grande importância para
promover uma convivência mais coesa, levando as crianças a desfrutarem de uma
relação saudável, em que não prevaleçam modelos e rivalidades, mas alternativas
para brincarem juntos, com respeito e atenção às emoções do outro, atentando para
as peculiaridades que envolvem a formação da personalidade, comportamentos e
construção de relações interpessoais.
Para tanto, as educadoras precisam ter competência, entender como se
processa o desenvolvimento infantil, serem bem humoradas, comunicativas,
pacientes, gostar de brincar e amar as crianças, proporcionando horas de lazer,
visando garantir o surgimento de brincadeiras na escola, que, adequadamente
37
utilizadas, serão ferramentas úteis nos relacionamentos e fundamental para o auto-
desenvolvimento infantil.
Dessa forma, meninas e meninos precisam evoluir criticamente para que
possam converter os padrões sociais em função de uma socialização mais rica para
ambos, independente de gênero, pois o principal atributo do brincar é a auto
permissão, o anti dever, a negação da regra, aceitando a mudança e o novo.
Um dos grandes objetivos da escola deveria ser o de respeitar a
individualidade da criança e questionar qualquer que seja a divisão entre os sexos.
Não há dúvida de que os desenhos animados, comerciais de TV, lojas de
brinquedos, entre outros, enfatizam o aumento dessa divisão, marcando as
brincadeiras de meninos e meninas, mas, sendo a escola um espaço
eminentemente educativo, há de ter mais responsabilidade neste sentido.
Para Emerinque (2003, p.15), com quem concordamos,
Entre a criança brincando num tanque de areia e o cientista fazendo suas
experiências num laboratório, há uma identidade bastante grande: ambos
expressam sua curiosidade, criam situações-modelo, jogam com os dados
da realidade e da imaginação, transpondo-as numa formula, numa ficção.
Tudo é um universo mágico a ser explorado, algo que se busca com a
mesma emoção com que uma criança caça um fantasma, numa brincadeira
de faz-de-conta.
Enfim, as brincadeiras não podem ser consideradas apenas como um reflexo
do mundo social, mas precisam ser pensadas em relação às manipulações e às
produções imaginárias que elas permitem desenvolver, aproximando intenção e
gesto, realizando um casamento entre o que é concebido pela imaginação e o que é
objetivamente percebido na realidade externa, para que possam contribuir, também,
para a construção da identidade de gênero, permitindo às crianças a sua própria
realização pessoal, privilegiando repensar as relações humanas, na família e na
escola pela via do lúdico, do imaginário, do criativo, olhando o outro como um ser
que participa da vida em sociedade, independente de normas socialmente impostas.
Para continuarmos este estudo, cuja categoria de análise fundamental é
gênero, articularemos as brincadeiras infantis e a construção das identidades
feminina e masculina, ressaltando o papel do brincar na manutenção de estereótipos
de gênero ou, alternativamente, na sua utilização como instrumento de construção
de relações de gênero mais igualitárias, desde cedo, considerando a escola como
espaço privilegiado para esta construção.
38
CAPÍTULO 2
IDENTIDADES DE GÊNERO E BRINCADEIRAS INFANTIS:
UMA RELAÇÃO INEVITÁVEL
39
O propósito deste capítulo é estabelecer relação entre brincadeiras infantis e
construção da identidade de gênero. Apresentaremos algumas reflexões sobre
identidade, gênero, identidade de gênero e sobre o modo como as brincadeiras
fornecem símbolos para marcar o processo de construção das identidades de
meninas e de meninos.
Em cada período histórico e em cada cultura, algumas expressões do
feminino e do masculino foram dominantes e serviram como referências ou modelos
para as novas gerações. Porém, para que não sejam tomadas como paradigmas,
requerem uma mudança em nossa forma de pensar sobre o que, atualmente,
chamamos de “identidades de gênero” – identidade feminina e masculina.
Existem várias maneiras de ser mulher ou de ser homem; suas diferenças
foram construídas social e culturalmente, estabelecendo relações de dominação de
um sobre o outro, criando papéis distintos que resultaram em condicionamentos
sociais diferenciados para ambos os sexos.
Falar de gênero é “[...] falar a partir de um modo biológico do nosso ser, e do
outro, no fato da cultura, da história, da sociedade, da ideologia e da religião desse
caráter biológico” (MURARO; BOFF, 2002, p. 18). Os processos de socialização
relacionados com as discriminações por razões de gênero são complexos e
contraditórios e não há nada que justifique uma sociedade discriminatória a não ser
manter as relações humanas tais como estão.
Na análise de Muraro e Boff (2002, p. 46), “[...] tanto o homem quanto a
mulher projetam, ao seu modo, a existência, têm as suas maneiras próprias de tecer
as relações, de costurar as rupturas existenciais e sociais e de elaborar um horizonte
utópico”.
Nesse sentido, gênero e classe social assemelham-se como categorias que
fazem história e definem formas de representar e intervir na realidade social, pois os
estereótipos de gênero geram uma crise geral no Estado, na Educação e nas
Religiões, provocando uma ruptura em todos os campos, que impedem a construção
de uma humanidade mais harmônica. Inegavelmente, mulheres e homens podem ter
os mesmos comportamentos, costumes, gostos, preferências, escolhas... tudo
depende do seu meio social e das relações que nele se estabelecem. Para Toscano
(2000, p.83),
40
[...] a luta pelo fim das desigualdades entre homens e mulheres é parte de
um projeto social mais amplo, é apenas uma dimensão do processo global
de construção da cidadania. Somente com o fim das desigualdades de
gênero não chegaremos à plenitude democrática, mas sem passar por ele
não chegaremos nem sequer à metade do caminho.
Sabemos que as diferenças sexuais nos são dadas e construídas, uma vez
que o gênero não é simplesmente o que alguém tem ou é, mas sim algo que se
constrói no cruzamento da biologia e da cultura. Tornamos-nos sujeitos de uma
determinada sociedade, que, de forma ambígua e conflituosa, nos faz viver dentro
de parâmetros que são “certos” ou “errados” segundo o nosso sexo, e, assim
sendo, requer reciprocidade, parceria e cooperação fundamentais para se viver
com as diferenças. Na análise de Louro (1999, p. 112):
[...] talvez se possa dizer que a lógica subjacente a esta proposta se
assenta em alguns dualismos clássicos: competição/cooperação;
objetividade/subjetividade; ensino/aprendizagem; hierarquia/igualdade –
dualismos em que o primeiro termo representa o modelo androcêntrico de
educação e o segundo termo aponta para a concepção feminista.
Desta forma, para garantirmos aos sujeitos, condutas mais livres, sem forçar
uma identidade única e definitiva, precisamos entender que a identidade de gênero é
atribuída pelas influências sociais e culturais que vão se desenvolvendo durante a
infância até a vida adulta, sendo sujeita a constantes mudanças. Para Badinter
(1993, p. 50), com quem concordamos, “[...] a identidade de gênero é diferente da de
sexo”. Todavia, a construção deste conceito representa um esforço para entender a
dinâmica das relações de desigualdades entre mulheres e homens para que
mudanças, práticas, comportamentos, normas, representações e mentalidades
possam ser construídas tomando por base a dimensão social na qual o ser humano
está inserido.
Identidade sexual é uma relação social instável, volátil, contraditória e não
finalizada, de caráter mutante e transitório, que se constrói através da forma que
vivemos a nossa sexualidade. Na perspectiva de Badinter (1993, p. 40),
[...] quando a atribuição do sexo no nascimento é evidente, a criança
declarada menina ou menino na certidão é imediatamente percebida como
tal pelos que a cercam e, em primeiro lugar, pelos genitores. O olhar destes
e a convicção que têm quanto ao sexo de seu filho são determinantes para
o desenvolvimento da sua identidade sexual.
O conceito de gênero não se define a partir das diferenças anatômicas que
dividem os sexos em masculino e feminino. Para Scott (1991), trata-se de uma
41
construção social mutável, que identifica o tipo de relação que se estabelece entre
homens e mulheres, com os mesmos direitos e oportunidades, distribuindo as
responsabilidades e promovendo o bem estar coletivo. Também Louro (1996, p. 12)
entende que “[...] o gênero é mais do que uma identidade aprendida, é constituído e
instituído pela multiplicidade das relações sociais, das instituições, símbolos,
discursos, doutrinas e forte organização social”. Desta forma, as relações de gênero
ajudam a entender, entre outros aspectos, como os padrões e atributos de
comportamentos femininos e masculinos foram construídos e moldados na
sociedade.
Nesta mesma linha de pensamento, primeiramente delineada por Scott (1993,
p. 51):
O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as construções sociais – a
criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens
e às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens
e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social
imposta sobre um corpo sexuado.
Já identidade de gênero deve ser concebida como uma oportunidade de unir
as experiências masculinas e femininas, para que ambos possam aprender, trocar e
enriquecer a experiência humana. Neste sentido, afirma Badinter (1993, p. 99): “[...]
a identidade masculina está associada ao fato de possuir, tomar, penetrar, dominar e
se afirmar, se necessário pela força. A identidade feminina, ao fato de ser possuída,
dócil, passiva, submissa”.
A identidade de gênero envolve a postura feminina ou masculina que se
mostra predominantemente ao longo da infância e da adolescência. Vale salientar
que Stoller (1993, p. 30) enriquece a discussão ao afirmar:
[...] ser necessário distinguir o sexo, o gênero e o núcleo da identidade de
gênero para que se possa compreender a constituição da identidade de
gênero, definida como uma mescla de masculinidade e feminilidade,
encontrada em todas as pessoas, mas em formas e graus diferentes.
As crianças aprendem que existem homens e meninos, mulheres e meninas e
recebem ensinamentos sobre seu gênero pelos gestos, vozes, escolha dos
brinquedos, das brincadeiras e das roupas que devem usar. Ao mesmo tempo,
aprende, também, o significado das palavras, a interpretação que os outros
atribuem, ou seja, a semântica de cada um dos termos: homem/menino e
mulher/menina.
42
O significado do ser mulher e do ser homem em uma sociedade com forte
tendência sexista, conforme vem denunciando o pensamento feminista nas últimas
décadas, afeta as relações interpessoais e marca, de forma padronizada, o lugar dos
indivíduos, reproduzindo imagens e comportamentos de forma rígida e
preconceituosa, impedindo a formação de uma identidade que leve as crianças a se
encontrarem e passarem por experiências diversas, transformando-se,
constantemente, no nível pessoal e social ao longo de sua vida. Como analisa
Stoller (1993, p. 42):
[...] falar em gênero é pensar não em homens e mulheres biologicamente
diferenciados, mas em masculino e feminino como constituídos a partir de
relações sociais fundadas nas diferenças entre os sexos, diferenças
lentamente construídas e hierarquicamente determinadas.
Logo, pensar na relação das brincadeiras infantis com a construção da
identidade de gênero é buscar estabelecer uma estreita ligação com os aspectos
sociais, culturais, além dos biológicos, do ser menina ou menino, partindo das
influências do mundo subjetivo e das relações interpessoais vividas nos espaços
familiar e escolar. No mundo objetivo, segundo Beauvoir (1980, p. 28),
[...] a hierarquia dos sexos manifesta-se a ela primeiramente na experiência
familiar; compreende pouco a pouco que, se a autoridade do pai não é a
que se faz sentir mais cotidianamente, é, entretanto a mais soberana;
reveste-se ainda de mais brilho pelo fato de não ser vulgarizada; mesmo se,
na realidade, é a mulher que reina soberanamente em casa, tem ela, em
geral, a habilidade de pôr à frente a vontade do pai; nos momentos
importantes é em nome dele que ela exige, recompensa ou pune.
Cada vez mais cedo, as crianças desenvolvem idéias sobre o que é
apropriado para seu sexo, através das roupas, brinquedos e brincadeiras. Esta
constatação nos conduz a admitir que a construção das identidades de gênero
estabelece uma estreita relação com as brincadeiras infantis, especialmente a partir
do momento em que as crianças ingressam na escola e ampliam os contatos com
outras crianças através das brincadeiras, em que experimentam papéis e idéias a
fim de organizarem e compreenderem o mundo e o seu próprio lugar nesse mundo.
Significativamente, os estereótipos de gênero influenciam o brincar infantil,
refletindo nos padrões de socialização das meninas e meninos, levando-os a
construírem o mundo com base nos papéis sexuais. Neste sentido, afirmam
Fagundes e Franco: (2001, p. 80) “[...] as atividades lúdicas que fazem parte do
universo infantil, [...] impregnadas de valores históricos culturais [...] exercem uma
43
influência marcante na construção da identidade e representação de gênero”. O
gênero deve ser entendido como uma construção cultural e simbólica das relações
entre homens e mulheres, questões estas sociais e históricas, que estão presentes
nas várias dimensões da vida afetiva, sexual, familiar, política e religiosa.
A partir de estudos teóricos sobre o conceito de identidade de gênero, é
possível chegar a um entendimento maior se partirmos para analisar o gênero como
constituinte da identidade dos sujeitos. Esses estudos vêm sendo utilizados para
ressaltar as diferenças entre homens e mulheres no que diz respeito à construção
social dessa distinção, não com base no sexo, mas no comportamento social e
relacional de homens e mulheres.
Sendo assim, devemos buscar maneiras de ser e agir para que os vínculos
sociais se formem sem diferenças e competições negativas com base simplesmente
no sexo, impedindo que as crianças ao longo do processo de construção das suas
identidades, possam se constituir plenamente em mulheres ou homens.
2.1 IDENTIDADES DE GÊNERO – REFLEXÕES CONCEITUAIS
Pensar na expressão gênero é lutar pela igualdade de direitos e de
oportunidades, distinguindo, desta forma, a dimensão biológica do social, apontando
para a não continuidade entre o sexo físico e o sexo social, o sexo forte e o sexo
frágil.
O gênero e as identidades de gênero não são simplesmente herdadas ou
reproduzidas pelas instituições sociais, constroem-se diariamente através da
interação cotidiana das pessoas nos diversos espaços em que transitam: “O termo
gênero corresponde à introdução da noção relacional entre homens/mulheres no
vocabulário analítico, permitindo a inclusão da experiência pessoal e subjetiva ao
lado daquelas reconhecidas como importantes”. (FAGUNDES; FRANCO, 2001, p.
15). Deste modo, a noção de gênero aponta para a dimensão das relações sociais
de feminino e masculino, permitindo pensar nas diferenças sem transformá-las em
desigualdades, no sentido de garantir o pleno exercício da cidadania, contemplando
a diversidade da condição humana.
44
Na discussão sobre esta questão, Meyer e Soares (2004, p. 33) asseveram
que:
[...] o conceito de gênero está relacionado fundamentalmente aos
significados que são atribuídos a ambos os sexos em diferentes sociedades.
Homens e mulheres, meninos e meninas constituem-se mergulhados nas
instâncias sociais em um processo de caráter dinâmico e contínuo.
Questões como sexualidade, geração, classe, raça, etnia, religião, também
estão imbricadas na construção das relações de gênero.
Por conseguinte, gênero significa, também, um jeito de olhar e compreender a
realidade e que vai influenciar nosso modo de agir nos contextos social, político e
econômico, em que vamos crescer, ser educados, trabalhar e amar.
Nesta perspectiva, Louro (1997, p. 25) admite que “[...] as diferentes
instituições e práticas sociais são construídas pelos gêneros e são, também,
constituintes dos gêneros”.
Assim compreendido, o conceito de gênero está ligado ao de identidade,
quando se a entende como uma representação do ‘estar sendo’ no mundo, como
uma construção social de caráter ativo em constante processo de mudança e
transformação, ligada aos hábitos culturais e sociais de determinados grupos que
produzem o que somos ou o que poderemos ser. Para Ciampa (1997, p. 157), “[...]
uma identidade nos aparece como uma articulação de várias personagens,
articulação de igualdades e diferenças, constituindo e constituída por uma história
pessoal”. Por isto, a constituição de cada pessoa deve ser pensada como um
processo que se desenvolve ao longo de toda vida em diferentes espaços e tempos.
Neste sentido, Silva (2000, p. 96) afirma:
[...] a identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A
identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica,
transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma
construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato
performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada,
inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e
narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A
identidade tem estreitas conexões com relações de poder.
Com esta compreensão, admitimos, também, que as nossas identidades são
plurais, múltiplas e se transformam ao longo da nossa existência, pois, como afirma
Woodward (2000, p. 11) “[...] a identidade é marcada pela diferença, mas parece que
45
algumas diferenças são vistas como mais importantes que outras, especialmente em
lugares particulares e em momentos particulares”.
Não podemos dissociar o estudo da identidade do indivíduo da sociedade,
pois ela se constitui em momentos históricos, emerge de conflitos e negociações,
distanciando-se da homogeneidade e se constitui como sujeito a partir das relações
dos ensinamentos e do reconhecimento de si mesmo. Desta forma, um elemento
presente na construção da nossa identidade é a “identidade de gênero”, que começa
com a percepção de pertencer a um sexo e não a outro. Esta percepção surge,
inicialmente, pelo processo de socialização apresentado pelos pais, amigos, escola
e por tudo que a cultura define como papéis masculinos e femininos. Por
conseguinte, como afirma Fagundes (2005, p. 25), “[...] não existe uma única forma
de explicar a construção da identidade de gênero – a construção do ser mulher e do
ser homem. Tem-se uma orientação biológica à qual se agrega a de fundo
psicanalítico e outras de caráter sócio-cultural [...]”.
Nesse sentido, a identidade de gênero pode ser entendida como um conjunto
de traços construídos no âmbito social e cultural que definem os gestos,
comportamentos, atitudes, modos de vestir, falar, andar e brincar, de modo uniforme,
para mulheres e homens. Para Louro (1994, p. 37):
[...] há um jeito de ser feminino e um jeito de ser masculino, há
comportamentos falas, gestos, posturas físicas, além de atividades e
funções que são socialmente entendidas como adequados, ‘naturais’,
apropriados etc, para as mulheres ou para homens. Nossa tendência com
referência a muitas dessas características é percebê-las quase como uma
extensão da natureza de cada sexo.
De acordo com essa perspectiva, para explicar a formação das identidades de
gênero, precisamos analisar o indivíduo e aqueles que dele cuidam ou o cercam,
uma vez que, em certa medida, estas identidades são resultados de influências
sociais que fluem por meio de diversos canais, como podemos depreender da
análise de Passos (1999, p. 108), para quem:
[...] a identidade de gênero segue o mesmo processo de construção da
identificação em geral. A forma como homens e mulheres se vêem e como
se identificam, longe de ser algo fixo e permanente é histórica. Vai sendo
construída e assumida diferentemente, a depender das circunstâncias, das
associações que fazem com o grupo, das apresentações coletivas e da
ideologia dominante, entre outros. Sua identificação com um determinado
perfil, com os papéis a serem assumidos, comportamentos que deve ter
sonhos, desejos e expectativas são construtos sociais e históricos.
46
Portanto, a construção da identidade de gênero reflete uma mudança
histórico-cultural e afasta as idéias de condicionamento passivo, pois as mulheres e
os homens podem se apresentar desde a infância, como participantes ativos na
construção de um mundo menos desigual e preconceituoso, tendo a cooperação
como uma característica central da vida cotidiana, fundamentada na confiança e no
respeito mútuo.
No entanto, acreditar que a sociedade humana existe sob a forma de uma
ordem estabelecida de vida através da advertência a um conjunto de regras,
normas, valores e sanções específicas é generalizar, ou melhor, é não ver o outro
lado, já que não são as regras que sustentam a vida de um grupo, mas ao contrário,
é o processo social de vida grupal que cria e mantém as regras.
Neste contexto, discutiremos as implicações das brincadeiras na construção
das identidades de gênero de meninas e meninos, situados em uma sociedade
marcada por preconceitos e diferenças entre os sexos.
2.2 CONSTRUINDO A IDENTIDADE POR MEIO DO BRINCAR
Discutir a construção da identidade é considerar a história e as
transformações que o indivíduo passa ao longo de sua vida nas suas múltiplas
ações e relações. Identidade, segundo Passos (1999, p. 980):
[...] é a forma dos indivíduos se reconhecerem e de serem reconhecidos, a
maneira como se vêem e são vistos. Assim, aquilo que os outros dizem e
esperam dele, passa a fazer parte do que ele acha que é a sua natureza e
modelará o seu perfil, a sua forma de ser. A sociedade nos dá, prontas,
algumas identidades: menina, menino, mãe, pai, entre outras.
Nossa identidade passa por transformações ao longo da nossa vida,
ancorando-se em valores ditados pela família, escola e pela sociedade como um
todo, que imprimem limites na nossa conduta e no nosso desenvolvimento. Segundo
Silva (2000, p. 10), “[...] a construção da identidade é tanto simbólica quanto social”.
Identidade é uma construção social, resultado das relações individuais e coletivas,
que não são fixas nem estáveis e nos remete ao que é idêntico ou diferente e único.
47
Conhecer a si próprio é o grande desafio que a humanidade percorre ao longo
de sua vida. A conquista da identidade é cercada de dúvidas e expectativas por
parte da sociedade. Na infância, isto se torna ainda mais sério, pois as crianças
vivem cercadas de normas, condutas e valores que lhes são impostos desde o
nascimento. Maluf (2003, p. 90) nos lembra que “[...] a criança caminha do individual
para o social, e a sociabilidade necessita de estímulos adequados para que sejam
evitados medos de pessoas diferentes, ou que haja discriminação”. Equilíbrio
emocional e oportunidades de viver com liberdade experiências que a ajudem a
formar uma visão de si próprio, e que possam ser resultado das relações mantidas
com seus pais, são passos importantes para que as crianças não vivam as
limitações apontadas com relação ao masculino/feminino e possam cruzar as
fronteiras entre os gêneros, sem culpas ou medos.
As crianças percorrem um longo caminho para formar sua individualidade.
Este período é marcado por conquistas e descobertas, frustrações e medos,
curiosidades e mudanças de comportamento que nem sempre agradam aos pais e
professores. Neste sentido, Bettelheim (1988, p. 155) afirma que “[...] para nos
tornarmos verdadeiramente nós mesmos, precisamos de experiências, em
quantidade razoável, tanto de solidão como de vida ativa, com todas as suas
vicissitudes”. É por isso que devemos compreender que desde o início da infância,
com a formação da personalidade, as brincadeiras infantis se apresentam com base
em valores e desenvolvimento social que vão ficando mais fortes com o passar dos
anos, influenciando na construção das nossas identidades.
Os problemas em torno da conquista desta identidade podem ser amenizados
com a presença das brincadeiras no mundo infantil. Brincando, a criança pode ser a
mãe, o pai, o irmão mais velho, a professora, ou qualquer outra pessoa ou
profissional que sua imaginação desejar. Como analisa Ciampa (1989, p. 60), “[...]
da mesma forma como um autor acaba se revelando através de seus personagens,
é muito freqüente nos revelarmos através daquilo que ocultamos. Somos ocultação e
revelação”.
Assim, é fundamental perceber que cada criança frente ao lúdico apresenta a
sua própria especificidade, revelando conflitos interiores ou ocultando desejos não
só do momento presente, mas também do passado ou futuro, podendo acontecer
através das brincadeiras de repetições, faz-de-conta e tantas outras, em que as
48
crianças recriam, imaginam ou consertam a sua realidade, buscando soluções para
os seus problemas de uma forma mais saudável para si.
O ato de brincar é muito importante para o desenvolvimento integral das
crianças. Quando brincam, elas se encontram consigo, com o outro, e com o mundo
a sua volta. Para Passos (1999, p. 55): “[...] identificar-se com o outro significa sentir-
se o outro, ser ele mesmo. Enquanto inicialmente meninas e meninos se identificam
com a mãe, posteriormente o garotinho se identificará com o pai.” O problema das
construções desiguais reside nas diferenças estabelecidas entre os sexos, e no
modo como nos apropriamos desses modelos transmitidos pela cultura.
Nesse sentido, admitimos que não devemos esquecer que, seja qual for o
jogo ou a brincadeira infantil, a livre escolha das crianças lhes permite viver, de
forma ativa, certos problemas pessoais não expressos, os quais fazem parte da
construção das suas identidades. Para Winnicott (1975, p. 80), é “[...] o brincar, e
somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar
sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o
eu”.
Sendo assim, consideramos a brincadeira um componente importante na
construção da identidade infantil, quando ocorrem satisfação e prazer no ato de
brincar e a criança deixa fluir seus pensamentos, emoções e ações, fortalecendo-se
e construindo uma identidade que a leve, de maneira harmônica, a ter uma vida
satisfatória. A construção da nossa identidade, na percepção de Woodward (2000, p.
10), “[...] é tanto simbólica quanto social [...] marcadas pelas diferenças, pelas
experiências vividas, fruto das relações sociais globais e locais”.
O problema que se instala, na contemporaneidade, é o fato de não
permitirmos às crianças organizarem o seu mundo interior e viverem suas fantasias
sem nossas influências ou reprovações. Se retornarmos a Bettelheim (1988, p. 177),
admitiremos, como ele que “[...] para as crianças normais, os jogos de fantasia são
uma tentativa de separar a vida interna da imaginação, da vida externa da realidade,
e de adquirir domínio sobre ambas”. Através das brincadeiras, podemos
compreender como as crianças vêem e constroem o mundo, seus problemas,
preferências, angústias e descobertas. Ainda para Bettelheim (1988, p. 164), “[...] as
brincadeiras mudam à medida que as crianças adquirem maior compreensão e
problemas diferentes começam a ocupar sua mente”.
49
O brincar não se reduz às diferentes etapas e tipos de brincadeiras, ele
ultrapassa este processo e se institui como uma categoria nova para a criança
através do seu desenvolvimento e das suas necessidades, para que ela possa se
constituir como ser humano, independente dos estereótipos que os adultos
apresentam em relação à criança e às brincadeiras infantis.
Construir a identidade por meio do brincar não é algo simples ou um mero
passatempo infantil, e sim, uma oportunidade que as crianças têm de entender o
mundo e descobrir seu lugar e seu papel no contexto em que se inserem. “Brincar de
médico”, de “casinha”, “de mamãe”, “de professora”, “de construir casas com
blocos”, e tantas outras brincadeiras, são formas que a criança encontra de perceber
sua imagem, de julgá-la, de fugir da realidade ou de entendê-la, para viver a sua
infância com mais independência e autonomia.
Pensar na construção das identidades de gênero das crianças é pensar em
uma complexidade de questões que envolvem relações entre homens e mulheres,
diversidade cultural, classes sociais e a própria sociedade em que estão inseridos.
Para isto, é preciso olhar as meninas não como frágeis, submissas, recolhidas aos
trabalhos domésticos, portadoras de tantos outros estereótipos ligados ao gênero
feminino, e sim, com uma visão transformadora no que tange ao mundo social,
político e econômico em que atuam homens e mulheres. Como analisa Passos
(1999, p.105):
[...] a identidade de homens e mulheres é uma construção social que
decorre, entre outros motivos, do modo como o mundo lhes foi apresentado,
da educação recebida, da cultura dominante, das relações que trava, de
como é reconhecido pelo grupo e como conduz seus atos.
A construção da identidade precisa passar pelo conhecimento da identidade
do ser humano. Tomando a idéia apresentada por Gramsci (1978, p. 38), admitimos
que o ser humano “[...] é um processo, precisamente o processo de seus atos”.
Logo, se faz necessário entendê-lo nas suas múltiplas ações e relações, buscando a
liberdade, a reflexão e a transformação: “Identidade é movimento, é
desenvolvimento do concreto. [...] É sermos o Um e um Outro, para que cheguemos
a ser Um, numa infindável transformação” (CIAMPA, 1997, p. 74). Nesse contexto,
não podemos esquecer que a brincadeira é o mundo do faz de conta que possibilita
às crianças entender a si mesmas e aos outros, a perceber unidade e diversidade, a,
50
inclusive escolher seus parceiros, mesmo que estas não sejam as formas ideais ou
idealizadas pela sociedade. Como analisam Fagundes e Franco (2001, p. 76):
A criança não transita livremente na múltipla riqueza do brincar. Essa
interdição não representa uma atitude ingênua por parte dos adultos, e sim,
o reflexo de uma cultura repressora, dominadora e discriminativa. A
conseqüência disto é que, ao limitarmos a criança na sua vida lúdica,
limitamos também suas possibilidades de sonhar e dominar a realidade.
As limitações se apresentam mais entre as meninas no que tange às roupas,
às brincadeiras e ao palavreado, utilizando, para isso, normas referentes a serem
elas mais frágeis, delicadas e sensíveis, em meio às relações de gênero que vão
estruturando a condição de ser mulher numa sociedade historicamente construída e
constituída por e para homens. Segundo Toscano (2000, p. 19):
[...] as diferenças biológicas podem até explicar como nasceram e se
consolidaram os preconceitos, mas não justificam sua sobrevivência, desde
o momento em que a ciência, a antropologia, a história social nos mostrara
sua falsidade ou seu conteúdo ideológico, não raro, acobertando interesses
nem sempre confessáveis.
A imagem da brincadeira valorizada é aquela que parece conseguir o apoio
dos pais, professores e outros envolvidos na engrenagem social, em conciliar as
características físicas com as características lúdicas. Ciampa (1989, p. 61) afirma
que “[...] há mudanças [são] mais ou menos previsíveis, mais ou menos desejáveis,
mais ou menos controláveis, mais ou menos... mudanças”. Por isto, as identidades
são formadas dentro dos padrões que os adultos reconhecem como certos, seguros
e condizentes com a imagem ideal de um futuro homem ou uma futura mulher, mas
que escondem, muitas vezes, suas maneiras próprias de agir e de pensar.
A polêmica que cerca o brincar e a construção das identidades de gênero das
crianças vêm se configurando como uma importante questão, ao longo dos tempos,
na escola e na sociedade, quando definem o papel de cada mulher e cada homem
de forma simplista e desigual desde a infância.
A criança, menino ou menina, se instala numa rede de significações,
carências e expectativas. Seus pais darão um nome e ela terá de se inserir no lugar
deste nome. Marcada pela história, a criança se vê e passa a receber seus limites e
possibilidades. Analisa Beauvoir (1980, p. 15) que tais atitudes são desnecessárias
uma vez que “[...] a criança aceita naturalmente que haja homens e mulheres, como
há um sol e uma lua [...]”. Nesse sentido, as crianças brincam juntas e realizam
51
tarefas diversas, com um misto de sensações não necessariamente agradáveis,
mas, certamente, importantes para a sua constituição como sujeito.
As crianças não suportam se sentirem diferentes, mas as normas sociais pré-
estabelecidas fazem, muitas vezes, com que o relacionamento entre garotas e
garotos torne-se difícil, gerando um mal-estar cheio de culpas e frustrações,
conduzindo-os a terem uma idéia equivocada das relações que ocorrem ao seu
redor, cheias de preconceitos e opiniões preconcebidas, que determinam o lugar
que cada indivíduo deve ocupar na sociedade.
Para Belotti (1983, p. 79), “[...] os modelos propostos por esse tipo de
sociedade ao invés de auxiliar a criança a crescer e a organizar a sociedade futura
em grupos, ameaçam bloqueando-a na infância”. Pais e educadoras também, em
vez de idealizarem um novo tipo de criança, novas relações e novos horizontes,
ficam presos a preconceitos que deveriam ser abandonados e alterados para que a
humanidade pudesse ver a realidade com olhos bem diferentes, formando adultos
que saibam escolher o seu caminho com suas vocações e possibilidades de ação.
Para Bettelheim (1988, p. 173) “[...] a brincadeira ainda antecipa ocupações
futuras, mas já não isola nem define a ocupação que completará a vida adulta da
criança, como cuidar de uma fazenda ou do lar”. Desde a mais tenra idade, a criança
brinca para satisfazer suas necessidades e explorar o mundo a sua volta.
A utilização das brincadeiras infantis na perspectiva de contribuir para a
construção de identidades de modo a minimizar as assimetrias entre meninas e
meninos pode, de modo eficaz e contextualizado, incentivar mudanças no ambiente
em que a criança está inserida, rompendo com alicerces tradicionais, de modo
flexível e aberto, e com capacidades de melhores adaptações aos novos cenários
sociais, criando um canal aberto de comunicação, sabendo ouvir e respeitando as
diferenças individuais, aprendendo com os outros, motivando-se a fazer parte de
grupos, com sensibilidade e criatividade, para que a liberdade de pensamento e
expressão apareçam e sejam respeitados.
Mediante as brincadeiras, as crianças vão reafirmando o direito de liberar
seus sentimentos das restrições causadas pela cultura de gênero, apresentando um
modelo social em que as pessoas, independente do sexo, manifestam as mesmas
alegrias e tristezas.
Como analisa Moyles (2002, p. 181), “[...] talvez a suprema diferença entre o
brincar das crianças e o dos adultos possa ser resumida num pensamento final: as
52
crianças brincam para encontrar a realidade; os adultos brincam para evitá-la”.
Concordar com este pensamento nos leva a admitir que as crianças são pessoas
com sentimentos, emoções, necessidades sociais e intelectuais comparáveis às dos
adultos e que o brincar, em qualquer tempo, torna a vida mais prazerosa e fácil de
“ser vivida”.
Assumir, pois, a importância das brincadeiras para as crianças é rejeitar
claramente a arcaica concepção de que existe uma fronteira separando mulheres e
homens, desde a mais tenra idade, não só no que concerne ao brincar, mas,
também, aos modelos culturais que a escola oferece e a sociedade valoriza para
meninas e para meninos.
Temos a crença de que, quando é negado à criança o direito de brincar, ela
apresenta dificuldades em resolver problemas cotidianos e fica limitada de ter um
convívio social rico, desafiador e com experiências significativas para a sua vida
emocional e social. Mesmo nas brincadeiras infantis quando o tempo e o espaço das
meninas tende a ficar mais restrito do que o dos meninos, que podem desfrutar de
um leque maior de oportunidades e experiências lúdicas, esse relacionamento se
distancia, não permitindo uma maior aproximação e interação entre eles,
aumentando ainda mais as fronteiras das desigualdades, impedindo-as de
aperfeiçoarem a convivência entre eles.
Em geral, nas brincadeiras de meninas e meninos constrói-se a cultura da
diferença, da resistência sócio-cultural e da submissão, como analisa Passos (1999,
p. 109):
Essa trama é tecida em várias instâncias: família, escola, relações de poder,
entre outras. Quanto à família, sabe-se que sua herança patriarcal é forte,
definindo modelos de educação para a prole, a depender do sexo. Os
machos devem ser educados para “vencer” – nos negócios, nos esportes,
nas relações de poder –, enfim ” ter sucesso “. Seu modelo identificatório é
o do caubói: viril, duro, solitário, destemido. Quanto às filhas, o padrão deve
ser o de “mocinhas”: ingênuas, dóceis, companheiras, frágeis.
Permitir e incentivar essa diferença é negar a possibilidade de o outro se
expressar, se encontrar e se representar como indivíduo que assume papéis
diversificados e passa por múltiplas experiências que o conduz a constantes
transformações nos níveis pessoal e social ao longo de sua vida.
Portanto, precisamos destacar o valor das brincadeiras infantis na construção
da identidade de gênero, para que, juntos, possamos discutir em níveis de igualdade
53
de direitos, as desigualdades e as semelhanças e, deste modo, as crianças de
ambos os sexos possam viver sua infância com os mesmos direitos para fantasiar,
brincar, jogar, desejar e participar de uma vida em sociedade com respeito e
dignidade para ambos os sexos.
2.3 BRINCADEIRAS DE MENINAS E BRINCADEIRAS DE MENINOS
Vimos até então, que as crianças habitam um mundo social que é organizado,
em grande extensão, segundo o gênero e suas formas de brincar.
Conseqüentemente, este mundo traz, através das brincadeiras, informações e
entendimentos valiosos, que contribuem para uma melhor compreensão das
crianças, de modo a enriquecer o seu desenvolvimento e satisfazer suas
necessidades como indivíduos dentro do contexto social.
Para uma criança, um projeto de vida é algo muito distante e, em uma vida de
escolhas, nem sempre as suas decisões vêm acompanhadas de uma certa
racionalidade. Mesmo assim, as escolhas vão acontecendo, repetindo-se, e se
transformando em preferências e gostos. Segundo Passos (1999, p.94), as pessoas
são:
[...] classificadas segundo o seu sexo, criando estereótipos que
desenvolvem a desigualdade e a discriminação. Através de generalizações
forçadas, em que a verdade vai sendo alterada, diferenças vão sendo
estabelecidas entre homens e mulheres, tornando seres humanos
essencialmente iguais em diferenças.
Em nossa sociedade, o modelo de educação sempre estabeleceu diferenças
entre meninas e meninos, utilizando todo tipo de mecanismo para enquadrá-los
dentro de padrões determinados pelo sexo. Enquanto a menina é vista brincando de
“casinha”, de “boneca”, de “comidinha”, todas voltadas para o lar, os meninos são
vistos brincando em espaços abertos como a rua, jogando bola, brincando de
carrinhos ou de guerra. Ou seja, desde cedo, eles se dão conta de que pertencem a
um determinado grupo e são incentivados a brincarem e se comportarem de formas
diferentes. Segundo Louro (1997, p. 79), esta diferença acentuada pela escola, “[...]
também é provocada, por exemplo, nas brincadeiras que ridicularizam um garoto,
54
chamando-o de ‘menininha’, ou nas perseguições de bandos de meninas por bandos
de garotos”.
Logo, não podemos considerar tal situação como normal ou natural, uma vez
que este tipo de comportamento entre as crianças acontece porque é estimulado
pela família ou porque é próprio do desenvolvimento infantil, como muitos
educadores insistem em afirmar. As crianças de 2 a 5 anos aproximadamente,
brincam juntas com muita cumplicidade e alegria, quando não existe nenhum tipo de
intervenção. Então poderíamos nos perguntar, o que muda quando chegam ao
Ensino Fundamental I?
Belotti (1983, p. 106) afirma que “[...] pela família, pela escola ou pela mídia,
os dois sexos são sempre colocados em posição antagônica, decide-se a priori o
que convém a este ou àquele, impede-se que escolha livremente as atividades mais
conaturais”. Desta forma, criamos modelos para cada um de nós, eliminando parte
da riqueza e da variedade de formas de conduta de que dispõe o ser humano,
submetendo-os aos estereótipos que a sociedade impõe à questão do gênero a que
pertence e apresentando inúmeras condutas atribuídas a cada sexo, que não se
relaciona com as capacidades naturais de uma mulher e de um homem.
Portanto, o nosso grande desafio através da escola é criar meninos e
meninas imunes ao discurso androcêntrico, que impede que os homens sejam
capazes de reconhecer a igualdade de valores entre eles e as mulheres. Muitas
vezes, por ignorar o modo pessoal e particular de lidar com a realidade de meninas e
de meninos, cometemos falhas que nos imobilizam e impossibilitam de entender os
próprios desejos e os desejos do outro, de ter, enfim, comportamentos de considerar
eqüitativamente os sexos.
De muitas maneiras, contribuímos para as desigualdades sociais,
determinando padrões, principalmente de gênero, que emperram o desenvolvimento
da história e não ensinam meninas e meninos a serem eles mesmos, unificando o
que foi, arbitrariamente, fragmentado. Para Passos (1999, p. 106), “[...] no Brasil,
tradicionalmente, homens e mulheres recebem educação diferenciada, não em
respeito às diferenças entre os sexos e sim para torná-los desiguais e com isso,
marcá-los, rotulá-los e destiná-los a lugares e papéis”. Meninas e meninos seguem
suas vidas aprendendo que devem estar em mundos separados, que suas
experiências não devem ser compartilhadas com o que consideram o sexo oposto.
55
Esta divisão por sexo, voluntária ou designada, é algo familiar entre os
adultos, nas mais diversas brincadeiras. Na análise de Moyles (2006, p. 54),
[...] as expectativas e atitudes em casa e na escola afetam a variedade do
brincar [...]. Os adultos, com freqüência, pressionam sutilmente as meninas
a se conformarem a expectativas estreitas, e podem expressar
desaprovação ou até hostilidade em relação aos meninos que se vestem
com roupas “femininas” ou brincam com bonecas.
Devido a situações como essa, meninas e meninos estabelecem relações
cada vez mais complexas, diferenciando-se nas brincadeiras e nas formas de
convivência, impedindo que os direitos e deveres se sustentem na solidariedade e
cooperação humana no campo social e cultural. Também, como analisa Belotti
(1983, p. 52):
[...] se pararmos de ensinar ao macho que deve dominar e à mulher que
aceite e goste de ser dominada, poderão florescer novas e insuspeitadas
expressões individuais muito mais ricas, articuladas, imaginosas do que os
mesquinhos e mortificantes estereótipos.
Depreendemos, portanto, dessas análises que, quanto mais dinâmicas forem
as relações entre as crianças, mais diversas serão as experiências vividas, os
sentimentos, as contradições, os papéis e valores sociais transmitidos por elas ao
crescerem, evitando que, em uma sociedade historicamente voltada para os
homens, as novas relações sociais possam construir um amanhã não mais
radicalmente determinado pelas diferenças entre os sexos.
Precisamos contribuir para que meninas e meninos possam, conjunta e
igualmente, participar de brincadeiras que os levem a pensar, sentir, agir e construir
suas identidades de gênero sem preconceitos e discriminações. Quando brincam
juntas, as crianças relacionam-se com outras e vão se constituindo como sujeitos,
alicerçando ou desconstruindo modelos e ampliando as possibilidades de
experenciarem sentimentos fortes e contraditórios, alargando as fronteiras entre a
fantasia e a realidade, estando às vezes juntos, às vezes separados, trabalhando as
suas ambigüidades e seus valores sociais para a construção das suas identidades.
É importante reafirmar que as brincadeiras de crianças são práticas muito
sérias, pois funcionam como “ensaios gerais” da vida adulta. É necessário também
entender que as atividades lúdicas, além de agradáveis, possibilitam as crianças, de
forma prazerosa, incorporarem atitudes positivas quanto às relações sociais e,
dentre elas, as relações de gênero.
56
O brincar de crianças na rua, em casa, na escola, nos parques, envolve
variadas atividades que levam as crianças a exercitarem a livre escolha das suas
brincadeiras e do seu grupo. Porém, muitas vezes, as intervenções adultas
influenciam esse brincar, além de criarem estereótipos prejudiciais para que as
mesmas possam ampliar o leque de oportunidades das suas brincadeiras.
A vida de um grupo humano dentro da perspectiva interacionista representa
um vasto processo de formação, sustentação e transformação de objetos, na medida
em que seus sentidos se modificam, modificando o mundo das pessoas. Assim, o
indivíduo representa um organismo que não somente responde aos outros como a si
mesmo, ou seja, o ser humano pode ser um objeto de suas próprias ações;
clareando ainda mais, podemos afirmar que nos vemos a nós mesmos através da
forma como os outros nos vêem ou nos definem.
Meninos e meninas diferem não apenas na escolha das brincadeiras e dos
brinquedos, mas, igualmente no “estilo lúdico”. Também no jogo está presente a
diferença entre os sexos que, com o tempo, vão se acentuando. De um lado, a
agressividade e o esforço muscular dos garotos, de outro, a calma, as habilidades
sofisticadas das meninas, com verdadeiros rituais de fragilidade. Contra isso
devemos lutar.
Como analisa Moreno (1999, p. 77), “[...] conseguir uma educação não-
sexista é um problema que ultrapassa os limites da escola, já que concerne também
à família e à sociedade inteira, mas, por meio da escola, pode-se realizar um
importante trabalho de transformação”. Desta forma, os rótulos criados como
“brincadeira de menina” e “brincadeira de menino”, impedem que as meninas
mostrem sua força e destreza física, e os meninos, sua sensibilidade voltada para
emocionar-se e chorar perante determinadas situações que não sejam apenas
diante da possibilidade de um ameaçador castigo físico da parte dos pais.
Nesse cenário, segundo Brougère (2004, p. 296-297), as brincadeiras
desempenham um papel importante, uma vez que:
[...] vemos em ação, ao mesmo tempo, a organização do desejo da criança,
a influência dos pais, a pressão cultural tanto quanto a econômica. Aí a
dicotomia masculino-feminino está mais ou menos institucionalizada.
Também voltaremos a encontrá-la, é verdade, nas brincadeiras
“espontâneas” sem brinquedos, como as que podem ser observadas no
pátio de recreio de uma escola de Ensino Fundamental.
57
Disso deriva a conveniência de se estabelecer uma linha de continuidade em
que os comportamentos, pensamentos e emoções sejam desenvolvidos por alunas e
alunos em sua vida escolar e extra-escolar de modo diferenciado, independente dos
seus interesses.
Muitas atividades são compreendidas pelas crianças como específicas de
cada gênero. Segundo Moyles (2005, p. 74), “[...] um aspecto negativo do brincar
infantil talvez seja que a cultura, dentro da qual a criança opera, conserva os
estereótipos da comunidade mais ampla”. Na recreação ou atividades esportivas de
meninos e meninas, encontramos a ratificação da situação social e da divisão dos
papéis masculinos e femininos, aceitos pelas professoras com conformismo,
ignorando a transformação do mundo que a circunda. O papel do educador diante
das brincadeiras infantis, para ambos os sexos, deveria ser o de permitir e tornar as
crianças indivíduos pensantes e criativos, sem repressão do ponto de vista sexual e
emocional, inserindo meninas e meninos nas mesmas atividades, nos mesmos jogos
e nas mesmas brincadeiras:
Co-educar não é pôr em uma mesma classe indivíduos de ambos os sexos,
nem tampouco é unificar, eliminando as diferenças mediante a
apresentação de um único modelo. Não é uniformizar as mentes de
meninas e meninos; ao contrário, é ensinar a respeitar o diferente e a
desfrutar da riqueza que a variedade oferece. (MORENO, 1999, p. 77).
A diferença entre os comportamentos de meninos e meninas na escola é
notória, mas nem sempre se percebe isso como um problema de educação; não se
considera que esta situação possa ser modificada, afrouxando-se as pressões e
eliminando-se as discriminações mais evidentes, sem danos para ambos os sexos e
contribuindo para formar o seu eu-social sem padrões ou modelos de
comportamentos com os quais devem se identificar. Para Louro (1995, p. 177), “[...]
somos ensinado/os e ensinamos a gostar de coisas diferentes, a ‘saber fazer’ coisas
diferentes, a ser competentes ou hábeis [...] essas preferências, habilidades e
saberes conformam nossos corpos e os envolvem, expressando-se através deles”.
Apesar das especificidades que o mundo adulto impõe sobre as brincadeiras
de meninas e meninos, há uma natureza humana que os aproxima e que,
certamente, os ajudam a construírem uma identidade de gênero possível dentre
tantas outras.
58
Talvez um dos maiores desafios da escola e da família seja o de olhar as
brincadeiras como culturalmente construídas e que apresentam caráter mutante e
transitório. Sobre este aspecto, é pertinente a idéia de Louro (1997, p.28) para quem
“[...], os sujeitos vão se construindo como masculinos e femininos, arranjando e
desarranjando seus lugares sociais, suas disposições, suas formas de ser e de estar
no mundo”.
Podemos perceber, dessa forma, a importância das brincadeiras na
construção das identidades de gênero quando crianças podem se desenvolver,
progredir, crescer e se descobrir no grupo cooperando, contestando,
desempenhando tarefas e estabelecendo vínculos sociais, formando suas
personalidades, aprendendo a viver em sociedade e se preparando para a vida
adulta como mulheres e homens sem restrições e desigualdades.
Seria produtivo e interessante se meninos e meninas se prestassem,
mutuamente, a serviços e brincadeiras como, por exemplo, de casinha, comidinha,
médico, futebol, entre outras. Mas é evidente o desinteresse aprendido dos garotos
por tudo aquilo que acontece com as meninas, mesmo sabendo que é igualmente
típico o comportamento deles quando pretendem obter alguma coisa uns dos outros.
Não podemos dizer que freqüentes alardes estão presentes nos momentos de
recreação, intervindo na construção de um modelo não sexista. Mas isto fica claro
nos padrões determinados e, muitas vezes escolhidos pelas meninas ou meninos
para brincarem.
Os temas mais referidos pelas meninas quando se relacionam às profissões
são: ser secretária, cabeleireira, professora e outras associadas aos cuidados com o
outro. Os meninos escolhem temas aventureiros, que costumam se transformar em
brincadeiras turbulentas e marcadas pela violência, simulada ou real.
Esse modelo de pensamento está obsoleto, mas, vem sendo seguido,
funcionando sem ter sofrido muitas alterações, no qual o sexo determinava, de
maneira equivocada, o lugar de mulheres e homens no ambiente social. Para
podermos construir a realidade atual, rompendo com esse modelo, precisamos
mostrar as crianças novos caminhos que lhes permitam partir de sua própria
intimidade e chegar à apropriação dos saberes coletivos, apesar das diferenças
apresentadas na história pessoal de cada um, quer sejam meninas, quer sejam
meninos.
59
Segundo Moyles (2006, p. 75), “[...] a limitação do brincar como um meio
cultural pelo qual a criança pode criar e recriar o seu mundo talvez seja a de que
esse brincar provavelmente não contestará os valores que as crianças trazem para a
cultura”. Por isto, quando percebemos os meninos mais agressivos em suas
brincadeiras e as meninas mais serenas, precisamos, antes de rotular estes
comportamentos, analisar os hábitos e valores que as crianças recebem na família,
pois muitas já incorporam os comportamentos considerados masculino ou feminino.
Precisamos educar no sentido de oferecer uma visão de mundo mais ampla e
universal, sem excluir o direito de ninguém a partir do sexo que tem, ensinando
conhecimentos úteis para a vida social, sem modelos pré-estabelecidos e com
valores humanos comuns a todas as pessoas, para buscarmos a equidade entre os
gêneros.
Dessa forma, “[...] a preocupação com os meninos parece ser ainda maior
quando eles brincam de boneca ou mesmo quando brincam em demasia com
meninas. Estar com o sexo feminino parece mudar a imagem masculina
hegemônica”. (MEYER; SOARES, 2004, p. 34). Em vez de proporcionar atividades
que estimulem uma maior integração e cooperação entre meninos e meninas,
acabamos por realizá-las de forma dicotomizada. E a escola, neste contexto, tem
sido uma das instituições que mais se encarregam de reforçar papéis sociais
culturalmente construídos, como se estes fossem conseqüências das diferenças
anatômicas entre indivíduos dos sexos feminino e masculino.
Tal situação “[...] nos permite pensar a respeito do que é feito para ‘garantir’
que as crianças ‘obtenham o gênero correto’” (LOURO, 1997, p. 82). Quando
observamos crianças brincarem livremente, vemos que elas, na formação dos
grupos, obedecem a regras, disciplinas e aos rituais das brincadeiras, independente
de ser menina ou menino, criando possibilidade de experienciar sentimentos fortes,
harmônicos ou contraditórios, colocando-se em múltiplos papéis, interagindo com o
outro, o que colabora significativamente na construção das suas identidades.
Conforme Chateau (1987, p. 48), “[...] se duas crianças brincam lado a lado,
uma rivalidade nascerá rapidamente: quem salta mais longe, quem faz mais ondas
na água, quem corre mais depressa?” Esta análise nos permite depreender que não
podemos formar crianças estabelecendo diferenças segundo o gênero; pois,
brincando, a criança não apenas fantasia, mas trabalha suas contradições,
ambigüidades e valores sociais em busca de sua afirmação como pessoa.
60
Assim, reafirmamos o potencial das brincadeiras como um caminho para a
transformação dos comportamentos sociais entre meninas e meninos, diminuindo as
lacunas entre eles e introduzindo novos valores, que, com o tempo, poderão afetar a
família e a escola, criando possibilidades de transformação, primeiramente, das
ações e compreensões, para promover grandes revoluções de atitudes em nossas
vidas.
Para nós, o Colégio Santíssimo Sacramento será um espaço que
proporcionará estudos e reflexões da realidade na intenção de contribuir para o salto
de qualidade na construção do conhecimento e na relação direta da ação do brincar
com a formação da identidade de gênero, questão complexa que nos propusemos a
investigar.
61
CAPÍTULO 3
BRINCADEIRAS INFANTIS NO COTIDIANO DO COLÉGIO
SANTÍSSIMO SACRAMENTO
62
Depois de teorizar sobre brincadeiras e identidades, neste capítulo,
analisamos o desenvolvimento das brincadeiras infantis no interior do Colégio
Santíssimo Sacramento, apresentando o perfil da Instituição estudada no Ensino
Fundamental I, seu Projeto Político Pedagógico, o trabalho das educadoras através
das brincadeiras infantis e a opinião delas no que tange ao papel destas atividades
na construção da identidade de gênero.
O brincar infantil ensina as crianças a conviverem com o outro, exigindo que
se respeitem e busquem uma socialização saudável. Brincar na escola favorece a
integração da criança ao seu cotidiano, possibilitando-lhe viver situações inusitadas
e desafiadoras, necessárias para o seu desenvolvimento social, facilitando, por
conseguinte, sua aprendizagem.
A discussão realizada nos capítulos anteriores, nos remete a Moyles (2005, p.
65), para quem “[...] as atividades de brincar são uma necessidade fundamental para
as crianças, e um maior entendimento dessas atividades promoverá um maior
entendimento da complexidade do desenvolvimento social infantil”.
Ocorre que as brincadeiras infantis realizadas no interior do Colégio
Santíssimo Sacramento integram uma variedade de atividades que mudam
rapidamente com grande velocidade de um dia para o outro, em função de um
modismo que ainda cerca o brincar infantil, como analisamos anteriormente. Durante
o recreio escolar, as crianças brincam muito com a bola (basicamente o futebol), de
correr ou de pegar, de “brincadeiras turbulentas” (que culminam, muitas vezes, em
atritos), e de lutas.
Neste cotidiano, as brincadeiras tradicionais desapareceram e outras foram
reinventadas ou substituídas. Além disso, conversar e atrapalhar a brincadeira dos
outros também são formas freqüentes de divertimento para muitas crianças, embora
não se constituam em brincadeiras de fato, conforme vínhamos discutindo.
Pensamos que esse comportamento, durante o brincar, represente muitas vezes um
aspecto regulador, destacando limitações e dificuldades de muitas crianças em se
engajarem nas situações lúdicas.
Outros aspectos reguladores das brincadeiras infantis realizadas no Colégio
Santíssimo Sacramento referem-se ao espaço físico disponível (o local para brincar
não é sempre o mesmo), ao tempo (período disponível para cada atividade) e ao
número de crianças presentes (quantidade de alunos envolvidos). Vale ressaltar que
63
estas variáveis estão atreladas à diferença na quantidade de turmas entre os turnos
matutino e vespertino.
As brincadeiras preferidas pelas crianças no recreio são: futebol, pega-pega e
esconde-esconde. Mesmo assim, existe um número grande de crianças que passam
o recreio lanchando, conversando ou observando as outras brincarem. Este
momento de “liberdade”, muitas vezes, extrapola tanto o tempo determinado para o
recreio quanto a modalidade da atividade. Isto é perceptível através da intervenção
da educadora, em caso de pequenos incidentes ou brincadeiras agressivas, embora
tenhamos notado, pela observação em campo, que durante a maior parte do recreio,
as educadoras ficam reunidas, lanchando, conversando, ou resolvendo algum
problema do cotidiano escolar.
O brincar não se reduz às diferentes etapas e tipos de brincadeiras infantis,
ele contribui de forma importante na cognição, cultura e educação das crianças. A
maneira como elas brincam está diretamente ligada ao seu meio cultural e ao tipo de
educação que recebem em casa e na escola, que, muitas vezes, não satisfazem às
suas reais necessidades. Assim sendo, não lhes oportunizam apresentar
comportamentos de acordo com seus desejos, para que possam se tornar seres
humanos coerentes e felizes. Por isso, uma instituição educativa que acredita e
investe no desenvolvimento das capacidades físicas, verbais e intelectuais das suas
crianças deve incluir o brincar como algo necessário ao pleno atendimento de suas
necessidades.
Reafirmamos que o universo infantil presentifica-se em cada um de nós
porque as experiências da infância deixam marcas em nossos gestos, falas e
costumes para toda a vida. Os brinquedos e as brincadeiras integram um conjunto
da história de vida do ser humano que brinca, desde a mais tenra idade, porque este
traz consigo o impulso da curiosidade e do querer apreender e aprender para
descobrir e compreender o mundo que o cerca. Brincar é, então, uma ação lúdica
em que a criança se apossa do momento em que está envolvida, num tempo e
espaços imaginados, transformados em um instrumento único de aprendizagem.
A brincadeira compreende um processo de prazer e tensão em que as
crianças desempenham vários papéis sociais, quando a menina transforma-se em
mãe, o menino em pai, namorada ou namorado, educadora e outros mundos
imaginados a depender do contexto cultural em que vive – o mundo on-line
64
apresenta-se como uma alternativa contemporânea para as meninas e meninos que
se vestem e encenam os atores, os cantores e os brinquedos da moda.
3.1 O COLÉGIO SANTÍSSIMO SACRAMENTO
Para contextualizar historicamente esta pesquisa no Colégio Santíssimo
Sacramento, começamos por Granada, na Espanha, em 25 de março de 1896,
quando surgiu a Congregação das Missionárias do Santíssimo Sacramento e Maria
Imaculada, fundada por Maria Emilia Riquelme e Zayas, missionária que construiu
sua vida em um itinerário de fé e de amor à Eucaristia, tendo como metas principais
a educação da infância e da juventude, as missões e a adoração perpétua ao
Santíssimo Sacramento: “[...] no coração de Maria Emilia ardia e crepitava a
lâmpada do saber. Educar é o melhor meio para evangelizar. O imperativo do
Mestre: ide e ensinai, ecoava forte em seu coração” (PIMENTA, [s.d], p. 48)
3
. Com
esta filosofia, a Congregação foi fundando colégios que, além da formação
intelectual, orientavam as educandas no conhecimento e amor a Jesus na
Eucaristia.
A caminhada da Congregação prosseguiu deixando marcas por onde passou,
até que, em 1º de janeiro de 1935, funda, em Caetité/Ba, o primeiro Colégio
Santíssimo Sacramento em terras brasileiras. Daí por diante, a caminhada das irmãs
não parou e seus ideais de evangelizar e educar se proliferaram em várias cidades,
como aconteceu em Alagoinhas/Ba
(1940), em Salvador/Ba (1954), em Senador
Câmara/RJ (1956), em Tubarão/SC (1969), em Boquira/Ba (1972) e em Capitão
Campos /PI (1989). Como nos disse Irmã Sacramento, o desejo de Maria Emília
Riquelme “[...] Voou alto, transpôs o céu azul da Serra Nevada. Como cisne branco,
em noite de lua, atravessou verdes mares de Norte a Sul e atingiu o Cruzeiro do Sul
em terras brasileiras.” (PIMENTA, [s.d], p. 53).
Em Alagoinhas, o Colégio
4
vem educando jovens do município e regiões
3
Esta citação é da autoria de Irmã Sacramento, Missionária do Santíssimo Sacramento e Maria
Imaculada.
4
O Colégio Santíssimo Sacramento foi fundado em Alagoinhas no dia 12 de maio de 1940.
65
circunvizinhas com seriedade, respeito e dedicação, formando um ser humano
preparado com dignidade e humildade para viver e servir na sociedade, conforme
vontade da fundadora e missão da Instituição Educacional.
Ao longo de sessenta e seis anos o Colégio Santíssimo Sacramento cresceu
e se desenvolveu muito, tornando-se referência para todos na cidade e região.
Nesse processo, promove uma educação que engloba os aspectos físicos, sociais,
intelectuais e morais tendo, na formação religiosa, a base para seu ensino, pesquisa
e extensão.
5
3.1.1 O perfil do Colégio Santíssimo Sacramento no Ensino Fundamental I
O Colégio Santíssimo Sacramento de Alagoinhas teve como primeiro
endereço a Praça Rui Barbosa, nº 01. Inicialmente atendia cerca de vinte e cinco
alunas e oferecia os cursos de Ensino Fundamental I, naquele tempo conhecido
como Curso Primário, tendo uma clientela eminentemente feminina. Posteriormente,
suas instalações foram transferidas para a Rua Marechal Deodoro, nº 116, Centro.
Desde então, o Colégio Santíssimo Sacramento contou com cursos de Ensino
Fundamental I e II e de Ensino Médio, atendendo, aproximadamente, mil e
quatrocentos estudantes.
A clientela do colégio na época de sua fundação era, na sua maioria, oriunda
das classes média e média baixa. Com o passar dos anos, com o intuito de expandir
o seu processo educativo, foi permitido o acesso de meninos, mas apenas até a 4ª
série primária. Este foi um fenômeno observado em muitas Instituições dirigidas por
Religiosas a partir da nova visão patrocinada pelo Concilio Vaticano II
6
.
A sua infra-estrutura é considerada muito boa, possuindo duas áreas livres,
uma área coberta, sala de informática, biblioteca, brinquedoteca, videoteca, quadra
de esportes, sala de dança, ginásio de esportes, cantinas, enfermaria, igreja,
parque, campinho, almoxarifado, mecanografia, laboratório e três pavimentos, onde
5
A matriz curricular do Colégio desenvolve, além das matérias voltadas aos conteúdos básicos, aulas
de música, teatro, dança, capoeira e futebol desenvolvendo, anualmente, um calendário de eventos
em sintonia com a comunidade acadêmica e visitantes.
6
Concilio Vaticano II, trata-se de um encontro da Igreja Católica, em que Bispos e Cardeais se
reúnem com o Papa para discutir os problemas da Igreja e do mundo.
66
funcionam a coordenação, a supervisão, a diretoria, a secretaria, o setor de pessoal,
a sala dos professores, duas portarias e salas de aula organizadas por faixa etária.
O Colégio Santíssimo Sacramento destina, das suas trinta salas, oito para o
Ensino Fundamental I, funcionando nos dois turnos. Este número já foi muito maior,
em outras épocas, quando a quantidade e qualidade das escolas na região não
correspondiam às necessidades das famílias que acompanhavam o crescimento dos
seus filhos e do município. Assim sendo, buscavam no “Colégio das Freiras”
7
a
formação intelectual e cristã para suas filhas. Acrescente-se a essa demanda o
impacto econômico que o Brasil vem sofrendo nos últimos tempos e que repercute
na diminuição da ocupação de vagas em instituições privadas.
No que se refere ao quadro docente, conta, atualmente, com doze
educadoras lecionando no Fundamental I, todas com formação em Pedagogia,
sendo, na sua maioria, egressas do Colégio e com mais de dez anos de experiência
profissional na casa.
Quanto aos dados discentes, o Ensino Fundamental I possui, atualmente,
cento e setenta e uma alunas e cento e quarenta e sete alunos, números estes que
sofrem alterações de um ano para outro. Boa parte das crianças entram no colégio
aos três anos de idade e só saem formadas no terceiro ano do Ensino Médio. Muitos
jovens permanecem na Instituição Religiosa e continuam os seus estudos superiores
na Faculdade Santíssimo Sacramento, que possui cinco anos de funcionamento,
oferecendo os cursos de Pedagogia, Turismo e Administração com habilitação em
Comércio Exterior, Gestão de Negócios e Análise de Sistemas.
Mantendo a tradição, o Colégio busca, de forma holística, proporcionar às
crianças uma aprendizagem sólida, prazerosa e significativa para suas vidas e sua
formação profissional; numa tentativa de integrar as matérias estudadas às
transformações sociais, políticas e econômicas que o mundo vem passando.
A postura educacional adotada pelo Colégio absorve elementos de teorias
tradicionais e construtivistas, estimulando suas educadoras a pesquisar novas
metodologias, estratégias e alternativas ao ensino tradicional para que a
aprendizagem seja abrangente, envolvente e inserida na realidade das crianças,
tendo como meta principal formar um ser capaz de exercer sua cidadania.
7
Até os dias atuais as famílias tradicionais da cidade se dirigem ao Colégio através dessa
denominação.
67
O colégio não fez opção por um método único de trabalho por acreditar que
as crianças são sujeitos da aprendizagem, podendo dialogar, criticar e estudar de
acordo com sua realidade social sem se sentirem oprimidas por um único método
que, muitas vezes, não as conduz, nem as educadoras, à construção de uma
reflexão do objeto de estudo que lhes permita o enriquecimento de seus
conhecimentos e experiências de forma atualizada e contextualizada.
Os processos de avaliação são quantitativos e qualitativos, buscando avaliar
as crianças durante toda a unidade, estimulando-as a estudarem para aprender e
não apenas para alcançarem as médias no final destas. Foi adotado o sistema de
somatória de pontos, podendo a criança, ao longo da unidade ficar entre quinze e
vinte e cinco pontos; e somando de sessenta a cem pontos para avançar de um ano
para o outro. Caso essa pontuação não venha a ser alcançada, é zerado o
somatório de pontos e o(a) aluno (a) participará de aulas que compõem a quinta
unidade, tendo que alcançar sessenta pontos.
Desta forma, o Colégio segue uma “filosofia” que busca dialogar com teorias
educacionais vigentes, extraindo delas as informações pertinentes e adequadas à
realidade local. Respaldadas em estudos de Paulo Freire, Jean Piaget, Lev
Vygotsky, Henri Wallon, Maria Montessori, Emilia Ferreiro, e tantos outros, as
educadoras do Colégio Santíssimo Sacramento estão sempre estudando e
ressignificando a sua práxis no sentido de promover uma formação que reúna
valores coerentes à atualidade social, econômica e político-cultural.
Durante o ano letivo, o colégio desenvolve uma série de atividades que
conduzem as crianças a participarem da vida social e educacional com respeito,
alegria e dedicação, desenvolvendo-se bio-psico-socialmente, conforme descrição a
seguir:
No primeiro semestre, os conteúdos da 1ª e 2ª unidades são entrelaçados
com vários eventos de cunho cultural, religioso e festivo, como: Carnaval, Páscoa,
Dia das Mães, Mês de Maria, Dia do Livro, Campanha da Fraternidade, São João,
entre outros. O Colégio, de modo criativo e dinâmico, promove uma aprendizagem
contextualizada e participativa, que motiva as crianças e amplia sua visão de mundo.
No segundo semestre, após o recesso, entre outras comemorações,
destacam-se a do Dia dos Pais, Folclore, Primavera, Encontro do Conhecimento,
Semana da Criança e Natal. Estas atividades são planejadas e correspondem a um
calendário organizado para duzentos dias letivos de trabalho, estudo e integração do
68
Colégio com a sociedade local. Esta parceria é mantida para trilhar uma caminhada
de organização e seriedade perante as famílias e a sociedade que confiam na
Instituição.
Realizamos no espaço educacional descrito, entrevistas, observações in loco,
conversas com as irmãs e mantivemos contato diário com as educadoras e crianças,
além de resgatarmos lembranças da nossa infância, da formação profissional e
pedagógica que tivemos dentro deste Colégio. Aliadas às memórias, trazemos a
atualidade porque estudamos, trabalhamos e participamos, diretamente, da história
da Instituição nos últimos anos como docente e coordenadora.
3.1.2 O Projeto Político Pedagógico do Colégio Santíssimo Sacramento
O Colégio Santíssimo Sacramento classifica-se como escola particular
confessional, de acordo com o artigo 20 da Lei 9394/76 (BRASIL, 1997, p. 25), e
mantém o caráter filantrópico de seus serviços para atender a um público cada vez
mais numeroso e diversificado, oferecendo a Educação Infantil, o Ensino
Fundamental e o Ensino Médio, inspirando-se nos princípios de liberdade de
solidariedade cristã e respeito às necessidades básicas de todos os envolvidos no
processo ensino-aprendizagem.
Primando por uma educação sólida e de qualidade, o Colégio construiu o seu
Projeto Político Pedagógico com ênfase nas relações humanas e na construção de
um ambiente positivo, para que as ações planejadas, a curto e longo prazo, sejam
apoiadas pela coletividade. Na elaboração do texto, a motivação, o ânimo e a
satisfação são da responsabilidade de todos. Por isto, o trabalho em conjunto cria as
condições necessárias para o ensino e a aprendizagem acontecerem de modo
eficaz.
Resultado de um planejamento participativo, o Projeto Político Pedagógico do
Colégio Santíssimo Sacramento (2000, p.1-2), no cumprimento de suas finalidades,
apresenta os seguintes objetivos:
I – atender aos objetivos da educação nacional citados na Lei 9394/96,
observando suas prescrições e limitações referentes a cada etapa da
Educação Básica;
69
II – proporcionar o desenvolvimento integral do aluno, em seus aspectos
físicos, psicológicos intelectuais e sociais;
III – favorecer a aquisição de experiências amplas e diversificadas que
permitam ao educando o desenvolvimento integral e harmonioso das suas
características;
IV – proporcionar a aquisição de hábitos e atitudes de vida social;
V – formar o cidadão ético e crítico, comprometido com seus deveres
familiares, cívicos e sociais, integrando-o como ser pensante e atuante na
vida cidadã e nos destinos almejados para uma humanidade justa e
pacífica;
VI – incentivar e orientar o educando – agente e sujeito do autoprocesso – a
adquirir e desenvolver os conhecimentos atualizados que lhe permitam
interagir no mundo que o cerca;
VII – despertar e orientar para a preparação ao trabalho, como fator de bem-
estar e realização individual e coletiva;
VIII – proporcionar a educação geral necessária ao desenvolvimento
integral do aluno e à sua preparação para a continuidade dos estudos;
XI – despertar e incentivar em cada aluno o culto do sentimento e da prática
da democracia, do respeito á natureza, do respeito e amor ao próximo e do
cumprimento cívico e com a nacionalidade;
X – incentivar a vivência dos valores evangélicos;
XI – sem descuidar-se da instrução, privilegiando a formação do ser
humano útil e responsável.
Depreendemos, pois, desses objetivos, que o Colégio Santíssimo Sacramento
elaborou o seu Projeto Político Pedagógico abrangendo os aspectos centrais da
instituição, valorizando o ser humano, integrando esforços e assumindo
responsabilidades em conjunto para melhorar a qualidade pedagógica do processo
educacional, garantindo um currículo relevante e atualizado. Está de acordo com o
que Vasconcellos (2002, p. 169) espera de um Projeto Político Pedagógico:
[...] a sistematização, nunca definitiva, de um processo de planejamento
participativo que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define
claramente o tipo de ação educativa que se pode realizar. É um instrumento
teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um
elemento de organização e integração da atividade prática da instituição
neste processo de transformação.
O corpo do Projeto Político Pedagógico do Colégio refere-se, também, aos
instrumentos físicos, instalações, recursos humanos e atividades desenvolvidas.
Todos estes elementos condizem devidamente com a manutenção da qualidade do
ensino e do desenvolvimento integral dos(as) seus(suas) educandos(as).
70
O item 6 do texto, que aborda o “Aluno como objeto e centro” (2000, p. 4),
apresenta a preocupação da Instituição com a formação dos discentes:
Constituindo o aluno o objetivo final, centro e razão de ser do Colégio, a ele
serão oferecidas as oportunidades, condições e mecanismos, previstos em
lei e disciplinados no Regimento da Escola, para conseguir seu
desenvolvimento, progresso e avanço na vida escolar, com senso de
responsabilidade e dedicação, sem que isto importe ou se traduza apenas
em aprovação pura e simples, sem resposta afirmativa às avaliações
destinadas a aferir o rendimento escolar. A escola se propõe realmente, a
transmitir valores que engrandeçam o espírito do aluno, tornando-o apto a
construir sua própria história de vida.
Nesse ponto, destacamos a importância que é dada às crianças, às suas
relações e conquistas a fim de que se tornem seres humanos sensíveis, sem medo
de errar, inovar e agir corajosamente, sem repressão às suas idéias, gostos e
comportamentos, construindo uma consciência política do que é viver em grupo,
com consciência e liberdade, respeitando o outro, valorizando a amizade, o amor e o
lazer.
O item 7, denominado, “Formação do ser humano” (2000, p. 4) destaca:
Antes e acima da instrução, da ministração, transmissão e acumulação de
conhecimentos o Estabelecimento dará primazia à formação do ser humano
íntegro e global, como indivíduo e componente bem integrado à sociedade,
para o que não se descuidará ainda da disciplina pessoal e coletiva.
Fica evidente no Projeto Político Pedagógico e na dinâmica do seu cotidiano,
que o desenvolvimento das crianças é preocupação central. Entretanto, com um
olhar voltado para indicadores mais abrangentes que asseguram o desenvolvimento
pleno de pessoas, constatamos que o documento não faz referência explícita à
importância das brincadeiras infantis e à questão de gênero, que consideramos
aspectos fundamentais para a formação de mulheres e de homens no contexto
educacional, social e pessoal.
Na eficácia de uma escola cremos que devem se fazer presentes elementos,
tanto do ponto de vista metodológico, quanto do ponto de vista da formação da
personalidade, como os que enfatizamos, para que juntos possam criar espaço para
o respeito às diferenças, permitindo, assim, que o ser humano construa as suas
identidades sem pressões ou influências negativas e padronizadoras.
Ressaltamos, contudo, que durante o percurso como pesquisadora e
coordenadora da Instituição, o Colégio Santíssimo Sacramento iniciou uma revisão
71
geral do seu projeto por sentir a necessidade de aprofundar e se atualizar com as
transformações sociais, políticas e econômicas pelas quais vem passando o mundo,
e particularmente o Brasil, a fim de que seja possível a construção de uma práxis
atualizada e adequada ao atendimento das necessidades das crianças e de suas
educadoras. Essa renovação nos remonta a Vasconcellos (2002, p. 200) para quem:
[...] ter clareza da complexidade e da importância do Planejamento no
âmbito da educação [...] é tarefa urgente e essencial de transformar a
prática, na direção de um ensino mais significativo, crítico e duradouro, com
mediação para a construção da cidadania, na perspectiva da autonomia e
da solidariedade.
Ensino significativo inclui a inserção do brincar com a ação pedagógica,
respeitando as peculiaridades das meninas e dos meninos. Assim é que as
entrevistas realizadas com quatro educadoras do Colégio Santíssimo Sacramento
possibilitaram as seguintes reflexões:
Quando perguntamos às educadoras se o colégio as orientava sobre as
atividades lúdicas, elas responderam que sim. Todas destacaram o quanto o curso
de Pedagogia da Faculdade que integra a instituição e a coordenação do colégio
vem salientando, nos últimos anos, a importância da prática lúdica e de olhar com
mais atenção e sensibilidade para as brincadeiras das crianças. Todas concordam
que o colégio precisa acompanhar as transformações sociais, discutindo assuntos
que tenham relação com a criança e em parceria com a família.
A reformulação do Projeto Político Pedagógico passa, pois, por todos os
envolvidos com a educação das crianças e está proporcionando aos educadores
momentos de estudo e reflexão sobre os anseios, dúvidas, necessidades e a
vontade de construir uma práxis justa, contextualizada, atuante e atual. Para tanto, o
Colégio Santíssimo Sacramento reuniu o seu corpo docente, no início do ano letivo,
considerando os seguintes itens: marco referencial, diagnóstico, programação e
avaliação.
O marco referencial busca um posicionamento político (visão do ideal de
sociedade e de ser humano) e pedagógico (definição sobre a ação educativa e as
características que devem ter a Instituição que planeja) que se operacionalizam em
seus segmentos: marco situacional, marco filosófico e marco operativo.
O marco situacional apresenta a visão do mundo atual, ou seja, considera
uma análise da realidade mais ampla na qual a Instituição está inserida. O marco
72
filosófico define o tipo de sociedade que se quer construir o tipo de ser humano que
se quer formar e a finalidade da escola.
E, no marco operativo são pensadas as dimensões pedagógicas (currículo,
planejamento, avaliação, disciplina, relação com o processo seletivo, ludicidade,
relações de gênero, educação ambiental, educação sexual, diversidade cultural e
demais aspectos que contribuam para a formação da cidadania); a dimensão
comunitária (relacionamento na escola, com a família, com a comunidade,
participação e organização dos alunos, atividades esportivas e culturais, orientação
vocacional); e a dimensão administrativa (estrutura e organização da escola, os
dirigentes, os serviços, as formas de participação, as condições de trabalho, a
obtenção e gerenciamento dos recursos financeiros). (VASCONCELLOS, 2002).
A elaboração do marco referencial conta com a participação de todos os
professores da Instituição, além de pais e funcionários. Ao final dessa etapa, é
realizado o diagnóstico para conhecer e analisar a realidade, buscando localizar as
carências e contando com a presença de todos os envolvidos no processo:
professores, alunos, direção, funcionários, pais e representantes da comunidade.
Com esse trabalho, o Colégio Santíssimo Sacramento intenciona repensar a
sua prática pedagógica, reafirmando os seus princípios cristãos e solidários em
busca de um ensino que colabore na formação de um sujeito crítico, participativo e
ético.
3.2 AS CRIANÇAS DO ENSINO FUNDAMENTAL I DO COLÉGIO SANTÍSSIMO
SACRAMENTO
As crianças do Colégio, na sua maioria, pertencem às classes média e alta,
com acesso aos mais diversos meios de comunicação, praticam algum tipo de
esporte (dentro ou fora do Colégio) e moram com a família. Algumas vão para o
Colégio de transporte escolar, outras vão sozinhas ou são levadas pelos pais, babás
e/ou responsáveis de carro, de ônibus ou andando.
São crianças saudáveis, alegres, falantes, algumas, às vezes agitadas no que
se refere ao comportamento. Problemas que não são resolvidos pela equipe
pedagógica (educadoras, supervisoras, coordenadoras) com as famílias são
73
encaminhados para acompanhamento individualizado com psicólogos e assistentes
sociais, disponibilizados pelo Colégio, que avaliam o caso, orientando o atendimento
mais adequado.
As brincadeiras infantis estão mais presentes no recreio e em atividades
festivas do colégio (foto 1 e 2). Na sala de aula, essa prática começa a aparecer com
joguinhos, coleção de figurinhas ou atividade dirigida pela educadora. (foto 3):
Foto 1 - Crianças dançando na festa de São João do Colégio Santíssimo
Sacramento
Fonte: pesquisa de campo, 2005.
Foto 2 - Crianças fantasiadas na festa de Micareta na quadra de esportes do Colégio
Santíssimo Sacramento
Fonte: pesquisa de campo, 2005.
Foto 3 - Crianças brincando com blocos na sala de aula do Colégio Santíssimo
Sacramento
Fonte: pesquisa de campo, 2005.
74
Apreendemos dos estudos realizados e apresentados neste trabalho, que as
brincadeiras infantis ainda se diferenciam conforme o sexo, o meio social e a cultura,
criando padrões, muitas vezes, para o brincar infantil, impedindo à criança de viver o
brincar com desejo, entusiasmo e criatividade.
Ao observarmos as brincadeiras das crianças, enxergamos com freqüência
um brincar limitado, fragmentado e pouco criativo. As crianças, atualmente, correm
muito e não costumam brincar de roda, elástico, telefone sem fio, chicotinho
queimado, barra manteiga e tantas outras brincadeiras coletivas e estruturadas que
levam à aquisição de habilidades sensoriais necessárias ao seu desenvolvimento.
Quando introduzidas no recreio, pelas coordenadoras, brincadeiras de dança,
de gude ou jogo de botão, as inscrições aconteceram em todas as categorias,
independente da série, porém nenhuma menina quis participar das brincadeiras de
gude ou jogo de botão e nenhum menino quis participar do concurso de dança.
Neste sentido, não observamos medidas pedagógicas de estímulo a mudanças de
comportamento.
Tais indicadores nos levam a concluir que reconhecer as brincadeiras
vivenciadas pelas crianças permitem estabelecer uma relação entre o mundo real e
o desejo intencional que caracteriza o lúdico, que apresenta como principal atributo
a autopermissão, o descompromisso e a negação da regra, pois somente
observando e brincando com as crianças é que se pode entender melhor o brincar.
Almeida (2003, p. 47) assim se refere à relação entre brincar e aprender na fase
inicial da vida de uma pessoa:
Da mesma forma que correr, pular, trepar, nadar, arremessar são exercícios
que estimulam o desenvolvimento dos músculos amplos, atitudes como
pegar, rasgar, rabiscar, desenhar, pintar, bordar, costurar, amassar, modelar
desenvolvem e estimulam os movimentos finos, necessários e obrigatórios
para o processo de incorporação ao processo de alfabetização que i
ocorrer.
Assim sendo, o simples ato de rasgar um papel vai desenvolvendo, na
criança, o limite do que de fato pode fazer, contribuindo para o aprendizado de
novas situações. A liberdade para brincar proporciona um momento prazeroso de
exercício do poder ao tempo em que a criança seleciona a brincadeira e seus
companheiros. É um momento único e necessário para o desenvolvimento da
criança, pois a relação com os colegas nem sempre se dá amigavelmente.
Considerando que o egocentrismo e a individualidade são situações presentes na
75
infância, o brincar torna possível o aprendizado compartilhado e dividido, entre as
pessoas.
3.2.1 Brincadeiras infantis vivenciadas por meninas e meninos
O brincar das crianças é um aspecto marcante e contribui para a formação
social e intelectual, levando-as a construírem e desconstruírem valores, sonhos,
normas e padrões de comportamento, que, muitas vezes, limitam e segregam o seu
universo lúdico, com base simplesmente no sexo e no que a sociedade atribui como
perfil masculino e perfil feminino. Neste sentido, concordamos com o pensamento de
Saffioti (1987, p. 208):
A identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída
através da atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver
cumpridos pelas diferentes categorias de sexo. A sociedade delimita, com
bastante precisão, os campos em que pode operar a mulher, da mesma
forma como escolhe os terrenos em que pode atuar o homem.
Sendo as brincadeiras infantis um movimento dinâmico e significativo na vida
das crianças, a sociedade, em geral, deveria assumir uma postura de atenção e
respeito às crianças. Ampliando a liberdade no espaço lúdico e valorizando o brincar
como uma atividade integrada, múltipla e prazerosa, a desenvoltura será facilitada e
bem-estar assegurado, tornando-se mais fácil equilibrar os contatos, das crianças
entre si. (ver fotos 4, 5,6)
Foto 4 - Crianças brincando de trenzinho no pátio do Colégio Santíssimo
Sacramento
Fonte: pesquisa de campo, 2005.
76
Foto 5 - Crianças brincando de “rolar” no pátio do Colégio Santíssimo
Sacramento
Fonte: pesquisa de campo, 2005.
Foto 6 - Crianças brincando de dança no pátio do Colégio Santíssimo
Sacramento
Fonte: pesquisa de campo, 2005.
As aptidões e preferências das crianças no que tange as brincadeiras não
devem ser determinadas, e sim socializadas por todos. Os gêneros se afastam ou se
agrupam a depender do tipo de brincadeira e do “perigo” que ela pode causar,
impedindo, assim, que os grupos brinquem de forma coletiva e cooperativa.
Para Moreno (1999, p. 43), “[...] meninas e meninos tendem de maneira
irresistível a seguir os modelos propostos principalmente quando lhes são oferecidos
como inquestionáveis e tão evidentes que nem sequer necessitam ser
reformulados”.
As percepções das educadoras do Colégio Santíssimo Sacramento perante
as brincadeiras podem até ser involuntárias, mas não deixam de incentivar uma
certa sensibilidade nas meninas e uma certa ousadia para os meninos o que nos
remete à análise de Whitacker (1988, p. 64), para quem:
77
[...] para alterar o conceito de feminino na sociedade, não serão
bastantes leis que estabeleçam direitos e igualdades. É imprescindível
que, paralelamente, a criança venha sendo educada, já, desde o lar,
nesse princípio.
Para conhecermos mais de perto essa realidade, perguntamos às educadoras
quais as brincadeiras mais vivenciadas pelas crianças na sala de aula e no recreio, e
assim elas relataram:
Na sala de aula eles utilizam brincadeiras com joguinhos, mas como eles
têm 7a 8 anos já estão naquela fase da paquerinha, e começam a troca de
bilhetinhos, de ficar perto do amiguinho que lhe causa interesse. No recreio
eles gostam de correr, pega-pega, brincar de futebol (em especial os
meninos) e ir para o parque. (ED)
8
Na sala de aula eles brincam muito de colocar apelidos nos coleguinhas, e
se separam: menino só quer ficar perto de menino e menina próxima de
menina. Neste momento sempre interfiro mostrando a eles que não deve
existir separação entre ambos. Procuro realizar minhas aulas com
brincadeiras que favoreçam a aprendizagem e a interação, para que não
ajam brigas. (EC)
No recreio os meninos gostam principalmente de jogar bola e as meninas
gostam de bater papo, trocar figurinhas e brincar de boneca. Às vezes
brincam juntos de picula. (EC)
Na sala brincam de salada de frutas, que trabalha muito o alfabeto e a
ortografia, e com jogos educativos. Na hora do recreio os meninos brincam
de futebol e as meninas são mais acomodadas, e geralmente brincam de
amarelinha que tem na área do colégio. (EB)
Na sala de aula costumam muito brincar de coleções, trocar figurinhas,
confecção de estórias em quadrinhos e com essas miniaturas que vêem em
salgadinhos e na revista Recreio, e também de lutas, esses contatos físicos
que assistem nos desenhos (empurrando e colocando apelidos). No recreio
brincam de pega-pega, baleado, picula, ladrão e de futebol. (EA) (ver foto 7)
12
Foto 7 - Crianças brincando de futebol na quadra do Colégio Santíssimo Sacramento
Fonte: pesquisa de campo, 2005.
8
Como optamos por não identificar as educadoras depoentes, as iniciais significam “EA – Educadora
A”, “EB – Educadora B”, “EC – Educadora C”, “ED – Educadora D”, respectivamente.
78
Nesses relatos, as brincadeiras mais citadas foram: bola, futebol, amarelinha,
boneca, picula, baleado e lutas. Analisando essas brincadeiras, percebemos a
“brincadeira de futebol” (ver fig. 1) como um jogo de bola muito difundido entre
crianças e adultos, sem distinção de idade. A existência de qualquer espaço e uma
bola é motivo para uma pelada, versão informal do popular jogo de futebol. “Quem
fizer o primeiro gol ganha!". A pelada torna-se mais animada com os dois times
querendo ter a honra de marcar o último gol da vitória e, conseqüentemente, sair
vencedor. Segundo as educadoras, essa é uma brincadeira preferencialmente
escolhida pelos meninos e questionada a participação das meninas, por ser vista
como uma brincadeira “pesada” e masculinizante.
Avaliamos que as meninas não brincam porque aprenderam que não é
divertido ficar correndo atrás de uma bola, mas observamos, por outro lado, que
quando elas, se propõem a participar, o fazem com satisfação. Contrapõem-se a
aculturação e as verdadeiras afinidades, o que é aprendido passa a ser sentido, e
neste contexto as professoras têm uma grande parcela de responsabilidade, se
reproduzem o comportamento cultural de forma natural e acrítica.
Figura 1- Brincadeira de futebol
Fonte: Marcelo Climaco.
As crianças vão precocemente assumindo posturas e agindo no decorrer de
sua vida como se seus comportamentos, preferências e atitudes, fossem próprias e
inerentes ao seu sexo. A menina e o menino crescem pensando que tudo deve
permanecer como a história tratou de afirmar situando a mulher em último lugar,
quer seja nos livros, nas imagens, e nos relacionamentos. Podemos acrescentar o
ambiente familiar que, na maioria das vezes, faz questão de demarcar os papéis de
gênero desde a infância.
79
Nesse sentido, analisamos, nesta categoria, como são conduzidos meninos e
meninas para certas brincadeiras, bem como as situações de conflitos geradas por
determinadas conduções e opções tomadas por cada criança durante os processos
de conhecimento e desenvolvimento, auxiliados, e muitas vezes incentivados, por
suas educadoras.
Na “brincadeira de amarelinha” (ver fig. 2), muita antiga e espalhada por todo
o Brasil, as crianças brincam colocando a pedra ou outro objeto qualquer na primeira
casa (um quadrado riscado no chão com um giz) e vão saltando num só pé através
de todo o desenho indo e voltando. Passam a pedrinha para a segunda casa e
assim sucessivamente até a Lua ou Céu e regressam de costas à casa inicial. No
desenvolvimento da brincadeira, perde a vez de brincar quem toca o solo com os
dois pés ou pisa na linha do gráfico.
Esta é uma brincadeira de movimento, atenção e equilíbrio, que pode,
naturalmente, ser praticada por meninas e meninos, apesar de observarmos a
preferência das meninas e o olhar indiferente dos meninos, que julgam tratar-se de
uma brincadeira “boba”. O ser bobo significa não ser uma brincadeira que
proporcione grandes desafios, nem permita auferir forças entre os envolvidos.
Figura 2 - Brincadeira de amarelinha
Fonte: Marcelo Climaco.
Na “brincadeira de boneca”, a criança utiliza uma boneca de louça, de
papelão, de plástico, de borracha, etc., representando a pessoa humana e, usando a
imaginação, recria a realidade dos adultos.
Essa é uma brincadeira considerada pela sociedade como eminentemente
feminina, por instituir na menina, seu papel de mulher ao cuidar da casa e dos filhos
– visão androcêntrica que impede, desde cedo, os meninos de participarem
ativamente das atividades familiares. Tal situação é referendada pela teoria
80
anteriormente apresentada. Saffioti (1987), por exemplo, considera a identidade
social como uma construção esperada pela sociedade, marcada por uma série de
mandatos e aprendizagens como os que são resultantes da situação referida.
A “picula” (ver fig. 3) é uma brincadeira em que a criança escolhe alguém para
ser o pegador e um lugar para ser o pique, ou seja, espaço que não pode ser
invadido. O pegador corre atrás de todos os participantes para tentar pegar alguém.
Quem for pego, será o próximo pegador.
Esta é uma brincadeira muito vivenciada no pátio do Colégio, onde meninas e
meninos se divertem juntos, correm com a mesma intensidade e evidenciam as
mesmas agilidades e manhas para escaparem do pegador, respeitam-se e sentem-
se iguais.
Figura 3 - Picula
Fonte: Marcelo Climaco.
Outra brincadeira freqüente é o “baleado” (ver fig. 4) que pode ser realizada
com vinte ou mais crianças. Os procedimentos ocorrem da seguinte maneira: as
crianças se separam em dois grupos iguais, tanto quanto possível em número e
habilidades, ostentando cada uma um distintivo que as permitam ser diferenciados
rapidamente; cada um dos participantes deve atingir um outro do grupo adversário
com uma bola. Dizemos que a criança atingida foi baleada e tornar-se-á prisioneira
do grupo que a atingiu. O objetivo visado é fazer o maior número possível de
prisioneiros em cada campo. Será vencedor o grupo que, no fim de um tempo
previamente determinado, fizer maior número de prisioneiros, ou então, aquele que
aprisionar todos os jogadores adversários. Requer, ainda, rapidez de movimentos,
cooperação inteligente, e contribui, em geral, para o desenvolvimento de qualidades
81
físicas, morais e sociais de grande alcance educacional, aplicando-se a ambos os
sexos.
Esta é, como a picula, uma das poucas brincadeiras em que crianças de
ambos os sexos, juntas, partilham suas habilidades, a fim de que os grupos possam
competir em pé de igualdade; todos se movimentam e se defendem da bola com
grande agilidade, envolvimento e prazer.
Figura 4 - Baleado
Fonte: Marcelo Climaco.
A “brincadeira de luta” é costume mais recente, resultado do livre acesso que
as crianças têm aos meios de comunicação e decorre, também, do aprendizado
estimulado pela necessidade de saber se defender dos perigos das agressões que
vêm invadindo a sociedade contemporânea.
Essa brincadeira envolve confrontos corporais, às vezes perigosos, imitando
as lutas que eles assistem nos desenhos animados e filmes. Para os meninos, é
uma brincadeira desafiadora, de força, conquista e poder, enquanto para as
meninas, não desperta interesse, pois a consideram agressiva e sem sentido. Essas
diferenças de percepção são construídas antes mesmo das crianças chegarem à
escola, mas esta compreensão não significa que, quando necessário, elas não
batam, conquistem, desafiem, ganhem e se defendam dos meninos. As meninas
acabam por gostar, com as devidas atualizações, daquilo que suas mães gostavam.
Segundo Moyles (2006, p. 74):
82
Essa visão generalizada do padrão do brincar no pátio do recreio fez
poucas referências ao gênero dos participantes ou à sua idade. Isso não
significa que esses fatores são inconseqüentes, pois talvez sejam os
principais elementos que determinam a natureza da atividade lúdica a ser
escolhida.
A cultura do pátio do recreio contém um amplo repertório de atividades
transmitido como parte de uma tradição oral centrada em cada área lúdica.
Ela também contém valores que são parte da comunidade mais ampla.
Muitas das atividades são vistas pelas crianças como específicas de cada
gênero. Um aspecto negativo do brincar infantil talvez seja que a cultura
dentro da qual a criança opera, conserva os estereótipos da comunidade
mais ampla.
A Educadora E introduz outra discussão ao relatar que “Na sala de aula os
alunos brincam muito de colocar apelidos nos coleginhas, e se separam: menino só
quer ficar perto de menino e menina próxima de menina”. Este indicador requer uma
atenção especial da educadora que, conforme o relato, sempre interfere mostrando-
lhes que “[...] não deve existir separação entre ambos”.
Sobre “brincadeira destinada só às meninas” a educadora EC admite que:
[...] precisam ser evitadas e analisadas sem rótulos, comparações e
ansiedades, pois cada criança possui sua expressividade própria, seu ritmo
pessoal, seu gosto, sua espontaneidade, sua capacidade de sentir e de se
expandir pelas brincadeiras, independente do sexo.
As crianças aprendem a gostar mais de uma brincadeira do que de outra,
porque lhes são despertados sentimentos de prazer ou desprazer, segurança ou
insegurança, aprovação ou reprovação que acabam destruindo sua sensibilidade e
ingenuidade. Nesse processo, a criança pode assumir posições rígidas e correr o
risco de não estar aberta para o novo, o inesperado, o diferente e, até, para o
considerado como esquisito.
A preocupação da Educadora E merece destaque, porque, ao contrário das
demais professoras, ela identifica necessária a aproximação entre as crianças
independente do sexo, mesmo sabendo que é próprio da fase de sete a oito anos a
criança experimentar os chamados do “Clube da Luluzinha” ou “Clube do Bolinha”
9
;
que, no desenho é divertido e hilário mas, na vida real, pode trazer seqüelas
irreparáveis, como o ódio e a animosidade entre meninas e meninos fora do
ambiente da sala de aula e da escola.
Historicamente, constrói-se, dessa forma, uma cultura lúdica que se distingue
9
Personagens criados em 1935 pela chargista Marjorie Henderson Buell, amigos, mas que vivem
disputando espaços a serem predominantemente ocupados por meninos ou por meninas.
83
com base no gênero, amplamente difundida pela família e pela escola, incorporada
pelas crianças, levando-as a reproduzirem as possibilidades, ou não, de criatividade,
inventividade e ousadia ao brincarem. Neste sentido, compartilhamos com o
pensamento de Mead (1967, p.115) para quem:
Em qualquer tipo de sociedade o indiduo em crescimento se confronta
com adultos, adolescentes ou crianças, classificados em dois grupos:
homens e mulheres, a partir de seus caracteres sexuais primários mais
evidentes [...] mas que de fato apresentam diversidades e variedades tanto
no físico quanto na conduta.
Apesar do avanço social observado nos últimos anos, segundo as
educadoras, as brincadeiras infantis marcam diferenças históricas entre os
comportamentos das crianças, e vão sendo aceitas como normais e próprias para
cada um dos sexos. Então, quando perguntamos se existem diferenças entre as
brincadeiras das meninas e dos meninos e o que elas consideram sobre essa
divisão, as educadoras responderam:
Eles não brincam juntos. Normalmente por causa da bola que os meninos
gostam muito. (ED)
Existem diferenças. Meninos escolhem futebol e picula; as meninas
procuram brincar de baleado, roda e bambolê, brincadeiras destinadas só
às meninas Eu acho que essa divisão parte dos preconceitos que trazem no
brincar com o coleguinha do sexo oposto, ou preferências mesmo. Eu não
acho interessante!. (EC)
Existem muitas diferenças. Os meninos têm brincadeiras agitadas e as
meninas têm mais brincadeiras acomodadas. Acho essa divisão natural,
porque, como já falei anteriormente, os meninos gostam de correr, jogar
futebol, brincadeiras mais agressivas e as meninas são mais [favoráveis] às
brincadeiras acomodadas. (EB)
Às vezes. Hoje a maioria das meninas se sente à vontade para brincar de
pega-pega, picula ou mesmo futebol. Principalmente nos momentos de
competição, quando vai existir a vitória e a derrota. (EA)
Essas percepções são resultantes de uma ideologia sexista, que contribui
para a manutenção de padrões que nos influenciam desde crianças assimilados da
família e reforçados pela escola, transmissora dos valores determinados e
delimitados para homens e mulheres. Em conseqüência, meninas e meninos sofrem
com a maneira com que as brincadeiras acontecem. Quando presenciamos meninos
em busca da brincadeira marcada socialmente como mais adequada para as
meninas e estas em busca de brincadeiras de menino, o quadro que nos apresenta
é o menino ser estigmatizado de “mulherzinha” e a menina tornar-se conhecida na
84
escola como “sapatão”. E, muitas vezes, as educadoras – por desinformação,
comodismo ou pela própria formação – não conversam com as crianças sobre a
situação.
Se pensarmos que a pertinência grupal é um fator fundamental no
desenvolvimento social, estar excluído ou ser diferente do grupo é fator de
sofrimento intenso, seja pelo seu jeito de ser ou de se comportar, seja pelos efeitos
que causam as diversas formas de segregação.
O prazer do brincar de uma criança pode muito bem ser o prazer da outra,
independentemente do sexo, sem que isso seja analisado como um problema
irreversível, um sinal de alerta do que se espera de uma atitude feminina ou
masculina.
Os comportamentos diferenciados de meninas e meninos, comuns no
cotidiano, expressam estereótipos sobre masculinidade e feminilidade, que são
culturalmente transmitidos pela sociedade, pela família, pelos amigos e pela escola,
reafirmamos. Educadoras que lidam com crianças, especialmente dos sete aos onze
anos, precisam atentar para o fato de que parte dos condicionamentos infantis são
estabelecidos, mantidos e perpetuados dentro do espaço escolar, principalmente
quando caracterizamos as meninas a partir do comportamento meigo, organizado e
obediente, e os meninos através de atitudes rebeldes, agressivas e agitadas.
Ao analisarmos as brincadeiras infantis mais freqüentes e as associamos ao
gênero das crianças, concordamos com Brougére (2004, p. 291):
[...] se a diferença é constituída nesse momento, veremos os traços [...] em
seguida, não somente porque as brincadeiras de movimento continuam,
mas, também, porque eles impregnam as brincadeiras simbólicas e isso
tanto no nível do tema (guerra, competição, aventura) que valoriza o
enfretamento e o movimento, quanto no nível da própria ação.
Os discursos das educadoras explicitam a concepção de que há diferenças
entre o brincar das meninas e o dos meninos, diferenças essas vistas pelas
mesmas, muitas vezes, como algo natural, próprio da trajetória de vida de cada um
dos gêneros. Essa materialização é analisada por Belotti (1983, p. 86), quando
questiona:
O que é que impede às meninas de se medirem entre si e com os garotos
nessas brincadeiras um papel tão importante? Caso o seu desejo de fazê-lo
fosse tão grande, elas haveriam de se consolidar nessas aventuras que as
85
atraem, mas excluídas delas sentem-se muito tristes. Fato é que, cedendo
aos próprios impulsos, percebem que se comportam de maneira anômala.
Relacionando as análises das brincadeiras aos depoimentos, percebemos o
quanto as brincadeiras estão empobrecidas e divididas entre as crianças, com base
no sexo, não possuindo um lugar de destaque no desenvolvimento e socialização
das mesmas (ver foto 8). Com um universo tão grande de brincadeira, muitas vezes,
não observamos a sua prática, no espaço escolar, durante o recreio, nos momentos
livres do aluno, ou organizados pelas educadoras.
Foto 8 - Crianças observando o recreio no pátio do Colégio Santíssimo Sacramento
Fonte: pesquisa de campo, 2005.
Sabemos que a carência de vivências lúdicas está ligada às transformações
que o mundo vem passando e ao lugar ocupado pelas crianças na sociedade,
sempre aprendendo a separar a realidade em metades, proveniente de uma
educação dicotômica que, muitas vezes, leva as crianças a se separarem até nas
suas brincadeiras.
Num contexto mais amplo, a comunidade, sugerida por Moyles (2006), que
também sofre uma significativa influência da mídia, cria padrões para o brincar,
determinando, desde a infância, as atividades lúdicas certas ou erradas para
meninas ou meninos. O brincar, nesse caso, se apresenta como algo solto, sem
significado, tendo valor apenas para as crianças extravasarem ou passarem o
tempo.
Como resultado, sabemos que as crianças percebem, desde cedo, qual é sua
posição diante das brincadeiras para não se sentirem diferentes, como analisa
Belotti (1983, p. 82):
86
A redução forçada da agressividade efetuada com meios capilares na
menina obriga-a a escolher igualmente na brincadeira maneiras de
expressão que sejam aceitas. O próprio grupo das meninas exerce a função
de controle, pois uma menina fortemente agressiva fica marginalizada.
Nesse sentido, consideramos a trajetória do brincar infantil marcada pela falta
de motivação, oportunidades e desafios, no que diz respeito ao envolvimento das
crianças de forma harmoniosa e construtiva. No entanto, enquanto o brincar não for
compreendido como uma característica definidora para o desenvolvimento infantil,
continuaremos sem entender e sem saber como interagir com a dinâmica
transformacional pela qual passam as crianças durante a vida.
O aspecto negativo apontado por Moyles (2006) procede, pois as atividades e
ações das educadoras ainda conservam, fortemente, resquícios adquiridos em suas
famílias e, naturalmente, as transferem para as crianças. Daí a importância da
construção de um Projeto Político Pedagógico que contemple as questões lúdicas e
as discussões sobre gênero. Caso contrário, as educadoras continuarão a separar
em dois momentos: momento de brincar e momento de aprender, como se as duas
situações não pudessem acontecer concomitantemente.
No que se refere aos estudos de gênero, as discussões oriundas de pessoas
despreparadas podem ocasionar leituras que reforcem preconceitos e perpetuem
padrões. A comunidade passa, por exemplo, a desqualificar o homem como se esse,
do mesmo modo que a mulher, não tivesse sido alvo da construção de papéis
marcada por estereótipos e transmitida de geração a geração.
A construção da identidade, e sua compreensão a partir das brincadeiras
interferem também na cultura. A partir do pensamento de Vygotsky (1998),
depreendemos que a relação entre brincar e desenvolvimento infantil fornece
amplas oportunidades para acompanharmos as conquistas, as dificuldades, os
afetos e desafetos, os interesses e as situações imaginárias que as crianças, em
idade escolar, vivem cotidianamente.
Para Vygotsky (1998, p. 135), “[...] a criança desenvolve-se, essencialmente,
através da atividade de brincar. Somente neste sentido a brincadeira pode ser
considerada uma atividade condutora que determina o desenvolvimento da criança”.
As discussões e estudos realizados em diversas áreas de conhecimento
enfatizam que nada impede que a menina seja esperta e cheia de energia para
brincar com os meninos e com eles competir igualmente nas brincadeiras sem ter
87
que experimentar mal-estar e constrangimento ao ser forte e vencedora nas
competições, nos resultados nos estudos, dos concursos e eventos.
Todavia, as observações que fizemos no Colégio Santíssimo Sacramento
evidenciam que as educadoras apresentam receio quando meninas e meninos
brincam juntos para não se machucarem ou servirem de motivo para piadas diante
do grupo, a partir dos estereótipos instituídos pela sociedade com relação aos
comportamentos esperados para meninas e para meninos. Esta situação é
contestada por Fagundes (1998, p.69) quando reflete sobre o lúdico e sua influência
na construção da identidade de gênero ressaltando que
[...] acima de tudo, as brincadeiras devem sempre existir e serem mesmo
incentivadas, pelo seu inquestionável valor de incluir tradição, movimento e
respeito ao outro, num poderoso processo de socialização e de vida.
Nossa concepção é de que o desenvolvimento lúdico na infância não pode
ser construído com base na força, na competição, nas comparações nem nas
vitórias. Pelo contrário, as crianças precisam de cumplicidade, respeito mútuo e uma
auto-estima elevada para se socializarem mais e melhor. O rigor e o preconceito que
cercam o brincar infantil afetam o desenvolvimento social e educacional de meninas
e meninos, pois as normas criadas para marcarem o comportamento e as
brincadeiras das crianças podem ser prejudiciais para suas vidas.
As descobertas lúdicas infantis precisam ser movimentadas, alegres,
divertidas e sem inibição, pois, quanto mais brincam e exploram o mundo ao seu
redor, mais sensíveis, flexíveis, criativas e seguras elas se tornarão. As crianças
precisam crescer em harmonia, vivendo em um ambiente acolhedor, incentivador,
que as orientem e respeitem suas escolhas e seus gostos sem hostilidade,
repressão e violência.
3.3 O TRABALHO DAS EDUCADORAS E A IMPORTÂNCIA DAS BINCADEIRAS
INFANTIS
Os sentimentos de afeto, respeito e confiança que as educadoras do Colégio
Santíssimo Sacramento estabelecem com as crianças do Ensino Fundamental I
ocupam um lugar importante em suas vidas e superam os efeitos da omissão,
88
muitas vezes presente, quanto à promoção sistemática de ações lúdicas. Nesta fase,
o conhecimento se torna maior e as crianças se apropriam com mais intensidade de
hábitos, comportamentos, formas de se comunicarem e de conceberem o mundo.
Sabemos que os relacionamentos interpessoais são de fundamental
importância para o desenvolvimento das pessoas, bem como para a construção de
suas identidades. Moreno (1999, p. 46) nos diz que:
[...] a falta de educação da própria vida afetiva e o desconhecimento das
formas de interpretação e de respostas adequadas perante as atitudes,
condutas e manifestações emotivas das demais pessoas deixa alunos e
alunas a mercê do ambiente que os rodeia e no qual abundam modelos de
resposta agressiva, descontrolada e ineficaz diante dos conflitos
interpessoais, que, com freqüência, se apresentam em todas as formas de
convivência social.
A análise de Moreno (1999) e a nossa experiência como educadora permitem
admitir que a importância dos sentimentos no desenvolvimento infantil fortalece a
educação do caráter, contribui para formar o ser humano capaz de discernir entre o
mal e o bem e para estimular condutas adequadas e vivência na coletividade.
Os movimentos reprimidos e a proibição do brincar implicam no impedimento
do pleno desenvolvimento das crianças e de uma rica socialização que as conduzam
a projetar um futuro menos caótico e menos arbitrário, no momento em que os
adultos ensinam que há formas certas e erradas de fazer as coisas, inclusive de
brincar. Como analisa Belotti (1993, p. 85):
Quanto mais se move a criança, quanto mais tem chance de fazer
experiências sensoriais no ambiente, tanto mais se desenvolvem as suas
células cerebrais e a sua inteligência. Reduzir a sua possibilidade de
movimento significa reduzir sua curiosidade, suas experiências e, por
conseguinte, a sua inteligência. Uma criança que cresce num ambiente
pobre em estímulos e liberdade desenvolve menos a sua mente que uma
outra que vive num ambiente mais rico, mais diversificado e mais tolerante.
O preconceito, a intolerância e a verdade absoluta da parte do adulto podem
provocar mazelas indeléveis na infância e, por conseguinte, no adulto em que ela se
transformará. Se uma criança não desenvolveu a habilidade o suficiente para
representar uma cena e a educadora, ou educador, a excluí-la das demais
brincadeiras, orientando-se pelo parâmetro inicial, é possível que ela se perceba
incompetente para desempenhar outras atividades melhor ensaiadas. Segundo
Emerinque (2003, p.14):
89
[...] temos constatado que, ao lado da resistência ao jogo e à brincadeira,
subsiste em nós uma carência lúdica, um desejo de reencontrar e deixar
sair a criança que existe, insiste, resiste e não desiste de chamar, dentro de
cada um: “Olhe para mim! Quero sua atenção! Estou aqui!”.
O relacionamento das educadoras com as crianças da escola em estudo se
baseia na necessidade de que uma pessoa precisa da outra para se delimitar como
um ser de relações, para poder criar, vivenciar e observar como se desenvolvem as
crianças. Nessa trajetória de formação da criança, tudo o que lhe é desconhecido
representa uma oportunidade para sua expressão e realização. Sobre esta situação,
concordamos com Almeida (2001, p. 107) quando nos diz que:
[...] as relações afetivas são, em alguns grupos, predominantemente o
motivo das suas agressões, fato que não ocorre com a escola, na qual a
razão primeira de sua existência está na responsabilidade com o
conhecimento. Entretanto, mesmo na escola, as relações afetivas se
evidenciam, pois a transmissão do conhecimento implica, necessariamente,
uma interação entre pessoas. Portanto, em relação professor-aluno, uma
relação de pessoa para pessoa, o afeto está presente.
Tanto para Almeida (2001) como para as educadoras entrevistadas, o
ambiente escolar precisa ser acolhedor para que a afetividade evolua, à medida que
as crianças se desenvolvam social e cognitivamente, considerando o brincar não
apenas como uma coisa de criança, mas algo que integra o processo de
aprendizagem e de crescimento, e que lhe proporcione, desde cedo, um olhar
diferenciado – e desconfiado – para as dicotomias que o mundo apresenta.
As observações realizadas na Instituição permitem admitir que, no dia-a-dia
da escola, as educadoras se apresentam criativas, organizadas, responsáveis e
competentes na condução de suas atividades. Algumas, porém, ficam confusas na
hora de investirem mais nas brincadeiras infantis, justificando tal atitude pelo medo
que têm de correrem o risco de perderem tempo e, assim sendo, diminuem a
qualidade do ensino. Outras trabalham conteúdos teóricos através de brincadeiras, e
as utilizam nas comemorações escolares e na Educação Física. Em ambos os
casos, verificamos que o “momento de brincar” acontece em separado do “momento
de aprender”.
Entretanto, nos últimos anos, vislumbramos o surgimento de um novo olhar e
uma nova postura diante do lúdico, também integrando às atividades pedagógicas. E
esta mudança de atitude pode ser ampliada e referendada a partir da construção do
Projeto Político Pedagógico do Colégio, ora em pleno desenvolvimento.
90
Das observações realizadas nas entrevistas com as educadoras
depreendemos que é muito comum a ignorância quanto à articulação entre o brincar
e o aprender nas atividades escolares. A escola, muitas vezes, não tem clareza de
que o brincar cumpre também a função de propiciar o conhecimento de mundo e
lidar paralelamente com outros aspectos do desenvolvimento infantil.
Apesar de não terem uma prática muito voltada para este aspecto, como
sinalizamos anteriormente, as educadoras entrevistadas demonstraram
conhecimento acerca da importância do brincar. Sobre essa importância elas
afirmam:
Brincar é importante, tem um valor familiar e trabalha o social dentro e fora
da escola. Esse meu olhar em relação ao brincar melhorou muito, porque
sempre fui muito tímida quando criança, não brincava com todo mundo no
recreio, era mais de ficar sentadinha observando. (ED)
Acho muito importante, pois através da brincadeira a criança exterioriza sua
maneira de ser. No brincar ela demonstra característica de sua
personalidade. (EC)
Brincar para mim é educar, socializar e ensinar. Apesar disso, quando
desenvolvo brincadeiras sempre levo para o lado da disciplina, onde todos
fiquem sentados e acomodados, porque o colégio é muito grande e não
gosto que eles se machuquem. (EB)
É primordial na vida de qualquer ser humano. Acho importante o ato de
brincar, seja ele no apartamento, numa casa, em um quintal; mas essa
relação da criança com o lado lúdico, da fantasia, da emoção, do prazer
precisa acontecer desde cedo. Eu tiro por experiência própria, fui uma
criança que brinquei muito em quintais; não tinha muito contato com outras
crianças, a não ser com minhas irmãs. (EA)
Com estes relatos, podemos perceber que as educadoras acreditam no valor
das brincadeiras para transformarem a vida das crianças. Nas brincadeiras, estão
embutidos afetos e reflexões importantes sobre o comportamento e a socialização
infantil, a depender do jogo de valores, diferenças, conflitos e idéias passadas pela
família e por elas próprias no cotidiano escolar.
As educadoras têm informação e consciência que precisam criar um
encantamento nas crianças pelos estudos, respeito e solidariedade pelos colegas.
Também percebem a necessidade de um novo olhar sobre o brincar dentro e fora da
escola, para que a educação repressora, recebida pela maioria, não continue
bloqueando as múltiplas capacidades das crianças.
91
Sentimentos de ternura e de alegria precisam emergir para que o crescimento
do grupo (crianças e educadoras) se apresente cada vez mais inteligente, pacífico,
concebendo uma ética que valorize o equilíbrio, a igualdade e o respeito a todos os
seres, criando um ambiente favorável e estimulador para as crianças e não apenas
para os adultos. Para isto, cremos ser preciso despertar a sensibilidade para uma
prática mais lúdica, visando a construção de valores dentro e fora da escola que
priorizem um convívio mútuo e cordial desde a mais tenra idade dentro do universo
propiciado pelas brincadeiras.
Ao perguntarmos às entrevistadas se elas brincam com suas crianças, elas
responderam:
Brinco. Mas uso esse brincar mais em algumas aulas e na Educação Física.
Eu nunca brinco voluntariamente, o tempo é curto e, às vezes, estou muito
cansada. (ED)
Às vezes. Nas aulas de Português e Matemática eu conto muitas histórias
para dinamizar as aulas. Quando participo de alguma brincadeira é sempre
no sentido de manter a ordem ou entrosá-los. (EC)
Bastante. Brinco de amarelinha, barra-manteiga, baleado e até na hora da
explicação de alguns conteúdos. Acredito que brincando eles aprendem
mais e assimilam os conteúdos com mais facilidade. (EB)
Sim. Na sala de aula com charadas, piadas, histórias e dramatizações.
Normalmente não brinco fora do espaço de sala de aula. (EA)
Tais depoimentos mostram que o brincar está presente, ainda que de forma
esporádica, na prática das educadoras. Estas brincam com as crianças quando
estão na sala de aula desenvolvendo uma atividade, na Educação Física, ou mesmo
para controlar e manter a disciplina. Essa situação nos faz retomar Brougére (2004,
p. 199), que enfatiza:
[...] essa é a contradição de um pensamento que ao mesmo tempo
descobre o valor educativo da brincadeira e a transforma para que pareça
tal como deve parecer. [...] os adultos aumentaram o controle sobre a
brincadeira quando não foi mais possível considerá-la anódina.
Esse olhar contraditório para o brincar, reforça o que vem sendo demonstrado
pela literatura – o mundo adulto tenta lentamente descaracterizar o verdadeiro
sentido das brincadeiras para o universo infantil.
Além disso, as educadoras não participam do brincar livre no recreio e fazem
pouca referência à questão de gênero, deixando de abordar um dos elementos
fundamentais da natureza da atividade lúdica, como se o comportamento de superar
92
as brincadeiras de acordo com o sexo de quem está brincando fosse normal entre as
crianças devido às idades em que se encontram e fragilidade de seus corpos para
determinadas brincadeiras.
O brincar resulta na realização pessoal e social e pode conduzir as crianças a
se movimentarem do plano real ao imaginário, desde que atendam aos seus
interesses e necessidades. Para tanto, ao brincar, elas empregam todos os recursos
ao seu redor e agem como se suas ações fossem reais e corretas através de um
conjunto de manifestações impregnadas de desafios e criatividade. E, é nesse
espaço, que a criança constrói seu conhecimento e experiências, percebendo-se
como uma pessoa capaz de realizações, aprendendo também o significado de ter
limites. Na interação com os colegas, no momento das brincadeiras, a criança
percebe que nem sempre tudo pode ser de sua propriedade, não existem apenas
para sua satisfação individual, e sim para a coletividade. Uma educação responsável
vai além da mera transmissão de conteúdos, proporcionando uma aprendizagem
que contribua para a formação integral do ser humano.
Nesse sentido, as brincadeiras infantis merecem destaque no processo
educacional que inclui a consolidação de valores positivos para a construção de uma
vida menos competitiva e preconceituosa.
O que defendemos, neste estudo, é que o brincar deveria estar presente em
todas as situações que elas proporcionam às crianças, contribuindo para sua
formação tanto no plano da socialização quanto no desenvolvimento cognitivo
infantil.
Para enriquecer o trabalho das educadoras elas precisam se sentir motivadas
a utilizarem o brincar como um instrumento cotidiano de trabalho, e acreditarem que
as crianças encontram nas brincadeiras equilíbrio entre o real e o imaginário,
alimentando sua vida interior e descobrindo o mundo.
3.4 O PAPEL DAS BRINCADEIRAS NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES DE
GÊNERO
Entre brincar e aprender existe uma relação estreita de complementaridade,
porque quando um se desenvolve o outro acompanha seus passos e vice-versa.
Estudos como o de Bettelheim (1988) e Moyles (2002) mostram que as brincadeiras
93
exercem uma importância significativa na formação do ser humano e que
precisamos estar atentas para o fato de que tanto as educadoras quanto as crianças
são vulneráveis às circunstâncias, emocionais e sociais que decorrem do brincar.
Entre essas circunstâncias circunscreve-se o processo de construção das
identidades de gênero, a aprendizagem do ser menina e do ser menino, do ser
homem e do ser mulher.
Tendo gênero como categoria de análise, pretendemos nesta seção avaliar o
impacto das brincadeiras na construção das identidades da menina e do menino, o
modo de ser, agir e brincar, com base no gênero, que tende a moldar as crianças
nas suas ações mais livres e espontâneas.
Sobre a percepção da influência das brincadeiras na construção das
identidades de gênero, as educadoras admitiram que:
[...] isso depende muito da formação da criança. A família em que foi
concebida, os valores recebidos e como os pais enxergam seus filhos. Acho
que não vai influenciar, mas com o desenrolar do aprendizado na escola,
com inserção dos valores da sua família ela vai formando sua identidade e
livremente se construir. (ED)
[...] no brincar a criança está transferindo o tipo de criação que recebe, esta
desenvolvendo, interpretando algo que vê até na família, então ao brincar a
criança demonstra traços da sua personalidade, influenciando na sua
formação. (EC)
Acredito que aqui no colégio, por causa da nossa orientação, não interfere,
mas muitas vezes ouvimos dizer que uma menina brincar com um menino
de bola é inadmissível. (EB)
Acho que as brincadeiras são apenas reflexos. Normalmente a criança não
se torna homem ou mulher por conta da forma como brincam, mas a visão
que os adultos têm interfere na escolha da brincadeira. [...] Socialmente está
estabelecido o que é brincadeira de menina e menino e ninguém quer ser o
diferente, a gente quer estar enquadrado onde vivemos. (EA)
Sobre essa questão, lembramos que nascemos macho ou fêmea e
aprendemos, desde cedo, a ser, a se comportar e a brincar como convém a uma
menina ou um menino. Os relatos das educadoras retomaram a concepção do
quanto a construção da masculinidade e feminilidade se dá de forma relacional. Ou
seja, um menino para ser componente do grupo do sexo masculino não deve
apresentar qualquer comportamento que se pareça com o das meninas, pois um
sempre deve negar o outro. Meninos de um lado e meninas do outro é o parâmetro a
ser seguido, quase sempre, porque os meninos poderão machucar as meninas com
as suas brincadeiras, conforme linguagem recorrente nas escolas e lares brasileiros.
94
Esta idéia revela preconceito e aculturação presentes não só nas educadoras mas
também nos pais, como analisa Moreno (1999, p. 31):
As manifestações espontâneas nas brincadeiras dos meninos costumam
ser de caráter agressivo, como no caso de uma disputa de bola, no jogo de
futebol. [...]
Em suas brincadeiras, as meninas têm liberdade para ser cozinheiras,
cabeleireiras, fadas madrinhas, mães que limpam seus filhos, enfermeiras
etc., brincadeiras que denotam o caráter pacífico e elas atribuído.
No mesmo sentido, sobre a questão ludicidade e gênero, Brougère (2004, p.
301) assim se expressa:
[...] A cultura lúdica é sexuada e isso em referência às experiências bem
precoces. Quando a criança aprende a brincar, sem dúvida já investe
diferenças de origem biológica em termos de tonicidade e motricidade e a
diferença de cultura vai constituir-se, mais ou menos reforçada pelas
pessoas que a cercam e pelo ambiente. Quando os pais integram o filho
num universo lúdico, eles se dirigem a uma criança em particular, sendo o
sexo uma das características dessa particularidade.
As razões das diferenças entre as brincadeiras pré-estabelecidas para
meninas e meninos são complexas e podem levar as crianças a se sentirem
amarradas ou presas a um padrão social, não podendo viver de acordo com suas
possibilidades, com mais liberdade, num convívio sem rótulos ou pressões,
respeitando e sendo respeitado.
É nesse contexto, no mínimo confuso, que encontramos algumas explicações
para as brincadeiras diferenciadas entre meninas e meninos. Trata-se de uma
relação conflituosa, marcada por receios, que levam pais e educadoras a
estabelecerem normas para as brincadeiras infantis, impedindo as brincadeiras
coletivas e esquecendo-se de que a opção sexual não está necessariamente
atrelada à escolha das brincadeiras infantis. Para Fagundes (2003, p. 86), com quem
concordamos:
[...] Essas primeiras concepções acerca dos papéis da mulher e do homem
são aprendidas no âmbito familiar e freqüentemente reforçadas na escola,
enquanto se processa a aquisição de outros comportamentos e atitudes.
Resultam na incorporação, pela menina, da concepção do ser mulher,
traduzida por estar em segundo plano – recôndita, obediente, boa aluna,
educada, sentimental, frágil, aplicada e menos pragmática, facilmente
conduzida por regras e normas, por isso, mais afeita às ciências humanas,
às letras e às artes. Nos meninos, são encorajadas as liderança, o domínio,
a soberania, a criatividade, a praticidade e a ousadia, qualidades, dentre
outras, requeridas para profissões ‘ditas’ masculinas como dirigentes de
empresas, construtores, pesquisadores, etc.
95
A estes aprendizados no âmbito da família e da escola, somam-se as
contribuições da mídia na forma de programas e seriados de TV, comerciais
nas páginas de revistas, jornais e em outras produções culturais como
cinema. Tais produtos reafirmam, de modo intencional ou não, a dicotomia
entre gêneros.
Em uma nova era de desafios, a escola pode e deve lidar concretamente com
essas questões e trabalhar de forma corajosa com as diferenças que unem meninos
e meninas. É bom lembrarmos que as crianças não criam os estereótipos de gênero
do nada, mas, sim, de um padrão que acultura a espécie desde o nascimento. Não
precisamos negar as diferenças entre os sexos e nem exaltá-las, para que
possamos construir uma condição em que o masculino e o feminino se mantenham
singulares e, sobretudo, plurais. Para isso, identidade de gênero precisa ser um
conceito mais entendido pelas educadoras. Neste sentido, compartilhamos com o
pensamento de Beauvoir (1980, p. 21-22), sobre o que ela afirma a respeito do
modo como aprendem meninas e meninos:
[...] Ele faz o aprendizado de sua existência como livre movimento para o
mundo; rivaliza-se em rudeza e em independência com os outros meninos.
Despreza as meninas. Subindo nas árvores, brigando com colegas,
enfrentado-os em jogos violentos, ele apreende seu corpo com um meio de
dominar a natureza e um instrumento de luta; orgulha-se de seus músculos
como de seu sexo; através de jogos, esportes, lutas, desafios, provas,
encontra um emprego equilibrado para suas forças; ao mesmo tempo
conhece as lições severas da violência; aprende a receber pancada, a
desdenhar a dor, a recusar as lágrimas da primeira infância. Empreende,
inventa, ousa. Sem dúvida, experimenta-se também como “para outrem”,
põe em questão sua virilidade, do que decorrem, em relação aos adultos e a
outros colegas, muitos problemas. [...] Ao contrário, na mulher há, no início,
um conflito entre sua existência autônoma e seu “ser-outro”; ensinam-lhe
que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve,
portanto, renunciar à sua autonomia. Tratam-na como uma boneca viva e
recusam-lhe a liberdade; fecha-se assim um círculo vicioso, pois quanto
menos exercer sua liberdade para compreender, apreender e descobrir o
mundo que o cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará
afirmar-se como sujeito; se a encorajassem a isso, ela poderia manifestar a
mesma exuberância viva, a mesma curiosidade, o mesmo espírito de
iniciativa, a mesma ousadia que um menino.
Essa forma de educar pode ser desgastante e frustrante, quando não há
possibilidade de escolha para as crianças e impedimos que as brincadeiras e seus
movimentos sejam livres, alegres, prazerosos e com várias possibilidades de
escolha.
Percebemos que estes mal-estares nas relações presentes nas brincadeiras
das crianças proporcionam certa rivalidade entre elas, porém aceitamos como
96
normal, natural e próprio do desenvolvimento, impedindo que a relação entre
homens e mulheres evolua na direção de maior equidade.
Neste sentido, concordamos com Silva (2002, p. 93) quando ele nos diz que
“[...] os arranjos sociais e as formas de conhecimentos existentes são
aparentemente apenas humanos: eles refletem a história e a experiência do ser
humano em geral, sem distinção de gênero”.
Essa aparente neutralidade faz com que as educadoras não percebam o
mundo de discriminações em que vivemos e o reflexo dessa não percepção incide
nas condutas das nossas crianças, que vivem e são, por conseguinte, educadas em
uma sociedade machista e preconceituosa. Apropriando-se do que diz Brougère
(2004, p. 301):
[...] Não basta modificar um fator para mudar profundamente a cultura
lúdica. Por exemplo, possuir um brinquedo do outro sexo não leva a brincar
como o outro sexo. É porque se trata de uma complexa produção cultural
ligada à construção da personalidade da criança no âmbito da socialização,
que a experiência lúdica é ao mesmo tempo arbitrária e suscetível de
diferenças e mudanças. Ela é também um lugar de uma distinção forte
segundo o sexo, ainda mais forte porque não resulta de um único fator que
bastaria ser modificado para transformar o caráter sexuado da experiência
lúdica.
É mais salutar para uma criança ser ouvida, respeitada e valorizada nas suas
escolhas e conquistas, do que ser impedida de evoluir do individual para o social, da
anomia para a autonomia, construindo em contato com o outro, relações necessárias
para o seu crescimento e consolidação das suas identidades de gênero.
A sociedade impulsiona a cultura lúdica quando fornece às pessoas, meios
para se tornarem homens e mulheres bem sucedidos desde a infância e não quando
a afasta, é indiferente, e segrega o brincar infantil com base demarcada no território
da separação do gênero, conforme afirma Moyles (2006, p. 52):
[...] As expectativas e respostas dos adultos importantes merecem uma
pressão sutil, mas poderosa, sobre os meninos e sobre as meninas para
que se comportem de maneira apropriada ao seu sexo. É provável e talvez
inevitável, que as crianças explorem as fronteiras e a identidade de gênero
no brincar de faz-de-conta, tentando chegar a um acordo com quem elas
são como indivíduos.
Neste sentido, a brincadeira de casinha, bola, amarelinha, cabo de guerra, ou
tantas outras que cercam o universo infantil são de grande importância para o
desenvolvimento da criança, pois as conduzem a praticarem e explorarem papéis de
97
gênero no seu brincar, sem precisar separar a realidade em metades do tipo “isto ou
aquilo”; ou somos homens ou somos mulheres; ou somos adultos ou somos
crianças. Para Beauvoir (1980, p.9-10), não podemos esquecer que:
[...] Até os doze anos a menina é tão robusta quanto os irmãos e manifesta
as mesmas capacidades intelectuais; não há terreno em que seja proibido
rivalizar com eles. Se, bem antes da puberdade e, às vezes, mesmo desde
a primeira infância, ela já se apresenta, como sexualmente especificada,
não é porque misteriosos instintos a destinem imediatamente à passividade,
ao coquetismo, à maternidade: é porque a intervenção de outrem na vida da
criança é quase original e desde seus primeiros anos sua vocação lhe é
imperiosamente insuflada.
Percebemos, então, como desconhecemos os caminhos que as crianças
trilham para construírem suas identidades de tal forma que transitem livremente
entre o brincar de roda ou futebol, de casinha ou de carrinho, de professora ou de
bombeiro, entre tantas outras brincadeiras perfeitamente apropriadas para ambos os
sexos.
Os conflitos gerados nas brincadeiras das crianças devido ao sexo, derivam,
na maioria das vezes, de uma educação machista e preconceituosa que se constrói
pouco a pouco, impedindo, desde cedo, a criança de vivenciar sua identidade numa
rica socialização, que pode ter como palco as brincadeiras.
Apesar de todas as conquistas nos últimos anos, precisamos pontuar a
influência dos condicionamentos sociais externos que cercam a escola e impedem
que o trabalho das educadoras avance contra os modelos tradicionais e arcaicos de
comportamentos sexistas.
3.4.1 Entendimento das educadoras sobre os conceitos de gênero e de
identidade
Ao considerarmos a influência das brincadeiras infantis na construção das
identidades de gênero, percebemos a necessidade de uma intervenção do adulto
para que as crianças não percam suas especificidades sob as mais diversas
circunstâncias sociais em que vivem para, assim, reconhecerem suas necessidades
e possibilidades particulares.
98
Em busca do entendimento das educadoras sobre o conceito de identidade e
de gênero constatamos:
Identidade é o eu, a sua formação, a partir das relações sociais que você
estabelece. [...] Gênero seria o sexo masculino e feminino, são duas
pessoas, sendo uma do sexo feminino ou do masculino. (ED)
A resposta da Educadora D confirma a necessidade de que as escolas, de
modo geral, possibilitem às educadoras discussões sobre identidade e gênero, pois
a resposta ainda ressalta a antiga e recorrente concepção voltada para o gênero: ao
sexo masculino pertencem os homens e os animais machos; ao sexo feminino
pertencem as mulheres e os animais fêmeas.
A respeito dessa discussão, Campos (1992, p. 110) ressalta que, “[...] até os
anos 60 do século XX, ao discutirem sobre a categoria de gênero os lingüistas
estabeleciam uma prévia distinção entre gênero e sexo biológico”. A idéia de gênero
insere-se na discussão do construído culturalmente, enquanto que sexo se insere no
campo biológico. Nessa distinção, os lingüistas “[...] não consideravam que a base
natural, da ordem do biológico, não existe no universo humano, fora das chamadas
identidades sexuais, já revestidas culturalmente”. Campos (1992) amplia a
discussão, informando que os papéis sociais dos sexos acontecem “[...] dentro de
um determinado recorte cultural, o que permite dizer que, conceitualmente, feminino
e masculino, ao se assentarem sobre a natureza, transbordam [...].” – a submissão
homem-mulher é uma distinção hierarquizada. No tocante ao conceito lingüístico,
complementa Campos (1992, p. 112):
Ao gênero, lingüisticamente considerado, associa-se o emprego de
desinências diferenciadas pela formação, mais comumente, do feminino; ao
gênero, antropologicamente focalizado, associam-se atributos culturais,
alocados aos sexos, a partir da dimensão biológica do ser humano.
Através da “oposição animado/inanimado” a discussão sobre gênero do ponto
de vista lingüístico, teria dividido os nomes das línguas indo-européias em masculino
e feminino (campo animado) e noutro o componente do campo inanimado. Esta
oposição genérica esvaiu-se porque, nessa discussão complexa, embute-se ora a
distinção sexual (a maioria dos nomes dos animais), ora reporta-se ao fundamento
puramente arbitrário da língua. Segundo Moreno (1999, p. 30):
99
[...] os modelos de comportamento agem como organizadores inconscientes
da ação, e é esta característica de inconsciência que os torna mais
facilmente modificáveis. São transmitidos de geração a geração e século
após século por meio da imitação de condutas e de atitudes que não
chegam a ser explicitadas por todos e compartilhadas por quase todos.
Contudo, devemos escapar das dicotomias e buscar alternativas para
demonstrarmos que a complementariedade entre os gêneros pode ser o melhor
caminho para a construção e reconstrução das nossas identidades, a partir das
nossas relações com os outros, sendo sujeitos de nosso próprio destino.
Sobre identidade e gênero, a opinião da Educadora C também corresponde à
necessidade da implantação de cursos sobre os assuntos focalizados neste
subcapítulo:
Identidades são características próprias de cada indivíduo, [...] essa
identidade vai sendo construída primeiro pela família e depois pela escola.
Como professor vamos desenvolver, aprimorar e respeitar a identidade de
cada um. [...] Gênero é não dividir a formação, se é do sexo masculino ou
feminino, mas tratar as crianças de maneira global. (EC)
Este depoimento reflete um conceito inerente à pessoa (“própria de cada
indivíduo”), mas que vai se construindo através de influências externas, no caso a
família e depois a escola. No que se refere ao gênero, entende que meninas e
meninos devem ser tratados de “modo global.”
Entendemos que essa concepção refere-se ao tratamento diferenciado que,
constantemente, é dado às meninas e aos meninos – o “global” pode ser confundido
com um padrão universal de viver, discussão crítica no mundo atual, onde as
diferenças devem ser contempladas e consideradas como comportamentos e
atitudes das pessoas.
As discussões teóricas sobre identidade e gênero são recentes e complexas,
pois envolvem razões, às vezes, incompreensíveis, à própria mulher, ao próprio
homem, melhor, à própria vida:
Identidade é procurar o seu eu, por exemplo, a minha identidade é aquilo
que sou e não o que desejo ser. Gênero relacionado ao masculino e
feminino é uma coisa pré-estabelecida, que vivendo em sociedade,
sabemos que somos do sexo feminino ou masculino. (EB)
Para a Educadora B, identidade é aquilo que se é e não o que se deseja ser;
é, portanto, algo inacabado. Podemos constatar, também, que a idéia apresentada
pela educadora sobre identidade não é um pensamento fixo, pois reflete,
100
justamente, a dificuldade que existe em conceituá-la. Definir identidade implica em
aventurar-se em um terreno perpassado por tensões e conflitos que se entrelaçam
entre o plano individual e o coletivo, duplamente forjados pelas relações culturais.
Quanto ao conceito de gênero elaborado pela Educadora B, traz os gêneros
masculino e feminino como coisas pré-estabelecidas, mas a vivência em sociedade
é que determina o modo de ser de cada pessoa, numa coerente visão sócio-
antropológica. Ao mesmo tempo, suscitamos a ausência do aspecto biológico,
também merecedor de atenção. Do modo como está colocado, podemos pensar no
vestuário (saia para a menina e calça para o menino), costume que já não se
sustenta com tanto afinco, no mundo atual.
Para Campos (1992, p. 113), sexo [...] “diz respeito à identidade biológica, à
totalidade de uma orientação, de um comportamento e de uma preferência sexual”,
enquanto que [...] “gênero concerne à experiência social e pessoal de um e de outro
sexo [...]”.
Identidade é uma coisa construída, você não nasce com ela. Identidade não
se resume ao nome que recebemos ao nascer, é algo de um movimento
muito interno do indivíduo. [...] Olha, diferenciar gênero de identidade é uma
coisa muito difícil. As duas embora distintas estão muito imbricadas. A
questão do gênero já nos remete as diferenciações que foram construídas
pela humanidade como: homem-mulher, macho-fêmea, masculino-feminino.
(EA)
A concepção da Educadora A sobre identidade acompanha as discussões
atuais, pois não a limita ao nome que é conferido ao indivíduo nascer, nem ao
número da carteira de identidade (plano individual), transpondo-o ao plano do
movimento interno – acrescentamos externo – do indivíduo (plano coletivo). No que
se refere ao gênero, a entrevistada também o concebe como resultante de
diferenciações construídas pela humanidade.
De modo geral, quanto ao conceito de identidade, as educadoras acreditam
na idéia de construção, de individualidade e das relações sociais que permeiam a
vida humana. Mas não podemos esquecer que a identidade do sujeito
contemporâneo, conforme Lima e Souza (2003, p. 116) “[...] pressupõe a ocorrência
de múltiplas identidades, que se complementam ou se tornam contraditórias,
constituindo-se assim, um sujeito que não teria uma identidade fixa, permanente
[...]”. Nessa perspectiva, as identidades estão atreladas umas às outras, através das
normas e valores que o ser humano vai absorvendo na interação com o meio social.
101
É possível afirmar, também, que a construção da identidade “[...] oscila entre
dois movimentos: de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a
estabilizar a identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-la a
desestabilizá-la”. (SILVA, 2000, p. 84).
Podemos depreender dos relatos das educadoras e das observações
realizadas, que ora manifestam o desejo e o compromisso com a liberdade, o
respeito e a dignidade humana, ora a manutenção de uma suposta ordem social que
sempre se ocupou de determinar o lugar e o papel de meninas/mulheres e
meninos/homens. Como afirmam Muraro e Boff (2002, p. 62-63):
[...] A natureza é profundamente igualitária: embora diferentes, homem e
mulher se encontram no mesmo patamar humano e vivem, a partir daí, o
seu cara a cara. A relação que surge é dialogal, circular e auto-implicativa.
Um representa uma “pro-posta” ao outro, que sente a necessidade de dar
uma “re-posta” nasce a responsabilidade de um para com o outro e o
cuidado da relação recíproca.
Ao falarmos em cuidado, nos reportamos para os relatos das educadoras e as
observações realizadas durante o recreio, quando percebemos a preocupação das
educadoras e dos pais com as brincadeiras agitadas e agressivas dos meninos e a
segregação mantida entre eles, por acreditarem que um atrapalha ou perturba o
brincar do outro. E esta reflexão baseia-se na concepção androcêntrica de mundo,
cujo pensamento coerente e possível é o do homem, a partir de um etnocentrismo
também fundamentado no ideário elaborado pelo e para o homem.
Quando buscamos entender o conceito de gênero que emerge das opiniões
das educadoras, nos defrontamos com uma visão ainda limitada diante da amplitude
e complexidade que este contexto apresenta, principalmente quando pensamos na
história da humanidade, que nos levou a pensar e agir de modo parcial, dividindo o
universo em certo e errado, bom e mau, feio e bonito, menina e menino, mulher e
homem.
Encontramos, também, no relato das educadoras, o termo gênero visto como
sinônimo de sexo, afastando-se, quase sempre, das referências às diferenças sócio-
culturais construídas entre homens e mulheres. Percebemos o conjunto de
elementos culturais que formam o ser mulher e homem, como componentes de
valores, crenças, condutas e características inerentes a cada indivíduo. Isto ocorre
tanto na família quanto na escola ou, ainda, no grupo de amigos, em que perpassam
um aparato social que estabelece as relações sociais entre mulheres e homens.
102
Sobre o conceito de gênero, concordamos com o pensamento de Scott (1991, p. 4),
que consegue sintetizar, de forma clara, essa conflituosa discussão:
[...] o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre
os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas como
aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de
subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm a
força muscular superior.
Logo, se educarmos as crianças a partir dos preconceitos existentes em torno
do gênero, estaremos limitando as experiências das meninas e meninos, impedindo-
os de desenvolverem seus sentimentos e relações sociais e interpessoais, além de
não educarmos para o pensamento crítico, para que se envolvam,
democraticamente, na tomada de decisões. O que não podemos permitir é que as
relações não transcorram acompanhando a trajetória dinâmica da humanidade,
estruturando-se em função da dignidade e respeito ao seu semelhante:
[...] a reciprocidade supõe a independência e a capacidade de relação de
cada parceiro. Independência, para que cada qual tenha a sua identidade.
Relação, para que haja a troca a ser feita sempre em duas mãos e em base
igualitária. Diferentes mas equivalentes. (MURARO; BOFF, 2002, p. 63).
Nesse sentido, é importante termos em mente novos princípios para
educarmos as crianças de ambos os sexos, apresentando-lhes, cotidianamente,
através de comportamentos e atitudes adultas uma organização social justa.
A compreensão do conceito de gênero serve, justamente, para contradizer a
idéia de uma única natureza para explicar os comportamentos masculinos e
femininos, fazendo-nos pensar nas expectativas que a sociedade cria para o
comportamento das mulheres e dos homens.
3.4.2 Condicionamentos recebidos das crianças pelos pais, na opinião das
educadoras
É consensual a premissa de que a família desempenha um papel fundamental
no desenvolvimento sócio-afetivo da criança. É a base da formação dos valores e
das relações que as crianças estabelecem com os outros e com o mundo social.
Pressupondo esta importância, não devemos permitir ou aceitar que a vida da
103
criança, desde cedo, seja marcada por pensamentos dicotômicos que lhes ensinam
a expressar o lado bom ou certo, reprimindo o lado ruim ou errado, perdendo
oportunidades de aprenderem e ensinarem sem recalques ou julgamentos morais
dos adultos. A criança precisa exercitar a ambivalência do mundo e, para isto,
necessita da ajuda constante dos adultos que a rodeiam.
Infelizmente as brincadeiras infantis ainda se pautam por uma divisão radical
e dicotômica entre os sexos, iniciada na família e ampliada na escola. As crianças
reproduzem na escola aquilo que ouvem ou vêem em relação às concepções de
gênero perpetuadas na família. Ocorre que, quase sempre, transfere-se para a
escola a função de orientação, esquecendo-se que as duas instituições devem aliar-
se para a busca da formação das crianças a fim de que lidem, respeitosa e
dignamente, com os colegas e adultos, independente do gênero. A escola e a família
devem possibilitar às crianças a oportunidade de crescerem e viverem como
pessoas, independentes dos estigmas e tabus que envolvem a “guerra dos sexos”.
Mas, para que isso aconteça, precisamos, segundo Lima e Souza, (2005, p. 24)
seguir:
[...] um projeto mais amplo de inclusão e ampliação de estudos de gênero
na academia, no sentido de contribuir para tornar possível uma nova ordem
que, partindo do âmbito acadêmico, se dissemine na sociedade,
especialmente no âmbito da educação, para proporcionar, de modo
irreversível, o fim de mitos e preconceitos de gênero que desqualificam as
mulheres, com o aval da Ciência e, portanto, cercados de prestígio e
credibilidade que esta lhes confere.
Nessa perspectiva, podemos começar a vislumbrar uma humanidade mais
generosa entre si, menos radical, arbitrária e excludente, mesmo perante a
competitividade que envolve a contemporaneidade, para que as identidades possam
ser construídas com mais liberdade, autonomia, movimento e riqueza de
experiências. Afinal, o que foi construído historicamente também pode ser
desconstruído e repensado ao longo das relações sociais, conflitos, descobertas e
desafios que nos são apresentados cotidianamente: “[...] essa redescoberta do
passado é parte do processo de construção da identidade que está ocorrendo neste
exato momento e que, ao que parece, é caracterizado por conflito, contestação e
uma possível crise.” (WOODWARD, 2000, p. 12).
Sermos capazes de refletir sobre quem somos e quem gostaríamos de ser,
questionando nossas ações e idéias, constituem-se em movimentos internos, ora de
104
crise, ora de transformação, em busca constante da compreensão do nosso próprio
eu. Neste ponto, concordamos com Passos (1999, p. 108) quando admite que:
[...] A forma como homens e mulheres se vêem e como se identificam, longe
de ser algo fixo permanente é “histórica”. Vai sendo construída e assumida
diferentemente, a depender das circunstâncias, das associações que fazem
com o grupo, das representações coletivas e da ideologia dominante, entre
outros. Sua identificação com um determinado perfil, com os papéis a serem
assumidos, comportamentos que deve ter, sonhos, desejos e expectativas
são construtos sociais e históricos.
Nesse contexto, o papel da escola consiste em ampliar o conhecimento e as
oportunidades das crianças para que elas possam falar, participar, ouvir e agir com
tranqüilidade e prazer, para que cresçam mulheres e homens sem precisar negar
uns aos outros. A escola, como aparelho ideológico, deve rever seu papel na prática,
contribuindo com a ruptura do valor simbólico construído historicamente, ou seja,
meninas e meninos precisam aprender a compartilhar, cooperar, dividir tarefas,
brincarem juntos e construir suas identidades com auto-estima, conscientes,
capazes de compreenderem e criticarem a realidade.
Toda a trajetória educacional e social é marcada por conflitos que o mundo
“organizado” pelos adultos se encarrega de pensar para garantir e não “permitir” que
as crianças saiam dos padrões por eles demarcados. Assim é que, como os pais
e/ou responsáveis se revelam diante das vivências das crianças, de ambos os
sexos, nas atividades consideradas de meninas ou de meninos, as educadoras
admitiram que:
Nunca, na realidade, algum pai veio até a mim fazer algum comentário, mas
a gente sabe que existe. Até se me colocar como mãe há alguns anos atrás
reagia assim: ‘— Que horror! Meu filho brincando disso!’ Mas hoje em dia,
depois do meu 2º filho, mesmo minha mãe chamando a atenção porque ele
brincava de boneca com sua babá eu permiti, porém observava como a
brincadeira era conduzida. Percebi, então, que não havia influência na
formação da personalidade de meu filho, o que não veio influenciar
realmente. Porém alguns pais ainda têm essa mentalidade de não aceitar
determinadas brincadeiras. É difícil”! (ED)
As idéias apresentadas pela Educadora D são importantes, mas, nem sempre
acontecem, o que dificulta a convivência da criança oriunda de uma família
repressora em meio a crianças que convivem em lares onde é permitido às meninas
brincarem com os meninos.
105
A queixa quando se tem é sobre a agressividade dos meninos porque eles
batem, xingam, agridem, daí a preocupação dos pais em não querer que
suas filhas brinquem com os meninos. (EC)
Este aspecto apresentado pela Educadora C refere-se à preocupação com a
integridade física das meninas. Mas precisamos observar que as meninas também
correrem atrás dos meninos para bater em retribuição à agressão descabida. Uma
das causas pode ser a aprendizagem que a menina teve em casa e, também na
escola, que os meninos não podem bater em meninas. O comportamento
separatista, ao invés de orientar, separa criando animosidades.
Para os pais, principalmente o pai, é muito difícil aceitar seu filho brincar de
boneca e sua filha brincar de bola, ele questiona muito. Já as mães têm
uma aceitação maior. Acredito que as futuras gerações aceitarão mais,
porque estão tendo orientação diferente. Quando eu estudava o curso
ginasial era inadmissível uma menina brincar com menino de bola, hoje
temos uma visão diferente, incentivamos e até levamos a criança do sexo
feminino para brincar de bola. (EB)
A Educadora B expressa um pensamento de esperança em torno da temática
em questão, enfatizando a importância do tempo para que as relações entre
meninas e meninos sejam melhores compreendidas por mães, pais e educadoras.
Entendemos que, só através da educação, esse panorama mudará, pois o que
acompanhamos, cotidianamente, ainda se afasta do esperado por nós.
Outro depoimento que reforça nossa concepção é o da Educadora A:
Atualmente, a gente vê uma diferenciação, há alguns anos atrás a coisa era
bem homogênea, os pais tinham aquele direcionamento de que o menino
brinca com o menino; não vamos misturar – a bonequinha é da menina, o
carrinho é do menino. Tanto que quando nasce provavelmente quando você
nasceu também as nossas roupas foram escolhidas com tonalidades
rosinhas e se fôssemos meninos, azulzinhas e, hoje em dia, apesar de todo
avanço e acesso a informações que temos, sabendo-se que estas
informações nem sempre se transformam em conhecimentos, mas elas
estão vinculadas ao meio social e a gente termina ingerindo-as de uma
forma ou de outra. Mesmo assim, ainda existe aquela questão do
preconceito de alguns pais, principalmente aqueles que estão da faixa etária
de 40 a 60 anos em diante. São pais que preservam muito aquelas idéias
de que os meninos não devem
se misturar com as meninas, cada um tem
seu papel, cada um tem a sua brincadeira e o seu brincar. Com as turmas
que tenho trabalhado ultimamente, os pais só nos procuram para questionar
esse tipo de coisa quando há uma atividade muito socializada, onde a
criança vai ficar exposta; por exemplo: uma competição, atividade de feira
de cultura, onde todos os alunos deverão estar padronizados e a cor
escolhida é a rosa; já ouvi comentários de pais ‘Ah! Vai usar camisa rosa
para os meninos!’ – eles não vão gostar! . E, quando chega até a sala de
aula este tipo de comentário todos se manifestam contra. (EA)
106
A Educadora A admite que a resistência no compartilhar do mesmo espaço e
tipos de brincadeiras se fortalece a partir dos pais mais velhos, que preservam,
ainda, os preconceitos e tabus que acompanham gerações. Faz-se necessário,
viabilizar a realização prática do novo Projeto Pedagógico, possibilitando uma
gestão participativa e integrada da direção com os professores e pais.
Refletindo sobre essas falas, diríamos que as crianças têm a vida que seus
pais desejam. Por outro lado, os adultos esquecem que elas possuem vida e
sentimentos próprios, experiências pessoais e únicas e que precisam, em contato
com o meio social em que vivem, prepararem-se para outros contatos futuros.
Na há, com base nesses relatos, outra forma de entrarmos em contato com as
diferenças e similaridades das crianças, se não democratizarmos o lúdico e
entendermos que brincadeiras de meninas e meninos juntos não influenciam nas
opções sexuais. A brincadeira é a oportunidade que a criança tem para expressar
suas emoções, e a sexualidade relaciona-se com sensualidade e desejo, presentes
em todas as interações e convívios entre as pessoas. As crianças, quando chegam à
escola, apresentam comportamentos resultantes das influências dos ensinamentos
recebidos pela família e também do seu meio social mais próximo.
Através da análise dos depoimentos das educadoras, a questão que se
coloca é: como a educadora, em sua atividade pedagógica, pode atuar na formação
da criança sem ignorar as questões de gênero se a família, muitas vezes,
negligencia ou subestima o comportamento das filhas e filhos?
Vimos o quanto a influência familiar reflete no nosso modo de agir quando
adultos e de como essa atitude contribui para a visão que temos do brincar infantil
no ambiente escolar. Neste contexto, Bettelheim (1988, p. 168) afirma que:
Muitas crianças que não têm grandes oportunidades de brincar e com as
quais raramente se brinca sofrem grave interrupção ou retrocesso
intelectual, porque, na brincadeira e por meio dela, a criança exercita seus
processos mentais. Sem esse exercício, seu pensamento pode permanecer
superficial e pouco desenvolvido.
Brincar é viver a infância, atividade indispensável para o estabelecimento de
vínculos sociais amigáveis e respeitosos. Assim, quando a família define como se
deve brincar (menina de casinha, meninos de bola), a representação social de
masculino e feminino marca o brincar infantil, diferenciando “coisas de menina” de
“coisas de menino”, indo, em certos momentos, contra o desejo da criança.
107
Conforme Belotti (1993, p. 62), as intervenções diretas que acontecem com
freqüência funcionam como:
[...] um ataque combinado em todas as frentes: a imitação do adulto, a
identificação com o adulto mais significativo, as intervenções educacionais
diretas. Tudo impele a criança na mesma direção: quer quando imita o
adulto “em geral” ou se identifica com o adulto “especial”, encontra modelos
de adultos perfeitamente adequados aos valores estereotipados de nossa
cultura.
Na escola, como na família, ou em qualquer outra instância social, o ser
humano precisa ser tratado como uma pessoa completa, que pensa e questiona
para encontrar e compreender, significativamente, a realidade. A escola e a família
devem se articular, para proporcionar às crianças situações e experiências
essenciais que contribuam para a construção forte e rica da identidade infantil que
se dá, sobretudo, na relação com o outro:
[...] À medida que o leque possível de condutas aumenta, a personalidade
de cada um se enriquece com novas contribuições, e se aprenderá com
isso que há muitas formas de ser mulher, assim como há muitas formas de
ser homem (MORENO, 1999, p. 75).
Precisamos de práticas educativas que conduzam meninas e meninos a
compreensão de que juntos influenciam no desenvolvimento da história,
desenhando novas possibilidades de convivência, mais divertidas e atraentes. E
essa concepção além de ser solidificada pelas ações das instituições escolares pode
ser disseminada nos sindicatos, organizações, etc.
A partir da análise realizada neste capítulo, concluímos que a criança de hoje,
adulto de amanhã, tanto tem possibilidades de construir sua identidade de gênero
aceitando e reproduzindo o modelo social vigente, como transformando e
construindo novas relações e formas de viver em sociedade, ou se rebelando por
conta própria e rompendo com os padrões e modelos que lhes são apresentados,
muitas vezes, também, impostos pelo meio em que vive. Alertando, contudo, para os
extremos que conduzem à transformação em um homem revoltado ou em uma
feminista sonhadora.
As brincadeiras, como vimos, se apresentam como um caminho para as
crianças ultrapassarem o mundo real e criarem um outro mundo possível, passando
a olhar a realidade com novas possibilidades de viver, reconquistando a
sensibilidade que a imaginação permite através das várias formas de expressão. E
108
esta reconquista é saudável porque pode contemplar, por exemplo, uma realidade
diferente e mais prazerosa da vivida na família e na escola.
109
CONSIDERAÇÕES FINAIS
110
Não quero ter a terrível limitação de quem vive
apenas do que é possível fazer sentido. Eu não:
quero é uma verdade inventada (LISPECTOR).
Entender a construção da identidade de gênero e sua relação com as
brincadeiras infantis não é uma tarefa fácil, pois existem elementos complexos entre
estas duas construções, que influenciam e redirecionam a análise, como por
exemplo, o tempo (quando) e o espaço (onde).
A cultura poderia ser uma premissa fortemente considerada nesta relação
(identidade de gênero-brincadeiras infantis) e o brincar, fundamental para o
desenvolvimento das aptidões físicas e mentais das crianças, devendo ser pensado
como um agente facilitador das relações sociais entre os seres humanos, e a
construção das identidades de gênero como um processo marcado por obstáculos e
que depende das condições histórico-culturais vivenciadas. Nesse conjunto
complexo, apreendemos também o modo de ser mulher ou homem.
Historicamente, essa situação conflituosa é antiga. E romper com os padrões
preconceituosos e machistas sociais é ir de encontro aos interesses, conscientes ou
inconscientes, de uma parcela da sociedade que circula nos mais diversos
ambientes (escolas, mídia, família, entre outros).
As distorções e equívocos ideológicos que cercam o universo infantil
aparecem, desde cedo, incutindo nas crianças valores e padrões de comportamento
que lhes garantam ser mulher-menina ou homem-menino.
Educar pelo exemplo seria uma forma de apresentarmos às crianças o valor
da solidariedade e da divisão democrática de tarefas. Mas o medo de muitos pais,
educadores ou educadoras na formação da identidade de seus filhos(as) ou
alunos(as) é que sejam educados reproduzindo valores e comportamentos que
transgridam as estruturas sociais. Por isto são enfatizados os tipos de roupa,
brinquedos, brincadeiras e comportamentos que melhor se adequam para uma
menina ou menino.
O brincar tem relação direta com a construção das identidades de gênero,
podendo, inclusive, servir como fonte de realização das aspirações humanas,
auxiliando na integração e transformação das pessoas, desde que operados em
sintonia com a consciência e a cooperação. Quando rotulamos as atividades quanto
ao gênero, limitando as experiências lúdicas das crianças, impedindo-as de se
111
descobrirem, dialogarem e fantasiarem, estamos causando um dano irreparável ao
seu desenvolvimento.
Entendemos, com esse estudo, a necessidade de garantir e assegurar às
crianças o direito de brincar de modo livre e saudável para que a agressividade, a
competição e a discriminação possam, desde cedo, ser melhor dimensionadas no
universo infantil. Por outro lado, para isso acontecer, precisamos entender que
homens e mulheres, ao nascerem, têm potencialidades genéticas, inclinações e
tendências. Mas o que decide a vida dos seres humanos não é a anatomia ou o
código genético, e sim, o processo de socialização que lhe é possibilitado.
Não foi nossa intenção sintetizar as reflexões sobre brincadeiras infantis e
construção da identidade de gênero. Quisemos, apenas, ressaltar alguns aspectos
da interseção entre os dois temas, porque as questões sobre gênero têm, de um
modo geral, recebido uma atenção inconsistente nos debates educacionais, e as
brincadeiras, enquanto estudo sistematizado, têm tido pouco destaque nas agendas
escolares.
Respaldando-nos no suporte de teóricos e pesquisadores(as)
conceituados(as), o estudo foi-se configurando e a pesquisa, do tipo estudo de caso,
priorizou um fenômeno contemporâneo dentro do seu contexto real, partindo em
busca de informações que apresentassem, na prática e na teoria, o que, de certa
forma, já percebíamos.
Esse estudo reforçou a idéia que já observávamos: as brincadeiras das
crianças são contaminadas pelos estereótipos de gênero. Meninas e meninos,
independente do sexo, podem experimentar e manifestar sentimentos e
comportamentos similares diante das mesmas situações. Quanto maior o grau de
complexidade de uma situação, maior a necessidade de atenção, comunicação,
ajuda mútua, inclusão e diversão entre as pessoas. Assim, as crianças, através das
brincadeiras, têm, à sua volta, um diversificado painel de comportamentos que
contribuirão para suas atitudes nas fases processuais da vida.
Nesse amplo e diversificado painel, outro aspecto que procuramos analisar a
partir das entrevistas e observações realizadas, é que, para não romperem
discriminações, à menina é mais permitido lavar louça, brincar de boneca e casinha,
enquanto que o menino é mais estimulado a jogar futebol, subir em árvore e brincar
de picula. Insistimos que, todos podem brincar de todos os modos, pois as
diferenças não nos fazem melhores ou piores. Ademais, em atividades conjuntas e
112
sem territórios rigorosamente demarcados, aprendermos a rever nossas
experiências, sentimentos e atitudes, respeitando os outros e alcançando objetivos
que jamais, qualquer um de nós, isolado ou contra os outros, poderia alcançar.
Projetar nas brincadeiras infantis um comportamento excludente e
preconceituoso, levando as meninas a serem conformistas e submissas aos
meninos ousados, aventureiros e fortes é, no mínimo, uma atitude machista, sem
sentido e discriminatória. As atividades lúdicas são significativas para a construção
da identidade de gênero, justamente por apresentarem um perfil de prazer,
liberdade, desafio e participação ativa de todos os envolvidos.
Os conflitos gerados nas brincadeiras das crianças devido ao sexo derivam,
na maioria das vezes, de uma educação machista e preconceituosa, impedindo,
desde cedo, que a criança vivencie suas identidades numa rica socialização, que
pode ter como palco as brincadeiras.
O ser humano é um ser social e racional. Sendo assim, sabe que deve seguir
normas e padrões para viver em comunidade. A educação é um mecanismo de
construção de ideologias. E, as ideologias perpassam os muros das escolas, que
precisam caracterizar e discutir as brincadeiras infantis vivenciadas pelas crianças
no cotidiano escolar, bem como identificar os elementos de construção de gênero
nestas brincadeiras. Neste contexto, o Projeto Político Pedagógico de uma
instituição educacional é de fundamental importância porque tem a oportunidade de
inventariar e analisar a situação da escola como um todo, considerando-se que,
desde sempre, o lidar com as crianças requer cuidados específicos. Os apelos da
mídia e as tecnologias contemporâneas incitam a escola ao acompanhamento dessa
nova maneira de viver. As crianças, atualmente, dedicam-se muito mais às
brincadeiras sugeridas pelos desenhos animados e videogames. Deste modo, a
escola necessita, em vez de negar, acompanhar esse ritmo, que, muitas vezes, tem
a conivência da família por questões de ordem sócio-cultural e econômica. Mas, ao
lado desse ritmo frenético e alucinante das imagens das telas, ainda persistem as
brincadeiras consideradas tradicionais.
Assim sendo, o professor necessita de uma formação qualificada para que
possa compreender esta complexa situação. O Projeto Político Pedagógico é a
oportunidade que se apresenta à escola, como um todo, momentos de estudo e
avaliação, afim de que todos possam reconhecer suas limitações, seus avanços e
suas necessidades.
113
A escola precisa introduzir em suas práticas uma postura mais crítica e
segura, sem hierarquias e privilégios entre os alunos, e, sem perder de vista que é o
espaço propício para que, desde cedo, meninas e meninos brinquem juntos
comungando idéias e opiniões com criatividade e autonomia.
Observamos a importância da ludicidade na vida da escola, não apenas como
um complemento reservado à hora do recreio, mas no decorrer das atividades, onde
meninas e meninos convivem nas trocas de idéias e experiências.
Para isso, se faz necessário um trabalho na escola em que as educadoras,
com seriedade, afetividade e devidamente instrumentalizadas, considerem as
diferenças das crianças, respeitando-as independente de etnia, classe e gênero.
Foi com este objetivo precípuo que realizamos este estudo para contribuir,
não apenas para o Colégio Santíssimo Sacramento, parte principal dessa
elaboração, mas para a educação de modo geral, numa tentativa de consolidar a
importância de uma educação ativa, visando o desenvolvimento pessoal e
fortalecimento da auto-estima, do senso crítico e da integração entre os gêneros.
Isto para que a educação das meninas e meninos possam caminhar no sentido de
construir pessoas livres, confiantes, cooperativas e aptas a viverem em uma
sociedade digna e justa.
Nessa visão de mundo, entendemos que mulheres e homens devem conviver
afastando-se do estigma de sujeição e sujeitados, dicotomia que segue fragilizando
gerações. Na escola, reside a possibilidade de ampliar as discussões em torno
dessa questão. Esta, em parceria com a família, pode gerar alternativas
significativas para pensarmos em novas reflexões e possíveis mudanças sobre tão
importante questão.
Finalmente, procuramos destacar que não é possível transitar da situação em
que nos encontramos para uma mais conseqüente, política, social e
pedagogicamente, de uma hora para outra. Esta transição, ou melhor,
transformação, só pode se efetuar com a participação de todos os envolvidos no
sistema educacional.
114
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Bookman, 2005.
119
APÊNDICE
APÊNDICE – Roteiro de entrevista realizada com as educadoras
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – MESTRADO
ROTEIRO DE ENTREVISTA
1 Identificação:
1.1 Nome__________________________________ 1.2 Idade_______________
1.3 Tempo de Magistério____________
1.4 Série que leciona_______________ 1.5 Nº de alunos_______________
1.6 Formação______________________________________________________
1.7 Locais de trabalho_______________________________________________
1.8 Estado civil___________________ 1.9 Tem filhos?_________________
1.9.1 Sexo dos filhos ( ) meninas ( )meninos
2 Atuação profissional:
2.1 Fale um pouco de sua atuação profissional.
2.2 Como é o seu relacionamento com as alunas e os alunos?
2.3 Você brinca com seus alunos e suas alunas? De que?
2.4 Quando as crianças brincam no recreio você participa? Como?
3 Brincadeiras infantis
120
3.1 Qual a importância do brincar para você?
3.2 Quais as brincadeiras mais vivenciadas pelas crianças na sala de aula e no
recreio?
3.3 Existem diferenças entre as brincadeiras das meninas e dos meninos? Quais?
3.4 Que tipo de orientação você passa para seus alunos quando percebe essas
desigualdades entre meninas e meninos?
3.5 Você recebe alguma orientação específica da escola no que diz respeito às
atividades lúdicas?
4 Identidade de gênero
4.1 O que você entende por identidade? Por gênero?
4.2 Para você existe alguma influência das brincadeiras infantis na construção da
identidade de gênero das crianças? Como seria essa influência?
4.3 Você considera ser papel da escola discutir as questões de desigualdade
entre meninas e meninos?
4.4 Como os pais e/ou responsáveis se revelam com a convivência das crianças
de ambos os sexos nas atividades consideradas de meninas ou de meninos? Dê
exemplos.
4.5 Na sua infância você se relacionava ou brincava com os meninos? O que
sentia? E como a família reagia?
4.6 Qual brincadeira você mais gostava na sua infância? Descreva-a.
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