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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS
ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO E DE LEGITIMAÇÃO
DO ETHOS NA CAUSA VERITATIS:
MIGUEL SERVET E AS POLÊMICAS RELIGIOSAS DO SÉCULO XVI
Elaine Cristine Sartorelli
Orientadora: Profa. Dra. Ingeborg Braren
São Paulo
2005
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Clássicas,
do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, para obtenção do
título de doutora em Letras
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2
Ao Paulo, por tudo.
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AGRADECIMENTOS
Meu primeiro agradecimento não poderia ser senão à Profa. Dra. Ingeborg Braren,
que, com supervisão constante e atenção inigualável, muitas vezes em momentos difíceis
para ambas, não permitiu jamais que eu me esquecesse do principal. Agradeço, pois, a ela,
pelos muitos anos de convivência e de aprendizado, muito além do acadêmico.
Devo um agradecimento especial também a Ángel Alcalá, pelo carinho com que
acolheu o “milagro del servetismo” que lhe pareceu a existência uma servetista brasileira, e
por todos os livros que me enviou em mais de dez anos de amizade à distância.
Merecem também todo meu reconhecimento os colegas e amigos do Instituto de
Estudios Sijenenses Miguel Servet, especialmente Sergio Baches Opi, e do Servetus
International Institute, a quem abandonei imperdoavelmente neste último ano de tese.
Pelas indicações e comentários no Exame de Qualificação, agradeço também
imensamente à Profa. Dra. Angélica Chiappetta e ao Prof. Dr. Paulo Sérgio de Vasconcellos.
A este, por tudo, com amor, respeito e admiração, está dedicada esta tese.
Agradeço também a meu grande amigo Clóvis Pareiko, que, em suas viagens pela
Europa, tantas vezes deixou de fazer seus passeios para procurar livros para mim, às vezes
copiando à mão trechos de obras que não podiam ser fotocopiadas.
Uma menção especial também a meus colegas e amigos do DLCV, principalmente
aos professores da Área de Língua e Literatura Latina.
Sou também muito grata a minha pequena família: a minha mãe, Lourdes, e a minhas
irmãs, Viviane e Claudia. E registro um agradecimento tardio a meu pai, que se foi enquanto
eu aguardava meu exemplar fac-simile da Restitutio, que chegou dias depois de sua morte.
Minha gratidão se estende ainda a todos os meus amigos, tantas vezes levados por
mim a se envolver em distantes e provavelmente desinteressantes polêmicas quinhentistas.
E uma palavra especial para Isabella Tardin Cardoso, que tão gentil e generosamente
me cedeu seu apartamento, no qual tive o tempo e o silêncio necessários para ler, escrever e
dar a andamento a esta pesquisa.
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RESUMO
ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO E DE LEGITIMAÇÃO
DO ETHOS NA CAUSA VERITATIS:
MIGUEL SERVET E AS POLÊMICAS RELIGIOSAS DO SÉCULO XVI
Esta tese tem como objetivo apontar e comentar as estratégias de construção e de
legitimação de um ethos de advogado da causa ueritatis nas polêmicas religiosas do culo
XVI. Trata-se aqui de defender uma posição num contexto em que há um Deus e há
uma Verdade, e, portanto, somente uma interpretação é verdadeira. O autor cristão envolvido
em polêmicas precisa, pois, provar que ele é o “enviado”, o nuntius que proclama a
mensagem com simplicidade, ao passo que seus oponentes são os “falsos mestres” que, para
dissimular suas mentiras, ocultam-nas sob palavras artisticamente trabalhadas. Assim, não
apenas a construção do ethos “positivo” de um está vinculada à desconstrução (ou destruição)
do ethos do outro, mas ambas construção e desconstrução dão-se segundo o ideário da
humilitas, a qual é, ao mesmo tempo, constitutiva da moral (ética) e da expressão discursiva
(estética).
PALAVRAS-CHAVE: Retórica; ethos; polêmicas; sermo humilis; século XVI.
5
ABSTRACT
STRATEGIES OF CONSTRUCTION AND LEGITIMIZATION OF
AN ETHOS IN THE CAUSA VERITATIS:
MICHAEL SERVETUS AND RELIGIOUS POLEMICS IN THE SIXTEENTH CENTURY
The objective of this doctoral dissertation is to identify and comment on the
strategies of construction and legitimization of an ethos of an advocate in the causa
ueritatis in the religious polemics of the sixteenth century. It is a way of defending a
position within a context in which there is only one God and only one Truth, and,
therefore, only one true interpretation. The Christian author involved in such polemic
needs to prove that he is the "emissary," the nuntius who proclaims the message with
simplicity, whereas his opponents are the “false masters” who, in order to dissimulate
their lies, hide them under artistically woven words. Thus, not only is the construction
of the positive ethos linked to the deconstruction (or destruction) of the other's ethos;
but both, construction and deconstruction, happen according to the concept of
humilitas, which is, at the same time, constitutive of morals (ethics) and of discursive
expression (esthetics).
KEYWORDS: Rethoric; ethos; polemics; sermo humilis; sixteenth century.
6
SUMÁRIO
Agradecimentos............................................................................................................ 3
Resumo ........................................................................................................................ 4
Abstract .........................................................................................................................5
Sumário......................................................................................................................... 6
Introdução .................................................................................................................... 7
Capítulo 1. Algumas questões teóricas
1.1. Ethos e Ética...................................................................................... 21
1.2.Apostolikon........................................................................................ 35
Capítulo 2 . O sermo humilis cristão .......................................................................... 42
2.1. Sermo humilis e ética cristã.............................................................. 51
2.2. Sermo humilis, sátira e discurso panfletário .................................. 53
2.3. Genus deliberatiuum..........................................................................67
Capítulo 3 Servet, a construção de um ethos discursivo ......................................... . 76
3.1. Irineu ................................................................................................ 99
3.2. Simão contra Simão Mago ............................................................. 111
3.3. Os profetas na Babilônia ................................................................ 116
3.4. O Arcanjo Miguel .......................................................................... 121
Capítulo 4 . Calvino e a desconstrução de um ethos discursivo .............................. 132
Conclusão ................................................................................................................. 169
Bibliografia .............................................................................................................. 176
7
INTRODUÇÃO
Esta tese nasceu da constatação, feita durante investigações realizadas por esta
pesquisadora em sua Iniciação Científica e em seu Mestrado, ambos sobre Miguel Servet
1
, de
que não há obstáculo maior nem mais difícil de transpor para aquele que pretende se
aproximar desse autor do que o de superar a tendência ao biografismo de praticamente toda a
bibliografia a seu respeito. Mesmo seu sistema teológico parece ter ficado em segundo plano
na lista de prioridades de servetistas e outros estudiosos, que, diante da dificuldade de acesso
a uma obra ainda praticamente inexplorada e apenas recentemente traduzida para uma língua
moderna, o castelhano, mas fascinados pela personalidade desse homem do Renascimento,
exaltaram o médico descobridor da pequena circulação do sangue, o primeiro mártir em solo
protestante ou o inimigo de Calvino que ocasionou o primeiro debate no Ocidente cristão
sobre a liberdade de consciência em questões religiosas, mas esqueceram-se de procurar em
seus textos a coerência reconhecida em sua vida. Nossa preocupação na dissertação de
Mestrado foi então traduzir um texto de Servet e prover os elementos para que um leitor
contemporâneo pudesse lê-lo e, dessa forma, permitir que ele, Servet, falasse por si mesmo.
O que pretendemos agora é levá-lo a falar sobre si mesmo. Que diz ele de si próprio em seu
texto? Como se apresenta? Com que razões justifica o ato de escrever? Com que finalidade o
faz? E não buscamos as respostas a essas perguntas nos autos dos processos contra ele ou em
suas várias biografias, históricas ou mais ou menos ficcionais, mas em seu próprio discurso,
ou seja, na construção, consciente e deliberada, que faz de si mesmo em seu discurso. E, se
no Mestrado pretendemos haver demonstrado a coerência de seu texto, agora teremos como
meta provar que tampouco contradição entre seu texto e suas ações, e que é essa harmonia
entre discurso e vida a principal evidência que ele mesmo apresenta em favor de sua causa.
Se escrever para transmitir a Verdade era a missão de sua vida, sua vida, por sua vez, deveria
ser tal que não deixasse dúvidas sobre a legitimidade de seu discurso.
1
Projeto de Iniciação Científica: Liberdade Livre-Arbítrio no Pensamento de Miguel Servet:
Humanismo e Reforma, amparado pela FAPESP, no período de 1/1/1996 a 31/12/1997; Mestrado pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo: O programa de Miguel Servet para a Restituição do
Cristianismo: Teologia e Retórica na Apologia a Melanchthon (dissertação inédita), com defesa em
19 de dezembro de 2000, ambos sob orientação da Profa. Dra. Ingeborg Braren.
8
Estamos, pois, nos domínios daquilo a que os antigos chamavam ethos, esse campo
em que se a intersecção entre discurso e comportamento ou moral. Evitando a visão
biografista, mas, por outro lado, afastando-nos também um tanto das tendências do século
XX (a crítica formalista ou o estruturalismo, por exemplo) de considerar o autor “apenas”
como “narrador implícito”, procuraremos recuperar algumas noções antigas de “caráter”
revisitadas em alguma medida também pela Análise do Discurso e com que, como
procuraremos demonstrar, trataremos das estratégias com que nossos debatedores agregarão
autoridade a seu discurso. Não podemos nos esquecer ainda de que nossos autores se
apresentam antes de mais nada como intérpretes ou porta-vozes; em outras palavras, como
leitores legítimos ou legitimados das Escrituras. Faz parte do ethos de cada um deles,
portanto, provar, antes de mais nada, que é o público-alvo ou a audiência apta a receber a
Palavra; que sua leitura e interpretação é não apenas melhor que outras, mas a única correta;
e que essa passagem de leitor das Escrituras a pregador da Verdade o pode ser senão uma
missão.
No contexto cristão, o autotestemunho é também auto-recomendação. Nas epístolas,
dá-se o nome de apostolikon ao cabeçalho ou introdução da carta, em que “o apóstolo seu
nome, explica sua função, resume sua mensagem e reproduz sua auto-imagem” (Berger,
1998, 244). Palavras como “missão”, “vocação”, “conversão”, “tarefa” aparecem desde o
início, bem como o mecanismo de polarizar, introduzindo o tema dos “falsos mestres”. A
Epístola aos Gálatas é paradigmática: tendo-se apresentado como apóstolo, “não por
iniciativa humana nem por intermédio de nenhum homem, mas por Jesus Cristo e por Deus
Pai”, Paulo passa imediatamente a tratar de “algumas pessoas” que estão “perturbando” a
comunidade e que “querem corromper o evangelho de Cristo”. O mesmo mecanismo
aparecerá nos textos sobre os quais nos desbruçaremos na presente tese.
Nossos textos estão, pois, em debate. Um debate em que o interlocutor é sempre o
adversário ou um leitor que deve optar entre o autor e o outro, o inimigo. Especialmente aqui,
em que se trata de uma causa, a causa ueritatis, e de um contexto em que existe a Verdade,
única e revelada, mas em que polêmicas entre todos aqueles que pretendem deter-lhe a
posse. Se alguém pregasse um evangelho diferente, diz Paulo textualmente, em I Gl. 1, 8, que
este fosse “maldito”, ainda que fosse “um anjo vindo do céu”.
A premissa condiciona e determina o resultado: um Deus, que transmitiu ao
homem sua Palavra, única, una e inequívoca, e que enviou ao mundo seu único filho. Ora, se
9
uma Verdade, segue-se que somente uma interpretação é verdadeira, e, portanto, sua
relação com todas as outras é de exclusão. Aqui, um discurso impõe-se como verdadeiro
apenas se provar que é o único verdadeiro. E, dessa forma, a relação de um porta-voz da
Verdade com outro porta-voz da Verdade num debate pode ser igualmente de oposição.
Estabelece-se, pois, um jogo dialógico, ou antes antilógico, no qual é freqüente e quase
mesmo determinante que uma fala se esclareça por completo em detrimento ou em
oposição a outra – que, para ser privada de legitimidade, deve, entretanto, ser citada e,
portanto, convive no texto que a desprestigia com aquela que se lhe opõe, e uma não parece
ser capaz de dizer o que é ou o que não é sem recorrer à outra. Dessa forma, não é
suficiente que Servet diga que está correto por tais e tais motivos; é preciso fazer sua doutrina
(autodenominada correta) debater com as outras (a católica, a de Calvino, a dos protestantes),
todas necessariamente erradas, porque excludentes. E, assim, freqüentemente uma doutrina
de Servet só pode ser totalmente estabelecida a partir daquilo que ela não é; e ele próprio se
torna um homem descrito pelo prefixo “anti-”: antitrinitário, antipedobatista etc.
Muitas vezes, portanto, chega-se ao autor por meio dos inimigos que ele próprio
trouxe para o texto e, assim, não é possível falar de um sem fazê-lo divergir dos demais. Da
mesma maneira, a construção mesma do ethos “positivo” de um está vinculada à
desconstrução (ou destruição) do ethos do outro ou à construção de um inteiramente
“negativo”, e é em grande medida por ela condicionada. Assim, como os textos citados neste
trabalho exemplificarão, muitas vezes a identificação promovida pelo autor quinhentista de si
mesmo com uma figura bíblica ou patrística pressupõe lógica e imediatamente a atribuição
do papel de inimigo deste ao inimigo daquele; pode ocorrer mesmo que a identificação não
venha citada explicitamente, mas deva ser extraída daquilo que lhe é contrário; por exemplo,
quando Servet chama Calvino de Simão Mago, repetidamente, está não apenas revestindo o
outro de certas características negativas como também está, imediatamente, agregando a si
mesmo as qualidades de Pedro.
Lembremos ainda que um texto polêmico é por natureza e em essência dialógico,
antes de mais nada no sentido etimológico do termo, uma vez que é basicamente um diálogo,
e somente em relação a outros textos pode ser compreendido e interpretado. Mas um discurso
ocidental, herdeiro da tradição judaico-cristã mesclada com o neoplatonismo, não é apenas
dialógico mas também dialético, “construído sobre oposições binárias” (Stephen D. Moore,
in Robbins, 1996, 208), tais como alma/corpo, natureza/cultura. E ainda:
10
objeto/representação, literal/metafórico, conteúdo/forma, texto/interpretação, oral/escrito
2
. E
isso talvez seja ainda mais evidente numa época de crise como o século XVI, no qual a figura
de linguagem mais recorrente e mesmo característica é o oxímoro. De qualquer forma, é
possível pensar em diálogo ou dialética quando a unicidade, própria daquilo que é único, uno
e inequívoco, de alguma forma fragmentou-se de modo a haver pelo menos duas posições,
dois discursos, dois interlocutores e, portanto, duas possibilidades ou duas respostas
prováveis, sem que nenhuma das duas tenha sido ainda provada a evidência ou
comprovação eliminariam o debate. Por isso, segundo Perelman (1997, 7), o traço distintivo
do raciocínio dialético é que ele é “somente verossímil”; acerca da Verdade não disputas,
uma vez que ela se impõe, soberana. Se partidos, facções, divisões ou “heresias”, cada
qual tentando ganhar adeptos para a sua causa, estamos, por conseguinte, em pleno domínio
da função mouere, na qual o verdadeiro precisa ser negociado e, portanto, “o papel das
premissas e a adesão do interlocutor são essenciais”. “A arte do dialético é agir de modo que
esse assentimento nunca possa ser recusado” (Goblot, in Perelman, 1997, 48); em outras
palavras, é apresentar sua causa como a única desprovida de contradições internas, a única a
que se pode aderir plenamente. E se a Verdade se basta a si mesma, a prova a um tempo
atécnica e entécnica, ou seja, “real” e construída no discurso, que um autor pode apresentar é
precisamente seu ethos, oferecido como aval e garantia de que fala a verdade, uma vez que
age e vive (ou afirma agir e viver) de acordo com o que prega.
Tendo em mente que os textos aqui estudados têm como autores personagens
históricas e que tiveram papel importante e mesmo decisivo nos rumos da Reforma e,
portanto, aportaram uma contribuição considerável ao pensamento ocidental moderno,
compreender-se-á quão grandes são as dificuldades do tema. E a maior delas talvez seja
estabelecer com precisão o critério para separar as construções discursivas de características
positivas que legitimem o discurso das características positivas “inatas” (que escapam à
retórica, mas que são por ela apropriadas na medida em que servem de “provas” da
2
Esse é, segundo Moore, um dos maiores problemas do pensamento ocidental, especialmente porque,
afirma, existe uma relação de subordinação em cada um desses pares. Não se trata de equilíbrio,
reciprocidade ou igualdade, mas sim de superioridade hierárquica de um dos termos (o primeiro)
sobre o outro (o segundo). No que diz respeito aos textos cristãos, a linguagem oral, por exemplo,
porque “inspirada” ou “natural”, é “superior” à escrita, uma imitação corrompida daquilo que é mais
real e verdadeiro. E, assim, o escritor deve escrever como quem fala. Do mesmo modo, a forma nunca
conseguirá se igualar ao conteúdo, e as uerba encontram-se em posição de inferioridade com relação
à res.
11
veracidade daquilo que é dito). Servet se apresentava de determinada maneira por razões
retóricas, porque acreditava ser obrigado a adaptar-se ao papel de que via embuído ou porque
acreditava verdadeiramente em sua “missão”? E, por outro lado, separar aquilo que de
“real” nas acusações que foram feitas a Miguel Servet daquilo que é “próprio do gênero”, ou,
em outras palavras, (des)construção de um ethos tendo em vista uma finalidade retórica.
3
Outra dificuldade diz respeito à demarcação de um discurso em si mesmo, sem ser
julgado em oposição a outro, uma vez que esses “subdiscursos” estão inseridos no mesmo
discurso, ou seja, existe uma fala do autor, que, entretanto, só se delimita com clareza quando
expressa em posição de antagonismo com outra fala, atribuída ou alegada, de outro autor,
mas que é colocada no texto como exemplo do “outro lado”, aqui necessariamente “falso” ou
“mentiroso”. Explicando de outra forma, existe uma Verdade, mas, para que ela apareça e se
realce, faz-se necessário mostrá-la em choque, mais ou menos aberto, com outra
interpretação, aqui apresentada como mentirosa. A fórmula, muito simples, é recorrer à
síncrise, a comparação que também se dá por oposição: “os sofistas dizem isso, mas eu, com
Irineu, afirmo isto”; imediatamente estabelece-se, pois, uma confrontação, e desse conflito
um pode sair vencedor. Não tergiversação ou negociação possíveis e uma pode ser a
resposta, assim como uma é a Verdade. Ora, se a Verdade é simples, então o outro deve
forçosamente ser retorcido, complicado e falso; então, até o momento a equação está assim:
eu, autor deste texto, falo a verdade, com palavras simples, enquanto meus inimigos, porque
proferem mentiras disfarçadas artisticamente, não são senão sofistas. E eu, que não digo nada
mais do que a verdade, oponho-me aos sofistas, assim como fazia Irineu, que também
combateu heresias. Se há dois lados, Irineu só pode, portanto, estar do lado de cá, contra eles.
Recorrer ao empréstimo do testemunho de Irineu é, pois, importante passo na tentativa de
legitimar minha autoridade, ao mesmo tempo em que, por seu intermédio, desautorizo o
oponente, que já não é adversário meu, mas de Irineu e, por extensão, de todo o Cristianismo.
Levantadas todas essas questões, o principal objetivo da presente tese passou a ser
apontar e comentar as estratégias de construção e de legitimação de um ethos de advogado da
3
Esta questão diz respeito a toda representação, biográfica ou literária, da vida de uma pessoa que de
fato existiu: o Ricardo III de Shakespeare era fiel à realidade histórica (e mesmo isso deveria vir entre
aspas...) ou sua construção como personagem serviu aos interesses da casa dos Tudor, que ocupava o
trono na figura de Elisabeth, mecenas do teatrólogo? O mesmo se aplica, em alguma medida, a todas
as biografias, sejam de nin, dos papas da família Bórgia, do Catilina de Salústio. E o problema se
complica ainda mais quando pensamos nas autobiografias. Afinal, o Calvino de Calvino. E
12
causa ueritatis no contexto das polêmicas religiosas do século XVI trabalho que, pela
natureza mesma dos textos estudados, enfrenta vários e variados problemas, antes de mais
nada de classificação. Primeiro, porque se trata de textos cristãos, ou seja, a verossimilhança
ou as probabilidades da Retórica Clássica cedem lugar à Verdade, única e revelada; e, no
entanto, acerca dessa Verdade polêmicas, debates, dissensões e discordâncias de
interpretação. O discurso deliberativo, então, serve aqui para que cada facção defenda sua
posição contra todas as demais. Cada um dos lados, portanto, investe-se da persona de porta-
voz da Revelação e exige do leitor adesão (que não pode ser senão total) a sua posição
partidária. Em outras palavras, são discursos cujo objetivo é mouere, mas de um tipo que a
Antiguidade Clássica não poderia prever (discutir religião não é um dos cinco temas sobre os
quais, segundo Aristóteles, Retórica, IV, II, 1, é possível deliberar). Aqui, encontraremos o
deliberativo utilizado também naquilo de que trata esta tese, que é a tentativa de propor uma
interpretação dos textos sagrados não apenas como mais verdadeira do que as demais mas
como a única verdadeira e, por conseguinte, o gênero vem acompanhado de táticas
propagandísticas
4
que visam a suscitar a adesão total, que, aqui, representa também
necessariamente a absoluta rejeição do partido contrário.
O autor cristão adota o ponto de vista de que o discurso é “representativo” e não
“gerativo” (Robbins, 1996, 221), ou seja, reflete a Verdade, e não uma visão particular e
ideológica da “realidade”. Como nenhum outro ponto de vista pode ser verdadeiro, este
pode ser também, por conseguinte, o ponto de vista do próprio Deus e, assim, quaisquer
outras possibilidades devem ser eliminadas. Se outras interpretações, ele precisa provar
que, em detrimento de todas as demais falas, a sua é “a” correta. Essa oposição transpassa
todos os discursos estudados na pesquisa. Há, de um lado, o autoproclamado nuntius da
Verdade, o advogado da causa de Cristo, com sua linguagem pura, próxima à das Escrituras;
e, de outro, o herege que usa de ardis e estratagemas para seduzir e, para isso, escreve
artificiose (ou seja, com arte). Aqui, portanto, escrever artisticamente é sinônimo de falsear
ainda o Calvino dos calvinistas do século XVI, o Calvino dos “libertinos” que o combatiam, o
Calvino de Servet, o Calvino dos presbiterianos contemporâneos, o Calvino de Voltaire, o de Zweig...
4
O discurso deliberativo é, essencialmente, o da propaganda, com seus imperativos, suas promessas,
suas vantagens. Berger (1998, 242) faz uma interessante observação acerca da linguagem dos
evangelistas quando oferecem “a água e o pão da vida”: é imitado assim o grito do vendedor de
águas nas ruas ou o convite de quem chama o amigo para uma refeição. Que esses dons,
excepcionalmente, são gratuitos é frisado em Is. e Ap. O cenário é público (rua, praça). Além do ficar
satisfeito com comida e bebida, também o repouso depois da labuta é uma dádiva prometida”.
13
ou mesmo falsificar (como em Irineu, que compara a fala do herege a uma esmeralda falsa,
de vidro artisticamente trabalhado). Porque assim como o cristão verdadeiro alega que não se
afasta do estilo simples das Escrituras, o falso mestre é aquele que, por outro lado, recorre às
“artes” da palavra, ao tropo, ao sofisma; em suma, à mentira.
O princípio da eficácia da palavra não está na palavra propriamente dita, portanto: o
discurso não pode ter autoridade se não for pronunciado pela pessoa legitimada a pronunciá-
lo. Assim, o ethos ocupa um lugar determinante, confunde-se com o cetro que portam o
nuntius ou herald, o arauto; em outras palavras, consiste na autoridade exterior do locutor,
que aparece como um porta-voz autorizado, e “só pode agir sobre outros agentes pelas
palavras”, diz Bourdieu (in Amossy, 2005, 121), “porque sua fala concentra o capital
simbólico acumulado pelo grupo de quem ele é mandatário e do qual ele é o procurador”. A
eficácia do discurso é portanto extraída do fato de que o enunciador é, aos olhos de seu
público, autorizado a produzi-lo por aquele que o envia.
O texto possui, pois, um autor, que se apresenta como tal, mas este não fala em seu
próprio nome nem por sua própria vontade, mas porque recebeu uma missão. Seu texto não
reivindica autoria, mas se autodescreve como testemunho. Como Calvino repetia e
sublinhava, citando João Crisóstomo, “non nostra loquimur, sed quae Dei sunt” (Millet,
1992, 515). Em outras palavras, a matéria-prima empregada em sua confecção (as pouco
confiáveis verba humanas) não almejam a verossimilhança da fictio, mas apresentam-se
desde sempre como o veículo (imperfeito embora) para um kerygma, a proclamação de uma
Verdade revelada. O autor, assim, apresenta-se como se fosse um fotógrafo diante de um fato
que se lhe apresenta e que ele registra com o máximo de “objetividade”, mas sobre o qual não
intervém senão como o escriba a quem se dita o texto. A questão que de seu próprio ponto de
vista se impõe aqui é então a que diz respeito à eleição daquele homem como receptor e
transmissor da Verdade. A Verdade não precisa de provas; mas, ele, autor, precisa construir
para si a credibilidade de poder se apresentar como enviado de Deus antes de que a profecia
que ele traz se realize.
Isso leva a que nos deparemos com outro problema inerente aos textos com que
trabalharemos: por um lado, o autor publica um livro propondo “a” interpretação das
Escrituras e, para que legitime seu direito de fazê-lo, combatendo todos os outros autores que
agem da mesma forma, oferece-se a si mesmo como garantia ou caução (ameaçado com as
conseqüências da tempestade que havia desencadeado, Lutero disse, simplesmente, hier stehe
14
ich, “aqui estou”); por outro, apresenta-se como mero instrumento ou “médium” e portanto
tenta, aparentemente, apagar” do texto sua subjetividade. Consciente e deliberada estratégia
retórica, componente próprio do gênero ou característico intrínseco das causas ideológicas?
Seja como for, temos, entretanto, escritores que têm como material as palavras, mas
que alegam não confiar nelas como veículo para a transmissão da Verdade. Aqui, o autor
nega a autoria do próprio texto e a atribui à influência divina, se não mais como influência
direta, pelo menos como recepção da chave para a correta interpretação das palavras
sagradas. Equilibrando-se na difícil posição de ter como material as palavras, que, segundo
ele próprio, não são dignas de confiança, precisa revestir-se a si mesmo de uma legitimidade
que, se vem de fora (é “emprestada” pelas Escrituras, reveladas), é também forjada de dentro,
pela autoproclamada sinceritas com que busca a Verdade e pela confessada e reiterada
munditia de seu coração e, portanto, de seu comportamento.
Assim, em primeiro lugar, e sem perder de vista que o escritor cristão escreve, ou
seja, usa palavras unidas de determinada forma, temos de procurar por ele em seu texto no
qual ele se mostra por meio dos recursos fornecidos pelo ideal ético e estético da simplicitas,
que, expressa no texto, serviria, ao mesmo tempo, de prova tanto da autenticidade quanto da
integridade moral do autor (e esta, por sua vez, o autoriza a desvendar as Escrituras).
Dessa forma, a construção da auto-identidade como “advogado da causa de Cristo”
tem como parâmetro o ideário do “estilo baixo cristão”, no qual a simplicidade, identificada
com credibilidade, é o atributo mais desejável e, como diz Auksi (1995, 5) numa afirmação
de grande importância para esta pesquisa, “torna-se uma proclamação espiritual”. Assim,
escrever de forma simples, sem artifícios ou adornos, é a virtude mais atraente que um autor
cristão pode possuir, uma vez que, dessa forma, os leitores seriam capazes de medir a
qualidade moral do autor sem distrações estéticas; a substância, portanto, opõe-se à forma em
vez de esta servir de veículo para a total expressão daquela. Afirmar que escreve “sine tropo
et sine sophismate” é, portanto, a primeira prova oferecida pelo autor cristão de que fala a
língua da Verdade.
Outra contradição a que não podemos escapar: uma vez que o objetivo é mouere,
ganhar adeptos para a causa ueritatis, poder-se-ia pensar que este espaço, o da polêmica,
assumir-se-ia como o mais apropriado para a Retórica. E, no entanto, nossos autores cristãos
não apenas negam sua prática como, associando-a ao sofisma, identificam-na também com a
heresia. Tendo optado pelo estilo baixo, o discurso cristão assumiu-se sempre como anti-
15
retórico, e consideram a ars dicendi uma ars mentiendi, prerrogativa do falso mestre, não do
verdadeiro cristão. Há, portanto, uma visão compartilhada por nossos debatedores de que os
ornamentos e o delectare são retóricos, enquanto que o estilo baixo é “natural” e não retórico.
Como veremos no decorrer destas ginas, no entanto, a declaração da utilização do estilo
baixo é uma das estratégias persuasivas e, portanto, retóricas mais importantes dos textos
estudados.
Outra das estratégias de construção e legitimação mais utilizadas consiste em
estabelecer mecanismos de identificação com autores que, julga-se, lhe são “favoráveis”; ou
seja, o autor lança mão do recurso à fala de terceiros. Além disso, como se trata de um
debate, a fala do adversário também é reproduzida e mesmo muitas vezes explicada. E todos
esses “subdiscursosestão inseridos no mesmo discurso, ou seja, existe uma fala do autor,
que, entretanto, se delimita com clareza quando expressa em posição de antagonismo com
outra fala, atribuída ou alegada, de outro autor, mas que é colocada no texto como exemplo
do “outro lado”, aqui necessariamente “falso” ou “mentiroso”; e, ao mesmo tempo, o
discurso do autor visa a se legitimar por intermédio de autoridades, citadas em seu favor.
Dessa forma, e resumindo, este trabalho pretende investigar de que maneira e por que
meios os autores reformistas do século XVI identificam, nos debates de que participam, o
sermo humilis com a sinceritas, unindo, assim, a um só tempo, o ideal estético da simplicitas
com o recurso ético de legitimação da autoridade do orador por meio de uma autoproclamada
“pureza de coração”, a qual, manifesta num texto que se apresenta como tendo sido escrito
“sem artifícios e sem sofismas”, serve, ao mesmo tempo, de prova tanto da autenticidade do
discurso quanto da integridade moral do autor como defensor da causa ueritatis. Para isso,
usaremos como exemplo e ilustração textos de Miguel Servet e de Calvino. Assim, esta tese
tem por objetivo demonstrar, com exemplos e citações desses autores, como cada um dos
adversários numa mesma polêmica reivindica para si a posse de uma Verdade recebida com
“sinceridade” e transmitida com “simplicidade”, e como, dessa forma, constrói, garante e
valida a legitimidade de sua posição de orador “verdadeiro”, ao mesmo tempo em que
desautoriza a fala do oponente (aqui necessariamente “falsa”), por meio da acusação de que
este recorre aos “artifícios” estilísticos de que a Verdade prescindiria.
Alguns problemas, entretanto, impõem-se-nos desde o início, e forçam-nos a explicar
alguns conceitos, antes mesmo de que apresentemos nossas premissas, a fim de que não
16
pareça ingênuo ou equivocado o uso consciente que fazemos de alguns vocábulos que
poderão provocar estranhamento.
Ali onde nossos autores mencionarem a Verdade, por exemplo, nós, entretanto,
lançaremos mão de um conceito cuja introdução deve-se à contribuição de Marx, e
utilisaremos, totalmente avant la lettre, o termo ideologia, que, segundo Eagleton (1997, 15)
é, ele mesmo, um texto, “tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais”, e
aplicado aqui na acepção de um sistema de idéias cuja função é a defesa, manutenção ou
reprodução de determinados valores ou teorias. John H. Elliott (in Robbins, 1996, 193)
definiu-a como “um sistema integrado de crenças, suposições e valores, não necessariamente
verdadeiros ou falsos, que reflete a necessidades e os interesses de um grupo ou de uma
classe num determinado período na História”. No que diz respeito a este trabalho, parece-nos
claro que uma ideologia é uma construção cultural; mas é uma construção cujo “projeto”, por
assim dizer, é tornar-se tão aceita que passe a ser considerada algo “natural” e inquestionável;
em outras palavras, a ideologia é a visão de mundo que busca tornar-se verdade. E o papel do
defensor da Verdade, por outro lado, é mostrar que a Verdade é pura e simplesmente a
Verdade, e não construção ilusória com a finalidade de dominar.
A questão que se impõe e que está na base mesma deste trabalho é a do interesse que
provoca a possibilidade de assistir ao questionamento de uma ideologia dominante (a qual se
faz chamar Verdade) por outras ideologias que se acreditam igualmente eleitas”, cada uma
delas em oposição às outras, todas em nome da Verdade. Não deixa de ser interessante e
mesmo fascinante, portanto, o quadro oferecido pelo século XVI: uma nova interpretação, a
reformada, que, tendo desafiado a visão de mundo dominante, foi, por sua vez, prontamente
ameaçada por outras interpretações, as radicais”. E se “Lutero chocou o ovo que Erasmo
botou” (O´Malley, 1993, IV, 39), ou seja, a primeira desobediência foi no âmbito da
interpretação do texto, em breve, como costuma acontecer com as ideologias, o conflito
transferiu-se da imprensa para o campo de batalha.
E aplicaremos aqui, apesar do risco do anacronismo, a teoria do “paradoxo de
Althusser” estudada por Michel Debrun (in Dascal, 1989, 178-179), segundo a qual há
diferença entre uma posição ideológica defendida por astúcia e cálculo e outra, “sincera”,
partilhada pelo grupo que a defende como “verdadeira”, e que tem na sinceridade dessa
crença aquilo que a difere de uma “mentira vulgar” (ibid., 180, n. 16). E mais: “parece que a
ideologia exige a presença simultânea de uma tentativa de automistificação e de uma
17
tentativa de heteromistificação” (ibid., 179). E essa construção de uma imagem de si
(automistificação) em contraposição à construção da imagem do outro (heteromistificação) é,
basicamente, o tema desta tese.
Bastante ligado à ideologia, aparece o termo propaganda, que não apenas nos parece
perfeitamente cabível quando aplicado às táticas empregadas pela Reforma como torna-se
mesmo a designação ideal para essas práticas, levando-se em consideração o novo
instrumento fornecido pela novíssima tecnologia do século XVI de que dispõem os
reformadores: a imprensa
5
. Instrumento de divulgação, de propaganda e mesmo de
panfletagem, capaz de atingir uma audiência muito maior do que qualquer outro meio de
comunicação antes, o livro permitiu que as questões polêmicas se transferissem do âmbito do
bate-boca privado ao do domínio público com rapidez e alcance até então inéditos, ao mesmo
tempo em que garantia a “autenticidade” do texto publicado por seu próprio autor, em
resposta a outro. Se uma autêntica revolução ocorreu na “galáxia de Gutenberg” (McLuhan,
The Gutenberg Galaxy: The Making of a Typographic Man, de 1962), a Reforma foi,
indiscutivelmente, o primeiro movimento a se apropriar da nova mídia.
Outro termo que poderia parecer questionável e que no entanto pareceu-nos o único
efetivamente capaz de dar conta de todos os sentidos implicados no uso que dele fazemos é
adesão, que, muito mais do que “assentimento” ou “concordância”, expressa o resultado
almejado por um discurso deliberativo que emprega um mecanismo que é típico das
“causas”. Trata-se, segundo Alain Viala (in Amossy, 2005, 167), de um “fenômeno por meio
do qual os homens acabam por pensar que a posição em que se encontram é a boa” posição
e, desse modo, chegam a forjar toda sorte de razões para lhes atribuir valor, inclusive o valor
supremo”.
É, pois, um processo que faz passar da opinião à crença: da idéia de
que se está em uma ou em outra situação e de que é “bom” estar nela à
afirmação de que essa situação é “boa”, de que ela é, de fato, a única boa.
Processo que converte o “bem” (o que faz com que qualquer um esteja bem,
sinta-se bem) em “bom” (o que seria bom para os homens em geral); e
5
Edwards, em seu Printing, Propaganda, and Martin Luther, estabelece com clareza a relação entre o
“material impresso” e a “literatura persuasiva” reformista no primeiro “movimento de massa da
História do Ocidente” , a “propaganda da Reforma” (printing was used for the first time in Western
history to channel a “mass” movement to affect change concerning this institution) , Preface, xi.
18
converte freqüentemente, dessa maneira, o “belo” (i.e., eu acho isso bonito”)
em “bem” (“o que é bonito me propicia satisfação e eu me sinto bem”) e, em
seguida, em “bom”. Sem mais dialetizar Platão, diremos que a adesão é esse
processo que, em sua forma acabada, faz passar de uma diversidade de
maneiras de ver e de fazer à certeza de que somente uma que é válida,
converte a subjetividade consciente de uma opinião relativa em pseudo-
objetividade inconsciente de uma certeza absoluta. (ibid., 167-8, itálicos desta
pesquisadora).
Essa “lógica da adesão” é, ainda segundo Viala (ibid., 168), “uma forma extrema da
argumentação”, uma vez que “instaura uma ordem dos valores, e constitui uma maneira
extrema de falar ou de escrever sobre si mesmo, que, enunciando aquilo que o sujeito que
se exprime acredita serem as evidências, ela revela as crenças, isto é, a ordem do irracional
nos comportamentos e nas escolhas” (itálico nosso).
Mais ainda:
Seria conveniente, voltando à origem da ruptura hegeliana e
reinterrogando Kant, retomar a questão estética em nossas reflexões sobre a
argumentação. Considerar que a estética e a ética no sentido pleno desse
termo são indissociáveis, que a estética é ideológica e polêmica, que ela é,
em virtude do “não-sei-quê” implicado por ela, o argumento supremo antes
do argumento da força bruta… Porque o que faz com que permaneçamos
unidos a uns e contrários a outros é uma maneira de sentir comum ou diversa,
uma parte do irracional, portanto, do não defensável em termos de provas.
(ibid., 178, itálico desta pesquisadora).
Todos esses temas aparecerão entrelaçados na presente tese e, por conseguinte,
nenhum outro vocábulo alcança a mesma exatidão na acepção de um conceito que assume a
dimensão de termo técnico no contexto em que se move esta pesquisa. Dessa forma, uma vez
mais, sua ocorrência neste trabalho não se por desconhecimento ou por anacronismo, mas
trata-se antes de uma ferramenta consciente, uma “licença retórica”, por assim dizer, em
nome da precisão.
19
A presente tese divide-se, pois, como se segue:
Capítulo 1, Algumas Questões Teóricas: o embasamento teórico do trabalho, cujo
objetivo é apresentar os pontos de partida da investigação e os critérios técnicos adotados por
esta pesquisadora, traçando um panorama que não se pretende senão introdutório e
instrumentalizante das teorizações antigas da Retórica Clássica acerca do ethos do orador, da
auto-apresentação do apóstolo ou enviado nos textos cristãos, até as discussões modernas da
Análise do Discurso sobre o autor ou locutor. Tal painel, entretanto, terá como limite as
fronteiras do objetivo mesmo da pesquisa, que é o papel do “autor” de um texto escrito no
século XVI e que se pretende inspirado e quais as estratégias de legitimação de que lança
mão em sua tentativa de autorizar sua fala.
Capítulo 2, O Sermo Humilis Cristão : a estética cristã, ou seja, o elogio do sermo
humilis nos discursos de autores cristãos, os quais apregoam a humilitas tanto no plano
discursivo como no domínio da moral, e a apresentam como prova de que ele, autor, está ao
lado da Verdade. Apresentar-se-ão então as razões pelas quais, em nosso entender, o sermo
humilis firmou-se no ideário cristão (e mais especificamente no reformista) como a língua
mais apropriada para a expressão da Verdade, ao passo que as artes da retórica ou da oratória
foram, segundo essa visão, associadas com a prática do sofisma e portanto aqui, no contexto
religioso, da heresia.
Capítulo 3, Servet e a Construção de um Ethos Discursivo: a construção da auto-
identidade do autor cristão e a relação entre esse ethos forjado no discurso e a credibilidade
que a prática agrega a ele, ao mesmo tempo em que é por ele legitimada. Da mesma forma,
procurar-se-á demonstrar como o autor, ao avalizar seu discurso, tem necessariamente de
desarticular ou desmoralizar a fala do adversário, identificando-o com hereges inimigos da
Igreja ou com sofistas. O texto analisado, e por meio do qual procuraremos demonstrar esses
mecanismos e estratégias é Christianismi Restitutio, de autoria de Miguel Servet (1511-
1553), publicado anonimamente e de forma clandestina em Vienne do Delfinado, na França,
em 1553, e que levou seu autor a julgamento na Inquisição católica e à fogueira na Genebra
calvinista.
20
Capítulo 4, Calvino e a Desconstrução de um Ethos Discursivo: Aqui, de forma
especular, analisar-se-á um texto de Calvino, adversário de Servet, escrito precisamente para
demonstrar os “erros prodigiosos de Miguel Servet” e como defesa contra a acusação de
intolerância pela condenação do espanhol à morte pelo fogo lento em Genebra. As estratégias
com que Servet havia construído seu ethos de cristão, portanto, aqui voltam-se contra ele e
servem de defesa para seu acusador. O texto analisado é a Defensio de Calvino (Defesa da
ortodoxa sobre a Santa Trindade contra os erros prodigiosos de Miguel Servet de Espanha;
onde se mostra que os hereges devem ser reprimidos pelo direito da espada e,
principalmente, que foi justo e merecido o suplício desse homem ímpio em Genebra)
6
.
Dessa forma, a intenção da presente tese é demonstrar como, numa causa apodítica,
os mesmos mecanismos com que se autoriza um texto podem ser empregados pelo adversário
para desautorizá-lo e, assim, ilustrar, por meio de dois discursos abertamente antagônicos, a
técnica das polêmicas do XVI.
6
Defensio orthodoxae fidei de sacra trinitate contra prodigiosos errores Michaelis Serveti Hispani:
ubi ostenditur haereticos iure gladii coercendos esse, et nominatim de homine hoc tam iuste et merito
sumptum Genevae fuisse supplicium.
21
CAPÍTULO 1
ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS
1.1. ETHOS E ÉTICA
Como nos lembra Ruth Amossy (2005, 9), “todo ato de tomar a palavra implica a
construção de uma imagem para si”. Imagem para cuja legitimação faz-se necessária a
investidura de uma credibilidade que autorize o orador e referende sua fala, visando assim a
garantir o sucesso do empreendimento oratório a persuasão, em suma. A essa imagem,
forjada no texto e pelo texto, mas afiançada pela “honestidade” daquele que fala, e por meio
da qual “o orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: sou isto, não sou aquilo”
(Barthes, 1970, 315), os antigos designavam-na pelo termo ethos.
Essa dupla natureza do ethos (de construção discursiva e de “realidade”), importante
para este trabalho em todas as suas fases, está presente nas acepções da palavra em língua
grega. Segundo George A. Kennedy (1991,163), ethos significa predominantemente “caráter
moral”, na forma como este se reflete em “escolhas deliberadas”
7
, e o conjunto de
“qualidades inatas”, “com as quais os indivíduos podem ser naturalmente agraciados e que os
dispõem para certos tipos de ação”, mas também tem o sentido de “o caráter digno de
confiança de um falante, artisticamente criado num discurso”. Existe, pois, o ethos enquanto
7
Para Sherman (1989, 79), “character coherence is fundamentally related to Aristotle´s notion of
prohairesis or reasoned choice. For prohairetic choices, Aristotle says, reveal character even more
than action does”. Segundo Vergnières (1998, 105), ethos é também “o resultado de nossos atos”: “o
caráter não é mais o que recebe suas determinações da natureza, da educação, da idade, da condição
social; é o produto da série de atos dos quais sou o princípio. Posso pois ser declarado “autor” (aítios)
de meu caráter, como o sou de meus atos: do mesmo modo que meus atos podem ser objeto de um
elogio, meu caráter pode ser objeto de louvor. Vícios e virtudes não são simples traços psicológiocs
adquiridos; têm significado moral, porque pertencem ao campo do que depende de nós”. E assim,
conclui, “dessa dupla responsabilidade sobre o ato e o caráter, Aristóteles tira o homem da fatalidade
trágica”. Vamos, pois, aproximando uns dos outros todos os pontos que devemos levar em
consideração nesta tese: o ethos como causa e como conseqüência de escolhas ponderadas (cujo
espaço é o genus deliberatiuum), no campo da moral e do no do discurso.
22
conjunto de características e qualidades que delimitam o “feitio” e a “personalidade” de
alguém (o seu “jeito”, no dizer de Barthes), dando-lhe pendor para determinadas ações e
condicionando suas opções (inclusive lingüísticas), e, quando esse alguém toma a palavra,
instaura um ethos “fictício” ou “ficcional”, engrendrado no discurso, pelo discurso, mas que
tem por alvo persuadir o público por meio da “prova” que é a “honestidade” do orador.
Kennedy recomenda ainda um tratamento diferente das pisteis retóricas aristotélicas
(ethos, pathos e logos), freqüentemente traduzidas como “provas não artísticas” ou
“artísticas”, propondo, em seu lugar, a seguinte nomenclatura: “atécnicas” e entécnicas”
("atechnic" and "entechnic"). As primeiras são “pré-existentes” (“preexisting”), ao passo que
as outras “podem ser preparadas segundo um método” (“prepared by method”). No que diz
respeito ao ethos, estas são construídas apenas e tão somente no discurso e pelo discurso,
pouco importando a “sinceridade” do orador; aquelas são, por assim dizer, as provas
“morais” de que o orador tem o “direito” de falar de uma determinada forma perante certa
audiência sem que esta, ao se dar conta do conflito entre discurso e prática, desautorize o
discurso.
As dificuldades do tema são grandes, e a maior delas é precisamente estabelecer o
critério para separar as construções discursivas de características positivas que legitimem o
discurso das características positivas “inatas” (que escapam à retórica, mas que são por ela
apropriadas na medida em que servem de “provas” da veracidade daquilo que é dito). Com
relação a estas, o "ethos atécnico" na teoria retórica aristotélica, Kennedy resume o tema da
seguinte forma:
Aristóteles, pois, não inclui no ethos retórico a autoridade que um
falante possa possuir devido a sua posição no governo ou na sociedade, suas
ações prévias, reputação de sabedoria, ou nada exceto aquilo que está
realmente contido no discurso e no caráter que o discurso revela.
Presumivelmente, ele levaria em consideração todos os outros fatores, muitas
vezes altamente importantes para o sucesso da retórica enquanto não artística;
mas ele nunca diz isso”.
8
8
"Aristotle thus does not include in Rhetorical ethos the authority that a speaker may possess due to
his position in government or society, previous actions, reputation for wisdom, or anything except
what is actually contained in the speech and the character it reveals. Presumably, he would regard all
23
É verdade, no entanto, que o filósofo diz que “damos fé maior e mais prontamente às
pessoas justas do que às outras: acerca de todas as coisas geralmente, mas absolutamente
naquelas nas quais a certeza exata é impossível e as opiniões estão divididas” (Retórica, I, 2,
4, 1356 a). Uma questão importantíssima começa, pois, a se delinear: quanto mais o tema for
passível de disputa, mais a credibilidade do orador será levada em conta.
Na Ética a Nicômaco, 1095 a, Aristóteles fala daqueles que não deveriam se dedicar à
ciência política porque são jovens “na idade ou no caráter”, pois “a deficiência não é uma
questão de tempo, mas depende da vida que a pessoa leva(grifo nosso). Da mesma forma,
Quintiliano, com seu ideal estóico do uir bonus dicendi peritus, “pôs um acento especial
nesta relação entre estilo e moral”, uma vez que “as virtudes e os vícios do discurso
correspondem a virtudes e vícios do orador”
9
, pois “o decoro retórico, conceito no qual
estava implicada a noção de justeza do discurso, não se refere apenas à adequação do estilo,
mas ainda ao decoro moral. É guia para a palavra e para a vida” (Vasconcellos, 2000, 26). “É
a conduta do orador, antes de qualquer coisa, que deve ser cultivada pelo estudo” (Inst. Orat.,
XII, 2, 1), diz Quintiliano, afirmando que o estudo da oratória não é apenas qualificação
técnica, mas antes formação moral
10
. Quando pretende responder à questão quid sid
Rhetorice (Inst. Orat., II, 15, 1), Quintiliano menciona a qualitas, que parece ser
essencialmente “qualidade moral”, uma vez que a produção humana à qual se o nome de
ars deve ser atribuída somente a “homens de bem” (Inst. Orat., II, 15, 1)
11
.
other factors, sometimes highly important in the success of Rhetoric, as inartistic; but he never says
so."
9
Sêneca, que havia, ele mesmo, escrito na Epístola 114,1: Talis hominibus fuit oratio qualis uita,
recebeu seu próprio argumento de volta, numa sutil mas irônica crítica de Quintiliano, que aponta no
filósofo estóico uma contradição entre uma res (matéria) elogiável e uerba corrupta : “Na filosofia,
foi pouco diligente, notável crítico dos vícios, porém. Nele numerosas sentenças brilhantes como
também muita coisa digna de se ler por causa da moral, mas na elocução quase tudo é corrupto e tanto
mais pernicioso por abundar em doces vícios”. (In philosophia parum diligens, egregius tamen
uitiorum insectator fuit. Multae in eo claraeque sententiae, multa etiam morum gratia legenda, sed in
eloquendo corrupta pleraque, atque eo perniciosissima quod abundant dulcibus uitiis (Inst. Orat., X,
1, 129). Trad. de Paulo Sérgio de Vasconcellos, a quem devo também a indicação.
10
Quando igitur orator est uir bonus, is autem citra uirtutem intellegi non potest, uirtus, etiam si
quosdam impetus ex natura sumit, tamen perficienda doctrina est: mores ante omnia oratori studiis
erunt excolendi atque omnis honesti iustique pertractanda. (Inst. Orat., XII, 2, 1)
11
Ante omnia, quid sit rhetorice. Quae finitur quidem uarie, sed quaestionem habet duplicem: aut
enim de qualitate ipsius rei aut de comprensione uerborum dissensio est. Prima atque praecipua
opinionum circa hoc differentia, quod alii malos quoque uiros posse oratores dici putant, alii, quorum
nos sententiae accedimus, nomen hoc artemque de qua loquimur bonis demum trebui uolunt. (Inst.
Orat., II, 15, 1)
24
Retornando a nossos dias, a pragmática semântica de Oswald Ducrot (1987, 187 ss.)
contribui com mais uma reflexão importante para este trabalho, uma vez que é Ducrot quem
reintroduz a noção antiga de ethos, quando a define assim: “o ethos está ligado a L, o locutor
como tal: é como origem da enunciação que ele se investido de certos caracteres que, em
contrapartida, tornam essa enunciação aceitável ou desagradável”. Em suma, embora seja o
próprio enunciado que forneça as instruções sobre o autor, que não deve ser confundido com
o homem real e concreto que assina o texto, e embora haja um locutor construído pelo texto,
e que tem neste seus limites, também, entretanto, certos dados “éticos” (na acepção mais
restrita e moderna da palavra) que, agregados ao locutor, levam-nos a aceitar - ou não - a
enunciação pela qual ele se nos apresentou. Ou seja, as instâncias internas do discurso, que
são, por assim dizer, ficções discursivas, não devem ser confundidas com o homem real que
se situa fora da linguagem, mas tampouco podem ser desprezadas, uma vez que emprestam
(ou não) ao discurso a credibilidade (ou a falta dela) do locutor. No caso do presente trabalho,
o autor Calvino, por exemplo, com seu ethos de orador cristão e advogado da Verdade de
Cristo construído no texto, não deve ser confundido com o homem Calvino, por assim dizer
“biográfico”, pregador e reformador. Mas seu “caráter moral” e suas “qualidades inatas”
aportam credibilidade a seu discurso. E ainda mais aqui, em que se trata de textos que hoje
seriam classificados como não-ficção, e nos quais a ética moral do autor é o que o autoriza a
tomar a palavra, levando ao surgimento de várias questões que serão discutidas no decorrer
da exposição.
A noção antiga de ethos reaparece também em Kibédi-Varga (1970, 21), que, ao tratar
dos “caracteres oratórios”, afirma que “1. o orador convencerá por argumentos, se, para bem
dizer, ele começar por pensar bem; 2. ele agradará pelos seus modos, se, para pensar bem, ele
começar por viver bem”. Há, portanto, uma conexão e uma relação de dependência entre o
argumento de um orador e seu modus vivendi: aquele que vive bem pensa bem e, por
conseguinte, argumenta melhor.
A elaboração da noção de ethos como construção de uma imagem de si é pesquisada
também nos trabalhos de Dominique Maingueneau, que reserva, entre as diversas dimensões
do discurso, um lugar determinante para o enunciador. Este deve conferir-se a si mesmo certo
estatuto, por meio do qual legitime sua fala, outorgando-se no discurso uma “posição
institucional”. Ao mesmo tempo em que o lugar que engendra o ethos é o discurso, o ethos
25
está também indissoluvelmente ligado à questão do locutor e de sua legitimidade, ou melhor,
processo de legitimação (Amossy, 2005, 17).
Outra questão relevante que aparece em Maingueneau (1996, 86) é a da distinção
entre sujeito falante e locutor, sendo este o que “corresponde à instância que assume a
responsabilidade do ato de linguagem”. Trazendo esse problema para o âmbito de nossa
investigação, o locutor é, portanto, aquele que responde pelo discurso e, por conseguinte, pela
ideologia contida na fala. Maingueneau equipara o termo autor à instância locutor, uma vez
que ambos têm sob sua responsabilidade a enunciação. Não podemos, entretanto, afirmar
que, nos termos de Maingueneau, o ethos que discutimos aqui nesta pesquisa seria o
equivalente do seu autor, primeiro porque esta denominação pressupõe uma noção de autoria
que muitas vezes os “autores” cristãos negam, e que, de qualquer forma, apenas começava a
despontar no século XVI, mas também, e principalmente, porque o autor de Maingueneau é
“apenas o correlato da enunciação textual e não tem existência independente de seu papel
enunciativo” (Maingueneau, 1996, 87), ao passo que, em nosso trabalho, ao contrário, ethos e
vida “real”, biográfica, têm ligação de que depende a autoridade (ou a autorização para) do
texto.
Outra questão de vital importância para este trabalho aparece na teoria do ethos de
Albert W. Halsall (1988), cujo principal interesse recai sobre a questão da credibilidade do
narrador, obrigado a redigir para si um “contrato fiduciário”, em que se estabelece a
autoridade que o enunciador deve ter para que possa ganhar a confiança do leitor, caso deseje
ser convincente. Essa autoridade, entretanto, não é “natural” mas antes e mais propriamente
retórica, uma vez que depende da habilidade do narrador de manipular o discurso e de
negociá-la com o leitor.
A existência mesma de uma negociação que leva ao estabelecimento de um pacto de
credibilidade entre aquele que produz um discurso e seus receptores, operação a que os
romanos chamavam precisamente facere fidem, pressupõe a existência de uma garantia que
possa ser oferecida como caução no contrato, e esse aval é, em grande medida, dado pelo
“caráter” do autor do discurso, uma vez que implica a verossimilhança na representação do
caráter como dignus, grauis e suauis (Rhet. Her. IV, 69). É necessário que o orador apresente
um caráter digno, para, por meio dele, obter também para o discurso, o qual, segundo a
26
Retórica a Herênio, deve ser ornado com dignitates
12
- essas virtudes políticas que são
também morais. Também Erasmo, no século XVI, estabelece uma rie de condições morais
para o orador cristão, muito além da obrigação de conhecer a Escritura. Resumindo, pode-se
dizer que o pregador deve ser, ele mesmo, aquilo que prega; que seja ele, portanto, o primeiro
a se purificar e a oferecer, tanto em sua vida como em seus discursos, o exemplo.
Nem deve ser prescrito aos outros aquilo em que se deva crer, de que
modo se deva viver, a não ser que antes, em nossa vida e em nossos costumes,
tenha brilhado aquilo de que havemos de persuadir a outros. Jesus primeiro
começou a fazer; depois a ensinar. E este gênero de doutrina é o mais eficaz:
declarar com a própria vida o que é viver piamente.
13
De acordo com Benveniste (1995,103), fides significa não “confiança”, mas “a
qualidade própria de um ser que lhe atrai a confiança e se exerce sob a forma de autoridade
protetora sobre quem se fia nele”. Segundo Greimas (in Parret, 75), um contrato de
veridicção, e, com relação a este, “a adesão por parte do destinatário pode ser adquirida se
corresponder a sua expectativa, o que equivale a dizer que a construção do simulacro de
verdade é fortemente condicionada pela representação que o destinador, que é sempre autor
da manipulação, manipula”.
Ainda com relação à adesão, esta depende do assentimento e está indissoluvelmente
ligada ao mouere, o qual, por sua vez, só ocorre quando há sinceridade na aceitação. Vejamos
como Hare (1996, 22) trata o tema:
12
Retórica a Herênio, IV, xiii, 18: Dignitas est, quae reddit ornatam orationem uarietate distinguens.
Haec in uerborum et in sententiarum exortationes diuiditur. Verborum exornatio est, quae ipsius
sermonis insignita continetur perpolitione. Sententiarum exornatio est, quae non in uerbis, sed in ipsis
rebus quandam habet dignitatem. “A dignidade é o que torna o discurso ornado, fazendo-o distinto
pela variedade. Divide-se em ornamentos de palavras e de sentenças. Ornamento de palavras é aquele
que se atém ao polimento insigne da fala. Ornamento de sentenças é o que encontra dignidade não nas
palavras, mas nas próprias coisas”. Tradução de Ana Paula Celestino Faria e de Adriana Seabra.
13
Nec aliis praecipiendum est, quid oporteat credere, quemadmodum oporteat viuere, nisi prius in vita
moribusque nostris illuxerit, quod aliis sumus persuasuri. Primum coepit Iesus facere, dein docere: et
hoc efficacissimum doctrinae genus est, ipsa vita declarare quid sit pie viuere (LB 796 EF).
27
Se assentimos a uma afirmação, somos considerados sinceros em
nosso assentimento se - e apenas se - acreditamos que ela é verdadeira
(acreditamos no que disse o falante). Se, por outro lado, assentimos a um
comando de segunda pessoa dirigido a nós, somos considerados sinceros em
nosso assentimento se - e apenas se - fazemos ou decidimos fazer o que o
falante ordenou que fizéssemos.
Isso é ainda mais digno de nota quando se trata de uma “causa”, como no caso dos
textos estudados nesta tese, discursos que pertencem ao gênero deliberativo, em que a
audiência é instada a tomar uma posição pró ou contra alguma coisa; assim, um advogado
que não apresente contradições entre discurso e prática pode exercer uma atração que
contribui grandemente para a adesão do público. Marcelo Dascal (in Amossy, 2005, 64)
chega a afirmar que uma “função de credibilidade”, segundo a qual se um locutor é
percebido como alguém que prega certa doutrina, mas que não aplica seus princípios, a
plausibilidade de seus argumentos diminui de forma geral, e não apenas no que diz respeito a
essa doutrina.
Uma citação de Chaim Perelman (1988, 111) ajuda a esclarecer a questão:
Se se trata não de fatos, mas de opiniões, e sobretudo de apreciações,
não somente a pessoa do orador, mas também a função que ele exerce, o papel
que ele assume, influenciam de modo incontestável a maneira pela qual o
auditório acolherá suas palavras.
Voltando a Aristóteles, observamos que, das três pisteis entechnoi, as provas
engendradas pelo discurso - logos, ethos e pathos -, o filósofo elege o ethos como aquela que
“constitui praticamente a mais importante” das três, uma vez que a finalidade da retórica é a
persuasão, e um orador que mostre um caráter honesto parecerá, em conseqüência, mais
digno de crédito aos olhos de seu auditório. E a forma como o ethos é produzido no discurso
e pelo discurso se no plano da expressão. Em outras palavras, a honestidade, essa
qualidade moral que autoriza a fala, se mostra (ou se constrói) no texto, com palavras.
Segundo Esther Paglialunga (2001, 108), a afirmação aristotélica de que “o orador persuade
28
por seu caráter moral quando o discurso se enuncia de tal maneira que o faz digno de
confiança” (I,II,4) e que tal confiança (credibilidade) deve residir no discurso mesmo, e não
numa idéia preconcebida do caráter do falante, antecipa uma concepção atual da teoria do
discurso, segundo a qual o discurso produz dois actantes sintáticos, Enunciador e
Enunciatário, cujo estatuto de realidade semiótica impede confundir com o locutor real.
Mas se Aristóteles rejeita a confiança advinda do caráter prévio do falante (ou de uma
idéia preconcebida sobre ele), tal ressalva dá-se “não como um desprezo ao papel da
reputação na persuasão, mas como uma advertência ao orador para que, mesmo gozando de
boa reputação, não descuide de seu ethos no discurso” (Faria, 2003, 52). Ademais, Aristóteles
afirma (Retórica, 1356a) que é necessário que “a confiança seja resultado do discurso e não
de uma opinião prévia sobre o caráter do orador”. Mas, de que deriva a “opinião prévia sobre
o caráter do orador” senão de discursos precendentes? (Seabra, 2003, 23). “A caracterização
anterior, como quer que tenha sido forjada, constituirá intertexto a que será preciso recorrer
para autorizá-lo ou desautorizá-lo a cada nova configuração da persona” (ibid, 23-24). Ou,
dito de outra forma, “os atos passados e o efeito que produzem podem adquirir uma espécie
de consistência, formar uma espécie de ativo que o autor deles não gostaria muito de perder”
(Perelman, 1997, 229). “Os atos anteriores e a boa reputação que deles resulta se tornam uma
espécie de capital que se incorporou à pessoa. Trata-se de um ativo que se adquiriu e se tem o
direito de invocar em defesa própria” (ibid, 230).
Aristóteles (Retórica, 1378 a 6-15) enumera três “causas de que os oradores sejam por
si dignos de crédito” ou qualidades que inspiram confiança:
São as seguintes: a prudência, a virtude e a benevolência, porquanto os
oradores induzem em erro nos assuntos sobre os quais falam ou aconselham,
seja por todas essas razões, seja por alguma delas: ou, por falta de prudência,
não têm opinião correta; ou, embora a tenham, por perversidade não a
exprimem, ou são prudentes e eqüitativos, mas o benevolentes, motivo pelo
qual é possível que não aconselhem o melhor, embora o conheçam, e nenhuma
outra causa além dessas três. Necessariamente, então o orador que parece
possuir todas essas qualidades tem a confiança dos ouvintes. (grifo desta
pesquisadora)
29
No artigo Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna”, de Ekkehard Eggs
(in Amossy, 2005, 32), a primeira causa aparece como “ter ar ponderado”, a segunda como
“se apresentar como um homem simples e sincero” e a terceira, dar uma imagem agradável
de si”. Mas ele propõe “uma tradução explicativa mais moderna”:
Os oradores inspiram confiança (a) se seus argumentos e conselhos são
sábios e razoáveis, (b) se argumentam honesta e sinceramente, e (c) se são
solidários e amáveis com seus ouvintes. (ibid, 32.)
Na seqüência, depois de estudar vários outros passos de Aristóteles, Eggs chega à
seguinte conclusão, que traduziria mais perfeitamente o parágrafo da Retórica II, 1378 a 6:
Os oradores inspiram confiança (a) se seus argumentos e conselhos são
sábios, razoáveis e conscientes, (b) se são sinceros, honestos e eqüânimes e
(c) se mostram solidariedade, obsequiedade e amabilidade para com seus
ouvintes. (ibid, p. 37.)
Mais uma vez, portanto, impõe-se a questão da negociação constante entre autor e
leitor e a da acomodação entre autor, tema, estilo, gênero, audiência etc. Negociação e
acomodação conscientes, deliberadas, escolhidas. Diz Eggs:
Embora o ethos tenha aqui um sentido moral ou ideal, é preciso ver
que essa moralidade não nasce de uma atitude interior ou de um sistema de
valores abstratos; ao contrário, ela se produz pelas escolhas competentes,
deliberadas e apropriadas. Essa moralidade, enfim, o ethos como prova
retórica é, portanto, procedural. (ibid, 37.)
30
Trata-se, portanto, novamente, de um acordo firmado entre partes após uma
negociação, na qual o avalista é o ethos do locutor, ou antes em que o orador apresenta-se a si
mesmo como prova a favor de seus argumentos. Então, ainda que o ethos seja uma
construção discursiva, ele deve vir apoiado, necessariamente, num sistema de valores que o
subsidie ou sustente.
14
Também para Quintiliano os meios ou provas para suscitar a fides e, por conseguinte,
a adesão dependem, em grande medida, do ethos de quem fala. Ele, aliás, questiona a
tradução corrente do grego ethos para o latim mores, uma vez que o termo grego parece
exprimir não todo tipo mas apenas certa espécie de costumes próprios do orador, ao passo
que o latino compreende hábitos bons e maus.
15
No capítulo VI, II, 13-14, diz: “O que entendemos por ethos e desejamos nos oradores
será aquele que se recomenda por sua bondade, não somente calmo e pacífico, mas, na
maioria dos casos, cortês, agradável aos ouvintes, e cuja maior virtude consiste em que tudo
parece fluir da própria natureza dos fatos e pessoas e que o caráter do falante (mores dicentis)
seja transparente e se reconheça no discurso”
16
.
A construção desse orador como confiável dá-se por sua competência ética mas
também estética, pois fala mal aquele que, ao discursar, parece mau (VI, 2, 18): qui, cum
14
Pensemos, por exemplo, num dos mais conhecidos textos satíricos do século XVI, o Elogio da
Loucura, de Erasmo de Roterdã. Nele, é a própria Stultitia que faz seu discurso laudatório; ela, que,
sabidamente, teria pouca autoridade para apresentar uma “grande argumento”, no entanto pede para si
a atenção que se “aos charlatães, aos bufões e aos bobos das ruas”, e “isso porque me agrada ser
convosco um tanto sofista”, embora se apresente tal como é:
Eu sou tal como me vedes. (...) E que necessidade haveria de vo-lo dizer? O meu
rosto já não o diz o suficiente? Se há alguém que desastradamente se tenha iludido, tomando-
me por Minerva ou pela Sabedoria, bastará olhar-me de frente para logo me conhecer a fundo,
sem que eu me sirva das palavras que são a imagem sincera do pensamento. Não existe em
mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração.
A Loucura, então, que, precisamente por ser a Loucura, não tinha credibilidade prévia,
constrói-a no discurso, apresentando como prova de sua sinceridade precisamente o fato de que se
mostra tal como é, ou seja, como Loucura. Ainda que louca, ou talvez por isso mesmo, a Stultitia é
sincera, e a sinceritas é um valor inquestionável.
15
sed ipsam rei natura spectandi mihi non tam mores significari uidentur quam morum quaedam
proprietas; nam ipsis quidem omnis habitus mentis continentur (Inst. Orat. VI, 2, 9).
16
h=)qoj, quod intellegimus quodque a dicentibus desideramus, id erit quod ante omnia bonitate
commendabitur, non solum mite ac placidum, sed plerumque blandum et humanum et audientibus
amabile atque iucundum, in quo exprimendo summa uirtus ea est, ut fluere omnia ex natura rerum
hominumque uideantur, quo mores dicentis ex oratione perluceant et quodam modo agnoscantur (Inst.
Orat. VI, 2, 13).
31
dicit, malus uidetur, utique male dicit.
17
Pode-se então inferir que parecerá bom aquele que
falar bem. Fazer um homem parecer um uir bonus é, assim, a função do ethos do orador. “O
decoro que regula o bem viver e o decoro do discurso confundem-se quando se trata de
compor o ethos do orador, pois como na vida não são decorosos os vícios, apenas o é a
virtude e suas partes, também o orador assim será” (Seabra, 2003: 9).
O ethos de uir bonus
18
traz ao discurso mais uma confirmação de crédito, pois quando
o auditório acredita que o orador é um homem bom, coloca-se nisso um peso capaz de fazer
pender a balança a seu favor. “Pois assim conseguirá que pareça trazer para a causa não o
trabalho de um advogado, mas quase a de uma testemunha”.
19
Diz ainda, reafirmando a
importância que tem a autoridade que a vida digna “empresta” ao discurso:
Nem deixarei de dizer quanto influi na verossimilhança da Narração a
autoridade de quem narra, a qual deveremos merecer primeiro de tudo com a
nossa vida, e depois com a dignidade do mesmo discurso, que quanto mais
grave, decente e circunspecto for, tanto mais peso dará ao testemunho do
orador”.
20
O orador, portanto, deve, ele mesmo, possuir as qualidades e virtudes que recomenda
em seu cliente; deve, pelo menos, agir de forma a que se creia que as possui. O fundamento
da fides baseia-se em aceitar o que alguém diz não pelo que diz, mas porque se crê naquilo
que diz: ex sua bonitate faciet fidem. O ponto principal, entretanto, é não perder de vista que
essa credibilidade é construída pela representação que aquele que fala faz de si mesmo no
discurso.
17
Nam qui dum dicit malus uidetur utique male dicit non enim uidetur iusta dicere, alioqui ethos non
uideretur (Inst. Orat., VI, 2, 18)
18
“Quando empregamos a palavra “bom” para aprovar moralmente, estamos sempre direta ou
indiretamente aprovando pessoas. Até mesmo quando usamos a expressão “bom ato” ou outras como
ela, a referência é indiretamente a personagens humanas.” HARE, 1996: 153.
19
Sic enim continget, ut non studium aduocati uideatur adferre sed paene testis fidem, (Inst. Orat., IV,
1, 7).
20
Neque illud quidem praeteribo, quantam adferat fidem expositioni narrantis auctoritas; quam mereri
debemus ante omnia quidem uita, sed et ipso genere orationis, quod quo fuerit grauius ac sanctius,
hoc plus habeat necesse est in adfirmando ponderis. Inst. Orat., IV, 2, 125. Tradução de Jerônimo
Soares Barbosa. In: QUINTILIANO, Instituições Oratórias, São Paulo: Ed. Cultura, 1944, Vol. 1, p.
209.
32
Também em Cícero, no De Oratore, II, 182, encontra-se a afirmação de que a
dignitas hominis pode, sim, cativar os ânimos. Do mesmo modo, é mais fácil ornar no
discurso as “ações empreendidas” que fazem a reputação ou o “prestígio”, se elas existem de
fato, do que criá-las por ele, se não existem (“conciliantur autem animi dignitate hominis,
rebus gestis, existimatione uitae; quae facilius ornari possunt, si modo sunt, quam fingi, si
nulla sunt”). Em De Officiis, Cícero recorre a Sócrates para corroborar sua afirmação de que
o caminho mais fácil para a glória é agir de acordo com a reputação que se almeja possuir.
21
Da mesma forma, no tratado anônimo Retórica a Herênio, o autor desconhecido trata
dos recursos apropriados para modificar a disposição anímica dos juízes a fim de torná-los
favoráveis à causa do orador e, por conseguinte, contrários à da parte adversária e, dentre
eles, ab nostra persona e ab aduersariorum persona, que, com relação a este trabalho,
importam mais especificamente, uma vez que a argumentação ab nostra trata de ressaltar o
officium, quer dizer, a conduta do orador (ou do defendido) perante o Estado, a família, os
amigos e os próprios ouvintes, conservando-se a adequação à causa ou ao tema (I, 8, 4-10),
ao passo que a ab aduersariorum trata de forjar uma imagem para o outro trazendo-o para o
discurso.
Baseados em nossa pessoa, alcançaremos benevolência se louvarmos
nosso ofício sem arrogância; também se mencionarmos o que fizemos para o
bem da República, de nossos pais, amigos, ou daqueles que nos ouvem, desde
que tudo isso seja adequado à causa que defendemos; também se declararmos
nossas desvantagens, desgraças, desamparo, desventura e rogarmos que nos
venham em auxílio, dizendo que não queremos depositar nossas esperanças
em outrem.
22
21
Quamquam praeclare Socrates hanc uiam ad gloriam proximam et quasi compendiariam dicebat
esse, si quis id ageret, ut qualis haberi uellet, talis esset. (De Officiis, II, 43)
22
Ab nostra persona beneuolentiam contrahemus si nostrum officium sine adrogantia laudabimus,
atque in rem publicam quales fuerimus, aut in parentes, aut in amicos, aut in eos qui audiunt
aperiemus et si [ lacuna] aliquid referemus, dum haec omnia ad eam ipsam rem qua de agitur sint
adcommodata; item si nostra incommoda proferemus, inopiam, solitudinem, calamitatem, et si
33
Os tópicos voltados para a pessoa do adversário, pelo contrário, devem apontar para
os vícios da parte contrária, suscitando no auditório três sentimentos desfavoráveis: odium,
inuidia, contemptio pares antitéticos, portanto, daqueles que o orador quer despertar com
relação a ele próprio: o amor ou a amizade (Retórica, II, 4), a compaixão (Retórica, II, 9) e a
emulação (Retórica, II, 11).
Baseados na pessoa dos adversários granjearemos benevolência se
levarmos os ouvintes ao ódio, à indignação e ao desprezo. Ao ódio havemos
de arrebatá-los se alegarmos que aqueles agiram com baixeza, insolência,
perfídia, crueldade, impudência, malícia e depravação. À indignação os
moveremos se falarmos da violência dos adversários, da tirania, das facções,
da riqueza, intemperança, notoriedade, clientela, laços de hospitalidade,
confraria, parentesco, e revelarmos que se fiam mais nesses recursos do que na
verdade. Ao desprezo os conduziremos se expusermos a inércia dos
adversários, sua covardia, ociosidade e luxúria.
23
No vitupério dos adversários, é preciso construir o caráter destes por meio do recurso
às acusações de vícios ou paixões censuráveis, com o fito de produzir no ouvinte o ódio, a
indignação ou o desprezo. A própria escolha de um vício a ser censurado deve servir para
mostrar também algo do orador, que, se aponta um comportamento vicioso no outro, está, por
outro lado, afirmando sua própria correção perante a ação condenável. Mas falar não basta, é
preciso um comportamento que lhe permita falar de determinada maneira sem que suas
próprias atitudes o desautorizem perante o público.
Outro ponto que levaremos em consideração, portanto, é o jogo de reflexos entre a
imagem do locutor e a do outro no discurso do primeiro. A construção de uma imagem de si
está indissoluvelmente ligada à enunciação, uma vez que o ato de produzir um enunciado
orabimus ut nobis sint auxilio, et simul ostendemus nos in aliis noluisse spem habere. (Rhet. Her., I,
8, trad. de Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra).
23
Ab aduersariorum persona beneuolentia captabitur si eos in odium, in inuidiam, in contemptionem
adducemus. In odium rapiemus si quid eorum spurce, superbe, perfidiose, crudeliter, confidenter,
malitiose, flagitiose factum proferemus. In inuidiam trahemus si uim, si potentiam, si factionem, si
diuitias, incontinentiam, notabilitatem, clientelas, hospitium, sodalitatem, adfinitates aduersariorum
proferemus, et his adiumentis magis quam ueritate eos confidere aperiemus. In contemptionem
adducemus si inertiam, ignauiam, desidiam, luxuriam aduersariorum proferemus”. Rhet.. Her. I, 8.
34
remete necessariamente ao locutor que mobiliza a língua, e que, ao fazê-la “funcionar”,
inscreve-se na “realidade” do texto (Benveniste, 1976, 278).
Esse signo (eu) está, pois, ligado ao exercício da linguagem e declara o locutor como
tal. É essa propriedade que fundamenta o discurso individual, em que cada locutor assume
por sua conta a linguagem inteira. (ibid, 281)
Assim também, da mesma forma mas ao contrário, “numa situação de elocução” o eu
passa a ter uma “definição simétrica” com o tu (ibid, 279), esses “signos vazios” que se
tornam “plenos” assim que um locutor os assume em cada instância do seu discurso (ibid,
280). No entanto, embora o eu se defina em simetria ao tu, “existe entretanto uma dissimetria
radical entre eu e tu: para ser eu, basta tomar a palavra, enquanto que para ser tu é necessário
que um eu constitua alguém como tu(Maingueneau, 1996, 11). Se um eu constrói um ethos
para si mesmo, constrói, da mesma forma, um ethos para o tu. Isso é especialmente válido em
textos relativos a causas polêmicas e, portanto, essa questão será determinante neste trabalho,
sempre que se fizer necessário contrastar dois discursos, dois autores, duas doutrinas, um
ethos atribuindo a outro aquilo que exclui necessariamente da sua própria persona, mas
sendo, ao mesmo tempo, objeto de igual ação deste outro, produzindo uma imagem especular
mas antagônica, em que cada eu constrói-se por meio da projeção no tu de certas
características.
A dinâmica da polêmica constrói-se por meio de um duplo processo discursivo: de
delimitação de uma identidade para si e de caracterização do “outro”, o adversário.
Cada um atribui a si mesmo imagens positivas e ao outro, imagens desqualificantes.
Polemizar, portanto, freqüentemente engloba a tentativa de, numa situação de confronto,
falsear a fala do outro, de desqualificar-lhe o discurso. Orlandi (1999, 86) nos traz uma
interessante reflexão do ponto de vista deste trabalho, ao afirmar que o discurso polêmico é
“aquele em que a polissemia está aberta”, ou seja, “o referente é disputado pelos
interlocutores” e estes mantêm “uma relação tensa” de “disputas pelos sentidos”. Esse
“outro” pode até mesmo não existir de fato, mas existe como um discurso atribuído em
relação ao qual o discurso se funda. Assim, haverá sempre um outro ao qual é preciso
recorrer para se constituir. Segundo Maingueneau (1997, 122), “cada uma das formações
discursivas do espaço discursivo só pode traduzir como “negativas”, inaceitáveis, as unidades
de sentido construídas por seu Outro, pois é através dessa rejeição que cada um define a sua
35
identidade(itálico nosso). O discurso do “outro”, quando trazido para o espaço discursivo
do “mesmo”, é por este filtrado, adaptado, manipulado, “antropofagicamente” incorporado,
ou mesmo “anulado”, segundo Maingueneau (1997, 122), para quem o discurso agente (o
“tradutor” ou “construtor”) e o discurso paciente (o “traduzido” ou “construído”).
Todas essas questões estão, portanto, relacionadas a uma, principal, e passam por seu
filtro e crivo: o problema da credibilidade daquele que fala, de suas intenções e de seus
objetivos, mas também do direito que se atribui e se arroga ao tomar a palavra, ou seja, de
sua autoridade e legitimidade. Pensemos num exemplo que nos o próprio Erasmo, para
quem mouere é a mais importante função da retórica. Segundo ele, um rei pode enriquecer
quem quiser, diz, mas o pregador deve, pela persuasão, fazer que aquele que acabou de se
tornar possuidor de riquezas não se torne ele mesmo possuído por elas, e se faça pobre
spontanea libertate (Chomarat, 1981, 1146). Mas com que direito o faz? Investido de que
autoridade? Com autorização de quem?
1.2. APOSTOLIKON
Na literatura epistolar evangélica, dá-se o nome de apostolikon à auto-apresentação
do apóstolo, geralmente no cabeçalho da carta, no qual ele revela seu nome, sua função, sua
mensagem e sua auto-imagem (Berger, 1998, 244). A fórmula, cuja origem está na
apologética helenística, é paulina, e pode ser exemplarmente demonstrada com os primeiros
versículos da Epístola a Tito: “Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo para levar os
eleitos de Deus à fé e ao conhecimento da verdadeira piedade, na esperança da vida eterna,
desde tempos imemoráveis prometida por Deus que não mente e no devido tempo, Deus,
nosso Salvador, manifestou a sua palavra, pela proclamação que, por ordem sua, me foi
confiada” (Ti, 1, 1-3).
24
Tiago, Pedro e Judas escrevem também a saudação, apresentando-se,
no início de suas epístolas.
24
Nas outras epístolas paulinas: “Paulo, servo do Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo” (Rom.
1,1); “Paulo, chamado a ser apóstolo do Cristo Jesus, por vontade de Deus” (I Cor. 1,1); “Paulo,
apóstolo de Jesus Cristo por vontade de Deus” (II Cor. 1, 1); “Paulo, apóstolo não por iniciativa
humana nem por intermédio de nenhum homem, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o
36
Às perguntas "por quê" e "para quê" escrever, o autor, que sempre se apresenta como
enviado, servo ou porta-voz, costuma responder com o chamado "esquema de revelação", ou
seja, algo oculto, e é chegada a hora de esse segredo se manifestar, primeiro aos eleitos
(dentre os quais figura o autor) e, por meio deste, aos demais. Em outras palavras, o autor
apresenta-se como o emissário que foi imbuído da missão de falar e que portanto tem o
direito de fazê-lo porque deve revelar algo de que depende o futuro de todos. Sua fala se
justifica em momentos de crise, e os traços deliberativos de seu discurso reforçam-se à
medida em que a adesão dos ouvintes se faz mais necessária. Nessa literatura engajada e
mesmo bélica, exige-se do leitor uma conversão que se traduza numa metanoia completa de
pensamento e de atitude que o levava muitas vezes a correr perigo de perder a vida - o que
era real na igreja primitiva e também no século XVI, como o comprovam os episódios do
massacre de Münster ou a Noite de São Bartolomeu, para citar apenas dois dos exemplos
mais famosos.
Segundo Berger (1998, 245), o esquema de revelação constitui-se dos seguintes
elementos: a) um segredo escondido; b) por uma eternidade ou desde o princípio da criação;
c) é chegada a hora da revelação desse segredo; d) que foi revelado aos apóstolos, que,
ministros do mistério, o transmitem à comunidade.
O Prólogo do Apocalipse é exemplar e paradigmático dos textos que nos interessam
mais de perto neste trabalho. Diz ele:
Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe confiou para que mostrasse
aos seus servos as coisas que devem acontecer em breve. Jesus a comunicou,
por meio de seu anjo, ao seu servo João. Este testemunho de que tudo
quanto viu é palavra de Deus e testemunho de Jesus Cristo. Feliz aquele que lê
e aqueles que escutam as palavras da profecia e também põem em prática o
que nela está escrito. Pois o tempo marcado está próximo. (Apc. 1, 1-3).
ressuscitou dos mortos” (Gl. 1,1); “Paulo, apóstolo do Cristo Jesus pela vontade de Deus” (Ef. 1,1);
“Paulo, apóstolo do Cristo Jesus por ordem de Deus, nosso Salvador, e do Cristo Jesus, nossa
esperança” (I Tm. 1,1); “Paulo, apóstolo do Cristo Jesus pela vontade de Deus, segundo a promessa
da vida que há no Cristo Jesus” (II Tm. 1,1).
37
O texto possui, pois, um autor, que se apresenta como tal: João. Mas este não fala em
seu próprio nome nem por sua própria vontade, mas porque recebeu uma missão. Seu texto
não reivindica autoria, mas se autodescreve como testemunho. O orador ou pregador, assim,
segundo essa visão, não é senão o veículo por intermédio do qual uma mensagem autoritativa
pode ser expressa. Por isso, sua tarefa não requer prática ou conhecimento da “arte”, mas
apenas inspiração. Segundo Millet (1992, 161-2), o orador cristão é o “porta-voz transparente
e puramente instrumental de uma mensagem sublime e veemente, mas evidente, unívoca e
voltada para seu auditório”. O papel do orador aqui é mesmo quase “incidental” (Kennedy,
1998, 122).
Vale a pena lembrar que a palavra para “discurso” em Marcos, 13, 10 e no Novo
testamento em geral é kerusso, “proclamação”. É o que o porta-voz (keryx) faz com sua
mensagem, uma lei ou uma ordem. A mensagem é o kerygma, ou proclamação. A pregação
cristã não é portanto persuasão, mas proclamação, e é baseada na autoridade de quem enviou
o emissário. A reação do ouvinte é como a reação a um milagre: acreditar ou não (Kennedy,
1998, 127).
O princípio da eficácia da palavra não está na palavra propriamente dita, portanto: o
discurso não pode ter autoridade se não for pronunciado pela pessoa legitimada a pronunciá-
lo. Assim, o ethos ocupa um lugar determinante, confunde-se com o cetro que portam o
nuntius ou herald; em outras palavras, consiste na autoridade exterior do locutor, que aparece
como um porta-voz autorizado, porque ele é o procurador daquele que o envia e porque, ao
falar em nome de Deus, sua fala concentra aquilo a que Amossy (2005, 121) chama “o capital
simbólico acumulado pelo grupo”. A eficácia do discurso é portanto extraída do fato de que o
enunciador é, aos olhos de seu público, habilitado a produzi-lo.
25
E a essa legitimação no
texto e pelo texto, mas apoiada na credibilidade da prática da imitatio Christi, dá-se o nome
de apostolikon.
A construção imagem do representante ou do enviado exige uma personalidade ou
uma biografia que dê autentididade e legitimidade ao nuntius. Conferir a alguém o estatuto de
25
Segundo Maingueneau, o “caráter” é “o conjunto de traços psicológicos que o leitor-ouvinte atribui
espontaneamente à figura do enunciador, em função de seu modo de dizer” (1997, 47), não por tratar-
se de “caracterologia”, mas porque “estereótipos” que circulam em cada cultura. Verginières
(1995, 98), entretanto, pergunta-se, ao estudar Aristóteles, se “o projeto “ético” não é no fundo um
projeto “caracterológico”, uma vez que “aproximamo-nos mais da descrição de temperamento
psicológico do que de caráter moral”.
38
representante, portanto, demanda todo um trabalho de organização de valores e de construção
discursiva de uma biografia que ateste a legitimidade do orador segundo esses valores.
Voltamos, novamente, à questão do ponto em que se cruzam as provas atécnicas e entécnicas
e ao problema da ideologia que guia ou preside toda essa construção.
No entender de Klaus Berger (1998, 236), o “instituto jurídico da missão”, ou seja, do
envio, é, no Cristianismo, “o princípio organizacional das relações entre Deus e o homem, e
entre o homem e seu semelhante, cada vez que se trata da execução vicária de incumbências
e tarefas”. E aquele que envia é a autoridade de que o enviado participa em virtude da missão
(Deus enviou o Filho, que enviou os apóstolos; Paulo, enviado por Deus, enviou Timóteo
etc.).
Analisemos brevemente, e sem qualquer outra pretensão que não o de dar um
exemplo de um mecanismo com que vamos nos deparar seguidamente nos autores
reformistas, o discurso de Paulo em I Cor. 9, no qual se procura estabelecer o Apóstolo como
um representante autorizado de Deus e um fundador de igreja. Sistematizando os argumentos
que apresenta no discurso, por vezes de forma virulenta e por meio de perguntas retóricas,
teríamos o seguinte quadro:
Paulo é livre;
Paulo é um apóstolo, foi enviado por Deus em missão especial;
Paulo viu Jesus Cristo;
Os coríntios são a obra de Paulo em Deus;
Paulo é o apóstolo dos coríntios;
Paulo teria o direito de comer, beber, levar consigo “uma irmã em
Cristo” e de não trabalhar, pois “quem vai participar de campanha
militar às próprias custas?”, mas não o faz;
Paulo prega o evangelho de graça;
Paulo ganhará uma coroa imperecível;
Paulo, como um atleta, não corre às tontas, mas domina o corpo e luta.
39
Assim, Paulo apresenta-se não como um dos possíveis enviados, mas como o único
apóstolo dos coríntios. Uma vez que o objetivo dessa epístola é combater a dissensão e
remover pontos de discórdia, oferecendo uma “ideologia da unidade” (Robbins, 1996, 224), e
que Paulo havia afirmado ser o pai de crianças ainda despreparadas para o alimento sólido”,
parece claro que aqui uma função centralizadora. , da mesma forma, uma exigência de
adesão que exclui de forma absoluta os recalcitrantes e demoniza opiniões contrárias.
Num trabalho de 1991 a que infelizmente não tivemos acesso senão por meio de
menção em outro estudo (Robbins, 1996, 195-ss.), Elisabeth Castelli propõe-se a aplicar
alguns conceitos de Foucault a Paulo, especialmente na I Coríntios. Segundo essa autora,
Paulo começa apresentando-se como “mediador” em I. Cor. 1, 17: “ele é simplesmente o
conduto pelo qual o evangelho passa” (“he is simply the conduit through which the gospel
passes”). Mas, já em 4, 16, pede aos coríntios que sejam seus “imitadores”, chamando-se a si
mesmo “pai em Cristo Jesus”. Em outras palavras, Paulo investe-se de uma imagem
patriarcal, o que, segundo Castelli, significa que está assumindo o papel daquele “que tem
total autoridade sobre os filhos”. Como, ainda segundo essa autora, a ideologia dessa epístola
é a de pregar a “unidade” (a qual, para ser atingida, pressupõe que todos devam “imitar” a
Paulo), está montado, então, um cenário no qual a diferença equivale à desordem, à
dissensão, à discórdia, sendo que estas são crimes de lesa-autoridade patriarcal, mas não
isso; expressar uma idéia diferente não é apenas opor-se a Paulo, mas à comunidade, ao
evangelho e ao próprio Cristo que o enviou como emissário. A ideologia da unidade serve,
portanto, para investir Paulo e seu discurso de um poder total, de paterfamilias, a quem os
membros da comunidade devem imitar, uma vez que são “crianças”, “incapazes de tomar
alimento sólido” (I Cor. 3, 1-2).
Os coríntios têm obrigação de ouvi-lo porque ele, homem livre, foi-lhes, entretanto,
enviado por Deus numa missão especial que é também uma “campanha militar”. E, para
aqueles que possam duvidar disso, ele apresenta como evidência seu comportamento: não
cobrar por seus ensinamentos, não ter mulher e trabalhar em troca de comida e bebida. Um
40
falso mestre certamente teria reivindicado privilégios, de que ele, apóstolo verdadeiro, abre
mão, porque anunciar o evangelho é “uma tarefa confiada” a ele. Quem se posicionar contra
ele posiciona-se, portanto, contra tudo o que ele representa, contra a fé e contra Deus
26
.
26
A própria noção de “heresia” carrega em si essa idéia de um apego voluntário ao mal, sendo a
heresia a ruptura do consenso. Como lembra um texto medieval forjado e utilizado dentro do contexto
teológico de que trata este trabalho, a palavra grega haeresis tem seu equivalente latino no substantivo
electio, “eleição”, “escolha”. Haeresis est sententia humano sensu electa – scriptura sancta contraria
– palam edocta – pertinaciter defensa. Haeresis graece, electio latine (in Le Goff, 1995, 2). A mesma
etimologia havia sido empregada por Tomás de Aquino: haeresis graece ab electione dicitur ( Summa
Theologica, II, II, 11, art. 1). A palavra heresia, portanto, assim como seu antônimo, ortodoxia, pode
ser usada com absoluta propriedade apenas e tão somente naqueles casos em que uma Verdade a
que aderir ou à qual se opor, como nas religiões de revelação, em que a fé é vista como um
assentimento irrestrito a uma realidade objetiva e externa, compartilhada por toda a comunidade. Há
um conjunto de verdades, inegociável e admitido por todos, ao qual o ortodoxo adere espiritual e
socialmente, mas a que o herege seu consentimento apenas parcial. Sem deixar de ser cristão, ou
talvez até mesmo porque tente sê-lo em demasia, o herege é aquele que quebra a unidade do sistema
ao negar sua filiação ao corpus christianum como um todo. Dessa forma, sua electio torna patente a
possibilidade de ruptura e de colapso de toda a estrutura. O perigo que ele representa deixou de ser
mortal apenas muito recentemente, quando a tolerância religiosa, como aspecto de um sistema
jurídico, converteu-se lentamente em indiferença (ver a Introduzione de Stefano Visentin ao tratado
La persecuzione degli eretici, de Sébastien Castellion: non de constituenda religione, sed de
constituenda republica”, 1997, VII).
Mas o herege não apenas faz uma escolha, mas também a ela se apega pertinaciter. Esta
pertinacia é uma característica constitutiva do herege, que não o seria se não persistisse na
dissidência. Para que uma heresia apareça, é preciso que o indivíduo ou o grupo que a advogam não
apenas se separem da comunidade, mas que permaneçam separados e tenham plena consciência dessa
separação (in Le Goff, 1995, 7). Nesse sentido, o caso dos anabatistas é exemplar. Com seus valores
sobretudo éticos e com seu ideal de amor fraterno, organizaram-se à maneira das primitivas
comunidades cristãs, tais como as supunham. A comunhão de bens era seu ideal de comportamento
cristão, bem como o total afastamento do poder civil, negando peremptoriamente qualquer
intercâmbio ou fusão entre Igreja e Estado. Para eles, a fórmula “rei cristão” carregava em si uma
contradição insolúvel e irreconciliável, e que a Igreja tivesse um braço secular e armado, aplicando
torturas e penas capitais, era nada menos que a prova cabal de que não se tratava da verdadeira Igreja
fundada pelo Cristo. Além disso, advogavam o batismo adulto, o que os obrigava necessariamente a
praticar o rebatismo, o qual estava condenado desde o século V, quando os imperadores Teodósio e
Honório proibiram o segundo batismo dos donatistas, “por temor de uma pena severíssima”. Aos
“homens de espírito depravado, que se empenham em fazer aquilo que está proibido”, as penas
variavam entre confisco de bens, desterro, privação de heranças e até mesmo castigos corporais. A
pena capital, porém, não era aplicada. Mas se os donatistas haviam sofrido punições e desterro, os
anabatistas foram perseguidos até a morte. Em seu Edito de Espira, de 23 de abril de 1529, Carlos V,
o “imperador romano, supremo advogado e guardião de nossa fé cristã”, parece ter desejado superar
o Código Teodosiano, de 413. Em seu edito, o imperador afirma que “ser batizado de novo ou por
segunda vez” está “proibido no direito imperial”, “sob pena de morte”. Os anabatistas e “seus
caprichosos, tendenciosos e revoltosos sequazes” são o alvo dessa lei, que ordena que “todos os
anabatistas e todos os homens e mulheres que tenham sido rebatizados, sempre que estejam na idade
da razão, sejam condenados à morte e privados da vida natural mediante a fogueira, a espada e coisas
semelhantes”. E aconselha ainda “que não se mostre o menor sinal de clemência para com nenhum
deles, nem com os mencionados pseudo-pregadores, instigadores, vagabundos e tumultuosos
incitadores do dito vício do anabatismo” (Williams, 1983, 273-4).
41
O ethos do “emissário” apresenta, assim, dupla característica: total submissão àquele
que o enviou e, por outro lado e ao mesmo tempo, exigência de adesão completa por parte
dos ouvintes, que, ao obedecê-lo, obedecem não a ele, mas a Deus. E, por outro lado, o do
“herege” ou “falso mestre” pressupõe a insurgência e a obstinação na desobediência.
Tudo aqui é apologético e polêmico, e torna-se impossível delimitar um apóstolo “em
si mesmo”, por assim dizer, sem confrontá-lo com os “falsos mestres”, que causam
“perturbação” e que têm por objetivo corromper o evangelho de Cristo” (Gl. 1, 7). Como
vários outros pregadores itinerantes e que podem passar por ali quando Paulo houver ido
embora, ele deixa a seguinte exortação:
Como dissemos e agora repito: se alguém vos pregar um evangelho
diferente daquele que recebestes, seja maldito! (Gl. 1, 9)
Essas características do autor cristão (de apresentar-se como enviado e portador de
uma mensagem, polemizar etc.) perpetuar-se-ão nos textos patrísticos e ressurgirão com toda
clareza em momentos cismáticos, como o da Reforma, conforme demonstraremos nos
capítulos 3 e 4 desta tese.
42
CAPÍTULO 2
O SERMO HUMILIS CRISTÃO
O polemista cristão precisa, pois, provar que todas as demais falas estão erradas e
investir-se da autoridade de enviado ou porta-voz. A primeira das estratégias com que o faz é
lançar mão da alegação de que sua fala é “anti-retórica”, por razões que veremos a seguir.
Antes de seguirmos adiante, convém lembrar que a palavra latina forma é, ela mesma,
passível de ambigüidade, uma vez que reúne em si conceitos que o grego expressava com o
auxílio de dois vocábulos diferentes: morphé (formas visíveis) e eidos (formas conceituais).
O Dictionary of the History of Ideas, que pode ser consultado na página da Internet da
University of Virginia (etext.lib.virginia.edu), tenta explicar os significados de forma por
meio do recurso a seus opostos. Se seu oposto é conteúdo, então forma significa “aparência
externa” ou “estilo”; se é tema ou matéria, então significa “formato”; se é elemento, é o
equivalente para a disposição ou o arranjo das partes. No discurso cristão, em que se vive o
paradoxo de pregar quando se crê que as palavras jamais serão capazes de expressar a
Verdade, assume-se, de saída, a superioridade do conteúdo sobre a forma e esta, em vez de
tentar servir de veículo para a total expressão daquele, não faz senão explicitar sua própria
inabilidade. Simplicidade e até mesmo certa rudeza são aqui preferíveis aos ornamentos,
associados ao sofisma e, por conseguinte, à mentira e à heresia.
A visão da linguagem coloquial e não-artística como mais próxima da verdade
perpassou toda a literatura cristã. Em Rom. 16, 17, por exemplo, Paulo afirma que os falsos
mestres seduzem “com belas palavras e discursos lisonjeiros”; em I Tm. 6, 20, alerta contra
os “falatórios ímpios e as objeções de uma pseudociência”; mais tarde, Jerônimo, por
exemplo, valorizou a rusticidade mais do que a eloqüência, considerada pecaminosa; em seu
Prefácio da Vulgata, afirmava que o exterior rude das Escrituras na verdade servia para
disfarçar um estilo não menos perfeito que o encontrado na literatura pagã, e que a Santa
Escritura é como se fosse (quasi) um belo corpo encoberto (pulchrum corpus) por uma roupa
suja (uestem sordidam). Segundo Basílio, Deus se preocupa não com palavras, mas com a
simplicidade do coração (Auksi, 1995, 16). Segundo Isidoro, “devemos amar a verdade, o
as palavras” (ibid., 98). Também na Idade Média afirmava-se que a relação entre a forma
43
(sententia ueritatis) e o conteúdo (compositio uerborum) não é de colaboração, mas de
oposição. Seguindo esse raciocínio, os escolásticos chamavam ao conteúdo sententia interior
e à forma, superficialis ornatus uerborum. A Reforma defendia o mesmo ideal de
simplicidade; assim, "a tarefa do teólogo", segundo Calvino, "não é divertir os ouvidos com
garrulice, mas fortalecer as consciências pelo ensino de coisas verdadeiras, certas e úteis"
(Theologo autem non garriendo aures oblectare, sed vera, certa, utilia docendo, conscientias
confirmare propositum est, IRC. I.14.4). Diz ainda que o contraste entre a “majestade do
tema” e o estilo baixo nas Escrituras se porque a Verdade se oferece na nudez de uma
linguagem sem arte para mostrar que ela se basta a si mesma. Da mesma forma, o erasmiano
Vives, ao comentar o Novo Testamento, afirma que “a simplicidade do estilo evangélico
encobre mistérios admiráveis”: a presumida e alegada ausência total de retórica é aqui a
condição de uma verdade absoluta (Millet, 1992,190). Erasmo, ao constatar que a língua dos
evangelistas é incorreta, rústica e bárbara, preferiu convidar o leitor a admirar outra arte e
outra eloqüência, a do autor inspirado. Tendo percebido que “sermo non solum impolitus et
inconditus, verum etiam imperfectus, perturbatus, aliquoties plane soloecissans”, e
reconhecido até mesmo a imperitia de Paulo na língua grega, Erasmo foi obrigado a
reconhecer que o conhecimento lingüístico dos apóstolos não era inspirado ou milagroso,
mas apenas humano… O mesmo com relação a Jerônimo, cuja Vulgata a tradição católica
atribuíra à inspiração divina. Mas esse sermo incultus pode ser até mesmo benéfico, diz
Erasmo, uma vez que, pregando sermone simplici inconditoque, os apóstolos não se
deixariam levar pelo orgulho da eloqüência humana. A sabedoria divina, afirma, tem suam
quandam eloquentiam.
Mas se o “advogado de Cristo” fala a língua pura e simples das Escrituras, o “falso
mestre” mente e ilude por meio de subterfúgios. O herege é também, portanto, o apóstolo da
falsitas: o sofista, o sedutor, o tergiversador.
no Aduersus Haereses, de Irineu, os “hereges” (aqui os gnósticos) são inculpados
com essas mesmas acusações, pois apresentam “discursos mentirosos” e, “por súbdola
aparência da verdade, seduzem a mente dos inexpertos e escravizam-nos, falsificando as
palavras do Senhor, tornando-se maus intérpretes do que foi corretamente expresso”. Além
disso, “ardilosamente, pela arte das palavras, induzem os mais simples a pesquisas e omitindo
até as aparências a verdade, levam à ruína, tornando-os ímpios e blasfemos contra o seu
44
Criador, os que são incapazes de discernir o falso do verdadeiro”.
27
O erro, com efeito, não se mostra tal como é para não ficar evidente
quando se descobre. Adornando-se fraudulentamente de plausibilidade,
apresenta-se diante dos mais ignorantes, justamente por esta aparência
exterior, - é até ridículo dizê-lo como mais verdadeiro do que a própria
verdade. Como foi dito, acerca disso, por alguém superior a nós: uma pedra
preciosa, uma esmeralda, que tem grande valor aos olhos de muitos, perde o
seu valor diante de artística falsificação de vidro até não se achar alguém
conhecedor que a examine e desmascare a fraude. Quem poderá facilmente
detectar a mistura de cobre e prata a não ser o experto? Ora, nós não queremos
que por nossa culpa alguns sejam raptados como ovelhas pelos lobos,
enganados pelas peles de ovelhas com que se camuflam. Esses, de quem o
Senhor nos ordenou nos guardar, esses, que falam como nós, mas pensam
diferentemente de nós (ibid., 29-30).
Irineu combate os “discípulos de Valentim”, ou valentinianos, i.e. os gnósticos, cuja
doutrina é “abismo de irracionalidade e de blasfêmia”, com a arma do cristão, que é a
alegação da verdade, pura e simplesmente. Não por acaso, portanto, vem em seguida uma
captatio beneuolentiae que é também uma defesa do sermo humilis:
Não acostumados a escrever, não tendo aprendido a arte de falar, mas
solicitados pela caridade que nos urge a manifestar a ti e a todos os que estão
contigo os ensinamentos deles, que foram mantidos secretos e que agora, pela
graça de Deus, se tornam manifestos, pois nada de encoberto que não
venha a ser descoberto, nem de oculto que não venha a ser conhecido.
27
Uma vez que este texto está sendo citado apenas a título de ilustração, não sendo o objeto deste
trabalho, utilizamos a tradução de Lourenço Costa para a Coleção Patrística da Ed. Paulus, 1995, 29.
45
Não procures em nós, que vivemos entre os celtas, e que na maior
parte do tempo usamos uma língua rbara, nem a arte da palavra, que nunca
aprendemos, nem a habilidade do escritor em que nunca nos exercitamos, nem
a elegância da expressão, nem a arte de convencer, que desconhecemos. Mas,
na verdade, na simplicidade e na candura aceitarás com amor o que com amor
foi escrito e desenvolvê-lo-ás por tua conta, visto que és muito mais capaz que
nós. Depois de o receber de nós como semente e princípio, fa-lo-ás frutificar
abundantemente pela grande capacidade do teu intelecto e o que por nós foi
dito com poucas palavras e insuficientemente te demos a conhecer, apresenta-
lo-ás com vigor aos que estão contigo. E, assim, ao responder ao teu desejo, já
antigo, de conhecer as doutrinas deles, não somente nos esforçamos para to
manifestar, mas também para fornecer-te os meios para demonstrar a sua
falsidade. Assim tu também esforçar-te-ás por ajudar os outros, conforme a
graça que te foi concedida pelo Senhor, de forma que os homens não se
deixem induzir ao erro pela doutrina capciosa deles (ibid., 30-1).
Também em Inácio de Antioquia aparece, na Epístola aos Efésios, por exemplo, o
tema do verdadeiro cristão, que é aquele “fala e faz” (ou seja, age de acordo com o que
prega):
É melhor calar e ser, do que falar e não ser. É bom ensinar, se aquele
que fala, faz. De fato, um único mestre, aquele que disse e era. E o que ele
fez, calando, são coisas dignas do Pai. Aquele que possui verdadeiramente a
palavra de Jesus pode escutar também seu silêncio, a fim de ser perfeito, para
realizar o que diz ou para ser conhecido pelo seu silêncio.
28
28
INÁCIO aos Efésios, 15-7, in Padres Apostólicos, Coleção Patrística, trad. Roque Frangiotti, p. 87.
46
na Epístola aos Esmirniotas, o herege é, novamente, o enganador. Digna de nota é
também consciência demonstrada por Inácio de que eles, os cristãos “verdadeiros”, sofrem,
por parte dos “hereges”, a mesma construção de uma imagem negativa:
Amados, é isso que eu vos recomendo, sabendo que vós também
tendes o mesmo pensamento. Quero, porém, colocar-vos de sobreaviso contra
as feras em forma humana. Não não deveis recebê-las, mas, se possível,
sequer encontrá-las. Somente rezem por elas, para que possam converter-se, o
que é difícil. (…) Alguns que o renegam (a Jesus Cristo) por ignorância, são
ainda mais renegados por ele. São mais defensores da morte do que da
verdade. Não foram persuadidos nem pelas profecias nem pela lei de Moisés,
e até agora nem pelo evangelho nem pelos sofrimentos de cada um de nós,
pois eles pensam o mesmo a respeito de nós (ibid., 116-7, itálico desta
pesquisadora).
Inácio, portanto, reconhece que, do ponto de vista contrário, “nóssomos os hereges,
e que, por isso, é difícil” convertê-los. Uma admissão tão simples e clara desse mecanismo
de atribuição de culpa de ambos os lados não voltará a aparecer em nenhum outro texto
estudado no presente trabalho.
Uma linguagem muito menos tolerante aparece em Policarpo de Esmirna, queimado
vivo num circo romano no ano de 155. No capítulo 7 de sua Carta os Filipenses, alerta contra
os ensinamentos falsos com as seguintes palavras:
Quem não confessa que Jesus Cristo veio na carne, é anticristo; aquele
que não confessa o testemunho da cruz, é o diabo; aquele que distorce as
palavras do Senhor segundo seus próprios desejos, e diz que não ha
ressurreição, nem julgamento, esse é o primogênito de Satanás. (ibid., 143)
E, segundo Policarpo, a prova material de que o verdadeiro cristão dispõe contra esses
inimigos são, precisamente, seus “discursos vazios” e seus “ensinamentos falsos”, a que se
47
deve contrapor “o penhor de nossa justiça”, Jesus, “em cuja boca não foi encontrada
nenhuma falsidade” (ibid., 143-4).
Também Tertuliano trata longamente do tema, em Da prescrição dos hereges. Aqui,
o herege é descrito como tendo “curiosidade e versatilidade (exercitatio) nas Escrituras”, mas
não necessariamente fé, uma vez que são “gente que ainda se confessa em busca da verdade”.
Mas, sendo o herege um ardiloso sofista, essa sua dúvida é, na verdade, um estratagema para
atrair os incautos:
Eles fingem estar à procura para insinuar-nos seus escritos,
aproveitando-se da nossa solicitude; mas, assim que travam contato conosco,
passam a sustentar o que antes diziam apenas estar investigando. Saibamos
repeli-los, de modo a verem que os estamos renegando, não a Cristo. Porque
se estão em busca, nada sustentam; se nada sustentam, ainda não creram; e se
ainda não creram, não o cristãos. (…) Não são cristãos, mesmo diante de si
próprios, quanto mais diante de nós! Se se aproximam fraudulentamente, que
podem discutir? Que verdade podem defender pessoas que no-la sustentam
através da mentira?
29
Assim que conseguem, por meio da sedução, mencionar as Escrituras, os hereges
iniciam o “combate” e, durante este, “vão fatigando os fortes, seduzindo os fracos, deixando
escrúpulos nos medíocres”. “Nada conseguirás senão perder a voz discutindo e encolerizar-te
blasfemando” (ibid.)
A imagem do herege como sofista continua também a ser largamente empregada nos
tratados polêmicos da Reforma; Lutero, por exemplo, acusa os “papistas” de “disseminar
heresias” por meio de falácias, isto é, sofismas” (Evans, 1992, 97). E Melanchthon, embora
a título de brincadeira, afirma que se alguém escreve ego currit, não se trata de um pobre
gramático empregando mau latim, mas de um herege (ibid., 86).
O próprio Castellión, humanista e professor de língua grega, renega, em suas longas
polêmicas acerca do termo haereticus, a ars dicendi, por meio da qual se pode disputar tanto
contra como a favor de uma causa, e conclui, num parágrafo não desprovido de concinnitates
e antíteses, que o orador considerado perfeito é aquele que obedece “a todos os preceitos
29
TERTULIANO, in Padres Apologistas.
48
daquela trapaceira, a Serpente” (omnibus vafri illius Serpentis praeceptis), e que, portanto, a
ars dicendi é, em essência, ars mentiendi. Escreve ainda contra os malitiosi sophistae,
sempre prontos a empregar as “Aristotelum et Ciceronum artes”, as quais não buscam a
Verdade, mas “tenebras effundant oculis iudicium”.
Essa presumida superioridade do estilo baixo deve-se à crença de que um discurso
inspirado pela própria Divindade não pode ater-se às normas e regras ditadas pela retórica.
Quando o autor serve de veículo para a transmissão da Verdade, sua forma deve ser,
necessariamente segundo esta visão, contra a arte, ou seja, sem quaisquer artifícios. A
estética do texto cristão depende, portanto, da ética do pregador, o qual necessita, para
falar corretamente, de um cor mundum, ou seja, de uma receptividade às verdades reveladas,
que, por sua vez, só se dão a conhecer aos “puros”. É tão indissolúvel a relação entre o que se
diz e o que se faz que Erasmo trata de faltas morais num tratado sobre a ngua latina. O mau
uso da palavra, ou seja, a tagarelice (garrulitas, loquacitas, insatiabilis garriendi libido ou
immodica dicendi copia) é um problema moral, bem como a destinata malitia, a mentira. Um
espírito equilibrado e cultivado releva-se no uso de uma língua pura, ou, nas palavras de
Erasmo, munda, erudita, sana (Chomarat, 1981, 1012). A palavra munditia, que nos
humanistas significava essa elegância que advém de um texto sem rebuscamentos, assume
então também a conotação de pureza interior. Castellion afirma que a premissa para o
conhecimento da Verdade é a posse de um cor mundum, “porque em primeiro plano está a
vida e a conduta e, no mais, o perfeito conhecimento tem como pressuposto um cor mundum
(Bracali, 2001, 41).
No entanto, cristãos também empregam palavras como instrumentos de persuasão, e,
por conseguinte, estão submetidos a um julgamento crítico, implícito em seu papel de autor
que usa certos modos de expressão. Em seu “O jogo das perspectivas na narrativa blica”,
Meir Sternberg (in Amossy, 2005, 186) menciona a “triste herança” deixada pela hipótese de
que um conflito entre ética e estética na blia, conflito tomado de doutrinas outras
(pietista ou patrística, platônica ou puritana), “totalmente estranhas ao espírito da Bíblia”:
Na verdade, a controvérsia não se mostra na Bíblia porque, fora do
veto exercido contra as imagens de ídolos, Deus não aparece como crítico de
arte.
49
Ao contrário:
Além disso, seu ponto de vista (de Deus) permanece perfeitamente
neutro. Diferentemente de Homero ou das Musas de Hesíodo, que
personificam a força universal da poesia, Deus permanece sublimemente
indiferente à arte como produto humano. E, da mesma maneira que seus atos e
suas exigências condicionam a estética da estrutura ideológica, sua indiferença
confere uma legitimidade pelo menos tácita ao entusiasmo do narrador por sua
arte. (ibid., 191)
Ademais, quando se depara, num livro escrito e publicado, com manifestos de
humilitas ou simplicitas, um pesquisador da Área de Letras tende imediatamente a analisar a
complexidade e o artifício que se ocultam ou disfarçam sob a aparente “falta de arte” daquele
texto. E que o critério do bem escrever fosse importante na época e nos discursos ora
estudados, prova-o o prefácio do segundo livro de Servet, Dialogorum de Trinitate libri duo,
em que o jovem autor se retrata das coisas que havia escrito em seu livro anterior, “não
porque sejam falsas, mas porque são imperfeitas e foram escritas como por uma criança para
crianças” (non quia falsa sint, sed quia imperfecta, et tanquam a parvulo parvulis scripta).
Mas o que saiu à luz assim tão bárbaro, confuso e incorreto, o livro
anterior, deve ser atribuído a minha imperícia e ao descuido do tipógrafo. E
não queria que, por causa disso, cristão algum se houvesse ofendido, uma vez
que Deus, de vez em quando, costuma divulgar sua sabedoria por meio dos
tolos instrumentos do mundo. Assim, pois, observa, por favor, o assunto tal
como é, pois, se prestares atenção nele, não te embaraçarão minhas palavras
embaraçadas.
30
30
Quod autem ita barbarus, confusus, et incorrectus, prior liber prodierit, imperitiae meae, et
typographi incuriae adscribendum est. Nec vellem quod propterea Christianus aliquis offenderetur,
cum soleat aliquando Deus per stulta mundi organa suam sapientiam proferre. Observa igitur,
obsecro, rem ipsam, nam si mentem advertas, non te impedient impedita mea verba. Dialogorum de
Trinitate Libri Duo, per Michaelem Serveto, alias Reves, ab Aragonia Hispanum. Anno M.D.XXXII,
2.
50
O que Servet disse foi que escreveu a verdade, mas escreveu mal, como uma criança
ou com barbarismos (a mesma acusação sofrida por um ofendido Erasmo) e está se
desculpando por isso, pois seu mau latim não teve a intenção de ofender o que leva a
pensar que, ademais dos ataques teológicos, tenha sofrido também pesadas críticas literárias.
Ainda assim, ou talvez por isso, termina o prefácio pedindo ao leitor que ele se atenha à res,
não às uerba; estas são os empecilhos que impedem o caminho da compreensão.
Mas por que um leitor cristão, acostumado à idéia de que escrever artisticamente é
sinônimo de mentir, ofender-se-ia com o livro mal escrito de um adolescente espanhol? E por
que este se viu obrigado a retratar-se, não do conteúdo, mas da forma e até de erros
tipográficos, se, segundo a própria “teoria literária cristã”, a “rudeza” da língua dos
evangelhos é superior a tudo o que os autores clássicos pagãos produziram?
Em primeiro lugar, há aqui uma questão de legitimação por meio da “posição social”
do autor; se Melanchthon era professor de grego em Wittenberg e se Calvino havia
ingressado nas letras com um comentário erudito sobre o De Clementia de Sêneca, Servet,
que tinha a desvantagem de ter vindo da Espanha inquisitorial dos reis católicos, tinha
ainda a pretensão de ensinar aos reformadores os “erros da Trindade”, e, não bastasse a
heresia, ainda o fazia em mau latim. Diferentemente do apregoado nos textos, portanto, de
que o verdadeiro orador escreve sem arte e sem artifício, os demais reformadores deveriam
estar se perguntando quem era aquele que tinha a audácia de se pôr a ensinar-lhes doutrina, se
mal sabia latim. Mais de vinte anos mais tarde, Calvino usará no tribunal de Genebra o
argumento de que Servet não possuía fluência em grego. Afinal, para interpretar é preciso ler,
e dominar as línguas bíblicas era a condição sine qua non para se apresentar para um debate
que era também grandemente semântico. E se Servet não era perito em línguas (acusação
aliás totalmente infundada), tampouco podia ser levado a sério quando citava em seu favor os
doutores antigos ou propunha alguma leitura extraída da etimologia de um termo
escriturístico.
Em segundo lugar, e agora não apenas com respeito a Servet, é preciso delimitar o
que um autor quer dizer quando fala em simplicitas. Algo simples deve ser claro, sem
rebuscamentos ou ornatos, singelo e franco; mas deve ser também elegante, na acepção em
que as ciências exatas empregam o termo, ou seja, a solução do problema matemático é
elegante se encontrada com o número mínimo de cálculos, apenas o necessário e gico, sem
idas e vindas. Assim, em quaisquer situações, a elegância é sinônimo de simplicidade na
51
medida em que ambas evitam a complicação. Lembremos aqui a etimologia de simplex: sem-,
que significa “um”, como em semel, “uma vez”, e - plex, de plicare, “dobrar” e, assim, o
“simples” seria “aquele que tem uma só dobra” (Auksi, 1995, 3); o complicatus é, por
conseguinte, o antônimo de simplex. Deus é simples; de fato, nada é mais simples: enquanto
tudo o mais é composto, dependente e sujeito a “complicações” e a “desdobramentos”, Ele é
indivisível, uno, perfeito na unicidade de Si mesmo. E assim também é seu discurso, quando
se dá a conhecer aos homens.
Segundo Erich Auerbach (in Auksi, 1995, 24), três razões principais pelas quais o
estilo baixo impôs-se como “verdadeiro” na mentalidade cristã. Primeiramente, o termo
humilis entra no imaginário cristão como um adjetivo apropriado para o “rebaixamento” da
Divindade à Encarnação. Em segundo lugar, o sermo humilis se harmoniza com a humilitas
social e cultural daqueles a quem o Cristianismo acolheu em seus primórdios. E,
principalmente, o estilo baixo é aquele das Escrituras.
No entender desta pesquisadora, que procurará comprová-lo ao longo do trabalho,
ainda três outras razões: uma, inseparável do discurso cristão, que é propriamente ética ou
moral; outra, relacionada à prática do genus suasorium; e uma terceira que se deve à própria
natureza das polêmicas.
2.1. Sermo humilis e ética cristã
Uma razão a nosso ver sólida e mesmo fundamental neste trabalho para o emprego do
estilo baixo por nossos autores é a convicção, extraída do evangelho, de que a boca fala
daquilo de que o coração está cheio” (Mt. 12, 34; Lc. 6, 45), ou seja, as palavras explicitam o
que vai no coração de quem fala e, portanto, a munditia e a humilitas no falar comprovam
que munditia e humilitas também na alma do orador e isso é apresentado como uma
prova concreta de que ele está ao lado da Verdade; uma eloqüência e um estilo “naturais” são
52
os pressupostos da fides do enviado. Calvino resume esse tópico quando confessa seguir
Sêneca, 114,1: Talis hominibus fuit oratio qualis uita.
31
A esse respeito, apresentaremos um passo curto, mas interessante, da Restitutio que
nos permite acrescentar mais uma prova a este argumento. Na Quarta Parte, Livro Primeiro,
página 384, Servet afirma que o pecado é capaz de alterar tanto o corpo como a alma do
pecador “cum insigni pudore”: com uma vergonha assinalada ou sinalizada, ou seja, marcada
para ser visível.
Por isso costumam transformar-se os rostos dos homicidas, dos
devassos e dos possuídos por demônios.
32
Existe, pois, a crença de que as faltas morais tornam-se visíveis exteriormente. Um
herege, portanto, não apenas apregoa heresias como também se comporta como herege e tem
aparência de herege. Da mesma forma, um cor mundum tornar-se-ia manifesto numa
aparência igualmente limpa e num bom comportamento que, por sua vez, seria a fonte e a
prova autoritativa de um discurso puro e verdadeiro. Segundo as regras do estilo baixo, e
porque afirma falar em nome da Verdade, o orador professa então sua puritas e sua
sinceritas, em contraste com a falsitas e com a imoralidade que apontará no outro. E, por
outro lado, um discurso emaranhado é a prova de que subterfúgios e intenções secretas
também no íntimo do falante.
No artigo Ato e Pessoa na Argumentação, publicado no livro Retóricas, Chaïm
Perelman (1997, 226) trata da “influência dos atos sobre a concepção da pessoa e a da pessoa
sobre os seus atos”. Para esse autor, existe uma concepção “coisista” da pessoa, “em que cada
ato é considerado um indício revelador de uma personalidade imutável e preexistente às
suas manifestações” (ibid., 227). Essa concepção, diz, é comprovada por um passo de
Isócrates:
Se um sinal distinguisse os homens viciosos, melhor seria, de fato,
castigá-los antes que prejudicassem um de seus concidadãos. Mas, uma vez
31
Em Cícero, Tusculanas, V, 47, aparece a mesma idéia: qualis autem homo ipse esset, talis eius esse
sermonem.
32
Hinc homicidarum, flagitiosorum, et a daemonibus occupatorum solent facies mutari. Christ. Rest.,
384
53
que não se pode reconhecê-los antes que tenham feito mal a alguém, convém,
pelo menos quando são descobertos, que todos os detestem e os olhem como
inimigos de todos. (Isócrates, Contra Lobittes, apud Perelman, 1997, 227)
Dentro dessa visão de mundo, conclui, “a punição não deveria ser proporcional à
gravidade da ofensa, mas à maldade da natureza por ela revelada” (ibid., 227).
Aplicando essa teoria à nossa pesquisa, vemos como, em nossos textos, o inimigo
nunca é “apenas” ignorante, mas sua ignorância o transforma automaticamente numa
“ferramenta do Diabo”, ou seja, o que poderia ser tão somente falta de informação converte-
se de imediato em intencionalidade maligna contra toda a Verdade. Daí a necessidade de
punir os hereges não apenas desmascarando a mentira de sua doutrina, mas “com a espada”
ou a fogueira. Pensemos, por exemplo, no título do livro de Calvino analisado nesta tese:
Defesa da ortodoxa sobre a Santa Trindade contra os erros prodigiosos de Miguel Servet
de Espanha; onde se mostra que os hereges devem ser reprimidos pelo direito da espada e,
principalmente, que foi justo e merecido o suplício desse homem ímpio em Genebra..
Esse mecanismo é tão claro nos textos com que nos ocupamos nesta pesquisa que, de
volta a Perelman (1997, 229), encontramos um trecho de Calvino como exemplo do processo
de “conhecimento de atos passados” e de “previsão de atos futuros” (ibid., 228) que se dá por
meio do juízo que se forma acerca de alguém por meio de seus atos e palavras. Em suma:
quem algum dia proferiu uma palavra sediciosa, este envolver-se-á em sedições. quem
fala de forma sediciosa age sediciosamente, e vice-versa. E mais: o fato de fazê-lo define-o
como “caráter”.
2.2. Sermo humilis, sátira e discurso panfletário
Em segundo lugar, vem outra questão importante para esclarecer o emprego do estilo
baixo: a de que a Reforma, comprometida com a luta contra os abusos, engajou-se, por
conseguinte e mesmo necessariamente, em polêmicas (“such actions by necessity involved
54
polemic”, Matheson, 1998, 3). Estas, para ser bem sucedidas, tinham de ser endereçadas não
apenas às instituições corrompidas, mas também àqueles que as personalizavam. E, assim, as
polêmicas tendem a tornar-se “pessoais”, com a ridicularização de indivíduos ou grupos,
freqüentemente por meio de panfletos. E o estilo baixo é o que mais se adapta à literatura
panfletária, em que está permitido abandonar um vocabulário polido e conveniente em nome
de uma postura mais firme, necessária, por exemplo, para a sátira aos papistas ou a
reprehensio uitae do “réu”, aqui o inimigo, o herege
33
.
Como nos lembra Matheson (1998, 30-1), “uma pluralidade de vozes” emergiu
durante a Reforma. Não por acaso, portanto, o panfleto, fortemente construído sobre a
personalidade de algum líder carismático, é a literatura por excelência do período. Nas
palavras de Matheson: “panfletos são construídos ao redor de personalidades, ao redor de
heróis e anti-heróis, mais do que de temas abstratos”. Trata-se, aqui, de uma literatura
confessional, ativista, de crise (cultural, política, social e religiosa), fortemente engajada, e
“por trás de cada panfleto está o colapso de um consenso prévio” (ibid., 32).
Segundo Marc Angenot (1980, 70), em La Parole pamphlétaire, o panfleto é definido
em termos de ato pelo qual o enunciador “se engaja, se coloca como fiador do que constata e
procura influenciar o auditório”. O panfleto, assim, distingue-se precisamente pela forte
presença do autor (o “enunciador”) no discurso. O discurso panfletário é por definição
opinativo e, portanto, pressupõe uma “consciência” que se inscreve no sistema de crenças de
que o “eu discursivo” se apropria. O ethos do autor panfletário é o do excluído que não tem
senão o poder da verdade que ele proclama; é, como diz Amossy (2005, 20), “o solitário
dotado de coragem intelectual, o homem do pathos e da indignação, a voz que clama no
deserto”.
O próprio formato dos panfletos, a arma mais usada por reformadores e manejada por
eles sempre em situação de interação, pode educar e divertir, mas tem como finalidade
primeira desafiar seus leitores e inculcar neles atitudes novas e encorajá-los a novos
comprometimentos e ações. O mesmo com relação ao humor tantas vezes carregado
empregado nas polêmicas e que tem, entretanto, uma função lúdica, na medida em que
33
Não por acaso, foram os panfletos da Reforma os primeiros livros impressos em línguas vernáculas;
mas o genus humile vale também para as polêmicas em latim, as quais pressupõem uma audiência de
pares intelectuais, capazes, por exemplo, de identificar e entender alusões a autores clássicos. Um
dado interessante e de grande relevância: Gilmont (in Higman, 1998, 445) comenta que, das treze
edições de Calvino com o editor Jean Crespin, doze são de tratados polêmicos.
55
empresta algo de jocoso a um discurso de outra forma pesado, e, assim, torna-o mais leve
com uma “licensed release of aggresion”, na expressão de Matheson (1998, 8, n.6). O humor
é, afinal, fruto de um intelecto pido e também de urbanitas, ao passo que a caricatura, por
exemplo, encoraja a que se ria daquele a quem de outra maneira se teria medo. E a sátira
pode ainda ter um caráter heurístico, na medida em que provê ferrramentas para um
diagnóstico da sociedade que a gerou, e serve para demonstrar as incongruências de uma
situação. Como exemplo, citemos uma das raras vezes em que Erasmo usa a expressão
“vigário de Cristo”: após dizer que o Papa permite que lhe beijem as sandálias e se faça
escoltar por guardas armados, Erasmo afirma que lhe pode conceder tudo isso, “uma vez que
ele tem no coração uma solicitude paternal, uma modéstia extrema e uma caridade digna de
um vigário de Cristo” (in Chomarat, 1981, 703). Ademais, o riso é também libertador em seu
caráter subversivo, uma vez que a sátira é, freqüentemente, a única arma contra a opressão.
Erasmo, que denunciou a mentira com tanta veemência, apreciava o jogo e a ironia, pois a
busca piedosa da verdade não exclui a brincadeira, a ponto de dizer que “não nada mais
alegre do que a verdadeira piedade” (vera pietate nihil est hilarius, De recta pronuntiatione,
LB I 921 E).
Ser alvo de censura pela ridicularização era, entretanto, incompatível com a dignidade
do “enviado”. Acusações de comportamento dissoluto e, por conseguinte, passíveis de
despertar o riso devem, portanto, ser desmentidas como “calúnias”, uma vez que, antes de
mais nada, uma vida dupla pressupõe um discurso duplo. Lembremo-nos de Perelman (1997,
230), segundo o qual “a idéia que se faz da pessoa constitui o ponto inicial da argumentação e
serve, quer para prever certos atos desconhecidos, quer para interpretá-los de certa forma,
quer para transferir para os atos o juízo formulado sobre a pessoa”. Assim, Calvino fala da
“conduta exemplar” de certos novos convertidos que chegaram a Genebra (Millet, 1992, 519)
e evoca como modelo seu próprio casamento, que estaria livre de contrair “estando sob o
Papa”. O que Calvino está dizendo é que, como reformado, mantém um casamento segundo
as leis, enquanto que, se fosse um padre católico, seria obrigado a viver hipocritamente com
uma concubina.
Hansen (1989, 30), ao estudar a sátira no Brasil colonial do século XVII, fala de uma
“retórica da maledicência”, lembrando, porém, que a maledicência, na sátira, “é um efeito
semântico, verossímil da ira produzido em convenções retóricas pela fantasia poética”; na
sátira, “as paixões sofrem codificação retórica que as regula, distribui e amplifica como outra
56
natureza discursiva”. o retóricas, portanto, e não realistas, “as descrições satíricas de tipos
e caracteres, produzidas por tropos e figuras de inversão e exageração” que são, afinal,
“caricaturas” (ibid., 33). Na Reforma, igualmente, recorreu-se muito à caricatura contra o
Papa e o clero em geral, mas também se usou de virulência contra aqueles que não detinham
o poder, mas que o ameaçavam potencialmente (como, por exemplo, os anabatistas). Tanto
na sátira como no vitupério, o sermo empregado era o baixo.
Nos tratados polêmicos, especialmente os escritos em francês, Calvino falou a “língua
de Rabelais”, “a língua dos escritores cômicos” (Higman, 1998, 379): neles, os adversários
são freqüentemente chamados de porcos ou cães, comparados a prostitutas ou a limpadores
de latrinas.
Um desses textos que, embora escritos em francês, nos interessam de perto pelo tema
e pela linguagem havia sido publicado por Calvino em 1544, a polêmica Brieve instruction
pour armer tous les bons fideles contre les erreurs de la secte commune des Anabaptistes, a
qual pretende refutar a chamada Confissão de Schleitheim, de autoria do anabatista Michael
Sattler, que havia sido divulgada em 1527: um pequeno panfleto com os sete pontos
fundamentais da doutrina anabatista que levou à morte seu autor, Michael Sattler, torturado
da forma mais brutal antes de ser queimado vivo, poucos meses após sua publicação.
Segundo Higman (1998, 427), este é um texto-chave para a compreensão da estética
calviniana: há uma acomodação do discurso ao nível da platéia, com um vocabulário simples
e uma ordem didática na apresentação dos argumentos. Isso, entretanto, nada tem de ingênuo,
mas, ao contrário, deixa entrever o que há de sistemático nessa aparente simplicidade.
A captatio beneuolentiae é tradicional: prevendo que algum dos pastores de
Neuchâtel, aos quais está dedicado o Prefácio, poder-se-ia perguntar por que Calvino deveria
incomodar-se em responder a um “livro merecedor de nenhuma atenção ou comentário”, o
pastor de Genebra explica que acabou por “ceder tanto ao julgamento quanto aos desejos
daqueles que eu sei serem zelosos da glória de Deus e da edificação de Seu povo”.
Mas não é só, e ele continua, num parágrafo de impressionante ironia cuja intenção é
rebaixar os anabatistas ao nível da total desclassificação:
Temos ainda outra razão como resposta perante àqueles que possam
querer pensar que é um desatino de minha parte ocupar-me com algo tão débil
e frívolo como este panfleto, que tem a aparência de ter sido composto por
57
pessoas ignorantes, e que é a de que nós não temos nenhum privilégio maior
do que os profetas de Deus tinham e que nosso esforço não é mais precioso do
que o deles. Pois nós sabemos que Ezequiel (13, 17) foi obrigado a falar e a
escrever não apenas contra sedutores ignorantes e pessoas sem reputação, mas
também contra mulheres que queriam tornar-se profetisas. Vendo que o
profeta não se furtou a disputas contra mulheres, e que, na verdade, foi
ordenado a agir assim por nosso Senhor, visto que elas, por meio de suas
mentiras, estavam levando o povo à superstição e ao erro, e impedindo o curso
da verdade, seria presunçoso de nossa parte não desejar suportar o mesmo
(pp.36-7, em tradução nossa).
Apesar de tão “inepto e escrito de forma descuidada” (p. 37), o livro anabatista
contém em si algum perigo, uma vez que “tem a capacidade de enganar e de desviar os
simples, que não têm juízo para discernir” (p. 37). É para eles, “que o incultos e iletrados”,
que Calvino se ao trabalho de descrever a natureza e o caráter venenoso” da doutrina
anabatista. Mas Calvino almeja também “todos aqueles que têm o desejo de continuar no
puro conhecimento de Jesus Cristo e na obediência de Seu evangelho”, e deles exige que
tenham “paciência” de ler atentamente”. Até mesmo os pastores devem lê-lo, a fim de que
“possam continuar na pura doutrina e ser preservados de todas as opiniões perversas que são
contrárias à verdade do evangelho sagrado” (p. 38).
Calvino divide o Anabatismo em duas grandes correntes, e propõe-se a descrevê-las,
embora afirme, de início, que “escrever contra as falsas opiniões e erros dos anabatistas
envolver-me-ia em tema demasiadamente amplo e resultaria num abismo do qual eu nunca
sairia. Pois essa gentalha difere de outras seitas heréticas em que não apenas erram em certos
pontos, como dão margem a todo um mar de opiniões insanas. Tanto que dificilmente se
encontraria um anabatista que não esteja infectado com fantasias” (p. 39).
O primeiro grupo dos anabatistas pratica “muitos erros perversos e perniciosos”, mas,
diz Calvino, “pelo menos aceita a Sagrada Escritura, assim como nós”, fazendo pensar que
talvez se refira a Michael Sattler e os anabatistas suiços. o segundo “é um labirinto sem
paralelo de tantas opiniões absurdas que é impressionante que criaturas que carregam a forma
humana possam ser tão desprovidos de senso e de razão a ponto de serem tão ludibriados e de
caírem vítimas de fantasias tão brutais” (p. 39-40). É claro que uma tal confusão haveria
58
forçosamente de tornar sua fala confusa também, e Calvino fala de um “jargão” (ilz ont un
gergon), que “ninguém consegue interpretar e que nem eles próprios entendem, a menos que
eles tentem por tal artifício encobrir a torpeza de sua doutrina” (p. 40).
Eis, portanto, a razão por que se ocultam em suas cavernas de palavras
obscuras e incertas:, para que não possamos descobrir sua vilania e julgá-los
com horror e execração. (p. 40)
O texto segue atribuindo aos anabatistas as características típicas da heresia, como a
de ser “malícia venenosa” (p. 40); também a aparição dos Sete Artigos da Confissão de
Scheleithem, por exemplo, é interpretada como a ocasião encontrada pelos anabatistas para
“semear seu veneno por toda parte e infectar as pobres pessoas” (p. 41). A anabatista é,
ademais, “abuso fatal, tão mortal quanto a peste” e, contra ela, Calvino se dirige a “todos os
amantes da verdade” e a todos aqueles “que querem ser obedientes à verdade” (p. 41).
Os anabatistas estão ainda “preocupados com orgulho e presunção”, têm “obstinação
e malícia” e “fecham deliberadamente os olhos a fim de o ver a luz, embora apresentada a
eles em completa claridade” (p. 41). Ademais, a razão é usada contra eles “em vão” (en vain),
e se pode considerar um lucro quando os bons identificam “sua desesperada impudência,
desembaraçam-se e fogem deles como de um veneno” (p. 42).
O herege é também um sedutor, e Calvino atribui aos anabatistas também essa
característica, acrescentando-lhe ainda a habilidade em lançar mão de uma execrável
blasfêmia”, o “subterfúgio”:
Agora, visto que não pretexto mais justo para seduzir pobres
cristãos, que são zelosos para seguir a Deus, do que usar a Palavra de Deus, os
anabatistas, contra quem escrevemos presentemente, trazem sempre na boca
este prefácio (ont tousiours ceste preface en la bouche). E quando alguém nos
diz que é Deus quem fala, certamente todas as criaturas sentem-se movidas,
por reverência a Seu nome, a ouvir humildemente o que está sendo dito.
Quando nós entendemos que é verdadeiramente a Palavra de Deus que está
sendo ouvida, então uma réplica está fora de questão, bem como sequer abrir
nossa boca para disputar o contrário. Nós não dizemos, como os papistas, que
59
é necessário submeter a Santa Escritura à autoridade dos homens, pois nós
consideramos esse subterfúgio uma execrável blasfêmia. Mas nós garantimos
que tudo que parece ter vindo de Deus e deriva de Sua santa Palavra deve ser
recebido por nós, humildemente e sem qualquer controvérsia ou dificuldade.
Além disso, nós não acreditamos que qualquer outra doutrina deveria ser
reconhecida como verdadeira e certa a menos que venha dessa fonte de toda
verdade. (p. 42)
No decorrer do tratado, em que refuta artigo por artigo da Confissão, Calvino ainda
tem ocasião de chamar os anabatistas e sua doutrina de “estes pobres fanáticos” (p. 46),
“estes pobres ingratos” (p. 56), “seita desprezível” (p. 67), “blasfêmia detestável” (p. 67),
“ilusão perniciosa” (p. 67), “rebelião e contumácia” (p. 67), “pobre frenéticos” (p. 81),
“fanáticos miseráveis”, que “não tem outro objetivo senão colocar tudo em desordem” (p.
85), “inimigos do governo” (p. 86), “alegações falsas e perversas” (p. 91), “inimigos de Deus
e da raça humana” (p. 91), “pobres fanáticos que tomam como revelações divinas todas as
fábulas que ouviram alguma vez suas avós contarem” (p. 96), “gente leviana” (p. 99),
“porcos que reviram tudo com seus focinhos” (p. 99), “animais” (p. 110), “impudência
audaciosa” (p. 110), “nobre sofisma(p. 124), blasfêmia que desonra nosso Senhor Jesus”
(p. 128), “fantasia repugnante à inteligência humana” (p. 128), esses loucos” (p. 143), para
citar apenas alguns exemplos.
Interessante observar que Calvino se descreve a si mesmo como “puro”, em oposição
aos phantastiques anabatistas: “mais ainda, é de nós que esses pobres ingratos tiraram o que
sabem, salvo que, por sua ignorância ou presunção, corromperam a doutrina que nós, de
nossa parte, ensinamos com pureza” (p. 56). Ao refutar os artigos da Confissão, diz ainda que
“estou quase envergonhado de repassar essas coisas triviais. Mas, como sei que os simplórios
e os ignorantes são seduzidos por elas, sinto-me obrigado a mostrar como podem evitá-las”
(p. 86).
Um passo marcante, mas em nada estranho às polêmicas quinhentistas: “enfim, como
um bêbado, depois de arrotar alto, lança fora o caldo imundo que jaz pesado em seu
estômago, assim esses miseráveis, tendo vilipendiado o chamado sagrado que nosso Senhor
tanto estimava, vomitam finalmente em voz alta blasfêmias muito mais perturbadoras” (p.
89).
60
Um linguajar tão pouco reverente não era incomum no século XVI; era, ao contrário,
a regra nessas disputas em que se praticava, sem muita cerimônia, tanto a contentio dignitatis
(o elogio daquele a quem se defende) quanto a reprehensio vitae (censura daquele a quem se
ataca). A isso deve-se também o recurso de "desumanizar" o adversário, atribuíndo-lhe as
características animalescas do burro, do porco, do lobo ou da ave de rapina. Lutero, por
exemplo, certa vez declarou que todos os porcos da Bavária haviam se mudado para a
faculdade de teologia de Ingolstadt (Matheson, 189). Também Calvino recorre a essas
imagens em outras ocasiões, a fim de demonstrar desprezo, como quando diz que "outros
revoltam-se, como cães que retornam a seus vômitos, e porcos a seus lodaçais" (Inst. 1541,
XXXViii), ou neste trecho de nosso texto: “Mas eu digo, ao contrário, que, se animais
pudessem falar, falariam mais sabiamente” (p. 98). Ao contestar as Acta do Concílio de
Trento, afirma que os monges ali não produzem artigos teológicos, mas que “altercando-se,
coaxam não sei que estridência, como as rãs de Aristófanes”
34
(OC VII, 383), e que, ao
aceitar o que ali foi decretado, “os asnos assentem com as orelhas” (asini auribus annuunt,
OC VII, 384). Outro exemplo pode ser extraído das gravuras que ilustravam as capas dos
panfletos antipapistas alemães, e que freqüentemente mostravam lobos em hábitos monacais.
Em seguida, novamente, aparece a correspondência entre discurso e vida,
imprescindível para esta discussão acerca da construção da identidade do verdadeiro cristão:
Pois como um corpo sem cabeça, braços ou pés, eles freqüentemente
usam formas de discurso que são absurdas e peregrinas, sem propósito, e que
pululam como num conto infantil. Entrelaçando pontos diversos, citam
somente fragmentos da Escritura. E ficam tão satisfeitos que se convencem a
si mesmos de que muito mais majestade em falar tão toscamente do que
em desenvolver seu caso de uma forma ordenada.
Agora, a fim de confundi-los não existe modo melhor do que expor e
contradizer os assuntos claramente e estabelecer um ponto após o outro, de
forma ordenada. De fato, examine e considere minuciosamente as sentenças
da Escritura a fim de descobrir seu sentido verdadeiro e natural, usando
palavras simples e claras que são familiares à linguagem comum. Quando o
34
(...) stridulum nescio quid ipsos rixando, tanquam ranas Aristophanis, coaxare.
61
fazemos, eles gritam que nós queremos enganá-los e lográ-los por meio de
astúcia humana e de sofisma como se lá fosse costume ou intenção dos
sofistas iluminar coisas misteriosas!De minha parte, confesso que, contanto
que possa, tento fazer avançar o que digo de forma ordenada, a fim de fazê-lo
tão claro e compreensível quanto possível. Se os anabatistas não são capazes
de aceitar isso, então não sei que dizer, exceto que “quem age mal odeia a luz”
(Jo. 3,20). (p. 156-7)
Com respeito à comunhão dos bens, trata-se, segundo Calvino, de “um absurdo
repudiado por todos como repugnante à inteligência humana” (p. 283), mas que os libertinos
anabatistas mantiveram como “uma espécie de escoadouro” (refuge), “uma vez que sua seita
é uma fossa, um esgoto para receber todo o estrume do mundo” (p. 283).
Servet, por sua vez, tampouco deixa de castigar com invectivas seus adversários,
usando o recurso de animalizá-los, como quando compara os bebês que gritam na pia
batismal a rãs, descreve assim “pedobatismo trinitário”:
no Papado a Trindade do Dragão, da Besta e do Pseudoprofeta. A
Trindade papística, constituem-na três espíritos realmente distintos, a que
João, por muitas razões, chama “três espíritos imundos como rãs”: porque,
como as rãs, procedem das águas imundas do abismo e são, como as rãs,
animais anfíbios; porque, no coaxar das rãs, balbuciam sincopadamente trin-
da-de; porque pelo imundo poder desses três, com suas três qualidades
influsas, o Papa batiza as rãs na imundícia. A água das rãs é imunda e sua
língua, presa. Daí que se chame a esse defeito da língua batracós, rã. é
aquele que, fazendo ruídos com a língua, não é capaz de exprimir sua fé. Rãs,
portantos, batizam os papistas, com sua falsa fé na trindade. Como rãs verás as
62
criancinhas debatendo-se e berrando com o grito das rãs em seu
pedobatismo.
35
São também freqüentes as comparações que Servet faz entre os diferentes monges,
com seus hábitos, capuzes e andando em grupo, com infestações de insetos. Por exemplo:
Tal é a natureza dos gafanhotos e de outros animais gerados da
podridão, que gostam de temperaturas e de locais quentes e úmidos, propícios
à sua podridão. Reproduzem-se em quaisquer abrigos, em covas e buracos;
amontoam-se à noite ou em tempo nublado e, uma vez nascido o sol, voam.
(…) Se a um gafanhoto, dotado de capuz pela natureza, vestires um avental
ou hábito monacal, terás um monge completo, um demônio mascarado. Joel se
admira com razão do aspecto horroroso dessa gente encapuzada, a que nada
semelhante se viu jamais, nem se verá. De assombro seriam tomados os
apóstolos, se, voltando à vida, vissem agora esses monstros! De assombro
seríamos tomados nós, se não estívessemos acostumados a essas máscaras! O
poder da cauda desses gafanhotos é a falsa doutrina, como se fosse o veneno
da cauda do escorpião.
36
35
In Papatu est trinitas, draconis bestiae et pseudoprophetae. Trinitatem Papisticam faciunt tres
realiter distincti spiritus, qui Ioanni dicuntur tres immundi spiritus ranarum, multis rationibus. Quia
sunt de abyssi aquis immundis, sicut ranae: amphibia animalia, sicut ranae: quia ranarum glocitatione
tres illi trinitatem concise balbucinant: quia eorum trium immunda virtute cum tribus qualitatibus
infusis ranas Papa baptizat in immunditia. Aqua est ranarum immunda, et lingua earum est impedita.
Vnde vitium linguae batracós rana dicitur. Rana est, qui lingua sonans nequit fidem suam exprimere.
Ranas ita baptizant Papistae, falsa trinitatis fide. Ranarum instar paruulos ibi videas calcitrantes, et
ranarum clangore clamantes in paedobaptismo. Christ. Rest., 463.
36
Ea est locustarum, et reliquorum ex putredine genitorum animalium natura, vt calidum et humidum
ament tempus et locum, putredinis suae fomitem. In apricis quibusdam, sepibus et foueis generantur,
nocturno seu nubiloso tempore coaceruantur, et orto postea sole volant. (…) Si locustam, cui a natura
est indita cuculla, induas lorica, seu monachali sacco, habebis integrum monachum, laruatum
daemonem. Admiratur merito Ioël horridum aspectum populi huius cucullati, cui nunquam similis
visus est, nec videbitur. Admiratione ducerentur apostoli, si nunc resurgentes haec monstra viderent.
Admiratione nos duceremur, nisi essemus laruis assuefacti. Potestas caudae harum locustarum est
falsa doctrina quase scorpionis caudae venenum. Christ. Rest., 479-480
63
Mas a animalização não é o único recurso para o rebaixamento do oponente. Ao
mencionar o pretenso costume católico de “comprar” na igreja um posto para um filho
doente, problemático ou sem herança, Servet tece, com mordacidade, o seguinte comentário:
Nota ainda outra semelhança da Besta com Jeroboão, a que consta no
capítulo 13 do Livro III dos Reis. Jeroboão costumava tornar sacerdote
qualquer um que fosse o último do povo (um idiota, um manco, um mutilado),
contanto que lhe enchesse as mãos de presentes. Este costume se perpetuou
entre nós: em qualquer família, quando os pais percebem um filho idiota,
decidem que este se consagre ao sacerdócio papístico, e, com as mãos cheias
de dinheiro, obtêm do Papa para ele um gordo sacerdócio. Somos nós que
enchemos as mãos do Papa, para que encha as nossas e as consagre com seu
sacerdócio mercenário.
37
As práticas sexuais do clero romano tampouco escapam aos vitupérios sarcásticos de
Servet, que aproveita também para atacar a prática das missas pelas almas dos mortos:
O deus Baal Pehor, durante os sacrifícios pelos mortos, ensinava
homens e mulheres a prostituírem-se (Num. 25). O mesmo fazem agora
muitas vezes os sacrificadores com as mulheres, concebendo vivos sob
pretexto de missas para os mortos.
38
Um curioso episódio narrado no Primeiro Livro de Samuel (I Sam. 6, 4-5) serve de
pretexto para a ridicularização da prática dos ex-votos:
37
Aliam adhuc in Ieroboam nota similitudinem, quae ponitur, 3. reg. 13. Nam quicunque erat
extremus in populo, ineptus, mancus, et mutilus, fiebat ab ipso Ieroboam sacerdos, modo manum
oblato munere impleret. Qui mos est nobis hodie perpetuus, vt in quacunque familia filium, quem
viderint parentes ineptum, sacerdotio papistico consecrari iubeant, et oppleta manu pecuniis ei pinguia
sacerdotia a Papa impetrent. Nos Papae ipsi manus implemus, vt ipse nostras impleat, et mercenario
illo sacerdotio consecret. Christ. Rest., 454
38
Deus ille Baal Pehor in sacrificiis mortuorum homines et foeminas scortari docebat, Num. 25. Id
passim nunc faciunt sacrificuli cum mulieribus, missarum pro mortuis praetextu viuos generando.
Christ. Rest., 540
64
Cada um dos diferentes grêmios de artesãos, fabricantes, sapateiros,
barbeiros etc. tem deuses particulares, aos quais cultua com festas e banquetes
bacanais. Quando seus membros são tomados por alguma enfermidade,
oferecem a esses deuses membros semelhantes, de cera, da mesma forma que
os filisteus faziam ânus de ouro por causa das hemorróidas.
39
Outro estratagema muito utilizado por Servet é o de comparar a liturgia da missa e de
outros ritos da igreja romana à pantomima dos comediantes ou então a jogos e brincadeiras
infantis. A técnica é então levar o leitor a se dar conta do aspecto farsesco do gestual
ritualístico, satirizando-o, na tentativa de despertar o riso numa situação em que se exigia
seriedade e respeito.
Um exemplo:
Nesse assunto não se pode conceber nada mais insano do que isso de a
criança ser catequizada pelos pedobatistas no mesmo dia de seu nascimento.
Interrogam o bebezinho, como se ele pudesse responder! Catecismo
inteiramente ridículo! (…) Diálogo de cegos e surdos com cegos e surdos,
para que cegos e surdos permaneçam todos eternamente! Então, os
sacrificadorezinhos, com esconjuros sobre o recalcitrante, traçam inúmeras
linhas retas com as mãos, umas cortando as outras em ângulos retos, ao que
chamam cruzes. Dificilmente hão de crer depois em semelhante comédia
aqueles que não a tenham visto!
40
39
Vnumquodque artificium genus, fabrorum, sutorum, tonsorum, et reliquorum habet peculiares
diuos, quibus festa colit, et bachanalia conuiuia. Membra cerea illis diis offerunt, quando similis
membri languore corripiuntur, sicut Phelistim anos fecerunt auros proter haemorroydas. Christ. Rest.,
420
40
Nihil in hac re excogitari potest insanius, quam infantulorum eo ipso die, quo natus est, a
pedobaptistis catechizari. Puellum ipsum interrogant, ac si ille respondere posset. Ridiculus sane
Catechismus. (…) Caecorum et surdorum est ibi cum caecis et surdis negocium, vt caeci et surdi
omnes perpetuo remaneant. Inumeras ibi cum adiurationibus super recalcitrantem rectas lineas, ad
rectos angulos se mutuo secantes, sacrificuli manibus ducunt, quas vocant cruces. Vix sunt postea
credituri, qui ludum illum non viderunt. Christ. Rest., 536
65
Servet, que não aceita nenhuma autoridade patrística posterior ao Concílio de Nicéia,
investe contra o batismo infantil por meio da lenda, ou anedota, segundo a qual Alexandre,
bispo de Alexandria, teria declarado válido o batismo que Atanásio, na infância, havia
ministrado de brincadeira a seus amiguinhos, também crianças (Schmidt, Dissertatio de
puero Athanasio baptizante, in Alcalá, 1980, 799).
Se é permitido batizar crianças sem entendimento, também será que
crianças batizem a outras por jogo, em pantomima e de brincadeira, como se
conta do menino Atanásio e do que o batizou. A coisa mais ridícula do
mundo! E terá de permitir-se-nos batizar também em nossa Igreja os sinos de
bronze, os cálices de prata, os assentos do altar, as vasilhas de água e os círios
pascais; e assim fazer, como os fariseus, batismos de cálices, de vasilhas, de
metais e ainda de leitos (Mc. 7). Mas, por favor, que pretendem nossos
batismos de sinos e de círios? Ó miseráveis fariseus, até quando, por fim,
estareis ébrios e entorpecidos pelo sono?
41
Quanto aos votos monacais, diz, são também “verdadeira pantomima” (vere mimica).
“Tanto Cristo como os apóstolos usavam roupas normais. Para que, pois, andam disfarçados
os monges com tal quantidade de fantasias?”
42
Os hábitos monacais o laruae, as vestimentas dos atores no teatro; e os monges
estão a tal ponto identificados com elas que Servet se pergunta: “Quem aguentará discutir
com esses comediantes?
43
, ou seja, com “essas fantasias”, “essas roupas”. E essa larua não é
senão ilusão e, portanto, engano:
41
Si infantes liceat sine intellectu baptizari, licebit quoque pueros, a pueris ludentibus, mimice et per
iocum baptizari, vt de Athanasio puero et baptizante fertur: res omnium maxime ridicule. Licebit item
nobis aereas campanas, argenteos calices, altaris lectos, aquae vrceolos, et brandones paschales in
ecclesia nostra baptizare: atque ita calicum vrceorum, aeramentorum, et lectorum, cum pharisaeis
baptismata facere, Marci. 7. Sed quid obsecro sibi volunt illa campanarum et brandonum nostra
baptismata? O miseri pharisaei, quousque tandem eritis ebrii, et somno sopiti? Christ. Rest., 567-8
42
Christus et apostoli commuibus vestibus vtebantur: quare ergo in tot laruas sunt defigurati
monachi? Christ. Rest., 435
43
Quis cum laruis his certare sustineat? Christ. Rest., 77
66
Quem tão alienado de sentido que ouse dizer com os sofistas que toda
esta luz e glória de Cristo são falsa máscara, artifício, impostura?
44
Até mesmo Pedro, diz seria “tomado de admiração e de estupor se visse agora esse
jogo de mímicos celebrado por esses mitrados, encapuzados e escanhoados, com tais
vestimentas, entre um povo tão idólatra”.
45
“Não foi possível sairem do poço do abismo
outros demônios tão maquilados (pictos), que expusessem ao ridículo com tantos e tais gestos
o evangelho de Cristo!”
46
Também Calvino soube fazer uso de uma ironia espirituosa com toques de sarcasmo.
Por exemplo, ao referir-se ao Papa como bonus ille vir (Higman, 1967, 373), enquanto os
padres católicos são descritos como “ébrios” (ebriosi) e “cafetões” (scortatores), promovidos
ao “episcopado dos adultérios e dos lenocínios” (episcopatus adulteriorum et lenociniorum,
Inst. 1560, IV, v, 2). Vejamos, a título de ilustração, dois exemplos, extraídos do texto contra
Servet que nos interessa mais de perto neste trabalho.
(...) irrompem nos mistérios sacrados não menos atrevidamente do que porcos
enfiando os focinhos num tesouro precioso.
47
Referências escatológicas são outra arma retórica; são freqüentes as associações da
doutrina contrária a dejetos, esgotos, imundícia. Quando Servet escreveu à mão vários
44
Quis hic a proprio sensu tam alienus, cum sophistis dicat, totam hanc lucem, et gloriam Christi
fuisse falsam laruam, praestigium et imposturam? Christ. Rest., 98
45
Admiratione profecto, et stupore duceretur nunc Petrus, si mimicum hunc ludum videret, a mitratis
illis, cucullatis, et rasis, cum vestimentis illis ita celebrari, vniuerso populo tam insigne idolatrante.
Christ. Rest., 521
46
Si de manuum impositione loquamur, quid magis mimicum pingere possis, quam sacramentum
illud mitratorum, quod vocant confirmationem, vnum de septem illis bestiae sacramentis? Non fuit
possibile, de puteo abyssi ascendere pictos alios daemonas, qui tot et tantis modis Christi euangelium
ludibrio exponerent. Christ. Rest., 561
47
(...) in tremenda eius mysteria non minus proterve irrumpunt, quam si porci rostra in pretiosum
thesaurum ingerent. Defensio, 457-8.
67
comentários e “correções” num exemplar da Institutio e o enviou a seu autor, Calvino, este se
referiu ao episódio com as seguintes palavras:
Não deixou de atulhar (as margens do livro) com insípidas injúrias,
para que nenhuma página ficasse limpa de seu vômito.
48
Na Restitutio, Servet, ao ridicularizar a eucaristia dos “magos e papistas”, zomba da
idéia de que Cristo poderia habitar realmente no pão sem que, ingerido, passasse pelo
processo por que passa todo alimento no corpo humano até sua eliminação.
Imaginam que a carne de Cristo chega somente ao ventre, e daí
desaparece ou se retira; dizem que, tão logo são recebidas no estômago as
espécies de pão, Cristo migra, e não permanece ali. O que não é próprio de um
alimento de verdade.
49
Vimos, portanto, a utilização do sermo humilis em dois momentos diversos: como
demonstração de uma desejável humilitas por parte do autor, o qual, por falar a verdade, está
obrigado a fazê-lo com palavras simples; e, em seguida, como recurso satírico, como a
linguagem da polêmica em que se faz necessário rebaixar o oponente, desumanizando-o.
2.3. Genus deliberatiuum
E aqui devemos começar a pensar a construção do ethos do orador cristão num
contexto específico, que é o do genus deliberatiuum, o qual pressupõe a existência de uma
questão em que se deve escolher, pesando prós e contras. Um dos lados seentão entendido
como mais útil, ao passo que o outro será considerado mais prejudicial. Vantagens e
48
Non destitit insulsis conviciis farcire, ut nullam paginam a suo vomitu puram relinqueret. Defensio,
481. Sobre o mesmo tema, escreveu em francês: “(...) chargeant toutes les marges d´injures, comme
un chien qui eust mors et rongé quelque pierre.”
49
Imaginantur, carnem Christi in ventriculum solum demitti, deinde reuomi, seu abire. Cum primum
assumptae sunt in stomacho species panis, aiunt migrare Christum, nec ibi manere. Christ. Rest., 506.
68
interesses devem portanto ser levados em conta. Além disso, é inútil discutir sobre
acontecimentos além do poder humano, pois só “deliberamos sobre coisas que estão ao nosso
alcance e podem ser feitas” (Ética a Nicômaco, 1112 b). “Deliberamos não sobre fins, mas
sobre meios”, diz ainda em seguida (1112 b). Erasmo, que, seguindo a Quintiliano,
empregava a denominação genus suasorium em lugar de deliberatiuum, a prática deste
gênero como ligada à política e aos interesses da cidade (Chomarat, 1981, 530). Já
Aristóteles limitava a cinco o número de temas em que é possível a deliberação: finanças,
defesa nacional, importações, exportações e legislação (Retórica, IV, II, 1). E, no entanto,
encontraremos o deliberativo utilizado também naquilo de que trata a presente tese, que é a
tentativa de propor uma interpretação dos textos sagrados não apenas como mais verdadeira
do que as demais mas como a única verdadeira; por conseguinte, o gênero vem acompanhado
de táticas propagandísticas que visam a suscitar a adesão total, que, aqui, representa também,
necessariamente, a absoluta rejeição do partido contrário.
E mais, um texto que pertença ao genus deliberatiuum é também, em sua essência,
dialético, uma vez que pressupõe um adversário (e portanto um combate, uma controvérsia) e
nele o uso da retórica visa a gerar adesão onde havia incerteza. E a premissa para obter tal
assentimento são os juizos de valor (Perelman, 1997, 67). Daí a extraordinária importância da
apreciação do caráter moral do orador, uma vez que se oferecem ao público não apenas
ideologias, mas também biografias, num catálogo de crenças que perfaçam a construção de
uma identidade por meio de um discurso. Relatos autobiográficos sobre a própria conversão,
por exemplo, têm, claro, grande importância numa religião de convertidos
50
o que era
verdade nos primórdios evangélicos e voltou a sê-lo na Reforma.
Faz-se necessário lembrar aqui que, ao abandonar a retórica clássica para adentrar as
polêmicas religiosas, o leitor contemporâneo não deve perder de vista o fato de que está
ingressando no terreno das causas apodíticas, cuja garantia, inquestionável e absoluta, é a
Bíblia, seguida da autoridade dos textos patrísticos. As probabilidades ciceronianas neo-
acadêmicas, portanto, dão lugar a nada menos que à Verdade, revelada. E, no entanto, acerca
dessa Verdade polêmicas, debates, dissensões e discordâncias de interpretação. Ora, se
50
Berger (1998, 23-4) fala da “enorme florescência” do gênero testamento durante a helenização do
judaísmo. Segundo ele, esse tipo de texto, que se compõe de uma biografia moralizante com
admoestações e predições do futuro, expressa o ideal helenístico da congruência entre doutrina do
mestre e sua vida.
69
uma Verdade, segue-se que somente uma interpretação é verdadeira, e, portanto, sua
relação com todas as outras é de exclusão. O discurso deliberativo, então, serve aqui para que
cada facção defenda sua posição contra todas as demais. Como apontou Kennedy (1998,
142), muitas vantagens retóricas para o escritor cristão tanto em ser a favor quanto em ser
contra alguma coisa.
Afinal, existe uma Verdade única e, a partir dessa asserção, seguem-se várias
conclusões a que se pode chegar facilmente, como a admissão de que o certo e o errado
existem concretamente, e de que o mundo se divide entre os partidários do Mal (os hereges) e
os campões do Bem, os advogados de Cristo. É o posicionamento perante a causa, portanto, o
que determina a veracidade do texto e, ainda mais, que legitima e autoriza o orador. É o fato
de falar em nome da causa o que ao orador o direito de se pronunciar, e de fazê-lo com a
veemência da linguagem exigida pelos discursos deliberativos, com a clara função de levar o
leitor a se posicionar pró ou contra alguma coisa. Não se trata de deleitar o público, mas sim
de despertar ou potencializar suas emoções com tanta ênfase que haja uma adesão não apenas
racional mas também afetiva à “causa”. São, portanto, textos engajados, marcantemente
ideológicos, sem qualquer tentativa de imparcialidade.
51
São também propaganda, com seus
característicos emprego do “eu”, seus verbos exortativos e imperativos. São, enfim, textos
bélicos, e fazem a defesa e o ataque numa guerra que, se é também real, é antes de mais nada
ideológica, e acontece por intermédio da imprensa.
52
51
Interessante observar que, segundo Dante Tringale, em Introdução à Retórica, São Paulo: Duas
Cidades, 1988, a Retórica é ideológica quando se “desnatura” ou “desvirtua” ou se torna “um
simulacro”; para esse autor, “se o discurso persuasivo for dialético, não será ideológico” (p. 172),
“porque a dialética em sua plenitude é sempre crítica e onde crítica não ideologia” (p. 173). A
ideologia, diz, “amordaça” a Retórica ou a “desfigura na medida de seus interesses escusos” (p. 173).
Tringale chega mesmo a mencionar “o demônio da ideologia”, ao qual “esconjuramos”... Em nosso
entender, esse vocabulário é, em si mesmo, ideológico.
52
Imprensa e Reforma estão indissoluvelmente ligadas, como se sabia no século XVI, em que um
edito do Parlamento francês proibia a leitura da Bíblia (informação extraída de Higman, 1998, 441).
Na cidade de Lyon, um decreto de 1565 mandava tapar todas as clarabóias das casas que dessem para
a rua. O motivo: homens, “secretamente enviados de Genebra”, atiravam “pequenos livros” para
dentro das casas através das clarabóias, e, com isso, “um grande número de homens curiosos de
novidade” estavam abandonando a religião romana para abraçar a “novidade luterana” (ibid., 44)5.
70
Mas se uma Verdade e duas interpretações, instaura-se, de imediato, uma oposição
à qual deve ser chamada a atenção desde o primeiro momento. A técnica é, portanto, começar
in medias res, definindo ou redefinindo o ponto de vista do adversário, em contraposição ao
próprio, de modo a enfatizar suas contradições, numa técnica que recebeu o nome de
“polarização do assunto” (Higman, 1967, 17). O texto é concebido como binário, e o ponto
de vista do outro está sempre presente, em fórmulas como “eles dizem isso, mas nós, ao
contrário, sustentamos isto”. sempre um movimento de balança ou mesmo de gangorra
nesses textos que visam a refutar uma opinião por meio do contraste com outra. Como dado
adicional e ilustrativo, podemos pensar nas inúmeras menções que Calvino faz ao branco e ao
preto, mas quase nunca a nenhuma outra cor (Higman, 1998, 430), levando a pensar num
mundo repartido em dois, em que nuanças não são permitidas. Cabe lembrar, no mais, que o
argumento adversário, assim apresentado, termina quase que inevitavelmente por ser
deformado no processo. Um debate reformista, portanto, jamais é apenas uma tentativa de
separar o que é válido numa argumentação daquilo que não o é, mas antes de demonstrar que
qualquer dissidência ataca a estrutura e o fundamento da religião cristã. E, de novo: se
uma polarização, e apenas uma Verdade, assume-se que o oponente seja contrário a essa
Verdade, que é única e integral. A linguagem é também necessariamente hiberbólica (“para
todos eu me fiz tudo”, diz Paulo, I Cor. 9, 22) e radical em seus extremos. Dentro dessa
visão, não se pode ser mais ou menos a favor ou contra alguma coisa. Exige-se uma adesão
total, bem como exige-se uma total convicção de que aquele que fala seja o defensor dessa
Verdade.
E, por conseguinte, embora neguem a retórica e mesmo a desprezem e dela suspeitem,
nossos autores cristãos envolvidos em polêmica a praticam essencialmente. “A função da
Retórica”, diz Aristóteles, “é tratar dos assuntos sobre os quais devemos deliberar e cujas
técnicas não possuímos, perante ouvintes que não têm a faculdade de inferir através de
inúmeras etapas e de seguir um raciocínio desde um ponto afastado” (in Perelman, 1997: 65).
Segundo essa opinião, o objetivo da retórica é possibilitar-nos sustentar nossas opiniões e
fazer com que sejam admitidas pelos outros. Sendo assim, a retórica o tem como objeto o
verdadeiro, mas o opinável. Não caberia aplicá-la ao domínio da fé ou da convicção religiosa,
mas não é este o tema de nosso trabalho. Na presente pesquisa, lidamos com polêmicas
relativas à interpretação dos textos sagrados. E com a maneira de conseguir a adesão de
outros a essa interpretação.
71
Quanto ao estilo adequado ao gênero deliberativo (pensado para uma assembléia)
numa polêmica tão radicalizada, este, para que produza o efeito desejado, deve abrir mão de
refinamentos que seriam não apenas excessivos como prejudiciais; como a intenção é
convencer, persuadir, mouere, ganhar para a causa, requintes têm menor eficácia do que a
palavra certeira, no momento certo. Isso é talvez especialmente válido aqui, em que o
objetivo o é apenas (con)vencer, mas (con)vencer completamente, aplicando ao adversário
um golpe do qual ele não possa se recuperar.
Uma vez que a persuasão é o objetivo, duas são, portanto, as maiores qualidades de
um orador cristão: a perspicuitas e a breuitas. Calvino une as duas sob a fórmula perspicua
breuitas, a qual transforma em norma para si mesmo.
A perspicuitas é uma virtude tipicamente retórica, por meio da qual se pretende
mouere e que implica a objetividade, ao mesmo tempo em que não se perde de vista o
objetivo do discurso, que é persuadir. É também uma virtude da eloqüência (elocutio), no
sentido de que ela opera a escolha de termos e expressões compreensíveis, e organiza a
seqüência natural das frases até a conclusão lógica. A perspicuitas demanda ainda certo
cuidado na apresentação, por meio do qual evitam-se as ambigüidades e as obscuridades, mas
também, segundo Erasmo em De Conscribendis epistolis, exige do leitor certa cultura, uma
vez que sua clareza é a erudita perspicuitas de Horácio (Chomarat, 1981, 1011).
E como a perspicuitas é a primeira das virtudes retóricas (Inst. Orat., VIII, 2, 22)
53
, e
constitui a virtude central de um orador, assim, da mesma forma, mas ao contrário, seu
oposto é o vitium da obscuritas. Mais uma vez, a clareza gramatical ou no uso do vocabulário
é uma virtude também moral, ao passo que o emprego de um estilo obscuro é indício de
tortuosidade de caráter. Por isso, escrever claramente demonstra uma alma clara; escrever de
forma obscura demonstra propensão a um comportamento subreptício incompatível com o
púlpito do pastor.
A breuitas, por sua vez, deve, segundo Quintiliano, evitar o supérfluo, sem se
esquecer do necessário; deve dizer tudo o que é necessário, e nada além do que é necessário
(Inst. Orat., IV, 2, 44)
54
.
53
Nobis prima sit uirtus perspicuitas, propria uerba, rectus ordo, non in longum dilata conclusio, nihil
neque desit neque superfluat: ita sermo et doctis probabilis et planus imperitis erit (Inst. Orat., VIII, 2,
22).
54
Nos autem breuitatem in hoc ponimus, non ut minus sed ne plus dicatur quam oportet (Inst. Orat.,
IV, 2, 44).
72
Também Erasmo define a breuiloquentia pela necessidade de escolher, eliminar, de
não reter senão o indispensável, mas sem omitir o essencial; ele, ademais, como nos lembra
Chomarat (1981, 559), transforma a simplicitas em um “véritable leitmotiv”. Simpliciter,
simplicius, simplicior, simplicissimus, simplex são recorrentes à exaustão em seus textos,
sempre como proposta de escrita e de interpretação. Aqueles que não aplicam essa regra,
retorcem ou mesmo torturam o texto (torquent, detorquent), ou então sonham (somnium est)
ou deliram (hallucinatur), ou então “fazem ainda pior”, filosofam (philosophari), ou seja,
usam de estratagemas exegéticos engenhosos ou arbitrários. Mas Erasmo faz notar que a
concisão não deve se transformar em obscuridade, nem ocultar nada de essencial; a copia,
por outro lado, exige uma escolha que exclua as razões fúteis, os exemplos inadequados, as
sentenças vãs, as digressões longas e as figuras rebuscadas; a ordem, é, portanto, o equilíbrio
e a ordem (Chomarat, 1981, 759).
Ademais, por tratar-se das qualidades honestum e utile, apresenta-se a questão da
importância do status translationis no genus deliberatiuum, ou seja, acerca do direito que tem
o orador de dar conselho no assunto em debate (Lausberg, 1990, 211). Assim, consiste em
pôr em dúvida a auctoritas do orador, o qual necessita provar que a possui.
No caso dos textos analisados no presente trabalho, em que a causa é apodítica mas há
polêmica quanto à sua interpretação, faz-se necessário primeiramente trabalhar retoricamente
elementos externos à obra em si. E aqui entra, uma vez mais, o papel e o consilium do orador,
o qual se orienta segundo sua finalidade partidária e portanto necessariamente parcial (utilitas
causae, isto é, aquilo que é exigido pela causa) e de acordo com o que pretende com seu
discurso. Para isso, segundo Quintiliano, deve-se levar em conta quid deceat e quid expediat
à causa (Inst. Orat., II, 13, 8)
55
. E já aqui existe uma relação necessária entre utilitas e virtus:
aquilo que é útil é por conseguinte virtuoso, e vice-versa. Tudo isso soma-se a nossas
especulações acerca do papel do ethos num discurso deliberativo, uma vez que a realização
da persuasio é possível pela criação de um elevado grau de credibilidade, de que se
investe o autor do discurso a fim de ganhar o leitor para sua causa. A forma mais eficaz de
fazê-lo é por meio da utilização daquilo a que a Retórica antiga chamava ductus simplex, ou
seja, o orador afirma que “quer realmente dizer o que diz”, e tem, por conseguinte, um uerum
consilium. Trata-se de uma confissão de sinceritas, a qual, também necessariamente, exclui a
dissimulatio, a obscuritas, o estilo ornatus e os tropos.
55
Res duas in omni actu spectet orator, quid deceat, quid expediat (Inst. Orat., II, 13, 8).
73
O pressuposto de que a causa é justa, honesta e, portanto, verdadeira, deveria ser
suficiente para convencer o leitor, por meio de provas e argumentos objetivos. Se, entretanto,
ainda existirem vazios e a convicção por meios intelectuais não for completa, o orador pode
buscar ainda o consentimento afetivo do leitor, sua adesão à causa por intermédio do pathos,
da comoção que o discurso lhe causou. E, aqui no contexto do Cristianismo como na Retórica
clássica, joga-se com o par de afetos com maior potencialidade persuasiva: spes et metus, a
esperança e o medo. Afinal, dessa causa veritatis por que luta o autor cristão depende, crê-
se, não apenas o resultado da Reforma religiosa em curso, mas também o destino, final e
eterno, das almas de cada um dos envolvidos e também o futuro da Criação.
Por isso, e porque se trata não de algo novo, mas de uma interpretação de textos
conhecidos, a perspicuitas, essa qualidade de que depende a persuasio, é especialmente
importante quando se trata de definir uma posição em contraposição a outra, adversária.
Dessa clareza depende a compreensibilidade intelectual do discurso e é, ela própria, condição
prévia da credibilidade, uma vez que aquilo que é compreendido pode ser crível. Por isso
também o cuidado e a insistência em definir cada um dos conceitos utilizados nos textos,
muitas vezes não apenas em oposição ao adversário imediato, mas também marcando a
diferença com respeito à tradição que se rejeita (a católica em geral ou mais especificamente
a escolástica, por exemplo). Essa tentativa insistente em delimitar claramente a acepção em
cada termo teológico é utilizado visa a assegurar um vínculo unívoco e inequívoco entre um
verbum e uma res, tanto no plano lingüístico como, e especialmente, no plano teológico.
Nisso residem também todos os estudos filológicos e de tradução com que os humanistas e os
reformadores se aplicaram à Bíblia, a ponto de Erasmo assumir para si mesmo o título de
grammaticus, em detrimento do de teólogo. No caso de Servet isso assume proporções ainda
maiores, uma vez que todo o seu sistema se apóia sobre o conceito de Filho, interpretado por
ele de maneira muito diferente daquela herdada da tradição do corpus christianum. Como
estabelecer o sentido de cada verbum ou vox é portanto um pré-requisito indispensável,
longas discussões filológicas permeiam tratados teológicos. A polêmica, portanto, é
necessária também nesse processo heurístico - de interrogar acepções tradicionais e
autoritativas de cada vocábulo, num procedimento por meio do qual, acreditava-se, a verdade
viria à tona.
74
Em primeiro lugar, então, o autor cristão constrói seu ethos com os recursos
fornecidos pelo ideal ético e estético da humilitas, que, expressa no texto, serviria, ao mesmo
tempo, de prova da autenticidade e da integridade moral do autor, que, por sua vez, o
autorizam a desvendar as Escrituras. Autor que nega a autoria do próprio texto e a atribui à
influência divina, se não mais como influência direta, pelo menos como recepção da chave
para a correta interpretação das palavras sagradas e que, equilibrando-se na difícil posição de
ter como material as palavras, que, segundo ele próprio, não são dignas de confiança, precisa
revestir-se a si mesmo de uma legitimidade que, se vem de fora (é “emprestada” pelas
Escrituras, reveladas), é também forjada de dentro, pela autoproclamada sinceritas com que
busca a Verdade e pela confessada e reiterada munditia de seu coração e, portanto, de seu
comportamento.
Encontramos, mais uma vez, o precedente em Paulo. Por exemplo, em I Cor. 9.
Tendo-se comparado a um soldado em campanha militar (I. Cor. 9, 7), Paulo lança mão
agora da metáfora do atletismo (I. Cor. 9, 24-27). Depois de afirmar que corre e luta, como
um competidor olímpico, diz: “trato duramente o meu corpo e o subjugo, para não acontecer
que, depois de ter proclamado a mensagem aos outros, eu mesmo seja reprovado”.
A mesma intersecção entre discurso e vida aparece no exemplum, ou seja, na idéia de
que o cristão deve ser um modelo irrepreensível de conduta, e de que essa sua condição
reforça a veracidade de sua fala. Os sofrimentos do apóstolo, os adversários, perigos e prisões
que enfrentou são apresentados como importantes testemunhos de sua legitimidade
apostólica. no judaísmo helenista (aquele de Paulo), sofrer perseguições por causa da Lei
era já uma demonstração de fidelidade comprovada (Berger, 1998, 246). No século XVI, com
as guerras religiosas e as perseguições aos anabatistas, o martírio tornou-se uma forma de
afirmação perante a comunidade e uma arma retórica, persuasiva, contra os adversários e
acusadores. É quando a ars dicendi funde-se, segundo a expressão de Gregory (2001, 66),
com uma ars moriendi. Como no teatro ou no tribunal, o mártir perfaz aqui uma actio, uma
pronuntiatio de altíssimo poder didático. Seus discursos, proferidos muitas vezes sob tortura
ou mesmo à forgueira, fornecem denso material educativo que, no entanto, deve ser
reafirmado pela atitude perante a tortura e a morte.
Além disso, ser perseguido era uma “prova”, no sentido jurídico do termo, de que ele
estava ao lado da verdade. Calvino, refugiado em Genebra, e Servet, sob nome falso,
lançaram mão, ambos, do expediente de mostrar as censuras e perseguições que sofriam
75
como indício de sua veracidade como cristão. Nesse imenso jogo de reflexos, réplicas e
contrapartidas, o perseguido (ainda que por heresia) interpreta o verdadeiro cristão; ao
perseguidor, ainda que ministro da Igreja, é reservado o papel de “falso mestre”.
Se a Verdade é única e exclusiva, mas os textos de que vamos tratar debatem entre si
polemicamente, segue-se que interpretações diversas dessa Verdade que é única e, por
conseguinte, só comporta uma única interpretação correta. Segue-se também que, assim
como o exegeta “verdadeiro” é sincero, não distorce as palavras e tem como propósito
ensinar e guiar, o “falso” necessariamente recorre à mentira e insiste nela, usando de
artifícios, astúcias e ardis para enganar e desviar do caminho. E se o intérprete “verdadeiro” é
o humilde “advogado de Cristo” e de sua causa, o “falso” só pode ser o inimigo e o
adversário do próprio Cristianismo, o herege que semeia a discórdia com seu veneno, os
sofismas. Porque assim como o cristão verdadeiro atém-se à verdade simplex et perspicua do
Novo Testamento e alega que não se afasta do estilo não cultivado das Escrituras, o falso
mestre é aquele que recorre às “artes” da palavra, ao tropo, ao sofisma; em suma, à mentira.
Assim, o “gênero baixo cristão” é o parâmetro e o modelo em conformidade com o
qual constrói-se a identidade de “advogado da causa ueritatis” e, por outro lado, em oposição
ao qual fabrica-se uma persona de herege” ou “falso mestre” para o adversário, ao qual não
se permite a menor possibilidade de ter razão em qualquer âmbito, seja dogmático, seja moral
ou “estilístico”.
As palavras aqui são também armas para fazer tombar o oponente, tanto quanto são
meios para mobilizar apoios. O discurso tornou-se, então, marcantemente deliberativo e,
como disse Mosellanus, dirigia-se a totius orbis iudicium, ao julgamento de todo o mundo.
Por isso, aquele que profere o discurso tem de ter o direito de fazê-lo, e deve ser o exemplo
daquela mesma conduta que exige daqueles que pretende ganhar para sua causa, ao mesmo
tempo em que, investido do apostolikon do “enviado”, o autor cristão tem também um papel
moralizante, na medida em que julga, expõe e condena, quer pela invectiva, quer pela sátira,
aqueles que, “enfeitiçados por costumes perversos” (praua consuetudine fascinati, Servet),
desviaram-se do “caminho mais simples” (simplicior via, Servet).
76
CAPÍTULO 3
SERVET, A CONSTRUÇÃO DE UM ETHOS DISCURSIVO
Uma vez que nossa proposta é identificar e comentar alguns dos mecanismos de
construção e de legitimação de um ethos de advogado causa ueritatis para si mesmo,
devemos ter em mente que, numa polêmica, o autor se apresenta e se posiciona; no dizer de
Maingueneau (1996, 86), “assume a responsabilidade do ato de linguagem”. Por outro lado,
tendo em vista que isso ocorre num contexto de debate, e, portanto, existe um “outro”
presente no texto o tempo todo, e é preciso forjar um ethos (negativo, embora) para ele,
veremos, então, reproduzidas, em nossos textos reformistas, algumas das técnicas que
pertencem mais propriamente ao gênero dramático. O diálogo é, precisamente, um dos
formatos mais utilizados no século XVI e na Reforma.
Primeiro, numa metáfora cara aos humanistas do XVI, o mundo equivale a um teatro,
imagem que traduz o caráter público de sua missão e de seu campo de atuação. Nas palavras
de Calvino: “que a igreja de Deus seja meu teatro”. E Calvino ainda distingue o “teatro do
mundo”, com os aplausos e vaias do vulgo, do “teatro divino”, onde busca “aprovação”.
56
Há, pois, uma audiência e o pregador está, como um ator, no palco. Ele tem não
apenas o direito de falar como esta é precisamente a sua função. E ele deve convencer.
Calvino chegou mesmo a afirmar que Jeremias falava como que adotando um papel
(quasi ex eorum persona), como se um poeta reproduzisse as palavras e os gestos de uma
personagem “como num espelho” (quasi in speculo)
57
, a fim de que o discurso fosse mais
veemente e para que houvesse accomodatio; em suma, por razões evidentemente retóricas.
Ao comentar a o capítulo 9 da I Epístola aos Coríntios, em que Paulo relata que primeiro se
“adaptou” aos judeus e depois aos atenienses, ou seja, falou aos judeus como um judeu e aos
pagãos como um pagão, Erasmo transforma o apóstolo num modelo de decorum, louvando a
sua pia vafrities, “astúcia piedosa” (LB VI 501 E, in Chomarat, 1981, 584). Erasmo destaca
56
Meum sit hoc theatrum, cujus approbatione contentus, quamvis me totus mundus exsibitet, animo
numquam deficiam, tantum abest ut insulsis clamatoribus invideam (CO 15, 738).
57
Et quo plus vehementiae habeat oratio, et sit efficacior, loquitur quasi ex eorum persona; ac si
auarum quidam poeta repraesentaret in theatro, et suggereret quae ejus personae apta essent,
77
ainda a inteligência de Paulo em observar “a mudança de personagens” (mutatio personarum)
e afirma que a chave para a compreensão de uma fala de Paulo é observar que papel ele faz,
diante de quem e a que visa (quid agat, cum quibus agat, quid spectet).
Além disso, e naquilo que interessa mais de perto a esta pesquisa, importa a atribuição
de características de personagens a um ou a outro; aquele que representa o papel do “falso
mestre”, por exemplo, e que tem em si todas as configurações do herege, do sofista etc. Há,
por exemplo, a figura do “papista”, que é quase uma personagem cômica, e que reune em si
os atributos do “sacrificador” supersticioso, do ávido por dinheiro, do lascivo sexual e de
vários outros qualificativos com que se forma a persona ou a caricatura do católico romano,
do ponto de vista do reformador. O empréstimo de um discurso ideológico ao outro é,
portanto, pôr sobre ele uma persona pública ou estereotipada; atribuir ao adversário o
comportamento do herege é, por assim dizer, vestir-lhe as roupas ou colocar-lhe a máscara
que identificam o herege. Da mesma forma, e por outro lado, o autor, revestido de seu ethos,
“sincero” ou “apenas” discursivo, também, de alguma forma, está representando e não pode
fugir a sua “personagem”, sob pena de pôr em risco a verossimilhança e, portanto, aqui, a
credibilidade. Trata-se de uma clara distribuição de papéis, e, não por acaso, Servet usa
seguida e repetidamente a palavra larua, a máscara, vestimenta ou “uniforme” que identifica
cada personagem na representação teatral.
Aqui vale lembrar ainda a teoria antiga da construção da fala adequada a cada
“personagem”, a sermocinatio. um jeito de falar reconhecível e mesmo decoroso para
cada persona, e, precisamente por ser identificável, esse modo de falar pode ser apreendido e
reproduzido. E isso vale também para o tipo de discurso ora estudado: assim como um
discurso límpido que expressa a Verdade, há, da mesma forma, mas ao contrário, o discurso
retorcido e falso do herege.
Além disso, também o recurso à fala de terceiros, quer por reprodução textual,
quer por paráfrase ou assimilação, emulação ou imitatio. E esses “terceiros” são também
chamados a tomar parte no debate, representando, por sua vez, um papel bem claro. Atanásio,
por exemplo, que comparece a um texto de Calvino como grande autoridade e mestre, num
texto de Servet será sempre objeto de ironia (como quando, na gina 43 de Christianismi
Restitutio, é chamado de princeps Athanasius, “o príncipe dos trinitários”). Em termos da
accomodaret verba et gestus, ita ut posset ille quasi in speculo perspicere mores suos et ingenium
(Comm. Jer., CO 38, 85, in MILLET, p. 69).
78
construção de uma imagem que deve ser aceita ou rejeitada, é importante que o polemista
saiba agregar a sua imagem a auctoritas do outro, ao mesmo tempo que o adversário é
associado com os aspectos negativos dos “inimigos” (Roma com Babilônia, por exemplo).
Tendo em mente todas essas questões que devem ser consideradas, passemos à
análise de alguns passos da obra Christianismi Restitutio, de Miguel Servet de Villanueva,
publicada secreta e anonimamente em 1553, livro cuja história, por si só, gerou uma
mitologia própria, que empolgou Voltaire e que, apesar de sua relativa inacessibilidade,
continua gerando fortuna crítica.
58
Servet redigiu a Restitutio durante os doze anos em que viveu em Vienne, na França,
sob o falso nome de Michel de Villeneuve e enquanto exercia a profissão de médico do
arcebispo. Esse livro, a que Friedman deu o nome de “caso de heresia total”, e cuja
composição foi realizada à base de uma página por dia, dado o perigo que corria quem fosse
apanhado com tal material, foi, portanto, escrito num dormitório do palácio episcopal...
Nele Servet recupera o conteúdo de seus dois tratados teológicos anteriores e
apresenta seu programa reformista, o qual atualmente se inscreve na denominação Reforma
Radical, mas a que ele próprio deu o nome de restitutio. Nele está descrita também, pela
primeira vez e cem anos antes de Harvey, a circulação do sangue pelos pulmões para
oxigenação descoberta que passou despercebida, uma vez que restaram apenas três dos mil
exemplares originais cuja edição Servet pagou do próprio bolso e para a qual fez instalar, a
suas expensas, duas imprensas clandestinas nos arredores da cidade. Setecentos desses
exemplares foram apreendidos pela inquisição católica ainda encaixotados e queimados em
praça pública, num auto de em que se fez queimar também a efígie do autor, que havia
escapado da prisão. Os outros foram atirados à fogueira em que Servet foi executado, em 27
de outubro de 1553.
Nele estão também, integralmente, trinta das cartas que Servet havia endereçado a
Calvino havia alguns anos, às quais o reformador de Genebra havia se negado a responder.
Quando foi preso em Vienne pela publicação de material herético após denúncia que partiu
de Genebra, o médico do arcebispo se limitou a refutar as acusações. Mas o tribunal
apresentou suas provas: as cartas, escritas de próprio punho por ele (com sua letra, portanto),
58
A última publicação é de 2002 é tem o eloqüente e dramático título de Out of Flames: the
remarkable story of a fearless scholar, a fatal heresy, and one of the rarest books in the world...
79
publicadas no livro. De Genebra partira não apenas a delação, mas também as provas por
meio das quais o réu foi inculpado e condenado.
E, no entanto, quando conseguiu escapar da prisão francesa, Servet se dirigiu
precisamente a Genebra e compareceu ao culto dominical da Catedral de São Pedro, na
qual o próprio Calvino era ministro. Reconhecido e novamente aprisionado, foi seguidamente
interrogado num processo que se arrastou por três meses, e no qual Calvino apresentou-se
pessoalmente para fazer as perguntas de natureza teológica de que os advogados eram
incapazes; finalmente, Servet foi condenado à morte por fogo lento. Essa foi a primeira
fogueira em solo protestante.
E foi também o evento que deu início ao primeiro debate sobre a liberdade de
consciência em questões religiosas, movimento inaugurado pelo humanista francês Sebastién
Castellión, que, ele próprio perseguido por Calvino, escreveu uma defesa de Servet e vários
tratados de arte dubitandi e contra a pena de morte para a heresia. Com Castellión, e a
propósito da morte de Servet, tratou-se, pela primeira vez no Ocidente cristão, de temas que
ressurgiram como manifesto apenas duzentos anos depois, com o Iluminismo, e que hoje nos
parecem direitos humanos fundamentais, embora constantemente e de novo ameaçados,
como o direito à liberdade de escolha em matéria religiosa sem que o Estado possa usar de
meios legais para punir os dissidentes.
Não é intenção desta tese analisar o conteúdo dogmático do livro de Servet, trabalho
realizado por esta pesquisadora em sua dissertação de Mestrado, O Programa de Miguel
Servet para a Restituição do Cristianismo: Teologia e Retórica na Apologia a Melanchthon,
defendida nesta Faculdade no ano de 2000. Nosso objetivo é, agora, o de procurar no texto ou
uma primeira pessoa ou pistas que nos levem a nos aproximar de um “autor” que realiza a
construção de uma imagem de e para si mesmo em seu discurso e que a legitima com
estratégias que pretendemos demonstrar em seguida.
Uma breve análise do Proêmio do livro nos permitirá propor algumas respostas. Eis,
portanto, sua tradução:
O que aqui se nos impõe é tão sublime em grandeza, como é fácil em
clareza e certo em demonstração. A maior de todas as coisas, leitor, é
80
conhecer a Deus manifestado substancialmente e Sua natureza divina
verdadeiramente comunicada. A manifestação do próprio Deus por meio do
Verbo e Sua comunicação por meio do Espírito, ambas substanciais em
Cristo, em Cristo as discerniremos claramente, de maneira que, no homem,
distinga-se toda a deidade do Verbo e do Espírito.
Explicaremos a manifestação divina desde o princípio dos séculos, o
grande mistério de piedade fora de discussão: que Deus tenha outrora se
manifestado no Verbo e agora na carne; que se tenha comunicado pelo
Espírito; que tenha sido visto por anjos e por homens, em visão outrora
velada, agora revelada. Exporemos claramente os modos verdadeiros, por
meio dos quais Deus mostrou-se-nos, visível externamente pelo Verbo e
perceptível internamente pelo Espírito, mistério duplamente grande, que o
homem veja e possua o próprio Deus. A Deus, antes não visto, nós veremos
agora por meio de sua face revelada, e contemplá-lo-emos, reluzindo dentro
de nós mesmos, se abrirmos a porta e percorrermos o caminho.
É preciso abrir já essa porta e esse caminho de luz, luz sem a qual nada
se pode ver, sem a qual ninguém pode ler as Sagradas Escrituras, nem
compreender a Deus, nem tornar-se cristão. Este é o caminho da verdade:
seguro, fácil e sincero, o único que nos franqueia integralmente o
conhecimento divino de Cristo no Verbo, a verdadeira perfeição do Espírito
Santo, e a mesma substância de um e de outro em Deus e que nos põe ante
nossos olhos o próprio Deus.
(...)
Ó Cristo Jesus, Filho de Deus, que nos foi dado do céu, manifestas a
deidade tornada visível em ti mesmo, abre-te para teu servo, para que se revele
verdadeiramente tão grande manifestação. Concede agora teu bom espírito e
tua palavra eficaz a quem tos pede, guia minha mente e minha pena, para que
eu possa narrar a glória de tua divindade, e exprimir a verdadeira fé acerca de
ti. Tua é esta causa, e explicando tua glória recebida do Pai e a do teu Espírito,
que se me apresentou com certo impulso divino para que dela me imcumbisse,
uma vez que estava preocupado por tua verdade. Comecei essa incumbência
81
algumas vezes, e agora de novo sou forçado a incumbir-me, porque, em
verdade, esgotou-se o tempo, como, a partir da evidência do próprio tema e
dos sinais manifestos dos tempos, hei de demonstrar agora a todos os fiéis.
Não se deve ocultar a lanterna, tu nos ensinaste, de maneira que, ai de mim!,
se não evangelizar! Trata-se de uma causa comum a todos os cristãos, à qual
estamos todos obrigados.
Resta-te, leitor, mostrares-te, em nome de Cristo, benévolo até o fim, e
ouvirás tudo na língua da verdade, sem qualquer artifício
59
.
59
Quid nobis hic ponitur, vt est maiestate sublimis, ita perspecuitate facilis, et demonstratione certus:
omnium maxima, lector, Deum cognoscere substantialiter manifestatum ac diuinam ipsam naturam
vere communicatam. Manifestationem Dei ipsius per verbum, et communicationem per spiritum,
vtranque in solo Christo substantialem, in solo ipso plane discernemus, vt tota verbi et spiritus deitas
in homine dignoscatur. Manifestationem diuinam a seculis explicabimus, magnum citra
controuersiam pietatis mysterium, quod sit Deus olim in verbo, nunc in carne manifestatus, spiritu
communicatus, angelis et hominibus visus, visione olim velata, nunc reuelata. Modos veros aperte
referemus, quibus se nobis exhibuit Deus, externe visibilem verbo, et interne perceptibilem spiritu,
mysterium vtrinque magnum, vt Deum ipsum homo reuelata facie videbimus, et lucentem in nobis
ipsis intuebimur, si ostium aperiamus et viam ingrediamur. Aperire iam oportet ostium hoc, et viam
hanc lucis, sine qua nihil potest videri, sine qua nemo potest sacras scripturas legere, nec Deum
intelligere, nec Christianus fieri. Haec veritatis est via, certa, facilis, et syncera, diuinam Christi in
verbo cognationem, spiritus sancti veram perfectionem, et eandem vtriusque in Deo substantiam,
integre sola patefaciens, Deumque ipsum nobis ob oculos ponens. (...) Christe Iesu fili Dei, qui de
coelo nobis datus, deitatem patefactam in te ipso visibilem manifestas, teipsum aperi seruo tuo, vt
manifestatio tanta vere patefiat. Spiritum tuum bonum, et verbum efficax, petenti nunc tribue, mentem
meam et calamum dirige, vt diuinitatis tuae gloriam possim enarrare, ac veram de te fidem exprimere.
Causa haec tua est, et tuam a patre, et spiritus tui gloriam explicans, quae diuino quodam impulsu
tractanda sese mihi obtulit, cum essem de tua veritate solicitus. Tractare aliquando coepi, et nunc
iterum tractare cogor, quia completum est vere tempus, vt ex rei ipsius certitudine, et ex signis
temporum manifestis, sum nunc piis omnibus ostensurus. Lucernam non esse abscondendam, tu nos
docuisti, vt vae mihi sit, nisi euangelizem. Causa communis Christianis omnibus agitur, cui omnes
tenemur. Superest, lector, vt te pro Christo beneuolum vsque ad finem exhibeas, et rem totam audies
sermone veritatis absque aliquo fuco. Christ. Rest., 3-4.
82
aqui várias questões relevantes e mesmo decisivas para a resposta às perguntas
centrais formuladas por este trabalho. Em primeiro lugar, a afirmação de que algo “é posto
para nós” ou “se nos impõe” (quid nobis ponitur), mostrando, antes de mais nada, que se trata
de uma “tarefa” recebida e que o autor vai cumprir. Ingressamos, pois, imediatamente no
domínio de um texto inspirado e que é o instrumento da missão recebida pelo autor, o
enviado. O interesse dessa causa, portanto, não é principalmente do autor, mas daquele que o
incumbiu da tarefa e em nome do qual ele, orador, está autorizado a falar; no caso, o próprio
Cristo, a quem Servet se dirige para afirmar que “tua é esta causa (...) que se me apresentou
com certo impulso divino para que dela me imcumbisse, uma vez que estava preocupado por
tua verdade”. Quanto a Servet, autodescrito como “servo” de Cristo, cabe-lhe “narrar a
glória” e “exprimir a verdade”, “explicar” e “expor claramente” trabalho que é “sublime,
fácil e certo”, assim como o caminho é “seguro, fácil e sincero”, simplesmente porque se
trata, afinal, da Verdade.
Outra questão em que não nos é possível aprofundar-nos, mas que merece menção, é
a da utilização neste Proêmio de imperativos seguidos de orações finais. Por exemplo, “abre,
para que se revele”, “concede, para que eu narre”, “guia, para que eu exprima” etc., numa
clara relação de dependência do sujeito da subordinada perante o “tu” do imperativo da
principal; uma subordinação que é gramatical e sintática, mas também “lógica”, por assim
dizer, entre aquele que se assume e se apresenta como “servo” e seu senhor, a cuja
autorização aquele se sujeita ou “subordina”.
Interessante notar ainda a importante metáfora da luz, inaugurando um amplo campo
semântico relativo ao sentido da visão que perpassará todo o livro. Longe de ser aleatória, tal
metáfora serve para comprovar a principal doutrina servetiana: a de que Palavra se
manifestou por meio do homem Jesus, ser corpóreo, concreto, real. O vocabulário empregado
remete repetidamente ao campo semântico da luz e da materialidade do que pode ser visto:
podemos "ver a Deus", "ver Seu rosto desvelado" ou "contemplá-Lo reluzente", porque este é
caminho caminho da luz "sem a qual não se pode ver nada" e "sem a qual ninguém pode ler
as Sagradas Escrituras" e que coloca Deus "ante nossos olhos".
60
O caminho da luz e da
verdade, portanto, é aquele que permite ao cristão ver o rosto desvelado de Deus com seus
próprios olhos; é, em outras palavras, o Jesus homem.
83
Se o Filho é a manifestação externa e visível do Verbo divino, então o Cristo homem
é, portanto, Deus tornado acessível aos sentidos humanos. Assim, o vocabulário relacionado
à visão e à audição retorna na invocação final a Cristo, o qual "manifesta de forma visível a
deidade revelada", como Servet promete demonstrar ao leitor, o qual, perseverando até o fim
do livro, vai "escutar tudo na língua da verdade, sem qualquer artifício". No Manuscrito de
Paris, cópia da Restitutio que apresenta algumas variantes com relação à edição publicada,
Servet se lamenta ainda da "cegueira do mundo"
61
.
A metáfora da luz reaparece em sua plenitude evangélica nesta evocação final a Jesus
Cristo, quando Servet escreve: "Não se deve ocultar a lanterna, tu nos ensinaste, de maneira
que, ai de mim!, se não evangelizar!" Aqui, a referência é parábola da luz, presente, por
exemplo, em Mateus, 5, 14-16: “vós sois a luz do mundo. Uma cidade construída sobre a
montanha não fica escondida. Não se acende uma lâmpada para colocá-la debaixo de uma
vasilha, mas sim no suporte, onde ela brilha para todos os que estão em casa. Assim também
brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso
Pai que está nos céus” (e também Mc. 4,21; Lc. 8,16; 11,33). Novamente os sentidos se
entrelaçam e justapõem: a luz é o que permite discernir o falso do verdadeiro, e a verdade é
Cristo. Mas a luz de que falam Mateus, Marcos e Lucas nessa parábola é a do exemplo, que
deve ser dado "diante dos homens”. Assim, Servet, de posse da luz, não pode ocultá-la,
pois não se acende a lâmpada para colocá-la debaixo da cama (Mc. 4,21), mas sim num lugar
bem alto, em que todos da casa possam vê-la. Vivendo com nome falso e como bom católico
na sede mesma do Arcebispado de Vienne e redigindo seu livro em segredo, Servet devia
sentir-se atormentado por seu silêncio de vinte anos. Afinal, escrever sem publicar é como
"ocultar a luz" - ainda que "colocar a luz num lugar bem alto" tenha o preço de levar apenas
uma gina por dia para composição numa gráfica clandestina como medida de segurança, a
fim de garantir a totalidade da impressão de um livro cuja existência é uma sentença de morte
contra seu autor. E esta talvez seja, afinal, a resposta à eterna pergunta dos servetistas, que
Bainton resume no título do capítulo 9 de sua biografia de Servet: “por que Genebra?”
Afinal, Servet conseguira escapar da prisão do Delfinado francês e poderia simplesmente
desaparecer, sem dirigir-se precisamente à cidade governada por seu pior adversário, num
60
Ponere ante oculos: ação cuja conseqüência é precisamente a perspicuitas. Termos relacionados à
euidentia, nas acepções de visão” e “prova jurídica”: recorrem à percepção do sentido físico como
argumento comprobatório retórico.
61
Alcalá, 1980, 121-2.
84
momento em que este, pressionado pelos libertinos, precisava dar provas de sua força. Mas,
nesse caso, a luz permaneceria oculta, uma vez que os católicos haviam queimado quase a
totalidade dos exemplares de Christianismi Restitutio, num auto de em que a efígie de
Servet também foi consumida pelas chamas, depois de ter sido ritualmente enforcada. De
fato, em Genebra Servet pôde expressar-se como nunca antes, incentivado pelo próprio
Calvino, que precisava de provas contra o réu. Não apenas todos os interrogatórios estão
minuciosamente registrados
62
, como foi concedido que Servet, da prisão, trocasse com
Calvino uma correspondência amplamente divulgada, uma vez que foi enviada aos demais
reformadores para que não duvidassem da necessidade desta primeira fogueira em solo
protestante. Assim, resta a hipótese de que Servet, em lugar de preservar a vida, tenha
buscado conscientemente ainda mais uma chance de "acender a lâmpada e colocá-la no lugar
mais alto da casa", o que serviria de prova, no sentido jurídico, de que estava ao lado da
Verdade, e de que seu discurso não apresentava discrepâncias ou incoerências com relação a
sua vida.
63
Outra questão determinante aqui é a de que o emissário tem de prestar contas de sua
embaixada àquele que o enviou. O tema aparece nos Evangelhos sinóticos (Mt 19, 27; Jo
17, 4-5; Mc 10, 29-31, por exemplo) e retorna nas epístolas ( I Cor. 1, 14-17; Gl. 1, 10-14;
etc.). Como na parábola dos talentos, o servo / autor terá de prestar contas a seu senhor.
Uma última consideração, esta extraordinariamente importante para a análise que se
pretende aqui, diz respeito ao final do Proêmio, em que Servet roga ao leitor que este
permaneça até o fim, porque assim vai ouvir tudo "na ngua da verdade, sem qualquer
artifício". O autor afirma falar a língua que a verdade fala, sem recorrer a quaisquer disfarces;
ou, para manter a idéia presente no verbo latino fuco, sem maquilagem, sem verniz; em
outras palavras, sem retórica, sem sofismas. Mais uma vez, portanto, Servet garante a
veracidade de suas palavras com argumentos do estilo baixo cristão, em que a Verdade está
62
Kingdon, R. & Berger, J.F. Registres de la compagnie des Pasteurs de Gèneve au temps de Calvin.
Vol. II: Acusation et procès de Michel Servet, 1962.
63
O mesmo pode ser afirmado com respeito ao episódio de seu último encontro com Calvino, que este
mesmo se encarregou de narrar minuciosamente. Condenado à fogueira na Genebra de Calvino e por
interferência direta deste, Servet insiste para ver o adversário em sua cela. E, quando se vê face a face
com ele, diz que precisava vê-lo para não morrer sem pedir-lhe perdão, numa imitatio Christi que
poderia ser bastante explorada neste trabalho, uma vez que ilustra várias questões acerca da
intersecção entre discurso e comportamento aqui levantadas. Embora não o façamos, citamos,
entretanto, o próprio Calvino, que confessa que não concedeu seu perdão.
85
por princípio identificada com a linguagem simples e sem adornos.
64
A prova oferecida por
Servet de que ele é o porta-voz autorizado e legítimo da Verdade é que ele emprega a língua
das Escrituras e da Patrística, o sermo humilis. Quando diz que Inácio de Antioquia prega o
mesmo que ele, Servet, ensina, aproveita ainda para afirmar que ambos ensinam o mesmo da
mesma forma, ou seja, aperte
65
e sine tropo et sine sophismate:
Inácio, abertamente e em toda a parte, sem tropo e sem sofisma, ensina
que Uno é o Deus Pai altíssimo, e que Jesus Cristo é seu filho unigênito.
66
Essa antiqua simplicitas, que é o “caminho” (via) para a Verdade, foi, entretanto,
abandonada pelos “sofistas trinitários”. Estes desenvolveram uma linguagem nova, antes
desconhecida, que pudesse dar conta da nova “heresia”, a Trindade nicena:
Reflete, por favor: por que aqueles modos de falar, usuais para
os antigos, não se encontram em nossos trinitários, mas sim outros
muito diferentes, desconhecidos dos antigos? Basta esta única razão, se
refletires bem, pois o livro inteiro de Irineu “contra as heresias” trata
dessa questão e no entanto jamais lhe veio à mente os gracejos dos
trinitários, porque essas “realidades” ainda não haviam vindo à mente
dos homens.
67
64
Interessante ainda observar que o vocativo se refere ao "leitor", mas este "escutará" todas as coisas -
mais uma das características do estilo baixo, que considera a oralidade espontânea e divinamente
inspirada, ao passo que a escrita pertence ao âmbito do humano, com todos os torneios, adornos e
figuras de linguagem com que se oculta a verdade.
65
Na página 66, Servet havia mesmo afirmado: “nos apertissime docebimus”.
66
Ignatius aperte vbique, sine tropo, et sine sophismate, vnum docet esse Deum patrem altissimum, et
Iesum Christum vnigenitum filium eius.
67
Cogita quaeso, quare ille antiquis vsitati modi loquendi, in trinitariis nostris non reperiuntur, sed alii
longe diuersi, veteribus ignoti? Haec sola ratio est valida, si bene cogites, quod totus Irenaei liber
contra omnes haereses hanc materiam tractat, et tamen nunquam trinitariorum nugas meminit: quia
realitates hae nondum venerant in memoriam hominum. Christ. Rest., 34.
86
Servet reafirma seu ethos também na primeira linha do Livro Primeiro, quando
afirma que vai começar a tratar do tema “em conformidade com a pregação primitiva dos
apóstolos” (instar primae apostolorum praedicationis) e por aquilo que “está claro para
qualquer um que esteja em seu juízo e foi pregado publicamente a todos” (ab iis, quae
cordato cuique sint manifesta, et omnibus publice praedicata). Mas não é possível fazê-lo
sem antes “reprimir os sofistas” (vt sophistas reprimam), aos quais Servet se encarregará de
“refrescar a memória” (quibus ego ad memoriam reducere curabo). Como é regra nesse tipo
de debate, uma clara polarização do assunto desde o príncipio. Para que o autor possa
dizer o que é, precisa antes esclarecer o que não é e, antes mesmo de expor sua doutrina, a
correta, voz à contrária, a falsa, obviamente “filtrada” e retrabalhada segundo a finalidade
do autor.
Servet, note-se, obedece àquela primeira pregação apostólica, àquela primitiva pureza
cuja recuperação é o ideal programático da restitutio: uma simplicitas e uma sinceritas
doutrinárias mas também lingüísticas. Não por acaso o inimigo é o “sofista”.
Desde o início, portanto, estabelece-se o diálogo, ou antes o debate, entre o autor, que
não fala em seu próprio nome mas sim conforme a tradição apostólica primitiva (e não
segundo o corpus christianum, com o qual a Reforma Radical rompeu), e os “sofistas”, aqui
os “trinitários”, também chamados a seguir de “fariseus”. A polarização dá-se imediatamente,
reproduzindo os embates evangélicos: um apóstolo versus um sofista ou fariseu. Quanto
apresenta seus argumentos, Servet recorre à autoridade de “Clemente, Justino, Irineu,
Tertuliano e todos os antigos” (Christ. Rest., 6), bem como a “tanto Mateus quanto Lucas”
(Christ. Rest., 9); quanto aos argumenta pharisaeorum, “o próprio Cristo os refutará por nós”
(ipsemet Christus pro nobis diluet, Christ. Rest.,16). E, deste lado da disputa, estão os
doutores dessa Igreja degradada pela aliança com o poder temporal romano, representado
por Constantino, o Imperador convertido. Os nomes citados não viveram, portanto, nos
tempos evangélicos, mas depois do Concílio de Nicéia: Nestório, Atanásio, Jerônimo e
Agostinho. Aqui figuram ainda Hilário, Gregório Nazianzeno e o medieval Pedro Lombardo.
A explicação é clara e, ao mesmo tempo, de grande importância retórica: uma vez
que, segundo Servet, ninguém antes de Nicéia havia ouvido falar de pessoas da Trindade,
hipóstases ou comunicação de idiomas, nenhum apóstolo ou padre da Igreja primitiva poderia
ter tratado da Trindade.
87
Quando expõe seus argumentos, Servet diz que “é algo evidente por si mesmo e não
pode haver nada mais certo” (ex se ipso manifestum, quo certius nihil ostendere possis,
Christ. Rest., 6). Tanto que “nem valeria a pena insistir mais em algo tão evidente, se não
fosse porque se corromperam os espíritos” dos sofistas (rei tam apertae non esset diutius
insistendum, nisi corrupti essent eorum animi, Christ. Rest., 7). Quando fala dos argumentos
dos adversários, a linguagem muda completamente. Na gina 15, por exemplo, são
chamados de “ficções” (figmenta) e “sedutoras imposturas de expressão” (placitas vocum
imposturas); na 19, “ninharias” (nugas); na 20, fabulosas ficções” (fabulosa figmenta); na
22, “invenção de Satanás” (inuentum Satanae); na 30, “ilusões de demônios” (illusiones
daemoniorum); na 31, “resposta manifestamente vã, com sabor de ficções de sofistas”
(responsio manifeste vana, et sophistarum figmenta sapit).
Mas além da polarização com o adversário, também um “tu”, diretamente
interpelado, na figura do leitor, chamado a se envolver na causa. Esse leitor é o público-alvo
de um discurso deliberativo, ao qual o orador precisa convencer, e trata de fazê-lo expondo as
falhas daquele sistema no qual o leitor está até o momento imerso. Para isso, Servet apela à
lógica e ao raciocínio do leitor; afinal, aquilo que ele prega é o mesmo que pregaram
evangélicos e patrísticos, e que “está claro para qualquer um que esteja em seu juízo e que foi
pregado publicamente a todos” (ab iis, quae cordato cuique sint manifesta, et omnibus
publice praedicata, Christ. Rest., 5). Por isso, mesmo quando pretende, à maneira de Erasmo,
demonstrar uma verdade por meio da gramática, convida o leitor a que estude e reflita:
Se tiveres sentido comum, leitor, e conheceres a natureza do pronome
demonstrativo, saberás claramente que tal é o verdadeiro e original sentido da
palavra.
68
A relação entre a Verdade e o autor que a demonstra exige uma outra, entre a
Verdade, o autor (intérprete e intermediário) e o receptor, que deve, por sua vez, fazer um
esforço de compreensão, o qual é facilitado não apenas pela própria natureza da Verdade,
revelada verticalmente, como pela clareza do mensageiro. Todos esses elementos aparecem,
por exemplo, no passo a seguir:
68
Si sensus communes habeas, et credas naturae pronominis demonstratiui, cognosces manifeste,
hanc esse veram, et originalem illius vocis significationem. Christ. Rest., 8.
88
Havia então uma acerca do filho diferente da que agora, como
compreenderás com um exemplo bem conhecido.
69
O trabalho de Servet não é senão libertar a verdade, fazê-la aparecer; portanto, a
adesão do público não advém de uma simpatia gratuita, mas deve ser respaldada pela
convicção garantida pela reflexão, como o grande número de ocorrências do imperativo
“cogita, lector” o demonstra. Outros verbos no imperativo, como “collige” ou “perpende
acrescentam ainda a essa mesma necessidade as nuanças de “compreender por meio de
conexões” (colligo) ou “pesar com exatidão” (perpendo).
Alguns exemplos:
Mas tu, leitor, pondera que o próprio Jesus fala nesse passo.
70
Que apreenderias tu dessa pregação?
71
tudo isto, leitor, e às Santas Escrituras. Ou ao menos tem
paciência, até que entendas melhor o que vem a seguir.
72
A partir desse testemunho público, até dos adversários, compreendes
claramente, leitor, que aquela Trindade era desconhecida dos primeiros
cristãos.
73
A Igreja do Papa Anticristo, diz, promove a confusão e o caos e depende da aceitação
irrefletida de dogmas impostos sem questionamento; a verdadeira doutrina da verdadeira
Igreja, por sua vez, deve poder ser compreendida intelectualmente. O papel que Servet
assume é, por conseguinte, em grande parte didático; ele explica, para que o leitor entenda.
69
Alia tunc erat de filio fides, quam nunc: id quod familiari exemplo ita collige. Christ. Rest., 12.
70
Tu vero lector perpende, Iesum ipsum ibi loqui. Christ. Rest.,25
71
Quid ex haec praedicatione auditor tunc colligeres? Christ. Rest,.33.
72
Lege haec omnia, lector, et fidem adhibe scripturis sanctis. Aut saltem patientiam habe, donec
sequentia melius intelligas. Christ. Rest., 410.
73
Ex publico illo, etiam aduersariorum testimonio, aperte colligis, lector, trinitatem illam fuisse
primis Christianis incognita. 36
89
Mais adiante verás as razões de todos eles no que concerne à
dispensação do Espírito Santo, e entenderás a substância divina do Espírito
Santo, mesmo que não subsista como pessoa visível, como o Filho.
74
Por isso, a é assentimento, é adesão. A Servet, um “reformista radical”, resta
apresentar-se como um solitário que tem a vantagem de não participar de nenhuma igreja
estabelecida e que, portanto, estaria fora de quaisquer jogos de interesses. Tenta, assim, usar
em seu proveito um traço discriminatório, o de ser confundido com um grupo estigmatizado,
o dos anabatistas, e, com isso, permite-se o direito de se apresentar como o denunciante que
vai revelar aos fiéis tudo o que os outros tentam ocultar. A mensagem que está implícita é
que seu único compromisso é com sua “missão”. Precisamente por tudo isso, e agindo como
um redator de propaganda panfletária, mas também como um humanista do Renascimento,
exige do leitor que este raciocine com ele e que compreenda aquilo em que diz acreditar. Pois
aquele que não é capaz de compreender e de explicar sua própria fé é, segundo Servet, ateu:
Todos os trinitários são na verdade ateus. Porque que outra coisa é ser
sem Deus senão isso de não poder sequer pensar em Deus sem que interfiram
ameaçadoras em nossas mentes essas três realidades que nos confundem e nos
fazem enlouquecer quando pensamos em Deus? Há no cérebro três maus
espíritos que fascinam o homem, como diz João (Apc. 16). Basta crer, dizem
eles, ainda que seja em coisas ininteligíveis. E assim revelam sua estultícia,
pois admitem algo ininteligível, “sem entender o que dizem, nem o que
afirmam” (I Tm. 1), e “blasfemando sobre aquilo de que nada sabem” (II Pe.
2). Tanto mais que tu confessas, e assim o reconhecem todos, que o objeto da
é a própria intelecção. Logo, se tens fé, mostra-me como é essa intelecção
74
Horum omnium rationes in spiritus sancti dispensatione postea vidibis, et spiritus sancti
substantiam diuinam intelliges, licet non ita visibilis persona subsistat, vt filius. Christ. Rest., 29.
90
de tua capacidade. Que crês ter sido entendido por ti? Não será a própria
confusão de teu cérebro o que tens por objeto de tua fé?
75
Outra camada de oposição se desenha por meio desses textos: a verdade é clara e
nítida; o sofisma, é escuro e nebuloso. Tertium non datur. A própria linguagem em que a
verdade se expressa (e, por assim dizer, se explica) é direta e cristalina, ao passo que o
sofisma recorre a tortuosidades e obscuridades também vocabulares. Além disso, a verdade é
sã e íntegra, enquanto a falsidade se perde em névoas que lembram o pesadelo. Um trecho em
que se mostra a intersecção entre sonho e loucura, dois conceitos tradicionalmente aplicados
ao “herege”, aparece na página 31:
Sonha quanto quiseres, dirige teu olhar a tuas próprias imagens, e
verás claramente como tua Trindade é ininteligível sem o recurso a três
imagens, pois o entendimento necessita voltar-se para as imagens. E mais, por
mais que o negues com a palavra, com o entendimento estás adorando a
uma quaternidade. Pois tens quatro imagens, que a quarta é a imagem da
essência, pois é imprescindível, para entender a essência, abstraí-la de alguma
imagem. Se abrisses os olhos e prestasses atenção, descobririas como tua
Trindade não é senão essa sucessão de falsas imagens, que te mantém louco.
76
75
Athei vere sunt trinitarii omnes. Nam quid aliud est, sine Deo esse, quam de Deo cogitare non
posse, obiecta semper intellectui nostro quadam imminenti trium rerum confusione, a qua semper,
quum de Deo cogitamus, dementamur. Tres sunt in cerebro mali spiritus, qui homines ita fascinant, vt
Ioannes Apoc. 16. Sufficit credere, inquiunt ipsi, quanquam res non sit intelligibilis. In hoc stultitiam
suam pandunt, quod rem admittunt inintelligibilem. Non intelligentes, inquit, quae loquuntur, neque
de quibus adfirmant. I. Timot. I. et in iis quae ignorant blasphemantes. 2. Pet. 2. Eo magis, quia ipse
fateris, et omnes fatentur obiectum fidei esse ipsam intellectionem. Ergo, si fidem habes, ostende
mihi, quae sit illa tuae capacitatis intellectio? Quid est id, quod a te intellectum credis? Ipsa cerebri
confusio est tibi obiectum fidei? Christ. Rest., 31-2
76
Somnia vt voles, dirige oculos ad phantasmata, et tunc plane videbis, tuam trinitatem non esse
intelligibilem sine tribus phantasmatibus: quia necesse est, intelligentem phantasmata speculari. Imo
quaternitatem intellectu colis, quamquam verbo neges. Nam quatuor habes simulacra, et quartum est
circa essentiam phantasma, quia necesse est intelligendo essentiam, phantasma aliquod speculari. Si
oculatus sis, et aduertas, trinitatem tuam inuenies esse falsarum in imaginatiua specierum motum qui
dementatum te tenet. Christ. Rest., 31.
91
ainda em todo o livro um vasto número de palavras que remetem ao sonho e à
loucura, formando um imenso campo semântico relativo ao que modernamente se chamaria
inconsciente, mas com um conteúdo extremamente negativo, pois a "ambigüidade" e a
"ilusão" são os recursos da falsitas.
Assim, segundo Servet, seus adversários estão "fascinados" ou "enfeitiçados"
(fascinati) e "alucinados" (hallucinati), e têm "ilusões de demônios" (illusiones daemonum).
Suas doutrinas e dogmas são "ilusão falaz" (falax illusio), "loucuras" (insaniae), "sublime
metafísica" (metaphysicae illusiones), "embuste metafísico" (praestigium metaphysicum),
"fantasias de coisas que não são" (phantasias quae non sunt), "ilusão mágica e horrível"
(horribilis atque magica illusio), "demência" (dementia), "delírios" (deliria). Quanto às três
pessoas realmente distintas da Trindade, são "quimeras invisíveis" (inuisibiles chimaeras),
"monstro impossível" (impossibile monstrum) e "os trigêmeos Geriões, o tricéfalo Cérbero ou
a Quimera de Belerofonte" (tergeminos Geryones, tricipitem cerberum, aut Bellerophontis
chimaeram), em descrições que lembram pesadelos ou alucinações produzidas por transtorno
mental ou estado alcóolico. Afinal, Servet diz claramente que os trinitarii estão
"completamente ébrios" (penitus ebrii).
Essas “imagens metafísicas” (metaphysicas imagines) são “apenas sonhos ridículos,
desconhecidos nas Escrituras, carentes de sentido e de inteligibilidade”
77
. O resultado, diz, é
que reina em tudo“um caos confuso e uma quimera fatal, em que não nenhuma ordem,
mas horror eterno”.
78
Quem, por favor, a menos que seja totalmente louco, toleraria
semelhantes logomaquias sem rir? Nem sequer no Talmud ou no Alcorão
tão horríveis blasfêmias. Nós, ao contrário, acostumamo-nos a escuta-las até o
momento, sem que nada nos assombre. Mas as futuras gerações julgarão
essas coisas assombrosas. Pois realmente são assombrosas, muito mais que as
invenções diabólicas que Irineu atribui aos valentinianos.
79
77
Nam sunt somnia ridicula scripturis ignota, quae sensu et intellectu carent. Christ. Rest., 117
78
Chaos est confusum, et exitialis chimaera in qua nullus est ordo, sed sempiternus horror. Christ.
Rest.,45
79
Quis obsecro, nisi penitus amens logomachias has sine risu toleraret? Nec in Thalmud, nec in
Alchoran, sunt tam horrendae blasphemiae. Haec nos hactenus audire ita sumus assuefacti, vt nihil
miremur. Futurae vero generationes stupenda haec iudicabunt. Stupenda sunt vere, plusquam ea
daemonum inuenta, quae Valentinianis tribuit Irenaeus. Christ. Rest.,
92
Dessa forma, o médico Servet pretende também combater uma enfermidade e curar”
o leitor de sua “inconsciência” com a profilaxia da verdade que se apresenta como a mais
singela das realidades – processo que, reconhece, apresenta dificuldades incompatíveis com a
clareza meridiana do tema. Dificuldades que, diz, não são intrínsecas à res, mas que resultam
das “trevas” da época.
Agora, seguindo esse perfume celestial, exporemos alguns passos, para
que se abram gradualmente para nós as Escrituras de Cristo. Se ainda tivermos
alguma dificuldade, desaparecerá por completo a seguir. Numa questão como
esta, tão árdua e tão confusa por causa das trevas de nosso tempo, não se pode
explicar tudo de uma vez com facilidade.
80
Um vislumbre de “autobiografia” aparece, de forma comovente, na página 51, em que
o uso da primeira pessoa do singular serve também de autotestemunho e, como no
apostolikon, deixa claro que esse “eu” se apresenta como intermediário e porta-voz de uma
verdade que lhe foi confiada:
Portanto, tu, leitor piedoso, se não conseguires entender bem o modo
de geração de Cristo e toda a plenitude de sua divindade, crê sempre que ele é
o messias gerado por Deus, teu salvador. Para viver em Cristo é suficiente crer
nisso. Eu pedi com todo amor possível e insistentemente ao ungido, o único
que nos foi dado como sinal de salvação, que me outorgasse algum
conhecimento desta verdade, e por sua graça o consegui, embora nem seja
perfeito, nem o consegui com perfeição.
81
80
Hoc iam secundo libro, odorem illum caelestem sequuti, locos aliquot enarrabimus, vt sensim nobis
aperiantur scripturae de Christo. Si qua vero supererit aliquando difficultas, in sequentibus penitus
tolletur. Non enim possunt omnia in quouis loco commode exponi, in re hac praesertim tam ardua, et
tanta tenebrarum nostri seculi confusione. Christ. Rest., 47.
81
Tu igitur, pie lector, si generationis Christi modum et diuinitatis eius plenitudinem omnem non
assequeris, crede semper eum esse Messiam a Deo genitum saluatorem tuum. Hoc est tibi unice
credendum, vt in Christo viuas. Ego quanto potui affectu, ab Vncto illo, qui solus est nobis pro signo
positus, cognitionem huius veritatis instanter orans aliquid per ipsius gratiam obtinui, quamuis nec
perfectus sim, nec perfecte apprehenderim. Christ. Rest., 51.
93
Um passo muito interessante, em que Servet usa a primeira pessoa para descrever
uma experiência pessoal (algo que ele viu), mas aproveita também para ridicularizar os
“rituais babilônicos” dos “papistas” aparece na gina 478 da Restitutio, de que se depreende
que ele havia presenciado uma “excomunhão” lançada contra pragas de insetos que atacavam
plantações, provavelmente em sua longa permanência em Vienne do Delfinado, cidade-sede
episcopal cercada pelos campos da Provença. O absurdo de excomunhar quando “não
ceia”, parece dizer, é tal que é preciso oferecer a garantia de ter assistido a isso pessoalmente
para que a afirmação tenha crédito. Mas não só: a mensagem é de que uma igreja que se põe
a tratar com insetos pode ser aquela que impõe suas “sandices” (insulsitates) e “delírios”
(deliria), num total desrespeito para com seus seguidores, dos quais não se exige nada, nem
sequer fé, como não se solicita nada de um inseto. Servet, que passa todo o livro pedindo ao
leitor que raciocine com ele, está agora afirmando que a igreja que ele combate trata a ele,
leitor, como se fosse desprovido de racionalidade.
A Besta babilônica tem, ao contrário, uma excomunhão imaginária,
por meio da qual excomunga indefinidamente até mesmo os que não são
apanhados em flagrante, e onde não ceia alguma. Excomunga não os
homens, mas também os animais irracionais, como nós mesmos vimos os
gafanhotos serem excomungados pelos papistas com grande solenidade
coisa que tem certa razão babilônica, como se pode inferir a partir do poder
das chaves da Besta, a qual avança, ela própria, com gafanhotos (Apc. 9). Sou
obrigado aqui a investir contra gafanhotos porque João no-los volta a
mencionar, não sem antes rogar-te, leitor, que não leves a mal estas
digressões, que são necessárias em nosso século.
82
82
Bestia vero Babylonica imaginariam habet excommunicationem, qua indefinite excommunicat,
etiam non deprehensos, et vbi nulla est caena. Non solum homines excommunicat, sed et irrationalia
pecora, sicut nos a Papistis locustas agri solennitate magna excommunicari vidimus. In quod rationem
quandam Babylonicam habet, vt ex potestate clauium bestiae licet colligere, qua ipsa cum locustis
agit, apoca. 9. cogor hic in locustas has inuehi, quia eas nobis repetit Ioannes, si te prius lector
orauero, ne molestia afficiaris ob digressiones has, quae nostro seculo sunt necessariae. Christ. Rest.,
478.
94
Nova confissão de foro íntimo aparece num capítulo dedicado a ataques contra os
papistas, que, tendo transformado o celibato em dogma, eram, entretanto, acusados pela
Reforma de devassidão. Depois de condenar os votos monacais, Servet diz:
Não desaprovo a vida celibatária, que eu mesmo escolhi para mim, e
que Paulo recomenda mais que à vida conjugal, contanto que a escolha se faça
livremente, à margem de qualquer imposição (I Cor. 7). Desse modo, louvaria
os eremitas e os monges, se retirassem a fantasia e a obrigação do voto.
83
Em todas essas “confissões” pessoais, Servet está na verdade traçando um paralelo
entre ele, puro e sincero, e os “outros”, hipócritas e ritualísticos. Ele se exclui da Igreja
romana, por conseguinte, não apenas por sua doutrina, mas também por seu comportamento.
Na Segunda Parte da Restitutio, Servet escreve dois livros em forma de diálogo, entre
uma personagem de nome Michael, ele próprio, e um interlocutor, Petrus.
84
Como em seu
segundo livro, Dialogorum de Trinitate, escrito aos vinte e um anos de idade, Servet dá início
ao diálogo, e ao livro, de forma bastante teatral e, num passo ainda a ser estudado por
biógrafos, entrega sua identidade ao assinar seu sobrenome com todas as letras num livro
proibido e clandestino, em cuja capa constavam apenas suas iniciais.
Miguel - Aquele Elohim que aparece em Moisés criando no
princípio, e aquela Palavra de João que no princípio era com Deus, referem-se
à mesma e única pessoa de Cristo…
Pedro Aqui está! Este é Servet, a quem estava procurando! Vamos,
vamos! Que fazes aqui, falando sozinho?
83
Caelibem vitam non improbo, quam ipse mihi elegi, quam et Paulus supra coniugalem commendat:
ita tamen, si ea libere agatur, citra necessitatem. I. Cor. 7. Ad hunc modum et eremitas et monachos
laudabo, si larua illa, et voti necessitas tollatur. Christ. Rest., 430
84
O tratado em forma de diálogo foi um dos formatos mais usados por autores reformistas, uma vez
que permite ou a confrontação de diferentes pontos de vista, reproduzindo um debate, ou uma “aula”,
com um discípulo que se limita a perguntar, possibilitando assim que o ensinamento se transmita de
uma forma didática e organizada.
95
Miguel – Estou vendo como Cristo é desconhecido pelos próprios
cristãos. Estou vendo como se chamam cristãos aos que nem sequer sabem em
que consiste a do cristianismo. E, ao vê-lo, ponho-me a gemer. Se Cristo
voltasse e de novo pregasse que é filho de Deus, nossos sofistas de novo
voltariam a crucificá-lo. Uma coisa só, unida, é o Cristo único, um ser, um
filho. Fictícia é o suposição dos sofistas, falaz seu idioma, invisível sua
ilusão. Enganadora é sua salvação e enganadora a morte daquela realidade
invisível. Sacrílegos são esses sofismas dos idiomas, pelo qual chegam a dizer
que um anjo pode morrer em pele de asno ou que o Espírito Santo pode
morrer num mulo.
85
No Segundo Diálogo, outro início dramático e bastante confessional, em que,
novamente, Servet reafirma seu ethos de estudioso das Escrituras, de homem aplicado a
conhecer a verdade e a transmiti-la com sinceridade a quem deseje procurá-la.
PEDRO Havia decidido perguntar-te outras coisas, por isso estava te
procurando a princípio. Mas me contive até agora, pois agradava-me escutar o
que disseste sobre a prefiguração, a completude e a perene verdade dos
grandes mistérios de Cristo, assim como acerca de muitas outras coisas que
não compreendia. Assim, se não te aborreces, termina já o que falta.
85
Elohim ille apud Mosen initio creans, et Ioannis verbum, quod initio erat apud Deum, ad vnam
Christi personam referuntur. PETRVS. En adest, Seruetus est, quem ego quaerebam. Heus, heus.
Quid hic solus tecum loqueris? MICHAEL. Video Christum a Christianis ignorari. Video Christianos
dici, qui nesciant, in quo Christianismi fides consistat. Et videns ingemisco. Si Christus hodie veniens,
iterum praedicaret, se esse filium Dei, iterum eum sophistae nostri crucifigerent. Res vna est Christus
vnus, ens vnus, filius vnus. Ipsorum suppositum supposititium est, idioma sophisticum et inuisibilis
illusio. Praestigiosa est eorum salus et praestigiosa mors illius inuisibilis rei. Sacrilega sunt idiomatum
sophismata, per quae dicitur angelus intra pellem asini mori, et spiritus sanctus in mulo mori. Christ.
Rest.,199-200
96
MIGUEL Aborrecer-me? É-me sempre grato falar de Cristo e
perscrutar mais profudamente seus mistérios. Trabalho sem descanso para
conhecê-lo, e medito dia e noite, implorando sua misericórdia e a revelação de
seu verdadeiro conhecimento.
86
Da mesma forma, um outro passo interessante, em que Servet reivindica para si o
conhecimento da Verdade (qualis vere fuit), acrescentando à posse dessa informação ainda a
capacidade de transmiti-la didaticamente. E ainda formula uma oposição entre penitiora e
popularia, enquanto se defende dos “sofistas” e, por sua vez, os acusa.
Enunciamos claramente a predestinação da fé, tal como foi realmente,
para que assim claramente creiamos. Agora vamos investigar as coisas mais
profundas da fé, para que os sofistas não acusem de superficiais a nós, que
ensinamos somente generalidades.
87
Uma das questões centrais do sistema servetiano é a do batismo, qualis vere fuit.
Convencido de que o pedobatismo, ou batismo infantil, não era prática conhecida nos tempos
evangélicos, uma vez que o Novo Testamento relata apenas batismos de “convertidos” e que
o próprio Jesus recebeu o batismo aos trinta anos de idade, Servet, como os demais
anabatistas, sustentou sua opinião por meio do recurso ao vigésimo-oitavo capítulo de
86
Institueram abs te alia rogare, ob quam rem te initio quaerebam. Sed hactenus distuli cum gratum
esset audire, quae de tanta mysteriorum Christi praefiguratione, eius complemento, et permanente
veritate dixisti. De aliis item plurimis, quae antea non intellexeram. Nunc vero, si non aegre feras,
quod superest, etiam absolues. MICHAEL. Aegre feram? Gratum est semper, de Christo verba facere
et eius mysteria penitius scrutari. In eo cognoscendo iugiter laboro, dies noctesque, meditor, eius
misericordiam implorans et verae cognitionis reuelationem. Christ. Rest., 248
87
Praedicationem fidei, qualis vere fuit, apertam enunciauimus, vt ita aperte omnes credamus. Nunc
vero penitiora fidei requiremus, ne a sophistis rudes arguamur, qui popularia tantum
docuerimus.Christ. Rest., 297
97
Mateus, “ensinai e batizai”, o locus classicus para o argumento em favor do batismo dos
crentes.
88
Servet aproveita a discrepância entre as palavras evangélicas e o costume de batizar
crianças para reiterar seu ethos de restitucionista, daquele que recolhe unicamente as palavras
“puras” e primitivas:
Chegando propriamente aos mistérios específicos do batismo, para
demonstrar que a doutrina, a penitência e a são pré-requisitos, traremos a
nosso espírito unicamente as palavras originais de Cristo que hão de ser
observadas por nós, de tal modo que nós, à semelhança de verdadeiros
discípulos, sigamos até o fim a partir daquilo que nos foi prescrito. de ser
observado também aquilo que ele próprio fez, e o que fizeram os apóstolos, a
fim de que, a partir de seus dizeres e feitos, aprendamos a sabedoria.
89
88
Essa discussão que tomou tais proporções que Theodor Fabritius chegou a informar ao duque Filipe
de Hesse (em cujas terras havia indesejáveis anabatistas) de que no texto grego “batizar” vinha antes
de “ensinar” (in Williams, 1983, 59). Tendo ordenado investigar a respeito, o duque foi informado de
que:
Fabritius está em erro, e que ele não poderia provar, nem conseguir ninguém para
apoiá-lo em que o texto grego correto tem, como ele diz, “batizar” primeiro, mas que
“ensinar” vem antes e depois “batizar”, como ambos os textos, o latino e o alemão, também
demonstram. Não obstante, a despeito da ordem do texto, boas razões para sustentar que
os apóstolos deviam ensinar e batizar, ou batizar e ensinar, de maneira que, em suma, o texto
tem sido mais freqüentemente interpretado contra do que a favor dos anabatistas, e todos os
argumentos deles são sem fundamento (itálico da pesquisadora).
Qualquer que fosse a ordem dos verbos no texto grego, Filipe decretou que os anabatistas estrangeiros
sofressem penas de açoitamento, além de serem marcados com ferro quente nas faces e expulsos de
Hesse. Se regressassem, expor-se-iam à pena de morte. Quanto aos anabatistas locais, foi-lhes
ordenado que vendessem tudo o que possuíam e partissem. Se voltassem uma vez, sofreriam tortura e,
na segunda vez, pena de morte (ibid. 483-4).
89
Propius iam ad peculiaria baptismi mysteria accedentes, vt doctrinam, poenitentiam, et fidem,
praerequiri ostendamus, Christi sermones nobis vnice obseruandos in animo primos reponemus, vt
quemadmodum ab eo praeceptum est, verorum discipulorum instar nos exequamur. Obseruandum
item, quid egerit ipse, quid apostoli, vt ex eorum dictis et factis discamus sapientiam. Christ. Rest.,
525
98
Os outros perderam-se, desviaram-se, enlouqueceram. Ele, no entanto, tem um guia
seguro:
Mas eu acolherei somente aquilo que o Evangelho e a própria origem
do mundo nos ensinam abertamente.
90
A questão é, pois, antes de mais nada, de abandonar tudo o mais para ater-se às
verdades primitivas. O melhor intérprete é, antes de tudo, o melhor leitor, aquele que menos
se afasta do texto. Erros de interpretação e desvios de doutrina originam-se, diz, no “abuso”
praticado contra as palavras das Escrituras:
Um mau demônio vos ensinou a sempre abusar assim das palavras
divinas e do próprio Deus. Era dever vosso, que sois gramáticos e professais
um método apropriado de falar, empregar os vocábulos em suas acepções
próprias.
Além deste abuso das pessoas, outro abuso manifesto em figura,
forma e imagem. abuso, igualmente, no próprio significado da palavra
logos. abuso no vocábulo sabedoria. abuso na acumulação suposital
91
.
abuso em homousios. Abuso na comunicação de idiomas. Abuso na visão
de Deus. Abuso nos termos gerar e nascer. abuso, por fim, no próprio
vocábulo filho. Todos estes vocábulos de vossos trinitários estão faltos de
Escrituras, são ilusões de demônios e foram deturpados por meio do abuso.
Omito aqui outros abusos teus quanto às palavras dos sacramentos, assim
como tuas retoricazinhas para deleite de teus devotos. Na aceitação do batismo
90
At ego id tantum recipiam, quod euangelicus sermo, et ipsa mundi genesis, aperte nos docent.
Christ. Rest.,357.
91
Suppositalis cumulatio - acumulação de supostos, ou seja, de pessoas. Filosoficamente, a palavra
suppositum refere-se ao ser que existe em si mesmo, ou seja, algo auto-existente ou auto-subsistente
(Muller, p. 291 e Bretzke, p. 120). Suppositum pode ser ainda "sujeito" (gramatical), como aparece
em Valla (Hoven, p. 357). A expressão "suppositalis cumulatio", entretanto, não foi encontrada por
esta pesquisadora em qualquer outro texto. Tratar-se-ia de mais um neologismo servetiano? Em sendo
assim, esta tradutora reserva-se o direito de reproduzir, em português, a expressão criada pelo autor
traduzido.
99
infantil, na justificação e na adoção, quanto abuso! Na palavra inferno, quanto
abuso! Quanta ignorância! Não entendeis nem a vida, nem a morte, nem o
inferno, nem a verdadeira libertação de Cristo.
92
O abuso dos termos, pois, leva a abusos e desvios doutrinários, ou seja, a heresias.
Servet, que busca restituir o sentido original das palavras, vai também, pois, se posicionar
aduersus haereses, como fizeram os padres apologistas dos primórdios do Cristianismo. E
como a “seita simonianaque Servet vai combater é a do servo-arbítrio, que ele identifica
com o gnosticismo, Servet chama em seu auxílio o maior adversário dos valentinianos, Irineu
de Lião.
3.1. Irineu
O princípio da sola fide, bem como o do servo-arbítrio, fundamentos da doutrina
protestante, pareciam a Servet uma renovação do gnosticismo, combatido pelos padres
apologistas, em especial Irineu, nos primórdios do Cristianismo. Servet, pois, chama de
“magos” os luteranos, “os que negam o livre arbítrio”; e, portanto, investe-se de
características de Irineu quando se dirige aos luteranos.
Irineu é, ao lado de Tertuliano, o autor patrístico pré-niceno mais citado por Servet
em defesa de sua idéia de uma trindade de dispensações, mas não de distinções reais; é, por
conseguinte, uma voz que autoriza seu texto e o subsidia, legitimando-o. Mas é também e
antes de mais nada um polemista e seu escrito mais conhecido é Aduersus Haereses, um
libelo antignóstico. Ora, se aqueles que defendem o princípio da sola fide (os protestantes,
portanto) são “magos”, ou seja, gnósticos, e se Servet recorre a Irineu quando se posiciona
contra eles, a equação está montada de forma a conduzir a uma única solução possível em se
tratando de uma causa apodítica: um lado “do bem”, Servet e Irineu, lutando adversus
92
Malus daemon vos docuit, ita vocibus diuinis, et Deo ipso semper abuti. Vestrum erat, qui
grammatici estis, et propriam dicendi rationem profitemini, propriis vti vocabulorum significatis.
Vltra hunc personarum abusum, manifestus et alius abusus in effigie, forma, et imagine. Abusus item
in proprio significato vocis logos. Abusus in sapientiae vocabulo. Abusus in suppositali cumulatione.
Abusus in homusio. Abusus in idiomatum communicatione. Abusus in visione Dei. Abusus in
generandi et nascendi vocabulo. Abusus denique in ipso filii vocabulo. Omnia trinitariorum vestrorum
vocabula sine scripturis sunt, illusiones daemonum sunt, et in abusum detorta. Omitto hic alios tuos in
sacramentis vocum abusus, et rhetorculas tuas ad tuos pios blanditias. In paedobaptismi gratia,
iustificatione, et adoptione, quantus abusus? In inferni vocabulo, quantus abusus? quanta ignorantia?
Nec vitam, nec mortem, nec infernum intelligitis, nec veram Christi liberationem. Christ. Rest., 676.
100
haereses, ou seja, contra os protestantes, que seriam, nesta fórmula, gnósticos, “magos e
maniqueus” e, por conseguinte, hereges. um lado certo, um detém a posse da
Verdade, e a resposta sobre qual dos dois seja ele está dada já na elaboração da questão.
Quanto ao problema da correta interpretação por parte de Servet de sua fonte, Irineu,
não é objetivo deste trabalho investigar se estão corretas a leitura e a recepção realizadas por
Servet, mas sim a utilização estratégica das competências (construídas, atribuídas ou “reais”)
de Irineu por seu leitor polemista do século XVI, que se faz investir das características que
ele e seu grupo associam a seu modelo.
93
Mais uma vez, portanto, não se trata, aqui, do Irineu
“real”, por assim dizer, mas, novamente, da “construção retórica” de um Irineu. Por exemplo,
aos olhos de Servet, um “radical” que só aceita como legítima a Patrística anterior ao
Concílio de Nicéia, o fato de Irineu ter vivido antes do ano de 325 agrega-lhe um valor extra
que, por sua vez e por si só, já dá autenticidade à sua fala.
No mais, a identificação de Servet com Irineu tem duas feições e cumpre dupla
função: primeiramente, há um uso ético: a persona do combatente de hereges. Quando Servet
diz textualmente que os protestantes são magos” e os acusa de “gnosticismo”, a apropriação
para si mesmo das características de Irineu assume a inequívoca função de agregar a
autoridade deste à própria fala. Em segundo lugar, e em aposição à questão ética, a
apropriação estética, ou seja, uma retórica, ainda que autodenominada anti-retórica, e uma
ars do discurso deliberativo de causa apodítica que se autolegitima não apenas pelo combate
à heresia e ao sofisma mas também pela guerra declarada à ars dos sofistas/hereges.
Esse procedimento pode ser observado com clareza na sua Apologia a Filipe
Melanchthon e a seus colegas sobre o mistério da Trindade e sobre os costumes dos antigos,
a qual Servet acrescenta ao corpus da Restitutio, servindo-lhe de resumo e conclusão. Uma
vez que o prestígio de Melanchthon (principal colaborador de Lutero, “preceptor da
Alemanha”, autor da Confissão de Augsburg e enviado luterano para negociar a paz com
Carlos V) era enorme, Servet se defende das acusações que este lhe fizera por meio de
publicações não com argumentos seus, mas com algo prescrito por nada menos que a verdade
e com afirmações de Irineu, entre outros doutores da primeira Patrística.
93
Angel Alcalá (1980, 78-ss.) diz que “uno puede preguntarse con razón si Servet es fiel a la mente
de Irineo, cuando se apropia algunas de sus ideas o términos expresivos”.
101
Acusas-se, Filipe, como réu de dupla falsidade. Primeiro, crês falso o
que a suma verdade prescreve: que há um homem gerado por Deus, filho
verdadeiro, em quem o Pai subsiste. Além disso, imputas-me falsamente o
crime de invocar a Irineu, além de outros doutores antigos, em minha defesa,
quando afirmo que eles pensavam exatamente isto: que no Verbo não
distinção real, mas Cristo em Deus. Este, que é tanto o mais certo quanto o
mais sagrado dos dogmas, não depende de Irineu nem de oráculos humanos,
mas de todas as coisas divinas compreendidas sinceramente, sem sofisma
algum. Ainda assim, reverenciarei aqui a Irineu e demonstrarei que ele é teu
adversário em tudo, assim como o são Inácio, Policarpo, Justino, Clemente e
também Tertuliano, embora este se tenha afastado para longe
94
.
A Apologia é, portanto, num primeiro nível e neste primeiro momento, a resposta a
duas acusações que Melanchthon dirigira a Servet: 1. a de que este interpretava erroneamente
a geração do filho (e, portanto, toda a Trindade); e 2. a de que usava os argumentos de
autoridade dos doutores da Igreja primitiva (especialmente Irineu) para apoiar sua doutrina.
O que fica claro desde este primeiro parágrafo, em que o "réu" relaciona os erros que lhe
foram atribuídos, é que Servet está absolutamente consciente de estar sendo acusado por
defender uma interpretação diferente da que católicos e protestantes mantêm, apoiados pela
tradição do corpus christianum. Mas Servet, como os demais radicais, rompera com essa
tradição e repudiara toda a teologia desde que "o mal se apoderou da Igreja", ou seja, desde o
Concílio de Nicéia e, assim, essa acusação é, a seus próprios olhos, um elogio de seu método.
O que as entrelinhas estão dizendo, portanto, é que Melanchthon não o verdadeiro Irineu,
mas sim um Irineu "filtrado" por Agostinho e Atanásio. Assim, o Irineu que Melanchthon
94
Também na página 33 de Christianismi Restitutio Servet afirma que Tertuliano "ensina muitas e
preclaras verdades, ainda que de vez em quando montanize" (quamuis aliquando montanizet). Alusão,
portanto, ao montanismo. O texto original latino: Duplicis falsi me reum incusas, Philippe, id primo
falsum existimas, quod summa veritas praescribit, Esse hominem ex Deo genitum, filium verum, in
quo pater subsistit, Irenaeum insuper ac reliquos seniores, me falso adducere criminaris, cum eos
idipsum sensisse contendo. In verbo, non realem distinctionem, sed Christum apud Deum. Dogma
tam certissimum, quam sacratissimum, non ab Irenaeo pendet, non ab humanis oraculis, sed diuinis
omnibus syncere sumptis, absque alio sophismate. Irenaeum tamen hic reuerebor, et tibi hostem esse,
in omnibus ostendam. Ignatium item, Polycarpum, Iustinum, Clementem, ac etiam Tertullianum,
quanquam hic procul dilabatur. Christ. Rest. P. 671.
102
maneja contra Servet é falso, ou, pelo menos, deturpado. Em outras palavras, Servet afirma
que interpreta as Escrituras diferentemente de Melanchthon, mas de forma muito mais
próxima a Irineu do que este.
A primeira polarização a que a Apologia se refere é, precisamente, a oposição entre
falsitas e veritas - as quais, em se tratando de uma causa apodítica, não são passíveis de
qualquer relativização e devem, necessariamente, excluir-se mutuamente. Avaliem-se,
portanto, as conseqüências lógicas embutidas na afirmação de Servet de estar sendo acusado
de falsidade, quando é Melanchthon quem avalia ser falso o que a verdade prescreve: o filho
verdadeiro.
A palavra “falsitas” aparece aqui quase como um termo técnico, empregado desde o
Cristianismo primitivo com o sentido de “inimiga da verdade”, mas com o acréscimo, de vital
importância aqui, de estar indissoluvelmente conectada ao sofisma. Isidoro, por exemplo, diz
que a falsitas induz ao erro “por meio de ornamentos lingüísticos”
95
. Assim, Servet nega que
pratique a falsitas não apenas porque diz a verdade (ética), mas também porque a diz “sine
tropo et sine sophismate” (estética).
A segunda oposição explícita nessas linhas iniciais contrasta oráculos humanos
versus coisas divinas, sendo que dentre os primeiros pode estar "a retórica afetada e sofística"
de cuja prática Servet acusa Melanchthon. Num sentido mais lato, entretanto, todos os
discursos, ainda que escritos por Irineu, são "oráculos humanos", e um "dogma tanto o mais
certo quanto o mais sagrado" como o do Verbo não pode depender de sua interpretação, mas
sim da compreensão das "coisas divinas"; compreensão que, como vimos no Proêmio, é
sublime, fácil e certa, assim como o caminho é fácil, certo e sincero. Para que ela se dê, como
vimos, basta aquilo a que Castellión chamará depois cor mundum, ou seja, uma pureza de
coração (ética, portanto) que cria condições para a receptividade da Verdade que se revela.
Não se deve estranhar, pois, que a terceira oposição expressa no exórdio seja entre
synceritas e sophisma, ou seja, pureza e integridade versus retórica. Ou ainda: a interpretação
servetiana das Escrituras, sustentada pela Patrística pré-nicena, em oposição à dos "sofistas,
magos e maniqueus", com as interpolações do corpus christianum.
Essas mesmas oposições aparecem no Proêmio do Livro I de Irineu, no qual os
hereges são aqueles que “rejeitam a verdade” e “falsificam as palavras do Senhor” e, assim,
seduzem os que são incapazes de discernir o falso do verdadeiro”, uma vez que apresentam
95
Auksi, 1995, 99.
103
a estes algo que lhes soa “como mais verdadeiro do que a própria verdade”. O gnóstico é
então o falsificador, aquele que entrega uma “artística falsificação de vidro” em lugar da
“pedra preciosa, a esmeralda”. Não, porém, pela violência, mas pela fraude. Do ponto de
vista da ética, o herege é um prestidigitador; do da estética, um sofista.
Vale a pena, aqui, citar o exórdio do Livro I do Aduersus Haereses de Irineu, o
primeiro tratado anti-herético do Cristianismo, segundo o qual os “hereges” (aqui os
gnósticos) são inculpados porque apresentam “discursos mentirosos” e “por súbdola
aparência da verdade, seduzem a mente dos inexpertos e escravizam-nos, falsificando as
palavras do Senhor, tornando-se maus intérpretes do que foi corretamente expresso”. Além
disso, “ardilosamente, pela arte das palavras, induzem os mais simples a pesquisas e omitindo
até as aparências a verdade, levam à ruína, tornando-os ímpios e blasfemos contra o seu
Criador, os que são incapazes de discernir o falso do verdadeiro”.
96
Lembremos brevemente o Prefácio de Irineu, já citado anteriormente:
O erro, com efeito, não se mostra tal como é para não ficar evidente
quando se descobre. Adornando-se fraudulentamente de plausibilidade,
apresenta-se diante dos mais ignorantes, justamente por esta aparência
exterior, - é até ridículo dizê-lo como mais verdadeiro do que a própria
verdade. Como foi dito, acerca disso, por alguém superior a nós: uma pedra
preciosa, uma esmeralda, que tem grande valor aos olhos de muitos, perde o
seu valor diante de artística falsificação de vidro até não se achar alguém
conhecedor que a examine e desmascare a fraude. Quem poderá facilmente
detectar a mistura de cobre e prata a não ser o experto?
97
A mensagem é clara: os gnósticos, porque "rejeitam a verdade", procuram "mais as
discussões do que a fé" e, com seus "discursos mentirosos", seduzem a muitos "pela arte da
palavra", "ardilosamente", recorrendo a "falsificações" que, ainda que "absurdas,
inconsistentes e opostas à verdade", poderiam continuar enganando se "um conhecedor" não
desmascarasse a "fraude". Esse "conhecedor", que sabe distinguir a verdadeira esmeralda da
"artística falsificação de vidro" (ele mesmo, Irineu), não dispõe senão de "medíocres
96
Como já foi apontado antes, estamos utilizando a tradução de Lourenço Costa para a Coleção
Patrística da Ed. Paulus, 1995, p. 29.
104
possibilidades", uma vez que não está "acostumado a escrever" não aprendeu a "arte de falar"
(ou seja, não é retor nem orador), faz uso de "uma língua bárbara" (não do grego dos
filósofos nem do latim dos oradores) e nunca aprendeu "a arte da palavra" nem exercitou "a
habilidade do escritor". Afirma ainda desconhecer "a elegância da expressão" e "a arte de
convencer". Tudo o que possui são "poucas e claras palavras", escritas "com amor" e por
solicitação da "caridade". Em outras palavras: ele não busca a disputa, "para vencer com
elegância", mas a verdade, pura e simplesmente. E a verdade manifesta-se e impõe-se
naturalmente, sem precisar de artifícios de sedução.
Irineu, pois, combate os “discípulos de Valentim”, ou valentinianos, i.e. os gnósticos,
cuja doutrina é “abismo de irracionalidade e de blasfêmia”, com a arma do cristão, que é seu
cor mundum e a alegação da verdade, pura e simplesmente.
Com nossas medíocres possibilidades, forneceremos os meios para
refutá-las, mostrando que o que dizem é absurdo, inconsistente e oposto à
verdade. Não acostumados a escrever, não tendo aprendido a arte de falar, mas
solicitados pela caridade que nos urge a manifestar a ti e a todos os que estão
contigo os ensinamentos deles, que foram mantidos secretos e que agora, pela
graça de Deus, se tornam manifestos, pois nada de encoberto que não
venha a ser descoberto, nem de oculto que não venha a ser conhecido.
Não procures em nós, que vivemos entre os celtas, e que na maior
parte do tempo usamos uma língua rbara, nem a arte da palavra, que nunca
aprendemos, nem a habilidade do escritor em que nunca nos exercitamos, nem
a elegância da expressão, nem a arte de convencer, que desconhecemos. Mas,
na verdade, na simplicidade e na candura aceitarás com amor o que com amor
foi escrito e desenvolvê-lo-ás por tua conta, visto que és muito mais capaz que
nós. Depois de o receber de nós como semente e princípio, fa-lo-ás frutificar
abundantemente pela grande capacidade do teu intelecto e o que por nós foi
dito com poucas palavras e insuficientemente te demos a conhecer, apresenta-
lo-ás com vigor aos que estão contigo. E, assim, ao responder ao teu desejo, já
antigo, de conhecer as doutrinas deles, não somente nos esforçamos para to
manifestar, mas também para fornecer-te os meios para demonstrar a sua
97
Ibid., pp. 29-30.
105
falsidade. Assim tu também esforçar-te-ás por ajudar os outros, conforme a
graça que te foi concedida pelo Senhor, de forma que os homens não se
deixem induzir ao erro pela doutrina capciosa deles.
98
De volta a Servet, deparamos com as mesmas afirmações, agora com relação a Simão
Mago, com quase as mesmas palavras, na Apologia a Melanchthon:
Retórico era ele, sofista, eloqüente, disputando para vencer com sua
elegância. O mesmo de que vos incumbis vós todos, que vos satisfazeis
com o lenocínio de um discurso ensaiado!
Mas o Espírito Santo nunca falou por tais meios. Nunca fez uso de
palavras e de artifícios polidos com colorido variado, pois ama a palavra
simples e comum. Também Paulo ensina que a força da pregação de Cristo é
esvaziada pela eloqüência do discurso. Por isso, vossa retórica afetada e
sofística revela enfraquecimento da verdade e conduz aos vários encantos da
falsidade. Ainda mais porque em vossas almas uma ilusão tão evidente, e
tão múltipla, na forma de tão impossível monstro.
99
A verdade evangélica, portanto, mostra-se, simplesmente, sem "artifícios polidos com
colorido variado" (sem retórica, portanto), uma vez que o Espírito Santo "ama a palavra
simples e comum". A presença do Espírito Santo é, desde logo, imprescindível neste contexto
em que o cristão fala "inspirado" por ele. Por exemplo: quando os cirineus discutiam com
Estêvão, "não podiam resistir à sabedoria e ao Espírito, pelo qual ele falava" (At. 6, 9-10;
itálico desta pesquisadora). O próprio Paulo expõe o caráter de sua pregação com a seguinte
fórmula, em I Coríntios, capítulo 2:
98
Ibid, pp. 30-1.
99
Rhetor ille erat, sophista, eloquens, elegantia sua vincere certans. In id quoque vos omnes
incumbitis solo dictionis lenocinio saturati. At spiritus sanctus nunquam per talia organa loquutus est.
Nunquam est vsus sermonibus, artificis fuco vario politis, cum simplicem amet, et vulgarem
sermonem. Paulus quoque docet, ob eloquentiam sermonis inaniri vim praedicationis Christi.
Rhetorica ergo affectata et sophistica vestra, imminutionem veritatis arguit, et falsitatis varias adducit
illecebras. Idque magis, quia est animis vestris tam euidens illusio, et tam multiplex, in tam
impossibili monstro. Christ. Rest., 674.
106
Eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de
Deus, não o fiz com ostentação de linguagem ou de sabedoria. (. . .) A minha
palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de
sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que vossa
não se apoiasse em sabedoria humana, mas no poder de Deus. (Itálico nosso)
Também Paulo, portanto, distingue entre os que pregam "com ostentação de
linguagem ou de sabedoria" e ele próprio, que conta com a "demonstração do Espírito", que
lhe foi conferida para que a dos homens não se apoiasse na "sabedoria humana", mas sim
no "poder de Deus". Trata-se, portanto, da mesma polarização traçada por Servet no exórdio
da Apologia, quando opôs as "coisas divinas" aos "oráculos humanos".
Dessa forma, não deve parecer casual que Servet recorra a esse mesmíssimo trecho de
Paulo como prova de que também o Apóstolo havia ensinado que "a força da pregação de
Cristo é esvaziada pela eloqüência do discurso".
A primeira conclusão lógica é a de que aqueles que falam e/ou escrevem inspirados
pelo Espírito Santo não usam "palavras e artíficos polidos com colorido variado"; usam, ao
contrário, a "palavra simples e comum". Os retóricos e os sofistas, por sua vez, recorrem às
sutilezas e escrevem artificiose, ou seja, "com arte", o que, no decoro do estilo baixo cristão,
é sinômimo de falsitas. A segunda conclusão lógica é que Servet está escrevendo sob o
influxo do Espírito Santo (e, por conseguinte, está a serviço da veritas), enquanto seus
adversários reformados, que lançam mão de uma "retórica afetada e sofística", encaminham-
se para "as lisonjas da falsidade". Servet busca as "coisas divinas" syncere, ao passo que eles
não têm senão sophismata.
Monta-se, pois, o seguinte cenário: de um lado, um falso mestre, munido com aquilo
que lhe é próprio (ilusões, mentiras, aparências, discursos artísticos, enganos); do outro, o
advogado da Verdade com a única arma de que dispõe: a sinceridade de seu coração puro,
por meio do qual se revela o Espírito. Um exemplo: Irineu, que, citando Paulo, enfrenta os
gnósticos. Outro exemplo: Servet, que, citando Paulo, se apóia em Irineu para dar combate
aos “magos” contemporâneos seus, os reformadores da sola fide e do servo-arbítrio.
Esse é um dos principais motivos pelos quais o nome de Irineu é o mais citado em
toda a Christianismi Restitutio; 55 vezes apenas na Apologia a Melanchthon. Assim, não são
gratuitas as constantes menções ao nome de Irineu (o maior expoente da cruzada
107
antignóstica) e ao de Simão Mago (o maior nome do gnosticismo). Tampouco é
desinteressada a identificação de Servet com o primeiro e dos protestantes com o segundo.
Trata-se de uma estratégia que, se visava a relacionar os maiores nomes do protestantismo ao
lado de nomes de hereges, universalmente combatidos pelo cristianismo, também tinha como
meta investir Servet dos atributos da persona de Irineu.
Também os outros "doutores antigos" de que fala no primeiro parágrafo da Apologia
combateram heresias: Inácio de Antioquia (para quem os hereges são como "feras selvagens"
e "cães raivosos que mordem sorrateiramente"); Policarpo de Esmirna (que se enfrentou com
Marcião e que, ao defender a encarnação do Cristo, combate o gnosticismo e o docetismo); o
apologista Justino Mártir (cujas apologias foram escritas como defesa da nova religião cristã
face ao paganismo e ao judaísmo); Clemente de Alexandria (que se opõe vigorosamente ao
gnosticismo); e Tertuliano (o qual abriu fogo contra o dualismo maniqueísta e o
gnosticismo).
No decorrer da Apologia a Melanchthon, Servet vai construindo sua argumentação e
seu ethos de intérprete verdadeiro a partir da premissa de que, apoiado em seus sólidos
conhecimentos de grego e de hebraico, possui a verdadeira chave para a interpretação das
Escrituras.
A argumentação servetiana, portanto, baseia-se na legitimação garantida pela correta
interpretação dos termos; Servet professa essa sua verdade na primeira pessoa:
Por isso, Filipe, reflete numa única coisa: que eu não induzo a
quaisquer novidades no uso dos termos, que eu não emprego nenhum sofisma,
que eu não cometo abuso algum quanto às palavras das Escrituras, como vós
fazeis. Eu não deturpo nenhum passo da Escritura, e a nenhum violento. Em
tudo procedo sincera, simples e abertamente. Se tivesses uma migalha de
inteligência, isso já seria para ti um grande argumento de verdade. Ofende-vos
que eu fale contra vosso costume. Como se eu não tivesse de ter muito maior
cuidado em falar de acordo com as Sagradas Escrituras! A tal ponto estais
108
enfeitiçados por vossos costumes perversos que não vos dais conta de que,
para Deus, sois odiosos sofistas
100
Assim, Servet constrói sua credibilidade com o argumento da sinceritas, ele que não
emprega nenhum sofisma, que não comete abuso quanto às palavras das Escrituras, que não
deturpa nenhum passo da Escritura, que em tudo procede sincera, simples e abertamente, o
que é um grande argumento de verdade para aqueles que têm uma migalha de inteligência – o
que, aparentemente, não é o caso de Melanchthon...
Em seguida, o reformador de Witteberg é retratado de forma praticamente contrária a
essa com que Servet se descreveu:
Se vos permitis brincar assim, abusar das palavras sagradas e impor a
Deus toda espécie de monstruosidade, será lícito dizer que a luz é treva. Se for
lícito dizer que este, a quem vemos, não é o filho, será lícito dizer que a neve
não é branca. Assim, para vós, a visão da luz não é visão, mas ilusão falaz.
101
Mas Servet não apenas chama Melanchthon e seus discípulos de “magos”, mas
também de "sofistas", ou seja, adversários da Verdade, “falsos mestres”. Apenas alguns
exemplos entre tantos que se multiplicam, e que dada sua clareza, prescindem de maiores
esclarecimentos:
100
Hoc vnum cogita, Philippe, Me nullas vocum nouitates inducere, me nullo sophismate vti, me
nullis scripturae vocibus abuti, vt vos facitis. Nullum scripturae locum ego detorqueo, nulli violentiam
facio. Omnia mihi syncere, simpliciter et plane procedunt. Hoc tibi, si micam intellectus haberes,
magnum esset veritatis argumentum. Offendit vos, quod contra consuetudinem ego vestram loquor.
Quasi non sit mihi maior habenda cura, vt cum sacris scripturis loquar. Adeo estis praua consuetudine
fascinati, vt non intelligatis, esse vos Deo odibiles sophistas. Christ.Rest., 676.
101
Si ita vobis ludere licet, sacris vocibus abuti, et Deo monstri quidlibet imponere, licebit dicere,
lucem esse tenebras. Si hunc, quem videmus, liceat dicere, non esse filium, licebit dicere, niuem non
esse albam: sicut vobis visio lucis non est visio, sed fallax illusio. Christ. Rest., 678.
109
Frase esta que vós, tão perdidos sofistas, com certa sutileza deturpais
em outro sentido.
102
Jamais os antigos transformaram em problema estas questões, as quais
suscitaram depois para os sofistas tão grandes tragédias acerca do Verbo
criado.
103
Doutrina pública e notória que vós, sofistas, ignorais publicamente.
104
Omito aqui outros abusos teus quanto às palavras dos sacramentos,
assim como tuas retoricazinhas para deleite dos teus devotos.
105
A argumentação servetiana baseia-se na legitimação garantida pela correta
interpretação dos termos; os sofistas, por sua vez, cometem abuso quanto às palavras
sagradas.
Outro trecho em que Melanchthon é acusado de pessimismo, paganismo,
pseudojudaísmo, covarde e helenista (não cristão, portanto, numa acusação similar à de
sofista):
Deixas tudo tristíssimo para nós, com tuas tragédias e exemplos de
pagãos, que sempre nos inculcas em excesso, e também com teu vínculo ao
pseudojudaísmo, quando todos os profetas e mesmo os anjos anunciam
sempre desde o céu a alegria e a felicidade no Cristo. Tu mesmo te aterrorizas
com pavores mulheris por colocares-te sempre sob a maldição da Lei. (. . .)
Quem dera, Filipe, ainda fosses gramático, voltado ao helenismo! Quem
dera não tivesses irrompido assim no cristianismo, tu que hás de ser tão grande
102
Quod dictum vos, perditissimi sophistae, in alienum sensum cauillo quodam detorquetis. Christ.
Rest., 677.
103
Seniores nunquam in his quaestionem fecerunt, in quibus postea sunt a sophistis magnae de creato
verbo excitatae tragoediae. Christ. Rest., 728.
104
Publice nota res erat, et vos sophistae eam publice ignoratis. Christ. Rest.,730.
105
Omitto hic alios tuos in sacramentis vocum abusus, et rhetorculas tuas ad tuos pios blanditias.
Christ. Rest., 676.
110
empecilho a que as almas boas ao menos saboreiem as coisas celestiais e
usufruam do reino dos céus!
106
A conclusão a que o leitor facilmente pode chegar é simples: como Paulo e Irineu,
Servet, sob o influxo do Espírito Santo, escreve com a "palavra simples e comum". Os
protestantes, entretanto, são "odiosos sofistas" que abusam das "palavras divinas" porque
tentam impor à linguagem do Espírito Santo interpretações metafóricas, filosóficas,
"sofísticas". Não é casual, portanto, a recordação de que Melanchthon, professor de grego
clássico e gramático reconhecido, fora "helenista"!
Os “outros”, diz Servet, falam a linguagem do metafísico, a qual não é a "simples e
vulgar", mas sim o do tropo, elemento que promove analogias por meio da transferência de
sentido - exatamente o que Servet não pode aceitar, uma vez que está buscando o sentido
primitivo de cada vocábulo e, portanto, de cada conceito. Por exemplo: existe a palavra
"filho" e existe a palavra "verbo"; logo, "filho" e "verbo" não são propriamente a mesma
coisa. "Filho" e "Verbo" podem ser o mesmo, propriamente falando, por transferência de
sentido, ou seja, por tropo. Mas, lembra Servet, "nada é pronunciado entre vós que não esteja
envolto por algum sofisma".
No que diz respeito ao discurso, Servet afirma escrever "sine tropo et sine
sophismate", utilizando apenas "simplex et vulgaris sermo". Seu modelo, portanto, não é o
dos filósofos e oradores, mas o de Paulo (o Espírito Santo, lembre-se). Estudioso das línguas
sagradas e tradutor de hebraico (língua que conhecia a ponto de se permitir trocadilhos),
Servet afirma que "argumenta conforme as propriedades de todas as línguas e segundo as
Escrituras", e que, por conseguinte, não induz a "quaisquer novidades no uso dos termos",
nem emprega "nenhum sofisma" ou comete "abuso" com relação ao texto sagrado. Ao
contrário dos sofistas, ele não "deturpa" nem "violenta" as Escrituras, mas as interpreta
"sincera, simples e abertamente"; repetindo, portanto, o “manifesto literário” do orador
cristão.
106
Tragoediis tuis, et Ethnicorum exempliis, quae praeter rem semper inculcas, ac tuo etiam
pseudoiudaismi vinculo omnia nobis tristissima facis: cum prophetae omnes, et angeli ipsi de caelo,
gaudium et laetitiam in Christo semper annuncient. Mulieribus pauoribus te ipsum vbique territas, sub
maledicto legis semper constitutus. Vtinam, Philippe, grammaticus adhuc esses, in tuo Hellenismo
semper versatus. Vtinam in Christianismum non ita irrupisses, bonis mentibus tanto impedimento
futurus, quo minus caelestia sapiant, et caelesti regno fruantur. Christ. Rest., 719-20.
111
3.2. Simão contra Simão Mago
Calvino, por sua vez, tampouco havia merecido tratamento muito melhor por parte de
Servet, que o havia apelidado de Simão Mago
107
, nome por que o chamou mesmo nos
interrogatórios durante seu longo processo criminal em Genebra, o que levou os pastores a
pedir ao juri que se lhe aplicasse uma reprimenda, pois “Servet pensa que os jurados não
saberão quão eloqüente e desavergonhado charlatão ele é até que chame Calvino de homicida
e vomite sobre ele toda classe de insultos” (Bainton, 1973, 200).
Assim como Simão Mago é o contrário” de Pedro, o “falso mestre” é o avesso do
“advogado da verdade”; assim, Simão Mago corresponde, negativamente, ao apóstolo, ou
seja, é seu oposto. E uma vez que Calvino é como Simão Mago, Servet, que a ele se opõe,
está, por essa gica da polarização, automaticamente identificando-se com os apóstolos, e
em especial com Pedro.
Simão comparece várias vezes na Christianismi Restitutio, sempre com o sentido de
"gnóstico", na acepção de Irineu; mais do que a uma personagem histórica, Servet refere-se a
algo como um herege arquetípico, a que chama Simão Mago. Assim, a tradição sobre "o
feiticeiro" de Samaria funde-se com a de outros expoentes do gnosticismo, como Menandro,
Cerinto e Marcião, para criar um arquétipo de inimigo da verdade, com cujo nome Servet
“brindou” o Calvino da doutrina de predestinação.
Também quanto à fé e à justificação nasceu recentemente entre s
uma escola de magos. Pois, como ensina Clemente no já citado Segundo
Livro, e Irineu no Livro Primeiro, Simão Mago e os valentinianos pregavam
107
Segundo os Atos, capítulo 8, Simão Mago "praticava a mágica, iludindo o povo de Samaria";
converteu-se ao cristianismo e "tendo sido batizado, acompanhava a Filipe de perto, observando
extasiado os sinais e grandes milagres praticados". Ao assistir a uma imposição de mãos realizada por
Pedro e João, por meio da qual o Espírito Santo descia sobre as pessoas, ofereceu dinheiro aos
apóstolos para que também a ele fosse concedido esse poder, sendo então repreendido por Pedro. De
seu nome vem a palavra "simonia", que significa "comércio, mediante dinheiro, de coisas espirituais".
Também Irineu trata de "Simão, samaritano, do qual se originaram todas as heresias" no Livro I de
Aduersus haereses. Seus discípulos, diz, "são chamados simonianos, nome que lhes vem de Simão, o
iniciador da mais ímpia doutrina, e é deles que se origina, com nome falso, a gnose".
112
que a justificação e a são mero conhecimento e que de nada servem ao
gnóstico as boas obras. Essa fé reproduz agora vosso gnóstico Calvino.
108
Numa das epístolas que endereçou a Calvino e depois fez publicar junto ao corpus da
Restitutio, Simão Mago e Pedro voltam a aparecer, este último como argumento de
autoridade a favor do conceito de mérito
109
, o qual, no Protestantismo, havia sido substituído
pelo princípio da sola fide, levando, no calvinismo, à idéia de predestinação:
a disputa de Pedro com Simão Mago te confunde, e te ensina a
justiça das obras também no caso de um pagão. Pedro pergunta: é Deus justo?
Acaso faz o bem aos que fazem o bem? Ou o mal aos que fazem o mal? Assim
é a justiça natural: o próprio extrai benefício das próprias boas obras, bem
como malefício das más obras. Até nos pagãos há, pois, alguma retribuição
pelas obras, como ele mesmo ensina (At. 10 e Paulo em Rom. 2). Daí que
Pedro diz que se segue necessariamente a ressurreição e que Deus fará o bem
àqueles que, por fazê-lo, tiveram de sofrer o mal. Justiça essa que tu, com
Simão Mago, negas. Como Simão Mago, ensinas que a justificação e a são
apenas conhecimento, mas que a observância dos mandamentos é totalmente
impossível.
110
108
In fide et iustificatione est recens apud vos nata schola magorum. Nam, vt citato libro secundo
docet Clemens, et Irenaeus libro primo, iustificationem et fidem Simon magus et Valentiniani
docebant, esse solam cognitionem, et Gnostico bona opera nihil efficere. Fidem hanc pingit nunc
vester Gnosticus Caluinus. Christ. Rest., 701.
109
Um dado interessante: ao De libero arbitrio de Erasmo, Lutero respondeu com um De Servo
Arbitrio, no qual diz que considera os argumentos de Erasmo a favor do livre-arbítrio “desmedidas e
embriagadas loucuras”, ainda que envoltas numa retórica impecável, como “estrume em vasos de
ouro” (Fernández-Armesto, 1997, 125).
110
Sola Petri disputatio contra Simonem magum te confundit, et operum iustitiam, etiam in Ethico
docet. Rogat Petrus, An Deus sit iustus? An benefacientibus bene faciat? Et malefacientibus
malefaciat? Sic haec est iustitia naturalis, ob ipsa benefacta ipse benefacit, sicut ob malefacta
malefacit. Est ergo inter Ethicos aliqua operum retributio, vt ipsemet docet acto. 10.et Paulus Rom. 2.
Hinc Petrus necessario sequi ait resurrectionem, quod benefacturus sit Deus iis, qui benefacientes sunt
mala perpessi. Quam iustitiam tu cum Simone mago negas. Instar Simonis magi tu doces,
iustificationem et fidem esse solam cognitionem. Obseruationem vero praeceptorum esse penitus
impossibilem. Christ. Rest., 611.
113
O servo-arbítrio e a sola fide são, segundo Servet, os pontos de contato entre os
antigos gnósticos e os novos, os protestantes:
Subvertem, com Simão Mago, o juízo de Deus. Pois, segundo o
testemunho de Pedro, o juízo de Deus consiste nisto: “se cada homem pôde
fazer o bem e não o fez” – coisa que Lutero e Calvino negam.
111
Nem por mérito nem por demérito ganha-se o castigo ou a glória, diz
Simão Mago, como dizem estes.
112
Dizia que as coisas que se fazem, justa ou injustamente, ao Criador
há que atribuí-las, não a nós. Só resta, portanto, buscar, com Simão Mago, um
outro Deus e acusar de injustiça esse Criador, posto que fez coisas injustas.
Pois se todas as coisas provêm do fado, do fado provêm as coisas injustas.
Ora, fado é o que foi falado, é o próprio Deus, que falou, e, falando, impôs a
fatalidade do mal. Por isso é mágico vosso luteranismo e vosso calvinismo.
113
Ou ainda:
Ninguém, a menos que esteja encantado por Simão Mago, seria capaz
de negar que certa justiça nas obras e que corresponde a essa justiça certo
prêmio de glória no céu.
114
111
Iudicium Dei cum Simone mago illi euertunt. Nam teste ibi Petro, in hoc stabit Dei iudicium, si
potuit homo facere bonum, et non fecit: quod negant Lutherus et Caluinus. Christ. Rest., 701.
112
Nec ob merita, nec ob demerita, rependi poenam vel gloriam, dicebat Simon magus, vt isti dicunt.
Christ. Rest., 701.
113
Quae iuste vel iniuste fiunt, aiebat soli fabricatori esse adscribenda, nobis nihil. Superest igitur,
cum Simone mago alium Deum quaerere, et creatorem hunc arguere iniustitiae, vt qui faciat res
iniustas. Si enim fato fiunt omnia, fato fiunt res iniustae. Fatum autem a fando, est ipsemet Deus, qui
ita fatus est, et fando malorum necessitatem imponit. Hinc est magicus vester Lutherianismus et
Caluinismus. Christ. Rest., 701.
114
Nemo, nisi a Simone mago fascinatus, hic negaret, esse in factis iustitiam, et ei certam in caelo
respondere gloriae mercedem. Christ. Rest., 330-1.
114
E é assim, sempre como sinônimo de falsidade, ilusão ou engano, que Simão
reaparece na Restitutio:
Assim como todos os discípulos de Simão Mago diziam que Cristo era
somente um fantasma, vós também dizeis que outrora somente um fantasma era visto
no Verbo; e assim como eles encolerizavam-se à menção da carne de Cristo, negando
sua verdade, do mesmo modo vossos magos negam que ela seja verdadeiro
alimento.
115
Mágica é para vós a morte do filho de Deus. Simão Mago e todos os seus
discípulos negam que o filho de Deus tenha morrido verdadeiramente, mas dizem que
se esvaiu, invisível.
116
Contumacíssimo é vosso espírito, assim como o de Simão Mago. Sois ainda
piores que Simão Mago, vós que imaginais um tal monstro tricéfalo em Deus, coisa
que ele não teria admitido.
117
Também Simão Mago disse que Deus não tem comunicação alguma com suas
criaturas e que Ele não se une a elas.
118
Simão Mago, pois, é aquele que "negou o livre-arbítrio" e disse que "de nada valem
as boas obras", uma vez que "a justificação e a fé" produzem-se pela gnose, ou seja, pelo
conhecimento, e, por conseguinte, "nem por mérito nem por demérito ganha-se o castigo ou a
glória"; que dizia ainda que Deus, "falando, impôs a fatalidade do mal"; que negava que "o
Cristo é o filho de Deus" e que ensinava que Cristo era "um corpo fantástico, sem carne
115
Sicut discipuli omnes Simonis magi Christum dicebant esse phantasma solum, ita vos dicitis, olim
in verbo esse visum phantasma solum: sicut illi in carnem Christi stomachabantur, veritatem eius
negantes, ita vestri magi negant, esse verum cibum. Christ. Rest.,700.
116
Magica est vobis mors filii Dei. Simon magus, et sui omnes discipuli, negant filium Dei esse vere
mortuum, sed inuisibilem euanuisse. Christ. Rest.701.
117
Contumacissimus est spiritus vester, sicut Simonis magi. Imo estis Simone mago deteriores, qui
tale triceps monstrum in Deo cogitatis, quod ille non admisisset. Christ. Rest.,702.
118
Magus quoque Simon Deum dixit nullam cum creaturis habere communicationem, nec eis ipsum
vniri. Christ. Rest., 730.
115
verdadeira" e que não morreu verdadeiramente, mas que "se esvaiu, invisível"; e que,
finalmente, ensinava que Deus não tem nem pode ter comunicação com a Criação. Simão
Mago, portanto, pregava o servo-arbítrio e ensinava o fatalismo, repudiando, em
conseqüência, o valor das obras; negava que Deus fosse o Pai natural do homem Jesus; não
admitia tampouco que o filho de Deus pudesse morrer na cruz (e, assim, ensinava que se
havia "esvaído", o morrido); e que as criaturas são impuras demais para que pudessem ter
com Deus qualquer tipo de comunicação. Em todas essas doutrinas, gnósticas, Servet via a
origem dos "erros" de calvinistas e luteranos.
Mas Servet acrescenta mais um motivo, extraordinariamente importante para esta
análise, pelo qual Simão Mago (e, por conseguinte, seus seguidores modernos) mereceria o
repúdio dos verdadeiros cristãos:
Retórico era ele, sofista, eloqüente, disputando para vencer com sua
elegância. O mesmo de que vos incumbis vós todos, que vos satisfazeis
com com o lenocínio de um discurso ensaiado!
119
Simão, pois, era, além de herege, rhetor, ou seja, "sofista e eloqüente". Ao discurso
simples de Pedro, responde com "elegância", numa oposição óbvia entre as virtudes do estilo
baixo cristão e os vícios da ornamentação retórica, de cuja "maquilagem" a falsidade precisa
para seduzir. Ao contrário do apóstolo, que deve estar pronto a falar para apresentar a defesa
de sua fé, o Mago discursa para disputar e vencer "com sua elegância" -o com sua
verdade…
Digno de nota também o emprego da palavra lenocinium, cujo sentido primitivo é
"prostituição", "tráfico de escravas" e, na retórica, representa "afetação". A tradução
espanhola de Angel Alcalá propõe "la alcahuetería de la charla" ("a alcovitagem da fala"),
mas traz, em nota de rodapé, a possibilidade de entender essa expressão como "o orgasmo da
fala". Ao traduzir "dictio" por "charla", Alcalá acrescenta ainda a idéia de que se trata de um
discurso repetitivo e sem substância, algo como "falação" ou "tagarelice".
No entender desta pesquisadora, lenocinium carrega, aqui, os sentidos de "corrupção"
(as detorta verba a que Servet pretende restituir o significado original); de "sedução", na
119
Rhetor ille erat, sophista, eloquens, elegantia sua vincere certans. In id quoque vos omnes
incumbitis solo dictionis lenocinio saturati. Christ. Rest., 674.
116
medida em que o discurso é elaborado com a finalidade de atrair por meio de lisonjas; e,
metaforicamente, de "prostituição", uma vez que as palavras são "ornadas" com o fito de
afastar daquilo que é puro, e, dessa forma, são, por assim dizer, "traficadas", num comércio
que as degrada. O particípio saturati também autoriza essa interpretação de matiz sensual,
bastante ligada à idéia da ornamentação estética do discurso para deleite dos sentidos.
Além disso, Servet usa a palavra dictio, e não oratio ou concio para designar o tipo de
discurso a que se refere aqui. Parece, portanto, tratar-se do tipo de discurso previamente
ensaiado de que trata a Retórica clássica. Uma possibilidade interpretativa seria, portanto,
entender que seus adversários, os protestantes, estão repetindo um discurso aprendido,
decorado, sem reflexão, ao passo que ele, Servet, longe de aceitar as palavras "degradadas"
pela tradição do corpus christianum, procura resgatar o sentido primitivo de cada vocábulo.
O aviso contra os falsos mestres (dos quais Simão Mago é o estereótipo) corresponde,
negativamente, ao apostolikon, isto é, sua autoridade, seu ethos de orador cristão E assim
como Simão Mago é o contrário de Pedro, o “falso mestre” é o avesso do “advogado da
verdade”. Dessa forma, se Calvino é o novo Simão Mago e se os partidários da predestinação
contra as boas obras são “seita simoniana”, por indução o apostolikon de Servet está
garantido por sua posição ao lado de Pedro e dos demais adversários do gnosticismo.
3.3. Os Profetas na Babilônia
Servet refere-se aos “papistas” como “sacrificadores babilônicos”, pondo em
destaque, portanto, o aspecto ritualístico de suas cerimônias, e em especial da missa, e aquilo
que considera o caráter feiticeiro dos padres e monges, com seus cantos, gestuais e
vestimentas. Se, para o judeu do Antigo Testamento, Babilônia é a terra das iniqüidades do
politeísmo e da idolatria, Servet, ao identificá-la com a Roma católica, está, por conseguinte,
afirmando que esta reflete e reproduz, no século XVI, a perdição, a adoração a falsos deuses
e os costumes licenciosos daquela, ao mesmo tempo em que ele, Servet, ao atacar tudo isso,
reserva para si o papel que no Antigo Testamento era desempenhado pelo profeta. A
linguagem, pois, assume aqui a forma da denúncia e do vitupério.
117
Se alguém refletir bem sobre o tráfico de benefícios e as negociatas
dos tribunais, com seus pagamentos e reintegrações, descobrirá que nunca,
desde a criação do mundo, houve tantos e tão grandes latrocínios, com títulos
falsificados. Tudo se desenvolve agora segundo o código do meretrício: por
meio de assédios constantes e tendo em vista a rapidez das transações. Que
têm a ver com os apóstolos esses vigaristas e seus recursos, insinuações,
privilégios, presentinhos e proteções? O papismo hoje não aspira senão à
pompa e à opulência.
120
Era lugar comum durante a Reforma a afirmação de que, assim como o povo de Judá
vivera sob o cativeiro babilônico, o verdadeiro cristão vivia, no século XVI, sob o império
papístico, e o próprio Lutero havia escrito um De Captivitate Babyloniae. Uma vez que a
missão que Servet se auto-atribuiu era precisamente uma guerra de libertação, aos ataques
desferidos contra os inimigos somavam-se vaticínios e ameaças contra aqueles que se
recusassem a aderir à causa.
A linguagem de Servet começa então a ecoar mais claramente Isaías, o profeta mais
citado e referido no Novo Testamento e a autoridade a que Mateus recorre para legitimar sua
lista de sinais que se cumpriram.
120
Si beneficiales hodie mercaturas, et forenses in eis negociationes, resignationes, ac deuolutiones
quis bene cogitet nunquam a creatione mundi tot et tanta inueniet fuisse latrocinia, cum coloratis
titulis. Meretricio iure, certis rapinis, et celeritate cursus, omnia nunc doluoluuntur. Quid cum
apostolis vicariatus isti? Regressus, insinuationes, annatae, paruae datae, reseruationes? Ad solam
pompam et opulentiam spectat hodie totus Papismus. Rhetor ille erat, sophista, eloquens, elegantia
sua vincere certans. In id quoque vos omnes incumbitis solo dictionis lenocinio saturati. At spiritus
sanctus nunquam per talia organa loquutus est. Nunquam est vsus sermonibus, artificis fuco vario
politis, cum simplicem amet, et vulgarem sermonem. Paulus quoque docet, ob eloquentiam sermonis
inaniri vim praedicationis Christi. Rhetorica ergo affectata et sophistica vestra, imminutionem
veritatis arguit, et falsitatis varias adducit illecebras. Idque magis, quia est animis vestris tam euidens
illusio, et tam multiplex, in tam impossibili monstro. Christ. Rest., 449.
118
De noite e na inconsciência de sua embriaguez, os magnatas babilônios
foram aniquilados junto com o rei Baltazar (Is. 21; Jr. 51; Dn. 5); aqueles
magnatas babilônios dormiram o sono perpétuo com os gigantes, para nunca
mais despertar (Is. 26). Assim dormem agora um sonho perpétuo os gigantes
da nossa Babilônia. Foram de tal modo entregues à perversão que Deus não
deseja que despertem de seu sonho, mas que pereçam em sua bebedeira e
libertinagem. Justa é, pois, a sentença dada contra esses espíritos tão
inoportunamente vencidos pelo sono e encarcerados na escuridão da noite.
Aprendamos daqui quão terrível de ser para todos aquela sentença dada
contra os espíritos nos tempos de Noé, e que não sem fundamento pode
novamente ser tremenda para nós por parte de Cristo. Pois não te equivocarias
dizendo que Deus ditou sentença contra nossos espíritos fascinados, que
em nossa Babilônia encontra-se a prisão dos demônios, como foi repetido
profeticamente por João no capítulo 18. Nela realmente espíritos
impostores que, como outrora, se fazem passar por espirituais e angelicais,
quando não têm sequer uma centelha do bom espírito. Nela os filhos
consagrados a Deus mesclam-se com os filhos dos homens. Por isso a
Babilônia, e de todas as libertinagens e abominações da terra, de ser
novamente destruída, como diz João. Na Igreja da Babilônia de hoje não
poderás ver senão filhos de elohim, heróis purpurados, insígnes demônios,
pastores adulterinos, todos eles guiados por seus vãos pensamentos, cujo
pensamento boceja de boca aberta no cárcere. Estes, como aqueles, comem,
bebem, têm muitas mulheres e desejam que as esposas sejam comuns. Não
nem um sequer que busque a Cristo e ainda presumem ser infalíveis! Tão cego
está hoje o mundo que até chega a crer que a Igreja de Deus pode ser
governada por este bando de rameiras! Com evidente hipocrisia fazem pose de
119
certa piedade exterior, pela qual se nos impõem com humildade e por
superstição (II Tim. 3; Col. 2).
121
Num outro passo, o capítulo 34 de Isaías serve de ponto de comparação para que
Servet estabeleça uma ponte entre as “bestas que rodeiam os escombros” e as ordens
monásticas, enquanto reserva para si mesmo o papel de profeta que denuncia os iniqüos e as
iniqüidades, combatendo o poder estabelecido com a força de suas palavras.
Habitam ali, diz [Isaías], corujas, mochos, morcegos, lamias,
corvos junto aos cadáveres, lobos que rondam o rebanho, gaviões e
grifos, gordos porcos, cegas toupeiras, onagros, onocrotalos e
onocentauros. Há, finalmente, o colégio dos abutres, para devorar os
cadáveres, quando alguém morre. E esses abutres reclamam para si a
presa, alternando-a com os corvos, os milhafres e outras bestas, por
meio de cânticos em comum e de hinos que submurmuram sem que os
entendam. E ainda diz que fariam para si ninhos, covas e casas onde
percebessem carnes gordas e gordos sacerdócios.
122
121
Discamus ex hic omnibus, verendam illam Noë seculo in spiritus latam sententiam, non abs re a
Christo nobis denuo formidabilem fieri. Nam vere dixeris, Deum in fascinatos spiritus nostros
sententiam tulisse, cum sit in nostra Babylone daemonum custodia, vt est a Ioanne prophetice
repetitum, dicto cap. 18. In ea sunt vere spiritus impostores, qui se, vt olim, spirituales et angelicos
vocant, cum nec scintillam habeant boni spiritus. Filii Deo consecrati cöeunt ibi cum filiis hominum.
Ob quam causam est denuo perdenda Babylon, mater scortationum, et abominationum terrae, vt ait
Ioannes. Nihil aliud plane in Babylonis ecclesia hodie videas, quam filios Elohim, purpuratos heroas,
daemones magnos, adulterinos pastores, omnes vanis cogitationibus ductos, quorum spiritus totus in
carcere stertit. Qui sicut illi, comedunt, bibunt, multas uxores habent, et mulieres esse communes
volunt. Non est qui Christum requirat, et dicunt, se errare non posse. Adeo caecus est hodie mundus,
vt credat per huiusmodi scorta ecclesiam Dei gubernari. Externam quandam pietatem magna hypocrisi
vsurpant, qua nobis per humilitatem et superstitionem imponunt. 2. Timot. 3. et Colos. 2. Christ.
Rest., 84-85
122
Habitare ibi ait noctuas, vlulas, vespertiliones, lamias, coruos ad cadauera, lupos circa gregem,
accipitres, et gryphones: pingues porcos, caecas talpas, onagros, onocrotalos, et onocentauros.
Denique miluorum collegium, quando aliquis moritur, ad cadauera deuoranda. Hosque miluos cum
coruis, vulturibus, et aliis bestiis, per mutuos concentus, et sine intellectu submurmuratos odarum
versiculos, alternatim ad praedam sibi acclamantes. Imo, inquit, nidos, foueas et domos sibi facient,
vbi viderint esse pinguium carnes, et pinguia sacerdotia. Christ. Rest., 482. Compare-se com
Tertuliano: “Víboras, cobras, serpentes, procuram em geral os lugares áridos, sem água; ao passo que
nós, pequenos peixes, assim denominados a partir de nosso ICHTYS, Jesus Cristo, na água nascemos
e nos salvamos permanecendo nela” Contra Práxeias, p. 170.
120
Roma é o cativeiro da verdadeira igreja e que o Cristianismo esteja submetido ao
poder papal romano é, na Reforma, equivalente aos tempos de êxodos dos profetas do Antigo
Testamento. Servet também se apropria dessa linguagem e, como Isaías, escreve de forma
“intensamente retórica”, uma vez que quer criar “uma reação determinada em seus ouvintes:
quer afetá-los, abalá-los, confrontá-los” (Alter e Kermode, 1997, 180).
Roma é a Babilônia, a assassina dos santos, o domicílio dos ídolos, das
bestas e do Anticristo.
123
Em primeiro lugar, João, no Apocalipse, chama-lhes harpias ou aves
imundas, máscaras de demônios, cafetãos, negociantes de almas humanas,
pomos da discórdia, que navegam de terras distantes em direção a Roma, para
tráfico de mercadoria espiritual.
124
O culto a estátuas e o politeísmo, abominações para os judeus, constam
também entre as acusações que Servet faz contra os “papistas”, reforçando, assim, sua
identificação com os profetas que atacavam a idolatria com virulência.
Os sacrifícios aos mortos, a Besta aprendeu-os dos gentios, assim
como o culto às imagens, pois os judeus detestavam tudo isso. Assim como
lemos que no número de deuses dos gentios estavam incluídos Júpiter, Juno,
Hércules etc., assim também a Besta, instigando-a o capuz dos cacodemônios,
faz-nos deuses de homens mortos, ensinando-nos a suplicar diversos favores a
suas estátuas.
125
123
(…) Romam dicens esse Babylonem, sanctorum interfectricem, idolorum, bestiarum, et Anticristo
domicilium. Christ. Rest., 482.
124
Primo eos in apocalypsi vocat Ioannes harpyas, seu volucres immundas, daemonum laruas,
scortatores, negociatores animarum hominum, poma desiderii, ad spiritualem mercaturam a
longinquis Romam nauigantes. Christ. Rest., 481.
125
Mortuorum sacrificia a Gentibus didicit Bestia, sicut et idolorum cultum: nam Iudaei haec omnia
detestantur. Sicut apud Gentes in diorum numerum relatos legimus Iouem, Iunonem, Herculem, et
alios: ita Bestia, cacodaemonum sugerente cuculla, ex mortuis hominibus nobis deos facit, ab eorum
statuis nos docens varia precari. Christ. Rest., 469
121
Servet, entretanto, assim como os profetas viveram no cativeiro ou no exílio, admite
que, morando no próprio palácio episcopal do Bispo Palmier na França católica, foi obrigado
a assistir à missa papística propter offendiculum et metum, numa confissão de nicodemismo
que não escapou a Calvino.
Para não escandalizar e por medo, somos hoje obrigados a observar
ritos babilônicos muito piores dos idólatras, ou a dissimular. Pois os ministros
da Besta lançam-se contra nós muito mais selvagemente do que os judeus
lançaram-se contra os apóstolos. Estão sempre sedentos de sangue e, com
Caifás e os fariseus, gritam: “não nos é permitido matar ninguém!”
126
Mas, assim também como os profetas, Servet anuncia que o final se aproxima e, ao
fazê-lo, explicita o sentido de toda a sua obra. Afinal, a palavra-chave dessa volta à
presumida pureza primitiva da igreja é restitutio, a restituição, o restabelecimento, a
restauração palavra que traz em si a idéia de um movimento circular que retome o
passado, completando o ciclo. No contexto da Reforma Radical do século XVI, restitutio é
um “termo técnico” dos movimentos milenaristas. Servet, pois, olha para o passado para criar
as condições para o futuro, e fala em praefiguratio, prefiguração.
3.4. O Arcanjo Miguel
Estudemos agora com que recursos Miguel Servet legitima e autoriza sua posição de
soldado de Cristo por meio de sua identificação com o Arcanjo Miguel. Para isso, faz-se
necessário, em primeiro lugar, ter em mente a questão do apostolikon, de que tratamos no
126
Babylonios alios longe deteriores idololatrarum ritus nos hodie seruare aut dissimulare cogimur,
propter offendiculum et metum. Quia saeuius multo in nos agunt bestiae ministri, quam egerint Iudaei
in apostolos. Sanguinem semper sitiunt, et cum Caipha et Pharisaeis exclamant, Non licet nobis
interficere quenquam. Christ. Rest., 564.
122
capítulo 2: o autotestemunho do “enviado” que é também sua auto-recomendação, em que “o
apóstolo dá seu nome, explica sua função, resume sua mensagem e reproduz sua auto-
imagem” (Berger, 1998, 244). Como a presença do “enviado” se justifica num período de
crise, e, por isso, há, como já apontamos, um esquema de revelação, que consta dos seguintes
elementos: (a) um segredo escondido; b) por uma eternidade ou desde o princípio da criação;
c) é chegada a hora da revelação desse segredo; d) que foi revelado aos apóstolos, para que
estes o transmitam aos demais) que empresta significado a perseguições, rupturas, cismas e
guerras religiosas. A fórmula trata sempre de um segredo oculto que precisa ser revelado
porque “o tempo marcado está próximo”.
No caso de Servet, a resposta à pergunta “tempo de quê?é, em última análise, a
solução para as questões propostas por toda uma visão cristã do mundo e da História que
reaparece na Reforma Radical e em Servet, uma vez que a única alternativa correta é esta:
“tempo da restituição de todas as coisas”. Por trás dessa resposta, está uma interpretação
restitucionista da História segundo a qual houve um período de prefiguração (o do Antigo
Testamento), seguido do momento da encarnação e da era apostólica e patrística (tida como
ideal); e em seguida, a união do poder temporal (o Imperador Constantino) com o celestial
(representado pelo papado). União selada, segundo os anabatistas, no Concílio de Nicéia, em
325, e que teria dado início à corrupção da Igreja. Por isso esperava-se o segundo Advento, o
retorno, o Milênio. Predições astrológicas, profecias, oráculos e interpretações da doutrina
escatológica de Joaquim de Fiori desempenham, portanto, importante papel na Reforma
Radical em sua totalidade. A Reformatio interpretava o mundo à maneira agostiniana,
segundo a qual a Igreja existiria sempre, até o Fim, mesclando o Bem e o Mal, e o homem
haveria de ser sempre, nas palavras de Lutero, simul justus et peccator”; a Restitutio, à
maneira joaquimita, na qual a Igreja purificada, a comunidade dos santos, necessariamente
deveria existir dentro da História. E, assim, a espera de um evento futuro significava, na
verdade, o resgate de ideal passado, numa perspectiva a um tempo histórica (o que
aconteceu) e apocalíptica (o que está para acontecer). Ambas, entretanto, estão submetidas
uma à outra: o passado é reinterpretado à luz da promessa divina acerca dos acontecimentos
futuros, e o porvir pode ser visto com absoluta precisão naquilo que aconteceu. Assim, o
passado tem valor como prova, evidência, signum, prefiguração; tudo o que acontecera até
então havia ocorrido apenas para que se chegasse até aquele ponto, a batalha final. E esta
representava o fim da História.
123
O texto bíblico que serve de ponto de partida para a restitutio, indissoluvelmente
ligada ao advento do Millenium, encontra-se em Atos dos Apóstolos, capítulo 3, versículo 21,
em que Pedro afirma que Cristo será novamente enviado; “entretanto, é necessário que o céu
o receba até que se cumpra o tempo da restituição de todas as coisas”. A idéia de completum
tempus, pois, não contém uma metáfora, mas uma revelação: uma “história do futuro”,
concebida como uma realidade por ora iminente, mas nem por isso menos concreta. E, como
todas as coisas foram postas a perder, este tempus restitutionis omnium poderá impor-se
por meio de uma grande “batalha celestial”. Como na épica clássica, conta-se uma história,
mas partindo-se daquele ponto em que o principal ainda não ocorreu. Houve uma história,
pregressa, que narrou a queda e a corrupção da Igreja a partir do Concílio de Nicéia; e haverá
uma outra, a do grande combate final, para o qual os “exércitos celestiais” estão se
mobilizando. Enquanto isso, aqui na Terra, cabe ao homem fazer sua parte, e “combater o
bom combate” de que fala Paulo (II Tim. 4, 7-9). Nessa guerra de dimensões divinas, os
heróis são os mártires.
127
A “causa” restitucionista, portanto, tinha em sua premissa mesma uma interpretação
histórica: tratava-se de restituir o Cristianismo à presumida pureza de suas origens
evangélicas, tarefa por meio da qual seria possível, ao mesmo tempo, criar as condições para
o Advento; o passado ideal e o futuro aguardado, separados por uma guerra movida pelo
Anticristo contra aqueles que, restaurando o passado, possibilitam o futuro.
É para essa guerra de proporções cósmicas que Servet, também ele autodenominado
portador de uma revelação, apresenta-se como convocado, e, portanto, precisa não apenas
atrair a atenção de todos para aquilo que tem a dizer como tem de convencer em seus papéis
de porta-voz e comandante. De que forma o faz por meio da identificação com os adversários
dos inimigos com os quais identifica aqueles que ele mesmo combate, é o que tentaremos
demonstrar agora.
127
Essas idéias foram desenvolvidas pela pesquisadora em seu artigo “Elementos épicos e
interpretação restitucionista da História no Espelho dos Mártires”. LETRAS CLÁSSICAS. São
Paulo: Humanitas FFLCH/USP, Ano 5 Número 5, pp. 261-275, 2001.
124
Aqui Servet começa a construir sua autenticidade com elementos intertextuais,
alusivos ao Apocalipse e subsidiários da crença milenarista que justifica a aparição mesma da
obra. Afinal, Servet dá início ao livro Restitutio com uma convocação (vocatio), como o
chamamento do general para a reunião do exército disperso diante da iminência da guerra e,
portanto, o emprego dessa palavra não se faz de forma aleatória, mas antes cumpre uma
função bem específica
128
.
Em termos retóricos, a palavra vocatio insere o discurso imediatamente no gênero
deliberativo e exige do leitor uma atitude: é preciso tomar partido, posicionar-se, agir. Este
tem o dever de atender o chamado, porque se trata, afinal, de uma causa de todos.
Vanderveken (in Amossy, 2005, 112), analisando os atos diretivos de “convidar” e
“convocar”, afirma que solicitar a alguém que se apresente em algum lugar ou que participe
de alguma coisa”, deve partir do pressuposto de que aquilo para que o alocutário é
convocado é bom para ele”. O problema aqui é acerca da razão pela qual o leitor deve alistar-
se deste lado da batalha, e não daquele outro; ou seja, por que motivo esta vocatio tem mais
apelo do que aquela outra, que se lhe opõe necessariamente. Em termos da problemática
central deste trabalho, trata-se de estabelecer o motivo pelo qual este autor se arroga o direito
de falar em nome da causa da Verdade, exigindo do leitor o dever de nela engajar-se.
Voltemos brevemente ao Proêmio, em busca de algumas respostas.
Ó Cristo Jesus, Filho de Deus, que nos foi dado do céu, manifestas a
deidade tornada visível em ti mesmo, abre-te para teu servo, para que se revele
verdadeiramente tão grande manifestação. Concede agora teu bom espírito e
tua palavra eficaz a quem tos pede, guia minha mente e minha pena, para que
eu possa narrar a glória de tua divindade, e exprimir a verdadeira fé acerca de
ti. Tua é esta causa, e explicando tua glória recebida do Pai e a do teu Espírito,
que se me apresentou com certo impulso divino para que dela me imcumbisse,
uma vez que estava preocupado por tua verdade. Comecei essa incumbência
128
Convocação de toda a Igreja apostólica a suas origens, tendo sido restituído na íntegra o
conhecimento de Deus, da fé do Cristo, de nossa justificação, da regeneração do batismo e da
mastigação da Ceia do Senhor. Tendo-nos sido restituído, por fim, o reino celeste, e dissolvido o
cativeiro da ímpia Babilônia, e destruído totalmente o Anticristo com os seus. No original: Totius
ecclesiae apostolicae est ad sua limina vocatio, in integrum restituta cognitione Dei, fidei Christi,
iustificationis nostrae, regenerationis baptismi, et coenae domini manducationis. Restituto denique
nobis regno caelesti, Babylonis impiae captiuitate soluta, et antichristo cum suis penitus destructo.
125
algumas vezes, e agora de novo sou forçado a incumbir-me, porque, em
verdade, esgotou-se o tempo, como, a partir da evidência do próprio tema e
dos sinais manifestos dos tempos, hei de demonstrar agora a todos os fiéis.
Não se deve ocultar a lanterna, tu nos ensinaste, de maneira que, ai de mim!,
se não evangelizar! Trata-se de uma causa comum a todos os cristãos, à qual
estamos todos obrigados.
Antes de mais nada, há, pois, essa incumbência lhe foi encomendada pelo próprio
Cristo, acredita Servet - e reiterá-lo é de grande importância retórica, pois trata-se aqui da
restituição do Cristianismo, ou seja, de um retorno às origens, e não de uma inovação. No
Manuscrito de Paris, Servet, dirigindo-se a Cristo, pede-lhe que este lhe sirva de testemunha,
"para que ninguém me julgue um inovador, movido por qualquer ambição vã" (ne quis me
nouatorem existimet, inani aliqua cupiditate motum). Como Paulo, Servet não luta por uma
causa sua, mas pela causa de Cristo, que lhe fora atribuída "por certo impulso divino". Em
outras palavras, Servet, inspirado divinamente, vê-se como um instrumento para a divulgação
da verdade. Não por acaso, portanto, há traços de grandiosidade épica neste trecho da
evocação:
Manifestas a deidade tornada visível em ti mesmo, abre-te para
teu servo, para que se revele verdadeiramente tão grande manifestação.
Concede agora teu bom espírito e tua palavra eficaz a quem tos pede,
guia minha mente e minha pena, para que eu possa narrar a glória de
tua divindade, e exprimir a verdadeira fé acerca de ti.
Outro dado de capital importância diz respeito ao completum tempus, o "prazo
esgotado". Retorna-se, portanto, à crença de que a batalha final es para começar,
prenunciando o fim dos dias. Servet escreve:
Tua é esta causa, e explicando tua glória recebida do Pai e a do teu
Espírito, que se me apresentou com certo impulso divino para que dela me
imcumbisse, uma vez que estava preocupado por tua verdade. Comecei essa
incumbência algumas vezes, e agora de novo sou forçado a incumbir-me,
porque, em verdade, esgotou-se o tempo, como, a partir da evidência do
126
próprio tema e dos sinais manifestos dos tempos, hei de demonstrar agora a
todos os fiéis.
Servet, pois, começara sua batalha "em outro tempo", ou seja, em sua primeira
juventude, com a publicação de De Trinitatis Erroribus e de Dialogorum de Trinitate, cuja
repercussão o obrigou a viver sob falsa identidade por mais de vinte anos, enquanto, diz,
"procuraram-me de cima abaixo para arrastar-me para a morte". Agora, entretanto, não
mais como adiar a tarefa que lhe foi imposta, pois "o prazo se cumpriu", ou seja, estão por
esgotar-se os 1260 anos de que fala o Apocalipse e que Servet, com toda a Reforma Radical,
identifica com o Papado, quer dizer, com a aliança da Igreja com o poder romano, a qual,
segundo os “radicais” restitucionistas, deu-se no Concílio de Nicéia, em 325, quando um
novo credo foi imposto aos cristãos pelo Imperador Constantino, aliado do Papa Silvestre.
Quanto aos “indiscutíveis sinais dos tempos”, Servet pretende comprovar sua
“evidência” com a amostragem dos "sessenta sinais do Anticristo", uma “lista” de “fatos” ou
“provas” de que de que o reinado do Dragão se espalhou por todo o mundo, e, portanto,
aproxima-se o momento da batalha final, em que Miguel precipitará o Anticristo do céu,
dando início ao Apocalipse.
Dois "sinais" são especialmente relevantes, aqui:
Décimo-sétimo sinal. A duração de mil, duzentos e sessenta anos do
reino, coisa em que Daniel e João coincidem belamente. Ainda que o mistério
do Anticristo tenha começado logo depois de Cristo, seu reino se
manifestou verdadeiramente e estabeleceu-se no tempo de Silvestre e de
Constantino. Naquele tempo, num concílio ecumênico, logo o filho de Deus
nos foi arrebatado, a Igreja se nos fugiu e foram decretadas em leis todas as
abominações. Desde então passaram-se tempo e tempos e meio tempo: mil,
duzentos e sessenta anos.
129
.
129
Decimum septimum signum, Tempus regni annorum mille ducentorum sexaginta, in quo pulchre
conueniunt Daniel et Ioannes. Quamuis post Christum mox caepit Antichristi mysterium: vere tamen
emicuit, est stabilitum est regnum, tempore Syluestri et Constantini. Quo tempore est mox
oecumenico concilio a nobis ereptus filius Dei, fugata ecclesia, et abominationes omnes legibus
decretae. Hinc transierunt tempus et tempora et dimidium temporis, anni mille ducenti sexaginta.
Christ.Rest. ,666
127
Trigésimo sinal. A batalha de Miguel e dos anjos (Dn. 12 e Apc. 12).
No tempo do reino do Anticristo, diz Daniel, depois de mil, duzentos e
sessenta anos de seu reino, levantar-se-á Miguel, combatendo em defesa dos
filhos do povo de Deus, e serão tempos de máxima angústia. João viu essa
batalha celeste que há de se dar depois de mil, duzentos e sessenta anos.
Movem-se exércitos celestes e terrestres contra o Dragão, o Anticristo! Os
mais nobres santos hão de lutar então, diz Daniel
130
.
Dois temas entrecruzam-se e completam-se mutuamente: o do prazo de 1260 anos que
se esgota, e o da batalha final que de ocorrer uma vez transcorrido esse período e que será
deflagrada por Miguel. Nem a data nem a guerra são metafóricas, mas antes realidades bem
concretas, insistentemente reafirmadas. Servet propõe mesmo uma data para a iminente
batalha de Miguel contra a Serpente: como afirmava que o primeiro ano do reinado da Besta
fora o do Concílio de Nicéia (325), e este haveria de durar 1260 anos
131
, 1585 seria, por
conseguinte, o prazo final para o desenrolar dos eventos apocalípticos. A mensagem é clara:
assim como o Arcanjo Miguel fará a vocatio para a batalha do Juízo Final, assim este Miguel,
o Servet, lança agora sua convocação para que os justos se reúnam frente ao fim iminente dos
tempos.
Inúmeros passos da Restitutio remetem a esse contexto, como alguns exemplos
poderão demonstrar. Como nas ginas 388-9, em que o Papado está identificado com o
adversário:
Assim como no céu anjos à frente de outros reinos, principados,
potestades e dominações, assim também anjos à frente do Papado. Por isso
130
Tricesimum signum, Michaelis et angelorum pugna, Dani. 12. et apoc. 12. In tempore illo regni
Antichristi, ait Daniel, post annos mille ducentos sexaginta regni eius, consurget Michael stans pro
filiis populi Dei, et erit tempus maximae angustiae. Vidit Ioannes futuram post annos mille ducentos
sexaginta, hanc ceaelestem pugnam. Caelestia et terrestria contra draconem, e Antichristum iam
mouentur. Sanctos altissimos hic pugnaturos ait Daniel. Christ.Rest., 668
131
No Prólogo da Quarta Parte ainda uma interessante referência à batalha, com um sabor
militarista emprestado de César:
Ó, Cristo Jesus, Senhor e Deus nosso: não faltes. Vem, mira e luta por nós!
128
haverá agora uma grande batalha contra o Dragão e seus anjos, que sustentam
o reino da Besta, como, depois de Daniel, foi previsto por João.
132
O capítulo 12 do Apocalipse, lugar comum milenarista, é citado em seguida, num
passo que reafirma a importância da luta de cada homem contra o Mal.
Se somos vencidos, eles (os anjos) também o vencidos, ficando
despojados da função e do poder de nos servir devidamente. Eles lutam por
nós, como servidores nossos, e, se nós vencemos, eles vencem. Mais ainda:
essas lutas dos anjos antecipam e figuram as nossas e culminam nas nossas,
como se vê claramente em Daniel, capítulos 10 e 12, e no Apocalipse, capítulo
12.
133
Na página 410 de Christianismi Restitutio, Servet volta ao assunto numa invocação a
Cristo cujo vocabulário dispensa interpretações:
132
Sicut regnis, principatibus, potestatibus et dominationibus aliis praesunt in caelo angeli: ita per
Papatui praesunt angeli. Hinc in caelo erit nunc praelium magnum contra draconem et angelos eius,
qui bestiae regnum sustinet, vt post Danielem est a Ioanne praedictum. Christ. Rest., 388-9
133
Nobis victis, illi vincuntur, spoliati munere et potestate nobis rite ministrandi. Illi pro nobis
pugnant, quasi ministri, et nobis vincentibus illi vincunt. Imo illae angelorum pugnae nostras pugnas
designant, et figurant, ac in nobis illa complentur, vt manifeste apparet Dani. 10. 12. et apoc. 12.
Christ. Rest.,389.
129
Concede a teu servo, a teu soldado, lutar com teu grande poder contra
o dragão, serpente, diabo, o qual outorgou seu poder à Besta, quer dizer, ao
Papa, e abrir os mistérios restantes da circuncisão de tal forma que teu livro se
abra para todos. Tu mesmo, que não sabes mentir, revelaste a Daniel como
perdurando ainda o domínio romano e uma vez destruída a Besta, seriam
abertos os livros de ambos Testamentos, tal como está ocorrendo. Faz que
quando se realize teu juízo no céu, seja destruído o corno do Anticristo pela
ação de teus servidores e que teu reino seja restituído a teus santos (Dn. 7)
134
.
Mas Servet, servo” e “soldado”, é também Miguel, arcanjo cuja data comemorativa,
29 de setembro, é precisamente o dia de seu aniversário e a data escolhida para a impressão
da primeira página da Restitutio, em cuja capa, como foi mencionado, figuravam, em
grego, as palavras e havia guerra no céu”, que, para qualquer leitor do Apocalipse, remetem
imediatamente ao restante do versículo: “Miguel e seus anjos lutavam contra o Dragão”, uma
vez que, à convocação a todos os cristãos para que se apresentem para a luta, Servet
acrescenta ainda duas citações bíblicas: "e Miguel apareceu no céu", em hebraico, e "e havia
uma guerra no céu", do Apocalipse, 12,7, cujo complemento é "Miguel e seus anjos
guerrearam contra o Dragão". Portanto, a identificação com o Arcanjo não está apenas na
tarefa de promover a vocatio, mas está expressa, claramente, em todas as línguas bíblicas.
Um indignado Calvino comenta-o com estas palavras, no capítulo 12 de seu
Comentário a Daniel:
Aquele tolo hipócrita, Servet, ousou apropriar-se deste passo para si
mesmo, pois ele escreveu-o como frontispício em seus horríveis comentários,
porque ele se chamava Miguel! Nós observamos que fúria diabólica se
apoderava dele, uma vez que ele ousou proclamar como dele mesmo o que
aqui se diz do auxílio singular fornecido por Cristo a sua Igreja. Ele era um
134
Da seruo tuo, militi tuo, vt contra draconem serpentem diabolum, qui potestatem Bestiae, id est,
Papae dedit, potentia tua magna viriliter pugnet, et sequentia circuncisionis mysteria ita aperiat, vt
liber tuus omnibus aperiatur. Tu enim ipse, qui mentiri nescis, Danieli reuelasti, vtriusque testamenti
libros, stante Romano imperio, destructa bestia, esse aperiendos, vt nunc aperiuntur. Et quo tunc
iudicium tuum in caelo sedebit, et pugnantibus ministris tuis cornu Antichristi perdatur, et regnum
tuum sanctis tuis restituatur, Dani. 7. Christ. Rest.,410.
130
homem de sentimentos os mais impuros, como nós já demos a conhecer
suficientemente. Mas esta era uma prova de sua impudência e loucura
sacrílega: adornar-se a si mesmo com este epíteto de Cristo sem ruborizar-se,
e elevar-se a si mesmo ao lugar de Cristo, vangloriando-se de ser Miguel, o
guardião da Igreja e o príncipe poderoso dos povos! Este fato é indiscutível,
pois eu tenho o livro à mão caso alguém duvide de minha palavra
135
.
Calvino entendeu-o perfeitamente: Servet, como seu onomástico Miguel, julgava-se à
frente de um exército de libertação cuja missão era "dissolver o cativeiro da ímpia Babilônia"
e "restituir o verdadeiro Cristianismo", perdido desde que Império e Igreja se uniram sob
Constantino, como o próprio Servet tem a audácia de dizê-lo explicitamente a Calvino, numa
carta que enviou a este e que fez publicar no mesmo volume de Christianismi Restitutio:
Eu trabalho incessantemente pela restituição desta Igreja, e tu te
aborreces comigo porque me imiscuo nesta guerra de Miguel e desejo que
todos os homens piedosos façam o mesmo. Mas este passo atentamente e
verás que haverá homens que lutarão então, expondo sua vida à morte, em
sangue e em testemunho de Jesus Cristo, como João ensina abertamente.
Homens que são chamados anjos, como consta nas Escrituras. Tanto mais que
no próprio céu os anjos bons guerreiam contra os dragões e outros anjos maus
135
No entanto, apesar de uma crítica o mordaz, o mesmo Calvino viria a se servir de recurso
semelhante no seu Prefácio ao Comentário dos Salmos, de 1557. Nele, Calvino em Davi um
modelo para a compreensão de sua própria existência e conversio subita, e, embora reconheça que sua
condição é “bem menos importante” que a de Davi, “da mesma forma que ele foi tirado das bestas e
elevado a soberano grau de dignidade real”, assim também ele, Calvino, de seus “inícios pequenos e
baixos” chegou a “ser chamado a este cargo tão honorável de ministro e pregador do evangelho” (CO
3, 22, Millet, 524). E Calvino compara as experiências de Davi às suas próprias: perseguições e
calúnias, combates interiores e exteriores, preocupações constantes. E afirma:
E mesmo esse conhecimento e experiência serviram-me muito para entender os
Salmos, a fim de que não me encontrasse demasiado inexperiente, como num país
desconhecido. E, de fato, os leitores (assim penso) reconheceram que, declarando os
sentimentos interiores tanto de Davi como dos outros, eu falo como de coisas das quais eu
tenho familiar conhecimento. (CO 31, 34, Millet, 525).
131
do Papado. Ou não crês que também o Papado é defendido por seus anjos? Por
isso não pode ser destruído sem guerra de anjos.
136
A Servet, um “radical” que não se pode somar ao número dos protestantes, e nem
sequer ao dos anabatistas sem restrições, resta apresentar-se como um solitário que tem a
vantagem de não participar de nenhum compromisso e de ter total liberdade de ação. Tenta,
assim, usar em seu proveito um traço discriminatório, o de ser confundido com um grupo
estigmatizado, o dos anabatistas. Como não faz parte de nenhuma Igreja estabelecida e,
portanto, está fora de quaisquer jogos de interesses, é capaz de pensar com imparcialidade.
General à frente de um exército na batalha final, Servet dá-se ainda o direito de se apresentar
como o denunciante que vai revelar aos fiéis tudo o que os outros tentam ocultar. A tarefa,
que ele assumiu para si, de restituir a Igreja apresentava-se-lhe, portanto, não apenas como
uma causa, mas também como uma missão cujas implicações resultariam na salvação mesma
do mundo - missão à altura apenas de um guerreiro "que é como Deus": de um Miguel.
136
In huius ecclesiae restitutione ego iugiter laboro, et ob id tu mihi succenses, quod pugnae illi
Michaelis me immisceam, et pios omnes misceri disiderem. Sed locum illum diligenter expende, et
videbis, homines fore, qui ibi pugnabunt, animas suas morti exponendo, in sanguine et testimonio
Iesu Christi, vt aperte docet ibi Ioannes. Angelos vero dici, obuium est in scripturis. Eo magis, quia in
ipso caelo pugnant angeli boni contra draconem, et alios angelos Papatus. An non credis, Papatui suos
praesse angelos? Ergo destrui non potest sine angelorum pugna. Christ.Rest., 628
132
CAPÍTULO 4
CALVINO E A DESCONSTRUÇÃO DE UM
ETHOS DISCURSIVO
Ao iniciarmos o capítulo em que veremos a contraparte da construção de um ethos
positivo, usando, para isso, um texto de Calvino em que este reveste Servet de todas as
características do herege, faz-se necessário levar em consideração alguns aspectos básicos e
estruturais de um texto por natureza polêmico. Segundo Saulnier (in Higman, 1998, 437), a
definição de polêmica é tão ampla que poderia abarcar tudo. Aqui, entretanto, tomar-se-á
como polêmica aquela literatura engajada em convicções ideológicas no sentido estrito, que
visa a um resultado, a conversão, e cuja finalidade é transmitir uma mensagem e persuadir o
leitor a aderir a ela. Trata-se, pois, de uma literatura de opinião, freqüentemente em choque
com outras opiniões.
Tomando de Bakhtin o termo dialogismo, esta pesquisa concentra-se no dialogismo
polêmico mostrado: o que é dito refere-se a algo dito antes, como uma réplica, formando,
assim, um espaço de interação de vozes que polemizam entre si, que respondem uma à outra;
que, em suma, travam um debate porque expressam posições ideológicas antagônicas. Os
discursos, assim, porque se opõem, citam-se circularmente, alimentando-se mutuamente e à
polêmica com novas réplicas e tréplicas. Adaptando Maingueneau (1997) ao propósito de
nossa pesquisa, há dois domínios em que os temas de controvérsia apresentam especial
interesse: primeiro, aquele em que o polemista filtra, dentre tudo aquilo que foi dito contra
ele, as acusações a que não pode deixar de responder, sob pena de abalar sua legitimidade;
segundo, aquele em que sublinha os pontos que considera importantes no conjunto dos textos
do adversário. Estas “escolhas” são também, elas mesmas, reveladoras
137
. As categorias
137
O ethos é também “o que a escolha intencional revela”, Aristóteles, Poética, 6, 1450b 8-9.
Recordando Nancy Sherman (1989, 79), já citada no Capítulo 1, as escolhas ponderadas, intencionais,
“pró-heréticas”, revelam o caráter mais do que as ações podem fazê-lo.
133
reivindicadas e as rejeitadas são, portanto, ambas expressivas. “Caráter é o que revela certa
escolha, ou seja, em caso de dúvida, o fim preferido ou evitado; por isso não têm caráter os
discursos do falante em que, de qualquer modo, não se revele o fim para que tende, ou o qual
repele” (Aristóteles, Poética, 1450a). A escolha, diz Aristóteles em Ética a Nicômaco, 1111
b, “parece relacionar-se intimamente com a excelência moral, e proporciona um juízo mais
seguro sobre o caráter do que sobre as ações”.
Tendo visto já como Servet legitima e autoriza sua autoproclamada condição de
porta-voz da Verdade, veremos agora como Calvino, por sua vez também auto-investido do
mesmo papel, precisa desqualificar as posições de Servet e de outros adversários.
Se na correspondência pessoal, e em especial na endereçada a Farel e a Viret, Calvino
não hesita em adotar um tom de confidência, é fato bem conhecido que, por outro lado,
guarda extrema reserva no que diz respeito a si mesmo em sua obra teológica ou dogmática.
De me non libenter loquor”, afirma (C.O., V, 389 e Opera Selecta, I, p. 460). No entanto,
seria falso presumir que não há menção a sua pessoa em sua obra. Tanto que Richard Stauffer
(1980, 184) contou “mais de cinqüenta” passos da obra de Calvino em que este fala de si
mesmo ou de sua obra e “uma vintena” em que a utilização do pronome “eu” pode traduzir
“experiências expirituais” pessoais. Stauffer (1980, 185) propõe classificar esses passos em
três categorias: 1. aqueles em que Calvino define seu ministério; 2. aquele em que, “em
função dessa definição”, ataca os “adversários do Evangelho”; e 3. aquele em que se
apresenta como um simples crente, um cristão comum.
Uma vez que é tão parcimonioso na utilização da primeira pessoa, Calvino nunca o
faz de forma gratuita ou desmotivada. Por isso, quando fala de si mesmo, mantém sempre
uma contenção que corresponde ao decorum e à gravidade do orador, tendo em vista que seu
testemunho pessoal serve, afinal, para demonstrar ou sublinhar um argumento (Millet, 1992,
520), marcando sua posição numa disputa. A primeira pessoa e o tom de confidência estão
aqui estritamente subordinados a um efeito de composição e de argumentação. Segundo
Millet (1992, 521), “o “eu” não é aqui senão o valor, ainda que seja sincero, de uma
economia discursiva sem concessão” (le “moi” n´est ici que le faire-valoir, aussi sincère
soit-il, d´une économie discursive sans concession). O mesmo quando recorre a uma
lembrança pessoal, como ao afirmar que não se arrepende de coisas ditas no passado (ibid.,
521), quando Calvino está em verdade sublinhando a continuidade e a firmeza de seu
134
pensamento no decorrer do tempo. A primeira pessoa, enfim, serve de garantia de suas
virtudes de moderação, integridade e correção.
A convicção de Calvino é a de que ele é “a boca de Deus” (la bouche même de Dieu,
C.O., LIV, 146), o qual fala aos homens por seu intermédio. Isso, entretanto, não deve servir
para exaltar o homem Calvino, mas para rebaixá-lo ainda mais, “de tal forma que eu possa
protestar em verdade que tudo isso que eu pronuncio é de Deus e que eu o tirei dele” (idem).
O original francês diz je l´ai puisé de lui”, e a idéia parece ser esta mesma, a de arrancar ou
arrebatar algo, pois o próprio Calvino afirma ser “um ladrão” um “distribuidor desleal”,
quando não repassa ao próximo o que “tirou”, “pois isso que Deus me deu não é meu” (OC,
LIII, 419).
Se estou aqui no púlpito e pretendo ser ouvido em nome de Deus, e no
entanto eu vier seduzir o público, eis um orgulho que ultrapassa todos os
outros! (C.O. XXVII, 537).
O papel de Calvino não é, pois, “forjar uma Lei nova” (C.O. XXVII, 538), mas,
escrupulosamente, fazer “a verdadeira e pura exposição” das Escrituras e “aplicar a Palavra
de Deus ao costume do povo” (ibid., 538). Em outras palavras, trata-se de um intérprete e de
um professor. E também de um estudioso, e não de um inspirado.
Como se eu subisse no púlpito e nem me dignasse a olhar o livro e me
forjasse uma imaginação frívola para dizer: bem, quando eu chegar lá, Deus
me dará de que falar! Como se eu não me dignasse a ler, nem a pensar naquilo
que apresentar adiante, e se eu viesse aqui sem premeditar bem como é preciso
aplicar a Escritura Santa à edificação do povo. Eu seria um presunçoso, e,
assim, Deus me tornaria confuso em minha audácia. (C.O. XXVI, 473-474).
Mas Calvino apresenta-se também como embaixador de Deus e fala “em Seu nome”,
pois, “quando o Evangelho é pregado em nome de Deus, é como se Ele mesmo falasse em
pessoa” (C.O., LVIII, 54).
135
Ele quis que eu seja como uma trombeta, a fim de recolher para si e em
obediência sua o povo que é seu, e que eu seja da tropa, como os outros.
Quando, pois, minha voz for ouvida, é a fim de que vós e eu sejamos todos
reunidos para ser a tropa de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo. (C.O. L,
327).
Essa primeira pessoa pois não fala em seu nome, mas em defesa da “causa”, e está
amparada na autoridade dos autores que cita em seu auxílio. Por exemplo, no livro De
scandalis, Calvino diz que “esta sentença não é minha, mas de São Paulo” (Millet, 1992,
527). Na Institutio, afirma: “e esta não é uma glosa de minha cabeça, mas a interpretação
mesma de Cristo” (IV, 201-202 in Millet, 1992, 528). Esse estratagema busca apresentar a
matéria sem qualquer traço de subjetividade, uma vez que não é o autor quem fala, mas a
fonte, a autoridade que ele invoca, e à qual cede a palavra. Ainda um exemplo extraído de
Calvino: “prefiro antes refutar pelas palavras de Santo Agostinho do que pelas minhas” (IRC
1541, III, 87, in Millet, 1992, 530).
Também para afirmar sua autoridade ao falar, Calvino recorre a São Paulo:
No entanto, se nós nos esforçamos para corrigir aquilo que nos
desagrada, não fazemos senão nosso dever. E a isso nos induz a sentença de
São Paulo: “se alguém tiver uma melhor revelação, que ele se levante para
falar, e que o primeiro se cale” (I Co. 14,30). (II, 132)
Em seu Calvin et la dynamique de la Parole, Olivier Millet estuda a questão das
marcas de primeira pessoa no texto calviniano no capítulo XVII, intitulado La personne du
docteur. Aqui, Millet tenta demonstrar como Calvino se apresentava não apenas como o mais
fiel, mas “o único representante da verdade divina” (1992, 526), a ponto de um subcapítulo
receber o nome de Vox Calvini, vox Dei. Como Agostinho, Calvino diz: “voce ecclesiae
loquor”.
Mas a forma gramatical mais usual para apresentar uma doutrina ou confessar a fé é a
primeira pessoa do plural, o “nós” que serve para circunscrever a área de atuação de um
grupo que compartilha a mesma confissão. Nesse sentido, o “nós” inclui os leitores e opõe-se
ao “eles”, pronome que representa a doutrina dos adversários. Ao utilizar-se o plural, o tom
136
mais neutro e o mais acalorado são igualmente caracterizados pela marca coletiva de um
grupo, do qual Calvino se apresenta como porta-voz.
Mas, embora se apresente como porta-voz de Deus, admite, no entanto, que não possa
“induzir o mundo a vir receber o que será pronunciado por minha boca” (C.O., XXVI, 394-
395) não porque haja algo de errado em sua pregação (nem poderia haver, sendo ela de
inspiração divina), mas porque “a grande maioria esforçar-se-á para arruinar tudo”, uma vez
que “quando aqueles, com muito custo e dificuldade, trazem uma pedra, os outros retiram
três e impedem que se dê continuidade ao edifício” (C.O. LIV, 418-419).
Se a Verdade é única e não admite dissensões, Calvino freqüentemente mostra sinais
de irritação com os genebrinos. Num discurso de 1555, por exemplo, afirma:
Eu não estou aqui em meu nome, eu não quero oferecer nada de meu,
nem trazer nada de meu, mas quando eu falo, é em nome de Deus. É preciso, a
despeito de todas as contradições que se apresentam, que toda altivez seja
abatida e que não haja criatura que levante o rosto nem sequer os olhos ao
encontro daquele a que é necessário que grandes e pequenos se sujeitem”
(C.O., LIV, 552).
Uma interpretação bastante plausível para esse trecho seria esta: perante Deus, não
deve haver altivez, mas, ao contrário, uma tal humildade que impeça até mesmo de levantar a
cabeça. Ora, Calvino fala em nome de Deus e, por conseguinte, é seu representante legítimo
na terra; e, sendo assim, o mesmo respeito devido a Deus é devido também a Calvino, seu
porta-voz.
E, como isso não ocorre, mas antes continua havendo grande número de dissidentes,
Calvino o entende não como uma rejeição a seu poder pessoal, mas à Palavra e à Lei.
Aqueles que queriam que a Lei fosse hoje rejeitada e que não se
falasse mais nisso, são como cães e porcos, como vilões piolhentos que
pouco regorgitaram seu “consumatum est”, e isso por todas as tavernas. (C.O.
LIV, 284).
137
Além da legitimação de sua fala por meio da apropriação do papel do intérprete
autorizado de Deus, Calvino também garante a veracidade seu discurso com o expediente,
que criticara acidamente em Servet, de se identificar com figuras bíblicas. No seu Prefácio ao
Comentário dos Salmos, de 1557, Calvino vê em Davi um modelo para a compreensão de sua
própria existência e conversio subita, e, embora reconheça que sua condição é “bem menos
importante” que a de Davi, “da mesma forma que ele foi presa das bestas e depois elevado a
soberano grau de dignidade real”, assim também ele, Calvino, de seus “inícios pequenos e
baixos” chegou a “ser chamado a este cargo tão honorável de ministro e pregador do
evangelho” (C.O., III, 22 in Millet, 1992, 524).
E Calvino compara as experiências de Davi às suas próprias: perseguições e calúnias,
combates interiores e exteriores, preocupações constantes. E afirma:
E mesmo este conhecimento e experiência serviram-me muito para
entender os Salmos, a fim de que não me encontrasse demasiado inexperiente,
como num país desconhecido. E, de fato, os leitores (assim penso)
reconheceram que, declarando os sentimentos interiores tanto de Davi como
dos outros, eu falo como de coisas das quais eu tenho familiar conhecimento.
(C.O., XXXI, 34).
Algumas outras menções ao comportamento “de profeta” que Calvino parece ter
assumido em Genebra trazem, na resposta, a referência à crítica.
Se se alega que eu não sou o profeta Jeremias, isso é verdade. Mas
também o é que eu porto a mesma palavra, a que ele anunciou. (C.O. XLI,
540)
Também seu linguajar na crítica dos costumes morais parece ter sido alvo de
julgamentos.
os que dizem hoje: Eis Calvino, que se faz profeta quando diz que
se saberá que ele é um profeta entre nós! Ele entende isso de si. É ele profeta?
Ora, uma vez que é a doutrina de Deus o que eu anuncio, é preciso que eu fale
138
essa linguagem. Uma vez que o que nós ouvimos aqui de Ezequiel é Palavra
de Deus, eu não quero disfarçar o que ele disse. (sermão de 25 de novembro
de 1552, in Stauffer, 1980, 196).
Calvino recorre também a fontes patrísticas, como quando, tendo negado ao
“libertino” Phillipe Berthelier o acesso à Ceia, escreveu:
Quanto a mim, eu, a exemplo de Crisóstomo, aceitaria antes ser morto
que estender com estas mãos as coisas santas do Senhor aos desprezadores de
Deus declarados culpados.
138
O tema da perspicuitas, a clareza do verdadeiro orador, aparece na necessidade de
este ser compreendido e, para isso, de adaptar a Palavra ao público; assim, o que seria a
renúncia aos artifícios da retórica é o mais propriamente retórico, uma vez que se vale dos
princípios da accomodatio e do decorum para atingir a audiência, em “seu proveito e
edificação”. Isso, no entanto, deve ser feito sem “derramar em volta da panela” e sem
“voltear no ar” (C.O., XXXIV, 427). Ou seja, sem excessos nem torneios verbais. De fato,
considerado por Bèze o "doctissimus interpres" (Girardin, 1979, 48), e por Wartburg
(Higman, 1998, 371) o fundador da língua francesa, ao lado de Rabelais (e em detrimento de
Montaigne), Calvino escreveu livros expositivos (Institutas, por exemplo); exegéticos
(comentários); e argumentativos (tratados polêmicos), em que mostrou suas principais
características: absoluto controle sobre a sintaxe (orações curtas ou ligadas por conectivos
precisos); vocabulário cuidadosamente escolhido; concisão; e uma elegância que persiste
mesmo quando o vocabulário empregado desce quase ao nível do baixo calão.
Mas também em sua obra exegética é possível apontar claramente características do
Calvino escritor. Aqui, seu método mais freqüente consiste na diuisio de um texto, ou seja,
em sua découpage, realizando um trabalho preparatório à compreensão do texto bíblico. Seu
formato preferido é, pois, o do compendium, cujo decoro exige a sobriedade e a estruturação
tão próprias deste autor. Tal operação supõe que o texto comentado construíra-se segundo
138
At ego Chrysostomum sequutus occidi me potius patiar, quam haec manus Dei contemptoribus
judicatis sancta Domini porrigat (Ioannis Calvini vita, XXI, 147).
139
uma organização predeterminada, e que, portanto, a função do comentário consiste em fazer
aparecer essa articulação lógica (Girardin, 1979, 206-7).
Calvino seleciona seu vocabulário de maneira a obter o efeito máximo com o mínimo
possível; onde outro autor usaria uma frase inteira, Calvino procura o que chama de le mot
juste (ibid., 373). Por exemplo, quando se refere às autoridades legalísticas de Roma, Calvino
diz apenas Solones isti (Higman, 1998, 373)
139
.
O mesmo se repete no plano sintático. Enquanto a maioria das orações escritas no
século XVI tinha entre oito e quinze orações subordinadas, Calvino raramente emprega mais
de três (Higman, 1998, 397). Em suma, “Calvino inventou a oração curta” (“Calvin invented
the short sentence”, Higman, 1998, 397). Higman (1998, 368) faz um quadro comparativo
entre Calvino e outros autores reformistas que escreveram panfletos em francês, no qual leva
em consideração o número de palavras, o de orações, o de verbos principais, o de orações
subordinadas e o de palavras por sentença. Chega à conclusão de que Calvino usa 25.4
palavras por sentença. A razão das subordinadas para a principal é de 1.9 para uma (ou seja,
cerca de duas subordinadas para cada principal). Em Viret, por exemplo, quatro
subordinadas para cada principal. Se Calvino usa 25 palavras por sentença, seu colaborador
Farel emprega mais de 72.
Apesar de tais cuidados estilísticos, Calvino não se esquece de sublinhar a oposição
que existir entre dictio pura e doctrina (Girardin, 1979, 56.). Ao separar sedução estética
de sedução doutrinal, Calvino está dando a si mesmo a permissão de refutar seus adversários,
mesmo quando reconhece o poder destes de arrebanhar fiéis.
Segundo Higman, autor de vários livros sobre a retórica calviniana, o pensamento de
Calvino é, em todos os níveis, linear (da estrutura frasal à organização do argumento) e que
essa linearidade é um princípio, aplicado tanto ao método quanto ao conteúdo. Em outro
livro, Higman (1998, 131-154) tenta restituir, por critérios sintáticos, a autoria de um texto a
Calvino. Para isso, lança mão de um “método gráfico” para análise das frases, ou seja,
“desenha” cada oração: representando a oração principal com um traço horizontal, a
subordinada com um diagonal e a coordenada com um vertical. O resultado, segundo
Higman, é que se nota a “estrutura paralela”, o “equilíbrio”, a “simplicidade” e a “linearidade
do conjunto”. Na trentativa de atribuir ainda outro panfleto a Calvino, Higman (1998, 296) o
139
“Conciseness and elegance: not words that would spring to mind to characterize the French
language in 1540”. Higman, 1998, 374.
140
faz novamente por intermédio da sintaxe: “as orações têm a mesma simplicidade, a mesma
brevidade que Calvino pratica em toda a parte e que nenhum outro parece ser capaz de
imitar”.
Estudando textos polêmicos de Calvino em língua francesa, Higman (1967, 96-97)
aponta ainda que o reformador tem o hábito de iniciar orações com il est vray quee “il faut
bien que”. Essa informação é extraordinariamente importante do ponto de vista desta
pesquisa, uma vez que mostra claramente que Calvino parte de certezas absolutas, não de
probabilidades. Assim, seu debate não se faz para que discuta ou aprenda, mas para que
ensine.
Quanto à captatio beneuolentiae, a maioria dos tratados polêmicos de Calvino se
apresenta como uma “resposta”, uma réplica”, não uma provocação em suma, ele sempre
se coloca como aquele a quem a batalha é trazida ou proposta e que preferiria não se engajar
nela, se a isso não fosse instado por outros ou pela gravidade do tema.
Esses mecanismos todos podem ser exemplarmente observados em seu principal
livro, as Instituições Cristãs, obra cuja dimensão deliberativa de ganhar adeptos para a
doctrina depende confessadamente do ethos de seu autor, o qual se apresenta abertamente
como o vir bonus com studium aduocati de que fala Quintiliano (Inst. Orat., IV, 1, 6).
Higman (1998, 371) considera a Institutio “an editor´s nightmare”, porque entre a
primeira edição, de 1536, e a segunda, de 1539, o livro sofreu o acréscimo de dezessete
capítulos. Esses aumentos e acréscimos continuaram sendo feitos em todas as edições
subseqüentes até a definitiva, de 1559, dividida em quatro livros. Além disso, as edições
saiam consecutivamente em latim e em francês, traduzidas pelo próprio Calvino, que, ao
traduzir, promovia novos acréscimos e reorganizava o material.
A primeira de suas várias edições foi publicada em 1536, tendo por Prefácio uma
carta endereçada a Francisco I, o “cristianíssimo rei dos franceses” (francorum regi
christianissimi). Nessa epístola, Calvino começa por explicar que seu intento “era somente
ensinar alguns princípios, com os quais os que são tocados por algum zelo de religião, fossem
instruídos na verdadeira piedade” (tantum erat animus, rudimenta quaedam tradere, quibus
formarentur ad veram pietatem, qui aliquo religionis studio taguntur). Mas decidiu-se a
escrever um livro ao ver que “o furor de certos homens ímprobos” (quorundam improborum
furorem) havia crescido a ponto de não deixar “nenhum lugar para a verdadeira doutrina” (ut
nullus sanae doctrinae istic sit locus).
141
“Eu sei muito bem com quão horríveis rumores e boatos encheram vossos ouvidos e
entendimento, a fim de tornar-vos nossa causa odiosíssima” (equidem scio quam atrocibus
delationibus aures animumque tuum impleverint, ut causam nostram tibi quam odiosissimam
redderent), afirma, e tudo por causa da “inveja” (invidiae causae) dos adversários, que
tentaram oprimir a verdade “de forma insidiosa e fraudulenta” (insidiose fraudulenterque),
“com mentiras, enganos e calúnias” (mendaciis, technis, calumniis). Tantas “coisas
assustadoras” (horrenda) foram semeadas contra essa doutrina que esta e seu autor seriam, se
fosse verdade, “com muita razão dignos de mil fogos e forcas” (merito illam cum suis
auctoribus mille ignibus ac crucibus dignam universus mundus iudicet).
Mas, tendo sido acusado do “crime” (crimen) de proclamar uma “doutrina
condenada” (damnata doctrina), Calvino toma para si a tarefa de defender não a si mesmo,
“em particular”, mas a essa doutrina. “Mas eu assumo a causa de todos os pios”, diz, “e a do
próprio Cristo”.
Convém saber como a glória de Deus será mantida sobre a terra, como
a verdade de Deus reterá sua dignidade, como o reino de Cristo será
conservado entre nós. Coisa digna de vossos ouvidos, digna de vosso
conhecimento, digna de vosso trono. Porque este conhecimento faz um
verdadeiro rei: reconhecer que é verdadeiro ministro de Deus no governo de
seu reino. Aquele que não reina para servir à glória de Deus, este não é rei,
mas usurpador. E engana-se aquele que espera longa prosperidade em reino
que não é regido com o cetro de Deus, isto é,, com sua santa palavra. Porque
não pode mentir o oráculo divino, pelo qual está anunciado que o povo será
dispersado quando o profeta faltar. E não deveis, por causa dessa preocupação,
ter desprezo por nossa humildade. Estamos muito cônscios de quão
pobrezinhos e quão abjetos homenzinhos somos; diante de Deus, com efeito,
miseráveis pecadores; e, na visão dos homens, menosprezadíssimos.
Escremento e esterco do mundo (se assim voz apraz), ou algo ainda mais vil,
se mais vil se pode nomear, para que nada nos resta de que possamos nos
gloriar diante de Deus senão unicamente de sua misericórdia, pela qual
ascendemos à esperança da salvação eterna sem nenhum merecimento nosso;
142
nem entre os homens nos resta muito mais do que nossa impotência, e
confessá-la é uma ignomínia entre os homens.
140
Calvino transfere assim para o Rei, interlocutor seu no texto, a mesma obrigação, que
assume como sua, de servir à Verdade. Afinal, Calvino tem o direito de se expressar porque
fala em nome da Verdade; e se o Rei for um “verdadeiro rei, não um usurpador”, terá de
aderir a essa mesma Verdade, que é única. A proposta de paz desse prefácio é, portanto, um
convite à adesão partidária ou à guerra, pois, mesmo que o adversário seja o Rei da França e
ele seja “coisa ainda mais vil do que o esterco”, não é assim com relação à doutrina que
professa:
Mas é preciso que nossa doutrina esteja acima da sublime glória do
mundo, que permaneça invencível acima de todo poder: porque não é nossa,
mas do Deus vivente, e de seu Cristo, o qual o Pai constituiu Rei, para que se
apodere do mar até o mar, e dos rios até os confins da terra.
141
140
Constet in terris incolumitas, quomodo suam dignitatem Dei veritas retineat, quomodo regnum
Christo sartum tectumque inter nos maneat. Digna res auribus tuis, digna tua cognitione, digna tuo
tribunali. Siquidem et verum regem haec cogitatio facit, agnoscere se in regni administratione Dei
ministrum. Nec iam regnum ille, sed latrocinium exercet, qui non in hoc regnat ut Dei gloriae serviat.
Porro fallitur qui diuturnam prosperitatem exspectat eius regni, quod Dei sceptro, hoc est, sancto eius
verbo, non regitur: quando coeleste oraculum excidere non potest, quo edictum est, dissipatum iri
populum ubi defecerit prophetia (Prov. 29, 18). Nec te ab hoc studio abducere debet humilitatis
nostrae contemptus. Nos quidem quam pauperculi simus et abiecti homunciones, probe nobis conscii
sumus: coram Deo, scilicet, miseri peccatores, in hominum conspectu despectissimi: mundi (si vis)
excrementa quaedam et reiectamenta, aut si quid adhuc vilius nominari potest: ut, quo apud Deum
gloriemur, nihil restet, praeter unam eius misericordiam, qua in spem aeternae salutis nullo nostro
merito asciti simus: apud homines vero non ita multum, praeter nostram infirmitatem, quam vel nutu
confiteri, summa inter eos ignominia est. Inst., 3-4.
141
Sed doctrinam nostram supra omnem mundi gloriam sublimem, supra omnem potestatem invictam
stare oportet: quia non nostra est, sed Dei viventis, ac Christi eius quem Pater Regem constituit, ut a
mari usque ad mare dominetur, et a fluminibus usque ad terminos orbis terrarum. Inst., 4.
143
A doutrina que Calvino defende não é, portanto, sua própria, mas de Deus; ele não a
inventou, mas a recebeu. E, no entanto, há detratores:
É verdade que nossos adversários nos contradizem, atirando-nos à cara
que nós falsamente pretendemos a palavra de Deus, da qual somos (como eles
afirmam) os mais malignos falsários.
Calvino recorre então ao estratagema de usar em sua defesa uma autoridade
inconteste, Paulo, e o faz para autorizar seu próprio discurso:
Quando o apóstolo São Paulo quis que toda profecia se conformasse
com a analogia ou proporção da fé, ele estabeleceu uma certíssima regra e um
nível com que se regulasse a interpretação da Escritura. Se nossa doutrina for
examinada com essa regra de fé, nossa é a vitória.
Os “adversários”, entretanto, “não cessam de caluniar nossa doutrina e de acusá-la e
de difamá-la por todas as vias possíveis, para fazê-la odiosa e suspeita”. Por exemplo,
chamando-a de “nova, e imaginada há pouco tempo”, o que, segundo Calvino, é uma
“grandíssima injúria a Deus, cuja palavra sagrada não merecia ser chamada de novidade”. Ou
então tomando-a por seita cismática que, diz, “é uma terrível carnificina de almas, e um fogo,
ruína e destruição da Igreja” (exitialem animarum carnificinam, facem, ruinam et excidium
ecclesiae).
Em seguida, Calvino volta contra seus detratores um argumento do inimigo,
manejado de forma impressionante. Acusado de conduzir o povo à guerra civil com sua
“nova” doutrina:
Finalmente, não agem de boa quando comemoram, invejosamente,
as revoltas, tumultos e sedições que a pregação de nossa doutrina possa ter
trazido consigo, e que ela agora produza muitos frutos. Porque é de forma
indigna que se desvia para ela a culpa desses males, a qual deveria ser
imputada à malícia de Satanás. Tal é a sorte da palavra de Deus, que jamais
144
ela sai à luz sem que Satanás se desperte e faça das suas. Esta é uma
certíssima marca, que nunca lhe falta e com a qual é diferenciada das falsas
doutrinas: as quais facilmente se declaram e sem contradição são admitidas
por todos, e todo o mundo as segue. Desta maneira, por alguns anos passados,
quando todo o mundo estava sepultado em trevas escuríssimas, este Senhor do
mundo brincava e zombava dos homens como se lhe parecia, e como um
Sardanapalo se deleitava a seu prazer, sem que houvesse quem lhe
contradissesse nem ousasse dizer: Fazes mal. Porque que mais haveria de
fazer a não ser rir-se e folgar, tendo a posse de seu reino com grande quietude
e tranqüilidade? Mas logo que a luz resplandecendo do céu desfez algum tanto
de suas trevas, logo que aquele forte o assaltou e revolveu seu reino, então
começou a despertar de seu sonho e quietude, e a pegar em armas.
142
Calvino não se demora em dar nome aos culpados, os anabatistas, e, com isso,
pretende deixar bem claro que a restitutio destes não é, de modo algum, a reformatio que ele
defende. aqui, portanto, uma triangulação: perseguido na França, o reformista Calvino
escreve ao Rei católico para culpar os catabatistas”, ou seja, os anabatistas, pelo
distanciamento entre católicos e reformados.
Assim, pelos anabatistas e outros tais como eles, revolveu muitas seitas
e diversidade de opiniões com que escurecesse esta verdade e finalmente a
apagasse.
143
142
Postremo non satis candide faciunt, quum invidiose commemorant quantas turbas, tumultus,
contentiones secum traxerit nostrae doctrinae praedicatio, et quos nunc in multis fructus ferat: nam
horum malorum culpa indigne in ipsam derivatur, quae in Satanae malitiam torqueri debuerat. Est hic
divini verbi quidam quasi genius, ut nunquam emergat, quieto ac dormiente Satana: haec certissima et
imprimis fidelis nota, qua discernitur a mendacibus doctrinis, quae se facile produnt, dum aequis
omnium auribus recipiuntur, et a mundo plaudente audiuntur. Sic saeculis aliquot, quibus profundis
tenebris submersa fuerunt omnia, huic mundi domino cuncti fere mortales ludus erant ac iocus, nec
secus ac Sardanapalus aliquis in alta pace desidebat ac deliciabatur: quid enim aliud quam risisset ac
lusisset, tranquilla ac pacata regni possessione? At vero ubi lux e supernis affulgens tenebras eius
aliquantum discussit, ubi fortis ille regnum eius turbavit ac perculit, tum vero solitum suum torporem
excutere coepit, et arma corripere. Inst., 18.
145
E então, lançando mão do recurso de dar peso a uma acusação por meio da associação
do réu com outros reconhecidos mal-feitores, Calvino afirma que a “heresia” dos anabatistas
não é novidade, mas algo que vem dos tempos evangélicos:
Havia então homens incultos e inconstantes, os quais (como escreve
São Pedro) pervertiam para condenação sua própria o que São Paulo havia
escrito divinamente. Havia menosprezadores de Deus, os quais, ouvindo que o
pecado abundou para que superabundasse a graça, logo inferiam: Ficaremos
no pecado, para que abunde a graça. Quando ouviam que os fiéis não estavam
debaixo da lei, logo respondiam: Pecaremos, pois não estamos debaixo da Lei,
mas da graça. (...) Todos buscavam seu proveito, e não o de Jesus Cristo.
Outros viravam-se para trás, voltando como cães ao vômito e como porcos ao
lamaçal. (Inst., 38)
Em seguida, Calvino lança mão do mesmo argumento encontrado em todos os
debates da Reforma: o que afirma que ao verdadeiro cristão está reservada a perseguição. E
afirma ainda que ele e os seus, perseguidos com “prisões, açoites, torturas, faca e fogo”,
simplesmente se entregam como “ovelhas ao matadouro”, mas não sem esperar contar com
“a forte mão do Senhor”, “a qual, sem dúvida, quando seja o tempo, mostrar-se-á armada,
tanto para livrar os pobres de sua aflição, como para castigar aos menosprezadores, os quais
hoje em dia triunfam tão a seu prazer”. Inst., 60)
Na terceira edição latina, de 1543, o livro é acrescido de um prefácio da autoria de
Jean Sturm, que, segundo Millet, é “publicitário”; epidítico, sem dúvida: João Calvino,
homem de julgamento o mais penetrante, e de doutrina superior e dotado de memória
egrégia, é um escritor versátil, copioso, elegante: coisa de que é testemunho a Instituição da
Religião Cristã, que, iniciada anteriormente, entregou totalmente concluída neste ano: e não
sei se existirá outra do gênero, mais perfeita para ensinar religião: para corrigir os
costumes e reprimir os erros.
144
.
143
Dissidia, et dogmatum contentiones per Catabaptistas suos, et alia nebulonum portenta excitavit,
quibus eam obscuraret tandem et exstingueret. Inst., 19.
144
Johannes Calvinus homo acutíssimo judicio, summaque doctrina et egregia memoria praeditus est
et scriptor est varius, copiosus, purus: cujus rei testimonium est “Institutio Christianae religionis”,
146
Dois são, portanto, os objetivos da obra: docere religionem e corrigere mores et
tollere errores, ou seja, mouere. E Calvino, o filósofo, assegura para si a autoridade da
tradição ao citar Santo Agostinho como epígrafe do livro: Ego ex eorum numero me esse
profiteor, qui scribunt proficiendo, et scribendo proficiunt (Millet, 548, n.80).
Na edição francesa de 1560, a “epístola ao leitor” é consideravelmente aumentada,
mas permanece substancialmente a mesma.
E, de fato, eu posso alegar para boa aprovação que eu não me afastei
de servir a Igreja de Deus nesta empresa, o mais afetuosamente que me foi
possível; no último inverno, estando ameaçado pela febre quartã de partir
deste mundo, quanto mais a enfermidade me pressionava, menos eu me
afastei, até que terminei o livro, o qual, sobrevivendo após minha morte,
mostrará o quanto eu desejava satisfazer àqueles que já o haviam aproveitado,
e desejavam aproveita-lo mais amplamente. (…) como também de fato eu
serei mal recompensado pelo meu trabalho se não me contentar de ser
aprovado pelo meu Deus por desprezar as loucas e perversas opiniões dos
ignorantes, ou as calúnias e detrações dos maus. Pois Deus tanto atou por
completo meu coração a uma afeição justa e pura de aumentar seu reino e
servir à utilidade de sua Igreja que minha consciência me bom e certo
testemunho perante Ele e perante seus anjos, de que eu não tive outra intenção
depois de que me deu este encargo e ofício de ensinar, se não a de ser útil à
sua Igreja ao declarar e ao manter a doutrina pura que nós recebemos: no
entanto, penso que não há sobre a terra homem que seja mais agredido, morto
e rebaixado por falsas detrações.
Entre a primeira edição, de 1536, e a última, de 1560, Calvino continua reafirmando
sua “constância” e fazendo sua confissão de ; e, se não deixa de se apresentar como porta-
voz de uma comunidade, fala agora em seu próprio nome e em sua própria defesa. Já não é
mais apenas a figura alegórica da doctrina perseguida que encarna a condição cristã, mas a
pessoa mesma do doctor christianus.
quam pridem inchoatam, deinde locupletam hoc vero anno absolutum edidit: neque scio an quicquam
hujus generis extet, perfectius ad docendam religionem: ad corrigendos mores, et tollendos errores.
147
Antes de passarmos à análise do livro Defensio orthodoxae fidei de sacra trinitate,
contra prodigiosos errores Michaeli Serveti Hispani: ubi ostenditur haereticos iure gladii
coercendos esse, et nominatim de homine hoc tam impio iuste et merito sumptum Genevae
fuisse supplicium, objeto desta pesquisa, vejamos brevemente outras menções ao nome de
Servet na obra de Calvino.
Calvino cita Servet várias vezes na edição definitiva da Institutio, de 1559. A primeira
no capítulo XIII do Livro I, parte 10, a propósito do anjo do Eterno. Ao sustentar que os do
Antigo Testamento viram de fato a Deus, afirma:
Por isso é abominável a impiedade de Servet, quando se atreve a dizer
que Deus jamais se manifestou a Abraão nem aos outros patriarcas, mas que,
em lugar dele, adoraram a um anjo.
E logo abaixo, diz que Servet “grunhe outra vez, dizendo que isso foi porque Deus
havia tomado a forma de um anjo” (Inst., 75).
Depois, ao escrever “sobre alguns que negam a Trindade”, Calvino, como não poderia
deixar de ser, dedica toda uma parte (Livro I, capítulo XIII, 22) a Servet, para quem era tão
odioso e detestável o nome de Trindade, que afirmou que são ateus todos os que ele chama
‘trinitários’” (Inst., 86). A doutrina servetiana de que “Persona não é outra coisa senão uma
forma visível de Deus” é uma “monstruosidade” (Inst., 86).
Mas o mais abominável de tudo é que revolve confusamente tanto o
Filho quanto o Espírito Santo com todas as criaturas. Porque confessa
abertamente que na essência divina partes e participações, das quais
qualquer mínima parte é Deus; e diz, sobretudo, que os espíritos dos fiéis são
coeternos e consubstanciais com Deus; e em outro lugar atribui deidade
substancial não somente às almas dos homens, mas também a todas as coisas
criadas. (Inst., 87)
Calvino não se pode conformar que Servet tenha convencido alguns discípulos”, ou,
com suas palavras, que “deste odioso pântano saiu outro monstro semelhante” (Inst., 87).
148
A próxima menção aparece no capítulo XV, 5, quando Calvino, “antes de passar
adiante”, sente-se obrigado a “refutar o erro dos maniqueus, que Servet se esforçou por
ressuscitar em nosso tempo” (Inst., 119).
Mas é muito fácil provar com poucas palavras quão crassos erros e
absurdos este erro diabólico leva consigo. Porque se a alma do homem existe
por derivação da essência de Deus, segue-se que a natureza de Deus não
somente está sujeita a mudanças e a paixões, mas também à ignorância, a
desejos maus, à fraqueza e a toda classe de vícios. Não nada mais
inconstante que o homem. sempre nele movimentos contrários que
acossam e em grande medida agitam a alma. Por sua ignorância, muitas vezes
anda às cegas; vencido pelas menores tentações, cai seguidamente; em suma,
sabemos que a alma mesma é como uma cloaca aonde se joga toda a sujeira.
Agora, se admitirmos que a alma é uma parte da essência de Deus ou uma
secreta derivação da divindade, é necessário atribuir tudo isso a Deus. Quem
não sentirá horror ao ouvir coisa tão monstruosa? (Inst., 119)
Servet reaparece apenas no Livro II, capítulo IX, parte 3, chamada, precisamente,
“um erro de Miguel Servet”, que trata da “diabólica invenção de Servet”, que “suprime
totalmente as promessas, como se houvessem terminado juntamente com a Lei” (Inst., 309).
Para refutá-lo, Calvino lembra que “descansemos confiadamente nas promessas”, como
manda o próprio Espírito Santo, “cuja autoridade deve reprimir os gemidos desse cachorro”
(Inst., 310).
Em seguida, ainda no Livro II, capítulo XIV, 5, uma longa refutação de Miguel
Servet”. O texto começa por associar Servet a antigos hereges, numa técnica que tinha por
objetivo construir o ethos negativo do adversário por meio da identificação deste com os
nomes mais combatidos do Cristianismo.
Mas, em nossos dias, surgiu um monstro, chamado Miguel Servet,
não menos nocivo que estes hereges antigos de quem falamos. No lugar do
Filho de Deus, ele quis pôr não sei que fantasma, composto da essência divina,
do espírito, da carne e de três elementos incriados. (...) Os antigos chamaram a
149
isto união hipostática, entendendo, por esta expressão, que as duas naturezas
se uniram numa Pessoa. Inventou-se e usou-se esta expressão para refutar a
heresia de Nestório, que imaginava que o Filho de Deus havia habitado na
carne de tal maneira que, não obstante, não fosse homem. (Inst., 359-60)
Em seguida, Calvino levanta cinco “objeções” de Servet contra ele, as quais responde
com argumentos próprios e escriturísticos. Na primeira objeção, diz, “Servet nos acusa de
que temos dois filhos de Deus, porque dizemos que o Verbo eterno, antes que se encarnasse,
era Filho de Deus. Como se disséssemos algo demais, senão que o Filho de Deus se
manifestou na carne! Porque, ainda que fosse Deus antes de ser homem, não se segue daí que
começou a ser um novo deus”. (Inst., 360)
Na segunda, afirma que “não razão para que Servet replique que isto dependia da
filiação que Deus havia determinado em seu conselho; porque aqui não se trata de figuras”; e,
após ter recorrido à autoridade de Paulo (Col. 1, 15), “parece-me que se pode concluir com
toda razão que o Filho de Deus existiu antes de que o mundo fosse criado”. (Inst., 361)
“Servet e outros desavisados”, diz na terceira, “querem que Cristo não seja Filho de
Deus, a não ser porque se encarnou, porque fora da natureza humana não pode ser
considerado Filho de Deus”. (Inst., 361)
Na quarta, Calvino passa a usar o verbo na terceira pessoa do plural, fazendo pensar
que não trata apenas de Servet, mas deste e seus “discípulos”, a que havia acabado de
chamar “essa gente exaltada”, e diz que vai rebater “seu erro” com “a força de um
argumento”, “a fim de que não se orgulhem com tão vã objeção” (Inst., 362).
Na quinta objeção, Calvino dispõe-se a responder “a outra calúnia de Servet, segundo
a qual o Verbo jamais foi chamado na Escritura Filho de Deus, a não ser em figura, até a
vinda do Redentor”:
E se nos limitamos a discutir o vocábulo mesmo, Salomão, falando da
imensa elevação de Deus, afirma que tanto Ele como seu Filho são
incompreensíveis. São estas suas palavras: “Qual é seu nome, e o nome de seu
Filho, se o sabes?” (Prv. 30,4). Sei muito bem que este testemunho terá pouco
valor para os amigos de disputas; nem eu tampouco insisto particularmente
nele, senão enquanto serve para mostrar que os que negam que Jesus Cristo
150
tenha sido Filho de Deus até depois de ter se tornado homem, não fazem mais
do que agir maliciosamente.
Cumpre advertir também que todos os doutores antigos estiveram
sempre de acordo e unanimemente o ensinaram assim. Por isso, é uma
desfaçatez ridícula e imperdoável a daqueles que se atrevem a escudar-se em
Irineu e Tertuliano, pois ambos confessam que o Filho de Deus era invisível e,
em seguida, visível. (Inst., 362-3)
Em seguida, a título de conclusão, Calvino arremata dizendo que “ainda que Servet
tenha acumulado muitas e horrendas blasfêmias, que talvez nem todos os seus discípulos se
atreveriam a confessar”, o pior de tudo é que “não reconhece que Jesus Cristo fosse Filho de
Deus antes de encarnar-se”. (Inst., 363)
Seria muito fácil refutar os enormes erros e ilusões com que Servet
fascinou-se a si mesmo e a outros, a fim de que, admoestados com tal
exemplo, os leitores se mantenham dentro da sobriedade e da modéstia; mas
creio que não é necessário, pois o fiz em outro livro composto
expressamente com este fim. (itálico nosso) (Inst., 363)
Tal livro é, precisamente, a Defensio, a Defesa da verdadeira fé, publicado em
Genebra em 1554, apenas três meses após a fogueira de que Servet foi vítima e tema deste
estudo.
Mas, em que pese haver remetido o leitor diretamente a seu outro livro, Calvino ainda
não havia terminado o caso; em seguida, escreve, didaticamente, um “resumo dos erros de
Miguel Servet”, retomados várias vezes, para que ninguém os esquecesse.
Seria coisa de nunca acabar enumerar as contradições em que cai a
cada passo, mas, por esse resumo, compreenderão os leitores cristãos que este
cão se havia proposto apagar com suas fantasias toda a esperança de salvação.
(Inst., 363-4)
151
Calvino refutou Servet uma vez mais quanto a outro tema principal, o do batismo
infantil, já no Livro IV, capítulo XVI, 31. Tendo já rebatido um a um os argumentos
contrários ao batismo infantil apresentados pelos anabatistas em geral, Calvino centraliza a
argumentação em Servet, que havia, de fato, realizado uma das mais completas defesas do
batismo adulto, nas páginas 564 a 568 de Christianismi Restitutio, em que apresenta vinte
argumentos contra o pedobatismo. Calvino rebate uma a uma:
Ainda que me resulte enervante fazer um catálogo de tantos desvarios,
que poderão resultar aborrecidos para o leitor, não obstante, como Servet, um
dos principais chefes dos anabatistas, crê que levantou razões decisivas contra
o batismo de crianças, será necessário refutá-las brevemente. (Inst.,1065)
Calvino passa então a citar, uma a uma, as vinte objeções de Servet ao batismo
infantil e, apenas após trancrevê-las, rebate-as, uma por uma, com os mesmos argumentos
que o adversário havia utilizado, interpretados, no entanto, do ponto de vista contrário.
O batismo infantil é, para Calvino, “a santa e inviolável instituição que Deus
ordenou”; negá-lo é apenas a prova de que Deus pune os hereges com a demência:
Mas não devemos nos maravilhar de que tais espíritos malvados, como
arrebatados por um frenesi, profiram absurdos tão enormes para manter seus
erros, já que Deus castiga justamente sua soberba e obstinação com tal
loucura. (Inst., 1069)
Servet é citado nominalmente uma última vez na Institutio no capítulo XVII do Livro
IV, a propósito da Ceia. Calvino dedica a parte 30 à “monstruosa opinião da ubiqüidade, ou
corpo infinito”. (Inst.,1101)
Se não se empenhassem em confundir todas as coisas, não deveriam
distinguir esta classe de presença? Mas preferem deixar ver com todo
descaramento sua estultícia a afastar-se o mínimo de seu erro. Não falo dos
papistas, cuja opinião é mais tolerável, ou ao menos tem alguma aparência de
verdade. Mas há outros que, arrebatados pelo ardor das disputas e da
152
controvérsia, não se envergonham de dizer que por causa da união das duas
naturezas, onde quer que esteja a divindade de Cristo, está também sua carne,
da que é inseparável. Como se de tal união se seguisse que das duas naturezas
surgiu uma terceira, que nem é Deus nem homem. Eutiques, e, depois dele,
Servet, imaginou-o assim. (Inst., 1101)
Calvino cita Servet ainda outras vezes em seu tratado De Scandalis, comparando os
hereges e suas doutrinas heréticas a “escândalos”, ou seja, “todos os impedimentos que nos
fazem desviar-nos do caminho reto, ou nos retardam, ou nos fazem tropeçar” (DeScand., 55).
A primeira menção a Servet ocorre no capítulo II, que trata da impiedade. Como
Servet ainda estava vivo (o livro é de 1550), Calvino publica abertamente o pseudônimo sob
o qual o médico espanhol vivia na França havia mais de vinte anos: Villeneuve. E o coloca
em meio a outros dois “ímpios”, Agrippa e Dolet. O primeiro fora preso e torturado como
herege por haver desagrado a Carlos V com a publicação de seu livro De incertitudine et
vanitate omnium scientiarum et artium liber; o segundo, autor de De imitatione ciceroniana e
Cato Christianus, fora acusado de paganismo, condenado por ateísmo e queimado em Paris
em 1546.
Calvino afirma que “qualquer um sabe” que esses três “sempre desprezaram o
Evangelho”, e que, “afinal, contraíram tal raiva, que não somente regorgitaram suas
blasfêmias execráveis contra Jesus Cristo e sua doutrina, mas também afirmaram que, no que
diz respeito a suas almas, em nada se diferenciam dos cães e dos porcos” (DeScand.,137-8).
Passemos agora ao estudo da Defensio, que, quando citada em francês pelo próprio
Calvino, transforma-se em Declaration (Declaration pour mantenir la vraye foy que tiennent
tous Chrestiens de la Trinité des personnes en un seul Dieu. Contre les erreurs detestables de
Michel Servet Espagnol). Trata-se de um documento variado, que inclui trechos das atas do
processo, narrações de acontecimentos durante o julgamento e a execução, várias cartas da
correspondência trocada entre ambos e um tratado em defesa da punição aos hereges.
Apenas três meses após a execução de Servet em Genebra, veio à luz uma autodefesa
de Calvino, a Defesa da ortodoxa sobre a Santa Trindade contra os erros prodigiosos do
espanhol Miguel Servet; onde se demonstra que os hereges devem ser coagidos pelo direito
153
da espada, e que o suplício em Genebra desse homem tão ímpio, que nós designamos por seu
nome, foi justo e merecido (Defensio orthodoxae fidei de Sacra Trinitate, contra prodigiosos
errores Michaelis Serveti Hispani: ubi ostenditur haereticos iure gladii coercendos esse, et
nominatim de homine hoc tam impio iuste et merito sumptum Genevae fuisse supplicium).
Não apenas a pressa com que foi redigido esse tratado, mas sua própria publicação, parecem
trair a existência de vozes dissidentes em Genebra quanto ao julgamento dado a um
estrangeiro condenado por Roma nessa cidade de refugiados das perseguições religiosas. A
causa de Calvino não era, pois, uma causa honesta, ou seja, não expressava a opinião de
todos. Além disso, o homem Servet, satanizado durante o julgamento, manteve, entretanto, a
dignidade do humanista e do mártir exemplar a caminho da fogueira, e a firmeza com que
defendeu suas convicções mesmo nesse momento extremo podem ter lhe valido a adesão de
alguns, e não apenas entre os inimigos “libertinos” de Calvino. De fato, foi oferecida a Servet
a possibilidade de ser decapitado antes de ser queimado, com a condição de que proferisse a
fórmula “Filho Eterno de Deus”, em lugar da servetiana “Filho do Deus Eterno”, mas ele a
recusou e, segundo Farel, encaminhou-se para a morte rezando e sem dar mostras de
arrependimento. Para aqueles que não haviam compreendido as “argúcias espinhosas”
(Calvino) com que se debateu a doutrina no tribunal, Servet oferecia agora uma “prova
entécnica”, “ética” no sentido etimológico da palavra, oferecendo seu comportamento perante
a perseguição e a morte como fiança das doutrinas que pregava. Apropriando-nos da
expressão de Brad Gregory, afirmamos que Servet ofereceu sua morte como prova de que
seus argumentos estavam certos, praticando a ars moriendi, essa arte em que a garantia que o
orador pode dar com relação a seu discurso é sua vida. Pode-se imaginar que muitos, ao
comparar as atitudes de um e de outro, tenham murmurado em favor de Servet, em
detrimento de Calvino. Este menciona mesmo que “muitos foram infectados por esta peste”
(multos esse tabe ista infectos, p. 459). Por isso, três meses após sua execução, Servet foi
novamente processado, agora por meio da imprensa; todos os argumentos que Calvino tinha
contra ele foram novamente expostos, explicados, explicitados, para deixar claro que o
condenado havia merecido a pena recebida.
154
O próprio Calvino se dá conta da deselegância de sua atitude:
Se alguém objetar que é uma guerra covarde, essa que se faz a um
morto, e que insultar um morto é um sinal evidente de minha má-fé, uma vez
que, enquanto ele vivia e falava, eu o havia poupado; ou que é cruel que
persiga a sombra de um morto nos dois casos minha defesa é tão rápida
quanto fácil. Eu, pois, enquanto tive esperança de o reconduzir a uma visão
das coisas, não cessei de, privadamente, empreender meus esforços.
145
Calvino, pois, afirma que, enquanto Servet estava vivo, não cessou de tentar
convencê-lo privatim, ou, como diz o próprio Calvino na versão francesa, secrètement, sans
en faire bruit en public” (Opera VIII, p. 460, nota 1).
Mas se o problema não se encerrou com a morte de Servet, então pode-se supor que
este é quem havia dado a última palavra, o que exigiu de Calvino uma réplica, na forma de
sua defensio. E essa palavra final de Servet não estava no seu discurso, ou antes não estava
apenas no seu discurso, mas sim na coerência com relação ao discurso com que conduziu os
momentos finais de sua vida. Entrelaçam-se aqui, portanto, todos os temas estudados neste
trabalho: Servet, que havia construído para si uma identidade, forjada conscientemente no
texto, por meio da identificação com Miguel ou com Irineu, por exemplo, mas que oferecia
como garantia de sua legitimidade um cor mundum que lhe permitia receber e transmitir a
Verdade com simplicidade, era também o primeiro a acreditar em sua causa e a dar dela
testemunho. Testemunho que o identificava com o próprio Cristo e com toda a Igreja
primitiva, na medida em que o martírio havia sido não apenas o ato fundador do Cristianismo
como a “marca registrada” daqueles que o praticavam sob o Império Romano.
A apropriação desse passado, com todo o acréscimo de crebilidade que ele traz
consigo, já havia sido realizado pelos martirológios anabatistas e será feito ainda mais
perfeitamente no século XVII pelo holandês Thieleman J. van Bragh, que editou o mais
completo e conhecido martirológio radical, o Espelho dos Mártires, uma compilação de
“crônicas, memórias e testemunhos autênticos”. Seu título completo é um resumo perfeito
145
Si quis obiiciat vel ignavum esse bellum quod mortuo infertur, idque non obscurum diffidentiae
meae signum esse quod nunc mortuo insultem, cui vivo et loquenti pepercerim, vel crudelem esse qui
mortui hominis umbram insecter: utriusque prompta est facilisque defensio. Ego enim, quamdiu spes
fuit eius ad sanam mentem revocanti, privatim operam meam impendere non destiti., Def., 459-60.
155
daquilo a que se propõe: O Teatro de Sangue ou o Espelho dos Mártires. Dos cristãos
indefesos que foram batizados somente sob confissão de e que sofreram e morreram pelo
testemunho de Jesus, seu Salvador, desde o tempo de Cristo até o ano de 1660 d.C
146
. O
autor, portanto, apresenta-se como um pesquisador, que, tendo reunido material “autêntico”,
tem por objetivo contar a história real dos anabatistas que foram, de fato, perseguidos e
mortos durante um dado período histórico, conforme atestam éditos imperiais, autos de
processos, documentos católicos e tratados protestantes. Van Braght, entretanto, não apenas
narra os fatos tais como foram documentados ou dos quais foi testemunha ocular, mas, além
disso, atribui-lhes uma origem divina, ao mesmo tempo em que os anabatistas são descritos
não como inovadores ou sectários do século XVI, mas como descendentes diretos dos
mártires dos tempos evangélicos. Ao contar a história anabatista a partir de Estêvão, o
primeiro mártir, van Braght tece uma linhagem, uma linha de sucessão segundo a qual o
radical perseguido no culo XVI é herdeiro direto não apenas da doutrina, mas também do
discurso e do caráter do mártir da Igreja primitiva. A relação que se estabelece é
“arquetípica”, no sentido moderno da psicologia analítica (ou seja, de uma forma constante a
que conteúdos preenchem com sentido): assim como Estêvão, homem justo por meio do qual
o Espírito Santo falou, foi martirizado por dar testemunho da Verdade, assim o anabatista
quinhentista, homem justo e sincero que fala a língua simples do Espírito, este, da mesma
forma, sofre perseguições e morte em nome da Verdade.
E assim, por conseguinte, Servet não apenas oferece um discurso como quem mostra
sua persona social como avaliza esse discurso com sua conduta e a referenda por completo
com sua biografia.
146
The Bloody Theater or Martyrs Mirror of the defenseless Christians who baptized only upon
confession of faith, and who suffered and died for the testimony of Jesus, their Savior, from the time of
Christ to the year A.D. 1660. Compiled from various authentic chronicles, memorials, and
testimonies, by Thieleman J. van Bragh. A edição utilizada foi traduzida para o inglês por Joseph F.
Sohm a partir do original em holandês e publicada por Herald Press, 1977.
156
Nesse sentido, outro evento digno de nota tem como único relato a menção que lhe
faz o próprio Calvino, na mesma Defensio. Aparentemente utilizando esse fato verídico como
prova a seu favor, Calvino narra o episódio em que, tendo sido condenado, Servet insistiu
para vê-lo na prisão.
Como me tivesse solicitado um encontro, enviaram-me dois
conselheiros que me conduzissem ao cárcere. Perguntado sobre o que queria
dizer-me, respondeu que queria pedir-me perdão. Então eu lhe disse
singelamente que nunca havia levado adiante rancores pessoais. Fiz-lhe
lembrar com a maior suavidade de que fui capaz que me havia arriscado,
dezesseis anos antes, não sem grave e iminente perigo para minha vida, para
curá-lo, e não me teria oposto a que todos os homens piedosos estendessem a
mão ao arrependido. E que então, pacientemente, troquei com ele cartas
particulares e não fiz disso nenhum alarde. Em suma, que nenhum dever de
boa-vontade havia sido por mim negligenciado, até que ele, ainda mais
exasperado por minhas repreensões francas, explodiu, mais de raiva que de
bile. Então eu, dando a conversa por encerrada, roguei-lhe que pensasse
consigo se não deveria pedir perdão antes ao Deus eterno, contra quem havia
sido tão atrozmente injurioso ao tentar apagar as três hipóstases de sua
essência, e ao dizer que, se se estabelece uma distinção real entre o Pai e seu o
Filho e o Espírito, tem-se um Cérbero de três cabeças. E que enfiasse na
cabeça reconciliar-se com o Filho de Deus, que ele, desfigurando
horrivelmente com suas invenções e negando que tenha sido semelhante a nós
na carne que vestiu, tendo assim abolido o vínculo da conjunção fraterna,
havia negado ser nosso único redentor. Como não obtivesse nenhum êxito
admoestando e exortando, não quis ser mais sábio do que a regra do mestre.
157
Assim, segundo o preceito de Paulo, afastei-me do homem herético que
pecava au)tokata/kritoj.
147
Ao relatar esse encontro, Calvino, que quis reiterar a pertinacia herética de um
homem incapaz de arrepender-se, não parece ter se dado conta de que seu prisioneiro, a
poucas horas da morte pela fogueira, quis vê-lo para veniam petere, em absoluta consonância
com as palavras evangélicas.
148
Para o espectador ou testemunha desses eventos, Servet
deveria não apenas dar provas de ter morrido como cristão, mas também de ter vivido como
cristão. E, sendo assim, de ter escrito como cristão.
Na refutação em regra que fez da Defensio de Calvino, o humanista Sebastien
Castellión faz alusão a essa identificação do mártir com o próprio Cristo, embora com
ressalvas. Ao responder à acusação de Calvino de que Servet mesmo à beira da fogueira não
deu “nenhum sinal de arrependimento” nem procurou “proferir uma palavra de justificação”,
Castellión contesta que “se poderia dizer a mesma coisa de Cristo”.
Não que eu pretenda que Servet seja semelhante ao Cristo. Mas digo que a
calúnia é semelhante. Pois, nas mãos do carraco, Cristo o quis discutir mais. “Falei
abertamente ao mundo”, disse ele. E de que teria Servet discutido, quando o carrasco
tinha as conclusões ardentes da discussão? (...) A meu ver, Servet fez bem em se
147
Quum meum colloquium petiisset, missi sunt duo senatores qui me in carcerem deducerent.
Quidnam vellet rogatus dixit se veniam a me petere. Ego vero ingenue praefatus, me nunquam
privatas iniurias fuisse persequutum, quanta potui mansuetudine admonui: iam me ante annos
sexdecim, non sine praesenti vitae discrimine obtulisse meam operam ad eum sanandum, nec per me
stetisse quominus resipiscenti manum pii omnes porrigerent. Deinde literis privatis cum ipso placide
egisse, nec ullam captasse ostentationem. Denique nullum a me benevolentiae officium fuisse
praetermissum, donec liberis meis obiurgationibus magis exarcebatus, rabiem magis quam bilem
effudit. Verum sermonem de me abscindens, rogavi ut veniam potius ab aeterno Deo petendam sibi
cogitaret, in quem nimis atrociter contumeliosus fuerat, tres hypostaseis ex eius essentia delere
tentans, ac Cerberum tricipitem vocans, si realis inter patrem et filium eius, et spiritum distinctio
statueretur. Filium Dei sibi placare in animum induceret, quem foede suis commentis deformans, et
negans in ea carne, quam induit, nobis similem, adempto fraternae coniunctionis vinculo, unicum
redemptorem abnegaverat. Quum monendo et hortando nihil proficerem, nolui supra magistri regulam
sapere. Nam ab haeretico homine, qui au)tokata/kritoj peccabat, secundum Pauli praeceptum
discessi. (Def.,. 460) Quanto à palavra grega, significa “condenado por si mesmo”. O texto francês,
tradução do próprio Calvino, diz ainda: “portant sa marque et sa flétrissure en son coeur”.
148
Por exemplo, Mt. 5, 21-26.
158
calar. Em meio às chamas, invocou o Filho do Deus eterno. (...) Sua causa, ainda que
não tenha falado, ele a defendeu com seu sangue. (Contra libellum Caluini, 311)
A defesa de Calvino é, portanto, em grande medida, resposta ao silêncio significativo
de Servet (que podia parecer o silêncio do justo perante uma pena injusta) e, tudo o indica, ao
clamor suscitado por essa primeira fogueira em solo protestante.
Calvino início a sua Defensio com uma refutatio errorum de Servet. O próprio
título da obra nos fala dos prodigiosos errores do adversário. Erros que Calvino assume para
si a tarefa de corrigir, ou seja, de agir como mestre, mas um professor exasperado pelo
caráter indocilis (no sentido etimológico da palavra, de “impossível de ser ensinado”) do
aluno e que, dada a rebeldia do discípulo, toma para si a prerrogativa de punir o
insubordinado. Mas Calvino não apenas havia assumido o ethos de professor severo como
tinha, de fato e legalmente, concentrado em suas mãos o poder e o governo de uma cidade-
estado; e, assim, sua intervenção como advogado de uma causa jurídica lhe dava também o
direito de aplicar a pena. Como promotor, acusou o réu (já condenado e morto) com o
“direito da espada”; como juiz, condenou-o ao “suplício bem merecido”; como governante,
ordenou a execução. Como orador, justifica depois suas ações por meio da elaboração
retórica dos eventos, construindo para eles um sentido.
Mas Calvino era também um líder religioso, e, portanto, um guardião de determinadas
doutrinas, aceitas como verdadeiras. Por isso, no título do tratado esforça-se por deixar
claro que está escrevendo uma defesa não do seu comportamento, mas da fé ortodoxa
(defensio orthodoxae fidei), contra a qual os erros de Servet podiam ser perniciosos. Erros
que, portanto, são imediatamente transformados em “impiedades” (impietates), assumindo a
conotação de algo ligado à religião e à fé. Os erros de Servet são erros contra a e, por
conseguinte, impiedades.
Mesmo dentre outros flagelos de erros pelos quais Satã se esforçou em
nossa época para encobrir a luz do Evangelho que renasce, é sobretudo
159
detestável o amontoado de impiedades que Miguel Servet vomitou em seus
livros impressos.
149
A seguir, esses “erros” (errores) e “impiedades” (impietates) se transformarão
também em “delírios” (deliria), “artimanhas” (insidiae), “disputas espinhosas e erráticas”
(spinosas et erraticas disputationes), “tola ambição” (stulta ambitio), “ebriedade” (ebrietas),
“invencionices” (figmenta), “profanação” (profanatio), “fatuidade” (fatuitas), “cúmulo de
perversidade” (nequitiae cumulum), “trapaças” (ludibria), “desejo de coisas novas” (novarum
rerum cupiditas), “prurido doentio” (pruritus insanus), “vícios” (vitia), num vocabulário que
vai percorrendo todo o léxico da heresia. Mas se a doutrina servetiana se constitui de “erros
asquerosos e vergonhosos” (foedi pudendique errores), Calvino, para contrapor, tem “a fé
dos simples” (simplicium fides); se aquele traz “a enfermidade” (morbus), este tem os
“remédios” (remedia). E todo esse vocabulário aparece no exórdio, em apenas duas páginas e
meia.
Eu não havia pensado até agora em refutar esse homem publicamente, pois
ocultava-se tal absurdo em seus delírios que eu esperava que, uma vez que ninguém
se pronunciasse contra eles, por si mesmos transformar-se-iam em fumaça. (...) Mas
depois, soube pelo relato de homens de bem que me havia enganado. (...) Que se
passa hoje em dia? A maioria, tendo abandonado todo pudor humano, zomba
abertamente de Deus: irrompem nos mistérios sagrados não menos atrevidamente do
que se porcos enfiassem os focinhos num tesouro precioso.
150
149
Quanquam inter alia errorum portenta, quibus Satan renascentis evangelii lucem hac aetate obruere
conatus est, apprime detestabilis est impietatum congeries quam Michael Servetus libris editis
evomuit. (Def., 457).
150
Antehac tamen hominem non putavi ex professo refutandum, quia tanta suberat eius deliriis
absurditas, ut nullo contra pugnante, ultro in fumum abitura sperarem. (...) Postea ex bonorum
virorum relatu agnovi me fuisse deceptum. (...) Quid hodie? Maior pars, humano quoque pudore
excusso,palam proterve irrumpunt, quam si porci rostra in pretiosum thesaurum ingererent. (Def.,
457-8)
160
Como de regra na captatio beneuolentiae desse tipo de apologia, também aqui o autor
começa por rebaixar o discurso do outro, afirmando que sequer se daria ao trabalho se pensar
a respeito se não fosse a isso instado por um grupo ou pela urgência da situação. Mesmo o
relativo êxito das teorias servetianas (que não se esvaíram como fumaça, mas conseguiram
até infectar” a muitos) deu-se, diz Calvino, apenas porque esses “muitos” (em oposição aos
“homens de bem”) “contaminam, com sua vida impura e celerada, a manifestação do
Evangelho” (Def., 458).
Calvino precisa também rebaixar o oponente e, para isso, necessita provar que Servet
não fora um mártir que morrera por sua causa. Para isso, retoma sua teoria, já mencionada em
outros livros, de que existe uma diferença entre o mártir e o “blasfemador”, embora “haja
semelhança nas penas”: “é a culpa que os estabelece a distinção” (culpa discrimen statuit).
Da mesma forma, o conhecimento faz os homens pios, corretos e
zelosos ; a temeridade e um cego impulso, os iníquos e perversos.
151
A temeridade e a audácia são, segundo Calvino, as marcas distintivas de um herege, o
qual “merece” seu castigo. Que não é, entretanto, a “barbárie detestável” (detestabilis
barbaries) dos papistas, que joga os mártires ao fogo, “de maneira que a chama não os
queime inteiros imediatamente, mas os consuma por uma combustão lenta” (ad ignem
extrudunt, non qui sua flamma eos statim absumat, sed lenta ustulatione conficiat) o que,
segundo Calvino, é “um exemplo perfeito de estupidez bestial e pavorosa crueldade”
(exemplar sane illud est tum belluini stuporis, tum immanis saevitiae).
Que diríamos, pois, se víssemos homens pios e simples, servidores do
único Deus, cruelmente queimados por este único motivo: porque opuseram às
invenções dos homens a clara palavra divina?
152
151
Sic pios et rectos zelotas cognitio, iniquos et perversos temeritas et caecus impulsus facit. (Def.,
466)
152
Quid ergo dicturum fuisse putamus, si pios et simplices unius Dei cultores crudeliter vidisset hac
tantum causa ustulari, quia hominum figmentis clarum Dei verbum opponerent? (Def., 467)
161
A ténica de Calvino é, portanto, culpabilizar mais uma vez o réu, que havia merecido
seu castigo. A questão se desloca, pois, para a voluntas, a intenção do incriminado; e, sendo
assim, a justiça também passa a depender de um critério subjetivo, a legitimidade do juiz. Um
juiz papista julgando um réu protestante é “estúpido e cruel”, mas um juiz calvinista que
mande Servet à fogueira “de maneira que a chama não o queime inteiro imediatamente, mas
o consuma por uma combustão lenta” é justo, porque o juiz é autorizado por Deus e o réu o
merece. O problema do caráter moral de ambos torna-se, pois, decisivo, e não apenas autoriza
o feito como o justifica e lhe confere legitimidade.
Uma interessante e mesmo reveladora mudança de discurso ocorre na página 469, em
que Calvino tenta justificar a incompatibilidade patente entre a perseguição de hereges e as
palavras evangélicas (discussão suscitada, diz, por pessoas “bem intencionadas, mas
inexperientes”, imperiti, sed non mali homines). Não é absurdo, diz, que o reino espiritual
seja defendido com as armas do poder temporal; da mesma forma, acrescenta abrupta e
inesperadamente, sem que nada no texto prepare o leitor para tal reviravolta, não é absurdo
que a fé se sustente sobre a eloqüência humana:
Mas ele (Cristo), que começou pelos pescadores, em seguida escolheu
para si outros ministros, não tão rudes e embebidos de uma doutrina mais
elegante.
153
E prossegue, em seguida:
E mais, Paulo em pessoa, que confessa ter sido abandonado por sua
eloqüência, não estava desprovido de toda doutrina. (...) O discurso de Isaías,
para não falar de seus sucessores, não apenas é puro e nítido, mas também
ornado com artifício, o que atesta suficientemente que a eloqüência está às
vezes a serviço da fé. E é certo que Cristo conduziu até ele os magos pelos
raios da estrela não menos do que os pastores pela voz do anjo. Porque esse
povo rude e obscuro, do qual Cristo tirou as primícias da Igreja, não barrou
aos reis o caminho para que eles também lhe oferecessem tanto a si mesmos
153
Verum, qui a piscatoribus exordium fecit, postea alios sibi delegit ministros, neque ita rudes, et
elegantiori doctrina tinctos. (Def., 469) Na versão francesa, consta: “pas aussi rudes et idiots”.
162
como a todos os seus bens e que também o poder da espada, pela qual foram
instruídos, fosse uma oferenda sagrada.
154
Voltando ao texto, Calvino pretende justificar a condenação à morte de Servet opondo
a necessidade da manutenção da lei e da ordem às mensagens cristãs sobre a mansuetudo, o
que configura uma confissão de inadequação entre o ideário cristão e o mundo “real”.
Apanhado na armadilha, Calvino, que era também um governante, parece ter se dado conta
de que, para ser “oficialmente” cristão, o mundo talvez venha a ser obrigado a afastar-se da
própria essência do cristianismo. O anabatismo, que já se havia dado conta dessa incoerência,
afirmava que a fórmula “rei cristão” carrega em si uma contradição irremediável, antes de
mais nada porque o verdadeiro cristão não aspira a ser rei, mas a servir.
Calvino, entretanto, defende a legitimidade da severitas.
Além disso, é cruel essa clemência que louvam, de expor a ovelha à
rapina para poupar os lobos. Estes matam as almas com o veneno dos dogmas
depravados, e o poder legítimo da espada será afastado de seus corpos? O
corpo inteiro de Cristo será dilacerado, para que permaneça intacto um
membro pútrido e fétido?
155
O argumento é que, se Cristo ordenou separar o joio do trigo, então não é necessário
renunciar a todo rigor (cessare rigorem, Def., 472). E se Cristo impediu Pedro de recorrer à
força, isso não quer dizer que se deva “desarmar os magistrados” (ut magistratus exarmet,
Def., 473).
154
Quin etiam Paulus ipse, qui se facundia destitui fatetur, non omnis doctrinae expers. (...) Vt autem
de successoribus taceam, Iesaiae sermo non modo purus et nitidus, sed etiam artificio ornatus satis
testatur eloquentiam fidei interdum ministram esse. Et certe Christus non minus stellae radiis magos
ad se deduxit, quam pastores angeli voce. Quare nec rude obscurumque vulgus, ex quo sumpsit
Christus ecclesiae primitias, viam regibus praeclusit quin ipsi quoque et se et sua omnia ei offerrent,
et ipsa etiam gladii potestas, qua instructi sunt, sacra esset oblatio. (Def., 469).
155
Porro crudelis est ista quam laudant clementia, oves exponere in praedam ut lupis parcatur. Animas
ipsi pravorum dogmatum veneno interficiunt, et legitima gladii potestas ab ipsorum corporibus
arcebitur? Lacerabitur totum Christi corpus, ut putridi unius membri intactus maneat foetor?
(Def.,472).
163
Resta que ensine que não apenas o magistrado é livre para
aplicar penas aos corruptores da doutrina sobre as coisas celestiais,
mas também que aqueles que não querem que isso lhes seja lícito são
ignorantes, e que é divino o mandato para que não possam deixar
impunes os erros pestíferos e não se apartem do juramento de seu
ofício.
156
A lei deve ser ainda mais dura para com os crimes de heresia:
Que de mais absurdo do que um juiz que pune severamente os
furtos e dá permissão aos sacrilégios?
157
Calvino recorre ainda à autoridade do Deuteronômio (Dt 13, 7-10) para argumentar
que o próprio Deus ordenou a morte para aquele que dissesse “vamos e sirvamos a outros
deuses”; por conseguinte, se ele, Calvino, é acusado de crueldade, então Deus também
deveria sê-lo:
Vão então acusar Deus de crueldade aqueles para os quais a deserção
da lei pura e do culto divino não é senão um delito leve e venial!
158
Mas Deus não ordena que se desembainhe a espada “indistintamente” (promiscue)
contra todos:
Mas os apóstatas, que se afastaram impiamente do culto verdadeiro e
se têm esforçado para arrastar a outros a deserção semelhante, a estes submete
a uma pena justa.
159
156
Superest ut non modo liberum esse magistratibus doceam poenas sumere de coelestis doctrinae
corruptoribus, sed quod illis nolunt licere imperiti, divinitus esse mandatum, ut pestiferis erroribus
impunitatem dare nequeant quin desciscant ab officii sui fide. Def., 474.
157
Quid enim absurdius est, quum furta severe puniat iudex, sacrilegiis licentiam dare? Def.,. 474.
158
Eant nunc, et crudelitatis Deum accusent, quibus instar levis et venialis delicti est a pura fide et Dei
cultu defectio. Def.,. 475.
159
Sed apostatas, qui se impie alienaverint a vero cultu et alios ad similem defectionem trahere conati
fuerint, iustae poenae subiicit. Def.,476.
164
O “mecanismo das causas” não tarda a aparecer, culpabilizando sem nuanças quem
quer que tenha outra opinião.
Quem quer que pretenda que é injusto aplicar uma pena aos hereges e
aos blasfemadores sujeita-se, de propósito e de bom grado, à mesma acusação
de blasfêmia.
160
O motivo de Calvino é o mesmo do Antigo Testamento, o mesmo da “ideologia da
unidade” de Paulo: o da unicidade de Deus. um único Deus e quem quer que se afaste
desse único Deus não merece viver. É claro que Servet, os anabatistas, os libertinos e mesmo
os papistas também pregavam essa mesma unicidade, mas seu Deus único era o Deus
errado...
Mas, uma vez que a religião é abalada desde seus fundamentos
mesmos, quando blasfêmias detestáveis são proferidas contra Deus, quando as
almas são arrastadas à perdição por dogmas ímpios e pestilenciais, quando,
enfim, experimenta-se abertamente a deserção do Deus único e de sua pura
doutrina, faz-se necessário descer ao remédio extremo, a fim de que o veneno
mortal não se insinue mais longe.
161
Claro que Calvino assume para si a função e o papel do guardião da doctrina pura,
assim como Paulo, que, não por acaso, é o exemplo a que recorre em seguida:
Logo, não é nada ambíguo isso de que se incumbam da defesa do reino
de Cristo os magistrados pios e justos, segundo o mandato de Deus.
Acrescente-se o voto de Paulo, com o qual todo escrúpulo se dissipa. Ele
ordena que na igreja se façam preces solenes em favor dos reis e de todos
160
Nunc vero quisquis haereticis et blasphemis iniuste poenam infligi contendet, sciens et volens
eodem se obstringet blasphemiae reatu. Def.,476
161
Sed ubi a suis fundamentis convellitur religio, detestandae in Deum blasphemiae proferuntur,
impiis et pestiferis dogmatibus in exitium rapiuntur animae, denique ubi palam defectio ab unico Deo
puraque eius doctrina tentatur, ad extremum illud remedium descendere necesse est, ne mortale
venenum longius serpat. Def., 477
165
aqueles que se elevam em honra e poder. Para quê? Para que tenhamos uma
vida calma e tranquila, diz ele.
162
Protegido sob a autoridade de Paulo, o direito de recorrer à espada contra a heresia
torna-se, assim, inquestionável.
Que os ignorantes e os irrefletidos desistam, pois, de negar que
penalidades devam ser aplicadas aos corruptores da verdadeira doutrina, a
menos que queiram vociferar abertamente contra Deus.
163
Contra Deus e contra Calvino, que, tendo legitimado a morte de Servet com
argumentos escriturísticos, já não teme confessar sua participação no caso:
Que vociferem os homens de má-vontade e os maledicentes. Eu
confesso de bom grado que um acusador se apresentou por minha causa e a
meu pedido (porque, segundo as leis da cidade, não teria sido possível, de
acordo com o direito, agir de outra forma com um homem). E não nego que a
fórmula com a qual esse alguém abriu o processo foi ditada sob minha
orientação.
164
Calvino insiste ainda em emprestar a Servet a pertinacia que era, desde os tempos
apostólicos, a marca registrada do herege. Ao falar de Servet como prisioneiro e acusado,
comenta que o réu teria podido salvar a vida “apenas com modéstia”. De fato, como já vimos,
foi oferecida a Servet a possibilidade não de salvar a vida, mas de escapar à fogueira, se
162
Ergo, quin piis sanctisque magistratibus ex Dei mandato regni Christi defensio incumbat, minime
ambiguum est. Accedat iam Pauli suffragium, quo scrupulus omnis eximitur. Solennes in ecclesia
preces concipi iubet pro regibus et omnibus qui honore et potentia excellunt (1 Tim. 2, 1). Quorsum?
Vt quietam, inquit, et tranquillam vitam agamus. Def., 478.
163
Desinant ergo indocti homines, et parum considerati, negare de verae doctrinae corruptoribus
sumendas esse poenas, nisi palam Deo obstrepere velint. Def. ,479.
164
Obstrepant licet vel malevoli vel maledici homines, ego libenter fateor ac prae me fero (quia
secundum urbis leges aliter cum homine iure agi non poterat) ex me prodiisse accusatorem: nec
infitior meo consilio dictatam esse formulam, qua patefieret aliquis in causam ingressus. Def., 479.
166
pronunciasse, em vez da servetiana Filho do Deus Eterno”, a canônica Filho Eterno de
Deus”. Mas fazê-lo seria retratar-se completamente e trair não apenas a si mesmo e a suas
convicções como à causa ueritatis:
Como vomitasse ininterruptamente sobre mim insultos de boca cheia,
os quais envergonhavam e aborreciam os próprios jurados, abstive-me de
ataques a ele. Acrescenta que nenhum perigo de pena mais séria o ameaçava,
se tivesse sido de algum modo curável. Mas afastara-se tanto da moderação
exigida, que, cheio de jactância e de ferocidade, rebatia de forma petulante
todos os conselhos sãos e úteis. Que absurdas e execráveis blasfêmias saíam
dele durante os interrogatórios, contá-lo-ei talvez em outra parte, mais
oportunamente. Por enquanto quero somente dizer na presença de testemunhas
que eu não lhe fui mortalmente hostil e que lhe teria sido permitido salvar a
vida apenas com modéstia, e se não tivesse perdido a cabeça. Mas nem sei que
mais dizer, a não ser que ele, tomado de uma loucura fatal, atirou-se de cabeça
para baixo.
165
Em seguida Calvino reproduz os documentos do processo, com suas perguntas e as
respostas do réu, e ainda cita uma a uma e textualmente todas as sententiae vel propositiones
que extraíra dos livros de Servet para usar contra ele no tribunal, bem como as respostas do
acusado. Tem ainda o cuidado de incluir na edição uma brevis refutatio errorum et
impietatum Serveti em forma de carta, endereçada aos ministros da igreja e ao senado de
Genebra e ainda outra refutatio, esta aos síndicos da cidade. Uma terceira refutação, esta
calumniarum Serveti, ocupa o restante das páginas do tratado.
165
Quum plenis buccis convicia subinde in me evomeret, quorum iudices ipsos pudebat ac pigebat, ab
eius insectatione abstinui. Adde quod nullum instabat gravioris poenae periculum, si quo modo fuisset
sanabilis. Atqui tantum abfuit a quaerenda moderatione, ut iactantiae et ferociae plenus sana omnia et
utilia consilia petulanter respuerit. Porro quam absurdae exsecrandraeque blasphemiae illi inter
loquendum exciderint, alibi forte opportunius dicetur. Hoc tantum in praesentia testarum volo, me non
ita capitaliter fuisse infestum, quin licitum fuerit vel sola modestia, nisi mente privatus foret, vitam
redimere. Sed nescio quid dicam, nisi fatali vesania fuisse correptum, ut se praecipitem iaceret.
Def.,480.
167
Nas páginas 498 e 499:
E mais, para que patifes desocupados não glorifiquem como martírio a
teimosia de um homem insensato: deu mostras em sua morte de uma
estupidez bestial, a ponto de que seria lícito julgar que ele nunca levara
nada a rio em religião. Assim, tendo-lhe sido anunciada sua morte,
primeiro ficou paralisado, como que atônito; depois, lançou altos
suspiros; depois, deu gritos à semelhança dos frenéticos. Por último,
enfim, recobrou forças apenas para reboar à maneira espanhola:
“Misericórdia! Misericórdia!” Quando chegou ao local do suplício,
exortado por nosso excelente irmão e convertido Farel, uma palavra
foi-lhe por fim arrancada com dificuldade: que o povo fizesse com ele
preces comuns. Não vejo, entretanto, com que consciência permitira a
si mesmo fazê-lo. Pois havia escrito de próprio punho que reina aqui
uma diabólica e que não temos nem igreja nem Deus, porque ao
batizar crianças, negamos o Cristo. Como, então, se juntou em preces,
como um igual, ao povo cuja comunhão devia ser evitada? Ou acaso
não é profanação da sagrada unidade professar um Deus e uma fé
comuns com uma congregação ímpia e profana? No entanto, Farel
exortou ao povo que rezasse por ele, mas nos seguintes termos: que o
Senhor, apiedado de um homem de outra forma perdido, o
reconduzisse dos erros execráveis para a sanidade. Ele, entretanto,
embora não tenha dado nenhum sinal de arrependimento, tampouco
tentou dizer uma palavra sequer em defesa de seus dogmas. O que ele
pretendia, me pergunto, pois, entregue à mão do carrasco, quando se
recusou teimosamente a invocar o Filho de Deus, nem ao menos tentou
se justificar (o que era livre de fazer). Quem dirá que seja essa a morte
de um mártir? A doutrina, em nome da qual deveria combater, ele não
apenas a deixa desprovida de auxílio, mas também a mantém calada
por seu silêncio voluntário. Pois ninguém lhe proibiu a liberdade de
168
falar. E fica evidente, julgo, aquilo que mencionei pouco:
enquanto pensava que podia brincar impunemente, foi audaz mais do
que o necessário; quando, entretanto, recebeu sua justa paga, sucumbiu
ao desesepero.
166
166
Caeterum ne male feriati nebulones vecordi hominis pervicacia quasi martyrio glorientur: in eius
morte apparuit beluina stupiditas, unde iudicium facere liceret, nihil unquam serio in religione ipsum
egisse. Ex quo mors ei denunciata est, nunc attonito similis haerere, nunc alta suspiria edere, nunc
instar lymphatici eiulare. Quod postremum tandem sic invaluit, ut tantum hispanico more reboaret:
Misericordia, Misericordia. Vbi ad locum supplicii ventum est, hortatu optimi fratris symmystaeque
nostri Farelli tandem aegre extorta ei vox fuit, ut populus communes secum preces conciperet. Porro
qua id conscientia sibi facere permiserit, non video. Scripserat enim manu sua, fidem hic diabolicam
regnare, nullam esse nobis ecclesiam, nullum Deum, quia infantes baptizando Christum abnegaremus.
Quomodo igitur se in precibus socium populo adiunxit, cuius fugienda erat communio? Annon
profanatio est sacrae unitatis, communem Deum et fidem cum impio et profano coetu profiteri? Ac
pro eo quidem ut supplicaretur, hortatus est Farellus, sed nominatim ut Dominus perditi alias hominis
misertus, ab exsecrandis eum erroribus ad sanam mentem reducere. Ipse interea, quanquam nullum
resipiscentiae signum dedit, pro suorum tamen dogmatum defensione ne verbum quidem facere
conatus est. Quid sibi quaeso hoc vult, quod iam sub manu carnificis positus, quum aeternum Dei
filium invocare pertinaciter renueret, non breviter saltem (quod liberum erat) excusaverit? Quisnam
mortem hanc martyris esset dicet, doctrinam, pro qua certandum erat, non modo omni patrocinio
destitutam relinquere, sed voluntario silentio tenere suppressam? Nemo enim a loquendi ipsum
libertate prohibuit. Vnde quod paulo ante attigi, liquere arbitror: quamdiu impune se ludere putavit,
plus satis fuisse audacem: ubi autem soluta est iusta merces, desperatione concidisse. Def., 498-9.
169
CONCLUSÃO
No primeiro capítulo, procuramos extrair da Retórica Antiga e da Análise do Discurso
moderna algumas teorias e critérios acerca do ethos e seu estatuto, e como o orador ou
locutor realiza, no discurso, a construção e a legitimação de seu “caráter” e com que
estratégias garante sua credibilidade e busca a adesão dos interlocutores. Uma vez que os
autores estudados nesta tese escreveram tratados polêmicos num contexto religioso, vimos
em seguida como se dá, no discurso cristão, a constituição de um apostolikon, ou seja, a auto-
apresentação do falante ou autor como “enviado” ou porta-voz. Aqui, o escritor alega que
escreve porque foi encarregado de uma missão divina. Seu discurso estaria assim legitimado
a priori, uma vez que o arauto não faz senão proclamar a mensagem, revelada, de que foi
incumbido. E, sendo assim, o que precisa de legitimação não é a fala, mas o falante, que
necessita tornar evidente que foi ele o eleito para a transmissão da Verdade.
Verdade que é uma, una, única e inequívoca. Se dissensões, diferenças e divisões
que quebrem a unidade, a voz dissonante é imediatamente atribuída ao inimigo da Verdade e
de Deus, ao falso mestre, ao herege cujo intento é “destruir toda a religião” (ut totam
religionem everteret), como disse Calvino (in Kingdom, 1962, 46). A construção de uma
imagem positiva de si, portanto, é possível, num contexto polêmico de uma causa em que
está em jogo a Verdade, se se fizer também a desconstrução (ou antes destruição) da imagem
do “outro”, do oponente, do inimigo. Essa contraparte é essencial nesse tipo de discurso
antilógico em que cada um representa um papel bem claro.
Esse mecanismo de “polarização”, presente desde o início do Cristianismo, pode ser
exemplarmente observado no século XVI, em que a Reforma, a fim de apresentar sua
proposta de renovação da vida cristã, precisou, antes de mais nada, denunciar como práticas
antievangélicas os “abusos” da Igreja romana, tais como a simonia ou a venda de
indulgências, para ser em seguida ela própria alvo das críticas de outros movimentos, hoje
conhecidos sob a designação de Reforma Radical, os quais, “radicalizando” os
questionamentos trazidos pelo movimento reformista, e servindo-se da então novíssima
invenção da imprensa, usaram os livros impressos para fazer sua propaganda. E esta, por sua
vez, também precisava começar por mostrar o que estava errado para oferecer então o
remédio ou a solução, numa imensa arena de debates com réplicas e tréplicas, mas também
170
com muitas condenações à morte, perante as quais o cristão deveria comprovar diante de sua
comunidade, com sua conduta no momento extremo, a veracidade daquilo que havia
pregado.No século XVI como nos dois primeiros séculos do Cristianismo, os martírios em
massa tiveram como resultado a multiplicação do número de convertidos. Assim, Brad
Gregory (1999, 52), ao estudar o fenômeno do martírio no século XVI, empregou a expressão
ars moriendi para dar conta dessa “arte do bem morrer” que tinha também não apenas alta
carga didática como inegável poder persuasivo.
Há, portanto, um ethos apropriado ao cristão: antes de mais nada, porque, numa
disputa, aquele orador precisa provar que tem, mais do que outros, o direito de arvorar-se em
porta-voz da Verdade; e, para fazê-lo, assume a persona do nuntius, do enviado do Senhor,
do portador de uma revelação. O modelo, paulino, poderia, entretanto, ser aplicado ao próprio
Jesus: aquele que veio em missão, em nome de outro, investido da autoridade de quem o
enviou e que tem o dever de falar porque a crise dos tempos denuncia o final iminente. E,
finalmente, o cristão precisa também manter a firmeza diante da perseguição, da tortura e da
morte, as quais, aliás, passaram desde os primórdios evangélicos a ser associadas à prática
cristã. Dessa forma, a doutrina que antes se apoiava no apostolikon de porta-voz da Verdade
precisa depois, para ter credibilidade, ser sustentada pelo comportamento diante do martírio.
A postura diante da morte é aqui também um discurso para um público capaz de ser seu
receptor / intérprete: “A capacidade de suportar torturas excruciantes em público certamente
causava impressão no povo e também ajudava a fazer conversões. Sem receptividade cultural
para esse comportamento, o martírio não poderia ter sido ‘a semente da igreja’.”
167
(Gregory,
1999, 320).
O autor cristão é, portanto, chamado a dar provas de suas convicções; a persuasão
pretendida por seu discurso é, assim, completada com seus mores e especialmente com a
coerência entre o diz e o que pratica. Afinal, se ele não fala em seu nome, mas tem uma
missão que lhe foi confiada por Deus, o que ele tem de legitimar não é seu discurso, mas sua
condição de apóstolo. Há, pois, uma articulação particularmente forte entre virtude moral e
prática discursiva.
Tendo em vista que se trata de dogmas e de suas interpretações, foi-nos necessário rever
toda a teoria sobre temas como “caráter” do orador, genus deliberatiuum, sermo humilis, na
167
The public endurance of excrucianting torments often did impress people and it also helped make converts.
Without cultural receptivity to such comportment, martyrdom could not have been ‘the seed of the church’.
171
tentativa de aplicar essa sistematização aos discursos ora estudados. O mesmo fez-se
imprescindível com questões tais como ideologia ou adesão. E, dessa forma, definiu-se como
objetivo desta tese o levantamento de algumas questões teóricas extraídas dos manuais de
retórica antigos e das atuais discussões da Análise do Discurso sobre o ethos do orador e a
fides, ou credibilidade, forjada no texto mas afiançada pelos costumes morais do orador, para,
em seguida, abordar aquelas relativas à construção e à legitimação do ethos do autor num
contexto em que a utilização do genus deliberatiuum se numa situação muito particular,
que os retores clássicos de cultura politeísta não foram capazes de prever: a da prática do
mouere para converter, ou seja, levar o receptor do discurso a aderir a uma posição religiosa
que se pretende não apenas a mais proveitosa e mais útil, mas também se apresenta como a
única verdadeira. Do leitor exige-se uma metanoia, uma transformação de pensamento que o
leve a mudar também sua vida, muitas vezes com o risco de perdê-la; da mesma forma, o
autor apresenta como provas a favor de sua causa não apenas seu discurso, mas também seu
comportamento, seus costumes, seu exemplo.
O autor cristão é, portanto, chamado a dar provas de suas convicções; a persuasão
pretendida por seu discurso é, assim, completada com seus mores e especialmente com a
coerência entre o diz e o que pratica. Afinal, se ele não fala em seu nome, mas tem uma
missão que lhe foi confiada por Deus, o que ele tem de legitimar não é seu discurso, mas sua
condição de apóstolo. Há, pois, uma articulação particularmente forte entre virtude moral e
prática discursiva.
Num segundo momento, detivemo-nos sobre os aspectos estéticos do discurso
polemista cristão e, ao mesmo tempo, sobre as conseqüências também éticas da opção pelo
sermo humilis como o único apropriado a quem fala a língua da Verdade. Sendo assim, a
primeira das estratégias de legitimação do autor cristão é proclamar que fala ou escreve sine
tropo et sine sophismate”; afinal, a Verdade é pura e simples e assim deve se mostrar. O
apologista cristão é então, a seus próprios olhos, anti-retórico. E, em contrapartida, ao
“outro”, excluído da Verdade que é única, resta o recurso ao tropo, ao ornamento lingüístico,
às artes da palavra. Quem fala a Verdade o faz de forma “natural”; quem mente usa de
subterfúgios com que tenta ocultar suas más intenções.
E aqui impõe-se uma questão importante, com a qual esta pesquisadora deparou
seguidas vezes no decorrer do trabalho: uma vez que Servet era também um humanista do
Renascimento, e que Calvino havia ingressado nas letras com um comentário a Sêneca,
172
seriam eles tão “incultos” que escrevessem “mal”? A conclusão a que chegamos é que o
estilo baixo, identificado aqui com algum despojamento e mesmo com certa rudeza, é, na
verdade, o único tipo de elocutio “lógico” para uma polêmica como aquela. E, assim, da
mesma forma que o gramático que considera antes o prescritivo, engana-se quem parte do
manual para o uso, quando aquele não é senão uma sistematização deste.
O estilo baixo é também o da veemência, o da indignação “espontânea” e o da
“facilidade” de comunicação. É, enfim, o utilizado para expressar convicções urgentes e para
pedir adesão, num panfleto ou numa propaganda.
Outro estratagema de construção e de legitimação do ethos é revestir-se das
características de outrem, assimilando-as por identificação. No caso de Servet, como vimos
no capítulo 3, sua missão foi descrita com vocabulário apocalíptico, revelando sua origem
milenarista. Ademais, ele, Miguel, acreditava-se, como o Arcanjo, imbuído da tarefa de estar
à frente de um exército de libertação contra Roma para que a verdadeira igreja, ora fugata,
pudesse ser restituída, bem como o Cristianismo, à primitiva pureza dos tempos evangélicos,
numa causa que não é dele, mas do Cristo e, portanto, de Deus. Além disso, Servet acreditava
ter como missão combater os novos gnósticos, os protestantes que pregavam o servo-arbítrio
e o princípio da sola fide. E, então, revestiu-se de características de Irineu, o combatente
aduersus haereses do Cristianismo primitivo, para se dirigir a Melanchthon. Vimos, então,
como ele constrói seu ethos de cristão verdadeiro com argumentos que são do domínio da
moral (sua fidelidade às Escrituras, sua vida celibatária etc.) mas também da estética (seu
sermo simplex, sine fuco), uma vez que seu estilo pode ser simplex porque expressa sua
simplicitas interior, e suas palavras são puras e sinceras em decorrência do cor mundum e da
sinceritas com que pediu a Cristo que lhe revelasse a Verdade.
Mas, assim como Servet, para legitimar sua posição, lançou mão de argumentos e de
estratagemas com que os adversários fossem rebaixados ou ridicularizados, assim também
pareceu-nos natural buscar a imagem de Servet no discurso do “outro”, aqui Calvino. Por
meio desse jogo de espelhos, reflexos e contrapartidas, procuramos, depois de buscar nos
textos as marcas de primeira pessoa do autor (quando estas servem a uma finalidade
consciente, a de revestir-se a si mesmo de uma característica que traga algum acréscimo de
credibilidade ao discurso e a seu autor), ressaltar as estratégias de negação ou de privação de
legitimidade ao inimigo, o “herege”, e de desautorização de seu texto. Assim, de forma
especular, analisamos no capítulo 4 um texto de Calvino, adversário de Servet, escrito
173
precisamente para demonstrar os “erros prodigiosos de Miguel Servet” e como defesa contra
a acusação de intolerância pela condenação do espanhol à morte pelo fogo lento em Genebra,
em 27 de outubro de 1553, apenas seis meses após a publicação do livro Christianismi
Restitutio.
A premissa fundamental desta tese, e que pretendemos haver demonstrado no
decorrer da exposição, foi a de que uma pesquisa acadêmica deve se afastar do biografismo,
mas talvez nem sempre deva perder de vista aquilo que, inscrito na História, é também, além
de um “evento”, uma “ação afirmativa”, uma “escolha deliberada”, ou, como se diria no
século XVI, um “testemunho”. ideologia não apenas na leitura e na interpretação dos
eventos históricos, mas também na sua produção. Sem a Restitutio, livro proibido de cujo
original restaram apenas três exemplares, Servet passou à História como mártir precursor da
liberdade de consciência, como ídolo de D´Alembert e de Voltaire
168
, como o filósofo
encarcerado que Picasso retratou ou como um “Dom Quixote da Teologia”, numa
homenagem talvez nem tão distante assim, afinal, da acusação de "loucura sacrílega" que lhe
dirigiu Calvino
169
. Sem a Restitutio, admira-se em Servet a firmeza com que defendeu sua
convicção, embora esta tenha se esvaziado culturalmente a ponto de nos parecer hoje, ainda
que por motivos diferentes, tão insana quanto em 1553; e mesmo essa “convicção firme”
talvez não seja tão diferente da acusação de pertinacia com que se descreviam os hereges.
Sem a Restitutio, Servet é “um fanático fugido de um manicômio”, expressão com que o
descreve um livro de História do século XX
170
, um louco que procurou a morte por teimosia,
ou, como disse Calvino, “tomado de uma loucura fatal, atirou-se de cabeça para baixo”
171
.
Sem a Restitutio, Servet não é um mártir, mas um herege.
Calvino sabia-o, e continuou sempre, até a sua morte, em 1559, a tentar desqualificar
um Servet já silenciado pela fogueira e pela proibição de seu livro. Considerando a morte em
nome de uma causa como um discurso, Servet de alguma forma havia, com sua recusa ao
168
Voltaire chegou a escrever, em 22 de setembro de 1773, a Frederico II, rei da Prússia, que desejava “com
paixão” que “os dissidentes” se multiplicassem. “Diz-se que vários jesuítas tornaram-se socinianos. Deus lhes
conceda sua graça! Seria engraçado se construíssem uma igreja a São Servet. Só nos faltava esta revolução!” (in
Ferrer Benimeli, 1980, 69).
169
A expressão "caballero andante de la teología" com que Menéndez Pelayo referiu-se a Servet de forma
depreciativa, foi retomada, "con gratitud y sin ironía", por Angel Alcalá, em El nuevo florecer del servetismo,
1978, 5. Calvino menciona "a impudência e a loucura sacrílega" (impudicitia et insania sacrilega) de Servet no
cap. XII de seu Comentário a Daniel.
170
Un fanático escapado de un manicómio”: na Historia de los Heterodoxos Españoles, de Menéndez Pelayo,
1951, 323.
171
Sed nescio quid dicam, nisi fatali vesania fuisse correptum, ut se praecipitem iaceret. Defensio, 480
174
retratar-se, dado a última palavra no debate. E, se suas doutrinas não foram compreendidas
nem divulgadas, relatos de testemunhas oculares e do próprio Farel, representante de
Calvino, sobre a coroa de enxofre que foi posta sobre a cabeça do condenado e sobre o
“pormenor” de este ter sido queimado com lenha verde
172
devem ter se espalhado
rapidamente.
Calvino viu-se, então, obrigado a dar sua réplica, uma vez que “muitos foram
infectados por esta peste” (multos esse tabe ista infectos). Ele, que havia tido o cuidado de
pedir conselho a todas as “cidades irmãs” reformadas sobre a condenação do réu à morte,
sabia que não havia, em terras convertidas à Reforma, nenhuma voz importante que se
levantasse contra ele, ainda que, ao lado dos “homens justos e modestos(aequi et modesti
homines) sempre houvesse aqueles que não se uniam a ele “de boa vontade” (mihi libenter
subscribent). Escreveu, pois, sua Defensio contra os prodigiosos errores Michaeli Serueti,
publicada em fevereiro de 1554. E, não obstante a existência de opositores, a que sempre de
alguma forma venceu ou subjugou, Calvino foi o ministro de Genebra até sua morte, em
1559.
Mas, em meados de 1554, um panfleto anônimo começa a circular por Genebra.
Como é freqüente em situações de censura, sua propagação dava-se por meio de cópias
manuscritas
173
, traficadas com grande perigo para seu portador. Seu título: Contra Libellum
Calvini in quo ostendere conatur Haereticos iure gladii coercendos esse. Seu conteúdo,
assim como seu título, é uma refutação em regra ao libelo de Calvino. Sua técnica é simples e
brilhante: citar um trecho da Defensio e dar-lhe réplica imediata, como um diálogo. Assim,
faz Calvino “falar” por meio da reprodução ipsis litteris de sua defensio e, em seguida, rebate
ponto a ponto, por intermédio de uma “personagem” chamada Vaticanus. Tudo o que
Calvino afirmara com toda convicção é, assim, desconstruído pelo autor do panfleto, que não
apenas vai negar o direito de condenar alguém à morte por questões religiosas, como vai,
pela primeira vez na Europa cristã, afirmar o direito à liberdade de consciência.
172
A lenha verde”, que demora a queimar, foi considerada mais uma crueldade contra o u, e tem alimentado
a imaginação de muitos. Ángel Alcalá escreveu mesmo um roteiro cinematográfico narrando o processo e a
execução, chamado Servet y el leño verde. Em 1984, aliás, a TVE espanhola filmou, com grande riqueza de
detalhes, uma minissérie sobre a vida de Servet chamada La Sangre y la Ceniza, com Juanjo Puigcorbé no papel
principal.
173
A primeira edição impressa é de 1612.
175
A discussão sobre a punição dos hereges tem na fogueira de Miguel Servet seu marco
inaugural, e atinge seu ponto mais alto nessa refutação ao libelo de Calvino, num autêntico
duelo travado entre os dois lados adversários nesse embate em que pela primeira vez no
Ocidente cristão se defendeu o direito à liberdade de pensamento em questões de religião.
Seu autor, Sébastien Castellión (o grande humanista que havia sido professor de grego em
Genebra, mas que, tendo desafiado Calvino, foi por este reduzido ao desemprego e ao
ostracismo), vivia exilado em Basiléia, em tal estado de indigência que existe até mesmo a
versão de que teria morrido de fome. Ainda assim, redigiu outros livros a favor da
tolerância
174
, prenunciando em mais de dois séculos a Déclaration des Droits de l'Homme
estabelecida na Revolução Francesa, a qual, por sua vez, resultou, em outro século de
enantiodromias, na Declaração Universal de Direitos Humanos, proclamada no dia 10 de
dezembro de 1948 pelas Nações Unidas, dentre os quais figura o artigo 18, que garante que
“todo homem tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião”.
175
174
De haereticis, an sint persequendi, & omnium quomodo sit cum eis agendum, doctorum vivorum tum
veterum, tum recentiorum sententiae. Liber hoc tam turbulento tempore pernecessarius, & cum omnibus, tum
potissimum principibus & magistratibus ultissimus, ad discendum, quod nam sit eorum in re tam controversa,
tamque periculosa, officium, de 1554, conhecido também pelo título de Traicté des hérétiques; De haereticis a
civili magistratu non puniendis pro Martini Bellii farragine, adversus libellum Theodori Bezae libellus Authore
Basilio Montfortio, de 1555; e De arte dubitandi et confidendi, ignorandi et sciendi, de 1563.
175
Article 18: Everyone has the right to freedom of thought, conscience and religion; this right includes
freedom to change his religion or belief, and freedom, either alone or in community with others and in public or
private, to manifest his religion or believe in teaching, practice, worship and observance.
176
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