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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE LITERATURA PORTUGUESA
A PERSONAGEM E O TEMPO
Vera Maria de Miranda Leão de Brito
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura Portuguesa, do
Departartamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, para obtenção do título de Mestre em
Letras.
Orientadora: Profª. Drª. Raquel de Sousa Ribeiro
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2
São Paulo
2006
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE LITERATURA PORTUGUESA
A PERSONAGEM E O TEMPO
Vera Maria de Miranda Leão de Brito
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São Paulo
2006
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Raquel de Sousa Ribeiro, minha orientadora, que me recebeu e
confiou em meu trabalho.
Ao meu pai Antonio Cavalleiro de Brito, que com seu exemplo me ensinou a agir com
seriedade nas escolhas da vida.
( in memorian )
A minha mãe Heloisa Maria de Miranda Leão de Brito, que nunca mediu esforços para que
eu me tornasse a profissional que sou hoje.
A minha amiga Luciana Flavia Araujo Rodrigues, companheira de todas as horas, que
com sua paciência e dedicação me ajudou a conquistar este ideal.
Ao meu amigo Rogério Augusto, que sempre me incentivou e ajudou para a realização
deste trabalho passando o resumo para o inglês.
A minha amiga Nisa Menezes Martins da Luz, pela disponibilidade e atenção com que,
tantas vezes me ouviu, ajudando-me a lidar com o período do mestrado.
4
A minha prima Elisabeth Regina de Miranda Leão Affonso, que me ajudou a atravessar um
difícil momento nessa longa jornada.
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a minha tia Esther de Miranda Leão,
que sempre acreditou em mim.
( in memorian )
Céu
A criança olha
Para o céu azul.
Levanta a mãozinha,
Quer tocar o céu.
Não sente a criança
Que o céu é ilusão:
Crê que o não alcança,
Quando o tem na mão.
Manuel Bandeira
5
RESUMO
O propósito desta dissertação é fazer um estudo dos tempos físico e psicológico que
compõem a temporalidade na obra Nítido nulo de Vergílio Ferreira e verificar em que
medida é possível reproduzir na personagem a experiência do ser humano com o tempo.
O tempo é abordado sob dois aspectos, o tempo físico, marcado pelos relógios e
ciclos da natureza e o tempo psicológico, medido pela experiência individual de cada
pessoa. Tal escolha se deve à percepção viva e concreta da existência simultânea dos dois
tempos e de seus efeitos e reflexos no interior do indivíduo.
Partindo do pressuposto de que nos momentos presentes há a concomitante presença
de um passado recente e de um futuro próximo que surgem simultaneamente às percepções
presentes, analisamos momentos em que há a simultaneidade dos planos temporais em
questão.
Esses momentos de intersecção de distintos planos temporais são analisados com
base principalmente nas teorias de JoLuiz Fiorin, Henri Bergson e A.A. Mendilow; e
interpretados pelas concepções existencialistas de Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre
contidas nas reflexões feitas pela personagem ao longo da obra.
Através dos momentos interseccionistas do texto e das reflexões da personagem
que, condenada à morte, espera o momento de sua execução, é possível verificar o conflito
do ser que se sabe injustificavelmente finito no tempo.
6
ABSTRACT
The purpose of this dissertation is to do a study about the physical and
psychological times which compose the temporality in the work Nítido nulo by Vergílio
Ferreira and to verify how it is possible to reproduce in the character the experience of the
human being with the time.
The time is approached under two aspects, the physical time, marked by the clocks
and cycles of the nature and the psychological time, measured for each person’s individual
experience. Such choice is due to the alive and concrete perception of the simultaneous
existence of the two times and their effects and reflexes inside the individual.
According to the presupposition that in the present moments there is the
concomitant presence of a recent past and a close future that appear simultaneously to the
present perceptions, we analyze moments in which there is the simultaneity of the
temporary plans in question.
Those moments of intersection of different temporary plans are analyzed mainly
based in José Luiz Fiorin’s, Henri Bergson’s and A.A. Mendilow’s theories and interpreted
by Martin Heidegger’s and Jean-Paul Sartre’s existentialist conceptions contained in the
reflections done by the character along the work.
Through the intersectional moments of the text and the character’s reflections that,
sentenced to death, waits the moment of his execution, it is possible to verify the conflict of
the being that is known unjustifiable finite in the time.
7
PALAVRAS-CHAVE
Nítido nulo
Tempo físico e psicológico
Espaço
Existencialismo
KEY WORDS
Nítido nulo
Physical and psychological time
Space
Existentialism
8
ÍNDICE
1. Introdução.........................................................................................................................01
1.1. Apresentação de Nítido nulo .............................................................................01
1.2. Objetivo do trabalho...........................................................................................03
1.3. Conceitualização de Tempo...............................................................................04
2. A construção dos tempos em Nítido nulo........................................................................14
3. Recursos estilísticos na formação da subjetividade..........................................................29
3.1. Os tempos verbais..............................................................................................31
3.2. Os discursos........................................................................................................46
3.3. A sintaxe ............................................................................................................57
4. A subjetividade e suas conseqüências...............................................................................69
4.1. O tempo e o espaço............................................................................................71
4.2. O fenômeno da recordação e da imaginação......................................................85
4.3. A sensação do intemporal e a poeticidade..........................................................95
5. A representação da experiência humana com o tempo em Nítido nulo..........................102
Conclusão............................................................................................................................113
Referências bibliográficas...................................................................................................115
9
1. Introdução
1.1. Apresentação de Nítido nulo
Em seu romance tido nulo, publicado em 1971, Vergílio Ferreira (1916 1996)
utiliza a técnica romanesca de expressão do tempo interior através não da transmissão
dos acontecimentos vividos no passado, mas da recuperação das sensações que esses
acontecimentos deixaram, vivências de um passado remoto e de um passado recente
remodelados pela ação do tempo, da experiência subseqüente, da imaginação e da reflexão.
A técnica de recuperação de fatos passados através da memória busca expressar a
experiência do ser humano com os acontecimentos passados, os quais são presentificados
por meio de lembranças.
Assim, os acontecimentos que não são exatamente iguais aos vividos no passado,
devido aos diferentes aspectos entre o acontecido e o recordar atual, se entrelaçam com o
presente da enunciação, fazendo com que vocábulos de diferentes realidades temporais se
confundam e se inter-relacionem de forma aparentemente caótica e desorganizada.
Essa técnica de composição da narrativa que consiste no uso do fluxo de
consciência e da constante mudança de eixos temporais, tenta reproduzir a sensação
humana de tempo presente, composto pelo momento atual da enunciação, e tudo o que
anteriormente fora vivido e expressa literariamente os processos de lembrança do ser
humano.
E nesse presente que reinventa o passado e projeta um futuro próximo, surge um
tempo existencial, no qual a personagem-narrador exprime suas reflexões sobre a existência
humana.
10
Por esse motivo podemos pensá-lo como um romance existencialista, que reflete
sobre a existência humana em um mundo no qual o homem busca um sentido e uma
resposta para sua própria experiência dentro da relatividade do tempo.
Vergílio Ferreira à utilização do tempo no romance em questão uma abordagem
que o aproxima da expressão humana de tempo, ou seja, um presente que contém em si o
passado e o futuro.
Nítido nulo mostra a relação entre a personagem e o mundo, servindo o enredo para
as reflexões metafísicas sobre o destino do homem e o próprio ato da escrita.
Através da utilização do monólogo interior da personagem-narrador, o romance de
Vergílio Ferreira conta as últimas horas de Jorge, um preso político que espera o
cumprimento de sua sentença de morte em um fortim junto à praia.
A narrativa se caracteriza por um grande monólogo que expressa o estado
emocional da personagem-narrador e por uma ação que se limita à projeção de algumas
lembranças do passado e de observações do presente.
Os recursos estilísticos utilizados por Vergílio Ferreira, tais como o emprego de
elipses, a troca-de-tempo e o monólogo interior, geram a fragmentação da narrativa num
tempo ligado à ação de rememorar.
Vergílio Ferreira dá à personagem características essencialmente humanas tais
como a recordação e a reflexão para que, entre outras coisas, ela possa expressar a
experiência do ser humano com a subjetividade do tempo e refletir sobre o ser no tempo.
11
1.2. Objetivo do trabalho
O propósito desta dissertação é fazer um estudo da construção dos tempos físico e
psicológico na obra Nítido nulo.
Pretendemos analisar as ocorrências do tempo físico e do tempo psicológico e
relacioná-las com as sensações da personagem e com o espaço, tendo em vista que as partes
estão em função do todo e que há uma interação em todos os planos.
Com essa finalidade, analisaremos a técnica de narração e a organização da
linguagem a partir do processo de intersecção de signos pertencentes a planos temporais
diferentes e à alternância entre esses vários tempos e realidades, que Vergílio Ferreira
funde em seu texto acontecimentos situados em modalidades de tempos distintas: no
passado-infância, no passado-recente, no futuro próximo e no presente.
O trabalho pretende explicar como se constrói a narrativa de uma personagem que à
espera de sua execução recorda seu passado e expressa uma vivência ora em um tempo
passado que recorda, ora no presente em que se encontra.
A metodologia utilizada será, em princípio estudar a elaboração dos tempos na
narrativa com o objetivo de mostrar a experiência da personagem cuja consciência transita
entre planos temporais distintos, isto é, entre suas lembranças, seu futuro próximo e seu
momento atual.
Em seguida, procederemos a um levantamento dos recursos estilísticos que têm a
função de reproduzir as diferentes temporalidades em decorrência da observação, da ação
da memória e da imaginação.
Estudaremos o espaço observado no momento presente, o espaço rememorado, suas
fusões e relações com as reflexões da personagem.
Como conseqüência de um estudo voltado para as sensações humanas ligadas à
vivência com o tempo, estudaremos a sensação do intemporal, espécie de paragem no
12
tempo na qual a personagem experimenta uma dimensão metafísica, o que remete o texto à
uma expressão poética.
1.3. Conceitualização de Tempo
“ De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar... ”
Fernando Pessoa, Chuva oblíqua. IN: Obra poética, p.115.
Considerando que um dos aspectos metodológicos mais importantes para a
realização do estudo que estamos nos propondo fazer é o referente ao tempo, passamos a
examinar algumas referências mais pertinentes feitas por estudiosos que se dedicaram a
escrever sobre esse assunto tão complexo.
Iniciaremos este trabalho apresentando as idéias de alguns filósofos e teóricos dos
Estudos Literários que se dedicaram ao estudo do tempo, isto é, do ser na temporalidade.
Pretendemos, com essa visão ilustrativa dos estudos sobre o tempo, que não se
pretende completa, mostrar a necessidade que o ser humano tem de compreender e dar um
sentido à sua experiência com e na temporalidade. Atitude expressa pela personagem ao
longo da narrativa.
Como o tempo será abordado sob os aspectos tempo físico e tempo psicológico,
também ressaltaremos, sob o ponto de vista psicanalítico, a relação entre os dois tempos
13
mencionados, como sendo o seu resultado, fundamental à construção da relação do ser
humano com o mundo, mais especificamente da personagem com o tempo.
Para começarmos a refletir sobre o tempo, utilizaremos em princípio alguns
conceitos dos filósofos gregos que se dedicaram ao estudo desse tema, que para eles
escrever sobre o tempo é indagar-se sobre as variações das coisas da natureza.
De acordo com Marilena Chauí em Introdução à história da filosofia, desde os
primórdios o homem se questiona sobre o tempo, ou seja, é inerente ao ser tal
questionamento. Assim, a filosofia grega toma essas coisas enquanto são, ou seja, as coisas
como entes , e nesse sentido, o ser é definido como intrinsecamente vinculado ao sentido do
tempo:
“Onde se revela, mais do que em qualquer lugar, a ilusão do Não-Ser? Onde aquilo
que realmente não é aparece e parece como se fosse? No devir, no fluxo perpétuo
de todas as coisas que deixam de ser o que eram para se tornar o que não eram. O
devir, é portanto o movimento (Kíneris), é, por excelência, a via da opinião, da
aparência, do não-ser. Aquilo que é, é porque é, é porque não se transforma naquilo
que não é.”
1
O filósofo grego Parmênides (séc. V a.C.) define o ser fora do tempo e da sucessão,
para ele o ser não admite nem passado e nem futuro somente o eterno e imutável presente,
que o ser é uno. Para esse filósofo, o ser é e o não-ser não é e por esse motivo o ser o
está em devir, pois o devir para ele é a aparência do não-ser.
Heráclito a realidade como fluxo ou devir permanente e eterno, ou seja, o
mundo como fluxo ou mudança constante de todas as coisas. E sua noção de tempo está
então relacionada com a noção de movimento e mudança.
Entretanto, a esse movimento contínuo do tempo, Heráclito associa o caráter imortal
do verdadeiro ser, constatando que o mundo é mudança permanente de todas as coisas, e se
o ser humano faz parte do mundo, logo o ser está sujeito à mudança própria de todas as
* As citações contidas neste trabalho podem apresentar diferenças ortográficas em relação ao português atual
pois todas seguem os originais.
1
Marilena CHAUÍ, Introdução à história da filosofia, p.75.
14
coisas. Porém, acrescenta que a este ser transitório, existe um ser eterno e imortal, que se
constitui no que é realmente verdadeiro.
“O que é Ser para Heráclito (o devir) é Não-Ser para Parmênides, o que é Ser para
Parmênides (a identidade estável e imóvel) é ilusão para Heráclito. O que é essencial para
Parmênides é o conhecimento do Ser, o que é essencial para Heráclito é o
autoconhecimento do homem. No entanto, ambos inauguram a mesma coisa, isto é, a
exigência de fazer distinção entre a aparência e a realidade e a afirmação de que esta
diferença só pode ser feita pelo pensamento, pela inteligência e não pela experiência
sensível ou sensorial.”
2
Ao pensamento de Heráclito de que a realidade é fluxo ou devir permanente, Platão
(428 a.C. 348 a.C.) acrescentou que o fluxo ou devir incessante impede o conhecimento.
Para Platão, temos que admitir a existência do não-ser a fim de que o pensamento alcance
as essências. Platão divide o mundo da seguinte forma: um mundo inteligível, onde habitam
as idéias, que são eternas e formam a base do conhecimento das coisas como elas realmente
são, e outro mundo sensível, no qual estão todas as coisas da natureza.
O devir, para Platão, é a marca do mundo das coisas materiais as quais se
submetem ao nascimento, à corrupção e à morte e são conhecidas pelo homem por meio
das sensações. Ao mundo percebido através de nossos sentidos e que está em constante
mudança, Platão denominou mundo das aparências ou sensível e ao mundo composto pelas
formas incorpóreas, imateriais, imutáveis e idênticas; mundo das essências ou das idéias. A
marca do mundo das idéias é a imobilidade e a perenidade.
De acordo com Platão as coisas da natureza, pertencentes ao mundo sensível, são
regidas pelo tempo, o que significa que para o filósofo o tempo é apenas reflexo da
realidade.
Em seus estudos sobre esse tema, Aristóteles (384 a.C. 322 a.C) privilegia o
aspecto matemático do tempo, definindo-o como sendo a medida do movimento, ou seja,
das mudanças ocorridas entre dois momentos pré-estabelecidos. Para Aristóteles os seres
compostos de matéria e forma não mudam propriamente de forma, mas desenvolvem a
forma que possuem, e a passagem do desenvolvimento de uma forma à outra é o devir ou
movimento.
2
Marilena CHAUÍ, Introdução à história da filosofia, p.86.
15
Conforme Marilena Chauí, para Aristóteles o tempo, que pode ser conhecido e
calculado, existe no mundo para medir o devir ou movimento. Para ele, o tempo, como o
mundo, é eterno, porém as coisas que são no tempo, ou seja, as coisas que estão em
movimento são temporais e passageiras. Para Aristóteles o tempo advém do espírito
humano e tem como base o movimento astronômico do sol em torno da Terra, que seria a
medida uniforme de todos os outros movimentos.
Santo Agostinho (354 430) também propõe que a medida do tempo existe no
espírito humano, ou seja, que é uma duração vivida pelo ser e conclui que, dessa forma, o
tempo não existe no mundo da natureza:
“Quem poderá deter o coração do homem, a ponto de ele parar e ver como a
eternidade, que é fixa, nem futura nem passada, determina os tempos futuros e
passados?
3
Para ele não se pode dizer com verdade que o tempo existe, pois o tempo tende para
o não-existir. O tempo presente para ser presente, só passa a existir quando se torna passado
e o futuro, por outro lado, sequer existe.
Entretanto, segundo Santo Agostinho, medimos os tempos quando sentimos que o
tempo está passando, porém quando tiver passado não mais podemos medi-lo, porque
deixou de existir. Assim, não podemos medir o que não existe; não podemos medir o
passado porque não mais existe e igualmente não podemos medir o futuro porque ainda não
existe:
“Vejo, pois, que o tempo é uma certa extensão.”
4
Para esse estudioso, quando medimos o movimento de um corpo, na verdade,
medimos o espaço de tempo desde que começa a mover-se, até que acaba, ou seja, o tempo
que esteve em movimento. Medimos assim, o intervalo desde um início até um fim. “Por
conseguinte, o tempo não é o movimento do corpo.”
5
3
Santo AGOSTINHO, Confissões, p.297.
4
Ibid., p.309.
5
Ibid., p.310.
16
O presente não possui extensão própria, que se torna passado e futuro
constantemente, logo podemos atribuir ao presente qualquer extensão de tempo. Assim,
Santo Agostinho chama de tempo à impressão que as coisas, ao passarem, deixaram no
espírito, pois é no espírito que existe a expectativa das coisas futuras, ou seja o futuro, e a
memória das coisas passadas, o passado. Impressões essas, que diminuem um futuro e
aumentam um passado.
Henri Bergson (1859 1941) em Matéria e memória contrapõe o mundo da
natureza, conhecido através da ciência, com o mundo do espírito, este conhecido pela
intuição e ressalta que o verdadeiro conhecimento da realidade se faz pela intuição e pela
análise de nós mesmos.
De acordo com Bergson, o eu, enquanto permanece no tempo flui, vive e avança
impulsionado pela força do élan vital, impulso vital primitivo. O impulso vital primitivo
originou o impulso vital de natureza psíquica que, de acordo com Bergson, busca libertar-se
da matéria, a qual para Bergson não passa de uma degeneração da realidade psíquica.
E compara a intuição vital do poeta com o impulso vital de natureza psíquica,
relacionando o último como que encerrado na matéria da mesma forma que o primeiro,
preso às palavras, sílabas e letras:
“O conhecimento da realidade pelos conceitos fragmenta e deforma a realidade
fluente; aproxima-se do objeto ab extrínseco, por meio de símbolos e de
abstrações, mas lhe escapa a realidade profunda, concreta, verdadeira. (...)Por
conseguinte, nenhuma ngua pode exprimir essa realidade apanhada pela
intuição, pois a palavra é o têrmo, o sinal do conceito, que nada mais é que uma
expressão sombólica, extrínseca, mecânica, das coisas.”
6
Bergson diferencia o tempo medido pelo relógio ou tempo espacializado, que se
pode contar, do tempo vivo ou durée, sendo este o modo como a consciência apreende a
duração de um acontecimento e assim faz a distinção entre espaço e duração e conclui que
dessa forma, a duração só pode ser objeto de uma intuição metafísica.
Para Bergson o tempo existe na consciência, enquanto que para Santo Agostinho, o
tempo existe no espírito, porém para ambos o presente possui em si um passado recente e
6
Humberto PADOVANI; Luís CASTAGNOLA, História da filosofia, p.405.
17
um futuro próximo; e a duração de um acontecimento se dá pelo modo como a consciência
ou o espírito o apreendem.
Martin Heidegger (1889 1976) denominou o ser como Dasein e segundo seu
pensamento filosófico, a compreensão do ser somente é possível no tempo. “O homem é,
portanto, possibilidade do ser que se determina no fluxo do tempo. O mundo, enfim, na sua
totalidade nada mais é que historicidade, temporalidade, nada.”
7
Para Heidegger são duas as maneiras de estar no mundo; a vida banal e a vida
autêntica. A existência banal possui como traços característicos a despersonalização do
indivíduo no anônimo, a escravidão à rotina, a dispersão do ser na exterioridade e na
multiplicidade das coisas e consequentemente, a fuga da morte.
Da vida banal passa-se à vida autêntica e isso ocorre quando o Dasein descobre que
estar-no-mundo equivale a estar-no-tempo e isso significa ser-para-a-morte, ou seja, a
conscientização de sua própria finitude significa existir.
“(...)na vida autêntica o mundo da experiência em sua totalidade aparece ao
homem como pràticamente indiferente, estranho, causa de um enfado radical, um
nada. O existir é ato de nulificação do ser em sua totalidade; o existente humano
se conhece a si mesmo como coisa que emerge do nada, determinado no nada,
esfôrço para apegar-se ao nada.”
8
A conscientização de que estar-no-mundo é a aceitação da morte gera a angústia,
pela contingência do ser, sentimento este que difere do medo e das preocupações da vida
banal, e levam o Dasein à vida autêntica, isto é, conscientização de sua existência finita.
Para Heidegger o tempo, por excelência, é o futuro, o vir a ser. Um tempo possível,
ou seja, nada e também pleno em possibilidades.
Jean-Paul Sartre (1905 1980) denomina Humanismo o seu pensamento filosófico
e ao tratar da temporalidade, inverte a metáfora do rio, assim de acordo com Sartre, se
tomarmos o tempo como um rio que escoa, traçando uma analogia entre o curso das águas
7
Humberto PADOVANI; Luís CASTAGNOLA, História da filosofia, p.429.
8
Ibid., p.429.
18
do rio e o curso do tempo; o presente aparece como conseqüência do passado e o futuro
como conseqüência do presente. Porém para Sartre é o futuro que vai para o passado, a
água que vem, vem para se tornar passado:
“(...)o que vem é o futuro, e o que escoa vai para o passado, de modo que, em vez
de dizer que o passado impele ao presente e o presente ao futuro, seria preciso
dizer antes que o tempo vem do futuro e vai para o passado.”
9
*
“Daí por que ser e passar são sinônimos no tempo: tornar-se presente e estar
destinado a passar são uma só coisa.”
10
O que Sartre observa, de acordo com Luiz Moutinho em seu livro Sartre: existência
e liberdade, é que as coisas não são temporais porque são plenas e estão situadas num
agora perpétuo e que somente no ser humano a passagem do tempo, concluindo que o
presente é a passagem de um futuro ao presente e deste ao passado, o que faz com que o
curso do tempo seja um fenômeno de continuidade.
Mas não se trata apenas disso. Se me afasto da beira do rio, considerando-o em
si mesmo, verifico que a água que passará amanhã naquele ponto em que não
estou mais, está nesse momento na sua fonte. Do mesmo modo, a água que acaba
de passar está agora um pouco mais abaixo. A água que vem da fonte será
futuro para mim se eu estiver à margem do rio. Se eu não estou, se o mundo é
tomado em si mesmo, verifico que esse futuro e passado são presentes no mundo,
não existem como futuro e passado; eles não se sucedem. Presente eterno, o
mundo não é temporal.”
11
Como nosso propósito é a análise de um texto literário, destacaremos agora o
conceito de tempo considerando alguns teóricos dos Estudos Literários, como Vitor Manuel
de Aguiar e Silva que observa: “A diegese é inconcebível fora do fluxo do tempo. A
narrativa, ou o discurso, que institui o universo diegético, existe também, como sucessão
9
Luiz MOUTINHO, Sartre: existencialismo e liberdade, p.65.
10
Ibid., p.68.
11
Ibid., p.65.
19
que é de palavras e de frases, no plano da temporalidade ( aliás, como qualquer texto
literário).”
12
Massaud Moisés ressalta a existência de três tipos fundamentais de tempo no
romance; o tempo cronológico, o tempo psicológico e o tempo metafísico ou mítico.
Destaca que o tempo cronológico é o tempo marcado pelo ritmo do relógio, pelas
mudanças perceptíveis na natureza, como a alternância do dia e da noite e das estações do
ano. É também um tempo social, que as relações em sociedade se dão nesse padrão
temporal, o qual orienta a vida de convívio social.
E acrescenta que a vivência sob esse sistema horário rígido marcado pelos ponteiros
do relógio traz conseqüências para o eu profundo de cada ser, que o tempo cronológico
não coincide com o tempo psicológico:
“É que o tempo psicológico se opõe frontalmente ao outro: como o próprio
adjetivo ‘psicológico’ sugere, ainda na mais corriqueira de suas conotações, essa
forma de tempo aborrece ou ignora a marcação do relógio. Tempo interior,
imerso no labirinto mental de cada um, apenas cronometrado pelas sensações,
idéias, pensamentos, pelas ‘vivências’, em suma, que, como sabemos, não têm
idade: pertence à experiência mais corriqueira, repetida diariamente, saber como
não significa nada, em última análise, afirmar que determinada sensação ocorreu
há dez anos, vinte dias, etc.”
13
As sensações vividas se acumulam sem cronologia e basta a lembrança delas para
que se tornem presentes e se as lembramos em uma ordem, conforme Massaud Moisés,
ainda é porque estamos sob o efeito da nossa consciência social.
O tempo psicológico varia de indivíduo para indivíduo, diferentemente do tempo
cronológico, universal e inflexível. Soma-se a essas duas dimensões temporais, o tempo
metafísico ou tempo mítico, que conforme Massaud Moisés, é o tempo do ser:
“Acima ou fora do tempo histórico ou do tempo psicológico, embora possa neles
inserir-se ou por meio deles revelar-se, é o tempo ontológico por excelência,
anterior à História e à Consciência, identificado com o Cosmos ou a Natureza.”
14
12
Vítor Manuel de AGUIAR E SILVA, Teoria da literatura, p.291.
13
Massaud MOISÉS, A criação literária: prosa, p.107.
14
Ibid., p.109.
20
Benedito Nunes acrescenta que o tempo psicológico é a experiência da sucessão dos
estados internos de cada indivíduo, bem diferente do tempo físico ou objetivo, que se apóia
no princípio da causalidade, ou seja, na relação entre causa e efeito. Para ele o tempo
psicológico é composto de momentos imprecisos e ressalta que:
“Na narrativa, a ordem temporal e causal se distinguem mas dificilmente se
dissociam.”
15
Benedito Nunes fala também do tempo lingüístico ou tempo do discurso, que
funciona “(...)como eixo temporal a partir do qual os eventos se ordenam. A enunciação é o
ponto de emergência do presente (presente lingüístico), e é a emergência do presente o
tempo próprio da linguagem.”
16
Para Nunes o tempo lingüístico é o tempo responsável pela organização dos
acontecimentos na narrativa:
“É deslocável o presente, como deslocáveis são o passado e o futuro. De ‘uma
infinita docilidade’, o tempo da ficção liga entre si momentos que o tempo real
separa. Também pode inverter a ordem desses momentos ou perturbar a distinção
entre eles, de tal maneira que será capaz de dilatá-los indefinidamente ou de
contraí-los num momento único, caso em que se transforma no oposto do tempo,
figurando o intemporal e o eterno.”
17
Percebemos, através dos fragmentos anteriormente elencados, que a percepção do
tempo com sua apreensão subjetiva sempre fez parte dos questionamentos humanos.
Para Marília Millan, o homem pós-moderno vive sob a tirania do tempo presente,
este regido pelo princípio do prazer. E conclui que no mundo atual se busca banir os
conflitos para evitar o sofrimento psíquico provocado pela condição inerente ao existir do
ser humano, marcado pela certeza da morte que o fragiliza e o deprime:
15
Benedito NUNES, O tempo na narrativa, p.19.
16
Ibid., p.22.
17
Ibid., p.25
21
“Acossados pela urgência, pela velocidade e pela satisfação narcísica de desejos
de poder e onipotência, decepamos o tempo em duas de suas dimensões o
passado e o futuro.(...)Sacrificar a temporalidade é um dos sintomas de algo
maior e mais profundo: a derrocada da subjetividade.”
18
Assim, em um mundo no qual imperam as negações da subjetividade, da
temporalidade e da morte, Vergílio Ferreira nos leva à reflexão sobre a essência do ser, ao
reproduzir na personagem a experiência humana com a subjetividade do tempo.
Percebemos que em Nítido nulo o contraste entre tempo psicológico e tempo físico,
ao longo da obra, gera na mesma a tensão necessária ao equilíbrio da própria coerência do
texto, já que se trata de um romance no qual a personagem-narrador experimenta essa dupla
temporalidade e se angustia ante ao acontecimento futuro e inevitável que a espera, ou seja
o cumprimento de sua sentença de morte.
18
Márília P.B. MILLAN, A experiência subjetiva com o tempo no mundo contemporâneo, pp.164-165.
22
2. A construção dos tempos em Nítido nulo
Ainda que se narrem, como
verdadeiras, coisas passadas, o que se
vai buscar à memória não são as
próprias coisas que já passaram, mas as
palavras concebidas a partir das
imagens de tais coisas, que, ao
passarem pelos sentidos, gravaram na
alma como que uma espécie de
pegadas.”
Santo Agostinho, Confissões, XVIII,
23, p.303.
Pretendemos verificar neste capítulo como se organizam os tempos na narrativa de
Nítido nulo em função da personagem Jorge que experimenta a vivência de um tempo
presente voltado para a ação de rememorar, repleto de tempo passado e de projeções de um
futuro próximo.
As lembranças de Jorge podem ser divididas em dois tempos passados, o seu
passado-infância e o seu passado-recente que justifica e esclarece o momento atual da
personagem.
Esses dois tempos passados rememorados formam o tempo psicológico, individual,
dependente da circunstância, da intuição interna e conforme Henri Bergson em Matéria e
memória, tempo vivido pela consciência. o tempo físico, universal, ligado às horas que
23
passam e à objetividade pelo fato de existir independente de nossa consciência é marcado
pelas descrições do movimento do sol, dos barcos, do cão e dos pescadores na praia.
As lembranças do passado e as descrições do tempo presente se interrompem
constantemente e somam-se às reflexões e às perspectivas futuras que Jorge faz ao longo
do texto.
A narrativa começa no presente de Jorge, a personagem-narrador, que através da
primeira frase do romance estabelece o tempo presente lingüístico, ou seja, o momento da
enunciação: “AGORA a praia está deserta”
19
. A partir do momento agora de Jorge serão
ordenados todos os acontecimentos do romance.
No primeiro capítulo temos a instauração do tempo presente da narrativa e através
da explanação de Jorge tomamos conhecimento de informações como seu estado
emocional, o local e a circunstância em que se encontra, ou seja, preso em um fortim e à
espera do cumprimento de sua sentença de morte:
“E estranha, uma melancolia cresce como erva, deixa um rasto nas
coisas.(...)Condenado à morte quando me executarão? estou aqui à espera
nesta prisão junto à praia.
20
Nesse mesmo capítulo Jorge nos informa que o tempo está quente, que sol e
também nos chama a atenção para o movimento dos barcos associando-os já à passagem do
tempo físico, fora da sala:
“Depois, o silêncio a toda a extensão da areia, alguns bancos, a estacaria dos
toldos ao sol, é o fim da estação. Mas está quente.”
21
*
“O barco ao longe moveu-se. Tem a mobilidade invisível dos ponteiros de um
relógio.
22
Porém, nesse mesmo capítulo, temos o indício de um outro tempo que se alinha
ao tempo físico, e que nos informa a existência de quatro mulheres, Sara, Vera, Marta e
19
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.11.
20
Ibid., p.11.
21
Ibid., p.12.
22
Ibid., p.20.
24
Lúcia, que não fazem parte do tempo presente, do qual Jorge está a falar e sim do passado
que irá começar a lembrar.
Sara, por quem Jorge chama e com quem fala em alguns momentos do romance, faz
parte do seu passado-recente, porém é imaginada por Jorge junto a ele, na sala do fortim. O
que a coloca como imagem do passado e também do presente, que Jorge se encontra
na sala, dado que ele próprio já nos informou:
“Os últimos banhistas desapareceram atrás das arribas, agora estou só. Atrás de
mim está um guarda.”
23
*
“– Sara! Olho atrás sùbitamente, olho ao lado, ela está sentada ao pé de mim
como vieste?
24
Vera, Marta e Lúcia, as três outras mulheres, também fazem parte do tempo
passado-recente e ao serem rememoradas ao longo da narrativa, recriarão esse passado da
personagem-narrador. Assim, entre reflexões e descrições, surgem as quatro mulheres.
No final do primeiro capítulo tomamos conhecimento de muitas informações e
pormenores de Jorge, inclusive que bebe cerveja e come tremoços, enquanto nos conta sua
história. E todas as informações são importantes para a compreensão da narrativa e de sua
linguagem fragmentada.
Sabemos que a personagem Jorge é o narrador, que está preso em um fortim junto à
praia à espera de sua execução e também que o momento que inicia sua narrativa é o início
da tarde de um dia de sol: “O sol brilha(...)”
25
O segundo capítulo se inicia com a afirmação de que a causalidade não existe para
as pessoas:
“O princípio da causalidade. Não existe. Para pessoas não existe.”
26
23
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.12.
24
Ibid., p.16.
25
Ibid., p.20.
26
Ibid., p.25.
25
Afirmação realizada pela própria formação do romance que se constrói a partir das
lembranças de acontecimentos que Jorge procura ordenar cronologicamente e não pelo
procedimento de causa e efeito utilizado nos romances tradicionais, nos quais um narrador
conta os acontecimentos que formam a narrativa, sendo um acontecimento anterior, causa
do posterior.
Em Nítido nulo a narrativa é conduzida pelo fluxo de pensamento de uma
personagem que se conta, ou seja, a ordem da narração dos fatos passados imita o
movimento da mente que recorda os acontecimentos relacionando as sensações passadas
com as sensações presentes, desobedecendo ao princípio de causalidade.
“(...)princípio da causalidade entendido no sentido de uma preformação actual do
futuro no seio do próprio presente.(...)Mas o princípio de causalidade, enquanto
ligaria o futuro ao presente, nunca tomaria a forma de um princípio necessário;
porque os momentos sucessivos do tempo real não são solidários uns dos outros,
e nenhum esforço lógico conseguirá provar que aquilo que foi, será ou continuará
a ser, que os mesmos antecedentes exigirão sempre consequentes idênticos.”
27
Ao entrarmos no segundo capítulo do livro o tempo que se instaura é o passado-
infância, que é esclarecido pela própria personagem:
“Numa manhã limpa de Inverno regresso à infância, a evocação abre
sùbitamente dentro de mim.(...)– velha casa e a tia Matilde e a criada Dolores e o
gato, velha casa.”
28
Jorge recria então a paisagem física de sua infância e gera uma atmosfera que faz
contraste com seu próprio presente enquanto tarde de sol referindo-se às coisas do passado
como frias e ligadas ao inverno, o que observaremos nas próximas lembranças do passado:
“Numa manhã fria de Inverno – sossega coração.(...)Oh, é tão difícil, bem sei.”
29
*
“Numa manhã nítida de Inverno – seria domingo ?”
30
27
Henri BERGSON, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, pp.142/143.
28
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.26.
29
Ibid., p.28.
26
*
“Tia Matilde deve ter justamente regressado da Igreja, Dolores um passo atrás,
vejo-as regressar,(...)Vejo-me é sentado ao cimo do balcão para as ver subir,
numa manhã de Inverno ? Talvez de Verão, afinal, porque um silêncio grande
como ao peso de um calor de sesta, denso, imóvel.”
31
No último trecho da citação Jorge, que nos contava sobre uma manhã de sua
infância, insere o momento do qual está a falar, que é a tarde de sol com vocábulos ligados
ao presente e não ao passado, como o silêncio e o calor, o que provoca dúvida e
ambigüidade a respeito desse tempo passado.
Esta intromissão do presente de Jorge nas suas lembranças reforçam a recriação do
movimento de recordação da mente humana, no qual as sensações de frio ligadas ao
passado se entrelaçam às de calor do momento presente. Além de evidenciar a
transitoriedade da personagem entre os dois planos temporais, o tempo psicológico no qual
estão as lembranças “(...)no seu frio lugar de museu(...)”
32
e o tempo físico, presente da
narração.
Também no segundo capítulo a recordação da morte do mendigo, apedrejado na
praça. Essa é a primeira lembrança de morte da narrativa, outras se seguirão, tais como a
morte do pai de Lucinho no capítulo V, morte de um homem no capítulo VIII, a morte de
Lucinho no capítulo XX e finalmente a morte de tia Matilde no capítulo XXV, capítulo no
qual se encerram as lembranças de sua infância.
“(...)el pasado no vuelve a la conciencia más que en la medida en que puede
ayudar a comprender el presente y a prever el futuro: es un esclarecedor de la
acción.(...)Son posibles miles de evocaciones de recuerdos por semejanza, pero el
recuerdo que tiende a reaparecer es aquel que se parece a la percepción por un
cierto lado particular, aquel que puede esclarecer y dirigir el acto en
preparación.
33
30
Ibid., p.32.
31
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.33.
32
Ibid., p.26.
33
Henri BERGSON, Memoria y vida, pp.60/61: (...)o passado não volta à consciência mais do que pode
ajudar a compreender o presente e a prever o futuro: é um esclarecedor da ação.(...)São possíveis milhares de
evocações de recordações por semelhança, porém a recordação que tende a reaparecer é aquela que se parece
à percepção por um certo lado particular, aquela que pode esclarecer e dirigir o ato em preparação.
27
Jorge lembra as mortes em função da espera de sua própria morte pela similaridade
com o momento presente e na tentativa de sua preparação para o futuro que o espera.
No capítulo III Jorge nos conta a sua chegada à prisão e reaparece a sensação do
frio ligada às lembranças passadas e associada ao abandono que sentia na cadeia:
“Creio ser Inverno não apenas pelo ar frio, mas por uma certa adstringência do
meu corpo, sensação de pequenez, de abandono triste. Um instante hesito, olho
aos lados por instinto, a cadeia fica num lugar deserto.”
34
O primeiro capítulo nos mostra o tempo presente, momento no qual Jorge está a
falar, o segundo capítulo as lembranças do passado-infância e o terceiro capítulo as
lembranças do passado-recente. Assim os três primeiros capítulos do romance nos
localizam e nos informam como se processarão os demais, isto é, uma sucessão de
lembranças intercaladas por projeções futuras e percepções do momento presente.
E dessa sucessão de lembranças passadas, projeções futuras e percepções presentes
surgem as duas temporalidades o tempo físico e o tempo psicológico, juntamente com eles
a subjetividade da personagem que experimentará sensações humanas, como por exemplo a
recordação.
O primeiro capítulo nos revela, através das descrições dos movimentos fora da sala
onde Jorge se encontra, o tempo físico que passa linearmente, contrapondo-se ao tempo
psicológico, nos quais experimenta sucessivos fenômenos interiores.
Para Henri Bergson milhões de fenômenos se sucedem em nosso interior, porém
contamos apenas alguns e é na natureza que pressentimos sucessões mais rápidas que as de
nossa interioridade. E isso se dá, segundo Bergson, porque contraimos o hábito de
substituir a duração vivida pela consciência por um tempo independente.
35
Ao longo da narrativa nos damos conta da passagem do tempo físico pelas
descrições feitas por Jorge que são associadas à percepção de movimento em tudo que
passa:
34
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.47.
35
Henri BERGSON, Matéria e memória, p.244.
28
“(...)um barco passa no limite do horizonte(...)”
36
*
“(...)Passa à borda da água um cão solitário,(...)”
37
*
“(...)Do infinito vem um outro barco.”
38
*
“Um barco passa quase à borda da água – será o de há pouco?”
39
*
“Sol nítido outra vez, a nuvem passou. Passa ao longe sobre a massa das águas
um vôo trémulo de gaivota – ou é uma vela?”
40
*
“MAS o cão teve um toque súbito de expectativa. Num movimento brusco
virou-se.
41
*
“Três pescadores desceram à praia,(...)A tarde desce, um ar recolhido.”
42
*
“Um barco passa, leva já a noite consigo, fiadas de luzes acesas.(...)”.
43
Através das descrições de Jorge o tempo físico se alinha na narrativa e as mudanças
entre esse tempo e o tempo psicológico, sem nenhum sinal gráfico aparente de troca,
imitam o pensamento humano e geram a tensão necessária para equilibrar, ao longo do
texto, a narrativa e formar o tempo vivido, que é construido nessa interação.
Henri Bergson diferencia esses dois tempos como sendo o tempo físico, o tempo
espacializado, que é aquele medido pelos relógios e tempo vivo ou durée ao modo como a
consciência apreende a duração de um acontecimento ou de uma experiência; e afirma que
podemos prolongar ou não o tempo vivo de acordo com o modo como o experimentamos.
Portanto, para Bergson, a duração é uma intuição metafísica.
44
36
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.19.
37
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.20.
38
Ibid., p.49.
39
Ibid., p.86.
40
Ibid., p.136.
41
Ibid., p.175.
42
Ibid., p.200.
43
Ibid., p.299.
44
Henri BERGSON apud Marília MILLAN, A experiência subjetiva com o tempo no mundo contemporâneo,
pp.35-36.
29
Essa tensão entre o tempo psicológico marcado pelo ato de rememorar e o tempo
físico marcado pela luz do sol também formam o equilíbrio necessário para que o discurso
de Jorge não se perca em um longo monólogo ligado às lembranças e reflexões sobre a
vida.
A utilização desse processo de mudança de tempo em que as situações apresentadas
não têm relação cronológica com as precedentes nem com as subseqüêntes geram um
efeito de cenas que ocorrem no presente e não num tempo passado e recriam o movimento
do fluxo de consciência.
A reprodução de imagens passadas fazem com que o tempo presente seja um
momento do qual participam todas as experiências vividas, visto que as lembranças não
surgem tal como ocorreram, elas são reatualizadas com o auxílio da imaginação.
Para recriar o movimento da mente os momentos de recordações passadas não são
exclusivamente feitos de lembranças. Há um predomínio de cada tempo passado, porém
constantemente interrompido ora pelo presente, ora pelo outro passado que não aquele
predominante no capítulo em questão.
De forma que todo o texto expresse a idéia de movimento da mente que percebe o
instante presente mas não se desfaz das sensações que os acontecimentos passados
deixaram.
Temos assim uma cadeia narrativa na qual o tempo presente lingüístico é composto
pelo tempo físico (objetivo), marcado pelos movimentos do sol e pelo tempo psicológico
(subjetivo), marcado pelas lembranças e digressões:
“ATÉ que o cão se levantou de entre os bancos e eu cheguei à cidade”
45
Nessa frase a ação de se levantar do cão, que pertence ao momento presente da
enunciação, se une à ação de Jorge, quando ele chegou à cidade em seu passado recente:
“O primeiro traço do tempo psicológico é a sua permanente descoincidência com
as medidas temporais objetivas. Uma hora pode parecer-nos tão curta quanto um
minuto se a vivemos intensamente; um minuto pode parecer-nos tão longo quanto
uma hora se nos entediamos. Variável de indivíduo para indivíduo, o tempo
45
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.71.
30
psicológico, subjetivo e qualitativo, por oposição ao tempo físico da natureza, e
no qual a percepção do presente se faz ora em função do passado ora em função
de projetos futuros, é a mais imediata e mais óbvia expressão temporal
humana.(...)Bem diferente é a ordem objetiva do tempo físico, que se apóia no
princípio da causalidade, isto é, na conexão entre causa e efeito, como forma de
sucessão regular dos eventos naturais.”
46
Em Nítido nulo é explorada a relação do tempo físico, ligado à luz do sol nas
coisas durante a tarde, com o tempo psicológico, ligado este à ão de rememorar. E a
tentativa de restabelecer uma cronologia entre os fatos passados e de precisar o passar do
tempo presente são bastante frágeis, o que gera uma insegurança em relação ao tempo,
evidenciando a angustiante espera da morte próxima:
“E às nove da noite – eu disse às dez? atravesso o portão.
47
*
“Numa manhã nítida de Inverno – seria domingo?”
48
*
“O sol caiu atrás, um rasto de clarões pelas nuvens, tarde quieta.”
49
Ao relembrar, Jorge instaura um tempo no qual a reatualização do passado preenche
seu presente solitário e o faz se sentir vivo pelos acontecimentos por ele vividos e
recuperados pela lembrança. Também é uma maneira de se afastar do momento presente no
qual espera a sua execução.
Dessa forma, Jorge recupera sentimentos antigos deixados no seu íntimo e
acrescenta a eles sentimentos atuais. Assim, a tristeza, a angústia pela incerteza em relação
ao que vê e todas as suas reações configuram seu modo de reagir à condenação e à
execução futura:
“– Levante-se o réu! Tem de ser e levanto-me. É o ‘libelo acusatório’? cheio de
pistolas e facas no entrelinhado da prosa. Vai-me doendo a cabeça para ouvir. As
pernas aguentam, interessadas talvez ainda na história. A certa altura houve um
46
Benedito NUNES, O tempo na narrativa, pp.18-19.
47
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.51.
48
Ibid., p.32.
49
Ibid., p.309.
31
corropio nos intestinos, percorrendo-me todas as circunvoluções até à porta.
Fechei a porta. Meu Deus. Como a tarde é difícil.”
50
As lembranças de Jorge se misturam constantemente, deixando a tarefa de
separá-las e de ordená-las ou não, ao leitor que também pode simplesmente se deixar levar
pelo fluxo das próprias lembranças, que se assemelham a sua própria experiência com a
subjetividade do tempo.
A não obediência ao princípio da marcação cronológica dos acontecimentos
lembrados se ajusta a não obediência ao princípio da causalidade e se justifica pelo estilo
narrativo do texto, no qual os fatos narrados surgem da memória onde habitavam, livres de
qualquer ordem cronológica, sujeitos à razão e à imaginação.
Enquanto o tempo do discurso de Jorge segue linear, como a tarde que passa, a
técnica de mudança de tempo na qual acontecimentos do passado, do futuro e do presente
aparecem justapostos ou fundidos, produz o efeito de presentificação dos fatos passados e
do futuro iminente.
Assim o discurso de Jorge coloca suas lembranças uma em seguida da outra em uma
organização que depende somente da memória e que a partir do capítulo V se sucederão à
força de uma ordenação manifestada pelo próprio narrador que insiste em manter uma
ordem em direção ao momento presente:
“O Lucinho morreu. Mas não agora.”
51
No capítulo VI Jorge conta sua chegada à cidade, mas interrompe seu raciocínio
para contar lembranças de sua infância e da sua estátua. E é somente no capítulo VII que
ele retoma a sua chegada à cidade e acrescenta o reencontro com Vera, no qual fica
sabendo da morte do marido dela.
A interrupção se no sentido de reproduzir as sensações que surgem com as
lembranças e que vêm acompanhadas por outras recordações, de forma a imitar a sucessão
dos sentimantos interiores.
50
Ibid., p.297.
51
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.61.
32
Após a lembrança do suicídio do marido de Vera, no capítulo VIII, Jorge conta a
morte de um homem na época da faculdade. E por mais que se esforce para conseguir uma
ordenação, suas lembranças surgem como se desconhecessem a cronologia em que foram
vividas. E dessa forma se apresentam os capítulos IX e X nos quais Jorge conta duas ou
mais idas à praia, não há certeza de quantas viagens foram, pois elas se confundem em uma
única sensação, devido a sua circunstância emocional:
“Marta um Verão esteve comigo – ainda era viva a tia Matide ? penso que não.”
52
*
“Nado mal, faço um estardalhaço medonho e avanço puco. Grácil, saúda-me de
longe, a mão linda no ar. Depois regressamos à barraca, Dolores esfrega-me
vigorosamente. Dá-me um naco de pão, como-o fora, elas dentro. Bato o
queixo, tenho as mãos roxas o frescor salino do ar. Avivo a atenção, sinto-o e
bebo uma golada de cerveja. Pequeninas bolhas na efervescência picante na
garganta, no nariz tia Matilde e Dolores ralham dentro da barraca. Finalmente
Marta regressa. Aguardo-a para cá de aventuras marinhas, perto da terra da minha
segurança.”
53
Percebemos a união das idas à praia. Uma com a tia Matilde e a Dolores e outra
com Marta. Mas apesar de Jorge adiantar que o momentos distintos do seu passado, ele
não consegue separá-los, já que estão unidos pelas mesmas sensações.
No capítulo X temos a continuação da ida à praia e a visita de Teófilo, que ocorre
no presente da enunciação e contamina dramaticamente o presente pela certeza da morte
esperada:
“– Tu como é que queres morrer: enforcado ou fuzilado ? E eu disse: Obrigado,
ó Teófilo. – Serás pois fuzilado.”
54
A partir do capítulo X as lembranças de Jorge serão em torno dos fatos narrados
nos capítulos anteriores. Temos assim no capítulo XI sua explanação sobre o chefe de
52
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo p.103.
53
Ibid., p.105.
54
Ibid., p.116.
33
governo e no capítulo XII a partida de seus pais e sua irmã. E seguem-se assim os capítulos
XIII, XIV e XV nos quais Jorge fala sobre a Dafne, editora em que trabalhava.
Seguem-se igualmente os capítulos XIII até XIX nos quais Jorge fala sobre a
Revolução da qual participou e sua prisão. São capítulos que explicam o momento presente.
A morte de Lucinho anunciada no capítulo XV chega no capítulo XX, momento em
que antecipa também a morte da tia:
“E de repente Lucinho. Há-de morrer também, tenho aqui a morte dele, toda
escrita na memória, agora não.”
55
*
“E vão sendo horas de o Lucinho morrer.(...)Terá de morrer também a tia
Matilde, mas agora não há tempo”
56
Os capítulos XXI, XXII, XXIII e XXIV se sucedem com fatos e digressões até o
capítulo XXV, o qual traz a morte da tia Matilde e com ela o final das lembranças de seu
passado-infância:
“Tenho de explicar a morte da tia Matilde com alguma doença, mas não é fácil.
Tem de ser uma doença que caiba num capítulo.”
57
O sentido e a angústia das mortes no passado e da sua morte num futuro breve criam
no momento presente uma carga dramática que contamina a personagem e o seu discurso.
Seguem os capítulos XXVI, XXVII e XXVIII nos quais Jorge conta que explodiu
sua própria estátua, mas não deixa claro se está preso porque se colocou contra o governo
ou porque ajudou a instaurá-lo.
No capítulo XXIX Jorge conta sua audiência, quando foi condenado à morte e
encerra a narrativa no capítulo XXX fazendo reflexões sobre o fim de todas as coisas. O
que nos aproxima também do fim da narrativa de Jorge, que será interrompida nesse
capítulo e retomada no capítulo XXXI, último do romance, no qual Jorge instaura um novo
55
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.159.
56
Ibid., p.207.
57
Ibid., p.259.
34
AGORA, ou seja, um novo presente lingüístico na man do seu fuzilamento, este
precedido pela morte do cão:
“A audiência, aliás, foi breve.dois dias? Ou três.”
58
*
“E definitivamente, o fim. Erguida ao alto, a tarde, o céu mais profundo. E em
baixo o mar. O sol caiu atrás, um rasto de clarões pelas nuvens, tarde quieta.”
59
*
“Só um clarão ondeando à superfície, o sol ainda não nasceu.”
60
Contrariamente aos romances de enredo linear, Nítido nulo reconstrói a história de
Jorge, ou melhor, os acontecimentos que deixaram marcas profundas em sua vida e que
explicam o presente, a partir de lembranças que emergem da memória organizadas pelas
tentativas do próprio narrador. Assim, a reconstrução do tempo passado se faz, não
obediente à ordem cronológica dos fatos narrados, mas pela associação de sentimentos
presentes.
Também é importante ressaltar que há a tentativa de organização feita pelo narrador,
que evita narrar uma lembrança porque ainda não sente que é o momento certo para fazê-la,
exprimindo assim sua intenção de impor às recordações uma cronologia necessária para o
entendimento de sua história e da manutenção lógica da narrativa.
A transmissão dos acontecimentos passados feitas por Jorge aproxima lembranças
afastadas pelo tempo, como nas viagens à praia; uma com a tia Matilde, quando era criança
e outra com Marta, adulto, o que mostra que as lembranças não têm somente o propósito
de mostrar as ações mas também a vida interior, os sentimentos de Jorge e sua
subjetividade, na qual ele experimenta um tempo ligado às sensações.
A liberdade da consciência que recorda é o eixo pelo qual caminham os capítulos do
romance. Após os três primeiros capítulos introdutórios nos quais o escritor situa o leitor,
se processa ao longo dos vinte e oito capítulos restantes que compõem a obra, uma jornada
entre o mundo interior e o mundo exterior que refletem o tempo psicológico e o tempo
físico.
58
Ibid., p.295.
59
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.309.
60
Ibid., p.315.
35
Esse processo dual se verifica desde o título da obra, no qual se expressam a
precisão do primeiro termo nítido e a negação da precisão pelo segundo termo nulo,
evidenciando a tensão que percorre toda a narrativa, ou seja, o conflito entre a precisão da
objetividade e a vaguidão da subjetividade.
A tensão encontrada na tentativa de equilíbrio entre os tempos sico e psicológico
evidenciam a experiência do ser com a temporalidade, isto é, o conflito entre o apelo da
vida e a angústia da morte.
Essa mesma dualidade se expressa não através dos elementos acima citados, mas
também através da linguagem utilizada pelo autor que tenta com palavras imitar a liberdade
do fluxo do pensamento humano e transmitir o conteúdo poético e reflexivo de teor
existencialista do romance em palavras e frases que limitam tal conteúdo pela
impossibilidade de expressá-lo com precisão, pois é preciso adaptar os sentimentos às
significações dos vocábulos.
“O meio da ficção, a linguagem, impõe a limitação mais fundamental à arte do
escritor, e condiciona o ‘que’ não menos do que o ‘como’ do seu escrever.”
61
Ao vivenciar a experiência conflitiva com a temporalidade, ou seja, a existência ora
em um tempo físico, ora em um tempo psicológico, Jorge adquire a personalidade humana,
que se revela enquanto ele desenvolve uma reflexão sobre seu próprio eu e levanta a
questão filosófica do ser no tempo.
Assim sendo, a reconstrução do tempo em Nítido nulo não é uma recapitulação de
acontecimentos passados e sim uma interpretação de fatos emocionalmente fortes que
preenchem o momento presente. Fatos esses que, ao serem recordados e presentificados,
trazem a vida em si pelo fato de terem sido um dia vivos e preenchem o momento
presente repleto de um futuro de morte. Assim também as lembranças das mortes que
tentam trazer a compreensão da sua própria morte ou intensificar a angústia gerada por ela.
Produzindo o efeito da corrente da consciência humana, Nítido nulo possui uma
linguagem bastante fragmentada, por isso para se chegar a uma compreensão do modo
61
A.A. MENDILOW, O tempo e o romance, p.37.
36
como a personagem sente o passar do tempo, a leitura deve seguir constante até o final da
obra:
“Pode-se imergir na personalidade de um personagem com maior facilidade
quando se está diretamente testemunhando a marcha de suas idéias e emoções ao
serem pensadas ou sentidas(...)”
62
A expectativa da execução esperada por Jorge modifica os valores do tempo pelo
conhecimento e pela angustiante certeza da morte iminente. Assim a aceleração do tempo
físico é dolorosa, já que o aproxima da morte anunciada no primeiro capítulo:
“Diz-se que à hora da morte. Deve ser verdade, revê-se a vida toda. É o instante
infinito com a eternidade no centro. De uma a uma, as ondas, sempre, olho-as na
vertigem de lembrar, de esquecer.”
63
*
“Compacto de uma vida a transbordar, agitada e nula.”
64
A organização da narrativa se faz pela não obediência ao princípio da causalidade,
este ligado ao tempo físico. Conforme veremos com detalhes nos capítulos seguintes.
É uma narrativa conduzida pelo ato de rememorar, o que faz com que o significado
geral da obra seja alcançado a partir da união das lembranças e das reflexões de Jorge.
“Quando nos limitamos a olhar as coisas ‘com’ ele, para em seguida deixá-las
desvanecerem-se, quando lemos sem a chave que é fornecida no final, quando
vivemos ficticiamente com o narrador tal como ele vive (e não com o narrador
assim considerado, visto como para poder contar ele teve de recuperar o tempo),
nós estamos a perder o tempo ‘com’ ele. Mas quando nos empenhamos em seguir
a sua reflexão, o tempo aparece, é recuperado e chegamos a compreender os seres
em sua temporalidade.”
65
62
A.A. MENDILOW, O tempo e o romance, p.147.
63
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.64.
64
Ibid., p.283.
65
Jean POUILLON, O tempo no romance, p.145.
37
Vimos neste capítulo que a construção dos dois tempos na obra, o tempo físico e o
tempo psicológico, está ligada às emoções vividas por Jorge no momento presente.
Enquanto aguarda a própria morte a personagem experimenta diversos sentimentos e se
angustia ante a certeza do final trágico de sua vida.
3. Os recursos estilísticos na formação da subjetividade
A linguagem é a casa do SER. Em
sua habitação mora o homem. Os
pensadores e poetas lhe servem de
vigias.”
Martin Heidegger, Sôbre o humanismo,
p.24.
Neste capítulo faremos o levantamento dos recursos estilísticos, isto é, dos meios
que o autor recorre para criar a subjetividade da personagem que é sensível à passagem do
tempo e manifesta esse sentimento através da linguagem.
Segundo Mattoso Camara, o estilo decorre da intenção da obra, do impulso emotivo
e do propósito de sugestão; e na linguagem literária ‘os processos estilísticos se acham a
serviço de uma psique mais rica e especialmente educada para o objetivo de exteriorizar-
se’.
66
No texto a utilização dos recursos estilísticos cria a subjetividade, que conforme
Aurélio Ferreira, é aquilo que é relativo ao ou existente no sujeito e passado unicamente no
espírito de uma pessoa.
67
O que auxilia na compreensão da angustiante interioridade de
Jorge.
66
J. M. CAMARA Jr., Dicionário de lingüística e gramática, p.110-111.
67
Aurélio FERREIRA, Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, p. 613.
38
Conjuntamente, faremos a interpretação dos dados obtidos e de seus significados,
isto por ser a experiência entre o tempo físico e tempo psicológico uma característica dos
sentimentos humanos dentro do texto.
Como vimos no capítulo anterior deste trabalho, a narrativa de Nítido nulo é
ordenada pelo fluxo do pensamento de Jorge, personagem-narrador que insiste em manter
suas lembranças organizadas num eixo cronológico artificial.
Por evoluir em um tempo psicológico, não no texto um encadeamento entre os
fatos narrados, o que confere à narrativa um caráter fragmentário não ligado à
sucessividade e sim à essência de liberdade que une as lembranças e que se confronta com a
situação de Jorge, preso à espera da morte.
Para construir um texto revelador do estado emocional da personagem a algumas
horas da execução e dar-lhe a imagem de alguém que ao recordar tenta se libertar do
angustiante presente, Vergílio Ferreira utiliza os recursos da troca de tempo, o
interseccionismo, o discurso direto e o emprego de figuras de sintaxe.
39
3.1. Os tempos verbais
As ações serão nosso ponto de partida para o estudo dos tempos verbais, ou seja, os
atos que compõem a narrativa. Assim, temos as ações externas ligadas aos acontecimentos
dentro da sala na qual Jorge está preso e os movimentos visualizados por ele da janela.
Relacionados à ação interna, temos os acontecimentos que se passam na consciência
da personagem, fruto de suas lembranças e de sua imaginação. Essas ações coexistem no
texto sem que uma anule a outra e se inter-relacionam de forma que os fatos lembrados se
misturam com as percepções presentes e estas com as lembranças sem nenhum sinal
gráfico, além da vontade expressa da personagem em narrar algumas lembranças de seu
passado.
A partir do momento em que Jorge começa a narrar, duas linhas temporais se
projetam no texto, o tempo presente lingüístico, no qual ele está a narrar e o tempo passado,
o qual ele irá contar.
O tempo presente lingüístico ou tempo da enunciação de Jorge é marcado na
narrativa pelo movimento do sol e está ligado ao tempo físico, como ele próprio nos
informa: “O sol desce. o tinha dito. Tenho de o dizer mais vezes à medida que for
descendo.”
68
Assim temos as descrições da luz do sol nas seguintes páginas:
p.020 “O sol brilha(...)”
p.043 “(...)- Está sol.”
68
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.199.
40
p.075 “Há sol.”
p.078 “Enquanto distraidamente vou olhando a luz já um pouco fria do sol(...)”
p.166 “O sol arrefeceu um pouco, parece-me.”
p.200 “A tarde desce,(...)”
p.281 “O sol desce,(...)”
p.301 “Tenho o pôr do sol à minha frente e o mistério da noite(...)”
p.309 “O sol caiu atrás.”
p.315 “(...)o sol ainda não nasceu.”
p.316 “Está um dia de sol. O céu sem uma nuvem.”
Observando as páginas ordenadas, percebe-se a passagem do tempo físico através
do movimento progressivo do sol. Até a página 199, sol, está sol, o sol brilha. A partir
daí, o sol começa a ceder, com a chegada da tarde que desce. Inicia-se o pôr do sol e as
sombras que darão lugar à noite, o que acontece na página 301 quando definitivamente
chega a noite.
Com a chegada da noite a narrativa é interrompida e retomada novamente com o
novo amanhecer na página 315, quando um clarão e o sol ainda não nasceu. Na
página 316, última do romance, Jorge esclarece que está um dia de sol e que o céu está sem
nuvens, frase final da obra. Percebemos assim, pelo deslocamento do sol, que o tempo
físico não ultrapassa um dia solar, ou seja, as 24 horas.
Essa passagem do tempo físico aproxima Jorge do momento de sua execução e sua
narrativa reflete a angústia que o domina, apesar das tentativas de fugas em lembranças do
passado, pois a marcação que insiste em fazer pela luz do sol é como uma contagem
regressiva para a morte.
O primeiro capítulo do romance instaura o momento da enunciação, o agora gerado
pelo ato da linguagem de Jorge. A partir daí, ele conta que os últimos banhistas
desapareceram há dias e inicia suas lembranças e reflexões.
O último capítulo do romance é o dia posterior ao dia no qual o agora foi
instaurado, ou seja o dia seguinte do agora instaurado no primeiro capítulo. Assim, o
último capítulo começa pelo amanhecer ou o acordar de Jorge no dia de sua execução.
41
É importante também notar que desde as primeiras páginas ele observa
constantemente o sol, atribuindo-lhe a função de marcar a passagem do tempo físico e
delimitar o tempo da enunciação ou presente lingüístico:
p.12 “O sol.”
p.13 “(...)- o ar está cheio de sol.”
p.14 “(...)o sol imobiliza-se no azul,(...)”
p.17 “(...)Há tanto sol.”
p.18 “E há sol no ar.”
p.20 “(...)O sol brilha,(...)”
p.22 “(...)fito o sol,(...)”
No novo agora instaurado Jorge descreve o movimento dos soldados que o
conduzem à praia a fim de executá-lo, o tiro no cão e finalmente a aproximação do
comandante que dará a ordem final.
Nesse pequeno capítulo dois momentos em que se refere ao dia de sol: o sol
ainda não nasceu na página 315 e Está um dia de sol na página 316, realçando a
eternidade das coisas que não passam e que continuarão a existir apesar de sua morte e da
passagem do tempo, pois somente o ser existe num tempo.
A narrativa de Jorge não fixa um tempo determinado, não sabemos em que ano ou
mês se passa o momento presente, sabemos que é um dia antes da execução somente no
último capítulo do livro.
A grande utilização de verbos no presente do indicativo faz com que se verifique
uma simultaneidade entre os acontecimentos passados e os acontecimentos descritos no
presente e também aproxima o narratário do narrador, em seu processo de recordações,
que intensifica as sensações presentes deixadas pelos fatos passados.
A proximidade entre narratário e narrador é bastante evidente quando no último
capítulo, manhã do fuzilamento, é instaurado um novo agora no qual nos posicionamos
novamente no presente pontual do narrador, visto que a narrativa fora interrompida durante
a noite. É como se estivéssemos vendo tudo acontecer, como se estivéssemos presentes na
sala com ele.
42
O tempo de aproximadamente 24 horas vivido por Jorge nos é transmitido
simultaneamente através da linguagem, concomitantemente com os fatos descritos, gerando
dessa forma um simulacro da realidade.
Enquanto Jorge espera, ele recorda. E procura dilatar ao máximo esse tempo de
espera através da incorporação do passado no momento presente. Isso se pela tentativa
de evitar o futuro iminente, adiá-lo ao máximo ou mesmo de não pensar nele.
Esse tempo ampliado e lento se contrapõe à passagem do dia fora da sala, tempo
físico marcado pelo movimento solar.
O tempo psicológico, ligado à interioridade de Jorge, é constantemente
interrompido pela irreversibilidade do tempo físico, que passa contínuo, ininterrupto,
aproximando-o de sua execução. Assim, o conflito entre a tentativa de prolongar o presente
e retardar a chegada da morte simula a experiência temporal do ser humano num tempo que
o leva para sua própria finitude.
Jorge associa seus sentimentos, ligados à espera da morte, à hora da noite, à hora
do silêncio, revelando sua interioridade que se contrapõe à tarde de sol:
“É a hora da morte. À hora da morte está-se só, é dos livros. uma questão a
decidir, a questão de todas as questões. E cada um de nós. É uma questão bem
chata, oh. De um lado a vida toda; e do outro, o nada todo dela. É uma questão
difícil e um pouco ridícula a esta hora. É a hora da noite. Grave assume-te, é a
hora do silêncio.”
69
O que verificamos em Nítido nulo é um constante ponto de coincidência entre o
presente e os tempos passados infância e recente contidos na narrativa. Ou seja, uma
intersecção entre temporalidades distintas.
Além da utilização dos verbos no presente do indicativo para narrar fatos passados,
é possível observar que na obra duas maneiras de apresentar o momento da enunciação
ou presente lingüístico; um presente pontual e um presente omnitemporal ou gnômico.
De acordo com José Luiz Fiorin em Astúcias da enunciação, no tempo presente
pontual os verbos indicam estados puros ou transformações que ocorrem no momento de
69
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.293.
43
referência presente. Em Nítido nulo se verifica um agora que se passa durante a tarde que
está sol:
“Na ponta extrema da baía, um pouco para dentro, suponho, e para um
pequeno farolim, vejo-lhe a ponta. Vegetação seca no recorte das dunas, vejo-a,
lembra-me a brisa de sal. Um barco passa quase à borda da água (...)”
70
*
Passa à borda da água um cão solitário, o focinho baixo, fareja. Pára em alguns
sítios especiais para um farejo mais escrupuloso, segue depois,(...)”
71
*
“Uma nuvem passa, isolada e escura. Corre a sua sombra pelo areal, passa.”
72
*
Entardece devagar, sorrio muito devagar,(...)Suave luz, é o fim do dia.”
73
*
“A tarde desce, um ar recolhido. Refluxo da vida a si mesma, é uma hora má.”
74
Nos exemplos os verbos no presente do indicativo indicam os estados ou
transformações que ocorrem no momento de referência presente, o agora de Jorge que se
passa durante a tarde. Vemos que os movimentos do barco que passa, do cão que passa e da
nuvem que passa podem ser vistos como metáforas do tempo que passa, assim como a
tarde e a chegada da noite, à finitude da vida.
Outro presente utilizado na narrativa é o gnômico ou omnitemporal que “É o
presente utilizado para enunciar verdades eternas ou que se pretendem como tais. Por isso,
é a forma verbal mais utilizada pela ciência, pela religião, pela sabedoria popular (máximas
e provérbios).”
75
Assim temos as digressões e reflexões feitas por Jorge ao longo da
narrativa:
“– Todo o homem é livre: exige-lhe essa responsabilidade.”
76
70
Ibid., p.86. Os grifos são nossos.
71
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.20. Os grifos são nossos.
72
Ibid., p.91.
73
Ibid., p.175.
74
Ibid., p.200.
75
José Luiz FIORIN, As astúcias da enunciação, p.151.
76
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.204. Os grifos são nossos.
44
*
“A história do homem é a da luta contra as suas limitações.”
77
*
“O homem só é um animal racional nos intervalos de ser animal. Na realidade,
nem isso. Na realidade só é racional para justificar a animalidade.”
78
As digressões, que se apresentam no presente gnômico, têm a função de intensificar
a aproximação do narratário, que fica sabendo o que se passa na interioridade da
personagem e seu modo de ver a vida, isto é, dá a conhecer a subjetividade da personagem.
Os acontecimentos que se passam ao longo da tarde, além de serem narrados no
presente pontual, também são narrados com verbos no pretérito perfeito, indicando uma
relação de anterioridade entre o momento do acontecimento e o trágico momento de
referência presente:
“Sol nítido outra vez, a nuvem passou. Passa ao longe sobre a massa das águas
um voo trémulo de gaivota – ou é uma vela?”
79
*
“O cão ergueu-se, foi direito ao primeiro pau de um toldo e varejou-o de perna
erguida com pequenos esguichos sem interesse.(...)Do infinito vem um outro
barco. Imóvel fixou-se no meu horizonte onde estava apenas eu e o meu vazio.”
80
Nesse exemplo temos também a utilização do pretérito perfeito fixou como ponto de
referência ao pretérito imperfeito estava, ligado ao tempo duração, para dessa forma marcar
uma concomitância em relação aos dois acontecimentos.
Para indicar uma posteridade do momento do acontecimento em relação ao
momento de referência presente, temos somente as perguntas de Jorge sobre sua execução.
“Condenado à morte quando me executarão?” na gina 11 e que se repete na
página 12. Também temos as perguntas “- fuzilado ou enforcado?” na página 147 e na
página 202, com referência implícita ao futuro. Nesse caso, o ponto de referência futura é o
dia do cumprimento da sentença de morte.
77
Ibid., p.162.
78
Ibid., p.164.
79
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.136. Os grifos são nossos.
80
Ibid., p.71.
45
Essas perguntas evidenciam o trágico futuro e os sentimentos de Jorge nessas horas
de angústia diante da morte e de perplexidade diante da vida.
As demais marcações de futuro se dão com relação ao futuro imediato, como as
ações simultâneas ao discurso: “(...)vou pedir mais cerveja.”
81
E ligadas às reflexões de
Jorge: “Sou em breve em mim o nada deles amanhã.”
82
E “(...)que é que haverá para o
norte?”
83
Quanto às maneiras de marcar uma relação de anterioridade entre o momento do
acontecimento, seja ele no passado infância ou passado recente, com o momento presente
lingüístico, temos em princípio o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito.
“Por isso, Bakhtin, aceitando as teses de Lorck sobre esses dois tempos, diz que,
com o perfeito, nosso olhar orienta-se para o exterior, para o mundo dos objetos
e conteúdos que o pensamento apreendeu’ (e, por essa razão, como
acabados); com o imperfeito, para o interior, para o mundo do pensamento em
devir e em processo de constituição’ (e, por esse motivo, vê os estados e as
transformações indicados por esse tempo em curso, ao longo de um espaço de
tempo.”
84
Nos dois exemplos a seguir, que se referem à infância de Jorge, temos a utilização
do pretérito perfeito e do pretérito imperfeito:
“Tia Matilde casou com um retrato que havia lá na sala de visitas – não na sala de
visitas, acabou por retirá-lo para outra sala e depois para um quarto secundário e
depois creio que para o sótão à medida que ia existindo menos, mas eu lembro-
me.”
85
Nesse exemplo a ação é vista como algo acabado, como um ponto na continuidade
da infância que está sendo narrada. Ao contrário do exemplo seguinte, no qual o verbo em
pretérito imperfeito faz com que consideremos a ação como sendo contínua na infância:
81
Ibid., p.87.
82
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.11. Os grifos são nossos.
83
Ibid., p.25.
84
José Luiz FIORIN, As astúcias da enunciação, p.155.
85
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.28. Os grifos são nossos.
46
“Em pequeno íamos à praia, tia Matilde cuidava-me da saúde. Por altura de
Novembro, o Dr.Oliveira percorria-me o tronco nu com um aparelho. Depois
metia-me uma colher na boca e mandava-me dizer ‘ah’. Depois puxava os óculos
para a testa e arregaçava-me um olho. Depois escrevia num papel e ia lendo
devagar enquanto escrevia: - óleo de fígado de bacalhau, uma colher a cada
refeição. Depois tia Matilde pagava. Muito grata ao Dr.Oliveira por me não
encontrar nada de grave. Por alturas de Maio, o Dr.Oliveira examinava-me o
tronco nu, metia-me a colher na boca e repuxava-me um olho. Depois escrevia e
dizia: - Xarope iodotânico fosfatado e banhos de mar.”
86
Os verbos no pretérito imperfeito expressam acontecimentos que se repetem no
passado infância de Jorge, ou seja, as idas à praia eram constantes devido às recomendações
do médico e revelam o cuidado da tia com a saúde de Jorge. As idas à praia, que no
passado estavam ligadas aos cuidados da tia, agora se opõem a sua condição presente.
Além da utilização dos pretéritos perfeito e imperfeito para narrar os
acontecimentos passados, temos a utilização do verbo no tempo presente associado ao fato
que está sendo narrado com verbos no passado.
Assim a narrativa da morte do mendigo na infância de Jorge que vinha sendo
narrada com verbos no pretérito, passa a utilizar verbos no presente do indicativo: vejo,
desço, cessam, o que mostra o momento no qual Jorge se inclui no fato e evidenciam dessa
forma um alto grau de envolvimento do narrador com sua própria narrativa:
“Mas nós ficámos ainda como estávamos, petrificados. Não via tia Matilde,
decerto ainda à janela, a boca aberta de assombro e escândalo, Dolores à porta,
especada, sorria em êxtase. Eu olhava em volta, olhava pelo portão o rasto do
homem desaparecido. Foi quando de longe lhe ouvimos de novo o apito iria
pregar outra vez? E de facto, pouco depois, um clamor de tempestade. Mas a
certa altura vejo passar em frente do portão um homem em correria. Depois, outro
e outro. Irresistìvelmente desço à rua, os homens não cessam de correr.”
87
86
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.102. Os grifos são nossos.
87
Ibid., p.38.
47
“Assim, o emprego do presente interpreta-se muitas vezes como resultado da
vontade de se comunicar pensamentos da personagem sem a transposição que lhes tiraria a
espontaneidade própria da vida interior.”
88
Também é importante destacar que a utilização dos advérbios de tempo, tais como
então, agora, ainda, sempre, que são marcas de anterioridade e posteridade, sugerem na
narrativa a idéia de um presente que não está destituído de passado, que as lembranças
fazem parte do momento presente pois estão na subjetividade do ser. Os acontecimentos
passados surgem no momento presente como partes integrantes desse tempo.
O advérbio agora encontrado no texto manifesta a concomitância dos
acontecimentos narrados com o presente da enunciação:
“Vou agora olhar o mar, em baixo, o arrepio do abismo. Já negro, mais profundo
assim. E enquanto o olho, um inesperado silêncio, de súbito dou conta, o coro
calou-se. Mas poco a pouco, certo, ritmado, um rumor cresce Mor-te! Mor-
te!”
89
Encontramos advérbios que denotam o aspecto pontual da narrativa e indicam a
descontinuidade, o que marca a transformação do estado e a contraposição de
temporalidades:
“Numa manhã fria de Inverno regresso à infância, a evocação abre sùbitamente
dentro de mim. A ternura afoga-me, um sorriso triste, um abalo profundo no
quente do meu sangue à evidência brusca da morte.”
90
*
“Vou agora olhar o mar, em baixo, o arrepio do abismo. Já negro, mais profundo
assim. E enquanto o olho, um inesperado silêncio, de súbito dou conta, o coro
calou-se.”
91
Assim, subitamente e de súbito marcam implicitamente a troca de temporalidades.
No primeiro exemplo somos levados à infância de Jorge, já no segundo exemplo, saimos do
88
Maria Alzira SEIXO, Para um estudo da expressão do tempo, p.137.
89
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp.299/300. Os grifos são nossos.
90
Ibid., p.26.
91
Ibid., p.300.
48
presente da enunciação no qual Jorge olha o mar e somos levados para o momento do seu
julgamento.
Também encontramos advérbios que indicam um aspecto durativo, um aspecto
gradativo e um estado que no momento presente já esta terminado:
“E devagar, parece-me, definitivamente o Outono – será do entardecer?”
92
*
“E definitivamente, o fim.(...)A praia escurece suavemente,(...)”
93
A conjunção enquanto denota duratividade e concomitância. A simultaneidade dos
acontecimentos é indicada, em geral, implícita ou explicitamente, pelo termo enquanto ou
por expressão equivalente.”
94
Nesse trecho o advérbio enquanto une as reflexões da
personagem, em sua desatenção, ao momento presente do barco e que o remete à passagem
das horas, atentamente observada, e o aproxima cada vez mais da morte:
“É triste uma praia deserta um corpo jovem e morto. Com os sinais todos da
vitória, um corpo jovem e nu, abandonado e morto. E então descubro que os
silogismos são úteis e decisivos o Outono existe, logo o homem é mortal ou
não é um silogismo? Talvez um entinema enquanto um barco se insinua na
minha desatenção e se instala no meu horizonte. Vai para o sul que é que
haverá para o sul?”
95
O advérbio ainda indica anterioridade à narração, ou seja, que o mar já existia antes
da narrativa iniciar, indica também que é concomitante à narração que se passa durante a
tarde e dá um aspecto inacabado a esse momento da enunciação, ou seja, que o mar
continuará apósa morte de Jorge. O advérbio ainda ligado ao advérbio sempre reforça a
idéia de inacabado e contínuo.
Assim a anterioridade do mar e sua futura duração intensificam a brevidade da vida
humana, esta marcada pelas mortes e pela execução de Jorge:
92
Ibid., p.101.
93
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.309. Os grifos são nossos.
94
José Luiz FIORIN, As astúcias da enunciação, p.243.
95
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.101. Os grifos são nossos.
49
“Depois, o mar ainda. Sempre.”
96
Outra expressão do tempo utilizada pelo escritor é a marcação das estações do ano e
dos meses, todas elas iniciando com letra maiúscula:
“Sem o fervor do Verão, nítida claridade.
97
*
“(...)e para lá dos telhados, uma tarde de Inverno.
98
*
“E devagar, parece-me, definitivamente o Outono será do enterdecer? O
Outono?”
99
*
“Morrer no Verão. À hora absoluta, delírio de luz. Não no Outono, de monco
caído. Ou no Inverno, quando se está encolhido para metade. Mesmo na
Primavera em que tudo está ainda para ser.”
100
*
“(...)e numa manhã de Outubro vim enfim para a capital.”
101
*
“De maneira que por Setembro íamos à praia.”
102
*
“Em Novembro, talvez ou foi em Dezembro? meu pai partiu.”
103
As estações e os meses do ano, por serem noções cíclicas de tempo criam uma
atmosfera de vaguidão, insegurança e incerteza pois não delimitam um tempo específico e
nos remetem à idéia de um verão em um tempo remoto ou um novembro de um ano
qualquer anterior ao momento da enunciação, que no caso da obra revela a insegurança
vivida por Jorge na temporalidade.
De acordo com Bachelard “A lembrança pura não tem data. Tem uma estação. É a
estação que constitui a marca fundamental das lembranças.(...)Associam-se ao universo de
96
Ibid., p.316.
97
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.86. Os grifos são nossos.
98
Ibid., p.95.
99
Ibid., p.101.
100
Ibid., p.183.
101
Ibid., p.135.
102
Ibid., p.103.
103
Ibid., p.130.
50
uma estação, de uma estação que não engana e que bem se pode chamar de estação total,
Que repousa na imobilidade da perfeição.”
104
Soma-se à atmosfera de vaguidão a utilização das expressões há dias atrás,
quanto tempo? muito (tempo), que indicam tempo decorrido e anterioridade não
especificada em relação ao momento da enunciação:
“Os últimos banhistas subiram a longa escadaria, desapareceram dias atrás da
falésia.”
105
*
“Os últimos banhistas partiram, há quanto tempo?”
106
*
“A época balnear findou, os últimos banhistas desapareceram há muito.”
107
O que observamos em Nítido nulo é a livre transmissão dos acontecimentos vividos
pela personagem-narrador sem barreiras de tempo ou de espaço, o que reproduz o
pensamento humano, mais especificamente o de Jorge.
Temos, dessa forma, as lembranças contadas pela própria personagem que utiliza o
tempo pretérito perfeito, o pretérito imperfeito e o presente verbal para compor o tempo
físico e o tempo psicológico e assim expressar o movimento da consciência que transita
entre as duas temporalidades. No caso de Jorge uma negação do angustiante momento
presente.
Por ser um simulacro do pensamento humano, a narrativa não é linear e não obedece
ao sistema de causas e efeitos. “O princípio da causalidade. Não existe. Para pessoas não
existe.”
108
Conceito existencialista de que o homem é livre e que o autor demonstra ao
reproduzir a liberdade do pensamento de Jorge como uma experiência conflitiva com o seu
aprisionamento físico.
104
Gaston BACHELARD, A poética do devaneio, p.111.
105
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.11. Os grifos são nossos.
106
Ibid., p.48.
107
Ibid., p.315.
108
Ibid., p.25.
51
Vergílio Ferreira também se vale da utilização da técnica interseccionista que
consiste, segundo Maria Lúcia Dal Farra em unir realidades distintas solicitadas
simultaneamente pela consciência em função de intersecções psíquicas.
109
Em tido nulo a técnica interseccionista é encontrada através da fusão de
temporalidades distintas e reproduz a recordação ao relacioná-la com as percepções
presentes:
“E uma solidão angustiante como pude admitir que me esperassem? Sufoca-me
quando chego à cidade. Sùbitamente, na noite imensa. Trafego cego, submerso,
como periscópios as luzes, traçam à superfície as linhas, o emaranhado da sua
procura. Os reclamos luminosos no ar crepitam, fazem sinais à noite, fazem sinais
ao silêncio, cintilam no mar, miríades de partículas de sol?”
110
No exemplo acima os verbos trafego, traçam, crepitam e fazem se referem à
chegada de Jorge à cidade, em seu passado recente, mais especificamente às experiências
de solidão e angústia que sentiu ao chegar à cidade. os verbos traçam e cintilam fazem
parte do presente de Jorge, que observa o reflexo da luz do sol na água do mar durante o
tempo que passa.
A narração de sua chegada à cidade com verbos no presente do indicativo se
confunde com a observação das luzes no mar, que fazem parte do presente.
“E às nove da noite eu disse às dez? atravesso o portão. Levo a mala com
aquelas pequenas coisas necessárias numa cadeia, o guarda deu a volta à chave, é
uma hora discreta.
– Que seja de vez – diz-me o homem amável porque esta é já a segunda.
– De vez – garanto eu com um sorriso inútil porque se não vê, creio
é uma hora discreta. As fraquesas, as necessidades, os crimes, é a hora decente da
morte(...)”
111
No exemplo acima o verbo disse inicia o momento da lembrança da chegada de
Jorge à prisão. Porém os verbos atravesso e levo que o continuidade à mesma
109
Maria Lúcia DAL FARRA, O narrador ensimesmado, p.110.
110
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.71. Os grifos são nossos.
111
Ibid., p.51.
52
lembrança, ou seja, a chegada à prisão, aparecem no tempo presente. Em seguida, com o
uso do verbo deu, percebemos o distanciamento do momento narrado do momento da
enunciação pela utilização do pretérito perfeito.
E com a utilização do verbo ser no presente verbal é uma hora discreta, nos sugere
três possibilidades, a de que a hora discreta faz parte da recordação da chegada à prisão ou
de que a hora discreta é o momento no qual Jorge está a narrar, ou ainda de que se trata de
um presente gnômico, este ligado à reflexão de Jorge sobre o momento da enunciação ou
do próprio enunciado.
A hora discreta da chegada à prisão se une à hora do presente no qual Jorge
recorda, à hora da morte.
“As mudanças que se verificam do pretérito para o presente e vice-versa têm
como fim essencial a sugestão do complexo tempo da recordação, com a sua
alternância de distanciamentos e aproximações, indiferenças e compromisso
perante os factos, situações que na acção narrativa se exprimem respectivamente
por estes dois tempos verbais.”
112
Assim sem nenhum sinal gráfico ou aviso ao leitor, há a mudança de planos
temporais. Esse recurso da troca de tempo nos leva a crer que estamos vivenciando os
sentimentos da personagem tal como ela os sente. É o próprio sentimento se exteriorizando
e mostrando a subjetividade na qual Jorge experimentará a sensação do ser no tempo.
Através de uma identificação com os sentimentos da personagem, como a angústia
frente à certeza da morte próxima, a passagem do tempo e a finitude da vida.
A reprodução das emoções de Jorge revela sua própria interioridade e tem o
objetivo de mostrar a multiplicidade dos estados psicológicos que se sucedem no tempo,
como a tristeza, a solidão, a angústia entre outras, e que constituem, segundo Henri Bergson
a duração interna do ser:
“Bergson diz ainda que o presente existe apenas na consciência e contém sempre
um futuro próximo e um passado recente. O instante não existe. Podemos
112
Maria Alzira SEIXO, Para um estudo da expressão do tempo, p.138.
53
‘alongar’ ou ‘encurtar’ o tempo de acordo com aquilo que é vivido pela
consciência.”
113
Assim no plano das sensações internas o andamento da narrativa é vagaroso e se
contrapõe ao tempo físico que avança intermitantemente marcado pela luz solar. E esse
contraste entre o tempo da duração interior e a impessoalidade do tempo físico esgotando-
se e aproximando Jorge do seu final, gera uma grande carga emotiva ao texto pela trágica
morte da personagem.
As reconstruções de tempos passados pela memória são equilibradas pela insistente
descrição dos efeitos da luz do sol, o que mantém a objetividade do texto num ritmo ligado
ao passar das horas e não deixa que a narrativa se perca num contínuo rememorar.
A utilização da troca de tempos verbais e da técnica interseccionista recriam dessa
forma o conflito existencial do ser humano, dividido entre uma dupla temporalidade. E no
caso de Jorge sua vivência no tempo é agravada pela situação de preso e pela certeza da
morte próxima.
113
Marília P.B. MILLAN, A experiência com o tempo no mundo contemporâneo, p.35.
54
3.2. Os discursos
Neste item demonstraremos a funcionalidade dos discursos utilizados em Nítido
nulo na tentativa de criar um efeito de subjetividade, entendida como aquilo que se passa
unicamente no espírito de uma pessoa, para que dessa forma seja possível a expressão da
experiência da personagem com a temporalidade, tendo em vista a situação na qual se
encontra.
E com esse objetivo partiremos das condições da enunciação ao ato enunciado, ou
seja, a partir da enunciação de uma personagem que está algumas horas do seu
fuzilamento chegaremos aos efeitos provocados por seu estado emocional no enunciado.
Como vimos no item anterior, o tempo da enunciação não ultrapassa as 24 horas e
segue dessa forma, linear e relacionando-se com o tempo físico. Inicia-se no começo da
tarde, quando o sol ainda está alto, segue até a chegada da noite, quando há uma suspensão
do discurso de Jorge e inicia-se novamente na manhã do dia seguinte posterior à primeira
enunciação.
“AGORA a praia está deserta. Os últimos banhistas subiram a longa escadaria,
desapareceram há dias atrás da falésia.”
114
114
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.11.
55
O exemplo acima se refere à primeira frase do romance, momento em que é
instaurada a primeira enunciação, enquanto o exemplo abaixo se refere à instauração da
enunciação no dia seguinte:
“SÓ um clarão ondeando à superfície, o sol ainda não nasceu. Cresce o rubor
atrás das moradias para além da falésia, é um vermelho duro de energia.”
115
O enunciado se resume a fatos marcantes da vida de Jorge. Alguns fatos são
lembrados e explicam o momento presente, como a explosão da estátua e o seu julgamento.
E as reflexões feitas a partir das sensações que os fatos deixaram nos levam a conhecer sua
interioridade:
“Tudo tão difícil para mim.
Não sou artista, nunca fui capaz de desenhar um boneco
– Ó Cô, pinta-me um pintinho
e eu fazia uma roda pequena com um bico, outra maior com duas patas, Lucinho
fazia o resto com a imaginação.
– E um cão, um gato
e eu tirava o bico e punha mais duas patas – nunca fui capaz.(...)Mas suponho que
a Arte é isso, o que sobra do abalo primeiro, da revelação luminosa de tudo.”
116
Da difícil tarde surge a lembrança de Lucinho e com ela a dificuldade em desenhar,
que se extende às dificuldades da vida e à reflexão sobre a Arte.
Quando uma lembrança, como a morte de Lucinho, surge pela relação espontânea
que se estabelece com outra, como a morte das ondas, Jorge explica que não é ainda o
momento certo de narrá-la. São antecipações que poderiam alterar a ordem de sua história.
Então Jorge se obriga a narrar em uma sucessão artificial pois tem em mente uma direção,
conduzir a narrativa até o final da tarde pois sabe que no dia seguinte estará morto:
“O Lucinho morreu. Mas não agora. Hei-de primeiro morrer o pai daqui a pouco,
enquanto morrem entretanto novas ondas na florescência da espuma da renda do
mar.”
117
115
Ibid., p.315.
116
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.241.
56
Assim a narrativa de Jorge segue o tempo físico em direção à noite, e no dia
seguinte em direção ao seu fuzilamento enquanto os acontecimentos narrados também
seguem em direção a um final, que em alguns casos coincide com a morte das personagens,
como a morte de tia Matilde que encerra as lembranças da infância:
“Há um momento nesta história em que deve estar tudo morto(...) ela, e os
meus pais já semimortos, e a Dolores, e o gato. E o Lucinho.”
118
Em Nítido nulo o narrador é a própria personagem, que narra suas lembranças e
emoções. “E, com isso, anula-se a distância entre o narrado e a narração, alterando-se
também outro princípio básico da narrativa clássica: a causalidade.”
119
Assim, temos Jorge, personagem e narrador explícito, que ao descrever
acontecimentos ligados ao tempo físico, cria o efeito de objetividade. E ao narrar
acontecimentos passados, cria o efeito de subjetividade no texto, visto que as lembranças
existem em sua interioridade.
A produção de um enunciado que verifica ora um efeito de objetividade ora um
efeito de subjetividade reflete o movimento da mente de Jorge, que não consegue se manter
somente num tempo psicológico ligado às memórias e que retorna ao tempo físico
angustiante e difícil da tarde.
Ao longo do livro, o discurso direto é amplamente utilizado com o objetivo de criar
um efeito de presentificação do passado necessário para a própria personagem, que ao
reproduzir as falas das pessoas que habitam sua memória, sente-se vivo ao atualizar
emoções passadas, em contraposição à proximidade de sua morte.
Assim, dar voz à Sara, à tia Matilde, à Dolores e às outras personagens de suas
lembranças é uma maneira de reintegrá-las ao presente da enunciação e de preencher seu
momento solitário e angustiante:
“Fito Vera para entender, ela debruça-se sobre o marido em admoestação risonha:
– É o Jorge, Ruy. Tu não querias ver o Jorge?”
120
117
Ibid., p.61.
118
Ibid., p.104.
119
Ligia Chiappini Moraes LEITE, O foco narrativo, p.72.
120
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.245.
57
Na primeira página do livro nos são dadas informações através da estrutura do
discurso direto da personagem-narrador:
“Condenado à morte quando me executarão? – estou aqui à espera nesta
prisão(...)”
121
A manifestação da personagem através do discurso direto produz um efeito de
subjetividade no texto ao colocar um eu, que manifesta sua interioridade.
As relações que se estabelecem entre o sujeito da enunciação e o enunciado, como
sua forma fragmentada e aparentemente desorganizada, são geradas pela circunstância em
que essa personagem se encontra, ou seja, só, presa em uma sala e à espera de sua
execução.
A necessidade de recriar os fatos vividos no passado é vital para que ele se ausente
ou suporte melhor o momento presente.
Reconstituir os diálogos ouvidos na sua infância é como dar vida a essas pessoas
que não mais existem e que passam a existir momentaneamente na sua imaginação e na sua
emoção, embora essa presentificação não seja exatamente como a vivida no passado, mas
resultante da necessidade do momento, da reflexão e da imaginação.
Assim, essa necessidade de vida da personagem deixa marcas de sua interioridade
psicológica no enunciado, entre elas, a utilização do discurso direto.
Os efeitos de recriação do passado nesse texto também decorrem da técnica de
delegar, através do discurso direto, a palavra aos actantes dos enunciados, personagens
ressuscitadas por sua memória. Nesse caso não se trata somente de dizer o que eles
disseram, é importante reproduzir as palavras com a ajuda da imaginação, para que a ilusão
da reprodução do passado se estabeleça:
“– Sape gato! padre-nosso que estais no céu, ó Dolores, santificado
– Minha senhora!
– Põe o chá ao lume, seja o vosso nome(...)”
122
*
121
Ibid., p.11.
122
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.29.
58
“– Mãe! Uma flor!
– Uma flor, meu filho?”
123
As reproduções das vozes de tia Matilde, de Dolores, de Lucinho e da mãe de
Lucinho através do discurso direto são exemplos da sua necessidade de ouvir essas vozes
como antigamente e assim preencher seu momento solitariamente amargo.
É importante destacar que o sujeito da enunciação encontra-se completamente só na
sala em que está preso e que os discursos citados existem somente em sua memória e
imaginação.
no discurso de Jorge alguns travessões, sugerindo a idéia de que entre seus
devaneios, algumas vezes ele fala em voz alta, ou que fala, em imaginação, com pessoas
presentificadas por suas lembranças:
“O cão agora ladra para um ponto incerto da praia. Ladra intensamente, mais nos
movimentos com que está ladrando do que em ladridos que mal ouço por entre o
referver das águas. Um instante procuro decifrar a razão da sua cólera um
gafanhoto do mar? Ou talvez que se distraia num jogo com sua sombra que é
sempre um jogo divertido quando se tem sombra – tê-la-á um cão?”
124
Em alguns momentos, instaura-se um outro eu de Jorge, que irá tratá-lo como sendo
outra pessoa. Surge o duplo de Jorge. Esse outro que fala é percebido pelo discurso do
próprio Jorge, que se trata como tu e evidencia sua tentativa de distanciamento do momento
presente e da aproximação da morte:
“A velhice quer repouso, a imobilidade é o seu fito. A morte realiza-o, mas até
fazem-se treinos – aliás pouco tens que treinar.”
125
Em conseqüência do diálogo de Jorge consigo mesmo surge a segunda voz,
tratando-o de tu. Essa estrutura discursiva de um eu que conversa consigo mesmo substitui
a falta que Jorge sente do outro para ouvi-lo e assim, dar mais objetividade ao que diz.
Nesse contínuo diálogo interior há perguntas que ficam sem respostas, evasivas e reflexões,
123
Ibid., p.208.
124
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.33.
125
Ibid., p.15.
59
marcas do teor subjetivo da linguagem no texto devido aos sentimentos de angústia e
profunda solidão.
No estilo de discurso com evasivas da consciência não uma última palavra, não
um juízo definitivo, que é um discurso sobre si mesmo e o ser não é definitivo, o que
também é marca da vaguidão, da incerteza e da insegurança.
Os fatos da infância e de um passado mais recente servem para provocar o diálogo
de Jorge consigo mesmo. Diálogo no qual o sujeito da enunciação se trata por tu como se se
dirigisse a outra pessoa. Ou seja, os acontecimentos ressuscitados pela memória servem
para desencadear uma reflexão interior e presentificar um momento pertencente ao passado.
Dialogando, mesmo que consigo mesmo, Jorge se sente vivo e acompanhado, já que
o diálogo pressupõe a existência de no mínimo duas situações, uma presa à subjetividade, à
emoção e outra presa à objetividade propiciada pelo distanciamento.
As frases de teor reflexivo entremeiam os discursos citados constantemente. Jorge é
o sujeito da enunciação e o receptor das rias enunciações ou de enunciações de outras
personagens.
Ou seja, a personagem-narrador não mantém uma relação dialógica com as
enunciações de outrem, elas permanecem como foram concebidas em sua memória.
Jorge reconstitui o passado, presentifica pessoas com as quais conviveu intimamente
e modos de vida diferentes do seu atual, que estão mais em consonância com seu desejo de
se afastar do momento presente. Vida que não poderá ter novamente, que ele irá morrer
em breve e os demais já estão ausentes.
Em Nítido nulo a personagem-narrador, levada por suas emoções, interrompe a
narrativa e inicia um processo reflexivo em atitude de contemplação, dando lugar assim a
um discurso poético, no qual expressa não somente o que vê, mas também o que sente.
Nesses momentos não há personagens, nem ação, nem diálogos, nenhum elemento
constituinte de uma simples narrativa. somente um eu que, ao recordar, medita. Nesses
momentos nos quais o discurso se faz reflexão, nota-se a intensificação do discurso na
narrativa, pois um aumento das reflexões e das expressões dos sentimentos íntimos de
Jorge nos acontecimentos contados. Neles não há um narrador que observa e conta e sim
um eu que transmite suas emoções:
60
“O Ruy. Um homem total. Total? Quero dizer, sem desperdícios. Sem intervalos.
O homem é um ser cheio de intervalos. Se lhos tirassem todos, os sábios dizem,
ficava do tamanho de um grão de areia. estrelas assim. Chamam-se ‘anãs’,
creio.”
126
A utilização do discurso direto no texto gera o efeito de presentificação do passado
e evidencia a interioridade da personagem, além de suprir a necessidade de Jorge se sentir
vivo. Vida que se forma através da palavra, pois ao contar fatos passados Jorge cria uma
outra realidade, a já vivida, para a qual ele tenta fugir:
“(...)O primeiro capítulo do Gênesis é uma metáfora da enunciação, porque a
enunciação cria qualquer mundo. Enunciar é criar.(...)
127
Jorge se sente mais vivo através da linguagem, d a grande importância em
concretizá-la com a lembrança dos diálogos em discurso direto. Ao recordar Jorge cria essa
outra realidade, na qual a natureza dialógica da linguagem e seu campo de vida se projetam.
Assim os momentos recordados do seu passado ajudam a suportar as horas que antecedem
sua execução.
De acordo com José Luiz Fiorin “O discurso indireto analisa o discurso ou o texto
de outrem. Serve, quando na variante analisadora de conteúdo, para constituir uma imagem
do locutor, pois mostra suas posições ideológicas ou seu modo de ser psicológico. Na
variante analisadora de expressão, as expressões servem para revelar certas características
do locutor que se manifestam no seu texto. Assim, não importa, nesse caso, o conteúdo do
que foi dito, mas a expressão, pois é ela que revela uma dada qualidade do falante.”
128
.
“(...)Na triangulação dos três, eu não tinha um lugar certo, porque era dos mimos
da Dolores que dizia ter-me criado,(...)
129
No exemplo acima Jorge inicia dizendo que não tinha um lugar certo na
triangulação dos três, isto é, não tinha uma posição específica na relação que se estabelecia
126
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.245.
127
José Luiz FIORIN, As astúcias da enunciação, p.42.
128
Ibid., p.76.
129
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.31. O grifo é nosso.
61
entre a tia Matilde, a empregada Dolores e o gato Tareco. O que traz a idéia de que Jorge
ficava à parte, como se não pertencesse aos sentimentos que uniam os três. Porém completa
com um certo tom irônico que era dos mimos de Dolores que dizia tê-lo criado.
Se Jorge quisesse nos dar a simples informação de que Dolores o criou utilizando o
discurso indireto como fez, diria porque era dos mimos da Dolores que me criou. Mas ele
usa a expressão que dizia ter-me criado como se não concordasse com o que ela dizia.
Assim a maneira como Jorge recupera a voz de Dolores sugere sua não
concordância com o discurso citado, ou seja, com o que Dolores dizia.
Na reprodução da fala dos mortos, com a utilização do discurso indireto, é retirada
dos mesmos o poder da palavra viva, enfatizando dessa maneira a condição de mortos:
“E os mortos não podem nunca defender-se, mesmo que necessitados. Perderam a
capacidade de invenção, sabem repetir-se. Como um disco. Dizem as palavras
que tinham dito e os argumentos e a emoção que vinha neles e que mal se
entende. Os juízes perguntam-lhes
– Porque matastes vossos irmãos?
e eles respondem que a Terra é redonda, com o tom categórico da evidência.”
130
O discurso indireto relata a informação. O discurso citado é incorporado à narração
e como no discurso indireto a primeira ou segunda pessoa se apresentam em terceira
pessoa, um enfraquecimento da realidade a que as pessoas estariam vinculadas pela
reprodução por outrem, (...)no discurso indireto o narrador subordina a si a personagem,
com retirar-lhe a forma própria e efetivamente matizada da expressão.”
131
No caso da reprodução da fala dos mortos que respondem que a terra é redonda, no
exemplo, é retirada dessa informação a realidade a que ela está vinculada. Esse recurso
também nos leva a relacionar as vozes dos mortos à própria morte como incapacidade e
incompreensão.
A utilização do discurso indireto livre advém da liberdade sintática e de sua adesão
à vida da personagem pois conservam as interrogações, as exclamações e as palavras das
130
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.77. O grifo é nosso.
131
Celso CUNHA; Luís F. L. CINTRA, Nova gramática do português contemporâneo, p.620.
62
mesmas na forma como são lembradas. Assim o discurso indireto livre permite uma
narrativa mais fluente e estabelece um elo emotivo entre o narrador e os falantes dos
discursos citados:
“Vera fazia às vezes o seu número, tocava, cantava. Talvez por isso, falávamos
um pouco longe dali, na distância aérea da melodia. Ou talvez de ser escuro. Não
nos víamos. Sem a presença tua a travar a expansão, monólogo incerto, uma
voz estranha na noite, ó almas que estais penando.
132
Nesse exemplo de um diálogo com Vera há a idéia de solidão pela presença que não
se concretiza, como o diálogo que se faz frágil monólogo e é interrompido pela forte
lembrança sombria da voz do David, o que novamente nos remete ao estado emocional de
Jorge, ligado a vocábulos como escuro, noite e incerto que refletem a total incerteza e
insegurança diante da morte .
Assim a reprodução da fala do David, com a estrutura de discurso indireto livre,
reproduz o movimento das lembranças, que surgem espontaneamente imitando o fluxo de
consciência.
O discurso direto é a forma predominante no livro, cujos capítulos são marcados
pelo discurso autobiográfico de Jorge. E a grande utilização do discurso direto se pelo
efeito que produz, ou seja, de presentificação do passado. E a união dessa estrutura
discursiva somada à grande utilização dos verbos no tempo presente como vimos no item
anterior geram um efeito de simultaneidade de acontecimentos.
no capítulo X um exemplo de simultaneidade dos acontecimentos. Nesse
capítulo Jorge narra a visita de Teófilo, que acontece no presente da enunciação na sala
onde Jorge está preso:
“– Tu como é que queres morrer: enforcado ou fuzilado?
E eu disse:
– Obrigado, ó Teófilo.
– Serás pois fuzilado. Foi o que logo pensámos.”
133
132
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.88.
133
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.116.
63
Para marcar a simultaneidade da visita de Teófilo com as lembranças de Jorge, o
autor utiliza o discurso direto e gera a ilusão de acontecimentos simultâneos pois anterior à
chegada de Teófilo, está a lembrança de uma conversa sobre arte com Marta. Pela
utilização do discurso direto temos a ilusão de que durante a conversa com Teófilo, Jorge
continua pensando em Marta:
“Já agora gostaria de acabar a conversa com Marta paciência. Da porta, porém,
até onde estou, alguém a passo solto, possìvelmente é a hora.(...)O mar espelha-se
em miríades de reflexos, multíplice alegria trémula, sinais nulos, írrita e nula, os
meus olhos tremem.
– Senta-te – digo eu a Teófilo.
– Não estou pintando nada – diz-me Marta.”
134
Assim, enquanto conversa com Teófilo na sala, Jorge continua se lembrando de
Marta. E nessas lembranças do passado, surgem também as lembranças de sua infância,
dando-nos a ilusão de imagens superpostas:
“Olho encantado na expansão da alegria marítima, olho apenas.
Porque a arte nunca se serviu a si, mas esteve sempre ao serviço de outra coisa.
Ou não bem ao serviço. Como a luz,
como a luz? Imaginasse eu. Havia à nossa volta uma festa de claridade.
– Menino, vamos embora – dizia tia Matilde
o sol abrindo as nuvens de uma a uma, era a hora profana da alegria pagã. Os
veraneantes começavam a invadir a praia, corpos intensos, estalando em sexo no
estridente colorido dos toldos e bandeiras nós recolhíamos a casa. Ungidos da
graça como quem comungou, silenciosos na intocável transfiguração interior,
regressávamos os três, tia Matilde, Dolores e eu.
Havia à nossa volta a perversão da alegria
– Há à nossa volta uma festa de claridade. Muito bem. Mas tudo o que tu vês
tudo o que eu via, dizia Marta, era exactamente o mesmo no esplendor do dia ou
na treva da noite. E eu olhava-a a dizer. A alegria das coisas era portanto apenas a
alegria do sol. Pintar as coisas era portanto absurdo. Devia pintar, pois, a luz.
Mas a luz não se pode pintar, porque só a luz não existe – dá-me outro cigarro.
– Não queres também? – digo eu a teófilo estendendo-lhe o maço.”
135
134
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp.109/110.
64
Nesse caso, a utilização do discurso direto gera o efeito de simultaneidade entre
acontecimentos passados presentificados e o presente da enunciação, pois enquanto Jorge
conversa com Teófilo, lembra das conversas com Marta, da ida à praia com tia Matilde e
reflexiona sobre tudo o que simultaneamente vivencia.
Em Nítido nulo observamos a predominância do discurso direto revelador do estado
emocional de Jorge que ao longo do texto faz mentalmente perguntas e suposições em
busca de respostas e de um sentido para a existência.
“O discurso direto é um simulacro da enunciação construído por intermédio do
discurso do narrador.”
136
A estrutura de discurso direto, que presentifica o passado, juntamente com o
discurso indireto livre, que imita o fluxo do pensamento, evidencia a atividade mental da
personagem, ou seja, o os próprios pensamentos e as lembranças que se apresentam, o
que revela a intensidade dos sentimentos de Jorge, que tenta se distanciar de seu momento
presente indo ao encontro de um tempo já distante reproduzido por sua memória em função
de sua circunstância e solidão.
135
Ibid., p.112.
136
José Luiz FIORIN, As astúcias da enunciação, p.72.
65
3.3. A sintaxe
Com o objetivo de analisar o processo de construção da narrativa utilizado por
Vergílio Ferreira, neste item faremos um estudo da disposição das palavras nas frases
construídas com vocábulos de diferentes temporalidades, bem como da relação gica das
frases entre si.
Conforme Celso Cunha a frase é a unidade mínima de comunicação e pode conter
uma ou mais orações.
137
a oração, diferentemente, é composta de pelo menos, sujeito e
predicado, ou seja, as frases podem ser orações ou não, podem ser completas ou
incompletas, explícitas ou implícitas.
Optamos por utilizar nas análises a denominação frase e não oração por ser um texto
que possui grande recorrência de frases que não chegam a se constituir orações, isto é, não
possuem sujeito e predicado, condição mínima para que sejam denominadas orações.
“A sintaxe, que relaciona, combina as palavras na frase, é, sobretudo, atividade
criadora, pertencendo tanto ao domínio gramatical como ao do estilo, e talvez,
mais a este, conforme muitos têm afirmado.(...)Saliente-se que é a frase que
veicula os valores expressivos em potencial nas palavras, as quais, somente nela,
têm o seu sentido explicitado e adquirem o seu tom particular neutro ou
afetivo.”
138
Assim, examinaremos a expressividade ligada à estrutura da frase em função da
fusão ou das trocas de temporalidades distintas, pois a narrativa de tido nulo incorpora os
137
Celso CUNHA, Nova gramática do português contemporâneo, p.116.
138
Nilce MARTINS, Introdução à estilística, p.129.
66
tempos passados no presente da narração de maneira a imitar a ocorrência do fenômeno da
recordação e reflexões da personagem.
No primeiro capítulo do romance Jorge instaura seu presente lingüístico e segue até
o capítulo trinta, entre lembranças e divagações, quando há uma suspensão do discurso, que
é retomado no capítulo seguinte, último do livro, no qual ele narra os momentos que
antecedem sua própria execução. Essa suspensão da narrativa representa a noite.
Os trinta e um capítulos seguem um mesmo estilo narrativo, ou seja, uma
personagem que no momento presente da enunciação descreve o passar das horas, recorda e
tece reflexões a partir das imagens vistas da janela da sala e das sensações que as
lembranças suscitaram.
Verificamos na narrativa a presença de duas linhas condutoras que formam o texto:
as frases ligadas ao tempo presente da enunciação, nas quais a descrição dos
movimentos percebidos por Jorge e suas reflexões; e as frases ligadas às recordações dos
acontecimentos passados.
As descrições da luz do sol nas coisas marcam a passagem do tempo físico ligado às
horas que passam. As lembranças e reflexões formam o tempo psicológico, individual da
personagem. E a organização dos vocábulos nas frases e das frases entre si imitam o
movimento do pensamento humano entre essas duas temporalidades, ou seja, o pensamento
que transita entre o momento das percepções atuais e suas recordações.
Os processos sintáticos utilizados para a formação das duas temporalidades, que
constantemente se invadem, são os processos de coordenação e de subordinação de frases.
Na coordenação as frases se apresentam com independência de construção umas
após as outras e a coesão entre elas se faz por natureza semântica:
“Um dia a tia Matilde, eram várias as pitas no galinheiro.
139
Nesse exemplo a primeira frase inicia a narrativa de um acontecimento na infância
de Jorge com a expressão Um dia, porém uma interrupção dessa frase, que imita o
angustiante fluxo do pensamento de Jorge. A frase seguinte retoma a história iniciada,
139
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.183.
67
porém sem nenhuma relação sintática com a anterior, o que dá à narrativa da infância maior
agilidade, pois evita contar detalhes e vai direto ao fato principal.
Na subordinação as frases apresentam uma relação de dependência entre si:
“Mas é necessário que eu morra tudo, embora cada coisa por sua vez, para ver
como fica tudo depois.”
140
No exemplo acima a conjunção embora gera uma relação de dependência entre as
frases, assim como a necessidade que Jorge tem de contar as mortes com certa organização
cronológica.
As frases coordenadas aparecem justapostas com partículas de coordenação tais
como e, mas, porém, entretanto, no entanto, contudo, todavia ou ligadas sem a utilização
de nenhuma delas.
As frases coordenadas que se apresentam com independência de construção uma
após a outra, de acordo com Nilce Martins“(...)é mais comum na língua oral, tem tom mais
espontâneo, menor rigor lógico, é mais ágil, sugere a simultaneidade ou a rápida sequência
dos fatos.”
141
Assim temos:
“Encosto-me a um pau do toldo, tia Matilde e Dolores ao lado em cadeirinhas
rasas, estarão rezando? olham silenciosas, encosto-me às grades brancas da
prisão.”
142
Nesse fragmento a utilização de frases coordenadas , isto é, frases que possuem
independência em suas construções e principalmente, não fazem parte uma da outra; a
última frase encosto-me às grades brancas da prisão faz parte do momento presente mas se
liga à olham silenciosas que se refere à tia Matilde e Dolores quando juntos iam à praia no
passado.
A relação entre as frases se por natureza semântica, a ação encosto-me às grades
no presente remete à lembrança encosto-me a um pau do toldo feita no passado e intensifica
o aprisionamento de Jorge pela sensação de liberdade perdida.
140
Ibid., p.207. O grifo é nosso.
141
Nilce MARTINS, Introdução à estilística, p.137.
142
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.127.
68
Tal construção intensifica as circunstâncias ligadas aos dois planos temporais e
mostra a liberdade da atividade mental entre lembranças e o momento presente.
Nos exemplos a seguir notamos o predomínio de frases coordenadas e dos
segmentos breves que se ligam pela partícula e; pelas conjunções mas e enquanto e pelos
vocábulos depois e então, os dois últimos denotando ordem e situação:
E sorria. Grande, patriarcal e eu fui descendo os degraus. Atravessei a rua
quase deserta para o ouvir, tarde de inverno. Enquanto ao alto, esboços de formas
nuvens, moldam-se dissipam-se passam.”
143
*
Depois vinha ao de cima, mas já não era necessário. Na realidade nem o
chegava a reconhecer seria o raciocínio da vida? Do que em termos de luxo se
chama a ‘fatalidade’. Na realidade, como uma bicha de rabear, nós lhe
chegamos fogo. Eu é que agora penso. Eu é que, por um intrínseco vício de
entender. Depois, pegado o fogo, é só esperar, a ver.”
144
*
E então, se tu soubesses, Sara. Tomou-me uma piedade tão grande pela
estupidez humana. É insuportável a piedade. No limite da pena, o que sentimos é
asco. Um dia a tia Matilde, eram várias as pitas no galinheiro. Davam-se como
todos os animais, em equilíbrio de forças. Mas a certa altura uma pita começou às
bicadas noutra. Então, quando a pita começou a ser desgraçada, as outras
saltaram-lhe em cima e deram cabo dela. É insuportável ter pena. Muitos hão-de
ser assassinos só por não aguentarem. E então eu disse:”
145
A utilização dos vocábulos e, enquanto, depois, então e mas para a união das frases
coordenadas imita a linguagem oral e dessa forma intensifica a reprodução do fluxo de
pensamento, dando também maior velocidade à narrativa e expressando a ansiedade de
Jorge, que precisa contar suas lembranças até o final da tarde.
no texto grande utilização de frases fragmentárias, isto é, frases incompletas
cujos fragmentos possuem significação, de acordo com Nilce Martins, se relacionados
com as frases de que se destacaram:
143
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.96. Os grifos são nossos.
144
Ibid., p.229.
145
Ibid., p.183.
69
“O sol brilha, o céu é todo, o mar reconhece-o até ao extremo do horizonte.
Luminosa infinitude. Pura. Como um gume.”
146
Assim, Luminosa infinitude, Pura e Como um gume só se justificam ao serem
ligadas ao brilho do sol; como também podem exprimir uma constatação ou um julgamento
do brilho do sol. O fato estilístico é que o termo destacado ganha um relevo muito maior
do que teria integrado na construção gica.”
147
Assim o sol é para Jorge a infinitude, a luz
que alcança céu e mar, o todo, ou seja, a própria eternidade.
As frases fragmentárias possibilitam a utilização da técnica interseccionista quando
o fragmento destacado da frase incompleta pertence à temporalidade distinta da frase a qual
se une:
“Quero ficar sòzinho, um momento, o cão estáem baixo. Deitado na areia, e as
moscas, com uma pata sacode-as do focinho. Esuma tarde suave linda morta,
com toda a alegria ida. As casas cintilam, as vidraças. As águas. Tarde afogueada
de Agosto, tia Matilde arfava encostada a travesseiros altos. Muita mosca.
– Dolores! Ai... Sacode-as!
E ela sacudia com o abano.”
148
Nesse exemplo há o momento presente marcado pela presença das moscas no
focinho do cão, observações feitas por Jorge durante a tarde suave linda morta. Na
continuação de seus pensamentos há a Tarde afogueada de Agosto que já não pertence mais
ao momento presente e sim à época da morte da tia Matilde, que pedia à Dolores que as
sacudisse.
Sem nenhum sinal gráfico ou aviso do narrador, passamos de um tempo físico,
ligado ao presente da enunciação, no qual as descrições dos acontecimentos na praia, a
um tempo psicológico, voltado às lembranças do passado, refletindo assim a incessante
retomada do passado pela negação do angustiante presente.
A frase Muita mosca fica na intersecção entre as duas temporalidades, pois pode se
referir às moscas no cão ou às moscas que Dolores sacudia com o abano. Essa frase
146
Ibid., p.20.
147
Nilce MARTINS, Introdução à estilística, p.149.
148
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp. 258-259.
70
expressa o momento pontual que faz com que Jorge, por associação de idéias, lembre e
imagine a morte da tia por aproximação com a morte que o espera.
Com a organização dos vocábulos nas frases e estas entre si, Vergílio Ferreira
mostra as emoções que tomam a personagem, sua interioridade marcada pela difícil espera
e demonstra através da subjetividade de Jorge a experiência temporal de momentos
passados que existem dentro do ser e que alcançam o momento presente em vista de um
fato que subitamente, os retiram da memória.
Há no texto a utilização de frases incompletas ou elípticas, que dependem do
contexto para sua compreensão. Essas frases segundo Nilce Martins, apresentam graus de
implicitação e afetividade pela concentração do conteúdo no termo expresso.
“A frase elíptica escapa à estrutura da frase lógica, explícita, sendo que os
elementos omitidos podem ser recuperáveis no contexto ou supridos pelo raciocínio, pela
suposição, com base no confronto com a estrutura frásica normal e também no sentido geral
do enunciado.”
149
Assim temos:
“Mas Vera introduz-me imediatamente na sala, Ruy está sentado num escabelo
com um papel de carta na mão. Então eu digo:
– Olá, Ruy!
Ele está sentado com uma folha de carta na mão.”
150
Dessa maneira termina o capítulo XXIII, que se liga ao posterior pela seguinte frase:
“MAS não me responde. Nem me vê. Deve ter acabado de ler a carta, está
pensando.
151
Nesse exemplo a utilização da elipse no começo do capítulo que Jorge se refere a
Ruy , além de expressar o movimento da mente, rapidez ao eliminar o que está
subentendido e gera grande intensidade emocional às frases destacadas do capítulo XXIII.
Assim as frases MAS não me responde. Nem me . Trazem a carga emocional da
incomunicabilidade e do individualismo, que Ruy se mata e deixa uma carta em branco
149
Nilce MARTINS, Introdução à estilística, p.152.
150
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.244.
151
Ibid., p.245.
71
como justificativa do suicídio. As frases fragmentárias MAS não me responde. Nem me ,
isto é, frases que são fragmentos destacados de outras frases ganham assim maior
intensidade do que se estivessem ligadas às frases das quais são parte integrante.
As frases fragmentárias se unem no texto com as frases elípticas e a concordância
estilística entre elas atende à necessidade de expressar a subjetividade na qual reside a
temporalidade e com isso mostrar o pensamento e o sentimento que as justificam, isto é, de
um ser e sua experiência no tempo.
No texto a elipse também ocorre para dar duplo sentido à informação que falta. O
que exige do leitor uma atenção maior ao elemento que muitas vezes possui sentido
figurado:
“(...) os três pescadores vão-se embora, terão pescado alguma coisa? E o cão.
Desistiu da hipótese do último, parece-me que o diálogo chegou a meter pontapé.
Com a poeirada das ondas, não vejo bem. Terá tentado uma vez ainda do lado de
mas não era preciso pescarem. Apetece-me filosofar um pouco sobre o caso,
não tenho tempo, Vera já deve ter olhado o relógio.”
152
Nesse exemplo a frase não tenho tempo omite a razão pela qual Jorge não tem
tempo para filosofar. Essa informação é suprida pelo leitor através da suposição de que sua
morte está próxima ou de que algo irá acontecer em breve. Jorge sabe que será fuzilado na
manhã seguinte e por isso precisa encerrar suas lembranças num tempo marcado pela luz do
sol, em conflito com a ilusão de alongamento do tempo de vida proporcionado pelo tempo
psicológico. Assim a falta de tempo se une à lembrança da ansiedade de Vera no passado.
A ordem dos termos nas frases completas normalmente obedece a seguinte regra de
colocação: sujeito, verbo, objeto direto e objeto indireto; ou sujeito, verbo de ligação e
predicativo. Esta é a ordem direta.
Vergílio Ferreira rompe essa ordem usual dos termos na frase ao colocar vocábulos
pertencentes a temporalidades distintas na mesma frase ou em frases que se completam por
associação de sentimentos e assim expressa a troca de tempos através do interseccionismo,
e imita o pensamento humano, que não obedece às normas gramaticais e flui livremente, no
momento da recordação:
152
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.243.
72
“A luz embate na superfície martelada das águas. Infinito instante, suspenso,
memória húmida dos corpos que se foram, a areia incandescente branca.
Paralizada hora sem antes nem depois, claridade cega não vejo, sou. É bom ser
apenas. Fecho os olhos e o Lucinho abre-mos, põe as mãos sobre eles ou a
boca.”
153
No fragmento anterior o narrador descreve a luz do sol na água e em seguida tece
uma reflexão sobre o que passou, os banhistas que se foram e dos que se foram para a
morte. Relação entre o passado morto e o presente no qual se sente vivo. Mas o instante de
se sentir vivo é invadido pela lembrança de Lucinho. Assim, Fecho os olhos e o Lucinho
abre-mos é uma frase na qual o presente Fecho os olhos e o passado Lucinho abre-mos se
fundem numa sensação sendo os olhos o ponto de intersecção que cria a ambigüidade
entre o momento da narração e o da narrativa passada.
“Agora a cidade está deserta, estéril a praia estende-se. um ou outro carro
furtivo, um barco vagaroso.”
154
No exemplo acima a fusão dos espaços cidade e praia, que pertencem a
temporalidades distintas. E essa fusão de espaços no tempo presente é reforçada pelas
frases que a seguem, nas quais os vocábulos carro furtivo e barco vagaroso somente se
justificam se relacionados à frase anterior.
Assim Agora a cidade esdeserta é uma lembrança do passado e se une a estéril a
praia estende-se que é uma percepção presente. A frase que segue um ou outro carro
furtivo, que se ligaria à cidade deserta é afastada de sua posição, e a frase Agora a cidade
está deserta é aproximada do barco vagaroso, enquanto a cidade deserta se une à
esterilidade da praia, que nos remetem à solidão e abandono da personagem e à própria
falta que sente de não ter tido um filho que o visitasse talvez nessa hora difícil, pois sua
companhia no passado foram os carros e agora os barcos, todos associados ao movimento
de passagem.
153
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.65.
154
Ibid., p.195.
73
Para demonstrar a subjetividade de Jorge, isto é, o que se passa em seu interior,
no texto, juntamente com a organização das frases, a utilização de algumas figuras de
sintaxe, como a apóstrofe, o parêntese, a exclamação, a disjunção e o dialogismo. De
acordo com Roberto Brandão “As figuras de sintaxe se caracterizam por apresentar uma
ordem peculiar dos elementos do discurso, sem constituir uma infração propriamente dita,
embora sempre possamos contrapô-las a uma ordem ideal normativa.”
155
Assim encontramos na obra a apóstrofe, figura de sintaxe que representa
o“(...)desvio repentino do discurso de um objeto para outro(...)”
156
em função da técnica de
troca de tempos utilizada pelo autor:
“Tremoços frescos e a sede que adstringente evoca intensa a efervescência branca
loura ao prazer longo e fundo escoado até ao prazer da cerveja que bebo aos
galões. Tremem-me os olhos tremem? Um pouco. Às vezes a mãe punha-o no
chão, ele media a distância que o separava de mim e desatava a gatinhar como um
boneco articulado até que se me agarrava à bainha das calças. Dolores ria. Tia
Matilde nem por isso. Tinha um treino da vida em que não entrava a ternura. Eu
não.”
157
No exemplo acima o discurso de reflexão de Jorge sobre a sede, repentinamente se
direciona para a lembrança de Lucinho, que pertence aos momentos do passado que estão
sendo recordados. Jorge tenta manter sua reflexão sobre a teoria da sede mas é invadido
pela ternura que a lembrança de Lucinho lhe provoca.
O parêntese, figura de sintaxe que, de acordo com Roberto Brandão, insere um
pensamento no outro, é encontrado nos momentos interseccionistas da narrativa:
“ATÉ que o cão se levantou de entre os bancos e eu cheguei à cidade.
158
Nesse exemplo a narrativa das ações do cão na praia se une à narrativa da chegada
de Jorge à cidade. A atenção de Jorge que está na observação do cão e o se levantar, é
direcionada ao momento de sua chegada à cidade sem nenhuma relação direta. A relação
155
Roberto BRANDÃO, As figuras de linguagem, p.47.
156
FONTANIER, Les figures du discours, Apud. Roberto BRANDÃO, As figuras de linguagem, p.47.
157
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.66.
158
Ibid., p.71.
74
entre os dois fatos se pelo processo de recordação espontânea, que faz com que
lembranças antigas se unam às percepções presentes. Assim os bancos arrumados vistos
por Jorge no presente, abandonados e inúteis naquele momento, remetem à idéia de
abandono e solidão que novamente o toma e se liga à lembrança de sua chegada à cidade
quando ninguém o esperava.
A exclamação é uma figura de sintaxe na qual o (...)abandono repentino de um
assunto para expressar um sentimento impetuoso(...)”
159
Esse recurso gera a expressão do
mais profundo sentimento da personagem. No caso de Jorge, sua solidão e incapacidade de
compreensão do sentido da vida e da morte:
“De mim ao horizonte, uma estrada de luz, o sol bate-me quase de frente,
transcende-me de esplendor. E a toda a volta, o coro das ondas abre o espaço da
grandeza e da solidão. Ah, tudo isto há-de ter um sentido unificado em majestade
e beleza – não o sei.”
160
Nesse exemplo o sentimento de solidão que surge ligado à incompreensão diante da
futura morte é expresso pelo uso da figura de exclamação em Ah, tudo isto há-de ter um
sentido unificado em majestade e beleza – não o sei.
A utilização dessa figura de sintaxe revela com as próprias palavras de Jorge seu
sentimento diante de tudo o que ele está passando, das vagas lembranças que pouco
justificam seu momento solitário e da morte próxima que o angustia e o sufoca.
O dialogismo é a figura de sintaxe que busca a “(...)representação do diálogo de
outras pessoas ou da própria palavra do narrador de modo vivo.”
161
A utilização dessa
figura intensifica a grande utilização do discurso direto como vimos no item 3.2. Os
discursos:
“– É o Jorge, Ruy. Tu não querias ver o Jorge?
Ele então ergue o seu olhar intenso de cão.
– Olá, Jorge – diz-me.
– Tiveste hoje notícias? – digo.
159
FONTANIER, Les figures du discours, Apud. Roberto BRANDÃO, As figuras de linguagem, p.47.
160
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.282.
161
FONTANIER, Les figures du discours, Apud. Roberto BRANDÃO, As figuras de linguagem, p.47.
75
– Tive hoje notícias.
– Boas notícias?
– Más notícias – esclarece sem me desfitar.
– Tem tido más notícias ùltimamente – diz Vera.
– É – confirma Ruy.
– Se fôssemos jantando? – interpõe Vera.”
162
A reprodução dos diálogos dos momentos passados como são lembrados por Jorge
intensifica as lembranças que tenta reproduzir o próprio momento vivido
presentificando-o através das falas das pessoas que não estão presentes. A reprodução da
fala de Ruy, que no momento da enunciação está morto, presentifica o momento
lembrado e aumenta a carga emocional.
Outra figura de sintaxe encontrada na obra e que reproduz o pensamento humano é a
disjunção, que de acordo com Roberto Brandão é a apresentação de rios pensamentos
justapostos uns aos outros:
“Entretanto cresci. Mas não é verdade. A gente o cresce, é variadamente o
mesmo como. Por exemplo, o mar. dias estava agitado e hoje não, mas não é
um bom exemplo. Como um lume que se acende e morre? Como uma semente. A
semente é a árvore que há-de ser e que é portanto ainda a semente embora de
outra maneira. Ou como a nascente que enquanto nascente é a água que dela sai e
que todavia não veio dela mas da chuva, suponho.”
163
Nesse fragmento temos as reflexões sobre o passar do tempo ligado aos vários
pensamentos que tentam esclarecer melhor a primeira idéia, esta ligada ao crescimento. Ou
seja, os pensamentos sobre o mar, o lume, a semente e a nascente são justapostos na
tentativa de uma definição mais precisa do ciclo da vida.
Na tentativa de explicar a vida, Jorge utiliza várias metáforas, como o mar, o lume e
a nascente, mas é com o exemplo da semente que ele consegue associar a idéia de que tudo
o que vivemos faz parte de nosso momento presente e da mesma forma que a semente
162
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.247.
163
Ibid., p.32.
76
estará em cada parte da árvore, nossas lembranças e experiências passadas nunca nos
deixarão.
A organização das palavras nas frases, a relação das frases entre si e as figuras de
sintaxe encontradas na obra buscam mostrar a interioridade de Jorge, sua vivência
conflitiva entre temporalidades distintas na angustiante tarde que passa e o aproxima da
morte. Sua sensação de abandono num mundo sem sentido, sua angústia diante do nada que
traz a proximidade da morte e sua solidão revelada por um passado aparentemente inútil e
esvaziado de sentido.
77
4. A subjetividade e suas consequências
“Abre o sol o sulco da minha
imaginação trémula. Ardem lentas as
águas, traçam um caminho de fogo.
Sigo-o como às pegadas num deserto,
lanço-me no seu balanço ao infinito,
cerro os olhos de infinitude. Então
lembro-me de muita coisa ao mesmo
tempo que nessa desordem se
estilhaçam, pulverizando-se em
neblina.”
Vergílio Ferreira, Nítido nulo, p.201.
Após termos visto no capítulo anterior a formação da subjetividade da personagem
Jorge através da utilização dos tempos verbais, dos discursos e da sintaxe, destacaremos
neste capítulo a importância da instauração dessa subjetividade para a demonstração da
experiência da personagem com o tempo.
Com essa finalidade demonstraremos as relações entre as categorias tempo e
espaço, pois a personagem ao experimentar a dualidade entre os tempos físico e psicológico
projeta em seu discurso imagens pertencentes a essas duas temporalidades e intimamente
ligadas às suas emoções, já que os espaços recordados também traduzem as emoções
íntimas de Jorge.
Prosseguiremos com a análise dos fenômenos da recordação e da imaginação a
partir do estudo dos espaços, visto que as imagens-lembranças trazem os acontecimentos
com seu lugar e seu ambiente próprios e assim tempos e espaços indissociáveis surgem na
percepção presente e nas lembranças.
78
O item O fenômeno da recordação e da imaginação visa mostrar como os
acontecimentos passados são reatualizados pela personagem através da memória, e como
elementos pertencentes ao tempo presente lingüístico servem para desencadear momentos
de reflexão e de imaginação.
Ligado à vivência do tempo, estudaremos outra sensação humana de Jorge, a
sensação do intemporal, espécie de paragem no tempo, na qual a personagem experimenta
uma dimensão metafísica e em função disso ressaltaremos a poeticidade do romance, visto
que a personagem se situa em um tempo marcado pela atitude contemplativa e reflexiva.
79
4.1. O tempo e o espaço
Em Nítido nulo desde o título, formado por um oxímoro, isto é, (...)figura retórica
que consiste na união de palavras contraditórias, quando não antagônicas(...)”
164
se observa
a tensão gerada pela oposição dialética de contrários como vida / morte, mobilidade /
imobilidade, dia / noite e nessa mesma estrutura, tempo físico/ tempo psicológico.
O próprio título Nítido nulo serve de compreensão para a totalidade do texto pois
desvenda as relações de tensão que sustentam a obra. Da reflexão de Jorge sobre a
inutilidade de seus atos políticos, que o levaram à prisão, até o conflito do ser que vive num
tempo nitidamente bem marcado pelas horas e simultaneamente nulo e aparentemente
inexistente, o tempo da subjetividade. O título se explica no desenvolvimento da narrativa e
dá sentido a diversas significações:
“Tudo aconteceu muito ali, memória vã. E uma certa tranquilidade de ser.
Uma certa inutilidade de tudo ter acontecido.”
165
*
“Vazio o mar agora, nítido nulo horizonte linear. Imperceptível une-se ao azul do
céu, infinitude absoluta inexistente, na linha inexistente da separação que os une.
A vida toda está aí.”
166
Dessa maneira a narrativa se divide em dois planos espaciais, um plano que
corresponde aos espaços lembrados e imaginados do passado e outro plano nos quais estão
os espaços visualizados que pertencem ao momento presente da enunciação.
No plano espacial físico pertencente ao presente temos a sala do fortim na qual
Jorge está preso e as imagens que da janela ele pode ver, tais como o céu, o mar e a praia.
No céu Jorge observa o movimento das nuvens e das gaivotas, além da luz do sol. No mar
164
Antonio DIMAS, Espaço e romance, p.74.
165
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.287.
166
Ibid., p.114.
80
ele se refere às ondas e aos barcos que passam e na praia, observa os pescadores e o
movimento do cão. Todos esses espaços pertencem ao momento presente da narração e
assim ao tempo físico.
Ligados ao tempo psicológico temos os espaços recriados pela memória, nos quais
se passam os acontecimentos narrados. Ou seja, espaços pertencentes às lembranças de
Jorge. Como por exemplo, a casa de Lucinho, que introduz a história da morte do menino, o
tribunal, ao iniciar a narrativa de seu próprio julgamento e a velha casa, início da narrativa
de sua infância:
“A casa dele tinha um pátio, era uma casa pequena direi melhor uma loja? Um
pátio pequeno. Ficava em baixo, eu via-o do alto do jardim. Era de terra batida,
lama no Inverno, foi no Verão. Ou na Primavera? O pátio recebia o lixo que
vinha de cima, Lúcio brincava. Um aro de pipa, caixas de papelão, um pau de
vassoura. Ou um velho caixilho, cacos de louça, jornais. Lúcio brincava. Havia
restos de maravilha nesses restos, ele sabia. Não se deitava o lixo de propósito
para o pátio, havia só o propósito de o tirar de casa. E às vezes caía lá.”
167
*
“Está sol. É num edifício grande e velho, o tribunal, com um pátio ao meio. Pelas
janelas, à esquerda, vê-se. Os pombos cruzam-no constantemente, passam na
claridade do ar.”
168
*
“Numa manhã limpa de Inverno regresso à infância, a evocação abre
sùbitamente dentro de mim.(...)– velha casa e a tia Matilde e a criada Dolores e o
gato, velha casa.”
169
*
“O grande portão de chapas de ferro corroído, o seu ranger ferrugento e logo o
jardim aéreo, suspenso sobre a estrada em baixo, roído do tempo também, os
canteiros de pedra quase sem flores, subia-se uma escadaria e a porta rude com
uma argola um pouco desconjuntada, imediatamente sentida agora na minha mão
fechada sobre ela, no jeito de a rodar, e o trinco saltando, a porta aberta para o
silêncio do tempo nas salas e corredores nesta visita da memória, a sala grande de
visitas ao fundo com janelas para quintais desertos e a serra mais longe, dois
degraus à direita descendo para a cozinha, várias portas para a sala de visitas e
167
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.207.
168
Ibid., p.295.
169
Ibid., p.26.
81
outro corredor até à sala de estar e de jantar, alta como uma varanda, rodeada de
janelas dando sobre o horizonte. Nesse corredor está o meu quarto, tem uma
janela. A janela para uma figueira no quintal em frente e que abre os seus
ramos quase ao alcance da minha mão. Lembro-me de abrir a janela pela manhã.
É um dos actos cheios de grandeza – abrir uma janela para a manhã. Pelo
Inverno, os galhos nus encolhem-se de melancolia, gotejando do orvalho, dos
restos das chuvadas. Pelo Verão, o quarto vela-se de uma luz suave, coada pela
folhagem, como a claridade silenciosa de um vitral. Disse bem de um vitral? De
um vitral. Um aroma envelhece na minha comoção adstrita que me envolve o
corpo todo, se aperta até aos olhos onde aponta em agulhas, um aroma a pó, à
corrosão dos muros, dos recantos inacessíveis, a papéis amarelecidos, ao mofo
dos armários, à mistura indistinta, pela manhã, do cheiro a café com leite e pão
fresco e aos ‘vasos de noite’ antes dos despejos e mesmo depois pelo dia adiante,
cheiro de casas ricas com todas as necessidades realizadas portas adentro com
dignidade e decência aroma ao tempo, à mastigação lenta dos seres e coisas em
que de nós se perde não sabemos o quê e repentinamente nos faz sinais de longe
com olhos doridos perfume inebriante à pura essência do ser e que se evola e
paira incerto sobre o grande rio do silêncio. Numa manhã fina de Inverno
sossega coração.”
170
Os três exemplos citados se referem às descrições da casa de Lucinho, ao tribunal
onde Jorge foi julgado e à casa em que morou na infância. São descrições de espaços
ligados ao tempo psicológico, ou seja ligados à recordação. Segundo Antonio Dimas as
descrições complementam a ambientação espacial, ajudam na compreensão externa e
interna das personagens e também auxiliam na criação de um ritmo narrativo.
171
Todos esses espaços lembrados com detalhes se contrapõem à descrição impessoal
da sala na qual Jorge está preso:
“A sala é larga e limpa. As próprias grades são pintadas de branco para deixarem
passar a alegria que puderem.”
172
Percebe-se na descrição do tribunal uma semelhança com a descrição da sala onde
Jorge está preso. Nas duas descrições a busca pela luz do sol que está do lado de fora.
170
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp.27-28.
171
Antonio DIMAS, Espaço e romance, p.41.
172
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.11.
82
Jorge olha a claridade do ar fora do edifício e vê os pombos soltos que voam. Essa
descrição vai de encontro ao momento presente na sala, em que Jorge busca, através das
grades da janela, a sensação de liberdade de movimento que ele não tem.
O estado emocional de abandono e angústia no momento presente faz Jorge lembrar
com riqueza de detalhes a casa da sua infância e a janela do seu quarto, que se abria para a
vida. Jorge chega a sentir os cheiros que lhe eram familiares e traziam em si o aconchego
de casa, da sua infância, da liberdade.
As descrições que aparecem nas lembranças de Jorge são breves e introdutórias dos
acontecimentos por ele lembrados, com exceção da descrição da velha casa, mais longa e
rica em detalhes, introdutória não somente de um acontecimento e sim de vários fatos
ligados a sua infância. É a descrição da velha casa com seus habitantes que início ao
processo de rememorações ao longo da tarde.
“De todas as estações, o inverno é a mais velha. Envelhece lembranças. Remete a
um passado longínquo. Sob a neve, a casa á velha. Parece que a casa vive no
passado, nos séculos remotos.”
173
A velha casa abre no texto o espaço a partir do qual as lembranças surgirão, vindas
de um passado longínquo. Após a descrição da velha casa surgem outras lembranças, que
progressivamente se aproximam do momento presente da enunciação:
“Toda grande imagem simples revela um estado de alma. A casa, mais ainda que
a paisagem, é ‘um estado de alma’.”
174
A busca por lembranças da casa da tia reflete a falta de segurança e a total ausência
de todos e da sua própria vida.
Nas descrições ligadas ao tempo psicológico, ou seja, às lembranças de Jorge, as
marcas temporais são vagas e não é possível saber através delas em que ano ou época se
passaram os fatos lembrados. Isto porque o importante é recuperar as sensações que os
173
Gaston BACHELARD, A poética do espaço, p.58.
174
Ibid., p.84.
83
fatos vividos deixaram para aliviar seu momento difícil, porém as lembranças estão
contaminadas pelas sensações de morte e abandono presentes na interioridade de Jorge.
Assim, o narrador se refere a um tempo passado relacionando-o às sensações, como
na lembrança da partida de seu pai e, em seguida, na partida de sua mãe e irmã:
“Na realidade, não sei ao certo se foi pelo Inverno. Mas uma certa ligeireza do
meu pai transpondo o portão do quintal. o vejo. , aí. E um certo ar
tolhido em mim, devia estar frio.”
175
*
“Há-de ser Verão, porque sinto agora muito calor.(...)Possìvelmente estou a
chorar, mas não tenho tempo de o saber, não me lembro. Por fim minha mãe e
minha irmã hão-de ter conseguido subir para a carroça do Beltra. Mas não me
lembro também. Recordo é quando a carroça partiu.(...)Então larguei a correr
pelo meio da estrada atrás da carroça, minha mãe ia lá dentro.”
176
Sabemos dessa forma que os pais de Jorge partiram quando ele ainda era criança,
mas não sabemos quando, talvez num inverno o pai, provavelmente no verão a mãe, mas
todos esses marcos temporais vinculados às sensações passadas e presentes: devia estar
frio; Há-de ser Verão, porque sinto agora muito calor.
As descrições que se referem às lembranças não possuem marcação temporal
específica, se relacionam às sensações provocadas e associadas às estações do ano, as quais
aparecem sempre com a primeira letra grifada em maiúscula:
“É o fim da tarde de um dia de Inverno. Reconheço-o nos pássaros grizalhando
pelas árvores, uma melancolia retraída que no Verão não há.”
177
Diferentemente do espaço ligado ao tempo psicológico, que não assume a
importância de marcar o tempo, o espaço pertencente ao presente marca com bastante
regularidade o tempo físico que passa, marcado pelo movimento do sol. A atenção de Jorge
à passagem do tempo físico se verifica pelas descrições que faz da luz do sol fora da sala,
175
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp.130-131.
176
Ibid., p.132.
177
Ibid., p.237.
84
esse é o tempo que o levará para a morte, tempo que passa ininterrupto apesar da negação
de Jorge:
“O sol desce. o tinha dito. Tenho de o dizer mais vezes à medida que for
descendo.
178
A obsessiva marcação da luz do sol aumenta a angústia de Jorge à medida que o
aproxima da morte e o susto com a chegada da noite revela seu próprio espanto diante da
certeza do nada que o espera:
“Ao alto, como folhas de papel soltas, pairando ao acaso, as gaivotas olho-as.
Pairam desinteressadas, abstractas, nulas. Vou agora olhar o mar, em baixo, o
arrepio do abismo. Já negro, mais profundo assim.”
179
A força do momento presente se reflete nas descrições feitas por Jorge, tanto as do
passado quanto as do presente. Assim Tenho de o dizer mais vezes à medida que for
descendo reflete o aumento da angústia e progressivamente a tensão da narrativa.
De acordo com Gaston Bachelard, “Parece, então, que é por sua ‘imensidão’ que os
dois espaços – o espaço da intimidade e o espaço do mundo – tornam-se consoantes.
Quando a grande solidão do homem se aprofunda, as duas imensidões se tocam, se
confundem.(...)Cada objeto investido de espaço íntimo transforma-se, nesse
coexistencialismo, em centro de todo espaço. Para cada objeto, o distante é o presente, o
horizonte tem tanta existência quanto o centro.”
180
Os dois espaços da narrativa, tanto o lembrado quanto o observado, estão associados
às estações do ano, e ao movimento da luz do sol, tempos que se repetem indefinidamente.
Essa caracterização dos espaços acompanhada de características temporais cíclicas nos
remete à ambientação mítica, que se caracteriza pelo caráter cíclico do tempo, e ligadas
assim a um tempo ontológico no qual o importante é refletir sobre o ser. No caso específico
de Jorge, essas reflexões se intensificam pelo momento particular que ele experimenta.
178
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.199.
179
Ibid., p.299.
180
Gaston BACHELARD, A poética do espaço, p.207.
85
Conforme Georges Gusdorf, é a paisagem que garante ao homem a sua realidade
completa:
“Es el hombre el que impone sentido al paisaje; pero a la vez sólo el paisaje
asegura la completa realidad del hombre.”
181
Nas descrições dos espaços relacionados com o presente da enunciação como a
praia, o mar e o céu, tudo gera a idéia de movimento, que Jorge associa às horas que
passam:
“O barco ao longe moveu-se. Tem a mobilidade invisível dos ponteiros de um
relógio.
182
*
Passa à borda da água um cão solitário, o focinho baixo, fareja. ra em alguns
sítios especiais para um farejo mais escrupuloso, segue depois, deve seguir
alguma pista que é decerto a do seu destino de cão.”
183
*
“(...) um outro barco avança na linha do horizonte. Vem no mesmo sentido do
primeiro, vão ambos para o norte, que é que haverá para o norte?”
184
*
“Uma nuvem passa, isolada e escura. Corre a sua sombra pelo areal, passa.”
185
*
“Sol nítido outra vez, a nuvem passou. Passa ao longe sobre a massa das águas
um voo trémulo de gaivota – ou é uma vela? um voo sacudido de borboleta.”
186
As descrições da luz do sol também evidenciam o passar do tempo que Jorge insiste
em marcar. Temos nos exemplos abaixo a descrição da tarde e a chegada da noite:
181
Georges GUSDORF, Mito y metafísica, p.57: É o homem que impõe sentido à paisagem; porém a
paisagem por sua vez assegura a completa realidade do homem.
182
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.20. Os grifos são nossos.
183
Ibid., p.21.
184
Ibid., p.25.
185
Ibid., p.91.
186
Ibid., p.136.
86
“O sol desce. o tinha dito. Tenho de o dizer mais vezes à medida que for
descendo.
187
*
“As águas ardem a um lume vermelho ou menos metálico, fervilham de luz.
Passa na fogueira um barco ainda, já imprevisível.”
188
*
“Um barco passa, leva já a noite consigo, fiadas de luzes acesas.”
189
A mobilidade que Jorge descreve nas paisagens que vê reflete sua ânsia de liberdade
e o conflito que esses mesmos movimentos observados sugerem, isto é, do tempo físico que
passa.
Assim sendo, as descrições dos espaços ligados ao tempo físico dão ao texto um
ritmo constante e linear, ligado ao movimento do sol que marca o tempo que passa e
conseqüentemente aproxima Jorge da morte.
Na praia deserta passa o cão solitário, no mar passam os barcos que avançam, no
céu passam as gaivotas e as nuvens, e pela luz do sol, observamos a tarde que passa. Os
espaços externos sugerem, com a passagem das horas do dia, a passagem da vida e a
aproximação da morte, do fim, da noite.
“A imensidão foi ampliada pela contemplação. E a atitude contemplativa é um
valor humano tão grande que confere imensidão a uma impressão que um
psicólogo teria toda a razão em declarar efêmera e particular. Mas os poemas são
realidades humanas; não basta referir-se a ‘impressões’ para explicá-las. É
preciso vivê-las em sua imensidão poética.”
190
Associada à sensação de passagem das horas e por conseguinte da vida, o mar traz
para Jorge, na circunstância de prisioneiro à espera do cumprimento de sua sentença, a idéia
da morte:
“Para alguns sonhadores, a água é o movimento novo que nos convida à viagem
jamais feita.(...)A imaginação profunda, a imaginação material quer que a água
187
Ibid., p.199.
188
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.287. Os grifos são nossos.
189
Ibid., p.299.
190
Gaston BACHELARD, A poética do espaço, p.214.
87
tenha sua parte na morte; ela tem necessidade da água para conservar o sentido da
viagem da morte. Compreende-se assim, que, para esses devaneios infinitos,
todas as almas, qualquer que seja o gênero dos funerais, devem subir na barca de
Caronte.
191
Nas reflexões de Jorge alguns adjetivos, que se ligam à contemplação do mar, tais
como retraído à cor do seu abismo; negro, mais profundo assim e os cadáveres em
baixo atulhando o mar, revelam sua interioridade, seu profundo sofrimento pelo trágico
final de sua vida:
“Vou agora olhar o mar, em baixo, o arrepio do abismo. negro, mais profundo
assim.”
192
*
“E como se nada mais tivéssemos a dizer, mas eu sabia que tínhamos, eu sabia
que sim e tinha medo, um certo tremor nas mãos, como se nada mais, em silêncio
parados para a eternidade, os cadáveres em baixo atulhando o mar, e o nosso
olhar fixo ali.
193
*
“As grades brancas, eu atrás, o cão em baixo, estamos ambos à espera. Em
frente dos dois, o mar. Interminàvelmente, plácido, um pouco escurecendo,
retraído à cor do seu abismo.”
194
No último exemplo a relação que se estabelece entre Jorge e o cão ligados pela
espera da morte nos remete às questões existencialistas do ser que tem consciência de sua
liberdade nas escolhas da vida e de outros que simplesmente estão colados às coisas e não
são livres para cercá-las de negação.
195
A idéia da morte é relacionada à sucessão das ondas: “E de um extremo ao outro da
esteira branca de areia, intérmina perdura, obsessiva, não a onda mas a ondulação, impulso
invisível a que novas ondas nasçam sobre as ondas que morrem estou triste.”
196
Além de
191
Gaston BACHELARD, A água e os sonhos, p.78.
192
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.299.
193
Ibid., p.310.
194
Ibid., p.260.
195
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, p.18.
196
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.61.
88
vinculadas à melancolia pela aceitação inevitável do fim da existência humana e pela
sufocante angústia que o final próximo traz:
“Assim, para certas almas, a água guarda realmente a morte em sua substância.
Ela transmite um devaneio onde o horror é lento e tranquilo.(...)Para certos
sonhadores, a água é o cosmos da morte.(...)A água leva para bem longe, a água
passa como os dias.”
197
Confinado na sala de um fortim, Jorge descreve os espaços visualizados através das
grades da janela e os espaços concebidos por suas lembranças, que também tiveram sua
realidade física imediata. Estes além de servirem como pontos de associações com fatos
passados, sugerem reflexões metafísicas à personagem:
“A tarde desce, um ar recolhido. Refluxo da vida a si mesma, é uma hora má.”
198
Como parte integrante dos espaços lembrados e imaginados por Jorge temos os
espaços ligados às reflexões existenciais, o que evidencia a consciência mítica, (...)que es,
indivisiblemente, presencia en y presencia en el mundo, unidad originaria de la
conciencia y del mundo(...)El hombre se comprende a sí mismo en el paisaje mítico.”
199
Os espaços descritos no tempo presente são relacionados à abstração do mundo, não
são lugares nos quais ocorrem os fatos, até porque nenhuma ação ocorre nesses lugares, a
não ser coisas que passam. São espaços ligados ao absoluto, à totalidade, à uma natureza
ligada ao tempo primordial. Isto pelo fato da própria experiência de morte experimentada
por Jorge. Ou seja, consciência de uma existência finita como as ondas num universo
absoluto, incontestável, como o mar:
“Os banhistas partiram, quanto tempo? a praia regressa ao início do mundo,
antes do primeiro ser vivo. Olho-a na eternidade, é uma experiência curiosa, a
197
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp.93-94.
198
Ibid., p.200.
199
Georges GUSDORF, Mito y metafísica, p.25: (...)que é, indivisivelmente, presença em si e presença no
mundo, unidade originária da consciência e do mundo(...)O homem se compreende a si mesmo na paisagem
mítica.
89
terra deserta, extremamente estúpida por existir assim, e o mar no seu incansável
turbilhão.”
200
*
“A imagem das ondas é muito antiga porque a imaginação humana tem os seus
limites.(...)não a onda mas a ondulação, impulso invisível a que novas ondas
nasçam sobre as ondas que morrem – estou triste.
201
As descrições de Jorge nos remete à idéia de um tempo absoluto ligado à reflexão
existencial: a praia regressa ao início do mundo, antes do primeiro ser vivo. Olho-a na
eternidade; A imagem das ondas é muito antiga porque a imaginação humana tem os seus
limites, não a onda mas a ondulação, impulso invisível a que novas ondas nasçam sobre as
ondas que morrem.
Temos assim os espaços externos ligados ao tempo físico e os espaços internos
ligados ao tempo psicológico, espaços relacionados a distintas temporalidades que
intensificam a técnica da troca de tempo utilizada pelo escritor.
Os espaços descritos por Jorge, tanto os recordados como as percepções presentes,
contaminam-se mutuamente pois são descritos de acordo com os sentimentos da
personagem, que no caso é a sensação da morte.
Como exemplo de utilização da técnica interseccionista, utilizada por Fernando
Pessoa em Chuva oblíqua para a criação da subjetividade no texto, temos no capítulo IX do
romance a união de acontecimentos da infância, do passado recente e do presente de Jorge
em um mesmo espaço, a praia:
“Ainda agora, olhando as ondas. Em pequeno íamos à praia, tia Matilde cuidava-
me da saúde.”
202
*
“De maneira que por Setembro íamos à praia.(...)Marta um Verão esteve comigo
– ainda era viva a tia Matilde? penso que não.”
203
*
200
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.48.
201
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.61.
202
Ibid., p.102.
203
Ibid., p.103.
90
“O banheiro calculava a utilidade de cada onda pela distância e altura do
arrebentamento, mandava-nos progredir, recuar. Até que surgia uma onda sem
defeitos, ordenava para os dois lados
– agora
e todos apanhávamos irmãmente uma chumbada de areia. Marta, porém, esguia e
longa, loura, esguia no maillot branco. Com a mão fina esconde os cabelos louros
na touca branca de borracha – se tu viesses.
Diáfana aparição, em vestes flutuantes ao alto da falésia. Ou virás nua talvez, eu
erguerei a mão, gritarei o teu nome
– Marta
– Alguma coisa?
não, não quero nada. se for para urinar, mas ainda é cedo, ainda aguento. E
enquanto aguento, Marta entra na água, saltitando friorenta sobre as ondas
pequeninas por causa dos arrepios, branca. Eu ao lado, cabeludo. E rimos tanto,
ela ri. Esplendorosa de graça, de frescura oh, por favor. Frases não. Até que,
linear, sobre as águas, estende-se, e em gestos breves vai singrando como um
barco normando, corta as águas para o infinito – que haverá no infinito?
Sei que me esperas até ao último instante mas eu não. Nado mal, faço um
estardalhaço medonho e avanço pouco. Grácil, saúda-me de longe, a mão linda
no ar. Depois regressamos à barraca, Dolores esfrega-me vigorosamente. Dá-me
um naco de pão, como-o fora, elas dentro. Bato o queixo, tenho as mãos
roxas o frescor salino do ar. Avivo a atenção, sinto-o e bebo uma golada de
cerveja. Pequeninas bolhas na efervescência picante na garganta, no nariz tia
Matilde e Dolores ralham dentro da barraca. Finalmente Marta regressa.
Aguardo-a para de aventuras marinhas, perto da terra da minha segurança. Ela
chega enfim aonde eu, temos , não nado senão aí. E rimos de novo na evidência
da luz, esgotados e felizes. Marta tira a touca, os cabelos desenovelam-se, ela
sacode-os húmidos ao esplendor da manhã. E de mãos dadas, os pés rangendo na
areia resvaladiça, avançamos difìcilmente deslizamos rápidos sobre as águas na
sugestão da onda espraiada e em refluxo. Depois estiramo-nos ao sol.”
204
Na primeira citação a praia mencionada é a da infância, frequentada por jorge, tia
Matilde e Dolores. Na segunda citação a praia é agora frequentada por Marta. E Jorge nos
informa que tia Matilde nessa época já não era mais viva. Na realidade nem sabemos se é a
mesma praia ou se é a praia que significa qualquer praia. No terceiro exemplo os
204
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp.104-105.
91
acontecimentos na praia se dão simultaneamente e assim aparecem: Avivo a atenção, sinto-
o e bebo uma golada de cerveja. Pequeninas bolhas na efervescência picante na garganta,
no nariz tia Matilde e Dolores ralham dentro da barraca. Finalmente Marta regressa.
Aguardo-a para cá de aventuras marinhas, perto da terra da minha segurança.
Percebe-se a fusão de momentos com a tia Matilde, Marta e a golada de cerveja, que
pode pertencer ao momento presente ou à ida à praia com Marta, mas não à infância. O que
une esses momentos é a sensação de liberdade no espaço praia e a segurança de estar
livremente nela. Primeiro com a tia que cuida de sua saúde e em seguida à espera de Marta
em terra firme. Esses momentos de segurança, liberdade, prazer, companhia, cuidado, são
exatamente os sentimentos que estão ausentes no presente e intensificam a dor, o abandono,
a solidão, o desamparo e a insegurança atual:
“Se assim podemos dizer, os dois espaços, o espaço íntimo e o espaço exterior,
vêm constantemente estimular um ao outro em seu crescimento. Designar, como
fazem com razão os psicólogos, o espaço vivido como um espaço afetivo, não
desce entretanto à raiz dos sonhos da espacialidade.
205
Desse modo as praias da infância, do passado recente e do presente se fundem e
significam a interioridade da personagem, visto que o interseccionismo, de acordo com
Maria Aliete Galhoz “(...)é um complexo de vivências interferindo-se porque chamadas ao
campo do consciente com a mesma solicitação de únicas. Daí, as intersecções psíquicas de
tempos, de espaços, e de realidades exteriores e subjetivas. Dos vários planos, um real e
outros imaginários, ainda que todos concebidos só no cérebro, desencadeiam na
receptividade emotiva do poeta um nexo de correspondências visionariamente
expressas.”
206
O espaço da praia é assim o ponto de intersecção não somente de várias
temporalidades mas também de sensações. Esse ponto no qual as temporalidades se tocam é
a expressão dos sentimentos que sufocam Jorge e desencadeiam o processo de fusão dos
espaços.
205
Gaston BACHELARD, A poética do espaço, p.206.
206
Maria Aliete GALHOZ, Apud. Maria Lúcia DAL FARRA, O narrador ensimesmado, p.110.
92
As descrições feitas por Jorge são contaminadas por seus sentimentos e seu estado
emocional diante do inevitável final, de seu fuzilamento, de sua trágica morte.
Nesse espaço Jorge tenta evadir-se de sua situação atual em busca de uma resposta
que dê sentido a sua própria existência e nessa procura encontra o vazio, o nada trazido pela
morte:
“Agora que a noite desce, ou mais rigorosamente, sobe, estou mais triste que há
pouco.”
207
*
207
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.301.
93
4.2. O fenômeno da recordação e da imaginação
O tempo psicológico em Nítido nulo é preenchido pelas recordações da
personagem-narrador e suas reflexões acerca da existência humana e nessa jornada de
rememorações se repetem lembranças que percorrem toda a narrativa e revelam o estado
emocional de Jorge.
O fenômeno psicológico da recordação traz ao tempo presente, não uma série de
fatos já vividos, mas também as marcas emocionais desses fatos que foram armazenadas no
espírito e que m à tona independentemente do distanciamento e do tempo transcorrido
pois fazem parte do ser no tempo presente. Para Henri Bergson, reavemos o passado no
presente pelo reconhecimento. Assim, “Reconhecer seria portanto associar a uma percepção
presente as imagens dadas outrora em contigüidade com ela.”
208
Assim, sentimentos tais como a angústia e a solidão provocados pela proximidade
da morte violenta contaminam as lembranças, que surgem vinculadas às sensações
presentes, frustrando as tentativas de escapar do momento tão difícil.
Às vezes, a essas recordações, soma-se o ato da imaginação, a fim de proporcionar
uma melhor compreensão da ação passada, prolongá-la voluntariamente, preencher lacunas
de esquecimento ou mesmo para proporcionar um comentário íntimo e uma reflexão.
A condução da narrativa se constitui ora por fatos que emergiram da memória, ora
por fatos do presente, sem diferenciação clara de planos temporais, que as lembranças
surgem e sofrem continuamente a interferência do tempo presente e de todas as vivências
que ele implica. A rememoração de acontecimentos passados, muitas vezes súbita e não
explicitada, dá à personagem a característica humana da recordação.
Porém, essa linha narrativa, aparentemente caótica, traçada pelo caminho da
memória e pela liberdade do pensamento, segue e avança de modo que até o final da tarde
Jorge tenha contado a sua história, pois ele se obriga a ordenar cronologicamente os
acontecimentos lembrados em busca de uma compreensão total para tudo o que viveu:
208
Henri BERGSON, Matéria e memória, p.99.
94
“Mas é necessário que eu morra tudo, embora cada coisa por sua vez, para ver
como fica tudo depois.”
209
De acordo com Henri Bergson, a percepção presente vai sempre buscar a lembrança
da percepção anterior que se assemelha, criando uma justaposição ou fusão entre a
percepção e a lembrança. Essa operação fortalece e enriquece a percepção, que acaba por
atrair um número crescente de lembranças complementares:
“A verdade é que a memória não consiste, em absoluto, numa regressão do
presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado ao
presente.”
210
Em Nítido nulo, a narrativa de reconstrução de acontecimentos da vida através da
memória de um homem à espera da morte é construída por lembranças que são
constantemente interrompidas e adiante retomadas, sempre com o auxílio da reflexão e da
imaginação.
Nesse momento em que iniciamos um estudo sobre o tempo das recordações da
personagem, é importante destacar alguns conceitos de Henri Bergson sobre o tempo
duração e a memória.
Para Bergson o tempo é uma duração real, uma continuidade indivisível de
mudanças de estados psicológicos:
“Una multiplicidad cualitativa sin semejanza con el número; un desarrollo orgánico
que no es, sin embargo, una cantidad creciente; una heterogeneidad pura en cuyo seno no
hay cualidades distintas. En una palabra, los momentos de la duración interna no son
exteriores entre sí. ¿Qué existe de la duración fuera de nosotros? Sólo el presente, o si se
prefiere: la simultaneidad.(...)En la conciencia encontramos estados que se suceden sin
distinguirse, y en el espacio, simultaneidades que, sin sucederse, se distinguen, en el sentido
de que una ya no existe cuando la otra aparece. Fuera de nosotros: exterioridad recíproca
sin sucesión; dentro: sucesión sin exterioridad recíproca.”
211
209
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.207.
210
Henri BERGSON, Matéria e memória, p.280.
211
J. BENRUBI, Bergson, estudio sobre su doctrina, pp.183-184: Uma multiplicidade qualitativa sem
semelhança com o número; um desenvolvimento orgânico que não é entretanto uma quantidade crescente,
95
“No que concerne à memória, ela tem por função primeira evocar todas as
percepções passadas análogas a uma percepção presente, recordar-nos o que precedeu e o
que seguiu, sugerindo-nos assim a decisão mais útil. Mas não é tudo. Ao captar numa
intuição única momentos múltiplos da duração, ela nos libera do movimento de transcorrer
das coisas, isto é, do ritmo da necessidade.”
212
Nas recordações as recorrentes mortes que são lembradas, refletem os sentimentos
que se sucedem na interioridade de Jorge. Todos ligados à morte, como dor, perda,
angústia, abandono, tristeza, etc.
Assim sendo, “A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o
passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da
duração, e assim, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em
nós, enquanto de direito a percebemos nela.”
213
Para Bergson (...)não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos
dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa
experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções
reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples ‘signos’
destinados a nos trazerem à memória antigas imagens.”
214
E “(...)as lembranças pessoais, exatamente localizadas, e cuja série desenharia o
curso de nossa existência passada, constituem, reunidas, o último e maior invólucro de
nossa memória.”
215
“Percibir consiste, por tanto, en suma, en condensar los períodos enormes de una
existencia infinitamente diluida en algunos momentos más diferenciados de una vida más
intensa, y en resumir de este modo una historia muy larga.(...)Nuestra percepción, por
instantánea que sea, consiste por tanto en una incalculable multitud de elementos
rememorados y, a decir verdad, toda percepción es ya memoria. No percibimos
uma heterogeneidade pura em cujo seio o há qualidades distintas. Em uma palavra, os momentos de
duração interna não são exteriores entre si. O que existe da duração fora de nós? Somente o presente, ou se
preferir: a simultaneidade.(...)Na consciência encontramos estados que se sucedem sem se diferenciarem uns
dos outros, e no espaço, simultaneidades que sem se sucederem, se diferenciam, no sentido de que uma já não
existe quando a outra aparece. Fora de nós: exterioridade recíproca sem sucessão; dentro de nós: sucessão sem
exterioridade recíproca.
212
Henri BERGSON, Matéria e memória, p.266.
213
Ibid., p.77.
214
Ibid., p.30.
215
Ibid., p.120.
96
prácticamente más que el pasado, siendo el presente puro el imperceptible progreso del
pasado que corroe el porvenir.”
216
Para Jean Pouillon não existe somente uma objetividade material que nos é dada
pela percepção, há também a objetividade com relação à compreensão, e que é captada pela
imaginação.
Pouillon demonstra “(...)em primeiro lugar, que a imaginação tem uma utilização
própria, de que não se pode incumbir a percepção, e que consiste em nos fornecer o sentido
daquilo que percebemos; em segundo lugar, que ela atinge diretamente esse sentido, que
seus resultados, quando são de fato aqueles para os quais ela é feita, não são nem fictícios,
nem hipotéticos.(...)Na realidade, existe simultaneidade: eu capto o significado sobre a
ação.(...)o que fica ‘oculto’ do ponto de vista da percepção, me é plenamente ‘dado’ pela
imaginação compreensiva.”
217
De acordo com Pouillon toda compreensão é imaginação, pois é a ação imaginativa
que nos fornece o sentido daquilo que percebemos. A imaginação a objetividade daquilo
que percebo relacionada com a minha consciência e capta juntamente com a percepção uma
compreensão integral. Porém é a imaginação que procura um sentido para a simples
apreensão perceptiva e o que fica oculto para a percepção é dado pela imaginação
compreensiva.
“A imaginação não intervém para substituir uma experiência real por algo
fictício.(...)Por conseguinte, a imaginação não consiste nessa imitação de uma
realidade que ela se esforçaria em vão por igualar(...)é, pelo contrário, a
apresentação fiel do real psicológico.”
218
Os momentos no texto em que Jorge descreve a presença de Sara na sala com ele,
se de acordo com Pouillon, quando a percepção tenta suplantar a imaginação e gera
momentos alucinatórios pois compreende erroneamente o sentido atribuido aquilo que o
216
J. BENRUBI, Bergson, estudio sobre su doctrina, pp.83-85: Perceber consiste portanto em suma
condensar os períodos enormes de uma existência infinitamente diluida em alguns momentos mais
diferenciados de uma vida mais intensa, e em resumir deste modo uma história muito comprida.(...)Nossa
percepção, por mais instantânea que seja, consiste portanto em uma incalculável multidão de elementos
rememorados e a bem da verdade, toda percepção já é memória. Não percebemos praticamente mais que o
passado, sendo o presente puro o imperceptível progresso do passado que corrói o porvir.
217
Jean POUILLON, O tempo no romance, pp.35-36.
218
Ibid., p.37.
97
cerca. As breves alucinações que trazem a presença de Sara se devem ao profundo
sentimento de solidão de Jorge:
“Está sentada ao de mim, juntamos o olhar num ponto distante do horizonte,
deve estar a razão do nosso encontro, o guarda está em pé, imóvel, junto da
porta.”
219
*
“E bruscamente reparo que Sara não está ali. Um instante procuro-a, um instante
apenas, mas intenso, absoluto, como uma pancada no coração – não está ali.”
220
Jorge recorda experiências de sua infância e momentos de seu passado mais recente
que resumem e explicam a razão pela qual ele se encontra preso e condenado à morte, mas
não consegue encontrar, por mais que tente, um sentido para tudo o que viveu no passado e
para o trágico final que o espera num futuro próximo:
“Os meus olhos passam por tudo, mortos que falais ainda, vozes nítidas e
absurdas no ar, imóveis instantes de outrora, os meus olhos passam, perdem-se no
horizonte de mim. Então, como se um ar corrosivo, de uma a uma, pessoas,
coisas, memórias avulsas repentinas, como se um ar corrosivo as envolvesse,
dissolvem-se. Incerta bruma, névoa esparsa, eu só.(...)Bruscamente, tudo.
Desvanece-se, irreal, irrisório que é que tudo significa? ao apelo inaudível que
oscila na luz amortecida, no esvaído horizonte donde vem? Tento entender, não
entendo.”
221
Os momentos recordados são os mais intensos emocionalmente, tais como sua
chegada à cidade, seu encontro com Vera e com Teófilo, sua visita à Sara, a Revolução da
qual participou, a explosão da estátua, sua prisão e a de Lúcia e seu julgamento. Essas
lembranças se associam às sensações presentes intensificando-as por oposição ou por
similaridade com o presente e se opõem às lembranças das mortes por serem lembranças de
vida:
219
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p. 16.
220
Ibid., p.19.
221
Ibid., p.149.
98
“É a hora da morte.(...)De um lado a vida toda; e do outro, o nada todo dela.”
222
As lembranças das mortes ao longo da narrativa surgem por associação com as
sensações do momento presente e com a expectativa futura da morte próxima. E criam,
dessa forma, uma fusão entre as sensações presentes e as sensações passadas:
“(...)el pasado no vuelve a la conciencia más que en la medida en que puede
ayudar a comprender el presente y a prever el futuro: es un esclarecedor de la
acción..”
223
As recordações das mortes começam na infância com a morte do mendigo, em
seguida se sucedem a morte do pai de Lucinho, a morte de um homem na faculdade, a
morte da tia Dulce, do Lucinho, do Ruy, marido de Vera, a morte da tia Matilde e finaliza
com a morte do cão, antes da sua própria.
Duas outras lembranças ligadas ao sentimento de perda e finitude são as partidas
dos pais e da irmã. Assim, temos:
“Mas a verdade é que por Novembro ou Dezembro revejo-o desde a minha
altura de então que não chegava a um metro, creio. E assim, o que me lembra é só
o baú de lata e a mão dele a segurá-lo, suspenso.(...)Há a passada a dobrar o
portão e depois não há mais nada.(...)Entre a partida dele e a de minha mãe,
um espaço vazio. Com certeza com algumas lágrimas aí. Não me lembro.”
224
*
“Possìvelmente estou a chorar, mas não tenho tempo de o saber, não me lembro.
Por fim minha mãe e minha irmã lá hão-de ter conseguido subir para a carroça do
Beltra. Mas não me lembro também. Recordo é quando a carroça partiu.(...)Então
larguei a correr pelo meio da estrada atrás da carroça, minha mãe ia lá dentro.”
225
O estado de espírito de profunda tristeza e abandono de Jorge nos é revelado por ele
desde o início da narrativa e pelas lembranças de morte que percorrem a obra e evidenciam
222
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.293.
223
Henri BERGSON, Memoria y vida, p.60: (...)o passado não volta à consciência mais do que na medida em
que pode ajudar a compreender o presente e a prever o futuro.
224
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp.130-131.
225
Ibid., p.132.
99
seu futuro iminente: “E estranha, uma melancolia cresce como erva, deixa um rasto nas
coisas.”
226
; “(...)– estou triste. De que é que estou triste?”
227
e após saber que será fuzilado:
“Uma amargura profunda, nova e inesperada, profunda(...)”
228
Para Bergson, os graus da tristeza correspondem a mudanças de estados
psicológicos no tempo duração. No texto as mudanças de estados psicológicos de Jorge
evidenciam o conflito de sua experiência entre o tempo que passa e o aproxima de sua
morte e o tempo psicológico para o qual ele tenta escapar, negando dessa forma o
angustiante momento presente.
Jorge é subitamente retirado do passado lembrado pela força emocional do presente
e esse movimento entre a tentativa do alívio frente à angústia do nada aumenta sua tensão
emocional:
“Depois Marta ergueu-se, sentou-se, deitou-se de novo, de costas, apoiada aos
cotovelos. Encostava a cabeça a uma das mãos, erguia areia com a outra como
uma pá, deixava-a escorrer por entre os dedos. Depois falámos”
229
E no início do capítulo seguinte:
de quê? Por favor não nos interrompam. Mas justamente nesse instante um
estranho alvoroço abala toda a prisão.(...)Nem olho. Possìvelmente é a
hora(...)
230
Assim a lembrança de um verão com Marta é interrompida pela visita de Teófilo e
nesse momento a aparente distração provocada pela lembrança é invadida pelo terror da
hora da morte.
“Começa por ser apenas uma orientação para o passado, um empobrecimento das
nossas sensações e idéias, como se cada uma delas se conservasse agora inteira
no pouco que ela proporciona, como se o futuro nos estivesse de algum modo
226
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.11.
227
Ibid., p.61.
228
Ibid., p.116.
229
Ibid., p.108.
230
Ibid., p.109.
100
vedado. E termina numa impressão de esmagamento, que nos leva a aspirar ao
nada, e a que cada nova desgraça, ao fazer-nos compreender melhor a inutilidade
da luta, nos cause um prazer amargo.”
231
Entregue à ação de recordar, que o liberta do momento de espera da sua execução,
Jorge se situa hora no tempo presente da enunciação, hora no tempo dos acontecimentos
lembrados, o que revela a liberdade que experimenta ao ir, mesmo que só em pensamento, a
outros tempos, o seu tempo vivido:
“Mi vida se me da como conciencia de un sentido inmanente a cierta duración.
Nada de tiempo representativo, sino tiempo sustancial. Yo soy mi tiempo. Mi
tiempo es mi vida. Las dimensiones del tiempo vivido no corresponden a
variables matemáticas, son dimensiones en valor, que hacen del ser en el tiempo
una realidad bien divisible y discontinua. Por otra parte, ése es el testimonio de
mi memoria, medida por sucesos cuya sucesión de ningún modo puede ser
comprendida en el simple marco de la matemática cronológica. Mi memoria me
confía el sentido de mi historia; evoca las alternativas del tiempo bueno y del
tiempo malo en la afirmación de mi personalidad; saltea los tiempos vacíos, los
amplios espacios desiertos, las pausas, para concentrarse de alguna manera en los
tiempos plenos, positivos o negativos, las penas, las desgracias o las alegrías, que
son como otros tantos mojones o nudos en la línea de mi vida.”
232
Jorge não se limita à rememoração dos acontecimentos passados, ele também tece
reflexões acerca de sua existência, da aparente inutilidade do seu passado e da angústia do
fim:
231
Henri BERGSON, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, p.17.
232
Georges GUSDORF, Mito y metafísica, p. 217-218: Minha vida se como consciência de um sentido
imanente a certa duração. Nada de tempo representativo e sim de tempo substancial. Eu sou o meu tempo.
meu tempo é minha vida. As dimensões do tempo vivido não correspondem a variáveis matemáticas, são
dimensões em valor, que fazem do ser no tempo uma realidade bem divisível e descontínua. Por outro lado,
esse é o testemunho de minha memória, medida por sucessos cuja sucessão de nenhum modo pode ser
compreendida no simples marco da matemática cronológica. Minha memória me confia o sentido da minha
história; evoca as alternativas do tempo bom e do tempo ruim na afirmação da minha personalidade; pula os
tempos vazios, os amplos espaços desertos, as pausas, para concentrar-se de alguma maneira nos tempos
plenos, positivos ou negativos, as penalidades, as desgraças ou as alegrias, que o como tantos sinais ou nós
na linha da minha vida.
101
“Compacto de uma vida a transbordar, agitada e nula.”
233
As reflexões de Jorge buscam uma resposta que sentido a sua vida e a sua morte
e evidenciam na obra a temática existencialista, como veremos no quinto capítulo deste
trabalho.
Para Bergson a reflexão é a “(...)única instância metódica capaz de fornecer o
fundamento e o instrumento da constituição do saber filosófico, na medida em que se põe
como a operação pela qual o pensamento se apropria de sua forma e o espírito se torna
consciente da extensão e da índole de seu poder de representação.”
234
E “(...)como pensar
imediato dá acesso ao absoluto.”
235
“A matéria do movimento de reflexão é a conexão contínua.(...)É a única
atividade que está à altura do espírito, a única que lhe é verdadeiramente própria.
Por isso a reflexão infinita expressa a dimensão infinita do espírito.(...)E é
concebida como ação infinita de um espírito tocado pela infinitude.”
236
Assim se expressa a busca de Jorge por uma verdade absoluta, pela compreensão de
toda uma existência através da recordação de momentos vividos que dêem sentido ao vazio
que o invade, como podemos observar :
“É uma hora suspensa, creio que é razão.”
237
*
“Estou só. E o universo à minha roda, poderoso e nulo. no centro disto uma
verdade intensa e não a atinjo – será do álcool ?”
238
A rememoração de acontecimentos passados associada às constantes reflexões dão à
personagem uma dimensão humana ligada à experiência do ser que se sabe finito e na
233
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.283.
234
Franklin LEOPOLDO E SILVA, Bergson, intuição e discurso filosófico, p.198.
235
Ibid., p.222.
236
Ibid., pp.223-224.
237
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.13.
238
Ibid., p.282.
102
circunstância em que Jorge se encontra, as lembranças surgem como pontos de fuga do
momento presente:
“Um instante, um sorriso, ó vida. Um instante apenas – será de mais? Um
momento breve de desatenção à morte que está em mim – será de mais?”
239
*
239
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.66.
103
4.3. A sensação do intemporal e a poeticidade
Como sensação humana ligada à vivência do tempo, faremos um estudo da sensação
do intemporal e sua conseqüência poética no texto.
A sensação do intemporal, de acordo com Maria Alzira Seixo, é instantânea e
passageira e se manifesta em fugacidade. E o registro dessa experiência com o tempo é uma
dimensão vivencial e metafísica, “(...)– uma espécie de penetração no próprio presente,
como quem se adentra em algo que involuntàriamente lhe polariza a atenção, e produz um
isolamento do instante difícilmente apreendido mas que o convence de uma paragem no
tempo.”
240
Em Nítido nulo essa espécie de paragem no tempo é empreendida pela personagem
não somente como um momentâneo aprofundamento do instante vivido ou alargamento do
tempo psicológico ligado à recordações, mas também como reflexões em busca de uma
revelação que dê sentido à sua existência:
“Diz-se que à hora da morte. Deve ser verdade, revê-se a vida toda. É o instante
infinito com a eternidade no centro.”
241
De acordo com Jacinto do Prado Coelho “A obra de ficção de Vergílio Ferreira,
como outras representativas da modernidade, encontra-se no limite da própria negação do
romance como história, como narrativa de algo situado no tempo. Jorra do instante vivido
em subjectividade profunda, aberta ao intemporal. Arrasta os elementos narrativos num
caudal poético-reflexivo.”
242
Na busca de uma resposta para o questionamento sobre a aparente inutilidade de
seus atos políticos e sua condenação, Jorge tenta se distanciar do inevitável passar das
horas, através de um mergulho em suas lembranças e divagações:
“Interminàvelmente, do alto das grades, o movimento das ondas. Um esforço
imenso, desenvolvido desde o alto, cresce, rebenta no vazio da espuma rasa
240
Maria Alzira SEIXO, Para um estudo da expressão do tempo, p.162.
241
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.64.
242
Jacinto COELHO, Vergílio Ferreira: um estilo de narrativa à beira do intemporal. In: Estudos sobre
Vergílio Ferreira, p.178.
104
para quê? devia ter um objectivo. E não. Como se o objectivo da força fosse
apenas o esgotar-se.”
243
Em suas divagações sobre a busca de um sentido para sua existência, Jorge associa
a vida ao movimento das ondas; vida e morte, princípio e fim de uma existência
aparentemente desprovida de qualquer sentido pois como condenado à espera da morte,
parece-lhe que viver não valeu à pena:
“Compacto de uma vida a transbordar, agitada e nula.”
244
*
“E de um extremo ao outro da esteira branca de areia, intérmina perdura,
obsessiva, não a onda mas a ondulação, impulso invisível a que novas ondas
nasçam sobre as ondas que morrem(...)”
245
Na busca por uma verdade absoluta, Jorge se reencontra num tempo mítico, tempo
da natureza e da vida, tempo cíclico que eternamente retorna:
“Respiro fundo à beira-mar e o poder do oceano entra em mim a calma do
universo. Que tu fiques, te demores, reabsorvas na imensidade o que é da minha
pequenez. Mas breve a minha pequenez a absorve a ela não que fugir. E
todavia. Quem sente os limites do seu corpo? E um corpo é tão limitado. Pobre
corpo tão frágil. É o meu absoluto. Tão instável.”
246
“Assim, a consciência que se situa no tempo percebe a origem não por situar-se na
origem do tempo, mas por viver a distância interna da duração que nos separa e nos
aproxima da origem. A distância temporal separa e aproxima porque o Tempo é tensão
qualitativa e não extensão espacial. Perceber esta tensão é assumir um ponto de vista no
infinito. A partir dele o filósofo e o artista narrarão a história interior dos seres, que nada
mais são do que traços deixados pelo Tempo.”
247
243
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.128.
244
Ibid., p.283.
245
Ibid., p.61.
246
Ibid., p.140.
247
Franklin LEOPOLDO E SILVA, Bergson, Proust, tensões do tempo. In: Tempo e história, p.153.
105
“Estou contando uma história, sei razoàvelmente o que é que quero
contar.(...)Estou contando uma história. Mas à beira-mar, chapinhando na água,
apanho conchas, sinto-me bem. Nos intervalos bebo.”
248
Através das lembranças, como as conchas que apanha na areia, Jorge se conta para
ainda se sentir vivo. “Os xamãs e os poetas sabem que todo o tempo entra em cada
momento do tempo que passa, sabem que viver no tempo e viver como tempo é abrir-se
para o presente este presentifica todos os tempos, atualiza o que foi no que é e faz do ser
um vir-a-ser.”
249
Entregue assim a um tempo ligado à contemplação e reflexões acerca da existência,
Jorge presume sua verdade:
“Então olhei à volta, sentei-me no centro de mim. Terrível e poderoso, da
imensidão dos séculos, a força realizada nas realizações dos homens, convergindo
para mim, eu o centro, princípio e fim, alfa e ómega, é assim que vem nos livros
sagrados.(...)Desço aos subterrâneos de mim, à parte oculta do meu ser, ao
enérgico princípio de quem sou. Ao começo do começo, à pura actividade,
vibração inquieta, vigoroso arranque, início sem início como podem iludir-
se?(...)Ser absoluto, mas às prestações.(...)O saldo de uma vida humana, mesmo
grande – que miséria.(...)Mas todo o passado do homem foi uma negação.(...)Só o
‘não’ é eterno, é a nossa forma divina.(...)A única verdade perene,
contestar.(...)”
250
Jorge reflete sobre seu passado de resistência ao que negava, única verdade no saldo
de sua vida, consciência da sua liberdade humana para lutar pelos valores nos quais
acreditava e assim ser criador de seu próprio destino.
“Esta facticidade da morte opaca, contudo, suscita na consciência da personagem
qualquer coisa como uma revolta criadora, um desafio, uma aposta, uma resistência
igualmente irracionais, sendo como é a negação bruta da consciência como não-mortal,
dessa morte cósmica, exterior, impessoal que no cão se cumpre.”
251
248
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp. 128-129.
249
Laymert Garcia dos SANTOS, O tempo mítico hoje. In: Tempo e história, p.198.
250
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp.143-147.
251
Eduardo LOURENÇO, O canto do signo: existência e literatura, p.100.
106
No momento em que se encontra diante da sua morte antecipada por seus atos no
passado, momento em que princípio e fim de sua existência se completam, Jorge se
interroga sobre a validade ou não de seu passado.
“Dessa obsessão e dessa monotonia, representada pela única e reiterada questão que
estrutura a sua obra: sentido da existência pessoal num universo sem sentido, é o próprio
texto romanesco a encenação óbvia e aquela que as diversas leituras dela (ideológica,
metafísica, simbólica) têm glosado com maior ou menor pertinência.”
252
A busca por um sentido para sua vida e morte, explícita nas reflexões de Jorge,
encontra na praia deserta a idéia de um mundo esvaziado de sentido no qual suas perguntas
continuarão sem respostas:
“O trágico é que saber não adianta. Isto é assim, vou r-me a fazer perguntas?
Porque a última resposta tem sempre atrás uma pergunta sem resposta, não vale à
pena insistir.”
253
E ligada à sensação do intemporal, sensação na qual Jorge expressa suas reflexões e
sentimentos e nos leva a conhecer a sua interioridade, temos como conseqüência a
poeticidade do texto ao mostrar a subjetividade da personagem, isto é, o que passa no seu
espírito.
Para Maria Alzira Seixo o intemporal está (...)fundamentalmente ligado ao lirismo
enquanto atitude que se situa fora do tempo na medida em que dele emerge(...).”
254
“Assim,
temporal e intemporal coexistem, não em atitude de conflito mas de acordo. Esmagador,
um; imperceptível o outro mas processando-se harmònicamente numa conciliação que à
primeira vista não secundaríamos.”
255
Conforme Jacinto Coelho a poeticidade no romance-monólogo não se liga ao jogo
tenso da temporalidade e do presente intemporal e sim à subjetividade do discurso.
256
252
Eduardo LOURENÇO, O canto do signo: existência e literatura, p.97.
253
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.141.
254
Maria Alzira SEIXO, Para um estudo da expressão do tempo, p.173.
255
Ibid., p.163.
256
Jacinto COELHO, Vergílio Ferreira: um estilo de narrativa à beira do intemporal. In: Estudos sobre
Vergílio Ferreira, p.180.
107
Ao revelar sua interioridade como um eu que se conta, Jorge expressa seus mais
profundos sentimentos diante da situação em que se encontra. Seus sentimentos são
projetados em suas lembranças e em seu discurso ao longo da tarde:
“A poesia identifica-se por ser a expressão do ‘eu’ por meio da linguagem
polivalente, ou seja, metafórica, enquanto a prosa se distingue por colocar a
tônica na apreensão do ‘não-eu’, empregando o mesmo tipo de linguagem. Desse
modo, a prosa poética se definiria como o texto literário em que se realizasse o
nexo íntimo entre as duas formas de expressão, a do ‘eu’ e a do ‘não-eu’. Longe
de ser pacífico, o encontro é marcado por uma tensão, de que o texto extrai toda a
sua força comunicativa.”
257
E como resultado da fusão do enredo e da poesia, Massaud Moisés cita várias
conseqüências, entre elas algumas que se ajustam à narrativa pela poeticidade contida no
texto. Assim temos uma narrativa com rememorações repletas de incertezas e sutilezas
oníricas o que leva a parecer que as rememorações se passam no interior de um eu que se
entrega ao devaneio. Os acontecimentos exteriores se perdem na introspecção anulando
dessa forma as diferenças. E como a poesia, a utilização da metáfora é bastante visível e
declarada.
258
Em Nítido nulo os conceitos existencialistas aparecem metaforizados ao longo do
texto, como por exemplo o cão, metáfora das pessoas que vivem presas às suas próprias
necessidades e não têm consciência de seu papel social no mundo.
O poético assim, se revela com uma “Linguagem plurissignificativa para exprimir a
polivalência das sensações, resultantes do embate com as coisas concretas e, especialmente,
da turbulência interior. Tempo e espaço, ação, tudo ganha múltiplos sentidos(...).”
259
A
passagem da tarde é, na realidade, a metáfora do movimento da vida se revelando na
interioridade de Jorge:
“As águas ardem a um lume vermelho ou menos metálico, fervilham de luz.
Passa na fogueira um barco ainda, já imprevisível. Todo branco de cal, como a
257
Massaud, MOISÉS. A criação literária, prosa II, p.26.
258
Ibid., p.29.
259
Maria Alzira SEIXO, Para um estudo da expressão do tempo, p.49.
108
casa de açúcar, avermelhada agora à contaminação do poente, de um branco de
casca de ovo. É uma associação que me surge, terá algum sinal poético?”
260
Na narrativa poética se processa a imersão do eu o do narrador como acontece
na poesia e o tempo é ligado à emoção. “Não se recorda, pois, a linearidade de uma série de
acontecimentos: o que ele traz até nós, e até si, são ‘os ecos angustiantes desses factos’ que
passaram mas cuja repercussão faz parte da totalidade do homem que actualmente é.”
261
“Afinal, a ideia,(...)de que o presente é a culminância do passado e do futuro, renovado
um, projectado o outro. Em nada lhe interessa a cronologia da história, uma vez que o seu
tempo é o resultado da depuração de vários tempos vividos(...)”
262
Conforme Benedito Nunes, para Heidegger “O poético extrai a sua capacidade
reveladora inesgotável do ser que solicita o pensamento, apelando para o dizer da
linguagem.(...)De certa maneira poesia e pensamento dizem o mesmo.”
263
Como o
pensamento reflexivo e filosófico de Jorge sobre a sua existência num mundo vazio de
sentido:
“O universo canalizou-se todo para ser pensamento no meu pensar(...)”
264
“Ao fundar aquilo que permanece, a poesia revela a essência humana a concreta
finitude do homem como ser-no-mundo,(...)tal como a maré vazante descerra a praia, a
palavra poética dimensiona o mundo e o próprio homem.
265
À espera de uma revelação, Jorge se volta para dentro de si onde a luz do sol é a
metáfora da razão, o mar infinito a metáfora da eternidade do mundo e as ondas cíclicas a
metáfora da vida:
“Vazio o mar agora, nítido nulo horizonte linear. Imperceptível une-se ao azul do
céu, infinitude absoluta inexistente, na linha inexistente da separação que os une.
A vida toda está aí.”
266
260
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.288.
261
Maria Alzira SEIXO, Para um estudo da expressão do tempo, p.133.
262
Ibid., p.142.
263
Benedito NUNES, Passagem para o poético, p.262.
264
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.229.
265
Benedito NUNES, Passagem para o poético, p.268.
109
Para Massaud Moisés “A reflexão aforística é, ao mesmo tempo, conhecimento e
emoção, como se os ventos da irracionalidade soprassem para dentro do
pensamento.(...)Sentir e pensar a um só tempo, um pensar que se derrama em frases
coordenadas, breves como hemistíquios, sem propósito aparente de rigor silogístico ou
científico. Cada parágrafo explode num jacto, numa irrupção nervosa, brotada de um
intelecto a funcionar em alta rotação, abrindo-se para os horizontes de onde nasce a
poesia.”
267
Em Nítido nulo a situação de Jorge agrava esse momento reflexivo pela
proximidade da morte violenta, o que dá ao seu discurso um tom trágico e angustiante. E ao
expor a interioridade da personagem através de um eu que se conta o texto adquire a
poeticidade ligada ao teor do discurso.
Assim a sensação do intemporal e os fenômenos da recordação e da imaginação
expressos no texto, através de recursos estilísticos, se unem para mostrar a subjetividade de
Jorge na difícil tarde que passa.
266
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.114.
267
Massaud, MOISÉS. A criação literária, prosa II, p.28.
110
5. A representação da experiência humana com o tempo em Nítido nulo
“– A estupidez maior do homem foi ter
inventado o tempo.”
Vergílio Ferreira, Nítido nulo, p.220.
Com base nos conteúdos filosóficos do Humanismo de Jean-Paul Sartre e do
Existencialismo de Martin Heidegger encontrados no texto, este capítulo se destina a
complementar as análises e os dados obtidos nos capítulos anteriores.
Destinado assim a interpretar os conteúdos filosóficos sugeridos pelos elementos
formais que reciprocamente se encontram no texto, este capítulo fará tal interpretação tendo
em vista a importância da recriação da subjetividade vivida pela personagem.
Jorge é a personagem que recria no texto a experiência humana com o tempo e nos
disponibiliza sua interioridade a partir de um longo discurso no qual, em um movimento de
auto-reflexão questionador e contraditório, reflete sobre o sentido da vida e da situação em
que se encontra, condenado à espera de sua execução.
Vimos no primeiro capítulo que os filósofos sempre se dedicaram à compreensão do
tempo. Para Parmênides o ser está num eterno presente e por isso fora da sucessão do
tempo. Heráclito relaciona o tempo à noção de movimento e mudança, enquanto Platão
diz ser o tempo o reflexo da realidade.
Bergson conceitualiza o tempo de duração de um acontecimento apreendido pela
consciência como tempo vivo ou durée, diferentemente do tempo físico baseado no
movimento do sol em torno da terra conforme Aristóteles.
Mas tanto Aristóteles, quanto Bergson e Santo Agostinho concordam que o tempo
existe no espírito humano, assim como Sartre, para quem somente no ser humano a
passagem do tempo, o que Heidegger compreende como conscientização da própria
finitude humana, ou seja, estar-no-tempo é ser-para-a-morte.
Os momentos de lembranças, divagações e reflexões da personagem formam o
tempo psicológico na narrativa, pois “(...)provém de elementos biológicos, psicológicos e
culturais que determinarão a constituição de uma maneira original e individual de
experienciar o tempo. Tal experiência subjetiva com o tempo é objetivável através de
111
metáforas ou do relato de situações concretas. Cada sujeito vai viver o tempo desde sua
individualidade, sua experiência pessoal e intransferível, fazendo com que sua ocorrência e
alterações sejam singulares e únicas. Trata-se aqui do tempo associado aos sentimentos, aos
afetos, às fantasias, aos desejos, às crenças, às maneiras de ser e às circunstâncias.”
268
Assim, ligado a fatores emocionais, o tempo psicológico existe em simultaneidade
com o tempo físico, medido pelos relógios e calendários, tempo ligado aos ciclos da
natureza e ao movimento do sol em torno da terra.
Vergílio Ferreira utiliza o emprego dos tempos verbais, a funcionalidade dos
discursos e uma sintaxe narrativa apropriada para criar no texto a simultaneidade, as
tensões, as intersecções e sobreposições dos tempos explorados.
No item 3.1. os tempos verbais, vimos que para manifestar a concomitância entre
os acontecimentos narrados e o momento presente da enunciação há a grande utilização dos
verbos no tempo presente do modo indicativo e do advérbio agora. Assim como o uso de
advérbios que marcam a contraposição de temporalidades e da conjunção enquanto para
exprimir a simultaneidade dos fatos e fusão de distintas temporalidades.
No mesmo capítulo, vimos que para manifestar a interioridade da personagem e dar
o efeito de sentido de reatualização do passado, o autor usa amplamente o discurso direto.
Figuras de linguagem também são usadas para criar a simultaneidade e intersecção dos
planos temporais na narrativa.
E com a função de imitar o fluxo do pensamento humano e o movimento da
consciência entre o tempo psicológico cuja medida depende da experiência individual e o
tempo físico, marcado pela luz do sol, o autor utiliza uma sintaxe narrativa com processos
de coordenações e subordinações de frases, além de frases fragmentárias e incompletas, que
ao eliminarem o que está subentendido dão fluidez à narrativa e simulam o movimento da
consciência de Jorge.
Para a reprodução da simultaneidade dos tempos, o autor também se vale da técnica
interseccionista, que rompe a ordem usual ao colocar vocábulos pertencentes a
temporalidades distintas na mesma frase. “Tal estágio da linguagem poética é promovido
268
Marília Pereira Bueno MILLAN, A experiência subjetiva com o tempo no mundo contemporâneo:
ressonâncias na clínica psicanalítica, p.131.
112
graças às correspondências significativas que se instauram entre os diferentes vocábulos,
graças à nova cadeia semântica que elas estabelecem.
Denominou-se ao emprego deste processo em poesia ‘interseccionismo’. Na prosa,
a utilização do processo interseccionista por Vergílio Ferreira, leva-nos àquilo que
convencionamos chamar escritura.”
269
De acordo com Maria Lúcia Dal Farra, ao resultado da intersecção dos planos
temporais, se o nome de escritura, na qual a fusão entre narrativa e discurso, e a
exclusão definitiva da distância entre personagem e narrador.
Utilizando-se desses recursos estilísticos, Vergílio Ferreira instaura em seu texto a
subjetividade temporal na qual a personagem pode experimentar as sensações humanas
ligadas ao tempo.
No quarto capítulo, dedicado às consequências da criação da subjetividade, vimos as
sensações humanas ligadas à temporalidade que compõem a interioridade da personagem
Jorge. Assim temos os fenômenos da recordação e da imaginação, que trazem as
lembranças de emoções, pessoas e espaços pertencentes aos acontecimentos passados,
juntamente com as reflexões que se seguem em função dessas lembranças.
O modo como os espaços pertencentes ao passado são lembrados auxilia na
compreensão dos sentimentos da personagem e são sempre ligados a sensações como o frio
e o calor que se relacionam com os invernos e os verões do passado:
“Marcado pelo destino desde uma mande Inverno, uma tarde de Verão, eu
corria pelo meio da estrada comendo o que a carroça ia largando atrás. Depois
a carroça desapareceu ao longe, e eu sentei-me à beira da estrada. Estava
comigo mesmo. E isso é terrível.”
270
*
“Creio ser Inverno não apenas pelo ar frio, mas por uma certa adstringência do
meu corpo, sensação de pequenez, de abandono triste.”
271
*
“Há-de ser Verão, porque sinto agora muito calor.”
272
269
Maria Lúcia DAL FARRA, O narrador ensimesmado, p.112.
270
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.135
271
Ibid., p.47.
272
Ibid., p.132.
113
Conforme Bachelard “A lembrança pura não tem data. Tem uma estação. É a
estação que constitui a marca fundamental das lembranças.(...)A estação abre o mundo,
mundos em que cada sonhador vê expandir-se o seu próprio ser.”
273
Em Nítido nulo há a descrição de um espaço ligado ao tempo físico, como a
paisagem na qual é refletida o movimento da luz do sol e visualizada por Jorge da janela da
sala; e a descrição de um espaço ligado ao tempo psicológico, como a casa da tia Matilde,
que só existe nas lembranças de Jorge:
“Um barco passa, leva já a noite consigo, fiadas de luzes acesas.”
274
*
“Nesse corredor está o meu quarto, tem uma janela. A janela dá para uma figueira
no quintal em frente e que abre os seus ramos quase ao alcance da minha mão.”
275
E nessas descrições percebemos o ir e vir da consciência no processo de
lembranças, associando espaços visualizados por Jorge no seu momento presente com
espaços recriados pela memória.
Jorge reflete sobre seus atos políticos que o levaram à morte enquanto recorda e a
narrativa se desenvolve entre o ritmo das lembranças e do movimento da luz do sol,
imitando a experiência humana com a temporalidade.
Jorge vivencia a experiência conflitiva com a temporalidade, ora em um tempo
psicológico, marcado pelas lembranças e reflexões, ora em um tempo físico, marcado pelo
passar das horas, que significam o quanto ainda tem de vida e o quanto falta para a sua
morte. E na tentativa de fugir da precisão do tempo físico, que lhe causa tanta angústia,
Jorge se prende a representações vagas como a luz do sol nas coisas pois marcam o passar
das horas de forma mais vaga e um pouco menos angustiante.
A experiência de Jorge como ser no tempo e ser para a morte, agravada por sua
situação, o leva a momentos de vivências metafísicas que se relacionam à sensação do
intemporal:
“(...)– que horas são? Abre o sol o sulco da minha imaginação trémula.
276
273
Gaston BACHELARD, A poética do devaneio, pp. 111-112.
274
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.299.
275
Ibid., p.27.
114
Essa sensação de que há uma suspensão do tempo marcado pelas horas e um
aprofundamento do momento interior gera no texto a poeticidade pela expressão da
subjetividade de Jorge que através de uma linguagem metafórica revela o pensamento do
autor, ligado às correntes filosóficas do Existencialismo e do Humanismo:
De acordo com Sartre “(...)o homem é livre, o homem é liberdade.(...)É o que
traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque
não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é
responsável por tudo quanto fizer.”
277
Jorge também expressa seu pensamento acerca da liberdade humana:
“O homem é um ser livre’. Mas é mais difícil ser livre do que puxar uma
carroça.(...)Porque puxar uma carroça é ser puxado por ela pela razão de haver
ordens para puxar, ou haver carroça para ser puxada. Ou ser mesmo um
passatempo passar o tempo puxando. Mas ser livre é inventar a razão de tudo sem
haver absolutamente razão nenhuma para nada.”
278
Assim o sentimento de dificuldade ou angústia proporcionado pela concepção de
liberdade humana de Sartre se deve à responsabilidade de nossos próprios atos.
“(...)E um halo de eternidade se nos abre no tempo. Abre-se-nos no aprofundamento
do próprio instante, não concebido este num sentido temporal (em que é absurdo, que
nada separa a passagem do futuro do passado) mas numa dimensão vivencial, metafísica,
digamos, numa espécie de suspensão do mesmo tempo.(...)A apreensão do puro presente é
a apreensão do puro ser-se(...)”
279
A poeticidade de Nítido nulo se faz desde a subjetividade do discurso no qual Jorge
expõe suas emoções diante da temporalidade até as metáforas dos conceitos filosóficos que
questionam o mistério da existência.
276
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.201.
277
Jean-Paul SARTRE, Redação de uma conferência de Sartre. In: O existencialismo é um humanismo,
pp.227-228.
278
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp.304-305.
279
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, p.103.
115
Diante da certeza de um fim determinado, Jorge se volta para seu próprio eu e
questiona se a redenção do homem seria pela ação política, pela arte, pela descoberta do
próprio eu ou talvez pela continuação da vida através de um filho, pois o valor dado pelos
conceitos do Existencialismo à condição humana é de construtor de sua própria realidade:
“O homem é que é o deus do homem(...)”
280
Após fazermos uma breve descrição das partes constituintes deste trabalho,
traçaremos uma relação entre elas, tendo como eixo condutor os conceitos filosóficos do
Existencialismo e do Humanismo que se ajustem à problemática do ser na temporalidade.
Sartre define o Existencialismo “(...)a partir do princípio de que, não existindo
Deus, pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe
antes de poder ser definido por um ‘conceito’, sendo este ser ‘o homem’, ou, como diz
Heidegger, a ‘realidade humana’.”
281
“É realizando-se que o homem se define, é implicando-se no mundo,
compreendendo-o, que ele o esclarece e não partindo de um dado prévio com o qual
confrontaria o que de si descobre e o que descobre do ‘ser’.”
282
De acordo com os pensamentos existencialistas de Sartre“(...)o Existencialismo
propôs-se reconduzir o homem ao seu reino.(...)não um reino que mantenha a alienação,
mas que instale, sim, a liberdade do homem, o seu encontro consigo em verdade e
plenitude.
Mas a verdade do homem implica imediatamente a sua justificação em face do que
o nega radicalmente, ou seja a morte.”
283
A metáfora do ser no tempo em um mundo destituido de sentido é intensificada por
significados simbólicos de elementos como o abandono e o desamparo em sermos nós a
escolher o nosso ser; como a sala vazia ou a praia deserta o mundo esvaziado de sentido; e
finalmente o ser que nesse contexto caminha através de um conflitivo tempo para o nada
que é a morte.
280
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.44.
281
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, p.62.
282
Ibid., p.64.
283
Ibid., p.71.
116
Sartre parte “(...)do princípio de que para o homem, ‘a existência precede a
essência’(...)Se a existência precede a essência, o homem, não tendo uma natureza prefixa,
faz-se fazendo-se, constrói-se o que é, determina-se essência por aquilo que realiza.
Partindo do nada, sem leis inscritas numa vontade divina, abandonado a si, dotado além
disso de uma liberdade necessária e total, o homem tem de constituir-se uma Tábua de
valores e de assumi-los em responsabilidade.”
284
“Porque o homem não existe para ser, mas
é sendo ou existe sendo.”
285
“Mas é exactamente no ‘ser para’ que originariamente se abre a
temporalidade.(...)Na realidade, o passado’ presente’ e ‘futuro’ são constituições
secundárias do tempo fundamental que é o estarmos sendo como um puro presente(...)O
homem é.(...) a partir de um puro presente que em rigor não é presente, porque é o puro
estar-se sendo.(...)Porque o presente não existe nem como instante: o presente presentifica-
se sob a forma de fuga. Se, porém, definimos o ser-se como fuga’, se esta ‘fuga’
inexoravelmente nos remete para uma relação com o que fica, tal relação pode determinar-
se pela separação súbita e radical de toda realidade concreta, pela suspensão absoluta e
eis-nos revertidos a um conceito original de tempo, que menos (ou mais) que um conceito,
é uma pura vivência de se estar sendo.”
286
também o cão “(...) presença essencial e constante no universo vergiliano
representa como sempre a imagem deformada do homem, o infrahumano instintivo; a
parte animal, não-consciente; a parte material grosseira que pela espiritualidade
consciente pode ascender à grandeza da condição humana.”
287
Na narrativa a presença do cão remete à idéia de oposição entre o humano e o
animal pois “(...)o ser é livre porque é consciente de algo e implicitamente de si próprio e é
isso que o separa do animal. Porque o animal vive colado às coisas que determina nos
estritos limites de uma acção-reacção, não se sabe a si próprio enquanto as vê, não as cinge
de negação, não as determina verdadeiramente, não as visa com ‘intencionalidade’, ou seja
com uma intenção, um fim especial e consciente, não é, em suma, ‘livre’.”
288
284
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, p.187.
285
Ibid., p.191.
286
Ibid., pp.101-102.
287
Nelly COELHO, Vergílio Ferreira: ficionista da condição humana In: Escritores portugueses, p.222.
288
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, p.18.
117
“(...)vejo vir de novo o cão, suponho que é o mesmo. Ligado a ele, à sua
liberdade presa, não me alegro muito com isso.”
289
Jorge também relaciona a alienação do homem não consciente de sua liberdade à
condição animal do cão, que apesar de estar completamente livre é prisioneiro de sua
alienação e primitivismo:
“O guarda, vejo-o, estará a pensá-lo também? o é provável, um guarda não
pensa, guarda o que pensam os outros.”
290
*
“Um homem é pequeno quando diz, e é grande quando nega, porque é o modo
mais alto de dizer. Mas fundamentalmente, todo o passado do homem foi uma
negação. Poucas vezes, talvez, porque ser animal é mais cómodo.”
291
“A mais longínqua afirmação de liberdade, ou seja o seu anúncio primeiro, reside,
depois dos Estóicos e de Descartes, diz-nos Sartre, na possibilidade de dizer ‘não’.(...)A
liberdade portanto não é uma qualidade que acrescente às qualidades que já possuía como
homem: a liberdade é o que precisamente me estrutura como homem, porque é uma
designação específica da própria qualidade de ser consciente, de poder negar, de
transcender. A liberdade é o que define estritamente a minha possibilidade de me recusar
como en-soi (coisa), projectando-me para além disso ou, se se quiser, para além de
mim.”
292
“Assim são normalmente os meus actos que me esclarecem sobre o que realmente
sou, sobre aquilo que realmente escolhi, sobre a minha liberdade.”
293
De posse da sua liberdade Jorge escolheu lutar por suas idéias. As granadas que
jogou em sua própria estátua evidenciam a resistência, a liberdade de negar o sistema que
ajudou a estabelecer, pois “(...)só em face de uma situação concreta, dos nossos actos,
poderemos saber o que somos realmente, se cobardes, se corajosos, não esquecendo o
289
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, p.257.
290
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.15.
291
Ibid., p.146.
292
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, pp.117-118.
293
Ibid., p.120.
118
problema moral que se não cifra aos resultados práticos mas ainda ao juízo que formarmos
sobre nós(...)”.
294
Sua condenação na condição de homem não de idéias mas também de ações
garantirá à memória de Jorge uma morte digna dele, ou seja, uma morte por motivos
políticos, morte por ideais. E o situa como “(...)herói sartriano em pleno confronto com o
mundo ( o da tortura, o da degradação social, o da luta política).”
295
Porém a mesma liberdade necessária que ao homem a possibilidade de reagir e
recusar, levá-o a assumir a responsabilidade por seus atos praticados em liberdade. “Daí
que a ‘angústia se apodere de nós em face de uma responsabilidade total: a nossa ‘escolha’
é a escolha do mundo,(...)assim nós somos ‘responsáveis por nós e pelos outros.”
296
Vimos que a experiência de se sentir no tempo leva a personagem a reflexões nas
quais estão expostos os pensamentos existencialistas de Sartre. “A temporalidade é a
estrutura interna da consciência; para esta, ser é o mesmo que passar, e isso é a
temporalidade.”
297
Entregue às horas que o aproximam de sua execução e aos seus devaneios
reflexivos, Jorge se angustia ante a certeza da morte tão próxima.
“Assumir a morte, porém, envolve um problema que deriva justamente de o homem
ser antecipação.(...)Mas independentemente da antecipada e secundária experiência que eu
da morte possa fazer através dos conhecidos que morrem(...)eu não vivo a morte como um
dado, um traço que peça uma soma(...)mas justamente como possibilidade.”
298
“A certeza da morte é em tal caso uma pseudo-certeza. A morte torna possível uma
radical impossibilidade da realidade humana, porque o próprio da realidade humana é o
‘poder-ser’ e a morte anula esse ‘poder-ser’, torna possível o impossível.”
299
“Não se espera a morte como o facto de morrer, de ‘ficar morto’ que isso escapa
às possibilidades de ‘esperar’; espera-se, por antecipação, a ‘possibilidade da radical
impossibilidade’ que a ‘angústia’ revela.(...)Não se trata da morte ‘física’, o puro
desaparecimento do que somos, facilmente sofismável, contornável por todas as espécies de
294
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, p.160.
295
Ibid., p.166.
296
Ibid., p.188.
297
Luiz MOUTINHO, Sartre: existencialismo e liberdade, p.69.
298
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, p.76.
299
Ibid., p.78.
119
‘fugas’, desde a crença na imortalidade, ao estoicismo, ao prazer imediato: trata-se da
aparição da absurda impossibilidade-possível, da certeza de que um nada total nos espera
a nós, tão evidentemente instalados em necessidade. O que se descobre na morte para uma
existência autêntica, não é o ‘terror’ – perfeitamente superável: é o espanto.”
300
“Vou agora olhar o mar, em baixo, o arrepio do abismo. negro mais profundo
assim. E enquanto o olho, um inesperado silêncio, de súbito dou conta, o coro
calou-se. Mas pouco a pouco, certo ritmado, um rumor cresce
– Morte! Morte!(...)”
301
“O ser emerge realmente para a existência, quando emergimos dele, o
transcendemos. Mas eu transcendo-o originariamente pela concepção do Nada que se funda
no total desaparecimento do ser. A tonalidade afectiva com que se me revela o Nada é a
‘angústia’.(...)A angústia portanto procede de um súbito deslocarmo-nos das coisas, de um
súbito interrogarmo-nos sobre o porquê da sua existência, de uma súbita aparição da sua
injustificabilidade, de um repentino retirarmo-nos da sólida e animal instalação nelas.”
302
O conflito existencial de Nítido nulo se forma na subjetividade, isto é, no que passa
unicamente no espírito humano; no ser que se confronta com a temporalidade e assim com
sua própria finitude. A subjetividade é criada na temporalidade e, simultaneamente, a
cria.”
303
Sem valores divinos o homem cria seus próprios valores e é livre para negar o que
vai contra seus ideais e sua verdade. “O homem deve ser responsável, diz Sartre, pois é
livre projeto de si mesmo, porque escolhe livremente seus fins, seu futuro.
304
Porém, como um homem de idéias pode agir ou mesmo se fazer entender num
mundo despovoado e nulo como a praia deserta ou num mundo onde o individualismo
impossibilita a comunicação, como o mendigo que ninguém ouvia ou mesmo Jorge em sua
audiência:
300
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, p.80.
301
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.299-300.
302
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, p.82.
303
Marília Pereira Bueno MILLAN, A experiência subjetiva com o tempo no mundo contemporâneo:
ressonâncias na clínica psicanalítica, p.131.
304
Luiz MOUTINHO, Sartre: existencialismo e liberdade, p.78.
120
“– Desgraçados de todo o mundo, ouvi-me!”
305
*
“Mas a certa altura reparei que estava só a falar para mim. Já sabia que ia falar só
para mim. Mas esperava que toda a gente ouvisse falar-me.
E dissesse
– Como ele fala bem
que é o começo (ou o fim?) de se dizer que é verdade
Mas ninguém me ouvia. Assim, calei-me. Eles disseram ainda morte morte. Eu
continuei calado.”
306
“Assim o limite de um humanismo não está no limitarmos a eficácia ao campo do
transmissível, mas no garantir a este a autenticidade pela voz do intransmissível; não reside
num ser-com mas num ser-eu-com.”
307
Mas no mundo em que vivemos como nos ocuparmos com os valores do espírito?
Segundo Marília Millan um imediatismo por causa da negação da subjetividade, da
temporalidade e da morte.
“A experiência subjetiva demanda um tempo que destoa da velocidade impressa
pelas máquinas. A noção de tempo nos confronta com nossa própria finitude e com a
necessidade de zelarmos pelo que conquistamos, para que as gerações futuras possam
usufruir de tais conquistas.
A desvalorização de tudo o que diz respeito ao mundo mental e a negação da
experiência temporal nos atira na aridez de um mundo repleto de objetos que, reificados,
ocupam o lugar dos sujeitos.”
308
Porém para Sartre: “Não outro universo senão o universo humano, o universo da
subjectividade humana. É a esta ligação da transcendência, como estimulante do homem
não no sentido de que Deus é transcendente, mas no sentido de que o homem não está
fechado em si mesmo mas presente sempre num universo humano, é a isso que chamamos
humanismo existencialista.”
309
305
Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, p.15.
306
Ibid., p.308.
307
Ibid., p.108.
308
Marília Pereira Bueno MILLAN, A experiência subjetiva com o tempo no mundo contemporâneo:
ressonâncias na clínica psicanalítica, pp. 167-168.
309
Vergílio FERREIRA, O existencialismo é um humanismo, pp.268-269.
121
Conclusão
A análise da narrativa de tido nulo destacou a funcionalidade da criação de duas
temporalidades ao longo do texto, o tempo físico, medido pelos relógios e socialmente
compartilhado e o tempo psicológico, marcado pelas experiências individuais de cada ser.
O tempo sico marcado pela declinação da luz do sol nas paisagens vista pela
personagem abrange uma tarde inteira, com a chegada da noite quando é suspenso e
retomado na manhã do fuzilamento.
Em oposição ao tempo físico, estudamos o tempo psicológico e os fenômenos
ligados a ele, como as recordações, as reflexões e a sensação do intemporal durante a tarde
que passa até o momento final da narrativa.
Pensamos no decorrer do trabalho o tempo físico como algo externo a nós e
determinado pelo movimento do sol em torno da terra e o tempo psicológico como algo
dependente de nossas experiências individuais.
Com a instauração dessa dupla temporalidade no texto foi possível à personagem
experimentar a sensação exclusivamente humana de estar no tempo, ou seja, a sensação da
consciência que transita ora num tempo físico, ora num tempo psicológico.
Essa experiência com a temporalidade é manifestada pela personagem por meio da
subjetividade, o que dá ao texto um grande teor poético.
Condenado à morte e à espera de sua execução, a personagem nos a conhecer os
mais profundos sentimentos de um ser que na expectativa da morte iminente expressa seu
conflito existencial e questionador acerca de sua vida e da própria existência humana.
Em função de um estudo voltado à subjetividade, fizemos uma interpretação tendo
como eixo norteador os conceitos existencialistas de Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre,
já que os conteúdos das reflexões da personagem nos remetem a eles.
Dessa forma pudemos refletir sobre a conflitante experiência do ser no tempo,
dividido entre duas temporalidades distintas, mas que se apresentam à consciência
simultaneamente pois nosso passado é parte integrante e indissociável de nosso momento
presente.
122
Nesse momento voltamos à pergunta primeira deste trabalho e respondemos que
sim, que é possível transferir para a personagem de papel a complexa experiência do ser
humano com a subjetividade do tempo na medida que se utilizem técnicas específicas de
linguagem.
Ao finalizar este trabalho no qual refletimos sobre o tempo, esperamos que as
questões aqui expostas possam suscitar novas reflexões acerca desse tema tão fascinante e
instigador:
“O que faz da esperança um prazer tão intenso é que o futuro, que está à nossa
disposição, nos surge ao mesmo tempo sob uma imensidão de formas, igualmente
risonhas, igualmente possíveis. Ainda que a mais desejada se realize, é preciso
sacrificar as outras, e teremos perdido muito. A idéia do futuro, prenhe de uma
infinidade de possíveis, é pois mais fecunda do que o próprio futuro, e é por isso
que mais encanto na esperança do que na posse, no sonho do que na
realidade.”
310
*
310
Henri BERGSON, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, p.16.
123
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