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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOLOGIA E LÍNGUA PORTUGUESA
A ESTILÍSTICA DA ADAPTAÇÃO E INADAPTAÇÃO
Uma análise deA terceira margem do rio”, de
João Guimarães Rosa
Flávio Alexandre Ponchirolli
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Filologia e Língua
Portuguesa, do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Reginaldo Pinto de Carvalho
São Paulo
2006
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1
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE FILOLOGIA E LÍNGUA PORTUGUESA
A ESTILÍSTICA DA ADAPTAÇÃO E INADAPTAÇÃO
Uma análise de A terceira margem do rio”, de João
Guimarães Rosa
Flávio Alexandre Ponchirolli
São Paulo
2006
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AGRADECIMENTOS
- Ao Prof. Dr. Reginaldo Pinto de Carvalho, pela orientação sempre presente, precisa e
democrática, e com quem muito aprendi, nesta longeva convivência que remonta aos meus
estudos do bacharelado, pautada pelo debate de idéias, respeito e amizade.
- Ao Prof. Dr. José Antonio Pasta Júnior, pelos comentários preciosos, quando do exame
de qualificação, pela recorrente capacidade de apontar novos e criativos percursos de
interpretação e pelo constante despertar da criticidade.
- Ao Prof. Dr. Valter Kehdi, pelas observações valiosas, quando do exame de
qualificação, pelas minuciosas contribuições anotadas na versão anterior do trabalho, e
pelas agradáveis conversas sobre nossos assuntos de múltiplos interesses.
- Agradeço também aos meus professores (de todas as disciplinas) do Colégio “Dante
Alighieri”, onde aprendi o gosto primeiro pelas diferentes linguagens artísticas e pelo
estudo.
3
Dedico este trabalho a
Zuleika,
minha querida mãe,
— no-sempre:
a pessoa
mais importante de minha vida.
4
SUMÁRIO
RESUMO...............................................................................................................................6
ABSTRACT...........................................................................................................................7
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................8
PARTE I – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS............................10
1. A estilística: objetivos e métodos...................................................................................10
2. Situação da obra de João Guimarães Rosa.....................................................................16
3. Primeiras estórias: O título do livro e alguns aspectos sobre ele..................................19
4. “A Estilística da Adaptação e da Inadaptação”: apresentação dos conceitos................23
5. Justificativas para a estrutura da dissertação..................................................................25
PARTE II – ANÁLISE ESTILÍSTICA.............................................................................33
1. Sobre o título do conto....................................................................................................33
2. Primeira Parte do Conto: A “Normalidade flagrada”
Primeiro Parágrafo: O “positivo” contra o “sido”.....................................................35
3. Segunda Parte do Conto: Tons de Perplexidade e Mistério
Segundo parágrafo: Apresentação da canoa............................................................. 41
Terceiro parágrafo: A decisão do pai e a fala de ordem da mãe...............................47
Quarto parágrafo: A “estranheza dessa verdade”......................................................54
Quinto parágrafo: As hipóteses da “razão”...............................................................56
Sexto parágrafo: O furtado consentido......................................................................61
Sétimo parágrafo: Os tipos e suas instituições..........................................................66
Oitavo parágrafo. O despojamento e a perplexidade................................................70
Nono parágrafo: A festa contra o despojamento.......................................................78
5
Décimo parágrafo: O afeto contra os índices da razão..............................................81
Décimo primeiro parágrafo: A transitoriedade e o abandono. A mudança contra a
permanência...............................................................................................................85
4. Terceira Parte do Conto: A Culpa. O Tom Melancólico e Trágico
Décimo segundo parágrafo: A culpa e o desconforto da vida...................................93
Décimo terceiro parágrafo: O pedido hesitante.......................................................100
Décimo quarto parágrafo: O homem frente ao mito...............................................104
Décimo quinto parágrafo: O “falimento” e o último desejo...................................107
CONCLUSÕES.................................................................................................................112
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................123
6
RESUMO
Este trabalho pretende elaborar uma análise estilística da obra “A terceira margem
do rio”, de João Guimarães Rosa. O levantamento, a análise e interpretação dos recursos
formais utilizados no conto operam com os conceitos de adaptação e inadaptação, que
caracterizam o narrador como um personagem ambíguo, um homem de dois mundos. Este
trabalho não faz nenhum recorte quanto aos níveis de língua estudados (nível fonológico,
lexical, morfológico, frasal, enunciativo) e, abordando o conceito de convergência
estilística, procura seguir, linha a linha, os fatos expressivos presentes no conto, flagrando,
assim, a intensidade poética que existe na prosa rosiana.
Na primeira parte da dissertação, expõem-se os pressupostos teóricos e
metodológicos da análise estilística por nós empreendida e alguns aspectos relativos à
situação da obra de Guimarães Rosa dentro da literatura brasileira. Ainda nessa parte,
justifica-se a estrutura do trabalho e se verificam algumas características sobre a obra a que
pertence o conto estudado.
A segunda parte, dedicada à análise estilística propriamente dita, estuda os efeitos
de adaptação e inadaptação, que compreende três momentos da narrativa: 1) a sensação de
normalidade e adaptação às normas e convenções presentes nas margens gicas da
sociedade racional; 2) os tons de perplexidade do narrador diante do mistério e da escolha
de “nosso pai”; 3) o sentimento do trágico e os tons de melancolia do narrador diante de sua
culpa.
Na conclusão, são retomados alguns fatos estilísticos analisados e algumas
contribuições dos ensaios que nortearam a interpretação proposta.
PALAVRAS-CHAVE: análise estilística, interpretação, adaptação e inadaptação,
convergência estilística.
7
ABSTRACT
The objective of this dissertation is to elaborate a stylistic analysis of the narrative
“A terceira margem do Rio”, by João Guimarães Rosa. The research, analysis and
interpretation of the form components used in the story prove the validity of the adaptation
and inadaptation concepts that characterize the narrator as an ambiguous character. This
essay does not exclude any of the levels of the language studied (phonologic, lexical,
morphologic, phrasal and enunciative) and, considering the stylistic confluence concept,
tends to pursue, point by point, the expressive facts of the story, showing the poetic
intensity that exists in Guimarães Rosa’s prose.
In the first part of the dissertation, the theoric and methodological stylistic analyses
that we use in this study and some aspects related to the situation of Rosas’s story inside the
Brazilian literature are exposed. Still in this part, the work structure is justified and some
characteristics about the oeuvre which this story belongs to are verified.
The second part, dedicated to the stylistic analysis itself, studies the effects of
adaptation and inadaptation (unsuitableness) that appear in the three moments of the
narrative: 1) the sense of normality and adaptation to the rules and convention present in
the logical edges of the rational society; 2) the narrator perplexity tones ahead of the
mystery and the chosen of “nosso pai”; 3) the tragic feeling and the melancholic tones of
the narrator, caused by his guilt.
In the conclusion, some analyzed stylistic facts and some contribution of the essays
that guided the proposed interpretation are recapitulated.
KEY WORDS: stylistic analysis, interpretation, adaptation and inadaptation, stylistic
confluence.
8
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é fazer uma análise estilística
1
de “A terceira margem do
rio”, de João Guimarães Rosa. O conto, narrado em primeira pessoa, mostra-nos a estória
de um homem (“nosso pai”) que, sem nenhuma razão aparente e explícita, abandona sua
vida cotidiana para viver numa canoa, no leito do rio. O narrador-personagem é o filho,
cuja posição, em relação à atitude do pai, é bastante ambígua, complexa e esférica
2
. O
1
Será feita uma análise estilística da ngua, mas observando, nos seus vários níveis, a função de fatos
estilísticos dentro da especificidade do texto literário, num caminho que percorra o círculo hermenêutico de
Spitzer (um estudo da expressividade que investiga o microcosmo do texto literário e seu macro-desenho
geral, em movimentos constantes). M. Cressot, Nice S. Martins, M. R. Lapa, J. M. Câmara serão autores que
nortearão o tipo de análise a ser feita. Operar-se-á, constantemente, com o conceito de convergência
estilística, proposto por Marouzeau e ampliado por Riffaterre. Tais aspectos serão abordados na primeira parte
do trabalho.
2
Segundo MOISÉS (1995: 388), citando E. M. Forster, as personagens podem ser planas ou redondas:
“[As personagens planas,] na sua forma mais pura, são construídas ao redor de uma única idéia ou
qualidade: quando lhes descortinamos mais de um fator, iniciamos o percurso de uma curva rumo da
personagem redonda”.
Ao contrário das personagens planas, que não apresentam um constructo psicológico detalhado, que
é, em geral, revelado em poucas palavras e o reserva surpresas, as personagens redondas são definidas por
uma multiplicidade de características, tendências, apresentando psicologia complexa, suscetível a variações,
mudanças, reviravoltas — são
protéicas, multiformes, complexas, repelem todo intuito de simplificação. Podem ser: caracteres,
quando a complexidade se acentua, gerando conflitos insolúveis (...) ou símbolos, quando a complexidade
parece ultrapassar a fronteira que separa o humano do mítico, o natural do transcendental (...)”. (MOISÉS,
1995: 338).
Portanto, as personagens redondas (ou esféricas) são tridimensionais “porque ostentam profundidade,
e dinâmicas, porque evoluem”. (trecho adaptado de MOISÉS, 1995: 388).
Apesar da dificuldade de classificação, sempre difícil nesse tipo de análise, no caso do conto A
terceira margem do rio”, o narrador-personagem é um bom exemplo de personagem esférica caractere. Sua
posição ambígua de “homem de dois mundos” revela grande e intenso conflito psicológico: ao mesmo tempo
envolto pela possibilidade de seguir o destino do pai na canoa (cuja atitude é motivo de sua perplexidade), o
filho não tem coragem para tal empreendimento e, com o tempo e com a velhice, sofre, melancólica e
tragicamente, dessa tensa indecisão e da própria ação do tempo. o pai pode ser visto como um personagem
esférico simbólico.
9
personagem experimenta variadas sensações, como perplexidade, estranhamento,
inquietação, desejo de seguir o mesmo futuro de seu pai (sucedendo-o na canoa), negação
do desejo e culpa trágica. Tais sensações serão traduzidas por escolhas lingüísticas, formais
(nos seus vários níveis do som, da palavra, da frase, do enunciado), cuja função
expressiva pretendemos estudar.
Caso particular na Literatura Brasileira, por suscitar tantas reflexões, discussões e
outras obras em outras linguagens artísticas, como cinema e música popular, este conto
oferece muitas possibilidades de análise. Nosso problema começa por esse fato: qual
seria o elemento estilístico caracterizador do conto, se, como vimos, muitas são as
sensações experimentadas por seu narrador? Então, seria necessário refletir sobre um
elemento comum que abrangeria a contradição permanência X mudança (“imagem da
permanência no fluir eterno das águas”, conforme BOSI, 2000: 433), a presença do
surpreendente, que, segundo RAMOS (1991: 516), é o “denominador comum de todas as
estórias”, o sentido do trágico, cuja base é o conflito íntimo do narrador, sua culpa, devido
ao não”, proferido no momento decisivo (conforme ALBERGARIA, 1991), a idéia da
perplexidade, do mistério e do gico desvendador da realidade, levantada por LIMA
(1991). Acreditamos que, analisando o efeito de adaptação e inadaptação, de estranhamento
do narrador, este “indivíduo de (e entre) dois mundos”, a quem atrai a busca da verdade
consciente, mas que não tem a coragem necessária para empreendê-la, os aspectos
mencionados poderão aparecer de maneira também importante, cada um a seu tempo.
10
PARTE I
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
1. A estilística: objetivos e métodos.
Agindo de fato sobre as partes do texto, a abordagem estilística tem, por atitude
central, o levantamento e a interpretação dos fatos expressivos. Tal metodologia de análise
age sobre um terreno detalhista e procura examinar as minuciosas construções literárias, a
correspondência entre o microcosmo do texto artístico e seu macro-desenho geral. Esse
trabalho arqueológico, de fonema a fonema, palavra a palavra, frase a frase, poderá evitar e
policiar a visão impressionista (no sentido de falta de objetividade acadêmica), perigosa em
qualquer estudo, mas pode resvalar na atomização da análise. Para que se evite esse
segundo problema, buscou-se operar uma linha geral de interpretação, que conseguisse
reunir os diversos fatos estilísticos numa ou mais idéias que dessem unidade ao estudo.
Assim, os fatos estilísticos apontados, analisados e interpretados, de acordo com a
especificidade de cada um, estarão relacionados, de alguma forma, aos conceitos de
“adaptação e inadaptação”, propostos e definidos mais adiante.
Vários são os aspectos que devemos destacar para definir estilo e Estilística.
Contudo, o rigoroso levantamento das muitas conceitualizações que abrangem a disciplina
foge dos limites deste trabalho. A explicitação da especificidade é fundamental em
11
qualquer disciplina, mas nosso objetivo é mais operacional que teórico
3
. Limitar-nos-emos,
assim, a apresentar apenas um esboço sobre a abordagem que norteará as interpretações que
seguirão.
Três fatores devem ser levados em conta quando falamos em estilo: desvio,
elaboração e conotação. A obra que tentaremos analisar mostra muitas preocupações em
todos esses aspectos que ajudam a configurar o estilo.
Apesar da dificuldade de apontar uma norma, para que se possa estabelecer com
certeza e clareza onde e em que consiste determinada infração na escolha de um termo ou
uma formulação sintática, o desvio é um dos elementos mais importantes para a abordagem
do estilo. O afastamento do uso de uma determinada forma lingüística em relação a uma
norma padrão, escolarizada, padronizada é uma prova cabal de que
para além da rigidez convencional da Gramática, o povo e os artistas, em
comunhão de esforços, descobrem constantemente novos modos de expressão, não pela
invenção de novas palavras, mas mais ainda por uma sábia e genial adaptação do material
existente”. (LAPA, 1965: 210).
Ao lado do desvio, outro fator que devemos levar em conta também é a conotação.
Malgrado a difícil tarefa de delimitar conotação e denotação, esse conceito traz em si toda a
amplitude da elaboração simbólica de determinada obra, embora não seja somente ela a
responsável pelo valor estético de uma obra. Nascida das entranhas da Retórica, a
Estilística tem, como um de seus principais elementos, a observação sobre as figuras de
linguagem e seu uso específico. É preciso, entretanto, destacar que as conotações não se
realizam somente por meio das figuras de linguagem:
As conotações existem em lexemas empregados no seu sentido
próprio e podem-se anular em inúmeras metáforas desgastadas pelo uso”, de modo que
“são todos os componentes afetivos do significado, em qualquer plano de linguagem, que
instauram a atmosfera conotativa” (MONTEIRO, 1991: 19).
3
Evidentemente, essa separação (teoria X prática) é bastante falsa. Com efeito, um procedimento de análise
depende, invariavelmente, do suporte teórico que a ele subjaz e sem o qual ele não existiria. Entretanto,
mesmo dentro da bibliografia consultada, trabalhos que pretendem explorar e situar, historicamente, as
nuances das diferentes linhas teóricas existentes, procurando apontar a importância e o limite de cada uma
delas. Esse tipo de estudo, que encontramos, por exemplo, em GUIRAUD (1970), é eminentemente teórico, e
não tem, por objetivo central, operar ou proceder com a análise estilística em si.
12
O trabalho do estilólogo não deve, todavia, limitar-se à fria classificação desta ou
daquela figura. Esse procedimento de mera classificação e “etiquetação” estanque é a
prática da estilística. Mais importante ainda do que destacar e classificar o fato
estilístico, a figura de linguagem, é interpretá-lo, ou seja, compreender a sua simbologia,
dentro da coerência interna da obra. Caracteriza-se, portanto, a Estilística, pela observação
e interpretação dos fatos expressivos da linguagem, a serem encontrados e anotados. Dessa
forma, a
“hermenêutica exige previamente uma heurística (arte de encontrar) (...) e a
heurística é o melhor alimento do exercício da compreensão. Técnica de clínico geral que
testa com exames parciais múltiplos o seu primeiro e intuitivo diagnóstico” (BOSI,
1996:18).
Devemos, ainda, apontar qual a linha de abordagem que norteará o trabalho.
Também não nos cabe, aqui, arrolar as inúmeras correntes que se ocuparam do estudo do
estilo, nem nos filiar, tão acirrada e completamente, a alguma delas. É, contudo, necessário
que estejamos atentos às diferentes metodologias de estudo, e, conseqüentemente, a seus
limites. A simples aplicação da Estilística a um texto literário nos distancia dos
pressupostos da primeira corrente a chamada Estilística da Língua, de C. Bally que
não aceitava tal aplicação, crendo que o uso literário da língua seria, devido à não
espontaneidade, e à sua conseqüente intenção estética, um objeto que não deveria ser
analisado pela Estilística, o que, na visão de outros estudiosos, parece inadequado, pois “a
obra literária constitui, por excelência o domínio da estilística, precisamente por implicar
uma escolha mais ‘voluntária’ e ‘consciente’.” (CRESSOT, 1980: 10).
Apesar dessa ressalva, Bally lançou bases importantes para a análise estilística:
“Depois de haver exposto os princípios que permitem delimitar, e em seguida
identificar os fatos da expressão, Bally estuda seus caracteres afetivos, que divide em
efeitos naturais e efeitos por evocação”. (GUIRAUD, 1970: 76).
Os efeitos naturais dizem respeito à estrutura da língua e sua relação com o
pensamento do falante (isto é, a “representação mental (ou Darstellung)”, conforme chama
CÂMARA JÚNIOR (1953: 19), citando K. Bühler). São fatos que existem,
independentemente do contexto em que o efeito estilístico ocorre. Por exemplo,
13
“É natural que o diminutivo expresse a gentileza e a fragilidade e que um
aumentativo possua valor pejorativo. um vínculo natural entre o som e o sentido nas
onomatopéias e em grande número de palavras: ‘sombre’ (sombrio, escuro, triste,
lôbrego), por exemplo, é uma palavra naturalmente própria a expressar a idéia de
escuridão (...).” (GUIRAUD, 1970: 76, 77).
Já os efeitos de evocação estão, para Bally, relacionados ao contexto social:
“Cada palavra, cada estrutura pertence a uma zona particular da linguagem, um
estado de língua determinado. línguas de classes e de ambientes (camponesas,
provinciais), de profissões (médica, administrativa, da gíria etc.), línguas de gêneros
(científica, literária, poética etc.) e, por fim, existem as de tons (familiar, comum etc.).
Cada uma se distingue por entonações, palavras, imagens que, por sua vez refletem ou
evocam, como diz Bally sentimentos e atitudes mentais ou sociais particulares.”
(GUIRAUD, 1970: 78).
Portanto, Bally conduz suas observações sempre no âmbito da língua. A seu ver,
caberia à análise estilística apenas a constatação de que determinada forma pertença a esta
ou aquela classe, e se preste a este ou aquele tom. GUIRAUD (1970) exemplifica a
metodologia de Bally com uma frase retirada de uma peça e percorre o provável caminho
de análise do autor, que identificaria o fato de estilo, explicitaria o fato de que ele pertence
à linguagem familiar (e as prováveis relações sociais e especiais entre interlocutores), mas
aponta que o autor recusa-se a estudar a especificidade dessa forma dentro da obra onde ela
ocorre:
“Mas Bally nega-se a indagar sobre o emprego que dela [da palavra de linguagem
familiar, no exemplo do texto] faz o autor, ao perguntar se está conforme ao caráter dos
personagens, às situações, ao tom da peça, o que ele considera como problema de
estética literária de estilo e não de estilística, segundo sua terminologia.” (GUIRAUD,
1970: 76).
Uma segunda fase é radicalmente oposta a essa: a Estilística Literária de Spitzer
nasce de uma tentativa de fundir os estudos literários e filosóficos com os linísticos.
Spitzer propõe o círculo hermenêutico, segundo o qual a parte do texto remete ao todo, e
vice-versa. Para Spitzer,
14
“Todo detalhe deve permitir que penetremos no centro da obra, que esta
constitui um todo, no qual cada detalhe está motivado e integrado. Uma vez no centro,
teremos uma visão do conjunto dos detalhes. Um pormenor convenientemente assinalado
nos dará a chave da obra, e mais tarde poderemos verificar que esse étymon explica o
conjunto de tudo o que conhecemos e observamos da obra.” (GUIRAUD, 1970: 110).
Além disso, Spitzer chama a atenção para a especificidade da obra literária, numa
época em que os meios universitários estavam bastante dominados por idéias positivistas,
cujos estudos utilizavam obras literárias como pretexto para “obscuras coleções gramaticais
ou para danças sagradas em torno do texto” (GUIRAUD, 1970: 119).
Criticada por alguns pelo excesso de intuição que caracteriza suas idéias, essa
Estilística Idealista está preocupada em verificar o reflexo do autor na obra, e não
propriamente em desvendar sua estrutura. A intuição (ou “estalo” mental) em Spitzer,
contudo, é apenas um ponto de partida; as hipóteses depreendidas por meio dela devem ser
verificadas, provadas ou não, por observações empíricas e deduções.
Além disso, apesar da real necessidade em convergir estudos lingüísticos e
literários, “muitas vezes, Spitzer abandona rapidamente esse ponto de partida lingüístico”
(GUIRAUD, 1970: 112):
“Objetou-se também que, se é legítimo refazer a unidade da obra, o alvo do
lingüista nem por isso deixa de ser o de definir o estilo no plano da ngua, forjando assim
um instrumento, e que, nessa tarefa, não pode confiar unicamente à intuição, porque isto
significaria abandonar de novo [lembremo-nos, afinal, de que uma das maiores
contribuições de Spitzer foi substituir os apriorismos da crítica literária de época pela
atenção que se deveria conferir ao texto literário em si] o estudo do estilo a julgamentos
subjetivos.” (GUIRAUD, 1970: 119).
Com se pode perceber, quando da comparação entre essas duas correntes teóricas, o
enfoque ao conceito de estilo muda de maneira notável: Bally ocupa-se das expressividades
potenciais da língua, não o emprego particular que um indivíduo faz dela, especificamente;
Spitzer, ao contrário, está interessado no uso particular, individual da língua.
Esse quadro geral, referente ao impasse quanto ao caráter (coletivo/individual) do
estilo, pode ser exemplificado por um trecho de CÂMARA JÚNIOR (1953), cujo tema é o
15
discurso indireto livre — se esse fato sintático e enunciativo é marca da langue (e, portanto,
tem relação com o aspecto coletivo), ou se ele é marca de um aspecto individual da língua:
“Esta construção sintática [o discurso indireto livre], tão tipicamente estilística, é
um bom exemplo de como se entrosam o elemento individual e o coletivo em matéria de
estilo. Levando em conta o seu uso metódico em geral, Bally e Marguerite Lips o
consideram um processo da ‘langue’, no sentido sausseriano, em oposição a Jespersen,
Theodor Kalepky, E. Lorck, G. Lerch, que frisam, nos termos do terceiro destes autores,
um arroubo da imaginação, como a personificação e a metáfora, essencialmente
dependente da alma poética do escritor.” (CÂMARA JÚNIOR, 1953: 106).
E o autor conclui:
“É que os discípulos de Saussere (...) insistem demais no aspecto coletivo do
conceito de ‘langue’. A oposição entre esta, como sistema intelectivo de formas e
processos, e o estilo nos dá a solução do aparente impasse. O discurso indireto livre (...) é
individual, como todos os traços de estilo, no sentido que favorece a exteriorização do
estado dalma do narrador em uníssono com o personagem citado; mas se apresenta, não
obstante, como um processo coletivo em virtude da homogeneidade da comunidade
lingüística.” (CÂMARA JÚNIOR, 1953: 106).
Uma terceira corrente de análise estilística prevê a aplicação da metodologia
estilística ao texto literário, sem, contudo, abandonar o rigor lingüístico. Tal procedimento
pode ser entendido, rapidamente, como uma espécie de síntese entre a primeira e a segunda
fases dessa metodologia. A Estilística Estrutural de Riffaterre é um exemplo desta postura.
Nosso trabalho pretende efetuar uma análise estilística da língua, interpretando
fatos expressivos dentro da especificidade do texto literário. Buscaremos analisar a
língua, mas utilizada com objetivos estéticos. Tal procedimento de estudo e análise
distancia-se da primeira corrente da Estilística, pela aplicação da abordagem estilística à
Literatura, assim como se distancia da segunda por não enxergar, como ela, o pormenor
lingüístico como étimon do autor, levada pela convicção de que com esse processo se
corria o risco de mutilar os restantes pormenores” (YLLERA, 1979: 41). Muitas
contribuições de Bally, porém, compõem o trabalho. Assim, estaremos interessados na
expressividade oriunda de efeitos evocativos e naturais, mas analisados e interpretados
dentro da especificidade do conto e do texto literário. O círculo hermenêutico de Spitzer e a
16
idéia de convergência estilística, estudada por Riffaterre (e exposta no capítulo
“Justificativas para a estrutura do trabalho”), são propostas teóricas absolutamente
indispensáveis para a análise que pretendemos elaborar.
Ao estudar o estilo presente em determinada obra, não se utiliza a literatura como
pretexto para analisar um aspecto externo à literariedade do texto. Ao contrário, como
literatura também pode ser definida como uma forma de escrita peculiar, analisar a
linguagem expressiva presente numa obra é contribuir, ainda que parcialmente, para
compreender um de seus mais importantes ingredientes artísticos. Segundo EAGLETON
(1994: 02),
“Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou ‘imaginativa’,
mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. Segundo essa teoria, a literatura é a
escrita que, nas palavras do crítico russo Roman Jakobson, representa uma ‘violência
organizada contra a fala comum’. A literatura transforma e intensifica a linguagem
comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana. (...) Trata-se de um tipo de
linguagem que chama a atenção sobre si mesma e exibe sua existência material”.
2. Situação da obra de João Guimarães Rosa.
Vários foram os trabalhos de Estilística sobre Guimarães Rosa. Correm-se, pois,
dois riscos logo de início. O primeiro é o cansaço da repetição. O segundo é o mais
perigoso de todos: o excesso de formalismo, uma espécie de levantamento exagerado e não
interpretativo que é, enfim, o maior perigo que a Estilística enfrenta. Tentado a levantar os
muitos fatos de estilo que estão presentes na obra de Guimarães Rosa, o analista esquece-se
do principal: interpretá-los. Segundo BOSI (2000), esse é um problema tão grave quanto o
procedimento da crítica oposta — aquela crítica que não enxerga a linguagem, o uso
literário dos diferentes níveis da língua:
É certo que a crítica mais recente, escolhendo o ponto de vista técnico, no espírito
do neoformalismo, tende a passar por alto a complexa rede de estilos de pensamento que
serviram de contexto e subjazem à ficção de Rosa. Uma leitura que ignore essas
17
vinculações pode resvalar em uma curiosa ideologia, espécie de transcendentalismo
formal, não menos arriscada que o conteudismo bruto que lhe é simétrico e oposto”.
(BOSI, 2000: 430).
Para que se evite este perigo, se sempre fundamental manter vários textos de
apoio, que não sejam, exclusivamente, de estilística, já que, como vimos, no caso de
Guimarães Rosa, devido à sua inovação lingüística, a tentação de muitos é pelo dado formal
em si, sem as necessárias interpretações das reais funções de tal fato.
4
Partindo dos mitos e da cultura popular, Guimarães Rosa um outro sentido ao
regionalismo que caracterizou a literatura brasileira da década de 1930, que o precedeu.
Opera uma fusão entre prosa e poesia, o que talvez poderia ser chamado de prosopoema.
Segundo XISTO (1970: 10),
a poesia volta, dialeticamente, aos seus começos que terão sido os próprios
começos da linguagem, o homem descobrindo e abordando a natureza, o semelhante e a si
mesmo. E marcando com o signo verbal a sua posse. E guardando-a pela memória. Esta é
sagrada, para que se guarde, por sua vez. As estórias, antes de serem narrativas, são
afirmações, identificação do homem com seus feitos. A prosa das estórias, sendo mais
expressiva do que discursiva. Assim o é a obra de Guimarães Rosa ”.
Como conseqüência imediata, a analogia é o princípio fundamental da invenção
rosiana, vinculando a fala inovadora aos matizes da língua. Segundo BOSI (2000: 431),
o que passa com a linguagem de Guimarães Rosa no tratamento das unidades
verbais (fonemas, morfemas), ocorre também no plano dos grandes blocos de significado:
as suas estórias são fábulas, mythoi que velam e revelam uma visão global da existência,
próxima de um materialismo religioso, porque panteísta, isto é, propenso a fundir numa
única realidade, a Natureza, o bem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e o múltiplo.”
5
4
Na verdade, mesmo de maneira geral, essa desconexão entre forma e conteúdo é sempre uma inverdade,
devendo ser evitada até mesmo como recurso pedagógico. Em arte, o conteúdo é dado pela forma, e esta,
por si mesma é, portanto, o conteúdo. Da mesma maneira, na literatura e em outras diversas artes, o é
possível separar tais elementos, especialmente ainda quando se trata de uma narrativa em primeira pessoa.
5
Note-se, entretanto, que o autor nos alerta para qual sentido ele aponta, quando escreve que as estórias de
Guimarães Rosa são fábulas. Talvez possamos inferir que ele nos fala do termo “tomado como equivalente
grego ‘mito’, [que] designava, no interior do pensamento de Aristóteles (...) a ‘imitação de ações’, a
‘composição dos atos’, ou seja, a intriga, e era ‘o primeiro e o mais importante elemento da tragédia’.”
(MOISÉS, 1995: 226). Não se trata, pois, daquela fábula “de razão moral, implícita ou explícita,
protagonizada por animais irracionais, cujo comportamento, preservando as características próprias, deixa
transparecer uma alusão, satírica ou pedagógica, aos seres humanos” (MOISÉS, 1995: 226).
18
Entretanto, essa presença mítica, ao lado do inovador tratamento linístico,
manifesta-se de maneira diferente em duas fases da obra do escritor:
Como todo artista consciente, Guimarães Rosa inventou depois de ter feito um
inventário dos processos da língua. Imerso na musicalidade da fala sertaneja, ele
procurou, em um primeiro tempo (tempo de Sagarana), fixá-la na melopéia de um fraseio
no qual soam cadências populares e medievais” (BOSI, 2000: 430).
Assim, temos uma primeira fase, produto das pesquisas de campo do autor, em que
as linguagens populares estão registradas, e uma segunda fase, na chamada obra madura, de
Grande Sertão: Veredas, Primeiras Estórias, Tutaméia, entre outros, em que o “escritor
soube zarpar para ousadas combinações de som e de forma” (BOSI, 2000: 431).
Nesse ponto, cabe-nos falar de que regionalismo está presente na obra de Guimarães
Rosa. Quais as relações e diferenças entre o regionalismo existente na obra de Rosa e na de
Graciliano Ramos, que o precedeu? Primeiramente, é nítido que a realidade sertaneja,
embora a mesma, na sua pobreza material, e a mesma que inspirou Ramos e Rosa, receba
tratamentos diferentes dos dois escritores. Em Rosa, ela é envolta em um elemento a mais:
sempre um mistério que cerca a paisagem, as figuras, os atos e as palavras do
narrador. (...) E essa transrealidade é que permite aos temas mais locais, às personagens
mais tipicamente sertanejas, à linguagem mais aparentemente recolhida ‘da boca do
bárbaro’ (...) um sentido nitidamente universal” (ATAÍDE, 1991: 143).
Cabe, aqui, uma diferenciação, entre “enigma” e “mistério”. Ambos integram a
ficção rosiana: o primeiro, que também é uma forma literária, pede decifração objetiva,
quase matemática; o segundo foge ao mecanismo lógico:
“Tudo se passa como se, por sua constituição mesma e pelo pacto que firma com
seu leitor, esse livro [o ensaísta refere-se a Grande sertão: veredas] transcendesse a
categoria estético-literária do enigma, que no entanto também é sua, para tender àquela,
mágico-religiosa, do mistério. Como se sabe, enigmas pedem decifração, mistérios
admitem unicamente culto e celebração.” (PASTA JÚNIOR, 1999: 61)
6
.
6
Conforme aponta o crítico, o enigma está também presente na obra de G. Rosa. Em “A terceira margem do
rio”, em particular, ele ainda é mais forte: está tematizado, nas dúvidas que o narrador tem, no fato de esse
narrador-personagem o saber o motivo que levou seu pai a morar numa canoa. Convive com tal enigma o
mistério, que envolve a figura do pai e que mantém alta a perplexidade do narrador.
19
Acontece que este mistério está também bastante aliado à cultura popular. É
justamente o terreno da cultura popular, do mito e da religiosidade popular que altera os
maniqueísmos, limita o determinismo e faz vislumbrar um outro mundo dentro do sertão.
Os fortes desníveis culturais entre o narrador em terceira pessoa de Vidas Secas, de
Graciliano Ramos, e seus personagens o escolarizados fazem com que o autor, ao tentar
compreender a angústia, através de “um saber que somente o autor traz consigo e que a sua
concepção crítica não por que recalcar” (BOSI, 1998: 14), emita juízos sobre o
comportamento do vaqueiro. Alguns desses juízos são, inclusive, repletos de determinismo.
Esse procedimento não se verificaria em Rosa, porque este trabalha com outro ideário. Em
outras palavras,
separando Graciliano da matéria sertaneja está a mediação ideológica do
determinismo; aproximando Guimarães Rosa do seu mundo mineiro está a mediação da
religiosidade popular”. (BOSI, 1998: 22).
Historicamente sincrética, a religiosidade popular brasileira, retratada por Rosa,
opera as muitas fusões de opostos que a cristandade monoteísta doutrinária e não popular
faz questão de segregar. A utopia cristã que se pode depreender das obras rosianas
inscreve-se no espaço popular, e, por isso mesmo, “é herege desde suas origens, nele [em
G. Rosa] nunca prevaleceu essa visão dualista. Para o nosso catolicismo popular, Deus e o
mundo estão misturados.” (LOPES, 1997: 58). Em “A terceira margem do rio”, será
possível observar uma série de índices que remetem à isotopia
7
religiosa, a uma espécie de
revelação religiosa epifânica.
3. “Primeiras estórias”: O título do livro e alguns aspectos sobre ele.
Primeiramente, é preciso pensar sobre o título dado por Guimarães Rosa a este
conjunto de contos de 1962. Uma primeira impressão nos sugeriria que o autor tivesse
escrito as obras de Primeiras estórias antes mesmo de seu livro de estréia, Sagarana. Mas
essa é somente uma hipótese, que provavelmente não condiz com a verdade. Segundo
7
Entende-se por isotopia o conjunto de idéias que levam a um denominador comum, uma idéia que abrange,
resume e compreende os elementos semânticos das idéias anteriores.
20
LIMA (1991: 500), o título da coletânea remete a um aspecto político e social: as
mudanças
8
. Seriam, portanto, as estórias de um Brasil primeiro, de um Brasil permeado de
mudanças significativas, como a fundação de Brasília.
São as primeiras estórias de um Brasil novo no começo do surgir. Assim a
primeira e a última estórias se enlaçam pelo lugar comum onde passam, ‘lugar onde se
construía a grande cidade’, ali, ‘nos altos vales da aurora’ percorridos pelo mesmo
menino a aprender os seus caminhos”. (LIMA, 1991: 501).
Estilisticamente, talvez possamos lembrar as idéias de XISTO (1970: 10), sobre a
presença do gênero lírico na prosa rosiana, o que remete a uma linguagem primeira,
poética, trabalhada de maneira mais autoral do que em Sagarana, que, segundo BOSI
(2000), teria, como característica principal, o inventário das formas populares existentes.
Ainda sobre o título da obra, é preciso comentar a escolha da palavra estória, em vez
de história. Projetando-nos para o imaginário, para o mágico, Guimarães Rosa opta por uma
“estória contra a História”. Ou, nas palavras de PORTELLA (1991: 198), “a estória, em
rigor, deve ser contra a História’. É que a obra de arte tem de ser basicamente invenção,
acionada que está pelo mecanismo do imaginário”. Mas dizer isso não significa dizer que o
mundo de Guimarães Rosa é um mundo alienado do contexto histórico-social, pois a arte se
liberta da realidade na medida em que a imita e busca a plenitude, o apelo, a catarse. O
trabalho do artista não é o trabalho do historiador ou do geógrafo que deve descrever tal e
qual o que vê. Não é a realização artística que se subordina ao tema, mas o tema que se
8
LIMA (1991: 501) escreve:
Modifica-se a realidade dos gerais e Guimarães Rosa anuncia a mudança. Brasília. Mas atua sem
alarde, não precisando dizer muito direta e pausadamente as suas verdades. Em vez de mostrar ele faz ver. Aí
se estende o planalto para onde virá o menino de outra cidade aprender com o mundo as suas primeiras
lições: a alegria e o amor. Depois, a morte de ambos. Nestes gerais, em vias de mudança, o jagunço começa
a perder o seu prestígio de respeito. Lembremo-nos que no Grande Sertão o chefe Bebelo primeiro
fracassa no propósito de consertar o sertão porque adotara princípios de fora (...) e tem de ingressar no
banditismo a fim de poder corrigir as leis do lugar (...). Agora, porém, Guimarães Rosa nota que os seus
gerais estão em mudança e, longe de tremer pela novidade, porfia por incorporá-la ao seu universo. E que o
consegue mostram claramente duas estórias em que o elemento anedótico é mais visível: ‘Famigerado’ e ‘Os
irmãos Dagobé’. Em ambas, o jagunço não é mais o dono da vida e da morte, pelo bem ou pelo mal dos
povoados. A força de Damázio [no primeiro caso] o é mais a única. Tem o seu poder ameaçado pela
presença que se insinua da autoridade [no conto, o valentão Damázio viaja para pedir explicação sobre o
significado da palavra ‘famigerado’, que lhe fora atribuída por um “moço do governo”]. De igual maneira, os
terríveis Dagobé contrariam o código do desforço [talvez a palavra apropriada fosse “desforro”] pessoal,
reconhecem razão no moço assassino do seu irmão e partem em demanda de outra cidade”.
21
subordina à realização artística” (PORTELLA, 1991: 200). Uma outra reflexão que também
tenta dar conta do contraste realidade versus ficção é a de LIMA (1991). Em certa altura de
seu ensaio, mostra que a presença do mágico na obra de G. Rosa (e “A terceira margem do
rio” é prova principal disso) não existe como uma fuga daquela realidade sertaneja, mas seu
elemento desvendador, revelador (re-velador). Segundo o crítico, inclusive, o perigo da
criação rosiana era, naquela altura
9
, enveredar para um mágico totalmente desligado
daquele regionalismo sertanejo.
Aliada à dimensão mágica de algumas narrativas de Primeiras estórias, verifica-se a
presença dos tons de surpreendente, que não existem somente “A terceira margem do rio”.
Segundo RAMOS (1991: 516), “no levantamento das palavras mais freqüentes ao longo de
todas as estórias, vemos que as palavras se circunscrevem a um mesmo campo semântico,
de que o surpreendente poderia perfeitamente ser o denominador comum”.
Citemos alguns exemplos rápidos do plano narrativo: no primeiro conto, “As
margens da alegria”, o narrador é um menino, sempre surpreso com o mundo que se lhe
descortina, no alto do avião. Em “A menina de lá”, toda a família se surpreende pelos
milagres da menina que a miséria torna especial. Em “Seqüência”, o homem que busca uma
vaca vermelha acaba encontrando a Moça, pela qual se surpreende; em “Os irmãos
Dagobé”, o homem simples surpreende a cidade ao matar o grande valentão que oprimia e
criava um dicionário da força até mesmo dentro da própria família, a quem o homem
também surpreende, indo ao enterro do bravo Dagobé morto, apresentando-se, desarmado,
perante seus temidos irmãos. Todas essas situações surpreendentes poderão ser vistas,
apontadas e interpretadas também no levantamento dos vários fatos de estilo presentes nos
contos
10
.
9
O ensaio de LIMA (1991) foi escrito, originalmente, em 1963, apenas um ano após a publicação de
Primeiras Estórias.
10
Citemos, como exemplo, “As margens da alegria”, conto que abre as Primeiras Estórias, em que o tom
surpreendente é dominante, especialmente na primeira e na terceira partes e está ligado à sensação
experimentada pelo Menino ante o mundo novo que se lhe descortina em pequenos e grandes objetos. Vários
fatos estilísticos corroboram para esse efeito: utilização de neologismos (a idéia de novidade, as coisas que
são reveladas ao menino encontram no neologismo sua mais perfeita tradução estilística), como
“confortavelzinho”, “justinhamente” (ambos oferecem a sensação de carinho aspecto sugerido também
pela utilização do sufixo “-inho”, de segurança, de afago). Em “bis-viu” (em “Mas bis-viu”, p. 09), forma
muito mais expressiva do que a neutra e intelectiva “reviu”, a nova palavra é formada por justaposição,
combinando duas formas livres, o que confere dupla força à ação: a novidade e o interesse infantil pelo
elegante e altivo peru é muito bem representada por esse neologismo. A utilização de frases curtas e frases
22
Outro tom
11
bastante notório em A terceira margem do rio” (e talvez em outros
contos do livro) é o trágico. ALBERGARIA (1991) debruça-se sobre esse aspecto. Assim
como as reflexões de PORTELLA (1991), a autora parte de uma diferenciação entre as
estórias e a História, mas articula-a no plano lingüístico. Mostra que o discurso difere da
história quanto à subjetividade do fato narrado. Citando E. Benveniste, argumenta que “o
conto perderá seu caráter eminentemente histórico para assumir uma feição discursiva que
lhe acrescenta algo pessoal próprio do narrador, que visa ao envolvimento do leitor”.
nominais também colaboram para o efeito de surpreendente que abraça o menino: elas, envoltas em pausas,
dão destaque a uma pequena ão (“Sorria-se.”, primeiro parágrafo, p. 07), a um detalhe descritivo (“O
Menino.”, primeiro parágrafo, p.07, que é uma frase inorgânica, em que referente “menino” é alçado a
alegoria, — na primeira linha do conto, o substantivo ainda é usado com letra minúscula — fato que sugere o
início do aprendizado das coisas, pequenas e grandes, que começam a ser reveladas a ele. Há, portanto,
convergência estilística: é sintomático que essa alegorização ocorra destacada numa frase nominal,
desorganizada, inorgânica). A substantivação de adjetivos e de advérbios (fato que, como veremos, será muito
relevante em “A terceira margem do rio”) também espresente em “As margens da alegria”, sugerindo o
efeito de surpresa: “ao não-sabido, ao mais”). Como último exemplo, um levantamento dos adjetivos do
primeiro parágrafo do conto evidencia uma série de palavras que sugerem grandiosidade: “grande”, em “onde
se construía a grande cidade”, uma construção que pode ser considerada perífrase, já que podemos interpretar
o referente como sendo Brasília. A expressão é repetida no terceiro parágrafo. (Dentro do conto, convém
lembrar que, muitas vezes, especialmente na segunda parte, os índices que remetem ao universo da civilização
são o contraponto do entusiasmo do Menino, são, muitas vezes, relacionados à morte; nessas ocasiões, o tom
do conto modifica-se um pouco, mas ainda mantém alta a surpresa que a Morte é uma das pulsões com
que o Menino tem contato, nessa grande viagem que é um ritual de passagem. O tom, de surpresa, de
entusiasmo, neste momento, retrai-se, mas, diferentemente do que ocorre em “A terceira margem do rio”, em
que o trágico domina totalmente a terceira parte, em “As margens da alegria”, a surpresa retorna na última
parte do conto, o Menino de novo fica perplexo, agora diante do vaga-lume a exclamativa e as palavras
afirmativas anafóricas refletem bem essa sensação Sim, o vaga-lume, sim, era lindo!”, p. 12). Em “verdade
extraordinária”, o adjetivo liga-se a um substantivo filosoficamente abstrato e o verbo “raiar”, que evoca
nascimento, início, novidade, também mantém a idéia de surpreendente. Leia-se o primeiro parágrafo, de
onde tiramos alguns dos exemplos desta nota, cujo propósito é apenas o de mostrar que o tom surpreendente
também está presente nas formas lingüísticas de outros contos das Primeiras estórias:
“ESTA É A ESTÓRIA. Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a grande
cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o
escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A Mãe e o Pai vinham traze-lo ao aeroporto. A Tia e o Tio
tomavam conta dele, justinhamente. Sorria-se. O avião era da Companhia, especial, de quatro lugares.
Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O vôo ia ser pouco mais de duas horas.
O menino fremia no acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida
podia às vezes raiar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte
afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao o-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se
— certo como o ato de respirar — o de fugir para o espaço em branco. O Menino.” (ROSA (1998: 07)).
11
Quando falamos em surpreendente, trágico, estamos referindo-nos ao tom presente no texto. Tonalidade
afetiva, tom é o terreno sobre o qual a Estilística agirá. Segundo BOSI (1988: 278, 279), perspectiva e tom são
os dois conceitos com que operam os estudiosos. Junto com a ótica da escrita (exemplos: perspectiva popular,
burguesa etc), o estudo do tom tem um fundamental interesse e se refere às modalidades afetivas da
expressão. Ambos os aspectos devem ser analisados, já que
não grande texto artístico que não tenha sido gerado no interior de uma dialética da lembrança
pura e memória social; de fantasia criadora e visão ideológica da História; de percepção singular das coisas
e cadências estilísticas herdadas no trato com pessoas e livros”. BOSI (1988: 279).
23
(ALBERGARIA, 1991: 521). Esse “algo pessoal” acrescentado pode traduzir-se pelo tom
trágico que o conto vai adquirindo e que, por sua vez, resulta da tensão entre o narrador, o
mundo e a verdade potencial a que se lançara o “nosso pai”. Escreve a ensaísta:
O sentido do trágico se revela neste desequilíbrio que existe entre as limitações da
personagem (enquanto ser) e o mundo exterior que lhe veta a realização das suas
potencialidades.” (ALBERGARIA, 1991: 524).
A culpa do filho narrador por ter dito o “não” na hora principal é a situação máxima
do sentimento do trágico
12
e é também a razão da narrativa, em que o próprio narrador tenta
entender e transmitir ao receptor o peso de sua mea culpa, de sua “tanta, tanta culpa”.
4. “A Estilística da Adaptação e da Inadaptação”: apresentação dos conceitos.
Entende-se por “Estilística da Adaptação e Inadaptação” o conjunto dos elementos
formais que caracterizam e traduzem a postura conflituosa do narrador, surpreso e
entusiasta da atitude de negação do pai em relação às convenções sociais compartilhadas,
mas incapaz de seguir essa mesma opção. A “Estilística da Adaptação e Inadaptação”
compreende, portanto, as três partes do conto: 1) a sensação de “normalidade” existente no
primeiro parágrafo, que se expressa em escolhas lingüísticas, como a utilização de um tom
mais neutro, menos emotivo, quase documentando ou narrando a “normal” primeira metade
da vida do pai, utilização de uma sintaxe menos sujeita a desvios ou rupturas o desvio
mais forte se dá, como veremos, pela brusca elipse de um verbo auxiliar, com a finalidade
de destacar o expressivo particípio “sido” —, farta utilização de adjetivos que evocam
sensatez, e adaptação ao mundo “normal”, das convenções e regras sociais, uso de palavras
negativas para indicar “medianidade”, “normalidade”; 2) a sensação de perplexidade do
12
Citando Geoffrey Brereton, MOISÉS (1995: 497, 498) aponta algumas definições possíveis para a tragédia,
cujos traços gerais, possivelmente, se aplicam e podem ajudar a justificar a hipótese de ALBERGARIA
(1991), sobre a presença do sentimento do trágico no conto:
“‘A tragédia é uma desgraça final e impressionante, motivada por um erro imprevisto ou
involuntário (...). Geralmente implica uma irônica mudança da sorte e comunica uma forte impressão de
vazio. As mais das vezes, esta se faz acompanhar de infelicidade e sofrimento emocional.’.”
24
narrador ante o fato surpreendente e mágico da partida do pai, aspecto traduzido
formalmente por vários fatos expressivos, como a utilização de longos períodos dominados
por justaposição, utilização de um ritmo e de pontuação que mantém alta a emoção e indica
um débito rápido, choque entre a utilização de termo próprio — que é, neste momento, uma
atitude do narrador e o eufemismo, que o evita, uma atitude ligada à norma, à
convenção, à polidez e sensatez das pessoas das margens, aliterações, assonâncias,
harmonia imitativa, que visa à representação da Natureza, utilização de diminutivos (que
opõem a opulência e força da Natureza ao despojamento do pai, causando maior sensação
de perplexidade do narrador), jogo gradativo entre símile e metáfora, cuja utilização
representa, passo a passo, o processo de integração do pai ao Cosmos, à Natureza (e sua
conseqüente edificação mítica), uso de palavras negativas indicando a atitude de negação
do pai em relação aos valores comuns das margens, incidência de frases interrogativas, que
revelam a inquietação do narrador ante a atitude algo misteriosa do pai; 3) presença do
trágico, traduzido estilisticamente pela desaceleração do ritmo das frases e períodos, tom
hesitante (principalmente dentro das estilizações), forte incidência da primeira pessoa do
singular (em oposição ao que ocorre nas outras partes do conto), utilização de um tom
melancólico (devido à culpa do narrador por não ter sucedido o pai na canoa, à velhice e à
transitoriedade), aliteração, eufemismo para suicídio (desta vez, o eufemismo é utilizado
pelo narrador, sobre si próprio), arcaísmo que sugere falecimento, falência e fracasso
masculino (“falimento”), metáforas que sugerem cansaço e dor (“bagagens da vida”),
utilização de frases mais curtas, incidência de frases interrogativas (que revelam dor,
melancolia e culpa ante o inevitável da vida), presença de anáforas, forte incidência de
palavras que levam a uma isotopia de julgamento, sanção e revelam todo o peso da culpa
do narrador (“culpa”, “culpado”, “jurado e declarado”, “foro íntimo”). A “Estilística da
Adaptação e inadaptação” também se manifesta em fatos que estão presentes nas três partes
do conto, mas que têm funções e tonalidades diferentes.
Assim, os neologismos, abundantes na segunda parte, estão relacionados, neste
momento, à perplexidade do narrador em relação à atitude do pai, já que, como novidade,
eles são prova de uma nova, primeira e surpreendente apropriação do mundo pela
linguagem. Na terceira parte do conto, os neologismos estão manifestos em palavras mais
longas e amarguradas, que sugerem velhice, melancolia e fracasso do narrador,
25
tragicamente situado entre dois mundos (“demoramento”, “fervimento”). Outros usos
neológicos constituem sinais claros e explícitos da Estilística da Adaptação, como se
verifica numa construção de muita ousadia morfossintática: “o se-ir do viver”. O uso de
eufemismos, sinal óbvio para uma atitude de polidez e sensatez, circunscrita às margens, e
que policia excessos, é, em algumas vezes, feito pelo narrador (como na terceira parte, para
referir-se ao suicídio: “abreviar com a vida”), em outras, negada por ele (“só uns achavam
(...) alguma feia doença, que seja, a lepra”). Tal dualidade e variabilidade no uso/não uso do
eufemismo é uma das provas da posição do narrador enquanto “homem de dois mundos”.
Há, também, disseminada no conto, uma isotopia religiosa, manifesta em relação a vários
personagens. Ela também está relacionada à linha de interpretação que propomos: se nosso
pai é um personagem símbolo que alcança uma dimensão mítica, epifânica, religiosa
(vejam-se as descrições e índices do penúltimo parágrafo), os outros personagens
(destaque-se a “nossa mãe”) são partidários de uma crença católica oficial, obediente a
normas e convenções.
5. Justificativas para a estrutura da dissertação.
várias formas de proceder na análise estilística. Pode-se focar, num trabalho, a
expressividade ligada a apenas um nível de língua exclusivamente (como seria, por
exemplo, o caso de um estudo sobre o léxico de um texto), podem-se considerar todos os
níveis da língua e estruturar o trabalho dessa forma, analisando, separadamente, cada um
deles.
Embora a análise estilística seja sempre detalhista, arqueológica, visando ao
microcosmo do texto literário (interpretado à luz do macro-desenho geral de determinada
obra), nem sempre o estudioso opta por um trabalho que focalize, minuciosamente, o texto,
de fonema a fonema, palavra a palavra, frase a frase.
Esse método ou essa estrutura de trabalho, mais freqüente entre os estudiosos de
poesia, é menos esperado quando se trata de um texto em prosa. Entretanto, apesar de
26
estudarmos um conto (em prosa), escolhemos tal procedimento para efetuar a análise. Cabe,
portanto, expor as justificativas que nos levaram a essa opção.
Por outro lado, se cada obra apresenta a sua especificidade, suas características
peculiares únicas, a crítica também deve adequar-se e moldar-se às exigências que a obra
analisada impõe. Segundo GUIRAUD (1970: 118), uma das contribuições mais fecundas
de L. Spitzer foi mostrar que “a obra tem de proporcionar seus próprios critérios de análise
(...)”
13
.
Uma das características de “A terceira margem do rio” é a intensidade poética da
linguagem presente no conto, muitas vezes, advinda da confluência e consumação de fatos
estilísticos dos diversos níveis da língua. Tal força expressiva relaciona-se à intensidade do
caráter conotativo do texto, uma das marcas do poético. Segundo MOISÉS (1995: 405),
“(...) a poesia exprime-se por metáforas, tomadas no sentido genérico de figuras de
linguagem, isto é, significantes carregados de mais de um sentido, ou conotação. A poesia
é linguagem conotativa por excelência, na medida em que toda a imensa ambigüidade do
‘eu’ se expressa por metáforas de amplo cociente semântico: as várias conotações
assinalam toda a complexidade emotivo-rítmico-conceptual do ‘eu’”.
Evidentemente, “A terceira margem do rio” pertence, como conto, ao gênero
narrativo. ROSENFELD (2006) ressalta duas linhas de abordagem para a teoria dos
gêneros literários (épico, lírico e narrativo): uma classificação que envolve estruturas mais
fixas (“significado substantivo dos gêneros”), outra que envolve “os traços estilísticos
fundamentais de cada um dos gêneros”. Do ponto de vista da estrutura da obra
(“significado substantivo dos gêneros”), “A terceira margem do rio” pertence à Épica, pois
“fará parte da Épica toda obra (...), em que um narrador apresentar personagens envolvidos
em situações ou eventos” (ROSENFELD, 2006: 17).
O conto, porém, apresenta certos traços estilísticos que são característicos da Lírica:
“A manifestação verbal ‘imediata’ de uma emoção é o ponto de partida da Lírica.
Daí segue, quase necessariamente, a relativa brevidade do poema lírico. A isso se liga,
13
Para GUIRAUD (1970: 118, 119), a hipótese e a contribuição de Spitzer foram muito importantes, pois
buscam chamar a atenção para a obra em si, numa época em que a crítica, influenciada pelas correntes
positivistas, esteve preocupada com questões de fundo, pouco reveladoras da especificidade das obras
literárias que não deveriam “ser pretextos para obscuras coleções de exemplos gramaticais ou para danças
sagradas em torno do texto”. A idéia de Spitzer, citada acima, no corpo do trabalho, critica uma postura da
crítica literária da época, e também ajuda a mostrar que a análise estilística deve acercar-se do texto de uma
maneira que vislumbre sua especificidade.
27
como traço estilístico importante, a extrema intensidade expressiva que não poderia ser
mantida através de uma organização literária mais ampla”. (ROSENFELD, 2006: 22)
Em “A terceira margem do rio”, as marcas do lírico apresentam-se de forma
variada. Em todo o conto, verifica-se a força conotativa e a “extrema intensidade
expressiva”, mesmo quando não se notam traços de emotividade. O primeiro parágrafo,
representante da primeira parte do conto (que se refere à normalidade flagrada, à
descrição geral e sintética de metade da vida de “nosso pai e da apresentação dos
personagens (“nossa mãe” e os irmãos)), apresenta um tom mais neutro, quando
comparado com os tons do surpreendente (da segunda parte) do trágico (da terceira
parte). A emotividade é crescente no conto: na segunda parte, ela manifesta-se atrelada à
perplexidade do narrador frente à atitude do pai; na terceira, revela-se ligada à dor e
melancolia do narrador diante da inevitável mudança dos tempos e de sua hesitação em
“suceder o pai” na canoa.
Esses fatos levam-nos a concluir que o Lírico é construído, dentro do conto, numa
espécie de crescendo, de gradação poética. Um trabalho, que acompanhe, parágrafo a
parágrafo, os fatos estilísticos, além de justificado pela própria presença do poético, permite
flagrar as nuances desse lirismo.
Apenas a tulo de exemplificação, lembremo-nos de alguns parágrafos: primeiro,
oitavo, décimo primeiro e décimo quarto
14
. Os efeitos estilísticos presentes nesses
14
Comparem-se os trechos de ROSA (1988):
(1) “NOSSO PAI era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino,
pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me
alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa
mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que,
certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.” (Primeiro parágrafo).
(2) “E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. se
pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era
para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos”.(Trecho do oitavo
parágrafo).
(3) “Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de
uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me
casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei na vagação, no rio, no
ermo — sem dar razão de seu feito”. (Trecho do décimo primeiro parágrafo).
(4) “Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado.
Porquanto que ele me pareceu vir: da parte do além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.” (Trecho
do décimo quarto parágrafo).
28
parágrafos (e em outros) serão analisados e interpretados posteriormente. No momento,
convém apenas apontar a gradação poética e emotiva.
Todos eles apresentam força conotativa e intensidade expressiva, mas há uma
gradação de poeticidade ascendente entre eles. A conotação do primeiro parágrafo é forte,
graças às convergências estilísticas de som, do léxico e da frase. A expressividade da frase
nominal, a convergência estilística de “ralhava e regia”, o uso dos pronomes adjetivos
possessivos no plural, e, principalmente, a força conotativa do particípio “sido” (que será,
como todos os outros efeitos citados, interpretada posteriormente) aliam-se à narração
sintética da primeira parte do conto, que tematiza a vida normal do pai. Todos esses fatos
estilísticos exemplificam a concentração de elementos poéticos do trecho (ainda que não se
verifique, no caso, emotividade doeu” narrador). A harmonia imitativa presente, por
exemplo, no oitavo parágrafo, com suas pausas, seguidas da aliteração de consoante plosiva
sonora /d/, confere ao trecho um ritmo característico da poesia (representando o susto, o
sobressalto), que também se manifesta em polissíndetos, que, no caso, ajudam a configurar
a perplexidade do narrador. No décimo primeiro parágrafo, irrompe, de maneira enfática, o
uso da primeira pessoa, antecipando a melancolia da última parte. A emoção do eu,
presente nesse trecho, tem relação com a transitoriedade, a mudança rápida dos tempos
(note-se a utilização de verbos de ação, em contraposição ao “permanecer”, que tem como
sujeito o “eu” do narrador) e com o seu sentimento de abandono. No penúltimo parágrafo,
a melancolia potencializa-se graças à culpa que o eu narrador sente, por não ter seguido o
pai, na canoa: a poeticidade e musicalidade do trecho (expressa, dentre tantos outros fatos,
analisados posteriormente, na repetição do gerúndio “pedindo” e na aliteração da plosiva
/p/) remetem a cantos religiosos de perdão.
Portanto, no conto, várias marcas estilísticas pertencentes ao gênero lírico
(“significado adjetivo dos gêneros”), apontadas por ROSENFELD (2006):
“À intensidade expressiva, à concentração e ao caráter ‘imediato’ do poema lírico,
associa-se, como traço estilístico importante, o uso do ritmo e da musicalidade das
palavras e dos versos. De tal modo se realça o valor da aura conotativa do verbo que este
chega a ter muitas vezes uma função mais sonora que gico-denotativa”. (ROSENFELD,
2006: 23) .
29
Temos usado e citado, até aqui, alguns conceitos que merecem um olhar ainda mais
específico: “confluência e consumação de fatos estilísticos dos diversos níveis da língua”;
“as rias conotações (...)” (MOISÈS, 1995: 405); a complexidade emotivo-rítmico-
conceptual do ‘eu’” (MOISÉS, 1995: 405); “a extrema intensidade expressiva”
(ROSENFELD, 2006: 22); “[realce do] valor da aura conotativa do verbo” (ROSENFELD
2006: 23); “intensidade expressiva (...) concentração” (ROSENFELD, 2006: 23).
Guardadas as diferentes especificidades conceituais, todas essas locuções parecem apontar
para o conceito de convergência estilística, proposto por Marouzeau, e estudado,
pontualmente, por RIFFATERRE (1973). Tal conceito pode ser definido como um
“amontoado de traços estilísticos, que atuam juntos”:
“Ao falar de agrupamentos estilísticos, não me refiro a fenômenos como a
expressividade fônica, em que os sons parecem o eco do sentido das palavras (harmonia
imitativa). O efeito do processo estilístico supõe uma combinação de valores semântico e
fônico; um sem o outro é apenas potencial. Quero referir-me à acumulação, num ponto
determinado, de vários processos estilísticos independentes. Isolado, cada um seria
expressivo por si mesmo. Em conjunto, cada processo estilístico acrescenta sua
expressividade à dos outros. Geralmente, os efeitos destes processos são convergentes,
numa ênfase toda particular”. (RIFFATERRE, 1973: 59).
A convergência estilística “diminui o limite de perceptividade do processo
estilístico” (RIFFATERRE, 1973: 60), tornando mais explícitos os fatos estilísticos que,
acumulados, são potencializados: dificilmente, fatos estilísticos convergentes passam
despercebidos ao leitor.
Portanto, a convergência estilística pode fazer com que o autor controle, em parte, a
decodificação, isto é, ao acumular fatos estilísticos num mesmo trecho, o autor
praticamente obriga seu leitor a observar atentamente cada um dos fenômenos expressivos
que compõem o excerto. Além disso, a convergência pode ser vista como uma prova clara
da intenção do autor:
“(...) a convergência é o único processo que podemos descrever como um processo
consciente; mesmo que a convergência seja fortuita, ou tenha sido formada de início
inconscientemente, não pode escapar do autor quando este relê”. (RIFFATERRE, 1973:
60).
30
Por fim, cabe dizer também que a intensidade poética da prosa de Guimarães Rosa
já foi um tópico apontado pelos estudiosos da obra do autor. XISTO (1970: 09), por
exemplo, ao referir-se à obra de G. Rosa, fala em “prosa-poesia” e acrescenta:
“A poesia não se nega ao romancista. Ela se emancipou (...). A poesia que,
embora arte primitiva da palavra, refoge às convenções verbais. A poesia, essencialmente,
um valor, adimensional, ao invés de dimensões estereotipadas e dispersas. A poesia que é
mais uma intensidade do que uma extensão. A poesia que se toda num momento.
Substância-forma”. (XISTO, 1970: 12).
Essa opção pela escrita poética, que se como resultado de uma fuga das
convenções verbais, em busca de uma matéria ainda não nomeada, associa-se ao que
acontece com “nosso pai”, que opta por sua busca pessoal, no meio do rio, em detrimento à
vida “normal” dos valores consagrados das margens. O personagem, de certa forma, foge
das convenções sociais tidas como racionais e opta por uma terceira via, inexplorada,
misteriosa. O narrador, apesar do seu distanciamento quanto às silenciosas convicções do
pai, vê-se diante de situação tão única e inusitada e precisa também moldar seu discurso,
que deve apresentar-se único, dotado de uma linguagem primeira. Ou seja: o narrador
também precisa buscar uma postura diferente no narrar, um modo diferente do falar.
Obviamente, a poeticidade não é característica única de “A terceira margem do rio”.
A grande maioria dos exemplos de XISTO (1970) é retirada de Grande Sertão. Mas, nas
Primeiras estórias, vários outros contos apresentam-se igualmente poéticos: em “As
margens da alegria”, por exemplo, a poeticidade relaciona-se ao modo como o menino vê o
mundo que se lhe apresenta, pela primeira vez. O garoto entra em contato, pela primeira
vez, com as pulsões de vida (e morte); assim, as pequenas coisas, que lhe são reveladas,
precisam ser nomeadas de forma inusitada, surpreendente.
A idéia, abordada por XISTO (1970), de poesia como uma “linguagem primeira”,
encontra respaldo também em outros autores. Segundo CANDIDO (1996: 70),
“Vico, 1730, lançou a hipótese de que a linguagem figurada, ou poética, era
primitiva; que os homens passaram dela à linguagem racional; que ambas não são duas
realidades distintas, mas intimamente vinculadas; e que, portanto, as imagens não eram
‘enfeites’ do discurso, como pensavam os retores, mas elementos viscerais da expressão,
que através delas se efetuava. Esta teoria ousada e brilhantíssima é precursora dos pontos
31
de vista que hoje temos a respeito do assunto, mas ficou mais de um século no
esquecimento. É com base nela que um discípulo distante de Vico, Benedetto Croce, utiliza
a palavra ‘poesia’ como indicativa de todas as formas de criação literária, independente
de meios como o verso e a prosa (...)”.
Portanto, definir “poesia” simplesmente como uma escrita em versos é reduzir o
alcance da idéia do poético. A poesia não se limita aos versos e nem sequer à linguagem
verbal, podendo estar presente até mesmo em obras de outras linguagens. Poesia é, antes de
tudo, uma atitude frente ao mundo. Reconhecer as marcas do poético numa obra é etapa
importante da heurística:
“(...) reconheceria Euryalo Cannabrava que, ‘na verdadeira arte’, -- ‘as palavras
surgem’—‘frescas como as flores e ágeis como os pássaros, nem nenhum traço de desgaste
pelo uso ou pelo hábito’—‘aquele elemento de frescura e surpresa que caracteriza as cousas
geradas pelas forças naturais’. E, assim, o reconheceria, por haver postulado que o
problema fundamental da crítica de poesia consiste em investigar as propriedades da
linguagem que possibilitam o surto das estruturas líricas’”. (XISTO, 1970: 13).
A estrutura de um trabalho baseado na análise estilística (e em nenhum outro
método de análise) não é única, nem dada, como regra, a priori: ela deve variar conforme
as exigências da obra que analisa. O método de análise é o mesmo, mas a forma como é
feito deve atender às características da obra analisada. A poeticidade presente em “A
terceira margem do rio”, a necessidade de estudar a construção do poético no conto, a
concentração e a convergência dos muitos fatos estilísticos são características do texto
analisado. Tais aspectos impõem uma tentativa de análise que procure percorrer, de
maneira detalhista, cada um dos parágrafos constituintes do conto.
Assim, cabe anotar que a estrutura final do trabalho, seguindo o conto, de fonema a
fonema, palavra a palavra, frase a frase, parágrafo a parágrafo, é resultado de um
processo, que, primeiro, passou pelo levantamento dos fatos estilísticos, para depois
analisá-los. Tal opção estrutural não foi concebida de maneira instantânea: não foi
concebida como um fichamento de fatos estilísticos atomizados por interpretações pontuais
e desconexas com o todo da obra. Ao contrário, buscamos manter uma linha de
interpretação que perpassasse o microcosmo do fato estilístico da pequena unidade do
parágrafo, contivesse as características da parte a que pertence o parágrafo e refletisse
32
aspectos do todo do conto, a unidade maior em análise. Em outras palavras, pretendemos
apresentar uma análise que percorra o círculo hermenêutico de Spitzer, encontrando, no
microcosmo de cada parágrafo, elementos formais expressivos que compusessem um
cenário maior (cada uma das partes do conto apresenta uma tonalidade diferente, uma
característica própria: normalidade e tom de neutralidade aparente na primeira parte;
mistério e tom de perplexidade na segunda parte; melancolia e tom trágico na terceira),
que, por sua vez, integra a obra como um todo (adequação e inadequação, aspectos que
caracterizam vários personagens, inclusive o narrador).
33
PARTE II
ANÁLISE ESTILÍSTICA
1. Sobre o título do conto.
no título, podem-se destacar inúmeros fatos estilísticos. O uso do artigo definido
“a”, apresentando o referente terceira margem do rio”, pode ser considerado não usual.
Com efeito, o referente, não apresentado, não poderia ser singularizado logo de início, em
que a omissão do artigo talvez fosse mais normal. Entretanto, inicialmente, o conto
singulariza, individualiza e torna única a terceira margem do rio”: na verdade, o artigo
singulariza um elemento que causa estranhamento no receptor que ainda não leu o conto. O
receptor não consegue montar uma imagem visual do sintagma “terceira margem do rio”, já
que procura, no mundo, um referente que a lógica e a racionalidade não lhe fornecem: o rio
tem apenas duas margens, opostas e contrastivas (direita e esquerda). Inclusive, um leve
resquício de demonstrativo, no referido uso do artigo definido, no sintagma: “a terceira
margem do rio”. Segundo CUNHA E CINTRA (1985: 206), um dos empregos particulares
do uso do artigo definido é aquele que funciona como um demonstrativo, fato, que, aliás,
pode ser explicado pela Gramática Histórica: o artigo definido provém do pronome
demonstrativo latino ille, illa, illud. Em “A terceira margem do rio”, esse demonstrativo
serve ainda para indicar, demonstrar, apontar uma margem que não se situa nem à
esquerda, nem à direita, que são as margens normais, as margens da razão e da gica. A
34
esse respeito, GALVÃO (1978: 38) mostra a importância do uso do numeral ordinal
“terceira”:
As duas margens do rio situam-se em firmes e reconfortantes coordenadas de
tempo e espaço; a terceira escapa para uma dimensão desconhecida. O simples
deslocamento do numeral cardinal para o ordinal retira o chão de debaixo dos pés. O rio
tem duas margens, de igual estatuto, não uma primeira e uma segunda margem. A
mudança para o ordinal incide ainda numa seriação e numa outra temporalidade.”
Em “A terceira margem do rio”, ocorrem dois percursos conotativos (singularizados
e apontados pelo artigo definido, com um enfraquecido mas existente efeito
demonstrativo). O primeiro pode ser entendido como uma metáfora. Lido o conto, a
“terceira margem do rio” seria a canoa. Houve uma transposição de sentido, uma relação de
analogia. A canoa, permanente no rio, é uma espécie de “risca terceira”
15
, e forma, por isso,
uma terceira margem, em pleno leito do rio. Mas isso ainda não é capaz de descrever o
poder simbólico que o título apresenta. Além de metáfora, “a terceira margem do rio” pode
ser entendida como uma alegoria, construída de modo detalhista no interior do conto.
Segundo MOISÉS (1995: 15), a alegoria é um discurso que faz entender outro, e que, vista
na narração (que, aliás, é a forma principal de concretização do mundo abstrato), equivale a
uma seqüência logicamente ordenada de metáforas: o acordo entre o plano
concreto e abstrato processa-se minúcia a minúcia, elemento a elemento, e não em sua
totalidade”. (MOISÉS, 1995: 15).
É essa construção simbólica que tentaremos acompanhar parágrafo a parágrafo,
linha a linha, como requer a análise estilística. A terceira margem pode ser entendida como
a terceira opção, além da razão e da aparente normalidade da vida cotidiana, que nubla as
verdades principais do homem, bem como sua busca consciente.
16
15
“Risca terceira” é uma metáfora encontrada na canção de Milton Nascimento e Caetano Veloso, inspirada
pelo conto (e que também é a canção-tema do filme homônimo de Nelson Pereira dos Santos).
16
“A terceira margem do rioé talvez uma das obras que mais interpretações pode gerar. É uma das obras
mais abertas da literatura brasileira, em que a dúvida e a imprecisão estão tematizadas no conto (são, afinal, os
fatores que geram a perplexidade do narrador, na segunda parte do conto), o que também não quer dizer que
toda a interpretação é, a priori, possível. Como apontamos no início do trabalho, baseados em PASTA
JÚNIOR (1999), um mistério e um enigma misturados, no conto (e talvez em toda obra rosiana). Dessa
forma, não cabe ao receptor saber ou nomear aquilo que nem sequer o narrador sabe ou, mais
precisamente, aquilo que não está, explicitamente, revelado no texto. Por outro lado, inevitavelmente,
coloca-se essa interrogação também ao leitor, ao crítico e ao estudioso. A interpretação geral e aberta que se
35
2. Primeira Parte do Conto: A “Normalidade flagrada”.
Primeiro Parágrafo: O “positivo” contra o “sido”.
“NOSSO PAI
17
era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde
mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei
a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais
triste do que os outros, conhecidos nossos. quieto. Nossa mãe era quem regia, e que
ralhava no diário com a gente minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia,
nosso pai mandou fazer para si uma canoa.” (ROSA, 1988: 32).
A primeira parte do conto, que pode estar representada por este primeiro parágrafo,
relaciona-se à primeira fase da vida do “nosso pai”. Resumem-se, nestas rápidas seis linhas,
a posição de um homem e seu cotidiano, de anos corridos, da infância à fase adulta. Todos
os recursos estilísticos utilizados nesse parágrafo envolvem o receptor num “círculo do
sim”, que é a afirmação do papel social que o homem (“nosso pai”) tinha na sociedade: o
sentido de neutralidade pessoal em prol de uma existência social “cumpridora”.
buscou, nesta dissertação, calcada também nos textos de apoio citados ao longo do trabalho, não é,
obviamente, a única possível. Com essa nota, apenas chamamos a atenção para o caráter de imprecisão do
conto (seu caráter difuso, e/ou “diluso”, para usar o neologismo contido na narrativa), aspecto nem sempre
observável nos ensaios consultados, mesmo entre estudos nucleares sobre esta obra, como GALVÃO (1978:
38): “Assim, os símbolos da margem, do rio e da canoa, afora a importância que têm na obra deste autor, são
imemoriais em sua utilização e desencadeiam um rastilho de significados precisos.” (o destaque em negrito é
nosso).
17
Todas as transcrições foram retiradas da edição de ROSA (1988). Os itálicos, as maiúsculas e outros
grafemas foram rigorosamente copiados da edição mencionada. O fato de escrever “nosso pai” em
maiúsculas, embora destaque os termos que, como veremos, serão importantes fatos estilísticos, parece-nos
uma convenção da edição, que colocou em maiúsculas as primeiras (ou a primeira, dependendo do caso)
palavras de cada conto, e não um desejo do autor isso ocorre também na edição de ROSA (1968). Já no
caso dos itálicos, pode-se dizer com certeza que isso foi uma decisão do autor.
36
O primeiro fato estilístico verificado no trecho diz respeito ao sujeito “nosso pai”.
muitas interpretações, que se combinam e, juntas, ajudam a formar a complexidade
estilística que envolve a construção. O substantivo “pai” é pluralizado pelo pronome
adjetivo possessivo nosso”. Ora, o narrador, falando de seu próprio pai, poderia usar o
possessivo de primeira pessoa do singular “meu”. Entretanto, prefere o uso de nosso”, não
somente para indicar que ele tinha outros dois irmãos, como afirma ainda no primeiro
parágrafo. Em “nosso pai”, imprime-se uma sensação do forte peso das relações sociais e
familiares ou, nas palavras de GALVÃO (1978: 40),“o sábio uso do possessivo plural
(...), unido à omissão cuidadosa dos nomes próprios, ressalta o peso das relações de família
e de geração, aplastando a individualidade” aliada à alegorização do “pai”, que,
portanto, também é o pai do receptor. Por trás desse procedimento, o narrador faz incluir
em seu discurso também a significação que o “pai” tem na sociedade brasileira real, onde o
leitor está inserido. É em relação a esse papel tradicional de pai” que se vai operar a
mudança do personagem.
Os adjetivos “cumpridor, ordeiro, positivo” formam uma seqüência gradativa que
desembocam numa isotopia do sim, baseada na idéia dos papéis sociais designados ao pai.
Além disso, veremos que a seqüência dos adjetivos aponta para a idéia de perda do traço
semântico de agente essa é uma idéia está bastante marcada no trecho e culmina no uso
isolado do particípio “sido”, que será analisado também. Note-se que o termo “cumpridor”
pediria um complemento nominal, que não é realizado. Essa não realização de um
sintagma, num espaço argumental que o nome “cumpridor” exige, é também bastante
expressiva (e define, no caso, a confluência, a convergência estilística que existe na
seqüência em questão: estilística da palavra, quer na escolha léxica dos adjetivos em
questão, quer no uso dos morfemas que serão mencionados a seguir, e da frase, quanto à
ordem dos adjetivos, formando uma gradação e quanto à não realização do complemento
nominal
18
). Generaliza-se, assim, o campo semântico de cumpridor” e se potencializa a
sugestão de harmonia social do homem que, a todo o momento, exerce a função que a
18
Como foi mencionado na primeira parte desta dissertação, nosso trabalho não faz um recorte de nenhum
dos níveis de linguagem para analisar o estilo. Pretenderemos estar sempre atentos à convergência,
confluência estilística, sobre que chama a atenção RIFFATERRE (1970). Com efeito, a escolha de uma
palavra às vezes é motivada por vários aspectos, que não somente o léxico em si, mas o próprio som, sua
força na frase. A combinação desses fatores, e não um fator isolado, é o que pode explicar muitos fatos de
estilo da prosa analisada.
37
sociedade lhe destinou. Em “cumpridor”, o adjetivo tem um caráter de agente (ainda que o
complemento não se realize, fato que já foi interpretado). Em “ordeiro”, também há a noção
de agente, adjunta à qualidade, que “ordeiro” não é somente aquele que tem sua vida em
ordem, em harmonia, mas também aquele que e ordem, aquele que é sinal e imagem de
ordem. Já “positivo” não apresenta papel de agente, mas é a imagem mais clara do sim, fato
que, como vimos, caracteriza o parágrafo. Portanto, cumpridor”, “ordeiro” e positivo”
caracterizam a figura do pai como integrada ao funcionamento gico da vida nas margens,
mediada sempre por convenções e regras que devem ser aceitas e cumpridas. O homem que
“nosso pai” era “desde mocinho e menino” era o homem que a sociedade esperava dele, sua
existência era ser “cumpridor, ordeiro e positivo”, seguir o papel e a função que a sociedade
lhe prescrevia.
O “sido” da oração seguinte é também altamente expressivo. Nesse primeiro
parágrafo, como temos visto, vários efeitos estilísticos sintáticos, que, no entanto, não
resultam propriamente de rupturas ou desvios, fato que se verifica no restante do conto.
Essa regularidade maior do comportamento das frases do primeiro parágrafo sugere
também a harmonia social a que nos referimos acima. Em “(...) e sido assim desde mocinho
e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas”, não ocorre grande ruptura
sintática, porém a elipse do verbo auxiliar, na perífrase, onde se utiliza o tempo pretérito
mais que perfeito composto, “[havia/tinha] sido”, é de se ressaltar. A elipse do verbo
auxiliar faz recair a atenção do receptor para o verbo principal, que deixa de ser somente
um verbo de ligação para ecoar outros sentidos mais expressivos. Embora seja,
gramaticalmente, um verbo de ligação, o uso específico do verbo apresenta contornos
metafóricos: “ser” é entendido, aqui, como “afirmar-se enquanto ser”. Mas, como o verbo
está no particípio, o sujeito ele” (“nosso pai”) não apresenta traço de agente. Assim, o
referente nosso pai” é caracterizado de maneira passiva. Além disso, sido” forma um
contraste com tempo utilizado no verbo anterior: “era” X “sido”. “Nosso pai” é definido
pela negação pela primeira vez, mesmo que ainda não apareça nenhuma palavra de
negação. “Nosso pai” é aquele que não é, que não se afirma enquanto ser. É aquele que
não desempenha um papel ativo. Vimos que, na gradação dos qualitativos, mencionada
acima, o principal aspecto referente à ordem escolhida dos adjetivos está justamente na
perda gradativa da função de agente. Na frase, essa perda chega à máxima caracterização,
38
no uso da forma verbal “sido”, com o verbo auxiliar (“tinha” ou havia”) elíptico, em vez
da mais usual forma com expressividade neutra “foi assim desde (...)”. Ou seja, durante
toda a vida daquele homem, exercendo o papel social que lhe cabia, ele não se afirmou
enquanto ser humano, não realizou, não pôs em prática, sua busca pessoal.
Embora menos evidente, a massa sonora do trecho cumpridor, ordeiro, positivo; e
sido assim desde mocinho e menino” talvez apresente algumas possibilidades expressivas
19
.
Mas as marcas do “sim” não se referem somente ao “nosso pai”. Em
“testemunharam as diversas sensatas pessoas”, o uso da palavra “testemunharam” mantém
alta a tensão formal que já se criou, devido às muitas contradições anotadas acima, mas,
principalmente, confere à apresentação a gravidade que o narrador busca. “Testemunhar” é
antes um ato de formalidade e de honra. O uso do adjetivo “sensatas” (devidamente
destacado pela sua anteposição em relação ao substantivo: “sensatas pessoas”) mostra que a
sanção das muitas pessoas em relação ao pai era igualmente positiva — da mesma maneira,
como ele fora “desde mocinho e menino”. Ou seja, o “nosso pai” pertencia a um grupo
sensato, estava integrado a ele. A imagem de sensatez é bastante importante para o conto.
Ao atirar-se para uma terceira margem, “nosso pai” não será mais tão sensato, pois não
trabalhará com o mecanismo ocidental de razão. Note-se que o primeiro parágrafo é o
espaço que, embora contenha os índices da negação e da especificidade da figura do pai,
pontua a vida racional e sensata, a opção que será negada, a norma que será desviada.
Essa sugestão de grau intermediário é expressa na frase seguinte: “do que eu mesmo
me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos
nossos.”. A marca de oralidade regional está no uso da variante (diatópica ou horizontal)
“alembrar”, preferida a “lembrar”.Segundo MARTINS (2001: 20), “são deveras freqüentes
na ling. [linguagem] de GR [Guimarães Rosa] vocs [vocábulos], que, como este,
apresentam a prótese do /a/.”. O termo “estúrdio”, segundo MARTINS (2001: 214), é muito
usado por Guimarães Rosa. Não tem, nesse caso, teor pejorativo, como em alguns
19
A sonoridade do trecho aureola a apresentação do personagem, com um ritmo bastante marcado pela
sonoridade da agudeza da vogal /i/, que pode traduzir, no plano fonoestilístico, a interioridade do homem que
ainda não iniciou sua busca pessoal, e que, no fundo, é o grande tema do conto. Note-se a sutil assonância,
que se caracteriza pelo mesmo som presente nas sílabas em posição tônica (e que, no caso, se estende em
posições átonas, como em “cumpridor” ou o primeiro /i/ de “positivo”): cumpridor, ordeiro, positivo; e sido
assim desde mocinho e menino (sublinharam-se as sílabas tônicas; em negrito, destacou-se a assonância do
/i/). Embora menos evidente, mais sutil, é sintomática essa presença recorrente da vogal /i/, que está
destacada, como podemos ver.
39
exemplos colhidos pela autora, que não informa se a palavra é um regionalismo ou não.
Para ela, o vocábulo, “segundo J. P. Machado, se relacionaria com o lat. pop. [latim
popular] ‘exturdire’, ‘ter o cérebro estonteado como um tordo ébrio de uvas’.”. Já
FERREIRA (1986) e HOUAISS (2001) apontam a palavra como um regionalismo de
Minas Gerais e São Paulo. Quanto à etimologia do termo, ambos os dicionários dizem que
ela é incerta ou obscura, mas HOUAISS (2001)
explicita uma relação da palavra com o
francês étourderie (1675) 'irreflexão, leviandade, desatino, despropósito, travessura,
doidice', der. [derivado] de étourdir (s [século] XI) 'aturdir, estontear, atordoar', prov. do
lat. [provavelmente do latim]*exturdire, de turdus,í ”.
Pode-se também anotar uma antítese entre o termo “estúrdio” e “triste”. Embora não
sejam antônimos no sentido mais radical, têm aspectos contraditórios: “estúrdio”, que
significa “travesso, leviano, estouvado (LELLO, 1961: 502), sugere movimento,
inquietação, ao passo que triste” sugere situação estática, reflexiva. De qualquer maneira,
o paralelismo coesivo utilizado “não/ nem mais” demonstra o grau mediano que caracteriza
o “nosso pai”.
O verbo “figurar” também pode ser apontado como um fato estilístico. Em
“figurar”, e em seu cognato figura”, a sugestão de uma imagem voltada e configurada
para os olhares sociais, não para a afirmação da personalidade, da intimidade
20
. A imagem
contida numa figura é, antes de tudo, um simulacro, não o próprio referente. O verbo
utilizado é, pois, marca da adaptação do pai ao mundo da normalidade vigente.
A frase nominal “Só quieto.” introduz a especificidade do herói: quietação,
silêncio. Pode, talvez, ser entendida como uma frase-idéia, um monorema, como lembra
MELO (1976: 123)
21
. A sua extensão e o monossilábico advérbio intensificador “só” dão a
ela grande força expressiva de representação da quietude e do silêncio.
20
Essa idéia pode ser comprovada em uma acepção encontrada em FERREIRA (1986), para “figurar”:
“aparentar, fingir”, palavras com significados mais diretos, estilisticamente inapropriadas neste caso, mas que
estão presentes no universo semântico de “figurar”.
21
Talvez seja impróprio classificar a frase “Só quieto.” como monorema, se levarmos em conta que os
exemplos desse tipo de frase inorgânica dados pelo autor mencionado são sempre exclamativos. Ao contrário
de “Ladrões!”, “Fogo!”, em “Só quieto.”, sobreleva, não um tom de espanto, ou de alerta, mas um tom
reflexivo, único, de quietude, de silêncio, de frase terminada para deixar que a pausa (que também é um
elemento musical e rítmico) sugira a si mesma. Entretanto, achamos que a frase em questão pode ser
definida sim de um monorema, que é uma frase inorgânica, não organizada, que traz uma única idéia,
constituindo, pois, uma frase-idéia.
40
É somente na quarta frase do primeiro parágrafo que se fala, pela primeira vez, de
outros personagens: “Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente
minha irmã, meu irmã e eu.”. A utilização de dois verbos marca nova confluência
estilística. Os verbos “regia” e “ralhava” referem-se a uma posição de poder, cujo cimo era
ocupado pela “nossa mãe”. Destaque-se a força desses verbos, quer nos seus significados
de autoritarismo (por exemplo: em “ralhar”, lê-se, no HOUAISS (2001), “repreender
severamente, com tom de voz elevado, admoestar”), quer no seu plano fônico: o fonema
vibrante /r/ é reiterado, o que constitui uma aliteração bastante singular. Como uma regente
de orquestra, a mãe é apresentada como aquela que ocupa o palco das repressões e das
coerções
22
. O verbo “ralhar” é um regionalismo que nos remete a um mundo mais
arcaizante, de professores e palmatórias. Essas duas ações mostram papéis normalmente
ocupados pelo pai; do narrador insistir no uso de uma locução expletiva: “era quem”.
no primeiro parágrafo, este é mais um índice da especificidade da figura do pai: este,
embora cumpridor e ordeiro, estava algo distante da agressividade da sociedade patriarcal
brasileira, onde cabiam ao homem as sanções, os mandos e desmandos. Na “Conclusão”
deste trabalho, retomaremos esta interpretação, ao tentarmos rebater uma idéia de
GALVÃO (1978).
Julio Cortázar propôs uma formulação teórica do tipo de conto que desenvolveu: o
chamado conto breve. Algumas de suas considerações são pertinentes, se considerarmos
este conto de G. Rosa. Segundo CORTÁZAR (1974), o “conto é irmão misterioso da
poesia, em outra dimensão do tempo literário”. Fazendo uma comparação entre romance e
conto, o ensaísta mostra que, enquanto o primeiro acumula seus efeitos no leitor, o conto
deve ser impactante, “incisivo, mordente, desde as primeiras frases.”. Assim como a
fotografia, ele deve ganhar a luta por nocaute, ter a capacidade de apresentar as questões-
limite: não pode, tal como o romancista, “proceder acumulativamente, pois não tem o
tempo por seu aliado; seu único recurso é trabalhar em profundidade, verticalmente”. Esses
aspectos, no fundo, ajudam ainda mais a esclarecer os fatos estilísticos observados nesse
primeiro parágrafo, em que se resume a posição do nosso pai” diante de sua primeira
22
A figura da mãe, secundária, mas bastante importante, é menos esférica que a figura do filho. Sua posição
de rigidez, no entanto, será relativizada em algumas frases, no decorrer do conto, como ocorre em: “Surpresa
mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, se encobrindo de não saber; ela mesma deixava,
facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir (...)”.
41
metade da vida: sua vida antes da busca pessoal conta apenas com nove linhas. Os fatos
estilísticos, que selecionamos (uso dos adjetivos, gradação, uso dos pronomes, léxico
utilizado, tipo de frase, uso de verbos, sons expressivos e aliterantes) e observamos,
mostram essa “normalidade flagrada”, que foi a bandeira dessa metade da vida do “nosso
pai”. Mas também se notam fatos de estilo que antecipam uma idéia de um “estar no
mundo” cheio de inadaptação (a elipse e o uso de certos tempos verbais, a frase nominal
anotada, entre outros). A ausência de descrição de longas peripécias, aliada à força da
tensão formal que se estabelece, ao mesmo tempo, remetem-nos à consumação que
caracteriza a poesia — o estilo de prosopoema que mencionamos no início do trabalho — e
o conto breve, como formula CORTÁZAR (1974).
23
3. Segunda Parte do Conto: Tons de Perplexidade e Mistério.
Segundo parágrafo: Apresentação da canoa.
“Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com
a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada,
escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta
anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se
ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo,
ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de gua: o rio por se estendendo
23
No início do trabalho, referimo-nos aos contos de Rosa como fábulas. Visto que nos referíamos ao sentido
grego de bula, como mito, não vemos inconvenientes em talvez classificar alguns contos de Rosa como
pertencendo ou beirando o gênero de conto breve. Mas fazemos uma diferenciação: o conto breve não
apresenta a linearidade cronológica que se verifica em “A terceira margem do rio”. De qualquer maneira,
acreditamos que as conexões entre esse conto e o gênero “conto breve” são bastante válidas, especialmente se
lembrarmos a consumação e a forte tensão formal do primeiro parágrafo.
42
grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E
esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.” (ROSA,1988: 32).
A oração adversativa, com que o narrador termina o primeiro parágrafo, marca a
mudança de tema (vinha narrando o modo como o pai sempre foi, durante toda a primeira
parte de sua vida), mas também de tonalidade afetiva. Num primeiro momento, não haveria
razões para o uso da adversativa: afinal, a confecção de uma canoa não constituiria um
contraste com o que estava sendo descrito. No caso, entretanto, o conectivo “mas” não está
esvaziado de seu significado de oposição. Com efeito, o “mas” sugere uma mudança brusca
e única na vida daquele homem.
Um novo tom se coloca: é o tom da surpresa e do mistério. Imediatamente, ao ler
“canoa”, na frase que se inicia com “mas” (ainda no primeiro parágrafo), o receptor é
assaltado por um estranhamento. A descrição e narração resumidas, tensas, totalizando uma
vida, terminam com um termo bastante objetivo, individualizado, prosaico até: canoa. Toda
a abstração do primeiro parágrafo (lembremos a não realização do complemento nominal
em relação ao termo “cumpridor”) culmina com a concretude do substantivo comum
“canoa” e desse choque produz-se um estranhamento por parte do receptor.
Tamanho é o estranhamento que o narrador ainda confirma o feito com uma rápida
frase, como a tentar convencer o receptor: a frase “Era a sério.” marca um desvio da norma
padrão, que sugeriria era sério”, sem a preposição, entendendo sério” como predicativo
de um sujeito oculto, subentendido (“aquela situação”, ou seja, a construção da canoa).
Pode ser visto como uma marca de oralidade. Pode-se dizer que a preposição adverbializa o
adjetivo. Além dessa possibilidade, a palavra “sério” confere certa gravidade à ação (algo
“absurda”, pelo menos aos olhos da normalidade vigente) do pai. O sintagma é também
sinal do surpreendente e do misterioso, e o primeiro fato estilístico que caracteriza o
elemento mágico que desvenda a realidade.
Se, como vimos, no primeiro parágrafo, o narrador não se deteve em nenhuma
descrição alongada de nenhum objeto, nem de narração detalhista de nenhuma peripécia
relevante naquela primeira metade da vida de “nosso pai”, aqui, a posição é oposta. A
canoa é bastante pormenorizada, detalhada, apresentada. Todas as caracterizações da canoa
são fatos da estilística léxica: “especial” é o melhor exemplo da especificidade da canoa,
43
em todos os sentidos, quer no tamanho, quer na sua simbologia. A “canoa”, como vimos, é
a terceira margem do rio (no primeiro percurso conotativo), pois forma a terceira risca, a
terceira beira. Assim como ocorreu em “a terceira margem”, ela também será alegorizada.
Não se trata de uma mera canoa, de uma simples embarcação. A canoa fundir-se-á ao
homem no decorrer do conto, será o objeto único, “pequeno” (terceiro adjetivo usado),
despojado, que permitirá ao homem lançar-se na sua busca, longe da materialização que a
sociedade racional apregoa. Essa sugestão de pequenez está também no longo sintagma
adjetival: “mal com a tabuinha na popa, como para caber justo o remador.”. O sufixo “-
inha” sugere a sensação de pequenez, no plano morfológico. Cabe destacar também a
superior expressividade de “justo”, em detrimento a “justamente”. O fato de o advérbio
“justo” não ser construído com o sufixo “-mente” (“justamente”) não é exatamente o que
define a expressividade da forma utilizada, que esse é um fato lingüístico, corrente no
Português. A superior expressividade de justo”, que gostaríamos de destacar, tem relação
com o tamanho do vocábulo: se fosse construído com o sufixo formador de advérbios
“mente” (“justamente”), teríamos um vocábulo longo demais e isso seria, portanto,
incoerente com a sensação de pequenez e justeza que se quer sugerir. CÂMARA JÚNIOR
(1953: 68, 69) explica como o volume vocabular afeta a expressividade e,
coincidentemente, exemplifica a idéia com o caso dos advérbios terminados em “mente”:
“O volume vocabular contribui (...) para melhor frisar o volume da coisa
designada; e é este um resultado positivo dos advérbios em ‘mente’, que pode justificar, do
ponto de vista estilístico, o vezo de repetir à francesa o sufixo adverbial numa série de dois
ou mais advérbios (como em Cruz e Souza “Sonoramente, luminosamente”). O
resultado negativo é o uso dos advérbios desse tipo para indicar pequenez, pois
‘ficamos quase chocados’ — como anota Marouzeau ‘que um vocábulo de notável
extensão não tenha um significado proporcional à sua massa’.”.
Mas, ao lado do tamanho e das dimensões da canoa, outro caracterizador é sua
força. Apesar de pequena, a canoa deveria ser resistente. A adversativa introduz a nova
frase, e alguns efeitos, principalmente sonoros, concorrem para essa idéia de força. O
particípio utilizado em seqüência e entrecortado por pronome, adjetivo e advérbio, em
“toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo” visa a dar ao receptor a imagem da
44
canoa pronta, com toda a sua dureza e consistência
24
. O uso da palavra “rijo” é bastante
expressivo, não somente pela imagem táctil que ela evoca, mas também pela sua
constituição fonética que se inicia com a forte consoante vibrante /r/ (e talvez possa ser
entendida como aliterante, já que também apareceu nos adjetivos imediatamente anteriores,
“forte” e “arqueada”
25
). Outra aliteração existe em “dever durar”, destacando o efeito de
dureza, de rigidez, pela recorrência da consoante oclusiva sonora /d/.
Cabe destacar que os efeitos estilísticos sublinhados visam, imediata e
principalmente, a descrever a canoa, mas também, num segundo momento, a manter o tom
de perplexidade do narrador. Quando falamos da pequenez da canoa, e dos muitos
sintagmas adjetivais que mantém essa idéia, é preciso destacar que a descrição escolhida
acentua a perplexidade e, principalmente, o mistério que o narrador começa a construir (e
que também o envolve). O receptor faz a seguinte pergunta a si mesmo: qual seria a real
serventia daquela canoa especial, única? Ou ainda, o narrador, que já sabe o que vai
adiante, ainda se inquieta, e, na verdade, também é envolvido pelos tons de perplexidade e
mistério: como poderia uma canoa tão pequena e frágil sobreviver às intempéries da
Natureza? O que queremos mostrar é que a descrição da canoa, feita através dos fatos
estilísticos destacados, não é um mero fator de representação, arbitrário; é mais que isso, é
fundamental para as tonalidades afetivas que abundam nessa segunda parte do conto,
segundo a maneira como o dividimos.
Nesse sentido, destacaremos agora um fato da estilística léxica e outro da estilística
da enunciação, que caracterizam a posição de “nossa mãe” em relação à construção da
canoa. Veremos que o tom existente no discurso indireto livre, na sua atitude de
racionalização, tenta desfazer o mistério que, no entanto, persiste. O uso da construção
“jurou contra”, em “Nossa mãe jurou muito contra a idéia”, em vez de “esconjurou”, é
24
Note-se, mais uma vez, a brevidade do conto: na frase anterior, a canoa fora encomendada, na seguinte, ela
estava pronta. Além dos efeitos que discutimos, a brevidade do conto pode ser, pois, verificada pelos fatos
estilísticos levantados, no caso, o uso dos particípios, oferecendo ao receptor a imagem visual da canoa
pronta, já construída.
25
Alguns lingüistas e estilólogos entendem como aliteração apenas quando os sons consonantais iniciais se
repetem. Seguiremos, entretanto, a orientação de outros estudiosos, segundo os quais a aliteração, por tratar
do constructo sonoro, é qualquer repetição de sons consonantais, independentemente de sua posição na
palavra. No caso específico de “forte, arqueada em rijo”, pode-se talvez objetar contra a classificação do
efeito aliterante, por não estar tão destacada, tão intencional (se bem que o critério de intencionalidade é
muito difícil de validação objetiva). De qualquer maneira, a reiteração sonora existe, como vemos.
45
bastante sutil. Em “esconjurou” existe um apelo para a blasfêmia, para a incontida negação.
Ora, a “nossa mãe” do conto é um personagem enquadrado nas faces da sociedade, na
religiosidade que a sociedade tem como oficial. Não é mulher de esconjurar. Inclusive,
veremos que, mais adiante, a mãe chama um padre para este sim, com o poder que ela
acredita que ele tem — esconjurar. O uso de “esconjurar”, tendo como sujeito “nossa mãe”,
evocaria uma atitude ideológica e emocional que a “nossa mãe” não apresenta, pelo menos,
no momento. Em jurar contra”, a preposição significa o mesmo que o prefixo “-es” (de
“esconjurou”), mas o efeito evocativo é diferente. Não revela, nem pode revelar, por ser um
personagem que pertence à margem da razão e da comunidade, a negação da mãe em
relação à sociedade e seus valores (como “esconjurou” sugere). A posição de “nossa e”
não é a negação, como é a atitude do pai, é apenas uma posição firme contra uma atitude de
negação. É, portanto, uma atitude de afirmação, daí “jurar contra”, em vez de “esconjurar”.
Em “Seria que ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e
caçadas?”, existe um discurso indireto livre, que mostra a hipótese da mãe, sua fala, uma
pergunta que fez ao pai (que não responde). Mas sua atitude, longe de desfazer o mistério
do motivo pelo qual o pai constrói a canoa, antes ainda o potencializa. O receptor percebe
que aquela canoa “especial” não seria mesmo um objeto usado de maneira trivial, prosaica.
Além da enunciação, percebem-se outros fatos estilísticos: na questão frasal, note-se que o
sintagma “nessas artes” não é um instrumento comum de coesão referencial, pois não
retoma um referente, e sim o antecipa. Na verdade, a oração “nessas artes não vadiava” foi
deslocada de sua posição usual, que a ordem pica seria esta: “Seria que ele se ia propor
agora para pescarias e caçadas, se nessas artes não vadiava?”. Em vez disso, preferiu-se
destacar a oração com palavras que, no contexto, têm forte carga pejorativa: “nessas”,
“artes” (ironicamente pejorativa), “vadiava”. São palavras que sugerem ociosidade,
brincadeiras descompromissadas: no caso, o plural de “arte” afasta qualquer sensação
dignificante do objeto; aqui, “artes” significa “brincadeira reles”. A acepção 16 de
FERREIRA (1986) aponta: “Bras. [brasileirismo]. Traquinada, travessura. V. artes”
26
. Nas
várias acepções elencadas por HOUAISS (2001) para vadiar”, percebe-se também a idéia
26
Em “artes”, lê-se “aparelhos de pesca”. A idéia de pescaria também está, explicitamente, na fala da mãe. De
qualquer maneira, a atitude da mãe, nessa fala por discurso indireto livre, é de rebaixamento da opção do pai,
atribuindo à sua atitude um valor sempre pejorativo e prático (nunca simbólico).
46
de ociosidade: “viver na ociosidade, sem trabalhar, (...) entreter-se com jogos, brincadeiras,
passatempos; brincar; divertir-se”.
Entretanto, a essa pergunta feita pela mãe (dita ou não), o pai “nada não dizia”. O
fato estilístico mais importante da oração é o deslocamento do objeto direto “nada”, na
ordem direta do português (sujeito / verbo / objeto). No caso, o objeto direto aparece
deslocado, numa frase que retoma a idéia de silêncio e quietude que vimos no primeiro
parágrafo. A partir deste momento, o pai se resguarda para si, para sua busca pessoal e nada
mais diz. Nada mais tem a dizer para o mundo. É o mergulho profundo dentro de sua
própria interioridade. Essa idéia do silêncio será retomada muitas vezes no conto.
Nova gradação de adjetivos imprime o fato estilístico mais definidor da
perplexidade e do mistério do parágrafo: “o rio por se estendendo grande, fundo, calado
que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira”. O caráter espacial é
bastante aproveitado neste trecho, que descreve o rio, próximo à casa, em suas diversas
dimensões: comprimento (“grande”), profundidade (“fundo”), largura (“largo”). Essas
dimensões serão retomadas de alguma maneira no correr do conto. Em primeiro lugar, é
preciso destacar a plena convergência estilística do trecho gradativo. O som é bastante
explorado pela aliteração da consoante mole e nasal /n/ e pela assonância da vogal /e/,
nasalizada, em posição tônica (e átona): “se estendendo grande, fundo, calado que sempre”.
Essa aliteração e essa assonância, aliadas à conseqüente nasalização das outras vogais, /a/,
/u/, podem caracterizar efeitos sonoros que corroboram para a sensação de silêncio que
envolve o rio. A gradação dos adjetivos, sua ordem, aponta para uma personificação do rio:
“calado” é o rio, assim como o “nosso pai”. Na frase seguinte (“Largo, de não se poder ver
a forma da outra beira”), inorgânica, os elementos comparativos ficam elípticos
(organizando a frase, teríamos: “o rio era tão largo que não se podia ver a forma da outra
beira”), e surge apenas o essencial, o que sugere a sensação de impressionismo nessa
descrição poética. Com efeito, “largo” retoma a descrição das dimensões, com o sintagma
intensificador “de não se poder ver a forma da outra beira”. Mas as dimensões do rio e sua
personificação estavam contidas no uso do gerúndio e na escolha da palavra
47
“estendendo”
27
. O rio, com vontade própria e numa ação contínua, alarga-se, torna-se
maior, mais profundo, mais silencioso. Integra-se mais ao homem, e este ao rio. Graças aos
fatos mencionados, ao impressionismo que salta da descrição, aos adjetivos que dão ao
receptor a imagem visual de abrangência do rio e, principalmente, à sua personificação, a
caracterização do rio envolve-se num tom de mistério e perplexidade, que o rio não é
apenas um referente comum, está elevado à categoria de experimentador, de uma entidade
quase superior jamais inanimada. Note-se que o narrador também se envolve com a
grandiosidade do rio, quer física, quer espiritualmente.
Terceiro parágrafo: A decisão do pai e a fala de ordem da mãe.
“Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a
gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma
recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva
de pálida, mascou o beiço e bramou: --‘Cê vai, ocê fique, você nunca volte!’ Nosso pai
suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns
passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava,
chega que um propósito perguntei: --‘Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?’ Ele só
retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que
vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e
desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu indo a sombra dela por igual, feito um jacaré,
comprida de longa.” (ROSA, 1988: 32, 33).
Este terceiro parágrafo reúne algumas falas. O tom de mistério e surpresa acentua-se
de modo explícito (“O rumo daquilo me animava”), as frases ganham rupturas mais
constantes. É um parágrafo riquíssimo em marcas de oralidade, quer na estilização da fala
27
Note-se que em uma única palavra (“estendendo”) a confluência estilística é plena: Estilística do Som,
Estilística do Verbo, Estilística Léxica. O trecho inteiro é exemplo da complexidade da convergência
estilística.
48
das personagens, quer no corpo do texto. É também o parágrafo em que o homem decide
seu verdadeiro caminho.
O trecho começa com uma estrutura antitética, mas não propriamente oposições.
O sintagma adverbial de modo apresenta negativas. Com efeito, o existir, o buscar o
caminho não é um ato de vitória ou alegria. Já “cuidado” tem um alcance menos existencial
e mais social. Percebe-se claramente: o substantivo é formado a partir do verbo “cuidar”. É
a própria idéia de abandono, situação que o narrador viveu. O narrador, embora reconheça a
profundidade do ato do pai, não tem a sua mesma coragem. Esse abandono, sugerido pelas
palavras “nem cuidado” é o antecessor dos tons de culpa. O narrador é um homem de dois
mundos, quer lançar-se para fora da sociedade convencional e racional, mas, ao mesmo
tempo, não tem a coragem de empreender sua busca, de abraçar o despojamento que essa
atitude requereria. Tal dualidade é indiciada aqui, através da contradição entre o sentimento
de abandono, sugerida por “nem cuidado”, e um verbo como “animava”, em “O rumo
daquilo me animava”.
A decisão do pai é apoiada por verbos que exprimem bastante firmeza. “Encalcou”
está sendo usado no sentido de “comprimir, apertar”
28
. O sema de vedar, de fechar,
também ecoa e sugere o fechamento do personagem para o mundo; resulta, do uso do
verbo, uma imagem visual que evoca firmeza, decisão.
A construção “decidiu um adeus para a gente” é metafórica e provoca um
estranhamento inicial do receptor. A metáfora é forte para configurar a certeza do
personagem. Em “acenar um adeus”, perder-se-iam o inusitado da metáfora e a carga de
certeza inerente em decidir um adeus”. Outro brasileirismo aparece em “matula”: agora,
trata-se de um substantivo concreto, e não de um verbo de experimentação psicológica.
“Matula”, assim como “trouxa”, é o suprimento de comida, é o “farnel, alforge com
comida” (LELLO, 1964: 783). FERREIRA (1986) e HOUAISS (2001) classificam-no
como um brasileirismo, formado por derivação regressiva “[vocábulo] muito alterado”
(FERREIRA, 1986) de “matalotagem”. O uso do brasileirismo “matula” e da palavra
“trouxa” oferecem a imagem visual de uma pequena bolsa com víveres para a
28
“Encalcar. V.t. [verbo transitivo] Serrralh. [serralheria] Vedar as juntas de duas peças de ferro” (LELLO,
1964: 423). FERREIRA (1986) e HOUAISS (2001) classificam o termo, no sentido de “comprimir”, como
um brasileirismo. HOUAISS (2001) acrescenta que, nessa acepção (de “apertar, comprimir”), a palavra é um
regionalismo que ocorre no Nordeste do Brasil e seu uso é informal.
49
sobrevivência, e sugerem partida, situação de viagem. Não se referem à comida farta”,
mas a um pouco só. Mas nem esse pouco é levado. O ato de não levar “matula e trouxa”
potencializa (duplamente) a idéia de despojamento, que aparecerá constantemente nesta
segunda parte do conto e diante da qual o narrador manifesta-se com alta perplexidade.
O que salta aos olhos, no conto como um todo, e nesse parágrafo, é a quantidade de
palavras de negação. Nessas três linhas, contabilizaram-se seis (incluindo preposição
“sem”, conectivo aditivo “nem” e advérbio “não”; pronome indefinido “nenhuma”
29
). O
fato marca justamente a saída, a partida, o “não” proferido ao mundo, em prol da busca
pessoal, no rio. O “não” nunca é demais lembrar contrapõe-se profundamente aos
adjetivos verificados no primeiro parágrafo.
Na frase “não fez a nenhuma recomendação”, numa primeira análise, podemos dizer
que ocorre uma ruptura sintática, em que mais um elemento de negação estaria omitido,
subentendido: “não fez a ninguém nenhuma/alguma recomendação”. Vale, pois, dizer: a
negativa está, não somente nos elementos formais que são escritos e anotados; está também
no não-dito, no subentendido.
30
De qualquer forma, para RÓNAI (1968), que não interpreta o “a” como uma
preposição cujo sintagma não se realiza completamente (como o fizemos acima), mas como
29
Na Conclusão, contabilizaremos, apenas a título de ilustração, as negativas existentes no conto todo.
30
Seguindo essa interpretação (que não é a única), percebe-se esse recurso estilístico, graças a um desvio de
regência. Na verdade, não podemos explicar com exatidão o que, sintaticamente, ocorre em “não fez a
nenhuma recomendação”. Comumente, o verbo “fazer”, no sentido em que é usado, apresenta três lugares
argumentais. O primeiro deve exercer a função sintática de sujeito. Interessa-nos, porém, o preenchimento dos
outros dois lugares argumentais: o segundo deve ser preenchido por um objeto direto, com traço inanimado; o
terceiro, por um objeto indireto com traço de pessoa. Exemplos:
(1) Maria fez um bolo para o João.
(2) Não faça reclamações para mim.
(3) Não fez a ninguém alguma recomendação.
No exemplo (1), “um bolo”, é objeto direto, inanimado; “para o João” é um objeto indireto, com
traço +pessoa) . No (2), “reclamações” é objeto direto e “para mim”, indireto. O mesmo ocorre no exemplo
(3), respectivamente, “alguma recomendação” e “a ninguém” são objetos direto e indireto.
No caso da frase de Guimarães Rosa, não se trata de um objeto indireto zero, pois a preposição (se
assim interpretarmos) existe (e, portanto, existe também o núcleo do sintagma preposicional, que é a própria
preposição), o que não aparece é o “restante” do sintagma, o traço +pessoa. Mas também não se trata de um
objeto direto zero, pois o núcleo do sintagma que começa com a preposição (?) é próprio de um objeto direto,
e não indireto.
50
um artigo definido, em frente a um pronome adjetivo indefinido (daí o autor escrever, como
será lido, abaixo, “praxe paradoxal”), a construção é marca de oralidade e uma constante
estilística na escrita de Rosa:
“Tem toda a aparência popular e regional o uso do artigo definido à frente dos
adjetivos indefinidos, adotado pelo autor como as demais práticas de estilo oral
mesmo em trechos em que ele fala por conta própria: ‘as muitas pessoas’; ‘o parente
nenhum’; ‘a alguma alegria’; ‘o certo solerte contentamento’; ‘as diversas pessoas’; ‘a
alguma recomendação’; ‘as certas pessoas’; ‘a tanta importância’; ‘as todas manhãs’; ‘a
muita criatura’. Essa praxe paradoxal, oriunda talvez do desejo de aumentar a massa
sonora e o peso da locução, nota-se também no caso de expressões onde normalmente a
indefinição se patenteia pela ausência de determinantes (...)”. (RÓNAI, 1968: 36, 37).
A frase “Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva
de pálida, mascou o beiço e bramou: --‘Cê vai, o fique, você nunca volte!’ guarda
muitos fatos estilísticos e exige uma análise detalhada, pois modifica um pouco a atitude da
mãe. De “ralhava”, “regia”, “esbravejar”, o verbo utilizado agora é “bramou”, ainda um
verbo que remete a uma imagem sonora de autoridade, de grito. A diferença, porém, se
faz sentir. Em “mascou o beiço”, nota-se uma atitude reflexiva. Isso posto, cabe-nos dizer
que a atitude interiorizada de mudança do pai opera múltiplas atitudes de mudança nos
personagens que os circundem. O caso mais claro é o do narrador, o filho, que narra a
história para tentar entender a sua culpa. Mas a figura da mãe também se modifica no correr
do conto. Naquela figura altamente autoritária do início, também surgem indagações e
dúvidas, que se vão verificar ainda mais para frente. Por ora, entretanto, cabe mostrar que a
expectativa da família, de ela “esbravejar”, caiu por terra e isso é importante. Sua fala,
mais curta, e despojada do que não é essencial, como ocorreu no discurso indireto livre do
parágrafo anterior, é mais incisiva, e está ainda envolta num tom autoritário, de ordem,
exclamativo: vai, ocê fique, você nunca volte!”. Os três usos do pronome pessoal são
fundamentais.
PRETI (1999) anota as relações entre língua oral e o texto literário, especialmente o
diálogo literário. Mostra que o escritor pode simular muitos aspectos da língua oral, como
hesitações, como o próprio contexto a que o leitor não tem acesso, mas de que os
“personagens tinham pleno conhecimento”. O escritor pode ainda simular algumas
51
mudanças de tópico, sem contar o uso de palavras chulas e até obscenas, que também pode
ocorrer na situação conversacional de falantes que dominam a modalidade padrão ou culta.
Não se trata, porém, de uma modalidade oral real, e sim, elaborada para que ela seja
representada. Isso ocorre até porque a literatura não é uma situação de real conversação,
não dispondo dos fatos que existem na conversação, como sobreposição de vozes,
marcadores, luta pelo turno, entre outros. Em outras palavras, essa simulação de aspectos
da língua oral na modalidade escrita é uma estilização da oralidade.
No nosso caso, essas idéias interessam e muito, principalmente para tentarmos
analisar a rápida fala da “nossa mãe”. Captando três variedades para o pronome pessoal de
tratamento “você”, o diálogo transpõe, inevitavelmente, para a modalidade escrita, a fala, as
marcas de oralidade. Quanto à variedade lingüística, Rosa consegue, numa única frase,
captar três tipos de falares ou variantes sociais, do menos letrado, até o canônico. No caso
das duas primeiras formas, “cê” e ocê”, estamos diante do que CRESSOT (1980: 41, 42)
chama de negligência, uma forma articulatória manifestada pelos enfraquecimentos, como
ocorre no corrente uso, na ngua oral, de “tá” (por “está”), ou de “brigado” (por
“obrigado”) . Mas esse fato estilístico, na especificidade do conto, ainda guarda outras
implicações.
De fato, “cê” é um falar próprio do indivíduo não escolarizado, apenas aprendeu a
fala das linguagens familiares e coloquiais, sem a mediação da escolarização e da
normalização. “Ocê” também é uma marca de variante social desfavorecida, que concorre
com “cê”. A forma “ocê” existe paralela à forma “cê”, mas caminhando para a norma,
para o padrão, para o formal, que ocorre, enfim, na última variedade, “você”. Acontece que
essa “gradação”
31
não é gratuita, foi cuidadosamente planejada pelo escritor. A gradação no
uso da variante menos formal para a mais formal acompanha também a tonalidade afetiva
da fala de nossa mãe”. À atitude com mais vigor impositivo coincide a variedade
lingüística mais formal, mais incisiva: “você nunca volte!”. Essa força de ordem, bem
típico da personagem criada, também é sugerida pelo uso do Imperativo. A essa força
impositiva acrescente-se a sensação de distanciamento que caracteriza a variante mais
formal. A gradação dos usos das variedades lingüísticas caracteriza, pois, a fala de ordem
31
Utilizamos a palavra “gradação”, mas é óbvio que essa gradação nenhuma relação apresenta com a
gradação que comentamos, para analisar, por exemplo, seqüências de adjetivos, cuja ordem apresenta uma
intensificação (no caso da gradação crescente) ou um abrandamento (no caso da gradação decrescente).
52
da mãe e culmina com uma forma que marca mais fortemente uma atitude impositiva e um
distanciamento maior entre os “interlocutores”.
Quanto às formas “vai” e “fique”, pode-se dizer que o presente é usado com valor
de condicional, de hipótese, comumente expresso no futuro do subjuntivo (“se for, se
ficar”). O terceiro verbo, entretanto, no imperativo, apresenta uma sugestão de ordem, de
imposição, de distanciamento, conforme foi anotado.
Além dos brasileirismos, da estilização da fala da personagem, as outras marcas de
oralidade do trecho estão em: “de vez de jeito”, ou seja, “de uma vez”. A expressão marca o
fim da indecisão do menino, acuado entre a vontade de descobrir o mistério, de ir atrás do
pai, e o medo da ira da mãe. A outra marca de oralidade está na expressão “fiz que vim”,
que não reflete o fim da indecisão, mas uma estratégia do menino de burlar os olhares
rigorosos da mãe, e se manter atento ao que lhe era surpreendente, misterioso.
A metáfora “suspendeu a resposta” remete ao silêncio. Mas é importante mostrar que,
em “suspendeu”, existe o traço de suspense, de mistério.
Talvez a metáfora mais marcante da inadaptação, no trecho, esteja na seguinte
construção, em que se verifica mais um exemplo de convergência estilística: “Nosso pai
entrou na canoa e desamarrou, pelo remar.”. Note-se que o objeto direto que preencheria o
segundo lugar argumental de “desamarrar” (o primeiro é o sujeito, que se realiza) não se
realiza. É um objeto direto zero. Essa não realização é altamente expressiva, pois mantém
alta a ambigüidade do trecho. Além disso, “desamarrar”, formado com o prefixo “des-”,
traz consigo uma idéia de negação e evoca uma imagem de força. Acontece que a força não
é apenas braçal, de quem desamarra as cordas da canoa. É também a força espiritual de
quem desamarra os laços da razão e da “normalidade” vigente. Além disso, a expressão
“pelo remar”, com verbo substantivado
32
, pode ser a causa (como em (2)) do fato de
desamarrar, ou a conseqüência (como em (1)):
32
Considerando uma construção como o remar”, muitos gramáticos chamam esse fato (determinante
substantivando um verbo) de “Derivação Imprópria” e o entendem como um processo de formação de
palavras. Mas é uma nomenclatura e um entendimento de que muitos outros discordam. De fato, não se
formou uma nova palavra. O que acontece é o seguinte: uma palavra já existente está em outra classe
gramatical, mas ainda conserva parte de seus traços, como atividade. É um tipo de construção mais comum na
variante geográfica (horizontal) da fala e da escrita de Portugal.
53
(1) Ele desamarrou a corda e começou a remar.
(2) Ele desamarrou os laços do mundo por começar a remar.
Ao sentido denotativo de (1), soma-se o conotativo de (2) e verificamos, assim, a
força da construção estilística e simbólica, cuja função já explicitamos acima.
Em “E a canoa saiu se indo –- a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida
longa.”, notem-se dois pleonasmos com função de intensificar as imagens: “saiu se indo”
acentua a idéia de movimento; “comprida longa”, a idéia do tamanho da sombra, num
impressionismo um tanto gradativo. No trecho, também é fundamental apontar a símile (ou
comparação). O homem é comparado com o jacaré, através de um elemento mediador:
“feito um jacaré”. Vimos, em outro parágrafo, a personificação do rio, o rio elevado a
elemento cósmico. Vemos, agora, a integração homem/natureza, que, no entanto, ainda não
se deu. E, nesse sentido, a símile é mais bem usada do que a metáfora. Segundo CANDIDO
(1996: 78), há uma diferença importante entre a símile e a metáfora:
No processo comparativo, um controle maior, ou mais aparente, da lógica; no
processo metafórico, é como se a transferência semântica se fizesse espontaneamente, sem
a intervenção de minha vontade, e portanto, é mais poética, mais visceral, mais ligada a
uma que se apresenta na sua integridade sem justificativa, sem desculpas, sem recurso a
um elemento discursivo de prova que nos arraste para o universo prosaico da razão e da
lógica”.
Acontece que, no trecho, o personagem está no caminho da magia, ainda não se
fundiu a ela. Guimarães Rosa tira o máximo proveito do processo conotativo da símile ou
comparação, reservando, para metáforas (e índices) posteriores
33
, o momento de maior
integração com o Cosmos.
33
Vejam-se as observações a respeito do nono parágrafo, sobre a silenciação, uso da palavra “gasalhado”,
descrição do pai que compõe uma imagem visual mítica e de integração com o Cosmos.
54
Quarto parágrafo: A “estranheza dessa verdade”.
“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. executava a invenção
de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para
dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente.
Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram,
tomaram juntamente conselho.” (ROSA, 1988: 33).
Iniciado pelas nossas já conhecidas negativas, este parágrafo, o mais curto do conto,
afirma que a decisão do pai não era apenas uma vadiação em artes”, mas uma decisão tão
séria, quanto “estranha”, tão única quanto mágica. Neste curto parágrafo, caracterizado por
um grande número de abstrações (de substantivos ou de conceitos), apontar-se-ão os
principais fatos de estilo que compõem a idéia do surpreendente, definidora da inadaptação
do pai e do mistério que isso gera na vida da comunidade e nas reflexões do narrador.
Pode-se observar um leve contraste entre as palavras utilizadas na terceira frase: “só
executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio”. Isso porque, as palavras
“executava” e “invenção” (este, um substantivo abstrato, que formado a partir do verbo
pelo sufixo “–ção”, e herdando dele traços como atividade e transitividade) diferem de
“permanecer”, pois este evoca estaticidade, ao passo que as outras palavras mencionadas
evocam mudança, ação. A leve idéia antitética pode ser explicada pelo fato de que a
permanência no rio não é ato de estaticidade, entendida como passividade: antes, ela surge
da negação, da inadaptação no espaço das margens, delimitadas pela lógica. Cabe notar que
o verbo “permanecer” está usado em forma pronominal, o que não é normativamente
abonado. Em “se permaneceu”, nota-se a afirmação da permanência, no fluir das águas, e a
afirmação do ser no espaço escolhido e único, sob medida para si mesmo (lembremo-nos da
oração “para caber justo o remador”); uma afirmação, contudo, originária da negação da
lógica.
Em “invenção”, percebe-se claramente o apelo à coisa nova, surgida
silenciosamente, como que por encanto, ou magia. Ao lado desse expressivo vocábulo,
estão outros: “a estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que
55
não havia, acontecia.”. Prefere-se “a estranheza dessa verdade” à forma mais usual,
“verdade estranha”. O substantivo “estranheza”, na forma preferida, é formado por
derivação sufixal a partir do adjetivo também um substantivo abstrato). Mais do que um
procedimento lingüístico, a primeira forma confere um sabor especial ao texto, destacando
o termo “estranheza”, o que nos remete, novamente, aos tons mágicos, que caracterizam a
estilística da inadaptação. Além disso, essa substantivação do adjetivo é apontada por
LAPA (1965: 108), que, considerando um exemplo equivalente ao que nos interessa, como
em “o infeliz do rapaz”, mostra a superior expressividade do mecanismo de substantivação
do adjetivo. “O infeliz do rapaz”, em vez do tradicional o rapaz infeliz” ou mesmo em vez
de “infeliz rapaz”, e, no nosso caso, “estranheza dessa verdade”, em vez de “essa verdade
estranha”, são formas mais expressivas, já que:
Aparece o adjetivo substantivado e menos dependente do substantivo, porque está
separado dele pela preposição. Isto é, conserva a vantagem sentimental da posição,
anteposto ao substantivo, e adquire maior relevo de significado.” (LAPA , 1965: 108).
“Verdade” não é um substantivo abstrato gramaticalmente
34
. Pode ser, porém,
entendido um conceito abstrato, filosoficamente. A negação da vida cotidiana social e
lógica é uma verdade para aquele personagem da canoa (e também para o narrador). Mas
não para as pessoas da comunidade. O verbo escolhido, “estarrecer” é bastante expressivo,
até porque podemos entendê-lo como um exemplo de “correspondência articulatória”, de
que fala MARTINS (1989), citando Porzig. De fato, o modo como o pronunciamos, com a
seqüência dos fonemas sibilantes, plosivos e vibrantes, /s/, /t/, /R/, /r/, simula o próprio
tremor de dentes, que caracteriza seu sentido. É um fato inerente à sonoridade da palavra
(estilística da língua), que o uso específico faz “rebrilhar”. Além disso, a idéia de mistério
(e o conseqüente tom de perplexidade do narrador) ainda sobrevive nesse verbo de
experimentação psicológica.
Essa idéia, porém, é mais visível no grande paradoxo que caracteriza a magia, o
mistério e a perplexidade: “Aquilo que não havia, acontecia”. O primeiro índice de mistério
é o uso do pronome substantivo demonstrativo “aquilo”, que pode ser relacionado a uma
34
A separação substantivo abstrato e concreto não é ponto pacífico, justamente por confundir o aspecto
gramatical e filosófico. Usando a sugestão de CÂMARA NIOR (1998: 78), entendemos, entretanto, como
“abstratos aqueles substantivos de qualidade e ação, que se relacionam, respectivamente, com os adjetivos e
verbos”.
56
reminiscência do gênero neutro do latim. O uso primeiro do verbo “haver”, na oração
adjetiva, e o uso de “acontecer”, na principal (“aquilo que não havia, acontecia”), e não o
contrário (“aquilo que não acontecia, havia”), também é expressivo. “Haver” remete o
receptor a algo mais material, que pode ser visto a olho nu. no caso de “acontecer”,
evoca fatos subjetivos, mágicos
35
. Segundo LIMA (1991: 507), essa magia é um elemento
que revela (e re-vela) a realidade, é sua verdadeira importância: “(...) a impregnação mágica
no conteúdo das estórias se converte no meio de vislumbrar os limites da condição
humana”.
Na face oposta à magia, temos os parentes e as pessoas da comunidade. O uso da
palavra “conselho” remete à lógica, em que cada um tem uma idéia, uma posição frente a
uma situação que o grupo entende como problema. Tem essa palavra a mesma função
estilística daquelas palavras discutidas no primeiro parágrafo. Afinal, ambos os usos
remetem às “sensatas pessoas”.
Quinto parágrafo: As hipóteses da “razão”.
“Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de
nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. uns achavam o entanto de poder
também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar
com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e
longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas—passadores,
moradores das beiras, até do afastado da outra banda descrevendo que nosso pai nunca
35
Inclusive, CARPEAUX (1968) discute um gênero de conto chamado “conto sem acontecimento”, e rebate
essa classificação, citando o belo conto de A. P. Tchekov, “O acontecimento”. No ensaio, o crítico mostra que
acontecimento não é exatamente peripécia: o maior acontecimento, o que mais interessa à literatura é aquele
que se na interioridade emocional do personagem. No caso do conto do autor russo, essa interioridade é
perceptível na tristeza do menino frente à barbárie do mundo adulto, que não aceita um filhote do cachorro.
Por isso, segundo o crítico, a literatura de Tchekov, de Lispector não pode ser enquadrada na tradição do
chamado “conto sem acontecimento”.
Com esta nota, chamamos a atenção para a literariedade da palavra “acontecimento”, e do verbo
“acontecer”, ligado, dentro da tradição literária e crítica, a uma revelação interior do personagem. Isso
interessa, pois estamos discutindo a distinção entre o verbo “haver” e “acontecer”, no paradoxo do quarto
parágrafo.
57
se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava
no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram:
que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e ele, ou desembarcava e
viajava s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia,
por uma vez, para casa.” (ROSA, 1988: 33).
Num trabalho que pretende acompanhar os fatos de estilo que levam à idéia de
inadaptação, é fundamental captar também o contrário, isto é, as expressões que remetem à
“normalidade”, à adaptação, pois somente assim ficará esclarecido seu oposto. Vimos que o
primeiro parágrafo é particularmente rico nesses fatos estilísticos, até porque alude à
primeira metade da vida de “nosso pai”, “cumpridor, ordeiro e positivo”. No entanto, os
traços da normalidade que se referem, não mais ao pai, que já a negou, indo para sua canoa,
mas ao mundo, não se limitam ao primeiro parágrafo. Veremos que, neste quinto trecho,
tais elementos são também marcantes. também importantes eufemismos que
caracterizam, com bastante adequação, a sensatez, a “cordura” das pessoas da comunidade
racional. Tais eufemismos chocam-se com a utilização do termo próprio, que é, muitas
vezes, a atitude do narrador. Também no plano léxico, notem-se os vocábulos:
“vergonhosa”, “cordura”. “escrúpulo”, “certas pessoas”, “assentaram”, “condizia mais
correto”. Todas essas palavras referem-se à comunidade, que se reuniu para pensar sobre a
partida de “nosso pai”, que considerava um problema.
“Vergonhosa” e “cordura” são caracterizadores da mãe. O sufixo “-osa” destaca,
quase religiosamente (evoca as ladainhas religiosas), o sofrimento da mãe. É, porém, um
sofrimento de natureza social, por ser sua família o centro da situação que ela julgava um
problema. Ao observarmos o substantivo arcaizante
36
“cordura”, novamente, a idéia de
sensatez avulta do trecho que mais a caracteriza. É, portanto, mais uma marca da afirmação
dos valores inerentes às margens, em oposição às negativas que caracterizam a opção feita
por “nosso pai”: o cordato é aquele que não diverge; (...) sensato, judicioso, prudente”
(HOUAISS, 2001).
36
Para algumas obras consultadas, a palavra “cordura” pode ser classificada como um arcaísmo: segundo
MARTINS (2001: 135), “Viterbo inclui o voc. [vocábulo] entre os arcs. [arcaísmos] do seu tempo”. Segundo
HOUAISS (2001), o primeiro registro conhecido ou estimado dessa palavra remonta ao século XIII.
58
Analisemos, agora, a seguinte passagem: “todos pensaram de nosso pai a razão em
que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento
de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença,
que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele.”
A cidade pensa sobre os motivos de o pai ter partido. Opera com seu raciocínio
lógico. A palavra “escrúpulo evoca moralidade, moralismo, convenção. O eufemismo
“feia doença” também é importante para uma situação que não prevê excessos, mas o
narrador não o acata por completo, e nomeia: “que seja, a lepra”. A rgula opera esse
mecanismo de expressividade sutil. Uma construção como “feia doença, que seja a lepra” é
muito diversa daquela que foi utilizada: “feia doença, que seja
,
a lepra”. Na primeira, seria
a descrição da hipótese que os membros do conselho explicitaram. Mas eles, educados,
cordatos e sensatos, preferem o eufemismo. A vírgula indica que a nomeação “lepra” é uma
intervenção a posteriori do próprio narrador.
Antes do eufemismo, porém, o narrador revela-nos a principal hipótese da cidade,
que, no entanto, também não é falada. Novamente, a negação esclarece as coisas que a
norma positiva não consegue. Aqui, os homens da comunidade não usaram sequer
eufemismos, simplesmente omitiram, apenas “pensaram”. A antítese “razão/doidera”, que é
a própria chave do conto, precisa ser discutida. É bem verdade que o termo “razão”, aqui, é
usado como quase-sinônimo de motivo”, porém a ambigüidade existe. Para a cidade, a
atitude não passa de uma “doidera”, palavra que é uma marca de oralidade, com forte teor
pejorativo.
As palavras “se desertava” e “sina” mostram que as hipóteses elaboradas pela
comunidade sobre o motivo de o pai ter ido com sua canoa não são de afirmação, são,
antes de tudo, um mal, uma anomalia a ser erradicada. Além disso, ambas as palavras
evocam uma atitude penosa, de sofrimento. Em “se desertava”, a idéia de abandono está
presente em quase todas as acepções consultadas. Em particular, observe-se esta, retirada
de HOUAISS (2001): “abandonar ou deixar de ir a (lugar onde se estava encarregado de
função, tarefa ou a que se estava ligado por um laço de natureza particular)”. Note-se,
portanto, que o distanciamento do personagem em relação aos valores presentes nas
margens subverte as normas vigentes no consenso da comunidade. Mas essa subversão é
muito mal avaliada pelos participantes do “consenso”: basta lembrar que a figura do
59
desertor é muito marcada e mal vista socialmente, já que é alguém que não seguiu os seus
deveres sociais e convencionais.
O modo como o narrador chama essa comunidade, os habitantes das beiras da razão,
revela-se em alguns momentos. No trecho, citemos dois casos. Em “as vozes das
notícias”, ocorre uma metonímia e uma metáfora. A metonímia, que se caracteriza por
uma relação de contigüidade, é do tipo “parte pelo todo”, e ocorre em “vozes”: as pessoas
possuem a voz que fala as notícias. A metáfora considera o bloco todo, e é algo irônica: o
sintagma “vozes das notícias” pode referir-se às muitas alcoviteiras, sempre existentes
numa comunidade interiorana e comumente representadas na literatura. Outro sintagma a
ser destacado é “certas pessoas”, onde se nota uma ambigüidade quanto à classificação
gramatical do termo “certas”. Pode ser um pronome adjetivo indefinido, que logo depois é
explicado pelo aposto (“passadores, moradores de beiras, até do afastado da outra
banda”). Pode ser também entendido como um adjetivo: “corretas pessoas”, constituindo
novo índice para a sensatez, a normalidade. Neste mesmo trecho, observe-se um fato
mencionado, a respeito da “estranheza dessa verdade”: a substantivação do adjetivo, que o
torna menos dependente do substantivo, e que o destaca, potencializando sua significação:
no afastado da outra banda”.
Os muitos efeitos sonoros, presentes em blocos de duas ou três palavras, no trecho
descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia
nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente”, podem ser entendidos
como o matraquear das “vozes das notícias”: as aliterações da consoante plosiva surda /t/,
a plosiva sonora /d/ e da sibilante /s/, respectivamente, em tomar terra”, de dia nem de
noite” (onde também se verifica uma antítese) e solto solitariamente”, e a rima toante
existente em “em ponto nem canto” (bloco em que também se verifica o efeito de
nasalização presente em todos os quatro vocábulos; destacamos, em itálico, a rima toante;
com sublinha, a aliteração dos fonemas nasais) podem sugerir o tagarelar das vozes. O
narrador, porém, se envolve com a descrição, torna-a mais repleta pelo tom surpreendente,
pelo ritmo poético que apresenta, enumerando as situações com antíteses. O narrador
marca também sua admiração, sua inquietação com a coragem do pai, sempre vulnerável
(e despojado) nas diversas situações do dia e da noite: “solto solitariamente”.
60
Na última frase do trecho, as opiniões convergem e apontam hipóteses ou
conclusões de caráter racional. “Assentaram” revela o caráter de conclusão do trecho, mas
também uma ponderação altamente objetiva e lógica. Esse tom de sanção e de conclusão
objetiva também está em “se condizia mais correto”. A correlação dos tempos verbais é
marcada pela oralidade, no trecho: “o mantimento que tivesse (...), se gastava; e ele, ou
desembarcava e viajava s’embora (...) se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma
vez, para casa.”. Os verbos no pretérito imperfeito do indicativo deveriam, segundo a
norma padrão, estar no futuro do pretérito do indicativo. No trecho específico, esse uso
representa mais diretamente a idéia da mãe, tira o seu discurso de sua boca e potencializa a
idéia de sanção, de julgamento
37
, que também aparece no uso do adjetivo correto”. No
julgamento final, as duas situações finais e conclusivas são toscas, não apresentam a
vaguidão da hipótese, a dúvida que o futuro do subjuntivo sugeriria; comparado ao
subjuntivo, o indicativo arma o círculo fechado que a certeza e a atitude racional criaram: o
futuro daquele homem devia encaixar-se em uma daquelas situações descritas pela mãe,
não havia nenhuma outra. E, no entanto, houve.
O destino que o homem escolhera para si não seria nenhum daqueles. Seu destino
era “cursar” no rio: “(...) da forma como cursava no rio (...)”. Evidentemente, num sentido
denotativo, percebemos a idéia de “ficar no curso do rio”. Outras significações, porém,
abundam do uso do verbo, nada aleatório: “nosso pai” empreendia um verdadeiro curso de
autoconhecimento, um curso diferente, sem a rigidez da razão, um verdadeiro curso de
integração ao Cosmos.
37
Normalmente, o imperfeito do indicativo é o tempo das lembranças e das emoções, principalmente quando
comparado ao perfeito, o “tempo do historiador” (LAPA, 1965). Entretanto, comparamos, no caso, o
imperfeito do indicativo com o futuro do subjuntivo, no desvio de correlação temporal, que é marca de
oralidade, e cuja expressividade tem outra explicação.
61
Sexto parágrafo: O furtado consentido.
“No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de
comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso
experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se
rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de
bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: assim,
ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou
para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo
de bicho mexer e a salvo de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora.
Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, se encobrindo de
não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe
muito não se demonstrava.” (ROSA, 1988: 33, 34).
Este trecho é rico em particípios e deslocamentos sintáticos de termos.
Começa com uma frase nominal, totalmente inorgânica. Refere-se, negando-as, às
hipóteses rígidas que formulou a mãe, escritas no parágrafo anterior.
“A terceira margem do rio” é um conto em que se verificam muitos particípios.
Vimos, no primeiro parágrafo, a altíssima expressividade do uso do particípio “sido”. Neste
sexto parágrafo, levantaremos o uso de outros particípios. Em alguns deles, note-se que,
sendo uma forma nominal do verbo, sua função é muito mais de um adjetivo: “comida
furtada”; “no alumiado delas” (em que, sendo adjetivo, está substantivado), e,
principalmente, em “deixava, facilitado, sobra de coisas”, “suspendida no liso do rio”.
Segundo CUNHA e CINTRA (1985: 483, 484), o “particípio exprime
fundamentalmente o resultado de uma ação acabada”, mas “não indica por si próprio se a
ação em causa é passada, presente ou futura”.
Acreditamos que o uso do particípio no conto seja importante, pois confere a ele a
brevidade narrativa que já mencionamos: a ação está acabada, não se narram os seus
pormenores; toda a narração dos detalhes e da peripécia em si fica suspensa. Além disso, as
ações acabadas, finitas, sugerem a certeza da existência da ação, do resultado da ação, mas
62
também a incerteza sobre a maneira como elas foram executadas, seus processos, fato que
se soma ao mistério e à magia que a circundam.
Tomemos a forma mais expressiva do trecho: “deixava, facilitado, sobra de coisas”.
Ora, esse particípio não pode ser um adjetivo, pois não concorda em nero com o objeto,
que está no feminino (o que ocorreria em “deixava, facilitada, sobra de coisas”). Seria um
advérbio de modo, afinal, é o modo como a mãe deixava a sobra, mas o narrador não quis a
forma “facilmente”, preferindo o particípio. É que a ação acabada diz muito mais da mãe
do que a típica forma adverbial mencionada. “Facilitado” liga-se muito mais fortemente à
última frase do parágrafo: “Nossa mãe muito não se demonstrava”. Com facilmente”, ao
contrário, o mistério que ronda essa mulher, cujas ações mudam (pelo menos em termos)
em relação ao primeiro parágrafo, seria menor: com “facilmente”, a idéia de ação acabada,
que existe em “facilitado”, perde-se totalmente, e troca o incerto, o dúbio, o vago da
situação pela certeza inverossímil. Por outro lado, é certo (pelo contexto) que a ação
terminou, é certo que existe um produto da ação; esse produto é substantivo, material,
palpável e diz muito sobre quem o executou. Insistimos: facilmente” criaria uma idéia
errada de “nossa mãe”. A mudança de “nossa mãe” é nítida; ela nutre muita preocupação e
atenção para com o seu homem, mas nunca manifesta concordância com o fato de ele ter
ido morar na canoa, o que estaria sugerido em “deixava, facilmente, sobra de coisas”, em
vez da forma que foi utilizada. Em outras palavras, “nossa mãe” ainda é uma mulher de
ações firmes e objetivas (como o fato de ser a provedora do pai, por meio do filho), mas
suas convicções estão, em termos, abaladas. não é mais somente aquela mulher que
“ralha e rege”, ou que “assenta” os caminhos da realidade objetiva de maneira tão
veemente. Com efeito, a mãe também caminha para a silenciação. E é a silenciação que
revela sua mais íntima e escondida ação: o facilitar as sobras de coisas. No parágrafo
seguinte, veremos que, para a sociedade racional e convencional, de padres, soldados e
jornalistas, ela não mudara em nada. Mas suas atitudes íntimas sofrem alguma modificação,
já que suas convicções são, pelo menos, abaladas — fato ilustrado por esse trecho.
É justamente o que também sugere a inversão presente na última frase do parágrafo:
“Nossa mãe muito não se demonstrava”. O advérbio de intensidade “muito” está deslocado
do lugar onde comumente estaria; embora a ordem do advérbio na frase seja sempre
maleável, a ordem “normal” ou usual seria: “Nossa mãe não se demonstrava muito”. Na
63
frase anterior, “(...) nossa mãe sabia desse meu encargo, se encobrindo de não saber”, o
uso do verbo reflexivo “se encobrir” e a antítese “saber/ não saber” também geram um
efeito de mistério, que, enfim, começa a envolver a figura da mãe.
Mas o excerto não se refere somente à mãe.
Em “(...) no fundo da canoa, suspendida no liso do rio”, o particípio utilizado é o
regular, e não o irregular suspensa”. Em “suspendida”, percebe-se o esforço da ão. A
magia e o mistério da negação dos fatores sociais racionais não são desprovidos de dor e de
dificuldade. “Suspendida” mostra um esforço físico e espiritual que a forma “suspensa” não
contém. Essa perda do caráter da ação, em “suspensa”, pode ser provado com o que escreve
LAPA (1965: 160):
nos chamados particípios irregulares (morto, aceso, ganho, gasto, salvo, etc.), a
forma verbal cristalizou, por assim dizer, num adjetivo. Uma vez concluída a ação, surgiu
um estado que necessita de ser definido por meio dum adjetivo verbal”.
no caso da forma “suspendida”, “(...) o particípio regular dá-nos uma noção
verbal, ativa, do fenômeno realizado.” (LAPA, 1965: 160).
O filho também toma uma atitude digna de nota. E a estilística do artigo também
oferece muitas possibilidades de análise para este trecho: “Eu mesmo cumpria de trazer
para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite,
quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto
que, no alumiado delas, se rezava e se chamava”.
O uso do artigo definido, em “a idéia que senti”, singulariza a “idéia”, torna-a única:
era a maior de todas as idéias, foi um achado. Esse artigo também é um tanto
demonstrativo, como quem diz: “essa foi a idéia que tive”. Note-se que a elipse do termo
“foi” deixa o sintagma “a idéia que tive” sem predicado, isolado e destacado na frase. A
pontuação também corrobora para esse efeito de destaque. Se fosse feito de maneira
diversa, o sintagma em questão seria um mero aposto, e não teria a expressividade que
apresenta: “(...) tanto de comida furtada, idéia que senti (...)”. Portanto, o uso do artigo, a
pontuação e a elipse do verbo (“foi”) entrelaçam-se para sugerir um efeito de
singularização do sintagma “a idéia que senti”. Tal aspecto, de singularidade, choca-se com
a indeterminação do sujeito, em “se rezava e se chamava”, em cujas ações o narrador faz
questão de não aparecer (o que não teria evitado, se tivesse preferido as formas “rezávamos,
64
chamávamos”). Mas sua preocupação, enquanto personagem e narrador, era outra: a
expressão da perplexidade diante da dificuldade da sobrevivência do pai, em meio ao
despojamento que o pai escolheu.
Em “a idéia que senti”, é também importante mencionar o estranhamento que se
experimenta da ligação do termo “idéia”, como objeto de “senti”: a primeira palavra evoca
pensamento, a segunda, emotividade. A idéia única, surgida mais do sentimento do que do
pensamento, revela uma ligação imprescindível do narrador com o pai. Como homem preso
às margens, porém, o narrador não traduz essa ligação unicamente no universo do
sentimento, do etéreo ou do mítico (afinal, ele não sucede o pai na canoa): ele o faz com as
armas de que dispõe, e uma delas é a inteligência, o pensamento racional.
. Em “Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir (...)”,
percebe-se que o “curso” do pai na dificuldade é também um pouco empreendido pelo
filho, que é um homem de dois mundos. A substantivação da conjunção conclusiva, em “no
enfim”, procedimento nada comum, aliada ao uso do adjetivo, formado pelo sufixo “-osa”,
intensificam a demora do tempo. No entanto, o pai apareceu somente para o filho, que foi o
único a empreender, “solitariamente”, essa busca, longe das convenções daqueles que
“rezavam e chamavam”. Uma outra substantivação ocorre em “no ao-longe”, com uma
ousadia morfossintática ainda maior: dentro de uma locução adverbial, substantiva-se uma
outra locução adverbial. Não resulta, porém, dessa dupla “espacialização” um local
definido, pelo contrário: o efeito sugerido é o espaço indefinido; em “no ao-longe”, sugere-
se uma imagem visual infinita, confusa, quase nublada, embaçada, de tão vaga e distante.
38
Falamos, ainda referente a este parágrafo, do uso dos particípios com função, dentre
muitas outras, até mais importantes, de brevidade narrativa, expondo o fato consumado.
Em outras ocasiões, reporta-se para a ação em processo, mas ainda a brevidade continua.
Em “Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de
pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a salvo de chuva e orvalho”, cinco ações são
38
A impressão que se tem é que o narrador utilizou duas sugestões de lugar, mas não para especificá-lo
precisamente, até porque não o conhece, porque não tem acesso a ele (o local, vagamente apontado”, é um
espaço exclusivo do pai). Insistimos: da existência de dois advérbios de lugar (um “dentro” do outro) não
resulta um local especificado nítido, objetivo, como se poderia supor (e como acontece numa conversação, em
que um locutor, ao tentar explicar a localização de algo, apela para referências, para novas menções a outros
locais).
65
coordenadas, que é uma forma de expressividade, ou de impressionismo, como anota
CRESSOT (1980: 19, 20):
A frase expressionista é uma frase meditada, preocupada com a ligação dos factos
às suas causas e conseqüências. Daqui, podemos prever uma frase longa, rica em
subordinadas, vigorosamente articulada. (...) O impressionismo, recuando o
estabelecimento entre causa e efeito, tenderá, naturalmente, para uma frase curta; uma
justaposição de fatos à medida que vão subindo à consciência, e a cada um corresponde
uma individualidade (...)”.
O mistério, perplexamente emoldurado, ganha ainda uma emoção particular graças
ao assíndeto: o uso exaustivo das vírgulas, separando as coordenadas.
Esse período faz com que remontemos ao uso do artigo. Aqui, sua omissão serve
para generalizar os termos “chuva” e “bicho”, em “a salvo de bicho mexer e a salvo de
chuva e orvalho”. O longo sintagma adverbial de modo não apresenta nenhum artigo.
A tão recorrente substantivação do adjetivo também aparece no trecho. Agora,
porém, ainda mais uma explicação para o uso de “num oco de pedra do barranco”, em
vez de “numa pedra oca do barranco”. Além da questão da independência e destaque do
adjetivo em relação ao substantivo, o uso de “oco” guarda ainda um efeito sonoro de
correspondência articulatória (que se perderia em “oca”, no feminino concordante com
“pedra”). Esse efeito, de que fala MARTINS (1989), foi comentado em “estarrecer”, e
aparece novamente aqui. No caso de “oco”, as vogais fechadas /o/, quando pronunciadas,
tão próximas e juntas, numa palavra dissilábica, obrigam a boca a fazer um desenho
articulatório cavernoso, oco. Graficamente, a imagem da vogal “o”, circular, também
sugere o vazio.
Nas frases seguintes, as palavras isso” e “surpresa” são objetos diretos deslocados
de sua posição mais usual: “Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais
tarde tive: que nossa e sabia desse meu encargo, se encobrindo de não saber (...)”.
Também “mais tarde” é exemplo de termo deslocado. O primeiro caso acontece numa frase
curta, entrecortada por muitas vírgulas. O uso de dois verbos “fiz e refiz” e o advérbio
“sempre” dão à sentença um tom de obsessão por um tempo indeterminado, contínuo. O
segundo caso é mais claro e óbvio: o termo “surpresa” aparece no início da oração,
sugerindo, no nível frásico, uma sensação de imprevisto.
66
Sétimo parágrafo: Os tipos e suas instituições.
“Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios.
Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu o padre que um dia se revestisse, em
praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha
teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não
valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem
deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens
do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai
se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre
juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.” (ROSA, 1988: 34).
Se compararmos a última frase do parágrafo anterior com a primeira frase deste
parágrafo, veremos uma enorme contradição, uma diferença abissal: “Nossa mãe muito não
se demonstrava” choca-se totalmente com os verbos utilizados neste trecho (“mandou”
repetido mais uma vez — e “incumbiu”).
Falamos, anteriormente, sobre uma certa mudança na atitude da mãe (apoiados no
particípio facilitado” e na frase que acabamos de reescrever). Seria, então, possível
perguntar como, agora, novamente, o referente “nossa mãe” é sujeito de verbos que se
caracterizam clara e explicitamente por ser fortes, autoritários, proferidos em tons de
ordem.
Ora, a explicação é simples e já a expusemos um pouco. Sua convicção social nunca
foi modificada. De frente para a sociedade, “nossa mãe” nunca deixou de condenar ou
sentenciar a atitude do marido. O que acontece é uma sutil mudança, no ambiente íntimo,
no ambiente do indizível e da silenciação, do “muito não se demonstrar” enquanto ser.
Socialmente, porém, a mulher é a mesma. Demonstra-se autoritária e de modo impositivo.
Isso prova o quanto o uso de “facilmente” (no parágrafo anterior) seria inverossímil: seria
próprio de quem socialmente também mudara. A imagem social de “mulher policial”,
elemento de ordem e retidão, não é afetada, com “facilitado”, mas o seria com
67
“facilmente”. Ela modificou sim, mas nos pequenos e íntimos gestos, não quando se trata
de se mostrar para o mundo da comunidade.
Esses elementos ajudam a explicar o uso dos verbos utilizados e o choque entre as
duas frases.
Neste parágrafo, estão presentes outros personagens, os que mais fortemente
representam uma sociedade. São tipos sociais evocados, “homens-instituição”, poderes
sociais: a escola (o mestre), a igreja (o padre), a força policial (“os dois soldados”) e a
imprensa (os homens do jornal). Todos os substantivos que caracterizam os tipos estão
precedidos por artigo definido, o que mostra que os tipos estão pelas instituições
39
. Por
exemplo, quando lemos “vieram os dois soldados”, o termo “soldados” aparece, no texto,
pela primeira vez: não deveria, pois, ter sido precedido pelo artigo, que deveria ter sido
omitido. (Os receptores perguntam-se: mas que soldados? Quais?). O caso é outro: o artigo,
aqui, não particulariza o indivíduo, mas a instituição que está por trás dele: trata-se da
Polícia que sempre existe na comunidade da vida real, da Escola, necessidade social, da
Igreja, instituição presente num país de tradição católica, e, por fim, da Imprensa.
Observe-se o uso do termo “esconjurar”: “Incumbiu o padre que um dia se
revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da
tristonha teima”, palavra não usada pela mãe, no segundo parágrafo (“Nossa e jurou
muito contra a idéia”, fato que entendemos como uma atitude de afirmação contra a
negação). Aqui, porém, a palavra não é uma blasfêmia, como o seria lá, que o sujeito, lá,
é “nossa mãe”, e, aqui, o sujeito de “esconjurar” é “o padre”. Aos olhos dos crentes e da
“nossa mãe”, o padre pode muito bem esconjurar. Na boca de uma mulher cumpridora,
seria uma injúria, mas o padre tem o aval de usá-la. Guimarães Rosa utiliza muito bem as
expressividades dos quase-sinônimos. A aliteração da plosiva sonora /d/, em “dever de
desistir”, e da surda /t/, na construção pleonástica “teimosa teima”, contamina-se pela
isotopia religiosa, existente nas palavras “padre”, “esconjurar” e “clamar”, podendo sugerir
as ladainhas tão comuns nessas situações. A palavra dever” insere, novamente, a idéia de
adaptação social, que discutimos no primeiro e nos demais parágrafos em que aparece.
39
Talvez se possa classificar o caso como um procedimento metonímico da parte pelo todo: o policial
indivíduo (parte da corporação) pela instituição polícia (todo), o padre indivíduo (parte da instituição) pela
instituição Igreja (todo).
68
Antagônica a ela, “teima” aponta para a estilística da inadaptação que temos mostrado. São,
afinal, os pólos de tensão do conto.
Em “De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados”, a construção
“para medo” pode indicar finalidade, como aconteceria em “para impor medo”. A essa
idéia, some-se a expressividade da palavra “arranjo”, que, no caso, pode sugerir toda a
situação montada e calculada por “nossa mãepara reprovar, veementemente, diante da
sociedade, a atitude do pai, ao lado das poderosas instituições do mundo real e racional,
especialmente, no caso, a polícia.
uma marca de oralidade regional, horizontal em: “chegar à pega ou à fala”. A
palavra pega”, como substantivo, foi construída analogicamente à “fala”. São exemplos da
chamada (e controversa) derivação regressiva
40
.
Outra construção neológica é a palavra “diluso”, em “avistado ou diluso”. Ela
evoca, num primeiro momento, “difuso”, por semelhança, por analogia. É apenas esse
significado que MARTINS (2001: 170) aponta como “sent. fig. prov.” [sentido figurado
provável]: “ND. [não dicionarizado] Vislumbrado, entrevisto, pouco nítido (...)”.
Acreditamos, porém, que haja outras possibilidades sugestivas: podemos também entender
o uso de um prefixo que significa “dois”, preso a “luso”, que evoca “luz”, iluminura.
Convém destacar que as possibilidades são algo antagônicas: se a primeira
41
sugere um
apagamento ou imagem embaralhada, enevoada; a segunda, iluminação dupla. De uma
maneira e/ou de outra, a construção é metafórica: o homem, com sua vagação no rio, quase
invisível para os olhos sociais, pois não aparece para ninguém, difundindo-se por entre os
espaços das margens, constitui um ponto de luz própria, pois se firma enquanto ser. O
40
CUNHA e CINTRA (1985: 102) mostra que, no caso dos nomes derivados de nomes, a derivação
regressiva pode ser definida como uma “falsa análise da estrutura” (cita o exemplo do cigano “gajão”, palavra
de conotação pejorativa, e do português, derivado dele, gajo). Mas o assunto mais importante relacionado a
esse tipo de formação de palavras são os deverbais, formados pela junção de uma das vogais –a, -o, -e ao
radical do verbo. Embora alguns autores não dêem muita importância ao fato de definir se determinado
substantivo veio do verbo (ou vice-e-versa), CUNHA e CINTRA (1985: 103) cita, em nota, a operação prática
de Mário Barreto: “se o substantivo denota ação, será palavra derivada, e o verbo palavra primitiva; mas se o
nome denota algum objeto de referência, verificar-se-á o contrário”.
Particularmente, achamos que convém a distinção, que pode ajudar a entender se determinado
substantivo mantém ou não, em seu semema, características de atividade ou transitividade, o que, por sua vez,
também pode contribuir, em alguns casos, para compreender determinado fato estilístico.
41
Segundo LELLO (1961: 383), “Difuso (...). Luz difusa, aquela cujos raios se reflectem confusamente e não
projetam sombras nítidas”.
69
sintagma em que o adjetivo aparece (“avistado ou diluso”, em que dois qualificadores
separados pelo conectivo alternativo “ou”) corrobora para essa dupla leitura, pois em
“avistado” ecoa a idéia de algo realmente visto e aparente, mas pouco nítido, vago
42
.
A palavra “lancha” sugere uma imagem visual de modernidade. Especialmente, se
lembrarmos a descrição da “canoa especial” de “nosso pai”, a lancha é uma imagem
bastante oposta. A batalha travada entre “a lancha” e “a canoa” lembra as idéias de LIMA
(1991), sobre o sentido do título Primeiras estórias. Dessa forma, os dois Brasis podem ser
vistos nesse conto, se fizermos uma leitura alegorizante: um Brasil, caracterizado pelo
desenvolvimento, pela pida mudança, em choque com um Brasil ainda arcaico, ligado às
profundezas dos caminhos que somente uma cultura mítica ou popular pode entender e
decodificar.
São esses caminhos entrelaçados que aparecem na última frase do parágrafo e são
sugeridos pela própria estrutura frásica: “Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do
jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se
desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre
juncos e mato, e ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele”. As rupturas sintáticas,
entrecortadas pelas vírgulas e o término da frase, bruscamente executada, deixando,
isolada, a contração “daquele”, representam ou sugerem, sintaticamente, o “esconderijo”,
onde o pai se resguardava. Ainda o mistério e a hipótese (note-se o imperfeito do
subjuntivo) rondam a frase, dirigindo o receptor pelo caminho do desconhecido. A
descrição, além disso, faz lembrar a toca de um animal, novo índice da integração do pai
com o Cosmos e as forças naturais.
42
Segundo FERREIRA (1986) e HOUAISS (2001), “avistado” significa “ver ao longe, entrever (...)”
ambos os dicionários trazem essas acepções, dentre outras.
70
Oitavo parágrafo. O despojamento e a perplexidade.
“A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente
mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que
não queria, com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos.
O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, era como ele agüentava. De dia
e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano,
sem arrumo, com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos—
sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e
croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu
tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não
armava um foguinho na praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo.
O que consumia de comer, era um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as
raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o
bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido,
mesmo na demasia das enchentes, no subimento, quando no lanço da correnteza enorme
do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo—
de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não
falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se,
por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com
a memória, no passo de outros sobressaltos.” (ROSA, 1988: 34, 35).
Centralizado, este oitavo parágrafo (dentre os quinze do conto) é o mais longo.
Nele, verifica-se, principalmente, a perplexidade do narrador frente à vida que levava o pai.
É esta perplexidade que motiva, pela primeira vez, o narrador a fazer, ele mesmo, já adulto,
uma pergunta ao receptor (diferente do que ocorreu no segundo parágrafo, em que a
pergunta era da e, por discurso indireto livre, e diferente do terceiro parágrafo, em que
ele, menino, faz uma pergunta direta ao pai). Veremos que esse será um procedimento
importante, principalmente na terceira parte, aquela que se refere à culpa, com tonalidade
trágica. Aqui, contudo, o tom da pergunta é de perplexidade. Neste trecho, os efeitos de
71
estilo, como antíteses, assíndetos, polissíndetos e acumulações enumerativas, criam a
impressão de despojamento que caracteriza a vida do pai na canoa, uma situação vista com
admiração pelo narrador. Cabe lembrar que interpretaremos a primeira antítese do
parágrafo como paradoxal, elemento que, neste parágrafo, que irrompe no ponto central do
conto, define a real posição do narrador.
As duas primeiras frases formam uma espécie de monólogo, em que o narrador
conversa consigo mesmo, interferindo, completando, corrigindo sua primeira opinião. O
pronome “aquilo” termina a primeira frase e inicia a seguinte, em que outras palavras são
retomadas: “a gente”, “acostumou”. A inclusão do termo “às penas” é o elemento que
corrige a primeira frase e pode ser entendido como uma renovação do clichê às duras
penas”, em que a conotação, contida na metáfora aliada ao adjetivo, já se apresenta
cristalizada
43
. Esse simulacro de conversação confere ao texto espontaneidade e oralidade,
elementos que, como sabemos, custa muito a criar.
A antítese existente na frase “(...) no que queria, e no que não queria, com meu
pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos.”, embora apresente fatos
separados (querer algumas coisas e não querer outras), pode ser entendida como paradoxal,
na medida em que é a essência da posição do narrador, esse homem de dois mundos: no
limite, o narrador expressa que “quer e não quer a mesma coisa”, que admira o ato do pai,
que sempre lhe será um símbolo de busca, mas antecipa que não terá coragem para levar
sua “tristonha teima” adiante (fato que gerará a sua culpa).
O tom apresentado na frase seguinte reintroduz a perplexidade ante o mistério: “O
severo que era, de não se entender de maneira nenhuma, era como ele agüentava.”. A
substantivação do adjetivo “severo” é expressiva, pois destaca a força da palavra utilizada.
Ao mesmo tempo, “severo” evoca as dificuldades do despojamento, as dificuldades da
sobrevivência numa Natureza “severa”. Além disso, note-se que o verbo (“era”) é repetido,
constituindo forte marca de oralidade, corroborando para a desorganização da frase e a
emoção do trecho. Organizando a oração e tornando-a mais intelectiva que expressiva,
teríamos: “era difícil entender como ele agüentava aquela situação”. Note-se que se
perderam os fatos expressivos principais (substantivação do adjetivo, uso de adjetivo
43
Os dicionários de época consultados não registram a expressão “penas” como parte de locução. Não
registram, pois, “às duras penas”, nem “às penas”. FERREIRA (1986) e HOUAISS (2001) também não
registram a locução.
72
neutro, que não traz as mesmas possibilidades expressivas de “severo”, marcas de oralidade
e sintagmas de ênfase). As enumerações a seguir ilustram mais ainda os fatos.
Consideremos, agora, a oração: “De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor,
sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, com o chapéu velho na
cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos sem fazer conta do se-ir do viver”. O
trecho é constituído por muitas antíteses: “dia/noite”; “sol/aguaceiros” (em “aguaceiros”, há
também uma metonímia, em que a causa (chuva) está omitida pelo produto, pelo efeito
(água) ); “calor/friagens” (novas metonímias para “verão/ inverno”). Note-se um outro fato
sutil: nos três fatos mencionados, percebemos que o primeiro opera com uma antítese com
antônimos diretos e denotativos, na segunda expressão, um dos elementos é marca de uma
nova conotação (devido à metonímia), e, por fim, no terceiro fato estilístico, ambos os
elementos podem ser entendidos como metonímicos, em que há o apelo para imagens
tácteis. Também chamaríamos a atenção para a oposição dos adjetivos: “serenos/terríveis”.
Esse grupo de referentes descritos junta-se ao polissíndeto de (...) todas as semanas, e
meses, e os anos (...)”, que, atrelado a uma pontuação impressionista, criam um efeito de
emoção e perplexidade do narrador frente a esse conjunto de índices do despojamento do
pai diante das agruras da Natureza. Ao ler essas frases em voz alta, respeitando a pontuação
(único sistema de que a escrita dispõe para representar a entoação), assíndetos no início,
polissíndetos no final, justaposições, nota-se claramente a emoção: “um débito rápido, que
mal deixa o locutor respirar ou o interlocutor coordenar idéias, poderá ser indício de uma
forte emoção” (CRESSOT, 1980: 42).
O termo “se-ir”, em “sem fazer conta do se-ir do viver” é daqueles achados
estilísticos de Rosa, dignos de observação atenta. Em quatro sílabas, impressiona um
conjunto de elementos morfossintáticos e de oralidade. Ocorre uma substantivação de uma
construção verbal, em que o “se” seria um índice de indeterminação do sujeito. Quando
uma pessoa pergunta a outra: “Como vai indo?”, é praxe responder: “Vou indo”, ou “Vai-se
levando”, quando quer dizer que sua vida ocorre normalmente, sem grandes lances de
felicidade ou tristeza. Apenas o normal. Rosa renova esse clichê, primeiro substantivando o
ato verbal com sujeito indeterminado a constância dessa conversação é tão comum no
dia-a-dia que mereceria, por parte do criador, fazer a manutenção dessa oralidade e situação
comezinha, por meio de um substantivo. Em segundo lugar, a expressão ganha uma vida
73
simbólica porque é um exemplo da estilística da adaptação. O “se-ir do viver”, de que o pai
não “conta” (outra marca de oralidade), é aquela vida da comunidade, da normalidade,
sem as grandes dificuldades enumeradas. Em “Mas não armava um foguinho em praia, nem
dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo.”, há mais um assíndeto, verificado
na última oração. As ações, encadeadas emocionalmente, definem uma enumeração
negativa, que representa o despojamento do pai, bem como de sua experiência. A palavra
“foguinho”, com o diminutivo -inho”, visa a representar a mais ínfima necessidade do
homem, e também assume, por isso, certo valor carinhoso. Novos assíndetos ocorrem na
frase seguinte, sempre com efeito que acabamos de mencionar.
Mas o efeito de despojamento não está somente nesses assíndetos que enumeram
ações do não. Além do nível frásico, também o reconheceremos no nível léxico. Em Não
pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão
nem capim.”, o uso do verbo “pojar” precisa ser analisado. Aqui, o seu significado é antigo,
arcaico. É, portanto, um arcaísmo. MARTINS (2001: 391) apresenta os seguintes
significados para “pojar”: “desembarcar, saltar em terra; (fig.[uso figurado]) aproximar-se”.
LELLO (1961: 968) sugere o significado de desembarcar, acrescentando que é um
vocábulo “antigo” e sugerindo que o leitor veja também “pujar” (“V. pujar”)
44
.
Ainda do ponto de vista da estilística léxica, mencionaríamos o uso de “bastável”,
em “(...) ele recolhia pouco, nem o bastável”. O uso substantivado — do adjetivo
44
Considerem-se as seguintes acepções: “Pojar. V.i. (lat. Hip. podiere. Ant. [abreviatura que significa
“antigo”] Desembarcar. V. t. Elevar. Entumecer. Engrossar. V. [ver] Pujar”.
Em “pujar”, lê-se: “superar, vencer. Aumentar o valor de.” (LELLO, 1961: 1011). Em “pujança”,
lê-se: “grande força. Poderio, superioridade. Robustez, vigor.(...)(LELLO, 1961: 1011). Em “despojar”, lê-
se: “v t. [verbo transitivo] (cast. despojar) desapossar, espoliar: despojar uma herança. Privar: despojar de
glória. (...)”. (LELLO, 1961: 372).
Segundo HOUAISS (2001), “pojar” é um parônimo de “pujar”. Obviamente, a paronímia não
pressupõe identidade ou semelhança semântica a semelhança é apenas fonológica: paronímia é “a
circunstância de vocábulos diversos terem estrutura fonológica semelhante, apresentando como parônimos
entre si” (CÂMARA JÚNIOR, 1998: 187).
Talvez devido a esses aspectos, possamos argumentar que, apesar de o uso denotativo de “pojar”
(“desembarcar”) ter sido motivado pela sua significação arcaica, “pojar” pode evocar também “pujar”. Talvez
não leiamos a frase do conto apenas como: “não desembarcava em nenhuma das beiras”. Talvez leiamos
também: “não tinha pujança, poderio, superioridade, em nenhuma das beiras”. Ou seja, o despojamento da
vida do homem na canoa era a distância da vida material das margens do rio, das margens racionais e lógicas
da vida. Vemos, numa única palavra, que o arcaísmo não é gratuito, não é mera retórica literária. Usou-se o
arcaísmo expressivamente; a ele, somou-se, talvez sugestiva e vagamente, o significado expressivo do seu
parônimo.
74
deverbal neológico (graças ao sufixo “-vel”, atrelado ao verbo) intensifica o efeito de
negação ao supérfluo.
O uso das negativas, fato em que insistimos sempre, aparece novamente aqui, com o
mesmo efeito: a negação da vida cotidiana, normalizada e normatizada. Na conclusão deste
trabalho, fazemos uma contagem das negativas de todo o conto.
As constantes substantivações verificadas ganham mais um exemplo, em “Por certo,
ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração de canoa (...)”, em que o termo
“tanto”, geralmente um advérbio, aqui é substantivado, marcando uma oralidade regional.
A pergunta do narrador é exemplo de sua perplexidade. “Não adoecia?”. O narrador,
enumerando todos aqueles fatos e ações, espanta-se ante a força e coragem daquele homem,
vencendo as prováveis dificuldades naturais que ele, narrador, homem da sociedade normal
e racional, tenta imaginar e sobre as quais medita, atraído e perplexo.
Embora a frase seguinte seja desprovida do ponto de interrogação, seu início
mantém alta a perplexidade: “E a constante força dos braços, para ter tento na canoa,
resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, quando no lanço da
correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-
árvore descendo de espanto de esbarro.”. O uso do conectivo aditivo “e”, que ocorre
nesta e na próxima frase, é um elemento que exemplifica o espanto do narrador, que não se
cansa de levantar hipóteses sobre a vida do pai na canoa, não se cansa de admirar,
boquiaberto, a empreitada do pai, cujos esforços realizam-se diante da força (e brutalidade)
dos elementos da Natureza. O uso da palavra “tento” forma uma aliteração com o curto
verbo “ter”, devido às três repetições imediatas do fonema /t/. O sentido de “tento é
figurado. Com efeito, não se trata de sentido, cuidado ou juízo” (LELLO, 1961:1203),
nem sequer de “cálculo”. Aqui, metonimicamente, a palavra conota “firmeza”, “equilíbrio”,
que essa idéia está presente em várias acepções de “tento”
45
. Apesar de não serem as
45
HOUAISS (2001) e FERREIRA (1986) apontam o vocábulo como um brasileirismo, cujo significado
também pode sugerir firmeza: “tirinha de couro, na parte superior dos arreios, à qual se prende qualquer coisa
que se deseje trazer à garupa” (FERREIRA, 1986). Essa acepção es em verbete separado das demais
explicações, em ambos os dicionários.
Os três principais dicionários consultados registram um significado ligado à Pintura: “varinha, dotada
de uma esfera ou boneca de pano na extremidade, que o pintor encosta à tela e que serve para apoiar a mão
que segura o pincel” (HOUAISS, 2001).
HOUAISS (2001) acrescenta, ainda, uma outra acepção para “tento”: “utensílio de barro para
amparar as panelas no fogareiro”. Cabe destacar que esta última acepção, apontada por HOUAISS (2001)
75
primeiras definições as usadas, não deixa de ser observável que uma palavra contenha a
tensão do conto, afinal, o juízo racional é próprio do homem que fica nas margens, e não no
rio. Acontece que quem está narrando os fatos não é o pai, é o filho, que é um homem de
dois mundos. Todas as suas elucubrações presentes nesse trecho provam que o filho
demonstra uma perplexidade muito grande, que, no entanto, nasce de suas operações
racionais: o narrador opera com a racionalidade do mundo, embora também lhe atraia a
busca empreendida pelo pai. O verbo “resistir”, tão significativo sempre, é também usado
no particípio. A imagem que temos é a do produto da ação: o homem firme, em meio às
provações da Natureza.
Mas voltemos ao som, que oferece muitas possibilidades expressivas, neste trecho.
Mais duas aliterações estão presentes: “(...) correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso
aqueles corpos de bichos mortos (...)”. No trecho, o fonema vibrante /r/ sugere um
movimento constante da própria correnteza e ocorre, principalmente, em “correnteza,
enorme, rio, rola”, e também em “corpos e mortos”, onde também se verifica uma rima
toante (orpos/ ortos). Uma assonância e uma nova aliteração aureolam o trecho,
respectivamente, da vogal /e/ e da consoante sibilante /s/, em “(...) espanto de esbarro”. E,
mais uma vez, os fatos da estilística fônica não são gratuitos sugerem a impetuosidade
da correnteza, fazendo esbarrar os corpos de bichos e os paus-de-árvore, que, em constante
movimento, se esbatem nas próprias quedas d’água. Devido aos muitos efeitos sonoros
presentes nesse trecho, pode-se apontar um outro fato estilístico que resulta desse conjunto,
que procura imitar o correr da correnteza e os sons resultantes dessa movimentação de
águas e dos objetos que nelas ocorrem. É a chamada harmonia imitativa:
Em se tratando de Estilística, não se pode deixar de referir um sentido mais amplo
atribuído ao termo onomatopéia: é o da harmonia imitativa, que se estende ao longo do
enunciado, de um fragmento de prosa, de um poema, e que resulta de um aglomerado de
recursos expressivos: peculiaridades de fonemas, repetições de fonemas, de palavras, de
sintagmas ou frase, do ritmo do verso ou da frase”. (MARTINS, 1989: 50).
como um regionalismo do Alentejo, não consta nos outros dicionários consultados, nem no dicionário
português LELLO (1961).
Mas o que importa disso tudo, para a expressividade da palavra dentro do conto, é a idéia existente
nessas várias acepções anotadas: firmeza, segurança, equilíbrio idéias evocadas metonimicamente
(objeto/função do objeto).
76
Com efeito, no trecho analisado, não notamos nenhuma onomatopéia no sentido
estrito (como, aliás, não ocorre no conto inteiro), mas no sentido mais amplo, um conjunto
de elementos sonoros expressivos, como os três grupos de aliteração e a uma rima. Todos,
juntos, marcam, foneticamente, uma representação vibrante da força da correnteza
movendo objetos no leito do rio.
Em “E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma”, o uso do aditivo “e”, como
foi dito, potencializa a idéia de despojamento, que visa a enumerar, assim como, num
procedimento diferente, os assíndetos o fazem, atitudes despojadas em meio ao rigor
imposto pela Natureza, ante os olhos perplexos do narrador. Tal despojamento, porém, não
é somente material. O pai abdica também de atitudes humanas, de homens que precisam
relacionar-se para a convivência social — daí a idéia de aproximação com o mundo animal,
de homem entocado e distante do convívio (idéia que começou a ser discutida na símile do
terceiro parágrafo, e que ainda será retomada): “E nunca falou mais palavra, com pessoa
alguma.”. Aqui, nota-se que o processo de silenciação, indiciado pela primeira vez no
primeiro parágrafo pela frase nominal, inorgânica, chega à sua condição maior. O silêncio
humano, aqui, é total: além do uso do conectivo, no início da frase, o uso do pleonasmo
“falar palavra”, em “E nunca falou mais palavra (...)”, intensifica a ausência contida na
negativa, mantendo a perplexidade do narrador ante esse fato. Além disso, a locução
adverbial “nunca mais” aparece fragmentada, envolvendo o verbo “falou”, como a criar um
círculo de ferro, tornando o ato de “falar” ainda mais impossibilitado.
A frase seguinte muda o foco da narrativa: “Nós, também, não falávamos mais nele.
se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a
gente fazia que esquecia, era para se despertar de novo, de repente, com a memória, no
passo de outros sobressaltos.”. A frase “Só se pensava” é a mais curta do excerto (com
exceção da frase da pergunta), constituído por períodos com longas enumerações. A frase
curta deixa em suspenso os pensamentos, que, não sendo explícitos, não podem ser
revelados, especialmente por ser o narrador não onisciente, que tem acesso apenas à sua
própria psicologia, como se verificará na terceira parte. Mas consegue captar o mistério da
presença do pai: note-se um novo uso do verbo fazer, uma marca de oralidade (“(...) fazia
que esquecia (...)”).
77
A palavra “sobressalto” é triplamente importante: é um fato estilístico léxico,
explicita o efeito existente no ritmo das palavras que o precede, e forma uma aliteração com
outras palavras.
Do ponto de vista léxico, a palavra “sobressaltos” é essencial por representar um
estado de experimentação psicológica obscura, e do mistério que envolve, não somente a
ida do pai, como também a casa e seus familiares.
A pontuação, aliada à distribuição da matéria fônica de cada palavra, define um
ritmo da frase que sugere os sobressaltos: “(...) era só para se despertar, de novo, de
repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos”, especialmente no trecho “se
despertar, de novo, de repente, com a memória, no passo (...)”, em que as vírgulas
entrecortam a frase e, juntamente com a aliteração da plosiva sonora /d/, intensificam o
acento das preposições “de, de, com”. O segundo acento tônico dos sintagmas
preposicionais varia proposital e expressivamente. Em “de novo”, temos a seguinte
distribuição: ÁTONA (de) + TÔNICA (no) + ÁTONA (vo). Em “de repente”, temos
ÁTONA (de) + ÁTONA (re) + TÔNICA (pen) + ÁTONA (te). Em “com a memória”,
podemos notar uma elisão, e interpretar assim: ÁTONA (com a) + ÁTONA (me) +
TÔNICA (mó) + ÁTONA (ria). Estilisticamente, cabe observar que, na primeira seqüência,
a tônica aparece apenas entre duas átonas, o que, no constructo sonoro, sugere o primeiro
sobressalto, mais intenso. Com a elisão, que é um elemento que podemos ou não
interpretar, pois isso depende muito de como se lê, temos ritmos marcados de modo exato
entre o segundo e terceiro constituintes (A A T A), o que teria marcado a distância entre
as tônicas (em relação ao primeiro constituinte “de novo”), sugerindo, expressivamente, o
enfraquecimento do susto. Se não interpretarmos a elisão, teríamos um efeito gradativo de
diminuição do susto, talvez ainda mais expressivo. Teríamos o seguinte quadro: ÁTONA
(com) + ÁTONA (a) + ÁTONA (me) + TÔNICA (mó) + ÁTONA (ria), em que o número
de átonas é maior, e a nica aparece apenas na quarta sílaba, diferente do que ocorre, por
exemplo, no primeiro trecho, em que a tônica é a segunda sílaba. Resumindo, teríamos o
seguinte esquema:
1) A T A
2) A A T A
3) A A A T A (sem elisão).
78
A essa expressiva distribuição dos acentos de intensidade das palavras dos
sintagmas, some-se a aliteração da consoante sibilante /s/: “no passo de outros
sobressaltos”.
Devido às duas aliterações, ao ritmo altamente significativo, neste trecho, também
se pode falar em harmonia imitativa, em que a convergência estilística de elementos do
léxico, da frase e do som, em comunhão de esforços, representa e sugere o mistério e os
sobressaltos que povoam a memória dos familiares de “nosso pai”.
Nono parágrafo: A festa contra o despojamento.
“Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se
comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas
noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai com a mão e uma cabaça para ir esvaziando
a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando
mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de
unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho,
conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos
fornecia.” (ROSA, 1988: 35).
As negativas, dirigidas pelo pai ao mundo das margens, também modificam, embora
não de maneira radical e decisiva, a vida da família. A “festa” é imagem visual de
conjunção social. Em outros tempos, talvez a mãe fosse a primeira a agendar as festas, não
pelo prazer individual que sentisse, mas pela oportunidade de manifestação social.
A construção a gente” é bastante oral, e inclui toda a família do pai. Acontece,
porém, um desvio de concordância sintática, nesse trecho: “A gente imaginava nele,
quando se comia uma comida mais gostosa (...)”. O sujeito da oração principal (“a gente”)
deveria ser o mesmo da oração adverbial temporal. Preferiu-se, porém, o uso da partícula
apassivadora “se”, que transforma em sujeito “uma comida mais gostosa”. Percebe-se que,
com esse procedimento, o narrador se excluiu. É que ele, homem de dois mundos, embora
79
não tivesse a coragem de partir, vê a experiência de despojamento do pai como um
símbolo, como uma verdade. Aqui, o despojamento é lembrado por oposição à pujança,
existente num pleonasmo sugestivo: “se comia uma comida mais gostosa” — note-se que o
pleonasmo, a figura do supérfluo, da repetição do sentido, é altamente expressiva para
representar os elementos desnecessários, de que é feita a pujança.
Outro desvio sintático é de ordem regencial. O verbo “imaginar” requer um
argumento que seja um sintagma nominal, não preposicional. No entanto, usa-se
“imaginava nele”. Na verdade, usa-se o verbo “imaginar”, que remete à fantasia, porém, a
regência escolhida corrige esse sentido mágico, fantasioso: “imaginar” vira, então, quase-
sinônimo de “pensar” daí a regência com um sintagma preposicional. Além disso, o uso
da regência de “imaginar” com objeto indireto pode constituir uma marca de oralidade
regional. É, sem dúvida, um procedimento de ousadia de sinonímia e de regência (estilística
do léxico e da frase). No entanto, convém insistir: por que o narrador não usou, então,
“pensar”? O uso do verbo “imaginar” é importante, porque aproxima, levemente, os
personagens circunscritos nas margens convencionais (“a gente”) ao universo da não-razão,
do mágico e do mítico. A regência utilizada, por contaminação de “pensar”, que vira, então,
como acabamos de mostrar, quase-sinônimo de “imaginar”, corrige essa aproximação e re-
coloca os personagens das margens lógicas em seu mundo objetivo, da razão e das
convenções.
Novas imagens do despojamento estão em “(...) assim como, no gasalhado da noite,
no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai com a mão e uma
cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal.”. A palavra desamparo” é um
exemplo do sentimento de medo do narrador ante o seu pensamento sobre o pai, sozinho e
sofrendo as intempéries naturais. Os termos “fria, forte formam uma aliteração da
consoante constritiva labiodental /f/, que, por seu caráter de duração contínua, sugere a
constância da chuva e do temporal.
uma antítese nessa passagem que merece alguma reflexão. São os termos
“gasalhado/ desamparo”. O primeiro termo é um adjetivo substantivado, e está, portanto,
em destaque, mais independente do substantivo que ele caracteriza. Em princípio, podemos
objetar contra o uso do termo “gasalhado”, que evoca “aquecimento e conforto”
sinônimo de “agasalhar”, que, segundo LELLO (1961: 32), significa, dentre outras
80
definições mais óbvias, “abrigar, recolher em casa, hospedar, aquecer, acolher com
benignidade, com carinho”). MARTINS (2001: 246) aponta “gasalhado” como uma forma
arcaizante. Ora, qual a razão do uso do termo, numa frase que quer expressar justamente o
contrário? A antítese tem, no entanto, propósito. É que a acolhida e o aquecimento o se
baseiam no sentido lógico de “casa”, de “hospedagem’; é o abrigo do elemento da
Natureza; é o próprio desabrigo material. É, no limite, uma metáfora para a integração ao
Cosmos, à Natureza
46
. É o homem entregue à luz da escuridão noturna e natural, que o
Cosmos lhe oferece, não àquela “luz feita” (escrita no parágrafo anterior), fabricada e
artificial. Esse abrigo, que significa desabrigo material, é o próprio despojamento, mas,
aqui, é, pela primeira vez, definido com a afirmação, não com a negativa. Isso é sutilmente
importante, na medida em que conota a interação entre o homem e o Cosmos. Se tivesse
sido preferida a forma mais usual, “agasalhado”, evocar-se-ia um aspecto mais material,
apontando valores mais próximos à sociedade das margens, aos objetos da civilização (não
da Natureza). A negativa do elemento social é prerrogativa para essa interação, que é
afirmativa. Isso, porém, ainda não explica a antítese. Por que, então, se o narrador queria
montar uma imagem de integração com o Cosmos, escreve “desamparo”? Essa explicação
já é de se supor: novamente, não nos esqueçamos de que tipo de narrador é o filho. Homem
admirador e entusiasta da atitude do pai, mas, ao mesmo tempo, homem preso aos valores
da atitude normal, da razão e da lógica. Aquilo que admira é a integração a que nos
referimos acima. Daí “gasalhado”. Porém, esse abrigo é, para ele, narrador, o desabrigo, e o
despojamento é o desamparo assustador das noites frias, que tanto faz com que tema pelo
pai, a quem, no entanto, admira e cujo ato talvez até entenda.
Essa integração está disseminada no conto. Vimos a mile entre o homem e o
jacaré, vimos o processo cada vez maior de silenciação, que, aliás, também é um fato que
está disseminado e cuja representação acontece aos poucos. Uma nova comparação será
mais um índice para essa isotopia. Desta vez, no entanto, a comparação está presente na
46
Essa idéia, de integração do homem com o Cosmos, à Natureza, refere-se a uma dimensão mítica, mas
parece dialogar também com um setor da crítica literária que vê, na obra de G. Rosa, aspectos esotéricos.
Embora essa comparação possa ser feita, não é o propósito central desta análise. A idéia também se liga à
crítica à razão, na medida em que o personagem encontra a Natureza, desprovido dos objetos da civilização:
sua relação com o que não é humano, com o Natural e o animal, não se nos “atrozes laboratórios de
fisiologia”, como aponta ADORNO e HORKHEIMER (1986: 229), numa frase que será retomada na nota 69,
mas de uma maneira despojada da razão, da ciência e dos objetos de civilização, como a buscar uma outra
verdade, sempre oculta e incapaz de ser alcançada por aqueles métodos.
81
seguinte descrição: “Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas
grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme
quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos
fornecia.”, o que primeiro temos de mencionar é o sufixo -udo” que forma uma rima
imediata entre “cabeludo, barbudo”, e que compõe, juntamente com a aliteração da
consoante mole /m/, em “mal e magro” os fatos da fonoestilística. Não vemos, contudo, no
caso específico do uso desse sufixo, a carga pejorativa que pode apresentar em outros
contextos. A descrição evoca no receptor uma imagem visual animalizada, que, por fim, a
símile “com aspecto de bicho” também ajuda a caracterizar. As descrições compõem
também um quadro mítico-religioso.
Décimo parágrafo: O afeto contra os índices da razão.
“Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito,
sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava:
Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...’; o que não era o certo, exato, mas, que
era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da
gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-
encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria
mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de
vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido
dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não
apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.” (ROSA, 1988: 35).
Este é o parágrafo em que o narrador manifesta vários índices de sua situação de
homem de dois mundos: o orgulho que sente do pai e certa decepção em relação a uma
atitude do pai. Por isso, é também um parágrafo rico em antíteses. As negativas das
primeiras orações já provam isso. No limite, a pergunta do narrador é: negando a realidade
objetiva, o pai negava também os afetos que tinha para com sua família? Uma nova
82
pergunta (a segunda, em todo o texto) do narrador, diretamente ao receptor: “(...) não tinha
afeto?” insere certo desgosto em relação ao pai, que o narrador não compreendia por que
o pai não “demonstrava” os afetos.
Porém, imediatamente, a seguir, ele confirma o orgulho que nutre pelo pai. Em “não
era o certo, o exato”, podemos identificar a litotes. Sobre esta figura, escreve CRESSOT
(1980: 57):
As circunstâncias podem levar-nos a atenuar o nosso pensamento (...) O espírito,
numa espécie de defesa, recusando envolver-se numa afirmação, usará expressões
negativas que o não comprometam: é o caso da litotes. Um homem do campo não dirá que
sua colheita é magnífica, mas sim que não é má. A litotes corresponde também a uma
atitude de conciliação, uma vez que uma afirmação contém sempre algo de peremptório.
Dizer, a propósito de um quadro, que não está mal, é diferente de dizer que está bom; não
será, necessariamente, dizer menos, mas equivalerá a um desejo de influenciar o menos
possível o ouvinte, deixando-lhe uma hipótese de julgar por si, com toda a independência”.
O narrador, após ter manifestado certa decepção, em relação à ausência do pai, nas
frases anteriores, busca (obviamente, para si próprio, dentro de seu próprio discurso e
julgamento) uma imediata conciliação com a figura do pai. E o faz por meio da litotes.
A antítese paradoxal que se segue à litotes, “(...) era mentira por verdade”, atesta
esse sentimento de orgulho. O narrador reproduz sua fala (“Foi pai que um dia me ensinou
a fazer assim”), que prova o seu orgulho em relação ao pai. A omissão do artigo, que
deveria preceder “pai”, aqui, é marca oral da variante lingüística regional, e evoca uma
maior proximidade e intimidade do narrador com o referente. A “mentira por verdade” é
justamente o fato de o pai não ter ensinado o filho direta e explicitamente, como reza a
cartilha da sociedade das margens (representada nas palavras afirmativas “exato”, “certo”,
adjetivos substantivados que compõem a litotes de que falamos acima). No entanto, os
valores simbólicos (“o que queria e no que não queria”, de um dos parágrafos anteriores),
que a atitude do pai representava, foram ensinamentos, elaborados num verdadeiro “curso”
(sentido que aparece no quinto parágrafo, no verbo “cursar”, que discutimos) de auto-
conhecimento e de busca.
83
A proximidade do pai também é de outra linhagem: “Sendo que, se ele não se
lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para
outras paragens, longe, no não-encontrável?”.
As duas perguntas existentes no trecho representam o narrador como homem de
dois mundos. Na primeira, sua presença na vida racional o faz indagar sobre a ausência de
demonstrações de afeto. Os elementos que envolvem a primeira e a segunda frase do
parágrafo formam uma isotopia que evoca uma idéia de “amor próprio”, como “louvavam”,
“sempre”, “bom procedimento” (com elementos de humildade, como “às vezes”, “algum
meu”, em “algum meu bom procedimento”). A primeira dúvida (“não tinha afeto?”) está
envolta nesses elementos de amor-próprio: a necessidade dos afetos e da sua demonstração
é, por si mesma, uma necessidade de afirmação do amor-próprio.
a segunda pergunta abre-se para a tentativa de interpretação do outro. E pode
enxergar, na atitude do outro, a máxima demonstração de afeto. O pai ainda rondava a casa,
mas à sua maneira: todos sempre o souberam próximo da casa ele nunca fora ao “não-
encontrável”. Aqui, percebe-se outra ousadia morfossintática de Rosa, nas particularidades
desse uso. Substantivam-se dois sintagmas, um adverbial, outro adjetival (“encontrável”),
que, por sua vez, pode ter feição neológica (LELLO (1961) não o registra; FERREIRA
(1986) e HOUAISS (2001) registram-no, mas não informam a datação da palavra): o sufixo
“-vel” soma-se ao verbo “encontrar”. Com esse procedimento, concretiza-se (por meio da
substantivação) o indeterminado, o vago (graças principalmente ao neologismo e ao próprio
sufixo “-vel”, que tem esse caráter) do espaço a que o sintagma se refere.
A curta frase seguinte apresenta uma ruptura sintática: “Só ele soubesse”. O verbo
“saber” precisa de mais um argumento (além daquele ocupado pelo sujeito). A curta frase
recupera a contradição principal do parágrafo, justamente pela ausência do argumento. Se
fosse escolhida uma outra construção, como “Só ele soubesse isso/disso”, o objeto direto
em questão remeteria somente à última frase, que é apenas uma das faces da contradição.
Além disso, o uso do imperfeito do subjuntivo é notável — o narrador não tem o acesso aos
pensamentos e motivações do pai, apenas os intui, apenas acha que o pai sabe a razão, é
apenas uma hipótese sua.
Com o uso do conectivo adversativo “mas”, em “Mas minha irmã teve menino, ela
mesma entestou que queria mostrar para ele o neto.”, o narrador vai reintroduzir a primeira
84
face da contradição a dúvida sobre o afeto do pai em relação à família. O uso do verbo
“entestar” é expressivo. O sentido, com que é usado, não é nenhum daqueles que levanta
LELLO (1961: 441)
47
. FERREIRA (1986) registra um segundo verbete para “entestar”,
onde se lê: “pôr testo a, cobrir com testo”. Em “testo”, lê-se: “enérgico, firme, resoluto”
(FERREIRA, 1986). Esse adjetivo (oriundo, segundo HOUAISS (2001), de “testa” — “por
alteração da vogal temática a para –o”
48
) é utilizado em linguagem “fam. [familiar]”
(FERREIRA, 1986) ou “uso informal” (HOUAISS, 2001). Aqui, portanto, “entestar”
remete a uma imagem de firmeza, de decisão: podemos dizer que a palavra é utilizada
metaforicamente ao pé da letra: “colocar na cabeça”, expressando, por metáfora, “afirmar”,
“decidir de maneira veemente”. É uma palavra formada do adjetivo “testo”, por derivação
parassintética: prefixo “en-e sufixo formador de verbos “-ar”. A decisão, tão firme da
irmã, que aparece muito pouco no conto, deve-se à hipótese, formulada por ela, de que o
“pai”, ao ver o seu neto, retornaria.
Embora o narrador não compreenda a razão pela qual o pai não apareceu, há muitos
índices no seu discurso que marcam a isotopia de afirmação do mundo, que o pai nega.
Senão, vejamos: “Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido
branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela
segurou, para defender os dois, o guarda-sol”. Algumas palavras utilizadas representam
valores do mundo das margens: “vestido branco, que tinha sido o do casamento”,
“defender”, “guarda-sol”. O “vestido do casamento” é o símbolo máximo da união, mas nos
moldes da sociedade organizada e ordeira. O uso do verbo “defender”, em “(...) marido dela
47
“Entestar. V.i. [verbo intransitivo] Defrontar: Lisboa entesta com Almada. Confinar: a minha propriedade
entesta com a dele pelo nascente. Ser limítrofe ou contíguo. Roçar, tocar: o Sol entestava com o mar.”
(LELLO, 1961: 441).
Apesar de podermos analisar, nesses exemplos, os constituintes formados por sintagmas
preposicionais como exercendo uma função de argumentos (e não adjuntos), tendo uma função sintática de
objeto indireto ou mesmo direto, como em (3), no sentido de “tocar”, LELLO (1961) classificou-o como
intransitivo (V. i) . Afinal, seriam agramaticais os exemplos: (1) *Lisboa entesta.; (2) *O sol entestava. No
sentido de “tocar” , do exemplo (2), talvez pudéssemos aceitar um sintagma nominal preenchendo o segundo
argumento: (3) ? O sol entestava o mar. De qualquer maneira, essas acepções não estão em jogo, no contexto
do conto.
48
Essa alteração da vogal temática de –a para –o (testa > testo (agora, como adjetivo)) é muito comum na
linguagem popular. Segundo KEHDI (1996: 30), “(...) o povo, em sua linguagem espontânea, cria formas
masculinas sempre em –o; p. ex. [por exemplo], faz-se corresponder ao feminino coisa o masculino coiso,
inexistente na linguagem culta. São também dignas de nota formas como corujo, crianço, madrasto”.
Inclusive, segundo KEHDI (1996), esse fato é uma das provas segundo as quais seria preferível a abordagem
da flexão dos gêneros como uma oposição entre –o e a, e não morfema zero (para o masculino)/-a, como
propusera J. Mattoso Câmara.
85
segurou, para defender, os dois, o guarda-sol”, é expressivo. A imagem visual que resulta é
a própria imagem de segurança que a sociedade racional, na instituição da família,
promove. O “marido dela” executa a ação de um homem cumpridor, do homem que
proporciona a segurança familiar. O verbo “defender” e o substantivo “guarda-sol” são
antagônicos ao mundo ao qual o pai se havia integrado (vimos, no parágrafo anterior, a
integração do pai com o Cosmos e com a Natureza). O trecho em questão pode ser
interpretado como uma alegoria da sociedade racional, habitante de uma das margens do
rio, devido às seqüências de imagens conotativas que são apresentadas.
O parágrafo termina com uma marca de oralidade (“aí”), numa frase em que
apresenta um assíndeto e uma elipse bastante comum no predicado verbo-nominal
([estávamos] abraçados) fatos estilísticos que sugerem uma tonalidade emocional
marcante ao trecho: “Minha irmã chorou, nós todos choramos, abraçados”. A marca de
oralidade mencionada aponta um momento específico e guarda uma idéia conclusiva (“nós
todos, então, choramos”), que tem, por finalidade última, destacar a proximidade do
narrador ante sua família: ele, que, muitas vezes, se esquiva das atitudes dos personagens
que compõem sua família (pois é um homem de dois mundos, a quem o pólo da negação
dos valores compartilhados atrai), nesse momento, colocou-se a seu lado.
Décimo primeiro parágrafo: A transitoriedade e o abandono. A mudança contra a
permanência.
“Minha irmã se mudou, com o marido, para longe dali. Meu irmão resolveu e se foi,
para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe
terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu
fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da
vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei na vagação, no rio, no ermo sem dar razão de
seu feito. Seja que, quando quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que
constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele
aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse
86
recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo,
na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-
do-mundo, diziam:que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele
tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam
já em mim uns primeiros cabelos brancos.” (ROSA, 1988: 35, 36).
Se, no parágrafo anterior, uma das faces do tratamento do narrador é a hipótese de
que seu pai tenha abandonado a família, neste trecho, as ações que são narradas mostram o
contrário. É o último parágrafo da segunda parte do conto, de acordo com a divisão que
fizemos (aquela que apresenta os tons do surpreendente).
O gênero lírico e emotivo, que dominará totalmente a última parte do conto,
começa a dar sinais de força ainda maior neste parágrafo. A todo o momento, falamos da
imbricação entre poesia e prosa (valor dado ao ritmo, precisão quanto ao uso das palavras,
que adquirem um supersignificado, presença de rimas internas, aliterações, harmonia
imitativa etc.), característica marcante do estilo rosiano. No entanto, nestes próximos
parágrafos, esse fato é ainda mais visível, principalmente porque é acentuado pela emoção
do “eu” do narrador, que, neste parágrafo, demonstra a melancolia presente na terceira
parte, quando introduz a idéia de culpa.
A partida (o abandono) dos parentes é narrada de maneira concisa, em frases curtas,
de estruturas mais contínuas, entrecortadas apenas pelos pontos finais, que interrompem a
narração, e, antes que ela se torne desnecessária, mudam, nesses trechos, o foco para outros
personagens e suas ações, todas de partida e abandono: “Minha irmã se mudou, com o
marido, para longe dali. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos
mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma
vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida.”. A quantidade de verbos, próximos e
justapostos, evoca o mundo em constante movimento: “mudou (repetido duas vezes);
resolveu e se foi; terminou indo; residir”. Somente o último verbo não exprime ação:
87
“estava”. Soma-se a isso o tamanho das frases, e resulta, desse conjunto, a impressão do
mundo em rápido movimento.
49
O primeiro verbo desse grupo, “mudou”, remete à própria ação da transitoriedade.
Refere-se à irmã, e seu marido. Sua mudança é também a mudança de casa, de vida, de
família. Foi, antes de tudo, uma mudança em conjunto. “Minha irmã” não pertencia
somente a uma família. Já formava outra, e seu derradeiro ato de mudar é também a
derradeira voz de abandono do pai e de sua primeira família. É, antes de tudo, um ato feito
em conjunto com o seu marido daí o destaque que este referente tem, escrito entre
vírgulas. Isso explica o fato de ser apenas um verbo usado, diferentemente dos muitos
usados quando o narrador se refere ao irmão e à mãe: o poder de decisão da irmã está
atrelado e depende da proximidade do marido. O irmão é um personagem que nunca (com
exceção do primeiro parágrafo) é citado. Porém, masculino, numa sociedade masculina e
patriarcal, não precisa, como a irmã, da agremiação familiar para partir, e, embora o
personagem não tenha aparecido no correr do conto, tem, devido a esse único fato (de ser
masculino), a força de uma decisão tão pronunciada pelos verbos “resolveu e se foi”. É a
“razão” reguladora das convenções de uma sociedade que também prega a fidelidade da
mulher a seu homem. Ainda que “nossa mãe” sofra algumas modificações sutis no conto,
ainda que também seja envolvida pelo mistério, os ditames sociais são os elementos
decisivos para essa fidelidade: a construção “terminou indo” mostra que a mãe foi a última
a abandonar o posto. O adjetivo “envelhecida” também marca a transitoriedade e vai além
do sentido denotativo de estar velha”. Aqui, “envelhecida”, sugere, metaforicamente, o
cansaço físico e psicológico do tempo, da espera eterna pelo marido. É importante
comutarmos o termo, para entendermos o porquê do uso do derivado deverbal, e não do
adjetivo “velho”. Em “envelhecida”, derivação parassintética e sufixação:
“envelhecida” (3) < “envelhecer” (2) < “velho” (1). A etapa (2) corresponde à derivação
parassintética
50
, em que se verificam o sufixo “-cer” (que sugere ações contínuas) e o
prefixo “-en” (que pode sugerir envolvimento; no caso, do tempo). A etapa (3) é o adjetivo
49
Foi também o mesmo procedimento utilizado por Drummond, na segunda parte do célebre poema
“Quadrilha”, que é também a parte das bruscas mudanças que regem a vida de cada um dos actantes do
poema.
50
Note-se que seriam agramaticais as formas *envelho e *velhecer.
88
oriundo do verbo, pelo sufixo “-ida” (que pode sugerir a etapa final de uma ação, como em
“frutas amadurecidas”, “flores amarelecidaseste último exemplo é envolto, como no
caso de “envelhecida”, por um tom algo melancólico). O que pode explicar o uso de
“envelhecida”, em vez do menos expressivo “velha”, é justamente o aspecto da ação
contínua, da erosão contínua exercida pelo tempo no corpo físico e na magma psicológico
de “nossa mãe”. Com tal escolha, o envelhecimento é triplamente potencializado.
Entretanto, a frase que mais representa a transitoriedade é a segunda: “Os tempos
mudavam, no devagar depressa dos tempos”. Verificam-se, nessa frase, aliterações das
plosivas, especialmente as sonoras /d/, em “(...) mudavam, no devagar depressa” note-se
que, no principal conjunto aliterante, repete-se a primeira sílaba inteira (“de”). A repetição
sugere a contínua mudança, como um incansável e persistente ritmo do tempo. Além disso,
o paradoxo potencializa esse sentimento de mudança, sempre contínua, ainda que invisível
ao olho nu dos homens.
Opõem-se às primeiras frases do parágrafo, constituídas por sujeitos diferentes, as
seguintes frases: “Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci,
com as bagagens da vida.” São frases em que se verificam as funções emotivas e poéticas
da linguagem. A repetição do pronome pessoal, além de criar um paralelismo com as três
primeiras frases do parágrafo, chama a atenção para o “eu”. É talvez a primeira grande
expressão da emotividade “pessoal” do narrador no conto, antecipando a terceira parte, que
começa no parágrafo seguinte. Os dois verbos modais “poder” e “querer”, precedidos da
negativa, mostram o sujeito atado e fiel a apenas um único e inexorável destino: o ficar ali.
Também a locução adverbial “de resto” acrescenta um clima de solidão e vazio, elementos
adjuntos à transitoriedade e às grandes mudanças da vida. Forte simbologia ocorre em “(...)
com as bagagens da vida.”. A primeira figura que devemos apontar é a metonímia: o (peso)
das bagagens da vida. Trata-se de uma metonímia que omite o efeito e explicita a causa.
Resulta daí, por metonímia, uma imagem táctil de peso. A conotação, porém, ainda não está
explicada completamente. Uma segunda figura se avizinha a essa metonímia: a metáfora.
As “bagagens da vida” são o próprio fardo da existência, afetada pela brusca mudança. São
também as vidas que o narrador leva durante toda a sua vida, principalmente a maior
delas, o motivo, a razão que levou o pai a partir na canoa. O peso, sugerido pela metonímia,
é transposto, agora por metáfora, para um outro universo de sentido, o universo da própria
89
vida do narrador. O narrador criado por Rosa concentra, em uma única frase, as duas
principais figuras de linguagem, o que confere a essas palavras grande força simbólica,
criada pela lógica da metonímia, que estabelece relações contíguas entre os termos, e pela
subjetividade da metáfora, responsável pela transposição de sentido.
Esses dois grupos de três frases podem ser vistos e comparados. A primeira tríade é
o triângulo acirradamente pontiagudo e em constante movimento (troca de sujeitos, grande
número de verbos que indicam ações, dois sujeitos desse grupo têm dois verbos cada um); a
segunda, é o pequeno triângulo do eu é o triângulo estático, que, em vez do movimento,
representa a contemplação, em vez das atitudes rápidas, a angústia do lirismo e da
melancolia (um mesmo sujeito “eu”, verbos que indicam ações estáticas, uso de poderosas
figuras de linguagem).
A extremosa fidelidade do narrador pode ser traduzida na frase seguinte: “Nosso
pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio, no ermo — sem dar razão de seu feito.” O
uso do verbo “carecer” remete ao despojamento, porém, aqui, não é o despojamento
material, e sim espiritual quase a tradução de uma dependência silenciosa, obscura,
jamais explicitada, no acordo subentendido entre dois homens (o narrador e o pai). E esse
acordo, baseado no mistério, na dúvida, na perplexidade, é a própria razão da narrativa. A
palavra “vagação” evoca o vazio da vida. LELLO (1961: 1272) registra vagueação”, que
significa o ato de vaguear, peregrinar. Não obstante, o termo usado por Rosa é bem mais
expressivo. Em “vagação”, ao ato de peregrinar é somada a idéia de “andar sem rumo”, por
ser um substantivo advindo diretamente do verbo “vagar”, que, por sua vez, deve ter sido
originado do adjetivo “vago”, por meio de sufixação (sufixo “-ção”). FERREIRA (1986) e
HOUAISS (2001) registram o termo, com acepções levemente diferentes
51
. Parece-nos,
entretanto, que o significado sugerido por HOUAISS (2001) seja mais apropriado pelo
contexto: “ato ou efeito de ficar vago, vagamento”.
A dúvida que persegue o narrador o tempo todo é a causa de sua perplexidade.
Neste momento, tenta resolvê-la pela pergunta. O adjetivo “firme”, em “Seja que, quando
51
A definição de FERREIRA (1986) para “vagação” pede que o leitor reporte-se a “vadiação”, que explica
como “ato ou efeito de vadiar”. Ainda que o sentido de “vadiar” seja também (1) “andar à toa” e (2)“andar
sobre as vagas” (acepções de FERREIRA, 1986), as palavras “vadiação” e vadiar” podem sugerir uma carga
pejorativa que não cabe, neste ponto específico do conto. Tal efeito pejorativo, porém, foi procedente nas
considerações a respeito do segundo parágrafo, a respeito da palavra “vadiava”, presente num possível
discurso indireto livre da mãe: “(...)nessas artes não vadiava (...)” (destaque é nosso).
90
quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai,
alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa.”,
irrompe em uma frase em que dois verbos no subjuntivo, “seja”, “tivesse revelado”. O
ato de firmeza nada esclarece. O matraquear das alcoviteiras (que já foi sugerido por
algumas aliterações, no quinto parágrafo) é mais uma vez representado, desta vez, pelo jogo
das pessoas diferentes (sujeitos ocultos), pela repetição dos verbos e pela sonoridade que
eles apresentam: em “me diz-que-disseram” (uma renovação da forma “diz que diz”, ou
ainda “diz que me diz que”), o sujeito do primeiro verbo está no singular, o do segundo, no
plural (de terceira pessoa, que resulta num sujeito indeterminado, bem próprio numa
situação de comentários especulativos sobre fatos da vida particular de outrem), os sons
sibilantes se aliteram (em diz, disseram”), e, por fim, os verbos se repetem, como
representando o próprio redemoinho dos alcoviteiros e a imprecisão da informação, o que
se choca com o adjetivo “firme”.
Manifesta-se, aqui, uma intertextualidade
52
explícita com a história bíblica de Noé.
Também é um trecho em que se verifica oralidade: “Só as falsas conversas, sem senso,
como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não
estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem
Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro”. O trecho,
também constituído por algumas aliterações (sem senso”; todos temeram”), é mais um
exemplo de certa força religiosa que corre, subterraneamente, no conto. Algumas palavras
lembram muito o universo religioso (em outros parágrafos, vimos sina”, que aparece
novamente neste “vergonhosa”, a própria descrição do pai, na canoa, depois de alguns
anos, lembra uma figura mítica, uso da palavra “esconjurar”, entre outros fatos). No trecho,
“o avisado”, com o artigo definido singularizando e tornando único o particípio, também é
parte do universo religioso, profético, como ocorreria também em “o escolhido”. São as
hipóteses do mundo, que opera com a religiosidade popular que conhece, que ouve falar.
Com efeito, essa religiosidade popular àquela comunidade o sentido mágico que a vida
comum lhe rouba. É com esse substrato ideológico que as vozes do “diz-que-disseram”
52
A intertextualidade, dificilmente, aparece nas obras de Estilística. Entretanto, na nossa opinião, deveria
merecer atenção maior dos estilólogos. A intertextualidade aponta não somente para uma comunhão de
estilos, mas também para as bases de formação do estilo do autor.
91
operam para interpretar a magia, o mistério do homem vivendo na canoa, que talvez seja de
outra ordem, ainda que também apresente índices do religioso afinal, trata-se de uma
experiência epifânica do pai. Nesse sentido, a marca de oralidade do trecho, que nem”,
significando uma locução conjuntiva de comparação, é sintomática. Ainda se apresenta,
nesse excerto, o deslocamento do objeto direto “a canoa”, em “(...) a canoa ele tinha
antecipado (...)”. A antecipação a que o narrador se refere é reproduzida no nível sintático.
É, no entanto, uma hipótese em que o narrador não acredita, achando-a “sem senso”,
incapaz de explicar o fato. Cabe notar o fato de o narrador considerar “sem senso” as
hipóteses religiosas (de uma religiosidade popular) dos personagens das margens. A
utilização do substantivo “senso”, derivado de “sensatez”, evocativo da racionalidade das
margens (e recorrente no conto
53
), dentro da locução adjetiva, marca a idéia de que o
narrador, rechaçando a religiosidade católica popular (e algo herege), às vezes, é mais
cético e racional do que os personagens totalmente circunscritos nas margens. Pode-se
inferir que o narrador percorre quase todo o trajeto da adaptação e inadaptação: às vezes, é
um homem típico das margens, ainda mais racional do que os outros, em outras, mostra-se
bastante próximo à experiência do pai.
O uso do verbo “entrelembro”, formado por justaposição da preposição “entre”,
aliada ao verbo “lembrar”, é também sinal da desimportância que ele confere àquela
hipótese: ele se lembra apenas vagamente da hipótese “sem senso”. MARTINS (2001: 190)
destaca a idéia de imprecisão contida no verbo “entrelembrar-se”: “lembrar vagamente,
imprecisamente, a custo”. O verbo
54
pode ter sido construído à semelhança de “entrever”.
Também o sintagma “por tanto” é digno de nota. Escrito dessa maneira, permite-nos ler,
sem atentar para a ortografia, como conjunção conclusiva (“portanto”), ou como um
sintagma preposicional de causa (e, nesse caso, “tanto” é um pronome indefinido).
Em “Meu pai, eu não podia malsinar”, a palavra “sina”, que sugere, como já
mencionamos
55
, uma “má sorte”, aqui, pode apresentar também o sentido de “condenar”
veja-se esta acepção presente em HOUAISS (2001): “atribuir caráter mau ou censurável a;
53
A esse respeito, vejam-se as observações feitas sobre o quinto parágrafo.
54
LELLO (1961) não registra a palavra. FERREIRA (1996) e HOUAISS (2001) registram-na, mas não
informam sua datação.
55
Vejam-se observações a respeito do quinto parágrafo.
92
condenar, censurar, reprovar”. De qualquer maneira, a tonalidade afetiva da palavra aponta
para uma sensação duplamente negativizada, pois nela ecoam as palavras “mal” e “sina”
56
.
O objeto direto está novamente deslocado, em uma posição de destaque.
É a primeira vez, no conto, em que o narrador não usa o pronome possessivo plural
para referir-se ao “pai”. Aqui, ele utiliza: “meu pai” daí a necessidade de destacar o
termo, sintática e semanticamente. Todos os integrantes da família do narrador partiram,
fato entendido e interpretado como abandono. “De resto”, apenas ficou o narrador. O pai,
alegorizado no início, imerso no pesado jogo de relações sociais, é o único parceiro (oculto)
do filho-narrador, e vice-versa. o os dois homens restantes e resistentes no mundo em
constante mudança, ainda que pertençam a duas esferas diferentes. Note-se que, no mesmo
parágrafo, o narrador usa o possessivo plural, em “(...) constava que nosso pai, alguma vez,
tivesse revelado a explicação (...)”, pois essa é uma ação do passado, antes do abandono do
resto da família. Se o uso de nosso”, em todo o conto, serve para alegorizar as figuras do
pai e da mãe, e para indicar os pesados laços que regem a vida na sociedade, o uso de
“meu”, neste parágrafo, é marca da solidão e do abandono.
Em “E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos”, há uma ambiidade,
advinda, em parte, da posição que o sintagma “uns primeiros cabelos brancos” ocupa na
oração e dos sentidos do verbo “apontar”. Aliada ao duplo sentido que o verbo “apontar”
apresenta, a posição do sintagma nominal ajuda a criar uma dupla interpretação (sintática e
semântica): o sujeito da frase pode ser o sintagma “uns primeiros cabelos brancos”
(portanto, um sujeito em posição pós-verbal, como realmente acontece, quando verbos
intransitivos de ação) ou o sujeito pode ser indeterminado e o sintagma nominal
mencionado passará a exercer a função sintática de objeto direto (em posição pós-verbal,
como também ocorre usualmente na ordem direta do português). No primeiro caso, o
sentido de “apontar”, então, será de saírem pontas”. Com um sujeito indeterminado e o
sintagma mencionado exercendo a função sintática de objeto direto, o verbo “apontar”
56
Primeiramente, havíamos analisado “malsinar” como uma palavra formada por justaposição (adjetivo “mal”
+ verbo “*sinar”, inexistente sozinho, advindo do substantivo “sina”, pelo morfema “-r ”, formador de
verbos). Uma segunda hipótese seria pensar como advinda do latim malesignare” (forma que, no entanto,
não encontramos em TORRINHA, 1942 ), o que nos levaria à conclusão de que a palavra “malsinar” não teria
sido formada no português. De qualquer forma, em “malsinar”, ecoam, sincrônica ou diacronicamente, “mal”
e “sina”. HOUAISS (2001) e FERREIRA (1986) registram dois verbetes para “malsinar” (nas acepções
anotadas no corpo do texto). Como censurar”, HOUAISS (2001) aponta que o verbo veio de “malsim” (e
este do “heb. [hebraico] malxin, ‘denunciador, acusador’”). como “trazer sorte ruim”, segundo o mesmo
dicionário, o verbo teria vindo de “mal + sinar (<lat. [latim] signare, ‘pôr marca, marcar com um sinal’)”.
93
passará, então, a significar “notar, observar”. De qualquer forma, resulta, da ambigüidade, a
certeza da velhice, quer como observação feita pelos outros, quer como algo interno,
íntimo: a velhice indiscutível. Além disso, esses vetores externo/interno caracterizam
completamente o narrador, imerso na sociedade racional dos homens, porém admirador da
busca interior empreendida pelo pai, e que é incapaz de trilhar, como veremos na terceira
parte, que começa no parágrafo seguinte.
4. Terceira Parte do Conto: A Culpa. O Tom Melancólico e Trágico.
Décimo segundo parágrafo: A culpa e o desconforto da vida.
“Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o
meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio pondo perpétuo. Eu sofria o
começo da velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá
de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais.
De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa
emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo,
em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o
coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em
aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia”. (ROSA,
1988: 36).
O parágrafo inicia a terceira parte do conto, a mais lírica, a mais emotiva, a mais
ligada ao eu do narrador, aquela que caracteriza o fim trágico do homem de dois mundos.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, como vimos, no parágrafo anterior,
aparece o eu angustiado do filho-narrador, triste, sofredor das fortes mudanças que afetaram
a vida dos familiares e a si próprio e do peso da vida, toda ela constituída de uma grande
94
dúvida. No entanto, ainda aquele é um parágrafo fortemente narrativo. Neste, os traços
estilísticos do gênero lírico são ainda mais acentuados.
A mudança do foco causa um estranhamento inicial. Todo o peso de todas as
narrações, entrecortadas pela singular pontuação do texto, por frases coordenadas, pelas
enumerações, enfim, por todos os elementos que mencionamos em toda a segunda parte do
conto, encontra, já nesta primeira frase, uma ruptura muito grande.
Na primeira frase, verifica-se uma figura de linguagem chamada hipálage: “Sou
homem de tristes palavras”. O adjetivo “tristes”, embora se refira a “palavras”, é um
caracterizador do homem, de seu estado psíquico e de seu estar-no-mundo. Segundo
CÂMARA JÚNIOR (1998: 137), a hipálage dá
(...) maior relevo a um determinante [no nosso caso, “tristes”], associando-o a um
termo que não é, logicamente, o seu correspondente determinado, assim se criando um
sintagma inesperado; ex.: ‘o mistério hebreu das vozes dos profetas’ (Guimarães, Poesias,
316), em vez de — o mistério das vozes dos profetas hebreus.
Da mesma maneira, tristes” é realçado, ao ser atribuído a “palavras”, em vez da
atribuição, mais lógica e menos expressiva, a “homem”.
57
A pergunta principal do parágrafo define e delineia todo sentimento de culpa do
narrador: “De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?”. A marca de oralidade “era que” é
uma partícula expletiva, de realce, e confere emoção ao trecho, que diz respeito à mais
57
CRESSOT (1980: 71) mostra que a hipálage é uma das “figuras próximas à metonímia”:
atribui-se uma qualidade, que pertence a um objeto citado no enunciado, a outro objeto,
igualmente presente no enunciado. No verso de Valéry: (...) ‘Em que tanto mármore tremula em tanta
sombra’, a qualidade espressa em ‘tremula’, que de facto se liga a ‘sombra’, é atribuída a mármore.
Igualmente nesta frase de La Fièvre(...): ‘...Das agulhas de pinheiro emana um perfume...cheio de pontas e
grudes’., em que Lê Clézio atribui ao perfume as características das agulhas de pinheiro”.
Portanto, a hipálage é uma figura próxima à metonímia, expressa uma relação de continuidade, não
de analogia. Acreditamos, porém, que, dentro do sintagma para onde foi deslocada a qualidade, há a
possibilidade de formação de novas conotações e novas figuras de linguagem. Pode ocorrer, por exemplo,
uma relação de analogia, uma relação metafórica. Isso pode ser notado nos vários exemplos mencionados: no
trecho mencionado por CÂMARA JÚNIOR (1998: 157), “mistério hebreu”, à mercê de o fato de “hebreu”
estar deslocado de seu sintagma “profetas” (caracterizando a hipálage), pode-se apontar uma metáfora (a ser
interpretada dentro do poema, podendo constituir uma metáfora para a identidade do povo hebreu, errante,
profético, religioso). No primeiro exemplo de CRESSOT (1980: 71), a construção “mármore tremula”
aproxima elementos antagônicos (há também uma antítese, que opõe a rigidez, consistência e dureza de um
objeto feito de mármore a uma qualidade que evoca fragilidade, espessura fina). No outro exemplo, “perfume
cheio de pontas e grudes”, embora “cheio de pontas e grudes” refira-se a “agulhas de pinheiro”
(caracterizando a hipálage, principal figura de linguagem do excerto), pode-se notar uma metáfora, que sugere
uma imagem olfativa de odor sem fluidez, pouco agradável. Assim, no exemplo do conto, “tristes palavras”, à
mercê da hipálage, talvez se possa destacar uma metáfora que sugere melancolia, ensimesmamento e até
reclusão social.
95
profunda intimidade do eu. A repetição do adjetivo “tanta” intensifica a angústia e o
trágico, que, enfim, é o definidor do homem de dois mundos. Segundo ALBERGARIA
(1991: 524),
A tragicidade de P1 [refere-se ao filho-narrador] está ligada ao sentimento de
culpa que experimenta com relação à sua incapacidade em substituir o pai na canoa, à sua
solidificação no status do observador impotente (...)”.
Entretanto, note-se que o termo “culpa” aparece antes de ter sido narrado o fato de
o filho não ter conseguido substituir o pai na canoa, fato que é deixado de lado, para figurar
somente no clímax final do penúltimo parágrafo. Acontece que o narrador já viveu o fato, e
seu sentimento de culpa já existe.
A ruptura sintática, representando também o calor da emoção e da angústia, aparece
várias vezes na frase: “Se meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo
perpétuo.”. A separação entre o sintagma nominal e o verbal dá-se nas duas orações, uma
por meio da vírgula, outra, por meio do travessão. Esse fato destaca ambos os termos da
oração. A expressão “fazendo ausência” foi criada por analogia a: “fazendo presença”
(mais usual com verbos pronominais: diz-se “O aluno fez-se presente”). A opção pelo não
uso do pronome reflexivo, pela não flexão verbal (concordância entre sujeito e verbo) e a
opção pelo gerúndio (que prolonga a ação a o momento atual da escrita do narrador)
potencializa a idéia de abandono, que, principalmente, a ausência faz-se ainda mais
sentida pelos outros: não se trata apenas de uma ausência física do pai (como sugeriria a
construção pronominal “[ele] fez-se ausente”), é também uma metáfora para a sua ausência
espiritual, causadora da grande dúvida do narrador.
O sujeito da oração seguinte é “o rio-rio-rio, o rio”. Discutiremos o efeito anafórico
nas considerações referentes ao último parágrafo, onde é retomada a repetição da palavra
“rio”. É a própria alegoria da transitoriedade e da mudança constante das coisas e da vida,
fato também sugerido pelo uso do adjetivo “perpétuo” e pelo som recorrente do fonema
bilabial plosivo /p/, em “pondo perpétuo” (trecho em que há também outros fonemas
plosivos: /d/ (sonoro) e /t/ (surdo)). A aliteração do fonema /p/, portanto, sugere, no plano
fônico, a constância infinita das águas, no leito e no curso do rio.
Na frase “Eu sofria o começo da velhice”, o verbo “sofrer” caracteriza a idéia de
dor e de tristeza, angústia, e a expressão “começo da velhice” sugere as dores e doenças
96
(os efeitos da velhice) que serão mencionadas ainda nesse parágrafo. A palavra
“demoramento” é um neologismo, criado a partir do verbo “demorar”, pelo sufixo “mento”,
formador de substantivo
58
. É feito por analogia a “sofrimento”, que também pode ecoar,
devido à escolha do uso do neologismo em questão (idéia que não apareceria numa outra
construção: “esta vida demorava muito”, bem menos expressiva). É, portanto, um longo
substantivo deverbal que caracteriza “vida”, conservando a idéia de atividade e
intransitividade que são dois semas do verbo “demorar”. No entanto, a ausência do
predicado verbal (o que não aconteceria na frase que usamos para opor à frase utilizada por
Rosa), da ação, que a frase apresenta afinal, o verbo utilizado é de ligação (“era”)
sugere a anulação, o marasmo, a falta de perspectivas e a quietude que a velhice significa,
para o narrador. São todos fatos que endossam a tonalidade de melancolia que caracteriza
esta parte do conto.
Essa idéia de morte é também presente na frase seguinte: “Eu mesmo tinha
achaques, ânsias, de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo”. Há uma enumeração
de substantivos que traduzem a idéia de doença. O sintagma “cá de baixo” é próprio da
língua oral, em que, por vezes, indicamos, apontando, o referente a que queremos aludir: é,
portanto, um elemento próprio o contexto conversacional, em que, inclusive, atua de modo
pleonástico. O termo “achaques” significa “disposição mórbida” (LELLO, 1961: 14), o que
vem a propósito da tonalidade afetiva que resulta desse trecho. Há, porém, uma sutileza, na
escolha do termo. Segundo o mesmo dicionário, o sentido figurativo da palavra é vício,
defeito moral”. Embora não mencione que seria um uso figurativo, HOUAISS (2001)
aponta esse sentido de “imperfeição moral, vício, defeito”. FERREIRA (1986) também
menciona esse significado, mas em verbete separado. Ora, não se trata, pois, somente de
uma condição de estado físico: é também a decadência moral, causada pela culpa, cuja
razão ainda não foi narrada
59
. A palavra “cansaços” é usada no plural, o que intensifica a
idéia de dor múltipla (e apresenta uma recorrência aliterante da sibilante /s/: “cansaços”).
58
Nenhum dos dicionários consultados (de época e atuais) registra a palavra, que também não consta em
MARTINS (2001).
59
Menos importante e menos evidente que esses dois los semânticos referentes à palavra “achaques”
(indisposição física e imperfeição moral) avizinha-se uma outra sutileza relacionada ao uso da palavra.
Referimo-nos à acepção arcaica da palavra, anotada por HOUAISS (2001) e por FERREIRA (1986):
“imposto ou multa em conseqüência de condenação judicial”. Obviamente, essa idéia não deve ser entendida
de maneira denotativa: o significado da palavra não é esse, no texto. Esse sentido, porém, ressoa, na medida
em que forma, com muitas outras palavras do conto (“culpa”, “foro”, “culpado”, “jurado e declarado”), uma
97
Outro neologismo do trecho ocorre em “perrenguice de reumatismo”. O sufixo “-
ice” junta-se ao substantivo “perrengue”, que é um brasileirismo, que significa “pessoa que
está encanzimada [raivosa]; birrenta” (LELLO, 1961: 943), ou ainda “fraco, frouxo,
desanimado, doentio (...). Do esp. [espanhol] ‘perrengue’, ‘birrento’, irascível’”
(MARTINS, 2001: 382), ou, ainda mais especificamente, “que sofre de manqueira crônica;
capenga” (FERREIRA, 1986). A palavra expressa o excesso de desconforto, causado pelo
reumatismo. O sufixo, que forma o neologismo “perrenguice”, é, segundo MARTINS
(1989: 116), sugestivo de “um tom pejorativo, jocoso, picaresco” e também
“recriminação”. No uso específico de “perrenguice”, pensamos que todos esses valores
expressivos estão em jogo (com exceção talvez da recriminação). Portanto, o tom
pejorativo, presente na base do vocábulo, é intensificado pelo sufixo (o narrador se auto-
deprecia).
O narrador ainda se inquieta ante a comparação entre ele, o seu estado físico e
psíquico, e o pai: “E ele? Por quê?”, em perguntas diretas ao receptor. Note-se que a
segunda pergunta omite o raciocínio, que se interrompe devido à emoção e ao seu estado de
inconformado: “por que ele não tinha esses cansaços e essas doenças?”. A idéia só é
explicitada depois da frase: “Devia de padecer demais”. Note-se que, ao lado das marcas de
oralidade que observamos, o uso de palavras de variantes mais cultas: padecer”, que é
bem mais intensa e poética do que “sofrer”. Além disso, em devia de padecer demais”, a
construção arcaizante “devia de” é marca de oralidade.
A idéia de sofrimento do pai continua em “De tão idoso, não ia, mais dia menos dia,
fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada
do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o
fervimento e morte.”, um trecho rico em possibilidades para a estilística da palavra, por
vários motivos. Uma personificação acontece em “cachoeira, brava, (...)”, em que o
adjetivo “brava” parece conferir ao referente inanimado um sentimento humano,
potencializando, portanto, a força das águas da cachoeira. Uma metonímia (um tanto
isotopia jurídica, de julgamento. Em verdade, o conto pode ser lido como a confidência do narrador, que se
declara culpado, réu confesso. A palavra “achaque”, nessa acepção arcaica, precisa ser, pois, entendida de
maneira metafórica, como um prenúncio da “auto-condenação” do narrador. A palavra “achaques”, portanto,
é triplamente importante: no sentido imediato e denotativo, refere-se à indisposição física do narrador (dores
somáticas sem gravidade), num primeiro movimento conotativo, sugere um desconforto espiritual e moral;
por fim, um possível (ainda que remoto) terceiro movimento conotativo caracteriza a palavra como um índice
que corrobora para a isotopia de julgamento presente no conto.
98
cristalizada) merece destaque: “bubuiasse sem pulso”, em que “sem pulso” é metonímia do
tipo “causa pelo efeito” e sugere a idéia do fraquejar da velhice do pai. O verbo “bubuiar”
vem do tupi: “deriv. [derivação] do tupi be’bui, ‘leve’ e, pois, flutuante” (MARTINS, 2001:
82). É um brasileirismo. Note-se que, principalmente no sentido fônico, é muito mais
expressivo do que “boiar”. Em bubuiar”, as bilabiais /b/ e a vogal fechada /u/ são repetidas
duas vezes e criam uma articulação bastante peculiar.
A palavra “tororoma” tem sua forte expressividade ligada à sua constituição sonora:
os fonemas vibrantes /r/ sugerem o movimento incessante das águas. LELLO (1961) não a
registra. Segundo ALVES (1956: 992), é um brasileirismo que significa “nome dado no
Norte [um regionalismo, portanto] à corrente fluvial forte e ruidosa”. O mais recente
FERRREIRA (1986) também registra a palavra “tororoma” com a mesma acepção anotada
acima, mas acrescenta a hipótese de ser originária do tupi: “toro’ rom, voc. onom.
[vocábulo onomatopaico]”. MARTINS (2001: 494) registra a mesma acepção e a mesma
etimologia.
O vocábulo em questão, independentemente da analogia que subjaz à sua origem,
apresenta uma sonoridade peculiar. A palavra começa com a consoante plosiva surda /t/
(que, aliás, forma uma aliteração com a palavra seguinte, tombo”), que, como todas as
plosivas, sugere impacto, explosão. Aliados a esse efeito, os sons vibrantes (/r/) e a vogal
/o/, repetida três vezes, sugerem o movimento ruidoso da queda das águas das chuvas.
Afinal, ao ler totoroma”, é possível lembrar a forma popular “toró”, que significa chuva
forte”, embora os dicionários de época consultados não registrem a palavra “toró” com essa
acepção
60
. De qualquer maneira, é possível dizer que a palavra tenha sido formada
60
LELLO (1961: 1225) registra duas acepções de “toró”: brasileirismo: pessoa que perdeu a falange (...)”, e
“brasileirismo: gênero de aves galináceas (...)”. Observe-se que o dicionário ALVES (1956) não registre
nenhuma acepção de “toró”, embora registre “tororoma”. Evidentemente, o mais recente FERREIRA (1986)
registra “toró” com acepção que mencionamos. E, como registra também “tororoma” como originário do tupi,
seria possível pensar que “toró” seja um vocábulo mais recente, formado a partir de “tororoma”? Ou também
“torótenha vindo direto do tupi? Menos provável, mas uma hipótese também coerente seria pensar que
“tororoma” foi criada, pela repetição enfática do fonema vibrante /r/, a partir de “toró(esta sim, vindo do
tupi “toro’rom”)? De qualquer forma, o que importa é a expressiva constituição sonora de “toró” e, mais
ainda, de “tororoma”.
Cabe lembrar também que HOUAISS (2001) registra duas acepções um tanto opostas para “toró”,
que é definida como um brasileirismo: “pancada de chuva, forte aguaceiro” e, como um regionalismo
(Nordeste do Brasil), “chuva miúda e persistente, garoa”. FERREIRA (1986) ainda é mais específico ao
mapear as acepções da palavra “toró”: como “chuvada violenta, repentina e, geralmente, curta” é um
regionalismo usado em Minas Gerais e Rio de Janeiro; como “garoa”, um regionalismo utilizado no Nordeste.
99
onomatopaicamente. Trata-se do terceiro nível de onomatopéia, segundo Herculano de
Carvalho, citado por MARTINS (1989: 49). Esse tipo dá-se quando o “(...) significante
onomatopéico desempenhar uma função sintática [no caso, adjunto adverbial de lugar] e
receber uma classe gramatical [no caso, substantivo]”
61
. De fato, as sugestões fônicas, em
“tororoma”, que mencionamos acima, estão latentes.
O neologismo é “fervimento”, formado a partir do verbo “ferver”, pelo sufixo
formador de substantivo “mento”. Em vez de “efervescência”, preferiu-se a variante
neológica que é marca de oralidade e destaque a seu conteúdo metafórico: no caso, o
substantivo significa “aquele que agoniza”, e forma uma gradação com o substantivo que o
procede, “morte”.
A esse trecho, segue-se um outro com forte apelo ao receptor: “Apertava o
coração”, em que a metáfora está um tanto cristalizada. A possibilidade figurada está
dicionarizada: “confranger(-se), afligir(-se), angustiar(-se), molestar(-se).” (HOUAISS,
2001).
Em “Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade”, a palavra “tranqüilidade” é um
elemento da estilística da adaptação, própria do homem do mundo racional das margens. É
o substantivo que caracteriza o “se-ir do viver”, que mencionamos em outros parágrafos.
A frase, que retoma o lirismo existente no início do parágrafo, é “Sou o culpado do
que nem sei, de dor em aberto, no meu foro”. A palavra “foro” forma, com “culpado”, uma
isotopia de julgamento, de sanção de si próprio. O julgamento pessoal do narrador acusa-o
de culpa, tanto no mundo em que vive, pois não foi um homem que acatara as convenções
(“eu não podia querer casar”), como no mundo que admirara e no qual não teve a coragem
de viver (o mundo da terceira margem). A idéia de angústia volta na palavra “dor”, que
apresenta forte caráter poético.
Estabelecer qual das duas palavras (“tororoma” ou “toró”) tem primeira ocorrência no português é
difícil, uma vez que nenhum dos dois dicionários citados apontam a datação de nenhuma dessas palavras.
61
Alguns exemplos citados pela autora: “estalar”, “pio”, “uivo”.
100
Décimo terceiro parágrafo: O pedido hesitante.
“Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava,
nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido.
Ou, então, todos. fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito
no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, e lá, o vulto. Estava ali, sentado à
popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e
declarado, tive que reforçar a voz: ‘Pai, o senhor está velho, fez seu tanto... Agora, o
senhor vem, não carece mais...O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a
ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa! ...’ E, assim dizendo, meu
coração bateu no compasso do mais certo.” (ROSA, 1988: 36).
Este é o parágrafo em que a história alcança seu auge, seu clímax, no pedido que o
narrador faz ao pai, ponto máximo da narrativa e causa de toda a culpa do narrador, até
então, não revelada.
O parágrafo começa com uma frase nominal, não organizada. Refere-se à última
frase do parágrafo anterior: “E fui tomando idéia.” (construção que é marca de oralidade).
“Sem fazer véspera” é uma frase cuja desorganização sinaliza a ausência de pensamento
calculado. Todo o desconforto emocional e físico do narrador, vistos no parágrafo anterior,
acabou por gerar-lhe alguma idéia impensada, que ainda não sabemos qual seja. Ao mesmo
tempo, a oração desorganizada rompe de maneira ríspida com a sensação de continuidade
contida no gerúndio do verbo presente na última frase do parágrafo anterior: “tomando”.
O adjetivo “doido” remete ao quinto parágrafo. Nas duas frases seguintes,
“Ninguém é doido. Ou, então, todos.”, uma antítese. O narrador, por não pertencer
totalmente àquele espaço convencional da lógica, consegue entender uma verdade que,
talvez, o mundo exterior
62
não apreende. É a relativização do conceito de “doido”, de
“desvio”. No quinto parágrafo, leu-se a seguinte construção: “todos pensavam a razão em
que não queriam falar: doidera”. O verbo “condenar”, escrito neste décimo terceiro
parágrafo, também evoca algum tipo de sanção. Acontece que o “doido” ou desviante
62
Vejam-se as observações referentes ao quinto parágrafo, sobre as hipóteses que são lançadas pelos homens
das margens, a respeito da razão de o pai ter partido para a vida solitária na canoa, bem como de seu futuro.
101
pode ser entendido se se apontar uma norma, um padrão, cujos rígidos limites não deixam
dúvida quanto ao julgamento do ser “doido”. É esse o relativismo com que opera o
narrador, capaz disso por ser um homem de dois mundos, e que faz muito sentido,
especialmente para interpretar as atitudes do pai. Afinal, aquele que é desviante é capaz de
esclarecer as verdades que a norma, com tanto rigor, tende a abafar. O juiz não pode
declarar um veredicto, baseado em um código que não conhece. A idéia de “doidera” define
uma sanção para quem está imerso totalmente em uma das margens, não para quem as
abandonou (como o pai), nem para quem problematiza sua existência nas margens e os
valores ancorados nela (como o filho narrador) pois isso significa escrever um novo
padrão.
Em “Só fiz, que fui lá”, note-se mais um uso do verbo “fazer”, escolhido sempre de
maneira muito diversa em muitos momentos do conto. Aqui, é uma marca de oralidade, no
sentido de “por fim, decidi”. Lembremo-nos de que, no terceiro parágrafo (em “Fiz que vim
(...)”), o verbo “fazer” sugeria hesitação, o oposto do que ocorre neste caso.
A frase seguinte apresenta uma forte ruptura sintática: “Com um lenço, para o aceno
ser mais”. O verbo “ir”, da frase anterior, está subentendido nesta, mas a ruptura se verifica
na ausência de um predicativo do sujeito, que é preenchido apenas com um “advérbio”, que
também não pode ser assim classificado, que não modifica nenhum verbo ou adjetivo,
que não aparece. A emoção do narrador, prestes a contar o grande fato que lhe causa
tamanho sentimento de culpa, confere ao estilo uma espécie de pena corrida, subvertendo,
assim, a lógica gramatical, em prol da expressividade. O “aceno mais aceno” com um lenço
é também um apelo à imagem visual, que o receptor deve criar, ao atribuir o significado, ao
completar o sintagma. É uma ousadia sintática que visa, no limite, a intensificar a
dramaticidade da cena, que caracteriza o clímax do texto.
Em “Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto”, note-se a substantivação do
sintagma adverbial (que expressa idéia de tempo), “ao por fim”, contido num novo
advérbio de tempo e/ou de lugar. A duplicidade de idéias tempo e lugar, embaralhadas,
fundidas, numa nova expressão criada, remete a uma nova dimensão de espaço e tempo: a
dimensão mítica. Além disso, os outros advérbios do trecho “aí e lá”, são antagônicos
um, “aí”, aponta um espaço que se situa mais próximo do receptor, outro é mais
distanciado, tanto do receptor, quanto do narrador (“lá”) e são marcas de oralidade. A
102
palavra “vulto”, numa primeira interpretação, parece significar “figura ou imagem pouco
nítida” (HOUAISS, 2001). Num segundo momento, evoca uma dimensão mágica, mítica: a
palavra, precedida do artigo definido, que a singulariza, tornando-a única, também sugere
um mistério que ronda sempre rondou, em todo o conto a figura do pai. Destaque-se
o fato de que o trecho também apresenta as características de mitificação do pai. Com
efeito, o embaralhamento do lugar e do tempo que o referente “pai” ocupa (a antítese “aí e
lá”, locução adverbial tempo-espaço “ao por fim”), o uso da palavra “vulto” e o próprio uso
do verbo “aparecer” (no sentido de “surgir como aparição”) revelam um efeito de
mitificação misteriosa.
A palavra “urgia”, em “E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar
a voz (...)” também é bastante expressiva a palavra sugere “necessidade sem demora”,
que é antagônica ao “demoramento da vida”, sobre que falamos no parágrafo anterior. Isso
é lógico: o demoramento causa marasmo ao narrador, na verdade, aflito por descobrir a
razão, a explicação. O uso do particípio, como advérbio de modo, é retomado em “jurado e
declarado”, mostrando a situação finita, antes mesmo de ser explicitada. Neste trecho,
porém, os particípios m ainda uma outra função. Retomam a isotopia de julgamento, em
cuja linguagem se usam, a todo instante, particípios (“tendo declarado o réu”, “culpado”,
“pelo direito a mim concedido”, etc.). Isso é importante, pois, afinal, as palavras “jurado” e
“declarado” contrapõem-se com o que de fato ocorreu: apesar de ter jurado, o narrador não
cumpre a palavra.
A fala do narrador é um exemplo expressivo de estilização: “(...) ‘Pai, o senhor
está velho, fez seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais...O senhor vem, e eu,
agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na
canoa! ...’”.
A frase é permeada de repetições e apresenta, também, um pleonasmo. Exemplos de
repetições: “o senhor” (quatro vezes); “vem” (duas vezes); “eu” (duas vezes); “agora” (duas
vezes). Exemplo de pleonasmo: “o seu lugar, do senhor”. Tais elementos provam, num
primeiro momento, a elaboração da representação de um discurso oral. As repetições são
próprias da ngua oral, mesmo culta, pois o falante não tem um planejamento anterior do
seu discurso: dá-se, na modalidade oral da língua, um planejamento instantâneo, e, assim, o
uso de elementos, que reorganizassem o texto, é inexistente. Organizando a estilização do
103
narrador-personagem, teríamos, por exemplo, uma construção como esta: “O senhor está
velho, fez seu tanto; afinal, agora, não carece mais. Quando quiser, eu tomo seu lugar na
canoa.”. Além de eliminarmos as muitas repetições e o pleonasmo, mudou-se a estrutura
sintática das orações (na primeira frase, usamos uma oração coordenada e uma
subordinada, na segunda, uma oração principal e uma subordinada), que foram
reorganizadas de maneira gica e perderam as marcas de oralidade mencionadas. Como se
vê, porém, a expressividade do trecho ficou totalmente comprometida.
Outro elemento, além dos citados, que ajuda a representar a língua oral é a confusão
de pessoas: “vem” é um verbo que está no imperativo afirmativo e tem um sujeito oculto de
segunda pessoa do singular (tu); seu”, em “seu lugar”, é um pronome possessivo e refere-
se à terceira pessoa do singular. O resultado, que temos, do uso paralelo e concomitante de
“tu” e “você”, para o mesmo referente, vai além da mera representação da língua oral: é a
própria situação ambígua do narrador em relação ao pai, por quem nutre aproximação e
afastamento, intimidade e respeito intimidade, pois foi o filho que acompanhou, durante
toda a vida, a experiência do pai; respeito e afastamento, pois não trilhará o mesmo
caminho do pai.
Da mesma forma, as repetições, pausas e pleonasmo também não são apenas meros
elementos de representação do planejamento instantâneo da modalidade oral da língua,
embora também funcionem para configurá-lo. No caso, as repetições simulam um estado
de hesitação, que tamm ocorre e é bastante comum na língua oral. Segundo PRETI
(1997: 222), “a hesitação é um fenômeno natural corrente na conversação. Pode refletir um
esquecimento momentâneo, como ocorre com freqüência na linguagem dos falantes idosos,
ou momentos de constrangimento criados pela situação de comunicação.”
63
Acontece, porém, que a hesitação existente no trecho em questão não visa somente a
uma representação da oralidade. Ela tem outras linhagens, bem mais diferentes, ainda mais
expressivas. A hesitação, na fala do narrador, pedindo ao pai para substituí-lo na canoa,
revela a dramaticidade da situação, é uma fala absolutamente definitiva, importante,
fundamental, que rompe com um longo silêncio entre dois homens. Além disso, a hesitação
da fala, marcada pelas repetições, pelas muitas pausas, e pelo pleonasmo, revela o estado
63
Acrescentaríamos que as hesitações o ainda mais perceptíveis, na língua oral, em momentos de emoção,
de decisão.
104
psíquico do narrador: ele não tinha certeza de sua atitude, tomada, “sem véspera”, sem
pensamento prévio, apenas na aflição que nutria, devido à inquietação que ele sentia pelo
assunto.
Portanto, a estilização, recriando as hesitações, próprias da fala, representa a língua
oral, mas vai muito além dela, para fundar, na especificidade do texto em questão, outras
possibilidades.
Décimo quarto parágrafo: O homem frente ao mito.
“Ele me escutou. Ficou de pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E
eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar
de gesto o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu o podia... Por pavor,
arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto
que ele me pareceu vir: da parte do além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.”
(ROSA, 1988: 37).
Este parágrafo narra a atitude do pai, ao ouvir o pedido do narrador, e a atitude do
narrador, ao perceber o contato do pai consigo.
As duas primeiras frases do trecho são curtas, como a atitude do pai, de
concordância. A imagem visual que resulta dessa narração encaixa-se na isotopia mítica
que a figura do pai contém. Também o próprio ato do aceno remete a uma figura mítica e
religiosa. Mas o trecho que melhor evidencia isso é: “Porquanto me pareceu vir: da parte do
além”, em que os dois pontos obrigam o receptor a fazer uma pausa, separando o locativo
do verbo, sugerindo a separação entre as dimensões reais, onde se insere o narrador e seu
discurso, e o mítico, onde se inseriria o pai.
Em “Manejou remo n’água, proava para cá, concordado”, note-se a aliteração das
consoantes moles /m/ e /n/: manejou remo n’água”. Essa aliteração pode sugerir a
delicadeza e a calma com que o pai remava, em direção ao filho, em contrapartida com a
atitude que teve o narrador, de sair correndo, desvairado. O verbo utilizado também marca
a certeza com que o pai se dirigia ao filho: “proava” traduz uma imagem visual da canoa
105
vindo de frente
64
. O uso do particípio, tão recorrente nesse conto, aparece também aqui,
nessa narração das cenas finais. O pai, ao ouvir o filho, aparentemente, acatou o seu pedido
— o resultado final da ação é traduzido pelo particípio “concordado”. Vimos também que o
particípio contribui para a brevidade narrativa. De fato, não temos o acesso a detalhes,
apenas à ação substantiva do pai. Nós, assim como o narrador, não temos acesso aos
motivos e às nuances de pensamento do pai, às razões que o levaram a concordar, mas
apenas ao ato concreto, finalizado, fato que o particípio ajuda a configurar.
Em “E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e
feito um saudar de gesto o primeiro depois de tamanhos anos decorridos!” O conectivo
“e” está esvaziado de sua função usual, de adição. Traduz, na verdade, uma idéia
adversativa, equivalendo a um “mas”. No entanto, o uso do “e”, aparentemente significando
adição, é o que corrobora para o efeito emocional do trecho, até porque é mais comum que
o “mas”, na língua oral. Constitui, portanto, uma marca de oralidade. O conectivo e” será
repetido mais duas vezes no trecho. A segunda, em “E eu não podia...”, também apresenta
um sentido adversativo. É importante notar que, além da marca de oralidade que tal
conjunção apresenta e da emoção que se depreende de seu uso, ele não estabelece um efeito
de contraste bruto, como o “mas”, amenizando, assim, o sentido adversativo e até mesmo a
ação do narrador, que se arrepende de “não ter podido”. O conectivo “mas” seria mais
incisivo, direto, não traria as emoções, sugestões e hesitações que o “e” (mesmo no sentido
adversativo) apresenta. o último “e” do parágrafo tem um sentido de adição, sendo
elíptica uma locução adverbial de causa: “e, por isso, estou pedindo perdão”.
O quase sinônimo de “profundo”, “fundo”, também foi usado para a caracterizar
“rio”, no segundo parágrafo. Será retomado, no último parágrafo, esse sentido, mas através
da forma “rio a dentro”. Podemos perceber que as múltiplas profundezas simbólicas dos
elementos presentes no conto se tocam, de maneira diversa. O mero contato com o pai,
64
HOUAISS (2001), em “proar”, pede que o leitor reporte-se a “aproar”, cuja acepção é a seguinte: “Aproar.
Verbo transitivo direto. 2. Derivação, por extensão de sentido: encaminhar-se para, dirigir-se a (determinado
lugar)”. Para o substantivo proa, o dicionarista registra, como “sentido figurado”, a seguinte acepção:
“sentimento de orgulho; vaidade; presunção”.
Evidentemente, no conto, o sentido da palavra é o primeiro, denotativo, mas verbo utilizado sugere
uma sensação de firmeza, decisão do pai, que rema em direção ao filho. O sentido figurado apontado pelo
dicionarista, ao definir o substantivo “proa”, talvez não se aplique ao uso específico, que pode sugerir uma
imagem visual de “altivez”, mas não exatamente “vaidade”.
106
nesse trecho, não é de proximidade física, e sim espiritual. Mas a possibilidade da vivência
no rio, de encarar suas profundezas físicas e simbólicas, é um tormento para o narrador.
O uso da oração exclamativa acontece apenas na terceira parte do conto (com a
exceção da fala da mãe, no segundo parágrafo). Fora das estilizações, aparece apenas nesse
trecho. Isso é fundamental, pois sinaliza o máximo tom da perplexidade do narrador, não
porque vislumbra o mistério a ser desvendado, mas porque o de frente, especialmente
para si (e diante de si). Mas, como ainda não o decifra, pois decifrá-lo seria ter a
coragem de tomar o lugar do pai, de viver na canoa, negando o mundo que ainda o prende
foge dele: “Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá”. A hipérbole
“arrepiados os cabelos”, uma imagem visual um tanto desgastada, convive com a bela
gradação verbal: “corri, fugi, me tirei de lá”.
A forma “me tirei de lá” é bastante expressiva para mostrar o narrador como a
figura de dois mundos. Sintaticamente, notem-se o sujeito oculto (primeira pessoa do
singular,“eu”) e o objeto direto “me”. Semanticamente, o agente é “eu”, referente que
coincide com o objeto, traduzido pelo pronome oblíquo de primeira pessoa “me”.
Simbolicamente, porém, não é o mesmo referente, pois há, no narrador, duas forças internas
antagonistas e contraditórias que se confrontam, que se repelem, que lutam entre si.
Vale dizer: o habitante das margens racionais (“eu” do filho narrador) tirou o remador em
potencial (“eu” do filho narrador), entusiasta da atitude do pai, daquele lugar. Trata-se de
uma sutileza na escolha do verbo, numa seqüência que apresenta uma ordem gradativa.
A frase final apresenta uma repetição e uma aliteração da consoante plosiva /p/: “E
estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão”. Note-se que a palavra “pedindo” é repetida
três vezes, mero bastante significativo e muito recorrente no conto. A insistência no
pedido de perdão é mais uma marca da religiosidade presente no conto. A repetição do
termo “pedindo” e a aliteração lembram o discurso religioso ritualístico, como a reza.
107
Décimo quinto parágrafo: O “falimento” e o último desejo.
“Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou
homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é
tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no
artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa
água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro o rio.”
(ROSA, 1988: 37).
O conto termina de maneira melancólica, com o solitário narrador vivendo as dores
de sua culpa.
A metáfora inicial, “grave frio dos medos”, atinge o universo espiritual do narrador.
O verbo “adoecer”, disseminado no texto, não atingiria o despojamento do pai, mas a
ambigüidade da existência do narrador. A palavra “medo” é flexionada para o plural,
multiplicando e potencializando o sentido de dor espiritual”. É a dor por não ter dito o
“sim” no momento em que seu pai lhe oferecera a canoa; é a dor da culpa. É o medo de não
ter aceitado a experiência epifânica da travessia da canoa. O tom trágico manifesta-se
plenamente por meio dessa metáfora que traduz, numa imagem tátil (“frio”), a dor e o
sofrimento.
A última pergunta do narrador não se refere ao pai, como sempre ocorreu, que
sempre teve a perplexidade pela atitude de viver no rio. Aqui, a última pergunta refere-se a
ele mesmo.
A palavra “falimento” não é um neologismo, pois o dicionário ALVES (1956),
diferentemente de LELLO (1961), registra-a. Além disso, HOUAISS (2001) situa a palavra
no século XIII, baseado em A. G. Cunha. Sua feição, porém, é altamente expressiva para
representar o trágico que avulta da última página do conto. É formada pelo sufixo formador
de substantivo “-mento”, a partir do verbo “falir”. Com a idéia de “falir”, o narrador retoma
a idéia de culpa: é culpado, em seu foro próprio, de não ter partido na canoa. Retoma,
assim, a idéia de julgamento, que estava nas palavras dos parágrafos da terceira parte:
“foro”, “culpado”, “jurado e declarado”. É um julgamento negativo de si mesmo, trágico e
melancólico. No entanto, a expressividade da palavra “falimento” ainda guarda outras
108
possibilidades. Afinal, o narrador poderia muito bem ter usado “falência”, que significa o
mesmo. Não obstante, com “falência”, também formado a partir do verbo “falir”, perder-se-
iam as outras expressividades que existem em “falimento”. A extensão da palavra, as
semelhanças fonéticas, as semelhanças silábicas, e, por fim, o contexto de “morte”,
disseminado no último parágrafo, lembram, imediatamente, “falecimento”. A palavra
anuncia a idéia de morte e de fim. O trágico não é somente decorrente da falha simbólica de
não ter partido na canoa (como sugere ALBERGARIA, 1991), mas também decorrente da
ação inexorável dos tempos, da transitoriedade. Ainda mais uma sutileza expressiva está
contida na preferência do uso de “falimento”, em vez de “falência”. A frase onde a palavra
aparece é “sou homem, depois desse falimento?”. O questionamento do narrador dá-se em
face à sua masculinidade. Ele questiona o “ser homem”. E, como é homem de dois mundos,
sua masculinidade também é duplamente questionada: tanto a masculinidade social,
pautada e baseada num conjunto de ações ditadas como próprias a este gênero (como a
própria coragem que não teve, em partir na canoa), como também a masculinidade
simbólica e psicológica (o narrador também abandonara o pai; afinal, não conseguiu copiar
o pai, seguir o exemplo do pai). Essa anulação da masculinidade social e simbólica também
está sugerida em “falimento”, que pode ser associada a “falo”
65
.
Portanto, em “falimento”, manifesta-se a tragicidade do narrador em três níveis:
enquanto culpado em seu próprio foro (falência), enquanto cidadão mortal e transitório
(falecimento), enquanto homem (social e simbolicamente). Somente essa palavra
aglutinaria tantas possibilidades simbólicas e expressivas.
A frase seguinte, “Sou o que não foi, o que vai ficar calado.”, apresenta uma
antítese, que é marca de intertextualidade com a obra (trágica) do famoso dramaturgo
inglês. Aqui, porém, a definição do ser não é alternativa entre afirmação e negação (“Ser ou
65
Note-se que a masculinidade está explicitamente questionada, na mesma frase onde ocorre a palavra
“falimento”: “Sou homem, depois desse falimento?”.
Não propomos a relação morfológica de derivação entre “faloe “falimento” (este, possivelmente
derivado de “falir”), mas a associação entre os vocábulos pode ser lembrada do ponto de vista
morfológico, o radical “fal-” espresente em ambas as palavras (“Falimento” > “fal-”: radical; “-i-”: vogal
temática; “fali”: tema; “-ment-o”: sufixo formador de substantivo. “Falo> “fal-”: radical; “-o” : morfema
formador de masculino ou vogal temática, dependendo da linha adotada de análise morfológica).
Evidentemente, a idéia de virilidade (sugerida pela associação com “falo” e contida, explicitamente,
na palavra “homem”) é evocada, mas ela se contamina com o tom do parágrafo, da frase e da própria palavra
“falimento”, que sugerem o contrário de força, coragem e virilidade, isto é, sobrelevam as idéias e o
sentimento de fracasso, falência e falecimento, conforme interpretamos no corpo do texto.
109
não ser: eis a questão”) é, ao contrário, definida como a negação. Não é, porém, a
mesma negativa do pai, que nega o mundo para se afirmar enquanto ser. No caso do pai,
prevalece a alternativa shakeaspereana. No caso do narrador, seu estar-no-mundo é
paradoxal, pertence a dois mundos: “sou”, pois o narrador não negou seu ser enquanto
homem na sociedade; “não foi”, que é uma forma verbal ambígua, pois não sabemos se se
trata da terceira pessoa do singular do verbo “ir” (ou seja, “sou aquele que não foi à
canoa”), ou do verbo “ser” (ou seja, sou aquele que não é”
66
) e que significa sua o
afirmação num mundo que admirava, que é o mundo da alógica canoa.
Em “Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo”, ocorre
um eufemismo para a idéia de suicídio: “abreviar com a vida”. Condenado culpado no seu
próprio foro, o suicídio é a hipótese de penitência a que ele se impõe. O eufemismo
utilizado ainda contém a idéia de “brevidade”, fundamental para a noção de transitoriedade,
que foi, como vimos, um dos elementos que causou o falimento do narrador. Não podendo
ascender ao universo tico e atemporal (como talvez tenha significado o feito do pai), o
narrador se rende à fugacidade da vida. A palavra “rasos”, adjetivo substantivado, em
posição de destaque e menos dependente do substantivo, forma uma antítese com a idéia de
profundidade do rio. Nesse ponto, o narrador novamente manifesta sua atração pela atitude
do pai, pelo mundo da magia: o adjetivo utilizado para caracterizar o mundo é “raso”, pois
a gica reinante no mundo é rasa, aritmética, matemática, diferente daquela que ocorre no
mundo da magia e do surpreendente, mais complexa e reveladora, quase epifânica.
O uso do diminutivo “canoinha”, em “Mas, então, ao menos, que, no artigo da
morte, peguem em mim e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que
não pára, de longas beiras: e eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro o rio.”, traduz a
pequenez da canoa, idéia conseguida também com o sintagma, muito próprio da língua oral,
“de nada”. Descrita, no segundo parágrafo, como uma embarcação pequena, aqui, pode
66
Como já mencionamos, “A terceira margem do rio” é um conto de interpretação aberta, e há muitas leituras
possíveis. Para PASTA JÚNIOR (1999: 69), por exemplo, a ambigüidade existente no ser e não-ser do
narrador representa o limite:
“(...) o sujeito se constitui passando no seu outro, é propriamente uma criatura no limite, que se
constitui precisamente no limite, entre o mesmo e o outro. Se é onipresente, embora razoavelmente
desconhecido, na literatura brasileira em geral, esse regime do limite torna-se, em Guimarães Rosa, um
verdadeiro princípio de poética que encontrará sua expressão mais alta e depurada na célebre narrativa
de ‘A terceira margem do rio’, figuração definitiva dessa fronteira intangível — a misteriosa ‘terceira
margem’— algo que não é o mesmo nem o outro, mas precisamente o limite entre ambos, instante
inapreensível em que o mesmo passa no outro, a vida na morte, o ser no não-ser”.
110
representar (por metáfora) o caixão, e passa a apresentar, também, uma tonalidade afetiva
de ternura e carinho, que o narrador a escolhe como “última morada” (este sintagma,
também contido no excerto, pode ser entendido como um eufemismo para “cemitério”).
Simbolicamente, num segundo movimento conotativo, a “canoinha” pode ser entendida
como um objeto capaz de alçar o rumo ao epifânico. O sintagma “artigo da morte” é uma
expressão cristalizada, que dá uma expressividade grave ao ato. É, segundo FERREIRA
(1986), derivado do latim “in articulo mortis” (“em artigo de morte, i.e. [isto é], no
momento de morrer”). Os conectivos utilizados “mas” e “então” têm suas funções usuais:
adversativa e conclusiva, respectivamente; no trecho, porém, ajudam a configurar o grande
fecho — a última revelação do narrador.
A repetição da palavra “rio”, que recupera um procedimento presente no conto, é
um outro fato estilístico que deve ser analisado.
O rio é a alegoria da transitoriedade, que envolve a todos. É a imagem da constância
plena
67
, cuja direção é impossível reverter ou bloquear. A imagem de permanência,
sugerida pela canoa, pela terceira margem, é, simbolicamente, a antítese que origem à
culpa do narrador uma luta que ele não consegue travar. Note-se que a repetição da
palavra “rio” ocorre três vezes, e mais uma, singularizada pelo artigo definido. Lembremo-
nos de que, no segundo parágrafo, escreve-se: “(...) o rio por se estendendo grande,
fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira”. No décimo
segundo parágrafo, lê-se: “Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio
pondo perpétuo”.
Quer por sintagmas adjetivais (segundo parágrafo), ou por repetições de sintagmas
nominais (décimo segundo parágrafo), ou por sintagmas adverbiais (como neste último
parágrafo), o rio é descrito em três dimensões: comprimento, largura e profundidade.
Resulta daí uma imagem visual que o receptor quase não pode mensurar, devido à grandeza
do rio, que difere fortemente da idéia de pequenez da canoa.
A repetição do termo “rio” representa o próprio fluir constante das águas, cujo
movimento é sugerido também pela consoante vibrante /r/. No caso deste décimo segundo
parágrafo, a sugestão do fluir também se graficamente: os hífens formam um traço que
se assemelha ao leito do rio “rio-rio-rio, o rio”.
67
GALVÃO (1978: 37) fala em “imagem da continuidade”.
111
O último termo, precedido pelo artigo definido, é singularizado e revela toda a sua
construção simbólica. O rio, cuja largura, profundidade e extensão são descritas como em
planos próximos a ele, captando, em detalhes, as suas dimensões, é resumido, como que
visualizado, num terceiro plano fílmico. Assim, a pausa, expressa pelo travessão, seria o
correspondente do corte do plano, e, em seqüência, o terceiro plano, panorâmico, captando
de longe, o rio, como a resumi-lo.
A imagem visual final do referente “rio”, silenciosa, encerra e mantém, sem
desvendar, o tom de mistério que ele representa (tanto para o narrador como para o
receptor), bem como seu hermetismo simbólico.
112
CONCLUSÕES
O objetivo deste trabalho foi estudar os recursos estilísticos utilizados por
Guimarães Rosa, no conto “A terceira margem do rio”. A expressividade dos elementos
“formais” em seus vários níveis, fônico, léxico, morfológico, frasal, enunciativo,
conduz o receptor para uma idéia de “inadaptação” , que se choca com a “normalidade”
social presente nas margens racionais da vida. Tal inadaptação refere-se, exata e
plenamente, ao “nosso pai”, que abandona a família para buscar uma vivência própria,
numa canoa. Refere-se também, mas parcialmente, ao narrador, que mantém uma posição
ambígua. Aos elementos que caracterizam o mundo racional (idéias positivas e de
segurança), onde se situam a “nossa mãe”, a irmã, o outro irmão, e os demais personagens
(o filho-narrador insere-se parcialmente nesse universo), opõem-se o despojamento, o
mágico e o simbólico, que a atitude do pai sinaliza, ação única, vista pelo narrador sempre
perplexo.
A inadaptação não se refere, contudo, somente ao pai. O filho-narrador também se
caracteriza por elementos que sugerem a inadaptação. Envolve-se com ela, e, a todo o
momento, está perplexo diante da força simbólica que ela pode representar (e que ele não
decifra nunca). É, porém, um homem também caracterizado pela vivência na margem
lógica da vida; é um homem que jamais abandonaria a sua tranqüilidade”, “o se-ir do
viver”. Não tem a coragem de substituir o pai na canoa. É, pois, um homem de dois
mundos, cuja culpa será o desenlace melancólico e trágico da narrativa.
Evidentemente, não cabe, aqui, na conclusão deste trabalho, retomar, interpretando,
todos os procedimentos estilísticos utilizados por Rosa neste conto. A tentativa de estudo,
seguindo a obra, linha a linha, parágrafo a parágrafo, foi esclarecer a especificidade de cada
113
elemento de expressividade do texto, e articulá-las para que não se corresse o perigo da
atomicidade da análise. Faremos, nesse ponto, apenas uma brevíssima lembrança de alguns
dos efeitos utilizados.
No primeiro parágrafo, nove linhas resumem as atitudes da vida do pai, integradas à
comunidade até o dia em que ele resolve fazer para si uma canoa. Os elementos estilísticos
observados apontaram para a “normalidade flagrada”, como a gradação de adjetivos e a
própria estrutura frasal utilizada (em contraposição com as constantes rupturas sintáticas
verificadas, no decorrer do conto), uso pontual de particípio, mas os índices da inadaptação
a essa normalidade estão presentes, como a existência de uma frase nominal inorgânica,
que representa a silenciação, caracterizadora da figura do pai. Marcada com uma aliteração
de verbos fortes, a “nossa mãe” apresenta-se altamente integrada aos cânones da vida
comum e lógica. Será a antagonista da história, ainda que sofra leves modificações durante
o conto.
O segundo parágrafo inicia uma nova parte no conto e uma nova parte na vida de
“nosso pai”. Caracterizada por adjetivos que remetem à idéia de pequenez, descreve-se a
canoa. É o início do mágico, diante do qual o narrador manifesta constante perplexidade.
Perguntas diretas ao receptor, anominações, dentre as quais se destaca a recorrente
substantivação do adjetivo, uso de particípios, enumerações, assíndetos, polissíndetos,
justaposições de frases (os quatro últimos fatos ajudam a expressar a idéia de despojamento
das atitudes do pai), aliterações, utilizadas para sugerir os mais diferentes aspectos (como
movimento do rio, alegoria da transitoriedade, matraquear das alcoviteiras ou até ladainhas
religiosas), harmonia imitativa (que representa a grandiosidade da Natureza, e de seus
elementos), todos esses são procedimentos estilísticos (observáveis nos mais diversos
níveis da língua) que indicam o estado de surpresa e perplexidade constante do narrador, ao
mesmo tempo atraído pela atitude do pai, e preso ao universo racional das margens. Da
mesma maneira que, no primeiro parágrafo, se mostraram os índices da inadaptação,
também na segunda parte do conto observam-se os índices da normalidade racional e
lógica, que, no entanto, não são ligados à figura do pai.
A terceira parte do conto inicia-se no décimo segundo parágrafo. A melancolia do
narrador, atingido pela culpa por não ter substituído o pai na canoa, pela proximidade com
a velhice, que transforma a vida num profundo “demoramento”, domina o texto, numa
114
escrita profundamente lírica e emotiva, em que o “eu” toma o primeiro plano por completo.
O “falimento”, que evoca, como tentamos explicar, “falência”, “falecimento” e “falo”, é um
exemplo dessa melancolia, de um homem que faliu enquanto filho, enquanto ser e enquanto
homem, nos dois espaços da vida, tanto no racional, delineado pela vida nas margens,
quanto no espaço simbólico do rio. As perguntas do narrador angustiado dirigem-se ao
receptor e a si mesmo, como a sinalizar um julgamento em que o narrador é réu e juiz. Seu
veredicto, culpado. Como um olhar geral, poder-se-ia, talvez, destacar a existência, na
terceira parte do conto, de algumas imagens ou efeitos estilísticos mais cristalizados
68
.
68
Considerem-se algumas expressões, quase todas retiradas da terceira parte do conto: “homem de tristes
palavras”; “Apertava o coração”; “uns primeiros cabelos brancos”; “no artigo da morte” (a expressão,
derivada do latim, está até dicionarizada); “sem pulso”; “arrepiados os cabelos”; “bagagens da vida” (esta,
retirada do último parágrafo da segunda parte); “Com um lenço, para o aceno ser mais.”.
Os fatos estilísticos envolvidos nesses trechos m diferentes linhagens (há metáforas, metonímias,
hipálage, entre outras). Foram analisados e interpretados no corpo do trabalho. Aqui, apenas chamamos a
atenção para tais expressões como um fato expressivo que se aponta como tal, dentro da especificidade do
conto (e das observações do micro e macrocosmo textual).
RIFFATERRE (1970) trabalha bastante a questão do clichê. Cita R. de Gourmont (que se remete ao
clichê como expressão “de um rebro anônimo e de um completo servilismo intelectual”), mas rebate a
condenação usual que sofre o clichê e, em geral, duvida da sua falta de expressividade:
“O clichê pode ser batido sem deixar de ser eficaz. Não se deve confundir banalidade com desgaste.
Se fosse desgastado, o clichê perderia sua clientela como seus inimigos, o que não é o caso. Ele não passa
despercebido, pelo contrário, chama a atenção sobre si” (RIFFATERRE, 1970: 115).
Acreditamos, porém, que não se trata de inverter radicalmente a posição ou avaliação geral que se
tem do clichê. Em geral, ele é sinal de um defeito de estilo. Não seria, necessariamente, o caso de falta de
expressividade. Exemplo: propagandas, novelas, filmes comerciais, produtos de literatura menor
RIFFATERRE (1970), talvez não por acaso, tenha usado a palavra “clientela” — assentam sobre o uso
desmesurado desse tipo de expressão. O clichê na propaganda existe, e isso prova que ele apresenta certa
expressividade e apelo ao receptor, consumidor em potencial. Assim, consagrado pelo uso, o clichê também
pressupõe a garantia da aceitação e do gosto do leitor médio, sobrando pouco espaço para o estranhamento
(literário, artístico e estilístico).
Por outro lado, como no ensaio de RIFFATERRE (1970), — onde exemplos analisados de clichês
utilizados por grandes autores (ele analisa a expressão “voz trovejante”, usada, muitas vezes, com adequação
ao contexto e com força expressiva) acreditamos que, em “A terceira margem do rio”, algumas formas
mais cristalizadas usadas na terceira parte do conto (que convivem com neologismos, presentes em peso no
primeiro parágrafo desta última parte do conto, e com rupturas sintáticas de forte estranhamento) têm um
efeito específico de alto valor expressivo.
No conto, a utilização de expressão (nos vários veis da língua, inclusive o da frase) mais
cristalizada é o contraponto dos fatos de estilo que sugerem o surpreendente e a perplexidade presentes na
segunda parte do conto. Por exemplo: em “Apertava o coração”, a cristalização dá-se na metáfora, mas
também na frase, que se comporta diferentemente da maneira como se comportou em alguns parágrafos da
segunda parte do conto, com seus polissíndetos que mantinham alta a perplexidade do narrador, admirado
com suas hipóteses em relação à vida despojada do pai, na canoa. Em “Apertava o coração”, a frase aquieta-
se, desesperançada.
Em outras expressões, o fato cristalizado advém da imagem visual que resulta da descrição, mesmo
numa frase com rupturas sintáticas que mantém alto o estranhamento (“com um lenço, para o aceno ser
mais”). Nessas ocasiões, também se pode falar em renovação do clichê.
A utilização de imagens mais cristalizadas seria, então, a expressão da velhice abandonada,
melancólica e desesperançada do narrador. É também a marca do já sabido e o inevitável da transitoriedade.
115
No conto inteiro, o uso das palavras negativas é recorrente. Somam-se 68 palavras
negativas (uma média de 10, por página), em todo o conto, incluindo-se, nesse número, as
diferentes categorias gramaticais, como advérbios de negação (“não”, 30 ocorrências,
aproximadamente), tempo (“jamais, nunca”); preposições (“sem”); pronomes (“ninguém”,
“nenhuma”, “alguma”, no sentido de nenhuma”), conectivos aditivos (“nem”). De todas
essas ocorrências, 35 estão ligadas ao pai. Como apontamos aaqui, o importante, em
estilística, não é essa contagem estatística, que deixamos em segundo plano de propósito,
mas a interpretação dela. Obviamente, essas negações referem-se a fatos diferentes, mas o
“não” está sempre presente nos momentos mais decisivos do conto, mesmo naqueles que
não se referem somente ao pai. Uma das passagens ocorre quando o filho não o substitui na
canoa: “E eu não podia...”.
Em outros momentos, o “não” é intensamente enfatizado, como nesta frase, em que
o narrador, provando ser o homem de dois mundos, abre-se para o relativismo no
julgamento da atitude do pai, e, ao contrário das vozes da cidade (“vozes das notícias”), do
quinto parágrafo, não aceita a noção dedoidera”, embora não tenha a coragem para
abandonar totalmente a lógica da sociedade das margens: Sou doido? Não. Na nossa casa,
a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava
ninguém de doido. Ninguém é doido.”. [o destaque em itálico é da edição utilizada; os
grifos são nossos].
O “não”, juntamente com as enumerações e assíndetos, é, freqüentemente, utilizado
para criar a idéia de despojamento que a vida do pai, na canoa, significava: Não pojava
[sabemos que o uso do verbo, na sua acepção arcaica, aqui, não significa somente
despojamento, como foi discutido no corpo do trabalho] em nenhuma das duas beiras, nem
nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Mas não armava um foguinho
em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo” [grifo nosso].
Se a desesperança (terceira parte do conto) é o contraponto da perplexidade (segunda parte do conto) do
narrador, a cristalização de certas expressões seria talvez a tradução estilística desse desencanto.
É difícil precisar se tais fatores foram, conscientemente, pensados pelo autor. As expressões mais
cristalizadas anotadas acima apresentam-se diluídas na terceira parte do conto, sendo, pois, difícil definir se o
autor teve necessariamente a intenção de colocá-las nesta parte do conto, com o objetivo exposto pela
tentativa de interpretação. De qualquer forma, a expressividade pode existir, sem que haja plena consciência
da utilização do fato estilístico pelo autor.
116
Em outras palavras, apesar das diferenças específicas do uso das palavras negativas,
a quantidade de ocorrências, tendo como agente o “pai” (sujeito oculto, como no trecho
acima, ou não), mostra a sua negação em relação ao mundo convencional e racional.
Para RÓNAI (1968: 27), uma das constantes de todos os contos de Primeiras
estórias é a caracterização de alguns personagens, e sua posição frente aos acontecimentos
mágicos presentes nas narrativas:
“Os protagonistas de Primeiras estórias farejam esses acontecimentos, advinham
esses milagres. São todos, em grau menor ou maior, videntes: entregues a uma idéia fixa,
obnubilados por uma paixão, intocados pela civilização, guiados pelo instinto, inadaptados
ou ainda não integrados na sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes do real e da
ordem. Neles a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais
fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe dilui-
se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória do irracional sobre
o racional constitui-se em fonte permanente de poesia”.
Mais do que a vitória, o que lemos, em “A terceira margem do rio”, é a tensão,
sofrida profundamente pelo narrador, entre esses dois pólos (razão/não-razão), que ele
vivencia uma situação bia: situa-se nas margens da razão, da lógica e das convenções
sociais, mas se aproxima da experiência de negação desses valores, empreendida pelo pai.
Nessa mesma linha de análise, em LIMA (1991: 505), observamos um dos
comentários que nortearam nossa análise:
“(...) a razão é uma faca de dois gumes. Instrumento para apreensão ordenada do
real, ela também pode ser um modo de evitá-lo. De guardar-se do seu contacto. Por isso o
que é comumente realçado como o comportamento normal da criatura pode ser visto, pelo
lado adverso, como a prova da sua incapacidade em descobrir a vida. Essa incapacidade,
porém, não impede que se tenha uma existência confortável (...) pois ela bloqueia uma
percepção mais aguda do contingente obscuro e cruel que pronto a vida nos doa. Com a
arte, porém, esta forma de segurança será defeito.”
Talvez caiba, aqui, uma sucinta observação sobre um tema complexo (que, apesar
de importante, foge aos limites deste estudo): as possíveis idéias de razão envolvidas neste
trabalho. A idéia de adaptação e inadaptação, chave com que se buscaram interpretar
muitos fatos expressivos do conto, refere-se à relação dos personagens com os valores
117
convencionais, aceitos como norma dentro da cultura, da civilização gica das margens da
vida. Neste ponto, ainda não entramos no possível conceito de razão exposto pelo crítico.
Com efeito, a idéia de razão não se define como a idéia de convenção social, de
normativização da vida. Talvez seja até mesmo contraditória: de posse de um arsenal
empírico e crítico (a razão mais pura), o sujeito pode, enfim, livrar-se de ranços ideológicos
que lhe foram impostos por uma moral apequenada, de regras e normas. O mecanismo
dessa mesma moral, porém, qualifica como racional a obediência plena às convenções que
ela impõe: ele define como mais racional seguir os seus preceitos. Esse procedimento
vislumbra, pois, como mais racional a aceitação dos fatos culturais tal como eles são. Por
exemplo: para essa visão, é muito mais racional atender aos pedidos do padre do que
ignorá-los (conforme ocorre no sétimo parágrafo do conto); é muito mais racional viver nas
margens do rio do que numa canoa, no meio dele.
Quanto à idéia de razão contida no ensaio de LIMA (1991) e de NAI (1968),
talvez possamos apontar um conceito ainda mais amplo do que aquele que foi apresentado
nas idéias que expusemos no parágrafo anterior. Aqui, a idéia dos autores parece referir-se
à razão como conceito mais genérico, incluindo-se também a razão mais pura, empírica, de
que, invariavelmente, depende o funcionamento gico do mundo e da civilização. Mas, se,
por um lado, essa racionalidade foi responsável por gloriosas conquistas do Ocidente, por
outro, também foi responsável pela barbárie desenfreada (de que o século XX e a
modernidade não se cansam de oferecer exemplos), pela hipocrisia das instituições que
regem essa civilização.
Conectam-se, assim, essas idéias à crítica à razão ocidental e ao esclarecimento,
formulada por ADORNO e HORKHEIMER (1986: 19):
“(...) o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do
medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida
resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o
desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo
saber.”.
69
69
Dentro desse raciocínio, o estar-no-mundo do homem e suas realizações e invenções estão intimamente
ligados à destruição de si próprio (como no exemplo recorrente do autor: o fascismo, na esclarecida
Alemanha) e do que não é humano:
118
Mas voltemos às negações, exemplificadas acima.
É uma dessas negações a que se refere GALVÃO (1978: 41), quando a família
inteira tenta, inclusive o neto, bebê, pedir que o pai volte ou que dê, pelo menos, um sinal:
Aqui, o filho, distinguido pelo pai para ser seu continuador, se escusa, mas com
isso acabou-se sua própria vida, que decorre à margem do rio procurando ver o pai. Diz:
‘Sou homem depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado’. A
repressão patriarcal, geral, mas enorme em famílias mais fortemente patriarcais do tipo da
brasileira, detém maior poder que as outras repressões institucionais. Ninguém conseguiu
fazer o pai voltar do rio, nem a mãe, nem os filhos, nem o neto, nem o padre, nem os
soldados, nem os homens do jornal. Mas este filho consegue, ao curvar-se ao que o pai
queria, prometendo, sem ter forças para tanto, substituí-lo na canoa ”.
O ensaio da autora, essencial para este trabalho, apresenta uma idéia que
acreditamos ser contraditória. Não concordamos com essa hipótese acima, não por acreditar
que o questionamento social esteja ausente do universo do conto, muito pelo contrário.
Acontece que o pai, que parte para sua vida solitária no rio, não reza na cartilha da
sociedade patriarcal. A Estilística poderá dar sua contribuição, nesse sentido. No trecho
mencionado, nos comentários do décimo parágrafo, analisamos os índices que remetem à
sociedade dita racional, convencional. Um deles, além do “vestido branco, que tinha sido o
do casamento”, é a descrição do comportamento do marido da irmã do narrador, que
“segurou, para defender os dois, o guarda-sol”, em que destacamos o verbo “defender” e o
substantivo composto “guarda-sol”. Os valores da sociedade racional, como o casamento e
a idéia de masculinidade, envolvidos nesses índices, não são a bandeira do pai, que, ao
“Na história européia, a Idéia do homem exprime-se na maneira pela qual ele é distinguido do
animal. A ausência de razão do animal prova a dignidade do homem. Essa oposição foi matraqueada com
tanta insistência e unanimidade pelos predecessores do pensamento burguês, os antigos judeus, os estóicos e
os Padres da Igreja e, depois, a Idade Média afora e os Tempos Modernos adentro, que ela passou a
pertencer ao patrimônio básico da antropologia ocidental (...). Os behavioristas aparentemente a
esqueceram. O fato de que aplicam aos homens as mesmas fórmulas e resultados que eles, desencadeados,
arrancam a animais indefesos em seus atrozes laboratórios de fisiologia confirma essa diferença de maneira
particularmente refinada. A conclusão que tiram dos corpos mutilados dos animais não se ajusta ao animal
em liberdade, mas ao homem atual. Ele prova, ao violentar o animal, que ele em toda a criação funciona
voluntariamente de maneira tão mecânica, cega e automática como as convulsões da vítima encadeada, das
quais se utiliza o especialista. O professor na mesa de dissecação define-as cientificamente como reflexos, o
arúspice [sacerdote romano que adivinhava o futuro, examinando as entranhas das vítimas] no altar
proclamava-as como sinais de seus deuses. O homem possui a razão, que procede impiedosamente; o animal,
do qual ele tira a conclusão sanguinolenta, tem o pavor irracional, o instinto de fuga que lhe é vedada”.
(ADORNO e HORKHEIMER, 1986: 229).
119
contrário, sempre foi oprimido por esses valores. A figura patriarcal do conto não é o pai, e
sim a mãe “que regia e ralhava”. A atitude de o pai não ter aparecido não é prova do seu
patriarcalismo, muito pelo contrário, é prova de sua negação ao patriarcalismo, indiciado
pelos valores sutilmente descritos na passagem. A rigidez de sua postura, como seu eterno
silêncio, pode lembrar a figura patriarcal, que existe, por exemplo, no pai presente em
alguns poemas de Drummond, que também apresentavam tal silenciação
70
. Mas, no conto
de Rosa, a rigidez da silenciação marca a busca pessoal e íntima do pai, oriunda da negação
frente aos valores do mundo, bem como sua integração ao Cosmos e à Natureza. Além de
tudo isso, não nos esqueçamos de que a situação comentada pela autora ocorre no final
do conto, em que o pai havia sido narrado como “cabeludo, barbudo, de unhas grandes,
(...) com aspecto de bicho.”, símile que prova (juntamente com a descrição) a proximidade
do pai, sua integração, com o Cosmos. Ainda chamamos a atenção para o fato de que o pai,
integrado e pertencente ao abstrato mundo natural, assume uma postura quase mítica ou
religiosa (“da parte do além”), ainda que não seja um fundo mítico “de promessa de uma
outra vida depois da morte, nem de vida eterna, nem de recompensas para os bem-
comportados” (GALVÃO, 1978: 38). Transformado em mito, não poderia o pai viver a
experiência da história e da vida patriarcal que a pretensa sociedade racional das margens
impõe.
DANIEL (1968: 173, 174) escreve uma frase que pode servir de resumo de uma
análise estilística sobre a obra Primeiras estórias:
Oferece Sagarana no seu léxico a maior porcentagem de brasileirismos; diminui
esta em Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas até atingir o seu ponto mais baixo nas
Primeiras Estórias. Observa-se a mesma tendência decrescente no emprego do ritmo como
técnica estilística. Desenvolvimento inverso, porém—o emprego cada vez mais intensivo—
se nota mais comumente na sua obra: tais técnicas como a criação de palavras
portmanteau
71
e substantivos pós-verbais. O uso do imperfeito do subjuntivo numa
70
muitos exemplos. Em “Caso do Vestido” (poema pertencente a A Rosa do Povo), lê-se: “(...) Ela se foi
de mansinho/ E na ponta da estrada/ vosso pai aparecia./ Olhou para mim em silêncio, mal reparou no
vestido/ e disse apenas: Mulher,/ põe mais um prato na mesa./ Eu fiz, ele se assentou,/ comeu, limpou o suor,/
era sempre o mesmo homem (...).”
71
Palavra portmenteau, também chamada de palavra-valise, é
“a palavra resultante de partes de outras palavras podendo entrar no vocabulário da língua, como
motel (motor + hotel), estagflação (estagnação + inflação) etc.[Pode também ser criação artficial,
120
variedade de funções; a anteposição dos advérbios com relação a seus verbos; o emprego
de relativos ambivalentes no começo das frases; e a função de construções gerundiais
independentes (...)”.
A autora ainda aponta que
“(...) figura esta última obra do autor [refere-se às Primeiras estórias] um pouco à
parte das outras em possuir a mais alta porcentagem de neologismos abstratos e a mais
baixa de substantivos coletivos originais; em mostrar uma notável variedade de sufixos
diminutivos e alta incidência de verbos pós-adjetivais, substantivos pós-verbais, e palavras
portmanteau; em fazer pouco uso da onomatopéia e versificação e da técnica ‘palavra
puxa palavra’; e em colocar relativamente pouca ênfase no diálogo como recurso no
desenvolvimento do enredo. Figuram as Primeiras estórias como a menos oral e mais
literária (no sentido de prosa escrita) das quatro obras do autor, aproveitando em mais
alto grau os efeitos tradicionais da prosa e as técnicas ensaísticas eruditas”. (DANIEL,
1968: 173, 174).
Vimos, que, no geral, “A terceira margem do rio” está nos padrões de Primeiras
estórias, para que a autora chama a atenção.
A onomatopéia é realmente quase inexistente. Vimos alguns exemplos de
onomatopéias do terceiro nível (MARTINS, 1989), como “tororoma” e alguns exemplos de
harmonia imitativa. Cabe lembrar que, no primeiro caso, as onomatopéias de terceiro nível
não são onomatopéias propriamente ditas, pois se integraram ao sistema da língua. E, no
caso da harmonia imitativa, tratá-la como onomatopéia é alargar demais esse conceito. Do
universo sonoro, o efeito mais recorrente é a aliteração, utilizada para provocar variados
efeitos, não tendo, portanto, somente uma função de coesão seqüencial.
O diálogo é também praticamente inexistente. Há três falas apenas, em todo o conto.
Cabe lembrar, porém, que, nas existentes, a peculiaridade é total e constituem complexos
fatos estilísticos. As estilizações no diálogo não visam apenas a representar a fala, e a
situação conversacional, mas têm forte importância na especificidade do texto, como no
caso da fala da mãe, no segundo parágrafo, ou das hesitações na fala do narrador no décimo
terceiro parágrafo.
geralmente nos textos jocosos (...), na prosa mais poética de Guimarães Rosa (...) ou nos autores afeitos ao
trocadilho e ao neologismo (...)”. (HOUAISS, 2001).
121
O uso do imperfeito do subjuntivo tem uma importância enorme e é largamente
usado em “A terceira margem do rio”. Apresenta muitas funções, mas, em geral, marca as
hipóteses do narrador, frente à vida no rio. Ele, por ser um homem das margens, não
conhece essa vida despojada, e, portanto, só pode supô-la.
No caso do emprego do ritmo com função estilística, DANIEL (1968) refere-se,
quando diz que ele tem uma importância decrescente na obra de Rosa, ao ritmo popular,
abundante na fase do registro das formas populares, em Sagarana. A autora refere-se ao
mesmo que escreve BOSI (2000: 430): “Imerso na musicalidade da fala sertaneja, ele
[Guimarães Rosa] procurou, em primeiro tempo (tempo de Sagarana), fixá-la na melopéia
de um fraseio no qual soam cadências populares e medievais”.
A criação sobre a fixação dá-se nas obras posteriores. É o que ocorre em “A
terceira margem do rio”, em que o ritmo é também bastante explorado, mas é um “ritmo
autoral”, mais solto das formas populares. Tem várias funções, como sugerir a impressão de
“sobressalto”, em um trecho comentado do trabalho. O ritmo, ditado pelas pausas,
principalmente nos trechos em que estão presentes o assíndeto e a enumeração, ajuda a
criar emoção perplexa do narrador, frente à idéia de despojamento que a vida do pai
significava.
Aliás, segundo COUTINHO (1991: 213, 215),
apesar da grande variedade que caracteriza o léxico de Guimarães Rosa, é na
área da sintaxe que a contribuição do autor para a literatura brasileira contemporânea se
faz sentir de maneira profunda e original. (...) [A sintaxe] tem uma lógica quase
inteiramente particular e caracteriza-se basicamente por uma estrutura compacta (...)”.
Ainda segundo o autor, o caráter da frase em Rosa busca a concisão e a brevidade,
fato em que muito insistimos, durante o trabalho: vimos que sua inovação frásica tem
funções diferentes em cada caso, podendo sugerir os meandros do esconderijo para onde
iria o pai, com grandes rupturas sintáticas, a emoção, ambigüidades fortes, como no caso de
não realizações de argumentos, ou destaque de termos, devido a deslocamentos de
sintagmas, entre muitas outras funções observadas.
Tão forte é sua contribuição nesse terreno que muitos analistas apontam uma
influência do Barroco, na construção de frases, em Rosa. Não nos queremos adentrar nesse
problema, que foge aos limites do trabalho, mas achamos importante estar atentos às
122
enormes diferenças entre o estilo de Rosa e o estilo de Vieira, por exemplo, até porque a
frase rosiana caracteriza-se por ousadias, em que a noção de desvio é marcante. Talvez
caiba perguntar se o Barroco, ainda pertencente ao Academicismo Literário, e que ainda
mantinha a crença na imitação (seguir os topoi sem grandes inovações), abre tantos espaços
assim para ousadias e desvios sintáticos. De qualquer maneira, LIMA (1991: 512), que é
um dos textos que alerta para o perigo de uma comparação como essa, devido à imprecisão
que pode gerar, mostra que essa relação só é procedente, se inferirmos que
o barroquismo frásico em Guimarães Rosa é de outra família [difere do de Vieira]
(...). A carga acumulativa da frase tem outro fim. Ela visa dar o correspondente verbal de
uma visão intensa da realidade. Ela pretende ser outra’ natureza, influída e sugerida pela
primeira.” (LIMA, 1991: 512).
Finalizando, como aponta GALVÃO (1968: 37), Guimarães Rosa conseguiu uma
estória iluminada, “de olhar súbito para dentro do indizível, de figurado relato hermético”.
Talvez devido a esse impacto e mistério, a obra tenha suscitado algumas discussões na
crítica literária e tenha gerado tanta inspiração para outros autores, em diferentes
linguagens.
123
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