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“O banheiro calculava a utilidade de cada onda pela distância e altura do
arrebentamento, mandava-nos progredir, recuar. Até que surgia uma onda sem
defeitos, ordenava para os dois lados
– agora
e todos apanhávamos irmãmente uma chumbada de areia. Marta, porém, esguia e
longa, loura, esguia no maillot branco. Com a mão fina esconde os cabelos louros
na touca branca de borracha – se tu viesses.
Diáfana aparição, em vestes flutuantes ao alto da falésia. Ou virás nua talvez, eu
erguerei a mão, gritarei o teu nome
– Marta
– Alguma coisa?
não, não quero nada. Só se for para urinar, mas ainda é cedo, ainda aguento. E
enquanto aguento, Marta entra na água, saltitando friorenta sobre as ondas
pequeninas por causa dos arrepios, branca. Eu ao lado, cabeludo. E rimos tanto,
ela ri. Esplendorosa de graça, de frescura – oh, por favor. Frases não. Até que,
linear, sobre as águas, estende-se, e em gestos breves vai singrando como um
barco normando, corta as águas para o infinito – que haverá no infinito?
– Sei que me esperas até ao último instante mas eu não. Nado mal, faço um
estardalhaço medonho e avanço pouco. Grácil, saúda-me de longe, a mão linda
no ar. Depois regressamos à barraca, Dolores esfrega-me vigorosamente. Dá-me
um naco de pão, como-o cá fora, elas lá dentro. Bato o queixo, tenho as mãos
roxas – o frescor salino do ar. Avivo a atenção, sinto-o e bebo uma golada de
cerveja. Pequeninas bolhas na efervescência picante na garganta, no nariz – tia
Matilde e Dolores ralham dentro da barraca. Finalmente Marta regressa.
Aguardo-a para cá de aventuras marinhas, perto da terra da minha segurança. Ela
chega enfim aonde eu, temos pé, não nado senão aí. E rimos de novo na evidência
da luz, esgotados e felizes. Marta tira a touca, os cabelos desenovelam-se, ela
sacode-os húmidos ao esplendor da manhã. E de mãos dadas, os pés rangendo na
areia resvaladiça, avançamos difìcilmente – deslizamos rápidos sobre as águas na
sugestão da onda espraiada e em refluxo. Depois estiramo-nos ao sol.”
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Na primeira citação a praia mencionada é a da infância, frequentada por jorge, tia
Matilde e Dolores. Na segunda citação a praia é agora frequentada por Marta. E Jorge nos
informa que tia Matilde nessa época já não era mais viva. Na realidade nem sabemos se é a
mesma praia ou se é a praia que significa qualquer praia. No terceiro exemplo os
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Vergílio FERREIRA, Nítido nulo, pp.104-105.