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falso mestre certamente teria reivindicado privilégios, de que ele, apóstolo verdadeiro, abre
mão, porque anunciar o evangelho é “uma tarefa confiada” a ele. Quem se posicionar contra
ele posiciona-se, portanto, contra tudo o que ele representa, contra a fé e contra Deus
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A própria noção de “heresia” carrega em si essa idéia de um apego voluntário ao mal, sendo a
heresia a ruptura do consenso. Como lembra um texto medieval forjado e utilizado dentro do contexto
teológico de que trata este trabalho, a palavra grega haeresis tem seu equivalente latino no substantivo
electio, “eleição”, “escolha”. Haeresis est sententia humano sensu electa – scriptura sancta contraria
– palam edocta – pertinaciter defensa. Haeresis graece, electio latine (in Le Goff, 1995, 2). A mesma
etimologia havia sido empregada por Tomás de Aquino: haeresis graece ab electione dicitur ( Summa
Theologica, II, II, 11, art. 1). A palavra heresia, portanto, assim como seu antônimo, ortodoxia, pode
ser usada com absoluta propriedade apenas e tão somente naqueles casos em que há uma Verdade a
que aderir ou à qual se opor, como nas religiões de revelação, em que a fé é vista como um
assentimento irrestrito a uma realidade objetiva e externa, compartilhada por toda a comunidade. Há
um conjunto de verdades, inegociável e admitido por todos, ao qual o ortodoxo adere espiritual e
socialmente, mas a que o herege dá seu consentimento apenas parcial. Sem deixar de ser cristão, ou
talvez até mesmo porque tente sê-lo em demasia, o herege é aquele que quebra a unidade do sistema
ao negar sua filiação ao corpus christianum como um todo. Dessa forma, sua electio torna patente a
possibilidade de ruptura e de colapso de toda a estrutura. O perigo que ele representa deixou de ser
mortal apenas muito recentemente, quando a tolerância religiosa, como aspecto de um sistema
jurídico, converteu-se lentamente em indiferença (ver a Introduzione de Stefano Visentin ao tratado
La persecuzione degli eretici, de Sébastien Castellion: non “de constituenda religione, sed de
constituenda republica”, 1997, VII).
Mas o herege não apenas faz uma escolha, mas também a ela se apega pertinaciter. Esta
pertinacia é uma característica constitutiva do herege, que não o seria se não persistisse na
dissidência. Para que uma heresia apareça, é preciso que o indivíduo ou o grupo que a advogam não
apenas se separem da comunidade, mas que permaneçam separados e tenham plena consciência dessa
separação (in Le Goff, 1995, 7). Nesse sentido, o caso dos anabatistas é exemplar. Com seus valores
sobretudo éticos e com seu ideal de amor fraterno, organizaram-se à maneira das primitivas
comunidades cristãs, tais como as supunham. A comunhão de bens era seu ideal de comportamento
cristão, bem como o total afastamento do poder civil, negando peremptoriamente qualquer
intercâmbio ou fusão entre Igreja e Estado. Para eles, a fórmula “rei cristão” carregava em si uma
contradição insolúvel e irreconciliável, e que a Igreja tivesse um braço secular e armado, aplicando
torturas e penas capitais, era nada menos que a prova cabal de que não se tratava da verdadeira Igreja
fundada pelo Cristo. Além disso, advogavam o batismo adulto, o que os obrigava necessariamente a
praticar o rebatismo, o qual estava condenado desde o século V, quando os imperadores Teodósio e
Honório proibiram o segundo batismo dos donatistas, “por temor de uma pena severíssima”. Aos
“homens de espírito depravado, que se empenham em fazer aquilo que está proibido”, as penas
variavam entre confisco de bens, desterro, privação de heranças e até mesmo castigos corporais. A
pena capital, porém, não era aplicada. Mas se os donatistas haviam sofrido punições e desterro, os
anabatistas foram perseguidos até a morte. Em seu Edito de Espira, de 23 de abril de 1529, Carlos V,
o “imperador romano, supremo advogado e guardião de nossa fé cristã”, parece ter desejado superar
o Código Teodosiano, de 413. Em seu edito, o imperador afirma que “ser batizado de novo ou por
segunda vez” está “proibido no direito imperial”, “sob pena de morte”. Os anabatistas e “seus
caprichosos, tendenciosos e revoltosos sequazes” são o alvo dessa lei, que ordena que “todos os
anabatistas e todos os homens e mulheres que tenham sido rebatizados, sempre que estejam na idade
da razão, sejam condenados à morte e privados da vida natural mediante a fogueira, a espada e coisas
semelhantes”. E aconselha ainda “que não se mostre o menor sinal de clemência para com nenhum
deles, nem com os mencionados pseudo-pregadores, instigadores, vagabundos e tumultuosos
incitadores do dito vício do anabatismo” (Williams, 1983, 273-4).