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INSTITUTO DE ARTES DA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
JÚLIO CEZAR GIUDICE MALUF
AFINANDO DIFERENÇAS : O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
ARTÍSTICA DO CORAL CÊNICO CIDADÃOS CANTANTES
1996 2004
São Paulo
2005
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1
JÚLIO CEZAR GIUDICE MALUF
AFINANDO DIFERENÇAS : O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
ARTÍSTICA DO CORAL CÊNICO CIDADÃOS CANTANTES
1996 2004
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho, Campus de São Paulo, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Música (Área de concentração: Educação Musical)
Orientador: Prof. Dra. Marisa Trench de
Oliveira Fonterrada
São Paulo
2005
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2
________________________________________________________________________
Maluf, Júlio Cezar Giudice.
m261a
Afinando diferenças : o processo de construção artística do Coral Cênico Cidadãos
Cantantes 1996 2004 / Júlio Cezar Giudice Maluf. São Paulo, 2005.
382 f. : il.
Orientador: Prof. Dra. Marisa Trench de Oliveira Fonterrada
Dissertação - Mestrado em Música (Área de concentração: Educação Musical) Instituto de
Artes Universidade Estadual Paulista UNESP, São Paulo.
1. Coral. 2. Processo de criação musical. 3. Arte cênica. 4. Políticas públicas e inclusão
social. 5. Saúde mental.
CDD 784.2
3
Banca Examinadora
________________________________
________________________________
________________________________
4
RESUMO: Nesta pesquisa investiga-se a atuação do Coral Cênico Cidadãos Cantantes, grupo
vinculado à ONG SOS Saúde Mental, Ecologia e Cultura que conta com o apoio técnico do
CECCO Centro de Convivência e Cooperativa Parque Ibirapuera, ligado à Coordenadoria de
Saúde de São Paulo Subprefeitura Vila Mariana.
Criado em 1992 como desdobramento das
atividades do CECCO, visava atingir um grupo heterogêneo pelo interesse na construção artística, que
reunisse portadores de sofrimento mental, pessoas marginalizadas ou excluídas socialmente, e pessoas
da população em geral, tendo sido estabelecido como local de trabalho o
Centro Cultural São Paulo
(CCSP).
A importância da pesquisa se dá, tanto do lado da produção artística, buscando ressaltar as
diferentes condutas musicais escolhidas pelo grupo, quanto do lado terapêutico e social, na relevância
deste trabalho para a vida das pessoas com ele envolvidas, sejam técnicos ou freqüentadores,
colaborando assim, para a construção de uma sociedade que possa lidar melhor com suas diferenças.
A pesquisa se fez pelo desejo de se percorrer um caminho de descobertas dos sentidos existentes no
trabalho realizado pelo Coral, a partir do enfoque dado à sua história, produção artística e
constituição como grupo heterogêneo. A leitura da experiência do Coral deu-se à luz de algumas
idéias de Foucault a respeito do contexto histórico que permitiu que loucura e doença estivessem
definitivamente associadas, e da conformação do conceito de biopolítica, que propõe uma
sociedade na qual o controle, a categorização e a vigilância estão cada vez mais presentes. A arte se
apresenta, neste contexto, como forma de resistência a esse biopoder, por sua possibilidade de (re)-
criação, singularização e questionamento de normas instituídas. Realizada com observação
participante, a pesquisa seguiu os passos assinalados por J. M. Pais tendo a proposta metodológica
de estudos da Vida Cotidiana como alavanca do conhecimento. Esta metodologia norteou a recolha
dos dados, a aplicação de entrevistas e posterior análise do material. Para se discutir a respeito da
interface possível entre canto coral, arte e saúde na contemporaneidade, utilizou-se das idéias de
Samuel Kerr, Ana Mae Barbosa, Elizabeth M. F. Lima e Peter P. Pelbart. Este estudo recupera o
sentido da arte como um atributo humano capaz de transformar atitudes, lugares do saber, lugares
de existência e, por conseqüência, capaz de alterar a qualidade de vida. A prática musical em
grupos que apresentam esse perfil, mostra-se, portanto, não possível, como instigadora, para se
pensar novas possibilidades para o Canto Coral, além de novos agenciamentos relacionais e
territórios de existência.
PALAVRAS- CHAVE: Coral; Processo de criação musical; Artes nicas; Políticas públicas e
inclusão social; Saúde mental.
5
ABSTRACT: In the conducted research is analyzed the performance of Theatrical Choral Cidadãos
Cantantes (Singing Citizens), a group attached to the NGO SOS Saúde Mental, Ecologia e
Cultura (SOS Mental Health, Ecology and Culture) which counts with technical support from
CECCO Centro de Convivência e Cooperativa Parque Ibirapuera (Convivence Center and
Cooperative Ibirapuera Park), connected to Coordenadoria de Saúde de São Paulo Subprefeitura
Vila Mariana. Created in 1992 as an extension of CECCOs activities, it focused on a
heterogeneous group by interest on artistic construction, which could gather people suffering from
mental illness, marginalized or socially excluded, and others from general population, having been
established as a workplace Centro Cultural São Paulo. The importance of such research is given,
on one hand, by their artistic production, looking to stress the distinct musical procedures chosen by
the group; and also by the therapeutic and social aspects, its relevance and effects on the lives of the
several different people involved, whether they were technicians or attendants, contributing, this
way, to the construction of a society better prepared to deal with its own differences. The research
was conducted by the desire to walk a course of discoveries of the meanings that are inherent to the
work developed by the Theatrical Choral through the focus given on its history, artistic production
and constitution as a heterogeneous group. The reading of the Corals experience took place in light
of some of Foulcaults ideas regarding historical context that allowed for the definite association of
madness and illness, as well as the conformation of the concept of biopolitics, which proposes a
society in which control, categorization and vigilance are more and more present. Art presents
itself, in this context, as a means of resistance to this biopower, due to its possibility of (re)-
creating, signalising and questioning the established rules. Conducted by participating observation,
the research has followed in the footsteps indicated by J. M. Pais using the methodological
proposition of Studies on Everyday Life as leverage to knowledge. This methodology guided the
data gathering, interview application and subsequent analysis of the material. To discuss the
possible interface between choral singing, art and heath on contemporaneity, the ideas of Samuel
Kerr, Ana Mae Barbosa, Elizabeth M. F. Lima and Peter P. Pelbart were used. This study recovers
the sense of art as a human attribute capable of transforming attitudes, knowledge spaces, existence
spaces and, as a consequence, its also able to alter ones quality of life. Musical practice in groups
who present this profile installs itself, therefore, not only as possible, but instigative in fomenting
new possibilities for choral music, new establishment of relations and existence territories.
KEYWORDS: Choral; Musical creation process; Scenic Arts; Public Politics and social inclusion;
Mental Health.
6
Para Cris, por me ajudar a
olhar (Contigo aprendí, a ver la luz
del otro lado de la luna...) e para
Rebeca, fruto desse olhar.
7
AGRADECIMENTOS
Momento importantíssimo e difícil dos agradecimentos... Como agradecer a todos que
direta ou indiretamente colaboraram nesse percurso de trabalho e de vida? Será que não
esqueço ninguém? Inevitavelmente cometi injustiças que peço, de antemão, que perdoem.
Para a realização dessa empreitada, foi fundamental o auxílio de muitas pessoas, e, não
fosse dessa maneira, não teria conseguido levar a cabo o projeto. Vamos a eles:
Aos meus pais, Jair (in memorian) e Martha, por acreditarem em minhas escolhas, pelo
suporte, e pelo exemplo de vida que passaram a seus filhos e netos.
À Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, incansável e inquieta pensadora, que me recebeu
com carinho e soube me orientar nos difíceis momentos de elaboração dessa dissertação.
Obrigado pelo incentivo para que eu pudesse ir além do que achava que podia.
À Dorotéa Machado Kerr e Elizabeth M. F. de Araújo Lima que participaram do exame de
qualificação e que, com generosidade e precisão, iluminaram um caminho, o qual foi
definitivo para o desenvolvimento e conclusão do trabalho.
À Claudete Ribeiro, pelo interesse e primeiras sinalizações para a viabilização da pesquisa
com interface entre arte e saúde.
Aos Samuel Kerr (sempre grato por seus ensinamentos musicais e humanos...) e Celso
Fernando Favaretto, por serem professores que escutam, e dessa maneira, pude me
beneficiar de suas experiências e compartilhar idéias, às quais foram lembradas durante
todo o caminho percorrido.
À Maria Apparecida F. Marcondes Bussolotti, mais que revisora foi leitora atentíssima.
Ajudou a orientar a pesquisa em sua fase final com palavras de apoio e contribuições
inestimáveis, transmitidas com competência, firmeza e carinho.
Aos professores e aos funcionários do Curso de Pós-Graduação e da Biblioteca do
Instituto de Artes - Unesp, com os quais muito aprendi durante essa jornada.
8
À Eliane Pfeifer , pelo auxílio na execução do trabalho no computador; Cristiano Ribeiro e
Jardel Giudice Maluf, pela seleção e produção de imagens para a confecção do DVD do
Coral; Reinaldo Nascimento, Alice Aparecida Silva Souza e Carlos Eduardo Ferreira
(Michael), no resgate da memória desses 13 anos de existência do grupo; Carlos Rennó,
Sonia Parma, Carlos Villalba e Walter Louzan, por cederem suas fotos para que fossem
incluídas no trabalho; aos funcionários do CCSP, pelo carinho e respeito ao Projeto
Cidadãos Cantantes e colaboração em vários momentos da pesquisa; aos funcionários do
CECCO-Ibirapuera, em especial Clara Kuroda e Juçara Gomes, pelo auxílio na recolha dos
dados; à Renata Felício, Claudia Segura, Adriana Davanzzo e Guilherme Fonterrada, pelo
apoio técnico; à Adriana e Fran, pelo apoio amoroso ao cuidar de Rebeca durante a fase
final do trabalho e a Marinalva do Espírito Santo, pelo afeto, amor e ajuda; aos integrantes
do Canto Porque Gosto, em especial Camila Pedral Sampaio e Ivone Dias Gomes, pelas
dicas e observações, mas a todos, pela licença entendida e consentida, e à Suzana Salles,
pela substituição temporária na condução do grupo; aos professores e Diretoria da EMIA,
pelo apoio e incentivo e, em especial, Rosa Comporte, pela amizade e braço solidário, e
Marina Marcondes, pelas sugestões como veterana na academia.
Agradeço a disponibilidade dos entrevistados, entre eles, os cantores: Reinaldo, Ivan,
Márcio, Herbert, Cristiano, Michael, César, Vitor, Zina, Alice, Hélio, Cíntia, Fabiana,
Chico, Daniele, Margarida, Hudson, Célia, Rute, Janaína, Lourdes, Ieda, Alexandre Brito;
os funcionários do CCSP: Nilse Ferreira, Francisco Santos e Luciana Mantovani; os ex-
regentes do grupo: Roberto Anzai e Elisa Pasqualini (Milly) e a ex-integrante da equipe
técnica, Márcia Novaes. Estas pessoas dedicaram horas de suas vidas para a reflexão de
vínculos e sentidos que viam nesse trabalho. Agradeço também a equipe técnica do
Projeto Cidadãos Cantantes: Tatiana Bichara, Thaia Perez, Clara Kuroda e Nei
Pelizzon, pela mesma razão, mas, acima de tudo, pelo compromisso e cumplicidade que
temos em relação a esse Projeto. Agradecimento especial a Isabel Cristina Lopes, minha
companheira de todos os momentos, idealizadora e coordenadora do Coral, pelo apoio
incondicional, correções, sugestões e iluminações de percurso.
Por fim, devo agradecer a todos os participantes do Coral Cênico Cidadãos Cantantes, que
sem suas inquietações, desejos, criações e vontades de vida, nada disso seria possível.
9
Para que então existo?
Pergunto assim com espanto,
Se a minha voz e o meu grito
Ninguém sequer ousa ouvir.
Só vivo triste a pensar,
Pois este meu triste pranto
Ninguém escuta eu chorar.
Se digo qualquer coisa é à toa
Ninguém escuta o que digo.
Quando o meu grito entoa
No espaço fica perdido.
Falam até que sou louco
e que no mundo não sou ninguém
De mim até fazem pouco
E me tratam com desdém.
Mas se pararem um pouco
e me prestarem atenção
Verão que não sou nada louco
E tenho bom coração.
Posso até ser diferente
Com meu jeito de ser,
Mas ficaria contente
Se me deixassem viver.
José Ivan de Lima
(Integrante do Coral C
ênico Cidadãos Cantantes)
10
SUMÁRIO
LISTA DE QUADROS
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE ABREVIATURAS
INTRODUÇÃO 15
1. PRELÚDIO - O CENTRO DE CONVIVÊNCIA E COOPERATIVA E OS CIDADÃOS CANTANTES 31
O CENTRO DE CONVIVÊNCIA E COOPERATIVA 32
VÍNCULOS INSTITUCIONAIS 32
VÍNCULO COM A REFORMA PSIQUIÁTRICA E A LUTA ANTIMANICOMIAL 34
IMPLANTAÇÃO DO CECCO EM SÃO PAULO 40
OBJETIVOS E PRINCÍPIOS DO CECCO 42
O CORAL CÊNICO CIDADÃOS CANTANTES 51
HISTÓRICO 51
OBJETIVOS DO CORAL 63
PERFIL DOS PARTICIPANTES 69
ORGANIZAÇÃO 72
RELAÇÃO CORAL, CECCO E A REFORMA PSIQUIÁTRICA 83
2. A LINGUAGEM ARTÍSTICA DO CORAL CÊNICO 89
PROPOSTA 90
REPERTÓRIO 92
PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO REPERTÓRIO E ROTEIRO DE PROGRAMAS 92
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO PROGRAMA DE 2004 98
COMPOSIÇÕES E POESIAS ORIGINAIS DE SEUS INTEGRANTES 107
ARRANJOS E POSSIBILIDADES MUSICAIS: AFINANDO DIFERENÇAS 123
ENSAIOS E APRESENTAÇÕES 130
ORGANIZAÇÃO DO ENSAIO 130
INTEGRAÇÃO DE LINGUAGENS: MÚSICA E CENA 131
MARGENS DO ENSAIO 133
APRESENTAÇÕES 134
DESDOBRAMENTOS 138
OS ENCONTROS PELA CIDADANIA PLENA 138
EXPOSIÇÕES FOTOGRÁFICAS 141
AS OFICINAS DE DANÇA E DE TEATRO 142
3. HETEROGENEIDADE - ANÁLISES E ENTREVISTAS 147
A HETEROGENEIDADE DENTRO DO PROJETO CIDADÃOS CANTANTES 148
11
GUIÃO - ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS 150
CRITÉRIOS E FORMA DE APLICAÇÃO DO QUESTIONÁRIO 150
ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS 151
CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS FREQÜENTADORES 153
ESTUDO DA LOCALIDADE ONDE MORA O FREQÜENTADOR 174
ANÁLISE DAS ENTREVISTAS INDIVIDUAIS 191
CRITÉRIOS DE ESCOLHA DOS CANTORES 191
ANÁLISE DE CONTEÚDO 200
ANÁLISE DA ENTREVISTA COLETIVA 250
CRITÉRIOS 250
ANÁLISE 251
4. POSLÚDIO - ARTE E DIFERENÇAS 259
DIFERENÇAS, PODER SOBRE A VIDA E O CORAL CÊNICO 260
AS IDÉIAS DE FOUCAULT - A EXCLUSÃO E O CONTROLE SOCIAL 262
EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS QUE DIALOGAM COM O PROJETO DO CORAL 274
ARTE E DIFERENÇAS NA REGÊNCIA DO CORAL CÊNICO CIDADÃOS CANTANTES 296
CONSIDERAÇÕES FINAIS 309
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 320
ANEXOS 331
12
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Identificação pessoal dos freqüentadores quanto à idade 153
Quadro 2 Identificação quanto ao gênero 153
Quadro 3 Identificação do estado civil 154
Quadro 4 Grau de escolaridade da totalidade dos entrevistados 155
Quadro 5 Até que série do ensino Fundamental cursou 156
Quadro 6 Formação Profissional 158
Quadro 7 Situação de trabalho 159
Quadro 8 Situação de moradia 160
Quadro 9 Situação familiar de moradia 160
Quadro 10 Situação de sustentação meios 161
Quadro 11 Condição de saúde ausência ou não de tratamento 163
Quadro 12 Condição de saúde tipo de tratamento 163
Quadro 13 Condição de saúde Atendimento 165
Quadro 14 Tipo de atividade freqüentada (C- coral, D- dança, T- teatro) 166
Quadro 15 Tempo que freqüenta a atividade 167
Quadro 16 Aproximação com o Projeto 168
Quadro 17 Expectativas quanto ao desenvolvimento pessoal 170
Quadro 18 Expectativas quanto ao aprofundamento
nas linguagens artísticas e profissionalização 172
Quadro 19 Expectativas em relação ao grupo
(e não ao desenvolvimento pessoal) 173
Quadro 20 Bairros de origem dos freqüentadores
Região Central localização 178
Quadro 21 Localização dos bairros de origem Região Sul 179
Quadro 22 Bairros, freqüentadores e localização Região Leste 180
Quadro 23 Bairros de procedência Região Oeste localização 181
Quadro 24 Bairros e quadrantes de origem Região Norte 181
Quadro 25 Distâncias percorridas da casa ao CCSP 182
Quadro 26 Regiões que apresentam menores índices de privação social 185
Quadro 27 Regiões que apresentam maiores índices de privação social 185
13
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Prelúdio - O CECCO e os Cidadãos Cantantes 31
Figura 2 A linguagem artística do Coral Cênico 89
Figura 3 Foto de José Ivan fazendo um solo de gaita 110
Figura 4 Partitura de Quero o teu xodó, José Ivan de Lima 111
Figura 5 Foto de Dirceu cantando o Batuque na Latinha 112
Figura 6 Partitura de Batuque na latinha, Dirceu Borges 113
Figura 7 Foto de Márcio cantando Na seca 114
Figura 8 Partitura de Na seca , Marcio Luiz Oliveira 115
Figura 9 Partitura de Luz, de Márcio Luiz Oliveira 123
Figura 10 Partitura de Da Maré, Ricardo Breim e Luiz Tatit 127
Figura 11 Partitura do arranjo de Azul da cor do mar, Tim Maia 128
Figura 12 Heterogeneidade Análises e entrevistas 147
Figura 13 Mapa da localidade de moradia dos freqüentadores 175
Figura 14 Mapa da Cidade de São Paulo
subdividida em regiões e em quadrantes 176
Figura 15 Mapa da vulnerabilidade social 187
Figura 16 Poslúdio Arte e diferenças 259
Figura 17 Ilustração: Foucault , saber e poder. 262
Figura 18 Foto do passeio da serpente no Pq. do Ibirapuera 319
14
LISTA DE ABREVIATURAS
CCSP Centro Cultural São Paulo
CECCO Centro de Convivência e Cooperativa
CEFOR Centro de Formação dos Trabalhadores da Saúde
CRP Conselho Regional de Psicologia
ELT Espaço Lúdico Terapêutico
EMIA-SP Escola Municipal de Iniciação Artística de São Paulo
HD Hospital-Dia
HSPM Hospital do Servidor Público Municipal
IPUSP Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
LAPSO Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social
MTSM Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental
NCC Normatização das Ações nos Centros de Convivência e Cooperativa
Municipais
PAS Plano de Atendimento à Saúde
SUS Sistema Único de Saúde
UBS Unidade Básica de Saúde
UNESP Universidade Estadual Paulista
USP Universidade de São Paulo
ONG Organização Não-Governamental
PUC Pontifícia Universidade Católica
15
____________
INTRODUÇÃO
16
IMPRESSÕES
Manhã de agosto de 1996. Segunda-feira no Centro Cultural São Paulo. Que significado
tem a atividade do Coral Cênico da Saúde Mental
1
para você?
2
- Zé Ivan
É minha própria vida. Antes andava sem rumo, sem sonhos e sem identidade. Hoje é
diferente. Aqui descobri talentos próprios, pois sou poeta, compositor e adoro apresentar
minhas músicas. Escrevi um livro com mais nove autores, que se chama o Vôo das
Borboletas. Eu me sinto muito produtivo por isso. Viva o Coral. Eu preciso dele para
viver, eu amo a vida.
- Cida Mira
Há dois anos no Coral. Um lugar para mim, onde eu posso cantar, brincar, dizer
minhas poesias e até chorar quando tenho vontade. Me sinto livre e às vezes me acho
artista de verdade...
- Dirceu
O Coral da Saúde mental é como a embaixada da paz contra os manicômios
- Michael
Há 4 anos no coral. O coral é muito importante. Gosto muito de cantar. Gosto do
Centro de Convivência e da nossa convivência.
- Márcio
1995, quando ruim da cabeça entrei no Coral, desligado... mas após alguns meses me
1
Este era o nome que o Coral Cênico Cidadãos Cantantes tinha em 1996.
2
Cristina Lopes preparando a participação do Reinaldo (cantor do coral) no Sedes Sapientiae - dia
17/08/1996 - no debate dos candidatos a prefeito de São Paulo. A discussão seria sobre propostas dos
candidatos na área da Saúde Mental e Reinaldo levaria uma visão do Coral Cênico para colaborar neste
debate.
17
enturmei. Amei e permaneci inteiro, porque antes de começar no Coral, era nervoso,
sofria na rua. Agora possuo amor, amizade, graça e alegria. Eu danço, eu canto, fiz um
livro com outros autores...
Agradeço de todo o coração.
- Mario (Marião)
Gosto dos ensaios e das apresentações, porque eu conheço mais pessoas. E eu gosto
de receber parabéns pelas apresentações.
- Cíntia (Namorada do Marião)
Conheci meu menino através do Coral. Luz, carinho e amor. Gosto das viagens.
- Luiz
Aqui a gente tem liberdade e bastante amizade. Um lugar de liberdade. Aqui você
pode andar sem ninguém ficar te criticando.
- José Ivan (discussão sobre preconceito):
Quando eu cheguei aqui eu lembrei de minha infância, do jeito que meus avós e
parentes me tratavam. Aqui fui bem recebido. Nunca digo que é um Coral Cênico de
Saúde Mental... mesma coisa o livro, se aparecer alguma história de saúde mental daí
ninguém quer ver o livro mais. Tive preconceito a na família... Minha família é o
Coral...antes eu queria a morte, mas aqui encontrei pessoas que me entendiam e davam
valor à minha vida. Aqui me descobri ser humano. Eu não acreditava mais em mim.
Antes não tinha esperança, não adiantava fazer um plano. Hoje procuro levar a frente.
Venho buscar força aqui no Coral.... Eu não tenho estrutura para deixar o Coral ainda.
Descobri no Coral que o ser humano foi feito para viver em comunhão, amor
compreensão e entendimento. Aqui encontrei isso.
- Jael
Uns ajudando os outros... Aqui todo mundo te
m um pouco de loucura. Todos fazem o
que tem vontade. Eu aprendo com as coisas boas e ruins.
18
TEMA
O Coral Cênico Cidadãos Cantantes existe desde 1992 e trabalho como regente do
grupo desde janeiro de 1996. Ao iniciar esse trabalho, senti-me ao mesmo tempo
seduzido e desafiado diante de um trabalho instigante, novo e intenso de energia e
afetividade. Na época, trazia na bagagem experiências com outros grupos corais e,
particularmente, a vivência gratificante como professor de música para crianças na
Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA-SP).
Quando fui convidado a participar desse projeto, encontrei um grupo de pessoas
muito sensíveis e disponíveis para o trabalho. Um pequeno estímulo e muitas respostas.
Sem dúvida tratava-se de um grupo diferente, que propunha um trabalho pela arte
(especificamente a música pelo canto coral), juntando pessoas com diferentes histórias,
muitas delas marcadas por um quadro de sofrimento (deficiência física, mental, pessoas
com história psiquiátrica, desempregados) com pessoas que, com conhecimentos técnicos
em suas áreas, estavam ali para serem facilitadoras de um processo de reinserção destes
indivíduos dentro da sociedade. As profissionais que compunham essa equipe técnica
trabalhavam no sentido de não negar as diferenças contidas no grupo, valorizando as
qualidades daqueles indivíduos por suas histórias, seu cotidiano, seus delírios e,
principalmente, seus desejos e sonhos, apostando com isso numa mudança de
pensamento em relação à diferença em nossa sociedade.
É como extensão desse primeiro momento de contato com este grupo e seu
processo de construção artística que, hoje, passados quase dez anos, me dedico a estudar
os sentidos dessa produção e suas singularidades.
19
Esse estudo buscará responder as seguintes perguntas: como surgiu o grupo? quais
são os seus pressupostos? qual o contexto político que proporcionou a sua invenção? qual
o perfil dos freqüentadores deste grupo? para que esse coral existe? que sentido ele tem
na vida de cada um e na sociedade?
Essa busca de sentido percorre o trabalho todo. Não se sabe ainda se haverá uma,
nenhuma ou várias respostas, mas a procura deverá revelar mais que a pretensa
explicação, pois, é na tentativa que se faz a vida, uma vida que é vivida no dia-a-dia e que
busca uma afinação de si com o mundo... Uma afinação que levará em conta o seu
contexto (pois sempre se haverá de compreender a afinação em relação a um determinado
contexto) da diversidade, da convivência cultural e da tolerância.
O Coral Cênico é um grupo que se propõe a trabalhar com um público
heterogêneo e, portanto, não composto somente de pessoas em vulnerabilidade social ou
de saúde, que nasce dentro da política pública de São Paulo, numa associação entre
Secretarias Municipais (Saúde e Cultura) e a ONG SOS -Saúde Mental, Ecologia e
Cultura, tendo como local de ensaios o Centro Cultural São Paulo (CCSP).
A pesquisa se justifica, assim, pela singularidade da proposta enfocada no estudo,
projeto intersetorial com grupo heterogêneo que atua em local público e cultural; por
existirem poucos estudos que valorizem a produção artística do portador de sofrimento
mental, em especial quando se trata de música; e pela raridade ainda maior de trabalhos
que contemplam grupos mistos (heterogêneos), como ocorre com o grupo enfocado neste
estudo, pois em geral, costuma-se separar as pessoas em categorias, buscando-se evitar a
convivência com o outro, com o que é diferente e, por conseguinte, com o estranho. O
Coral Cênico Cidadãos Cantantes, como se verá, acompanha a filosofia do órgão ao qual
20
se vincula como parceiro o Centro de Convivência e Cooperativa (CECCO), que
estimula a inclusão e o convívio com o diferente em todas as ações que desenvolve.
Acredita-se que é na convivência dos diferentes que se a grande singularidade
desse projeto, e que essa condição influi tanto no campo da criação, quanto no campo
social e por conseqüência, terapêutico.
OBJETIVOS
Entre os objetivos da pesquisa, destaca-se, em especial, a possibilidade de trazer à
tona a produção do grupo, detectando as suas principais características, a singularidade
dessa produção e revelar a importância e os sentidos do trabalho para os próprios
integrantes. Esse estudo pode contribuir para que se lance luzes a respeito de condutas e
procedimentos na condução de grupos heterogêneos que inclua portadores de sofrimento
mental, defendendo a idéia de que a arte como linguagem possa auxiliar as pessoas a se
expressarem, dando vazão a uma voz e um pensamento que, pelo estigma imputado à
loucura, acabou por ser abafada e silenciada em alguns casos mais extremos, ou vigiada e
controlada, como socialmente se faz, amparado numa razão médica.
Acredita-se também que a retomada dessa voz possa interferir no aperfeiçoamento
da convivência com outras pessoas e no aprendizado da convivência com a diferença.
Enfatiza-se, porém, que a atividade em estudo, embora tenha sua originalidade, não é a
única realizada com e para portadores de sofrimento mental, mas segue uma esteira de
procedimentos em que arte e saúde mental se encontram, para benefício dos integrantes
de diferentes grupos. Pretende-se, na pesquisa, portanto, conhecer outros trabalhos que
21
também fazem essa interface arte/saúde mental, e que suscitem diálogos com a
experiência do Coral Cênico.
METODOLOGIA
No campo especificamente musical pretende-se descrever e analisar o processo de
trabalho do grupo quanto à atividade musical, rotina de ensaios, construção de repertório
e apresentações, assim como revelar condutas possíveis do regente quanto a
procedimentos técnicos, atitudes, hábitos e estratégias para a construção dessa produção.
Além dos dados mencionados, levantados a partir de observação participante e
análises de documentação do próprio grupo, do Centro de Convivência e Cooperativa
(CECCO) e do Centro Cultural São Paulo (CCSP), entidades parceiras nesse projeto,
recolheram-se depoimentos dos integrantes do coral, por meio de entrevistas realizadas
com cantores e equipe técnica orientadora, que se somaram aos registros audiovisuais do
grupo, recortes de jornais, revistas e de outra documentação a que se teve acesso.
Para se discutir as questões referentes à exclusão social do diferente e formas de
resistências a essa exclusão, apoiou-se em alguns escritos de FOUCAULT, Doença Mental
e Psicologia (
2000
) e Historia da Loucura (1987), assim como de textos que trabalham o
conceito de biopolítica (como pensado por Foucault) na contemporaneidade (LIMA, 2003;
PELBART, 2003).
Juntando-se a este olhar, de caráter externo e cunho teórico, um outro olhar, de
dentro do grupo, também se fez presente. O objetivo foi gerar um instrumental para
análise dos significados existentes na atividade do Coral, construído a partir da ótica dos
22
seus integrantes em relação ao seu próprio cotidiano, no que tange à construção de sua
produção artística, rotina de ensaios, apresentações, relacionamentos humanos e
desdobramentos nos campos artístico, social ou terapêutico.
Apoiado na sociologia da vida cotidiana como linha metodológica para esse estudo,
utiliza-se como autor de referência o sociólogo José Machado Pais e sua proposta de
análise e construção de sentidos a partir da observação direta do cotidiano das pessoas
envolvidas no estudo.
A escolha da sociologia da vida cotidiana como metodologia se deu pela
possibilidade de trabalhar com as histórias de vida dos freqüentadores do Projeto, por
meio de entrevistas e da observação participante do pesquisador.
A abordagem sociológica da vida cotidiana, como colocada por esse autor,
ajudará na construção de sentidos e significados para este trabalho, partindo da análise e
interpretação das entrevistas, do questionário, assim como também, da atividade
cotidiana do coral. (PAIS, 2003a e 2003b).
Os sentidos e significados existentes no trabalho do Coral Cênicos Cidadãos
Cantantes foram buscados dentro do próprio processo de construção artística do grupo,
delimitado no período entre 1996 e 2004, assim como também, pelo confronto de
diferentes pontos de vista em relação ao objeto, aproximando-se de um olhar
fenomenológico para o estudo. Levando-se em conta que cada olhar carrega toda a
experiência e vivência de quem olha, e que é a partir desse olhar que esse objeto se recria
e adquire existência (MERLEAU-PONTY, 1980; MANGUEL, 2001), buscou-se a diversidade
destes olhares, pela recolha de entrevistas com cantores (9 entrevistas individuais e uma
coletiva), com equipe técnica (3 da área da saúde e 2 da área artística), com ex-regentes
23
do grupo (2 entrevistas), e com funcionários do CCSP (3 entrevistas, sendo uma por e-
mail), totalizando aproximadamente 22 horas de gravação realizadas em fitas-cassete.
3
Estas entrevistas foram sumarizadas e submetidas à análise qualitativa de seu conteúdo.
Para se compreender como se configura a heterogeneidade no grupo em estudo,
aplicou-se um questionário a 48 freqüentadores do Projeto, denominado Guião (PAIS,
2003a, p.88), cujos dados obtidos foram submetidos a uma análise quantitativa, a partir
das diferentes categorias levantadas, tais como: identificação pessoal, condição social e
de saúde, e expectativa para a atividade. Os dados objetivos recolhidos pelo Guião
tiveram uma análise quantitativa, enquanto os dados subjetivos contidos nas entrevistas
aprofundadas e na entrevista coletiva foram analisados qualitativamente.
Segundo PAIS, a coexistência entre dois procedimentos de pesquisa, um formal,
outro informal, um com enfoque quantitativo e outro, qualitativo, pode ser justificado
pela diferença na natureza dos dados coletados, e devem ser aplicados separadamente
(p.89).
Pretendeu-se, assim, obter um retrato mais fiel possível do perfil do público que é
atendido pelo Coral, e saber quais são os sentidos que este trabalho tem na perspectiva de
quem nele está envolvido.
PAIS propõe, pela sociologia do cotidiano, um olhar que possa unir a Sociologia, a
Antropologia e a Arte e que, pela lógica da descoberta, busque um saber indisciplinado
(não alinhado com a disciplina dos modelos tradicionais de investigação sociológica, pois
estes, segundo PAIS (2003a, p.19), servem, na maior parte das vezes, somente para
confirmar ou infirmar hipóteses colocadas antes da pesquisa começar).
3
Entrevistas individuais com cantores fitas 15, 16, 17, 20, 21, 23, 24 e 32; coletiva fitas 38 e
39; com equipe fitas 22, 33, 34, 35, 36 e 37; com ex-regentes fitas 25 a 28; com funcionários do
CCSP fitas 44 e 45.
24
O autor diz que a descoberta no cotidiano se dá com o pesquisador atuando como
um flâneur (passeante sem destino aparente), que tem uma atuação flutuante. Este será
seu instrumento metodológico: a observação flutuante com uma abordagem qualitativa e
que contenha uma concepção múltipla da realidade.
Para se trilhar o caminho metodológico da pesquisa qualitativa, com observação
participante, escolheu-se primeiramente descrever a composição do grupo e seu processo
de trabalho, para isso foi necessário um levantamento da memória do grupo quanto à sua
produção artística no período definido pela pesquisa. Para este levantamento, utilizou-se
de todo tipo de documento, escrito, gravado, ou imagético, além de conversas com
integrantes mais antigos do grupo. Os depoimentos, gravados e posteriormente
transcritos, com cantores, coordenadores (atuais e antigos) e funcionários do CCSP,
foram utilizados para nortear a busca de sentidos e significados para o trabalho.
Os depoimentos se configuraram como conversas informais partindo da questão
sobre os significados que cada um vê nessa atividade. Esses significados eram revelados
como conquistas, melhoras, dificuldades, encontros ou descobertas.
Segundo PAIS, na estratégia informal de pesquisa, as fases da investigação se
sobrepõem: a recolha da informação é determinada pela seleção de um problema e a
opção por uma teoria que possa estudar esse problema. A recolha da informação se inicia
antes das hipóteses, e a análise da informação é praticamente simultânea à sua recolha,
ocasionando uma reflexão sistemática. Para isso, alerta PAIS, é necessário penetrar nos
universos simbólicos de significação da gente que se estuda (p.88). Na estratégia
informal de pesquisa, as hipóteses aparecem no caminho, e podem, posteriormente, ser
testadas. A análise da informação aparece estreitamente associada às descrições culturais.
25
Dessa maneira, trabalhou-se, não partindo de hipóteses, mas como se tateasse em
um quarto escuro, a partir da observação participante, e do levantamento da memória do
grupo, por meio de documentos e registros vários (gravações em áudio e deos,
programas, jornais, revistas, fotos etc.).
Durante este processo, algumas hipóteses começaram a ser levantadas:
 O grupo é heterogêneo não só do aspecto saúde/doença, mas de muitos outros
aspectos.
 A produção do Coral é potencializada pela diversidade de perfis da qual se compõe.
 Estar num espaço público de cultura, faz que o trabalho se desloque do campo da
saúde e transite pelo da cultura.
 Nossa sociedade tem dificuldade em lidar com o outro (o louco/o diferente), portanto,
dá preferência a não ver, a não ouvir e a não o considerar em sua singularidade e
potência criativa.
 Quanto mais artístico o trabalho, maior seu alcance terapêutico e social.
 O perfil dos participantes foi ficando mais heterogêneo, conforme sua proposta se
ampliou, passando de um grupo vinculado à Luta Antimanicomial e às questões da
saúde mental, para um grupo que trabalha a construção de um processo artístico,
visando uma produção com as diferenças.
A partir dessas hipóteses, buscou-se responder às seguintes perguntas:
 Que condutas o regente tem a frente deste grupo? É diferente?
26
 Qual é a ressonância desse processo para as pessoas envolvidas nele?
 Qual a importância da apresentação para os participantes?
Para a realização da análise de conteúdo das entrevistas, alguns passos foram
trilhados rumo à realização da difícil tarefa de fazer falar o material recolhido, e assim
decifrar o entrevisto (PAIS, 2003a, p.104)
Mantendo-se nos passos sinalizados por PAIS, foi feita uma sumarização das
entrevistas, buscando-se separar e selecionar os assuntos abordados. Segundo o autor,
esta sumarização da informação decorre de um trabalho analítico (p.105).
As entrevistas mais diretivas (advindas do Guião) foram tabuladas e organizadas
para a codificação, para efeito de análise de conteúdo, com toda a perda que isso implica,
porém, as entrevistas aprofundadas não foram tabuladas, tendo sido analisadas cada qual
em sua complexidade e singularidade, para, posteriormente serem confrontadas com
outras entrevistas que contivessem assuntos afins.
Alerta PAIS (2003
a) que
a análise do conteúdo é um estilhaçar dessa unidade encadeada
[do discurso do depoente]; é um desvelar de sentido e um despedaçar
desse mesmo sentido; é uma seqüência de fragmentos cortados, um
esquartejamento da unidade de sentido que dá lugar, sub-repticiamente, a
outros sentidos (interpretativos). Como descodificar as falas? E o que
descodificar? (...) todas as tentativas de descodificação acabam numa
codificação. (p. 105)
Por isso, o autor diz que
27
toda a interpretação decifra e não decifra ao produzir, ao amontoar
linguagens, deixando-se infinita e incansavelmente atravessar por elas
(...) interpretar requer captar não o sentido semântico [das palavras],
mas também a sua intencionalidade latente. (p.106)
PAIS aponta estratégias para o trabalho interdisciplinar no desvelamento dos
sentidos. A presente pesquisa está fundamentada na interdisciplinaridade, uma vez que se
buscou uma linha metodológica da área da Sociologia, e apoiou-se em teorias e idéias de
FOUCAULT, PELBART e LIMA, que transitam entre os campos da Filosofia, da Psicologia,
da Política e da Arte.
Buscaram-se, também, reflexões teóricas referentes à multiculturalidade na arte
que, segundo Ana Mae BARBOSA, nutre-se pelo interesse pelas manifestações estéticas
das minorias e pela idéia de arte como uma produção que deve ser estudada tendo-se em
vista seu contexto cultural (1998, p.11). Dessa maneira, procurou-se compreender o
enfoque dado à produção do Coral Cênico Cidadãos Cantantes como uma ação que quer
transcender a visão terapêutica ou social, para ser reconhecida como expressão artística,
no que esta pode apresentar como manifestação de linguagem e construção de realidade,
pois, como afirma PAIS, as linguagens, mais que meios de comunicação, são
instrumentos para construção da própria realidade (2003a, p.19). Por essa razão,
destaca-se a importância de conhecer as linguagens das pessoas ou do grupo que se
estuda.
LIMA (2003b) diz que o desejo da diferença é um desejo presente também na arte,
o que justificaria a presença da arte em trabalhos com grupos heterogêneos.
Entrar num processo de devir, e deixar-se levar por ele, está
ligado a um processo de singularização; implica seguir linhas de
28
diferenciação portadoras de potencias expressivas, entrar em estado de
experimentação, de exploração do meio, que é fundamental à criação
artística. (...). (p.70)
É no quanto esta atuação pode implicar transformações na maneira de ver as
diferenças, que a autora a relevância da aproximação entre os campos da arte e da
saúde.
A associação ao campo estético pode ser acompanhada do
desmanchamento ou do deslocamento da noção de invalidez, trazendo
positividade a certas formas anômalas de existência (...). Para nos lembrar
que a existência também se fora da razão, do mercado ou do valor
utilitário das coisas. (p.71)
ORGANIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO
A dissertação está dividida em capítulos, organizados da seguinte forma:
O capítulo 1, O CENTRO DE CONVIVÊNCIA E COOPERATIVA E OS CIDADÃOS
CANTANTES, enfatiza o contexto histórico e político que proporcionou o surgimento do
Coral, seus vínculos institucionais e princípios comuns com o Centro de Convivência e
Cooperativa (CECCO), uma vez que o Coral se iniciou como um desdobramento desse
serviço da prefeitura de São Paulo vinculado à saúde.
No capítulo 2, A LINGUAGEM ARTÍSTICA DO CORAL CÊNICO, se discorrerá a
respeito da produção artística do grupo e seu processo de trabalho, no período entre 1996
e 2004. Nesse capítulo, serão tratados especificamente: a proposta de trabalho do grupo,
29
em seus princípios e formas de articulação; o repertório; os ensaios e apresentações; os
desdobramentos advindos da atividade do coral, pontualmente, a realização dos
Encontros Musicais anuais no Centro Cultural São Paulo (CCSP), e a implantação das
oficinas de Teatro e Dança como parte do projeto do coral.
O Capítulo 3, HETEROGENEIDADE: ANÁLISES E ENTREVISTAS trata da análise dos
conteúdos entre-vistos nos depoimentos coletados em relação à produção e ao processo
de trabalho do grupo, na visão de seus integrantes. As análises estão divididas em 3
momentos: a análise dos dados de 48 freqüentadores do coral e das oficinas, coletados
por meio de questionário que teve por objetivo a caracterização do participante do
Projeto Cidadãos Cantantes no CCSP para poder-se avaliar o grau de heterogeneidade
do grupo; análise de entrevistas individuais com 9 cantores, buscando-se evidenciar como
estes cantores entendem e como se relacionam com o Projeto; e por fim, uma análise de
entrevista coletiva com os cantores do grupo problematizando a questão da arte no Coral.
Levou-se em conta as vantagens dessa técnica de entrevista com grupo focal, quanto ao
aprofundamento de um tema pela reflexão coletiva, como apontado por GASKELL (2004).
O capítulo 4, ARTE E DIFERENÇAS é dedicado a uma discussão teórica de questões
que envolvem a prática do Coral Cênico. Discute os conceitos de exclusão e controle da
vida pela lógica da biopolítica, e as formas de resistência possíveis diante desse quadro,
em especial com o levantamento de trabalhos que ligam Arte e Saúde Mental na
contemporaneidade. Nesse capítulo se abordará a questão da arte como linguagem e
principalmente, como potência de vida, a partir de diálogos da experiência do Coral
30
Cênico com outras experiências contemporâneas; as questões relacionadas à regência
neste grupo; e considerações a respeito dos caminhos trilhados na busca de sentidos para
a atividade do Coral.
31
________________________________________
1 PRELÚDIO - O CENTRO DE CONVIVÊNCIA E
COOPERATIVA E OS CIDADÃOS CANTANTES
FIGURA 1 Oficina de leitura no CECCO - Ibirapuera
32
O CENTRO DE CONVIVÊNCIA E COOPERATIVA (CECCO)
VÍNCULOS INSTITUCIONAIS
O Coral Cênico Cidadãos Cantantes foi criado como um desdobramento das
atividades desenvolvida pelos Centros de Convivência e Cooperativa (CECCO); é
importante, pois, esclarecer as origens e os pressupostos deste serviço ligado à Secretaria
Municipal de Saúde de São Paulo.
A iniciativa de se montar um Coral com usuários do CECCO no Centro Cultural
São Paulo se deu em 1992, durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1992) na prefeitura
de São Paulo, que, segundo a psicóloga sanitarista Cristina Lopes, reorientou a
dimensão de saúde pública na cidade dentro dos pressupostos do Sistema Único de Saúde
(SUS), ampliou e qualificou a rede de assistência, humanizando-a com ética e
resolutividade (LOPES, 1999, p. 144).
Esse vínculo institucional do Coral com o CECCO, porém, é interrompido durante
um período, em decorrência de mudanças drásticas e violentas na política de Saúde para a
cidade, época em que se deu a implantação do Plano de Atendimento à Saúde (PAS)
como forma de assistência à população, o qual, na visão de muitos funcionários da saúde,
tratava-se de um ato autoritário que causava um desmantelamento de vários
equipamentos, e, como conseqüência, trazia uma descaracterização nas funções originais
do CECCO, como informa GALLETTI em artigo sobre a experiência no CECCO durante
este período:
33
Na verdade a implantação do PAS e a forma violenta desse
processo instituiu no equipamento uma dinâmica de instabilidade e
incerteza que inviabilizou para o coletivo de trabalhadores habitar um
território de acolhimento e permanência. As ações nesse momento
voltaram-se para criar uma rede, primeiramente de resistência (já que
toda a equipe posicionou-se contra o PAS ) a esse autoritário
desmantelamento dos serviços de Saúde, engajando-se no movimento,
articulando-se com outros equipamentos de saúde, convidando usuários e
trabalhadores a participar de manifestações, atos e assembléias .
(GALLETTI, 2003, p. 227).
Durante o interregno estabelecido com a implantação do PAS (1996 a 2000), o
Coral passou a atuar de forma autônoma, desvinculado da política pública, seguindo
apenas com apoio da ONG SOS Saúde Mental, Ecologia e Cultura, do Centro Cultural
São Paulo e da Cáritas Arquidiocesana Sé .
4
Em 2001, quando o sistema do PAS foi substituído por uma política de Saúde que
promovia o retorno do município ao SUS, colaborando para que os serviços municipais
de saúde atendessem às regras constitucionais, fazendo parte de um sistema único,
integrado e público (São Paulo, 2004a, p. 30), o Coral retomou o vínculo com o serviço
público de saúde, não mais institucional, e sim em forma de parceria, principalmente com
o CECCO-Ibirapuera , serviço cuja direção durante esse período ficou a cargo de Cristina
Lopes, idealizadora e coordenadora do Coral. Essa parceria, que permanece até hoje, está
em constante avaliação para que os pressupostos dos parceiros (apoiadores do Coral),
quer entidades governamentais quer não-governamentais, estejam afinados com os
pressupostos do Coral.
4
Entidade assistencial ligada à Igreja Católica que atende a região da Sé em São Paulo.
34
VÍNCULO COM A REFORMA PSIQUIÁTRICA E A LUTA ANTIMANICOMIAL
O Centro de Convivência e Cooperativa (CECCO) nasceu inserido em um
contexto de implantação de diversos serviços voltados para área da Saúde Mental
coerentes com as diretrizes de uma política Antimanicomial, instituída a partir do
movimento da Reforma Psiquiátrica que, no Brasil, se fez presente a partir do início da
década de 1980.
A recente redemocratização do país levava a novas associações e organizações
por parte da população ávida de participação política. A questão da saúde mental, cujo
tratamento no Brasil ainda se ligava ao sistema asilar dos Hospitais Psiquiátricos, com
seus métodos baseados na segregação, medicalização, violência, uso de eletro-choque ou
de cirurgia mental - lobotomia, era repudiada por setores de trabalhadores da própria área
da saúde mental e pela sociedade civil organizada.
Segundo GALLETTI (2004), ao romper com a maneira desumana e violenta desses
tratamentos e principalmente com o regime de exclusão imputado por essa lógica asilar, a
Reforma Psiquiátrica no Brasil provocou transformações éticas nos modos de tratamento
e reconfigurou a assistência à saúde mental, passando a estimular a criação das chamadas
novas instituições, às quais o CECCO se vincula. A autora esclarece que apesar de essas
novas instituições e alternativas de tratamento na área da Saúde Mental serem aprovadas
por grande parte da sociedade civil e apoiadas por órgãos como a Organização Mundial
de Saúde (OMS), no Brasil, a desmontagem do manicômio como centro do tratamento
35
de saúde mental tem sido um processo lento e que ainda hoje carece de cuidados...(p.
23- 4).
No final da década de 1970, na esteira da luta pela redemocratização do país,
nasceu o Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), que durante a década
de 1980,
articulado com outras entidades e organizações, instaurou um período
fecundo de debates, por meio de fóruns, encontros e conferências, em que
concepções consideradas progressistas quanto à saúde mental emergiram
no cenário da assistência. Temas como o direito de cidadania, a criação
de redes extra-hospitalares de atendimento e a elaboração de projetos de
lei de Reforma Psiquiátrica juntamente com as lutas anteriores de
desospitalização caracterizaram esse período como um avanço de
concepções e estratégias. (2004, p. 25).
Esse processo teve como modelo as transformações propostas pelo psiquiatra F.
BASAGLIA (1985), na Itália, com a instalação de comunidades terapêuticas em Hospitais
Psiquiátricos nas cidades de Gorizia e Trieste, levando, no limite, à própria negação da
Instituição Psiquiátrica. (BASAGLIA, 1985; ver também: NICACIO, 1991; CASTRO, 2001).
Este médico-psiquiatra propôs as primeiras discussões e ações que
desembocaram na Reforma Sanitária italiana (Psiquiatria Democrática), partindo de
experiências psiquiátricas de caráter comunitário ocorridas no pós-guerra na Inglaterra
(com Maxwell Jones) e na França (com Tosquelles), para: revolucionar uma ideologia
que se cristalizara na contemplação e na teorização sobre a doença vista como entidade
abstrata, nitidamente separada do doente no instituto psiquiátrico. (1985, p. 111). Foi
36
somente na década de 1960 que BASAGLIA organizou o que chama de comunidade
terapêutica dentro do hospital de Gorizia.
Como diretor desse hospital questionou a própria Instituição Hospitalar e sua
organização hierárquica entre psiquiatras, enfermeiros, técnicos e funcionários.
A experiência mais radical da negação da instituição ocorreu anos depois, em
1971, na cidade de Trieste (Itália), onde BASAGLIA e sua equipe promoveram o
desmantelamento do hospital psiquiátrico, com a implantação de vários serviços
articulados em rede para atenção aos ex-internos, e propuseram a inserção desses
indivíduos na vida social (o quanto possível, pois alguns se tornaram pacientes-
crônicos
5
após anos de internação), assumindo assim, como equipe, os riscos e as
contradições desse processo. Dividindo responsabilidades com os ex-pacientes, BASAGLIA
acreditava que não havia outra maneira de reversão da realidade do manicômio a não ser
pela negação total da instituição, para, assim, dar à luz uma nova maneira de ver a relação
entre loucura e sociedade.
Em sua proposta de intervenção na instituição psiquiátrica, BASAGLIA se pautou
em dois pontos principais. Um baseia-se na crença de que o primeiro passo para a cura
do doente é a volta à liberdade (p.114). O outro é o da transformação das relações
interpessoais entre aqueles que atuam no campo da saúde mental, tornando-se essa ação,
causa e efeito da passagem da ideologia tutelar àquela mais terapêutica e participativa
(p.119).
5
Termo utilizado para designar pacientes que por muitos anos permaneceram internados sendo consideráveis
incuráveis a ponto de perderem todo o contato com o mundo externo ao hospital, inclusive com a família,
tornando assim a instituição psiquiátrica e sua doença, referências únicas em suas vidas.
37
A comunidade terapêutica é um lugar em que todos os
componentes (e isto é importante), doentes, enfermeiros e médicos, estão
unidos em um total comprometimento, onde as contradições da realidade
representam o húmus de onde germina a ação terapêutica recíproca. É o
jogo das contradições (...) Viver dialeticamente as contradições do real é,
assim, o aspecto terapêutico do nosso trabalho. (1985, p.118)
A experiência em Trieste, que se iniciou em 1971 e continua até hoje, foi
coordenada por BASAGLIA até sua morte, em 1980, tendo influenciado experiências
semelhantes em outras cidades italianas e mesmo em outros países.
Esta experiência, somada a toda atuação política de BASAGLIA, teve conseqüências
na mudança da antiga Lei sobre atendimento psiquiátrico, datada de 1904, gerando a
Reforma Psiquiátrica italiana com a aprovação da Lei 180, também conhecida como Lei-
Basaglia, de 1978.
Esclarecem os autores ROTELLI e AMARANTE (1992) que, ao contrário do que
dizem alguns críticos a respeito dessa experiência, o
(...) trabalho desenvolvido em Trieste não propugnava a suspensão dos
cuidados dos que deles necessitavam, mas a construção de novas
possibilidades, de novas formas de entender, de lidar e de tratar a
loucura.(..) A negação é do mandato que as instituições da sociedade
delegam à psiquiatria, para isolar, exorcizar, negar e anular os sujeitos à
margem da normalidade social.(ROTELLI e AMARANTE, 1992, p.44)
Ao comentar alguns aspectos metodológicos sobre a reestruturação da assistência
psiquiátrica proposta neste modelo, ROTELLI e AMARANTE dizem que nessa perspectiva, o
termo doença mental lugar a outro: existência-sofrimento do sujeito em relação
38
com o corpo social. Dessa maneira, de um mal que afeta a pessoa, a loucura passa a ser
um fenômeno complexo que afeta a sociedade. (p.52)
Os autores continuam a discorrer a respeito dos objetivos que se quer com tal
proposta:
O problema não é a cura (a vida produtiva), mas a produção de
vida, de sentido, de sociabilidade, a utilização das formas (dos espaços
coletivos) de convivência dispersa (...) Desconstruir o manicômio
significa bem mais que o simples desmantelamento de sua estrutura
física; significa o desmantelamento de toda a trama de saberes e práticas
construídas em torno do objeto saúde mental, com a conseqüente re-
construção da complexidade do fenômeno existência-sofrimento, que
implica a invenção de novas, e sempre novas, formas de lidar com os
objetos complexos. (1992, p. 52)
BASAGLIA fez visitas e conferências no Brasil durante a década de 1970, período
que coincidiu com a distensão da ditadura militar e posterior abertura para uma política
democrática. Segundo ROTELLI e AMARANTE, estes encontros tiveram forte influência
para o pensamento da Reforma Psiquiátrica brasileira, que se espelhou nas reivindicações
e conquistas vivenciados no processo do movimento italiano.
Em 1987, durante o II Congresso Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental em
Bauru, foi lançado pelo MTSM o lema: Por uma sociedade sem manicômios, que
resultou na mobilização pela aprovação da Lei apresentada por Paulo Delgado como
Projeto de Lei nº 08/91-C,
6
que prescreve a extinção progressiva dos hospitais
psiquiátricos, favorecendo a ampliação do debate sobre o pensamento Antimanicomial
6
Esse Projeto sofreu substitutivos e, na forma de Lei, entrou em vigor em 2001.
39
não apenas entre os técnicos e usuários, mas também entre vários segmentos da sociedade
civil brasileira. (ROTELLI e AMARANTE,1992, p.49)
Desde o início do Movimento da Luta Antimanicomial
7
em São Paulo, durante os
anos 1980, houve conquistas no âmbito legislativo em relação às leis que amparam os
direitos do portador de sofrimento mental. O Projeto de Lei apresentado pelo deputado
Paulo Delgado, datado de 1989, só foi aprovado como lei federal, modificado na forma
de substitutivo
8
, após mais de dez anos, em 2001, pela Lei 10.216, redirecionando,
assim, o modelo da assistência psiquiátrica no Brasil (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004). Além
dessa conquista no âmbito federal, há que citar o Projeto de Lei Estadual nº 366, de 1992,
que influenciou a construção do Código Estadual de Saúde de São Paulo (
SÃO
PAULO,
1997), e a instalação da CPI dos Manicômios pela Assembléia Legislativa do
Estado de São Paulo.
A Reforma Psiquiátrica tanto no Brasil como em outros países não se deu sem
certa resistência, pois, como considera ROTELLI e AMARANTE, estão em jogo interesses
de hegemonia do saber (representado por centros universitários) ou de produção de
capital na exploração da mercadoria doença mental (representado pelo setor privado de
prestação de serviços assistenciais psiquiátricos).(1992, p. 43).
A partir desse breve histórico percebe-se, o quanto o CECCO e,
conseqüentemente, o Coral Cênico seguiram os pressupostos da Reforma Psiquiátrica,
7
Para maiores esclarecimentos sobre as origens desse movimento em São Paulo, ver a dissertação completa
de BONIFÁCIO JUNIOR (2004). Ver também a tese de doutorado de SCARCELLI (2002, p. 7).
8
Segundo referência do Ministério da Saúde, essa Lei não foi aprovada com texto original proposto pelo
deputado Paulo Delgado e sim, pela versão final modificada do substitutivo do senador Sebastião Rocha,
que incluiu proposições contidas em substitutivos anteriores favoráveis ou contrários ao projeto original
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, p.20, 2004)
40
que propunha o fim dos hospícios e novas maneiras de pensar questões complexas como
loucura e diferença em nossa sociedade.
IMPLANTAÇÃO DO CECCO EM SÃO PAULO
Durante a gestão da prefeita Luiza Erundina em São Paulo, foi desenvolvida uma
política voltada para um tratamento mais humanizado na área de saúde mental, do que
havia até então, que, além da implantação de 18 CECCOs espalhados pela cidade,
buscava incluir o portador de sofrimento mental em Hospital-Geral, UBS (Unidades
Básicas de Saúde) e Prontos-Socorros, em atendimentos realizados por equipes
multidisciplinares, implantando a dinâmica metodológica institucional do Hospital
Aberto. Nessa ocasião, ênfase especial foi dada ao atendimento em Hospitais-Dia e em
ações de saúde mental, nos Centros de Referência de Saúde do Trabalhador. (LOPES,
1999, p.146).
Galletti relata que o CECCO foi ponte de comunicação entre os outros serviços de
atenção à saúde: UBS (Unidades Básicas Saúde) e HD (Hospitais-Dia), que
encaminhavam seus pacientes para oficinas e outros atendimentos no CECCO. Na
maneira de ver da autora, isto já representava um salto qualitativo no atendimento dado à
saúde mental:
O cuidado com o sofrimento psíquico, anteriormente subordinado
à rede de Psiquiatria, passou a se estender para a comunidade a partir da
instalação desses serviços nos espaços públicos. (2004, p. 57)
41
Essa rede de serviços, na qual o CECCO se insere, tinha a clara intenção de
substituição dos hospitais psiquiátricos por tratamentos alternativos à internação, e a
construção de uma nova concepção de saúde, com a participação da população
organizada que, segundo LOPES:
(...) possibilitava, particularmente aos CECCOs, uma
interlocução da importância da tinta, das sementes, da enxada, do palco,
assim como o Diazepan e a atadura, para as ações de saúde (...). Os
CECCOs provocaram, assim, uma espécie de desequilíbrio nesta rede de
atenção à saúde, por se tratar genuinamente de um serviço com perfil
cultural, um espaço de encontros de vidas entre portadores de
necessidades especiais e população em geral (...) (1999, p. 146-47)
O CECCO nasceu no início da década de 1990 como um projeto intersecretarial,
articulando, além da Secretaria de Saúde, as Secretarias de Esportes, Áreas Verdes,
Educação e Cultura.
O primeiro CECCO foi o do Carmo, inaugurado em 1990, enquanto o CECCO-
Ibirapuera, que atualmente oferece suporte técnico às atividades do Coral Cênico, foi
inaugurado em 1991.
Ao todo foram inaugurados 18 CECCOs. Em 1992, quando o Coral iniciou suas
atividades, os CECCOs eram, então, equipamentos muito novos. Paulo Freire, Secretário
Municipal de Educação em São Paulo na época, declarou após conhecer os CECCOs:
Os Centros de Convivência e Cooperativas não mudarão o mundo, mas o mundo só se
transformará com projetos como este. (1999, p.147)
42
OBJETIVOS E PRINCÍPIOS DO CECCO
O CECCO, portanto, nasceu dentro de um projeto maior, que visava à substituição
dos hospitais psiquiátricos na rede pública de saúde, por serviços alternativos que dessem
outras opções para as pessoas.
Nas palavras de LOPES, fica clara a proposta transdisciplinar originária no
CECCO, e o quanto essa proposta alterava a maneira clássica de ver a saúde:
A idéia a princípio, não era ficar só na otimização do atendimento
clássico de saúde, e sim poder propor uma transformação onde
pudéssemos articular saúde com as linguagens artísticas. Nasceu daí essa
proposição de um espaço onde pudesse ocorrer convivência de pessoas
diferentes. (...) O CECCO surge então como um espaço onde as pessoas
pudessem desenvolver criatividade e manifestar subjetividade não
associada ao tratamento. Expressar suas dores, alegrias ou potência
criativa não necessariamente numa sala de terapia ocupacional, ou de
tratamento psicológico ou de ludoterapia, mas que tivesse uma outra
inscrição, mesmo esse serviço se encontrando no campo da saúde.
(LOPES, entrevista, 11 e 13/10/2004)
Segundo GALLETTI (2004), o CECCO foi criado numa concepção bastante
diferente dos demais equipamentos de saúde: tinha, em sua concepção, a proposta
fundamental da Reabilitação Psicossocial dos usuários de saúde mental e como
principal instrumento de intervenção com os usuários, o trabalho com as oficinas
(2004, p.51)
43
E, concordando com LOPES, considera que apesar de os CECCOs terem sido
gerenciados pela Secretaria Municipal de Saúde, eram serviços intersecretariais e faziam
parte do Novo Modelo de Atenção à Saúde Mental, modelo este inteiramente afinado
com o ideário da Reforma Psiquiátrica (p.52).
PERFIL DOS USUÁRIOS
Por se tratar de um serviço novo na área da saúde em São Paulo, a população que,
potencialmente, o CECCO se propunha a atender, não se aproximava espontaneamente,
pois aquele espaço não era um posto de atendimento em saúde, e nem tampouco, uma
casa de cultura ou associação esportiva, porém, era um pouco de cada uma dessas coisas.
Propunha-se a atender uma faixa da população excluída, especialmente da área da Saúde
Mental, constituindo-se como população-alvo, mas, ao mesmo tempo, apresentava-se
como um espaço de convivência para todos os interessados, incluindo familiares de
usuários e a população geral. LOPES esclarece como foi feito esse caminho para se atingir
essa população:
Buscava-se identificar o perfil da população que freqüentava
aquele determinado espaço público [onde o CECCO se encontrava],
como também da população moradora daquela dada região, a fim de
determinar estratégias de inclusão de determinados segmentos de
marginalizados que definiriam a população alvo (...) Os portadores de
sofrimento mental eram em grande número e estavam presentes em todas
as regiões de São Paulo, constituindo-se em população alvo prioritária
na totalidade dos centros, por representarem, no universo dos excluídos,
44
a fatia populacional com maior dificuldade de acesso e sociabilidade.
(1999, p.150), (grifo do pesquisador)
Com o tempo, o grupo de freqüentadores do CECCO passou a ter um perfil mais
heterogêneo do que no início, e o conceito de público-alvo também se ampliou:
Atualmente, o público alvo que o CECCO se propõe a atender se
constitui de: portadores de deficiências físicas ou sensoriais, pessoas que
tenham histórico de sofrimento mental; portador de HIV; usuários ou ex-
usários de drogas; idosos e outras pessoas em situação de vulnerabilidade
de saúde ou social, sendo que por vezes, as situações de vulnerabilidade
de saúde e social surgem agregadas, tornando-se uma população
duplamente marginalizada. (LOPES, entrevista, 11 e 13/10/2004).
Refletindo sobre o atendimento dado à população e a proposta original do
CECCO, GALLETTI tece comentários a respeito da distância ainda existente entre a
proposta de convivência com as diferenças e a prática observada nesses serviços,
dizendo que apesar do avanço da proposta do CECCO na época, este ainda vivia a
dicotomia entre normal e anormal. Analisa que a diferença ainda está calcada nessa
oposição. A autora ao confrontar diferentes trechos do documento Normatização das
Ações nos CECCOs Municipais (NCC), de 1992, argumenta : A própria nomenclatura
utilizada para nomear os usuários dos CECCOs população-geral e população-alvo
representa, o que, na Medicina, designa população normal saudável e população
anormal patológica (2004, p. 54).
GALLETTI nos incita a refletir sobre uma diferenciação proposta por CANGUILHEM
(1995) entre a palavra anormal o que difere da norma, da regra e a palavra
45
anomalia, que vem do grego an-omalos
9
- o que é desigual, rugoso, irregular. GALLETTI
considera então que o conceito de anomalia, como o trazido por este autor, permite a
saída dessa negatividade comparação com o genérico para a positividade
diferença pura em si. (p. 56)
Apesar de se concordar com as reflexões propostas por GALLETTI, no decorrer do
trabalho será utilizada a terminologia população-alvo e população-geral, por ser até o
momento usada nos serviços que se propõe a estudar nesta pesquisa, buscando, sempre
que possível, estabelecer pontos de tensões a respeito dessa questão, que se coloca como
central na discussão sobre o pensamento em relação às diferenças nos grupos
heterogêneos.
COMO SE DESENVOLVEM AS ATIVIDADES NO CECCO
O CECCO trabalha com propostas de oficinas dirigidas a pessoas agrupadas de
modo heterogêneo, com a intenção de promover encontros entre elas, e destas com a arte,
o esporte, a literatura, a criação.
Buscando elucidar como este encontro pela tarefa se faz, LOPES diz que:
A convivência entre público alvo e população geral é um dos
objetivos do CECCO de desenvolvimento de grupos heterogêneos,
agrupados pelo interesse na tarefa (princípio do grupo operativo como
9
Segundo esse autor, a etmologia da palavra omalos em grego significa o que é uniforme, regular, liso.
(CANGUILHEM apud GALLETTI, p. 55)
46
colocado por Pichon Rivièri).
10
Um exemplo de como isso se dá, é a
oficina de Mosaico, que aproxima senhoras de classe média-alta de
Moema, com a chamada população-alvo. O que as une é o desejo mútuo
pelo fazer mosaico, que provoca o encontro de histórias diferentes no
processo desse fazer e inevitavelmente conhecer pessoas. Refazer laços é
nosso objetivo, e isso é importante para todos, e não para quem tem
uma historia de sofrimento mental. (Entrevista, 11 e 13/10/2004)
A respeito do caráter pioneiro dessa iniciativa, LOPES esclarece na mesma
entrevista que não se trata simplesmente de agrupar diferentes, e sim, do projeto
apresentar as seguintes condições agregadas:
a) grupo heterogêneo: a diversidade não se estabelece a partir das identidades
sociais ou de saúde dos indivíduos;
b) atividades desenvolvidas em espaço público como garantia de livre acesso;
c) agrupamento de pessoas pelo interesse comum em determinada tarefa;
acreditando-se não ser tão importante o diagnóstico, quanto o que se faz.
(2004).
Inserindo suas ações na perspectiva da inclusão, esclarece a psicóloga que o
CECCO busca trabalhar sobre os seguintes indicadores, observando o lugar de existência
11
dos indivíduos que se integram nos grupos, e detectar até onde a inclusão é efetiva. São
eles:
a) ampliação de laços sociais e de amigos;
b) circulação do papel que ocupa na família;
10
Para Pichon-Rivièri grupo é: conjunto restrito de pessoas ligadas entre si por constantes de espaço e
tempo, articulados por sua mutua representação interna interatuando através de complexos de assunção e
atribuição de papéis, que se propõe de forma explicita ou implícita uma tarefa que constitui sua finalidade
(RAJ, , s/d).
11
Expressão utilizada pelo geógrafo Milton Santos (2004).
47
c) perspectiva de trabalho e definição de um projeto de vida;
d) projetos de criação e acesso no campo cultural
e) acesso a direitos constitucionais e exercício da cidadania (2004).
O CECCO, na perspectiva de GALLETTI, é visto como um serviço-fronteira que
serviria a passagem do campo da saúde/tratamento, para o campo social, da convivência e
do trabalho. Ressalta que nesses serviços, para garantir seus pressupostos de convivência
e heterogeneidade, é necessário estar atento para os reguladores de autonomia de seus
usuários (2004, p.67).
Ao tratar da experiência prática do CECCO, a autora utiliza uma terminologia
predominantemente social e abrangente, saindo da dicotomia clínica entre
normal/patológico, para a questão social e cotidiana da exclusão/convivência.
Os CECCOs tinham como proposta aproximar essa população
excluída psicóticos, deficientes mentais, deficientes sicos, idosos e
crianças de rua à população comum, freqüentadora dos espaços
públicos. Nesse sentido, todo o dispositivo institucional estava preparado
para facilitar esse encontro (...) [pois era] um dispositivo propiciador da
invenção de novas relações, de convivência ... (p. 56-7) (grifo do
pesquisador)
Para ressaltar a experiência do CECCO como inovadora na abertura do campo da
saúde mental ao campo social, a autora diz que esta se na busca de ampliação dos
horizontes vitais dos pacientes, retirando-os de uma espécie de limbo e de uma circulação
restrita dos meios de tratamento para trânsitos mais espontâneos pela cidade. (p. 56)
48
Assim, o CECCO se distanciaria de uma instituição total (como colocado por
GOFFMAN),
12
e se aproximaria de um espaço institucional aberto, assim como um porto,
de onde se podia partir e para onde se podia voltar (2004, p. 58).
OUTRO EIXO DO CECCO
O CECCO apresenta, também, outro eixo de atuação, que se na formação de
Cooperativas a partir do trabalho solidário. Esclarece LOPES que:
Esse projeto provoca uma reflexão acerca de uma proposição de
inserção no trabalho e pelo trabalho de segmentos populacionais
marcados cultural e juridicamente pela suposta incapacidade. Pressupõe
enfrentamentos à miserabilidade das relações, dos valores e de uma dada
condição humana que clama por dignidade.(2004)
Em setembro de 2004, o CECCO-Ibirapuera desenvolvia seis projetos de
empreendimento solidário, divididos em duas categorias: Artísticos e Ambientais. São
eles:
12
A autora faz referência à obra de Erving Goffman (1974).
49
 Empreendimentos Artísticos:
- Coral Cênico Cidadãos Cantantes, Dança e Teatro:
Cia de arte solidária;
- Mediadores Culturais;
- Projeto Arte e Cia: Oficina de aprimoramento em
Artes Visuais (pintura, escultura e mosaico).
 Empreendimentos Ambientais:
- Projeto Papelão: Formação de cooperativa de
artesãos;
- Agentes Ambientais;
- Projeto Crer-ser: germinando a cidadania de jovens
jardineiros (LOPES, 2004)
A experiência do CECCO gera muitas discussões, pois se trata de um projeto
ousado que tem sua origem nos pressupostos da Luta Antimanicomial e no movimento da
Reforma Psiquiátrica brasileira, que, como já se demonstrou, teve grande influência dos
ideais da reforma italiana.
Por ser um projeto novo, o CECCO, que se definia por atuação transdisciplinar,
em espaços públicos, gerando um contado direto com a comunidade e propondo
atividades em oficinas onde as pessoas se agrupariam pelos seus interesses e não por
diagnósticos, já trazia junto com ele uma série de avanços no pensamento a respeito da
diferença e do preconceito, vividos na prática. Este novo espaço, como recomendava
BASAGLIA (1985), haveria de ser repensado sempre, para, dessa maneira, evitar o perigo
de que novas fórmulas pudessem vir a reproduzir, em outros ambientes, os mesmos
procedimentos dos manicômios referentes à tutela, ao preconceito e à falta de atenção às
singularidade.
50
É nesse contexto de intersecção de diferentes campos e linguagens vivenciados
nos CECCOs, que tem lugar no Centro Cultural São Paulo a experiência do Coral Cênico.
Com o objetivo de dar outro passo em direção à conquista de inserção social de
indivíduos marginalizados, busca num espaço de cultura, um local que, para além de ser
um espaço de comunicação, convivência e interação, é um espaço de difusão e criação
cultural.
51
O CORAL CÊNICO CIDADÃOS CANTANTES
HISTÓRICO
Como já comentado anteriormente quando se falou do histórico do CECCO e seus
princípios, o Coral Cênico Cidadãos Cantantes nasceu como um braço das atividades
deste Serviço Municipal de Saúde, previsto para ser desenvolvido numa região central da
cidade de São Paulo (pela facilidade do acesso), num local público e vinculado à cultura.
A psicóloga Cristina Lopes, idealizadora do projeto do Coral, esclarece que,
dentre as oficinas oferecidas nos CECCOS, as que aglutinavam maior interesse por parte
dos usuários eram as que trabalhavam com as linguagens de música e teatro. Foi a partir
dessa observação que se imaginou a extensão das oficinas do CECCO para além do seu
espaço físico, buscando, para tanto, parcerias com outras instituições, governamentais e
não-governamentais.
Sendo um projeto intersecretarial, o CECCO envolvia as Secretarias de Esporte,
Meio Ambiente, Educação e Cultura. À Secretaria da Cultura cabia a contratação de
oficineiros para o trabalho com as linguagens artísticas, enquanto as outras secretarias
disponibilizavam seus próprios profissionais para ministrarem as atividades nos
CECCOs.
Numa iniciativa arrojada, de utilização de um espaço público de cultura para
abrigar o trabalho que tinha como meta a formação de um grupo que funcionasse como
uma espécie de bandeira da Luta Antimanicomial, fundava-se, em 1992, o Coral
52
Cênico da Saúde Mental de São Paulo, que, desde o princípio, ocupou, para seus ensaios,
o espaço do Centro Cultural São Paulo (CCSP).
A proposta era formar um grupo heterogêneo, composto por freqüentadores dos
serviços dos CECCOs, acompanhados de profissionais dessas unidades, que se
deslocariam para os ensaios semanais no CCSP, acrescido de pessoas, provenientes de
outros lugares, que se mostrassem interessadas em participar do Coral, misturando-se ao
grupo essa população não advinda dos CECCOs.
No início, o Coral era formado por cerca de 10 integrantes e composto quase que
exclusivamente por usuários dos CECCOs e profissionais acompanhantes. Aos poucos,
porém, à medida que o CECCO conseguia atrair outro público, que não somente
portadores de sofrimento mental, o Coral também foi assumindo as características de
grupo heterogêneo que ostenta hoje, ampliando seus quadros para a participação de
familiares dos participantes do CECCO, e da população geral.
LOPES enfatiza o quanto essa premissa da heterogeneidade (ver capítulo 3),
buscada pelo CECCO, é difícil de ser alcançada: Se você não cuidar para atrair uma
população mais misturada, corre o risco de ter pessoas em vulnerabilidade de saúde
(portadores de necessidades especiais) ou grupos só de população geral (entrevista, 11 e
13/10/2004)
NOVAES, Terapeuta Ocupacional, e uma das primeiras profissionais a compor a
equipe do Coral, considera que a proposta do Coral no início era de promover uma maior
circulação dos usuários dos CECCOs pela cidade, de modo a propiciar novos encontros:
53
(...) a gente tinha encontros no (CECCO) Chico Mendes, e vinha
gente de todos os CECCOs por causa do Coral [Cênico], da amizade que
as pessoas fizeram. Tinha uma oficina que vinha gente de muito longe
para lá. Então, começou esse outro trânsito na cidade. Eu penso que o
Coral tinha isso como significante. (Entrevista, 18/05/2005)
PROPOSTA
A idéia de se organizar um Coral no CCSP com usuários dos serviços de Saúde
Mental da Rede Municipal de Saúde, foi levada, em meados de 1992, por Cristina Lopes
diretamente ao então diretor do Centro Cultural São Paulo, José Américo Peçanha.
Na mesma época iniciou-se um ateliê de artes plásticas dirigido a usuários do
setor de psiquiatria do Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM), e que está em
atividade até hoje (BARBAN, 2001). Esta outra iniciativa de aproximação entre as
Secretarias Municipais de Saúde e de Cultura no CCSP, ao trabalhar exclusivamente com
os portadores de sofrimento mental vindos de uma mesma instituição, não se vincula aos
princípios de convivência pelas diferenças, como preconizado no CECCO, configurando-
se assim como projetos distintos quanto a forma de atuação com públicos especiais.
Ambos os projetos nasceram na gestão do referido diretor e, segundo Marilena
Chauí, Secretaria Municipal de Cultura na época, foram marcas das inquietações de um
filósofo à frente de um equipamento público
13
(CHAUI, 2003).
13
Ver palestra proferida por Marilena Chauí no dia 09/09/2003. Nesta mesma palestra a filósofa comenta o
fato inusitado destes projetos terem continuado a até mesmo terem se ampliado, passando por diferentes
gestões municipais.
54
Ao ser consultado por Cristina Lopes sobre a viabilidade do projeto, Peçanha se
identificou com a proposta e autorizou imediatamente o uso do espaço físico do CCSP
para os ensaios. Faltava apenas conseguir um regente para se iniciar o trabalho.
REGENTES
Usando do expediente de deslocamento de profissionais ligados ao quadro
funcional da prefeitura, uma vez que não se dispunha de verba para contratação de um
maestro, a primeira regente do grupo foi Ana Silvia, pianista-ensaiadora vinda da Escola
Municipal de Bailado e emprestada ao Centro Cultural São Paulo, especialmente para
este trabalho.
Silvia, porém, ficou por pouco tempo à frente do grupo, sendo substituída por
Roberto Anzai que, assumindo como voluntário o trabalho, trouxe uma proposta mais
ampla do que havia sido a experiência do grupo Coral até então. Tanto no que diz
respeito à maneira de cantar, quanto ao próprio fazer musical, ampliou a proposta inicial,
trazendo ao Coral a possibilidade de pesquisa sonora e cênica.
Depois de um breve período de trabalho conjunto de Roberto ANZAI com Mª Elisa
PASQUALINI,
14
conhecida por Milly - regente de formação e, à época, funcionária da
biblioteca do CCSP esta assumiu a liderança do grupo até o início do ano de 1995,
quando teve que se afastar, por exigência interna do CCSP, pois a diretoria dessa
14
PASQUALINI conta em seu depoimento, que mesmo depois de substituir ANZAI na regência , este era
chamado para atuar em algumas apresentações mais importantes do Coral. Ambos não se recordam das datas
que atuaram, mas se referem à época da administração municipal de Luiza Erundina, que se encerrou em
1992. Acredita-se pelo confronto dos dados, que trabalharam juntos entre 1992 e início de 1993.
55
instituição entendeu que a funcionária não poderia ser liberada de suas funções internas,
para exercer as funções de regente daquele grupo, mesmo que esporadicamente.
No período que se seguiu ao afastamento de Pasqualini, o grupo ficou por algum
tempo sem regente, mas, mesmo assim, o trabalho continuou. Na ausência de liderança
musical, o Coral manteve os ensaios, buscando outras atividades que pudessem realizar,
numa tentativa de manter a união do grupo, para que ele não se acabasse naquele
momento. Estimulados pela equipe técnica, começaram a surgir um grande número de
produções poéticas dos integrantes do grupo, que, a cada ensaio, eram lidas, agrupadas,
catalogadas e selecionadas.
Foi nesse interregno, que nasceu o livro O Vôo das Borboletas, composto de
poesias originais de integrantes do Coral e familiares. O livro foi produzido pelos
próprios autores e contou com o apoio de diversas entidades, tais como: CEFOR Centro
de Formação dos Trabalhadores da Saúde; LAPSO Laboratório de Estudos em
Psicanálise e Psicologia Social IPUSP; Centro Cultural São Paulo; Trabalhadores dos
CECCOs Ermelino Matarazzo e Chico Mendes; ONG SOS Saúde Mental; Patrícia
Spinoza (autora da capa); e Câmara Municipal de São Paulo.
Este livro teve lançamento oficial em janeiro de 1996, na Câmara dos Vereadores
de São Paulo, com noite de autógrafos dos autores e apresentação do Coral.
15
15
Esta foi a última apresentação com a regência de PASQUALINI, pois desde então o Coral Cênico está sob a
orientação musical do autor dessa dissertação.
56
LOCAL
O CCSP é um espaço privilegiado da cultura em São Paulo, tanto pela sua
localização, quanto pelo seu espaço físico; por esse motivo, o fato de os ensaios do Coral
Cênico Cidadãos Cantantes ocorrerem nesse lugar atesta a importância conferida ao
trabalho, ao mesmo tempo que proporciona boas condições para o seu desenvolvimento.
Quanto à sua arquitetura, o CCSP é bastante amplo e com muitos vidros, o que
uma sensação de espaço vazado, como se não houvesse fora e dentro.
A respeito da acessibilidade, localização e dos detalhes de sua arquitetura,
encontram-se as seguintes considerações no site do CCSP:
Localizado em uma região de grande movimento e de fácil
acesso, o Centro Cultural São Paulo está próximo à Avenida Paulista,
junto à linha Norte-Sul do Metrô. Com quatro pavimentos, seu arrojado
projeto arquitetônico - criado por Eurico Prado Lopes e Luís Benedito
Telles - une, harmoniosamente, a solidez do concreto e do aço com a
transparência do vidro e dos espaços vazados (...). Apesar de até hoje a
construção do edifício o ter sido concluída, o público e os artistas
tomaram posse do Centro Cultural São Paulo e fizeram dele um ponto de
encontro privilegiado. Esse processo espontâneo mobilizou gente jovem e
madura para ocupar um espaço público que assumiu a feição de
prolongamento da casa de cada um.
A localização e o fácil acesso convidaram faixas distintas da
população ao convívio: pode-se dizer, sem exagero, que o CCSP atrai o
público mais democrático da cidade para as iniciativas da cultura.(...)
Acesso democrático, convívio social, arte jovem, novidade, estímulo
crítico são as balizas que norteiam a gestão atual. Sem esquecer o
cuidado com o edifício cuja relevância no cenário da cidade merece ser
destacada e valorizada como um testemunho de uma época em que a
57
arquitetura projetava relações sociais mais respeitosas e cordiais.
(www.centrocultural.sp.gov.br, acesso em 19/9/2004)
NOVAES, destaca a importância deste trabalho acontecer no CCSP:
Porque é um espaço privilegiado. Não é um galpão qualquer, sem
estrutura. Eu acho que tem que ter uma estrutura para fazer um trabalho
desse, minimamente. Eu acho que o fato de ter um piano, de ter um lugar,
um teatro de arena (...) Acho que tinha uma relação com o espaço muito
importante. Era um lugar de trabalho (Entrevista, 18/5/2005).
A respeito da diferença de se realizar a tarefa neste espaço, ANZAI esclarece:
Não sei como seria se o grupo estivesse ensaiando numa sala
pequena, fechada entre 4 paredes. Lá no CCSP já brincávamos: estamos
no palco, tinha o piano de cauda, tinha uma relação mágica também.... A
hora que pisa no tablado já é outra história. (...) O CCSP é uma
referência... (Entrevista, 02/02/2005)
E PASQUALINI complementa, acentuando a questão da circulação dos usuários e do
espaço não ser mais da saúde:
Foi fundamental, por representar um lugar neutro, não era
CECCO nem HD (Hospital Dia), era o espaço do coro. E eles precisavam
se deslocar, pois não ficava próximo da comunidade deles. Um lugar
diferente. No CCSP estavam se encontrando as pessoas dos diferentes
CECCOs e num outro espaço. (Entrevista, 03/02/2005)
58
RELAÇÃO COM OS FUNCIONÁRIOS DO CCSP
Nilse FERREIRA DA SILVA, funcionária do CCSP, transmite muita tranqüilidade
quando fala dessa relação dela com o trabalho do Coral, mas não foi sempre assim. Os
relatos dos integrantes da equipe de primeira hora demonstram que houve um
amadurecimento durante o processo, transitando entre a cooperação, a incompreensão e o
preconceito.
Acho legal a diretoria do CCSP abrir esse espaço. (...) eles se
sentem em casa, perguntam sobre o Osvaldo, o funcionário que trabalha
comigo, e vêm comentar as coisas deles (...) Além do horário [das
atividades] eles freqüentam o CCSP. Eles ficam aqui... nas dependências
no jardim, um grupo (FERREIRA DA SILVA, entrevista, 12/07/2005).
NOVAES comenta as dificuldades em relação ao CCSP:
Tinha uma história, no começo do Coral, eu não sabia disso
naquela época, e fiquei sabendo depois, que ninguém queria fazer o som
e a luz, nas apresentações do Coral, de medo. (Entrevista, 18/5/2005)
PASQUALINI comenta que o Coral fez uma apresentação interna no CCSP para
esclarecer a proposta do grupo:
Para os funcionários houve uma estranheza inicial, mas fizemos
uma apresentação no CCSP e muitos deles foram ver e passaram a
respeitar o trabalho e dar uma força para a sua continuidade. Os
funcionários ajudavam a divulgar as outras opções do CCSP para os
cantores do grupo (Entrevista, 03/02/2005).
59
Os destaques apontados no texto do site do CCSP para os aspectos de convivência
de grupos bastante heterogêneos, tornando-se ponto de encontro, ou extensão da casa, é
observado na relação dos cantores com este espaço, como visto em vários destes
depoimentos.
A sala Adoniran Barbosa, onde o grupo freqüentemente trabalha, obedece às
características arquitetônicas dos espaços vazados, sendo assim, os ensaios são vistos por
freqüentadores que estão de passagem pelo hall do CCSP. Essa sala, construída como um
teatro de arena, com platéia nos planos superior e inferior, e que comporta cerca de 600
pessoas, tem portas em três dos seus quatro lados e uma cobertura transparente, e não
fosse a proteção que se coloca sobre ela, a luz solar invadiria a sala durante todo o dia. A
respeito da peculiaridade desta sala de ensaio, comenta PASQUALINI:
O público via o nosso ensaio acontecendo na Adoniran, pois ela é
como um aquário. Às vezes brincávamos: quem são os peixes? Eles ou
nós? (Entrevista, 03/02/2005)
Ainda a respeito do texto do site, a valorização dada à arquitetura como
facilitadora do encontro e propiciadora de relações sociais mais respeitosas e cordiais
tem uma relação muito próxima com os princípios do CECCO quanto à inclusão social,
ao acesso a espaços públicos e bens culturais.
60
NOME: IDENTIDADE E PASSAGEM
O Coral iniciou suas atividades em 1992, e logo demonstrou grande interesse em
apresentar os resultados de seu trabalho. Sua estréia se deu no próprio CCSP, durante o
mês de setembro do mesmo ano, numa apresentação para amigos e familiares.
Assim nascia o Coral Cênico da Saúde Mental de São Paulo, que trazia no
nome a sua origem e a causa à qual ele, até hoje, se vincula.
O grupo manteve o mesmo nome de 1992 a 1999, passando por um pequeno
período de transição, em que se autodenominou Coral Cênico de Saúde Mental
Cidadãos Cantantes, para, finalmente, adotar o nome que mantém: Coral Cênico
Cidadãos Cantantes. Esse termo Cidadãos Cantantes é uma homenagem ao coreógrafo
brasileiro Ivaldo Bertazzo, que desde os anos 1970 vem desenvolvendo em São Paulo um
trabalho de dança que não inclui bailarinos, mas sim Cidadãos Dançantes
16
(VARELLA, 2002).
Com a alteração do nome a partir do ano 2000, o Coral Cênico Cidadãos
Cantantes marca uma passagem na maneira de encarar sua própria atuação, passando a
associar sua identidade mais a quem dele participa e a motivação dessa participação, do
que a algum lugar ou causa à qual ele se vincula, afirmando dessa forma sua proposta de
grupo heterogêneo.
16
Trata-se de um trabalho de dança que admite qualquer tipo de corpo, gordo ou magro, jovem ou idoso, alto
ou baixo, fugindo, assim, dos estereótipos da dança clássica, tanto no aspecto físico-corporal, quanto no
gestual, inserindo em suas coreografias gestos cotidianos de modo a garantir a todos o direito ao corpo
dançante (VARELLA, 2002). Ver também (BERTAZZO; BOGÉA, 2004)
61
Refletindo sobre essa passagem LOPES comenta que a alteração do nome ampliava
a proposta, e se mostrava mais afinada com os princípios do Coral e do CECCO: Um
Coral de gente que canta, gente que é cidadã, e não doente cantante, louco cantante ou
idoso cantante’”. Prosseguindo sua explicação, esclarece que o nome em princípio
associado à causa da Luta Antimanicomial com o passar dos anos, foi se revelando
contraditório, pela proposta de não-segregação e heterogeneidade do grupo, pois o
estigma do paciente psiquiatrizado, embutido na expressão saúde mental, tinha um peso
muito forte e limitava a compreensão dos reais objetivos desse trabalho.
O Coral no início tinha essa cara mais marcada pelo público
alvo, caracterizado por um trabalho com um grupo pequeno e pelo
nome: Coral Cênico da Saúde Mental. (...) o conceito do antimanicomial
é uma questão mais ampla que a questão dos hospícios e da saúde mental,
mas o nome do Coral trazia essa contradição de querer ser maior no seu
objeto, nas suas metas, mas se estreitando na sua identidade, e foi com o
tempo que eu pude perceber que esse nome, ao invés de criar
possibilidades, estreitava-as. Esse nome leva as pessoas a associarem o
trabalho artístico a uma condição de saúde, ao passo que o propósito
desse trabalho, é que ele possa estar associado a uma produção artística e
cultural ao acesso de todos.(...) da saúde mental, parece que é um Coral
para tratar, para a cura, para a musicoterapia, e ele nunca teve esse
propósito (Entrevista, 11 e 13/10/2004).
NOVAES e ANZAI recordam em seus depoimentos, que nas apresentações do Coral,
tinha-se como proposta que a platéia não identificasse quem eram os técnicos e quem
eram os usuários, valorizando-se assim a tarefa e não a diferença entre os participantes, e
que essa colocação, era, em geral, feita para a platéia antes das apresentações.
62
A gente não fazia disso uma necessidade, mas a Cris, toda vez
que ela ia explicar o trabalho, o que era o Coral Cênico de Saúde Mental,
(...) ela falava que era um Coral , onde a intenção era não identificar
quem era técnico, quem não era, porque todos estavam ali com um
objetivo de cantar. (NOVAES, entrevista, 18/5/2005)
E comentando sobre as transformações ocorridas no grupo, diz:
Porque o Coral foi se transformando, ele foi sendo uma coisa
para além de uma guerra, no bom sentido. Além de uma coisa da Luta
Antimanicomial, de protesto. (...) Ele sempre vai falar do que a gente
acredita, mas era um protesto literal naquele momento. Era isso, jogar os
aventais no meio da roda com raiva. (...) Porque não está mais contra
os hospícios, não precisa mais vestir avental. Ele supera isso. (Entrevista,
18/5/2005)
Essa transição que o Coral fez de uma postura mais engajada com a Luta
Antimanicomial, contra os hospícios, para um grupo que busca, pelo aprimoramento nas
linguagens artísticas, o trabalho com as diferenças, será abordado em outros pontos
durante a dissertação.
Ah, Coral de saúde mental ..., você viu que legal o que aconteceu
ali agora? A gente foi ali pra fazer arte, não pra falar de saúde mental.
(Comentário de Janaína, cantora do Coral, após a apresentação no Dia 18
de maio de 2005)
63
OBJETIVOS DO CORAL
PRINCÍPIOS
Como visto anteriormente a partir das explicações de sua coordenadora, o Coral
segue os princípios do CECCO quanto ao desenvolvimento de políticas públicas de
inclusão sociocultural, por meio do encontro e da convivência de diferentes atores
sociais
17
que se encontram em níveis sócio-culturais diversos, em torno de uma tarefa
comum.
O Coral, porém, acima de tudo, configura-se como um espaço de produção e
acesso à cultura. Busca coadunar um espaço de atenção e de cuidados a um público em
estado de vulnerabilidade social ou de saúde, a partir do pressuposto segundo o qual a
convivência entre diferentes, pela vontade de aprender, criar e transformar propicia a
livre circulação de papéis entre seus participantes, firmando-se como um lugar onde
possa haver a religação de saberes (MORIN, 2003).
18
Como explica LOPES:
O propósito da aproximação com a arte no CECCO e no Coral é
um propósito de religar saberes, expresso na pluralidade profissional de
se abordar o fenômeno da vida e da criação como elementos necessários
para se construir uma nova consciência de si e do planeta (...) Desta
maneira, o Coral busca através da criação, um sentido mais amplo de
saúde e inclusão. Uma inclusão pela construção de indivíduos potentes,
pois despertados ou revelados para a criação. Na possibilidade de ter a
17
A expressão atores sociais refere-se, aqui, aos diferentes papéis representados pelas pessoas em seu
cotidiano.
18
Este conceito é utilizado por Edgar Morin em diversas obras, entre elas, em sua conferência Religar a
Ciência e os Cidadãos (2003).
64
criação como um campo de transformação pessoal e coletivo. (Entrevista,
11 e 13/10/2004)
ACESSO
Acreditando que o Coral se configura como um espaço de acesso e produção,
Cristina Lopes entende que este acesso se dá em três níveis: o acesso à cultura, o acesso à
convivência e o acesso à saúde.
Ao abordar a questão do acesso à cultura proporcionado pelo Coral, Cristina
Lopes destaca:
O CCSP tem teatro, cinema, exposições, uma discoteca, uma
biblioteca para uso-fruto, então essa idéia de estar num espaço como o
CCSP tem uma implicação de acesso à cultura de uma maneira mais
ampla (Entrevista, 11 e 13/10/2004)
FERREIRA DA SILVA, funcionária do CCSP, confirma o projeto do Coral como um
facilitador desse acesso:
Tem um grupo de pessoas que freqüenta os espetáculos do CCSP.
Eu dou os meus ingressos, ou o Osvaldo... Eles têm uma freqüência
muito grande com isso. Teatro principalmente. Por freqüentar as
atividades artísticas [oficinas] passaram a se interessar mais. Pois tem um
núcleo que freqüenta as três oficinas. (Entrevista, 12/07/2005)
Na visão de NOVAES, no período em que PASQUALINI dirigiu o grupo, essa
circulação dos cantores pelo CCSP, que se configurava como um dos objetivos do
65
trabalho, também criou dificuldades, pois PASQUALINI desempenhava função dupla, de
regente do Coral Cênico e de funcionária do CCSP:
E ela reclamava. (...) Era porque as pessoas freqüentavam, o
Centro Cultural, (...) era uma vida. Não era [só] o Coral. As pessoas se
ligaram a ela, se ligaram ao Centro Cultural, que é isso que a gente quer
também. (Entrevista, 18/5/2005)
Quanto aos aspectos da acessibilidade e dos serviços oferecidos pelo CCSP, dados
colocados pela própria instituição, que, dando as mãos ao CECCO, abriga o trabalho
desse grupo, revelam o que poderia se chamar de uma vocação para a diversidade e
atendimento a públicos especiais:
Mensalmente, o Centro Cultural São Paulo recebe milhares de
freqüentadores: um público formado, em sua maioria, por jovens
estudantes que, além de se utilizarem dos vários acervos, participam das
inúmeras atrações oferecidas pela programação.(...) As programações
oferecidas pelo Centro Cultural São Paulo são, predominantemente,
gratuitas ou a preços populares. São desenvolvidas, regularmente,
oficinas de artes para crianças, jovens e adultos, e também atividades
diversas para a Terceira Idade e para públicos especiais.
As Bibliotecas do Centro Cultural são intensamente visitadas por
estudantes e pesquisadores. Compreendem a Biblioteca Sérgio Milliet; a
Biblioteca Volpi, especializada em artes visuais e arquitetura; a
Biblioteca Braille, planejada e equipada para atender a portadores de
deficiência visual; a Discoteca Oneyda Alvarenga e a Gibiteca Henfil
(www.centrocultural.sp.gov.br, consulta realizada em 19/9/ 2004).
66
LOPES ainda relata que, além do acesso à cultura, no Coral se o acesso à
convivência com a diversidade,
O estudante de informática ou a nutricionista [participantes da
oficina de dança e teatro] que se depara com pessoas muito diferentes,
que trazem estampadas no rosto as marcas de uma vida em condição de
vulnerabilidade social, ou que têm estampado todo um sofrimento de
internações em hospital psiquiátrico, mas que estão dividindo naquele
espaço a possibilidade de conviver, de fazer teatro, dança ou música com
outras pessoas. (...) Experimentar isso no Coral ou no CECCO constitui
uma chance dessas pessoas acessarem a um novo código de cidadão.
(entrevista, 11 e 13/10/2004)
Em concordância com o depoimento de LOPES, NOVAES comenta porém, o quanto
é difícil atingir essa convivência na heterogeneidade e que ela será efetiva se estiver
intermediada pelo interesse no que se faz junto:
Eu penso que as pessoas não estão interessadas em se integrarem
a nada. Assim, a estar junto, não é isso que faz com que elas saiam de
casa. (...) O que faz com que elas saiam de casa é a vontade de aprender
alguma coisa que elas queiram aprender (...) Sinceramente, eu acho que o
que faz uma pessoa ir para um Coral é porque ela quer cantar. (...) Chega
lá, tem uma pessoa diferente do lado dela, uma pessoa que está gritando,
que está falando de outra coisa, que está falando que quer namorar o
fulano, ai ela olha, e essa é a história. Aí a coisa da convivência começa a
acontecer (...) é poder perceber que o mundo não é feito só de gente igual.
Isso eu já acho que é um grande ganho (Entrevista, 18/5/2005).
67
E por fim, LOPES destaca o acesso à saúde, a partir da posição assumida pelo
CECCO, de considerar a saúde num outro paradigma, como qualidade de vida e atenção
global ao indivíduo (Entrevista, 11 e 13/10/2004).
A psicóloga aponta para a necessidade de olhar para o integrante do grupo como
um indivíduo total em suas necessidades:
Esse é um movimento do CECCO, parceiro do Coral nesse
momento, para que a pessoa possa ultrapassar impedimentos e estar mais
inteira. Acessar essa qualidade de vida na minha opinião, é como adquirir
um passaporte para o exercício da liberdade e da criação cultural,
sabedora dos seus direitos à educação, ao trabalho, à saúde, à vida social,
ao transporte, ao alimento, à ausência de dor, à invenção (Entrevista, 11 e
13/10/2004).
PRODUÇÃO
Além destes níveis de acesso proporcionados pelo Coral, há o espaço da produção
artística. LOPES comenta a respeito da complexidade que se dá quando se adentra este
campo:
Aliar o gostoso do fazer, com o compromisso - por serem os
sujeitos ativos dessa produção cultural - é a questão mais complexa, pois
envolve o trabalho de grupo e o trabalho individual, responsabilidade e
disciplina, autonomia e auto-estima. A pessoa precisa acreditar em si para
se lançar numa produção. Isso ocorre no coro hoje. (Entrevista, 11 e
13/10/2004)
NOVAES comenta a importância da produção, e o caráter incomum que ela carrega:
68
Tem a coisa ainda, a que traz, a que vem, não é um Coral comum.
Acho que ele nunca teve essa idéia de ser, mas é um Coral de produção,
de pessoas que querem desenvolver esse talento. (Entrevista, 18/5/2005)
Um exemplo evidencia a possibilidade da troca de papéis pelo saber-fazer que
acontece entre os integrantes do grupo, como diz LOPES:
Nos surpreendemos com a Zina dando aulas de piano para vários
cantores, incluindo até mesmo a Clara (psicóloga do CECCO), sendo que
essas aulas são dadas na clínica onde a Zina está internada. Os alunos
pagam por isso, valorizando seu trabalho e alterando o seu lugar de
doente na clínica. Essa inversão (troca) é o que queremos construir: a
possibilidade de circular por diferentes papéis. A Zina, que já estava
nessa clínica antes do Coral, é outra pessoa após entrar no Coral.
(Entrevista, 11 e 13/10/2004)
Outro exemplo é o do seu Ivan ensinando Reinaldo a tocar gaita, e ele próprio,
acreditando no seu potencial artístico, agora já incorporado à sua rotina de trabalho.
19
A partir dos depoimentos tomados, pode-se concluir que o Coral tem vários
aspectos em sua proposta: do entretenimento, do aprendizado, do acesso, da produção e
da difusão cultural, pois eles não querem produzir, querem compartilhar, completa
LOPES (Entrevista, 11 e 13/10/2004)
19
José Ivan toca gaita com muita destreza, e no trabalho como vendedor em feira-livre, chama a atenção para
seus produtos tocando gaita e criando versos.
69
PERFIL DOS PARTICIPANTES
O grupo é composto por indivíduos que dele se aproximam por motivações
particulares, caracterizando-se, atualmente, por ter em seu quadro pessoas de diferentes
perfis, entre elas, algumas que passam ou passaram por algum transtorno mental, além de
donas-de-casa, empregadas-domésticas, desempregados, pessoas interessadas no
aperfeiçoamento artístico, ou provindas de campos de atuação específicos, como, por
exemplo, estudantes das áreas de psicologia e artes. Configura-se, assim, um
agrupamento bastante heterogêneo de pessoas, que se aproximam do Coral por duas vias
principais: ou por intermédio do CECCO, ou por meio da divulgação mensal das oficinas
oferecidas, pelo Centro Cultural São Paulo. Um estudo mais aprofundado sobre o perfil
do participante será desenvolvido no capítulo 3.
O grupo é aberto a qualquer interessado, independente da presença prévia de
habilidades técnicas no desenvolvimento das linguagens artísticas em questão. Por isso,
não existe nenhuma forma de teste, e nem tampouco, um período de inscrição
determinado para a entrada de novos integrantes
20
no grupo. Daí a justificativa do nome
Cidadãos Cantantes, colocando ao acesso de todos, a possibilidade de cantar e se
expressar artisticamente.
O trabalho desenvolvido pelo Coral busca atrair, pelo fazer artístico, um segmento
da sociedade, que, geralmente, não tem acesso a esse tipo de manifestação artística, ou
por se encontrarem em situação de saúde comprometida (casos como transtorno mental
20
Cada novo integrante que chega é convidado a participar do aquecimento inicial, e depois, assistir ao
trabalho, para entrar em contato com o repertório e a dinâmica do grupo, posteriormente é realizada uma
entrevista pelos profissionais do CECCO.
70
ou doenças crônicas), ou por serem provenientes de classe social de baixa renda, sendo
que, por vezes, são situações que se mostram associadas. Este segmento se constitui na
população-alvo que recebe acolhimento no Coral.
Como esse trabalho busca a heterogeneidade (ver capítulo 3), existe também uma
parcela do grupo a que se chama de população geral: são pessoas que se aproximam do
trabalho com interesse na própria produção artística do grupo, e que compreendem e se
identificam com a abrangência desse trabalho, independente delas se encontrarem em
situação de vulnerabilidade social ou de saúde. Esse público, em geral, aproxima-se do
Coral pela divulgação dos cursos do CCSP e da programação cultural da Prefeitura de
São Paulo.
No âmbito do CECCO e do Coral, o que se entende por trabalho com grupo
heterogêneo, como se viu, é a possibilidade que ele ocorra pela mistura entre esses
grupos, sem que se faça distinção entre eles durante o processo, e também, que tal
heterogeneidade vá sendo construída e cuidada, passo a passo.
O grupo atualmente se configura mais heterogêneo que no seu início, com um
maior compromisso com a produção artística, como atestam alguns dos depoimentos
recolhidos.
O perfil era fundamentalmente gente dos CECCOs e outros
serviços ligados à Saúde mental (p. ex. Hospital Dia) junto com técnicos
que cantavam. (PASQUALINI, 03/02/2005)
[No início o grupo era composto por] usuários da saúde mental, e
o que sustentava era a possibilidade daquela amizade, era o
relacionamento que sustentava. (NOVAES, 18/5/2005)
71
ANZAI em seu depoimento lembra que:
a proposta era fazer com que essas pessoas, usuárias dos CECCOs,
tivessem uma tentativa de integração social dentro de uma comunidade,
no caso, o Coral. Integração tal, que passava a ser secundário saber quem
é quem. (Entrevista, 02/02/2005)
E NOVAES, que se distanciou do grupo por um longo tempo, ao refletir sobre o
Coral em seu momento atual, pondera a respeito dessa produção:
Tinha [na apresentação de hoje] uma coisa mais autônoma, que
todo mundo faz e que você de fato não consegue identificar [se são
usuários ou população geral] (...) supera a questão da doença de fato e daí
eleva para essa coisa que é da música. Posso não conhecer muito, mas
[essa produção] é de qualidade com muita expressão e que todo mundo
faz. E não precisa ter um cuidado ali porque, sinceramente, na época que
eu acompanhava a Jael
20
, era uma coisa que ficava óbvio que tinha
alguém cuidando de alguém, entre aspas. (...) Eu acho que a arte faz uma
coisa alegre, uma coisa com um carinho diferente, um caminho... Hoje eu
senti assim, as pessoas gostaram porque era uma coisa muito alegre.
(Entrevista, 18/5/2005)
Tatiana BICHARA (preparadora corporal do Coral), em seu depoimento sinaliza
que, no seu entender, a passagem da primeira formação, com grande incidência de
portadores de sofrimento mental ou outros tipos de doença para um grupo mais
heterogêneo, deu-se entre os anos 1999 e 2000, com a entrada de muitas pessoas com
interesse no desenvolvimento artístico e que coincide com um período de afastamento das
20
Jael é deficiente visual e participou do grupo entre os anos 1994 e 2000.
72
psicólogas entre elas a própria Tatiana por motivos vários, e que o próprio grupo
acabou por ressignificar esse espaço em função dessa contingência.
Eu lembro que de 1997 até 1999 tinham algumas pessoas que
precisavam de muita atenção. Um momento ainda marcado pela loucura,
e que hoje de alguma maneira, não sei se superou, totalmente. Acho que
não, mas acho que hoje a marca do grupo é outra. Hoje, a marca do grupo
é construir arte com qualidade. E na época, eu acho que era uma coisa
muito mais voltada para saúde, com um enfoque menos artístico e mais
de convivência (Entrevista, 24/05/2005).
Os depoimentos demonstram o quanto o trabalho pela arte foi transformador para
o grupo, e possivelmente, o que possibilitou a convivência na heterogeneidade se dar de
uma forma mais efetiva, atraindo realmente o interesse pelo que se realiza como proposta
e não pelo perfil de seus participantes, ou pela vontade de querer ajudar (ver análises no
capítulo 3).
ORGANIZAÇÃO
O ENSAIO
Os ensaios ocorrem semanalmente, e têm duração de duas horas e trinta minutos
aproximadamente, dentro das quais os procedimentos organizam-se da seguinte maneira:
exercícios destinados à consciência corporal, trabalho musical propriamente dito,
73
construção cênica a partir dos materiais musicais e corporais trabalhados, finalizando
com um momento dedicado à conversa a respeito das necessidades do próprio grupo.
No início do grupo os ensaios aconteciam duas vezes por semana (2ª e feira
pela manhã), e envolviam várias dinâmicas com enfoques não musicais. Segundo o
depoimento de NOVAES (2005), havia muitas discussões no próprio grupo a respeito da
questão da Luta Antimanicomial, com o objetivo de compartilhar uma consciência
política em relação a esse assunto com os integrantes do Coral.
Como o grupo tinha como proposta o trabalho corporal e cênico, foram incluídos
durante os ensaios vários exercícios para atingir este objetivo, além da pesquisa e do
treino da parte musical, como atesta o depoimento de PASQUALINI:
Durante um tempo a gente teve uma hora de Tai Chi antes dos
ensaios, todos chegavam na hora e gostavam de fazer. Por vezes
acompanhávamos o trabalho da Renata [Neves] com Laban
22
, então essa
consciência do corpo em cena, mesmo que em formação Coral, parada,
era bastante trabalhada. A gente fazia uns exercícios que às vezes
ficavam muito legais e daí a gente incorporava numa cena. (Entrevista,
03/02/2005)
Tanto PASQUALINI quanto ANZAI, relatam situações difíceis que viveram com o
grupo, pois, apesar de não terem tido nenhuma formação específica na área da saúde
mental, a sensibilidade desenvolvida como regente, de saber lidar com música e com
pessoas, é que trouxe a solução para vários desses momentos, trazendo um aprendizado
com isso, tanto para os cantores quanto para os regentes, e fazendo repensar as
especialidades das áreas da saúde e da cultura.
22
Técnica de trabalho corporal desenvolvida por Rudolf Laban a partir da consciência dos movimentos.
74
Aconteciam coisas interessantes nos ensaios... Lembro que um
dia, um garoto surtou, e o contato que ele buscava era comigo, daí
ele voltou, normalizou, e quis me dar até a sua blusa. (ANZAI,
02/02/2005)
Tinha aquela coisa de chegar no ensaio e alguém contar um
drama muito grande que tinha passado e era uma coisa que todos ficavam
abalados. Mas então vamos lidar com isso cantando, e a dinâmica do
ensaio servia para soltar os bichos. Porque cantando a gente acaba
soltando mesmo. De qualquer forma era um bom exercício, para eles e
para mim. (PASQUALINI, 03/02/2005)
A EQUIPE
No início, a equipe era composta por alguns profissionais de CECCOs que
utilizavam parte de suas horas de trabalho para a atividade do Coral.
No período compreendido entre 1992 e 1996, além do regente, compunham a
equipe a psicóloga Cristina Lopes, a terapeuta ocupacional Márcia Novaes e a
fonoaudióloga Cristiane Mery Costa. Hoje em dia, revelando um maior
comprometimento com a interligação entre as áreas da saúde e das linguagens artísticas, a
equipe se compõe de um regente (este autor), uma preparadora corporal (Tatiana
Bichara), uma diretora cênica (Thaia Perez), um ator (Ney Pelizzon), um técnico de apoio
do CECCO (Clara Kuroda) e uma coordenadora geral (Cristina Lopes).
A principal função da equipe é escutar o grupo em suas necessidades e conseguir
articular uma produção artística, a partir dessa escuta. Cada um tem o olho (ou o ouvido,
75
ou a pele) mais atento para a função que desempenha dentro da equipe. O papel do
técnico de apoio do CECCO, por exemplo, é o de entrevistar os que freqüentam o Coral,
não importa se provenientes dos serviços de saúde mental, ou de outras procedências,
seguindo de perto o modo pelo qual se inserem no trabalho Coral; outra de suas
atribuições é controlar a freqüência dos usuários, para poder acompanhar o que se passa
com alguém, quando começa a faltar aos ensaios. Na verdade, trata-se de um elemento de
ligação entre o CECCO e o Coral.
Enquanto a parte musical está a cargo do regente, a prontidão é estimulada pela
preparadora corporal. Aos profissionais de teatro cabem o olhar externo e a orientação
geral a respeito do uso do espaço e da presença cênica, enquanto à coordenação geral
cabe mediar essas ações tão diversas, mas unidas pelo mesmo propósito, fazendo as
pontes entre o trabalho artístico e as necessidades do grupo.
Clara Kuroda, psicóloga do CECCO Ibirapuera, que acompanha o trabalho do
Coral, destaca:
... não existe uma hierarquia que determina o processo de criação,
mas as relações do grupo é que vão fazendo o processo crescer até chegar
num produto. Isso é uma diferença fundamental, pois o que vemos
geralmente nos grupos é uma centralização do poder, e da mesma
maneira que o poder é estabelecido, se imprimi o processo criativo e o
processo de trabalho. Nesse grupo existe uma contribuição de cada
profissional, cada técnico com a sua especificidade, mas nenhum saber se
sobrepõe ao outro... a somatória desses saberes é que alavanca esse
processo e faz surgir os resultados. É fantástico! (Entrevista 09/05/2005)
Como j
á apontado, com o tempo, a equipe que era composta pelo regente e por
técnicos vinculados à área da saúde vindos dos CECCOs, passou a ser constituída por
profissionais das artes (caso de Thaia Perez e Ney Pelizzon) ou mesmo por profissionais
76
com dupla formação, envolvendo a psicologia e uma linguagem artística, como
especialidade. Neste segundo grupo de profissionais, está a preparadora corporal e
psicóloga Tatiana Bichara e também outros que participaram do trabalho, como Lucila
Brandão, psicóloga e dançarina e, Beto Machado,
23
psicólogo e pianista. Percebe-se na
ampliação da equipe, e principalmente, no peso que passou a ser dado para a formação
artística de seus profissionais, a opção por um trabalho que estivesse focalizado na
produção artística. O trabalho integrado da equipe, portanto, atua tanto no campo da
criação quanto na sustentação do grupo, em suas necessidades, como confirma o
depoimento de ANZAI.
Lembro que pelo fato de terem as terapeutas ocupacionais e as
psicólogas, a coisa era muito cil, ou ao menos mais tranqüilo. O
trabalho rendia muito por conta disso, e também contava a favor a
presença dos amigos e familiares dos usuários. (Entrevista, 02/02/2005)
Observando de que modo era configurada a equipe no início, e comparando-o
com o quadro atual, que conta com seis profissionais, pode-se observar que, embora o
número de integrantes da equipe tenha dobrado, apenas dois vêm pelo CECCO. É
importante destacar que os profissionais não vinculados ao CECCO (o regente, a diretora
cênica, e os dois profissionais responsáveis pelas oficinas) realizam este trabalho como
voluntários, pois não existe nenhum tipo de patrocínio ou outra forma de subsídio a não
ser o suporte técnico profissional do CECCO- Ibirapuera.
23
Brandão participou da equipe de 1997 a 2000 e Machado esteve durante o ano de 2002. Antes, Machado já
havia participado dos programas de 2000 e 2001, como pianista e compositor da Banda Fumaça, que durante
este período acompanhou o Coral em várias apresentações.
77
ACOMPANHANTES E COLABORADORES
Alguns profissionais vieram como acompanhantes de usuários dos CECCOs ou
outros equipamentos ligados à saúde, e ficaram por períodos curtos.
24
Do mesmo modo
que alguns colaboradores se aproximaram, da área artística ou da saúde, e acompanharam
o processo da produção do grupo durante algum tempo. É o caso de profissionais do
Hospital Água Funda, de estagiários das Faculdades de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica (PUC) e da Universidade de São Paulo (USP), e de Beto Machado,
que veio como músico, apesar de recém-formado em psicologia.
AS OFICINAS
A partir da experiência iniciada pelo Coral Cênico, essa atividade desdobrou-se
em duas oficinas, destinadas ao aprofundamento de linguagens artísticas: a Oficina de
Teatro e a Oficina de Dança. Essas oficinas também estabelecem sua rotina em ensaios
semanais. Atualmente a Oficina de Teatro se desenvolve na Sala Adoniran Barbosa às
terças-feiras, das 10:00h às 12:00h, sendo dirigida por Nei Pelizzon, e a oficina de Dança,
conduzida por Tatiana Bichara, ocupa a Sala de Corpo 1, às sextas-feiras no mesmo
horário. Elas buscam atingir não os cantores do Coral que queiram se aprofundar em
determinada linguagem, mas também o público geral freqüentador do CCSP.
24
Nestes casos, propõe-se que o profissional participe normalmente das atividades, atuando como
acompanhante apenas em situações especiais.
78
Nos depoimentos de BICHARA e de FERREIRA DA SILVA, surgem indicações de que
essas oficinas atingem um público bastante heterogêneo. FERREIRA DA SILVA (2005)
acredita que as oficinas atraíram mais gente de fora do CECCO, vindas pela divulgação
do CCSP.
BICHARA atribui uma maior heterogeneidade no Coral a partir da implantação das
oficinas:
Eu acho que com a chegada da oficina de dança e da oficina de
teatro, a possibilidade da heterogeneidade, também aumentou. (...) Não
logo, no início, mas ao longo dos anos. Hoje eu vejo, por exemplo, o
grupo da dança, muito heterogêneo. (...) até muito mais que o do Coral.
Tem pessoas completamente diferentes. Talvez pela linguagem (...) que
não tem tanta fala. Um trabalho muito mais voltado para o corpo. E muito
livre, então, acho que isso faz com que as pessoas caibam. Qualquer
pessoa cabe. Desde um que tenha síndrome de Down, até um artista, um
dançarino (...) [Essa oficina] atraiu um público que veio pela dança.
(Entrevista, 24/5/2005)
A preparadora corporal avalia que este movimento das oficinas trouxe acréscimos
na linguagem artística do Coral, contribuindo para a qualidade e amadurecimento do
grupo.
AS APRESENTAÇÕES E CONVITES
79
O trabalho do Coral se completa com as apresentações, uma vez que este fazer
artístico contribui para formação, auto-estima, desenvolvimento e superação de
obstáculos dos indivíduos participantes, além de contribuir para que eles se aperfeiçoem
nas diferentes linguagens expressivas.
Além de usar o CCSP como espaço de apresentação, o grupo mostra o seu
trabalho em diversos locais, para onde é convidado, tendo se apresentado em
Universidades; Encontros de Corais; Eventos e Simpósios (Científicos e Comunitários)
ligados à inclusão; educação; saúde e cultura; em teatros; bibliotecas; auditórios; ruas ou
locais inusitados, como no interior de uma Fábrica de Tecidos, onde o Coral se
apresentou para os operários, em 2004.
Os convites para apresentações são atendidos, na medida em que as instituições
promotoras consigam responder positivamente a duas condições básicas: transporte e
alimentação para os cantores. Eventualmente, conseguindo-se um pagamento pela
apresentação, então, é discutida em grupo a melhor maneira de dividi-lo de forma
cooperativa.
Ultimamente temos conseguido que algumas das apresentações sejam
remuneradas, o que tem agregado um valor simbólico importante, que melhora a auto-
estima de seus integrantes, constituindo-se em estímulo e reconhecimento pela produção
artística do grupo. Entretanto, por vezes, a divisão desse cachê tem gerado grande
ansiedade e expectativa em alguns integrantes. Este aspecto tem sido motivo de análise
dentro do próprio grupo, provocando uma reflexão a respeito do que se pretende com este
trabalho e o significado do cachê neste momento.
80
Desde 1997, o Coral Cênico Cidadãos Cantantes organiza o Encontro Musical
pela Cidadania Plena, evento musical que acontece anualmente no Centro Cultural São
Paulo durante as comemorações da Semana da Luta Antimanicomial, em torno do dia 18
de maio (Dia Nacional da Luta Antimanicomial). Para se apresentar no Encontro, ao lado
de outros grupos convidados que, em geral, trazem propostas artísticas diversas, para
estabelecer um diálogo com os Cidadãos Cantantes - o grupo sempre prepara uma nova
montagem, que se constituirá no repertório do ano.
Os Encontros musicais no CCSP e outras apresentações do grupo serão abordados
no capítulo 2, quando se tratará especificamente da produção artística do Coral e seus
desdobramentos.
Nota-se que, no início do Coral, as apresentações ocorriam em um contexto
voltado para a saúde; somente depois é que foram ganhando outros espaços.
Nos depoimentos que relatam as primeiras apresentações do grupo houve
destaque especial para a que ocorreu no II Encontro de Saúde Mental em Brasília, pela
importância do evento, e por ter sido a primeira apresentação para um público numeroso.
Segundo PASQUALINI,
Foi uma experiência memorável para o grupo, pois a platéia
estava lotada e sabíamos para quem estávamos cantando: eram donos de
hospitais psiquiátricos, médicos, lobbistas e a receptividade foi muito
boa. Pessoas vieram falar que nunca tinham visto um trabalho daquele
tipo que não fosse apelativo ou piegas, e que este não era. Foi legal ter
visto gente chorando na platéia depois da gente ter cantado. Era uma
coisa que era política, nós sabíamos o que estávamos fazendo lá, mas
também era muito humano. (Entrevista, 03/02/2005)
81
Percebe-se que pelo vínculo do grupo com a Luta Antimanicomial, ainda, se trata
de apresentações muito setorizadas na área da saúde. Porém, PASQUALINI adverte que
mesmo nestes locais (congressos, hospitais ou presídios), o que se levava era uma
produção artística, e que isto os colocavam em outra posição, não a de doentes-passivos,
mas a de pessoas potentes e criativas, trazendo reflexão a respeito das suas vidas e do
papel transformador desempenhado pelo Coral.
Pelas apresentações havia resultados tanto para cada integrante
quanto para a visibilidade do grupo fora. Nos apresentamos na USP
(Congresso de Psicologia) e em vários equipamentos da prefeitura, como
em Hospitais-dia, onde expunham eles à realidade que eles estavam
acostumados a ver, mas por um outro lado. (...) Fomos num presídio
feminino, uma realidade muito dura, chocante, mas que eles estavam
acostumados a viver no dia-a-dia, só que eles estavam vivendo isso por
um outro lado, eles eram as estrelas. (PASQUALINI, entrevista,
03/02/2005)
NOVAES ressalta que apesar do resultado não ser o objetivo principal do trabalho a
importância da qualidade do que se faz, deve estar presente buscando-se o equilíbrio
entre o resultado e o processo do grupo.
Eu acho que sempre tem uma busca. Não é a coisa principal,
porque a coisa principal está na vinculação. È muito importante ter um
bom trabalho, porque não vai fazer uma coisa com cara de louco. A gente
nunca quis que fosse um Coral de louco, que pudesse ser qualquer coisa
por causa dos loucos. É que é difícil, eu acho que é a grande questão. É
muito difícil você chegar nisso. (...) Cuidado com o resultado, e não o
processo. (...) São as duas coisas juntas. (Entrevista, 18/5/2005)
82
ANZAI argumenta que entende as apresentações também como parte do processo
do grupo, e não como uma meta.
Como eu trabalho sempre o momento, as apresentações
aconteceram sempre como mostra do trabalho. Não tinha o objetivo da
apresentação em si. Por acaso deu certo, e acabou virando alguma coisa
com uma linha de raciocínio, um trabalho estético, mas se não tivesse
também, seria tranqüilo tanto quanto... (Entrevista, 02/02/2005)
BICHARA diz que, para além do conteúdo, e da forma do que se passa nas
apresentações, está a alteração do lugar dessas pessoas no mundo e do mundo para
essas pessoas.
Cada vez que sai para se apresentar é um novo lugar, um
reconhecimento diferente, outros pensares. (...) Como a platéia recebe,
toca o que você faz. Acho que é levar para o mundo o nosso cotidianinho
lá, das segundas-feiras. Acho que é essencial esse trabalho. Dá para
voltar, avaliar, crescer, e crescer no mundo (Entrevista, 24/5/2005).
É importante esclarecer que tais apresentações sempre foram colocadas para os
participantes como não obrigatórias. São resultantes de discussões e avaliações a respeito
de se aceitar ou não os convites, de modo que, se alguns não quiserem, não precisam se
apresentar. O programa é montado para ser realizado com o elenco que houver, porém,
são raros os que apresentam alguma resistência. A maior parte tem grande prazer em
fazê-las e as vêem como um compromisso, ajudando, a partir dessa atitude, a encorajar
outros que estejam pouco seguros.
83
RELAÇÃO CORAL, CECCO E A REFORMA PSIQUIÁTRICA
APROXIMAÇÕES E CONFLITOS
Quando BASAGLIA (1985) fala sobre viver dialeticamente as contradições do real
como aspecto terapêutico e a importância das trocas nas relações interpessoais entre todos
os envolvidos, isso vêm ao encontro da experiência do Coral.
As relações no Coral são mais definidas (o que não impede de por vezes haver
trocas de papéis, como se falou), pois visa-se, aqui, a uma construção artística coletiva,
sendo necessária uma condução técnica para que isso ocorra; porém, há muito espaço
para discussão, conversa, queixas e sugestões.
As chances de haver conflitos e contradições são inevitáveis, pois: a equipe
coordenadora é composta de profissionais de diferentes áreas (artes e saúde) que têm
como proposta a construção de um trabalho artístico com alcance terapêutico; esta
proposta se realiza na convivência pela tarefa com um grupo heterogêneo juntando
população-alvo e população geral; a realização do trabalho ocorre dentro de um espaço
público de cultura, com suporte de um serviço público de saúde (CECCO) e uma ONG
(SOS Saúde Mental, Ecologia e Cultura) com origem no Movimento Popular da Zona
Leste, vinculada historicamente à Luta Antimanicomial.
Todas essas condições são vividas dentro de suas contradições e de forma
dialética, como proposto por BASAGLIA: valorizar o trabalho artístico ou o terapêutico? O
84
processo ou o resultado? A convivência ou a realização da tarefa? Vínculo com política
pública ou autonomia? Acredita-se que não se trata de situações opostas e excludentes,
mas sim, que nelas existe um espaço em que se pode transitar num campo da
ambivalência.
A respeito do compromisso do grupo em relação às questões da Luta
Antimanicomial, pode-se dizer que o Coral participou ativamente do movimento pela
reforma psiquiátrica brasileira, por ocasião de apresentações em momentos políticos
importantes, como foi o caso da II Conferência Nacional de Saúde Mental ocorrida em
Brasíla, em novembro de 1992 e relatada nos depoimentos dados pelos ex-regentes do
Coral, ANZAI e PASQUALINI.
Outro ponto destacado por BASAGLIA na instalação de serviços substitutivos aos
manicômios é que estes sejam repensados constantemente, para que não se repitam neles
as mesmas práticas manicomiais. É importante enfatizar que o Coral está sempre em
movimento, buscando repensar sempre o seu trabalho e seu campo de atuação. Isto é
facilitado no aspecto mutante da própria configuração de seus integrantes. Como o grupo
é aberto, novos integrantes chegam enquanto outros saem, ou mesmo antigos integrantes
retornam. Este movimento do Coral, é o mesmo que o do CECCO, como observado por
GALLETTI (2004): um espaço institucional aberto, assim como um porto, de onde se
podia partir e para onde se podia voltar (p. 58).
Por coincidência ou não, o repertório do Coral contou com muitas músicas
relacionadas com barcos ou mesmo com o mar. A imagem do porto também era muito
presente. Entre elas pode-se citar: Lanterna dos Afogados (Há um cais de porto,
Pra quem precisa chegar - cantava-se essa música fazendo a forma de um barco), Gente
85
que vem de Lisboa/Peixinhos do Mar/Marinheiro Só, Minha jangada, A Paz (Eu vim,
vim parar na beira do cais...), É doce morrer mar, Peixe vivo, Da maré, Cirandeiro,
Ciranda da morena, Cavalo Marinho
25
, entre outras...
HETEROGENEIDADE NO CECCO E NO CORAL
Diferentemente do que ocorre no Coral, onde se valoriza a produção e a realização
melhor possível da tarefa proposta, respeitando os limites de cada um e o momento do
grupo, GALLETTI (2004) cita que nas atividades observadas por ela no CECCO, vivia-se
um paradoxo, pois, a valorização da convivência, em detrimento da aprendizagem ou do
lazer, provocava, muitas vezes, o distanciamento dos usuários comuns do serviço... (p.
66). Completa dizendo que enquanto o usuário dos serviços de saúde mental se
contentava com a atividade terapêutica, muitas vezes empobrecida em relação à técnica
de produção, os outros usuários exigiam um contato efetivo com a produção nessas
atividades. Diz a autora que essa era exatamente a dificuldade para se configurar grupos
realmente heterogêneos. Ela afirma que isso ocorria, em geral, pela falta de um
profissional especialista, no sentido técnico de um saber-fazer, para conduzir a oficina de
maneira a agregar um público diferenciado. Conclui que: quanto mais terapêuticas eram
as atividades, mais eram realizadas, exclusivamente, pelos usuários de saúde mental (p.
66).
25
Lanterna dos Afogados é de autoria de Herbert Vianna; Gente que vem de Lisboa/Peixinhos do
Mar/Marinheiro Só, Peixe vivo e Cirandeiro, são de tradição popular brasileira; Minha jangada e É doce
morrer mar, são de Dorival Caymmi , A Paz, de J. Donato e G. Gil , Da maré, de R. Breim e L. Tatit; Ciranda
da morena,de Gabriel Levy e Cavalo Marinho, de Cacaso.
86
Pela proposta do Coral, de se vincular a uma produção cultural, contar com a
coordenação de profissionais artistas e estar num espaço diferenciado da saúde, essa
questão se tornou menos presente, mas sem dúvida, a heterogeneidade (ver capítulo 3) foi
uma conquista gradual dentro do Coral Cênico, e as dificuldades em lidar com tempos
diferentes, limitações e compromissos, são parte do processo que se faz no dia-a dia do
trabalho do grupo.
AS OFICINAS DE TRABALHO NO CECCO (COOPERATIVAS) E O CORAL
Analisando as oficinas de trabalho do CECCO, as cooperativas, GALLETTI (p. 69-
75) aponta ao menos duas inquietações que também estão presentes no Coral. Considera
a autora que, por estarem fora do mercado, os usuários atendidos nessas cooperativas
tinham grande expectativa e ansiedade em ver algum retorno financeiro decorrente do seu
investimento, estabelecendo assim uma relação direta entre produção e dinheiro dentro
da visão capitalista de trabalho, naturalizada como modelo em nossa sociedade. Outra
questão, era como definir os critérios para a divisão do dinheiro recebido: divisão
igualitária ou proporcional ao investimento de cada um?
Estas inquietações fazem lembrar dificuldades semelhantes vividas no Coral em
relação à expectativa gerada em alguns integrantes do grupo no momento de dividir os
cachês que eventualmente recebia.
87
Historicamente, o Coral não foi criado para gerar renda, ou seja, para se enquadrar
no tipo de oficina como a que se refere GALLETTI, de gestão cooperativa, porém, com a
possibilidade de o grupo receber pagamento por algumas apresentações que fez em
universidades, entidades de classe, ou outros contextos em que se dispunha de verbas,
criou-se essa possibilidade de retorno financeiro eventual.
Os primeiros cachês vieram em 2002, que, em comum acordo com o grupo, foram
guardados em caixa, para serem divididos no final do ano entre todos os que
participavam do trabalho, separando-se uma parcela, para que o Coral tivesse um caixa-
reserva para eventuais gastos em figurinos ou outras necessidades.
A partir de 2004, o grupo, em nova conversa, e tendo em vista necessidades
emergentes de alguns integrantes, resolveu que o cachê deveria ser dividido à medida que
fossem sendo pagos. Um imediatismo que, invariavelmente, gerava frustração e
ansiedade, tanto na equipe como nos cantores, pois o pagamento por vezes demorava, em
função de dificuldades várias, desde emissão de notas a burocracias institucionais, e por
ser necessário discutir como a divisão seria feita, para que houvesse justiça.
No momento atual, o grupo avalia a conduta de recebimento e divisão de cachê,
porém, é importante salientar que, apesar de o cachê ser pequeno, tem um valor
simbólico, influindo na melhora da auto-estima dos cantores e dando um outro lugar para
essa produção construída no dia-a-dia do Coral.
Kuroda, reflete acerca da sustentabilidade do trabalho do Coral.
...o Coral se mantém na coesão pela afinidade, pela tarefa, pelo
objetivo comum e pelo afeto. Entendo o afeto como energia propulsora
de construção. Acho que nesse grupo existe muito afeto. O afeto junto
com esses outros ingredientes é a democracia. Tudo é discutido muito
88
democraticamente. Nenhum grupo que participei a gente discutia
questões como divisão de dinheiro, cachê, repertório. Todas as questões
são colocadas na roda. Existem diretrizes, não autoritarismo (Entrevista
09/05/2005).
89
_______________________________________
2 A LINGUAGEM ARTÍSTICA DO CORAL CÊNICO
FIGURA 2 Apresentação dos gatos, 2004
90
PROPOSTA
O Coral Cênico Cidadãos Cantantes tem como compromisso a produção artística,
como conseqüência de um processo de trabalho com grupo heterogêneo, pela utilização
das linguagens da música e do teatro de maneira articulada. Para atingir esse objetivo
busca a construção coletiva de um repertório que conjuga os desejos do grupo, tanto no
que se refere aos temas abordados e preferências musicais, quanto às possibilidades
técnicas de sua realização.
Em vista do que já foi colocado, a respeito de o trabalho se dar na convivência
pela tarefa, e de o grupo ser composto por um perfil bastante diversificado de pessoas,
faz-se necessário estar atento para se perceber o quanto essas condições podem ser
estimuladoras para a criação. É importante observar o que de positivo nesse fato, no
campo da troca de experiências a partir de histórias de vida diferentes, revelando
diferentes maneiras de cantar, de escutar e de ver o mundo, exercitando a tolerância no
conviver cotidiano, e trazendo a possibilidade da escuta do outro, para se reconhecer e se
diferenciar.
É apoiado nessa possibilidade de uma escuta diversa que o Coral Cênico Cidadãos
Cantantes busca desenvolver o seu trabalho.
Num grupo com esse perfil de integrantes é importante estar atento tanto às
dificuldades, quanto às potencialidades dos participantes. Para isso, é necessário
desconstruir alguns conceitos prévios acerca do trabalho Coral, que tem a homogeneidade
sonora como meta, ou mesmo alguns conceitos acerca da afinação e da condição de ter
boa voz para cantar.
91
No capítulo Uma maneira de cantar, da apostila Monitores Corais, Samuel
KERR pontua a riqueza e a importância de o regente estar atento às várias maneiras de
cantar, no intuito de preservar a individualidade dos cantores do coro.
A ampla disponibilidade em receber os Cidadãos Cantantes, uma vez que a
participação no grupo prescinde de qualquer tipo de teste ou entrevista prévia, não
pressupõe um afrouxamento de regras a ponto de comprometer a realização do projeto
artístico; pelo contrário, essa é a meta final que todos almejam, tanto equipe
técnica/coordenadora, quanto os cantores. Sendo o trabalho calcado na construção desse
projeto artístico, e na possibilidade de sua apresentação pública, o que garante, aliás,
maior motivação ao grupo, torna-se fundamental a participação e a concentração de todos
nos ensaios, assim como o respeito e a disciplina, pois são condições indispensáveis para
se atingir a convivência e a construção artística.
O que se deseja é que tais condições possam ser garantidas pelo envolvimento de
cada integrante no processo do trabalho, e não como exigências prévias, pois como
pontua o maestro KERR, não é que você precise ter disciplina para ter música. Se você
tem música, obtém a disciplina (2000, p. 161).
O que caracteriza o trabalho é que esse grupo tem como princípio a convivência
na diferença e, como meta, a possibilidade de vivenciar uma produção construída a partir
desse princípio.
Busca-se desenvolver a capacidade de cantar e de se expressar corporalmente de
maneira coletiva, por meio da montagem de um repertório que tenha identidade com os
cantores, e a partir disso, criar um programa que revele algumas questões emergentes no
92
grupo. Este programa culmina no Encontro Musical pela Cidadania Plena, que
comumente ocorre durante o mês de maio, no CCSP.
Também é objetivo desse trabalho desenvolver a capacidade de ouvir e de falar,
no intuito de promover o desenvolvimento humano, a sociabilidade e a troca de saberes;
essa conduta tem permitido revelar potenciais criativos dos participantes e promover a
inclusão de todos no processo de construção do programa, de maneira a considerar as
singularidades individuais.
Além do ganho mais amplo, da relação individual e coletiva, busca-se um
aprimoramento técnico por meio de atividades musicais e corporais que estimulem as
habilidades motoras e a afinação, de maneira prática e aplicada ao repertório,
desenvolvendo capacidades diretamente ligadas aos processos de cantar e atuar, tais
como concentração, prontidão, audição e o sentido de pertencimento à coletividade.
REPERTÓRIO
PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO REPERTÓRIO E ROTEIRO DE PROGRAMAS
A expressão do Canto Coral para este trabalho se faz do canto em uníssono à
aplicação de montagens simples a vozes, tais como cânones, contra-cantos, ostinatos,
26
ou improvisações.
26
Ostinato é um procedimento musical que consiste na repetição de pequenos fragmentos rítmicos ou
melódicos na construção polifônica.
93
O processo de construção do repertório, assim como o surgimento dos temas que
serão desenvolvidos em cada programa, são discutidos em conjunto e procuram trazer à
tona os assuntos que mais interessam os integrantes do grupo em um dado momento. Em
geral, combina composições ou poesias criadas pelos próprios integrantes do grupo, com
músicas consagradas no contexto da cultura brasileira, provindas do cancioneiro
popular, do folclore ou da chamada MPB, e incluindo diferentes estilos, do rock ao rap,
do samba à seresta, da música profana à religiosa.
A discussão a respeito do tema a ser abordado e seu desenvolvimento inclui a
participação de todos, e são momentos plenos de descobertas, pois existe uma grande
abertura para a vazão dos desejos e sonhos de cada um. É um momento em que todos
podem fazer uso da palavra para expressar suas vontades e sentimentos, configurando um
exercício cotidiano de tolerância que acontece no grupo, e que busca coadunar as forças
criativas e os desejos tanto nos planos individuais quanto no coletivo.
27
Busca-se, também, na pesquisa de repertório, valorizar as potencialidades
individuais, como, por exemplo, a de fazer um solo, falar um texto, tocar um instrumento,
ou dançar.
A partir de discussões, ocorridas durante os ensaios, busca-se, em um grupo
menor, composto pela equipe coordenadora e alguns cantores, uma unidade para esse
repertório, pela elaboração de um roteiro que possa nortear a futura montagem. Esse
roteiro é uma organização do material musical e cênico a ser apresentado, e propõe
atuações de cada um, como, por exemplo, sugestões de atribuição de papéis, inclusão de
27
Essa é uma característica peculiar desse grupo, pois no exercício dessa conversa franca, todos os assuntos
são levantados, da doença ao estigma, da ação política à ação cotidiana de cada um, das dores às alegrias.
94
textos, maneiras de construir as seqüências das canções, discussão sobre figurinos e
concepção cênica.
Esse processo de pesquisa e construção de programa pode ser entendido como um
processo de composição, feito a partir das necessidades e possibilidades do grupo, pois,
como coloca KERR em sua apostila para regentes corais:
São trabalhos de composição:
A organização do material musical,
A montagem de um roteiro,
A viabilização de um projeto sonoro.
Assim como tambémo trabalhos de composição:
Lidar com o disponível
Organizar o som possível
Dar forma ao som idealizado. (1989, p. 14)
E, imediatamente após esta citação, fazendo uma ligação com o trabalho do Líder
(regente) e seu Gesto, o mesmo autor comenta que o regente, à frente da sua comunidade,
é o articulador dos sons, identificador das capacidades musicais, animador do exercício
musical, ativador da memória musical da comunidade e das pessoas. (...). Ao organizar o
som possível, o regente se exercita como compositor. Ao liderar as disponibilidades, ele
se exercita como regente ( p. 15) (grifo do pesquisador).
A disponibilidade de ouvir o coro (representado aqui como comunidade), para se
construir o programa, é o exercício cotidiano que se busca no trabalho com o Coral
95
Cênico Cidadãos Cantantes. Trata-se de um projeto sonoro oriundo da articulação da
vivência do regente com a possibilidade da escuta da comunidade.
Revendo os roteiros musicais do Coral Cênico, e extraindo-se uma lista dos temas
que foram abordados nos diferentes programas realizados no período de 1996 a 2004,
pode-se notar que o tema da loucura e seu estigma vão, gradativamente, deixando de
ocupar o primeiro plano na montagem, na medida em que o grupo se torna mais
heterogêneo, e a questão da Luta Antimanicomial passa a ser vista de uma maneira mais
ampla do que apenas a substituição dos hospitais psiquiátricos. Em 1996 existiu um
trabalho de resgate do potencial criativo, por meio da valorização de histórias e
experiências individuais, que se seguiram ao lançamento do livro O Vôo das Borboletas
(1996), de vários autores do Coral, e, em 1997, esse momento do sofrimento em hospital
psiquiátrico, foi compreendido como o Passado, dando espaço para se falar, no
presente, de necessidades básicas, tais como o amor e a inter-relação com o mundo, no
sentido de trocas nos planos objetivo e subjetivo. O sentimento do medo do desconhecido
(ou daquilo que não se vê... eu vi uma onça gemer, na mata do arvoredo, trecho
trabalhado cenicamente e cantado na Toada de Boi Maranhense)
28
e a captura de
situações em que a loucura, assim como a catarse ou o transe, presente no repertório nas
canções de orixás dos filhos de Gandhi, é socialmente aceita, foi o enfoque do programa
de 1998. Em 1999 foram buscados encontros, elos, tecendo uma rede a partir de
diferentes fios. Neste ano foi feito um grande congraçamento entre os corais convidados e
28
Toada de Boi trazida a São Paulo por Tião Carvalho.
96
o Coral Cênico, formando, ao final do programa uma grande ciranda Essa ciranda não
é minha só, ela é de todos nós, ela é de todos nós.
29
A partir de 2000, a temática passa a ser mais diversa, envolvendo, além das
discussões sobre preconceito e segregação, a crítica social, o humor, a questão
fundamental do trabalho, a questão da paz, e outras, que eram de interesse do grupo em
determinado momento.
Abaixo se apresenta a lista dos temas abordados no período 1996/2004.
1996 - A loucura: o confinamento e a possibilidade criativa como alternativa
1997 - Cantar é mover o dom: o Passado, o Amor, Ver o mundo
1998 - O medo, a loucura e os ritos populares
1999 - Tramando elos... encontros
2000 - 500 anos de Brasil: diversidade, cores e esperança
2001 - O trabalho, a loucura e seus estereótipos: homenagem a Raul Seixas
2002 - 10 anos de Coral Cênico Cidadãos Cantantes: uma história de resistência
2003 - Movimento das águas: a construção do guerreiro e a paz
2004 - do alto do telhado: os gatos e a vida urbana nos grandes centros (SP 450
anos)
Essa passagem é notada pelas diferenças nas temáticas abordadas no repertório e
pela maior diversificação nos locais de apresentação. Nota-se no repertório, nos anos
iniciais do coro, que havia a preocupação em falar da loucura e do sofrimento causado
pela exclusão, representado concretamente pela existência dos manicômios. Um exemplo
dessa preocupação temática foi a encenação da música Balada do Louco, que se tornou
carro chefe do Coral, e permaneceu no repertório de 1992 a 1996. NOVAES (2005)
29
Cirandas de Pernanbuco, organizadas por Antulio Madureira, em anexo.
97
assinala que a mudança no repertório deu-se a partir de 1996, coincidindo com o
momento em que ocorria um retrocesso na política de saúde municipal, pela imposição
do PAS e abandono de muitos serviços que vinham se desenvolvendo afinados com os
princípios da reforma psiquiátrica e da Luta Antimanicomial.
A partir daí, o repertório não aborda apenas o tema da loucura ou do sofrimento,
mas, neste outro momento, já aparece associado ao humor ou à ironia, como se pode
observar no caso de Pirex,
30
música de Itamar Assumpção:
Dizem que eu sou pirex, pirex
Mas pirex não sou não, não, não
Não sou rolo de durex
Durex eu não sou relax
Relax não é fax não
Não é fax não
Pirex não é fax não, não , não
Pirex não é fax não
(Abre-se um pequeno parêntese para relatar o quão marcante foi a participação de Itamar
Assumpção no III Encontro Musical. O cantor e compositor, com sua irreverência
característica, lentamente, em sua apresentação foi criando empatia com a platéia até
chegar ao fim de sua participação. Ao som dos aplausos e pedidos de bis,
inesperadamente, sobe ao palco da sala de teatro Jardel Filho, um dos cantores do Coral
Cênico, Gil Pires, que, identificado com Itamar, talvez em sua negritude, humor ou
loucura assumida, manifesta seu desejo de cantar uma música junto com o artista, no que
é prontamente atendido, e juntos cantam a música ainda inédita de I. Assumpção, Pirex.
No final da música, Itamar pega G. Pires no colo, o qual, em seguida, retribui o
cumprimento com o mesmo gesto... Este momento seguido da resposta acalorada do
30
A partitura da montagem de Pirex com Claridão está inserida em anexo.
98
público estão registradas com muita emoção no vídeo São Paulo: Dez anos de Produção
Antimanicomial, de autoria do vídeo-maker Celso MALDOS, 1999).
O caráter mais abrangente do repertório fica também expresso em outros
momentos, como na temática das carências, trabalhado em 1998, que gerou a montagem
de uma cena: “‘Coitadinho é carinho?; ou na questão da culpa, em Ilegal, Imoral ou
Engorda, (Roberto e Erasmo Carlos); ou nas canções de Raul Seixas, dialogando com o
estereótipo do Maluco Beleza e com o incômodo da diferença, em A Mosca, entre os anos
de 2000 e 2001. A questão do trabalho enfocado no Vendedor de Bananas (Jorge Benjor),
da diversidade, em Alma não tem cor (André Abujamra), ambos de 2001, ou do amor, em
Eu só quero um xodó (Anastácia e Dominguinhos), do repertório de 1998.
A inclusão de canções originais ou poesias de autoria dos integrantes do grupo
teve grande peso nessa passagem, pois valorizavam a produção de cada um pela
capacidade, trazendo assim um aspecto positivo e, mudando o foco, do campo da loucura
e exclusão, para o campo da criação e constituição de território.
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO PROGRAMA DE 2004
Como exemplo deste processo de construção do repertório com o grupo,
apresentam-se, a seguir, os passos trilhados pelo Coral no período de construção do
programa de 2004. Assumo, para isso, a narração em primeira pessoa, pois como regente
do grupo, era uma das pessoas envolvidas nessa criação.
99
A partir do final de 2003, surgiram algumas sugestões para o repertório de 2004.
A canção Azul da Cor do Mar (Anexo 2), de Tim Maia, foi uma delas. Ao ouvi-los
cantar, parecia que os cantores tinham muita identidade com essa canção.
Azul da cor do mar (Tim Maia)
Ah... se o mundo inteiro me pudesse ouvir
Tenho muito pra contar
Dizer que aprendi
Que na vida a gente tem que entender
Que um nasce pra sofrer
Enquanto o outro ri
Mas quem sofre sempre tem que procurar
Pelo menos vir a achar
Razão para viver
Ter na vida algum motivo pra sonhar
Ter um sonho todo azul
Azul da cor do mar...
Trabalhando com mais atenção sobre a canção, foi possível perceber a força que
tinham seus versos e sua condução melódica, e as possíveis razões que faziam que as
pessoas do Coral se identificassem tanto com ela.
No final de 2003, em conversa com Vitor Paulino Jr. (ou Preto Jóia Paulista,
como prefere ser chamado) um dos cantores que, em virtude de um acidente
automobilístico, ficou com muitas seqüelas, tendo dificuldades para cantar e falar ficou
a impressão de que essa canção falava de coisas parecidas com o que ele havia dito, pois
100
seu discurso trazia termos como: respeito, necessidade de acreditar (um motivo pra
sonhar, razão para viver) e importância de ser ouvido (tenho muito pra contar).
1
Naquele ano, os ensaios começaram sem um tema definido, cantando Azul da Cor
do Mar e desenvolvendo alguns trabalhos com cânones, para habituar o coro a cantar a
vozes.
O tema dos Gatos surgiu nas conversas a respeito das comemorações dos 450
anos da cidade de São Paulo. Era preciso ter a esperteza dos gatos para sobreviver
nessa cidade. Perguntamo-nos, então, como e quando nos sentíamos gatos. A partir daí,
foram buscados textos e canções que fizessem alguma referência a gatos.
A canção disparadora desse processo foi Negro Gato (Anexo 3), composição de
Getúlio Cortes.
32
Foi a partir dela que se iniciou a construção do repertório, com uma
pesquisa a respeito dos gatos.
Cantada durante os ensaios com acompanhamento de piano, essa canção gerou
grande identidade com o grupo, colocando-se como um estímulo para a pesquisa que se
desenvolvia.
33
Uma música lembrada, e prontamente reconhecida e assimilada pelos
participantes, foi a canção dos gatos do musical Os Saltimbancos
34
(Anexo 4), da qual
cantamos apenas o refrão. Outra, foi O Vira, de João Ricardo e Luli (Anexo 5), que, pela
31
Nessa época, Vitor gravou uma fita em forma de depoimento intercalada com uma trilha sonora. Vitor já
havia trabalhado com produção de programas para uma rádio comunitária. E como havia contado que estava
fazendo um trabalho de pesquisa enfocando a produção do Coral, ele quis colaborar. Depois dessa passagem,
ele passou um período afastado do Coral, retornando no segundo semestre de 2004.
32
Essa canção foi gravada originalmente por Renato e seus Blue-Caps, no ano de 1963, e muito difundida
na interpretação de Roberto Carlos, de 1965. Posteriormente foi gravada por Luiz Melodia e por Marisa
Monte.
33
A presença do piano como instrumento acompanhante foi marcante desde o início da pesquisa de
repertório, criando força e identidade para interpretação das músicas.
34
História de uma gata (do musical Os Saltimbancos) de Enriquez-Bardotti, com versão de Chico Buarque
(1977).
101
faixa etária dos participantes do grupo a maioria entre 30 e 40 anos , trazia a eles
referências de memória. Essa música fora um sucesso, na interpretação de um irreverente
grupo da década de 1970, os Secos & Molhados,
35
em que o cantor Ney Matogrosso
aparecia maquiado e chocava a sociedade da época, questionando valores firmemente
sedimentados, com sua dança, trejeitos e roupas.
Essa canção, durante os ensaios, trazia um momento de grande ludicidade para o
grupo, com todos se relacionando através da dança e dos olhares, instaurando-se uma
verdadeira festa associada a seres mágicos da noite, da floresta e a possibilidade mágica
da transformação (vira lobisomem).
Trazendo a presença provocativa do gato preto, símbolo de azar no imaginário
popular, e por isso, estigmatizado, a canção apresentava também essa provocação, com a
proposição do questionamento aos preconceitos e pela convivência (festiva) de seres
muito diferentes.
Com essas quatro canções, conseguiu-se um primeiro estímulo musical, a partir
do qual se poderia desenvolver a temática dos gatos, tendo em vista a construção do
programa daquele ano.
Durante as conversas com o grupo, surgiram identidades, coincidências e livres
associações que foram estimuladas e muito bem-vindas, pois contribuíam com vigor para
a construção do programa.
35
Em entrevista com Ney Matogrosso para a REVISTAGOL 21/OUT/2004, o cantor lembra da repercussão que
causou sua atuação: ...o Brasil era um país careta, submetido a uma ditadura militar agressiva. Claro que eu
fiquei surpreso com a repercussão. Eu sabia que estava provocando. (...) O que eu fazia era para chocar e
questionar. Quem disse que homem não pode rebolar, ser sensual, provocar?.
102
Algumas características dos gatos foram levantadas, logo na primeira pesquisa,
quais sejam: autonomia, independência, sinceridade. Apontou-se, também, o fato de o
gato ser um animal de hábitos noturnos.
Tratando da relação entre humanos e gatos, duas mulheres, egressas de hospitais
psiquiátricos e que hoje vivem em lares abrigados, deram seus depoimentos; uma delas
contou que dormia com seu gato, enquanto a outra revelou que seu gato parecia entender
seus sentimentos.
Outros integrantes do grupo lembraram, ainda, de um gato que tinha cabeça, mas
não corpo, sorria o tempo todo, e tinha a faculdade de aparecer e desaparecer, quando
menos se esperava. Referiam-se ao Gato do texto de L. Carroll, em Alice no País das
Maravilhas,
35
trazendo um universo do non-sense e do humor para os ensaios (Anexo 6).
Dessas livres associações mentais, passou-se a uma pesquisa corporal, conduzida
pela preparadora corporal e pela diretora cênica, que tinha o propósito de trazer à tona o
gato de cada um, ou ainda, o gato que vive em cada cantor. Utilizando boa parte do
tempo de ensaio para uma longa pesquisa de intenção corporal, buscou-se a construção de
gatos, ao mesmo tempo em que se davam nomes aos sentimentos, atitudes e ações que
iam surgindo no decorrer da atividade, no intuito de dar um sentido pessoal a cada gato.
Nos títulos dados para construção dos gatos de cada componente do coro, surgiram
termos como: fome, arrepio, vergonha, braveza, ousadia e astúcia. Surgiram, também,
adjetivos ou expressões designadores de certas atitudes, como: satisfeito, desafiador, à
espreita, brincalhão, fera ao ataque, e gata mansa. E ações próprias aos gatos, como:
afiando as unhas e se enturmando.
35
Alice no País das Maravilhas: Uma história de Lewis Carroll contada por Ruy Castro. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 1992.
103
Durante a pesquisa de repertório, a equipe técnica colocava-se como parte do
grupo, não se furtando a trazer opiniões e sugestões. Nesse sentido, foram sugeridas duas
peças: uma canção da Rita Lee (Eu e meu gato)
37
(Anexo 7) e o refrão da canção Gato
Gaiato
38
(Anexo 8), de Jean, Paulo Garfunkel e Prata. Da letra desta última canção,
criou-se o título para o espetáculo: do alto do telhado, fazendo alusão a ver de cima e
estar sem os pés no chão. No telhado, vive-se em risco, pela necessidade constante do
equilíbrio, mas ao mesmo tempo, ele é um lugar privilegiado para se ver o mundo.
Parecia uma boa metáfora das condições de vida de muitos integrantes do grupo e isso
fez que valesse a pena ser explorada.
Faltava, ainda, encontrar um espaço para incluir a canção Azul da Cor do Mar,
39
pois essa música não fazia nenhuma ligação direta com a temática dos gatos, porém,
considerou-se que esse ver do alto do telhado poderia proporcionar uma visão
panorâmica dos personagens urbanos da cidade, para, assim, chegar-se à voz-Coral,
como um comentário da ação desenvolvida até ali: Ah, se o mundo inteiro me pudesse
ouvir....
Junto com a idéia desse comentário da ação, o que se delineou para esse final, foi
uma cena representando uma serenata, realizada em clima noturno (identificando-se com
o traço notívago dos gatos), com os músicos e coro cantando e olhando em direção à
mesma janela imaginária.
Surgiram, ainda, duas possibilidades de intervenção: o solo da música Fora da
Lei, de Ed Motta e Rita Lee (Anexo 9), e uma poesia de Fernando PESSOA (1972) (Anexo
10), ambas sugeridas por César, um dos cantores do grupo.
37
Canção de Rita Lee gravada em 1978, no LP Babilônia e disponível em CD.
38
Canção inserida no CD Sobre todas as coisas, de Zizi Possi, de 1991.
39
Canção de Tim Maia incluída no LP de estréia do compositor, lançado em 1970.
104
Os membros da equipe concordavam que todo o trabalho musical, intelectual e
corporal tinha por objetivo dar sentido ao que o grupo cantava, pois havia uma constante
preocupação de que aquilo que estava sendo dito e representado tivesse ressonância em
cada participante. Com isso, a partir do texto da canção de Os Saltimbancos e da
indagação: o que isso tem a ver comigo?, surgiram alguns elementos para se pensar,
não mais nos gatos, mas, sim, diretamente nos membros do grupo.
A idéia de pertencer a um território e defendê-lo com unhas e dentes; não ser
submisso; não estar incluído dentro de um sistema; ser pobre, porém livre; não temer o
perigo; viver em desequilíbrio; a divisão de classes em nossa sociedade entre os que
mandam e os que obedecem; a força do bando e a independência; foram algumas das
pontes feitas pelos próprios cantores, para que se pudesse chegar à construção de um
roteiro, com muita vida, e pleno entendimento do que se queria dizer.
Apresenta-se abaixo o roteiro sumarizado da apresentação de maio de 2004 no
CCSP.
Cena 1 Início: Piano toca do alto do telhado instrumental e com liberdade de
andamento. O coro, como gatos, entra no palco: cumplicidade e olhares entre os gatos.
Subida de alguns gatos para o plano superior da platéia.
Cena 2 - Sons da noite (girando no ar tubos conduíte). Enquanto o som do piano vai
sumindo.
Cortem- lhe a cabeça ... (texto da rainha de Alice no país das maravilhas)
Cena 3 - Negro gato Coral
Cena 4 - Lá do alto do telhado:
todos / corte para poesia de F. Pessoa
todos / corte para canção Fora da Lei
todos / corte para o diálogo entre Alice e o Gato
todos / final
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Cena 5 - O Vira
Cena 6 - Eu e meu gato
Cena 7 - Atirei o pau no gato - instrumental.
Cena 8 - Senhor, senhora, senhorio, Felino, não reconhecerás, coro-falado repetido pelo
coro até criar força e unidade.
Cena 9 - Canção dos Saltimbancos, refrão cantado
Cena 10 - Voltam os sons da noite (girando no ar tubos conduíte)
Azul da Cor do Mar
Assim ficou a forma final do programa, a partir de toda a pesquisa desenvolvida
nos ensaios. Para a Cena 1 foram utilizados muitos dos elementos pesquisados pelos
integrantes na busca do gato de cada um (ações físicas). Logo no início do programa,
tem-se a intenção de passar para platéia o clima da noite, entre mistério e perigo, na
insistência de um ou mais sons agudos e contínuos (tubos conduítes) que geravam uma
certa tensão e um estado de prontidão na entrada do coro em cena. Essa ação é
interrompida com a entrada abrupta da Rainha falando o texto de L. Carroll, que brinca
com a situação non-sense da ordem expressa dada por ela, para que se corte a cabeça de
um gato que só tem cabeça. Depois dessa abertura cênica é que o Coral faz sua primeira
intervenção musical com Negro Gato, ainda mantendo as atitudes dos gatos. A astúcia do
gato é evidenciada no refrão da segunda canção cantada pelo coro: Lá do alto do telhado
pula quem quiser, só o gato que é gaiato cai de . Era tal sentimento que nos
aproximava dos gatos e trazíamos como necessário para sobrevivência nas grandes
cidades.
A independ
ência e a sensualidade, aspectos levantados por eles como
características dos gatos, estavam presentes na poesia de Fernando Pessoa (Que tens
instintos gerais /E sentes só o que sentes) e no solo feito por César para a canção Fora
106
da Lei (Dois gatos pingados fora da lei /ela é a rainha eu o rei). O Vira trazia a
possibilidade da festa e da transformação, enquanto Eu e meu gato, com o coro se
dividindo entre bando feminino e bando masculino, trazia a irreverência e o risco
como parte da vida (Mas o que eu gosto é de andar na beira do abismo, do
abismo/Arriscando minha vida por um pouco de emoção).
A canção Atirei o pau no gato - instrumental, ocorre após o coro se deitar no
chão, e se instaurar o silêncio entre os gatos que se acomodam para dormir. Este
silêncio é interrompido violentamente pelo som do piano tocando essa canção infantil
tradicional brasileira. A inclusão dessa música deveu-se à observação de uma das
improvisações feita pela pianista Zina Waisberg (2004), em um início de ensaio. A
brincadeira com essa canção infantil poderia contrastar fortemente com o clima de
insubordinação dado pela música dos Saltimbancos. Essa espécie de intromissão do piano
causa uma reação no coro, que buscando se juntar em bando, murmuram as palavras de
ordem Senhor, senhora, senhorio, Felino, não reconhecerás, até que o bando todo unido
canta a canção. Fazia-se essa canção de maneira contundente, e dirigindo essas palavras
para a platéia. Voltando aos sons associados à noite (tubos de conduítes), o coro vai se
organizando em bando novamente, agora para cantar como numa serenata, em direção a
uma janela imaginária, a canção de Tim Maia Tenho muito pra contar, dizer que
aprendi.
Após a estréia em maio, como de costume, foi feita uma avaliação em grupo, em
que se sentiu necessidade de incluir uma cena ou uma música, que fizesse uma ligação
maior entre o final da canção dos Saltimbancos e a serenata, que utiliza a canção Azul da
107
Cor do Mar. Nesse mesmo dia, Reinaldo Nascimento, um dos integrantes, trouxe uma
poesia escrita por ele logo após a apresentação de 16 de maio.
Mar da Palavra (Reinaldo Nascimento)
Quero o mar,
O mar palavra.
Tragam água aqui
Tragam todos os peixes, todos os navios em seu fundo
Quero a água da palavra
A palavra que escorre pelas mãos
Como o destino, como o amor,
Palavra duvidosa.
O amor é um som só de surdos
Que tem as palavras nas mãos.
Trazendo ao mesmo tempo a necessidade da palavra falada e ouvida, e a
dificuldade com essa mesma palavra, quando se trata do amor e outros relacionamentos
humanos, não fazia a ligação que faltava, como também se encaixava como uma luva:
era o momento de ouvir as palavras cantadas pelo Coral, agora não mais como gatos,
mas seres humanos falando de suas experiências. Desde então, Mar da Palavra foi
incluída no programa.
COMPOSIÇÕES E POESIAS ORIGINAIS DE SEUS INTEGRANTES
Em 1996, o Coral lan
çou um livro de poesias criado por seus participantes,
amigos e familiares. Reunindo a produção poética de dez autores diferentes, O Vôo das
108
Borboletas foi resultado de intenso trabalho desenvolvido em 1995, e comentada no
capítulo 1, quando se abordava o histórico do grupo.
Na Apresentação do livro, datada de janeiro de 1996, LOPES, destaca este
importante momento da produção do grupo:
O Vôo das Borboletas reúne a produção de 10 autores que
praticam o talento do feitiço das palavras, ressignificando sensações,
vivências, reorientando práticas.
Foi em agosto de 95 que se iniciaram as primeiras reuniões com
estes autores, para dar forma ao sonho de tornar público o que se faz
sozinho, ausente de tempo e censura. (...).
A existência de pequenos e genuínos espaços de vida vem
facilitando a expressão dos talentos, pré-requisito para o reconhecimento
de potencialidades, auto-estima e individuação. (...) Reunidos no Coral
Cênico de Saúde Mental de São Paulo, cuja senha pactual é criar e
recriar, cantar a vida, traçando um repertório de conjunto solidário na
construção de uma cultura antimanicomial, muitos desses artistas-
cientistas puderam potencializar suas criações e neste espaço de vida
organizar o primeiro Panapaná.
40
(1996, p. 6-7)
Ao ver a produção poética destas pessoas, a pergunta inevitável era: se faziam
poesias será que tinham alguma canção? Ou: seria possível compor algo a partir dessa
produção poética editada? Foi quando se constatou que várias daquelas poesias já
haviam sido concebidas anteriormente como textos para canções, pelos seus autores.
Exemplos disso podem ser encontrados em algumas composições de Márcio Luiz
Oliveira e Zé Ivan de Lima que, juntamente com Dirceu Borges, eram os que
apresentavam maior afinidade com a música.
40
Panapaná: [Do Tupi panapaná] Migração de borboletas em certas épocas, que chega a formar verdadeiras
nuvens. (Novo Dicionário Aurélio, 1986).
109
Estas canções, cada uma a seu modo, impressionavam pela consciência da forma e
originalidade poética. Mas o programa não era composto unicamente por canções. Além
delas, utilizavam-se, também, nessa construção, algumas poesias declamadas, destes e de
outros autores do grupo.
As canções de Márcio Luiz Oliveira se aproximavam do universo pop/urbano,
versando sobre a solidão e o sofrimento humano, enquanto as de Dirceu Borges,
apresentavam muito humor e inventividade poética, percorrendo estilos musicais
populares, como o samba ou a marcha, e tinham como tema suas investidas ou
desventuras amorosas.
Ivan de Lima, com uma produção fecunda e formalmente bem acabada,
compunha forrós e baiões, em que misturava, com leveza e humor, a temática do amor e
das festas populares, não deixando faltar uma dose de erotização, típica dessa música.
Suas canções traziam elementos musicais e poéticos folclóricos, vinculados ao Nordeste
brasileiro, uma vez que ele é nascido no Ceará.
Durante os anos de 1996 a 2000, tais produções foram muito aproveitadas, sendo
apresentadas, ora como solo momentos individuais que contemplavam uma produção
própria ora com alternância entre solo e coro.
A criação individual sempre fora muito valorizada pelo grupo, fazendo que os
compositores se sentissem cada vez mais estimulados com esse trabalho, demonstrando
muita receptividade por parte do Coral, em ouvir o que o outro tinha a dizer e contribuir
para integrar essas idéias ao programa, quer na composição da cena, quer na interpretação
musical.
110
Na maior parte das vezes, as canções compostas pelos membros do coro eram
acompanhadas por violão. O processo de sua adaptação para o coro dava-se da seguinte
forma: primeiramente, gravavam-se as canções, tal como haviam sido compostas, sem
nenhum apoio instrumental, para, posteriormente, organizá-las de modo a serem cantadas
pelo grupo, concebendo as harmonias e pensando na melhor maneira de o Coral atuar na
interpretação dessas músicas.
FIGURA 3 - Foto de José Ivan fazendo um solo de gaita no III Encontro Musical
Nas músicas de Zé Ivan, geralmente, era fácil a inclusão do Coral, por terem sido
compostas dentro de uma estrutura organizada em estrofes e refrão, apenas composta de
duas partes, A-B. Pode-se citar como exemplo a música Quero o teu xodó, composta
nessa estrutura, sendo B a melodia correspondente ao refrão e A, a melodia
correspondente às diferentes estrofes (A, A, A’’). Assim, o Coral cantava sempre o
111
refrão, que se repetia na seguinte forma A B A B A’’ B. Ivan sempre se acompanhava
em algum instrumento de percussão, em geral um caxixi ou um pandeiro.
FIGURA 4 - Partitura de Quero o teu xodó, José Ivan de Lima
112
Figura 5 - Dirceu cantando o Batuque na Latinha, com Gil Pires à esquerda e Zé Ivan, à direita.
O Batuque na Latinha de Dirceu, também era interpretado como solo, porém, dois
cantores atuavam como instrumentistas de apoio: Zé Ivan, com um caxixi e Gil Pires
fazendo uma percussão de boca que lembrava muito um tamborim utilizado no samba.
Após o cantor e seus acompanhantes darem o seu recado, na repetição da música, todo
o Coral entrava, cantando junto em uníssono, um recurso de arranjo muito comum em
sambas, e que dá a sensação de um crescendo musical, pela multiplicação de cantores,
como se todos ficassem contagiados por aquela canção.
113
Figura 6 - Partitura de Batuque na Latinha, Dirceu Borges
Trecho da letra de Batuque na Latinha (Dirceu Borges)
Não fale de ontem pra mim
Pois a minha dor não tem fim
Eu sou um pobre coitado
Que joga com o dado
Pra ter você pra mim ...
Nas músicas de Márcio, sua atuação solo por vezes dificultava a participação do
Coral, por sua interpretação ser muito personalista e suas letras difíceis de memorizar. Os
versos, geralmente, não eram simétricos e, não raramente, o autor utilizava, como
recurso, inventar palavras em suas criações poéticas.
114
Nessa época, se autodenominava Príncipe Bizarro, um personagem criado por
ele e inspirado no cantor Prince, que era, então, seu ídolo. Seus solos eram sempre
intercalados por momentos de dança, que demonstravam um outro talento de Márcio.
Destaque-se, também, que o próprio Márcio concebia o seu figurino, e que Dona Alice,
cantora do grupo, em uma das temporadas, atendeu o seu pedido e costurou a roupa que
ele havia imaginado para a apresentação do seu Príncipe Bizarro.
Figura 7 - Márcio cantando Na Seca vestindo a camisa concebida por ele e confeccionada por
outra integrante do grupo.
Um exemplo de sua produção musical é Na Seca, incluída no repertório de 1997.
115
Longe de tudo na seca
Onde só a fome é gorda
Morrem miseráveis tristes
Qualquer coisa fina de valor
Na mão magra da pessoa esquelética, vira Deus (...)
Figura 8 - Partitura de Na Seca, Marcio Luiz Oliveira
O valor poético de sua produção, foi ressaltado pelo professor de Literatura
Brasileira da USP, Alcides Villaça, em abertura que escreveu para o livro de poesias de
Márcio L. Oliveira. Diz o professor:
O modo poético deste príncipe começa pela linguagem. Não se
pode dizer que ele a domine (...) os deslizes são inúmeros (...) No entanto
a poesia existe para surpreender, e o nosso príncipe surpreende, tirando
proveito do que seriam insuficiências de expressão e compondo, mesmo
116
com elas, e sobretudo por causa delas, o seu próprio estilo. Com muita
freqüência encontra formas de dizer e imagens admiráveis.
(Apresentação, 1997)
É interessante notar como a criação individual se irradia para outras formas de
criação, envolvendo outros membros do grupo; assim que entram em contato com a obra
do companheiro, como que se sentem estimulados a colaborar na sua inclusão no
programa do Coral: um imita um instrumento, outro acompanha, outro costura, outro
dança, outros cantam, enfim, todos se apropriam da obra... É necessário estar atento a
isso, pois os líderes do grupo têm que saber que os cantores têm talentos e que, ao
valorizá-los, isso traz benefícios para todos: O cantor também sabe coisas, outras.
(KERR, 1989, p. 19).
Ressalte-se, porém, que o processo de criação e montagem de programa nem
sempre é tranqüilo, pois há, constantemente, um cruzamento entre energias criadoras,
tanto no campo individual quanto no coletivo, que podem dar margem a atritos e mal-
entendidos.
A possibilidade de atuar em solo, em geral, cria grande expectativa, mas o
objetivo de se escolher solistas era valorizar o que as pessoas traziam, e não colocar o
solo como mera realização de um desejo pessoal. O desejo de atuar tem que ser seguido
pela apropriação, por parte do cantor, do material artístico que será exibido na
apresentação do programa. O solista, portanto, tem de saber qual é a melhor forma de
apresentar publicamente sua mensagem, uma vez que se trata de material com forte apelo
afetivo para o cantor, ou por ser produção própria, ou por se ligar à sua vida pessoal, de
uma forma quase umbilical.
117
A instabilidade emocional desse príncipe bizarro, por vezes, criava problemas
no processo de ensaio, pois não era incomum que ele mudasse a letra ou a estrutura da
música na hora de cantar, tornando quase impossível o acompanhamento de sua atuação
pelo coro. A concentração e a rotina dos ensaios lhe traziam o dado de realidade (a
relação com os companheiros) e a necessidade de repetição (para aprendizagem e
aperfeiçoamento da proposta pelo grupo), imprescindíveis ao aprimoramento do trabalho.
Muitas vezes, sua insistência em ter uma atuação separada, em que se destacasse
dos demais em virtude de algum papel específico, gerava um certo desconforto no grupo,
pois seu pedido para fazer solos era reiterativo, dificultando sua participação nas
propostas de caráter coletivo. Era visível o seu talento, mas apresentava dificuldades
extremas no convívio social. Muito trabalho foi despendido para resolver ou, ao menos,
minimizar este aspecto, porém, nem sempre com sucesso, apesar de se observar que ele
fazia grande esforço para vencer essa dificuldade e poder participar das atividades.
Da produção de Márcio, foram incorporadas ao repertório do Coral Pouca Visão
(1996) e Na Seca (1997) - ambas poesias constantes do livro O Vôo das Borboletas, e,
ainda, Luz (1998) e Quem são os culpados (2001). Nestas duas últimas canções, ele se
fazia acompanhar pela Banda Fumaça,
41
o que foi muito significativo para Márcio, pois
seu sonho era ser como seu ídolo Prince, que se apresentava acompanhado de banda de
rock.
41
Essa banda era formada por alguns estudantes dos cursos de Psicologia e Direito da PUC, que
acompanharam o trabalho do Coral Cênico Cidadãos Cantantes entre os anos 2000 e 2002.
118
Pouca visão foi apresentada como solo, acompanhado por violão. Em Na Seca, o
Coral também cantava um refrão, enquanto em Luz e Quem são os culpados, havia um
revezamento entre solo e coro.
Outros compositores surgiram no processo de pesquisa de repertório, além dos
mencionados: Herbert dos Santos foi um deles, com seu Rap do Hospital (Pra onde
vai?),
42
canção composta durante uma das suas internações em hospital psiquiátrico (ele
contou em depoimento, que ao todo foram 14 internações!). No caso dessa música, ficou
bem definida a participação do Coral, que cantava a melodia do refrão. Esta canção
também foi acompanhada pela Banda Fumaça, e arranjada por Beto Machado, à época,
pianista da banda. Trata-se de uma canção muito intensa, cujos versos invocam os
sentimentos de um interno psiquiátrico e a realidade crua daquele hospital.
Pra onde vai? (Herbert Ari dos Santos)
PS central Diadema!
tô assustado tire as algemas
fui medicado,tô sonolento
12 de outubro, ainda me lembro,bati no meu irmão, xinguei a minha mãe
mas eu juro que não queria, obedeci aquela voz que me dizia: mais um interno
nº 8 na enfermaria.
(Refrão)
Pra onde vai você?
Pra onde vai?
Pra onde vai o sol?
42
O refrão melódico utilizado nesse Rap foi retirado de uma música do cantor e compositor Gabriel, O
Pensador.
119
Quando a noite cai.
Sem amigo, sem parente, descobri quanto vale um homem doente.
Sem emprego, sem expectativa, periculoso, alto grau suicida.
Transtorno bipolar, maníaco depressivo, presa fácil pras garras do inimigo.
Contido no leito, sem eira nem beira.
Estou com fome, chame a enfermeira.
(Refrão)
Meu Deus do Céu, me tire daqui.
Eu quero um cigarro, preciso fumar.
Hoje é Domingo.
Minha mãe...vem me visitar.
Um paciente gritou a noite inteira eu não consegui dormir
A realidade do hospital psiquiátrico está explicita nessa composição de Herbert,
desde a ausência de identidade imposta pela instituição (Mais um interno nº 8, na
enfermaria) à situação de abandono e os diagnósticos que o tornam presa fácil.
A violência e a penúria do tratamento: contido no leito, sem eira nem beira, o
cigarro como moeda corrente dentro do hospício e a esperança de receber a visita de sua
mãe, traçam o retrato dessa realidade.
Herbert nessa época ainda era interno do Hospital Água Funda, e vinha para
participar dos ensaios no CCSP. Em depoimento recolhido, ele fala da contradição que
vivia entre vir ensaiar no CCSP e depois ter que voltar para o hospital. Lembra de como
era difícil para ele vir com o uniforme para os ensaios (pois tratava-se das regras do
hospital) e como foi importante quando Cristina Lopes intermediou uma discussão com
os profissionais do hospital, os quais autorizaram que, não ele, mas todos que vinham
do Água Funda , poderiam vir com roupas comuns.
Ainda nesse depoimento
Herbert fala da sua participação no Coral:
120
...aí veio essa parte da Terapia Ocupacional que era o Coral e a
dança, e isso me deu uma fortalecida. Às vezes, sentia inveja das pessoas
que estavam aqui fora ..., porque eu participei do Coral enquanto estava
internado (...) muitas vezes chegava aqui muito mal, mas sentia o calor
que era o Coral, dava uma aquecida na alma e voltava mais leve para
lá.(...) O Coral despertou algumas coisas que eu nunca pensei que poderia
fazer, como por exemplo, compor uma música dentro da minha história,
dentro das coisas que eu estava vivendo, dentro da vida que eu estava
levando dentro de psiquiatria. (...) Lembro que houve uma apresentação
no CCSP que quando eu saí, tinham pessoas que eu nunca vi na minha
vida falando: nossa, que legal, parabéns e eu sentindo que aquilo era
real, não artificial. (Entrevista, 25/10/2004)
Pelo depoimento de Herbert, percebe-se o quanto alterou a sua auto-estima e sua
confiança poder cantar uma música sua no programa do Coral, e o quanto isso pôde ser
mobilizador para que ele pudesse sair da situação que se encontrava.
Essa atenção dada à produção individual animava os outros membros do grupo,
fazendo que alguns deles trouxessem, também, as suas poesias e canções. Exemplo disso
é uma produção recente de Francisco de Assis (Chico) e Reinaldo Nascimento, que, a
partir de um certo momento, passaram a compor músicas em dupla. Reinaldo, um dos
autores de O Vôo das Borboletas e, portanto, com experiência em escrever poesias,
encarregou-se dos textos, enquanto Chico compunha as músicas.
A produção poética do grupo estava mais em evidência durante os anos 1996 e
1997, provavelmente, pela animação dos cantores, decorrente do lançamento do livro.
Em montagens mais recentes, porém, apareciam textos de outros autores, em meio às
produções do próprio grupo, como na montagem de 2004, que contou com textos de
121
Lewis Carroll, Fernando Pessoa e, também, de Reinaldo Nascimento, um dos integrantes
do grupo.
O Caderno Loucriação, cujo primeiro número foi O Vôo das Borboletas, não teve
prosseguimento, porém, em 1998, Márcio conseguiu editar um livro de poesias, graças ao
apoio de profissionais do Hospital Dia em Saúde Mental da Vila Prudente, onde era
atendido. Escrever poesias, dançar e cantar sempre foram uma forma dele se relacionar
com o mundo. Hoje, afastado do Coral, devido à situação social e de saúde muito
comprometedoras, diz não conseguir escrever mais.
A inclusão de músicas e poesias de autoria de integrantes do grupo no repertório
tinha como objetivo a construção conjunta de um programa que fosse a extensão da voz
de cada um. O efeito terapêutico e a conseqüente melhoria na qualidade musical e
vocal dos cantores que tal produção despertava era visível, na alegria que demonstravam,
na maneira descontraída e comprometida de cantar ou declamar uma poesia, na
possibilidade de falar e ser ouvido, e acima de tudo, no fato de ser valorizado pela própria
criação, fruto de trabalho e expressão de sua subjetividade.
A intensidade dessa experiência evidenciou que, dentre as várias necessidades
básicas que algumas daquelas pessoas ainda precisavam ver atendidas, havia outra, talvez
subjetiva, porém acessível, pois o que buscavam ali era simplesmente um pouco de luz
não necessariamente vinda de refletores e alguém que os ouvisse não necessariamente
espectadores para poderem construir (ou reconstruir) a própria vida com respeito e
dignidade.
122
Com uma construção poética muito ousada, Márcio tematizou em uma de suas
canções interpretadas junto com o Coral, essa busca de Luz como possibilidade de
expressão, que em seus versos surge como luz incalável (aquilo que não pode calar,
necessária, urgente) e luz adquirível (aquilo que se pode ter). É interessante notar
também a presença da imagem do altar passagem, a lembrar toda obra de Arthur Bispo
do Rosário
43
destinada a ser apresentada no momento de sua passagem.
Luz (Márcio Luiz Oliveira 1998)
Não me apague de tu/ oh não
Poema que é transformal
Luz corante real
Me acenda no teu ver maior
Me agite com toda a natureza
Que assim há luz
Luz amável
Luz incalável
Luz adquirível
Luz invisível
Transluz, transluz
Reluz
Reluzente
Luz
43
Arthur Bispo do Rosário foi interno em hospital psiquiátrico a maior parte de sua vida (de 1939 a 1989,
quando faleceu) e lá criava suas obras não como arte, mas como objetos que seriam apresentados no dia do
Juízo Final. Estes objetos, depois de sua morte, participaram de mostras de artes tanto no Brasil quanto fora,
em Veneza, Paris e Nova York. Para maiores informações ver
HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário:
o senhor do labirinto.- Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
123
No seu alto de grande que transposto é também
No meu altar passagem é de que não vou desaparecer
Oh promessa de cumprimento
Luz, luz, luz, luz.
Figura 9: Partitura de Luz, de Márcio Luiz Oliveira
ARRANJOS E POSSIBILIDADES MUSICAIS: AFINANDO DIFERENÇAS
O Coral Cênico Cidadãos Cantantes é um grupo que apresenta como uma de suas
principais características, a disponibilidade para o trabalho; porém, por sua proposta de
constituir-se como grupo heterogêneo, inclui em seu corpo pessoas portadoras de vários
124
problemas, que vão de dificuldades de socialização a dificuldades motoras, além de
deficiências vocais, distúrbios nervosos, psicoses e outros quadros, que compõem seu
perfil, diverso, múltiplo, e que traz, como conseqüência de sua própria constituição,
imensa diversidade que se mostra em todo tipo de atuação do coro, inclusive na maneira
de atuar vocalmente.
A proposta do CECCO e do Coral é trabalhar com e na diferença, exercitando a
convivência pelo respeito e pela tolerância; por esse motivo, é necessário considerar o
grupo exatamente a partir das diferenças que apresenta, cabendo ao regente repensar o
conceito de homogeneidade das vozes, tão caro à linguagem da tradição do Canto Coral.
Nesse grupo, esse é o desafio: a busca da harmonia, dentro da diversidade, que se
reflete na própria proposta do Coral, que é fazer música com o material humano que se
tem à disposição. De alguma forma, isso significa afinar as diferenças, de modo que
elas se mostrem presentes, mas, ao mesmo tempo, como resultado de um propósito firme,
que resulta em um planejamento, de estudar a melhor maneira de construir a afinação de
cada um, particularmente, e do grupo como um todo.
...a manifestação da musicalidade [do Coral Cênico] se mostra
de forma diversificada: na criação, no arranjo, no jeito de cantar e atuar...
desenhando-se com isso um perfil de coro que não busca igualdades,
antes estimula a diversidade. Talvez aqui resida a diferença deste para
outros coros. Não nos interessa a igualdade, a padronização na forma e
no jeito de cantar, interessa mais o objetivo comum, sendo que para
atingir esta composição conjunta cada um disporá de seu instrumento,
entendo-se aqui instrumento, como corpo e voz. (MALUF, 1999, p.167)
125
Com isso, o grupo busca antes afinidades do que uma afinação comum. Neste
grupo, a afinação não é um fim em si mesma, mas está a serviço da comunicação. Muitas
vezes, o aspecto afinação não é o mais importante no contexto. Ela é considerada um
processo a ser vivenciado pelo grupo.
Esse mesmo conceito é observado em algumas manifestações religiosas e
populares brasileiras. Discorrendo a respeito de como é encarada a questão da afinação
nas congadas, Silvia Garcia SOBREIRA, em seu livro Desafinação Vocal, cita uma
interessante reflexão de Rodrigo Miranda de Queiroz (2000):
(...) [Nas congadas] o importante não é o resultado sonoro
perfeitamente coerente com a estrutura musical do modelo, e sim o ato de
cantá-lo (...) (QUEIROZ apud SOBREIRA, 2002, p.28)
E essa maneira de cantar, passa a dar identidade a essa forma de fazer música,
uma vez que:
Qualquer alteração desse universo fará com que esta matéria
sonora se descaracterize, e, sendo assim, o canto deixará de ser ele
mesmo. A afinação passa a ser claramente um elemento secundário na
hierarquia de valores e na prática dessa música.(2002, p. 28)
Enquanto os coros em geral têm como objetivo atingir a igualdade e a
homogeneidade, tanto no que diz respeito ao aspecto vocal-musical, quanto ao visual para
atingir um grau de excelência, o Coral Cênico, pelo próprio perfil diverso dos seus
cantores, parte das diferenças mas, longe de considerá-las problemas a serem resolvidos,
elas tornam-se a marca do trabalho, podendo trazer ganhos, no sentido de instigar a
pesquisa de timbres e novas atuações do coro.
126
PROCEDIMENTOS
Foi nesse processo de busca pela afinidade que, por um lado, investiu-se em
trabalhar o coro em uníssono, para que os cantores pudessem se ouvir em suas diferenças,
e ao mesmo tempo pudessem cantar coletivamente, buscando a afinação não como um
fim único, mas como um processo. A afinação teria que vir da qualidade da escuta que as
pessoas pudessem ter umas em relação às outras, dentro daquele grupo, e que tal
qualidade fosse constantemente trabalhada, para que pudesse melhorar dentro do
processo.
Um exemplo dessa estratégia de trabalho foi a montagem de uma canção simples
em uníssono, composta exclusivamente com as cinco primeiras notas da escala maior.
Essa canção, cantada em 1996 foi Da Maré, de R. Breim e L. Tatit, que, além da
limitação da tessitura, apresenta uma organização rítmica simples, trabalhando somente
com som e silêncio, e com uma duração correspondente ao pulso básico da música.
44
44
Essa canção foi reaproveitada no programa de 2003, trabalhando-se um arranjo com grupo de gaitas e coro.
127
Figura 10: Partitura de Da Maré, Ricardo Breim e Luiz Tatit
Muitos regentes corais e líderes de grupos vocais enfatizam a importância do
canto em uníssono para trabalhar a afinação do grupo. Samuel KERR, no capítulo que
aborda a Canção em sua Apostila para Monitores Corais, diz que ela é o início, o
uníssono, o hino e sobre a importância de encontrar a canção certa que congregue todo
grupo, diz: a canção é a justificativa do convívio vocal, é o impulso do cantar (KERR,
1989, p. 06).
Enquanto, buscavam-se outras canções que trouxessem a força do canto em
uníssono, como exercício do fazer musical coletivo, trilhando outro caminho, investia-se
na maneira de cantar algumas das produções individuais originais, compostas por
integrantes do grupo.
Tais produções caracterizavam-se por apresentarem uma maneira muito peculiar
de cantar e atuar, o que possibilitou ao grupo criar identidade e dar ênfase ao caráter
singular desse trabalho, a partir de uma real possibilidade de troca de potenciais criativos,
subjetividade e consciência do outro. Tal experiência com obras originais proporcionava
maior liberdade ao Coral (ou aos cantores/compositores solistas) de atuar a vontade,
128
dispensando modelos e normas preestabelecidas, e mudando o foco do campo da
interpretação para o da criação.
Alguns arranjos foram escritos para lidar com essa heterogeneidade característica
do grupo, entre os quais pode-se destacar Azul da Cor do Mar (Anexo 11) que integrou o
repertório de 2004. Este arranjo foi feito para duas vozes diferentes (masculina e
feminina), que se alternam entre melodia principal e contra-canto, para, no final,
cantarem juntas, de modo a valorizar mais o texto. É um arranjo de fácil montagem que,
pela unidade da escrita do contra-canto, apresenta várias possibilidades sonoras e
harmônicas, como, por exemplo, a sobreposição das vozes de acompanhamento, de modo
a criar um outro elemento musical que pode ser cantado como introdução ou interlúdio.
Figura 11: Partitura do arranjo de Azul da Cor do Mar, Tim Maia
129
Outros arranjos foram feitos para o Coral Cênico cantar com outros grupos em
eventos especiais, como, por exemplo: Cirandas de Pernambuco de Domínio Público e
Capiba (Anexo 12), arranjo para coro a duas vozes e acompanhamento de orquestra, feito
para o encerramento do Encontro Musical de 1999, para ser cantado com os outros
grupos e a Orquestra da Escola Municipal de Iniciação Artística de São Paulo;
Pirex/Claridão, de Itamar Assumpção/ Samuel Kerr e Thiago de Mello (Anexo 13), uma
sobreposição elaborada por Samuel Kerr e feita para ser aprendida e cantada durante o
Encontro Musical do ano 2000. Nesse evento, o público cantou a melodia do cânone
enquanto a melodia da canção de Itamar Assumpção era cantada pelos Cidadãos
Cantantes. O arranjo fez soar dois universos musicais muito distintos.
45
Gente de Caetano Veloso (Anexo 14), é um arranjo a duas vozes feito para o
encerramento do Encontro de 2002, pois, nesse ano, pela comemoração dos 10 anos do
Coral Cênico, foi feita uma pesquisa que tinha como meta verificar qual música do
repertório representava a garra presente no trabalho. A música escolhida foi Gente, que
nessa versão, assim como tinha sido feito em 1995, trocava os nomes originalmente
citados, por outros, dos próprios integrantes do Coral.
Tenho sede, de Dominguinhos e Anastácia (Anexo 15), assim como Azul da cor
do mar, foram pensadas, desde o princípio, como peças destinadas a integrar o repertório
próprio do Coral Cênico.
45
Em 2004, essa montagem foi executada novamente, com o Coral do Instituto de Artes da UNESP cantando
o cânone a 4 vozes, enquanto o Coral Cênico e o Grupo infanto-juvenil Cantoria também do IA-UNESP,
garantiam a melodia de Pirex.
130
ENSAIOS E APRESENTAÇÕES
ORGANIZAÇÃO DOS ENSAIOS
Atualmente, os ensaios ocorrem semanalmente, às segundas-feiras, na Sala
Adoniran Barbosa, no Centro Cultural São Paulo, no período das 10:00 às 12:30h. Inicia-
se com um aquecimento corporal, em geral, coordenado pela preparadora corporal do
grupo, Tatiana Bichara visando a dar aos integrantes do grupo prontidão e consciência do
corpo. Após esse período de aquecimento, inicia-se o trabalho Coral.
Nesse primeiro momento vocal, busca-se obter o uníssono e a consciência do som
coletivo por parte dos cantores, dando-se bastante importância à prontidão, à postura e à
maneira de cantar de cada um, sempre buscando valorizar todo e qualquer tipo de voz,
tratando cada uma delas como singular.
Esse início serve para ligar o grupo no trabalho, para, depois, aprofundar no
repertório que o grupo iapresentar, nos vários locais onde cantará, se convidado. Nesse
momento inicial, muitas vezes, apresenta-se algum novo elemento musical que, em um
momento posterior, poderá ser incluído no programa.
Existe um compromisso do grupo em relação aos ensaios e um convite à
participação, mas não uma exigência. Na verdade, existe um consenso por entender que
aquele espaço é um local de trabalho, envolvendo um processo de criação e uma
construção coletiva.
131
Após o ensaio, geralmente acontece uma conversa com o grupo todo, que versa
sobre assuntos gerais, que vão desde a avaliação do próprio ensaio pelos membros do
grupo, ou de apresentações recentes, até comunicações, apresentação de novos
integrantes, novos convites e outros informes.
INTEGRAÇÃO DE LINGUAGENS: MÚSICA E CENA
Segundo depoimento de Cristina LOPES (11 e 13/10/2004), a idéia do coro-
cênico surgiu antes mesmo do coro existir, tendo sido delineada a partir de conversas
travadas entre ela e o então diretor do CCSP, José Américo Peçanha.
A junção dessas duas linguagens que trabalham com o coletivo, a música e o
teatro, cria uma força muito grande de comunicação, tanto internamente, no grupo,
quanto em sua interação com a platéia, durante as apresentações.
O conceito do coro-cênico foi muito difundido pelo maestro Marcos Leite
46
em
seus cursos e palestras. Marcos costumava dizer que todo coro, ao se apresentar, já atua
cenicamente, restando ao regente e aos cantores escolherem entre cantar em cena estática,
à maneira tradicional, tendo como figurino, o próprio uniforme do Coral, ou, então,
recorrer ao recurso da expressão corporal dos cantores, buscando aumentar o canal de
comunicação entre coro e platéia.
46
Marcos Leite (1953 - 2003): Importante regente Coral da cidade do Rio de Janeiro, líder do grupo Garganta
Profunda, se destacou em atividades didáticas e artísticas, ministrando oficinas no Brasil e países sul-
americanos. (GNATALLI, 1997)
132
Concordando com essas idéias do maestro Marcos Leite, o Coral Cênico Cidadãos
Cantantes parte da realização musical (pois se trata de um Coral) para, em seguida,
escolher como e, principalmente, o que se quer dizer com a música. Para tanto, lança-se
mão da expressão cênica, no sentido de dar maior propriedade à interpretação da
música pelos cantores, assim como, também, utiliza-se de textos literários ou poéticos,
que servem de elementos de ligação entre as canções.
A disponibilidade corporal para o trabalho é muito grande por parte dos Cidadãos
Cantantes. Como a maioria deles não teve nenhuma experiência anterior de canto Coral,
encaram a proposta com naturalidade, pois não conhecem as formas tradicionais de canto
Coral que poderiam levá-los a não concordar com propostas abertas, como essa. A
concepção cênica é construída como que colada à parte musical, trazendo por vezes a
sensação da impossibilidade de realização da música dissociada da expressão corporal.
A respeito da atuação conjunta do corpo e da voz, bem como dos benefícios que
dela podem surgir, o maestro Samuel KERR, um dos precursores do chamado Coral
Cênico no Brasil, em entrevista ao maestro Alberto Corazza, relata sua experiência à
frente do Coro dos Estudantes de Medicina da Santa Casa, relacionando-a com a de
regente Coral na Igreja:
[...] E eu comecei a perceber que havia uma outra relação entre os
cantores do coro e a Música. Não era aquele sacerdócio da igreja mas
havia uma relação muito forte, até corpórea, entre música e canto. E, foi
daí, que eu comecei a perceber que eu podia usar a dinâmica do corpo em
benefício da voz. Eu nem pensava tanto na cena, mas eu pensava numa
dinâmica de ensaio. Só que quando você começa a envolver todo o corpo
do seu cantor num trabalho que conseqüentemente é visto, se torna cena.
133
Você precisa ser assessorado por alguém, que possa ajudar a construir a
cena. Daí que a gente começou a trabalhar com artistas plásticos, com
bailarinos e com diretores de teatro (2000, p. 161).
Um extenso trabalho de pesquisa realizado com o coro, principalmente durante os
ensaios, gera um roteiro que tem como objetivo amarrar as canções em torno de um
tema, utilizando-se, para isso, textos falados pelos cantores, a concepção cênica,
figurinos, a montagem do cenário, além do uso de instrumentos musicais e adereços
cênicos. Esta dinâmica de construção de repertório existiu desde a origem do Coral, como
atestam o depoimento de PASQUALINI regente dos Cidadãos Cantantes entre os anos 1992
e 1995.
A gente definia um tema, conversava muito e fazíamos dinâmicas
que eram legais para eles, e iam dando o fio condutor do espetáculo
que queríamos montar. 0
processo era: para falar disso, temos tal música,
então ensaiávamos, e quando estivesse pronta entrava no repertório.
(Entrevista, 03/02/2005)
MARGENS DO ENSAIO
Os momentos que antecedem ou que sucedem os ensaios, em geral, são momentos
muito ricos. São nesses momentos que se dão os encontros sem intermediários, em que
ocorrem as trocas de experiências. O que une o grupo? Quais são as afinidades musicais e
pessoais que podem gerar a afinação entre os membros do grupo? É o momento
privilegiado da escuta por parte do regente e da coordenação, sem o compromisso da
produção artística, em que se podem observar reuniões inusitadas entre os cantores: uma
134
dupla de cantores, uma lembrança trazida por alguém, um fazer por fazer sem
cobranças.
Esse contexto de maior frouxidão favorece o encontro entre as pessoas. É
quando, geralmente, ocorrem as iluminações, que ajudam a clarear os caminhos
musicais e artísticos que o grupo irá seguir.
São momentos em que se pode dar maior atenção à gaita do seu Ivan, ao
piano da Zina, ao violão do Cristiano, à percussão do Chico, à pesquisa musical e
composicional do Reinaldo, enfim, ao desejo de ir além da produção do Coral, por parte
de alguns dos integrantes do grupo. É um espaço, também, para a manifestação da
espontaneidade de alguns, pois os componentes do grupo sabem que têm liberdade para
se expressar perante os companheiros, podendo tratar-se de linguagem delirante ou não
que possivelmente, precisou ser contida durante o ensaio mas, nesse momento, pode vir
à tona, em geral trazendo elementos que ajudam a equipe a entendê-los em suas
necessidades individuais, e como participantes do grupo.
APRESENTAÇÕES
Como sucede na maioria dos coros amadores, também no Coral Cênico, as
apresentações são conseqüência do trabalho desenvolvido no dia-a-dia do grupo, que
envolve pesquisa, trabalho corporal e teatral e preparação de um repertório musical
adequado ao momento do grupo, e ajustado a cada ensaio.
135
Não sendo uma exigência a priori, à medida que esse repertório vai criando
corpo, e o grupo ganha confiança, cria-se a necessidade de apresentá-lo publicamente.
Pois nesse momento, a música, que é uma arte que se faz no tempo do acontecimento
(performance) e carece ser interpretada por pessoas para que exista (tratando-se de
música ao vivo, e não da reprodução mecânica industrial), se estabelece como elemento
de comunicação e diálogo com o outro (a platéia).
Alguns grupos corais estão mais voltados para as apresentações públicas,
enquanto outros se contentam com a vivência musical proporcionada pelos ensaios, que,
muitas vezes, são encarados como atividades lúdicas e terapêuticas para liberar o estresse
da rotina da vida moderna. Essa não é a maneira de trabalhar dos Cidadãos Cantantes.
No caso específico do Coral Cênico, desde o início de suas atividades, tem-se,
como meta, a construção de um produto artístico, que possa ser levado a público, em
diferentes espaços. Com isso, constata-se, externamente, uma busca clara de difusão e
conseqüente valorização desse trabalho por parte da sociedade, e, internamente, um
despertar para o potencial criativo por parte de cada integrante, trazendo em
conseqüência um aumento na sua auto-estima e o reconhecimento de possibilidades
expressivas, antes adormecidas.
Ainda se pode acrescentar que o Coral nasceu com o atributo de desempenhar um
papel de propaganda da Luta Antimanicomial, como um expoente dos serviços
alternativos de inclusão, substitutivos ao modelo asilar. Como relata LOPES:
Com a implantação dos CECCOs, fui atrás de um projeto mais
pretensioso, que pudesse ser uma bandeira da proposição antimanicomial,
e que acontecesse no centro da cidade (que fosse centralizado, e não
pulverizado como os CECCOs, pela cidade). Semelhante ao que
136
aconteceu em Santos com a Rádio Tan-tan, que era um emblema, algo
que mobilizava a população para pensar junto (Entrevista, 11 e
13/10/2004).
Esse papel mobilizador da opinião pública é desenvolvido até hoje pelo Coral, e
faz que as apresentações tenham uma importância fundamental na atividade do grupo.
Essa perspectiva política não determina que o trabalho tenha menos exigência no
plano artístico do que outro Coral, pois é, justamente, esse preconceito da
condescendência a trabalhos socioculturais de inclusão que o Coral se propõe a discutir.
Busca-se demonstrar, nas apresentações públicas, por meio da construção artística e
musical do grupo, a potência criativa e expressiva que a arte pode liberar em todo e
qualquer cidadão, independentemente de suas diferenças ou limitações, físicas, sociais,
mentais ou econômicas.
Entre os momentos mais intensos das apresentações do grupo estão os Encontros
Musicais pela Cidadania Plena que ocorrem anualmente no CCSP, desde o ano de 1997, e
cuja organização está a cargo do próprio Coral Cênico Cidadãos Cantantes. Dada a
relevância cultural e política desse evento, o mesmo será comentado em separado no
decorrer deste capítulo.
Com a proposta de divulgar o seu trabalho, o grupo se apresenta, portanto, nos
locais para os quais é convidado. As apresentações são, assim, decorrências naturais do
processo de trabalho do grupo, que visa à construção de um produto artístico, o qual
poderá ser levado a público, em diferentes espaços.
137
O grupo apresentou-se, ao longo do seu percurso, em feiras artísticas e culturais,
conferências de saúde, encontros de corais, congressos científicos de psicologia, hospitais
psiquiátricos, hospitais-dia, centros de convivência, bibliotecas públicas, casas de cultura,
encontros sobre inclusão, SESC, universidades, penitenciária e, mesmo, no interior de
uma fábrica, para os operários. Adequando suas apresentações às condições dos espaços,
que têm sido os mais variados, desde ruas, galpões e ginásios, a auditórios fechados e
teatros com melhores condições acústicas do que as de muitos dos espaços acústicos
mencionados.
O caráter múltiplo dos locais de apresentação do grupo é decorrência direta da sua
proposta de heterogeneidade e diversidade, buscando romper barreiras do preconceito, e
transitando entre os campos da saúde e da cultura. A inserção do Coral no Centro
Cultural São Paulo possibilitou, além da organização dos Encontros Musicais, contatos
com grupos que tinham a inclusão como meta (como, por exemplo, a época em que o
Coral se apresentou como grupo convidado, em espetáculos de Dança Coral, organizadas
pela coreógrafa Renata Neves entre os anos 1996 e 1997) e a participação em encontros
de discussão a respeito de Arte e Saúde Mental, realizados pelo NAE (Núcleo de Ação
Educativa) do Centro Cultural São Paulo, em 2003 e 2004.
As apresentações em circuitos culturais, em instituições vinculadas à cultura ou
em escolas têm sido mais freqüentes do que em locais vinculados à área da saúde, como
hospitais, por exemplo, ou em eventos dessa área. Isto reflete uma mudança da linha de
atuação do Coral, desde seu nascimento. Anteriormente, o trabalho Coral estava mais
vinculado à Luta Antimanicomial e à área da Saúde do que hoje; sem abandonar tal
138
propósito, atualmente, organiza-se como um grupo heterogêneo, que quer ser
reconhecido pela sua produção artística, e não pelos diagnósticos de seus integrantes
(Anexo 16).
DESDOBRAMENTOS
OS ENCONTROS PELA CIDADANIA PLENA
Em 1997, buscando dar maior visibilidade ao trabalho do Coral, e uma vez
estando num espaço público de difusão de cultura para a cidade, foi proposta à direção
dessa instituição a realização do I Encontro Musical pela Cidadania Plena no CCSP, em
comemoração à Semana da Luta Antimanicomial.
Em conversas com a direção do CCSP e com os responsáveis pela programação
dos teatros, a idéia foi muito bem-recebida, tanto que esse primeiro encontro desdobrou-
se, depois, em um Simpósio Internacional, em que se pretendia discutir questões relativas
à saúde mental e às alternativas antimanicomiais. Esse Encontro foi promovido por várias
entidades, como o Instituto de Psicologia da USP (LAPSO Laboratório de Pesquisas em
Psicologia Social), a ONG SOS Saúde Mental Ecologia e Cultura (na época somente SOS
Saúde Mental), o Movimento da Luta Antimanicomial de São Paulo e o Centro Cultural
São Paulo (Anexo 17).
139
A partir desse ano, esses encontros musicais passaram a ocorrer anualmente no
CCSP, tendo o último encontro se realizado em maio de 2004 (Anexo 18).
De 1997 a 2004, esses encontros passaram a ser o grande momento do Coral
Cênico, quando o grupo, como anfitrião, recebeu outros grupos, para estabelecerem
trocas de experiências artístico-musicais. Desde então, ao final de cada ano e até maio do
ano seguinte, o grupo se coloca a tarefa de elaborar um novo programa, que estreará
durante a Semana da Luta Antimanicomial. Esse programa é mantido e ajustado, durante
o ano, nas futuras apresentações. Dessa forma, o grupo impõe-se a necessidade de
construção de uma produção diferente a cada ano, que será mantida como programa
daquela temporada.
O alcance cultural proporcionado por esses encontros, dá-se pelo fato de serem
realizados no Centro Cultural São Paulo, um dos pólos de cultura da cidade, de fácil
acesso à população e, principalmente, pela diversidade dos grupos convidados que, com
sua presença, proporcionam uma verdadeira troca entre diferentes, pois os Encontros
pela Cidadania têm aglutinado grupos provenientes de vários espaços: os ligados as
universidades, comunidades, empresas, hospitais, grupos indígenas, grupos infanto-
juvenis, de idosos, de deficientes visuais, de serviços de Saúde Mental, e, ainda, quartetos
vocais, bandas de Jazz, grupos de percussão e grupos de escolas de música (Anexo 19).
Como se pode perceber, a iniciativa dos Encontros é coerente com os
pressupostos do Coral e da Luta Antimanicomial, quanto ao exercício da convivência
pela prática, e da busca por uma sociedade não segregadora e preconceituosa. Pela
140
mesma razão de o Coral não ter sido pensado como um gueto para abrigar pessoas que
tivessem algum transtorno mental, esses Encontros foram planejados para promover a
troca de vivências artísticas entre grupos de diferentes perfis, e que apresentassem
diversidade em suas propostas musicais. Assim, o evento não se configura como um
encontro de corais, e muito menos um encontro de iguais, como, por exemplo, um
encontro dos deficientes, ou de pessoas portadoras de necessidades especiais, pois um
de seus pressupostos é que a convivência deve se dar na diferença, propondo-se assim a
questionar a divisão de espaços para sãos e doentes, normais e anormais, aptos e inaptos.
Dessa maneira, acredita-se que o benefício que este tipo de encontro traz é sentido
em três níveis: pela platéia, que vê e sente a convivência de diferentes propostas artísticas
feitas por grupos de naturezas distintas; pelo Coral Cênico, que se vê como produtor de
um fazer artístico, fruto de seu trabalho e da elaboração de conteúdos subjetivos de seus
integrantes; e pelos grupos convidados, que, além de terem a oportunidade de mostrar
seus trabalhos para um público grande e acolhedor (em média 400 pessoas), em geral,
ficam muito agradecidos por participarem de um evento de tal natureza, que tem a arte
como proposta para a edificação de uma sociedade mais justa e plural.
Em 2004, o VIII Encontro foi inserido na Semana Inclusão e Cultura, organizada
em parceria entre o Coral Cênico, o CECCO-Ibirapuera e o NAE (Núcleo de Ação
Educativa) do CCSP.
46
A Semana Inclusão e Cultura foi organizada para ocorrer em maio, com mesas de
debates e mostras de resultados das oficinas, coincidentemente à realização do Encontro
46
Esse núcleo já havia organizado em setembro do ano anterior, uma Semana de Arte e Saúde Mental, com
exposição de trabalhos em artes visuais do Ateliê de artes e saúde mental que acontece no CCSP, e mesas de
debates em torno do tema.
141
Musical Anual, e teve como objetivo gerar discussões a respeito dos processos de
trabalho com propostas de inclusão, oferecidos em oficinas, no Centro Cultural São
Paulo. Essa semana privilegiou as linguagens de teatro, dança e música nas apresentações
e nos debates. (Anexo 20).
EXPOSIÇÕES FOTOGRÁFICAS
Desde 1997, faz-se uma exposição fotográfica concomitante à Semana do
Encontro Musical pela Cidadania Plena que, no entanto, não ocorreu em 2004, por
dificuldades de negociação com o CCSP.
Essas exposições fotográficas têm sido importantes por marcarem diferentes
momentos da produção do Coral, e por permanecerem expostas durante algum tempo (em
média 7 dias), em locais de grande circulação, colaborando, assim, com a dupla tarefa de
divulgar o trabalho realizado e sensibilizar o público usuário do CCSP, para as questões
da arte e da diversidade.
A exposição de 1997 contou com fotos de ensaios do Coral Cênico feitas por
Carlos Rennó e Sonia Parma, fotógrafos do Centro Cultural São Paulo, contrapostas a
outras fotos, de internos em hospitais psiquiátricos. Em 1998, a exposição registrou a
trajetória artística do Coral, com fotos do I Encontro Musical, realizado no Centro
Cultural São Paulo, também de autoria de Sonia Parma e Carlos Rennó, incluindo o Coral
Cênico e seus convidados (além delas, havia, também, registros fotográficos de outras
142
apresentações do Coral Cênico, como, por exemplo, as realizadas por Alexandre Milito,
no X Encontro Coral de Franca).
Em 1999, foram convidados dois fotógrafos para, através de suas lentes, capturar
diferentes momentos da vida humana. Um deles, Walter Lozan, fotografou o dia-a-dia
dos ensaios do grupo Cidadãos Cantantes, enquanto o outro, o psiquiatra Gilberto
Cuckierman, selecionou registros fotográficos que buscavam captar instantes de vida
existentes no Hospital Psiquiátrico do Juqueri (SP).
Em 2000 foram expostos os registros das apresentações musicais realizadas
durante o III Encontro pela Cidadania Plena.
Em 2003, o fotógrafo Carlos Villalba desenvolveu um projeto fotográfico com
alguns integrantes do grupo, registrando suas atuações no Coral, contrapostas às suas
rotinas de vida, que incluíam casa, família, trabalho e outras atividades.
As exposições ocorridas durante os anos 1998, 2001 e 2002 não foram temáticas e
nem autorais (como as que se realizaram em 1999 e 2003) e serviram mais como
divulgação do trabalho do Coral dentro do CCSP.
AS OFICINAS DE DANÇA E DE TEATRO
Desde 2001, o Coral Cênico conseguiu junto ao Centro Cultural São Paulo um
espaço para a realização de oficinas, com o objetivo de promover o aprofundamento das
linguagens artísticas do teatro e da dança. Esse espaço de oficina é destinado não aos
143
participantes do Coral, como, também, a todos os usuários do CCSP que queiram
aprofundar conhecimentos em uma dessas linguagens artísticas.
Essa iniciativa surgiu da vontade manifestada pela coordenação da equipe do
Coral em ampliar a oferta de atividades para os participantes do Coral e, dessa forma,
atender ao desejo de alguns cantores em ter maior contato com outras linguagens
artísticas, além da música. Dessa maneira, as Oficinas de Dança e a de Teatro, passaram a
funcionar semanalmente, em dias alternativos ao ensaio do Coral.
As oficinas são ministradas em salas destinadas a esses trabalhos, pelo Centro
Cultural São Paulo. Seus orientadores fazem parte da equipe do projeto Coral Cênico e,
como tal, têm como compromisso a participação nos ensaios do Coral, para assim
poderem compor um projeto de oficina afinado com os princípios e objetivos do próprio
projeto.
Tanto no Coral quanto nas oficinas, o trabalho desenvolvido pelos profissionais
orientadores é de caráter voluntário, uma vez que o Coral não possui patrocínio, e as
entidades que lhe dão suporte não têm condições de suprir gastos decorrentes de
contratação de profissionais para ministrar as oficinas.
Para a realização de tal projeto, conta-se com o apoio técnico do CECCO, que
disponibiliza profissionais para o acompanhamento das oficinas, da Associação SOS
Saúde Mental, Ecologia e Cultura e do CCSP, pela cessão do espaço físico, da divulgação
e da infra-estrutura para ensaios e apresentações.
A divulgação das oficinas se por meio da Agenda Cultural (revista mensal
editada pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, que tem por objetivo divulgar
144
todo o serviço prestado por essa Secretaria para a população) e pela divulgação da
programação interna do CCSP.
A primeira oficina oferecida foi a de teatro, sob a orientação de Thaia Perez, que
também responde pela direção cênica do Coral,
47
sendo seguida pela de Dança, sob a
responsabilidade de Tatiana Bichara, preparadora corporal do Coral.
Embora tenham suporte das mesmas instituições que apóiam o Coral e trabalhem
com ele de forma integrada, elas são independentes, podendo o trabalho desenvolvido
nelas resultar em produções artísticas autônomas, com condição, inclusive, de se
apresentarem separadamente das produções do Coral.
Buscando atingir um público maior, e somando-se à demanda do CECCO aos
usuários do CCSP, as Oficinas atendem, atualmente, 25 pessoas inscritas para teatro e 30
pessoas, para dança, numa faixa etária situada entre 22 e 49 anos no teatro e entre 20 e 64
na dança, sendo que a maioria dos freqüentadores situa-se na faixa de 30 a 40 anos.
Desde 2002 houve mostras artísticas no Centro Cultural São Paulo, com intuito de
divulgar os resultados do trabalho desenvolvido nas oficinas, porém, seguindo um
percurso semelhante ao trilhado pelo Coral, tem havido interesse por parte de outras
instituições em conhecer o produto artístico resultante das oficinas, o que se traduz nos
muitos convites para apresentações de seus resultados em outros locais, ultrapassando o
âmbito do circuito do CCSP.
É importante assinalar que o principal objetivo das oficinas, é dar suporte técnico
e vivencial nas linguagens oferecidas, para que elas, numa via de mão dupla, possam
realimentar o Coral Cênico, o que ocorre de duas maneiras, ou por meio dos cantores que
47
Atualmente a Oficina de Teatro está sob coordenação de Nei Viegas Pelizzon
145
participam do Coral e das oficinas, ou por intermédio de seus próprios orientadores, que,
estando, também, presentes nos ensaios do Coral, acompanham de perto o processo de
criação e o cotidiano do grupo. Com isso, o Coral se beneficia, pois a vivência em teatro
e dança dos integrantes do grupo que freqüentam as oficinas incide diretamente na sua
produção. Os orientadores de oficinas, por sua vez, ao transitarem pelos dois Coral e
oficinas contribuem diretamente para a realização das propostas, pois conhecem as
possibilidades, anseios e limitações dos integrantes, o que dinamiza o trabalho e acelera o
processo e, conseqüentemente, os resultados.
Considerando a proposta do Projeto quanto à heterogeneidade e à convivência,
nota-se que a própria forma como a divulgação é veiculada pelo CCSP e pela Secretaria
de Cultura não facilita seu entendimento por parte do público, pois apresenta a indicação:
...para público especial, o que levaria a pensar que se trata de um trabalho voltado
exclusivamente para esta população. Dentro da perspectiva da inclusão no plano cultural,
ressalta-se, também, que, durante o ano de 2004, a divulgação do evento foi aquém do
esperado. Notando-se que se tratava da oitava edição do evento, observou-se que o
preconceito ainda pairava no ar. No site do CCSP, durante a Semana Inclusão e Cultura
de 2004, não constava nada em Eventos, Música ou Palestras, apesar de terem sido
organizadas em parceria com o próprio Núcleo de Ação Educativa do CCSP. Vê-se que o
caminho é longo para se ter uma verdadeira inclusão cultural (Anexo 21).
A responsável pelo NAE, Luciana MANTOVANI, esclarece em entrevista que, além
deste Núcleo organizar o agendamento e uso das salas, objetiva-se uma atuação de
acompanhamento dos conteúdos e propostas dessas atividades para que, futuramente, seja
146
possível elaborar e formatar eventos vinculando todas as linhas de atuação em
andamento no CCSP que utilizem as linguagens das artes como meio, proporcionando
bem estar a quem delas se apropria (ENTREVISTA, 18/07/2005).
147
________________________________
3 HETEROGENEIDADE - ANÁLISES E
ENTREVISTAS
FIGURA 12 Reinaldo Nascimento durante ensaio, 2003
148
A HETEROGENEIDADE DENTRO DO PROJETO CIDADÃOS CANTANTES
Um dos objetivos da pesquisa é compreender sob quais parâmetros se configura a
heterogeneidade quanto ao perfil dos participantes no Projeto Cidadãos Cantantes.
Uma hipótese é que esta heterogeneidade, pelas diversas maneiras de ver e estar
no mundo de seus integrantes, traz com ela novas possibilidades e soluções para o campo
da criação artística.
Neste capítulo, portanto, o grupo será analisado em sua constituição heterogênea e
suas conseqüências na produção do Coral.
A heterogeneidade no Coral é buscada como trabalho de inclusão, mas, acima
disso, como proposta para uma sociedade com existência mais plural do que
costumeiramente se vê, que tem como meta trabalhar com suas próprias diferenças, indo
na contra-corrente de tendências homogeneizantes e guetificantes que, pela semelhança
entre participantes (quanto à condição cultural, escolaridade, idade, situação social,
condição de saúde, gostos ou preferências), acredita garantir um melhor desempenho e
eficiência no trabalho do que em grupos marcadamente heterogêneos, pois, dessa forma,
supostamente, estaria livre da dispersão e conseqüente perda de tempo que teria que ser
dispensada com os integrantes, para lidar com tais diferenças.
Sabe-se, por vários exemplos na história da humanidade, que tais tendências a
homogeneização acirraram a intolerância , a competição, o ódio entre grupos e as guerras.
Uma nova organização no campo da arte em que a diversidade dos participantes
esteja presente traz a possibilidade de lidar em termos práticos com essa dificuldade da
convivência humana e, ao mesmo tempo, de ser extremamente estimulante para a criação,
149
pois faz com que novas soluções tenham que ser pensadas para questões surgidas no
espaço em que se o trabalho, e, também, entre os integrantes do grupo, para os quais a
antiga padronização não serve mais.
O conceito da homogeneidade do Coral quanto à qualidade vocal, timbre, maneira
de atuar em apresentação, roupagem e outros aspectos mais ou menos presentes em
agremiações corais, estão sendo repensados a partir desse conceito de grupo heterogêneo,
que se propõe a trabalhar com as diferenças e não apesar delas. Julga-se que este
conceito, ao qual o Coral se vincula, seja atual e extremamente necessário para a
construção de uma sociedade mais tolerante do que aquela em que vivemos, que possa
incluir as diferenças, a partir da invenção de novos agenciamentos nas relações.
Para se atingir este fim, acredita-se que o caminho da arte e, particularmente, o
Projeto Cidadãos Cantantes, seja uma porta de acesso a novos agenciamentos relacionais,
tanto pela interface que se propõe a estabelecer entre as áreas da saúde e da cultura,
quanto pela sua existência dentro de espaço público, pela sua conveniente localização, em
região central e próxima ao metrô, facilitando a participação de uma população
heterogênea, que tem como interesse comum a vivência num processo de construção
artística que leve em consideração a singularidade de cada um.
150
GUIÃO ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS
CRITÉRIOS E FORMA DE APLICAÇÃO DO QUESTIONÁRIO
Com o objetivo de levantar as características gerais dos freqüentadores, foi
aplicado um questionário denominado Guião (Anexo 1), em consonância com a
denominação dada por PAIS (2003a) para designar este instrumento de coleta de dados. A
partir dessas características, buscou-se averiguar como se configura a heterogeneidade do
grupo.
A população da amostra foi composta por 48 freqüentadores do Projeto Cidadãos
Cantantes Coral, Dança e Teatro escolhidos aleatoriamente de um universo de
aproximadamente 100 freqüentadores. A maior parte é composta por freqüentadores do
Coral (43 respondentes).
Os questionários foram aplicados de dezembro de 2004 a maio de 2005. Dos 48
questionários aplicados, 3 foram respondidos por antigos integrantes do coro, e 7 por
pessoas que, por várias razões, se afastaram das atividades durante este período, o que,
em alguns casos, inviabilizou o registro completo das informações.
Os dados contidos nos questionários foram coletados de duas maneiras:
Uma parte das informações foi extraída a partir dos dados contidos nos
prontuários existentes no CECCO-Ibirapuera, tendo sido desenvolvido, posteriormente,
um processo de conferência dessas informações com cada pessoa. A outra parte foi
coletada diretamente com os freqüentadores, nos casos em que não haviam feito a
151
entrevista no CECCO, ou quando as informações ali contidas foram consideradas
insuficientes.
As informações recolhidas foram dispostas em quadros para melhor visualização e
análise dos dados.
Durante a análise dos dados recolhidos pelo Guião, utilizou-se números para
designar o freqüentador, com o intuito de preservar sua privacidade. Tal procedimento
não foi adotado quando se tratou da análise das entrevistas individuais aprofundadas e da
entrevista coletiva. Neste caso, optou-se pelo uso dos nomes próprios dos entrevistados,
mediante consentimento gravado em fitas-cassete ao início de cada entrevista. Tal opção
justificou-se pelo fato dessas entrevistas abordarem a produção artística do Coral, e a
relação de cada entrevistado com esta produção, em seu sentido de criação e
transformação. Estes entrevistados, como co-criadores e intérpretes dessa produção, não
viram problemas em divulgar seus nomes na presente pesquisa, mesmo que os assuntos
abordados durante as entrevistas envolvessem suas histórias pessoais, uma vez que, vida
e obra, em muitos casos se misturaram e se realimentaram.
ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS
Para a análise dos dados contidos no Guião, procedeu-se a um estudo
quantitativo, buscando identificar:
152
A - As características gerais dos freqüentadores, a fim de averiguar a
heterogeneidade do grupo, não quanto ao aspecto saúde-doença (condição de
saúde) mas, também, quanto à faixa etária, gênero, estado civil, escolaridade,
situação social, bem como o modo pelo qual souberam dessa atividade, período de
tempo em que a freqüentam e expectativas em relação a ela.
B - A localidade de moradia dos freqüentadores, as distâncias percorridas
por eles para chegarem ao ensaio, e o grau de vulnerabilidade social atribuído a
essas regiões. Este estudo teve como referência o Mapa da Vulnerabilidade Social
desenvolvido pela Secretaria da Assistência Social do Município de São Paulo
(2004).
Acredita-se que, dessa forma, foi possível ter uma radiografia do grupo, pela
qual se poderá constatar sua heterogeneidade, pela comparação das diversas informações
recolhidas a respeito de cada integrante. Este estudo foi elucidativo para esclarecer de que
modo o grupo se propõe a trabalhar numa produção artística coletiva, cuja ênfase está
colocada no reconhecimento e compreensão das suas diferenças.
153
CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS FREQÜENTADORES
IDENTIFICAÇÃO PESSOAL
A identificação pessoal, quanto a idade, gênero, estado civil e escolaridade,
encontra-se nos Quadros 1, 2, 3, 4, 5 , e 6.
Quadro 1 Identificação pessoal dos freqüentadores quanto à idade
IDADE NÚMERO DE FREQÜENTADORES
17 a 29 anos 15
30 a 40 anos 20
41 a 59 anos 07
mais de 60 anos 06
Total 48
No Quadro 1, apesar de a maior parte do grupo ser composta de adultos até 40
anos, a heterogeneidade do grupo fica claramente expressa, uma vez que existem
freqüentadores mais jovens (15), com idades entre 17 e 29 anos, convivendo com outros
(06), de mais de sessenta anos.
Quadros 2 Identificação quanto ao gênero
GÊNERO NÚMERO DE FREQÜENTADORES
Homens 29
Mulheres 19
Total 48
154
O Quadro 2 evidencia uma maioria masculina no grupo, somando-se 29 homens e
19 mulheres. Esta relação majoritária do grupo masculino, neste universo da amostragem,
também, é constatada quando se observa somente a composição da atividade coral. O fato
de a maior parte dos freqüentadores das atividades do Projeto Cidadãos Cantantes serem
do sexo masculino, contrasta com o que se observa na maioria dos serviços de
tratamentos na atenção básica de saúde, ou mesmo nos serviços da rede substitutiva em
saúde mental, em que a maioria absoluta que os freqüenta é composta de mulheres.
Segundo hipótese levantada por LOPES em comunicação pessoal ao pesquisador
(2005), este fato pode ser entendido como decorrência do alto grau de desemprego na
cidade, fazendo que esta faixa da população, composta por homens em plena idade
produtiva, seja atraída por atividades ligadas a algum tipo de produção, na qual os
participantes são convidados a ser pró-ativos e não passivos, diferentemente do modelo
recorrente de alguns serviços de saúde.
Quadro 3 Identificação do estado civil
ESTADO CIVIL: NÚMERO DE FREQÜENTADORES
Solteiro (a) 34
Separado (a) 4
Viúvo (a) 1
Casado (a) 7
Total 46
Não responderam 2
No Quadro 3, observa-se que de 46 respondentes, 34 pessoas são solteiras,
representando a maior parte do grupo, enquanto 4 já foram casados e se separaram, e uma
é viúva. Sete pessoas declararam-se casados, e 2 não responderam esta questão.
155
Os Quadros 4, 5 e 6, que tratam de escolaridade/formação profissional, descrevem
o nível de escolaridade da totalidade dos entrevistados; a última série freqüentada pelos
que não concluíram o curso fundamental; a formação profissional no ensino formal e
informal.
Quadro 4 Grau de escolaridade da totalidade dos entrevistados
ESCOLARIDADE NÚMERO DE FREQÜENTADORES
Superior completo 4
Superior incompleto 6
Médio completo ou Nível Técnico 16
Médio incompleto 1
Fundamental completo 5
Fundamental incompleto 15
Total 47
Não responderam 1
O Quadro 4 demonstra que 10 dos usuários chegaram ao curso superior, entre os
quais 4 concluíram o curso e 6 não; 17 chegaram ao curso médio, dos quais 16
concluíram e 1 não concluiu; 5 chegaram ao fim do ensino fundamental, e 15
interromperam o curso fundamental em alguma série. Uma pessoa não respondeu a esta
questão.
Analisando estes dados, nota-se que, de 47 respondentes, 32 conseguiram, pelo
menos, concluir o curso fundamental, enquanto 10 chegaram ao curso superior.
156
Com o propósito de investigar até que séries cursaram as 15 pessoas que não
conseguiram concluir o ensino Fundamental, foi elaborado o Quadro 5, apresentado a
seguir.
Quadro 5 Até que série do ensino Fundamental cursou
PARTICIPANTE 1ªSÉ
RIE
2ªSÉ
RIE
3ª
SÉRIE
4ª
SÉRIE
5ª SÉRIE 6ª SÉRIE 7ª
SÉRIE
NÃO
RESPONDERA
M
Freqüentador 8 x
Freqüentador 12 x
Freqüentador 17 x
Freqüentador 26 x
Freqüentador 31 x
Freqüentador 34 x
Freqüentador 36 x
Freqüentador 13 x
Freqüentador 15 x
Freqüentador 16 x
Freqüentador 21 x
Freqüentador 28 x
Freqüentador 35 x
Freqüentador 39 x
Freqüentador 41 x
* Os números à frente da designação freqüentador referem-se aos números das fichas de cada repondente.
Observando-se o grupo que teve o ensino Fundamental interrompido, nota-se que
7 o fizeram em alguma série do Fundamental I (1ª a série), enquanto outros 7, em
séries do Fundamental II (da 5ª a 8ª série), e 1 não especificou até que série cursou.
157
Entre os respondentes, 5 declararam ter cursado escola especial, ou classe especial
em alguma série do currículo escolar, sendo que, destes, 3 têm nível fundamental
incompleto, enquanto 2 chegaram a concluí-lo.
49
Estes Quadros (4 e 5) demonstram que, no grupo, existe convivência entre
pessoas com os mais diferentes graus de instrução formal. Nota-se que o número de
integrantes se equilibra, quanto àqueles que concluíram o nível médio (16) e os que não
completaram o nível Fundamental (15). Ainda pode-se destacar a presença de pessoas
que tiveram acesso ao nível superior, interagindo com outras, que cursaram somente as
primeiras séries do fundamental. Estas diferenças quanto ao ensino formal que estão, em
geral, associadas às diferenças socioeconômicas dos participantes, propiciam durante o
trabalho uma multiplicidade de maneiras de ver o mundo, refletindo positivamente na
produção do grupo, em que cada um contribui com sua própria vivência e experiência,
independentemente de seu grau de instrução formal.
A partir do relato dos 21 respondentes que declararam ter tido algum tipo de
formação profissional, formal ou informal, foi possível montar o Quadro 6.
49
É possível que o indivíduo tenha cursado em um período da sua vida, uma escola especial e, posteriormente,
tenha prosseguido os estudos em uma escola comum. Quanto à classe especial, existe uma ampla discussão
sobre sua eficácia, pois, por muito tempo, foi utilizada como depósito de alunos indisciplinados, com desvio
de conduta ou deficientes, sem a perspectiva de ascensão, para aprendizado e convivência, na classe regular
de ensino.
158
Quadro 6 Formação Profissional
FREQÜENTADORES NÍVEL SUPERIOR NÍVEL MÉDIO FORMAÇÃO PRÁTICA
OU INFORMAL
Freqüentador 22 Nutrição (completo)
Freqüentador 23 Música (completo)
Freqüentador 43 Artes Cênicas
(completo)
Freqüentador 48 Psicologia
(completo)
Freqüentador 4 Direito (incompleto)
Freqüentador 11 Psicologia
(incompleto)
Freqüentador 18 Artes plásticas
(incompleto)
Freqüentador 30 Geografia
(incompleto)
Freqüentador 1 Técnico em Raio-X
Freqüentador 2 Técnico em química
Freqüentador 6 Teleoperadora
Freqüentador 9 Secretariado
Freqüentador 37 Técnico em
administração
Freqüentador 38 Música
Freqüentador 42 Vigilante
Freqüentador 45 Técnico eletricista
Freqüentador 14 Ator
Freqüentador 15 Metalurgia e gráfica
Freqüentador 39 Artesão
Freqüentador 40 Ator/produção
Freqüentador 46 Fotografia
Quanto à formação profissional formal (curso profissionalizante e superior), 8
concluíram cursos técnicos profissionalizantes, enquanto outros 8 buscaram formação
superior; entre os quais, 4 a concluíram; 5 tiveram sua formação em cursos livres,
realizados informalmente, ou mesmo de maneira autodidata (teatro, fotografia,
metalurgia, gráfica, artesanato).
159
SITUAÇÃO SOCIAL DO FREQÜENTADOR
Foram organizados quatro Quadros (7, 8, 9 e 10), de modo a mostrar a situação
social do freqüentador: no Quadro 7 apresenta-se sua situação de trabalho, no Quadro 8, o
número de pessoas com quem mora, no Quadro 9, se mora ou não com a família e no 10,
quais são seus meios de sustentação econômica. A análise destes dados buscará refletir
sobre o grau de dependência econômica do freqüentador, sua situação social, e tipo de
vínculo que mantém com a família.
Quadro 7 Situação de trabalho
TRABALHO NÚMERO DE FREQÜENTADORES
Não tem trabalho 33
Tem trabalho 15
Como se pode observar no Quadro 7, 33 pessoas responderam que não têm
trabalho, enquanto outros 15 declararam exercer algum tipo de atividade remunerada, no
mercado formal ou informal. Pelo grande número dos que não têm trabalho, essa questão
torna-se freqüente nas conversas do grupo, seja pelo aspecto prático da sobrevivência,
seja pelo aspecto simbólico do trabalho para a construção de sentidos para a vida.
50
50
A canção O vendedor de bananas, de Jorge Benjor e gravada pelo conjunto Os Incríveis, foi incluída no
programa do Coral no ano 2001, e motivou discussões no grupo acerca da questão do trabalho, formal ou
informal, como fator importante na construção da auto-estima do indivíduo.
160
Quadro 8 Situação de moradia
COM QUANTAS PESSOAS MORA NÚMERO DE FREQÜENTADORES
Sozinho 3
2 pessoas 14
3 pessoas 10
Mais de 3 pessoas 19
Total 46
Não responderam 2
O Quadro 8 traz dados a respeito do número de pessoas com quem os
freqüentadores moram: 3 disseram morar sozinhos, um mora nos fundos da casa da mãe,
outro numa pensão (sendo sustentado pelo pai) e outra, num Lar Abrigado
51
; 14 moram
acompanhados por uma pessoa, 10 moram com mais de duas pessoas e 19 com mais de
três pessoas, entre os quais, uma mora numa clínica e outra, numa comunidade Hare
Krishina, com devotos. Duas pessoas não responderam. Observa-se que a maior parte
mora com mais de 3 pessoas, e poucos moram sozinhos.
Quadro 9 Situação familiar de moradia
VÍNCULO COM A FAMÍLIA FREQÜENTADORES
Moram com algum membro da família 41
Moram separados da família 5
Total 46
51
Esses Lares são parte do Projeto de moradia independente para ex-internos de Hospitais Psiquiátricos.
161
Dos 46 respondentes, 41 afirmaram morar com a família, enquanto 5 moram
separados dela, ou seja, grande parte do grupo está vinculada à família. Dos que moram
separados da família, 3 moram sozinhos, 1 em uma clínica, e 1 em uma comunidade
religiosa. É importante ressaltar que nem sempre o convívio com a família se dá de forma
harmoniosa. Inúmeros são os relatos dos integrantes que, apesar de morarem junto à
família, têm problemas de relacionamento com ela.
Quadro 10 Situação de sustentação meios
MEIOS DE SUSTENTAÇÃO FREQÜENTADORES
Tem sustentação própria 26
Não tem remuneração alguma,
mas são sustentados por outra pessoa da
família
17
Não tem remuneração alguma,
e vive de maneira alternativa
2
Total 45
Não responderam 3
Os dados mostram que, de 45 respondentes, 26 têm alguma forma de se sustentar
economicamente, enquanto 17 são dependentes da família para sobreviver. Dois
declararam não ter renda e viverem de modo alternativo: um mora numa comunidade e
acata as regras da casa sendo sustentado por ela. O outro mora nos fundos da casa da
mãe, mas diz que fica pouco em casa, e se alimenta dos sopões servidos a moradores de
rua; 3 pessoas não responderam a essa questão.
Dos 26 que declararam ter meios de sustentação, 15 trabalham e 11 recebem
benefícios, ou têm outras fontes de renda. Destes, 9 recebem aposentadoria, uma recebe
pensão e um recebe aluguel por um cômodo.
162
A ligação com a família se mostra muito presente nos membros entrevistados,
uma vez que uma parcela considerável (17 pessoas) depende de seus familiares para o seu
sustento, e, entre os 3 que moram sozinhos, somente a pessoa que vive em Lar Abrigado
não depende da família para morar, pois, enquanto um mora nos fundos da casa da mãe, o
outro tem sua pensão paga por seu pai.
O Quadro 10, que expõe os meios de sustento (ou a falta deles), revela o grau de
dependência econômica que, por sua vez, tem uma forte implicação na construção da
auto-estima do freqüentador. O fato de depender de outro para viver, ou mesmo receber
algum benefício, não favorece a elevação de sua auto-estima, ao contrário do que
geralmente acontece no caso de quem trabalha e, desse trabalho, consegue tirar o seu
sustento.
SITUAÇÃO DE SAÚDE DO FREQÜENTADOR
Os Quadros 11,12 e 13, que se seguem, trazem informações a respeito da
condição de saúde do freqüentador, obtidas a partir de duas questões: se faz ou não algum
tratamento continuado de saúde; em caso de resposta positiva, buscou-se averiguar que
tipo de tratamento é esse.
163
Quadro 11 Condição de saúde ausência ou não de tratamento
TRATAMENTO DE SAÚDE NÚMERO DE FREQÜENTADORES
Fazem tratamento continuado de saúde 37
Não fazem tratamento de saúde 11
Total 48
Nota-se que a maior parte do grupo (37) respondeu que faz tratamento continuado
de saúde, enquanto 11 pessoas responderam não fazer nenhum tipo de tratamento de
saúde específico.
Quadro 12 Condição de saúde tipo de tratamento
TIPO NÚMERO DE FREQÜENTADORES
Psiquiátrico 27
Psicoterápico 3
Outros tratamentos: HIV, bronquite, coração,
diabetes, e outros
7
Total 37
De 37 freqüentadores que declararam fazer algum tipo de tratamento de saúde, 27
fazem tratamento psiquiátrico, 3 têm acompanhamento psicoterápico e 7 submetem-se a
tratamentos fora da área de saúde mental.
É importante salientar que nem todos ficam à vontade para falar sobre seu
tratamento de saúde, tendo sido mantida a liberdade do respondente em revelar ou não tal
informação.
Analisando-se a totalidade dos respondentes em relação aos dados contidos nos
Quadros 11 e 12, nota-se que do grupo de 48 participantes, 30 pessoas fazem
164
acompanhamento na área de saúde mental (incluindo psicoterapia), enquanto 18, ou
fazem tratamentos outros, que não na área da saúde mental (7), ou não fazem tratamento
específico (11).
Dessa forma, a faixa da população vinculada à área da saúde mental, que, no
princípio das atividades do Coral, se configurava como um público quase exclusivo,
passa a ser, agora, uma parcela do todo. Nota-se pelo levantamento feito nesta pesquisa,
que este público ainda continua majoritário, porém, um número significativo de
pessoas que podem ou não estar inseridas em um quadro de vulnerabilidade de saúde ou
social.
52
Esta separação entre os que fazem acompanhamento na área da saúde mental e os
que não o fazem deveu-se ao fato de se desejar averiguar a questão da heterogeneidade
quanto a este aspecto, na atual conformação do grupo. Conforme foi esclarecido no
capítulo 1, historicamente, o Coral Cênico tinha, como população majoritária, os
freqüentadores do CECCO, dos quais, muitos eram portadores de sofrimento mental,
tendo assim, durante algum tempo, o seu nome e imagem, associados a esta população:
Coral Cênico de Saúde Mental de São Paulo, uma vez que o grupo se vinculava à Luta
Antimanicomial e ao Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Hoje, sem perder
seus propósitos iniciais, atinge uma população mais ampla que a dos portadores de
sofrimento mental, configurando-se, efetivamente, como grupo heterogêneo, que não se
constitui a partir do diagnóstico de seus integrantes, mas sim pelo interesse em participar
de uma produção artística. Como já visto anteriormente, foi essa mudança no perfil dos
52
No Coral e no CECCO, o conceito de público alvo e população geral é aplicado tanto no âmbito da saúde
quanto no campo social, pois a situação de vulnerabilidade social de uma pessoa, num grau acentuado, poderá
determinar o pertencimento à categoria de público alvo, mesmo ela não estando em situação de
vulnerabilidade em saúde.
165
integrantes do grupo que trouxe, também, a necessidade de uma reflexão interna a
respeito dos propósitos do trabalho e, posteriormente, influenciou a alteração do nome do
Coral para o atual: Coral Cênico Cidadãos Cantantes.
53
Quadro 13 Condição de saúde Atendimento
SISTEMA DE ATENDIMENTO À SAÚDE NÚMERO DE FREQÜENTADORES
Rede Pública de saúde, ou conveniados pelo
Sistema Único de Saúde (SUS)
28
Particular 8
Não informaram onde fazem 1
Total 36
O Quadro 13 indica o sistema de atendimento à saúde utilizado pelos
participantes. A partir desse dado, buscou-se observar se esses serviços acessados são
vinculados à rede pública ou à rede privada de saúde. Nota-se que um número expressivo
(28 de 36) dos freqüentadores utiliza-se da rede pública de saúde, sendo mais um
indicativo do grau de vulnerabilidade social dessas pessoas, uma vez que a precariedade
desse sistema no Brasil faz com que ele seja utilizado quase que exclusivamente por uma
população de baixa renda, que não tem outra opção de atendimento.
53
A preparadora corporal e membro da equipe técnica do Coral Cênico, Tatiana Bichara, argumenta em seu
depoimento oral que, a abertura das oficinas nas linguagens específicas de Dança e Teatro, como
desdobramento da atividade do coral, contribuíram muito para a aproximação de um público mais
heterogêneo para este trabalho.
166
VÍNCULOS COM AS ATIVIDADES DO PROJETO CIDADÃOS CANTANTES
Os dados a seguir retratam o vínculo pessoal dos respondentes com as
atividades das quais participam, no projeto. Os Quadros 14, 15, 16, 17, 18 e 19
expressam dados a respeito do tipo de atividade freqüentada, do tempo em que
participam dela, de como souberam dessa atividade e de quais são as expectativas dos
freqëntadores em relação a ela.
Quadro 14 Tipo de atividade freqüentada (C- coral, D- dança, T- teatro)
TIPO DE ATIVIDADE FREQÜENTADORES FREQÜÊNCIA NAS ATIVIDADES
C+D+T 12 36 (12 x 3)
C+D 6 12 (6 x 2)
C+T 3 6 (3 x 2)
D+T 0 0
Só C 22 22
Só D 4 4
Só T 1 1
Total 48 81
Nota-se que 12 pessoas freqüentam as três oficinas (Coral , Dança e Teatro), 9
freqüentam duas, dentre as quais, 6 fazem Coral e Dança e 3 Coral e Teatro, totalizando
21 freqüentadores que fazem mais de uma atividade (12+6+3). Além disso, nota-se
também que 22 pessoas participam apenas da atividade do Coral, enquanto 4 participam
somente da oficina de Dança e 1 da oficina de Teatro, somando-se 27 freqüentadores que
fazem apenas uma atividade no projeto.
Multiplicando-se o n
úmero de freqüentadores pelas atividades que fazem, chega-
se ao número de 81 freqüências nas atividades, uma vez que entre os 48 pesquisados,
167
vários participam de mais de uma atividade, como se mostrou acima. É importante notar
que na totalidade dos respondentes, 43 pessoas (21+22) freqüentam a atividade do Coral,
associada ou não a outra atividade.
No mesmo Quadro 14, observa-se que, em função de o foco da pesquisa dar-se na
área de atuação do coral, apenas 5 pessoas não freqüentam essa atividade, porém, seus
dados se mostraram relevantes para a construção do perfil das pessoas que procuram as
atividades do projeto, uma vez que, atualmente, este não se resume na atividade de
coral, somando-se a esta as oficinas de linguagens cênicas, configurando-se, a junção
dessas três atividades como o Projeto Cidadãos Cantantes, desenvolvido no CCSP.
Quadro 15 Tempo que freqüenta a atividade
TEMPO NÚMERO DE FREQÜENTADORES
Até 1 ano 8
Entre 1 e 2 anos 8
Entre 2 e 6 anos 25
Mais de 10 anos 7
Total 48
O quadro 15 demonstra que, de um total de 48 respondentes, 8 estão há um ano ou
menos, enquanto 40 estão mais de um ano; destes, 25 participam do projeto por um
período compreendido entre 2 e 6 anos, 8 entre 1 e 2 anos, e 7 pessoas participam há mais
de 10 anos da atividade do coral. Estes dados mostram um vínculo forte dos respondentes
com o projeto, uma vez que 32 (25+7) pessoas, entre as inquiridas, participam da
atividade há, pelo menos, 2 anos.
168
O Quadro 16 identifica o modo pelo qual o freqüentador do coral ou das oficinas
soube dessa atividade, se por meio de divulgação do trabalho como atividade cultural, se
por indicação de alguma instituição vinculada à saúde, ou por outros caminhos.
Quadro 16 Aproximação com o Projeto
COMO SOUBE DA ATIVIDADE NÚMERO DE FREQÜENTADORES
Pelo CECCO 20
Encaminhado por outra instituição ou
profissional da saúde
11
Divulgação do CCSP, Agenda cultural da
prefeitura, ou por ter visto apresentação do
grupo
16
Outros caminhos 1
Examinando-se o Quadro 16, vê-se que, dos 48 respondentes, 20 vieram pelo
CECCO, 11 vieram encaminhados por outras instituições ligadas à saúde, 16 atenderam à
divulgação do CCSP e 1 conheceu o grupo por sua militância na área da saúde. Observa-
se que 31 pessoas (20+11) vieram por indicação de instituição ligada à saúde (CECCO
incluso), enquanto 17 (16+1) vieram atraídos por divulgação de atividade cultural, ou por
outros caminhos.
Vê-se que o número correspondente aos que se aproximaram do Projeto pela via
da saúde ainda é maior (31) do que o correspondente aos que se aproximaram pela via da
cultura (17), porém, os que vieram pelo CECCO (20) principal público freqüentador no
princípio da atividade do Coral e os que vieram pela divulgação do CCSP (16), não
estão muito distantes um do outro. O número de participantes que se aproximam pela via
cultural tem aumentado nos últimos anos, o que contribui na caracterização do grupo
como, efetivamente, heterogêneo. Acredita-se que este fato tenha se dado pelo
169
aprofundamento nas linguagens artísticas e por uma maior visibilidade nos veículos de
divulgação cultural da Prefeitura
54
.
Entre os 16 que se aproximaram pela via cultural, duas pessoas fizeram caminhos
indiretos para chegar ao CCSP: uma veio porque teve acesso a um exemplar da Revista
Agenda Cultural da Prefeitura, encontrado na escola onde trabalha, e a outra ficou
sabendo das oficinas no CCSP por intermédio de sua filha, que trabalha na região.
Uma pessoa fez um caminho peculiar: assistiu à primeira apresentação do grupo
no CCSP, como convidada, pois atuava como militante na área da saúde, pela Associação
SOS Saúde Mental Ecologia e Cultura. Ela se encantou com a apresentação e resolveu
entrar no grupo com interesse pela atividade sócio-cultural lá desenvolvida.
EXPECTATIVAS OU BENEFÍCIOS OBSERVADOS PELOS FREQÜENTADORES EM RELAÇÃO ÀS
ATIVIDADES DO PROJETO
Os Quadros 17, 18 e 19, a seguir mostram as expectativas ou benefícios que cada
freqüentador observa em relação às atividades. Por razões elucidadas no início desta
análise, quanto ao desligamento de pessoas durante o processo de aplicação do
questionário, foi possível extrair 39 respostas dessa questão. As expectativas foram
organizadas em 3 grupos, embora algumas delas se abriguem em mais de uma categoria:
expectativas ou benefícios observados quanto ao desenvolvimento pessoal; expectativas
54
O fato de se aproximar pela via cultural ou da saúde não determina necessariamente a condição de saúde do
freqüentador, uma vez que tanto pelo CCSP, podem vir pessoas com necessidades de atenção na área da
saúde, quanto pelo CECCO, podem vir pessoas que se encontrem em boas condições de saúde e queiram vir
pelo interesse no desenvolvimento artístico.
170
ou benefícios observados quanto ao aprofundamento nas linguagens artísticas e
profissionalização; expectativas em relação ao grupo (e não ao desenvolvimento pessoal).
Quadro 17 Expectativas quanto ao desenvolvimento pessoal
FREQÜENTADOR EXPECTATIVAS
Freqüentador 1 Crescimento pessoal (aprendizado, cultura,
relacionamentos etc.)
Freqüentador 4 Desinibição, conhecer gente, integração,
vencer a fobia social
Freqüentador 47 Ajudar a vencer a timidez
Freqüentador 8 Me sentir bem
Freqüentador 17 Melhorar cada vez mais
Freqüentador 44 Melhorar cada vez mais
Freqüentador 31 Continuar, pois é um amor. É uma
higiene mental participar do grupo
Freqüentador 46 Ajudar e ser ajudado. Mudou minha
imagem do mundo. Ajudou quanto ao
respeito às diferenças. Deu maior segurança
Freqüentador 9 Me ajudou a ser mais sociável, trabalhar e
batalhar por meus objetivos
Freqüentador 32 Aprender as músicas e despertar mais para
as coisas
Freqüentador 34 Era fechada, agora me sinto melhor. Gosto
de cantar e das músicas
Freqüentador 35 * Fiquei mais calma mais comunicativa e fiz
mais amizades. Foi bom para mim e para
minha filha
Freqüentador 45 Integração, me sentir útil, construir uma
história de tolerância com as diferenças e
poder exercitar a arte nos seus mais
diversos sentidos.
Freqüentador 7 Comunicar melhor com as pessoas e se
apresentar
Freqüentador 24 Cantar e me comunicar
Freqüentador 5
Amizades, dar carinho, cantar, ter
personagem no teatro, brincar com o corpo
na dança, ouvir, falar, andar, ter
responsabilidade, trabalhar mais.
Freqüentador 25 Melhorar a voz para cantar melhor no
karaokê. O coral é tratamento e trabalho.
Freqüentador 27 Achei legal, gostei. Espero melhorar no
coral, cantando. Este trabalho me ajudou a
me desinibir, sou mais solta agora.
Freqüentador 29
Cantar, encontrar a Cristina (coordenadora)
e apresentar. Não gosto do aquecimento
171
FREQÜENTADOR EXPECTATIVAS
Freqüentador 36 * *
Espero melhorar da timidez, ganhar cachê
de vez em quando, relacionar com pessoas e
não se isolar
Freqüentador 26 Melhorar, dançar, cantar aprender
novidades, músicas novas, apresentar,
participar.
* O freqüentador 35 veio como acompanhante da filha
* *O freqüentador 36 tem muita dificuldade para se relacionar.
Destes, alguns declaram entre outras expectativas, ter vindo em busca de
relacionamentos e socialização; outros relatam dificuldades com a timidez e bloqueios
individuais; outros, ainda, afirmam que a vivência no grupo lhes proporcionou uma maior
atenção ao respeito às diferenças e uma abertura maior para as coisas.
Estas expectativas revelam anseios e necessidades muito particulares de cada
integrante, como a busca por conhecer pessoas, ou a superação de desafios. Nota-se que
alguns colocam a própria atitude de cantar como um desafio. Muitos mostram o desejo de
se apresentar, enquanto outros revelam satisfação no próprio cotidiano dos ensaios, com
pesquisas no campo perceptivo pelo uso das linguagens artísticas e encontros entre as
pessoas.
Muitos declaram ter atingido conquistas pessoais com esse trabalho. Um
freqüentador (25), declara que, para ele, o coral é tratamento e trabalho. Outro
freqüentador (36), além de melhora no campo afetivo e social, tem expectativas
individuais quanto à possibilidade de receber cachês por este trabalho, mesmo que
eventualmente.
172
Quadro 18 Expectativas quanto ao aprofundamento nas linguagens artísticas e
profissionalização
FREQÜENTADOR EXPECTATIVA
Freqüentador 14 Lugar de acolhida e de descobertas para se
lançar
Freqüentador 3 Ser bailarino
Freqüentador 42 Expandir conhecimento musical e conhecer
pessoas
Freqüentador 6 Aprender sobre teatro, música e dança
Freqüentador 10 Trabalhar com arte com crianças e idosos:
tenho jeito para ensinar
Freqüentador 48 Ter mais elementos para trabalhar com
oficinas para crianças carentes e adultos.
Freqüentador 39 O coral não é mais expectativa e sim realidade.
Aqui me reencontrei, conquistei espaço,
cidadania, aprendi a lidar com o público,
desenvolvi a minha criatividade. Isso tudo
ajudou a me reinserir no mercado de trabalho,
hoje sou artista de rua e me sinto bem
Freqüentador 19 Desenvolver a linguagem musical e trabalhar
em grupo, um desafio
Freqüentador 43 Aprender, integrar-me e conhecer mais sobre
teatro.
Freqüentador 15 Desenvolver minha criatividade na dança e no
canto
Freqüentador 23 Desenvolvimento e atuação musical
Freqüentador 41 Desenvolvimento artístico
Freqüentador 12 Fazer música, dança e especialmente,
representar
Freqüentador 38 Minha expectativa é fazer música, fazer arte.
Além disso também tenho expectativa de, pela
observação de profissionais muito capacitados,
aprender coisas que possa usar nos meus
projetos pessoais.
Entre as expectativas relacionadas neste item, encontram-se a busca pelo
aprendizado da linguagem artística, o exercício da criatividade, mas, também, a
valorização do caráter coletivo da arte: a expressão na convivência, a integração, a
comunicação com o público em apresentações, e a construção do sentimento de
confiança, para se lançar no mundo.
173
Em alguns casos, revela-se um desejo de profissionalização e de aplicação, em
outros espaços, daquilo que se apreende no dia-a-dia do coral. (Freqüentadores 10, 48, 39
e 38).
Quadro 19 Expectativas em relação ao grupo (e não ao desenvolvimento pessoal)
FREQÜENTADOR EXPECTATIVA
Freqüentador 13 Que o trabalho do coral continue
Freqüentador 40 Que continue e que seja tomado como política
pública
Freqüentador 16 Que o coral tenha maior divulgação e que
conquiste mais espaço. No início, para mim,
era para melhorar da depressão
Freqüentador 18 Tenho expectativa imediata quanto à
construção do novo repertório.
Agrupadas nesse item, essas respostas não identificam uma expectativa individual
a ser alimentada pelo trabalho do coral, e sim uma expectativa dessas pessoas quanto à
manutenção e melhoria na qualidade desse trabalho para a coletividade, mostrando
preocupação tanto com os aspectos constitutivos da proposta (construção do novo
repertório), quanto com o futuro do projeto, compreendido como política pública,
esperando-se sua ampliação e divulgação. Nota-se na expectativa colocada pelo
freqüentador 16, uma transição entre o que esperava do Coral quando entrou e o que
espera hoje, possivelmente por sua situação de saúde não ser mais o principal motivador
de sua participação no projeto.
Concluindo a análise dos Quadros 17, 18 e 19, -se que de 39 respondentes, 21
têm expectativas quanto ao desenvolvimento pessoal (desinibição, melhora da
174
comunicação, criação de vínculos), enquanto 14 têm expectativas quanto ao
desenvolvimento artístico e 4 quanto ao futuro do trabalho do grupo, e não a algum
anseio pessoal. A maior parte coloca sua expectativa no desenvolvimento pessoal por
meio da arte, porém, um grupo significativo vem em busca de aprofundamento artístico e
gostaria de ver desdobramentos da proposta do grupo.
ESTUDO DA LOCALIDADE ONDE MORA O FREQÜENTADOR
Pelos dados obtidos pelo Guião, tem-se uma mostra indicativa das localidades de
moradia dos freqüentadores das atividades. O estudo a seguir busca identificar as
distâncias percorridas pelos freqüentadores para chegarem ao CCSP e, num segundo
momento, avaliar as condições sociais dos locais onde moram. Os dados colhidos
referem-se à totalidade dos 48 freqüentadores pesquisados.
MAPA DAS DISTÂNCIAS
175
Figura 13 Mapa da localidade de moradia dos freqüentadores
Fonte: http://atlasambiental.prefeitura.sp.gov.br/
*os números que aparecem no mapa se referem aos freqüentadores do projeto.
176
Figura 14 Mapa da Cidade de São Paulo subdividida em regiões e em quadrantes que se
referem ao número da planta correspondente no Mapa. (Ilustração extraída do guia Listão
OESP 2005).
55
A visualização da Figura 14, que traz o Mapa dividido em quadrantes, a
sinalização geográfica do CCSP (que se encontra na região central da cidade, quadrante
nº 30), e ainda, a disposição do número de participantes por quadrante, permitem a
55
Para melhor visualização das localidades de moradia dos integrantes e suas distâncias em relação ao Centro
Cultural, foi aplicada a divisão do mapa da cidade em quadrantes como utilizada no Listão OESP 2005, a
lista de o Paulo, ABCD, Osasco e Região, OESP Mídia credibilidade, 2005. A numeração em vermelho
assinala os quadrantes e as numerações em azul, o número de integrantes do Projeto em relação a cada
quadrante. A linha pontilhada verde divide a cidade por Zonas (Sul, Leste, Norte, Oeste e Centro).
177
avaliação dos deslocamentos e da concentração de integrantes por região, para,
posteriormente avaliarem-se as diferenças sociais presentes nessas regiões. Para auxiliar
na localização geográfica dos bairros em relação às zonas às quais pertencem, utilizou-se
o mapa do município com subdivisão geo-política (Figura 13).
LOCAL DE MORADIA DOS FREQÜENTADORES
Os bairros que não pertencem à Região Central estão listados segundo sua região
(Sul, Leste, Oeste, Norte) e seguem uma ordem da menor para a maior distância existente
entre eles e o CCSP.
 REGIÃO CENTRAL
Nota-se que entre os 48 freqüentadores que responderam ao questionário, 10
residem na Região Central ou em proximidades do CCSP, compreendendo os bairros do
Paraíso, Aclimação, Liberdade, Bela Vista, V. Mariana (na região próxima do CCSP) e
Cambuci.
178
Quadro 20 Bairros de origem dos freqüentadores Região Central localização
FREQÜENTADOR BAIRRO Nº DO QUADRANTE NA
PLANTA DA CIDADE
Freqüentador 2 Paraíso 30
Freqüentador 43 Paraíso 30
Freqüentador 6 Aclimação 30
Freqüentador 44 Liberdade 30
Freqüentador 13 Bela Vista 30
Freqüentador 46 Bela Vista 29
Freqüentador 23 Vila Mariana 30
Freqüentador 11 Vila Mariana 30
Freqüentador 4 Cambuci 30
Freqüentador 48 Cambuci 30
 REGIÃO SUL
Da Região Sul tem-se 16 freqüentadores vindos dos bairros de V. Clementino,
Pça da Árvore, V. Gumercindo, Jabaquara, Água Funda, Sto Amaro, Sacomã, Campo
Limpo e Grajaú, compreendendo assim, desde as regiões mais favorecidas (V.
Clementino, Brooklin), até as mais desfavorecidas (Campo Limpo e Grajaú).
179
Quadro 21 Localização dos bairros de origem Região Sul
FREQÜENTADOR BAIRRO Nº DO QUADRANTE NA
PLANTA DA CIDADE
Freqüentador 9 Vila Clementino 41
Freqüentador 25 Praça da Árvore 41
Freqüentador 36 Vila Gumercindo (próximo
da Saúde)
42
Freqüentador 27 Jabaquara 47
Freqüentador 38 V. Guarani 47
Freqüentador 29 Água Funda (Cursino) 47
Freqüentador 12 Água Funda (Cursino) 47
Freqüentador 22 Brooklin (Sto Amaro) 39
Freqüentador 10 Jd Maria Estela (Sacomã) 48
Freqüentador 15 Vila Moraes (Sacomã) 48
Freqüentador 34 São João Clímaco (Sacomã,
próximo de S. Caetano)
48
Freqüentador 35 São João Clímaco (Sacomã,
próximo de S. Caetano)
48
Freqüentador 32 Jd Ana Maria (Campo
Limpo)
43
Freqüentador 7 Jd Eledy (Campo Limpo) -
prox Taboão da Serra
37
Freqüentador 1 Jd dos Manacás (Grajaú) 53 (+)
Freqüentador 20 Jd São Bernardo (Grajaú) 53 (+) *
* O símbolo (+) à esquerda do do quadrante, indica que o bairro se encontra além da delimitação
geográfica do quadrante.
 REGIÃO LESTE
Entre os entrevistados, 9 pessoas vêm da zona Leste de São Paulo, a maior parte
concentrando-se em torno da região de Itaquera (A. E. Carvalho, José Bonifácio, V.
Nhocuné, Cidade Patriarca) mas existem representantes dos bairros da Água Rasa (região
mais próxima do centro da cidade, que as anteriores), e São Mateus.
180
Quadro 22 Bairros, freqüentadores e localização Região Leste
FREQÜENTADOR BAIRRO Nº DO QUADRANTE NA
PLANTA DA CIDADE
Freqüentador 28 Água Rasa 32
Freqüentador 19 V. Nhocuné 24
Freqüentador 31 Cd Patriarca 24
Freqüentador 8 José Bonifácio 34
Freqüentador 21 A E Carvalho 25
Freqüentador 16 A E Carvalho (Itaquera) 14
Freqüentador 33 Itaquera 25
Freqüentador 41 Itaquera 25
Freqüentador 45 São Mateus 35
 REGIÃO OESTE
Entre os 10 integrantes procedentes da Zona Oeste, 6 vêm dos bairros mais
próximos ao centro e com maior qualidade de vida da cidade de São Paulo (Cerqueira
César, Jd. Paulista, Itaim Bibi, Perdizes), enquanto 4 vêm de regiões mais distantes, indo
do Rio Pequeno até o bairro da Granja Vianna (município de Cotia), fora da cidade. A
Zona Oeste apresenta a peculiaridade de agregar pólos extremos quanto à situação social.
Exemplo disso é que, a esta região, pertencem os bairros de Jd Paulista e Perdizes, com
menor grau de privação social, e o Pq. Anhangüera, uma das regiões com maior grau de
vulnerabilidade social. Isso sem falar do bairro de classe alta da Granja Vianna, que se
situa no município de Cotia, próximo ao extremo Oeste da cidade de São Paulo.
181
Quadro 23 Bairros de procedência Região Oeste localização
FREQÜENTADOR BAIRRO Nº DO QUADRANTE NA
PLANTA DA CIDADE
Freqüentador 3 C. César (Consolação) 29
Freqüentador 47 C. César (Consolação) 29
Freqüentador 24 Jd Paulista 29
Freqüentador 26 Itaim Bibi 28
Freqüentador 18 Perdizes 18
Freqüentador 30 Perdizes/Pompéia 17
Freqüentador 14 Rio Pequeno prox Raposo
Tavares Km 15
26
Freqüentador 37 Jd DAbril prox Osasco.
Raposo Tavares Km 17
26 (+)
Freqüentador 39 Pq Anhangüera prox Via
Anhangüera
4 (+)
Freqüentador 40 Granja Vianna (Cotia) 26 (+)
 REGIÃO NORTE
Apenas 3 freqüentadores vêm da Zona Norte, dos bairros da Casa Verde, Casa
Verde Alta e V. Nova Mazzei (Tucuruvi), sendo que apenas essa região apresenta
melhores índices de condições sociais, apesar de se situar mais distante do centro do que
a região da Casa Verde. (Ver na Figura 13 e Figura 14, quadrantes 2 e 7)
Quadro 24 Bairros e quadrantes de origem Região Norte
FREQÜENTADOR BAIRRO Nº DO QUADRANTE NA
PLANTA DA CIDADE
Freqüentador 17 Casa Verde 7
Freqüentador 42 Casa Verde Alta 7
Freqüentador 5 V. Nova Mazzei prox
Tucuruvi
2
182
DISTÂNCIAS PERCORRIDAS PELOS FREQÜENTADORES PARA CHEGAREM AO CCSP
Quadro 25 Distâncias percorridas da casa ao CCSP
DISTÂNCIAS EM
RELAÇÃO AO CCSP
FREQÜENTADORES BAIRROS QUADRANTES
Até 8 Km 20 Centro, Vila
Clementino Praça da
Árvore Vila
Gumercindo (Saúde);
C. César, Itaim BiBi, Jd
Paulista, Perdizes,
Pompéia; Casa Verde
(29 e 30)
(41,42)
(17, 18, 28, 29)
(7)
De 8 a 12 Km 7 Jabaquara, V. Guarani,
Água Funda 2 e
Brooklin; Água Rasa;
Casa Verde Alta
(47 e 39)
(32)
(7)
De 12 a 24 Km 21 Campo Limpo, Grajaú,
Sacomã; Rio Pequeno,
Jd DAbril, Pq
Anhangüera e Granja
Vianna; região de
Itaquera e São Mateus;
Tucuruvi
(37, 43, 48 e 53+);
(4, 26 e 26+);
(14, 24, 25, 34 e 35);
(2)
Considerando a cidade subdividida em 5 regiões (Norte, Sul, Leste, Oeste e
Centro), nota-se observando as Figura 13 e 14, que:
 20 pessoas moram em regiões mais próximas do CCSP, distando deste, no
máximo 8 Km,
- 10 moram no centro e proximidades (quadrantes 29 e 30); 3 na ZS Vila
Clementino Praça da Árvore Vila Gumercindo (Saúde) (41,42); 6 na ZO Cerqueira
César, Itaim BiBi, Jd Paulista, Perdizes, Pompéia (17, 18, 28, 29) e 1 na ZN Casa
Verde (7).
183
 7 pessoas moram a uma distância de 8 a 12 Km,
- 5 vêm da ZS - Jabaquara, V. Guarani, Água Funda (duas pessoas) e Brooklin
(quadrantes 47 e 39) ; 1 da ZL - Água Rasa (32) e 1 da ZN - Casa Verde Alta
(7).
 21 pessoas percorrem distâncias entre 12 e 24 Km para chegarem ao CCSP,
- 8 vêm da ZS Campo Limpo, Grajaú, Sacomã (quadrantes 37, 43, 48 e 53); 4
da ZO Rio Pequeno, Jd DAbril, Pq. Anhangüera e Granja Vianna (4, 26 e
26+); 8 da ZL região de Itaquera e São Mateus (14, 24, 25, 34 e 35); e 1 da
ZN Tucuruvi (2)
Analisando esses dados conclui-se que 28 pessoas (21+7) vêm de regiões
distantes do CCSP (de 8 a 24 Km do centro), algumas destas, situadas na periferia da
cidade e com alto grau de vulnerabilidade social, enquanto 20 pessoas vêm de regiões
mais próximas do CCSP, e, na maior parte, de regiões com melhores condições sociais do
que o restante da cidade.
As distâncias em relação ao CCSP consideradas como indicativo de acesso é
interessante, pois, como consta em recente estudo realizado pela Secretaria Municipal de
Assistência Social de São Paulo, parte da idéia de que as distâncias representam custos
para a população tanto de forma direta (como no caso de gastos com transporte) quanto
de forma indireta (tempo despendido, que poderia ser utilizado para outros fins) (...) A
distância pode ainda ser encarada como um estímulo negativo à procura por certos
184
serviços (SÃO PAULO, 2004b, P. 48). No caso do Coral observa-se que essas dificuldades
são superadas pelo interesse dos participantes no projeto, uma vez que muitos percorrem
longas distâncias e não deixam de freqüentar as atividades, muitas vezes, mais de uma
por semana.
56
MAPA DA VULNERABILIDADE SOCIAL
A seguir apresentam-se alguns quadros baseados em estudos a respeito do índice
de vulnerabilidade social em São Paulo, para colaborar na visualização da
heterogeneidade quanto ao aspecto social presente no Projeto Cidadãos Cantantes,
relacionando o freqüentador com a localidade onde mora.
56
Sobre a relação direta entre o afastamento do centro em direção à periferia com o aumento do grau de
privação, o mesmo estudo demonstra que: apesar de apresentar uma distribuição espacial genericamente
centro-periferia, o mapa referente à dimensão socioeconômica demonstrou a existência de situações sociais
diversas que se imbricam no tecido social de uma maneira não concentrada (SÃO PAULO, 2004b, p. 19).
185
Quadro 26 Regiões que apresentam menores índices de privação social
ZONA Nº DO QUADRANTE BAIRROS NºDE
FREQÜENTADORES
Central 30 Paraíso, Aclimação,
V. Mariana e
Cambuci
7
Sul 41, 42 e 39 V. Clementino, Pça
da Árvore, V.
Gumercindo e
Brooklin (Sto
Amaro)
4
Oeste 17,18,28 e 29 Perdizes, Pompéia ,
Itaim Bibi e Granja
Vianna (Cotia)
7
Norte 2 Tucuruvi 1
Total 19
Quadro 27 Regiões que apresentam maiores índices de privação social
ZONA Nº DO QUADRANTE BAIRROS NºDE
FREQÜENTADORES
Central 29 e 30 Bela Vista, Liberdade 3
Leste 32, 34, 14, 24, 25, 35 Água Rasa, Itaquera, A
E Carvalho, José
Bonifácio, V. Nhocuné,
Cidade Patriarca e São
Mateus
9
Sul 37, 43, 47, 48, 53 Campo Limpo,
Jabaquara, V. Guarani,
Água Funda, Sacomã e
Grajaú.
12
Oeste 26, 26+ e 4 Jd DAbril, Rio
pequeno/Butantã e Pq.
Anhanguera
3
Norte 7 Casa Verde e Casa
Verde Alta
2
Total 29
Entre os entrevistados, 19 freqüentadores (Quadro 26) moram em regiões que
apresentam boas condições sociais. Destes, 10 moram entre as regiões Centro e Sul
(quadrantes 29, 30, 39, 41 e 42) e 8 na Oeste (17, 18, 28, 29), uma vez que a zona
186
Sudoeste apresenta a maior concentração em sua população de um quadro de nenhuma
privação socioeconômica, aspecto pouco presente nas demais áreas do município (SÃO
PAULO, 2004b, P. 25)
57
. Um dos entrevistados, mora no bairro de Tucuruvi, que apresenta
melhores condições sociais do que o restante da região Norte, e outro, da região Oeste,
mora na Granja Vianna, que concentra condomínios de alto padrão no município de
Cotia, próximo ao extremo oeste de São Paulo. Os outros 29 freqüentadores se encontram
em regiões com graus diferenciados de vulnerabilidade social.
Para amparar as análises sobre o grau de vulnerabilidade social de cada região
utilizou-se o livro Mapa da vulnerabilidade social em São Paulo, 2004.
57
Pode-se dizer que o grupo 1 (nenhuma privação), reúne a população mais rica e com maior escolaridade,
além de apresentar poucas crianças, baixa densidade populacional e mulheres chefe com maior escolaridade.
Além disso, a idade média dos responsáveis é próxima à média do município, 46 anos (a média de idade em
São Paulo, na escala dos setores censitários, é de 45 anos) (SÃO PAULO, 2004b, P. 24/25, 2004)
187
Figura 15 Mapa da vulnerabilidade social. Município de São Paulo 2000. Ilustração
extraída do livro Mapa da vulnerabilidade social em São Paulo, p. 95, 2004.
Pela análise da Figura 15, que se refere aos setores censitários classificados
segundo grupos de vulnerabilidade social (Mapa da Vulnerabilidade Social em São
Paulo, 2004), vê-se que boa parte dos freqüentadores que vivem em localidades mais
distantes do CCSP, e do centro de São Paulo encontram-se entre um grau de alta e média
privação social, variando de região para região.
188
Comparando-se os mapas anteriores a este (Figura 15), que apresenta os grupos
em situação de vulnerabilidade social em São Paulo, nota-se que, quanto ao aspecto da
situação social de seus integrantes, o projeto do Coral Cênico Cidadãos Cantantes,
também apresenta um quadro heterogêneo, pois uma parcela considerável dos
entrevistados (19) mora em regiões onde prevalece o índice de nenhuma privação social
(com exceções ao redor do centro da cidade) e convivem com outras pessoas que estão
em regiões de alta privação, como é o caso do freqüentador 39, por exemplo, que mora na
região do Pq Anhangüera (quadrante 4+), ou dos freqüentadores 1 e 20, que moram no
Grajaú (quadrante 53+).
Na Zona Leste, 9 integrantes residem entre as regiões de Itaquera, abrangendo: A
E Carvalho, José Bonifácio, V. Nhocuné e Cidade Patriarca (quadrantes 14, 24, 25 e 34),
Água Rasa (32) e São Mateus (35). Nesta região prevalecem grupos com índices entre
alta e média privação.
Na Zona Sul, 8 integrantes residem nas regiões de, Jabaquara, Água Funda
(Cursino) e Sacomã, (quadrantes 47, 48). A região apresenta um índice menor de alta
privação, acrescida de pontos com média privação. No quadrante 53, a região de Grajaú
(2 integrantes) já acentua o grau de alta e altíssima privação. Os quadrantes 37 e 43,
região de Campo Limpo (2 integrantes), apresentam, na maior parte do seu território,
média privação, com regiões dispersas onde aparecem os graus de alta e altíssima
privação.
189
Na Zona Oeste, 2 integrantes residem na região do Rio Pequeno e do Jd DAbril,
correspondente ao quadrante 26, região essa que apresenta em sua maior parte média
privação, com pontos de alta, com exceção da região do Butantã, que apresenta baixa
privação. Na região do Pq Anhangüera (quadrante 4+) reside 1 integrante. Esta região
apresenta em sua maior parte, alta privação entre adultos e jovens, situando-se entre as
regiões de maior grau de vulnerabilidade social do município.
Na Zona Norte, 1 integrante mora na região do Tucuruvi, quadrante 2, que é uma
área onde prevalece um índice de privação muito baixa, enquanto 2 integrantes residem
nas regiões de Casa Verde e Casa Verde Alta, que corresponde ao quadrante 7, e
apresenta um índice entre média e alta privação.
A Região Central e proximidades apresentam uma maior parte com privação
muito baixa ou nenhuma privação, porém, existem regiões de média privação ao redor do
Centro Sé, nas regiões da Liberdade e Bela Vista (quadrante 30) , regiões estas onde
residem 3 dos entrevistados.
As regiões de Perdizes, Pompéia (quadrantes 17, 18), Cerqueira César
(Consolação), Jd Paulista e Itaim Bibi (quadrantes 28, 29), Paraíso, Aclimação, V.
Mariana e Cambuci (quadrante 30), Brooklin (39) e V. Clementino, Pça da Árvore (41) e
V. Gumercindo/ Saúde (quadrante 42), apresentam o menor grau de privação social,
prevalecendo os índices de nenhuma ou muito baixa privação. Nessas regiões moram 19
dos entrevistados (SÃO PAULO, 2004b, P. 21-30).
190
A partir desses dados, conclui-se que, atraídos pela atividade cultural, e pela
localização do Centro Cultural São Paulo (centro da cidade, de fácil acesso e um espaço
aberto para a convivência de diferentes públicos), o Projeto Cidadãos Cantantes consegue
atingir pessoas de diferentes níveis sociais e econômicos, o que constitui, assim, em mais
um aspecto de heterogeneidade na formação do grupo e construção do trabalho.
191
ANÁLISE DAS ENTREVISTAS INDIVIDUAIS
CRITÉRIOS DE ESCOLHA DOS CANTORES
JUSTIFICATIVA DA ESCOLHA DOS ENTREVISTADOS EM RELAÇÃO AO CRITÉRIO
HETEROGENEIDADE
Foram realizadas entrevistas com os seguintes cantores: Reinaldo, Ivan,
Márcio, Herbert, Cristiano, César, Zina, Vitor e Alice. As entrevistas foram feitas todas
no CCSP, de junho de 2004 a abril de 2005. A partir dos dados investigados pelo Guião,
tem-se uma mostra da heterogeneidade presente neste grupo, configurando-se assim, um
dos critérios de escolha destes entrevistados
 LOCALIZAÇÃO DE MORADIA
Segundo a localização de moradia, três vêm da zona leste (Vila Nhocuné, Cidade
Patriarca, Itaquera), outros três, da zona oeste (Jardim Paulista, Parque Anhanguera,
Granja Vianna município de Cotia), dois da zona sul (Vila Mariana) e um, da zona
norte (Casa Verde).
Analisando-se a diferença no grupo quanto a este item, nota-se que três moram em
regiões próximas ao CCSP (Vila Mariana e Jardim Paulista), enquanto os outros vêm de
locais mais distantes. Entre os mais distantes em São Paulo, está o bairro Parque
192
Anhanguera (Distrito de Perus), sendo também, como já visto, uma das regiões que
apresentam maior grau de vulnerabilidade social.
 IDADE
Entre os entrevistados quatro são jovens com idades entre 20 e 29 anos, porém,
foram ouvidas duas pessoas com mais de sessenta anos, outras duas com idade
compreendida entre 30 e 40 anos, e uma, entre 41 e 59 anos.
 GÊNERO E ESTADO CIVIL
Foram entrevistados duas mulheres e sete homens. A maior parte, ou seja, seis
entrevistados, é solteira, outros dois são casados e uma é viúva.
 GRAU DE ESCOLARIDADE
Este item apresenta grande heterogeneidade no grupo, uma vez que, entre os
entrevistados, um tem curso superior completo, e outro, incompleto, três concluíram o
nível médio, um concluiu o nível fundamental, e outros três não completaram o curso
fundamental.
 SITUAÇÃO DE TRABALHO
193
Entre os entrevistados, quatro estão trabalhando, enquanto cinco, não. Entre os
que não estão trabalhando, três têm outra fonte de renda, enquanto dois são sustentados
por familiares.
É importante salientar que as questões de idade, gênero, estado civil, escolaridade
e situação de trabalho não foram pensadas previamente como quesitos relevantes na
escolha dos entrevistados, porém depois de categorizados, revelaram-se como uma boa
amostragem da heterogeneidade do grupo em relação a esses itens.
 FORMA COMO SE APROXIMARAM DA ATIVIDADE: SE PELA VIA DA SAÚDE OU DA
CULTURA
A representação da heterogeneidade quanto a este item, foi buscada como critério,
na escolha dos entrevistados, em função do trabalho do Coral se encontrar numa zona de
fronteira entre essas duas áreas.
Cinco entre os entrevistados se aproximaram pela Saúde, e quatro pela Cultura.
Todos os que se aproximaram do trabalho por indicação de órgãos da saúde fazem
acompanhamento psiquiátrico.
 ONDE FAZEM TRATAMENTO DE SAÚDE: SE NA REDE PÚBLICA OU NA REDE PRIVADA
Entre os que fazem tratamento, apenas dois fazem ou fizeram em atendimento
particular, enquanto os outros três o fazem na rede pública.
194
 PERFIL DOS ENTREVISTADOS ENTRE POPULAÇÃO ALVO E POPULAÇÃO GERAL
Os critérios utilizados no CECCO-Ibirapuera para se definir a população-alvo
estão ligados ao grau de vulnerabilidade daquele indivíduo em relação a sua situação de
saúde ou social, portanto, quem se encontra fora deste quadro é considerado pertencente à
população-geral.
Dessa maneira, analisando os entrevistados a partir do grau de vulnerabilidade em
saúde, obteve-se o seguinte quadro:
- Três deles são representantes do público-alvo, pois se encontram em
situação atual de vulnerabilidade em saúde na área de saúde mental (com ou sem
tratamento); dois conseguiram sair da condição de vulnerabilidade em saúde (já
fizeram ou continuam fazendo algum tratamento); quatro pertencem à população
geral: nunca fizeram tratamento algum (não considerando atendimento em
psicoterapias como tratamento, caso de um entrevistado).
- Quanto ao grau de vulnerabilidade social, observou-se que dois se encontram
em situação de vulnerabilidade social, sem emprego e em condições precárias de
moradia; cinco têm condições para se manter financeiramente; e dois são
sustentados por seus familiares.
- A situação de um dos entrevistados agrega a condição de vulnerabilidade em
saúde e social, sendo no grupo, a pessoa que apresenta piores condições de vida
atualmente.
195
- Observando-se estes dados, nota-se que, entre os que necessitam cuidados em
saúde mental, apresentam-se cinco pessoas, sendo que duas conseguiram reverter
seu quadro de sofrimento mental e conquistaram uma melhor qualidade de vida.
- Quanto ao aspecto social, nota-se que duas pessoas encontram-se dentro de
um grau acentuado de vulnerabilidade social, tendo uma delas, também,
necessidade de atenção em saúde mental, enquanto as outras sete, se encontram
em melhores condições sociais. A convivência entre população-alvo e
população geral está expressa neste grupo, como uma mostra representativa da
situação observada no Coral Cênico Cidadãos Cantantes.
 EXPECTATIVAS
Nota-se que a maior parte dos entrevistados está interessada em algum
aprofundamento nas linguagens artísticas (5 entre 9), enquanto três pessoas apresentaram
interesse mais voltado para o desenvolvimento pessoal e uma, pelo crescimento do
trabalho.
JUSTIFICATIVA DA ESCOLHA DOS ENTREVISTADOS EM RELAÇÃO AO COMPROMISSO COM
A PRODUÇÃO ARTÍSTICA E ANTIGUIDADE NO GRUPO
Pelo fato de o foco do trabalho estar na produção artística do grupo, um dos
critérios de escolha dos entrevistados passou pelo grau de comprometimento do cantor
com essa produção. Outro critério foi a heterogeneidade representada por este grupo,
196
quanto aos itens já enumerados anteriormente, em especial quanto ao tempo que
freqüenta a atividade, misturando-se, a propósito, pessoas que estão vinculados ao
trabalho há mais de 10 anos com outras que estão menos tempo no grupo, como, por
exemplo, Vitor, César e Cristiano. Destes, César é o que entrou mais recentemente:
março de 2004 (estava no grupo há 9 meses na época da entrevista). Deste momento em
diante , passa-se a se utilizar os nomes próprios dos integrantes, como elucidado na
introdução deste capítulo.
Reinaldo Nascimento: sua escolha se deu por ser um dos mais antigos está no
Coral desde 1994 por seu envolvimento no trabalho, por ser uma pessoa que se
expressa muito bem verbalmente e por ter sempre contribuído na produção artística do
grupo. Apesar de ter o perfil correspondente à população geral, na época que conheceu
o Coral, freqüentava o CECCO-COHAB I, e foi num passeio dos freqüentadores dessa
instituição ao CCSP, que Reinaldo se interessou em participar do grupo. Ele escreve bem
e gosta de poesia. Teve atuação marcante na época da produção do livro O Vôo das
Borboletas. Suas poesias já foram utilizadas em várias montagens do Coral. Nunca teve
história psiquiátrica, mas diz que o Coral é um espaço que permite liberar as suas
loucuras.
58
Zé Ivan de Lima: junto com Reinaldo, é dos mais antigos no grupo, pois também o
freqüenta desde 1994. Tem uma produção poética e musical muito boa, tendo feito parte
do grupo de autores do livro O Vôo das Borboletas. Ivan já foi internado como
paciente psiquiátrico, sofreu com a doença e, principalmente, com o preconceito, por ter
58
Cf. depoimento gravado por Reinaldo no vídeo institucional do Coral Cênico Cidadãos Cantantes, realizado
pelos alunos da Universidade Metodista de São Caetano do Sul.
197
vivido essa experiência. Ele atribui ao Coral o resgate de sua auto-estima e a
possibilidade de voltar a trabalhar e reconstruir sua vida. Zé Ivan se afastou do Coral em
1999 e voltou vitorioso, como ele mesmo fala, em 2004, por ter conseguido resgatar
sua força produtiva, tendo desdobramentos na compra de sua casa e melhora na qualidade
de vida.
Márcio Luiz Oliveira: foi um dos que mais contribuíram com produção original
para o repertório do Coral. Aproximou-se do Coral por indicação vinda do CECCO do
Parque do Carmo, em meados de 1993, mas se afastou em 2000, com visível
agravamento de seu estado de saúde mental e sem acompanhamento médico. No período
em que estava no Coral, todos as montagens contaram com um momento solo do Márcio,
interpretando composições próprias ou de outros autores. Sua apresentação sempre
envolvia um trabalho corporal de dança que ele fazia com muita propriedade e um
cuidado especial que ele próprio tinha com o seu figurino. Era um momento mágico vê-lo
dançar e cantar, pois, nesses momentos, ele mostrava-se inteiro e absolutamente
concentrado no que fazia, mesmo que minutos antes ou depois, estivesse em plena crise,
o que aconteceu várias vezes, em ensaios e apresentações. Após a experiência como um
dos autores do livro O Vôo das Borboletas, Márcio, com apoio de profissionais do
Hospital-Dia da Vila Prudente, lançou um livro de poesias, intitulado Príncipe Bizarro.
Este trabalho pode ser considerado um desdobramento da produção de O Vôo das
Borboletas, pois Márcio, a partir desse livro, já se via como um poeta, e teve este
reconhecimento por parte da equipe de trabalhadores do HD que freqüentava.
Herbert Ari dos Santos: aproximou-se do Coral em 2000, no período em que
estava internado no Hospital Psiquiátrico Água Funda. Atribui a sua melhora, entre outras
198
intervenções, à sua atividade no Coral e na dança do Projeto Coral Cênico Cidadãos
Cantantes, no CCSP, entre os anos 2000 e 2002. Este último ano de Herbert no Coral foi
marcado pela inclusão de uma composição sua no repertório anual do grupo: O Rap do
hospital, ou, Pra onde vai? Após sair dessa internação hospitalar, buscou sua reinserção
social e, entre 2003 e 2004, veio visitar o Coral e contar como estava. Em 2004 contou
que havia entrado no Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-
SP), estava casado e trabalhando.
Cristiano Ribeiro: músico e ator, aproximou-se do trabalho por simpatia ao
projeto, após ter assistido a uma apresentação do Coral no Ibirapuera, em abril de 2001.
Iniciou na atividade do Coral em fevereiro de 2003 e, logo depois, começou a participar
da oficina de dança. Tem contribuído muito na construção da produção artística do grupo.
Zina Waisberg: musicista e pianista de sólida formação desenvolvida no Rio de
Janeiro, mudou-se para São Paulo após a morte da mãe, em 2000, e, por decisão da
família, mora numa clínica de saúde mental e geriátrica. Zina aproximou-se do Coral em
2001, por indicação da sua psicóloga, Maria Villela, uma das colaboradoras do Coral
entre os anos de 1996 e 1999. Zina diz que participar do Coral trouxe um novo
significado à sua vida, pois hoje atua como pianista e acordeonista nos ensaios e
apresentações do Coral, e ainda dá aulas de piano na clínica, para alguns idosos e
cantores do Coral Cênico.
César Galvão: pessoa da chamada população geral, por não se encontrar em
situação de vulnerabilidade de saúde nem social, apesar de, na época, estar
desempregado. Aproximou-se do trabalho em 2004 pela via da divulgação cultural das
atividades do CCSP, sendo a pessoa com menos tempo de Coral entre os entrevistados.
199
Seu objetivo é desenvolver-se como pessoa e aprimorar seu conhecimento em artes,
especialmente a música, mas, também, se interessa muito por poesia, chegando a ter uma
produção própria. Sua participação no Coral foi fundamental como liderança, durante a
construção do programa de 2004, pelo destaque de sua atuação musical e presença
cênica.
Vitor Paulino (Preto Jóia Paulista): aproximou-se do projeto em 2003. Tem
muitos comprometimentos neurológicos que dificultam seus movimentos e sua fala, em
decorrência de um grave acidente automobilístico. Em 2003, quando soube da pesquisa
que seria desenvolvida com o Coral, produziu uma fita cassete, estruturada em forma de
entrevista de rádio, contando sua história.
Alice Aparecida Silva Souza: uma das mais antigas no grupo, é militante na área
da saúde, sendo membro da ONG SOS Saúde Mental, Ecologia e Cultura. Conhece o
grupo desde os seus primórdios, pois iniciou essa atividade em setembro de 1992. Diz
que era uma dona de casa, até se envolver na militância pela Saúde e nas atividades do
Coral.
Dentre os entrevistados, os mais antigos no grupo são: Alice, Reinaldo, Ivan e
Márcio, sendo que destes, só o Márcio não continua. Dona Alice está desde setembro de
1992, Reinaldo e Zé Ivan, desde 1994, e Márcio, permaneceu de 1993 a 2002. As
impressões destes que estão mais de dez anos no grupo são importantes, pois eles são
pessoas que participaram ativamente das várias fases deste trabalho. Buscou-se, também,
a opinião de um integrante que entrou mais recentemente no grupo César , mas que
teve um envolvimento grande com o trabalho e com os outros integrantes. Cristiano,
200
Vítor, Zina e Herbert têm um tempo médio de participação no Coral entre 2 e 5 anos, e
estabeleceram um vínculo forte com a rotina do trabalho, e Herbert não participa mais do
projeto.
ANÁLISE DE CONTEÚDO
A partir das entrevistas, retiraram-se os tópicos, que foram agrupados ao redor de
quatro palavras-chave:
 Singularidades
 Histórias de vida
 Produção
 Significados
SINGULARIDADES
PECULIARIDADES DO CORAL CÊNICO CIDADÃOS CANTANTES
Os destaques a respeito das singularidades deste trabalho englobam o perfil de
grupo heterogêneo e a proposta de trabalho como grupo aberto. As dificuldades desse
processo são apontadas por Dona Alice:
201
Acontecem coisas ruins também... porque o nosso Coral, eu não
disse no começo..., outros tempos tinha o nome de Coral Cênico de Saúde
Mental, porque [agrega] pessoas que já passaram por transtorno mental,
que já estiveram internadas, pessoas que ainda hoje usam medicamentos
para poder viver, pessoas que [fizeram tratamento] com as novas
alternativas que surgiram no começo da década de 1990, então são
pessoas que já passaram por transtornos e hoje estão recuperadas... às
vezes, um ou outro tem alguma crise, mas não é sempre... Então era o
Coral da saúde mental, daí tirou a saúde mental e colocou cidadãos
cantantes, e o nome ficou Coral Cênico Cidadãos Cantantes, mas
assim mesmo continuam as pessoas entrando e saindo, mas tem coisas
que deixam a desejar. Se eu estou aqui é porque não tenho preconceito,
entendo a situação, fico às vezes afobada, fico amedrontada, mas depois
passa. Eu não tive situação de transtorno mental ou de internação, eu
estou aqui porque eu gostei.
Às vezes, brinco que sou eu é que vou precisar de um Hospital
Psiquiátrico, porque tem hora que a cabeça esquenta mesmo...
(11/04/2005)
O sentimento de tranqüilidade que Dona Alice transmite ao abordar a questão do
nome do Coral em relação ao perfil dos freqüentadores, não era compartilhado por todos.
Ivan, por exemplo, revelou que apesar de plenamente identificado com a proposta do
Coral, sentia-se muito incomodado na época, com o fato do nome estar diretamente
associado às questões da saúde mental, em função do preconceito que sofria.
Medo de dizer que eu era do Coral da Saúde Mental eu sempre
tive, porque eu ficava constrangido e as pessoas se afastavam. Mas nunca
tive medo do que aprendi no Coral. (14/06/2004)
202
Outras características singulares foram levantadas por Cristiano: a abertura de
espaço para todos na participação criativa e o fato de utilizar-se de espaço público para
trabalhar.
Principalmente a questão do espaço aberto, para que haja
conversa e respeito entre todos. Um projeto que trabalha a participação de
todos na criação e que acontece num espaço público. (11/10/2004)
No que se refere à afetividade do grupo, César, ao relatar sua primeira impressão
ao chegar, destacou o acolhimento aos novos integrantes como um aspecto marcante
deste grupo: Isso é uma característica muito gostosa nesse grupo: o acolhimento.
(25/10/2004)
César também destaca, como peculiaridade do Coral, uma entrega dos
participantes para o trabalho, difícil de ser vista em outros grupos. Essa entrega, revelada
na abertura das pessoas em relação à proposta e aos membros do grupo, seria responsável
por criar uma verdade que se sente expressa em sua produção.
O universo artístico desse grupo me emociona. É um trabalho
onde as pessoas se dão mesmo, onde as pessoas, com todas as limitações
que elas possam ter, se abrem para esse espetáculo com uma verdade que
você não em outras produções, que você não em muitas coisas que
as pessoas fazem hoje... Isso é o máximo desse grupo. (25/10/2004)
O caráter de grupo aberto, que gera um movimento de entrada e saída de pessoas,
e também, de distanciamentos temporários e de retornos possíveis, é comentado por
Dona Alice:
203
Esse Coral nunca teve um grupo para sempre... Era um grupo
[em] que entravam e saiam muitas pessoas, como um movimento. Nunca
foi uma coisa obrigatória. Por exemplo, eu fiquei por que gostei, me fez
muito bem, (...) mas muita gente entrou e muita gente saiu, por motivo de
trabalho, por que não querer vir mais, motivo de falecimento, muitos
motivos. Às vezes deixavam, voltavam novamente e se sentiam bem. Eu
vejo isso como um movimento, que eles vão e voltam, é uma coisa livre.
(11/04/2005)
É importante enfatizar que o Coral está sempre em movimento, buscando repensar
o seu trabalho e seu campo de atuação. Isto é facilitado pelo aspecto mutante da própria
configuração de seus integrantes, como destacado no depoimento de Dona Alice. Esse
movimento observado no Coral pela Alice é também presente no CECCO, como
observado por GALLETTI (2004), quando associa este espaço a um porto seguro, como
comentado no final do capítulo 1.
Este é um movimento natural do grupo e a produção coletiva tem que levar em
conta essa característica. Por exemplo: a inclusão de solos no repertório do grupo, por
vezes é problemática, pois se a pessoa sai do trabalho, geralmente perde-se aquela cena
com solo, mesmo porque, estes solos foram definidos em função da eficiência do
executor, o que, por vezes, inviabiliza a realização por outra pessoa, tal a ligação da
canção ou poesia, com a pessoa que a interpretava. Hoje em dia, o grupo amadureceu
bastante e tem uma relação de compromisso na participação mais forte do que no
passado. Atualmente, o grupo consegue lidar bem com as frustrações geradas pelas
ausências das pessoas em ensaios ou apresentações.
204
Comentando este mesmo aspecto, Cristiano vê como positivo esse fluxo constante
de entrada e saída de pessoas, considerando este um fator estimulante, pois, para ele, essa
situação pede diferentes respostas.
[O Coral] é muito importante para mim. Satisfatório, gostoso e
estimulante. Pede coisas da gente, está sempre sendo diferente (...).
Sempre pessoas novas entrando e um grupo já formado como um núcleo
(...). Acho legal que você nunca está sabendo como vai ser, mas sabe que
será sempre legal. (11/10/2004)
Lidar com o novo, o improviso e com o inusitado são desafios para todos os
cantores do Coral Cênico. Existem dificuldades em trabalhar com essa situação, porém,
na maior parte das vezes, é um diferencial positivo para o grupo, uma vez que gera um
estado de prontidão e alerta, que é fundamental no trabalho do músico e do ator.
ESPAÇO DE TRABALHO - CCSP
Ao abordar a peculiaridade de o Coral Cênico utilizar-se do CCSP como espaço
para desenvolver o seu dia-a-dia de trabalho, Cristiano, chama a atenção para dois
aspectos que aproximam a proposta do Coral a este espaço: o fato de ser um local aberto
à população, e de ser destinado à produção de cultura; nesse sentido, o projeto do Coral
Cênico não está no lugar ideal para se desenvolver, como justifica a própria vocação
do CCSP, como espaço destinado a pensar as manifestações culturais.
205
Estar no CCSP é bom, pois estamos num lugar onde a idéia é o
trabalho cultural. O que fazemos é produção de cultura. E é um espaço
aberto para quem quiser vir. Esse projeto faz com que isso seja realmente
um centro cultural, pois casa de espetáculo não é centro cultural. Nesse
projeto se está fazendo cultura viva. Um espaço de discussões artísticas,
da cultura atual, isso faz com que seja um centro cultural. (11/10/2004)
Esta observação de Cristiano se aproxima do depoimento de um dos funcionários
do CCSP, Francisco, da equipe de sonorização do Tukason, valorizando o fato de o
Projeto do Coral acontecer no CCSP:
É bom este tipo de trabalho acontecer aqui, para que o CCSP seja
difusor de cultura. Este é um ponto que não o CCSP, mas a Secretaria
de Cultura deveria investir mais: não se incentiva a produção. Você tem
que ter produzido antes para que, a partir daí, você tenha o espaço para se
apresentar. Não existe estímulo para isso. (Entrevista, 12/07/2005)
Pelos depoimentos citados (tanto do cantor do Coral quanto do técnico do CCSP
que acompanha o projeto a distância) revela-se uma preocupação dos entrevistados em
relação ao compromisso do CCSP com uma política cultural abrangente e aberta à
diversidade.
Em resumo, pode-se dizer que, entre as singularidades desse projeto, ou seja, o
que o diferencia de outros trabalhos corais, foram citados pelos entrevistados:
 a heterogeneidade do grupo;
 o caráter aberto do trabalho, pois, estando em local público e de livre acesso,
permite o fluxo contínuo de entrada e saída de pessoas;
206
 o local de trabalho ser público e ter vínculo direto com a cultura;
 a inclusão de portadores de sofrimento mental ou outras necessidades especiais;
 o estímulo à pesquisa e à participação de todos na criação;
 o acolhimento do grupo;
 a entrega dos participantes ao trabalho.
O grupo heterogêneo, incluindo portadores de sofrimento mental, é apontado por
Dona Alice como uma das dificuldades vivenciadas no grupo, mas, ao mesmo tempo,
essa mesma heterogeneidade é valorizada por César, destacando a intensidade de entrega
que o grupo tem: onde as pessoas, com todas as limitações que elas possam ter, se abrem
para esse espetáculo. O fato de ser um grupo aberto que possibilita um maior
movimento de entrada e saída de pessoas é outra característica bastante peculiar deste
grupo, enquanto outras, ainda, como atuar em local público, instigar a pesquisa e
participação de todos na confecção do programa, além de ser um grupo acolhedor, são
características não exclusivas do Coral Cênico, porém, extremamente facilitadoras para a
realização deste trabalho.
Pode-se concluir, a partir da análise destas características singulares, que, se por
um lado, se trata de um trabalho diferenciado daquele que geralmente se faz em grupos
corais, uma vez que nestes, trata-se, em geral, de grupos mais homogêneos e que,
dificilmente se propõem a uma abertura para receber cantores a qualquer tempo, por
outro, também se distancia de trabalhos que visam à inclusão pela convivência dos
diferentes, por ele buscar a convivência nas diferenças (e não exclusivamente dos
207
diferentes) e estar vinculado a uma produção cultural, procurando, com isso, implicar em
sua singularidade e potência criativa, todas as pessoas envolvidas nessa construção.
SINGULARIDADES DAS APRESENTAÇÕES
Dona Alice (11/04/2005), uma das mais antigas no grupo, diz que, no início o
grupo, sempre era convidado a participar de eventos ligados a Luta Antimanicomial, e à
área de psicologia ou psiquiatria. Alguns dos locais de apresentação citados por ela
foram: CECCOs, Hospitais-Dia (HDs), Câmara dos Vereadores de São Paulo, Câmara
dos Deputados (Assembléia Legislativa), Faculdades (como por exemplo o Instituto de
Psicologia da USP), e também o Conselho Regional de Psicologia (CRP) de São Paulo.
Comenta que o grupo oscilava muito quanto ao número de cantores, mas que, mesmo
com poucos integrantes (média de 14, à época), sempre fazia apresentações.
Alice cita como um momento de grande relevância na trajetória do Coral, a
apresentação do grupo na II Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em
dezembro de 1992, em Brasília.
Esta Conferência foi parte do movimento para Reforma Psiquiátrica no Brasil, e o
Coral Cênico teve uma espécie de prova de fogo, pois se apresentou para uma platéia
composta de simpatizantes e críticos da ainda recente Luta Antimanicomial. O grupo se
apresentava como um exemplo de trabalhos alternativos que poderiam ser desenvolvidos
na área da saúde mental. Contando com apoios institucionais, o grupo viajou para
208
Brasília e se apresentou com grande sucesso durante a Conferência, como relata
PASQUALINI em depoimento pessoal.
Foi uma experiência memorável para o grupo, pois a platéia
estava lotada e sabíamos para quem estávamos cantando: eram donos de
Hospitais Psiquiátricos, médicos, lobbistas e a receptividade foi muito
boa. Pessoas vieram falar que nunca tinham visto um trabalho daquele
tipo que não fosse apelativo ou piegas, e que este não era. (...) Era uma
coisa que era política, nós sabíamos o que estávamos fazendo , mas
também era muito humano (Entrevista, 03/02/2005).
Uma vez mais, destaca-se a diferença dos locais de apresentação, que
anteriormente aconteciam num contexto vinculado à saúde, e, com o tempo, a partir de
uma maior heterogeneidade do grupo e um aprofundamento do trabalho artístico,
passaram a ser mais diversificados, com isso, trazendo uma aproximação do trabalho a
um contexto mais cultural do que social ou de saúde.
Em outubro de 1997, o Coral Cênico foi convidado a se apresentar no X Encontro
de Corais da cidade de Franca. Este foi um marco da inserção do Coral em contextos
culturais mais abrangentes. Antes deste Encontro, o grupo já havia participado de Feiras
Culturais, mas foi este o primeiro convite para o Coral participar de um evento que tinha
como foco principal a atividade coral, tornando possível o reconhecimento da produção e
o compartilhamento do palco com grupos não associados à saúde
Falando do momento atual do grupo, Zina e Cristiano refletem a respeito da
importância das apresentações para o trabalho do grupo. Cristiano vê nas apresentações
um objetivo para o trabalho, mesmo reconhecendo não ser o único, e destaca a
209
importância dos espectadores, na medida em que eles venham a entender e a se
sensibilizar pelas idéias contidas no projeto. Por fim, Cristiano dá ênfase à diversidade
dos locais de apresentação refletindo sobre um momento diferente daquele destacado
por Dona Alice , e destaca quanto o grupo está amadurecido para o trabalho que se
propõe a realizar.
Acho que [as apresentações] o [importantes]. Tanto para nós,
como uma finalidade para o trabalho, mesmo não sendo a única, quanto
para as pessoas que assistem, porque elas acabam vendo uma parte do
processo do que acontece nos ensaios. O produto que a gente consegue
realizar nesse projeto acaba ficando na apresentação, o básico, as idéias...
A gente está transpondo algumas dificuldades individuais ou situações.
Os lugares que apresentamos são sempre diferentes. As apresentações são
curtas, mas têm uma idéia e o grupo sabe o que está querendo dizer.
Principalmente essa do gato. (11/04/2005)
Zina destaca a importância das apresentações como satisfação e realimentação do
processo de trabalho, reconhecendo-o como projeto artístico. Ela ênfase, também, às
conseqüências positivas que essa exposição possa ter, e à possibilidade de superação de
problemas individuais quando o foco está na produção artística coletiva.
São doses de satisfação, de... realidade, de prosseguimento. É um
avanço. Nas apresentações as pessoas se tornam mais calmas e enfrentam
melhor o outro dia de trabalho, como qualquer artista, como em qualquer
lugar. São pessoas que são artistas. Nos ensaios ou nas apresentações, eu
vejo que as pessoas nunca estão em má hora, ou má forma. Estão sempre
bem. Podem ter os problemas que tiverem, se apresentam bem.
(11/10/2004)
210
Cristiano a respeito de quanto a data marcada para a apresentação de um resultado
é mobilizadora para que a própria construção aconteça, lembra o aspecto determinante do
tempo, como definidor e instigador de uma produção: (...) aquilo que tem que estar
pronto no dia tal... (11/10/2004).
Como já foi visto no capítulo 2 que enfoca a produção artística do Coral, este
grupo, desde 1997, compromete-se com a realização do Encontro Musical Pela Cidadania
Plena, que ocorre em torno do dia 18 de maio (Dia da Luta Antimanicomial). Nesse
encontro, dá-se a estréia do novo programa desenvolvido pelo Coral, para aquele ano. É a
esta associação da realização da produção artística do grupo com a premência de cumprir
um compromisso anual com esta data, que Cristiano se refere.
HISTÓRIAS DE VIDA
COMO INICIOU NA ATIVIDADE DO CORAL
Entre os entrevistados, alguns vieram indicados por instituição de saúde (Ivan,
Márcio, Herbert, Vitor e Zina) e outros não. É curioso que alguns lembrem a data exata
do seu início no trabalho, como é o caso de Reinaldo e Cristiano. Uns contaram que se
aproximaram para melhorar de algum problema, enquanto outros vieram em busca da
convivência e do desafio da produção na área artística. César, Cristiano e Alice foram
atraídos por terem visto o grupo atuar em apresentações públicas,
59
e Reinaldo, conheceu
o Coral num passeio promovido pelo CECCO-COHAB I ao Centro Cultural São Paulo.
59
César e Cristiano estiveram presentes no V Encontro Musical no CCSP (2001), César na platéia e
Cristiano com um dos grupos convidados, o Zunidos da Monte Azul. Este encontro teve como ponto alto a
participação especial do cantor e compositor Itamar Assumpção.
211
Alice (11/04/2005) conta que já sabia da existência do Coral, mas não se sentia
motivada a participar, pois achava que jamais teria voz para cantar, porém, depois de
assistir à primeira apresentação do Coral, interessou-se pela proposta do grupo, segundo
suas palavras, um Coral que não era só de voz, era cênico, e também, por conhecer
boa parte das pessoas que compunham o grupo, na época.
CHEGADA
Ao ser perguntado a respeito de como foi recebido no Coral, Márcio diz que: o
Coral é ótimo como elaboração de solidariedade perfeita (23/08/2004), estabelecendo
assim, sintonia com César, quando em seu depoimento fala sobre a impressão que teve ao
chegar.
Acho que no primeiro momento todos têm um certo
estranhamento, mas quando você vai convivendo e vendo que o grupo é
acolhedor e ele é bastante esse estranhamento se dissipa em pouco
tempo. (25/10/2004)
O CORAL COMO AUXÍLIO NO TRATAMENTO
Herbert e Zina, no início de sua atividade com o Coral, tinham que vir com
acompanhantes. Ambos eram internos em instituições de tratamento psiquiátrico, e não
tinham autonomia para circular sozinhos fora de suas instituições. Herbert estava no
Hospital Água Funda e Zina, numa clínica psiquiátrica particular. Herbert vinha com
funcionários desse Hospital (não raro, em ambulância do hospital) e Zina, com sua
psicóloga, Maria Villela, que havia participado do grupo anteriormente. Herbert diz
212
que, pela quantidade de internações psiquiátricas que teve, as pessoas não acreditavam
mais na sua recuperação, e quando teve alta do hospital, foi-lhe indicado o Coral como
uma alternativa em Terapia Ocupacional. Zina (11/10/2004) contou que sua psicóloga,
quando a viu tocar piano e percebeu sua sensibilidade para a música, falou: vou te levar
para o Coral que participo, e a trouxe ao Coral Cênico.
É interessante notar a diferença entre essas duas condutas; no caso de Herbert, o
fato de vir de ambulância era como se fosse um translado de pacientes para outro
equipamento da Saúde, tendo a instituição a visão do Coral como espaço para Terapia
Ocupacional, ou seja, considerando-o, ainda, um serviço vinculado à área médica. No
caso de Zina, sua psicóloga diz que iria levá-la ao Coral do qual participava, convidando-
a para compartilhar um local que lhe era importante, não num Centro de Saúde , mas num
Centro Cultural. Diferentemente da instituição que indicou o Coral a Herbert, Maria
Vilella acolheu Zina em seu próprio espaço, fazendo-a compartilhar da experiência como
companheira de trabalho, e não como paciente.
São diferenças que demonstram, mesmo dentro do contexto da saúde, quão
distintas podem ser as maneiras de se entender o projeto Coral Cênico Cidadãos
Cantantes, no primeiro caso, considerando-o como Terapia Ocupacional, que poderia
ocorrer em qualquer lugar, até mesmo dentro da própria Instituição, e no outro, a
valorização da vinculação ao contexto cultural e à característica de grupo heterogêneo
(não exclusivamente ligado à saúde) que o trabalho traz.
213
HISTÓRIA PESSOAL
INTERNAÇÕES
Em seu depoimento, Herbert fala das suas seguidas internações:
Eu tive 4 internações no [Hospital] Água Funda. No total,
foram 14 internações... Eu mesmo não acreditava mais em mim, mas
sabendo que tinha gente que acreditava que eu podia vencer. Vendo hoje,
eu observo que o hospital psiquiátrico foi fuga para mim. Eu tinha muito
medo de viver o que eu estou vivendo hoje. O novo para mim era o
monstro da minha vida. (...) Aí eu, sem vínculo com ninguém, porque sou
filho adotivo e minha família não agüentou a doença, me vi sem
fronteiras. Minha última escala era aquilo: psiquiatria. Depois daquilo eu
não sabia o que viria. (25/10/2004)
Zina mora numa clínica psiquiátrica em regime semi-aberto, mas fala com
saudades do período de sua formação e atuação como musicista, no Rio de Janeiro.
Graduou-se em piano pelo Conservatório Brasileiro de Música, tendo tido aulas com
Elzira Amabili e Rosina de Barros.
60
Estudou para ser concertista, e teve uma bolsa para
continuar seus estudos na França, com a profª Magda Tagliaferro, mas, como relata Zina,
essa viagem não aconteceu, em virtude do falecimento de Magda Tagliaferro. Outra
perda muito sentida por Zina foi a morte de sua mãe, que a obrigou a mudar-se para São
Paulo.
60
Rosina de Assis de P. Barros foi membro da Academia Nacional de Música desde sua fundação em
06/07/1967.
214
Ivan, ao falar de sua história pessoal, contou que nasceu em Várzea Alegre
(Ceará) e com 12 para 13 anos foi morar no Rio de Janeiro. Teve várias internações
psiquiátricas e, segundo seu depoimento, fugiu de todos os hospitais onde ficou
internado. Quando se aproximou do Coral, freqüentava o CECCO São Domingos (Zona
Oeste).
BUSCA DE NOVOS HORIZONTES
Vitor fala sobre seu acidente automobilístico e sua briga diária contra a
depressão, materializada em sucessivas tentativas de suicídio. Ele buscou no Coral um
estímulo para a vida e uma tentativa de sair do estado em que se encontra.
Era a depressão... Aquela que angustia, querer se matar. Eu
quis me matar 5 vezes, mas não tive êxito. Essa vez eu tomei 20
comprimidos de Gardenal, uma caixa. Hoje eu tô aqui, sei que o devo
fazer mais. Tem pessoas que me amam. Eu pego o Coral como um ponto
de fuga. Música, teatro, tudo me atrai nesse campo da comunicação.
(29/11/2004)
O cantor relata que, antes do acidente, foi sonoplasta, numa rádio comunitária no
Bixiga. Ao se ouvir a fita cassete que Vitor produziu como contribuição a este trabalho
de pesquisa, falando de sua história, percebe-se a intimidade que ele tem com a
linguagem radiofônica.
César diz que buscou o Coral como atividade que lhe desse prazer e fizesse
sentido para a sua vida, pois, antes, trabalhava como segurança de empresa privada, que,
215
segundo suas palavras, era uma coisa especificamente para sobrevivência, que não me
preenchia de forma alguma (25/10/2004). Diz também ter vindo em busca de vencer a
timidez e conhecer pessoas, e que, com o trabalho do Coral, notou avanços nestes
aspectos pessoais.
Eu já estava com essa timidez mais diminuída, e o Coral
contribuiu para deixar a timidez de cantar, de se expressar, e está sendo
ótimo. Uma experiência fantástica. (25/10/2004)
Dona Alice relata o quanto foi importante para a melhora na sua qualidade de vida
a participação no Coral e no Movimento de Saúde:
O Coral para mim faz muito bem. Eu sou viúva já faz 21 anos e
uns 8 meses... Então sou uma pessoa que se não tivesse essas atividades,
estaria em casa e talvez na cama, em depressão, mas comecei a ser ativa,
a participar de Movimento de Saúde, de Conselho de Saúde e da Luta
Antimanicomial, do Coral, e da minha Associação... (11/04/2005)
PRODUÇÃO
PRODUÇÃO ARTÍSTICA DO CORAL
Eu adoro ser bem amado, ser bem trabalhado como artista... viver
com emoção... passar força... as pessoas daqui... troca disso. (23/08/2004)
É assim que Márcio responde quando inquirido sobre a importância do trabalho
do Coral para ele. No pensamento sintético/poético do cantor, o Coral traz um
216
desenvolvimento pessoal artístico e envolve emoção, força e um sentido de troca dessas
energias entre as pessoas implicadas no trabalho.
A maioria dos entrevistados realça o aspecto da criatividade e do caráter cultural
do trabalho. Cada um é um pouco auto-referente para avaliar a produção do grupo, pois
essa avaliação passa pelos gostos e realizações individuais.
PROCESSO DE CONSTRUÇÃO E AMADURECIMENTO NA PRODUÇÃO
Ao abordar assuntos relacionados à produção artística, muitos dos entrevistados
deram depoimentos a respeito do programa dos gatos (Lá do alto do telhado),
desenvolvido em 2004. Falaram sobre como viam o seu envolvimento com este
programa, não só por tratar-se da montagem mais recente, mas principalmente, pela
identidade que os cantores estabeleceram com o repertório pesquisado.
Cristiano valoriza a pesquisa e a forma decorrente desse trabalho, enquanto
Herbert e César falam do seu envolvimento pessoal com o tema.
(...) Aprendi muito observando os gatos (...) Nesse espetáculo
fico reparando na platéia, eles gostam. Ele é curto e é como se fosse uma
flecha, uma pancada, uma chicotada. Tem momentos que não estamos
nem ligando para a platéia, e outros que estamos falando para eles...
(Cristiano, 11/10/2004)
Músicas como as desse ano [de 2004], que falam dos gatos, canto
em casa e brinco que eu sou um gato... Isso libera alguma coisa que até
então estava oculta. (Herbert, 25/10/2004)
217
Esse universo do gato, que é lúdico e sensual, foi uma sedução
instantânea, pois é um universo que me atrai muito. O universo da noite,
do olhar, do mirar, do querer conhecer, querer transpor, isso mexe muito
comigo. (César, 25/10/2004)
Vitor, ao relatar sua impressão sobre o repertório de 2004, acrescenta que seu
desejo é participar da construção do repertório para a temporada de 2005.
Gostei muito do repertório do gato. Melhor do que o ano passado,
e estou estudando com Júlio Maluf, se eu posso entrar para fazer parte [na
escolha] do repertório [do próximo programa]. (...) Inclusive na gravação
que eu fiz para o maestro, eu gravei A Primavera, e eu cheguei no
Coral e estava a música A Primavera. Tim Maia é inesquecível.
61
(29/11/2004)
Cristiano valoriza o processo de construção do repertório, calcado na pesquisa em
torno de um tema e na valorização da contribuição de cada um:
Acho legal que há uma idéia inicial, central, e depois uma
discussão sobre como dizer a respeito disso e com o que dizer. (...) a
cultura que aconteceu em volta do assunto que é interessante. As
pesquisas mobilizam as pessoas. O que cada um tem para dar?
(11/10/2004)
E Reinaldo concorda, acrescentando que observa um amadurecimento na
produção artística do grupo quanto ao processo e escolha do repertório.
[A produção artístico-musical do grupo] amadureceu na questão
do repertório. Antes, quando eu entrei, era mais infantil, suave, depois o
61
Na verdade, a música incluída no programa foi Azul da Cor do Mar, também de Tim Maia.
218
repertório passou a ser mais discutido e teve uma articulação maior do
grupo. (...) Já fizemos repertórios tematizando a Luz, a Lanterna, o Amor,
a Água. [Hoje ele] é mais temático, se fortaleceu. (28/06/2004)
Algumas idéias do maestro KERR aproximam-se muito dessa maneira de se
construir o repertório, que inclui a participação de todos a partir de suas vivências
pessoais e pesquisas em grupo. Ele diz que a pesquisa, dentro de um projeto sonoro
Coral, (...) é irmã da invenção e filha da canção. É a busca de um repertório sem ponto
final. Tem muitos caminhos, nem sempre musicais... (1989, p.54). Em outro texto, o
autor reitera a importância da pesquisa e do resgate da memória, como busca de
elementos para se oxigenar a prática coral, numa perspectiva que busca valorizar mais o
processo (a pesquisa em si) que a realização do produto final, chamando a esse
procedimento de partituras de utopia.
Na montagem dos meus espetáculos corais e para o embasamento
de oficinas e experimentos corais, tenho recorrido ao que chamo de
partituras de utopia, através das quais, realizadas ou somente
articuladas, a memória das comunidades aflora, trabalhada a partir de
fragmentos e relacionadas a todos os recursos de expressão disponíveis,
costurando um novo repertório musical e uma nova maneira velha de
cantar em coral. (2000, p.12)
219
CONSEQÜÊNCIAS DA VIVÊNCIA NO CORAL
Ao falar das conseqüências, da experiência de realização de uma produção
artística para as suas vidas, destaca-se o depoimento de Ivan, que diz ter podido
reestruturar sua vida a partir da sua produção no Coral.
Toco gaita desde menino, mas quando entrei para o Coral, fazia
mais de trinta anos que não tocava mais gaita. Um dia a Cristina falou
que seria bom aproveitar esse lance de gaita meu para uma coisa prática.
Que o que aprendesse aqui colocasse em prática. E coloquei em prática,
pois se tocava nas apresentações do Coral, sicas como o Rasta-pé do
Cariri e era muito aplaudido, pensei em colocar isso em prática, na luta
do dia-a-dia, e me profissionalizar nisso. (...) O principal para chamar o
freguês é tocar gaita. (14/06/2004)
PRODUÇÃO DO LIVRO: O VÔO DAS BORBOLETAS
Os cantores mais antigos (Dona Alice, Reinaldo e Zé Ivan) citam a feitura do livro
de poesias como um marco na produção do Coral, principalmente por ter sido feito
exatamente num momento crítico, como proposta de aglutinar o grupo em torno de um
projeto, uma vez que o Coral se encontrava sem regente. Reinaldo destaca o seu
envolvimento pessoal nesse projeto:
Já escrevia (poesia) antes, mas não muito. Em 95 ajudei na
organização do livro, junto com a Cristina. Foi um projeto para manter a
coesão do grupo. Com o afastamento da regente (Milly Mª Elisa
Pasqualini), a gente criou o Caderno Loucriação, cujo primeiro número
foi O Vôo das Borboletas. Foram dez poetas entre pessoas do Coral,
familiares e pessoas ligadas ao movimento da Luta Antimanicomial. Foi
220
um momento que eu ajudei muito. Eu e a Cristina. Fazer o livro foi muito
bom. Um documento histórico do Coral. Ali eu estava no pique de
batalhar pelo livro. (28/06/2004)
É importante comentar que a produção do livro de poesias pôde ser vendida e
valorizada como produção autoral de alguns dos integrantes do Coral, passando a ser a
primeira experiência no grupo de um trabalho artístico que pôde ser revertido em ganho
financeiro, mesmo que pouco. Por outro lado, o valor documental citado por Reinaldo, se
dá por tratar-se de registro escrito, que, passados dez anos, ainda pode ser pego e
apreciado como produção artística, o que não é possível se fazer com a produção musical
do Coral.
DESCOBERTAS PESSOAIS
Tanto Ivan quanto Reinaldo, dizem ter vencido algumas limitações quanto ao
convívio social, a partir da experiência com o Coral, respectivamente, a seguir:
[Aprendi a] me relacionar com pessoas e com pessoa, e me
relacionar comigo mesmo e com a minha família e com o trabalho. (...)
Antes era uma pessoa muito constrangida, não podia olhar para uma
pessoa...Já não trabalhava e me sentia inútil para tudo. Foi através da
participação nesse Coral que eu comecei a me descobrir. Depois do Coral
aprendi a me relacionar melhor com as pessoas. (14/06/2004)
Às vezes acho [o Coral] muito cênico. Gosto mais dessa parte
[musical], mas sei que eu tenho que ceder também. Por vezes quero o
absoluto, e tenho dificuldade com o relativo. Descobri isso dentro do
Coral, a partir da experiência do Coral. (...) Através dele que me abri
221
mais para a vida social, para o contato com as pessoas. Antes eu era
muito fechado. Era como um móvel da casa. Adoro música, mas é difícil
lidar em grupo. (28/06/2004)
CRIATIVIDADE, ARTE E CULTURA
Zina e Herbert, cada qual a seu modo, realçam os aspectos da criatividade e da
produção cultural do grupo como possibilitadores de transformação pessoal. Zina admite
repensar valores quanto à capacidade de superação de limites, pois teve uma formação
acadêmica em música, na qual, não raro, o talento e a capacidade de se fazer música são
vistos como dons inatos. Ao final, Zina chega à conclusão de que este é um Coral voltado
para a saúde mental, exatamente por instigar a criatividade de seus integrantes. Posto
dessa forma, o termo saúde mental adquire um sentido mais amplo da busca de várias
alternativas para uma vida saudável, e não o uso comum, que liga saúde mental a total
ausência de razão. Comenta a cantora:
Eu vejo um envolvimento criativo. Acho que as pessoas todas são
muito criativas (....) tenho pensado que a criatividade pode ser realmente
ilimitada e tenho mudado meu pensamento sobre essa questão. A gente
cria, se envolve, cresce, e ao mesmo tempo a gente não tem limites. O ser
humano não tem limites para melhorar (...) Eu acho que é por isso que é
Coral da Saúde Mental (...). (11/10/2004)
Herbert, por sua vez, usa o termo anormal (o que sai dos padrões instituídos),
para destacar o trabalho peculiar do grupo envolvendo criatividade, desenvolvimento
pessoal e cultura, trazendo também, aqui, uma conotação positiva para a palavra
222
anormal, e propondo, como no caso de Zina, uma inversão do uso comum do termo. É
interessante refletir o quanto a criação artística varia entre a tradição e a transgressão,
muitas vezes, colocando em questão os padrões de normalidade.
Eu já vi muitas coisas na minha vida, mas esse lance do Coral,
para mim é uma coisa totalmente anormal, não que seja absurda, mas é
uma coisa que conseguiram trazer cultura, desenvolvimento, criatividade
e isso foi muito legal... (...) O Coral despertou algumas coisas que eu
nunca pensei que poderia fazer, como por exemplo, compor uma música
dentro da minha história, dentro das coisas que eu estava vivendo, dentro
da vida que eu estava levando dentro de psiquiatria. Fez com que uma
parte minha, que eu achei que estava morta, ressuscitasse, renascesse de
novo... (ao) ver que as pessoas se interessavam por aquela cultura, porque
isso é arte, cultura, criatividade... (25/10/2004)
Observe-se que, quando se falou da busca de novos horizontes, citando o exemplo
de Vitor, o Coral aparece como uma fuga de um estado de depressão, como uma tábua
de salvação; no caso de Herbert, a experiência artística com o Coral é vivida quase
como um milagre, possibilitando novos sentidos de vida, especificamente quando se trata
da realização de produção própria, carregada da sua vivência e de subjetividade
compor uma música dentro da minha história. Essa experiência, na visão do cantor, deu
lugar a uma ressurreição, um renascimento, dando vida a algo que ele julgava já morto.
É curioso notar também o uso da palavra anormal no depoimento de Herbert
para falar de como ele vê o Coral. Algo que sai dos padrões e encontra uma maneira
própria de existir, a ponto de se tornar necessário ao mundo. Em outro trecho de seu
depoimento diz:
223
Eu gosto dessa coisa eclética que é o Coral, que o mundo precisa
mesmo. Onde quebra barreiras e preconceitos, onde quebra algumas
certezas que viram incertezas, é legal isso. (25/10/2004)
Ao tomar contato com o depoimento de Herbert, é inevitável pensar nas questões
da lógica da biopolítica como colocada por FOUCAULT (1985). Ao abordar essa questão,
Elizabeth LIMA (2003b) destaca a atualidade da biopolítica e a separa em três níveis de
atuação:
- criação de identidades-moldes;
- mercado da saúde (ou será da doença?) com suas ndromes e
curas;
- identificação de anormalidades e criação de pessoas-margem,
vigiadas, controladas e segregadas, colocando-se, todos que
portam aquele traço, na mesma gaveta. Uma marca é tomada
pelo todo, iniciando um processo de homogeneização e
despotencialização a partir de um traço identitário. (p.66)
E conclui LIMA:
Passa-se da singularidade de cada uma das infinitas maneiras de
existir para um só e mesmo quadro de referências identificável. (...)
Criam-se enclausuramentos identitários (p. 67).
É seguindo esse respeito às diferenças e singularidades que Herbert denomina de
anormal a existência do Coral, ao mesmo tempo em que a coloca como necessária na
atualidade, entrando, assim, em sintonia com a crítica de FOUCAULT a uma sociedade que
controla e segrega, juntando os iguais e se fechando à convivência das diferenças e do
desvio. Nesse sentido, o Coral cumpre uma função da arte (ou melhor, do artista) na
224
sociedade, que é a da transformação, muitas vezes pela transgressão de valores
instituídos, para repensar associações, padrões, normas e conceitos.
Outro cantor, Márcio, que no início da entrevista se encontrava num estado de
apatia e distanciamento, ao começar a cantar, relembrando algumas das suas produções
no Coral, altera a sua possibilidade expressiva adquirindo maior presença vocal e
corporal, continuando a entrevista com prontidão e vivacidade.
Esse é um exemplo representativo da possibilidade de transformação pela
atividade artística, principalmente, por esta ter-se dado exatamente no momento de coleta
da entrevista, e se relacionar, não necessariamente com o conteúdo da resposta dada pelo
entrevistado (o que) e sim com a forma como ele respondeu às perguntas ou estímulos
provocados pelo pesquisador, no sentido de lembrar suas músicas e sua produção no
Coral.
O texto a seguir é uma tentativa de transpor para o papel as transformações
expressas na maneira de cantar, na atitude corporal, no ritmo das palavras e na prontidão
ou apatia de Márcio, observados pelo pesquisador, pois, nesse dia, ele veio ao ensaio
depois de um longo período de afastamento, e tinha uma aparência muito abatida e alheia
a tudo. A impressão era de abandono, e ausência total de atendimento, na área de saúde.
É interessante notar a vitalidade com que ele canta suas músicas, porém, essa
vitalidade e a emoção que vem com ela podem ser percebidas na audição da fita,
restando apenas a possibilidade do relato distante dessa vivência, como memória.
225
Impressionante notar que, no início da entrevista, Márcio tinha uma voz pastosa e
seus pensamentos pareciam desconectados. Com o corpo curvado, parecia jogar frases ao
acaso, como uma narrativa feita por pedaços independentes, mas, ao lembrar das suas
músicas, essa atitude mudou: sua voz adquiriu maior presença, seu olhar se elevou e seu
corpo pareceu retomar vida. Isso é perceptível ouvindo a gravação!
Márcio parecia não conseguir articular seu pensamento, porém, quando
perguntado sobre como havia sido sua experiência de compor uma música e cantá-la
junto com o coral, a resposta veio na mudança de sua atitude. A partir de frases soltas das
músicas, conseguiu lembrar uma de suas canções, e esta veio seguida de uma energia
vitalizadora corporal e vocal. Márcio cantou Na Seca... e logo em seguida, Pouca
Visão.
62
Perguntado sobre outras músicas de que se recordava do repertório do Coral,
cantou Lanterna dos Afogados
63
(música incluída no repertório de 1996) de maneira
completa e com muita energia. Enquanto cantava essa canção, Márcio fazia o sinal de
carregar uma lanterna, pois, à época, neste momento, representava o capitão do navio,
que trazia uma luz para iluminar o caminho. Ele lembrou disso e da forma do navio que
se fazia com os próprios corpos dos cantores. Após esse momento de lembrança da sua
produção no coral, Márcio continuou a entrevista, respondendo às questões com
prontidão, como se tivesse acordado a partir daquele momento. Quando perguntado a
respeito das razões de não continuar a escrever poesias e músicas, uma vez que essa
produção, muitas vezes, o segurava em momentos de crise, ele respondeu, refletindo o
62
Músicas de Márcio Luiz Oliveira feitas entre os anos 1996 e 1997.
63
Música de Herbert Vianna de 1986.
226
abandono em que se encontrava: (...) não ter ocupação, ser maltratado, desrespeitado...,
perder as coisas (Entrevista, 23/08/2004).
PRODUÇÃO INDIVIDUAL
Ao pedir-se que alguns dos entrevistados falassem sobre sua produção própria,
Herbert descreveu, desta forma, o processo de criação da sua composição Pra onde vai?:
Eu tava dentro de uma psiquiatria, num momento crítico da
minha vida, onde eu estava numa incerteza de viver ou não viver, e aí
uma Terapeuta Ocupacional pediu para que eu fizesse um trabalho para
ela. Eu não conseguia fazer nada. Eu comecei a pensar na minha vida, na
vida de alguns pacientes, e minha mente foi relatando algumas coisas que
eu precisava saber sobre o que é esquizofrenia, o que é bipolaridade e
eu fui escrevendo..., sempre na incerteza de que num domingo alguém
poderia vir me visitar ou não e quando eu recebi um telefonema de que
minha mãe viria me visitar, eu concluí a música, e o refrão eu peguei do
Gabriel O Pensador.
Aí eu trouxe para o Coral, porque fala da minha vida, do
transtorno que eu tive, que graças a Deus, ao Coral, e a boa vontade das
pessoas que me ajudaram, isso foi diminuindo com o tempo, e hoje vivo
bem, trabalho, estudo, faço da minha vida o melhor possível
(25/10/2004).
Aqui, Herbert relata o quanto foi importante transpor um momento difícil da sua
vida para uma criação própria. O fato de ter sido apresentada e reconhecida a sua
produção dentro do ambiente do Coral, auxiliou, segundo seu depoimento, na sua
recuperação e melhoria na qualidade de vida.
227
Quando Vitor soube que iria ser feita uma pesquisa com o Coral, e que alguns dos
integrantes seriam entrevistados, produziu uma fita cassete, em que relata sua experiência
de vida: o acidente automobilístico que sofreu, os tratamentos que fez, escola, trabalhos,
gostos musicais e expectativas. Essa fita, entregue por ele ao pesquisador, revela a
sensibilidade e a capacidade criativa de Vitor, pois, de uma forma muito leve e utilizando
uma linguagem semelhante à do rádio, fala sobre sua vida e de como superou alguns
obstáculos. Na produção dessa fita, foi auxiliado por um amigo, seu ex-professor de
inglês. A gravação é entremeada de comentários de Vitor, do amigo professor de inglês,
da diretora da Escola em que ele estudou, e das músicas que gosta. Ao se perguntar as
razões de ter feito a fita, disse:
[Foi] para mostrar para o maestro e para a sociedade que eu não
devo nada a ninguém, mostrar que eu sou capaz, mostrar que um acidente
automobilístico, não me deixou caído, levantei, tive bola pra cima...
(29/11/2004).
Esta produção/depoimento de Vitor, assim como outras produções artísticas
individuais, demonstram a necessidade de expressão que essas pessoas têm, que sintetiza
outras necessidades, como a de falarem e serem ouvidas, de serem olhadas em suas
individualidades, em suas potencialidades, e não naquilo que lhes falta.
Faz-se importante refletir nesse momento, a respeito de como se dá esta passagem
do ato expressivo que nasce da emoção particular vivida dentro de uma determinada
história de vida, para uma criação artística. BOSI, em seu livro Reflexões sobre a arte
(2003), considera que a vivência pessoal/emocional (geradora de força) necessita estar
associada a uma intencionalidade formal, para que haja a construção da obra artística.
228
Sendo assim, coloca a dialética entre força e forma como princípio fundante do processo
expressivo. O autor diz:
É dinâmica a relação que se estabelece entre as forças e as formas
na obra de arte (...) é no interior desse movimento que nasce o ato
expressivo: o gesto plástico, a corrente melódica, a frase lírica. A energia
persegue formas que a liberem e, ao mesmo tempo, a intencionem e a
modulem. O phatos que não encontra essas formas pulsa aquém da
experiência artística. Quem chora ainda não está cantando. (...). A força
busca formas que tragam à luz da significação os percursos do desejo e
da pena, da angústia e da alegria; formas que revelem sentidos latentes
ou, quem sabe, resgatem o não-sentido da existência cotidiana (p.56).
Buscando conexões entre essas considerações e o depoimento de Vitor, quando
este último coloca o Coral como uma fuga, e ao mesmo tempo, canal de expressão, a
citação de Herbert Read, feita por BOSI, parece justificar essa ação:
A arte é fuga ao caos. É movimento ordenado em números;
massa limitada em medida; indeterminação de matéria à procura do
ritmo da vida (READ, apud BOSI, 2003, p.57).
SIGNIFICADOS
PRODUÇÃO DE ARTE E PRODUÇÃO DE VIDA
Dentre aqueles que elegeram a produ
ção de arte como um significado importante
para o trabalho, destacam-se os depoimentos de Cristiano e Zina, que aproximam o
desenvolvimento artístico com o desenvolvimento pessoal.
229
ARTE E DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Cristiano e Zina valorizam o lado artístico, atribuindo as melhoras no âmbito
pessoal, ao aprofundamento na linguagem artística. Para Cristiano, arte envolve emoção,
vontade e necessidade, enquanto, para Zina, o Coral é um trabalho de construção de
mundo e do indivíduo com música. A questão da criação como manifestação da
individualidade dentro de um trabalho coletivo também é valorizada nos depoimentos de
Zina e Cristiano.
Era um lugar onde as pessoas tinham as mesmas preocupações
que eu tinha. Desenvolver o lado artístico de cada um, as suas emoções,
as vontades e necessidades de dizerem coisas. (Cristiano, 11/10/2004)
É um trabalho de engrandecimento pessoal. O pensamento fica
mais ativo nas atividades de expressão corporal e de música e a pessoa se
sente mais pronta para a vida, [para] assumir a própria personalidade. O
que tenho crescido nesses anos no Coral, não tem medida (...). Acho que
esse trabalho (do Coral) é um trabalho novo e pode parecer fácil. É um
trabalho de construção, do mundo e do indivíduo, com música e através
da música. (...) o Coral é muito importante na minha vida. É uma questão
de criação própria, com a ajuda dos outros e um crescimento novo. (Zina,
11/10/2004)
Reinaldo diz que, pelo fato de a atividade Coral ser essencialmente coletiva,
percebeu e pôde trabalhar algumas das suas dificuldades e limitações em lidar com
relações grupais, que envolvem diferenças de ritmo e escuta do outro.
230
Ainda tenho muita dificuldade (com o coletivo). Sou um
individualista nato... O Coral foi fundamental para eu perceber isso. O
Coral me ofereceu essa experiência mais concreta. (28/06/2004)
César ressalta a qualidade do trabalho que, por essa razão, deveria ser entendido
como produção artística, e não somente pelo seu caráter artístico-terapêutico; segundo
ele, o Coral já teria ultrapassado esse objetivo primeiro. Conclui dizendo que o apoio de
profissionais das áreas de arte e psicologia, em atuação conjunta, dá força ao trabalho.
(...) tenho uma opinião particular que esse trabalho (do Coral), já
suplantou o seu caráter artístico-terapêutico. Eu acho que esse trabalho
tem uma qualidade que não nega a grandes produções, ele precisa, claro,
de um apoio substancial financeiro, mas ele tem uma qualidade que é
ímpar. Ele tem um embasamento técnico, com pessoas do meio artístico,
e um embasamento de psicólogos, e que isso dá um fortalecimento para o
trabalho muito grande, e dá uma segurança muito ampla. (25/10/2004)
Desses depoimentos, pode-se concluir que o desenvolvimento pessoal vem colado
ao desenvolvimento artístico. Cristiano valoriza o caráter expressivo da arte para o
desenvolvimento de cada indivíduo. Outros depoimentos ligam arte e desenvolvimento
pessoal, como os de Zina e Reinaldo, quando dizem das suas descobertas e conquistas
pessoais, ou o de César, quando sinaliza que o Coral deve ser visto dentro da qualidade
da sua produção artística, ao mesmo tempo em que reconhece, na atuação interdisciplinar
da equipe técnica, uma situação muito favorável para o desenvolvimento desse trabalho.
231
INCLUSÃO PELA ARTE
Cristiano defende a idéia de o trabalho de inclusão ser feito pela arte, pelo fazer
coletivo, e não apenas pela convivência.
Sempre pessoa novas entrando, e um grupo já formado como um
núcleo (...) sempre incluindo pessoas e nunca excluindo, e sempre
trabalhando com arte, com música, cantando. (11/10/2004)
Este é um aspecto que, direta ou indiretamente, perpassa praticamente todos os
depoimentos, pois todos defendem o mesmo ponto de vista, que valoriza o indivíduo que
faz arte, e participa de um grupo que congrega os mesmos objetivos, no que diz respeito à
inclusão e ao respeito às diferenças. É interessante notar que o fazer artístico neste grupo
inclui lidar com o outro, e reconhecer o outro em suas diferenças e similaridades. um
trabalho de inclusão, dentro do processo artístico do grupo, que se evidencia pelo respeito
aos ritmos individuais, às escutas diversas e às diferentes vozes.
Em alguns casos, a experiência vivida no Coral, por ter sido muito intensa, pode
extrapolar para fora do grupo, a ponto de apresentar melhoria na qualidade de vida e na
auto-estima de cada um, como nos exemplos já citados, de Ivan e Herbert, que, ao
melhorar sua condição social e de saúde, conseguiram retomar sua condição de cidadãos.
Nenhum entre os entrevistados procura o Coral somente pela oportunidade de
convivência em grupo, apesar de os laços afetivos serem muito valorizados nos
depoimentos. O que une o grupo é, realmente, a realização da tarefa da produção musical
pelo canto, em seus resultados de crescimento individual e coletivo, e respeito à
diferença.
232
SIGNIFICADO DAS APRESENTAÇÕES
Herbert, Vitor e Ivan relatam a importância que tiveram para eles as
apresentações, no sentido de sentirem que os espectadores valorizavam suas produções.
Cristiano valoriza o aspecto da inclusão social se dar pela via cultural e no momento da
apresentação, quando a relação com o outro não se restringe ao campo interno do grupo,
mas se dá pela relação direta e dinâmica com o outro externo ao grupo, ou seja, o
espectador. Entre os que abordaram a questão da apresentação como importante na
construção de sentido, chama a atenção o destaque para o compromisso e a
intencionalidade do fazer artístico destacado em seus depoimentos.
Ver que as pessoas se interessavam por aquela cultura, porque
isso é arte, cultura, criatividade... Lembro que houve uma apresentação
no CCSP que quando eu saí, tinham pessoas que eu nunca vi na minha
vida falando: nossa, que legal, parabéns e eu sentindo que aquilo era
real, não artificial... (Herbert, 25/10/2004)
[O Coral me faz] muito bem. As pessoas vêem e batem palma. É
importante cumprir nosso papel, caso tenha uma ou várias pessoas no
público. (Vitor, 29/11/2004)
(...) pois, se tocava nas apresentações do Coral, músicas como o
Rasta-pé do Cariri e era muito aplaudido, pensei em colocar isso em
prática ... (Zé Ivan, 14/06/2004)
E depois se apresentar nos lugares, a inclusão social através da
cultura, da arte, sempre aberto para as coisas, as idéias. (Cristiano,
11/10/2004)
233
É interessante notar que o grupo não quer que sua produção seja vista com
condescendência pelo público. Isso não quer dizer que esse sentimento não possa surgir,
mas os depoimentos acima revelam um desejo de que o trabalho seja avaliado por sua
qualidade intrínseca, e não por quem o faz. Isso fica evidente nas palavras de Herbert,
quando afirma acreditar na sinceridade do espectador que lhe dava os parabéns pelo
trabalho, ou nas de Vitor, ao ressaltar o compromisso do grupo em relação ao público, ou
ainda, quando Ivan, fortalecido pelo retorno do público, acredita poder reverter sua
situação, utilizando como uma das ferramentas, a sua arte.
VALORIZAÇÃO DE APTIDÕES ARTÍSTICAS, ELEVAÇÃO DA AUTO-ESTIMA E EXPECTATIVAS
GRUPAIS E INDIVIDUAIS
Ivan e Herbert, como já visto anteriormente, destacam, como conquistas
realizadas no Coral, a valorização de suas aptidões artísticas e a conseqüente elevação de
sua auto-estima. Ivan diz que, a partir dessa experiência, pôde transportá-la para seu
próprio trabalho, e acreditar em si para mudar a sua situação de vida. Já Herbert relata a
sua surpresa com seu próprio poder de criação e construção artística.
Obviamente, essa valorização de aptidões pode gerar situações de ciúme entre os
componentes do grupo, quando uma pessoa se destaca perante o grupo, ou causar um
certo estrelismo por parte de quem está sendo valorizado, porém, essa individualização
traz, em geral, um crescimento da pessoa que está se expondo e um acréscimo, também,
ao trabalho artístico do grupo.
Em outros tempos, esse tipo de situação foi mais difícil de se lidar, ou em
função de brigas internas no grupo, ou pela recusa do solista em realizar o seu papel.
234
Hoje o grupo se mostra mais amadurecido e solidário, mas é interessante notar que essas
conquistas deveram-se muito mais à realização artística, do que a sentimentos altruístas.
Por outro lado, existe o risco de, ao se exporem aptidões individuais, criar-se
expectativas profissionais que extrapolem o âmbito do Coral, como por exemplo, ter
sucesso na vida como artista. Nestes casos, busca-se valorizar as potencialidades
artísticas, ao mesmo tempo em que se apresentam e discutem, tanto as dificuldades para a
realização deste sonho, quanto seus significados.
CONVIVÊNCIA EM GRUPO E PRODUÇÃO DE VIDA
Outros significados apontados nas entrevistas quanto ao reconhecimento da
produção do Coral como produção de vida, se pela convivência e principalmente, pelo
respeito às diferenças.
ABERTURA PARA A DISCUSSÃO E A INCLUSÃO
A Abertura para a discussão e a inclusão (respeito pelas individualidades), são
aspectos destacados por Herbert e Cristiano.
Estar participando de um grupo onde há muita abertura. Para que
pelo menos seja escutado o que foi falado. Sempre querendo desenvolver
o que cada um pode fazer, ou melhorar dentro de si mesmo, ou então
refletir sobre o que está fazendo. É um espaço que você pode vir e ficar
escutando, mas você está , não está sem fazer nada. O relacionamento
entre as pessoas, a proposta de estar sempre discutindo o que está
acontecendo hoje em dia, na cidade, nos lugares, espaço aberto para
conversarmos, com todo mundo dando suas opiniões. (Cristiano,
11/10/2004)
235
Até mesmo dentro do meu ramo de trabalho é legal, porque eu
consigo conversar com as pessoas de uma forma que elas me entendam,
sabe, o Coral mostra isso. (Herbert, 25/10/2004)
Cristiano valoriza muito o aspecto do respeito ao outro, e a possibilidade de troca
e crescimento, enquanto Herbert já constata em si mesmo uma melhoria na capacidade de
comunicação, que atribui à vivência no Coral. A abertura de espaço para falar é uma
constante nos ensaios do grupo, exercitando a autonomia de cada integrante e a tolerância
do grupo. Essa dinâmica tem benefícios evidentes, como os destacados por Herbert e
Cristiano, e, de maneira mais geral, busca resgatar possibilidades de manifestação de
opiniões e de desejos, numa relação aberta e democrática.
GRUPO HETEROGÊNEO
O Grupo heterogêneo é abordado por Cristiano e Herbert em seu aspecto positivo
de trocas interpessoais, enquanto Dona Alice, como já foi visto anteriormente, revela que
este aspecto, às vezes, cria problemas no Coral.
A cultura, conhecimentos diversos, tipos de pessoas diferentes,
trazendo suas vivências. (Cristiano, 11/10/2004)
Isso é bom para quem está numa recuperação. É bom para quem
já passou por ela, para lembrar sempre da onde veio, dá onde surgiu tudo
isso. (...) Entendimento de pessoas com problemas, tanto físico, mental,
como pessoas que não tem problemas, ou tem outros problemas, que a
vida trás. (Herbert, 25/10/2004)
Nestes e em outros depoimentos, nota-se que a questão do perfil heterogêneo do
grupo, não é uma questão fácil de se resolver, pois, logicamente, se assim fosse, não seria
236
necessário tanto empenho para que o convívio com as diferenças pudesse acontecer
socialmente. Observou-se que alguns dos entrevistados vêem como positiva a
convivência em um grupo com este perfil heterogêneo; é o caso de Herbert, Cristiano e
César, enquanto outros preferem considerar-se como pertencentes a um grupo igual a
qualquer outro, sem dar destaque especial à questão da heterogeneidade, chamando mais
atenção à potencialidade artística e humana como foi visto nos depoimentos de Zina,
Ivan, Vítor e Reinaldo, sendo que este último diz utilizar esse espaço para expor as suas
loucuras (VÍDEO INSTITUCIONAL DO CORAL, 2003), ou seja, considerando-o como um
espaço diferenciado.
PARTE DE UM GRUPO
Alguns citam como foi importante fazer parte de um grupo. Herbert, em seu
depoimento, focaliza o problema das pessoas, como se esse tivesse sido o fator de
aglutinação do grupo, ao passo que Zina busca ultrapassar essa questão, apoiando-se na
superação de limites e no fazer musical; dizem eles, respectivamente:
Estar interagindo com o Coral, sentir parte de alguma coisa, foi
muito importante para mim na minha recuperação. (...) Sentir que eu
fazia parte de um Coral, de um grupo de pessoas que muitas vezes tem
problemas, mas que muitas vezes também tem solução. (...) (Herbert,
25/10/2004)
Eu sou uma pessoa realizada em ter encontrado gente igual a
mim, gente que busca, gente que quer crescer, gente que vive e em
qualquer situação faz música. (...) e não é uma coisa pesada, é uma coisa
calma, tranqüila, obediente, caridosa e vai num crescendo, num
crescendo e no real. (Zina, 11/10/2004)
Os laços afetivos são muito importantes na conformação do Coral. Para alguns, o
grupo é um dos únicos círculos de amizade que têm. Trata-se de um grupo aberto que se
237
propõe a lidar com as diferenças, portanto, recebe pessoas que possivelmente teriam
dificuldades de ser aceitas em outro espaço de convivência, dessa forma, a participação
nesta experiência pode vir a transformar uma situação de vida que antes parecia imutável.
UM PONTO DE FUGA E UM PONTO DE ENCONTRO
Para Vitor, o Coral é uma fuga de um estado de depressão, um lugar onde dele
serão requisitadas prontidão corporal e vocal, organização e participação, o que pode
fazer que ele saia de um estado de negatividade ante a vida; o Coral é o espaço em que
ele, certamente, encontra sentimentos de amor, amizade e solidariedade, como os que são
apontados nos depoimentos de Márcio, Alice e Zina, respectivamente:
Outro amor... uma ótima coisa ...ele tem um resultado sempre
cada vez melhor (23/08/2004)
Eu gosto de estar junto, sou respeitadora e procuro dar o respeito.
Eu vejo que todos gostam de contar as coisas para mim... querem que eu
lhes ajude... me considero aqui uma mãezona, uma tiazona, uma vózona,
da turma toda do Coral... equipe e cantores. (11/04/2005)
(...) e quero me dar com todos que me beijam quando eu chego e
me tratam com carinho. A sensação que a gente tem é de amizade
constante. (11/10/2004)
238
MELHORAS
No depoimento de Cristiano, vê-se expressa a crença de que, com o trabalho do
Coral, todos se beneficiam, e não somente aqueles que se encontram em situação de
vulnerabilidade, pois é na troca entre os diferentes, com o que de melhor cada um pode
dar, é que se dá o crescimento pessoal.
Quero dizer que é o projeto mais bonito que eu conheço e que
tenho a alegria de participar. Você vê a cada dia uma melhora, em você e
em cada participante. (11/10/2004)
EXPERIÊNCIAS PESSOAIS QUE PARTIRAM DO CORAL
Ivan relata como foi o seu percurso na nova cidade em que foi morar, e como
trouxe para a sua vida a experiência apreendida no Coral.
Quando fui para Ibiúna, depois de dois ou três anos já de Coral,
já estava colocando em prática o que estava aprendendo no Coral.... e me
dei bem na minha vida prática, e hoje estou de volta bastante feliz e
muito vitorioso. (...). Em Ibiúna consegui licença para trabalhar em feira
de artesanato da prefeitura. Trabalhava em Ibiúna, São Roque e Piedade
com barraca de artesanato. Descobri no Coral. Infelizmente o material de
artesanato me fazia mal, por causa dos químicos. Pra continuar na feira,
passei a trabalhar em feira livre vendendo brinquedos para crianças.
Aproveitei que eu toco gaita, vinha na 25 (de março), comprava as gaitas
e vendia lá. Com o toque da gaita eu passei a vender muita gaita, e
conquistei o coração das crianças, pais e mães. E até hoje estou
trabalhando assim. (14/06/2004)
239
Reinaldo e Alice falam de suas experiências na Livraria Vôo Livros, que foi
criada como uma possibilidade de trabalho em cooperativa com familiares, usuários ou
ex-usuários dos serviços de saúde mental. A maior parte deles fazia parte do Coral.
Dizem eles, respectivamente:
Trabalhei na livraria que o SOS (a ONG SOS Saúde Mental
Ecologia e Cultura à qual o Coral esvinculado) mantinha no Instituto
Sedes Sapientiae, e foi muito legal. No atendimento ao público era
complicado, porém no relacionamento com fornecedores eu era bom...
(28/06/2004)
Criamos a livraria, participamos de uma concorrência no SEDES
e ganhamos, e as pessoas indicadas para trabalhar seriam as pessoas que
tiveram algum sofrimento mental e que estavam precisando de trabalho.
Agora a livraria está fechada. Nunca tivemos lucros... (11/04/2005)
DESDOBRAMENTOS
Alice enfoca as Oficinas de Teatro e de Dança no CCSP, que surgiram como
desdobramentos da atividade do Coral, como conquistas importantes para o trabalho:
No Coral temos tido muitas melhoras, pois do Coral, saíram dois
braços que foram o teatro e a dança. São conquistas importantes que
surgiram do Coral. Eu participava dessas atividades, mas não pude
continuar, pois tive que cuidar do meu neto...mas eu falava: do Coral eu
não abro mão... (11/04/2005)
240
ESTÍMULO PARA A VIDA
Os depoimentos, respectivamente, de Vitor, Zina e Herbert são significativos do
quanto a atividade artística/criativa pode atuar como estímulo para a vida,. Herbert, como
já visto anteriormente, destaque à sua produção individual como um dos fatores que
impulsionaram sua transformação pessoal, ao mesmo tempo, valoriza o apoio técnico-
psicológico existente no trabalho do grupo.
Parei [com as tentativas de suicídio]. Tanto é que eu peguei o
Coral e vou entrar na Oficina de Dança. Inclusive a médica falou: porque
você não faz outras atividades lá no CECCO? Estou estudando a de
dança. (Vitor, 29/11/2004)
(...) A música salva, exerce um ímpeto fora de série. Você achar
o tom certo na hora de tocar já é bom. A música me salvou a vida o
tempo todo. Estou aprendendo a dividir música e Zina, Zina e música. [A
partir desse trabalho] eu me sinto mais forte, mais em forma e mais
pronta para estudar música. A cada dia que passa estou aprendendo
música junto com todo mundo no Coral. (Zina, 11/10/2004)
(...) Muitas vezes chegava aqui muito mal, mas sentia o calor que
era o Coral, dava uma aquecida na alma e voltava mais leve para lá. (...)
O Coral despertou algumas coisas que eu nunca pensei que poderia fazer,
como por exemplo, compor uma música dentro da minha história(...) É
legal ver que quando uma pessoa está com problemas, tem uma equipe
que vai lá e auxilia. (Herbert, 25/10/2004)
241
É interessante notar a contundência do depoimento de Zina quando fala que a
música salva, que salvou sua vida o tempo todo. Qual é a relação entre vida e achar o
tom certo na hora de tocar? O compositor Walter FRANCO (2005) em uma de suas
canções diz: Viver é afinar um instrumento, de dentro para fora, de fora para dentro.
64
Em arte ou na vida, a emergência pode estar em achar o tom certo na hora de tocar. Um
dos entrevistados, Reinaldo, comentou certa vez e parecia acreditar muito nisso que
se conseguisse afinar seu violão, muitos dos seus problemas estariam resolvidos...
LIDAR COM O OUTRO: AFINANDO DIFERENÇAS
Zina e Cristiano destacam como conquistas advindas da experiência com o Coral
Cênico, o aspecto de lidar melhor com o outro. Zina diz que aprendeu isso em São
Paulo, e que o Coral teve papel importante nesse aprendizado, e Cristiano considera o
trabalho com as diferenças vivenciado no grupo, como a descoberta da possibilidade de
melhoria nos relacionamentos, pela audição das pessoas que cantam diferente de você
ou que têm uma visão diferente, gerando uma mudança no olhar, na forma de ver o
outro e o mundo. Zina também realça o aspecto de ouvir o outro indivíduo, outro ser
humano, e para isso, coloca a música como intermediadora, mostrando, dessa forma, uma
afinidade e uma clareza sobre o seu papel e sobre a proposta musical do Coral Cênico
Cidadãos Cantantes.
64
Os versos são da canção Serra do Luar de 1981, quando Walter Franco participou do festival MPB-Shell,
com a canção arranjada por Rogério Duprat. Essa versão foi registrada apenas no disco do festival e a música
fez grande sucesso posteriormente em uma gravação de Leila Pinheiro. São alguns dos versos mais
conhecidos do compositor. (FRANCO, 03/08/2005).
242
(...) a gente aprende muito com a vivência do outro. As pessoas
do Coral são doces e grandes, são pessoas fortes, às vezes dá a impressão
de fraqueza, mas são muito fortes porque são muito respeitadoras. Isso eu
acho principal para fazer música. (...) temos que prestar atenção no outro
e isso que é mais importante e estou aprendendo aqui (...) prestar mais
atenção no outro indivíduo, outro ser humano. Como ele gosta de música,
como ele faz música, como ele aprende música, como ele se doa para a
música. Eu aprendi a lidar com o outro quando eu cheguei a São Paulo.
Eu moro (pausa) numa clínica psiquiátrica e geriátrica há 4 anos. Aqui eu
fiz amigos. No Rio eu tinha amigos, mas a gente não se encontrava
assiduamente (...) (Zina, 11/10/2004)
A idéia de como os relacionamentos podem ser melhores, como
você pode trabalhar com as diferenças entre as pessoas. (...) Se encontrar
com pessoas que cantam diferente de você, ou que tenham uma visão
diferente e se adaptar a isso... Mudança no modo de enxergar as pessoas
que estão fazendo parte do grupo... Enxergar como um grupo mesmo. (...)
(Cristiano, 11/10/2004)
No plano musical, a importância de lidar com o outro na construção de uma dada
afinação, é citada no livro de SOBREIRA (2002), pelo relato da professora de canto Angela
HERZ a respeito de uma aluna que a procurou porque não conseguia cantar afinado:
Essa aluna tinha dificuldades musicais que eram reflexos de suas
limitações na vida. Na medida em que ela conseguia sair do seu centro,
podia ver e ouvir o outro, podia afinar. (p.132)
243
SOBREIRA cita ainda outra experiência, agora relatada pelo professor de canto, D.
TOPP,
65
a partir do convívio com uma aluna que tinha dificuldades extremas para cantar
afinado, mas tinha muita vontade de aprender. TOPP acredita que talvez, mais importante
do que as habilidades musicais sejam as atitudes musicais. (...) seu sucesso em suas
experiências musicais afetarão todas as áreas de sua vida, conclui o autor (TOPP apud
SOBREIRA, 2002, p.128).
Nestes dois depoimentos observa-se o quanto a música está ligada à forma da
pessoa estar no mundo, e o quanto esta mesma forma pode ser alterada pela determinação
de entrar em contato com a linguagem musical. A busca da consciência da afinação, do
ritmo, da forma ou da articulação do som, pode ampliar o campo de percepção para
outros níveis que extrapolem o musical, com o caminho (atitude musical, como bem
coloca o professor TOPP) sendo mais importante que o resultado efetivamente alcançado.
Cristiano destaca os ganhos que se tem no grupo, a partir dessa abertura de lidar
com o outro.
[Existe] também a convivência entre as pessoas. o se criando
laços de amizade, de afetividade, troca de idéias, sobre política, religião,
situação financeira de cada um. (11/10/2004)
Seguindo este raciocínio de lidar com o outro e suas diferenças, a arte-educadora
Ana Mae BARBOSA, ao tratar da questão do espaço nas artes visuais para as manifestações
estéticas que se situam fora da cultura hegemônica, propõe uma visão interdisciplinar
65
Referência bibliográfica da autora: TOPP, D. Its never too late to sing! In: Music Educator Journal.
Washington, v. 74, n. 2, p. 49-52, 1987.
244
entre antropologia e arte, que contribua para olhar o outro e sua arte, concluindo que um
museu moderno não poderia prescindir do conhecimento da antropologia.
A antropologia nos ensina a ver o outro e, mais precisamente, a
ligação da antropologia com a arte, nos ensina a ver o universo estético
do outro. (BARBOSA, 1998, p.99)
A autora esclarece que a valorização do outro surgiu com o advento da pós-
modernidade e foi promovida pelos movimentos sociais e artísticos em direção à
multiculturalidade (p.111-12).
TRANSFORMAÇÕES PESSOAIS
Márcio, ao responder sobre o que mudou na sua vida a partir da experiência do
Coral, associa emoção e conhecimento.
Uma pessoa especial e linda, com intelectualidade, com o
coração e a cabeça. Uma coisa muito linda. Eu amo todo mundo que
vocês são. (23/08/2004)
E como relatado anteriormente, ao lembrar de algumas de suas composições
cantadas no Coral, sua voz ganha corpo e, seu corpo, vida.
As mudanças, no caso de Márcio e Herbert, foram mais visíveis quando se deram
após um reconhecimento público (em apresentações) de suas criações individuais;
também pode-se incluir neste quadro o caso de Ivan, que atribui o seu salto para a
245
reconquista de sua auto-estima e capacidade produtiva, ao fato de haver percebido que o
público gostava da sua música.
Eu adoro ser bem amado, ser bem trabalhado como artista...
(Márcio, 23/08/2004)
Ver que as pessoas se interessavam por aquela cultura, porque
isso é arte, cultura, criatividade... (Herbert, 25/10/2004)
SITUAÇÃO ATUAL: COMO ESTÃO, HOJE, OS ENTREVISTADOS
A partir das experiências relatadas foi perguntado a alguns dos depoentes como
estão hoje, e se o Coral ajudou, de alguma forma, essa nova situação de vida.
Herbert
Hoje tenho esposa e consigo gostar de mim, trabalhar, estudar,
acatando sugestões, coisa que não era muito viável para mim. Porque eu
sempre acreditei no meu método de vida, sempre vivendo mal e mesmo
assim, acreditando nele. Tem pessoas que fazem parte da minha vida
hoje, e que me direcionaram, como a Drª Vânia, a responsável por tudo
isso que está acontecendo na minha vida, essa virada. O Coral também.
Tenho gratidão pelo Coral e pelas pessoas que estão aqui. (25/10/2004)
Zé Ivan
Bem. Do barraco me chamaram para ser caseiro em uma chácara.
Aceitei cuidar da chácara pela moradia, sem vínculo empregatício de
caseiro, pois tinha que ter minha liberdade para trabalhar na feira. Com o
dinheiro da feira comprei um terreno e construí minha própria casa em
246
Ibiúna. Essa casa eu aluguei, e comprei um terreno em Morro-Doce, um
bairro em Perus, São Paulo. Meu sonho era voltar para São Paulo, por
causa principalmente do Coral. (14/06/2004)
Zina
Estou retomando (a atividade de dar aulas de piano), e é através
do Coral que eu tenho isso. Estou dando aulas para a Margarida, para o
seu Jorge e espero estar num crescendo... Já dei aulas para o Reinaldo,
Chico, Reginaldo, Ronaldo e Rodrigo. Até quanto eu viver eu vou dar
aulas e participar do Coral. (11/10/2004)
Márcio
P. Por que atualmente você não está mais escrevendo ou
compondo?
(...) Não ter ocupação, ser maltratado, desrespeitado..., perder as
coisas. (23/08/2004)
Dos depoentes, Herbert e Ivan declararam ter, hoje, uma situação bem melhor
do que antes de freqüentarem o Coral. Ivan reconquistou sua auto-estima e capacidade
produtiva, conseguindo uma situação financeira mais estável hoje do que no passado.
Herbert, após muita dificuldade com sucessivas internações, conseguiu entrar na
faculdade, ter um emprego e se casar. Zina, além de atuar como pianista no Coral, vai
retomando, aos poucos, sua atividade didática com música. Cada vez mais tem mostrado
desejo de ter uma vida independente e buscar subsistência com seu trabalho musical.
Márcio é o que apresenta o pior quadro atualmente, indicando abandono e falta de
atendimento em suas necessidades básicas. Márcio e Herbert não participam mais do
247
Coral. Zina desde que iniciou, nunca mais se afastou, e diz que o Coral é o que dá sentido
à sua vida, atualmente. Zé Ivan retornou ao Coral após um afastamento de
aproximadamente 5 anos (de 1999 a 2004).
EXPECTATIVAS PARA ESSA ATIVIDADE
Pode-se contemplar duas expectativas diferentes, que, de certa forma, representam
duas maneiras de atuação dos integrantes do grupo: uma voltada à produção artística
(César), e outra, ao desenvolvimento pessoal (Vitor), porém, no caso de Vitor, essa
expectativa ainda vem seguida de um desejo de criação individual, como uma busca de
expressão de subjetividade.
César
Eu gostaria de ver esse trabalho (do gato) ampliado, independente
da virada do ano e das pesquisas para um novo repertório, e, quem sabe,
pudéssemos fazer uma temporada em algum teatro, mas claro, são coisas
que precisam de maiores investimentos..., mas esse espetáculo para mim
é muito gratificante fazer. (25/10/2004)
Vitor
P. Você tem algum projeto especial para você?
Me recuperar. Com o Coral vai ser muito bom.
P. O que é para você estar recuperado?
As pessoas não me olharem mais com rabo de olho e dizerem:
esse é embriagado, então eu não dou nada para ele. As pessoas não
248
mais me criticarem. Quero ser o Vitor que era antes, isso eu não vou
conseguir, mas se chegar a 90% está bom demais. Quero dizer que tenho
algumas coisas em vista. Aos poucos eu fazendo na minha cabeça
umas... músicas. falta passar para o papel. E eu vi que é fácil fazer
música. Obrigado pela oportunidade que o CECCO e o maestro Júlio
estão me dando. (29/11/2004)
O que é possível notar é que essas duas expectativas, de desenvolvimento artístico
e pessoal, não se colocam como pólos opostos ou excludentes; pelo contrário, em todos
os depoimentos, elas surgem misturadas e, muitas vezes, como complementares, entrando
em sintonia com o conceito de arte, colocado por M. SCHAFER (1991), no qual a arte não
se separa da vida, mantendo-se em unidade, para cumprir o seu maior propósito, que é o
da transformação humana.
No texto citado, SCHAFER diz que o propósito da arte é modificar-nos
(transformação); este é o propósito desde antes que a palavra arte fosse cunhada para
descrever o último tremor transformativo acessível ao homem civilizado (SCHAFER apud
FONTERRADA, 2004). Dessa forma, aquele autor considera a arte não qualquer
experiência em arte, mas aquela que recupera a capacidade mágica da transformação e
indissociável à existência humana como única possibilidade para o homem racional-
civilizado, de retomar o vínculo com o sagrado e a união entre espírito e matéria. E ao
vivenciar essa experiência transformativa, a arte revelaria divindade, nos seres humanos,
animais, árvores, montanhas, sol, céu, mar, lua e estrelas... E conclui:
249
...então, o havia arte, havia milagres. Não havia música, havia
tons mágicos. Não havia artistas, havia sacerdotes e mágicos. A natureza
era uma contínua e envolvente hierofania. E o homem dançava e cantava
no coração de tudo isso. (2004, p. 321)
250
ANÁLISE DA ENTREVISTA COLETIVA
CRITÉRIOS
A entrevista coletiva foi realizada no Parque do Trianon, após a apresentação do
Coral Cênico Cidadãos Cantantes no Vão Livre do MASP, durante a manifestação do Dia
Nacional da Luta Antimanicomial, em 18 de maio de 2005.
A entrevista reuniu 17 cantores que se dispuseram a participar no horário
determinado: Hélio, Vitor, Cyntia, César, Fabiana, Chico, Daniele, Margarida, Rute,
Hudson, Célia, Lourdes, Janaína, Alice, Ieda, Zina e Alexandre, além de Thaia Perez,
atriz e diretora cênica do grupo.
Na entrevista coletiva que se segue, muitos assuntos se repetiram, de maneira que
se optou por destacar somente aqueles que não foram abordados nas entrevistas
individuais, anteriores.
GASKELL (2004) esclarece que neste tipo de entrevista, com vários respondentes,
também chamada de grupo focal, o objetivo é estimular os participantes a falar e a reagir
àquilo que outras pessoas no grupo dizem (p.75).
Este autor diz que a função do entrevistador é a de moderador da discussão, e
enumera algumas vantagens em relação à entrevista individual:
 os sentidos ou representações que emergem são mais influenciados pela natureza
social da interação do grupo, em vez de se fundamentarem na perspectiva
individual;
 O grupo se torna uma entidade em si mesmo (...) com o desenvolvimento de uma
identidade compartilhada;
251
 o grupo pode se subdividir em facções que confrontam seus pontos de vista e
opiniões;
 o grupo focal é um ambiente natural e holístico, em que os participantes levam em
consideração os pontos de vista dos outros, para formular as suas respostas, e
comentam suas próprias experiências e as dos outros (GASKELL, 2004).
Conclui o autor que, neste tipo de entrevista, poderá existir um nível de
envolvimento emocional raramente visto em uma entrevista a dois (p.76).
Considerando estas características importantes para o aprofundamento da
investigação sobre a produção do Coral, o pesquisador, em momento mais aquecido da
entrevista, lançou a seguinte pergunta para o grupo: O que o Coral faz é arte? Tendo sido
positiva a resposta geral do grupo a essa pergunta, deu-se seqüência ao questionamento:
Por que é arte? É nessa parte do conteúdo da entrevista que irá se concentrar para se
fazer a análise.
ANÁLISE
ARTE E DIFERENÇA
César (o primeiro a querer responder a questão) diz que ele não entende como
artística a atuação do Coral, como também valoriza esse movimento como real
possibilidade de transformação social, quando define a atuação do grupo como brilho
solitário, com função de resistência perante uma sociedade cada vez mais
252
homogeneizante e de controle. César vê no Coral um espaço de subversão desse
controle.
O fazer artístico do Coral tem uma importância, porque ele
enriquece as pessoas. Muitos dos preconceitos que se formam, hoje, é
porque as pessoas querem criar imagens das outras, esteriótipos das
outras, pra se orientar no mundo. Negro gosta de samba. O judeu é
mesquinho. [Usam] essas visões preconceituosas pra se orientar no
mundo. E esse fazer artístico, esse fazer da ação (...) eu chamo de
...brilhos solitários. Eu acho esses brilhos solitários e ricos, porque eles
não querem anular a diferença. Eles mostram que somos diferentes e
temos perspectivas de vidas diferentes, mas que a gente pode dentro do
fazer artístico ter uma nova visão pro nosso mundo, pra nossa vida em si.
(18/05/2005)
ARTE E CONHECIMENTO
Lourdes e Célia, respectivamente, concordam que se trata de um trabalho
artístico, principalmente, pela orientação que se dá, a fim de se habilitar para formas de
expressão, que envolve técnica e conhecimento. A orientação alia a vontade com a
possibilidade.
Olha, é...logicamente, se a gente não tivesse, assim, uma
orientação artística que parte de vocês todos... Não tivéssemos um
maestro, a preparadora... porque vontade nós todos temos, mas não
temos, assim, habilitação. (Lourdes, 18/5/2005)
253
(...) porque a partir do momento que temos você como um
profissional e temos a Tatiana também preparando, enfim, profissionais
de qualidade, então vamos encarar isto como um trabalho e deixar esses
problemas que ficam machucando a gente de lado. Vamos encarar como
um trabalho. (Célia, 18/5/2005)
ARTE
Zina reflete aqui um desejo de reconhecimento pela qualidade do trabalho
desenvolvido, e não pela condescendência gratuita, em geral, concedida a trabalhos de
cunho social ou terapêutico.
Eu acho que hoje todo mundo provou, com a apresentação do 18
de maio, que é músico. Dizem que a gente é músico em potencial, mas a
gente é músico de verdade. O som saiu ótimo, Seu Ivan deu uma aula
de charme lá em cima do caminhão, e nós nos apresentamos
impecavelmente, hoje. (18/5/2005)
ARTE , TALENTO E TRABALHO
Janaina resume como entende o fazer artístico e por que o trabalho do Coral deve
ser entendido dessa forma. Segundo Janaína, é artístico porque tem intenção de se fazer;
tem talento, com cada um contribuindo na sua possibilidade; e tem muito trabalho, ou
seja, estão presentes nessa definição do fazer artístico a vontade, a valorização de
potencialidades e respeito às individualidades e o investimento pessoal.
254
Eu acho que é artístico, em primeiro lugar, porque todo mundo
vai lá com a intenção de fazer arte. A gente já matou aí. E segundo,
porque eu acho que tem talento e cada um do seu jeito, cada um a sua
maneira. Tem talento e muito, muito trabalho, cara. Então, não tem como
não ser um trabalho artístico.
(...) quando tá fazendo o trabalho, não [se] quer saber disso [dos
problemas]. Eu na verdade nunca tive interesse em perguntar: ah, você
tem um problema? Acho que isso nem vem ao caso.
(...) Naquela hora a gente tá ali por quê? Porque cada um sendo do jeito
que é, é suficiente. Isso é que eu acho mais legal. (18/5/2005)
ARTE E COMPROMISSO
Célia diz que com o trabalho nos esquecemos dos problemas. Ressalta o fato de
estar num espaço de produção cultural (CCSP) e o compromisso que se deve ter num
trabalho artístico.
Quando a gente tá no palco, eu esqueço que eu sou a Célia. Eu
não sou mais a Célia. Eu sou outra pessoa. A gente tá lá, no Centro
Cultural, cantando, eu tenho que dar vida ao meu personagem naquele
momento. Então, se eu tenho problemas, meus problemas estão lá em
casa. Lá, em casa, eu resolvo. Ali, eu tenho que, sei lá, me divertir,
aprender, apreciar.(18/5/2005)
Alice, por seu vínculo com a Luta Antimanicomial e sua atuação como militante
na área de saúde mental, destaca a importância da data (18 de maio) para o Coral e a
importância do Coral para a Luta Antimanicomial. Adiante, ressalta, afinada com o
255
discurso de Janaína, a maneira cultural de se fazer inclusão, como a contribuição do
Coral para a Luta Antimanicomial.
[O Coral] é um selo, sabe, representa uma grande coisa. O Coral
é muito famoso. (...) é muito importante a nossa vinda, hoje, aqui, para a
apresentação (...) Isso aí, falando em arte, que eu não entendo muito, mas
é uma coisa cultural. A gente vir, mostrar um pouco o que a gente faz.
Porque isso aí é ver que tem coisas boas, que a gente pode sair e levar
para o conhecimento de outras pessoas.(18/5/2005)
Janaína continua dizendo da importância de chamar a atenção para a causa e não
para a diferença; e, com essa análise, expressa com muita clareza a questão sobre uma
real atitude de inclusão buscada no Coral, de respeito às diferenças, ao não enfocar o
diferente, mas, sim, a possibilidade do convívio com as diferenças em sociedade.
Não dar mais atenção pra diferença. Ele é diferente, olha. (...)
Acho legal que o que acontece lá na sala [de ensaio], era legal que
acontecesse o tempo todo, em todo lugar. (18/5/2005)
Célia confirma a hipótese de que o grupo se agrega pela construção de um
trabalho coletivo e não pelos problemas de seus participantes, como em um grupo
terapêutico, salientando que a orientação que se dá para o trabalho é artística:
Faço isso porque gosto e o porque ali cheio de pessoas, que
tá cheio de problemas, que toma remédio. Eu faço porque eu gosto. Nós
temos o maestro, um profissional de qualidade. Nós temos outras pessoas
que amparam a gente e que se não fossem eles a gente não tinha
conseguido participar ali e em qualquer outro local. (18/5/2005)
256
DIFERENÇA ENTRE ARTE E DOR
Thaia, com sua larga experiência como atriz, comentou o que Célia havia falado e
ressaltou a capacidade de trabalho do grupo.
Todo mundo tá cheio de problemas, mas eu acho que à medida
que a gente tá trabalhando, eu acho que a gente bota energia pra circular,
(...) a gente é, quando a gente se expressa, também os problemas da
gente, mas à medida que eu, como diretora cênica, falasse: bom,
vamos falar da nossa loucura? Pomba, tão perto... Sabe, eu acho que
não é num palco que a gente vai falar do nosso problema. (...) Isso não é
arte pra mim, isso é outra coisa. Isso é compartilhar problemas. Na arte a
gente dá um salto. (18/5/2005)
ARTE, TRABALHO E CONTEÚDO HUMANO
Thaia completa dizendo que a arte se liga à vida por falar do ser humano. Da
poética da vida, apesar da dor. E diz que no Coral se consegue dar o salto para Arte.
Na arte como todo mundo tá dizendo aqui e sabe, a gente sua a
camisa. Mas, a gente fala do quê? Do ser humano, dessa coisa
estupidamente mágica (...) que encanta a gente. Eu diria que é a poética
da vida. A poética da existência, o milagre da existência, a beleza da
existência, apesar de toda a dor. Então, eu acho que é isso. Eu acho que
257
no Coral a gente trabalha muito, mas eu acho que a gente consegue dar o
salto, por isso eu acho que é arte. (18/5/2005)
Zina interfere dizendo:
Na realidade, a verdade é que a gente faz música porque a gente é
feliz. A gente canta porque a gente é feliz. A gente faz arte porque a
gente é feliz. Tem muita gente que gostaria de estar no nosso
lugar.(18/5/2005)
Quando Zina se expressa dessa forma: fazemos música porque somos felizes,
pode-se pensar o caminho inverso: que se é feliz por poder fazer música, criar, expressar
sentimentos, desejos e emoções. Fazer é estar em movimento, e movimento é vida. É
muito significativo que o Coral, composto por algumas pessoas cuja história de vida
possa ter sido entremeada por momentos de sofrimento e dor, possa irradiar tanta
felicidade e desejo de expressão.
A discussão girou em torno da questão: no Coral o foco se encontra nos
problemas, ou no trabalho artístico? E, o que se entende por esse fazer artístico? afinal
era o dia nacional da Luta Antimanicomial, e uma rede de TV estava fazendo entrevistas
com três membros do Coral a respeito de suas histórias. Constantemente as opiniões se
alternavam entre evidenciar os problemas e sofrimentos individuais no grupo, ou não.
Um dos pontos de vista, reiterado por vários entrevistados foi o de entender a atividade
do Coral como trabalho, no sentido de que este gera um movimento coletivo criativo, que
potencializa a vida de cada participante, tenha ele sofrimento mental ou não.
É interessante a visão de arte aqui exposta pelo grupo: arte como um lugar onde as
diferenças cabem, como disse César, mesmo que o grupo não comungue das mesmas
258
opiniões quanto a como lidar com essas diferenças durante o desenvolvimento do
trabalho. Alguns entendem que, pela orientação técnica, e por se ocupar um espaço de
produção cultural (o CCSP), este trabalho é artístico e envolve técnica, conhecimento e
expressão, e nesse ponto, estão respaldados por teóricos da arte como Alfredo Bosi, que,
amparado nas idéias de Pareyson em sua Teoria da Formatividade, considera que esses
três aspectos (técnica, conhecimento e expressão) podem dar-se simultaneamente e são
decisivos para o processo artístico (BOSI, 2003, p.8).
A possibilidade de se superar os problemas individuais enquanto se tem foco no
trabalho criativo grupal também foi muito valorizado, assim como também a importância
de se divulgar por meio de apresentações públicas , esse trabalho que promove inclusão
pela via da cultura.
A discussão a respeito de o Coral ser um espaço de arte ou um espaço terapêutico
admitiu sair da dicotomia quando Thaia aproximou arte e vida, assumindo os conflitos e
as dores humanas como constitutivas da arte, argumentou que para dar o salto e
adentrar ao campo da estética e da cultura, a arte necessita sair dos dramas pessoais. Aqui
novamente a discussão encontra ressonância em BOSI (2003, p.70): Na arte parece não
haver espaço para a representação direta das forças sociais ou para a expressão imediata
das forças psíquicas. (grifo do autor)
259
4 POSLÚDIO ARTE E DIFERENÇAS
F
IGURA 16 Gil Pires e Itamar Assumpção cantam Pirex durante apresentação em 1999
260
DIFERENÇAS, PODER SOBRE A VIDA E O CORAL CÊNICO
Neste capítulo serão abordadas as questões da exclusão do portador de sofrimento
mental como apontada por Michel Foucault, para que se entenda o quanto desse
pensamento ainda perdura nos dias de hoje. Da exclusão do louco e o conseqüente
silenciamento da linguagem da loucura no contexto sociocultural, do tratamento da
loucura pela via da razão médica e do medicamento, até chegar no pensamento da
normalização do desvio, categorizando e incluindo os indivíduos em grupos cada vez
mais homogêneos, em que as diferenças são respeitadas socialmente, desde que
habitando o seu campo pré-determinado, impedindo que haja novos encontros e
descobertas. Esse, segundo Foucault, é o campo da biopolítica. Uma forma de controle
que não necessita mais da força física e atua no campo da subjetividade.
Mas FOUCAULT aponta para o fato de que onde o poder se faz presente, é neste
mesmo lugar que irá se instalar uma força de resistência a esse mesmo poder (LIMA,
2003; PELBART, 2003). Entende-se a experiência do Coral Cênico, assim como outras que
serão apontadas neste capítulo, como representantes dessa resistência, ao proporem a
transformação da negatividade da ação do biopoder, do poder sobre a vida, em
positividade da biopotência, ou seja, do poder da vida. Essa resistência faz-se a partir de
grupos minoritários que se acham excluídos de várias formas, mas que, porém, têm como
valor de relação com o mundo, o que lhes resta, isto é, a própria vida, em seu poder de
transformação.
261
As relações entre o saber e o poder que atravessam a obra de Foucault, são
fundamentais para se compreender seu pensamento sobre biopolítica e, em conseqüência,
o trabalho com o Coral Cênico Cidadãos Cantantes, apresentado nesta pesquisa.
Para se entender a atualidade das questões da Luta antimanicomial e da reforma
psiquiátrica, será traçado um breve histórico a respeito da exclusão da loucura no século
XVII e o salto para o tratamento em instituição asilar, numa perspectiva positivista de
cura pela medicalização e enquadramento moral, ocorrido durante o século XVIII.
Pela ação da lógica da biopolítica, entende-se porque o tratamento social, via de
regra, dado ao portador de sofrimento mental faz esse indivíduo se encontrar sem
território para habitar sua existência. É em confronto com essa maneira de excluir, que o
Coral Cênico faz o seu caminho, buscando na arte um veículo de acessibilidade e
produção cultural para essa atuação de resistência ao poder.
A partir de agora, propõe-se pensar as questões das diferenças existentes no
projeto do Coral Cênico Cidadãos Cantantes, partindo-se das idéias de M. Foucault a
respeito da negação da possibilidade da manifestação da desrazão em nossa sociedade,
suas justificativas históricas e sociais e a conseqüente exclusão imputada ao louco (um
diferente) juntamente com suas representações.
Compreende-se que a figura do louco é emblemática dessa exclusão pelas
diferenças, porém, Foucault amplia esta discussão, quando se propõe pensar a
constituição de um saber a partir da categorização da população entre normais e
anormais, revelando a incidência de poder incutido nesta ação.
262
Figura 17 Focault , saber e poder. Ilustração extraída do livro de FILLINGHAM (1993)
AS IDÉIAS DE FOUCAULT - A EXCLUSÃO E O CONTROLE SOCIAL
Lydia Alix
FILLINGHAM (1993) dá uma visão panorâmica da obra de Foucault com
foco na relação saber/poder com a exclusão. Segundo a autora, Foucault se propõe a
pensar as relações do saber com o poder, a partir do truísmo: Saber é poder. Propondo-
263
se a estudar a construção do saber pelo homem e suas conseqüências na vida do homem,
Foucault chega à conclusão que, pelo uso da força física ou da força mental, o poder é
exercido por uma influente minoria, que impõe a idéia do que é certo e verdadeiro para a
maioria, formando o que se pode chamar de construção da verdade (FILLINGHAM, 1993, p.
6).
A autora esclarece que, freqüentemente, o saber/poder e a força física atuam
juntos, pela disciplina e pelo castigo, porém, antes, o saber/poder atua pela própria
linguagem, entranhado na cultura, sendo assimilado sem que se dê conta, tanto por ações
cotidianas (família, escola, trabalho), quanto na construção do saber pelas ciências
humanas (psicologia, sociologia, economia, lingüística e, mesmo, medicina), que darão
as diretrizes de atuação a várias instituições, tais como: hospitais psiquiátricos, prisões,
fábricas e cortes de julgamento (p. 12).
Segundo a autora, Foucault enfatiza seu trabalho no mecanismo central das
ciências sociais, quanto à categorização das pessoas, em normais e anormais. Seus livros
estudam diferentes formas de anormalidade: loucura, doença, criminalidade e perversão
sexual. A partir de rigoroso estudo histórico e antropológico, Foucault demonstra que este
padrão de anormalidade mudou de tempos em tempos (FOUCAULT, 1987 e 2000).
Em síntese, a autora diz que o interesse de Foucault pela questão da exclusão da
anormalidade em nossa sociedade, se dá por entendê-la como dado da cultura, uma vez
que é pela anormalidade que definimos a norma, e não o contrário. O estudo da
anormalidade é o principal meio de ação dessas relações de poder na sociedade ocidental.
Quando uma anormalidade e sua correspondente norma são definidas, de algum modo,
trata-se, sempre, de uma pessoa normal atuando com poder sobre outra, considerada
264
anormal (FILLINGHAM, 1993. p. 18); dessa maneira, se instala uma relação de exclusão ou
de controle.
FOUCAULT, em seu livro Doença mental e psicologia (2000), tece as ligações
sociais e históricas das mudanças no pensamento sobre a loucura no ocidente, que
fizeram com que o louco fosse excluído socialmente e destituído de seus direitos básicos.
O autor faz um mapeamento dos tratamentos destinados aos loucos na Grécia, na Idade
Média, no Renascimento, chegando à Idade Clássica e à pós-Revolução Francesa, para
entender as razões pelas quais se poderia justificar, até os dias de hoje, a internação e os
tratamentos repressivos, nas instituições psiquiátricas.
A partir dessas considerações, FOUCAULT buscou demonstrar de que preliminares
a medicina mental tem que estar consciente para encontrar um novo rigor (2000, p. 8).
A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DA DOENÇA MENTAL
O autor considera que o desaparecimento da experiência trágica da loucura e o
conseqüente silenciamento da sua linguagem, que ocorrem no contexto social e cultural
de meados do século XVII, dão lugar ao nascimento da loucura como doença mental.
Diz que a história psiquiátrica clássica considera que, antes das experiências de Pinel, na
França e Tuke, na Inglaterra, no século XIX, os loucos (doentes) eram abandonados à
própria sorte, em função da ausência do saber médico. Na verdade, nem estavam
abandonados, pois algumas alternativas de atendimento já havia em algumas cidades da
Europa; em contrapartida, dependendo da época, esses loucos estavam adaptados ao
265
cotidiano da sociedade, ainda que com o título de loucos, mas mantendo a sua livre
possibilidade de existência (FOUCAULT, 2000).
FOUCAULT aponta, ainda, que os gregos já tinham noções de patologia para a
loucura e que, na Idade Média, havia alguns hospitais com leitos reservados para os
loucos que se consideravam passiveis de cura (na verdade, diz o autor, esses espaços mais
se assemelhavam a jaulas) (p.76).
O autor constata, por estudos históricos e antropológicos, que, durante a
Renascença, viveu-se na Europa um período da loucura em estado livre, quando a voz
do desatino e o corpo do louco estavam liberados (mesmo que poucos se predispusessem
a ouvi-los e muitos loucos fossem obrigados a ter uma existência errante, indo de porto
em porto, em naves conhecidas como a Nau dos loucos) e a sociedade convivia com a
loucura sem a necessidade de negar a sua existência e expressão. O autor cita várias
manifestações culturais da época, para justificar a presença da loucura no cotidiano,
principalmente simbolizada nas obras de Bosh e Brueguel (séculos XV e XVI), até
chegar a Cervantes e Shakespeare, em meados do século XVII (p.77).
Até cerca de 1650 a cultura ocidental foi estranhamente
hospitaleira a estas formas de experiência. (...) Nos meados do séc XVII,
o mundo da loucura será o mundo da exclusão. (p. 78)
Diz FOUCAULT que, nessa época, os loucos eram internados nos Hospitais Gerais,
misturados a uma gama de desvalidos, miseráveis, mendigos, libertinos, portadores de
doença venérea, desempregados, todas as pessoas que à luz da razão, da moral e da
266
sociedade, dão mostras de alteração, e que o internamento não tinha razão médica e,
sim, moral e social (p. 78).
Este internamento que o louco, juntamente com muitos outros, recebia na época
clássica, esclarece o autor, não punha em questão as relações da loucura com a doença,
mas as relações da sociedade consigo própria, com o que ela se reconhecia, ou não, na
conduta dos indivíduos (p. 79).
O autor constata que, nesse agrupamento de loucos com criminosos maiores e
menores, assimilou-se um sentimento de culpa (moral e social) da loucura, que está longe
de se romper (p. 80).
A população dos loucos que, na Europa, antes de meados do século XVII
(notadamente durante o período da Renascença), tinha certa liberdade e cuja expressão,
de alguma forma, estava incorporada à vida social, por meio de manifestações de âmbito
cultural, passou, a partir de então, a ser confinada e vista como uma população de
outros, que a sociedade da razão e da liberdade teria que afastar, pois, se a liberdade do
homem só é plenamente alcançada pela razão, quem não a tem, não será livre, e o
confinamento dos loucos como aqueles que são destituídos de razão, se justificaria, como
constata FRAYZE-PEREIRA: sendo a essência da loucura a ausência da liberdade, a
restrição material dos loucos torna-se uma prescrição natural (2002, p.82). Tanto o
sentimento de culpa quanto a necessidade de cuidar (em muitos casos representada na
internação em hospital psiquiátrico), com a finalidade de garantir a liberdade, ou seja, a
retomada da razão por parte dos que portam algum sofrimento mental, são contradições
vividas ainda nos dias atuais.
267
Durante o século XVIII, a internação tornou-se medida de caráter médico. As
iniciativas de Pinel e Tuke não romperam com as práticas do internamento, mas as
estreitaram em torno dos loucos, para um controle social e moral ininterrupto
(FOUCAULT, 2000, p. 81).
As correntes foram trocadas por encadeamentos morais, que transformaram os
asilos em instâncias perpétuas de julgamento. Ao médico caberia mais o controle ético
que uma intervenção terapêutica (p. 82).
A loucura encontra-se inserida no sistema de valores e das
repressões morais. Ela está encerrada num sistema punitivo onde o louco,
minorizado, encontra-se incontestavelmente associado à criança, e onde a
loucura, culpabilizada, acha-se originariamente ligada ao erro. (p. 84)
Numa crítica contundente à pretensão do saber médico racional que busca a cura e
a normalização, FOUCAULT conclui que:
A psicologia da loucura seria não o domínio da doença e
conseqüentemente a possibilidade de seu desaparecimento, mas a
destruição da própria psicologia e o reaparecimento desta relação
essencial, não psicológica porque o moralizável, que é a relação da
Razão com a Desrazão. (p. 85-6)
E ainda, destacando a importância do resgate dessa relação, observa que o homem
se encontraria, assim, livre de toda psicologia para o grande afrontamento trágico com a
loucura (p. 86).
Segundo o autor, a loucura deveria ser entendida como estrutura global, liberada,
desalienada e, conseqüentemente, restituída, de certo modo, à sua linguagem de origem.
268
FOUCAULT destaca que outras culturas ou outras épocas sempre foram sensíveis,
na conduta ou na linguagem, para com esses indivíduos desviantes:
Há algo neles que fala da diferença e chama a diferenciação (...) é
o vazio no interior do qual se estabelecerá a experiência da loucura. (p.
87)
Mas, adverte o autor que, sob essa forma negativa, há outra, positiva, na qual a
sociedade engaja e arrisca seus valores e seus medos. Assim como na Idade Média o
medo da morte era presente em diversas manifestações culturais, no Renascimento, o
medo da loucura estava expresso em obras como as de Bosh, provocando a invasão do
Insano que coloca o Outro mundo no mesmo nível que este, e de modo chão: verdade e
mentira, ilusão e segredo, Mesmo e Outro. FOUCAULT diz que em O jardim das
delícias, de Bosh, se tem como que a percepção de um mundo suficientemente próximo
e, ao mesmo tempo, distante de si. Nessas obras, esboça-se um jogo entre Razão e
Insanidade que dominará o Renascimento (p.88).
Está claro que o século XVI valorizou positivamente o que o
século XVII ia menosprezar, desvalorizar e reduzir ao silêncio. (...) a
loucura situa-se neste nível de sedimentação nos fenômenos de cultura
em que começa a valorização negativa do que vinha sendo apreendido
originalmente como o Diferente, o Insano, a Desrazão. as
significações morais se engajam, as defesas atuam, barreiras elevam-se, e
todos os rituais da exclusão organizam-se. (p. 89)
269
FOUCAULT argumenta que foram essas condições que permitiram ao médico
estabelecer o limiar entre loucura e normalidade e diagnosticar a loucura como fenômeno
da natureza. (p.89)
Ao afirmar que a experiência do Insano foi traçada historicamente pelo seu lado
negativo, seguindo o movimento progressivo e sucessivo loucura doença doença
mental, FOUCAULT chama a atenção para a importância de se observar o movimento
contrário, através do qual uma cultura chega a exprimir-se, positivamente nos fenômenos
que rejeita: mesmo silenciada e excluída, a loucura tem valor de linguagem e seus
conteúdos adquirem sentido a partir daquilo que a denuncia e repele como loucura (p.
91).
E conclui:
Esta relação que funda filosoficamente toda a psicologia possível
só pode ser definida a partir de um momento preciso na história da nossa
civilização: o momento em que o grande confronto da Razão e da
Desrazão deixou de se fazer na dimensão da liberdade e em que a razão
deixou de ser para o homem uma ética para tornar-se uma natureza (...) a
psicologia só foi possível no nosso mundo uma vez a loucura dominada e
já excluída do drama. E quando, através de clarões e gritos, ela [loucura e
desrazão] reaparece como em Nerval ou Artaud, em Nietzsche ou
Roussel, é a psicologia que se cala e permanece sem palavras diante
desta linguagem (...) que somente a existência dos psicólogos sanciona
para o Homem contemporâneo o pesado esquecimento. (p. 98) (grifo do
autor)
As idéias de Foucault fazem refletir a respeito da exclusão do diferente e,
principalmente, do conceito de liberdade. É na busca de uma relação ética com a
270
liberdade, vivida na contradição entre expressão individual e convívio social, espaço para
a manifestação da razão e desrazão, convivência das diferenças e construção de uma
obra, que o Coral Cênico trilha o seu caminho. Esta reflexão é fundamental para se
pensar a produção cultural do Coral Cênico, bem como seu valor como linguagem e
criação de sentidos.
PODER SOBRE A VIDA
A partir de idéias de Foucault, Elizabeth LIMA (2003b), diferencia o poder pela
disciplina, do poder pelo controle, que é a lógica da biopolítica. A autora esclarece que,
segundo Foucault, as duas principais formas de poder sobre a vida desenvolvidas para
atingir a normalização, são a disciplina, como anátomo-política do corpo, centrada no
corpo e seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, no investimento em sua
docilidade e utilidade na extorsão de suas forças , e a biopolítica da população,
centrada no corpo-espécie, atuando como dinâmica do vivo, que se
formou em meados do século XVIII, cujo objetivo é conhecer, regular e
controlar os nascimentos, a mortalidade, o nível de saúde, (...) e todas as
condições que podem fazer esses processos variarem. (LIMA, 2003b, p.
65)
Analisando esta situação, FOUCAULT constata que estas duas faces de poder
anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltado para os desempenhos do
271
corpo e encarando os processos da vida caracteriza um poder cuja função mais elevada
não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo (1985, p. 131).
A partir da instauração dessa biopolítica, LIMA aponta que surge um mecanismo,
que se quer permanente, de vigilância, controle, setorização da população por traços
identitários, entre elas a dos anormais (2003b, p.65).
Continua a autora dizendo que é sobre esse personagem anormal, que o poder vai
se exercer através de práticas e políticas em relação ao desvio, articuladas a duas
modalidades de controle, relacionadas às duas formas de poder sobre a vida. (p. 65).
Essas duas modalidades são exemplificadas por Foucault, como: o modelo da exclusão
dos leprosos, que define como uma prática de rejeição e marginalização dos indivíduos,
pela exclusão social; e uma outra, que parece ser uma forma maior e mais duradoura,
exemplificada no modelo da peste, que se concretiza no policiamento da cidade e diz
respeito ao controle dos indivíduos através de uma forma de inclusão constituída pela
análise pormenorizada do território e dos seus elementos e pelo exercício de um poder
contínuo (LIMA, 2003a, p. 49).
Este contexto propiciará o surgimento da psiquiatria e da medicina social, com
funções, ao mesmo tempo, reguladoras da doença (no sentido de buscar a cura e a volta a
normalidade) e controladoras do desvio, ao definir o estabelecimento de uma gradação
entre normal e anormal (p.53).
A autora cita novamente Foucault, para exemplificar essa sociedade do controle e
os efeitos dessa normalização:
272
Será em toda parte, o tempo todo, até nas condutas mais ínfimas,
mais comuns, mais cotidianas, no objeto mais familiar, que a psiquiatria
encarará algo que terá, de um lado, o estatuto de irregularidade em
relação a uma norma e que deverá ter ao mesmo tempo estatuto de
disfunção patológica em relação ao normal (FOUCAULT apud LIMA, p.52).
A situação observada por Foucault como efeito dessa normalização faz lembrar o
conto de Machado de ASSIS (1997), O Alienista, que narra a história de um médico-
psiquiátra (Simão Bacamarte) em fins do século XIX , que, obcecado pelo avanço da
ciência e pela definição dos padrões de normalidade, em determinado momento de sua
atuação profissional, resolve que todos os habitantes da cidade devem ser internados, uma
vez que todos apresentam algum tipo de desvio. O final da história é bastante conhecido,
com o alienista chegando à conclusão de que ele próprio é o alienado, e talvez o único
que devesse ser internado. Este conto exemplifica com extrema ironia e crítica, a sintonia
do autor com as questões do seu tempo (LIMA, 2003a, p.68).
Lima (2003b) diz que ainda hoje, e talvez mais do que nunca, estamos
atravessados por essa lógica biopolítica, tal como descrita por Foucault, e que as duas
formas de poder sobre a vida (anátomo-política do corpo e biopolítica da população) se
articulam à produção de saber em diferentes domínios disciplinares que vão desenvolver
estratégias e se ocupar de determinadas parcelas da população como alvo de suas
práticas (p. 66-7).
Porém, a autora, tomando de empréstimo a lanterna de Foucault, lembra que, ali
onde incide o poder, no sujeito que não é senão efeito desse mesmo poder que produz, ali
também se exerce a resistência (p.71).
273
Nesse sentido, pode-se pensar o projeto do Coral Cênico Cidadãos Cantantes
como construção de singularidades e devires-minoritários (p.69), como explicitado por
Lima, dando outro valor à existência dessas pessoas, e se estabelecendo como uma das
formas possíveis de resistência diante de processos de exclusão.
E, a partir desse valor, o trabalho artístico é colocado como potência de vida num
sentido mais amplo, pois, como enfatiza a autora, o enriquecimento que pode ganhar
lugar neste processo diz respeito à vida de todos os envolvidos (2003b, p. 67), sejam
eles técnicos ou freqüentadores.
274
EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS QUE DIALOGAM COM O PROJETO DO
CORAL
Ao tratar da questão da loucura tal como discutida pelos autores estudados e
perceber o trabalho artístico desenvolvido no Coral Cênico Cidadãos Cantantes como um
foco de resistência às situações de exclusão apontadas, faz-se necessário, agora,
compreendê-lo como parte de um movimento maior contemporâneo, que pode ser
identificado em algumas outras propostas artísticas.
A idéia, então, neste momento, é estabelecer relações de proximidade ou
afastamento com experiências similares, que tiveram a arte como instrumento de
transformação de vidas. Essas experiências são trabalhos que envolvem pessoas em
situação-margem na sociedade (em vulnerabilidade de saúde ou social) que, pela
expressão artística, buscam interlocução, de modo a conquistar reconhecimento, no
interior desses projetos, de existências singulares e potência de vida.
Uma delas é o projeto TAMTAM, que com uma proposta ousada e inovadora,
tornou-se emblema da Luta Antimanicomial no Brasil.
TAMTAM
O projeto TAMTAM foi inserido no contexto da reforma psiquiátrica ocorrida na
cidade de Santos, especificamente pela ação de intervenção realizada na Casa de Saúde
Anchieta, um antigo Hospital Psiquiátrico, colocando-se, assim, como uma das primeiras
cidades no Brasil a ter um hospital aberto, aos moldes do que fora proposto por Franco
BASAGLIA em Trieste (1985).
275
Para contar um pouco da experiência do TAMTAM, utilizou-se da dissertação de
mestrado de Fernanda NICÁCIO (1994), profissional envolvida diretamente no processo de
abertura do Hospital Anchieta e na transformação das ações em saúde mental na cidade
de Santos, durante este período.
Sobre o início do TAMTAM, relata NICÁCIO:
No processo de desconstrução do Anchieta, teve início em
setembro de 1989, um espaço de convivência coordenado pelo artista
plástico Renato di Renzo, que posteriormente vai assumir uma
característica autônoma, o Centro de Convivência TAMTAM. (1994, p.
168)
Diz a autora que, inicialmente, as atividades do Centro de Convivência TAMTAM
ocorriam dentro do hospital, nos pátios e, depois, em todas as alas, e configuravam-se
como momentos de compartilhar, trocar, encontrar, através de expressão corporal, jogos
dramáticos,(...) exercícios de respiração, toques, gestos, relaxamento (p. 168).
Logo, este movimento trouxe a premência da relação do dentro com o fora,
trazendo as seguintes indagações:
Como produzir condições para que os sujeitos de dentro se
reapropriem do mundo do qual foram excluídos?; Como emitir
mensagens, inventar espaços para que os de fora se confrontem com
essa realidade? (p.169)
276
O projeto TAMTAM surgiu, pois, dessa relação do dentro e do fora,
representada pela quebra dos muros do hospital Anchieta e os reflexos desse processo
para cidade de Santos e, posteriormente, para o Brasil.
Dentro deste projeto foi criado um jornal, veiculado internamente no hospital e
em bancas de jornal da cidade; grupos de produção em artes plásticas com realização de
exposições, como a que teve lugar no SESC-Santos; uma Rádio, feita por usuários e
profissionais do projeto, que, inicialmente, funcionava dentro do hospital e,
posteriormente, produziu programas em emissoras da cidade, com apoio de
patrocinadores, até tornar-se um grupo autônomo; uma produção em vídeo sendo o
primeiro um documentário revelando a própria realidade do Anchieta (...) apresentado em
vários pontos da cidade para reflexão, debate, e também nos festivais de vídeo (p. 174),
e parcerias que promoviam oficinas de trabalho para os ex-internos.
Como se pode perceber, toda essa produção tem claramente um movimento para
fora (estimulado pela abertura da instituição asilar), e, ao mesmo tempo, um
movimento para dentro, no sentido que a sociedade possa rever seus valores e
preconceitos.
Um dos pontos de convergência entre essa proposta e o Projeto Coral Cidadãos
Cantantes estudado no presente trabalho, está no fato de ambos servirem-se das
linguagens artísticas como instrumentos de transformação do indivíduo e da sociedade,
mas, sobretudo, na preocupação com uma produção artística de qualidade, para que isto
aconteça.
Ao relatar, por exemplo, a experiência do jornal, NICÁCIO explica que não se
tratava de atividade destinada a passar o tempo ou a oferecer entretenimento como o
277
que ocorre geralmente em práticas desenvolvidas em hospitais psiquiátricos pois, na
proposta, tinha-se a preocupação de realizar um jornal de verdade: havia reuniões de
discussão de como produzi-lo, qual conteúdo, escolha de entrevistas (...) era um produto
de qualidade, que buscava a comunicação: tinha arte gráfica, estética, era impresso como
jornal (p. 170).
Quanto ao trabalho com artes, a autora enfatiza o caráter do aprofundamento na
linguagem, caráter esse, também, encontrado nas propostas do Coral e oficinas do
Projeto Cidadãos Cantantes:
A arte tem para esse grupo uma dimensão fundamental,
sendo compreendida não como arte-terapia mas como instrumento
de enriquecimento dos sujeitos, de valorização da expressão, de
descoberta e ampliação de potencialidades individuais, de acesso
aos bens culturais. (p.170)
A respeito da experiência da Rádio, que foi, entre os projetos do TAMTAM, o de
maior visibilidade, a autora conta que, depois de iniciado o projeto dentro do hospital, foi
imperioso pensar a dimensão do fora: Era necessário sair do Anchieta, intervir
culturalmente na cidade: abrir os manicômios mentais, trabalhar pré-conceitos e
transformar valores (p. 172).
A autora diz, ainda, que a idéia da programação buscava, também, problematizar
a questão da diversidade, trazendo novas formas de olhar o mundo: mistura-se realidade
e fantasia, associa-se brincadeira e seriedade, magia e razão, se constroem personagens,
se inventam diferentes possibilidades de ser (p.173).
278
Como desdobramentos dessa experiência a autora afirma que o sucesso da Rádio
abriu grande espaço na mídia, com apresentações e debates em vários estados,
provocando com esse trabalho uma reflexão a respeito dos valores subjacentes às
experiências realizadas com portadores de sofrimento mental, no Brasil.
... os loucos são chamados, se tornam famosos, estão no
espaço social pelo produto que realizam, pela capacidade de
originalidade, pelas mensagens que expressam, pela qualidade
estética de seu trabalho; e esta imagem é um contraponto de
enorme alcance à da periculosidade, incapacidade de louco. (p.173)
Nota-se que intensificam os pontos de convergência entre este projeto e o do
Coral, pois ambos partem das mesmas premissas que têm, como pano de fundo, a idéia de
rever a relação da sociedade com a loucura e, por conseqüência, com as suas diferenças.
Pontualmente, os projetos aproximam-se pela opção de trabalho com a arte;
também encontram-se convergências na valorização do produto que ambos os projetos
fazem, ao considerar-se suas qualidades intrínsecas, tanto na forma, quanto no conteúdo;
os projetos, ainda, convergem na função de fazer pensar a sociedade, com a finalidade de
abrir os manicômios mentais’”, como provoca NICÁCIO (1994, p.172), ao discutir a
respeito da atuação da Rádio; e, ainda: na proposição de uma nova forma de olhar o
mundo, ao problematizar a diversidade; e por fim, na resignificação da imagem de
invalidez e incapacidade, associadas ao portador de sofrimento mental. Todos estes
pontos estão em plena sintonia com o projeto do Coral, como descrito nos capítulos 1 e 2.
A diferença fundamental entre as duas propostas é a questão da heterogeneidade do grupo
e do espaço físico onde essas atividades se desenvolveram. O Coral nasce dentro de um
279
espaço de cultura e como desdobramento do CECCO, que trabalhava com objetivo da
heterogeneidade, enquanto o TAMTAM, vive o processo de rompimento dos muros do
hospital psiquiátrico de dentro para fora, porém, ocupa os espaços do Hospital Anchieta
(nos pátios e nas alas) (p. 168) para suas oficinas e lida com a demanda dos internos e
ex-internos deste hospital como público-alvo de sua atenção (os sujeitos de dentro)
(p.169).
Pelos relatos de NICÁCIO é possível se depreender que a população principal que
atuava no projeto era de usuários (ou ex-usuários) dessa instituição e profissionais ligados
ao TAMTAM, excetuando a experiência da Rádio, que, em seus desdobramentos, aponta a
autora, acabou por abrir um espaço inédito para pessoas comuns e posteriormente jovens
do Colégio Objetivo (p. 172).
Nota-se que o trabalho com grupo heterogêneo é assinalado como um espaço
inédito dentro do projeto TAMTAM. Esta diferenciação se faz necessária para que se
entenda como se constrói a produção do Coral pela configuração de grupo heterogêneo
(como analisado no capitulo 3), e como se dá a relação com o Fora, no nível interno do
grupo e no contato externo com o público, convidado a fruir dessa produção.
O fato de a atividade do Coral, desde o seu início, ocorrer no CCSP é facilitador
dessa relação com o fora, uma vez que os freqüentadores vêm de vários locais,
podendo ou não ter vivido histórias de sofrimento mental ou internações psiquiátricas.
O projeto TAMTAM foi uma experiência ocorrida no mesmo período das
conquistas no âmbito da saúde mental no município de São Paulo (1989 a 1992),
280
abordadas no capítulo 1. O projeto Coral Cênico Cidadãos Cantantes tem vários pontos
em comum com o projeto TAMTAM, porém, se distanciam, uma vez que no TAMTAM a
experiência é construída de dentro de um processo de desinstitucionalização, ao passo
que o Coral partiu da experiência do CECCO, cuja estrutura foi criada a partir do
rompimento com o modelo asilar, pela convivência e pelo trabalho cooperativado,
calcado na diversidade interna dos grupos.
TEATRO NÔMADE (CIA. TEATRAL UEINZZ): CONVERGÊNCIAS COM A EXPERIÊNCIA DO
CORAL CÊNICO CIDADÃOS CANTANTES
Outra experiência que se aproxima do Projeto do Coral Cênico Cidadãos
Cantantes, é a da Cia. Teatral Ueinzz, por se configurar atualmente, segundo seu
coordenador, como grupo autônomo voltado à produção de espetáculos, que têm na
composição de seu elenco, usuários de serviços de saúde mental, além de terapeutas,
atores profissionais, estagiários de teatro, músicos, e outros interessados (PELBART,
2003, p.150).
O trabalho deste grupo realiza-se em três planos, e acredita-se serem esses,
também, os campos de atuação do Coral Cênico: o plano estético, o plano terapêutico e o
plano ético. O plano estético se por ser um trabalho que envolve atores incomuns
(portadores de sofrimento mental), em que há espaço para o improviso, o erro e para as
singularidades, trazendo uma espécie de não-representação do ator e cumplicidade com o
espectador, afinado com tendências contemporâneas de pesquisa teatral. O plano
terapêutico dá-se pela possibilidade de transformação humana por meio da experiência da
281
expressão estética teatral, em sua singularidade e característica coletiva; quanto ao ético,
este se dá por lidar com as questões da diferença com respeito, buscando potências e
espaços possíveis para a existência de vidas singulares.
Para falar da experiência dessa companhia recorreu-se aos escritos de Peter Pál
Pelbart, coordenador geral do projeto, e às informações contidas no site do grupo.
Cia. Teatral Ueinzz
A Cia. Ueinzz, tem oito anos de existência e três espetáculos realizados: Ueinzz-
Viagem à Babel (1996-97) , Dédalus (1997-2000) e Gotham SP (2001-2005). É dirigida
por Sérgio Penna e Renato Cohen (falecido 1 ano), e conta com música ao vivo, de
Wilson Sukorski.
Nos 8 anos de existência, apresentou-se nos Teatros Oficina, Centro Cultural São
Paulo, Tuca, Tusp, Centro Cultural Elenko KVA, Sesc Pompéia, além de ter participado
em vários festivais de teatro, como os de Curitiba, Porto Alegre e Fórum Cultural
Mundial, entre outros locais (http://ueinzz.sites.uol.com.br/home.htm Consulta realizada
dia 14/08/2005).
A companhia se originou no Hospital-Dia A Casa em São Paulo, em 1997,
sendo muitos atores usuários desta casa. Em 2002, desvinculou-se dessa instituição e de
qualquer contexto hospitalar (PELBART, 2003, p.150).
Um texto escrito pela jornalista Mariangela Alves de LIMA (2000), recolhido do
site da Cia. Ueinzz apresenta o seguinte comentário:
282
Na divulgação que a Cia. Teatral Ueinzz faz do seu segundo
espetáculo, uma cuidadosa ênfase sobre a natureza artística do
espetáculo Dédalus. Trata-se de uma criação coletiva feita por artistas
"profissionais" fazendo um tipo de teatro contemporâneo "no limite entre
a arte e a vida (...) Porém, o que torna especialmente interessante o
trabalho desse grupo, é que se trata de um amálgama de artistas
profissionais e artistas sob os cuidados terapêuticos do hospital
psiquiátrico. (14/08/2005)
A jornalista chama atenção para o caráter terapêutico como sendo o principal
diferencial deste trabalho, propondo um sentido mais amplo para esse alcance
terapêutico.
(...) Provavelmente um trabalho "terapêutico" tanto para os
profissionais da área da saúde e do teatro que o estimularam quanto para
os usuários do serviço de saúde mental que se expressam por meio de
uma representação teatral. (14/08/2005)
Sobre este alcance terapêutico proporcionado pelo trabalho artístico, Peter
PELBART justifica a razão da proposta de criação de um teatro, dentro de um Hospital-
Dia:
A experiência mostrou o valor de uma proposta voltada
prioritariamente para a arte e a criação: ao dar suporte às diferenças e
singularidades subjetivas que a sociedade reluta em acolher, o dispositivo
teatral revela sua dimensão ética e seu alcance vital. A natureza coletiva,
mágica e imantada do teatro oferece um enquadre protegido para toda
sorte de invenções e improvisações, mas também é capaz de captar e
socializar universos culturais diversos, linguagens singulares,
constelando-os com elementos míticos ou contemporâneos. Com isto,
283
cada qual é convidado a sair do isolamento e da impotência a que se via
confinado, com seus recursos pessoais, seu próprio corpo, sua postura,
sua voz, seu repertório gestual e sensorial, compondo uma personagem e
compondo-se com os demais num enredo coletivo. O ritual teatral pode
ser um recurso precioso no resgate das possibilidades de cada sujeito, nos
vários registros que a crise soterrou. (14/08/2005)
Nota-se a ênfase dada à produção artística do grupo, e, ao mesmo tempo, a
possibilidade do alcance terapêutico, e a dimensão ética contida no trabalho.
Sob coordenação geral de Peter Pál Pelbart, o Projeto Ueinzz é fruto de um
esforço coletivo e também de parcerias bem-sucedidas, tais como a estabelecida com o
Centro Cultural Elenko, ou com o curso de Comunicação e Artes do Corpo, da PUC-SP
(PELBART, 2003, p. 150).
Um ponto de aproximação com o coral está na presença de olhares diferentes
dentro da equipe.
PELBART dá destaque para o trabalho que acontece na Cia. Teatral Ueinzz com
equipe multidisciplinar, por trazer uma outra escuta, semelhante à de um músico que
percebe um som contínuo emitido por um dos participantes como sendo o som
fundamental, para se construir a trilha musical da peça, e esse som se transforma no
mantra Ueinzz, ou a de um outro olhar, como o de um diretor que incorpora o delírio na
cena, ou propõe que uma ação cotidiana de atravessar uma rua se transforme numa ação
teatral, a respeito de uma travessia em busca da palavra mágica Ueinzz... e faz que o
autor-terapeuta exclame ao valorizar a presença de um olhar estrangeiro:
284
Que bom! Alguém escuta o que não escutamos, e alguém vê o
que não vemos, que olhar é este que transfigura tudo que toca? (1998, p.
64)
A equipe do Coral, como já se viu, também é composta por artistas e terapeutas. É
interessante notar o comentário que Tatiana BICHARA (psicóloga e preparadora corporal)
faz da intervenção de Thaia (diretora cênica) em relação ao trabalho de Michael no Coral
Cênico.
E eu me lembro da Thaia tendo uma atitude diferente com ele da que eu,
por exemplo, tinha que era muito mais compreensiva, tinha um outro olhar. E ela
falava, vamos Michael, fala direito que eu não estou te ouvindo. Repete,
fala mais alto. Eu acho que teve um movimento dela de incentivar (...) Eu acho
que foi muito saudável para o grupo. (24/05/2005)
O que se vê na cena da Cia. Ueinzz é a surpresa, o não previsto, a incerteza se o
ator vai falar ou não o texto, a vida por um triz, e cada minuto sendo vivido como um
milagre. PELBART ressalta o quanto essa experiência teatral pode ser realimentadora da
vitalidade buscada pelo próprio teatro: um misto de precariedade e milagre, que outra
coisa busca o teatro, afinal? (PELBART, 1998, P.65).
A mistura de papéis, entre técnicos e usuários, também é valorizada pelo autor
nessa experiência. Durante a peça todos são atores, não havendo necessidade de se fazer
tal distinção.
Esta também é uma meta buscada pelo Coral Cênico, com a diferença de que, no
Coral, se trabalha, ainda, com a população geral, que se mistura aos técnicos e aos
usuários.
285
Um exemplo de como os papeis se confundem na dinâmica teatral é dado por
PELBART, quando comenta que, numa apresentação da Cia. Ueinzz, o terapeuta (ele
próprio) havia sido assimilado pela platéia como ator-louco, enquanto o louco (um
usuário), era identificado como terapeuta-ator (p.65). Esta tentativa de se diferenciar os
papéis, ou identificar a população-alvo e a população geral, também ocorre em
apresentações do Coral. Durante a apresentação no MASP, no dia da Luta
Antimanicomial, um usuário do CECCO perguntou para Márcia Novaes, quem era
paciente ali, e a terapeuta, em tom de brincadeira, e propondo um jogo-lúdico, responde
que este era o mistério (18/05/2005).
PELBART diz que o acontecimento proposto pelo teatro induz a
repensar certas fronteiras entre saúde e doença, potência e impotência,
vitalidade e sofrimento, arte e inadequação (...) ou a repensar a relação
entre as linguagens menores e maiores, entre as dissonâncias vividas e a
pesquisa estética, ou entre as derivas e as identidades, mesmo
profissionais. (1998, p.66)
O autor continua, esclarecendo que dois vetores estão atuando nessa vivência:
um, o do teatro e da arte, com sua magia; o outro, o da vida, que se apresenta em situação
de limite. Reconhece a loucura como sofrimento e dor, mas considera que nela há
também um embate vital e visceral, em que entram em jogo questões da vida e da
morte, da razão e da desrazão, da identidade e da diferença, do poder e da existência,
para concluir que a arte bebe dessa fonte dezarrazoada, principalmente a arte
contemporânea, que procura romper os limites da própria arte. (p. 66)
286
Nessa perspectiva, o autor propõe que a relação da arte com a vida em situação de
limite, traz um ganho para a arte, como pesquisa estética de uma não-representação
teatral perseguida na contemporaneidade, mas sobretudo, para a vida, não negando o
alcance terapêutico deste trabalho, no sentido que, legitimado pelo teatro, valor às
potências e não às deficiências dos participantes.
PELBART chama a atenção para a ritualização inclusiva das lógicas singulares
que este teatro propõe, afirmando que isso serve ao trabalho terapêutico, ao dar
visibilidade e legitimidade àquilo ou àquele antes desprezado, propondo uma inversão no
jogo das exclusões sociais (p. 66).
A aproximação com a proposta do Coral, também, se quando o autor considera
este teatro como um canteiro de obras das subjetividades dos participantes,
(... ) onde cada um possa reconhecer-se como um ator de si mesmo, onde
cada subjetividade possa continuar tecendo a si mesma, e incluindo essa matéria
prima que lhe pertence, retrabalhando-a: subjetividades em obra em meio a uma
obra coletiva. O teatro como um canteiro de obras a céu aberto. (1998, p.66)
E é interessante a ligação que o autor faz com obra, no sentido do labor, do
trabalho, da técnica, da implicação, do suor, do cansaço...; é o que se propõe no Coral
também. Uma busca do investimento pessoal para uma construção coletiva.
PELBART afirma que esta obra transpassa o campo da estética, da clínica, para
atingir o campo da ética, ao estabelecer uma certa relação com a diferença, que o autor
diz não se tratar de tolerância, que gera o enclausuramento, onde cada um se isola na sua
287
diferença dada, fazendo [dela] uma identidade excêntrica. Trata-se, sim, de um jogo
vital, proporcionado pelo jogo lúdico do teatro, cuja regra básica é que cada cristal de
singularidade, por exemplo um UEINZZ, possa ser portador de uma produtividade
existencial inteiramente imprevista, mas compartilhável (p. 66).
Esse compartilhar, que esta Cia. e o Coral propõem, é facilitado por se tratar de
linguagens artísticas essencialmente coletivas, que estimulam a interação com o outro.
Outro ator, outro cantor, outro espectador.
Outro ponto de convergência é a criação de si que existe em ambas as propostas,
em que as personagens ou performances estão ligadas intimamente a quem as trouxe.
PELBART conta que cada personagem foi construído a partir dos pacientes ... a
ponto de ser praticamente impossível passar o papel de um para um outro (1998, p.67).
E esclarece:
A criação de si dentro do trabalho acontece no momento que cada
um contribui com o que é, e não com algo que lhe é atribuído. (p. 67)
Esta dinâmica também ocorre no Coral, pela valorização dessas singularidades,
como os solos realizados por Márcio ou por César, ou a intervenção de Dirceu como o
profeta.
PELBART, porém, alerta para a diferença que se estabelece entre esta forma de
trabalho teatral e o psicodrama, pois o teatro faz esses traços (dramas pessoais),
conectarem-se com personagens da história, do mito, da literatura, com elementos
288
cósmicos ou outros elementos, possibilitando, assim, o salto para a arte, pois esses traços
são arrastados para longe de si mesmos, (...) fazendo-os reverberarem com a cultura
como um todo e experimentarem variações inusitadas (p.67). Segundo o autor, quando
ocorre essa transmutação, o teatro oferece aos pacientes um campo de metamorfose e
de experimentação de um potencial insuspeitado (p. 67).
PELBART diz que o teatro oferece um plano de composição e imanência, onde
tudo ganha consistência desde que passe por essa laboriosa metamorfose mágico-poética
(p.68), ou seja, transforma a dor, histórias pessoais em obra, cria distanciamento, como
aquele vivido por Herbert, por ocasião da sua composição feita com o Coral Cênico
Cidadãos Cantantes e que relatava sua experiência como interno psiquiátrico.
PELBART lembra que, ao fim do primeiro espetáculo da Cia., os atores eufóricos
diziam: estamos curados! E pondera ao se incluir na cura:
O teatro pode ajudar a curar-nos da crença generalizada,
partilhada pelos pacientes e inúmeros profissionais da área de saúde
mental, na suposta impotência (...) ou na separação entre clínica e cultura,
(...) como se a arte não fosse ela mesma a um tempo crítica e clínica,
como se a arte não fosse ela mesma já um dispositivo, como se um olhar
de um diretor de teatro, a escuta de um músico, não fossem, na sua
exterioridade em relação ao campo clínico tradicional, e na possibilidade
de assistirem a nascimentos que nosso olhar viciado abortaria,
poderosamente clínica, e no mais alto grau. (...) Curar-nos do cacoete de
reduzi-los a doentes, papel que muitas vezes, de maneira contraditória, é
assumido pelos próprios pacientes. (p. 68)
289
A discussão sobre a cura, ou seja, entre sanidade e doença, está muito presente
ainda hoje no Coral (vide entrevista coletiva). Porém, existe uma diferença entre
assumirem um estado de sofrimento mental e serem absolutamente passivos enquanto
cidadãos. Percebe-se que a maioria dos integrantes do Coral, ao se envolver com o
trabalho artístico, dá maior importância à sua potência do que às suas limitações.
O terapeuta-ator diz que o teatro pode ajudar ( e isso é vital!) a retirá-los da
situação de imutabilidade, para estarem abertos à transformação, às mudanças.
Sobretudo a mudança do olhar sobre os atores e da mudança que nos separa deles
(PELBART , 1998, p.68).
Podem ser observados muitos pontos de convergência com a experiência do
Coral, porém, é importante destacar que, enquanto este se originou num espaço público
de cultura (o CCSP), aberto à população geral e sujeito às intempéries das mudanças
administrativas, a Cia. Ueinzz, teve sua origem dentro de um hospital-dia particular, o
Hospital-Dia A Casa, em São Paulo, fazendo que o perfil de seus participantes fosse
composto, predominantemente, por pessoas que, por algum motivo, estivessem em
situação de vulnerabilidade em saúde, terapeutas e profissionais ou estagiários de
diferentes áreas artísticas, demonstrando que esse labor teatral e de construção de vidas
são constantemente realimentados pelas áreas da saúde e da cultura.
290
OFICINA DE MÚSICA NO ESPAÇO LÚDICO TERAPÊUTICO ELT
A última experiência com que se traça um paralelo com o Projeto Coral Cênico
Cidadãos Cantantes, é o trabalho de uma oficina de música com crianças e adolescentes
que freqüentavam o projeto Espaço Lúdico e Terapêutico (ELT), do curso de Terapia
Ocupacional da USP- SP. A partir do relato feito por GALLETTI (2004), uma das
terapeutas envolvidas no projeto, pretende-se pontuar as transformações qualitativas que
ocorreram depois que essa atividade foi transferida de um espaço de saúde para um
espaço artístico, e num outro momento, a importância da produção como estimuladora e
desafiadora para o grupo. A possibilidade da realização da tarefa conjunta desloca o foco
da terapia e, em sentido mais amplo, esta ação conjunta se torna terapêutica.
A passagem que se dá entre a implantação dos CECCOs em São Paulo e o
nascimento do Coral Cênico no CCSP, e, a importância dada pelo Projeto Cidadãos
Cantantes à construção e apresentação de uma produção artística, trará pontos de contato
importantes para se refletir sobre a prática do Coral
O ELT foi criado em 1996, inserido nos projetos de assistência do curso de
Terapia Ocupacional da USP. Caracteriza-se por ser um espaço de assistência, de ensino
e de pesquisa, atendendo crianças e adolescentes com distúrbios globais de
desenvolvimento psicoses, autismos e deficiências mentais. (GALLETTI, 2004, p. 86).
Durante o ano de 1996, em decorrência da intervenção do PAS, e o conseqüente
deslocamento que muitos profissionais foram obrigados a fazer de seus equipamentos
originais para outros lugares, o curso de Terapia Ocupacional da Universidade de São
Paulo se prontificou a receber um grupo de profissionais para iniciar um novo
291
engendramento, pela parceria entre este curso e a Secretaria Municipal de Saúde de São
Paulo. Segundo a autora, o ELT nasceu como uma das propostas desenvolvidas nesta
parceria, e que, inicialmente, tinha como objetivo receber crianças e construir um lugar
para brincar, um espaço que resgatasse e estimulasse o lúdico na vida das crianças
diferentes (p. 86).
GALLETTI esclarece que desde o início este projeto foi criado para propor aberturas
para o exterior da instituição.
Para nós do ELT, as saídas da instituição e os passeios
acompanhados não têm, como objetivo, a adaptação a um certo modelo de
circulação, nem a domesticação da estrangeiridade, mas a possibilidade
de desfazimento das identidades: normais, loucos, deficiêntes e
terapeutas. (2004, p. 99)
Ao falar a respeito da importância da circulação dos usuários por outros espaços, a
experiência do ELT aproxima-se da proposta do Coral Cênico que, na época de sua
implantação se configurou como uma possibilidade de extrapolar os próprios limites dos
CECCOs. GALLETTI esclarece que este movimento é necessário para que a instituição
ofereça saídas para fora dela mesma, pois assim estaremos contribuindo com uma real
desinstitucionalização dos nossos usuários (p. 100).
O grupo que se organizou em torno da oficina de música no ELT, apesar de não se
configurar como um grupo heterogêneo, pois inicialmente tratava-se de um grupo de
apenas 8 a 10 integrantes, composto exclusivamente por crianças e adolescentes com
diagnósticos de psicose, autismo ou deficiência mental, com o desenvolvimento do
trabalho, como narra a autora, mostrou transformações e saltos qualitativos, do ponto de
292
vista da terapêutica, conseguidos, principalmente, quando se optou em realizar o trabalho
fora do ambiente de terapia (circunscrito ao espaço físico da TO/USP), e passou a ser
realizado na Oficina de Música Sonia Silva.
Outro salto identificado pela autora se deu quando o grupo resolveu gravar um
CD com as músicas trabalhadas durante o ano. GALLETTI diz que é nesse ponto do
desafio da materialização da produção musical do grupo em um CD, que os papéis
desempenhados por técnicos, professores-artistas e pacientes, se embaralharam, e que o
grupo se uniu na realização de algo que não tinha por proposição específica a reabilitação
dos pacientes. Porém, à medida que o projeto se implantava e se delineava, com efeito,
foi exatamente isso que se deu. A clínica foi potencializada pelo envolvimento no projeto
artístico.
Sobre o processo de trabalho, GALLETTI relata que, no início da atividade, ainda
dentro da sala de atendimento da TO/USP, o grupo criou ritmos singulares de aulas. A
improvisação foi parceira nos exercícios com sons, ruídos e silêncios estranhos e os
pacientes foram, aos poucos, transformando-se em aprendizes de música (p.103).
Porém, a autora aponta que, depois de um ano e meio de trabalho com essas
oficinas, aqueles adolescentes ainda não haviam quebrado o muro terapêutico, não eram
considerados como aprendizes comuns de música, o que veio a ocorrer com a
mudança do local da atividade para a escola de música de Sonia Silva, e destacando a
importância deste outro lugar, comenta: a sala dos encontros não era mais uma sala de
atendimentos terapêuticos (...), mas um estúdio com piano, teclado, guitarra, bateria,
violão, violoncelo, microfone, gravador e amplificador (p. 109).
293
Por um lado, este movimento teve conseqüências para as crianças, ao poderem
recuperar um lugar de aprendizagem (pois se tratava de uma escola) e não mais se
limitarem a freqüentar apenas um lugar de tratamento. Por outro lado, também implicou
em reconhecer a escola como instituição, o que lhe permitiu experimentar outros devires
e encontros, como os presenciados na sala de espera da escola, compartilhada por outros
alunos e pais, ou no entra e sai dos músicos com seus instrumentos, como explica
GALLETTI (p.110)
Até aqui, é possível notar muitas semelhanças no percurso dos dois projetos: a
busca por um espaço de cultura, e não da saúde, e a procura por ultrapassar a terapia e
transitar no terreno do aprendizado, de um saber-fazer; porém, no caso do ELT, o que o
diferencia do projeto do Coral Cênico é que se trata de um trabalho com grupo mais
homogêneo, pela faixa etária (adolescentes) e pela situação de saúde: todos com alguma
forma de comprometimento. A possibilidade da mistura e da convivência é estabelecida
mais entre terapeutas, professores-artistas e pacientes, do que entre as crianças do ELT e
as outras crianças freqüentadoras daquela escola de música.
GALLETTI ressalta que estes encontros com o Outro se davam pelo próprio
ambiente dessa escola: sala de espera, movimentos de alunos e professores entre as aulas,
painéis de fotografias dos grupos da escola, diferenciados apenas pelo nome de cada
grupo (p. 110).
Refletindo a respeito da experiência da oficina, como plena de sentido e
significado dentro de uma dada linguagem artística bastante enriquecedora para a clínica,
GALLETTI afirma que os campos da arte ou do trabalho não podem estar a serviço do
294
dispositivo terapêutico; ao contrário, os terapeutas deveriam ativar, cada vez mais, a
potência desses vetores na vida dos sujeitos atendidos (p.112).
O caráter de atividade terapêutica que originou essa oficina e
que sobrepôs e subordinou, algumas vezes, o caráter artístico da música,
foi, na criação do CD, totalmente destronado, liberando o grupo para
transbordar-se em musicalidades. (p.114)
O termo intercessor clínico, utilizado pela autora para caracterizar a potência
das oficinas, indica um transitar por campos distintos, sem que um se sobreponha ao
outro. No caso da oficina de música do ELT, a música e a clínica estão presentes. É o
artístico potencializando a clínica, dessa forma, a autora diz que interessa privilegiar não
o caráter terapêutico da música, mas o que ela pode criar e, nesse processo de criação,
percutir e interferir no processo terapêutico (p.115)
Infere-se que um dos pontos que possibilitou atingir esse outro campo da música,
que vai além da terapia, foi a realização do CD, quando a idéia do processo e do produto
aparecem misturadas, configurando-se como um registro sonoro de um processo de
trabalho, que, no próprio fazer ia sendo recriado, a partir do mergulho no campo artístico
e a conseqüente deserção do campo da saúde.
E destacando a possibilidade de comunicação e outros ganhos terapêuticos que
surgiram na experiência de lidar com o outro pela música, a autora comenta:
O plano da música tornou possível o aparecimento de novas
percepções e de novos afetos. (...) o grupo embarcou num devir musical
crianças que não se falavam entre si encontraram outros elos singulares
de comunicação na composição musical, puderam criar sons conjuntos,
295
escutar-se por meio de instrumentos e embarcar no ritmo do Outro.
(p.115)
É nesse plano da realização artística plena que a atuação do Coral Cênico
Cidadãos Cantantes marca sua existência. Não se trata de um lugar de tratamento, mas de
um lugar de criação e de trabalho, considerando a música, não como arte-terapia, mas,
sem dúvida, possuidora de grande alcance terapêutico.
Entende-se que a produção artística no seu limite, tanto na realização de uma
apresentação pública, no caso do Coral, quanto no registro sonoro da produção, no caso
do grupo do ELT, são fundamentais para se atingir o propósito da atividade como
potencializadora de vidas e transformadoras de papéis, como conclui GALLETTI diante
dessa experiência:
(...) o grupo incluindo não as crianças e adolescentes, mas
também os terapeutas, os estagiários e os musicistas dava sinais que já
não se tratava, de fato, de um grupo terapêutico, mas sim da constituição
de uma banda de musicalização, isto é, o grupo nesse processo de
composição artística, pôde enfim, estabelecer, exclusivamente, encontros
musicais. (p.113)
296
ARTE E DIFERENÇAS NA REGÊNCIA DO CORAL CÊNICO CIDADÃOS
CANTANTES
O REGENTE COMO LÍDER MUSICAL
No Coral Cênico, o fato de se dividirem funções não exime a responsabilidade do
regente como autoridade musical; o que se quer é ver aflorarem, e valorizar, as várias
manifestações de musicalidade dos cantores e, se possível, aproveitá-las no repertório do
grupo. É a atuação de líder musical da comunidade, como colocado pelo maestro Samuel
KERR quando diz: Antes de ser chamado de regente ou maestro, identifique-se como
líder (1989, p.15).
APRENDIZADO MUSICAL
O aspecto do aprendizado musical não é negligenciado, porém, não se tem uma
preocupação em formar músicos e, sim, em abrir caminhos para que a vivência musical
possa acontecer de forma plena. A prontidão rítmica, afinação e qualidade da emissão
vocal ligada à respiração são trabalhadas em vários momentos do ensaio. Esses
momentos são preciosos para se chamar a atenção à percepção musical do grupo, porém,
é preciso estar atento, também, para que algo neles se transforme durante este trabalho,
para que haja recriação e não simples repetição.
297
GESTOS
Os gestos de regência para esse grupo se confundem com a atitude do líder, esta,
mais que os gestos convencionais do regente à frente do coro, é que serão estimuladoras
das atitudes musicais nos cantores. Não se trata de invenção de novos gestos pelo regente,
mas do entendimento que o grupo tem. Tais gestos podem não se restringir ao uso das
mãos, mas requisitar o envolvimento do corpo como um todo, do olhar à plasticidade
corporal, do regente que dirige o grupo com as suas emoções, do regente-líder que canta
ao lado do grupo e se emociona com ele.
No Coral trabalha-se com o acompanhamento do violão, executado em geral pelo
próprio regente, pois se canta bastante em uníssono ou com poucos divises de vozes.
Existem, também, alguns músicos no grupo que eventualmente o apóiam com seus
instrumentos (flauta, piano, violão ou percussão), ficando o regente, nesses momentos,
livre para reger. Na verdade, trata-se de um grupo que, pela proposta cênica, acaba por
trabalhar a autonomia do cantor, de maneira a não depender tanto da regência.
Samuel KERR, como professor, sempre instigou seus alunos de regência coral para
a pesquisa de seus gestos, para a reflexão sobre a importância desse gesto e as
conseqüências que ele tem na relação do regente com os seus cantores. Quando KERR
traça um paralelo entre o gesto do regente à frente do grupo e o gesto do arranjador
que compõe as vozes (1989, p.10), num processo que se assemelha ao do compositor na
elaboração de um projeto sonoro viável ao grupo, argumenta:
298
Assim como a canção é razão ou causa do gesto, o arranjo, que
surge da canção, num determinado momento, num determinado contexto,
num determinado coro, provocará um gesto que existirá a partir da
consciência do momento, do conhecimento do contexto, e será
compreendido pelo coro. Um gesto imprevisível, irrepetível, único, talvez
até desnecessário, pois ele é o mesmo gesto que faz o arranjo... (p. 11).
Este contexto, ao qual o maestro se refere, será fundamental no entendimento dos
gestos apropriados para a condução de um trabalho como o do Coral Cênico Cidadãos
Cantantes.
ESCOLHA DO REPERTÓRIO E TRABALHO COM O TEXTO
Uma vez que a escolha das músicas (como se viu no capítulo 2, quando se
tratou da montagem do programa) é dividida com o grupo, busca-se uma identidade do
cantor com o que ele canta, dessa forma, o trabalho na compreensão do texto é
fundamental, para que haja apropriação desse repertório pelo grupo, pois, o texto das
canções, acrescido de cenas e poesias, passa a ser o fio narrativo da montagem. Pelas
características do grupo, é importante que o texto seja curto e de fácil memorização. À
medida que o grupo foi se tornando mais heterogêneo, este aspecto melhorou muito,
podendo-se trabalhar com textos mais longos e ousar mais no arranjo das vozes. Na
elaboração dos arranjos, utiliza-se muito o recurso de intercalar solo e coro, ou dividir as
frases musicais entre os diferentes naipes, para, assim, não sobrecarregar os cantores com
textos muito extensos. Todo esse movimento confere propriedade de interpretação ao
material musical que está sendo trabalhado.
299
DIFICULDADES COM O GRUPO
Tanto PASQUALINI quanto ANZAI relatam situações difíceis que viveram com o
grupo, pois não tinham formação específica na área da saúde mental, mas que a
sensibilidade desenvolvida como regente, de saber lidar com música e com pessoas, é que
apontou soluções para vários desses momentos, e trouxe, com isso, um aprendizado tanto
para os cantores quanto para os regentes, fazendo repensar as especialidades das atuações
nas áreas da saúde e da cultura.
Tinha aquela coisa de chegar no ensaio e alguém contar um
drama muito grande que tinha passado e era uma coisa que todos ficavam
abalados. Mas então vamos lidar com isso cantando, e a dinâmica do
ensaio servia para soltar os bichos. Porque cantando a gente acaba
soltando mesmo. De qualquer forma era um bom exercício, para eles e
para mim. (PASQUALINI, 2005)
Sente-se neste grupo que as emoções estão sempre à flor da pele, então se busca
reverter as situações difíceis para outro lado, o da positividade. Não é negar a dor, mas
tentar assimilá-la e, posteriormente, superá-la.
Passados esses momentos, o grupo todo se mostra mais maduro, revelando um
grande poder de solidariedade e convívio com as diferenças. Esta transparência faz que
as relações sejam mais autênticas. Em algumas situações lidar com música foi a
solução, mas em outras, o silêncio era o mais importante. O respeito que o grupo
demonstra não é só pelo outro indivíduo, mas pelo valor atribuído a esse trabalho.
300
AS DIFERENÇAS
Ao levantar algumas dificuldades que encontrou, como regente, no início deste
trabalho, ANZAI citou o agrupamento de pessoas com diferentes diagnósticos; as
dificuldades dos cantores quanto ao entendimento das propostas colocadas por ele,
quanto a exercícios de relaxamento, respiração e memorização de texto. Sua resolução foi
que não faria um trabalho musical, pois não era um trabalho especificamente de canto
coral, e que não era possível exigir muitas coisas técnicas.
PASQUALINI cita especialmente o tempo, como a grande diferença do trabalho
com eles em relação a outros coros. A descontinuidade de um ensaio para outro, as
intercorrências de algumas brigas entre os integrantes; porém, em relação ao aspecto da
entrega e da disponibilidade para o trabalho, ela destaca como uma diferenciação positiva
do grupo em relação a outros, aproximando essa disposição a das crianças:
É uma disposição quase infantil, e que encanta.(...) Para mim, é
essa coisa das pessoas não terem certas barreiras que a gente tem e que as
crianças geralmente não tem... Não que a gente infantilizasse o grupo, de
jeito nenhum, mas quando você propunha alguma coisa, dificilmente
você via alguém torcendo o nariz. Às vezes, torcia depois de ter
experimentado, mas foi e fez. Essa disponibilidade é um pouco diferente
de outros grupos. (2005)
301
HETEROGENEIDADE E CRIAÇÃO
Nota-se na visão dos regentes entrevistados, que as diferenças expressas na
heterogeneidade do grupo pedem outros caminhos para se atingir os objetivos musicais,
porém, para além das dificuldades, parecem potencializa-las em criatividade e
dinamismo, fazendo resultar em uma disposição e entrega não tão comum em outros
grupos.
A heterogeneidade cria, pelos encontros e descobertas, mas também pelos
embates e conflitos, uma maneira de cantar e se relacionar com as pessoas, trazendo um
perfil de coro que considera e trabalha com as diferenças, buscando uma harmonia
nascente dessa diversidade.
Aquela coisa morna que às vezes acontece em coro, que você não
agüenta mais, nunca tive com esse grupo. Era um desafio para mim. Essa
coisa de um dia responder e outro não, nunca foi monótono, um tédio.
Sempre a resposta ao ensaio era uma surpresa. (PASQUALINI, 2005)
Sobre esta realimentação que acontece entre regente e coro, o maestro ZANDER
(1985) em seu livro sobre Regência Coral, diz que o entusiasmo do grupo entusiasma
também o regente (p.162).
SELEÇÃO DE CANTORES
A prática muito comum no meio coral de selecionar cantores pelo seu talento
musical (ou dispensá-los, caso não o tenham), é impensável dentro do Coral Cênico, pois
302
se configura como um contra-senso em relação à proposta de inclusão e de trabalhar com
as diferenças. Para participar do Coral Cênico é necessário ter a possibilidade da
expressão vocal, gostar de música e se afinar com a proposta de trabalho com grupo
heterogêneo. As conquistas musicais vêm com o tempo.
Ninguém é dispensado no Coral Cênico pelo tipo de voz que tem; salvo nos
momentos em que algum cantor possa estar passando por uma crise, a pessoa sempre é
convidada a participar, em qualquer situação.
ORIENTAÇÃO VOCAL PARA SE CHEGAR A HARMONIA CORAL
Antes de dizer como cantar, escute como cantam.
(KERR, 1989, p.28)
No Coral Cênico, como em qualquer outro coro, também, se busca uma unidade
sonora pelo trabalho de orientação vocal, por meio do qual se constituirá o timbre do
grupo. São realizados exercícios vocais em vocalises e exercícios para se cantar mais
afinado, sempre envolvendo a escuta do outro. Atualmente, o grupo já consegue se
escutar melhor e, com isso, ganhou em afinação. A possibilidade de se cantar um trecho
musical na dinâmica piano, ou adequar a voz ao ambiente acústico onde se está
cantando, respondendo ao gesto do regente, são conquistas recentes do grupo.
ZANDER (1985) afirma que, pelo fato de um coro compor-se de diferentes vozes,
dos mais diversos integrantes, (...) é importante que haja uma educação da voz para
303
unificar as discrepâncias vocais dos cantores. Esta educação faz com que o coro adquira a
sua sonoridade característica, seu timbre especial e potência sonora (p.204).
Nota-se que o enfoque dado por este autor está coerente com a perspectiva do
canto coral tradicional (e trata-se de uma entre as várias possibilidades de coro), em que a
homogeneidade é fundamental, e uma das estratégias para atingir este fim está na
educação vocal. No caso do Coral Cênico, trata-se mais de uma orientação que visa à
saúde vocal, do que da busca por uma homogeneidade sonora. O timbre do grupo, dessa
forma, virá da resultante das diferentes vozes, e quanto à afinação, é um percurso que se
faz passo a passo, durante os ensaios, na busca de um aumento na percepção musical de
cada integrante.
Por vezes, a vontade de cantar faz que a emissão das vozes de alguns venha com
maior força que a necessária para a realização da música, ou mesmo, que se privilegie
uma interpretação teatral, ficando em segundo plano a qualidade vocal, porém, são
casos isolados que, no dia-a-dia dos ensaios, se procura resolver.
CONVIDAR A CANTAR
No Coral Cênico, onde todos são convidados a participar, aceita-se quaisquer
tipos de dificuldades musicais, desde que os indivíduos que as tenham estejam motivados
a integrarem-se ao grupo e trabalharem desejando ultrapassar seus limites. Caberá ao
regente trabalhar musicalmente estes indivíduos, de forma que eles possam entrar em
sintonia e se harmonizar no grupo.
KERR, ao orientar o regente, recomenda:
304
Convidar a cantar! Eis aí uma bonita função para o seu gesto!
Valorizar sempre o menor dos resultados. Os resultados não efetivos,
trate-os com o maior carinho, pois antes de serem erros são indicadores
de caminho até a compreensão do que você pretende ou do que a partitura
pede. (1989, p.19)
É interessante notar que quanto à desafinação vocal, aspecto que tem forte relação
com fatores emocionais e psicológicos (SOBREIRA, 2002), o Coral Cênico, que se
configura como um grupo aberto a portadores de sofrimento mental, não apresenta
muitos casos graves. Pode-se sugerir que a própria acolhida afetiva, e o respeito aos
tempos individuais que se tem neste grupo, sejam fatores que permitem ao indivíduo ter o
relaxamento necessário para se afinar com o restante do grupo.
FORMAÇÃO DOS REGENTES
Chegou o momento de dizer que os três regentes que, vindos por caminhos
diversos, permaneceram por mais tempo à frente do Coral Cênico Cidadãos Cantantes
(ANZAI, PASQUALINI e o autor dessa Dissertação), tiveram sua formação no Instituto de
Artes da UNESP, tendo sido contemporâneos de curso, e alunos de regência coral do
maestro Samuel Kerr.
Sobre essa coincidência, PASQUALINI argumenta que os regentes que passaram
por essa formação, aprenderam a escutar. Escutar as diferentes demandas da
comunidade e das pessoas, e, sempre que possível, transformá-las em música.
305
Não é coincidência. Não conheço outra escola que tenha dado
esse experimentalismo que tivemos (...) Eu tinha trabalhado bastante
com coro antes de entrar na UNESP, mas esse jeito de lidar com as
coisas, de ter esse jogo de cintura um pouco maior, foi no trabalho com o
Grupo do Coral da UNESP que eu tive. (2005)
BENEFÍCIOS AOS REGENTES
ANZAI e PASQUALINI comentam, respectivamente, a respeito do aprendizado como
regente que tiveram, quando estavam à frente deste grupo:
Então, estávamos sempre atentos para mudar o estilo do ensaio
na hora, às vezes um pouco mais duro, às vezes um pouco mais
brincalhão... Essa coisa de ser malabarista, com aquele coro foi onde eu
fiz mais. Era o diferencial desse grupo. (PASQUALINI , 2005)
A diferença é que eles têm os problemas assumidos. O fato de ter
essa abertura, foi uma experiência legal para experimentar coisas...
(ANZAI, 2005)
Ainda PASQUALINI:
Na parte técnica (regência), aprendi o quanto era importante a
expressão da mão, do rosto, e de falar o texto junto com eles. Não
cantava, mas falava o tempo todo o texto junto, essa coisa de reforçar,
que com eles precisava mais. Isso não tem em faculdade, não tem em
livro: como reger um coro com pessoas que ficam desatentas? (2005)
Da época em que PASQUALINI e ANZAI atuaram até hoje, existem diferenças,
principalmente no aspecto da heterogeneidade do grupo, o que trouxe uma maior
306
maturidade para o trabalho artístico, com um aumento da capacidade de concentração por
parte da maioria de seus integrantes.
Para o regente/autor desta Dissertação, posso atestar que houve um aprendizado
humano quanto ao respeito às diferenças, um aprendizado como músico, ao procurar
harmonizar as diferentes vozes e manifestações musicais, e, como regente, ao propor que
eles ultrapassassem seus limites, me sentia instigado a ir mais além como líder musical
do grupo, e ousar em gestos de regência ou projetos sonoros, que não me permitira fazer
até então com outros grupos.
BENEFÍCIOS AOS INTEGRANTES
Alguns dos benefícios aos integrantes detectados por ANZAI em seu depoimento,
referem-se às dinâmicas de ensaios, às apresentações e ao alcance terapêutico decorrente
desse trabalho artístico, não como fim em si, mas como resultado de um processo:
Arte e terapia:
A gente percebia a diferença do começo do ensaio para o final do
ensaio, ou durante o tempo de trabalho. Algumas pessoas ficavam mais
soltas, elas brincavam mais, conversavam mais, vinham falar com a
gente... Alguma coisa mexia. Nesse ponto acho que a terapia e a arte se
misturam.
(...) O trabalho do Coral é mais que um trabalho estético, é
terapêutico, mas deixemos isso por conta dos terapeutas, para nós, é um
recurso de expressão. O estético é o resultado de todo o processo, mas o
mais importante é o processo, o lúdico dessa história toda. O desafio da
construção é fazer com que o cara saia da inércia. Saia desse estado que
307
muitas vezes as pessoas falam que ele é doente e ele acaba acreditando
(2005).
Importância da apresentação:
Eu acredito que tem uma questão: quando uma pessoa pisa no
palco, ou está em evidência de alguma forma, alguma coisa mexe dentro
dela, e que para ela é importante. Então, o resultado artístico final é
fundamental nesse processo. O resultado de um trabalho estará em
evidência nesse momento, e essas pessoas estarão sendo valorizadas e
tratadas como devem ser, como gente.(2005)
Arte como transformação:
A arte tem essa possibilidade que acho que é uma das únicas
formas de expressão que você tem que você consegue chegar nesse
estágio de permissividade. Você não sabe o que é certo e o que é errado.
O que é normal, o que é anormal, o que é feio e o que é bonito. Quando
você consegue chegar nesse estágio é perfeito. Aquele momento exato
que você abre os canais e a arte acontece. Na linguagem esotérica, é
quando você abre esses canais que acontece a cura e a transformação. A
arte é um dos poucos canais diretos onde isso pode acontecer, sem
precisar tomar nenhuma droga. (2005)
Nota-se pelos depoimentos dos regentes que trabalharam com o Coral Cênico, e
pelos depoimentos dos cantores (ver capítulo 3), que este trabalho, saindo da
negatividade associada ao fato de ser composto por grupo muito heterogêneo, incluindo
pessoas em situação de sofrimento em função de seu quadro de saúde ou social, passa
para a positividade de uma construção singular, que traz benefícios a todos os envolvidos,
pois a urgência que a vida traz em algumas situações limites de existência pode gerar o
308
movimento necessário para que a expressão não se cristalize, para que a vida não se torne
uma rotina maçante, e sim, para que possa se transformar em sua constante recriação.
O canto coral deve lembrar a comunidade que
ela tem uma canção, que ela sabe muitas canções e
que sua história se identifica com um cancioneiro (...)
também deve lembrar à comunidade que ela pode
cantar, sabe cantar, deve cantar! (KERR, 1989, p. 32).
309
____________________
CONSIDERAÇÕES FINAIS
310
Para se colocar em foco o processo de construção artística do Coral Cênico
Cidadãos Cantantes, a pesquisa foi construída a partir de três pontos principais:
 A própria produção: com enfoque dado no processo de trabalho e no
envolvimento que seus integrantes têm com esta produção, incitando a
possibilidade de a criação gerar novas criações, por suscitar novos tipos de
relacionamentos.
 A heterogeneidade do grupo: acredita-se, pelo que foi exposto, que tenha
ficado claro sob quais aspectos se apresenta a heterogeneidade no Coral
Cênico Cidadãos Cantante; o que se buscou identificar é de que maneira essa
heterogeneidade influi na produção. O mais adequado seria dizer que esta
produção é definida pela constituição heterogênea do grupo, que fica expressa
pela especificidade de seu repertório, sua maneira de fazer e pelos
relacionamentos advindos dessa proposição.
 Os sentidos desse trabalho: essa é a questão mais difícil de ser analisada ,
pois, pelo caminho percorrido na pesquisa, esses sentidos se mostraram vários
e múltiplos, conforme se demonstrou a partir de cada nova leitura.
Os sentidos presentes no trabalho do Coral foram buscados em várias fontes: em
seu contexto social e político, pela ligação com a Reforma Psiquiátrica, a Luta
Antimanicomial e com os pressupostos do CECCO; na sua produção artística, pela
descrição e análise de seu processo de trabalho e resultado; na visão dessa atividade
311
segundo a perspectiva dos cantores, equipe técnica, funcionários do CCSP e ex-regentes,
trazidas por meio de entrevistas e observação participante.
Nessa busca de sentidos, demonstrou-se, por exemplo, que a atividade do Coral
no CCSP se fez a partir de um pacto que visa à criação artística e que muitas pessoas a
procuram em função da realização desse objetivo. Ao mesmo tempo, revelou-se a
possibilidade do alcance terapêutico poder ser potencializado pelo aprofundamento nas
linguagens artísticas, e o fato de os benefícios serem extensivos a todos os envolvidos e
não aos mais necessitados do ponto de vista social ou de saúde , pela valorização de
todos os indivíduos do grupo e pelo questionamento de padrões de normalidade. Essa
reflexão demonstrou que a atenção voltada à produção artística, que quer ser reconhecida
como tal, não prescinde de seu aspecto terapêutico, ou seja, que é possível transitar em
um campo onde as duas abordagens coexistam, sem que haja necessidade de que uma se
sobreponha a outra.
A manifestação artística do Coral Cênico se configura como manifestação de
grupos minoritários circulando fora da cultura hegemônica, que no máximo a tolera, mas
não a reconhece como manifestação artística de fato. A.M. BARBOSA (1998, p.98) adverte
sobre a importância dessa manifestação ser reconhecida, também, pela cultura dominante,
pois, dessa forma, a resistência acontece efetivamente, e não como concessão a grupos
minoritários. Como sinaliza PELBART (1998), a busca de diferenciação não se pelo
fechamento dentro de um tipo de manifestação singular, pois, dessa maneira, não seria
mais que outra forma de clausura. O compartilhamento é fundamental (p.66).
Mais que respeito às diferenças, é pelo desejo delas (LIMA, 2003b) que se busca na
arte uma fresta, uma respiração. Uma arte que se coloca como necessidade de expressão e
312
que possa transitar fora do valor utilitário ou mercadológico que prevalece hoje. A
maneira como se realiza a produção artística do Coral assemelha-se mais a um processo
artesanal que a um padrão da produção mecânica/industrial. Trata-se do artesanato da
música ou do teatro. Como constata FERREIRA DA SILVA (2005), ao descrever, em
entrevista ao autor, sua impressão sobre o Coral: ... o de vocês é um trabalho manual,
um por um, como um bordado... o outro não (faz um som imitando uma máquina de
costura) (12/07/2005).
A pesquisa se desenvolveu pelo levantamento da produção do grupo e seu
processo de criação, e pela realização de entrevistas com os indivíduos envolvidos com
este trabalho. O entendimento a respeito do fazer artístico, portanto, foi buscado dentro
do próprio grupo, a partir dos depoimentos recolhidos, buscando os sentidos que esta
atividade tem na vida de cada pessoa. A possibilidade de transformação, a necessidade de
expressão, a socialização, a produção individual e coletiva, o divertimento, a técnica
(saber-fazer) foram destacados pelos integrantes do grupo como inerentes à atividade
artística em vários momentos da pesquisa.
A arte como um atributo humano capaz de transformar atitudes, lugares do saber,
lugares de existência e, por conseqüência, alterar a qualidade de vida, é o grande desafio
e o tesouro de lidar com as diferenças.
Como pontua LIMA (2003b, p.70): é no desejo das diferenças que a arte busca seu
alimento, não pelo interesse no exótico ou no diferente em sua subjetividade, mas sim nas
relações novas que podem ser criadas a partir dessa abertura ao outro.
313
Na vivência do Coral destaca-se esse desejo, na possibilidade de incorporar ao
repertório composições ou poesias originais de seus integrantes, ou na configuração de
um programa musical que inclui todos, considerando suas potências ou limites.
A questão da heterogeneidade, em princípio, colocada como mais um dos
aspectos a serem investigados, no decorrer do trabalho foi se tornando um dos pontos
principais para a pesquisa, suscitando a questão da positividade dessa heterogeneidade
para a vida e para a própria criação artística, uma vez que a arte é geradora de movimento
e inquietude e, dessa maneira, se aproxima da vida.
O contato com as idéias de FOUCAULT (2000) foi fundamental para o
entendimento da loucura como possibilidade humana da manifestação da desrazão, e com
isso, abrindo a porta para a compreensão das proposições da Luta Antimanicomial. O
poder sobre a vida (biopolítica) e a necessária e inevitável resistência a esse poder estão
nas raízes dessa luta pelo direito à existência, que o Coral Cênico representa.
O confronto entre os depoimentos dos cantores e as teorias que vinham sendo
estudadas para a fundamentação do trabalho a respeito de exclusão, controle e
heterogeneidade, se aproximaram, muitas vezes fundindo prática e teoria, na difícil tarefa
da busca de sentidos.
Dentro do capítulo referente às analises e entrevistas, foi realizado um extenso
estudo, de caráter quantitativo, das diferentes características do freqüentador, a partir da
aplicação de questionário. Acredita-se que a aplicação deste método de análise resultou
positivamente para a pesquisa, pois foi o modo encontrado para se verificar de maneira
314
objetiva e a partir de um grupo de amostragem, de que modo se configura a
heterogeneidade nos grupos do Projeto Cidadãos Cantantes. Porém, é preciso destacar
que esta análise quantitativa não deixa de ser interpretativa, pois, segundo BAUER,
GASKELL e ALLUM, os dados não falam por si mesmos, mesmo que tenham sido
processados cuidadosamente com modelos estatísticos sofisticados (2004, p.24).
Na análise quantitativa aplicada na presente pesquisa, prescindiu-se de estatísticas
e concentrou-se na relevância dos dados coletados, expressos em números absolutos, para
se traçar um perfil do freqüentador do Projeto.
Dessa forma, pôde-se notar a mistura entre faixas etárias, gênero, estado civil,
escolaridade, situação social ou de saúde, que, muitas vezes, ocasionam expectativas
diferentes para a atividade. A produção do Coral reflete essa mistura. Uma vez que a
heterogeneidade no grupo não se restringe ao campo da saúde/doença, aplicou-se um
estudo das localidades de moradia dos freqüentadores para identificar as distâncias, para
assim compreender o investimento que ele faz para estar no Coral, e as condições sociais
dos bairros, para se ter um mapa do perfil socioeconômico dos participantes. O que se
demonstrou foi que muitos participantes vêm de longe (8 a 24 km do CCSP), para
participar das atividades, às vezes, mais de uma vez por semana, e que o espaço do
CCSP, sendo público e localizado em região central da cidade, facilita o trânsito de
pessoas pertencentes a diversos extratos sociais, promovendo uma convivência
democrática e plural, rara de se encontrar na atualidade, em que, cada vez mais, a
tendência é de se fechar em grupos por níveis sociais, etários ou culturais. Uma parte
significativa do grupo, por sua condição de saúde ou social, talvez nunca entrasse no
CCSP, nem como espectador, e, tampouco, como produtor de cultura, não fosse a
315
existência desse trabalho. A partir dos depoimentos de funcionários, técnicos e
freqüentadores, pode-se perceber que já uma apropriação desse espaço público por
parte de muitos desses integrantes, mostrando interesse em outras atividades propostas
pelo CCSP.
Pelas entrevistas individuais, entreviram-se os vários sentidos, da perspectiva de
cada um: da arte, da descoberta pessoal, da terapia, da amizade, do trabalho, do
compromisso, da política, da auto-estima, do prazer, ou outro que se tenha atribuído.
Agrupados estes sentidos de forma temática, percebe-se com clareza os pontos de
convergência e divergência entre as opiniões dos integrantes do grupo. Percebe-se que os
freqüentadores estão para uma produção decorrente de empenho e trabalho, e que a
maior parte deles compreende a configuração heterogênea do grupo como um dado
positivo, mesmo que problemas individuais possam ocorrer durante o percurso de
trabalho. Foram muitos os depoimentos quanto a conquistas no plano pessoal,
consideradas conseqüência de sua participação no grupo, justificadas, muitas vezes, pelo
projeto artístico, e pela possibilidade de seu resultado culminar em apresentações
públicas, colaborando com a auto-estima e propiciando a expressão dos envolvidos neste
trabalho.
Na entrevista coletiva enfocou-se especificamente a questão a respeito do
entendimento da atividade do Coral pelo grupo, isto é, se a compreendia como realização
artística e por que razão. Surgiram vários depoimentos que atestavam esta compreensão,
focalizando nos aspectos preparação técnica para o trabalho artístico, criatividade,
316
valorização de talentos, compromisso, possibilidade de transformação, a responsabilidade
pela concretização dessa conquista. Nessa entrevista, muito se discutiu a respeito da
tendência do grupo em agregar pessoas portadoras de problemas na área de saúde, e o que
isso implica na rotina do grupo ou nas apresentações. A questão não se mostrou fechada,
suscitando discussão quanto ao envolvimento de cada um, bem como às possibilidades e
desejos.
No último capítulo procurou-se discutir algumas das idéias que pudessem dialogar
com essas perspectivas colhidas pela visão interna do grupo. Se por um lado a questão da
diferença, como enfatizada por FOUCAULT (1985; 1987), e o quanto o poder se vincula ao
saber com finalidade de controle de formas de existências, foram chaves para se
desvendar o sentido social e político contidos no trabalho do Coral, por outro , o interesse
da arte por essas diferenças, como assinalado por PELBART (1998; 2003) e LIMA (2003b),
e seu poder de criação e questionamento da norma, pelo rompimento de estruturas e
abertura para a subjetividade, também, foram significativos auxiliares nessa reflexão.
A prática musical com grupos heterogêneos como esse, mostra-se, não
possível, como instigadora, para se pensar novas maneiras velhas de se cantar em coro,
tomando de empréstimo a expressão do maestro KERR (2000, p.12).
Com a apresentação e divulgação desta pesquisa, espera-se que músicos e
artistas, assim como a própria Universidade, com sua responsabilidade na formação de
profissionais alinhados às condições sociopolíticas e culturais do país, possam estar
atentos a novas demandas e configurações de grupos que surgem na atualidade.
317
É preciso repensar a necessidade da arte na sociedade como produção, expressão e
acesso, e não somente como mercadoria de consumo, para com isso atingir o que
SCHAFER (1991) aponta como o primeiro propósito da arte: promover mudanças em
nossas condições de existência (apud FONTERRADA, 2004, p.321) e recuperar, no
homem, sua potência criativa e transformativa.
É preciso, também, que se entenda afinação como processo. A afinação de si. A
afinação de si com o mundo. Estar em sintonia ou soar em simpatia, para afinar as
diferenças ou as dissonâncias, e não negá-las como presenças, na vida ou na música, e
sim entendê-las como movimento, estabelecendo-se as relações de onde vêm e para onde
vão. Este é o propósito desta pesquisa.
Na compreensão de vida e som como movimento, uma nota musical, seja ela
emitida por qualquer instrumento ou pela voz humana, apresenta-se como uma freqüência
sonora em movimento, que tem vida e relaciona-se com seu contexto; portanto, é
necessário entender-se afinação como um constante movimento de busca de acomodação
dentro de uma dada harmonia. É imperioso que se entenda que essa harmonia é, também,
um dado cultural e histórico que pode e deve ser entendido dentro de seu contexto.
Durante a pesquisa, buscou-se investigar a significação do Coral no entender dos
participantes quanto à sua produção artística como um fato concreto de existência,
independentemente de sua apreciação estética, uma vez que a análise deste aspecto
demandaria uma investigação em relação ao público, o que fugiria aos propósitos dessa
pesquisa, podendo-se configurar como possibilidade para um estudo futuro. Porém, a
318
existência dessa produção traz com ela uma reflexão sobre inacabamento e precariedade
em arte e na vida.
Clarice Lispector, em um texto seu intitulado Fundo de gaveta (publicado na
página que precede a segunda parte da edição original do livro de contos Legião
Estrangeira, de 1964), comenta as razões pelas quais estava a publicar alguns textos,
antes guardados no fundo da gaveta:
Por que publicar o que não presta? Porque o que presta também
não presta. Além do mais, o que obviamente não presta sempre me
interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do
malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno vôo e cai sem
graça no chão (LISPECTOR, 1999).
Invocar este pequeno texto de Clarice Lispector ao final da pesquisa pode parecer
que se está a considerar a produção do Coral malfeita e desajeitada, o que seria um
contra-senso, depois de se levantar tantos pontos que levariam a valorizar e qualificar este
trabalho, porém, o que se intenta é exatamente o questionamento do bem-acabado, o que
também parece ser o que LISPECTOR está a se referir. O bem-feito, arrumado,
padronizado, normal, gera estagnação e no limite, morte.
Considerando o movimento daquilo que não está plenamente acabado, portanto
processo, como vital, o conceito de inacabamento aproxima arte e vida (LIMA, 2003b,
p.70). A incompletude é que nos movimenta. Na procura desta completude se assume a
incompletude e a precariedade.
Como quando o Coral C
ênico cantava/brincava dentro de uma alegoria de
serpente, construída como um imenso dragão chinês feito de tule e suporte de madeira,
durante o VI Encontro Musical pela Cidadania Plena, em 2002:
319
Essa é a história da serpente, que desceu do morro, para procurar um
pedaço do seu rabo. Você também é um pedação do meu rabão.
66
FIGURA 18 Foto do passeio da serpente no Parque do Ibirapuera, durante festa no
CECCO-Ibirapuera (21/12/2003).
66
A serpente é um brinquedo-cantado de Domínio Público, e a alegoria usada pelo Coral foi confeccionada
pelo diretor e professor de teatro Edílson Castanheira.
320
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FONTE PRIMÁRIA
ENTREVISTAS COM CANTORES
327
ENTREVISTAS INDIVIDUAIS
Entrevista com Reinaldo Nascimento, em 28/06/2004 .
Entrevista com Zé Ivan de Lma, em 14/06/2004.
Entrevista com Márcio Luiz Oliveira, em 23/08/2004.
Entrevista com Herbert Ari dos Santos, em 25/10/2004.
Entrevista com Cristiano Ribeiro, em 11/10/2004.
Entrevista com César Galvão, em 25/10/2004.
Entrevista com Zina Waisberg , em 11/10/2004.
Entrevista com Vitor Paulino (Preto Jóia Paulista), em 29/11/04.
Entrevista com Dona Alice Aparecida Silva Souza, em 11/04/2005.
ENTREVISTA COLETIVA
Entrevista com 18 participantes do Coral, realizada em 18 de maio de 2005. Participaram:
Hélio Jacinto de Souza,
Vitor Paulino de Souza Júnior.
Cíntia Fernanda Quiarela.
Paulo César da Galvão Dias
Fabiana Golavanchoy.
Chico D`Assis.
Daniele Silva.
Margarida Elisa Martin.
Rute dos Santos Silva.
Hudson de Azevedo.
Maria Célia da Conceição Ferreira.
Janaína Ribeiro.
Maria Alice Aparecida Souza.
Maria de Lourdes Squiavon.
Ieda Nunes da Silva.
Zina Waisberg
Alexandre Brito
Thaia Perez
328
ENTREVISTAS COM EQUIPE TÉCNICA
Clara Kuroda, realizada em 09/05/2005.
Francisco da Silva Santos (CCSP-Tukasom), realizada em 12/072005
Luciana Mantovani, (CCSP-NAE), realizada em 18/07/2005 (por e-mail).
Thaia Perez, realizada em 18/05/2005.
Cristina Lopes, realizada entre 11 e 13/10/2004.
Márcia Novaes, realizada em 18/05/2005.
Roberto Sussumo Anzai, realizada em 02/02/2005.
Maria Elisa Perreti Pasqualini, realizada em 03/02/2005.
Nilse Ferreira da Silva (CCSP), realizada em 12/07/2005.
Tatiana Bichara, realizada em 24/05/2005.
DISCOGRAFIA
ANDRÉ ABUJAMRA. Alma não tem cor. Incluída no CD KARNAK Original, GLOBE MUSIC/ TOTEMusic, 1999.
ARNALDO DIAS BAPTISTA e RITA LEE. Balada do louco.Originalmente gravada no LP Mutantes e seus
cometas no país dos Bauretes, de 1972 e incluída no CD Rita Lee acústico MTV, Polygram, 1998.
ANASTÁCIA e DOMINGUINHOS. Eu só quero um xodó. Gravada por Gilberto Gil em 1973 e incluída no LP
Refestança, ao vivo com Rita Lee. Som Livre, 1978.
ANASTÁCIA e DOMINGUINHOS. Tenho sede. Gravada por Gilberto Gil no LP Refazenda, 1976, e inserida no
CD Refazenda, Warner, 1994.
ARMANDO MANZANERO. Contigo aprendi, incluída no CD Duetos. Warner, 2001.
CACASO. Cavalo marinho, incluída no CD Série Dois Momentos (álbuns Corra o Risco/1978 e melodia
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CAPIBA E DOMÍNIO PÚBLICO. Cirandas de Pernambuco. O título original da faixa é Vamos Cirandar (Minha
ciranda e Frevo ciranda, de Capiba, e Lia de Itamaracá, de Domínio Público) e foi gravada no CD Perré
Bumbá. Produção independente ?, 1998.
DOMÍNIO PÚBLICO. A serpente. CD Pandalelê! Brinquedos cantados. Gravação Grupo Roda Pião.
Distribuição pela Palavra Cantada, 2001
DOMÍNIO PÚBLICO . Gente que vem de Lisboa/Peixinhos do Mar. Incluída no CD Renato Teixeira & Pena
Branca e Xavantinho. Tatuí, KUARUP, 1992.
DOMÍNIO PÚBLICO. Atirei o pau no gato. Incluída em várias coletâneas de canções infantis, entre elas, o
CD/Livro Músicas daqui Ritmos do mundo, de Zezinho Mutarelli e Gilles Eduard. São Paulo: Fábrica
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DORIVAL CAYMMI. Minha Jangada (canção da partida) incluída no CD Caymmi amor e mar. EMI, 2000.
ED MOTTA e RITA LEE. Fora da lei, incluída no LP Remixes e aperitivos, Universal, 1998.
ENRIQUEZ-BARDOTTI. História de uma gata . CD do musical Os Saltimbancos, com versão de Chico
Buarque. Philips/PolyGram, 1977.
GETÚLIO CORTES. Negro gato. Gravado por Marisa Monte em seu LP de estréia. EMI, 1989.
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Projeto do Afabetização Musical (PAM) organizado por R. Breim, H. Neder e E. Zein. São Paulo, 1996.
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RITA LEE. Eu e meu gato. Canção incluída no LP Babilônia e disponível em CD. EMI Odeon Brasil,
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RAUL SEIXAS e PAULO COELHO. Mosca na sopa. Incluída no LP Krig-ha, Bandolo! Philips/Phonogram,
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FOTOS
Todas as fotos presentes nesse trabalho são de autoria de Carlos Rennó, Sonia Parma, Carlos Villalba e
Walter Louzan.
331
______
ANEXOS
332
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