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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Do texto ao hipertexto
Dissertação de Mestrado
ANDRÉ LUÍS CÉSAR RAMOS
Brasília
2006
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ii
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Do texto ao hipertexto
André Luís César Ramos
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Educação da U-
niversidade de Brasília, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre
em Educação (Área de concentração
Tecnologias da Educação).
Orientador: Prof. Gilberto Lacerda dos Santos, PhD
Brasília
2006
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iii
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Do texto ao hipertexto
André Luís César Ramos
BANCA EXAMINADORA
Prof. Gilberto Lacerda Santos, PhD (orientador)
Profª. Dra. Lygia Sabóia (membro externo)
Profª. Dra. Laura Coutinho (membro)
iv
A Theo e Sofia, meu sol e minha lua;
e a Marta, que me deu o céu.
v
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Gilberto, pela paciência,
pelas palavras sábias e pelo ânimo
nos momentos de desânimo.
À Profª Lygia pelo carinho, sempre.
À Profª Laura, pela ajuda inestimável.
Aos amigos Edmundo Brandão,
Paulo Moraes, Joana Bicalho e Bruno
Nalon, pelas ricas conversas casuais.
À família, sempre.
vi
Tudo que é sólido se desmancha no ar...”
(Marx e Engels, 1973, p. 70)
vii
RESUMO
Esta dissertação apresenta o estudo desenvolvido com o objetivo de proposi-
ção de uma metodologia de transposição didática do texto ao hipertexto. Com o
estudo pretende-se propor conjecturas, fundamentadas a partir da caracteriza-
ção do sujeito pós-moderno, no sentido do reconhecimento das estruturas hi-
pertextuais erigidas sobre redes computacionais, baseadas em tecnologias di-
gitais, como sendo ambiente propício à formulação de soluções para produtos
no âmbito da educação. Como referência principal para a instituição da meto-
dologia e apreensão dos conceitos necessários para a consecução da transpo-
sição adotou-se a teoria da Transposição Didática e as proposições a favor e
contrárias ao seu estabelecimento. Os resultados obtidos com a transposição
do objeto de exercício do método – a obra A estória Estranha de Eduardo Pe-
çanha – juntamente com as reflexões propostas ao final do trabalho apontam
para a proposição de uma metodologia de transposição de linguagens do texto
ao hipertexto.
Palavras-chave: texto, hipertexto, pós-modernidade, transposição didática.
viii
ABSTRACT
This dissertation presents a study that aims at proposing a methodology of a
didactical transposition from text to hypertext. With this study, we intend to
propose conjectures, based in the post-modern characterization, viewing the
recognition of the hypertextual structures built on computing networks, based on
digital technologies, as the propitious environment to the formulation of
solutions for products in the scope of education. As a main reference for the
methodology institution and the understanding of the necessary concepts for
the transposition consecution, it was adopted the Didactical Transposition
Theory and the pro and cons propositions to its establishment. The results
obtained with the transposition of the methodology object of study – the work
“The Eduardo Peçanha’s strange story” – as well as the reflections proposed at
the end of the work, points to the proposition of a transposition methodology of
languages, from text to hypertext.
Keywords: text, hypertext, pos-modernity, didactical transposition
ix
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 13
1. PROBLEMÁTICA DE PESQUISA ...................................................... 17
1.1. O problema......................................................................................... 19
2. OBJETIVOS DA PESQUISA .............................................................. 33
2.1. Ponderações iniciais........................................................................... 34
2.2. Como chegamos aos dias de hoje ..................................................... 38
2.2.1. Crise do paradigma da modernidade ................................................. 38
2.2.2. O paradigma emergente..................................................................... 44
2.2.3. Implicações na educação ................................................................... 50
2.3. Objetivos............................................................................................. 58
2.3.1. Objetivo geral ..................................................................................... 59
2.3.2. Objetivos específicos.......................................................................... 59
3. HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO: POSSIBILIDADES DE
TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA ............................................................. 61
3.1. Em favor da autonomia....................................................................... 62
3.2. Pelo dialogismo polifônico .................................................................. 68
3.3 Inteligências Múltiplas......................................................................... 74
3.3.1. O lugar da Psicologia.......................................................................... 75
3.3.2. A concepção piagetiana ..................................................................... 76
3.3.3. Abordagem de processamento de informações ................................. 78
3.3.4. Abordagem dos sistemas simbólicos.................................................. 78
3.4. O hipertexto em Pierre Lévy............................................................... 85
3.5. O hipertexto e a transposição didática................................................ 91
3.5.1. Entendendo o hipertexto..................................................................... 93
3.5.2. Escrita e leitura................................................................................... 99
x
3.5.3. Informática, sociedade e educação .................................................. 103
3.5.4. Transpondo saberes......................................................................... 106
3.6. Critérios para a transposição............................................................ 109
4. OUSAR UMA METODOLOGIA DE TRANSPOSIÇÃO
DIDÁTICA DO TEXTO AO HIPERTEXTO........................................ 116
4.1. A teoria da Transposição Didática.................................................... 117
4.1.1. Implicações....................................................................................... 123
4.1.2. Instrumentos..................................................................................... 124
4.1.3. O papel do pesquisador.................................................................... 125
4.2. O contexto da pesquisa.................................................................... 126
5. DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO....... 148
6. CONCLUINDO PROVISORIAMENTE.............................................. 182
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 188
xi
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Etapas da transposição didática ......................................... 108
FIGURA 1b Categorias para produção e avaliação do hipertexto transposto112
FIGURA 2 Página 1.............................................................................. 129
FIGURA 3 Página 2.............................................................................. 130
FIGURA 4 Página 3.............................................................................. 131
FIGURA 5 Página 4.............................................................................. 132
FIGURA 6 Página 5.............................................................................. 133
FIGURA 7 Página 6.............................................................................. 134
FIGURA 8 Página 7.............................................................................. 135
FIGURA 9 Página 8.............................................................................. 136
FIGURA 10 Página 9.............................................................................. 137
FIGURA 11 Página 10 ............................................................................ 138
FIGURA 12 Página 11 ............................................................................ 139
FIGURA 13 Página 12 ............................................................................ 140
FIGURA 14 Página 13 ............................................................................ 141
FIGURA 15 Página 14 ............................................................................ 142
FIGURA 16 Página 15 ............................................................................ 143
FIGURA 17 Página 16 ............................................................................ 144
FIGURA 18 Página 17 ............................................................................ 145
FIGURA 19 Página 18 ............................................................................ 146
FIGURA 20 Página 19 ............................................................................ 147
FIGURA 21 Página 20 ............................................................................ 148
FIGURA 22 Interface da versão multimídia ............................................ 151
FIGURA 23 Esquema de leitura linear.................................................... 152
FIGURA 23b Esquema de leitura hipertextual.......................................... 153
FIGURA 24 Fluxos de navegação e de informação................................ 154
FIGURA 24b Tela para criação de versão própria do usuário .................. 154
FIGURA 25 Heterogeneidade da estrutura............................................. 155
FIGURA 25b Heterogeneidade da estrutura............................................. 156
FIGURA 26 Estrutura radicular e auxílios externos ................................ 157
FIGURA 26b Auxílios externos................................................................. 158
xii
FIGURA 27 Entrada, saída e troca de informações................................ 159
FIGURA 28 Mobilidade dos centros ....................................................... 160
FIGURA 29 Links p. 01........................................................................... 167
FIGURA 30 Links p. 02........................................................................... 167
FIGURA 31 Links p. 03........................................................................... 168
FIGURA 32 Links p. 04........................................................................... 168
FIGURA 33 Links p. 05........................................................................... 169
FIGURA 34 Links p. 06........................................................................... 169
FIGURA 35 Links p. 07........................................................................... 170
FIGURA 36 Links p. 08........................................................................... 170
FIGURA 37 Links p. 09........................................................................... 171
FIGURA 38 Links p. 10........................................................................... 171
FIGURA 39 Links p. 11........................................................................... 172
FIGURA 40 Links p. 12........................................................................... 172
FIGURA 41 Links p. 13........................................................................... 173
FIGURA 42 Links p. 14........................................................................... 173
FIGURA 43 Links p. 15........................................................................... 174
FIGURA 44 Links p. 16........................................................................... 174
FIGURA 45 Links p. 17........................................................................... 175
FIGURA 46 Links p. 18........................................................................... 175
FIGURA 47 Links p. 19........................................................................... 176
FIGURA 48 Links p. 20........................................................................... 176
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | INTRODUÇÃO | 13
INTRODUÇÃO
As mudanças decorrentes dos processos históricos da humani-
dade trazem consigo reflexões a respeito das formas como se estabelecem
novas relações sociais; das inferências resultantes do advento de meios tecno-
lógicos, dos encadeamentos entre as instâncias produtivas, transformadoras e
distribuidoras nas relações econômicas; da reformulação da geopolítica mun-
dial; e, de forma especialmente importante para este estudo, das re-
significações atribuídas a signos instituídos.
A decodificação dos signos instituídos em tempos de outrora se
faz possível na medida em que se mantêm atualizados os meios de transmis-
são dos mesmos e, mais ainda, a forma de apresentação para o público no
presente. Neste ponto, cabe ressaltar que não se trata da formatação de con-
teúdos gerados no berço da civilização digital, ou da sociedade da informação,
mas da “transposição” de conteúdos anteriormente criados e dispostos em su-
portes e linguagens adequados para a época em questão, mas que, nos dias
presentes, encontram lugar apenas nas mesas de especialistas e estudiosos e
que obsoletam nas prateleiras empoeiradas das novas gerações.
A pesquisa relatada nesta dissertação tem por objetivo a proposi-
ção de uma metodologia de transposição de conteúdos formalmente dispostos
em suportes “convencionais” para suportes tecnologicamente adaptados para a
contemporaneidade, abrindo novas possibilidades de construção do conheci-
mento por vias que reconhecem os pretensos usuários/aprendentes enquanto
indivíduos dotados de singularidades e que, por conseguinte, anseiam por ca-
minhos repletos de bifurcações que atendam às suas necessidades pessoais.
14
As redes computacionais e de informação, e as estruturas hipertextuais multi-
mídia convertem-se em um suporte com características adequadas para rece-
ber e transmitir conteúdos de modo a atingir as especificidades de diferentes
indivíduos.
A etapa inicial de desenvolvimento do trabalho, que trata da pro-
blematização do mesmo, apresenta informações relacionadas às mudanças
vividas atualmente pela sociedade e o conseqüente surgimento da necessida-
de de adequação de conteúdos preexistentes para formas mais afeitas aos no-
vos tempos.
Em seguida são apresentados os objetivos de pesquisa após es-
forço de contextualização da sociedade por meio de levantamento histórico,
uma vez que, para melhor compreensão do presente e construção de inten-
ções frente ao futuro é necessário, antes de qualquer coisa, entender o passa-
do. Esta contextualização se inicia com a identificação de fatores que antece-
deram, caracterizaram e, mais recentemente, denunciaram a crise do paradig-
ma da modernidade, incentivando esforços na tentativa de constituição de um
paradigma emergente. Em seguida, são analisadas as implicações desta mu-
dança de paradigma nas relações sociais e, em especial, no campo da educa-
ção e, por fim traçados os objetivos desta pesquisa.
Características predominantemente contemporâneas nas rela-
ções sociais e nas tecnologias digitais sedimentam uma plataforma sobre a
qual se criam espaços para a proposição de novas formas de construção do
conhecimento e, em cuja dimensão, esforços para produção e transposição de
materiais educativos passam a ser emergentes. Esses aspectos são discutidos
após a apresentação dos objetivos, com ênfase na apropriação da lógica hiper-
15
textual para a proposição de produtos voltados para a área da educação. Ainda
são apresentados pressupostos teóricos que subsidiam e justificam a proposi-
ção de uma metodologia de transposição dos conteúdos para atender e se a-
dequar às exigências impostas pelo que alguns autores nomeiam como “cultura
da mídia”.
O passo seguinte diz respeito à formulação de encadeamentos,
identificação de pressupostos e determinação de critérios para o estabeleci-
mento de uma pretensa metodologia. Os procedimentos propostos passam,
então, a ser aplicados na desconstrução de um livro paradidático previamente
escolhido, e que se estrutura de forma linear, e na posterior transposição de
seu conteúdo – com base em categorias e critérios estabelecidos pela metodo-
logia – iniciando-se a produção de uma versão multimídia do livro em questão.
A transposição conta com a utilização de tecnologias digitais, ferramentas de
programação para web e softwares de edição áudio-visual.
Finalmente são apresentadas as considerações finais que suge-
rem a proposição de uma metodologia, passível de flexibilizações, para facilitar
o desenvolvimento de transposições que se façam em situações similares aos
que ocorrem nesta pesquisa. Por mais que atual contexto onde se estabelecem
as relações sociais, entre elas as da escola, se caracterizem pelo enorme grau
de mudanças e incertezas, o encaminhamento das reflexões finais se deu no
sentido da proposição de uma metodologia de transposição de linguagens tex-
tuais para a forma hipertextual.
O trabalho se apresenta formalmente estruturado em capítulos
que tratam de questões específicas e que, ao final, constituem o corpo do
mesmo. Os capítulos, que passaram por desdobramentos e agrupamentos, são
16
dispostos da seguinte forma:
Capítulo 1: descreve o âmbito e a problemática da pesquisa,
promovendo breve introdução ao tema em questão;
Capítulo 2: apresenta o processo histórico que culminou no que
se costuma denominar sociedade “pós-moderna”, permitindo a compreensão
de diferentes momentos históricos e os paradigmas vigentes. Aponta, ainda, as
implicações destas mudanças de paradigma na educação e culmina com a a-
presentação dos objetivos da pesquisa;
Capítulo 3: fundamenta o conceito de hipertexto fazendo cone-
xões com as ciências da inteligência. Apresenta um panorama das relações
entre informática, sociedade e educação e estabelece critérios que serão utili-
zados para orientar os caminhos a serem seguidos na propostas de metodolo-
gia de transposição ;
Capítulo 4: apresenta considerações metodológicas que nortea-
rão a transposição do conteúdo com base na teoria da Transposição Didática;
Capítulo 5: apresenta o processo de transposição didática, com
identificação dos pressupostos teóricos que foram seguidos e da forma pela
qual foram atendidos os critérios instituídos como fundamentais para a formu-
lação de uma versão hipertextual com as características pretendidas;
Capítulo 6: são apresentadas as considerações finais e as refle-
xões a respeito da possibilidade de proposição de uma metodologia de trans-
posição didática do texto ao hipertexto.
Por fim são apresentadas as referências bibliográficas que contri-
buíram de forma determinante para os resultados alcançados.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 17
1. PROBLEMÁTICA DA PESQUISA
Com o advento dos meios tecnológicos digitais e sua capacidade
de agregar informações de natureza diversificada e que percorrem as redes de
comunicação de forma extremamente acelerada, novos formatos e novos mo-
delos passam a ser adotados na concepção de produtos educativos. Acontece,
entretanto, o surgimento de uma tensão marcada pela exigüidade do tempo e
que, por força de várias motivações, inclusive econômicas, leva a sociedade a
buscar a tradução e a transposição de seus signos e suas informações para os
novos suportes mediáticos. Atenções voltadas apenas para a produção de no-
vos conteúdos, afeitos ao contexto da sociedade da informação, implicam tal-
vez na possibilidade de abandono ou esquecimento de conteúdos produzidos
outrora e que possuem inestimável valor, ainda nos tempos atuais. Recorrer à
transposição desses conteúdos como forma de manutenção de sua existência
ao longo do tempo, impedindo sua deterioração material e, principalmente, in-
formacional, justifica a adoção de encaminhamentos como os propostos nesta
pesquisa.
Essa adequação aos novos suportes deve considerar as novas
tecnologias, suas implicações e complicações, sem, no entanto, se furtar aos
objetivos e intenções que o autor apresenta na concepção original de suas o-
bras. Não se trata, portanto, do investimento de recursos na construção de
“versões” atualizadas de obras consistentes sob a ótica de um indivíduo, ou
grupo deles, imbuído do desejo de impregnar aquele texto – no sentido menos
formal que o termo possa ter – de suas interpretações, visões ou re-leituras,
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 18
absorto em um projeto que não contempla as intenções originais do autor, for-
mulador, este sim, da matéria original.
As novas tecnologias de informação e comunicação mudaram os
padrões da vida cotidiana e reestruturaram poderosamente o trabalho e o lazer.
A sociedade vivencia hoje o que alguns autores denominam de “cultura da mí-
dia” e que, segundo Douglas Kellner, é a forma de cultura dominante que, por
meio de suas formas visuais e verbais, está suplantando as formas da cultura
livresca, exigindo novos tipos de conhecimento para decodificá-la. Percebe-se,
ainda, uma presença freqüente de indivíduos que personificam novos padrões
de comportamento e que, sem pedir permissão, invadem o espaço particular da
casa – na forma de personagens dos produtos televisivos – e passam a ditar
novos modelos e regras para a família. Kellner afirma que:
“A cultura veiculada pela mídia transformou-se numa
força dominante de socialização: suas imagens e cele-
bridades substituem a família, a escola e a igreja como
árbitros de gosto, valor e pensamento, produzindo novos
modelos de identificação e imagens vibrantes de estilo,
moda e comportamento” (KELLNER, 2001, p.27).
A “cultura da mídia” não se manifesta somente nos suportes me-
diáticos tradicionais e de forte penetração e poder de transformação social,
mas vai, em volume crescente, criando novos espaços e preenchendo lacunas
que vão surgindo nos fluxos de informação dos new media. Lev Manovich
(2001) expõe uma faceta essencial desse processo quando define os new me-
dia – contextualizados equivocadamente pela associação com os meios de di-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 19
fusão e desconsiderando as suas formas de produção –, ao questionar a afir-
mação de que textos que são distribuídos em computador, web sites e livros
eletrônicos são geralmente considerados novas mídias, enquanto aqueles que
são distribuídos em papel não o são. Esta avaliação simplista reduz as novas
tecnologias à dimensão da transmissão, alienando-as de um processo infinita-
mente mais complexo que, ainda segundo Manovich, resulta no entendimento
de que por trás da expressão “novas tecnologias” está acontecendo uma “revo-
lução cultural profunda cujos efeitos estamos apenas começando a registrar”
(MANOVICH, 2001, p.19).
Esta reflexão – que agrega as discussões a respeito das poten-
cialidades das novas tecnologias, que considera as relações sociais que se dão
dentro de um grupo de indivíduos imersos na cultura da mídia e que sofrem
seus efeitos – permite o direcionamento das atenções no sentido do reconhe-
cimento deste contexto como sendo fértil à formulação de novas possibilidades
de comunicação e educação. É factível, portanto, a busca por soluções que se
mostrem mais confortáveis dentro de um cenário marcado pela diversidade,
pelas mudanças freqüentes e por indivíduos que, cada vez mais, questionam
os mecanismos convencionais de transmissão de informações.
.
1.1. O problema
O atual contexto histórico, marcado como palco do nascimento e
crescimento de novas tecnologias digitais e da consolidação da “cultura da mí-
dia”, conduz os atores da educação rumo ao desenvolvimento de produtos, à
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 20
identificação de abordagens e à mediação de informações tendo como referên-
cia conceitos afeitos a uma escola “pós-moderna”. Levando-se em considera-
ção conceitos tais como provisoriedade, incerteza, pluraridade, interdisciplinari-
dade e transdiciplinaridade, autonomia, dialogismo, etc, é inevitável o encami-
nhamento de soluções que considerem a apropriação de conteúdos preexisten-
tes e sua tradução/transposição para novos formatos no desenvolvimento de
produtos educativos e, não necessariamente a concepção de novos conteúdos
que, desde suas divagações embrionárias, já estejam estabelecidos dentro de
uma abordagem das novas tecnologias.
A transposição de conteúdos dispostos em estruturas convencio-
nais no âmbito da educação para suportes computacionais multimodais não
deve se fixar somente nas questões formais que resultem num melhor trata-
mento dos fluxos e organização das informações; deve, antes disso, considerar
a utilização de abordagens que percebam o aprendente enquanto indivíduo
histórico-cultural, dotado de múltiplas identidades, ator de relações sociais di-
versas e que se posiciona como sendo parte de um todo absolutamente hete-
rogêneo, plural.
Algumas características desses novos atores das relações soci-
ais, entre elas as estabelecidas no âmbito da escola, são determinantes para a
definição da abordagem de sensibilização destes e da adequação dos conteú-
dos educativos ao seu perfil. O tempo presente, no qual se configura a “socie-
dade da informação”, é marcado por uma diversidade e um volume de informa-
ções, muitas vezes fragmentadas e carregadas de valores simbólicos efêmeros
e instantâneos, que modelam a forma de leitura dos indivíduos. Essa visão
fragmentada encontra suporte e reforço, na esfera social, a partir da observa-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 21
ção da forma pela qual se estabelecem as relações sociais, na forma como a
sociedade se organiza e, de maneira bastante representativa, na forma como
são organizados os construtos cerebrais e organizadas as informações nas
memórias humanas. Percebe-se, portanto, a emergência de um novo leitor nos
bancos da escola que, em certa medida, rejeita a linearidade e que, amparado
pelos modelos propostos e disseminados na sociedade da informação, e tiran-
do proveito do potencial das tecnologias digitais, sobretudo das redes compu-
tacionais, se posiciona como parte imprescindível no processo de construção
do fenômeno comunicativo.
As redes de computador e suas comunidades virtuais, organiza-
das de forma não-linear, com seus fluxos permanentes de informações; as no-
vas possibilidades de interação dos telespectadores frente à programação tele-
visiva que imputa aos mesmos a responsabilidade pelos encaminhamentos dos
acontecimentos que compõe os enredos dos programas, dos reality shows, dos
programas de auditório; as instalações e obras de arte, exibidas em bienais e
galerias, que são marcadas pela incompletude e só se realizam a partir da inte-
ração do observador; todas essas instâncias impulsionam os sujeitos sociais a
assumirem seu lugar de sujeito negociador, de sujeito dotado de capacidade, e
mais que isso, dotado de poder de escolha, de troca, de definição.
Em outras esferas da vida pública e do posicionamento social os
sujeitos contemporâneos lutam por seus direitos, por suas opções e escolhas,
enfim, se fazem respeitar por sua individualidade, por sua diferença. Nunca se
falou tanto como hoje em direitos do cidadão, em direitos do consumidor, em
direitos humanos.
Aliado a esses fenômenos que circunscrevem e permeiam os a-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 22
contecimentos da pós-modernidade, a globalização reposiciona agentes soci-
ais; remodela relações comerciais transnacionais e produz implicações econô-
micas nos níveis nacional e global; derruba fronteiras e fortalece o movimento
de “desterritorialização” (CANCLINI, 1993); e, finalmente, converte-se em força
propulsora de dois fenômenos ao mesmo tempo antagônicos e complementa-
res. Se, por uma faceta, a globalização é reconhecida como força de produção
de uma cultura massificada e mundial, por outro, é responsável pelo crescente
sentido de “pertenecimento”, de fixação arraigada aos valores locais. Os pe-
quenos grupos locais se vêem na premência de tornarem-se parte da aldeia
global e esta, por sua vez, se alimenta de acontecimentos e eventos locais pa-
ra se sustentar enquanto fenômeno global.
Torna-se perfeitamente compreensível que os sujeitos que viven-
ciam essa ebulição de movimentos sociais, novas formas de comunicação,
permanentes alterações na geopolítica global, tecnologias digitais, informação
ao alcance de todos, se posicionem de modo diferenciado frente às possibili-
dades que lhes surgem, inclusive no âmbito das relações de ensino e aprendi-
zagem. Novos tempos produzem novos alunos que anseiam por novos profes-
sores, quem sabe mediadores, para apresentar-lhes novos encaminhamentos,
novos caminhos. Essa sede por novos encaminhamentos pode suscitar, por-
tanto, a necessidade de um novo modo de produção e difusão do conhecimen-
to ou, em outra perspectiva, na transposição de conteúdos para uma forma que
melhor se encaixe num contexto social marcado pelo desencaixe dos indiví-
duos das noções de tempo e espaço, e pela rejeição aos modelos pré-
concebidos, estáticos, lineares e absolutos.
Neste âmbito da problematização torna-se inevitável suscitar al-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 23
gumas reflexões que, naturalmente, terão aprofundamento ao longo da disser-
tação, e são de fundamental importância na determinação do problema de
pesquisa e, a posteriori, na determinação dos objetivos a serem alcançados.
A primeira dessas reflexões diz respeito à transposição didática,
que implica, de forma extremante simplista, no reposicionamento de informa-
ções e saberes concebidos dentro de uma lógica científica, como sendo parte
do meio científico em determinado contexto histórico-social, para um novo con-
texto formado por movimentos sociais diferentes dos presentes no contexto
original e “povoado” por sujeitos dotados de necessidades e capacidades con-
dizentes com o momento em que se inserem. A percepção da questão do re-
posicionamento para além da esfera geográfico-espacial conduz a reflexão à
identificação de um elevado grau de complexidade uma vez que tal procedi-
mento implica na adaptação dos saberes transpostos para o novo contexto em
que será inserido. Infere-se, pois, na argüição a respeito dos referencias que
nortearão as adaptações a serem procedidas na transposição dos conteúdos.
Transposição esta que, baseada nas reflexões de Yves Chevallard, permite
que o saber produzido no seio da comunidade científica seja adaptado aos
programas, currículos e livros escolares e, posteriormente, seja repassado, de
fato, aos alunos.
A problemática de pesquisa, neste ponto, estende-se a questões
fundamentais ao encaminhamento de soluções capazes de atender às neces-
sidades apresentadas como parte dos anseios de uma sociedade pós-
moderna. Ao se fazer a opção por uma abordagem metodológica baseada na
Teoria da Transposição Didática, que encontra em Chevallard seu principal
pensador, e que tem origem em aplicações no ensino das ciências e da mate-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 24
mática, faz-se necessária a verificação da aplicabilidade da mesma em outras
áreas do conhecimento. E mais que isso, é decisivo para a consecução dos
resultados desta pesquisa que sejam identificadas as origens da teoria cheval-
lardiana e seus pressupostos epistemológicos, com a atenção voltada para o
reconhecimento de condições de apropriação da mesma para uma transposi-
ção de conteúdo de natureza diferenciada.
A segunda importante reflexão no levantamento de questões que
compõe a problemática de pesquisa e que a encaminharão na busca por res-
postas diz respeito ao hipertexto. A partir da tentativa de compreensão dos a-
contecimentos e encadeamentos típicos da pós-modernidade são encontrados
argumentos válidos no sentido de proposição de novas abordagens para ve-
lhos problemas, pois os agentes sociais envoltos pelos sistemas multimodais
de transmissão e troca de informações, pelas rede computacionais e seus re-
cursos, pela variedade quase infinita de canais especializados de radio e tele-
difusão, pelas diminuição das distâncias mundiais, pelo fim das barreiras cultu-
rais e geográficas, enfim, por um contexto marcado por um sem número de
novas conexões anteriormente inimagináveis, abraça, por um lado, novas for-
mas de se relacionar socialmente e, por outro, rejeita antigos projetos sociais e
culturais baseados na linearidade, na lógica seqüencial. Não são poucos os
exemplos de produções culturais que, como é comum no âmbito das artes, se
anteciparam na percepção de uma nova ordem social vigente e de como seus
agentes passam a ver, a ouvir, a se relacionar, enfim, a viver.
Em artigo no qual exercita a integração de conceitos discutidos
por vários autores sobre modernismo e pós-modernismo, objetivando associar
o primeiro ao processo de industrializão e o segundo à emergência da socie-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 25
dade da informação, Gilberto Lacerda dos Santos afirma que:
O pós-modernismo surge, segundo FEATHERSTONE (1995),
como um novo filão cultural e estético, como uma substituição
do pensamento característico da sociedade moderna segundo
o qual existiam de um lado princípios unificadores que pudes-
sem ser impostos às manifestações socioculturais e, de outro
lado, metanarrativas capazes de atribuir algum sentido de coe-
rência e de irrefutabilidade à História. Igualmente, o pós-
modernismo surge como um processo de rejeição a princípios
universalistas e globalizantes pretensiosos de explicar a aven-
tura humana e de associá-la a um fio condutor mais ou menos
previsível. (SANTOS, 2004)
Tirando proveito desse contexto, uma importante proposição nes-
te trabalho de pesquisa diz respeito ao uso do hipertexto, ou de estruturas ba-
seadas neste, na reorganização de materiais voltados ao ensino dentro de uma
lógica não-linear. E neste sentido perceber a não linearidade como característi-
ca fortemente presente na maneira pela qual a sociedade se organiza, estrutu-
ra sua cadeia produtiva, estabelece suas relações comerciais, é perceber uma
possibilidade de produção de idéias ou de re-contextualização de conhecimen-
tos anteriormente concebidos de forma a assegurar, não só a perenidade des-
ses, como de torná-los naturalmente aptos a percorrerem os novos canais e
vias de informação.
Essa adaptação aos novos tempos, tratada como transposição,
colabora, ainda, para maior adequação às novas formas de difusão, baseadas
na utilização em massa das tecnologias digitais e mesmo em outros meios,
uma vez que a transposição implica na re-significação das mensagens e na
adaptação de suas linguagens para os usuários habituados a conviver e tirar
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 26
proveito desses recursos.
Surge então uma questão que, ao entrelaçar duas das proposi-
ções suscitadas nesta problematização, converte-se em um ponto de sustenta-
ção para conjecturas e conclusões: o desenvolvimento de uma proposta de
metodologia de transposição de conteúdo, baseada na Teoria de Transposição
Didática de Yves Chevallard, que contemple a reorganização desse mesmo
conteúdo de forma hipertextual segundo os princípios instituídos por Pierre
Lévy para o hipertexto, deve ser erigido a partir de que preceitos e quais seriam
os critérios para tal transposição? Derivadas dessa questão outras tantas se
revelam e acabam por constituir parte dos objetivos do trabalho.
Certo do aprofundamento que será conferido na construção dos
referenciais teóricos, é necessário promover algumas articulações sobre as
duas abordagens para substanciar a discussão que se procederá nas etapas
posteriores. A teoria de Chevallard tem sua origem associada ao estudo das
ciências e matemática e a utilização da mesma em outras áreas pode esbarrar
em limitações impostas pelo elevado grau de subjetividades e inconcretudes
que marcam as Ciências Humanas. A metodologia que se pretende formular se
presta, no escopo desta dissertação, à transposição de conteúdos formatados
enquanto texto linear para o formato hipertextual, rico em conexões e informa-
ções multimídia que permitirão outras leituras ou o enriquecimento da leitura
original. A possibilidade que se mostra mais adequada para o encaminhamento
da pesquisa seria a apropriação do potencial conceitual e instrumental da teoria
da transposição didática com sua adequação para outras esferas do conheci-
mento, e, em especial neste caso, para a reconstrução do livro para além do
livro enquanto papel e tinta. Uma vez que, como instrumento analítico do gêne-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 27
ro comum, o conceito de transposição didática reorganizado no âmbito das
problemáticas específicas das didáticas de diferentes campos disciplinares,
apresenta um potencial heurístico que merece ser explorado e que amplia en-
caminhamentos, normalmente tolhidos por visões dicotômicas e/ou reducionis-
tas, de posicionamento analítico frente ao potencial das contradições na apre-
ensão das práticas sociais.
A outra faceta dessa articulação diz respeito à natureza do hiper-
texto e seu posicionamento no contexto atual. O hipertexto – estrutura informa-
cional disposta em forma de rede cujos nós ou conexões são de natureza vari-
ada, podendo conter imagens, sons, animações, filmes, textos etc, oferecem
possibilidade de leitura e de navegação não-lineares e que valorizam a auto-
nomia do leitor/usuário. Diferentemente do texto, que, por sua linearidade e sua
seqüência racional, se mostram mais afeitos ao projeto modernista e seus ape-
los em favor da padronização, o hipertexto se mostra mais inserido em um con-
texto que privilegia a descontinuidade, a rejeição aos padrões e modelos secta-
ristas. Nesta etapa de problematização cabe a formulação de questionamentos
a respeito da validação do hipertexto enquanto lógica de escritura vigente. É
necessário identificar no âmbito desta pesquisa os fatores que corroboram com
ou destituem o hipertexto no encaminhamento de soluções para a formulação
de produtos e processos voltados ao ensino.
São várias as implicações da adoção do hipertexto como forma
de produção e disseminação do saber, entre as quais é possível de imediato
citar a necessidade dos suportes computacionais. O hipertexto não se encontra
restrito a esse ambiente e pode, inclusive, de acordo com teorizações de Pierre
Lévy, servir como metáfora para soluções de problemas diversos onde signifi-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 28
cações estão em jogo. Afirmar, porém que o hipertexto dispensa o uso dos
computadores e suas redes é relativizar demasiadamente a discussão a ponto
de torná-la insipiente. O hipertexto estabelecido nas redes de computadores
permite a conformação de ambientes plenamente propícios à construção de
saberes coletivos, de trocas dialógicas e do exercício da autonomia e da auto-
ria, ainda que em termos de co-autoria. Uma enorme diferenciação se compa-
rada à produção de textos na sua forma mais convencional. Os limites impos-
tos pela necessidade dos computadores para a consecução do discurso hiper-
textual transmutam-se em avanços quando tratados em termos de contextuali-
zação histórica e social. E talvez a disseminação do acesso e uso dos compu-
tadores seja apenas uma questão de tempo, assim como aconteceu ao longo
da história com os novos adventos tecnológicos.
As estatísticas apresentam números animadores em relação ao
crescimento expressivo dos computadores nos lares e escolas no Brasil, natu-
ralmente sem dar as costas para a enorme parcela da população alijada desse
processo de democratização do acesso e do uso dos recursos da informática.
Ainda assim, é possível ser otimista em relação ao crescente número de pes-
quisas e estudos que objetivam identificar a forma pela qual as relações esta-
belecidas com o uso do computador são usadas na solução de problemas no
meio escolar e que têm apresentado resultados bastante positivos. Segundo
Santos é possível afirmar que:
De fato, na medida em que avançam na manipulação do com-
putador, em casa ou na escola, as crianças têm acesso a uma
nova linguagem que caracteriza a própria Sociedade da Infor-
mação e que, certamente, permeará toda a vida futura do indi-
víduo. (SANTOS, 2005)
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 29
Diversas outras investigações realizadas por pesquisadores têm
se fixado na identificação da forma pela qual as crianças agem em ambientes e
em situações mediados por tecnologias de comunicação e informação. Segun-
do alguns autores, a criança, ao se deparar com essas situações, desenvolve
um pensamento complexo, lidando com a interatividade de modo orgânico, na-
tural e intuitivo. Ainda nessas situações a criança, segundo Lacerda, “apreende
e aplica novos códigos na construção dinâmica de conhecimentos igualmente
dinâmicos, estabelece prontamente elos entre conhecidos já detidos e novas
aquisições”. (SANTOS, 2005)
Ainda com relação à utilização do hipertexto, alheio ao uso das
redes computacionais, sua lógica estrutural se mostra próxima dos leitores na
medida em que reproduz os sistemas pelos quais as informações são armaze-
nadas e recuperadas pelo cérebro humano, fazendo uso de vínculos referenci-
ais (links) que possibilitam acesso rápido e intuitivo às informações uma vez
que a mente humana opera por associação. Outra dimensão que se modifica
com a utilização das estruturas hipertextuais é a existente na relação escri-
ta/leitura, sendo enriquecida no sentido de permitir leituras diversas a respeito
de um conjunto de informações onde cada leitor cria seu texto a partir da traje-
tória e das conexões que se permite conduzir. Nesse particular o leitor se colo-
ca em condição de assumir diferentes papéis em relação à leitura. O leitor usu-
ário, que traça seus caminhos e conduz sua leitura de acordo com suas esco-
lhas, de forma autônoma; e o leitor autor que, de acordo com as conexões que
são realizadas, cria seu próprio texto e suas próprias significações.
Segundo Ilana Snyder, o hipertexto abre possibilidades de escrita
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 30
mais efetivas ao afirmar que:
Hipertexto fornece um novo e interessante rumo à escrita a
qual se torna pedagogicamente mais efetiva. Oferece aos e-
ducadores textos mais capacitados do que os textos lineares.
A oportunidade de escrever em associação tanto quanto de
modo linear, oportuniza os educadores a pensar de várias ma-
neiras e assim encontrar novas formas de conhecimento, des-
coberta e construção. Hipertexto também facilita a colaboração
e disseminação da pesquisa, pois engloba um processo longo
e árduo de matéria. Mas a melhor maneira é experimentar com
o hipertexto, e aprender através de tentativa e erro, e modificar
de acordo. (SNYDER, 1997)
O hipertexto, ao fornecer informações que estimulam e exigem o
uso de vários dos sentidos do usuário, possibilita uma apreensão e conseqüen-
te fixação do conteúdo mais eficiente. Segundo Lévy:
a memória humana está estruturada de tal forma que nós
compreendemos e retemos bem melhor tudo aquilo que esteja
organizado de acordo com relações espaciais (...) o domínio
de uma área qualquer do saber implica, quase sempre, a pos-
se de uma rica representação esquemática. Os hipertextos
podem propor vias de acesso e instrumentos de orientação em
um domínio do conhecimento sob a forma de diagramas de
redes ou de mapas conceituais manipuláveis e dinâmicos. Em
um contexto de formação, os hipertextos deveriam portanto fa-
vorecer, de várias maneiras, um domínio mais rápido e mais
fácil da matéria do que através de audiovisual clássico ou do
suporte impresso habitual. (LÉVY, 1993, p.40)
Após o levantamento de questões e a articulação de saberes fun-
damentais no encaminhamento desta pesquisa é possível inferir que, teorica-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 31
mente respaldadas, esses saberes possibilitarão a investidura no encaminha-
mento de proposição de uma metodologia de transposição de conteúdos que,
ao fazer uso das estruturas hipertextuais, se converterá em terreno fértil à a-
presentação e discussão de informações nas salas de aula ou, ainda, nas au-
las e atividades de ensino à distância mediado por uso de computadores. A
esse respeito Lévy afirma que:
O hipertexto ou a multimídia interativa adequam-se particular-
mente aos usos educativos. É bem conhecido o papel funda-
mental do envolvimento pessoal do aluno no processo de a-
prendizagem. Quanto mais ativamente uma pessoa participar
da aquisição de um conhecimento, mais ela irá integrar e reter
aquilo que aprender. Ora, a multimídia interativa, graças à sua
dimensão reticular e não linear, favorece uma atitude explora-
tória, ou mesmo lúdica, face ao material a ser assimilado. É,
portanto, um instrumento bem adaptado a uma pedagogia ati-
va. (op. cit., p. 40)
A clara definição, o entendimento, a estruturação e a articulação
deste conjunto de saberes objetos configuram-se como problema central deste
trabalho de pesquisa e encaminham esta discussão no sentido de esclarecer a
seguinte questão: de que forma deve-se proceder à transposição de conteúdos
educativos para suportes pautados pela utilização das novas tecnologias da
informação e da comunicação, com base na teoria da Transposição Didática e
nos princípios erigidos para o hipertexto, sem se furtar às implicações não-
formais e não-tecnológicas e, sobretudo, considerando as intenções e objetivos
do autor quando da construção do texto original? Além dessa, outras questões
subjacentes ao processo de pesquisa, no que concerne ao aprofundamento na
constituição dos referenciais teóricos, devem ser esclarecidas para que se al-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 1: PROBLEMÁTICA DA PESQUISA | 32
cancem os objetivos aqui propostos.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 33
2. OBJETIVOS DA PESQUISA
Este capítulo é destinado à apresentação dos objetivos da pes-
quisa por meio da construção de um raciocínio que parte de conjecturas rela-
cionadas a um esforço de caracterização do sujeito “pós-moderno” – etapa final
de um breve levantamento histórico a respeito da conformação das identidades
nos sujeitos e dos respectivos contextos que foram cenários dessa conforma-
ção –, e avança na identificação de fatores constitutivos da sociedade da in-
formação. Neste percurso de contextualização histórica são apresentadas in-
formações que, por um lado, caracterizam o paradigma da modernidade e, por
outro, declaram sua falência enquanto padrão norteador de comportamentos
sociais. São apresentados, ainda, esforços na caracterização de um paradigma
emergente que, para além da convergência dos fenômenos sociais – e nestes
se incluem os relacionados à escola –, abrigue toda a multiplicidade de aconte-
cimentos desconectados dos paradigmas anteriores, toda a complexidade dos
fluxos e do volume de informação que permeiam a esfera das novas tecnologi-
as da comunicação, todos os novos encaminhamentos na construção do co-
nhecimento, enfim, que consiga, se é que esta tarefa é possível, abarcar toda a
entropia social que se estabelece nos dias de hoje.
Como etapa final das conjecturas que antecedem a apresentação
dos objetivos, são articuladas reflexões sobre a implicação da forma de “ser e
estar” da sociedade da informação e sua ebulição de sentidos e significações,
na esfera da educação e em seus atores.
Finalmente, são apresentados os objetivos geral e específicos
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 34
que, juntamente com os procedimentos metodológicos, nortearão os caminhos
a serem percorridos nesta pesquisa.
2.1. Ponderações iniciais
A disseminação e a sedimentação das novas tecnologias da in-
formação e comunicação no âmbito da escola se fortalecem na medida em que
se tornam freqüentes as discussões referentes ao surgimento de novas formas
de produção do conhecimento baseadas, sobretudo, no livre fluxo de informa-
ções e na comunicação aberta entre diferentes áreas do conhecimento e dife-
rentes setores da sociedade. Essa efervescência de conjecturas sobre novos
modelos vai ao encontro das argumentações a respeito da crise do paradigma
da modernidade e da conseqüente instituição de um paradigma emergente,
que culmina, para vários autores, no entendimento que se vivencia um contexto
afeito a uma possível crise no conceito de paradigma. Se, por um lado, a insti-
tuição de um paradigma que abrigue toda a gama de relações sociais torna-se
cada vez mais improvável, por outro, é consensual a assertiva de que este
“modelo” – no caso da possibilidade de sua instituição – deve contemplar o es-
tabelecimento de relações e estruturações não-lineares, complexas e dinâmi-
cas, ou seja, deve ser pautado pela flexibilidade.
As características que sugerem essa flexibilidade, somadas à difi-
culdade de estabelecimento de padrões de comportamento uniformizadores,
reforçam a emergência do surgimento de um novo modo de produção de co-
nhecimento científico e tecnológico. Gilberto Lacerda dos Santos (2005) aponta
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 35
aspectos que caracterizam esse novo modo que, em oposição ao modo tradi-
cional de produção do conhecimento,
é pautado pelo aumento da produção, pela agregação de alto
valor comercial ao conhecimento produzido, pela heterogenei-
dade institucional, pela aplicabilidade, pela contextualização,
pela transdisciplinaridade, pela instrumentação e pela reflexibi-
lidade. (SANTOS, 2005, p. 26)
Para Gibbons (1994) apud SANTOS (2005) “a produção do co-
nhecimento é cada vez mais um processo socialmente distribuído, que tende a
assumir caráter universal”.
Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, Pierre Lévy
afirmou que a humanidade tende a se organizar cada vez menos em padrões
formais e hierárquicos e a valorizar mais o aprendizado cooperativo e a inteli-
gência coletiva como nova forma de organização. Nesse sentido, a Internet
passa a ter papel fundamental como palco para essa democratização do saber,
através de sua diversidade e pluralismo. Segundo o sociólogo, o mundo de in-
formações da rede mundial faz com que nos sintamos em uma espécie de se-
gundo dilúvio, impossibilitados de abraçar o todo e definir o essencial. Por isso,
é necessário que cada grupo ou indivíduo faça sua própria seleção, de modo a
dar um sentido às informações.
Virgínia Kastrup complementa a discussão na medida em que a-
firma que, para a psicologia contemporânea, o desafio relativo à aprendizagem
dos dispositivos técnicos é entender como passar do problema à problematiza-
ção, do obstáculo à invenção.
“Não se trata somente da adaptação a um novo ambien-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 36
te, mas o acoplamento com os computadores deve ser
entendido pelos devires cognitivos que eles podem pro-
duzir, bem como pela nossa capacidade de constituirmos
com eles domínios cognitivos e contextos existenciais lo-
cais e consistentes” (KASTRUP, in PELLANDA et al., p.
38).
A partir de uma leitura histórico-cultural é possível identificar dife-
rentes posicionamentos dos atores sociais em função da construção de suas
identidades e inferir a forma pela qual as informações e o conhecimento eram
produzidos. Stuart Hall (2000) aponta para a identificação de três tipos de sujei-
tos, baseados em contextos específicos ao longo da história moderna da hu-
manidade e que são dotados de características e capacidades distintas: ilumi-
nista, sociológico e pós-moderno.
O sujeito do Iluminismo estava baseado, segundo Hall, numa
concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unifica-
do, dotado de capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro”
consistia num núcleo interior.
A noção de sujeito sociológico refletia, ainda segundo Hall, a
crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este nú-
cleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na
relação com outras pessoas que lhe propunham significações. De acordo com
essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica e que vai ao en-
contro da visão de sujeito de Vygotsky, a construção do pensamento possui um
caráter dialético, na medida em que o indivíduo tem sua identidade erigida por
meio da interação dialógica com o meio e com seus pares.
“A identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a so-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 37
ciedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência inte-
rior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado
num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exterio-
res’ e as identidades que esses mundos oferecem”
(HALL, 2000, p.11).
Finalmente, no sujeito pós-moderno, a identidade converte-se em
um acontecimento em permanente mutação, formando-se e transformando-se
continuamente em relação às formas pelas quais os indivíduos são representa-
dos ou interpelados nos sistemas culturais que os cercam. Esta identidade as-
sume uma caracterização histórica e não biológica.
As sociedades da pós-moderinidade ou, como preferem alguns
autores, da “modernidade tardia”, são caracterizadas, segundo Ernest Laclau
(1990), pela diferença. Elas são atravessadas por diferentes divisões e antago-
nismos sociais que produzem uma variedade de diferentes posições de sujeito
– isto é, identidades – para os indivíduos.
No contexto sócio-educativo, o professor passa a se deparar,
pressionado pelos novos posicionamentos ideológicos, com a necessidade de
abordagens que considerem fundamentalmente as singularidades dos apren-
dentes, chegando-se mesmo em um nível quase individualizado de mediação.
Neste sentido, o uso das novas tecnologias da informação e comunicação, em
especial a informática com suas estruturas hipertextuais, converte-se em um im-
portante recurso para o encaminhamento de um processo de construção do co-
nhecimento que considera o indivíduo e suas relações dialógicas com múltiplas
vozes e acompanhadas pos múltiplos olhares, resultando em produções coletivas,
complexas e não-lineares.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 38
2.2. Como chegamos aos dias de hoje
A proposta neste ponto é caracterizar o atual contexto da pós-
modernidade, modernidade tardia, sociedade da informação, cibercultura, en-
fim, identificar as tensões sociais que marcam as relações entre os atores das
sociedades contemporâneas e suas formas de pensar e de se comportar.
Para melhor compreensão das relações e ações que se estabele-
cem na contemporaneidade e para a materialização de projeções futuras é ne-
cessário entender a forma pela qual se configuraram importantes acontecimen-
tos no passado. A discussão inicial sobre esses acontecimentos se concentra
na identificação de fatores que antecederam, que caracterizaram e, mais re-
centemente, denunciaram a crise do paradigma da modernidade, incentivando
esforços na tentativa de constituição de um paradigma emergente, ou algo pró-
ximo disso.
2.2.1. Crise do paradigma da modernidade
Para um melhor entendimento das conexões entre modernidade e
a transformação do tempo e do espaço é necessário promover o retorno e a
caracterização das relações tempo-espaço na sociedade pré-moderna.
Entender as relações da sociedade com seu tempo é um primeiro
passo no sentido de perceber a maneira pela qual as tecnologias da inteligên-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 39
cia são estabelecidas, produzindo significações e re-significações em tempos
posteriores.
Todas as culturas pré-modernas possuíam formas de se relacio-
nar com o tempo, de calcular o tempo. A proximidade dos indivíduos com a
natureza os conduzia ao estabelecimento de referenciais locais para a institui-
ção das unidades temporais, as horas, os dias. Tal prática resultava numa no-
ção de senso temporal predominantemente cíclico, baseado em estações e
local, fato este que, segundo Anthony Giddens (1991), caracterizava as socie-
dades pré-modernas como baseadas sobre relações sociais as quais se encon-
travam encaixadas no tempo e no espaço.
Giddens aponta para a invenção do relógio como um marco im-
portante para a transição das sociedades tradicionais para as modernas na
medida em que sugeria a fragmentação de uma unidade anteriormente não
percebida. “O relógio expressava uma dimensão uniforme de tempo ‘vazio’
quantificado de uma maneira que permitisse a designação precisa de ‘zonas’
do dia” (GIDDENS, 1991, p. 26).
O relógio não é baseado no tempo sazonal, mas num tempo so-
cial e artificial. Esta noção de tempo é linear e não cíclica e, portanto pode ser
usada para previsões. Tal noção moderna de tempo ajuda a produzir um sen-
timento entre os indivíduos de que o mundo está encolhendo. As distâncias
passaram a diminuir a partir do momento em que as comunidades começaram
a ajustar seu senso de tempo com o de outra comunidade do outro lado do
globo.
O processo de modernização “distanciou” os indivíduos e as co-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 40
munidades das sociedades tradicionais destas noções estreitas de tempo, es-
paço e status. A modernização “desencaixou” o indivíduo feudal de sua identi-
dade fixa no tempo e no espaço. “Por desencaixe me refiro ao ‘deslocamento’
das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação a-
través de extensões indefinidas de tempo-espaço” (op. cit., p. 29). Mais tarde,
será discutida a implicação destas mudanças nas relações sociais e aconteci-
mentos da contemporaneidade, uma vez que, o tempo “cronos” imputa aos in-
divíduos relações não naturais, ou seja, que violam sua condição de seres vi-
vos “encaixados” em um contexto que, não necessariamente, segue cartesia-
namente o “relógio social”.
Este mesmo “relógio social” contribui na mudança das noções de
tempo e a relação tempo-espaço adquire dimensões que posicionam os indiví-
duos e a sociedade num cenário marcado por novos modelos, por novos posi-
cionamentos sociológicos, novas relações econômicas e novas concepções e
construções identitárias.
Constitui-se, então, um cenário com relações sociais absoluta-
mente características, que tem suas origens, no plano econômico, ligadas ao
advento da máquina a vapor que impulsionou o capitalismo e, no plano das
idéias, à Filosofia das Luzes que, difundida a partir do século XVIII, pregava o
desenvolvimento moral e material do homem pelo conhecimento.
Historicamente, o projeto instaurado pelos ideais iluministas afir-
mava a razão e o método científico como as únicas fontes de conhecimento
válido, negando as concepções de imobilidade social fruto de uma dominação
que se sustentava pelo temor e pelo castigo divinos. O novo paradigma rejeita-
va qualquer concepção de mundo derivada do dogma, da superstição e da fan-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 41
tasia, sustentando-se em três ingredientes conceituais, que seriam: a universa-
lidade, a individualidade e a autonomia. Maria Helena Dias (2000) afirma que:
“o projeto iluminista visava todos os homens, enquanto
pessoas concretas, independentemente de fronteiras na-
cionais, étnicas ou culturais, mas, ao mesmo tempo, tais
pessoas deveriam agir por si mesmas, participando ati-
vamente de um projeto público e adquirindo por seus
próprios meios as condições de subsistência” (DIAS,
2000).
Para Eagleton (1993), ao homem moderno correspondia o papel
de inventar-se a si mesmo, dando validade aos conceitos que conclamavam à
individualidade e, em especial, à autonomia.
"O homem moderno não é o homem que sai à procura
de si mesmo, de seus segredos, sua verdade escondida:
é o homem que busca inventar a si mesmo. A moderni-
dade não 'libera o homem em seu próprio ser'; ela o o-
briga a enfrentar a tarefa de produzir a si mesmo" (EA-
GLETON, 1993, p. 282).
A modernidade, explicitada por meio da fala de Weber, se consti-
tui, segundo Rouanet, no resultado daquele processo de racionalização preco-
nizado pelas Luzes, que pressupunha a ligação do conhecimento patrocinado
pelas ciências com os valores universais de progresso social e individual, e que
produziu enormes modificações não só na sociedade como também na cultura
(ROUANET, 1998).
No âmbito social, a modernidade produziu substanciais diferenças
na economia com o advento do capitalismo enquanto modelo que supõe a exis-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 42
tência da força de trabalho formalmente livre; a organização racional do traba-
lho deslocada das noções pré-modernas de imobilidade social e de relação
direta com o tempo natural; o cálculo contábil e a utilização técnica de conhe-
cimentos científicos, características que promoveram a expansão das nações
capitalistas dos séculos XIX e XX. As relações fortemente baseadas na acumu-
lação de capital e na exploração do homem pelo homem, com suas metrópoles
industriais, meios de comunicação e fontes de energia, bem como o estabele-
cimento do poder da burguesia capitalista proprietária dos bens.
Segundo Dias (2000), foi através de Hegel e seus seguidores que
a filosofia, por um lado exerceu um papel bem definido, o de refletir sobre a
modernidade, seus impasses e contradições e por outro buscou resolvê-los,
através da prática política como preconizou Marx, reafirmando sempre, porém,
sua confiança absoluta na razão como instrumento adequado para instaurar a
paz e a felicidade entre os homens (DIAS, 2000).
A arte, também por sua vez distanciando-se da religião, tornou-se
mais e mais autônoma com o aparecimento do mecenato secular e a produção
artística para o mercado. Os artistas deixaram de servir exclusivamente ao po-
der político e libertaram-se de suas funções no interior da igreja, do tribunal e
do estado, passando a reger-se por suas próprias leis. Segundo Dias, o seu
significado tornou-se, então, meramente suplementar ligado ao lado afetivo-
instintivo não instrumental da psique, uma espécie de válvula de escape. Sua
independência em relação ao ético e ao político, porém, se deu de forma para-
doxal na medida em que aconteceu em função de sua integração ao mercado,
sua transformação em mercadoria (DIAS, 2000).
“A estética, em contraposição, se propôs a reverter o
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 43
processo de divisão das áreas da história, estetizando a
verdade e a moral: propondo a arte como uma reconcili-
ação ideal do sujeito com o objeto, do universal e do par-
ticular, da liberdade e da necessidade, da teoria e da
prática, do indivíduo e da sociedade. Entretanto, incapaz
de quebrar o sistema, legou-nos formas de subversão
secreta, de resistência silenciosa e recusa teimosa, sen-
do o ‘Modernismo’ uma de suas manifestações” (EA-
GLETON, 1993, pp. 264-266).
As rupturas e o distanciamento com as estruturas sociais das so-
ciedades pré-modernas não seriam suficientes para garantir vida longa e into-
cável para o novo paradigma moderno. As tensões sociais não se acomodam
frente aos limites rígidos do modelo marcado pelo determinismo científico e
novos movimentos entram em ebulição, questionando, re-significando, des-
construindo e redimensionando o tempo e o espaço. Não há como negar as
múltiplas vozes, as identidades plurais, as estruturas não-lineares, a complexi-
dade social.
A confrontação de questões como a separação entre tempo e es-
paço nos fenômenos ocasionados nas relações sociais; o desenvolvimento de
mecanismos de desencaixe, onde um número cada vez maior de pessoas vive
em circunstâncias nas quais instituições desencaixadas, ligando práticas locais
a relações sociais globalizadas, organizam os aspectos principais da vida coti-
diana; a apropriação reflexiva do conhecimento por parte da sociedade; a glo-
balização como agente intensificador das relações sociais em escala mundial,
que liga localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são
modulados por eventos ocorridos a muitas milhas de distância e vice-versa; a
desatenção civil figurando como aspecto fundamental das relações de confian-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 44
ça nos cenários anônimos da modernidade; permite-nos vivenciar o que pode-
mos chamar de atualização da modernidade ou, para ser mais contemporâneo,
up-grade da modernidade.
2.2.2. O paradigma emergente
Afirmar que adentrar a uma fase de pós-modernidade pressupõe
uma ruptura drástica com a trajetória de desenvolvimento social das institui-
ções da modernidade rumo a um novo e diferente tipo de ordem social é sufici-
ente para defender a idéia de que vivemos uma modernização tardia, como
defende Canclini, ao afirmar que “a hipótese mais reiterada na literatura sobre
modernidade latino-americana pode ser resumida assim: tivemos um moder-
nismo exuberante com uma modernização deficiente” (CANCLINI, 1997).
A assertiva de Canclini, no entanto, não encontra eco e, sequer
unanimidade nas teorizações sobre o tema. As divergências são muitas e cons-
titui-se fértil terreno de dicotomias e idiossincrasias. A globalização – marca
inquestionável de uma sociedade da pós-modernidade – é, para Octávio Ianni,
uma realidade problemática, atravessada por movimen-
tos de integração e fragmentação simultaneamente à in-
terdependência e acomodação, desenvolvem-se fusões
e antagonismos: implicam tribos e nações, coletividades
e nacionalidades, grupos e classes sociais, trabalho e
capital, etnia e religiões, sociedade e natureza. São mui-
tas as diversidades e desigualdades que se desenvol-
vem com a sociedade global. Algumas são antigas e ou-
tras recentes, surpreendentes. Para compreender os
movimentos e as tendências da sociedade global, pode
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 45
ser indispensável compreender como as diversidades e
desigualdades atravessam o mundo(IANNI, 1997).
Dênis de Moraes, em Planeta Mídia, aponta uma direção que, tal-
vez, sugira caminhos rumo a um mundo globalizado habitado por seres amor-
fos, que não interferem nos processos culturais, mas simplesmente sofrem a
ação deles:
“Este é um tempo de fluxos e sinergias, de trânsitos e in-
terfaces. A incontrolável aceleração tecnológica põe em
xeque o que conhecemos por vida social. Circuitos infoe-
letrônicos e imagens geradas por satélites comprimem a
imensidão da Terra; as informações, mal chegaram, já
estão de partida, porque o tempo real se esvanece e se
restaura sem direito a intervalos.
Por vias transversas, o fenômeno da mundialização aba-
la valores e referências culturais. As antigas identidades
por laços comunitários entram em curto-circuito, assim
como as formas representativas clássicas e as ampulhe-
tas para a fruição do tempo cronológico. A dinâmica de
consumo assume hegemonia na gestão dos espaços
sociais, por sobre limites geográficos, vontades, tradi-
ções. As sociedades passam a ser guiadas pela astúcia
do marketing e dos planejamentos estratégicos – ambos
possuídos pela fixação de manter o capital em rotação e
rentabilizá-lo ao máximo. A exacerbação consumista in-
terfere na cotidianidade e nas relações humanas, formu-
lando marcas distintivas entre pessoas e grupos, na
mesma proporção em que conclama ao individualismo e
ao descompromisso ideológico” (MORAES, 1998).
Já Lúcia Santaella, ironiza a discussão do boom pós-modernista
nas culturas latino-americanas, afirmando que:
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 46
“a desconstrução da racionalidade bem comportada, a
abertura de brechas na ordem estabelecida, a atração
pela imprevisibilidade das descobertas e da alteridade,
tidas como tônicas da sensibilidade pós-moderna, são
ingredientes congênitos das culturas latino-americanas”
(SANTAELLA, 2003, p 70).
Hoje, os processos globais de todas as ordens e o fenômeno da
mundialização da cultura tornaram-se tão evidentes que não podem mais es-
capar à atenção nem mesmo dos leigos. Ianni nos diz que: “a Terra mundiali-
zou-se de tal maneira que o globo deixou de ser uma figura astronômica para
adquirir mais plenamente sua significação histórica” (IANNI, 1992).
As mudanças são visíveis e inegáveis, a proposição de um novo
modelo talvez improvável. É essencial reunir, a partir de concepções tão diver-
sas, pontos de convergência na caracterização da contemporaneidade e na
possível constituição de centros de referência, o que, em certa medida, torna
frágil o paradigma da modernidade e pode indicar, em uma proposição embrio-
nária, indicativos para a construção de um paradigma emergente. Neste ponto,
cabe lembrar que a crise do paradigma da modernidade inaugurou um período
de incertezas onde surgiu uma infinidade de ponderações que apontam para a
crise do conceito de paradigma.
A identificação de conceitos convergentes à questão de um pos-
sível paradigma emergente torna clara a dificuldade de determinação deste
mesmo paradigma. Dentre estes conceitos é possível citar alguns que encon-
tram apoio em várias teorizações contemporâneas:
Identidade plural – A noção de sujeito do Iluminismo que, se-
gundo Hall, “estava baseado numa concepção de pessoa humana como um
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 47
indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de capacidades de razão, de
consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior”, deixa de
existir e cede lugar ao sujeito pós-moderno, concebido como não tendo uma
identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se “uma celebra-
ção móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos ro-
deiam” (HALL, 2000).
Diversidade – Para Ernest Laclau, “as sociedades da moderni-
dade tardia são caracterizadas pela ‘diferença’; elas são atravessadas por dife-
rentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de dife-
rentes ‘posições de sujeito’ – isto é, identidades – para os indivíduos” (LA-
CLAU, 1990).
Mutabilidade – Nas palavras de Kumar, as sociedades contem-
porâneas demonstram um novo ou reforçado grau de fragmentação, pluralismo
e individualismo. “O pós-modernismo destaca sociedades multiculturais e mul-
tiétnicas. Promove a ‘política da diferença’. A identidade não é unitária nem
essencial, mas fluida e mutável, alimentada por fontes múltiplas e assumindo
formas múltiplas” (KUMAR, 1997).
Sociedade do espetáculo – Toda a vida das sociedades nas
quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imen-
sa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na
fumaça da representação. Segundo Debord, “o espetáculo não é um conjunto
de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”
(DEBORD, 1997).
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 48
Segundo Jameson, o “povo novo da pós-modernidade se ambien-
ta no ‘fluxo total ou ininterrupto das imagens’, colonizado em seus hábitos, fan-
tasias e aspirações: vive uma cultura do eterno presente, que substitui a expe-
riência pelo espetáculo” (JAMESON, 1996).
Subjetividade – Marilena Chauí observa que “a pós-modernidade
proclama a falência da razão para cumprir a promessa emancipatória e exibe a
sua força opressora sobre a natureza e sobre os homens (...), a pós-
modernidade nega a validade dessa separação [entre sujeito e objeto] e pro-
clama o reino do desejo e da sensibilidade contra as ilusões da objetividade”
(CHAUÍ, 1992).
A partir das informações reunidas a respeito da identidade dos
sujeitos e seus contextos de afirmação é possível propor articulações no senti-
do do estabelecimento de fortes relações associativas entre a modernidade – a
partir de sua padronização de visões, da padronização de percursos, da linea-
ridade, da dissociação entre produtor e consumidor –, e o processo de industri-
alização, e, por conseguinte, argumentar que a produção textual nos moldes
convencionais, fixada num encadeamento linear, se “encaixa” melhor neste
contexto. Santos (2005), sobre a modernidade afirma:
E não é difícil imaginar o cenário-berço do movimento moder-
no, pautado pela organização das grandes metrópoles, pelo
esvaziamento do campo e do trabalho agrário, pelo estabele-
cimento de novos códigos sociais, pela reestruturação da célu-
la familiar, pelo surgimento dos movimentos operários e sindi-
cais, pelo fortalecimento do aparato produtivo da industrializa-
ção, e conseqüentemente do capital, pelo estabelecimento de
um novo modo de vida, mais adequado à vida na cidade.
(SANTOS, 2005)
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 49
Por outro lado, a sociedade da informação reúne condições pro-
pícias à argumentação em favor da associação dessa com a produção de con-
teúdos de forma não linear, ou seja, com os hipertextos. Nas várias áreas das
ciências, da indústria, da economia a nas relações sociais ora estabelecidas, é
possível reconhecer uma forte mudança de visão e posicionamento, uma ruptu-
ra para com o padrão vigente e, mais que isso, uma quebra e conseqüente a-
bandono da sujeição aos modelos pré-concebidos e pré-determinados, típicos
da modernidade.
Nesse sentido, segundo Santos (2005), o movimento pós-
modernista se concentra em perspectivas cognitivistas impregnadas de contex-
tos de valorização dos indivíduos enquanto sujeitos capazes de compreender,
integrar e disseminar os códigos que modelam a sociedade atual, re-
significando, de maneira única, antigos comportamentos agora inseridos em
diferentes movimentos sociais.
É possível então concluir que talvez a grande pretensão deste
movimento seja a união do homem ao homem, na medida em
que ele é substancialmente valorizado e reverenciado como
agente ativo da construção da história, não através de um en-
gajamento em movimentos sociais quaisquer, mas apenas e-
xistindo, contribuindo para a riqueza universal com sua riqueza
individual. Tal idéia ressalta uma vocação humanística do pós-
modernismo e o situa na posição de uma grande metanarrati-
vas suscetível de justificar e explicar, da maneira mais holísti-
ca possível, a dinâmica funcionalista da sociedade contempo-
rânea. (op. cit.)
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 50
2.2.3. Implicações na educação
Os conceitos apresentados como idéias convergentes frente à
formulação de um paradigma emergente não poderiam estar dissociados do
campo das idéias, da emergência de um novo modo de construção do conhe-
cimento e das ações pedagógicas. É necessário, portanto, tentar identificar em
que medida e de que maneira estes pressupostos interferem na esfera escolar
e, sobretudo, na configuração, na medida do possível, desse novo modo de
construção do conhecimento.
O conhecimento, segundo Moran, não é fragmentado, mas inter-
dependente, interligado, intersensorial. Conhecer significa compreender todas
as dimensões da realidade, captar e expressar essa totalidade de forma cada
vez mais ampla e integral. “Conhecemos mais e melhor conectando, juntando,
relacionando, acessando o nosso objeto de todos os pontos de vista, por todos
os caminhos, integrando-os da forma mais rica possível” (MORAN, 2000).
Para Lyotard, a ciência “pós-moderna” volta-se para coisas “inde-
cidíveis, paradoxos, catástrofes, paralogia, abandono das grandes narrativas
centralizadoras, pois produz não o conhecido, mas o desconhecido”. Morin a-
firma que todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão e que a edu-
cação deve, portanto, dedicar-se à identificação da origem dos erros, ilusões e
cegueiras. O modelo de aquisição do saber baseado na idéia de formação de
um padrão geral de vida e na figura do professor como competente para
transmitir o conhecimento estabelecido torna-se, então, obsoleto (MORIN,
2003).
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 51
Partindo da dimensão que infere que as exigências do mundo
contemporâneo impulsionam um redimensionamento da ação docente para
atender as necessidades da sociedade que, segundo Drucker, Toffler, Boaven-
tura e outros, passa a ser identificada como “sociedade da informação”, enten-
de-se que os professores já não poderão oferecer a seus alunos a mesma prá-
tica pedagógica que foi oferecida a eles em sua formação. Behrens afirma que
“as inovações e mudanças afetam toda a comunidade, até mesmo, e em espe-
cial, o meio acadêmico” (BEHRENS, 1998).
Esta sociedade que começa a ser configurada impõe novos desa-
fios e novas propostas nas relações sociais, no entendimento do tempo e do
espaço como dimensões simultaneamente fragmentadas e desterritorializadas
e na percepção de acontecimentos locais movidos por eventos globais. Esses
pressupostos estão muito afastados dos paradigmas que propõem práticas pe-
dagógicas autoritárias e conservadoras.
O professor “pós-moderno” precisa ser crítico, reflexivo, pesqui-
sador, criativo, inovador, questionador, articulador e interdisciplinar. Behrens
sugere, ainda, que o aluno, por sua vez, precisa ser “pesquisador por excelên-
cia, curioso acadêmico, criativo e reflexivo. Ao buscar inovações, questionar
suas ações, ser crítico e criar o hábito de leitura das informações seja pelos
livros, seja por acesso aos meios informatizados” (BEHRENS, 1998).
É difícil dialogar sobre tecnologia e educação sem abordar a
questão do processo de aprendizagem. A tecnologia apresenta-se como meio,
como instrumento para colaborar no desenvolvimento do processo de aprendi-
zagem. A tecnologia reveste-se de um valor relativo e dependente desse pro-
cesso.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 52
O aluno, num processo de aprendizagem, assume, segundo Ma-
setto, papel de “aprendiz ativo e participante (...), de sujeito de ações que o
levam a aprender e a mudar seu comportamento”. Ainda na fala de Masetto, o
professor, alheio ao papel que vez por outra ainda assume como especialista
que possui conhecimento e experiências a comunicar, deve desempenhar o
papel de “orientador das atividades do aluno, de consultor, de facilitador da a-
prendizagem, de alguém que pode colaborar para dinamizar a aprendizagem
do aluno, desempenhar o papel de quem trabalha em equipe, junto com o alu-
no, buscando os mesmos objetivos; numa palavra, desenvolver o papel de me-
diação pedagógica” (MASETTO, 2000).
Ainda com relação ao processo de aprendizagem é possível infe-
rir que se conhece mais e melhor quando as informações são conectadas, jus-
tapostas, relacionadas, quando se acessa o objeto de estudo de todos os pon-
tos de vista, por todos os caminhos, integrando-os da forma mais rica possível.
As informações são processadas de várias maneiras, segundo o objetivo e o
universo cultural. A forma mais habitual é, segundo Behrens, o processamento
lógico-seqüencial, que se expressa na linguagem falada e escrita, e no qual se
constrói o sentido aos poucos, em seqüência espacial ou temporal.
Em outros momentos as informações são processadas de forma
hipertextual, contando-se histórias, relatando-se situações que se interconec-
tam, que se ampliam e levam a novos significados importantes, inesperados ou
que terminam diluindo-se nas ramificações de significados secundários. A leitu-
ra hipertextual é feita em ondas, em que uma leva à outra, acrescentando no-
vas significações. A construção é lógica, coerente, sem seguir uma única trilha
previsível, seqüencial, mas que vai se ramificando em diversas trilhas possíveis.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 53
Quanto mais se mergulha na sociedade da informação, mais são
as demandas imprevisíveis e que exigem respostas instantâneas. Um dos
grandes desafios para o educador é ajudar a tornar a informação significativa, a
escolher as informações verdadeiramente importantes entre tantas possibilida-
des, a compreendê-las de forma cada vez mais abrangente e profunda e torná-
la parte de nosso referencial. Morin, advogando em favor do caráter reflexivo
que as respostas às incertezas exigem, afirma que
“o pensamento deve, então, armar-se e aguerrir-se para
enfrentar a incerteza. Tudo que comporta oportunidade
comporta risco, e o pensamento deve reconhecer as o-
portunidades de risco como os riscos das oportunidades.
(...) Mas vimos também que o inesperado torna-se pos-
sível e se realiza; vimos com freqüência que o imprová-
vel se realiza mais que o provável; saibamos, então, es-
perar o inesperado e trabalhar pelo improvável” (MORIN,
2003).
Diante da perspectiva de processamento de informações dentro
de uma lógica não seqüencial, envolvido em um contexto marcadamente instá-
vel, incerto e imprevisível, a adoção da lógica hipertextual na composição de
conteúdos educativos e na construção do conhecimento em tempos pós-
modernos se mostra como uma possibilidade concreta.
Félix Guatari considera a informática como o mais recente e im-
portante dos equipamentos coletivos de subjetivação. A novidade em seu uso
estaria não na entrada da subjetividade nas máquinas, fato que recorrentemen-
te testemunhou-se, mas por abrir a possibilidade para uma processualidade
criativa e singularizante tornar-se a nova referência de base. “A informática for-
nece também os componentes para que a subjetividade adquira consistência
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 54
no espaço e no tempo, sem determiná-la diretamente.” (GUATARI, 1987, p.
182)
Pierre Lévy (1990, 1995) faz uma exploração nesse campo e a-
firma que é na interface do computador com o usuário que devemos buscar a
explicação para as transformações cognitivas que têm lugar no contemporâ-
neo. Para Lévy, a interface é um “campo de agenciamentos”. Não é individual
nem social, não pertence exclusivamente ao objeto técnico, mas também não é
própria do sujeito. E aponta o caráter dicotômico desta relação como forma de
tornar turva a real percepção em relação a estes agenciamentos cognitivos:
“São essas grandes dicotomias que nos impedem de re-
conhecer que todos os agenciamentos cognitivos concre-
tos são, ao contrário, constituídos por ligas, redes, con-
creções provisórias de interface que pertencem geral-
mente aos dois lados das fronteiras ontológicas tradicio-
nais” (LÉVY, 1990, p. 183)
Pensar atualmente na informática, não mais pela presença dos
computadores, mas pela estrutura da rede internet como mecanismo de esta-
belecimento de novas relações sociais, possibilita a verificação de que os usuá-
rios se postam, em um só tempo, enquanto consumidores e também produto-
res de informação. Essa alternância, num tempo quase imediato, das funções
de receptor e emissor pode concorrer com a mudança das relações dos indiví-
duos com a informação. Mudança na qual, segundo Vingínia Kastrup (1999),
residem grandes possibilidades de reestruturações sócio-políticas, a partir de
mudanças nos processos cognitivos vigentes.
A velocidade com que as informações circulam entre os
usuários, mas também o acesso a imensos e variados
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 55
bancos de dados, pode acionar o funcionamento diver-
gente da cognição, alterado a hegemonia do funciona-
mento convergente, característico da recognição. Além
disso, o efeito que uma mensagem enviada pode gerar
em interlocutores muito afastados, tanto espacialmente
quanto na hierarquia de saberes até então dominantes,
pode ocasionar transformações políticas importantes.”
(KASTRUP, 19991 p. 191)
Como afirma Guattari (1993), entretanto, nada está ganho e não
se pode achar que a informática e suas adjacências substituirão outras práticas
sociais inovadoras. Os efeitos da informática dependem das forças às quais ela
serve e dos saberes que aproxima. “Por tudo isso, deve-se recusar o falso di-
lema entre a tecnofobia e um otimismo inconseqüente em reação à informática”
(GUATTARI, 1993, p. 187).
Finalizando a apresentação do contexto no qual estão inseridos
os atuais esforços de construção de uma visão, tanto clara quanto consciente,
de que as redes de informação podem se converter em aliadas no estabeleci-
mento de novas relações sociais – sobretudo na construção do conhecimento
no ambiente escolar –, percebe-se que a provisoriedade e mutabilidade dos
encadeamentos informacionais põem em risco a estabilidade destas relações
na medida e que estas são forjadas no meio e não através deste.
O computador, e mesmo a internet, podem funcionar a-
penas como próteses de memória e inteligência e nada
significam de importante se nossa relação com a infor-
mação continuar a mesma. Mas o que me parece impor-
tante é que, nas características que apresentam e nos
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 56
atributos que lhes são próprios, as redes informáticas
nos fornecem meios de mudar essa relação, fazendo a
cognição diferir de si mesma e criando, num mesmo mo-
vimento, novos territórios existenciais.” (KASTRUP,
1999, p. 191)
Por outro lado, as estruturas hipertextuais convertem-se em exce-
lente possibilidade para a condução de trocas pedagógicas na medida em que
propicia ao aluno uma riqueza de conexões para a produção de sentidos ao
permitir, por meio de um trabalho autônomo, que este se depare com situações
de ação e criação. E mais, o aluno no hipertexto, ao alternar-se nos papéis de
leitor e autor – com base na forma de acesso, interação e encadeamento das
informações –, criam redes semânticas entre as informações ali contidas e os
elementos mediáticos que o amplificam.
A despeito das contradições ou, pelo menos, da não concordân-
cia com algumas abordagens em favor do uso do hipertexto, é consensual a
assertiva de que as estruturas hipertextuais, enriquecidas por recursos multi-
modais, representam uma nova realidade comunicativa que ultrapassa as pos-
sibilidades de interpretação dos gêneros multimodais convencionais, diferenci-
ando-se, ainda, pelo grau de autonomia que transfere a seus usuários. Vários
autores (Landow 1997, Snyder 1996, Xavier 2202) concordam que a estrutura
rizomática do hipertexto eleva a capacidade de “leitura” dos usuários, e suge-
rem que o texto “disperso” e “descentrado” confere ao leitor maior poder sobre
sua leitura e, por conseguinte, favorece a pluralidade de sentidos por meio das
interpretações textuais. Nesse mesmo sentido, Denise Braga (2005) explica
que a abrangência da leitura hipertextual favorece, para além da pluralidade, a
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 57
ampliação da construção de sentidos:
Como esses diferentes tipos de significados não são indepen-
dentes entre si, ou seja, eles se integram na construção do
sentido textual, é possível compreender por que em produções
multimodais as possibilidades de construção de sentido se
ampliam: os diferentes tipos de significado veiculados por cada
modalidade individual se integram e se complementam de
forma a auxiliar a interpretação geral ou a de segmentos parti-
culares do texto. (BRAGA, 2005, p. 149)
Lina Morgado, ao discutir as vantagens na utilização do hipertexto
na educação, apresenta diferentes perspectivas em relação às possibilidades
de aprendizagem: por meio da descoberta – em que, em uma teia de informa-
ções interligadas, o usuário aprenderá ao explorar e descobrir no espaço de
informações, de modo incidental e pela experiência autônoma individual; por
associação – em que o usuário, informalmente, e por fatores motivacionais,
realiza algum tipo de aprendizagem; implícita – opondo-se à aprendizagem ex-
plícita. Mesmo ressaltando essas vantagens, vários autores (Oliveira, Costa,
Moreira, 2001) reconhecem a necessidade de um esforço constante por parte
dos educadores no sentido de converterem a simples utilização dos computa-
dores em sala de aula numa abordagem educacional que favoreça efetivamen-
te o processo de significação e conhecimento do aluno, convertendo a intera-
ção do mesmo com os objetos de aprendizagem, o desenvolvimento de seu
pensamento hipotético-dedutivo, a sua capacidade de integração e análise da
realidade, em momentos privilegiados e que suscitam a emergência de novas
estratégias cognitivas no sujeito.
Expostos pressupostos teóricos, informações de contextualiza-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 58
ção, conjecturas articulando diferentes falas relacionadas ao tema, serão apre-
sentados, a seguir, os objetivos propostos para essa pesquisa, partindo-se de
um âmbito mais geral que, em seqüência, se divide em objetivos específicos.
2.3. Objetivos
Com base nas informações apresentadas na determinação do
problema de pesquisa configura-se como objetivo deste projeto a elaboração
de uma metodologia de transposição de conteúdos educativos dispostos em
suportes tradicionais para suportes com informações multimediadas e estrutu-
rados de forma hipertextual.
Este objetivo permite o estabelecimento de questões de pesquisa
gerais e específicas, que, uma vez esclarecidas, permitirão a sistematização da
referida metodologia de forma coerente e clara.
Antes, porém, é necessário o aclaramento de informações que
serão fundamentais para a determinação dos objetivos geral e específicos. A
metodologia de transposição proposta a partir deste estudo deverá ter como
objeto de aplicação um livro paradidático cujos objetivos do autor voltam-se
para a inserção de noções de geometria básica em crianças. Estes objetivos
devem ser preservados e a nova estruturação – de forma hipertextual – deverá
ser estabelecida a partir dos princípios do hipertexto propostos pelo responsá-
vel por várias teorizações sobre o tema na atualidade, Pierre Lévy.
Informações estas que inferem na seguinte questão: em que me-
dida é possível transpor um material didático convencional para a forma de um
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 59
hipertexto guardando, ao mesmo tempo, características próprias do autor – tais
como a intencionalidade e os objetivos de aprendizagem –, e as características
de um hipertexto de acordo com os princípios propostos por Pierre Lévy?
Esta questão direciona a pesquisa para a proposição de objetivos
e posteriores encaminhamentos de pesquisa de conteúdo teórico para alcançá-
los, preferencialmente, em sua plenitude.
2.3.1. Objetivo geral
Elaborar uma metodologia de transposição do conteúdo de um li-
vro paradidático estabelecido em suporte convencional para um suporte multi-
mídia estruturado de modo hipertextual.
2.3.2. Objetivos específicos
Elaborar uma metodologia de transposição do conteúdo de um li-
vro paradidático para a forma hipertextual, levando em considera-
ção questões tais como:
Identificação e categorização dos objetivos propostos pelo autor
da obra;
Alteração de elementos textuais para adequá-los aos princípios
do hipertexto propostos por Pierre Lévy;
“Elaboração” do conjunto de signos existentes na obra original;
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 2: OBJETIVOS | 60
Identificação, quando necessário, de auxílios internos e exter-
nos ao hipertexto;
Estabelecimento dos limites de navegabilidade do hipertexto.
“Desconstruir” a obra escolhida, trabalhando na categorização
das informações obtidas;
“Reconstruir” o livro a partir do estabelecimento de uma estrutura
hipertextual;
Desenvolver a programação do livro, ou parte deste, com uso de
tecnologia que permita a operacionalização do mesmo em ambi-
ente web (internet).
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 61
3. HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO: POSSIBILIDADES DE
TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA
Este capítulo reúne informações relativas à conceituação, ao uso
e às possibilidades do hipertexto. A partir de um breve histórico pretende-se
estabelecer conexões do hipertexto com acontecimentos sociais, com meios
tecnológicos, e, sobretudo, propor reflexões a respeito de seu uso no contexto
da educação.
O hipertexto, longe de ser uma inovação estrutural da “escritura”
inerente aos ambientes computacionais, é diretamente associado às formas
pelas quais os indivíduos mantêm suas relações sócio-afetivas e à forma pela
qual são armazenados e operacionalizados seus construtos mentais.
Tais características habilitam e potencializam as estruturações hi-
pertextuais como formas efetivas de produção de conteúdos, produtos e siste-
matizações nas diversas áreas da educação, na medida em que essas similari-
dades com processos inerentes aos “sujeitos sociais” são assimiladas com na-
turalidade pelos usuários do hipertexto.
Antes de iniciar a discussão sobre o hipertexto propriamente dito,
serão propostas conjecturas que virão a fortalecer a opção pelo mesmo en-
quanto alternativa aos modelos convencionais de estruturação de conteúdo.
Essas conjecturas, sempre que possível, estarão centradas em teorias ou prin-
cípios norteadores referenciados por seus autores. Serão levantadas questões
a respeito da abordagem histórico-cultural que encontra em Lev Vygotsky suas
bases conceituais; a respeito do dialogismo polifônico exclamado por Bakhtin; a
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 62
respeito da teoria das Inteligências Múltiplas que Howard Gardner desenvolveu
a partir de estudos de outros autores. Posteriormente será adentrado ao uni-
verso do hipertexto com ênfase nos princípios propostos por Pierre Lévy, com
articulações com a área da educação e tendo como referência para a etapa
posterior a teoria da Transposição Didática de Yves Chevallard. A partir dessas
articulações serão definidos critérios e categorias que servirão de referência
para a execução da transposição de conteúdo do livro A estória estranha de
Eduardo Peçanha – de autoria de Gilberto Lacerda dos Santos, PhD em Edu-
cação, e ilustrado por Romont Willy –, para um suporte multimídia.
3.1. Em favor da autonomia
Os sujeitos, dentro ou fora das relações estabelecidas no âmbito
da escola, são atores de histórias de vida singulares. Suas origens, suas rela-
ções familiares, suas participações nos grupos sociais constroem, à medida
que o tempo passa, uma trajetória marcada por acontecimentos diversos e que
não encontram similaridade em outra qualquer.
Essa relação indivíduo/sociedade é marcada por características
tipicamente humanas que, segundo Vygotsky, não estão presentes desde o
nascimento do indivíduo e tampouco são mero resultado das pressões do meio
externo. Vygotsky afirma que:
Elas resultam da interação dialética do homem e seu meio só-
cio-cultural. Ao mesmo tempo em que o ser humano transfor-
ma o seu meio para atender suas necessidades básicas, trans-
forma-se a si mesmo. (In REGO, 1995, p. 41)
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 63
A partir da inserção do sujeito num dado contexto cultural, de sua
interação com os membros do seu grupo e de sua participação em práticas
sociais historicamente construídas, o sujeito incorpora ativamente as formas de
comportamento já consolidadas na experiência humana.
Neste ponto cabe um grifo na fala de Vygotsky quando da afirma-
ção de que a cultura não é como algo pronto, um sistema estático ao qual o
indivíduo se submete, mas como uma espécie de “palco de negociações”, em
que seus membros estão em constante movimento de recriação e re-
interpretação de informações, conceitos e significados.
A teoria histórico-cultural, também conhecida como abordagem
sócio-interacionista, apresenta como objeto central “caracterizar os aspectos
tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipóteses de como essas
características se formaram ao longo da história humana e de como se desen-
volvem durante a vida de um indivíduo”. (VYGOTSKY, 1984, p. 21)
Para chegar às etapas conclusivas de elaboração da teoria, Vy-
gotsky (e seus colaboradores) dedicou-se à análise e estudo de vários aspec-
tos, entre os quais a influência da linguagem – enquanto sistema simbólico
fundamental em todos os grupos humanos –, na formação das características
psicológicas do homem. Vygotsky procurou, ainda, explicitar a forma pela qual
o processo de desenvolvimento é socialmente constituído.
Teresa Cristina (1995) reforça a argumentação em favor do en-
tendimento de que na estrutura fisiológica humana, aquilo que é inato não é
suficientemente capaz de produzir o indivíduo humano sem considerar o ambi-
ente social. “Quando isolado, privado de contato com outros seres, entregue
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 64
apenas à suas próprias condições e a favor dos recursos da natureza, o ho-
mem é fraco e insuficiente”. (REGO, 1995, p.58)
A condição do homem enquanto indivíduo social é ressaltada por
inúmeros autores como característica fundamental para seu desenvolvimento e
evolução. Adam Schaff (1995), em sua argumentação que aborda o valor das
experiências filogenéticas do homem adquiridas durante a evolução da espécie
e que constituem parte de suas disposições inatas, não credita a essa baga-
gem a continuidade e evolução da sociedade. Para Schaff o homem é sempre
um indivíduo social e sua ligação com a sociedade se expressa tanto na gêne-
se de seu sistema valorativo e das relações legitimadas pelo grupo em que se
insere como em suas atitudes no sentido das “disposições de ação, nos esteri-
ótipos que dominam seu pensamento etc.” (SCHAFF, 1995, p.100) A concep-
ção do homem enquanto um produto das relações sociais tem em Marx sua
formulação e pertence, aos olhos de Schaff, às descobertas mais originais do
marxismo. Ao propor a justaposição ou o entrelaçamento das partes que fazem
do homem um indivíduo social – não só em sentido genético, mas também no
sentido de sua existência conjunta no interior da estrutura social, no interior da
divisão social do trabalho, segundo sua atividade produtiva e o sentido de vida
social a ela correspondente –, Schaff afirma que
O indivíduo humano é determinado, portanto, pelo seu genóti-
po – isto é, pela constituição genética do seu organismo, cuja
inteira evolução está subordinada em última instância à evolu-
ção genética – ao qual se sobrepõe o estrato cultural do com-
portamento humano segundo um processo de co-evolução.
(id., ib.)
De acordo com as características citadas, que são de natureza
especificamente humana, torna-se impossível considerar o desenvolvimento do
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 65
sujeito como um processo previsível, universal, linear ou gradual. O desenvol-
vimento passa a estar intimamente relacionado com o contexto sócio-cultural
em que a pessoa se insere e se processa, ainda segundo Vygotsky, de forma
dinâmica e dialética, na medida em que se baseia em rupturas e desequilíbrios
provocadores de contínuas reorganizações por parte do indivíduo.
O processo de estabelecimento das relações sociais se torna di-
nâmico na medida em se cristaliza o entendimento de que o indivíduo se institui
a partir de diálogos com seus pares e seu meio, e na medida em que este
mesmo meio influencia e conduz o indivíduo a novos posicionamentos ao longo
de sua trajetória histórica.
Um dos principais acontecimentos que possibilita ao indivíduo
formas mais complexas de se relacionar com o mundo que o cerca é a aquisi-
ção da capacidade de linguagem – tanto no âmbito da oralidade quanto no da
escrita.
Para além da visão limitada que considera o aprendizado da es-
crita como habilidade motora, Vygotsky infere na assertiva de que a complexi-
dade do domínio da linguagem – de forma especial a escrita – está associada
ao fato de esta ser um sistema de representação da realidade extremamente
sofisticado e que se constitui num sistema de símbolos de segunda ordem que
funciona como designações dos símbolos verdadeiros. “A compreensão da lin-
guagem escrita é efetuada, primeiramente, através da linguagem falada: no
entanto, gradualmente essa via é reduzida, abreviada, e a linguagem falada
desaparece como elo intermediário.” (VYGOTSKY, 1984. p. 131)
As questões citadas anteriormente dizem respeito à consecução
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 66
de alguns aspectos relacionados à dinâmica do estabelecimento das relações
indivíduo-sociedade. É fundamental, entretanto, esclarecer as raízes filosóficas
dos pressupostos nos quais se baseia a perspectiva histórico-cultural do psi-
quismo e, principalmente, identificar suas bases epistemológicas e os motivos
que a coloca em oposição às concepções inatista e ambientalista do desenvol-
vimento humano.
Para um melhor entendimento a respeito das qualidades de origi-
nalidade da teoria iniciada por Vygotsky, faz-se necessária a apresentação das
abordagens às quais esta, em certa medida, se posiciona de forma antagônica.
A abordagem inatista, que tem em Descartes suas principais for-
mulações, apresenta premissas filosóficas racionalistas e idealistas, que se
baseiam, segundo Teresa Rego, na crença de que as capacidades básicas de
cada ser humano são inatas, ou seja, “já se encontram praticamente prontas no
momento do nascimento ou potencialmente determinadas e na dependência do
amadurecimento para se manifestar”. (REGO, 1995, p. 86)
Por outro lado, a concepção ambientalista, que encontra em Ba-
con (1561-1626), Hobbes (1578-1679), Locke (1632-1704) e Comte (1798-
1857), entre outros, seus principais expoentes, inspira-se na filosofia empirista
e positivista. Esta abordagem, também reconhecida como associacionista,
comportamentalista ou behaviorista, atribui exclusivamente ao ambiente a
constituição das características humanas e privilegia a experiência como fonte
de conhecimento e de formação de hábitos de comportamento. Infere-se, por-
tanto, que as características individuais são determinadas por fatores externos
ao indivíduo.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 67
O aspecto que converge as duas abordagens, apesar da distin-
ção de ambas e de serem baseadas em pressupostos epistemológicos tão dife-
rentes, diz respeito ao reforço que fazem da idéia de um determinismo prévio,
quer seja por razões inatas ou adquiridas.
Vygotsky, inspirado nos princípios do materialismo dialético, con-
sidera o desenvolvimento da complexidade da estrutura humana como um pro-
cesso de apropriação pelo homem da experiência histórica e cultural.
Nesta perspectiva, o indivíduo é visto enquanto agente que se
constitui a partir das relações com o meio e, portanto, transforma e é transfor-
mado nas relações produzidas em determinada cultura.
Para Vygotsky, cuja perspectiva histórico-cultural do psiquismo
fundamenta-se no método e nos princípios teóricos do materialismo histórico-
dialético – apontado por Hegel e sistematizado enquanto pensamento por Marx
e Engels –, o sujeito produtor do conhecimento não é um mero receptáculo que
absorve e contempla o real, nem produtor de verdades advindas de um plano
ideal; mas, pelo contrário, é um sujeito ativo que em sua relação com o mundo,
com seu objeto de estudo, reconstrói este mundo.
A noção de reconstituição do homem como ser histórico traz im-
plícita a concepção de que “não há uma essência humana dada e imutável,
pelo contrário, supõe um homem ativo no processo contínuo e infinito de cons-
trução de si mesmo, da natureza e da história.” (op. cit., p. 98)
Mais adiante, quando forem tratados os aspectos especificamente
relacionados com o hipertexto, serão propostas conjecturas que sustentem a
adoção da abordagem histórico-cultural como forma de privilegiar a autonomia
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 68
do usuário e reconhecê-lo enquanto ser histórico. Serão apresentados, ainda,
argumentos baseados nas características do hipertexto que fazem com que
este seja considerado uma ferramenta eficiente para o uso pleno dessa abor-
dagem.
3.2. Pelo dialogismo polifônico
A partir da perspectiva de que os indivíduos se constituem a partir
de interações com o meio e considerando a linguagem (oral e escrita) como
forma de mediação destas interações faz-se necessário um melhor entendi-
mento da forma pela qual, segundo Bakhtin, são estabelecidas as verdadeiras
relações dialógicas. A esse respeito cabe o esclarecimento dos três sentidos
de dialogismo e suas possíveis implicações sobre o modo como o sujeito é vis-
to em seu agir concreto.
O dialogismo se faz presente nas obras de Bakhtin de três manei-
ras distintas, apresentadas, conforme Beth Brait (2005), da mais geral para a
mais específica:
a. como princípio geral do agir – só se age em relação de contras-
te com relação a outros atos de outros sujeitos: o vir-a-ser, do
indivíduo e do sentido, está fundado na diferença;
b. como princípio da produção dos enunciados/discursos, que ad-
vêm de “diálogos” retrospectivos e prospectivos com outros
enunciados/discursos;
c. como forma específica de composição de enunciados/dis-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 69
cursos, opondo-se nesse caso à forma de composição mono-
lógica, embora nenhum enunciado/discurso seja constitutiva-
mente monológico nas duas outras acepções do conceito.
Bakhtin deixa claro em suas escrituras que não aceita que as ca-
tegorias de percepção e de pensamento possam existir fora da situação con-
creta dos sujeitos que percebem e pensam ou que existam em sua consciência
entendida como instância não-social e não-histórica.
A constituição dialética que marca o ato de leitura, extrapolando
seu sentido restrito à decodificação de escrituras impressas, e sendo percebido
enquanto parte do fenômeno comunicacional ou, ainda, como peça fundamen-
tal na produção de sentidos por meio da linguagem, fica mais claro quando se
recorre às palavras de Paulo Freire, em atenção ao princípio fundante de seu
método de alfabetização baseado no ensino da “leitura” a partir do universo
vocabular do próprio alfabetizando. Nas palavras de Freire: “a leitura do mundo
precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa pres-
cindir da continuidade da leitura daquele.” (FREIRE, 1987, p.11)
Assim como em Vygotsky, também em Freire percebemos a rela-
ção intrínseca entre a palavra – em seu sentido mais amplo – e um mundo re-
ferencial possível em que esta se insere e a partir da interação passa a afazer
sentido para o leitor.
Ângela Correia Dias e Geórgia Antony (2003), em referência a
Koch (2000), argumentam sobre o caráter do texto como sendo
produto da atividade comunicativa de sujeitos socialmente a-
tuantes, que compreende processos, operações estratégicas
mentais, postos em ação em situações concretas de interação
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 70
social, nas condições em que a atividade verbal se realiza (...)
(DIAS, A. C. ; ANTONY, G. in FIORENTINI, L.; MORAES, R.,
2003, p. 55)
E complementam, buscando apoio nas palavras de em Koch, ao
afirmarem que “o sentido não está no texto, mas se constrói a partir dele, no
curso de uma interação”. (KOCH, 2000, p.25)
Ainda da mesma maneira, e com apoio teórico em Vygotsky, Ba-
khtin afirma que a consciência depende da linguagem para se formar e se ma-
nifestar. E, segundo Adail Sobral, “como a linguagem se acha imersa no mun-
do, a consciência não é uma instância que imponha suas categorias ao mundo,
precisando, em vez disso, desse mundo para se constituir, ao tempo em que
também se ‘constrói’.” (SOBRAL, 2005, p. 107)
Elemento fundamental para o estabelecimento das relações dia-
lógicas, e em torno da qual se configuram e se posicionam a linguagem e seus
agentes – considerando as formais verbal e escrita –, a palavra recebe em Ba-
khtin tratamento diferenciado e marcado pela historicidade.
A forma abstrata com a qual tradicionalmente se tratou a palavra
confere à mesma, segundo Paulo Stella (2005), um distanciamento de sua rea-
lidade de circulação e um caráter de centro imanente de significados a serem
captados pelos olhares e ouvidos fixos dos observadores.
Ainda segundo Stella (2005), é possível apontar, para fins de e-
xemplificação, formas de tratamento conferidos à palavra, no período entre o
fim do século XIX e o início do século XX – período este em que os estudos
sobre linguagem tinham na palavra o centro de observação dos fenômenos
lingüísticos –, que deixavam de considerar o contexto em questão.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 71
A Gramática, conforme Paulo Stella aponta no artigo Palavra
(2005), seccionava a palavra e organizava suas partes em paradigmas de fle-
xão e declinação. A Filologia descrevia a evolução histórico-fonética da palavra
com a observação de documentos. A Lingüística passava, naquele momento,
por duas fases, assim descritas pelo autor:
“Uma fase organizava as línguas em suas famílias e respecti-
vas ramificações de acordo com suas origens estudando as
palavras em documentos e, na outra, percebendo o funciona-
mento sistemático da linguagem, descrevia as relações estru-
turais em vários níveis a partir da palavra.” (STELLA, 2005, p.
177)
A concepção bakhtiniana a respeito, não só da palavra, mas tam-
bém da linguagem leva em conta sua história, sua historicidade, ou seja, espe-
cialmente a linguagem em uso. Isso significa que, segundo o pensamento de
Bakhtin e com as palavras de Paulo Stella, “a palavra reposiciona-se em rela-
ção às concepções tradicionais, passando a ser encarada como um elemento
concreto de feitura ideológica.” (op. cit., p.178)
O texto Discurso na vida e discurso na arte, assinado por Bakhtin
e Voloshinov, apresenta esse reposicionamento ao relacionar a palavra à vida,
à realidade, ao considerá-la parte de um processo de interação entre um falan-
te e um interlocutor, concentrando na mesma entonações do falante, entendi-
das e socialmente compartilhadas pelo interlocutor.
“As entonações são valores atribuídos e/ou agregados àquilo
dito pelo locutor. Esses valores correspondem a uma avalia-
ção da situação pelo locutor posicionando historicamente fren-
te ao seu interlocutor. A palavra dita, expressa, enunciada,
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 72
constitui-se como produto ideológico, resultado de um proces-
so de interação na realidade viva.” (op. cit., p. 178)
Assim considerando, a palavra apresenta, no entendimento das
teorias bakhtinianas e por meio das palavras de Paulo Stella, quatro proprieda-
des definidoras:
• pureza semiótica: referência à capacidade de funcionamento e
circulação da palavra como signo ideológico, em toda e qualquer
esfera, diferentemente dos materiais criados especificamente pa-
ra o funcionamento em uma esfera;
• interiorização: capacidade da palavra de converter-se no único
meio de contato entre o mundo interior do sujeito (consciência)
constituído por palavras, e o mundo exterior construído por pala-
vras;
• participação em todo ato consciente: competência da palavra de
funcionar tanto nos processos internos da consciência, por meio
da compreensão e a interpretação do mundo pelo sujeito, quanto
nos processos externos de circulação da palavra em todas as es-
feras ideológicas;
• neutralidade: condição estabelecida no sentido de a palavra ser
neutra em relação a qualquer função ideológica, ou seja, a pala-
vra pode assumir qualquer função ideológica, dependendo da
maneira em que aparece num enunciado concreto.
A partir da identificação das propriedades concernentes às pala-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 73
vras – unidades fundamentais na constituição dos variados tipos de linguagem
–, e da caracterização das situações de estabelecimento pleno de relações
verdadeiramente dialógicas, é necessário o entendimento da visão de Bakhtin
sobre polifonia para a compreensão da importância e das possibilidades do
dialogismo polifônico.
Com base nos estudos da prosa romanesca, Bakhtin chegou à
formulação de uma tipologia universal do romance, aplicável a outras modali-
dades de discursos e diálogos, que se funda no que ele concebeu como as
duas modalidades do romance: o monológico – ao qual se associam conceitos
como monologismo, autoritarismo e acabamento –, e o polifônico – associado
aos conceitos de realidade em formação, inconclusibilidade, não acabamento e
dialogismo.
A polifonia se constitui a partir da idéia de heterogeneidade e in-
completude, na medida em que o dialogismo se constitui da interação de dife-
rentes vozes que se completam e se instituem ao se perceberem incompletas e
em permanente construção. A riqueza dialógica e o conseqüente estabeleci-
mento de uma relação baseada na polifonia se fundam no ato dialógico estabe-
lecido entre vozes que se revelam a partir de posicionamentos epistemológicos
distintos.
A polifonia, segundo Paulo Bezerra,
se define pela convivência e pela interação, em um mesmo
espaço, de uma multiplicidade de vozes e consciências inde-
pendentes e imiscíveis, vozes plenivalentes e consciências
eqüipolentes, todas representantes de um determinado uni-
verso e marcadas pelas peculiaridades desse universo. (BE-
ZERRA, 2005, pp. 194-195)
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 74
A construção de ambientes propícios ao estabelecimento de rela-
ções de dialogismo polifônico privilegia e fortalece a opção por uma abordagem
histórico-cultural, na medida em que se converte em terreno fértil para que os
atores envolvidos nessa relação possam construir falas baseadas em suas tra-
jetórias históricas e em seus posicionamentos e suas crenças. Ainda em rela-
ção aos posicionamentos ideológicos apresentados pelos sujeitos outro aspec-
to corrobora a opção por uma abordagem que privilegie a individualidade: a
opção de encaminhamento das soluções para os problemas. Essa opção está
baseada, em relação aos encadeamentos cognitivos e sob a luz da teoria de-
senvolvida por Howard Gardner, no tipo ou tipos de inteligência do sujeito em
questão. A seguir serão abordadas questões referentes a essa teoria, bastante
discutida nos dias atuais e que se faz pertinente no escopo dessa discussão.
3.3. Inteligências múltiplas
Com a atenção voltada para características que valorizam a auto-
nomia, tais como a utilização da abordagem histórico-cultural e a criação de
condições para que sejam estabelecidas relações baseadas no dialogismo poli-
fônico, um aspecto importante a ser considerado e que, em certa medida, cor-
robora com a opção pelo trabalho dentro de uma estruturação hipertextual, é a
teoria das múltiplas inteligências.
Ao considerar, de forma quase reducionista, que a teoria propõe a
existência, não de um único “tipo” de inteligência à qual se atribui maior ou me-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 75
nor grau de quociente de inteligência (QI), mas de múltiplas inteligências – com
características específicas –, que, combinadas entre si ou não, conduzem os
indivíduos na busca por soluções de seus problemas dentro de um campo cog-
nitivo mais próximo da sua zona de domínio, denota-se uma argumentação em
favor do reforço à condição de individualidade dos sujeitos.
Antes, porém, de iniciar a formulação de outras conjecturas e a-
presentar pressupostos favoráveis à adoção da teoria na formulação de crité-
rios para estruturação de materiais educativos, torna-se importante o conheci-
mento das visões anteriores a respeito da inteligência.
3.3.1 O lugar da Psicologia
Os esforços iniciais no sentido de reconhecer a Psicologia en-
quanto ciência direcionaram a área para um caminho que a aproximava da filo-
sofia ao invés das áreas da medicina, em particular àquelas que realizavam
experiências com o cérebro.
Em conseqüência a tal situação as pesquisas da Psicologia para
o entendimento e identificação de categorias mentais foram distanciadas dos
conteúdos mentais específicos, tais como linguagem, música ou percepção
visual e se aproximaram das teorizações sobre faculdades mentais amplas, tais
como memória, percepção, atenção, associação e aprendizagem. As categori-
as depreendidas destas análises culminaram com o desenvolvimento de méto-
dos estatísticos que possibilitariam a classificação dos seres humanos em ter-
mos e seus poderes físicos e intelectuais e proceder, ainda, a correlação des-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 76
tas medidas entre si.
A partir disso foram projetados diversos testes que possibilitas-
sem a classificação dos humanos a partir da comparação do desempenho nes-
tas medições, fornecendo subsídios que sustentavam conjecturas que, por sua
vez, inferiam na possibilidade de os poderes do intelecto serem adequadamen-
te avaliados por várias tarefas de discriminação sensorial. Tal posicionamento
resultava, porém, em conclusões restritas que indicavam que indivíduos mais
refinados e escolarizados seriam caracterizados por capacidades sensoriais
especialmente aguçadas.
Howard Gardner reforça a limitação desse tipo de medição quan-
do da afirmação de que
os testes apresentam poder de previsão para o sucesso aca-
dêmico, mas relativamente pouco poder preditivo fora do con-
texto escolar, especialmente quando fatores mais potentes
como os antecedentes sociais e econômicos são levados em
consideração. (GARDNER, 1994, p.13)
3.3.2 A concepção piagetiana
Esta perspectiva, desenvolvida a partir de Jean Piaget, formula-
dor de suas principais contribuições, ocupa-se do desenvolvimento dos proces-
sos de pensamento da pessoa e distingue-se das demais por inferir na asserti-
va de que cada pessoa é agente, e não reagente, do seu próprio processo de
aprendizagem e, ainda, ao destacar a mudança qualitativa do pensamento ao
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 77
longo da evolução biológica. Celso Antunes reforça o posicionamento quando
afirma que:
A aprendizagem jamais ocorre antes que algumas capacida-
des motoras, neurológicas ou sensoriais estejam aptas para
isso. Percebe-se, assim, a importância da maturação, sempre
presente na programação genética de todo bebê. Podemos
sintetizar esse esquema dizendo que a maturação prepara o
corpo e desperta a habilidade, e que o ambiente e a experiên-
cia consolidam as primeiras formas de aprendizagem. (AN-
TUNES, 2002, p. 16)
Contrariamente aos estudiosos da testagem de inteligência, Pia-
get levou a sério questões formuladas pelos filósofos – e de forma especial por
Kant –, que atribuíam grande importância às categorias básicas de tempo, es-
paço, número e casualidade, evitando formas de conhecimento que são sim-
plesmente memorizadas ou restritas a determinados grupos culturais. Gardner
afirma que “intencionalmente ou não, Piaget produziu um brilhante retrato da
forma de crescimento intelectual humano que e mais altamente valorizada pe-
las tradições científicas e filosóficas ocidentais.” (GARDNER, 1994, p. 16)
Apesar das significativas contribuições a perspectiva de Piaget
apresenta fraquezas que foram evidenciadas por uma geração de pesquisado-
res empíricos que analisaram em detalhes suas proposições.
Embora as tarefas de Piaget sejam mais molares e complexas
do que as fornecidas no testes de inteligência, muitas ainda
mostram-se completamente remotas ao tipo de pensamento
que a maioria dos indivíduos engaja durante sua vida cotidiana
normal. (op. cit., p. 17)
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 78
3.3.3. Abordagem de processamento de informações
Também denominada Ciência Cognitiva, essa abordagem não se
restringe, a exemplo de Piaget, à descrição de dois ou três estágios básicos
encontrados em diferentes idades e as estratégias favorecidas em cada ponto.
O psicólogo de processamento de informações tenta descrever, nos mais refi-
nados detalhes, todas as etapas usadas por determinada criança. “Uma meta
final da psicologia de processamento de informações é descrever, tão exausti-
va e escrupulosamente quanto possível as etapas que o desempenho de um
indivíduo possa ser simulado num computador.” (id., ib.)
Para Gardner, essa forma de abordagem, tal como a de Piaget,
peca ao se utilizar da ingênua noção de que é possível fazer com que um único
sistema de resolução de problemas altamente genérico dê conta de toda sorte
de problemas dos seres humanos.
3.3.4. Abordagem dos sistemas simbólicos
O posicionamento adotado pelas abordagens que focalizam um
determinado tipo de resolução de problemas lógico ou lingüístico, ignorando a
biologia, negligenciando os níveis mais elevados de criatividade e tornando-se
insensível aos papéis relevantes na sociedade, gerou um ponto de vista alter-
nativo que focaliza precisamente estas áreas desconsideradas.
De caráter pluralística e baseada na compreensão dos vários sis-
temas simbólicos – da linguagem, da matemática, das artes visuais, dos ges-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 79
tos, da música, do corpo e do espaço –, essa abordagem de propõe, em certa
medida, a expandir o uso dos métodos e dos esquemas gerais modelados por
Piaget, para além dos símbolos lingüísticos, lógicos e numéricos, da teoria pia-
getiana clássica. De forma desafiadora, esta abordagem supõe a composição
de um retrato do desenvolvimento de cada uma das formas de competência
simbólica, determinando empiricamente que conexões ou distinções poderiam
estar em uso entre elas.
Partindo desta abordagem e apoiado em recentes descobertas
neurológicas, Howard Gardner desenvolveu, no início da década de 80, a Teo-
ria das Inteligências Múltiplas, que modificou as linhas de conhecimento sobre
a mente humana e colocou em dúvida processos anteriormente descritos para
explicar os sistemas neurais que envolvem a memória, a aprendizagem, a
consciência, as emoções e as inteligências em geral.
A convicção nas bases que sustentam a Teoria das Inteligências
Múltiplas não deixa Gardner insensível à percepção do caráter permanente-
mente evolutivo que caracteriza as pesquisas sobre a inteligência humana.
Nem a ciência jamais produz uma resposta completamente
correta e final. Há progresso e regresso, encaixe e desencai-
xe, mas jamais a descoberta de uma pedra de Rosetta, uma
única chave para um conjunto de questões interligadas. Isto
tem sido verdade nos mais sofisticados níveis da física e da
química. Isto é ainda mais verdadeiro – poderia se dizer, ver-
dadeiro demais – nas ciências sociais e comportamentais.
Então torna-se necessário dizer, de uma vez por todas, que
não há e jamais haverá uma lista única, irrefutável e univer-
salmente aceita de inteligências humanas. Jamais haverá um
rol mestre de três, sete ou trezentas inteligências que possam
ser endossadas por todos os investigadores. Poderemos nos
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 80
aproximar mais desta meta se nos mantivermos apenas em
um nível de análise (digamos, neurofisiológico) ou com uma
meta (digamos, previsão de sucesso numa universidade técni-
ca); mas se buscamos uma teoria decisiva sobre o alcance da
inteligência humana, podemos esperar jamais concluir nossa
busca. (op. cit., p. 45)
Ciente da dificuldade de estabelecer as potências intelectuais re-
levantes dentro de um contexto cultural e que pudessem nomear e caracterizar
as diferentes inteligências, Gardner elegeu pré-requisitos e, posteriormente,
critérios para a delimitação de informações aglutinadoras.
Gardner afirma, ainda, que as inteligências não são equivalentes
a sistemas sensoriais, não são completamente dependentes de um único sis-
tema sensorial e que, por outro lado, nenhum sistema sensorial foi imortalizado
como uma inteligência.
As inteligências, cuja realização se faz capaz através de mais de
um sistema sensorial e que, segundo Celso Antunes, não constituem apenas
um elemento neurológico isolado, independente do ambiente, mas, são seg-
mentos componentes de uma ecologia cognitiva que engloba a todos. “O indi-
víduo, portanto, não seria inteligente sem sua língua, sua herança cultural, sua
ideologia, sua crença, sua escrita, seus métodos intelectuais e outros meios do
ambiente.” (ANTUNES, 1998, p. 12)
Ainda que reconheça a subjetividade na definição dos tipos de in-
teligência, Gardner as nomeia e as caracteriza da seguinte maneira:
Inteligência lógico-matemática – manifesta-se na facilidade para o
cálculo, na capacidade de perceber a geometria nos espaços, na sensibilidade
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 81
para discernir e transformar símbolos numéricos, bem como pela capacidade
de trabalhar longas cadeias de raciocínios aritméticos, algébricos ou geométri-
cos. Os estímulos para seu desenvolvimento estruturam na pessoa novas for-
mas sobre o pensar e uma percepção apurada dos elementos referentes à
grandeza, peso, distância, tempo e demais elementos que envolvem ação da
pessoa sobre o ambiente.
Inteligência espacial – associada às capacidades de perceber o
mundo visual com precisão, efetuar transformações e modificações sobre per-
cepções iniciais e ser capaz de recriar aspectos da experiência visual, mesmo
na ausência de estímulos físicos relevantes. Essas capacidades são invocadas
para o reconhecimento de objetos e cenas, tanto quando estes são encontra-
dos em seus ambientes originais como quando alguma circunstância da apre-
sentação original foi alterada. Também são utilizadas quando do trabalho com
representações gráficas – versões bidimensionais ou tridimensionais de cenas
do mundo real – bem como outros símbolos como mapas, diagramas ou for-
mas geométricas.
Gardner aponta, ainda, outra possibilidade de uso dessa inteli-
gência e que extrapola os limites da dimensão física.
Uma faceta final da inteligência espacial nasce das semelhan-
ças que podem existir entre duas formas aparentemente in-
compatíveis ou, no que diz respeito ao assunto, entre dois
domínios de experiência aparentemente remotos. E, ao meu
ver, esta capacidade metafórica de discernir similaridades en-
tre os domínios deriva, em muitos casos, de uma manifesta-
ção da inteligência espacial. (GARDNER, 1994, p. 137)
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 82
Inteligência musical – revela-se, segundo Antunes, como a capa-
cidade para combinar e compor sons não-verbais, para identificar sua unidade
específica e para encadeá-los em uma seqüência lógica e rítmica, bem como
estruturá-los em harmonia e compor melodias. Essas características devem ser
consideradas como competências e não como talento e que, desde muito cedo,
se manifestam pela facilidade em identificar sons diferentes, perceber as nuan-
ces de sua intensidade e captar sua direcionalidade. “Especificamente na mú-
sica, a inteligência percebe com clareza o tom ou a melodia, o ritmo ou a fre-
qüência e o agrupamento dos sons e suas características intrínsecas, geral-
mente denominadas de timbre.” (ANTUNES, 1998, p. 56)
Inteligência cinestésico-corporal – identificada como uma capaci-
dade para controlar e utilizar o corpo, ou apenas uma parte do mesmo, em ta-
refas motoras complexas e em situações novas, assim como manipular objetos
de forma criativa e diferenciada. A inteligência corporal completa, segundo
Gardner, um trio de inteligências relacionadas a objetos: a inteligência lógico-
matemática, que cresce a partir da padronização de objetos em conjuntos nu-
méricos; a espacial, que focaliza na capacidade do indivíduo de transformar
objetos dentro do seu meio e de orientar-se em maio a um mundo de objetos
no espaço; e a corporal, que focalizando internamente, é limitada ao exercício
do nosso próprio corpo e, olhando para fora, acarreta ações físicas sobre os
objetos no mundo.
Antunes, em análise à teoria de Gardner, apresenta característi-
cas fundamentais desse tipo de inteligência no que diz respeito à expressivida-
de e suas formas de manifestação.
“Uma característica essencial dessa inteligência é a capacida-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 83
de de usar o próprio corpo de maneira altamente diferenciada
e hábil para propósitos expressivos que, em última análise, re-
presentam solução de problemas.” (op. cit., p. 50)
O estímulo da inteligência cinestésico-corporal vai muito além das
atividades motoras estimuladas e praticadas nas academias. O aprimoramento
do tato, por exemplo, é, segundo Celso Antunes, uma possibilidade de refina-
mento desta inteligência chegando-se mesmo à capacidade de leitura em braile
por pessoas que não necessariamente tenham problemas visuais.
Jerome Bruner, respeitado educador contemporâneo, citado por
Antunes, enfatiza o desenvolvimento de habilidades para todos os tipos de o-
perações cognitivas.
“Interpretando a construção do conhecimento como uma via-
gem pelo domínio das habilidades, mostra, por exemplo, que a
criança primeiro alia o olhar, para, em seqüência, desenvolver
o agarrar e, depois, o morder. Nesse contexto a inteligência
cinestésico-corporal seria beneficiada por operações comple-
mentares do conhecimento.” (In ANTUNES, 1998, p. 53)
O momento mais expressivo para o estímulo dessa inteligência
encontra lugar nos estudos desenvolvidos por Piaget, ainda que este não o
tenha estendido suas pesquisas a este campo. A fase sensório-motora da cri-
ança parece revelar o momento inicial desses estímulos que podem ser pro-
movidos com maior intensidade, do primeiro ao sexto ano de vida, prosseguin-
do depois pela vida adulta até a mais avançada idade.
Inteligência intrapessoal – ligada ao autoconhecimento, à percep-
ção da própria identidade e, conseqüentemente, à auto-estima e à compreen-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 84
são plena do “eu” e também à capacidade de discernir e discriminar as próprias
emoções, esse tipo de inteligência parece surgir desde muito cedo, podendo
inclusive acontecer já na fase pré-natal.
Estudos de Vygotsky e Luria mostram situações de auto-
descoberta expressiva com base no relacionamento entre crianças. A sociali-
zação e as situações dialógicas colaboram com a descoberta do eu, na medida
em que essa descoberta tem início com a descoberta do “outro” e o estímulo a
essa inteligência se altera, segundo Antunes, muito mais na família e na escola
do que em outras competências.
Inteligência interpessoal – baseia-se na capacidade nuclear de
perceber distinções nos outros; particularmente, contrastes e seus estados de
ânimos, suas motivações, suas intenções e seu temperamento. Em níveis mais
profundos, essa inteligência permite, segundo Celso Antunes, que adultos e
adolescentes identifiquem intenções, simulações e desejos em outras pessoas,
mesmo que elas não os tornem muito explícitos.
A estimulação a esta inteligência se processa com resultados em
longo prazo e carecem do emprego de fundamentos adequados, de natureza
multidisciplinar e que permeiam as áreas de Educação, Psicologia, Neurolin-
güística e da Psicopedagogia. A escola se configura como um ambiente pode-
roso na ação de estimulação dessa inteligência, em especial quando conta com
o engajamento e participação dos pais.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 85
3.4. O hipertexto em Pierre Lévy
Para adentrar no universo do hipertexto propriamente dito é válido
o resgate de conceitos que sirvam de aporte para a construção de argumentos
que validem a opção por esta estruturação não-linear de informações.
A presença ou a ausência de certas técnicas fundamentais de
comunicação permite classificar as culturas em algumas categorias gerais. Não
se deve, entretanto, esquecer que cada grupo social, em dado momento, en-
contra-se em situação singular e transitória frente às tecnologias intelectuais e
que só pode, de fato, ser analisado em um complexo processo continuado. O
domínio e o uso da escrita são elementos que fundamentam a classificação de
grupos sociais. Em uma sociedade baseada na oralidade primária, a palavra
tem como função básica a gestão da memória social, e não apenas a livre ex-
pressão das pessoas ou a comunicação prática cotidiana. Segundo Lévy, “nu-
ma sociedade oral primária quase todo o edifício cultural está fundado sobre as
lembranças dos indivíduos. A inteligência, nestas sociedades, encontra-se mui-
tas vezes identificada com a memória, sobretudo com a auditiva” (LÉVY, 1993,
p. 77).
Com o advento da escrita, uma série de inovações e possibilida-
des foi incorporada às sociedades, antes baseadas na oralidade. A teoria, a
lógica e as sutilezas da interpretação dos textos foram acrescentadas às narra-
tivas míticas no arsenal do saber humano. Lévy afirma que “o alfabeto e a im-
pressão, aperfeiçoamentos da escrita, desempenham um papel essencial no
estabelecimento da ciência como modo de conhecimento dominante” (LÉVY,
1993).
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 86
Outra diferença marcante na caracterização das sociedades
quanto ao domínio de tecnologias da inteligência é o tratamento e atribuição de
sentidos conferidos às mensagens transmitidas. Nas sociedades orais primá-
rias o contador adaptava sua narrativa às circunstâncias de sua enunciação. “A
transmissão oral era sempre, simultaneamente, uma tradução, uma adaptação
e uma traição” (LÉVY, 1993, p. 89).
No âmbito desta discussão, as questões importantes para estabe-
lecimento de conexões com as estruturas hipertextuais se prendem ao trata-
mento conferido às mensagens e a forma como se dá o arquivamento/busca
das informações na memória humana.
De acordo com estudos da Psicologia Cognitiva contemporânea,
não há apenas uma, mas diversas memórias, funcionalmente distintas. A me-
mória de curto prazo, ou memória de trabalho, mobiliza a atenção. Ela é usada,
conforme Lévy, quando, por exemplo, lê-se um número de telefone e anota-se
mentalmente até que o tenha discado. A repetição se mostra eficiente enquan-
to técnica de estratégia para reter a informação em curto prazo. Já a memória
de longo prazo, por outro lado, é usada a cada vez que se lembra daquele
mesmo número de telefone no momento oportuno.
A ativação da memória de longo prazo deve propagar-se de fatos
atuais até os fatos de que se deseja encontrar. Para isto, duas condições de-
vem ser preenchidas: uma representação do fato de que se deseja lembrar de-
ve ter sido conservada; um caminho de associações possíveis que leve a esta
representação deve ser percorrido. Essas associações são acréscimos agre-
gados à informação alvo e consistem, segundo Lévy, na estratégia de elabora-
ção. A elaboração permite que a informação alvo seja acoplada ao restante da
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 87
rede associativa através de um grande número de conexões que, quanto mais
numerosas, maior será o número de caminhos associativos para a propagação
da ativação no momento em que a lembrança for procurada.
Neste ponto cabe apresentar uma reflexão fundamental na afir-
mação do hipertexto através da associação de conceitos pinçados dos estudos
da psicologia cognitiva e suas relações com as estratégias de comunicação
praticada nas sociedades orais. Alguns pontos são determinantes para o en-
tendimento da forma pela qual as sociedades que não dispunham de meca-
nismos de armazenamento como a escrita, o cinema e a fita magnética codifi-
caram seus conhecimentos.
Nas ecologias cognitivas essencialmente compostas por memó-
rias humanas algumas características são fundamentais para que as represen-
tações alcancem níveis de significação na mente humana e que, conseqüen-
temente, possam ser conectadas e re-conectadas sempre que se faça neces-
sário. Para tanto, Pierre Lévy sugere que tornar-se-ão perenes as representa-
ções que melhor atenderem aos seguintes critérios:
1. as representações que são ricamente interconectadas entre elas, o
que exclui listas e todos os modos de apresentação em que a infor-
mação se encontra disposta de forma muito modular, muito recorta-
da;
2. as conexões entre representações que envolvam, sobretudo relações
de causa e efeito;
3. as proposições que façam referência a domínios dos conhecimentos
concretos e familiares para os membros das sociedades em questão,
de forma que eles possam liga-los a esquemas preestabelecidos;
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 88
4. finalmente, as representações devem manter laços estreitos com
“problemas da vida”, envolvendo diretamente o sujeito e fortemente
carregadas de emoção.
Com base nos critérios apresentados é clara a percepção a res-
peito da necessidade de elaboração, das mensagens que são transmitidas nas
sociedades orais, por meio da incorporação de dramatização, personalização,
artifícios narrativos diversos, tais como as rimas, os ritmos dos poemas e dos
cantos, as danças e os rituais.
“As representações que têm mais chances de sobreviver
em um ambiente composto quase que unicamente por
memórias humanas são aquelas que estão codificadas
em narrativas dramáticas, agradáveis de serem ouvidas,
trazendo uma forte carga emotiva e acompanhadas de
músicas e rituais diversos(LÉVY, 1993, p. 83).
Tecnicamente, um hipertexto é, segundo Lévy, um conjunto de nós liga-
dos por conexões.
“Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos,
ou partes de gráficos, seqüências sonoras, documentos
complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os
itens de informação não são ligados linearmente, como
uma corda com nós, mas cada um deles, ou a maioria,
estende suas conexões em estrela, de modo reticular”
(op. cit., p.33).
Navegar em um hipertexto significa, portanto, desenhar um per-
curso em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível. Porque cada
nó pode, por sua vez, conter uma rede interna.
Com a escrita, e mais ainda com o alfabeto e a imprensa, os mo-
dos de conhecimento teóricos e hermenêuticos passaram a prevalecer sobre
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 89
os saberes narrativos e rituais das sociedades orais. O texto contemporâneo,
estruturado na forma de hipertexto – construção que sugere uma leitura de
forma não-linear e enriquecida por elementos de natureza diversa – alimentan-
do correspondências on line e conferências eletrônicas, correndo em redes,
desterritorializado, imerso no ciberespaço, reconstitui, de outro modo e numa
escala infinitamente superior, a co-presença da mensagem e de seu contexto
vivo que caracterizava a comunicação oral. A abordagem mais simples do hi-
pertexto que não exclui nem os sons nem as imagens é, segundo Pierre Lévy,
a de descrevê-lo por oposição a um texto linear, como um texto estruturado em
rede.
Pierre Lévy propõe a caracterização de seis princípios básicos,
com a finalidade de preservar as possibilidades de múltiplas interpretações do
modelo do hipertexto.
1. Princípio de metamorfose - a rede hipertextual está em constante
construção e renegociação. Ela pode permanecer estável durante
certo tempo, mas esta estabilidade é em si mesma fruto de um traba-
lho. Sua extensão, sua composição e seu desenho estão permanen-
temente em jogo para os atores envolvidos, sejam eles humanos, pa-
lavras, imagens, traços de imagens ou de contexto, objetos técnicos,
componentes deste objetos, etc.
2. Princípio de heterogeneidade - os nós e conexões de uma rede hi-
pertextual são heterogêneos. Na memória serão encontradas ima-
gens, sons, palavras, diversas sensações, modelos, etc, e as cone-
xões serão lógicas afetivas, etc. Na comunicação, as mensagens se-
rão multimídias, multimodais, analógicas, digitais. O processo socio-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 90
técnico colocará em jogo pessoas, grupos, artefatos, forças naturais
de todos os tamanhos, com todos os tipos de associações que se
possa imaginar entre estes elementos.
3. Princípio de multiplicidade e de encaixe das escalas – o hipertex-
to se organiza de modo fractal, ou seja, qualquer nó ou conexão,
quando analisado, pode revelar-se como sendo composto por toda
uma rede, e assim por diante indefinidamente, ao longo da escala
dos graus de precisão.
4. Princípio de exterioridade – a rede não possui unidade orgânica,
nem motor interno. Seu crescimento e sua diminuição, sua composi-
ção e sua recomposição permanente dependem de um exterior inde-
terminado: adição de novos elementos, conexões com outras redes,
excitação de elementos terminais (captadores), etc.
5. Princípio de topologia – nos hipertextos tudo funciona por proximi-
dade, por vizinhança. Neles, o curso dos acontecimentos é uma
questão de topologia, de caminhos. Não há espaço universal homo-
gêneo onde haja forças de ligação e separação, onde as mensagens
poderiam circular livremente. Tudo que se desloca deve utilizar-se da
rede hipertextual tal como ela se encontra, ou então será obrigado a
modificá-la. A rede não está no espaço, ela é o espaço.
6. Princípio de mobilidade dos centros – a rede não tem centro, ou
melhor, possui permanentemente diversos centros que são como
pontas luminosas perpetuamente móveis, saltando de um nó a outro,
trazendo ao redor de si uma ramificação infinita de pequenas raízes,
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 91
rizomas, finas linhas brancas esboçando por instante um mapa qual-
quer com detalhes delicados, e depois correndo para desenhar mais
à frente outras paisagens do sentido.
As informações relacionadas ao universo do hipertexto apresen-
tadas neste item têm uma conotação basicamente formal e seria um reducio-
nismo considerar o hipertexto de tal maneira. Em seguida, serão propostas
conjecturas com o objetivo de posicionar a lógica hipertextual dentro do contex-
to de produção e disseminação de conteúdos, quer sejam especificamente no
ambiente educacional como também em outras esferas de produção cultural.
3.5. O hipertexto e a transposição didática
Nesta parte do trabalho serão apresentados conceitos e conjectu-
ras que buscam justificar a adoção das estruturações hipertextuais na educa-
ção. Ao explicitar determinados conceitos e formulações pretende-se inferir que
a abrangência do hipertexto deve extrapolar o âmbito formal e tecnológico,
chegando, mesmo, a interferir nas dimensões de teorização, concepção e
construção do conhecimento.
Apesar do impacto social causado pelo avanço das novas tecno-
logias, em especial as digitais, nas experiências voltadas para o letramento e o
ensino de uma forma geral, elas isoladas de um contexto social nada represen-
tam. Denise Braga argumenta que “as mudanças tecnológicas interagem com
outros fatores – sociais, econômicos e Políticos – de modo a determinar formas
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 92
novas de práticas letradas”. (BRAGA, 2005, p. 144)
Por outro lado, a construção de sentidos em ambientes hipermí-
dia pode ser potencializada na medida em que, para além das significações
atribuídas a cada segmento de texto – que deve ser pensado enquanto infor-
mação de naturezas diversas – por meio da articulação dos blocos informacio-
nais presentes na estrutura possibilita-se a re-significação dos sentidos já cons-
truídos no nível das unidades ou nós.
Assim, é possível afirmar que, segundo Marianne Cavalcante, “a
identidade do hipertexto virtual se dá na presença e utilização de seus constitu-
intes internos: os nós e links.” (CAVALCANTE, 2005, p. 166)
Marianne argumenta que, no entanto,
“estes blocos não necessitam estabelecer uma relação sêmica
entre si, isto é, as ligações possíveis não formam necessaria-
mente a tessitura daquele texto específico, mas promovem a
abertura para outros textos, mas nunca qualquer texto”. (ibi-
dem, ibidem)
Percebe-se, pois, que a construção de sentidos a partir da leitura
do hipertexto segue uma movimentação “centrífuga”, na medida em que poste-
riormente às conexões estabelecidas entre os nós internos, esses mesmos
links determinam o lugar da exterioridade textual, uma vez que mostram o mo-
mento da relação do co-texto com o contexto. Segundo Marcuschi, “os links
geram expectativas diversas a depender de onde se situam. Eles são instru-
mentos interpretativos e não simples instrumentos neutros ingênuos de rela-
ções constantes e estáticas”. (op. cit. 2005, 168).
A etapa que segue na formulação de articulações entre saberes
diversos relacionados ao objeto dessa pesquisa se concentra na apresentação
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 93
dos preceitos da teoria da Transposição Didática, discutida embrionariamente
por vários autores e desenvolvida por Yves Chevallard (1980), e que servirá
para dar suporte e orientação na condução de transformações nos conteúdos
transpostos.
3.5.1. Entendendo o hipertexto
As estruturações e leituras hipertextuais não são exclusivas de
ambientes tecnologicamente desenvolvidos, mas as tecnologias digitais possi-
bilitam uma plenitude na exploração destes conceitos. O conhecimento pode
ser transmitido de várias maneiras: pela fala, a escrita, gráficos, diagramas,
gravações de som e de vídeo. “O que se destaca no ambiente eletrônico é a
grande amplitude do potencial de liberdade de movimento do usuário/leitor, que
lhe possibilita percorrer vários caminhos num mesmo suporte material.” (DIAS,
A. C.; ANTONY, G. in FIORENTINI, L.; MORAES, R.,2003, p. 54)
Funcionalmente, um hipertexto é um tipo de programa para a or-
ganização dos conhecimentos ou dados, a aquisição de informações e a co-
municação. Mas para Lévy, a estrutura do hipertexto não dá conta somente da
comunicação. Os processos sociotécnicos, sobretudo, também têm uma forma
hipertextual, assim como vários outros fenômenos. “O hipertexto é, talvez, uma
metáfora válida para todas as esferas da realidade em que significações este-
jam em jogo” (LÉVY, 1993, p. 25).
Para Olson, os problemas de leitura e interpretação surgem não
tanto do que os representam – sons, palavras e frases – mas do que eles dei-
xam de representar: a maneira ou a atitude de quem fala ou escreve, com res-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 94
peito ao que é dito ou escrito (OLSON, 1997). A inclusão destas características
torna-se factível numa estrutura hipertextual com informações multimediadas,
em um ambiente informático.
As associações cognitivas presentes no processo de escrita-
leitura nas estruturas hipertextuais, caracterizadas pela não-linearidade, apre-
sentam-se de forma não convencional, subvertendo o formato início-meio-fim.
Considerando, também, que grande parte dos conteúdos dispostos nos hiper-
textos e, de forma similar, nos produtos educativos com estas características,
são produzidas em forma de construção coletiva, subvertem-se, pelo menos,
outras duas dimensões predominantes na produção das “escrituras”: a autoria
e a autoridade.
O hipertexto traduz-se num ambiente de anarquia, onde os nós
informacionais possuem características singulares, são de naturezas distintas e
marcados pela incompletude. “Incompletude é a condição da linguagem: nem
os sujeitos nem os sentidos, nem o discurso, já estão prontos e acabados. Eles
estão sempre se fazendo, havendo um trabalho contínuo” (ORLANDI, 2002, p.
37). As conexões, ou links, estabelecidos entre estes nós, vão acontecendo na
medida em que os conteúdos abordados sugerem a presença de novas vozes
e a participação de novos olhares, ou ainda, por livre intencionalidade do pró-
prio leitor. Desfazem-se prerrogativas autoritárias e instaura-se um ambiente
dialógico, polifônico e propício a trocas. Derrida, em oposição aos posiciona-
mentos unilaterais e absolutos, afirma que “acima de tudo, deve-se evitar ne-
gligenciar as diferenças profundas que marcam todas estas maneiras de tratar
a mesma metáfora” (DERRIDA, 1973, p. 20).
Composto a partir de relações como as descritas anteriormente, o
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 95
hipertexto possibilita o surgimento de produções onde a co-autoria é exercida
em sua plenitude. As diversas vozes que se fazem presentes colaboram para
a produção de conteúdos em permanente mutação, com atribuição de signifi-
cações e afeito às negociações. Este ambiente de troca perde sua dimensão
territorial e passa a ser estabelecido não como parte restrita do espaço, mas
sim como o próprio espaço. Assume, por conseqüência, características dicotô-
micas, sem serem antagônicas, que o tornam simultaneamente fragmentado e
desterritorializado, local e universal, parte e todo.
Entendendo o hipertexto como um evento que pode ser realizado
em várias esferas da comunicação, como na arte, na educação, na política e
em outras mídias – uma vez que não é exclusivo de ambientes computacionais
conectados em rede –, Ângela Correia Dias e Geórgia Antony apresentam
princípios constitutivos do hipertexto, a despeito e muitas vezes em conformi-
dade com os instituídos por Pierre Lévy, que convergem no sentido de se com-
preender os meios tecnológicos como férteis em possibilidades para a criação
de novas formas de comunicação e de expressão de idéias, conceitos e temas.
A atribuição de tais princípios incorre, ainda, na possibilidade de
novas formas de ler e produzir sentidos para a informação, privilegiando de
forma intensa a autonomia do usuário/aluno. Para as autoras, os princípios
constitutivos do hipertexto são a não-linearidade, a intertextualidade, a interati-
vidade e a heterogeneidade.
Por não-linearidade entende-se a estruturação formal que não
segue encadeamentos específicos e está baseado, conforme André Parente
(1999) nos princípios da conexão e heterogeneidade, implicando na possibili-
dade de cada nó estabelecer-se como uma rede específica formada por links
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 96
de natureza e ordem variadas. Argumenta-se por conseqüência que, por mais
que o autor do hipertexto tenha estabelecido ou sugerido encaminhamentos
específicos e/ou conexões tais que conduzam a produção de sentidos, só o
próprio sujeito/leitor/usuário tem autonomia para acessar os trechos que lhe
são convenientes, e mais, no tempo que for preciso ou possível.
A descontinuidade que se observa com a não-linearidade, pre-
sente em outros fenômenos comunicacionais, mas evidenciada e explicitada
pelo hipertexto, produz, a um mesmo tempo, uma enorme liberdade para o u-
suário/leitor criar sua própria ordem de conexões formais e de sentido, mas,
segundo Dias e Antony (2003) que encontram apoio em Marcuschi (1999) e
Canclini (1998), podem apresentar algumas situações de dificuldades decor-
rentes dessa “relativa” autonomia. Entre as dificuldades mais prementes desta-
cam-se a dificuldade na elaboração de obras que privilegiem a não-linearidade
plena; a dificuldade decorrente do aumento da demanda de funções cognitivas
do leitor – ocasionadas por um eventual excesso de conexões efêmeras e po-
tencializadas na medida em que mais sentidos são produzidos a partir da co-
nexão de fragmentos distintos dentro de uma mesma rede ou parte desta –; a
fragmentação da escrita podendo incorrer na superficialização e futilização da
leitura; e, ainda, a dessignificação de elementos de tradição cultural, de sentido
histórico e de concepções macroestruturais em detrimento de relações intensas
e eventuais com elementos isolados, com seus signos e imagens.
A intertextualidade ou multilinearidade consiste na capacidade
dos módulos do hipertexto de mudar seu conteúdo, visto que “co-existem di-
versos pontos de vista sobre o mesmo tema, como também diversos temas
que são potencialmente conectáveis num mesmo suporte material.” (DIAS e
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 97
ANTONY, 2003, p. 58)
Desse fato depreende-se que a cada leitura é possível que se ob-
tenha um texto inédito, único, individual, mas, também, um coletivo – fruto do
diálogo estabelecido entre os textos que o leitor traz consigo e com os demais
textos. Diferentemente de outros princípios do hipertexto – que podem ser es-
tabelecidos em ambientes outros que não as redes computacionais –, a inter-
textualidade e a interatividade dependem de sistemas hipertextuais dinâmicos.
“Em um texto estático, os módulos podem mudar de ordem, mas permanecem
idênticos. Em um texto dinâmico, os módulos também podem mudar, ou seja,
seu conteúdo, dependendo da interação com o usuário.” (PARENTE, 1999,
p.95)
Outra possibilidade inerente ao ambiente do hipertexto eletrônico
está relacionada ao modo pelo qual se realiza a construção de sentidos a partir
da leitura. Como foi mencionado anteriormente, todo leitor traz consigo uma
bagagem de textos anteriores que vai apoiá-lo na execução de sua leitura, e na
conseqüente construção de sentidos – processo esse internalizado no próprio
sujeito/leitor. Como a leitura hipertextual é marcada pela realização de cone-
xões e desenvolvimento de conteúdos particulares diretamente no corpo do
hipertexto esse processo se torna externo ao leitor e pode, inclusive, por meio
de rastreamentos, acompanhamentos e mapeamentos do autor, colaborar na
revisão e atualização do mesmo.
Por interatividade entende-se a oportunidade de o leitor interferir
e transformar o texto, tornando-se, nesse caso, co-autor do texto.
No hipertexto, o leitor não apenas escolhe seu percurso entre
links existentes, mas cria novas conexões que têm sentido pa-
ra ele, e não necessariamente fazem sentido para o criador do
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 98
hipertexto ou para outros leitores. Além de propor novas cone-
xões, os leitores podem também modificar as lexias (os textos,
as imagens) e conectar dois ou mais hipertextos. (DIAS e
ANTONY, 2003, p. 62)
Correia e Antony apontam para duas possibilidades de interativi-
dade no hipertexto eletrônico: a primeira que “define um caminho escolhendo
links”; e a segunda relacionada às “dobras de sentido que resultam da combi-
nação entre as lexias”. (id., ib.)
A autonomia conferida ao usuário/leitor atinge um elevado grau
de plenitude na medida em que é possível considerar que o autor do hipertexto
ao escrever um texto “virtual” coloca-se, segundo Marianne Cavalcante, “en-
quanto explorador de um certo território, demarcando os ponto que ele conside-
ra relevantes para o seu recorte de realidade.” (CAVALCANTE, 2005, p. 167)
Essa demarcação, no entanto, não representa um aprisionamento do leitor. A
definição dos caminhos e encadeamento a serem procedidos são prerrogativas
do usuário, e podem ser modificadas pelo mesmo em função de interesses
pessoais momentâneos e, muitas vezes, efêmeros.
É possível argumentar, portanto, que a leitura no hipertexto esta-
belecida por meio da conexão de nós, é um importante passo no sentido da
emancipação do leitor da superfície pluritextual sobre qual centraliza tempora-
riamente sua atenção, podendo esse mesmo leitor seguir por rotas diferentes
das originalmente organizadas pelo autor. Antonio Xavier (2005) aponta sabo-
res e dissabores da “navegação” hipertextual ao apresentar argumentos favo-
ráveis à percepção da leitura hipertextual como forma de subversão da leitura
livresca.
(...) os nós/elos hipertextuais diluem qualquer “contrato” supos-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 99
tamente firmado entre autor e leitor – como parece ocorrer nos
livros convencionais – que estabeleça a chegada da viagem-
leitura pelo texto eletrônico ao seu porto final.
(...) Ao atualizar o hipertexto e percorrer seus links, o hiperlei-
tor estará realizando tentativas de compreensão, efetivando
gestos de interpretação ou de uso, porque, em última análise,
é ele mesmo quem define a versão cabal do que será lido e
compreendido.
É bem verdade que, ao se deixar seduzir pela força da impre-
visibilidade latente em tais ligações digitais, o navegador pode-
rá descobrir fatos e história interessantes, mas poderá também
se emaranhar em uma teia intrincada e confusa que o fará
perder tempo preciso com coisas frugais.” (XAVIER, 2005, p.
177)
Retornando aos princípios do hipertexto, tem-se a atenção volta-
da para a heterogeneidade, que se reveste na possibilidade de a estrutura hi-
pertextual aglomerar atos comunicacionais muito diversos, lingüísticos, mas
também perceptivos, gestuais, cognitivos. Ângela Correia Dias e Geórgia An-
tony reafirmam a riqueza que o meio eletrônico possibilita no sentido de hibri-
dação entre diversas mídias, ainda que essa característica não seja exclusivi-
dade do mesmo. Reconhecem, entretanto, que as experiências e as possibili-
dades de êxito em outros meios são bastante limitadas.
3.5.2. Escrita e leitura
A invenção da escrita trouxe consigo possibilidades impensáveis
nas sociedades orais. A persistência dos textos durante várias gerações, a faci-
litação da sistematização do conhecimento e a formalização das relações soci-
ais são apenas alguns entre centenas de usos da escrita. Entre nossas habili-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 100
dades mais valorizadas está a capacidade de usar textos escritos, nosso domí-
nio da escrita e da leitura. “A função primária da escola é ensinar os ‘conheci-
mentos fundamentais’ – ler, escrever e calcular – e todos os três requerem
competência em um sistema de notação” (OLSON, 1997).
Se, por um lado, a escrita possibilita novas incursões na sistema-
tização do conhecimento, por outro, fortalece o conhecimento científico como
forma hegemônica de saber. Se, nas culturas orais, o auxiliar congnitivo era a
própria memória do indivíduo e conduzia a uma relação cíclica com a informa-
ção em uma perspectiva de eterno retorno, nas culturas letradas este auxiliar
encontra-se fora do indivíduo e independente dele. Constitui-se, pois um senti-
do de linearidade onde tudo passa a estar inscrito em uma cronologia. A lógica
da justaposição, própria da oralidade contrapõe-se a lógica do encadeamento.
O conhecimento escolar da cultura letrada estruturou-se como as
páginas de um livro: linear, fragmentado e encadeado. E o prestígio adquirido
pelos sistemas alfabetizados acaba por inferiorizar as culturas orais. As escolas
impõem aos alunos as normas da língua “culta”, desprezando os saberes que
estes trazem do próprio meio cultural. Os currículos e programas estabelecidos
a priori, marcados por verdades absolutas inseridas em espaços monológicos
se configuram como ambientes hostis aos alunos e tornam difícil sua adapta-
ção a estes.
O uso de estruturas fundadas no hipertexto, de acordo com seus
princípios e características (apresentados anteriormente), oferece novas possi-
bilidades de redimensionamento da relação escrita/leitura. Não é de hoje a ne-
cessidade de o homem redimensionar essa relação. Ao longo da história da
escrita, a cada inovação tecnológica – entendida de forma ampla – o sujeito
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 101
escritor produzia novas organizações textuais e os leitores, em certa medida e
tempo, procuravam se adaptar aos novos suportes. Assim foi da passagem dos
tabletes de argila e cera para o papiro e esse, por sua vez, deu lugar em seu
devido tempo ao pergaminho. Mais tarde surgiria o papel tal qual se conhece
hoje e novamente conduziria a sociedade letrada à reestruturação da forma de
organização das escrituras.
Cada novo suporte para escrita/leitura apresenta uma interface,
que em primeira análise assusta a muitos leitores, que guarda características
formais e funcionais das tecnologias predecessoras. É possível identificar cer-
tas semelhanças na forma de leitura típica dos ambientes informáticos – que
utilizam barras de rolagem para acompanhamento de todo o texto –, com a lei-
tura realizada em escrituras dispostas em pergaminhos em rolo. Uma nova
tecnologia não necessariamente nega as tecnologias que a antecederam.
Novos leitores, mais rápidos e adaptados aos variados tipos de
escrita, surgem a cada novo aparato tecnológico que circula na sociedade. E o
processo se configura de forma cíclica, na qual uma instância estimula e ab-
sorve comportamentos da outra.
O suporte em que o texto se encontra também influencia a
emergência de novos gêneros de escrita, e o leitor amplia seu
leque de possibilidades de leitura à medida que entra em con-
tato com esses suportes e gêneros reconfigurados, que por
vezes são híbridos, “cruzamentos” de algo conhecido com al-
guma possibilidade nova, parcialmente estranhos, mas parci-
almente reconhecíveis. (RIBEIRO, 2005, p. 134)
Ao se considerar o hipertexto um conjunto de textos incorporados
a um texto fonte, e entendendo texto enquanto mensagem que pode ser ex-
pressa em forma de som, imagem, vídeo ou mesmo um texto, é possível che-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 102
gar ao entendimento de que tal estrutura amplia significativamente a superfície
textual. No hipertexto não existe seqüência de leitura preestabelecida e, portan-
to, ao se imputar a responsabilidade pelas conexões ao usuário/leitor, transfe-
re-se a este a oportunidade de vivenciar uma intensa produção de sentidos a
partir dos diálogos estabelecidos entre os textos (no sentido mais amplo) que
por ele foram conectados.
Outras implicações potenciais na leitura do hipertexto dizem res-
peito ao aumento de solicitações cognitivas do leitor. Ao se deparar com condi-
ções de leitura diferentes das convencionalmente estabelecidas – como não-
linearidade, intertextualidade, interatividade, heterogeneidade – o leitor precisa
estar concentrado no foco de sua pesquisa e conseqüente encadeamento dos
blocos informacionais que compõem o hipertexto. Antonio Xavier reconhece o
maior grau de exigência imposto ao leitor do hipertexto quando afirma que
O hipertexto exige do seu usuário mais que mera decodifica-
ção das palavras que flutuam sobre a realidade imediata. Ali-
ás, qualquer leitura proficiente de um texto impresso tradicio-
nal leva sempre o leitor a lançar mão de seus conhecimentos
enciclopédicos, cobra-lhe intenso esforço de atos inferenciais,
até porque o texto, em qualquer superfície, não pode dizer tu-
do, por motivos óbvios de falta de espaço e obediência às re-
gras do próprio jogo que constitui as linguagens. (XAVIER,
2005, p. 172)
Marcuschi (2005) acredita que, assim como a introdução da escri-
ta conduziu a uma cultura letrada nos ambientes em que a escrita floresceu, a
introdução da escrita eletrônica está encaminhando a chamada “sociedade da
informação” a uma cultura eletrônica que, a partir da utilização das novas tec-
nologias digitais, e ao provocar uma “radicalização do uso da escrita”, conduz a
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 103
sociedade para o plano da escrita, colaborando na sedimentação do fenômeno
designado “letramento digital”.
Ainda em referência às novas formas de escrita/leitura pode-se
discorrer que, na medida em que os novos meios tecnológicos interferem e
modificam substancialmente acontecimentos antes assentados histórica, cultu-
ral e socialmente, devem desestabilizar as formas convencionais de produção
textual. Para além das formas estabelecidas de escrita e leitura, as novas tec-
nologias da comunicação – onde se inserem as estruturas hipertextuais – per-
meiam e provocam tensões nas relações no âmbito da sociedade e suas insti-
tuições.
3.5.3. Informática, sociedade e educação
Uma sociedade baseada cada vez mais na troca de valores simbólicos,
do dinheiro à informação, vai mudar o eixo da economia, acabar com o conceito atual
de trabalho, valorizar mais que tudo o conhecimento e a aprendizagem. Neste cenário,
os excluídos serão cada vez mais excluídos – com o poder se concentrando nas esfe-
ras virtuais (com profundo controle nas esferas reais) – a não ser que se implementem
eficazes e massivas ações para promover sua inclusão digital. Para Carlos Seabra,
coordenador científico do Centro de Inclusão Digital e Educação Comunitária da Escola
do Futuro – USP, à escola cabe hoje o papel da alfabetização digital e cita artigo de
Gilberto Dimenstein, enfatizando que “a escola que não ensina a manejar as informa-
ções, não mantendo o aluno em permanente reciclagem, cria novos analfabetos” (DI-
MENSTEIN, 1997).
Uma primeira argumentação em favor da utilização da estrutura-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 104
ção hipertextual na composição de produtos pedagógicos diz respeito à recu-
peração da elaboração das mensagens típica das sociedades baseadas na
oralidade. A incorporação de elementos multimediados às narrativas das soci-
edades orais, que objetivavam uma maior fixação e perenidade das mesmas,
pode ser comparativamente equivalente à diversidade dos nós constitutivos
das estruturas hipertextuais. Assim como as elaborações garantiam resultados
naquelas sociedades, contemporaneamente, o uso do hipertexto em materiais
educacionais pode contribuir com o processo cognitivo dos usuários, conside-
rando os mesmos numa perspectiva histórico-cultural.
Do horizonte do eterno retorno da época das narrativas, e na no-
ção de linearidade possibilitada pela cultura letrada, atinge-se uma percepção
de tempo, mais do que como linhas, como pontos ou segmentos da imensa
rede pela qual os indivíduos se movimentam.
Em 1980, Deleuze e Guattari afirmavam que era preciso criar o li-
vro como rizoma, descrevendo entre suas características a conexão, a hetero-
geneidade e a multiplicidade. Para Landow,
a hipertextualidade não é mero produto da tecnologia, e sim
um modelo estreitamente relacionado com as formas de pro-
duzir e de organizar o conhecimento, substituindo sistemas
conceituais fundados nas idéias de margem, de hierarquia, de
linearidade, por outros de multilinearidade, nós, links e redes.
(LANDOW, 1991)
Derrida aponta que “talvez seja mais efetivo pensar numa tempo-
ralidade que comporte a simultaneidade, em vez de ficarmos limitados pela
sucessividade como forma de concepção e recepção do tempo” (DERRIDA,
1973).
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 105
A segunda argumentação favorável às estruturações de hipertex-
to relacionadas ao contexto da modernidade tardia diz respeito à caracteriza-
ção do atual momento em que as sociedades vivem em ritmo de “velocidade
pura”, como afirma Lévy, numa “pluralidade de devires imediatos”. Nesse mo-
vimento, não há horizonte, no sentido de não haver um ponto-limite, uma pers-
pectiva de realização da história, um fim a atingir no término da linha. Ao con-
trário, assim como afirma Ramal,
vivemos uma fragmentação do tempo, numa série de presen-
tes ininterruptos, que não se sobrepõem uns aos outros, como
páginas de um livro, mas existem simultaneamente, em tempo
real, com intensidades múltiplas que variam de acordo com o
instante. (RAMAL, 2002)
Adequado a estas condições, o hipertexto se caracteriza pela
provisoriedade de suas manifestações e representações, decorrentes da pró-
pria maleabilidade do meio digital; pela ausência de limites ou partes bem defi-
nidas; pela interconexão multilinear de suas partes (nós) formando redes; pela
fragmentação das leituras sucessivas que provoca, por ser constituído por
grande quantidade de textos não-verbais que se articulam com as palavras; e
pela disponibilidade dos diversos fragmentos, sejam eles imagens, informações
relacionadas, ou mesmo componentes de outros textos, para acesso quase
imediato.
Para Morin, a educação do futuro deve considerar a diversidade,
e “ensinar princípios de estratégia que permitam enfrentar os imprevistos, o
inesperado e a incerteza, e modificar seu desenvolvimento, em virtude das in-
formações adquiridas ao longo do tempo. É preciso aprender a navegar em um
oceano de incertezas em meio a arquipélagos de certeza” (MORIN, 2003).
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 106
Uma terceira argumentação em favor do uso do hipertexto refere-
se ao aspecto relacionado à tecnologia. As novas tecnologias da comunicação
e da informação permeiam o cotidiano e criam necessidades de vida e convi-
vência que precisam ser inseridas e analisadas no espaço escolar. Com base
nestas questões, torna-se necessário considerar que não é mais possível pen-
sar em cidadania plena, hoje, sem uma alfabetização tecnológica. Fazer uso
das tecnologias da comunicação e da informação deve ser uma competência
básica a ser propiciada no conjunto do currículo escolar e suas disciplinas, bem
como nos produtos educativos e de lazer criados para o público infantil.
É importante, entretanto, como afirma Masetto, não se esquecer
de que a tecnologia possui um valor relativo: ela somente terá importância se
for adequada para facilitar o alcance dos objetivos e se for eficiente para tanto.
“As técnicas não se justificarão por si mesmas, mas pelos objetivos que se pre-
tenda que elas alcancem, que no caso serão de aprendizagem” (MASETTO,
2000).
O homem, ao estar engajado no espaço virtual, que é uma di-
mensão constitutiva de seu ser, vive uma posição fundamental que, segundo
Margarita Gomez (2004), “lhe permite captá-lo e transcende-lo por meio de sua
imersão crítica e criadora de textos e relações.” (GOMEZ, 2004, p. 92)
3.5.4. Transpondo saberes
A teoria da transposição didática, que tem em Yves Chevallard
sua principal referência, comporta uma análise minuciosa das diferentes etapas
de construção de uma disciplina, revelando as modificações sofridas nos círcu-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 107
los de pensamento intermediários entre a pesquisa e o ensino, ou, nas pala-
vras de Chevallard, entre o “saber sábio” e o ”saber ensinado”.
De acordo com os pressupostos da teoria, o “saber sábio” ou co-
nhecimento científico deve sofrer deformações para se ajustar e se tornar apto
a ser introduzido nos programas escolares. Essa deformação, entretanto, deve
ser baseada em quatro constantes que, segundo Chevallard representam, num
primeiro momento, o desencaixe das instâncias originais de instituição do sa-
ber, ruptura histórica denominada desincretização. Em segundo lugar está a
supressão de todo e qualquer caráter de identificação e reconhecimento pes-
soais também chamado despersonalização. Em terceiro lugar está a capacida-
de de tornar o saber programável e divisível, com vistas à integração da dinâ-
mica do ensino formal, que pode ser chamado de programabilidade da aquisi-
ção do poder. Em quarto e último lugar está a definição explícita – em termos
de compreensão e extensão – do saber a ser transmitido bem como o controle
da aquisição deste. Essa constante é denominada publicidade.
Ao inserir-se na esfera do sistema didático, espaço seguinte rumo
à concretude da teoria da transposição didática e formado pelo “saber ensina-
do” na instância professor-aluno, se estabelece uma profunda relação entre os
elementos internos e externos. Esse sistema encontra-se inserido no que Che-
vallard denomina noosfera – espaço onde se opera a interação entre o sistema
de ensino stricto sensu e o entorno. Martha Marandino afirma que é a noosfera
é “o espaço daqueles que ocupam postos principais do funcionamento didático
e se enfrentam com os problemas resultantes do confronto com a sociedade.”
(MARANDINO, 2004)
A etapa seguinte na consecução da transposição didática apre-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 108
senta o aluno como elemento final do processo de ensino e este, por sua vez,
deve contribuir na identificação do terceiro e último grau de uma transposição,
à qual Chevallard denomina transposição didática interna. No trabalho do aluno
encontra-se a relação entre o saber que foi ensinado, ao qual o aluno foi ex-
posto durante um determinado período de tempo, e pode-se identificar, ao final
deste período, a diferença entre o que foi ensinado e o que foi efetivamente
assimilado. Este último grau de um processo de transposição didática pode ser
representado no esquema proposto por Develay, conforme apresentado a se-
guir.
FIGURA 1 – Etapas da transposição didática
A partir da observação desta estrutura é possível inferir que as
deformações são essenciais para que o “saber sábio” venha a se tornar “saber
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 109
ensinado” e que este, segundo Chevallard, envelhece biologicamente e moral-
mente, necessitando da re-inserção de determinados conceitos originais do
saber científico para a manutenção e legitimação do sistema.
3.6. Critérios para a transposição
Com base nas informações e conjecturas apresentadas até este
ponto da estruturação do referencial teórico surgem questões fundamentais,
diretamente associadas aos objetivos do trabalho, e que interferem profunda-
mente nos encaminhamentos que se pretende nas etapas que seguem: é pos-
sível efetuar a transposição didática do texto para o hipertexto? Que condições
devem ser respeitadas para que a transposição ocorra?
Responder a essas questões significa revisitar os campos teóri-
cos explorados e propor articulações que iluminem a formulação de argumen-
tações consistentes para o estabelecimento dos critérios a serem adotados na
transposição.
Inicialmente é possível partir das características contextuais da
pós-modernidade e inferir que adoção de estruturas textuais não-lineares é
uma opção que encontra apoio nas manifestações e fenômenos sociais da “so-
ciedade da informação”, entendendo, ainda, que as estruturações lineares são
típicas da racionalidade da modernidade e passam a ser rejeitadas enquanto
lógica vigente. A forma pela qual são organizados os agrupamentos sociais e,
de forma similar, os construtos cerebrais, conduzem os atores sociais à busca
por encadeamentos informacionais que lhes sejam mais próximos.
Outras questões que devem ser consideradas na identificação de
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 110
critérios são a autonomia e a interatividade, de modo tal que, a partir de sua
consecução, outras instâncias constitutivas serão evidenciadas, entre elas a
intertextualidade e heterogeneidade presentes nos hipertextos e que reforçam
as anteriores.
Apesar das possíveis abordagens sobre o tema, esta pesquisa fi-
xou sua principal referência teórica a respeito do hipertexto, nos princípios eri-
gidos por Pierre Lévy e, portanto, deve considerá-los no estabelecimento dos
critérios. Associado aos princípios do hipertexto, e por motivações baseadas no
posicionamento epistemológico de seus principais autores – que encontram
grandes possibilidades de encaixe na sociedade contemporânea –, deve-se
privilegiar, na medida do possível, o encaminhamento de soluções que atentem
para uma abordagem histórico-cultural (Vygotsky); para o estabelecimento de
uma ambiente propício ao dialogismo polifônico (Bakhtin); e para a valorização
dos preceitos da teoria das Múltiplas Inteligências (Gardner).
Por fim, e de forma não menos importante, deve-se ater de modo
especialmente atencioso para a manutenção dos objetivos do autor, subjacen-
tes à obra original, e dos encadeamentos informacionais que não podem pres-
cindir de serem mantidos e dos que, eventualmente, não podem ser realizados.
De posse desses tópicos norteadores propõem-se então os se-
guintes critérios para a transposição do texto para o hipertexto:
1. Narrativa não-linear;
2. Livre navegação do usuário/leitor;
3. Acesso a auxílios externos relacionados (web);
4. Estrutura multimodal;
5. Trocas informacionais;
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 111
6. Exercício da co-autoria;
7. Customização da interface;
8. Controle sobre recursos multimídia;
9. Construção de auxílios internos;
É importante que se deixe claro que não se trata da produção de
um software educativo, para o qual existem inúmeras metodologias já estabe-
lecidas, mas trata-se da transposição de conteúdo de um livro de conteúdo pa-
radidático para um suporte multimídia. De acordo com metodologia proposta
para o desenvolvimento do primeiro e, na medida em que seja possível tirar
proveito de tais características, algumas questões podem ser consideradas,
tais como:
• definição e presença de uma fundamentação pedagógica que
permeie todo o seu desenvolvimento;
• finalidade didática, por levar o aluno/usuário a “construir” conhe-
cimento relacionado com seu currículo escolar;
• interação entre aluno/usuário e programa, mediada pelo profes-
sor;
• facilidade de uso, uma vez que não se devem exigir do aluno
conhecimentos computacionais prévios, mas permitir que qual-
quer usuário, mesmo que em primeiro contato com a máquina,
seja capaz de desenvolver suas atividades;
• atualização quanto ao estado da arte.
Tais características podem ser sintetizadas no diagrama que se-
gue e, ainda que estejam diretamente associadas à produção de softwares e-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 112
ducativos, representam categorias que devem ser consideradas na transposi-
ção de conteúdo.
FIGURA 1b – Categorias para produção e avaliação do hipertexto “transposto”
Os critérios compreendidos por essas categorias são relaciona-
dos, segundo Oliveira, Costa e Moreira (2001, pp. 126-137), e com devidas
adaptações ao caso em análise, às seguintes questões:
INTERAÇÃO ALUNO-HIPERTEXTO: relativo ao papel do hiper-
texto na facilitação da aprendizagem do aluno, à possibilidade de aprendiza-
gem em grupo e à possibilidade de interação entre hipertexto e alunos, abran-
gendo os seguintes itens:
Facilidade de uso – quanto à objetividade das instruções para o
uso do hipertexto e à facilidade de percorrê-lo, sendo desdobrado na coerência
dos seguintes sub-itens:
- instruções;
- ícones e botões;
- auxílio e dicas;
- linguagem versus público-alvo;
- universalidade da linguagem;
- estrutura;
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 113
- navegabilidade;
- mapeamento;
- memória;
- integração.
Recursos motivacionais – relativos ao interesse que o hipertex-
to propicia e mantém no usuário, sendo desdobrado na coerência dos seguin-
tes sub-itens:
- atratividade;
- desafios pedagógicos;
- interação com o usuário;
- layout da tela;
- carga cognitiva;
- receptividade pelo aluno.
Adequação das atividades pedagógicas – relativo à coerência
com a base epistemológica de escolha do autor, sendo desdobrado na consis-
tência dos seguintes sub-itens:
- nível das atividades;
- questão do erro e do acerto.
Adequação dos recursos de mídia às atividades pedagógicas –
relativo à adequação dos recursos de hipermídia, imagem, animação, sons e
efeitos sonoros às atividades pedagógicas, sendo desdobrado nos sub-itens:
- hipertextos em quantidade e qualidade;
- imagem e animação;
- sons e efeitos sonoros.
Interatividade social – relativo ao favorecimento do trabalho em
grupo, sem que se descarte a possibilidade de trabalho individual. Desdobra-
mento nos seguintes sub-itens:
- interação intragrupo;
- interações intergrupos;
- interação transgrupos.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 114
FUNDAMENTAÇÃO PEDAGÓGICA: relativo à base pedagógica
que permeia as atividades no hipertexto, abrangendo os seguintes itens:
Clareza epistemológica – referente à base pedagógica que
permeia o desenvolvimento do hipertexto com desdobramento nos seguintes
sub-itens:
- explicitação dos fundamentos pedagógicos;
- consistência pedagógica.
CONTEÚDO: relativo aos níveis de exigência para o trabalho com
a área do conhecimento selecionada para o desenvolvimento do hipertexto,
abrangendo os seguintes itens:
Pertinência do conteúdo – referente à seleção adequada do
conteúdo do hipertexto, com desdobramento em sub-itens:
- adequação do hipertexto ao conteúdo nele trabalhado;
- excelência do hipertexto como ferramenta didática para aquele
conteúdo.
Correção do conteúdo – relativo à correção do conteúdo, de
sua organização lógica, forma de representação e simplificação.
estado da arte – refere-se à atualidade de conteúdo e metodo-
logia.
adequação à situação de aprendizagem – relativo à adequação
do conteúdo ao público-alvo e ao currículo escolar.
variedade de abordagens – em relação à multiplicidade de ati-
vidades proposta no hipertexto e alternativas de aprofundamento
PROGRAMAÇÃO: relativo a qualquer software como um progra-
ma produzido para rodar no computador, abrangendo os seguintes itens:
confiabilidade conceitual – referente à implementação satisfató-
ria de tudo o que foi projetado e correspondência às necessidade que geraram
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 3: HIPERTEXTOS NA EDUCAÇÃO | 115
seu desenvolvimento. Desdobramento nos sub-itens::
- fidedignidade (correção; atualidade; precisão; completeza; sim-
plicidade; concisão)
- integridade (robustez; segurança)
facilidade de uso – refere-se à facilidade de interação do usuá-
rio com o hipertexto e à viabilidade de utilização do mesmo ao longo do tempo.
Desdobramento nos sub-itens::
- legibilidade (clareza; estrutura; rastreabilidade);
- manutenibilidade (alterabilidade);
- operacionalidade (compatibilidade; oportunidade);
- reutizabilidade;
- custo/benefício (economia de processamento, renatbilidade);
- avaliabilidade (verificabilidade, validabilidade);
- modularidade;
- documentação (manual, guia de apoio, manual do usuário, in-
formações de capa, apresentação de capa).
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 116
4. OUSAR UMA METODOLOGIA DE TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA
DO TEXTO AO HIPERTEXTO
Este projeto, desenvolvido no universo das pesquisas que adotam
o paradigma qualitativo, não apresenta características de similaridades que
permitam a adoção de procedimentos metodológicos plenamente estabelecidos
para tal. Essa situação conduziu a um encaminhamento no sentido da apropri-
ação de conceitos afeitos a outras esferas de pesquisa, mas que, em alguma
medida, guardassem algum tipo de paralelismo que justificasse uma adequa-
ção.
A etapa inicial de formação dos alicerces do trabalho se constitui
em pesquisa bibliográfica para levantamento de informações significativas no
encaminhamento do projeto, bem como na constituição da abordagem que se
pretendeu. A proposição de uma metodologia de transposição, concebida e
erigida a partir da construção de um referencial teórico baseado em conjecturas
em favor do estabelecimento de um espaço orgânico – em construção, não
linear, provisório e mutável, palco para trocas e embates ideológicos travados
por sujeitos dotados de posicionamentos epistemológicos distintos –, é, em
última instância, uma tarefa que requer relativização e flexibilização de concei-
tos, sob pena de constituir-se determinista, hermética e antinatural.
Para a definição dos parâmetros que venham a configurar um
método adequado à transposição de conteúdo a partir da forma original, estru-
turado linearmente em suporte convencional (livro), para um suporte digital,
elaborado com recursos multimídia e estruturado de forma hipertextual, é ne-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 117
cessário recorrer aos principais conceitos apresentados e articulados ao longo
do referencial teórico.
Esta proposta de metodologia não pretende se estabelecer, num
primeiro momento, de uma forma generalista. Tendo por base as reflexões que
permeiam a teoria da transposição didática de Yves Chevallard – quando dos
esclarecimentos a respeito das deformações que o saber científico deve sofrer
para se adequar às especificidades do contexto de aplicação –, serão adotadas
soluções específicas para o objeto de exemplificação do estudo – o livro A es-
tória estranha de Eduardo Peçanha – e que constituirão um conjunto de orien-
tações diretivas para a realização de transposição de conteúdo em outros con-
textos que guardem semelhanças com o descrito neste trabalho. Desde já é
importante deixar explícito que, ainda em referência à teoria da transposição
didática, os ajustes para atender às especificidades contextuais sempre se fa-
rão necessários.
A partir da identificação da teoria da Transposição Didática en-
quanto importante segmento referencial nesta pesquisa observou-se uma
grande possibilidade de uso de seus preceitos e argumentos teóricos no senti-
do de construção de um método investigativo. Optou-se, portanto, pela adoção
da Teoria como linha condutora no estabelecimento da metodologia de pesqui-
sa nesta dissertação.
4.1. A teoria da Transposição Didática
A teoria, cuja autoria é atribuída da Yves Chevallard, trata da for-
ma pela qual os saberes percorrem e se ajustam às estruturas de produ-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 118
ção/disseminação no âmbito da construção do conhecimento.
A partir de um modelo bastante sofisticado, Chevallard discute as
relações entre os saberes, tendo como principal exemplo o movimento da Ma-
temática Moderna. Sua abordagem prevê saberes distintos que se modificam
ou, em última instância, são modificados e ocupam lugar em três importantes
momentos: saber “sábio” – ou saber científico, que seria a produção original da
comunidade científica; o saber “a ensinar” – resultado da transformação do sa-
ber “sábio” em um saber organizado por níveis de dificuldade que aprofunda a
descaracterização do processo de construção do saber que, normalmente, é
apresentado nos manuais (objeto de trabalho do professor) de forma linear; e o
saber “ensinado” – que se define dentro do ambiente escolar. A importância da
transposição didática e, em certa medida, sua razão de ser, se traduzem na
necessidade de um conhecimento, além de ser bom, ter que ser possível de
ser ensinado e aprendido pelos alunos.
Em outras palavras, significa dizer que o saber que ocupa a ori-
gem de um processo de transposição didática vai sofrer inúmeras transforma-
ções até adquirir o estatuto de saber a ser ensinado. Quatro constantes identi-
ficam o trabalho de transposição didática: a desincretização – primeiramente
um trabalho de supressão de características históricas, que envolvem a emer-
gência do saber; a despersonalização – um segundo esforço é o de suprimir
todo e qualquer caráter pessoal, que envolve a identificação dos conteúdos do
saber; a programabilidade – um terceiro esforço consiste em tornar o saber
programável e divisível, de forma a integrar uma dinâmica de ensino formal; a
publicidade – finalmente, quanto à transmissão do saber, uma quarta constante
identificada consiste na definição explícita, em compreensão e em extensão, do
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 119
saber a ser transmitido, assim como controle de sua aquisição.
As transformações ou, nas palavras de Chevallard, as deforma-
ções sofridas pelo saber “sábio” ocorrem em várias esferas intermediárias,
constituídas por grupos que exercem pressão, moldando o objeto de conheci-
mento escolar. Esses grupos constituem a noosfera, onde se opera a interação
entre o sistema de ensino stricto sensu e o entorno societal; onde se encon-
tram aqueles que ocupam postos principais do funcionamento didático e se
enfrentam com os problemas resultantes do confronto com a sociedade; onde
se desenrolam os conflitos, se efetivam as negociações; onde se amadurecem
soluções; esfera de onde se pensa.
Para que o saber “sábio” se torne um conteúdo do saber “a ensi-
nar”, é preciso que este passe por modificações complexas que são determi-
nadas inicialmente por uma lógica conceitual originada no interior do saber “sá-
bio”. E o fato de esse saber “a ensinar” estar presente nas propostas curricula-
res ou nos livros didáticos não lhe garante a condição de estar apto à aplicação
no ambiente escolar, na sala de aula. Essa nova adaptação seria designada
como a transposição didática interna e contaria como atores de sua realização
os componentes na noosfera circunscritos na esfera da escola.
Para Chevallard a revalidação do saber ensinado se dá, na medi-
da em que o saber ensinado em sala de aula se torna obsoleto e tende a se
aproximar do senso comum, estando sujeito à banalização e deslegitimização.
A esse respeito infere-se a necessidade de nova legitimização do saber ensi-
nado que, por meio da introdução de novos conceitos vindos do saber “sábio”.
Relacionado à legitimização do conhecimento, Chevallard propõe
duas importantes conjecturas na caracterização e diferenciação dos saberes
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 120
das práticas sociais. Para o autor, o conceito de saber diz respeito ao corpo do
conhecimento que é legitimado epistemologicamente, legitimação esta que,
normalmente, se sobrepõe à legitimação cultural.
Com relação à legitimação e ao distanciamento do saber “sábio”
para o saber ensinado, a teoria proposta por Chevallard sofre alguns ataques
por parte de estudiosos que se posicionaram contrariamente, principalmente
por acreditarem na legitimação provinda do setor societal. Pode-se assim afir-
mar que o cerne do debate entre a perspectiva de Chevallard e a de Caillot
(1996) está na compreensão do que seria considerado saber sábio e do papel
e da legitimidade das práticas sociais na constituição do saber escolar. Esses
aspectos foram também destacados por Develay (1987) e Astolfi e Develay
(1990).
Diante da situação que se configurou, com autores erigindo suas
falas a partir de posicionamentos epistemológicos distintos, buscou-se apoio
em outro autor que, por meio do desenvolvimento de pesquisa com situações
praticamente análogas e resultados similares, propunha a análise da estrutura-
ção social do discurso pedagógico e das formas de transmissão e aquisição do
mesmo. Segundo Bernstein, “o princípio pedagógico é um princípio para apro-
priar outros discursos e colocá-los numa relação mútua especial, com vistas à
sua transmissão e aquisição seletivas.” (BERNSTEIN, 1996, p. 259)
Martha Marandino, ao propor uma articulação entre os dois posi-
cionamentos teóricos sugere que:
(...) os conceitos de transposição didática e de recontextuali-
zação se aproximam, pois dizem respeito às transformações
que o saber sábio ou o discurso científico sofrem ao passar
para os contextos de ensino. Contudo, na teoria da transposi-
ção didática, o foco de análise é a transposição dos conceitos
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 121
científicos no processo de ensino, tendo por referência ainda o
saber sábio. O saber a ser ensinado, para Chevallard, é legiti-
mado epistemologicamente, e a legitimação social está sub-
metida à legitimação epistemológica. (MARANDINO, 2006,
p.104)
Bernstein, ao apresentar pressupostos diretivos da sua aborda-
gem deixa claro que a estruturação do discurso pedagógico, ou, em certa me-
dida, o que se convencionou chamar de didatização, tem na recontextualização
sua maior importância, uma vez que a transposição dos “textos” vai do “campo
intelectual criado pelo sistema educacional para os campos de reprodução da-
quele sistema.” (BERNSTEIN, 1996, p. 90)
As etapas ou momentos da Transposição Didática chevallardiana
encontram em Bernstein similaridade no que o autor denominou de contextos
de discurso. O primeiro deles é o contexto primário – onde se cria, segundo a
terminologia de Bordieu, o “campo intelectual” do sistema educacional. Este
campo e sua história, cujo processo de desenvolvimento e posicionamento dos
textos chama-se contextualização primária, são criados pelas posições, rela-
ções e práticas que surgem da produção antes que da reprodução do discurso
educacional e suas práticas. “Seus textos, hoje, são dependentes, parcialmen-
te, mas de forma alguma totalmente, da canalização de fundos privados e esta-
tais para grupos de pesquisa e pesquisadores individuais.” (idem, ibidem)
A reprodução seletiva do discurso educacional, que se processa
em vários níveis, com posicionamento e prática de agências, acontece no con-
texto secundário, onde se distinguem quatro níveis de especialização: terciário,
secundário, primário e pré-escolar. Neste contexto são estruturados os campos
da reprodução do discurso produzido no contexto primário.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 122
O contexto recontextualizador, campo da relocação do discurso,
implicará, segundo Bernstein, uma série de campos:
1. departamentos especializados e sub-agências do estado, auto-
ridades educacionais locais;
2. departamentos das universidades e das faculdades de educa-
ção;
3. meios de educação especializados, publicações semanais, re-
vistas etc;
4. campos não especializados no discurso educacional e suas
práticas mas que são capazes de exercer influência tanto so-
bre o estado quanto sobre seus vários arranjos, locais, agen-
tes e práticas especiais dentro da educação.
Quando um texto (discurso) é apropriado por um desses agentes
recontextualizadores, sofre uma transformação (à qual Chevallard denomina
deformação) antes de sua relocação. Esse processo assegura que o texto não
será mais o mesmo uma vez que:
1. mudou sua posição em relação a outros textos, práticas e posi-
ções;
2. foi modificado pela seleção, simplificação, condensação, elabo-
ração;
3. foi reposicionado e refocalizado.
O texto passa, então, a se estabelecer dentro de uma ou mais ní-
veis do campo de reprodução (escola). Uma vez nesse campo o texto sofre
transformações ou posicionamentos adicionais à medida que se torna ativo no
processo pedagógico dentro de uma instituição de ensino.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 123
Bernstein, ao esclarecer as distinções entre os tipos de transfor-
mações do texto, afirma que
A primeira transformação é a do texto dentro do campo recon-
textualizador e a segunda é a transformação do texto trans-
formado, no processo pedagógico, na medida em que ele se
torna ativo no processo de reprodução dos adquirentes. É o
campo recontextualizador que gera as posições e oposições
da teoria, da pesquisa e da prática pedagógica. (BERNSTEIN,
1996, p. 92)
De forma geral as duas teorias apresentam similaridades no en-
cadeamento de etapas, na consecução dessas, porém, a etapa de validação
dos saberes que necessitam de atualização se faz em instâncias e motivados
por valores diferenciados. Para Chevallard, a validação se processa a partir da
inserção de novos conceitos vindos do saber “sábio”, enquanto que, para
Bernstein, a validação do discurso recontextualizado se faz a partir do setor
societal.
4.1.1 Implicações
É necessário que se analise as implicações do confrontamento
epistemológico em termos do estabelecimento de um método baseado na
Transposição Didática. A pertinência do quadro teórico da transposição didática
elaborado por Chevallard, justifica a adoção deste modelo apesar das resistên-
cias e das críticas em relação à utilização do mesmo no campo do ensino das
humanidades. As articulações explicitadas na teoria apontam para uma enorme
fertilidade teórica e metodológica para pensar as questões relativas à proble-
mática dos saberes escolares.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 124
Como instrumento de análise o conceito de transposição didática,
uma vez reelaborado no âmbito das problemáticas específicas das didáticas
dos diferentes campos disciplinares apresenta um potencial heurístico que me-
rece ser explorado pelos pesquisadores do campo. Nesse sentido um dos en-
caminhamentos possíveis desta pesquisa consiste em permitir uma "reabilita-
ção" deste conceito, cuja fecundidade teórica e metodológica talvez não tem
sido, devidamente explorada. Alguns autores acreditam que essa postura abre
pistas interessantes para o campo da didática consolidar a sua identidade e
delinear o seu campo de intervenção de maneira a incorporar as contribuições
vindas de horizontes de pesquisa diversos sem no entanto, correr o risco de
diluir-se em problemáticas que não lhe são específicas. Serão adotados, por-
tanto, instrumentos metodológicos oriundos da recontextualização de aborda-
gens específicas da Transposição Didática, para desta maneira tornarem-se
adequados ao objeto de transposição nesta pesquisa.
4.1.2 Instrumentos
Os instrumentos utilizados como parte da metodologia de trans-
posição são, para efeitos de adaptação da teoria para que essa se torne apli-
cável ao objeto de estudo desta pesquisa, iniciados com a análise documental
da obra a ser transposta. Essa análise deve primar pela identificação e caracte-
rização dos encadeamentos lógicos e, por vezes, lineares para posterior rees-
truturação. Ao fazer menção, na estruturação dos campos teóricos sobre os
quais são erigidas conjecturas e articulações, infere-se na necessidade de i-
dentificação, ainda por meio da análise documental, dos possíveis elementos
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 125
que serão utilizados como auxílios externos e internos à estruturação hipertex-
tual e nos pontos (links) para inserção dos mesmos.
A partir da adoção da teoria da Transposição Didática como cam-
po norteador para elaboração de uma metodologia e posterior execução da
transposição de conteúdos, deve-se considerar, por meio da apropriação dos
conceitos afeitos à teoria que a transposição em questão se processa no âmbi-
to da segunda transposição, ou nas palavras de Chevallard, na transposição
(ou deformação) do texto da instância do saber “a ensinar” para a do saber
“ensinado”. Essa constatação é decorrente do fato de o autor do livro já ter se
baseado em texto(s) instituído(s) pelo saber científico, adaptados ou não, para
a construção dos encaminhamentos que propõe em sua obra. É necessário
que sejam utilizados instrumentos de interação com o autor para identificação e
categorização das questões fundantes na obra, que deverão ser respeitadas e
ter sua transposição validada pelo autor.
Quanto mais próximo o pesquisador se colocar em relação ao autor,
diferentemente do que preconiza Bernstein a respeito do caráter positivo existente
no distanciamento entre saber “sábio” e saber “ensinado”, mais facilmente identifica-
rá as conexões dentro do encadeamento linear da obra que podem ser rompidas
ou, em última instância, subvertidas; bem como, àqueles que devem ter suas cone-
xões mantidas a todo custo, uma vez que podem incorrer na não significação ou,
ainda, na significação equivocada ou fora do contexto de inserção. É fato que, na
estrutura hipertextual, a manutenção da autonomia deve dispensar muitos esforços,
porém, esta pesquisa tem como objeto de estudo e transposição uma obra paradi-
dática e tem estabelecido como parte de seus objetivos a proposição de uma meto-
dologia que preserve os objetivos iniciais da obra e do autor.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 126
A natureza do instrumento para se inquirir o autor deve estar dire-
tamente relacionado com a natureza da obra original, principalmente relaciona-
da com sua complexidade e sua extensão. As obras de maior volume exigirão
instrumentos de coleta de dados mais adequados à documentação de grandes
volumes de informação. No caso específico dessa pesquisa foram considera-
das abordagens informais, por meio de argüição oral e, como exercício de uso
das redes computacionais, a utilização de correspondências on-line (e-mails).
4.1.3 Papel do pesquisador
O pesquisador se posiciona, ao se imaginar a possibilidade de in-
serção dentro de uma pesquisa dessa natureza, enquanto mediador transdisci-
plinar, visto que a transposição didática infere na articulação de áreas de sabe-
res específicos e, em muitos casos, imiscíveis. É papel, portanto, do pesquisa-
dor a articulação entre profissionais e/ou estudiosos de diferentes áreas para a
consecução de um projeto de transposição de conteúdo.
Outra função do pesquisador, para além de suas responsabilida-
des comuns a uma situação de natureza científica, diz respeito ao seu posicio-
namento de leitor crítico, produtor de significados individuais, muitas vezes a-
lheios ao universo de criação do autor. O sentido de leitura enquanto atividade
a ser realizada pelo pesquisador deve sempre romper as fronteiras da formali-
dade e se inserir nas esferas da intertextualidade e na descoberta de novas
abordagens sensoriais que conduzam ao estabelecimento de conexões inima-
gináveis em uma primeira leitura. Se, como afirma Paulo Freire, a leitura do
mundo precede a leitura da palavra, é preciso ler as possibilidades que esse
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 127
mundo oferece em termos de produção de significados.
Ainda em relação à atuação do pesquisador esse deve estar a-
tento à formulação de conjecturas que conduzam a pesquisa rumo a proposi-
ções instigantes e, porque não, originais e que suscitem a busca de respostas
para situações novas advindas das articulações conceituais e suas implica-
ções.
4.2. O contexto da pesquisa
Essa pesquisa apresenta como contexto a ambiência onde está
inserida a obra paradidática A estória estranha de Eduardo Peçanha, de autoria
do professor Gilberto Lacerda, PhD, e que foi ilustrada por Romont Willy. A o-
bra, desenvolvida a partir de uma narrativa que se vale da informalidade, pro-
cura lançar aos leitores a proposta de naturalização das percepções básicas de
geometria, na medida em que sugere, ao longo dos acontecimentos narrados,
a identificação de formas geométricas em situações casuais do dia-a-dia do
personagem e, por conseqüência, dos seus leitores. Vale ressaltar, entre os
inúmeros aspectos que permeiam a transposição do conteúdo de uma forma
para a outra, a linearidade que marca a versão original da obra.
A obra é composta por 20 páginas (ou cenas) apresentadas original-
mente em seqüência linear, dispostas em conjuntos de imagem (ilustração) e texto.
Serão apresentadas a seguir as páginas que compõe o livro e no capítulo seguinte se-
rão apresentados os resultados da transposição, com especial atenção para os fatores
motivadores dos encaminhamentos específicos e a forma pela qual se buscou atingir
às especificidades de cada conceito a ser explorado na versão transposta.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 128
FIGURA 2 – página 1
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 129
FIGURA 3 – página 2
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 130
FIGURA 4 – página 3
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 131
FIGURA 5 – página 4
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 132
FIGURA 6 – página 5
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 133
FIGURA 7 – página 6
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 134
FIGURA 8 – página 7
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 135
FIGURA 9 – página 8
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 136
FIGURA 10 – página 9
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 137
FIGURA 11 – página 10
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 138
FIGURA 12 – página 11
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 139
FIGURA 13 – página 12
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 140
FIGURA 14 – página 13
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 141
FIGURA 15 – página 14
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 142
FIGURA 16 – página 15
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 143
FIGURA 17 – página16
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 144
FIGURA 18 – página 17
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 145
FIGURA 19 – página 18
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 146
FIGURA 20 – página 19
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 147
FIGURA 21 – página 20
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 148
Posteriormente à apresentação das páginas que compõem o livro
paradidático, faz-se necessária a formulação de questões e conjecturas que
subsidiarão a transposição do mesmo para a forma hipertextual e que são fruto
da livre observação, da análise com base nos critérios de transposição e nos
princípios do hipertexto, bem como, da interação com o autor da obra.
É possível afirmar que o livro está estruturado de forma linear,
ainda que a leitura não seqüenciada seja possível sem, no entanto, impli-
car em má compreensão do conteúdo exposto. É necessário destacar, po-
rém, que a narrativa está desenvolvida em partes que devem, por sua vez,
ter um encadeamento tal que permita a compreensão do conteúdo em
questão. Por se tratar de uma obra de pequeno volume – 20 páginas – as
partes que a compõem são pequenos conjuntos de páginas e podem ser
classificadas em quatro grupos distintos, porém relacionados: introdução
(p. 1), apresentação do personagem e seus hábitos (pp. 2-11), a busca pe-
lo sonho (pp. 12-18), o epílogo (pp. 19-20).
O livro se volta, a partir do conteúdo e engendramentos que apre-
senta, para um público de leitores fluentes, ou seja, que se encontram na fase
de consolidação da leitura e da compreensão do mundo expresso no livro. A
obra que se avalia nessa dissertação encontra espaço entre o público de leito-
res fluentes na medida em que se pode classificá-lo com base em alguns crité-
rios:
- Lê com autonomia resolvendo problemas de compreensão;
- Lê com ritmo bem adaptado a cada passagem;
- Consegue saltar e prever conteúdo que ainda não leu;
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 149
- Transfere informação desconhecida para expressões que co-
nhece;
- Consegue ler palavras longas sem hesitar;
- Lê livros de diferentes gêneros e com vários capítulos;
- Reconta histórias incluindo a trama central e alguns pormeno-
res;
- Domina vocabulário e sintaxe relativamente complexa.
O público a que se destina a obra deve estar incluído entre a-
prendentes que se encaixam em situações de aprendizagem que façam uso de
materiais didático e paradidáticos com características tais como:
- Assuntos que ultrapassam o nível de informação já dominado;
- Frases mais longas e com certa complexidade;
- Ilustrações que completem a informação;
- Um número razoável de páginas.
Nesta fase os alunos podem trabalhar com várias fontes de con-
sulta e devem ser estimulados a escolherem no conjunto das obras disponíveis
aquelas que lhes parecerem mais adequados e as que mais lhes agradarem,
podendo mesmo optar por diferentes encaminhamentos na forma de leitura.
A linguagem adotada da narrativa do livro A estória estranha de
Eduardo Peçanha apresenta um tom de informalidade, sendo mesmo coloquial
em alguns momentos. Essa relativa liberdade lingüística confere ao texto, de
uma forma geral, maior flexibilidade para sujeitar-se a adaptações, ou, nas pa-
lavras de Chevallard, deformações, uma vez que as significações obtidas a
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 150
partir da leitura não estão necessariamente associadas às palavras utilizadas
mas ao contexto geral.
As imagens, por sua vez, são ricas em elementos que podem se
prestar à remissão a outros conteúdos e outros espaços informacionais, consti-
tuindo a base dos auxílios externos que são postos à disposição na versão hi-
pertextual. As características apontadas como sendo particulares ao público
leitor denotam sua capacidade para articulação de informações de natureza
diversa e, por conseguinte, a capacidade para realizar uma leitura rica em in-
formações intertextuais.
É importante que se esclareça que o livro a ser transposto do tex-
to ao hipertexto não se encontra no âmbito dos saberes científicos, tendo sido,
em sua concepção, fruto de uma transposição didática de acordo com a con-
cepção chevallardiana. O autor se apropriou de conhecimentos científicos do
âmbito da geometria e, por meio de deformações, promoveu a transposição
para uma linguagem didática, conferindo ao mesmo o caráter de paradidático.
Após a apresentação da obra e assumindo-se um posicionamento
de certo distanciamento da teoria da Transposição Didática é possível inferir na
assertiva de que a transposição a ser efetivada não necessariamente se en-
contra estabelecida no campo das transposições didáticas, visto que, por um
lado, essa já foi procedida e, por outro, trata-se de uma transposição de lingua-
gem textual para linguagem hipertextual. Nesse ponto cabe a ressalva de que
essa constatação não diminui em importância a transposição, mas transfere-a
para outra esfera de construção de sentidos.
É factível, portanto, a apropriação dos preceitos de Chevallard pa-
ra a Transposição Didática para serem utilizados em uma transposição dessa
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 151
natureza? O que se percebe é uma necessidade de transposição da transposi-
ção, ou em outras palavras, na adequação dessa para a esfera na qual a lin-
guagem a ser transposta está inserida. Essa tentativa de descontextualização
da teoria do âmbito das transposições de caráter didático para outro ambiente
muito se assemelha ao processo de desconstrução baseado nas formulações
teóricas de Jacques Derrida, que propõe a absoluta alternância de contexto
objetivando a análise da “instituição” desencaixada de seu contexto habitual e
ao surgimento de novas possibilidades de leitura da mesma.
É interessante perceber que, mesmo inseridos em contextos atí-
picos à teoria, alguns preceitos de Chevallard preservam sua aplicabilidade no
caso da transposição de linguagem. A desincretização se faz importante na
medida em que, por se tratar de um livro paradidático, que objetiva, entre ou-
tras coisas, tornar o saber ensinado ainda menos complexo, a liberdade em
relação à historicidade, que imputa um caráter de atemporalidade ao discurso,
torna a mensagem afeita aos encadeamentos informacionais da pós-
modernidade.
Outro preceito, que versa a respeito da despersonalização tam-
bém se faz importante quando de sua inserção em um contexto marcado pela
fratura das identidades e pela instituição de identidades múltiplas e mutáveis.
Despersonalizar a mensagem tornando-a independente de encadeamentos
específicos e possibilitando o estabelecimento de diálogos com outras mensa-
gens implica, em primeira instância, na livre associação dessa com situações
diversas e, em última instância, na não-identificação da mensagem enquanto
elemento que se submete a contextos simbólicos específicos.
Quanto à programabilidade – o esforço de tornar o saber progra-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 152
mável e divisível, de forma a integrar uma dinâmica de ensino formal – a estru-
turação hipertextual per si já se configura enquanto fragmentadora. A progra-
mação dos encadeamentos das partes, entretanto, é fruto da condição de livre
navegador do leitor-usuário e está franqueada ao mesmo. Neste ponto, e tam-
bém em relação a um quarto preceito da transposição chevallardiana, que trata
da publicidade – entendida como a definição explícita, em compreensão e em
extensão, do saber a ser transmitido, assim como controle de sua aquisição; é
notório o entendimento de que tais critérios são baseados na visão positivista
que, por sua vez, perde espaço nas atuais conjecturas relacionadas aos sabe-
res da educação. A esse respeito, e como tentativa de instituição de um mode-
lo metodológico híbrido, a busca por amparo em Bernstein se mostra acertada,
visto que, segundo sua estruturação do discurso pedagógico, a validação dos
saberes a serem ensinados se dá na instância dos acontecimentos sociais e
não, como estabelece Chevallard, nos saberes “sábios” ou científicos.
Ainda que se trate de uma abordagem semelhante a da teoria da
Transposição Didática no que diz respeito ao seu âmbito de consecução, a vi-
são de Bernstein se constitui como sendo mais adequada ao caso, uma vez
que, em se tratando de um livro paradidático é possível identificar seu posicio-
namento tanto mais próximo dos acontecimentos sociais, quanto mais distante
dos saberes científicos. Chevallard quando apresenta a instância na qual se
processa parte da transposição didática, a chamada noosfera, identifica vários
dos atores que processam as deformações do saber “sábio” para torná-lo ensi-
nável, entre eles, membros dos agrupamentos sociais. São esses os membros
que, provavelmente, assumem a validação dos saberes nas instâncias sociais.
No escopo dessa pesquisa a validação da transposição pelas ins-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 4: METODOLOGIA | 153
tâncias sociais pode estar voltada, para além da adaptação da teoria de Che-
vallard, para a adoção dos princípios instituídos por Pierre Lévy para o hiper-
texto. Por se tratar de uma transposição de linguagem, os princípios do hiper-
texto, ainda que carreguem elevada carga de sentido através da leitura e apli-
cação a partir de possíveis associações metafóricas, se configuram como mais
próximos ao universo em questão.
A partir da formulação de conjecturas dessa natureza, faz-se ne-
cessária a apresentação do processo de transposição de conteúdo do texto
para o hipertexto e seus elementos subjacentes.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 154
5. DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO
Neste capítulo são apresentados os resultados da transposição
de conteúdo do livro paradidático e os conceitos, técnicas e outros elementos
que constituíram a nova estruturação. Os encaminhamentos adotados na ver-
são transposta estarão seguidos que reflexões teóricas importantes e que
compõem o arcabouço teórico deste trabalho, procurando, na medida do pos-
sível, atender às suas exigências conceituais e formais. As possíveis leituras,
intervenções, interações e outras possibilidades são apresentadas na interface
da versão hipertextual em função das exigências dos conceitos que estão sen-
do discutidos.
Para a realização da transposição de conteúdo nesta pesquisa fo-
ram utilizados os critérios estabelecidos e expostos nas definições metodológi-
cas, sendo feito o encaminhamento de soluções no sentido de atender às es-
pecificidades de cada critério. Tendo por orientação a teoria da Transposição
Didática, e mais que isso, por seu potencial heurístico, a transposição foi pau-
tada pela tentativa de inserção e atenção aos seus pressupostos.
Ciente de que o processo de transposição com base nas formula-
ções de Chevallard encaminha o discurso no sentido de aproximação do saber
científico ao saber ensinado em sala de aula, e ainda, sabedor de que a trans-
posição se processa em etapas e que a formulação de uma transposição como
a desenvolvida nesta pesquisa ainda se encontra no âmbito próximo à sala de
aula mas, não exatamente, dentro dessa, procurou-se proceder a fragmenta-
ção do texto original de forma a permitir a inserção de elementos conectivos
diversos e que, em certa medida, colaborassem com a aproximação do mesmo
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 155
com seu leitor.
Novamente em referência à teoria chevallardiana, procurou-se a
adoção do posicionamento proposto pelo autor em relação à permanente vigi-
lância epistemológica. Ao longo de todo o processo de transposição foram fei-
tas reavaliações das soluções propostas como forma de verificação da ade-
quação da nova versão a seus possíveis contextos de inserção, notadamente
marcados pela proximidade com diversas outras situações de hipertextualida-
de, uso de tecnologia digital, acesso a redes computacionais etc.
Antes de adentrar na proposta de reestruturação do livro em
questão, são apresentados seus elementos constitutivos e sua forma linear de
leitura. São adotadas, ainda, representações gráficas para a montagem de es-
quemas estruturais que indicam os fluxos informacionais e explicitam os aspec-
tos relevantes da nova estrutura.
Como as soluções apresentadas na versão hipertextual foram ba-
seadas no atendimento aos critérios estabelecidos como sendo fundamentais
para a manutenção das características determinadas e respaldadas pelas teo-
rias adotadas e que, portanto, justificam a definição de tais soluções em ambi-
entes específicos e relacionados com a educação, o trabalho foi realizado com
olhar para outros aspectos no âmbito do design e da ergonomia quando da
proposição de características da interface gráfica, que, por sua vez, também
colaboram com o atendimento aos pressupostos subjacentes aos critérios.
Inicia-se, portanto, a apresentação das soluções propostas a par-
tir da transposição de conteúdo com a indicação das funções e possibilidades
de interação e navegação que a interface prevê (fig. 22).
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 156
FIGURA 22 – interface da versão multimídia
1. personalização da trilha sonora com opção para desligá-la;
2. orientação da navegação, com possibilidade de mudança de
página ao selecionar neste campo uma outra posição;
3. controle para navegação livre (não-linear);
4. menu com opções para participar do(s) fóruns, para solicitar
busca no conteúdo do livro e para solicitar ajuda;
5. campo para inserção de texto ou para participação na sala
de bate papo;
6. apresentação dos personagens;
7. opção para criação de versão própria da narração;
8. opção de visualização de legendas escritas;
9. comando para navegação linear;
10. campo para visualização das cenas;
11. links em objetos das cenas.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 157
A estrutura apresentada na figura 23 representa a leitura linear
sugerida pela estrutura tradicional do livro. Nada impede, porém, como argu-
mentam alguns autores, que o leitor subverta essa linearidade por vontade
própria. Entretanto, a forma linear de estruturação, não só das narrativas livres-
cas, mas dos encadeamentos lógicos, das solicitações de composição e estru-
tura, das incursões cautelosas nas sendas do conhecimento etc – procedimen-
tos comuns ao ambiente escolar –, direcionam o leitor para a adoção da linea-
ridade como forma de leitura.
FIGURA 23 – Esquema de leitura linear
A estruturação na forma hipertextual, respeitadas as conexões
que o autor indica como essenciais e indissolúveis, já atende ao critério de não-
linearidade (nº. 1 – pág. 110) estabelecido para a transposição da obra e con-
forme é possível verificar nas figuras 23b e 24.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 158
FIGURA 23b – Esquema de leitura hipertextual
Princípios do hipertexto
Em atenção aos princípios do hipertexto, na ótica de Pierre Lévy,
e que servem de orientação no desenvolvimento dessa pesquisa, são apresen-
tados, de forma sintética, seus conceitos fundantes e as possibilidades de ma-
nutenção desses na estruturação proposta.
Princípio da Metamorfose – a estruturação hipertextual prevê a
inserção de informações por parte dos usuários, bem como a remissão a auxí-
lios informacionais externos ao conteúdo propriamente dito. Para a manuten-
ção da navegabilidade no hipertexto os auxílios externos deverão ser dispostos
em janelas com limitação de tamanho, ou seja, deverão ser otimizadas de for-
ma que não sejam completamente sobrepostas à interface gráfica do hipertex-
to. A nova versão permite que o usuário construa uma narrativa textual própria
para as páginas que compõem a obra, podendo desta forma colaborar com a
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 159
construção de novos sentidos para outros usuários além dos inúmeros já pos-
sibilitados pela versão original (fig. 24b). Esta opção de criação de uma versão
própria fica restrita à narrativa textual, uma vez que, num primeiro momento
não fica prevista a inserção de novas informações audiovisuais.
FIGURA 24 – Fluxos de navegação e de informação
FIGURA 24b – Tela para criação de versão própria do usuário
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 160
Princípio de heterogeneidade – a estruturação hipertextual conta
com a inserção de informações multimídia em cada unidade de leitura (página),
criando uma rede de informações de naturezas diversas (fig. 25). Os auxílios
externos também podem conter informações de diferentes mídias, conferindo
maior heterogeneidade ao todo.
FIGURA 25 – Heterogeneidade da estrutura
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 161
FIGURA 25b – Heterogeneidade da estrutura
1. trilha sonora (música);
2. animação e imagem estática;
3. textos inseridos pelo usuário (fórum);
4. texto estático;
5. narração (locutor em OFF)
Princípio de multiplicidade e de encaixe das escalas – os auxílios
externos, que podem ser sites, bibliotecas virtuais, plataformas educativas, en-
tre outros, conferem o caráter de estrutura radicular ou rizomática (fig. 26 e
26b), característica fundamental desse princípio.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 162
FIGURA 26 – Estrutura radicular e auxílios externos
Mesmo a estruturação hipertextual, ao elaborar as unidades ante-
riormente indivisíveis com informações adicionais colabora, em certa medida,
na constituição de uma estrutura que possui unidades complexas dentro de um
todo (hipertexto) ainda mais complexo. Nesse ponto cabe uma remissão ao
conceito de elaboração de Pierre Lévy, quando discorre a respeito das ecologi-
as da cognição nas sociedades ágrafas, no que diz respeito ao incremento das
mensagens originais a partir da inserção de novos elementos (muitas vezes de
outras naturezas) que assumem o caráter de nós ou conexões dentro de uma
estrutura informacional, colaborando na fixação e aumento da capacidade de
acesso a essas informações quando for necessário.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 163
FIGURA 26b – Auxílios externos
Princípio de exterioridade – a possibilidade de inclusão e troca de
informação pelos usuários do hipertexto permitem, em certa medida, que a es-
trutura seja influenciada pelo ambiente externo. É importante, porém, ressaltar
que, em se tratando de uma estrutura “baseada” no hipertexto e não de um
hipertexto em sua forma mais complexa, alguns elementos internos devem ser
mantidos para nortear a utilização do mesmo. É preciso, portanto, flexibilizar o
impacto deste princípio na dinâmica geral da estrutura. Apesar disso, pode-se
inferir que a interação com auxílios externos ao hipertexto e, mesmo, a produ-
ção de sentidos outros propiciada pelos intertextos que surgem a partir da leitu-
ra hipertextual, acentuam a carga de influência externa ao conteúdo e à dinâ-
mica de leitura (fig. 27).
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 164
FIGURA 27 – Entrada, saída e troca de informações
Princípio de topologia – a estrutura interna do hipertexto já consti-
tui uma estrutura topológica per si. A quantidade relativamente restrita de uni-
dades de leitura (nós) no âmbito interno permite a ligação direta entre todas as
unidades, quase que dispensando conexões intermediárias para se percorrer
toda a estrutura. As exceções se fazem a partir de necessidades identificadas
por meio da interação com o autor, que indicou encadeamentos que deveriam
ser preservados e outros que deveriam (ou poderiam) ser rompidos.
Princípio de mobilidade dos centros – a centralidade deixa de e-
xistir na medida em se adota uma ruptura hierárquica dentro da estrutura hiper-
textual. Com foco na autonomia, o estabelecimento dos centros de navegação
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 165
é definido pelos centros de interesse e estes podem se modificar permanente-
mente em função de novos interesses. A representação gráfica utilizada para
ilustrar a estrutura desenvolvida (fig. 28) é limitada em termos de visualização,
mas fica claro que, em função da possibilidade de acesso a todas as unidades
de leitura a partir de qualquer uma delas, o centro deixa de ser fixo e passa a
ser estabelecido e modificado a cada nova unidade de leitura percorrida.
FIGURA 28 – Mobilidade dos centros
Em atenção à abordagem histórico-cultural
Alguns aspectos específicos na forma como o livro foi reestrutu-
rado de maneira hipertextual possibilitam a valorização de conceitos defendi-
dos e praticados a partir da abordagem histórico-cultural.
Um primeiro aspecto que merece ser destacado diz respeito à
percepção dos usuários, a partir da abordagem de Stuart Hall, enquanto sujei-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 166
tos pós-modernos. Caracterizam esse sujeito a noção de identidades múltiplas,
o deslocamento (desencaixe) das relações naturais com o tempo e com o es-
paço, a vivência da provisoriedade dos acontecimentos e informações, bem
como o excesso de informações, o estabelecimento de novas relações sociais
pautadas pelo uso das tecnologias digitais, a percepção do fenômeno de des-
territorialização, enfim, um contexto histórico-cultural marcado pelas incertezas.
Com atenção especial a essa perspectiva é válido investir na for-
mulação de materiais educativos baseados na estruturação hipertextual, procu-
rando proceder a mediação do mesmo de forma a favorecer a autonomia dos
usuários. O poder de escolha dentre alternativas é, notadamente, o exercício
pleno da autonomia, favorecendo a administração pessoal do tempo.
A versão hipertextual do livro A estória estranha de Eduardo Pe-
çanha comporta a inserção e troca de informações entre os usuários, criando
possibilidades de estabelecimento de um espaço aberto a trocas de vivências.
A versão permite, ainda, um acompanhamento por parte do mediador quase
que individualizado, e propício à aplicação da abordagem histórico-cultural ba-
seada me Vygotsky. Outra qualidade favorável ao atendimento individualizado
de especificidades dos usuários, ainda que de modo sutil, diz respeito à possi-
bilidade de customização (personalização) da interface gráfica, da trilha sonora
e da narração (oral ou legendada) por parte dos leitores navegadores.
Favorecendo o dialogismo polifônico
As relações dialógicas estabelecidas com características de poli-
fonia constituem rico território para a construção de saberes a partir da intera-
ção entre sujeitos e da produção coletiva de conhecimento. Tal como foi con-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 167
cebido por Bakhtin, o dialogismo polifônico é instituído a partir das relações dos
indivíduos entre si e com o meio, modificando-o e por ele sendo modificado. É
um processo permanente de construção e que impõe certas exigências para
ser plenamente estabelecido.
A estruturação hipertextual em questão apresenta limitações em
relação ao dialogismo polifônico, entretanto essas limitações podem ser majo-
radas ou reduzidas em função da forma como o mediador intervém na dinâmi-
ca de utilização/navegação. O ambiente web é inegavelmente propício para o
exercício de trocas informacionais não-presenciais, podendo, inclusive, configu-
rar-se em relações dialógicas completas. É característico também no ambiente
web o estabelecimento de relações sociais entre sujeitos dotados de posicio-
namentos epistemológicos distintos, e que por essa razão travam embates ide-
ológicos ricos para a constituição de reflexões a partir dos saberes coletivos, ou
fruto da coletividade.
A troca de informações por intermédio do hipertexto permite, em
última análise, a execução de discussões entre sujeitos alocados em um mes-
mo espaço físico, mas com autonomia em relação aos seus posicionamentos.
Privilegiado as múltiplas inteligências
Na teoria das inteligências múltiplas a escola está centrada no in-
divíduo. O objetivo primordial deve ser o de possibilitar o desenvolvimento de
todos os tipos de inteligência, ajudando os indivíduos a atingir os objetivos pro-
fissionais e pessoais característicos de suas inteligências.
O uso das novas tecnologias mediadas por computador, com a-
poio da rede internet, no ambiente educacional possibilita o desenvolvimento
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 168
de várias habilidades e inteligências.
A estruturação hipertextual permite a estimulação das múltiplas
inteligências em vários aspectos e de acordo com suas especificidades.
Inteligência lingüística – presente em boa parte das relações so-
ciais estabelecidas a linguagem é fundamental no processo de estimulação da
inteligência lingüística ou verbal. Os espaços dedicados à troca de informações
entre os usuários do hipertexto convertem-se em estímulos à inteligência verbal
e reforçam a inteligência interpessoal. Essa troca pode ser realizada de forma
sincrônica, por meio de salas de bate papo, grupos de outros alunos ou da so-
ciabilidade em comunidades virtuais (auxílios externos) baseadas em textos.
Pode também ser estimulada de forma assincrônica – com o uso
do correio eletrônico (e-mail), listas de discussão e fóruns.
Inteligência lógico-matemática – estimulada através de jogos, da
manipulação de símbolos abstratos, problemas matemáticos e análises algé-
bricas.
Inteligência musical – a estimulação se dá por meio dos elemen-
tos multimídia de natureza sonora agregados à nova estruturação hipertextual.
Inteligência espacial – a própria navegação na arquitetura do hi-
pertexto estimula essa inteligência, na medida em que solicita a decodificação
de mapas de fluxos informacionais e de navegação.
Inteligência corporal – estimulada na utilização do mouse em ati-
vidades que exercitem a coordenação motora grossa e fina.
Inteligência interpessoal – o estabelecimento de relações de diá-
logo e troca de informações estimula essa inteligência, mesmo porque o ser
humano é um ser social.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 169
Inteligência intrapessoal – a vivência ou a criação de novos per-
sonagem para a narrativa das unidades de leitura pode se converter em uma
possibilidade de estimulação da inteligência intrapessoal, uma vez que o sujeito
se descobre ao descobrir o outro.
Em resposta aos critérios da transposição
Em atenção aos critérios (p. 110) estabelecidos para a realização
da transposição de conteúdo pode-se afirmar que todos foram levados em con-
sideração e suas premissas atendidas por um ou mais elemen-
tos/possibilidades explicitados na nova versão.
Com relação ao critério de número 1 – “narrativa não-linear” – a
estrutura hipertextual per si já garante sua consecução. A não-linearidade se
faz também por meio dos auxílios externos que dão margem à livre navegação
fora do hipertexto e, internamente, nas diferentes opções de determinação de
links. Vale ressaltar, entretanto, que a versão original, baseada na leitura linear,
foi preservada e sua leitura oferecida em dois diferentes campos da interface.
O critério de número 2 – “livre navegação do usuário/leitor” – se
consolida em função das opções de navegação e de liberdade que o usuário
tem em definir suas trajetórias. Novamente a possibilidade de acesso a links
externos torna a navegação livre e a construção de sentidos cheia de possibili-
dades. A livre navegação imputa ao leitor a autonomia de ir e vir, construindo
encadeamentos que lhe pareçam oportunos e criando, a partir das conexões
entre um ou mais textos, outros intertextos carregados de novos significados.
O “acesso a auxílios externos” – critério de número 3 – se faz
com a seleção de objetos destacados em cada uma das cenas. Os links são
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 170
estabelecidos em função da natureza dos objetos selecionados, muitas vezes
tirando-se proveito para construção de associações metafóricas. Os sites aces-
sados são dispostos fora da estrutura do livro, carregados em janelas próprias,
em tamanho menor que o a área da interface, de forma a não impedir a visuali-
zação da mesma e não implicar na interrupção da leitura/navegação.
O quarto critério – “estrutura multimodal” – é atendido por meio
dos elementos multimídia que compõem a estrutura hipertextual. São inseridos,
ao longo da narrativa, elementos tais como som (narração), música (trilha), a-
nimação (cenas), ilustrações (imagens estáticas), textos, e outros presentes
nos auxílios externos (sites).
Para atender ao critério de número 5 – “trocas informacionais” –
foram propostas algumas condições. Existe um espaço para fóruns, quando do
uso do material em grupos e/ou em sala de aula, com uso de uma rede de
computadores é possível que os usuários/leitores se posicionem em relação a
temas sugeridos pelos mediador/professor. Ainda relacionado a esse aspecto a
navegação propriamente dita se configura em troca informacional individual, na
construção de novos sentidos e no diálogo estabelecido entre os textos pesso-
ais e os textos do hipertexto.
O critério de número 6 – “exercício da co-autoria” – é atendido em
primeira análise pela definição da trajetória de leitura que definirá, por sua vez,
uma versão própria do texto, fazendo com que o leitor se converta em co-autor.
A segunda possibilidade implica na possibilidade de construção literal de uma
versão por parte do usuário, uma vez que a opção “escrever” permite que o
leitor construa seu texto para cada uma das cenas, compondo uma estória com
suas palavras.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 171
A “customização da interface” – que representa o critério de nú-
mero 7 – é validada com a opção de personalização, a partir da escolha dentro
de algumas opções, do tratamento visual que a interface gráfica pode assumir.
Outra opção de customização formal diz respeito à possibilidade de escolha da
trilha sonora executada ao longo da narrativa. Finalmente a possibilidade de
escolha da forma como o texto narrativo é apresentado, seja em forma de nar-
ração oral ou em forma de legendas escritas, colaboram com a maior adequa-
ção de alguns elementos, a fim de tornar a leitura/navegação mais agradável.
Como oitavo critério ficou estabelecido que o usuário deveria ter
“controle sobre recursos multimídia” e para isso alguns dos elementos descritos
no item anterior atendem à essa necessidade. Os ajustes possíveis sobre a
trilha e sobre a forma de apresentação na narração (oral ou escrita) fazem par-
te das soluções para essa necessidade.
Finalmente o nono critério – “construção de auxílios internos” –
repercute na identificação de links nas páginas que conduzem o leitor a espa-
ços externos ao hipertexto, sites na internet associados aos objetos-links que
fazem remissão direta ou metafórica aos mesmos.
Neste ponto, para encerrar o processo de transposição, cabe a ci-
tação, identificação e descrição dos auxílios externos propostos para cada uma
das páginas da versão hipertextual. A escolha dos links foi realizada com foco
no acréscimo de informações que se mostrassem complementares às expostas
durante a narrativa.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 172
Página 01
FIGURA 29 – links p. 01
Nuvem – Instituto Nacional de Meteorologia > fotos e nomes das nuvens
http://www.inmet.gov.br/informacoes/sobre_meteorologia/atlas_nuvens/nuvens_altas/nuvens_altas.html#
Casa – Site do poeta Vinicius de Moraes > poema musicado “A casa”
http://www.viniciusdemoraes.com.br/discografia/sec_discogra_view.php?id=314
Cachorro – Site sobre a Ilha de Fernando de Noronha > Praia do Cachorro
http://www.ilhadenoronha.com.br/popup/praia_do_cachorro.html
Página 02
FIGURA 30 – links p. 02
Noite – Wikipédia – Enciclopédia Livre > As Mil e Uma Noites
http://pt.wikipedia.org/wiki/As_Mil_e_Uma_Noites
Abajur – Site da hidrelétrica de Itaipu
http://www.itaipu.gov.br/
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 173
Página 03
FIGURA 31 – links p. 03
Chinelo – Grupo de Cultura Popular “Pé de Chinelo”
http://www.pedechinelo.com.br/
Carrinhos – Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes
http://www.dnit.gov.br/rodovias/condicoes/
Página 04
FIGURA 32 – links p. 04
Quadro – Site Faz Fácil > Molduras > Como emoldurar corretamente?
http://www.fazfacil.com.br/Molduras.htm
Coleção – Site Museu Goeldi > coleções
http://www.museu-goeldi.br/pesquisa/colecoes/index.htm
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 174
Página 05
FIGURA 33 – links p. 05
Sapatos – Site UOL > Moda Brasil > História do calçado
http://www1.uol.com.br/modabrasil/historia_calc/calcado/index.htm
Lâmpada – Site de livros virtuais com disponibilidade de aquisição gratuita da
história “Aladim e a lâmpada maravilhosa”
http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/infantis/aladim_e_a_lampada_maravilhosa.htm
Página 06
FIGURA 34 – links p. 06
Asa – 360 Graus > Esportes do ar
http://360graus.terra.com.br/ar.asp
Ponte – Site de informações sobre a Ponte Rio-Niterói
http://www.ponte.com.br/concessionaria/home/
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 175
Página 07
FIGURA 35 – links p. 07
Cabeceira – Enciclopédia livre Wikipédia > Origem da cabeceira (arquitetura)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cabeceira
Criado-mudo – Site com aletra da música “Criado-mudo” de Leoni
http://letras.terra.com.br/letras/166519/
Página 08
FIGURA 36 – links p. 08
Aquário – Aquário Municipal de Santos
http://www.vivasantos.com.br/aquario/index.htm
Bolas – Site do Comitê Olímpico Brasileiro
http://www.cob.org.br/
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 176
Página 09
FIGURA 37 – links p. 09
Maçã – “Toda Fruta” > site com informações sobre frutas”
http://www.todafruta.com.br/todafruta/institucional.asp?menu=206
Picolé – Site da empresa de sorvetes Kibon
http://www.kibon.com.br/1/f_index.html
Página 10
FIGURA 38 – links p. 10
Relógio de parede – Site com fornecimento da hora oficial brasileira
http://pcdsh01.on.br/
Bolas de gude – Site sobre folclore > jogos infantis > bolas de gude
http://www.terrabrasileira.net/folclore/manifesto/jogos/j-gude.html
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 177
Página 11
FIGURA 39 – links p. 11
Relógio – Hora Certa > horário exato em diversas cidades do mundo
http://www.horacerta.com.br/
Pijama – Site com informações sobre pesquisas a respeito do sono (UFMG)
http://www.icb.ufmg.br/lpf/4-44.html
Página 12
FIGURA 40 – links p. 12
Sombra do Eduardo no chão – Site de fotografia > Luz + Sombra
http://www.olhares.com/luz__sombra/foto462180.html
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 178
Página 13
FIGURA 41 – links p. 13
Mãos dadas – Memória Viva > Poema “Mãos Dadas” – Carlos Drummond de
Andrade
http://memoriaviva.digi.com.br/drummond/poema019.htm
Tampa do bueiro – Site de entidade ambiental > coleta de águas pluviais
http://www.aultimaarcadenoe.com/aguaspluviais.htm
Página 14
FIGURA 42 – links p. 14
Floresta – Embrapa Florestas
http://www.cnpf.embrapa.br/
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 179
Página 15
FIGURA 43 – links p. 15
Montanha – Site sobre montanhas russas > fotos, informações
http://www.angelfire.com/mt/mrussas/index.htm
Página 16
FIGURA 44 – links p. 16
Gravata – Site de moda e comportamento > A história da gravata
http://www.closet.com.br/Menu/menu_gravatashistoria.asp
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 180
Página 17
FIGURA 45 – links p. 17
Poste – Site sobre criatividade
http://www.criativ.pro.br/index.php?option=com_frontpage&Itemid=1
Hidrante – Site do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal
http://www.cbm.df.gov.br/
Página 18
FIGURA 46 – links p. 18
Sorriso – Site da Fundação Abrinq
http://www.fundabrinq.org.br/
Constelação – Site sobre constelações (UFRGS)
http://astro.if.ufrgs.br/const.htm
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 5: PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO | 181
Página 19
FIGURA 47 – links p. 19
Flor – Site de música > "As flores” – Marisa Monte > letra, áudio, cifras
http://letras.terra.com.br/letras/447802/
Árvore – Site da Associação Brasileira de Esportes de Aventura > arvorismo
http://www.abea.org.br/index.php?destino=esp_arvorismo
Página 20
FIGURA 48 – links p. 20
Mão – Página com fotos das letras e símbolos da linguagem de sinais (LI-
BRAS) utilizada por deficientes auditivos e seus pares
http://www.ines.org.br/libras/index.htm
Lua – Site com informações sobre a lua (dimensão, fases, etc) - UFRGS
http://astro.if.ufrgs.br/lua/lua2.htm
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 6: CONCLUSÃO | 182
6. CONCLUINDO PROVISORIAMENTE
O desenvolvimento deste trabalho permitiu uma análise delicada de
questões fundamentais para o estabelecimento de parâmetros para a transpo-
sição de conteúdos originalmente dispostos em suportes convencionais, para
suportes tecnologicamente diferenciados e organizados a partir de uma estrutu-
ração que tenha no hipertexto seu objeto de inspiração.
A articulação de saberes de diversas áreas possibilitou, a partir do
reconhecimento da problemática de pesquisa e do estabelecimento de objeti-
vos, a caminhada ao longo de uma trajetória que conduz informações do texto
ao hipertexto (em seus sentidos adotados na pesquisa). Mais ainda, essa ca-
minhada representou uma tentativa de mapeamento do caminho e criação de
um sistema de sinalização suficientemente complexo e completo, para servir de
guia para outros exploradores. Mas como ver com os olhos do outro? Como
caminhar senão pelos próprios passos? É possível, de fato, estabelecer um
sistema para guiar viajantes que falam outras línguas, que enxergam em cores
diferentes e se locomovem segundo seus próprios juízos? Esses questiona-
mentos todos, que me proponho ao final dessa caminhada, sinalizam no senti-
do da elaboração que uma questão maior: é possível propor uma metodologia
de transposição do texto para o hipertexto que seja válida para diferentes situ-
ações, diferentes textos e diferentes autores?! A ausência de métodos estabe-
lecidos nesse âmbito, que fez com que nos apropriássemos de teorizações
próximas, pode ser a indicação da impossibilidade ou da inadequação de se
edificar tal intenção?
A apropriação da teoria da Transposição Didática de Chevallard pos-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 6: CONCLUSÃO | 183
sibilitou a formulação de encaminhamentos, que, por sua vez, geraram critérios
que deveriam nortear o processo de transposição que aconteceria na matriz da
pesquisa – a obra paradidática A estória estranha de Eduardo Peçanha. O es-
tabelecimento dos critérios, para além de uma teorização distanciada do sujei-
to-objeto, se fixou em características específicas e únicas da obra em questão,
sugerindo, em certa medida, a particularização na definição de critérios e solu-
ções, e a particularização, quem sabe, no encaminhamento de transposições
de tal natureza.
A apresentação e análise do livro paradidático acabou por conduzir
os esforços de transposição para o âmbito da transposição de linguagem e,
não mais, transposição didática, uma vez que essa fora realizada pelo autor do
livro. As teorias que serviram de base e que se consolidaram enquanto refe-
rencial teórico para a formulação de conjecturas posteriores encaminharam a
trajetória da pesquisa rumo a um contexto fértil em pensamentos e reflexões a
respeito de um estado de constantes mudanças e incertezas. Este cenário se
torna pouco propício e quase hostil para a formulação de uma metodologia
que, inevitavelmente, se mostre hermética e inflexível. Mas talvez se converta
em ambiente favorável à identificação de caminhos para a consecução da
transposição de linguagem de “textos” similares aos que tiveram lugar nesta
pesquisa enquanto objeto de estudo e adaptação. Se partirmos da acepção de
método enquanto “caminho para se chegar a um fim” podemos considerar que
a indicação de princípios norteadores para a transposição, são passos constitu-
tivos de uma metodologia.
As articulações de teorias e saberes que aconteceram ao longo da
pesquisa encaminham os olhares na direção de abordagens que estão forte-
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 6: CONCLUSÃO | 184
mente fixadas na essência da inquietude da sociedade da informação e seus
sujeitos. Abordagens essas que, longe de se mostrarem fruto de questiona-
mentos emergentes ou originais, passaram a encontram lugar na não-
linearidade e na fragmentação pós-modernas.
Discutimos a crise do paradigma da modernidade e, mais que isso, a
crise no conceito de paradigmas, o que concorre para a não adoção de um
modelo pretensamente generalista e que, num contexto marcado pela proviso-
riedade, se mostra desencaixado do aqui e do agora.
Sugerimos a adoção da abordagem histórico-cultural no reconheci-
mento dos sujeitos como indivíduos singulares dentro de uma sociedade abso-
lutamente plural, complexa. Perceber os agentes sociais enquanto senhores
únicos de trajetórias de vida próprias implica em distanciar-se de qualquer fôr-
ma que esteja arraigada a determinismos e formatos instituídos a priori.
Recorremos a Bakhtin e a suas falas sobre o dialogismo polifônico,
sobre estar em construção, sobre estar inacabado, sobre incompletude. Bakh-
tin apresentou o sujeito que, a partir das relações com seus pares, modifica o
meio em que vive e é modificado por este; se constitui e se completa na in-
completude alheia; e que, na junção de múltiplas vozes e sob a atenção de
múltiplos olhares, se estabelece pela diferença e não pela semelhança.
Reconhecemos na teoria das Inteligências Múltiplas a necessidade
de estímulos específicos para pessoas específicas. Enxergamos de onde vem
uma parte da imponderabilidade humana, uma parte da genialidade humana e
que as outras partes ainda estão por vir e, certamente nos surpreenderão a
todos.
Buscamos na teoria da Transposição Didática de Yves Chevallard e
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 6: CONCLUSÃO | 185
na Estruturação do Discurso Pedagógico de Basil Bernstein os caminhos para
que nossos pensamentos, nossas falas, nossas idéias, não venham a sucumbir
ao tempo, aos novos tempos. Mas que resistam e se ajustem ao hoje e, quem
sabe, ao amanhã. E uma resistência movida não por egocentrismos, mas por
um forte desejo de colaborar com a disseminação do “saber sábio” quando este
for adequado e estiver adequado aos sujeitos-leitores-aprendentes.
De acordo com as sínteses dos conceitos apresentados anteriormen-
te é necessário que se reconheça que uma metodologia edificada num rico
contexto de movimentações e ebulições como esse, deve privilegiar a flexibili-
zação de seus preceitos, permitindo que sejam promovidos os ajustes neces-
sários para a sua manutenção. Estabelecidas as ressalvas, a metodologia de
transposição de linguagem do texto ao hipertexto deve contemplar para a es-
truturação das versões multimídia as seguintes etapas:
1. Análise da obra a ser transposta com atenção para características
de identificação e classificação de:
Público-alvo;
Natureza da publicação;
Linguagem adotada;
Imagens utilizadas;
Unidades na publicação;
Estruturação da narrativa.
2. Interação com o autor com a finalidade de levantamento de infor-
mações a respeito de:
Objetivos da obra e do autor;
Encadeamentos informacionais;
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 6: CONCLUSÃO | 186
Conexões entre as unidades que podem ser rompidas;
Conexões entre as unidades que devem ser mantidas;
Possíveis auxílios externos que podem ser estabelecidos;
Negociação para manipulação e adequação total ou parcial da
obra;
3. Definição, a partir da análise da obra e da construção de referen-
cial teórico consistente, de critérios que devem ser atendidos
quando da transposição de linguagem do texto para o hipertexto;
4. Aplicação, nos termos de uma visão macro, dos princípios de de-
sincretização e despersonalização de Yves Chevallard como for-
ma de manter a versão transposta “encaixada” no tempo e no es-
paço presentes e como elementos norteadores das atividades de
concepção da versão a ser produzida;
5. Estabelecimento dos princípios do hipertexto de Pierre Lévy, nos
termos de uma visão micro, como essenciais e norteadores para
a criação de soluções na versão hipertextual, bem como orienta-
dores para a operacionalização da mesma;
6. Produção de mapas dos possíveis fluxos informacionais e de na-
vegação;
7. Determinação de elementos nas unidades da estrutura que permi-
tam a remissão a auxílios externos, quantos forem possíveis e
necessários;
8. Produção, com apoio de equipe multidisciplinar, de animações,
edições audiovisuais, imagens estáticas, trilhas sonoras e outros
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | CAPÍTULO 6: CONCLUSÃO | 187
recursos que se façam necessários;
9. Implementação da versão a partir do estabelecimento de crono-
grama de produção;
10. validação da versão hipertextual por meio de testes junto ao pú-
blico-alvo.
O desenvolvimento desse trabalho possibilitou a articulação de sabe-
res e a formulação uma proposta de metodologia estabelecida a partir da reali-
zação, de fato, de uma transposição-teste – para possíveis incursões no traba-
lho de transposição de conteúdos. Este formato se mostra coerente com as
teorias que serviram de base para seu estabelecimento e com o atual contexto
da sociedade da informação.
Pretende-se, portanto, que este trabalho sirva de contribuição para
reflexões que possam tirar proveito dos saberes e dos autores citados e que,
nem sempre, se mostram dentro de uma articulação como a aqui proposta. E,
por fim, que o mesmo possa criar lacunas e suscitar questionamentos que in-
duzam a incursões no sentido de se chegar a um maior entendimento sobre
novas formas de utilização das tecnologias digitais a serviço da educação. De
modo especial, o uso de estruturações hipertextuais – que se encaixam na or-
ganização e nas relações da sociedade atual – e que podem representar im-
portantes alternativas nas mediações entre professores e alunos.
DO TEXTO AO HIPERTEXTO | REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS | 188
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