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Outro tom
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bastante notório em “A terceira margem do rio” (e talvez em outros
contos do livro) é o trágico. ALBERGARIA (1991) debruça-se sobre esse aspecto. Assim
como as reflexões de PORTELLA (1991), a autora parte de uma diferenciação entre as
estórias e a História, mas articula-a no plano lingüístico. Mostra que o discurso difere da
história quanto à subjetividade do fato narrado. Citando E. Benveniste, argumenta que “o
conto perderá seu caráter eminentemente histórico para assumir uma feição discursiva que
lhe acrescenta algo pessoal próprio do narrador, que visa ao envolvimento do leitor”.
nominais também colaboram para o efeito de surpreendente que abraça o menino: elas, envoltas em pausas,
dão destaque a uma pequena ação (“Sorria-se.”, primeiro parágrafo, p. 07), a um detalhe descritivo (“O
Menino.”, primeiro parágrafo, p.07, que é uma frase inorgânica, em que referente “menino” é alçado a
alegoria, — na primeira linha do conto, o substantivo ainda é usado com letra minúscula — fato que sugere o
início do aprendizado das coisas, pequenas e grandes, que começam a ser reveladas a ele. Há, portanto,
convergência estilística: é sintomático que essa alegorização ocorra destacada numa frase nominal,
desorganizada, inorgânica). A substantivação de adjetivos e de advérbios (fato que, como veremos, será muito
relevante em “A terceira margem do rio”) também está presente em “As margens da alegria”, sugerindo o
efeito de surpresa: “ao não-sabido, ao mais”). Como último exemplo, um levantamento dos adjetivos do
primeiro parágrafo do conto evidencia uma série de palavras que sugerem grandiosidade: “grande”, em “onde
se construía a grande cidade”, uma construção que pode ser considerada perífrase, já que podemos interpretar
o referente como sendo Brasília. A expressão é repetida no terceiro parágrafo. (Dentro do conto, convém
lembrar que, muitas vezes, especialmente na segunda parte, os índices que remetem ao universo da civilização
são o contraponto do entusiasmo do Menino, são, muitas vezes, relacionados à morte; nessas ocasiões, o tom
do conto modifica-se um pouco, mas ainda mantém alta a surpresa — já que a Morte é uma das pulsões com
que o Menino tem contato, nessa grande viagem que é um ritual de passagem. O tom, de surpresa, de
entusiasmo, neste momento, retrai-se, mas, diferentemente do que ocorre em “A terceira margem do rio”, em
que o trágico domina totalmente a terceira parte, em “As margens da alegria”, a surpresa retorna na última
parte do conto, o Menino de novo fica perplexo, agora diante do vaga-lume — a exclamativa e as palavras
afirmativas anafóricas refletem bem essa sensação “Sim, o vaga-lume, sim, era lindo!”, p. 12). Em “verdade
extraordinária”, o adjetivo liga-se a um substantivo filosoficamente abstrato e o verbo “raiar”, que evoca
nascimento, início, novidade, também mantém a idéia de surpreendente. Leia-se o primeiro parágrafo, de
onde tiramos alguns dos exemplos desta nota, cujo propósito é apenas o de mostrar que o tom surpreendente
também está presente nas formas lingüísticas de outros contos das Primeiras estórias:
“ESTA É A ESTÓRIA. Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a grande
cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o
escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A Mãe e o Pai vinham traze-lo ao aeroporto. A Tia e o Tio
tomavam conta dele, justinhamente. Sorria-se. O avião era da Companhia, especial, de quatro lugares.
Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O vôo ia ser pouco mais de duas horas.
O menino fremia no acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida
podia às vezes raiar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte
afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se
— certo como o ato de respirar — o de fugir para o espaço em branco. O Menino.” (ROSA (1998: 07)).
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Quando falamos em surpreendente, trágico, estamos referindo-nos ao tom presente no texto. Tonalidade
afetiva, tom é o terreno sobre o qual a Estilística agirá. Segundo BOSI (1988: 278, 279), perspectiva e tom são
os dois conceitos com que operam os estudiosos. Junto com a ótica da escrita (exemplos: perspectiva popular,
burguesa etc), o estudo do tom tem um fundamental interesse e se refere às modalidades afetivas da
expressão. Ambos os aspectos devem ser analisados, já que
“não há grande texto artístico que não tenha sido gerado no interior de uma dialética da lembrança
pura e memória social; de fantasia criadora e visão ideológica da História; de percepção singular das coisas
e cadências estilísticas herdadas no trato com pessoas e livros”. BOSI (1988: 279).