Download PDF
ads:
i
UNIVERSIDADE GAMA FILHO
SUELI DO ROCIO DE LARA
A LITERATU RA COMO PONTO DE PARTIDA PARA
UMA REFLEXÃO ÉTICA FEMINISTA:
CAPITU – A ANTI-SOFIA
RIO DE JANEIRO
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
UNIVERSIDADE GAMA FILHO
SUELI DO ROCIO DE LARA
A LITERATURA COMO PONTO DE PARTIDA PARA
UMA REFLEXÃO ÉTICA FEMINISTA:
CAPITU – A ANTI-SOFIA
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Filosofia da
Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro
como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre.
Orientador: Prof.
a
Dr.
a
Maria da Penha Felício
dos Santos de Carvalho
RIO DE JANEIRO
2006
ads:
iii
O(A) autor(a), abaixo assinado(a), autoriza as Bibliotecas da Universidade
Gama Filho a reproduzir este trabalho para fins acadêmicos, de acordo com as
determinações da legislação sobre direito autoral, no(s) seguinte(s) formato(s).
( ) Fotocópia ( ) Meio digital
Assinatura do autor: ________________________________________________
O(A) autor(a), abaixo assinado(a), não autoriza as Bibliotecas da Universidade
Gama Filho a reproduzir este trabalho para fins acadêmicos, de acordo com as
determinações da legislação sobre direito autoral, no(s) seguinte(s) formato(s).
( ) Fotocópia ( ) Meio digital
Assinatura do autor: ________________________________________________
iv
Ao meu filho
Elison
À afilhada
Karol
(in memoriam).
v
AGRADECIMENTOS
Aos mestres de todos os mestres, minha gratidão.
À professora orientadora, Penha, pela atenção, dedicação e paciência de
grande mulher que demonstrou ser.
Ao coordenador da Universidade Gama Filho, Edson Resende pelas
sugestões que só fizeram enriquecer o trabalho.
Ao Colégio Militar de Curitiba, especialmente à pessoa do comandante
Tenente coronel Pedro Josemar.
Aos amigos de curso, especialmente à Letícia que não poupou tempo em
suportar meus momentos difíceis sempre acalentando minha alma inquieta. Ao querido
Nelson que me emprestou, não raras vezes, sua grande inteligência.
Aos meus amigos e amigas de trabalho e de conversas, em especial à
Camila que me trouxe relíquias de Machado de Assis.
Aos que me emprestaram seus livros, seus conselhos, seu tempo por
quaisquer motivos.
À minha terapeuta Ângela que, com olhar de mulher profissional, facilitou
para que encontrasse o desconhecido em Machado de Assis e em mim.
À minha família, por sempre acreditar na minha persistência. Ao meu filho
amado, Elison, à minha querida Daniela e à pequena Thayna, que souberam me dar
força ou me tirar dos livros em horas angustiantes. À minha sobrinha Di, com
especial carinho pelo seu sorriso e leveza diante da vida.
Aos meus alunos que compartilharam a paixão por Machado de Assis.
E a todos, especialmente às mulheres (Capitus ou não), que, por mais
simples e despercebida tenha sido a ajuda, contribuíram para que eu pudesse ver
meu período de “gestação” chegar ao fim.
vi
Escultura
(Composição: Adelino Moreira)
Cansado de tanto amar
Eu quis um dia criar
Na minha imaginação
Uma mulher diferente
De olhar e voz envolvente
Que atingisse a perfeição
Comecei a esculturar
No meu sonho singular
Essa mulher fantasia
Dei-lhe a voz de Dulcinéia
A malícia de Frinéia
E a pureza de Maria
Em Gioconda fui buscar
O sorriso e o olhar
Em DuBarry o glamour
E para maior beleza
Dei-lhe o porte de nobreza
De madame Pampadour
E assim de retalho em retalho
Terminei o meu trabalho
O meu sonho de escultor
E quando cheguei ao fim
Tinha diante de mim
Você, só você meu amor.
Capitu
(Luiz Tatit e Warner Chappell)
De um lado vem você com seu jeitinho
Hábil, hábil, hábil e pronto
Me conquista com seu dom
De outro esse seu site petulante
wwwponto poderosa ponto com
É esse o seu modo de ser ambíguo
Sábio, sábio, e todo encanto, canto, canto
Raposa e sereia da terra e do mar
Na tela e no ar
Você é virtualmente amada, amante
Você real é ainda mais tocante
Não há quem não se encante
Um método de agir que é tão astuto
Com jeitinho alcança tudo, tudo, tudo
É só se entregar, é não resistir, é capitular
Capitu, a ressaca dos mares, a sereia do sul
Captando os olhares, nosso totem tabu
A mulher em milhares, Capitu
De um lado vem você
...No site o seu poder provoca o ócio, o ócio
Um passo para o vício, vício, vício
É só navegar, é só te seguir e então naufragar
Capitu, feminino com arte, a traição atraente
Um capítulo à parte, quase vírus ardente
Imperando no site, Capitu
De um lado...
Um método...
vii
SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................................................... viii
ABSTRACT.................................................................................................................. ix
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 1
1 A LITERATURA COMO PONTO DE PARTIDA PARA A REFLEXÃO ÉTICA ...... 10
1.1 LITERATURA E FILOSOFIA .................................................................................. 14
1.2 A NARRATIVA REALISTA ..................................................................................... 19
1.3 DOM CASMURRO: OBRA REALISTA MACHADIANA.......................................... 21
2 MULHERES, PORTAS ADENTRO!........................................................................ 28
2.1 PÚBLICO E PRIVADO .......................................................................................... 33
2.2 IMPARCIALIDADE ................................................................................................ 41
3. CAPITU: A ANTI-SOFIA ......................................................................................... 45
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 62
REFERÊNCIAS............................................................................................................ 68
viii
RESUMO
O objetivo deste trabalho é evidenciar a importância que a literatura adquire quando
se propõe ao papel de servir de ferramenta para uma reflexão filosófica. Para tanto,
pretende-se mostrar que Rousseau, em Emílio, constrói uma imagem ideal de
mulher, imagem essa que predomina nas esferas pública e privada. Por outro lado,
apresenta-se Machado de Assis que, na sua obra Dom Casmurro, mostra a
desconstrução desse ideal de mulher “perfeita”, e o faz pelas ações de Capitu, que
se torna mulher-sujeito no decorrer do romance. Propõe-se também a analisar os
pressupostos teóricos que constituem os fundamentos da condição moral da mulher
para demonstrar que, numa visão mais humanística, deve-se repensar essa questão
nas diferentes escalas sociais.
Palavra-chaves: Literatura; Reflexão Ética; Gênero.
ix
ABSTRACT
The aim of this work is to show the importance that Literature acquires when it serves
as a tool of philosophical reflection. Nevertheless, it points that Rousseau, in his work
Emilio, builds the image of the ideal woman that is spread in both public and private
spheres. On the other hand, it presents that Machado de Assis in his novel Dom
Casmurro shows the deconstruction of such ideal perfect woman. He depicts
Capitu’s actions who becomes the subject-woman throughout the story. This
research also aims at analyzing the theoretical assumptions that build the
fundamentals of the moral conditions of women to show that, under a more
humanistic perspective, such questions should be reconsidered according to different
social classes.
Keywords: Literature; Ethic Reflection; Gender.
1
INTRODUÇÃO
Quando a diferença entre o que é melhor ou pior se relaciona a seres
humanos, não é possível estabelecer um padrão que determine as atitudes de um
em relação ao outro, com o intuito de enaltecer um em detrimento do outro. Em se
tratando de gênero não há como estabelecer hierarquia, uma vez que se pressupõe
tratar de cidadãos, cujos direitos devem ser garantidos por uma lei maior que rege a
sociedade a qual pertencem. No entanto, historicamente, se sabe que situações
desfavoráveis à mulher ocorreram e, em plena globalização, ainda ocorrem.
Ainda hoje a mulher é discriminada e ou excluída em setores públicos. A
situação acaba ou por confiná-la ao âmbito doméstico ou por fazê-la aceitar viver
uma condição de subordinada. Rousseau justifica essa sujeição como sendo a
condição para estruturar uma sociedade. Para ele a razão e o conhecimento são
divididos em função dos dois gêneros: ao coletivo masculino pertencem a abstração
e a especulação; ao coletivo feminino é atribuída a razão pragmática (instrumental). Ou
seja, o papel da razão feminina perde o caráter criativo e “libertador” para converter-
se em instrumento de sujeição. Sendo condicional à mulher que aprenda só o que
lhe convém saber (o que a possa fazer subserviente ao marido), devendo ser submissa
não por força, mas por consentimento. Sendo assim a ciência e o conhecimento não
podem alcançar a perfeição se homens e mulheres não contribuírem com a razão
específica que têm, quer dizer, com a particularidade de seu gênero.
O tema da mulher e a relação com o seu par tem sido objeto de estudo de
diversas áreas do conhecimento, seja pela filosofia, sociologia, direito, psicologia etc.
No campo da filosofia alguns nomes ganham notoriedade na linha de pesquisa
sobre as questões feministas: Mary Wollstonecraft, Simone de Beauvoir, Maria da
Penha F. S. Carvalho, Márcia Tiburi, Magali de Menezes, Edla Eggert, entre outros.
Com o objetivo de desenvolver o caráter interdisciplinar do tema feminismo, a
pesquisa abrangerá a literatura e o campo da filosofia, mais especificamente, a ética
feminista. A respeito desse assunto, questões surgem, por exemplo: é possível
2
“usar” a literatura para uma reflexão ética? A literatura poderia denunciar questões
relacionadas à vida real? O modelo de mulher fictícia poderia retratar a condição de
mulheres reais?
Tais questões podem ser resolvidas pela percepção de que a literatura é
mais que simples entretenimento, ela registra anseios e feitos de um povo. Nos seus
meandros a literatura denuncia questões em voga, seja pelo conteúdo abordado,
seja pelas personagens caricaturais.
A motivação para o desenvolvimento deste trabalho foi o interesse em
compreender por que, ainda hoje, há situações de desigualdade entre o homem e a
mulher, mesmo quando os direitos humanos são “gritados” aos quatro cantos do
Planeta. Manifestações de domínio que a mulher sofre continuam presentes tanto na
vida pública quanto no âmbito doméstico. E, mesmo que não haja obstáculos legais
ao acesso da mulher às esferas da vida pública, situações de discriminação são
mantidas, o que mostra que a igualdade de direitos não garante a igualdade de fato.
Com o objetivo de “desconstruir a cegueira relativa ao gênero” (Benhabib,
1987), a pesquisa vem mostrar que atitudes “monossilábicas” podem fazer diferença.
É o que se pretende com Dom Casmurro: tornar visível a significância do papel
feminino num contexto modelado pelo perfil da mulher dócil, solícita, recatada,
cortês, como se apresenta a mulher romântica. A perspectiva do trabalho é des-
mascarar a imagem do modelo de mulher definido em termos sexuais e de repro-
dução e trazer a figura de uma mulher real com dengos e vontades próprias, não mais
passiva e obediente, mas sim ativa, consciente, capaz de expor seus sentimentos.
Por um viés, mais especificamente no livro V, a pesquisa vem mostrar a
situação da mulher. Isso se faz em Emílio ou Da Educação de Jean-Jacques
Rousseau. A obra é um tratado sobre a educação de meninos, cujo princípio teórico
se baseia no “bom selvagem”: Emílio é isolado e cuidado de forma especial desde
quando era bebê até se tornar um homem. A obra transcreve todas as suas fases
até que ele chegue ao momento em que deveria se casar. Conforme Cobo, Emílio
deveria ser educado para ser um bom cidadão e também o sujeito político do
3
contrato social. Deveria ser socializado para exercer o papel de esposo e pai, e, no
âmbito doméstico, deveria ter um papel específico que servisse de vínculo entre o
público e o privado: é o que é descrito na quinta parte do livro – a iniciação da vida
completa e disciplinada – a passagem do matrimônio para a vida civil. A ambição de se
fazer um homem se completa quando se faz um cidadão pelo livre progresso da
reflexão. Emílio passaria, então, a exercer as formas de cidadão, de esposo e de pai
nos lugares designados, ou seja, no espaço público e no privado
1
.
O livro V de Emílio consta de duas partes: a primeira diz como deve ser a
esposa e companheira de Emílio e qual seu papel no espaço privado: o papel de ambos
em relação ao amor, à família e aos demais aspectos relacionados ao âmbito doméstico.
Na segunda, Emílio é preparado para completa inserção, em qualidade, de cidadão no
espaço público. Já Sofia tem as páginas voltadas a definir o que fazer e como ser na
esfera privada. Essa definição responde à emergência de um novo tipo de mulher – a
burguesa – aquela que faria parte da classe média. A esse coletivo de mulheres,
Rousseau quisera impor um novo ideal dostico. Rousseau cria, então, Sofia que é
pormenorizada em suas atitudes de submissão. No entanto, ela não é criada à
revelia, ela sai à imagem da mulher da época, com marcas das limitações impostas
pela sociedade em que vivia Rousseau. O modelo de mulher romântica o é porque
prevaleciam os ideais românticos numa sociedade em mudanças. Dentre diversos
enfoques que poderiam dar conta de levar à compreensão da questão da mulher
“condenada” ao âmbito doméstico, acreditou-se ser Sofia o modelo ideal, o qual é
(re)criado a partir das necessidades de um homem. A suposição é que tal modelo
1
Emílio, este ha de ser educado para ser um buen ciudadano, para ser el sujeito político de El
contrato social; por outra parte, (...) también ha de ser socializado para ejercer el papel de esposo y
padre; en definitiva, se lê adjudica un papel específico en el âmbito doméstico como vínculo entre
lo público y lo privado: Toda la quinta parte nos propone la iniciación a la vida completa e
disciplinada, el descenso del filósofo hacia el matrimonio y la vida civil (…). La ambición de hacer
um hombre se completa haciendo um ciudadano por el libre progreso de la reflexión. (...) Las
formas en que se ejerce son las de ciudadano y las de esposo y padres y los lugares son el
espacio público y el privado”. (
COBO, 1995, p.226)
4
legitima e justifica a condição de subordinação da mulher que a condição de
inferioridade era vista como natural, universal e imutável, e a dominação masculina
como necessária e justa.
No século XVIII a educação passa a ser vista como base para o aperfei-
çoamento da humanidade: surgem discursos sobre libertação, promessas demo-
cráticas de igualdades universais. Mas, o mesmo Rousseau, que foi um dos ideali-
zadores da Revolução Francesa e pregava igualdade para todos, afirma que a
mulher deveria ser confinada à esfera privada com todas as suas restrições. Não só
Rousseau, como teóricos e políticos, proclamavam a imparcialidade e a generalidade
do público usando como argumento que a razão se opunha ao desejo, à afetividade
e ao corpo. E por que as mulheres representavam esse grupo em que esses senti-
mentos predominavam, deveriam, então, ser excluídas da esfera pública.
A concepção da inferioridade da mulher fundamentava-se no que seria
natural. A diferença entre homem e mulher estaria no que se refere ao sexo e à
procriação, e a subordinação da mulher resultaria disso. Em primeiro lugar, consiste
em atribuir à mulher um tipo de razão diferente – instrumental. Em segundo, em ter o
homem como objeto educativo. O ponto seguinte seria interpretar a biologia da mulher
conforme as funções sociais: o homem, antes de ser macho é indivíduo pertencente
a uma espécie, a mulher não tem existência fora de seu gênero. A natureza feminina
estaria caracterizada, em primeiro lugar, pela maternidade e, em segundo, pela
sujeição ao marido. Essa dependência significa obediência e, conseqüentemente,
falta de liberdade. A razão da mulher seria ineficiente para exercer a soberania/
igualdade. O que guiaria a mulher seria o instinto, as paixões e os sentimentos. E,
como tal, ela seria incapaz de transcender sensações e paixões corporais,
encontrando-se aquém da esfera da moral, já que esta presume a capacidade de
domínio do racional sobre o sensível. Rousseau (1968) menciona como seria difícil
discernir o que se origina da natureza e o que é imposto pelas situações sociais, no
entanto é enfático ao afirmar que a natureza da mulher é e deve ser doméstica,
dependente, passiva e débil para que o homem seja forte, ativo e cidadão. E essa
5
domesticação é conseguida pela transformação da mulher em esposa e em mãe,
porque assim ela se torna dependente do homem, a quem deve agradar e suprir
suas necessidades particulares. E a mulher, enquanto mãe, teria o dever de criar os
filhos. Para Rousseau, a mulher obedece ao marido e cuida dos filhos porque os ama e
porque é uma mulher virtuosa. A mulher rousseauniana era superficial e falsa porque
não agia por vontade própria e sim atendendo ao que convinha ao homem.
Com exceção de poucos filósofos, dentre eles Poulain de La Barre, a
maioria assume uma postura paradoxal: reconhece a igualdade dos seres humanos,
mas nega-a à metade do gênero humano – às mulheres. Teorias éticas sublimam a
razão sobre a sensibilidade e suas manifestações irracionais. E, mesmo aquelas que
não pretendem eliminar afeto, emoção e sentimento dos julgamentos das ações
morais, não compreendem estes estados desacompanhados da razão.
A não aceitação pela dimensão sensível se dá em paralelo com a desva-
lorização da mulher. Conseqüentemente a parte “irracional” da humanidade, pela
suposta inferioridade natural, encontra-se depreciada e/ou excluída da esfera da
moralidade. “Nessa perspectiva é possível inferir que a ‘virilidade’, característica das
teorias éticas existentes, não se deve apenas à razão óbvia de que todas foram
elaboradas por homens, mas, sobretudo, ao fato de priorizarem ou, na maior parte das
vezes, restringirem o âmbito ético ao ponto de vista masculino, tido como universal”
(
CARVALHO
, 2002, p.49). O resultado disso é que os valores e as virtudes ditas
femininas, portanto vinculadas ao sensível, têm sido desconsideradas da reflexão ética.
E o que é pior, a mulher, muitas vezes, não sendo reconhecida como sujeito moral,
renuncia ao feminino e passa a se identificar com o masculino. Para que possa se
tornar “igual” passa a sentir, julgar e agir como homem, não percebendo que, ao
valorizar o masculino, assume uma falsa igualdade (
CARVALHO
, 1999).
2
2
CARVALHO, Maria da Penha Felício dos Santos de. A inclusão do “feminino” na reflexão ética.
1999. (Tese de doutorado apresentada à UGF).
6
O fato de existirem diferenças entre o feminino e o masculino não justifica
posturas de hierarquia. Ao contrário, o ponto de vista moral “feminino”, considerado
inferior, pode sim mostrar-se como sujeito de sua própria história e até conduzir
ações que envolvem os dois gêneros. É o que a literatura tenta ressaltar, através de
seus tipos caricaturais, servindo, assim, de ponto de partida para que se reflita
filosoficamente a respeito de questões ligadas à ética feminista
3
.
A literatura manifesta elementos de natureza social e psíquica de uma
dada civilização por meio da linguagem, resultando, assim, num tipo de comunicação
inter-humana que aparece como sistema simbólico capaz de expor veleidades
profundas do indivíduo.
Pode-se dizer que a literatura é uma transfiguração do real: realidade recriada
pelo escritor que cria ou recria um mundo de verdades que não são mensuráveis pelos
padrões das verdades factuais, pois é também pela literatura que se toma contato com
a vida, com as verdades comuns a todos os homens e lugares. E, se toda forma de arte
traz a possibilidade de recriar a realidade, então o artista tem um poder mágico: o de
moldar a realidade segundo suas convicções, sua vivência. Quer dizer, o escritor
transforma simbolicamente o mundo em outro mundo que seja mais bonito, mais
significativo. Esse mundo criado se faz com a cultura, com as experiências de vida, com
a visão de mundo do autor. Nessa perspectiva, uma obra é uma realidade autônoma,
cujo valor está na fórmula de plasmar elementos não literários (impressões, paixões,
idéias, fatos, acontecimentos), que são a obra-prima do escritor.
3
A expressão “ética feminista” pode ser considerada por alguns como contraditória, pois é evidente
que sendo a ética universal, não poderia ser diferente para as feministas. Para outros, porém,
“parece tendenciosa: as respostas feministas às questões morais não podem simplesmente ser
consideradas como dadas de antemão. Todos supõem erradamente que a ética feminista define-se
por doutrinas específicas quanto ao que é dos conceitos centrais da moral, ou até da natureza
mesma da moralidade. Mas, embora o feminino defina-se de fato por um engajamento ético
concreto – a luta contra a condição inferior das mulheres –, esse engajamento é demasiado geral
para oferecer respostas específicas à maior parte das questões práticas e teóricas que se colocam
em ética; com efeito, ele só é determinante em virtude da resolução presente entre as feministas
de evidenciar, no seio da ética, a existência de preconceitos desfavoráveis às mulheres” (
JAGGAR,
2003, p.623).
7
Nessa linha de pensamento de que a literatura trata de aspectos do mundo
real, tenta-se mostrar neste trabalho a arte de Machado de Assis que, através de sua
criação singular – Capitu –, dá voz e espaço para o feminino.
No século XIX, quando o modelo de mulher ainda é a romântica e tem-se a
materialização do silêncio feminino, Machado de Assis dá poderes dissimulados que
marcam a emergência de uma nova demarcação entre o espaço doméstico e o
público para a mulher. Ele, percebendo que as mulheres começavam a folhar
romances, tenta trazer a leitora para a margem do texto. Numa dessas tentativas,
Machado cria Capitu com o intuito de mostrar um novo tipo de mulher que é capaz de
romper com as amarras do contexto público e fazer a travessia de si mesma, e que
pode sim inscrever-se no espaço público também. Com isso irrompe na história uma
nova mulher, aquela que valoriza o sensual, a intimidade, a intuição, o sensível. A
mulher começava a procurar uma identidade feminina para existir como presença na
cultura, não como o avesso da identidade do homem, nem o seu contrário, mas existir
por ela mesma.
A obra a ser analisada na pesquisa é Dom Casmurro, e se tem como
intenção mostrar a transgressão de padrões pré-estabelecidos. Capitu, personagem
principal, vem para transgredir a imagem da mulher ideal. Essa obra realista denuncia
a visão preconceituosa que a sociedade em geral e as próprias mulheres tinham em
relação a si mesmas. Seria dizer que Capitu, na sua fragilidade de menina-mulher,
luta para desestabilizar a hierarquia entre os gêneros homem e mulher.
As teorias literárias contextualizam o movimento Realismo, do qual faz
parte Machado de Assis e sua obra Dom Casmurro, como um período de muitas
mudanças, entre elas, campanhas abolicionistas e republicanas, o que retrata uma
sociedade preconceituosa em que transparece o temperamento, o estado de espírito
de pessoas que preferiam encarar os fatos e fazer com que a verdade sobressaísse.
Dentre essas pessoas está o escritor realista que prefere personagens verossímeis
que possam mostrar seu caráter. Os temas que fazem parte desse período são:
relações conjugais, contrastes da vida íntima, a vida nos cortiços, nas cidades, nas
8
fábricas; as mazelas da vida pública, entre outros, que são descritos numa linguagem
objetiva e mais próxima da realidade possível. Ao ficcionista dessa época cabia a
obrigação de descobrir a verdade e entender o comportamento das personagens
envolvidas. Dentre os escritores realistas, sobressai Machado de Assis, porque ele
soube analisar a alma humana com seus requintes, excepcionalmente a feminina:
deu àquela mocinha pobre e ambiciosa (Capitu) um pensamento voltado para o
indivíduo, para o humano, dando vazão para que ela tivesse ambição e quisesse mudar
de status, mesmo que o plano afetivo fosse prejudicado.
Dom Casmurro denuncia a condição de desigualdade da mulher e rompe a
barreira do tempo, escancarando um novo comportamento da mulher, completamente
inaceitável para os paradigmas da época. Parece que Machado de Assis entendeu o
grito feminino reprimido e fez da experiência de Capitu uma maneira de mostrar que
é possível a mulher ser protagonista de sua própria história. O que se pode perceber
é que a obra analisada não serve só pelo seu valor estético, mas cumpre um
papel social: provocar reflexões éticas para que se atente para situações reais de
vida, e que, através de fatos denunciados, possa-se mudar o seu entorno,
cumprindo-se, assim, com um dos objetivos da literatura: servir de ponto de
partida para a reflexão.
O trabalho se divide em três capítulos. No primeiro, busca-se mostrar a
literatura conceituada por críticos literários, assim como a tentativa de elencar aspectos
relacionais entre literatura e filosofia. Há também a descrição da narrativa realista, na
qual está inserido o romance Dom Casmurro, com o objetivo de clarificar aspectos
relacionados à maneira de enxergar o mundo, uma vez que a literatura registra
essências da época em que é escrita. Neste capítulo, críticos expõem pontos de vista
sobre a constituição de uma obra literária, especialmente a machadiana em análise.
No segundo capítulo, a importância é retratar o perfil da mulher na sociedade,
no que confere ao blico e privado. A este aspecto, Rousseau é explícito, as razões
são várias que convergem para a mesma direção, dentre elas, o reforço da família
patriarcal, e a razão econômica como controle da independência da esposa, o que vem
9
afirmar valores como a castidade e a monogamia femininas. Quanto ao homem, podem-
se observar razões políticas, pois o cidadão, como é concebido por Rousseau, é
dedicado por completo ao público, com todo o seu tempo voltado ao exercício de
sua cidadania. Conseqüentemente, todas as tarefas domésticas devem ser realizadas
pelas mulheres, inclusive as de reprodução e manutenção da família, culminando,
assim, na divisão em esfera pública – pertencente ao homem – e esfera privada –
lugar determinado para a mulher.
À mulher rousseauniana cabia o “aconchego” do lar, porque as atividades
públicas eram inacessíveis a ela, e as funções, inadequadas, sob o ponto de vista
masculino. Há de se ver que a divisão entre público e privado não se refere somente
a uma divisão de trabalho, mas a uma divisão de mundo. A mulher apresenta um
modo de perceber, de fazer e de comportar-se, cujos limites estão na esfera privada,
supostamente em virtude de sua formação biológica que se dá em torno de valores
como razão, utilidade e virtude. Fechando esse segundo capítulo, discute-se o
conceito de imparcialidade em relação ao gênero.
No terceiro capítulo o comportamento da mulher está em evidência. Mais
enfaticamente analisa-se Capitu em suas atitudes com o objetivo de mostrar que,
mesmo fazendo parte de uma sociedade que privilegiava o perfil da mulher
rousseauniana, ela foi capaz de romper paradigmas estabelecidos e mostrar que a
mulher poderia estar em pé de igualdade com o homem. Em seus meneios, Capitu se
torna a anti-Sofia, desestruturando o pensamento machista da relação homem/ mulher.
Ela luta pelos seus sentimentos, não mais voltados para a vontade de um pai ou de um
marido, mas para o que ela queria ou achava querer. Assim Capitu se constrói e toma
assento num plano realista, agindo e reagindo no panorama social, político e filosófico
da época. O anti-sofianismo se verifica na forma como Capitu agrega valores a atitudes
corriqueiras e quando se impõe e se torna ativa nas suas vontades.
10
1 A LITERATURA COMO PONTO DE PARTIDA PARA A REFLEXÃO ÉTICA
O presente capítulo trata de questões a respeito do pensamento a respeito
do que seja a arte literária e qual o seu papel na sociedade dos homens. Pretende-
se levantar aspectos relevantes que visem ao entendimento de como a literatura pode
servir de ferramenta para uma reflexão ética, pois é, muitas vezes, dos meandros da
arte que surgem elementos que instigam questões a respeito do próprio homem.
A literatura, propriamente dita, é um sistema de obras ligadas por deno-
minadores comuns que permitem reconhecer aspectos dominantes. Recursos como
temas e imagens, certos elementos de natureza social e psíquica se manifestam
historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Fazendo parte
desse interagir há um produtor, consciente de seu papel, receptores que formam
diferentes tipos de público, e um mecanismo transmissor – a linguagem – que faz a
conexão entre o escritor e o leitor. O resultado dessa interação é um tipo de
comunicação inter-humana que aparece como sistema simbólico capaz de expor as
veleidades mais profundas de um indivíduo.
Como arte, a literatura é uma transfiguração do real: a realidade recriada
pelo artista que cria ou recria um mundo de verdades que não são mensuráveis pelos
mesmos padrões das verdades factuais. É pela literatura que se toma contato com a
vida, com as verdades comuns a todos os homens e a todos os lugares, porque são
verdades da condição humana. E, se toda forma de arte traz a possibilidade de
recriar a realidade, então o artista tem um poder mágico: o de moldar realidades segundo
suas convicções, sua vivência. Quer dizer, o escritor transforma simbolicamente o
mundo em outro mundo que seja mais bonito, mais significativo, mais ordenado.
Esse mundo criado se faz com a cultura, com as experiências de vida, com a visão
de mundo do artista. Nessa linha de pensamento, uma obra de arte é uma realidade
autônoma, cujo valor está na fórmula que se usou para plasmar elementos não-
literários: impressões, paixões, idéias, fatos, acontecimentos, que são a matéria-
prima do artista.
11
Sendo assim, um texto literário traz a postura do artista diante da realidade
e das aspirações humanas. O artista trata de aspectos do mundo real, sem, no entanto,
descrever ou narrar o que aconteceu realmente; é ficção. Os seres, coisas e fatos
passam a existir a partir do texto, sem, no entanto, deixar de ser verossímil à rea-
lidade externa do próprio texto. Machado de Assis mostra bem essa postura diante
da realidade humana: a realidade criada a partir de personagens reais inseridos em
situações que poderiam ser também reais; personagens com características reais,
vivendo um drama possível de se encenar num contexto real.
Como estética, um fato literário é histórico, pois revela elementos de uma
civilização, o que contribui para diferenciar fatos sociais, econômicos, políticos, religiosos,
morais de um povo. A análise de tais fatos intrínsecos no texto é que vai permitir a
crítica histórica. Linda Hutcheon
4
, que acredita que a estética assume vasto signi-
ficado, comenta:
As formas de arte têm demonstrado cada vez mais que desconfiam da crítica exterior, a
ponto de procurarem incorporar o comentário crítico dentro das suas próprias estruturas,
numa espécie de autolegitimação que curto-circuita o diálogo crítico normal, mesmo quando
elege o passado como cenário (através de personagens históricos de maior sentido para
uma história restrita). Talvez aí, mais claramente, esse tipo de produção não se poupe de
questionar “para onde caminhamos?” [Parece] que, de forma mais evidente, [o que] se
revela nessas obras ficcionais são as teias problemáticas que ela [a literatura] premedi-
tadamente espalha a sua volta.
Como prova dessa importância da literatura, temos, ainda hoje, dois séculos
depois, Dom Casmurro que continua incitando a crítica, seja pelos seus personagens
caricaturais, seja pelo tema, deixando transparecer que a autonomia da obra literária
está em o romance crescer e se ampliar e se tornar história moral, impondo-se a si
mesmo estudos e deveres da ciência. Dom Casmurro é um romance construído a
partir de fatos verossímeis, envolvidos por uma teia problemática constrda com base
em idéias, crenças e valores assimilados da sociedade da época em que se insere.
4
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Ensinamentos das formas de arte do século XX. Lisboa:
Edições 70, 1989. p.11. Citado por Nascimento.
12
A literatura faz parte da história como todas as criações do homem; é mais
um entre os diversos fazeres do homem que são transmitidos de geração a geração,
passando a fazer parte da cultura e ilustrando características de uma época. Como
sistema, apresenta denominadores capazes de estabelecer comunicação inter-humana,
podendo denunciar fatos, assumindo, às vezes, o papel de transgressora quando do
rompimento da ordem estabelecida, mostrando a revolução de costumes.
No plano ético, escrever é reconhecimento implícito de liberdade e de dar
sentido e valor a uma existência cerceada. O comentário de Galeano é propício para
resumir a idéia de valoração de princípios éticos que a arte literária assume no contexto
em geral.
Será que as palavras sobreviverão em meio aos adeuses e aos crimes? (...) As pessoas
escrevem a partir de uma necessidade de comunicação e de comunhão com os outros,
[escrevem] para denunciar aquilo que machuca e compartilhar o que traz alegria. As
pessoas escrevem contra sua própria solidão (...) porque supõem que a literatura
transmite conhecimentos, age sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe, e nos
ajuda a nos conhecermos melhor (...), a gente escreve para as pessoas com cuja sorte ou
má sorte se sentem identificadas: os que comem mal, (...), os rebeldes e humilhados (...)
para despistar a morte e destruir os fantasmas (...); mas (...) [isso] só pode ser útil quando
coincide de alguma maneira com a necessidade coletiva de conquista da identidade (...).
Enquanto instrumento de revelação da identidade coletiva, a arte deveria ser considerada
matéria de primeira necessidade e não artigo de luxo. (...) A obra nasce da consciência
ferida do escritor e se projeta ao mundo. Então, o ato de criação é um ato de solidariedade
(...), [pois] ao se escrever, é possível oferecer o testemunho de nosso tempo e de nossa
gente (...). [A] literatura (...) enriquece uma formidável tradição de palavras que lutam (por
NICOLA, 1998, p.43-44).
Comungando com a idéia de Galeano, é possível entender por que uma
arte simples como a literatura pode representar tanto como instrumento de reflexão.
Pode-se dizer que ela é fundamental para formar a sensibilidade e visão de mundo
de um povo, sendo também por ela que tomamos conhecimento de observações e
de sentimentos experimentados pelos nossos antepassados. É por meio dela que
mulheres gritam pelos seus direitos, que expõem seus desejos reprimidos, seu cárcere
privado. Seria dizer que a leitura de obras literárias é capaz de produzir discernimento
sobre experiências vividas. E é por esse viés que a literatura pode servir de janela
para que se possa, através dela, “ver” e refletir sobre verdades ocultas ou ignoradas.
13
A esse respeito, Nascimento
5
diz que “a ficção não pode estar alheia a
cenários de mudanças de paradigmas. Aliás, a literatura nunca esteve. O que muda é a
intensidade com que a literatura se volta para o próprio processo, não descurando,
contudo, do olhar crítico ao universo em que se insere”.
1.1 LITERATURA E FILOSOFIA
A arte, num sentido geral, tem papel reconhecido desde o século XVIII, no
entanto, como ciência literária, ainda não dispõe de métodos sólidos que a comprovem.
Talvez, por isso, poucos trabalhos desenvolveram a temática da importância da
literatura como forma de comunicação. Vem da Escola de Frankfurt a visão de que a
arte tem um papel decididamente social e revolucionário. “No lugar da religião, a arte
deve ser capaz de se tornar eficaz enquanto poder unificador, já que é entendida como
uma ‘forma de comunicação’ que intervém nas relações intersubjetivas dos homens”
(
HABERMAS
, 2002, p.63). A arte é tida, então, como medium para que o ser humano
se forme para a verdadeira liberdade política. Esse processo, no entanto, não se refere
ao indivíduo, mas ao contexto coletivo, pois “se a arte deve cumprir a tarefa histórica
de reconciliar a modernidade em conflito consigo mesma, não pode atingir apenas
os indivíduos. Tem, antes, de transformar as formas de vida compartilhadas por eles”
(
HABERMAS
, 2002, p.66). Daí a força comunicativa, solidária, fundadora de comuni-
dade, e de caráter público da arte.
A literatura, conforme Antônio Cândido (2005), é a manifestação universal
de todos os homens em todos os tempos. Não há povo que possa viver sem ela.
Ninguém é capaz de não se entregar ao universo fabuloso, seja em sonho ou em
5
Naira de Almeida Nascimento é graduada em Letras pela UFRJ, concluiu o mestrado na UFPR
com dissertação sobre o escritor Visconde de Taunay. É doutoranda na mesma instituição. As
consultas são do artigo que faz parte da coletânea Retratos e Simulacros Machadianos: uma leitura de
“Enquanto isso em Dom Casmurro”. “Ainda Machado: presença na ficção contemporânea”, orga-
nizada por Marilene Weinhardt, 2003. Sendo assim, as citações, a partir de agora, aparecerão com
o sobrenome e o ano de organização dos artigos.
14
vigília, pois a criação ficcional ou poética está presente em todos, analfabetos ou
eruditos, seja na forma de anedota, causo, canção popular, histórias, novelas, leitura
de um romance, entre tantos tipos que enriquecem os devaneios de cada um.
Cândido toma a literatura como elemento-base de uma cultura, e diz que
ela faz parte da lista de necessidades universais e como tal deve ser satisfeita. Ele
vai mais longe ainda, faz comparações: o equilíbrio psíquico durante o sono seria
mantido pelo sonho e o equilíbrio social pela literatura. Deste modo, ela seria fator
indispensável de humanização, podendo até estar envolvida na educação familiar,
grupal ou escolar. O autor afirma ainda que a literatura pode influir até na formação
da personalidade uma vez que a “aventura” pode causar problemas psíquicos e
morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração.
Rousseau já reconhecia esse papel da literatura quando, no Livro III, recrimina a
leitura de fábulas e diz que Emílio deve ler somente Robinson Crusoé
6
.
Segundo Cândido, a função da literatura está ligada à complexidade de sua
natureza: ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; é
forma de expressão – manifesta emoções e a visão de mundo dos indivíduos e dos
grupos – e é uma forma de conhecimento. Quando o poeta ou o narrador elabora
uma estrutura, ele propõe um modelo de coerência gerado pela palavra organizada,
podendo, assim, também organizar a mente e os sentimentos do seu leitor e,
conseqüentemente, deixá-lo mais capaz de organizar a sua visão de mundo.
A literatura humaniza através do processo que confirma no homem traços
essenciais como o exercício da reflexão, aquisição do saber, boa disposição para o
próximo, afinamento das emoções, capacidade de penetrar nos problemas da vida,
senso de beleza, percepção da complexidade do mundo e dos seres, cultivo do humor.
Desenvolvendo em cada um a quota de humanidade, torna o homem mais com-
preensível e aberto para a natureza, para a sociedade, para o semelhante.
6
A respeito desse assunto, escreve José Oscar de Almeida MARQUES “Rousseau e os perigos da
leitura, ou por que Emílio não deve ler as fábulas” (2004).
15
Cândido retoma um ponto importante que é o da intenção do autor, lembra
que:
...além do conhecimento por assim dizer latente, que provém da organização das
emoções e da visão do mundo, há na literatura veis de conhecimento internacional, isto é,
planejados pelo autor e conscientemente assimilados pelo receptor. Estes níveis são o que
chamam imediatamente a atenção e é neles que o autor injeta as suas intenções de
propaganda, ideologia, crença, revolta, adesão etc. (
CÂNDIDO, 2005).
Sendo assim, o escritor atua pela eficiência de sua organização formal, pela qualidade
de sentimento que exprime, pela natureza de sua posição política e humanitária.
Nestes casos a literatura satisfaz, em outro nível, a necessidade de conhecer os senti-
mentos e a sociedade, ajudando-nos a tomar posição em face deles. É aí que se situa a
‘literatura social’, na qual pensamos quase exclusivamente quando se trata de uma
realidade tão política e humanitária quanto à dos direitos humanos, que partem de uma
análise do universo social e procuram retificar as suas iniqüidades (
CÂNDIDO, 2005).
A ciência literária deve estreitar seu vínculo com a história da cultura já que
é parte inalienável dela, não sendo possível compreendê-la fora do contexto. Não há
como separar a literatura do resto da cultura, pois todos os fatores que a compõem
influenciam-na. O procedimento de analisar somente a obra sem o estudo da cultura
faz com que a literatura adquira ares de algo insignificante e frívolo, também não é
muito desejável estudá-la somente na sua contemporaneidade, pois “uma obra deita
raízes no passado remoto. As grandes obras da literatura levam séculos para nascer, e,
no momento em que aparecem, colhemos apenas o fruto maduro, oriundo do processo
de uma lenta e complexa gestação” (
BAKHTIN
, 2000, p.363-4). Assim como encerrar
uma obra na sua época é não permitir compreender a vida futura que lhe é prometida.
As obras vão além do limite, elas rompem as fronteiras do tempo.
Adorno (1991, p.66), a respeito da função social da literatura, tece comentários
dizendo que não há um conteúdo objetivo nem categoria formal da poesia que não
proceda da realidade empírica a que se furta. A compreensão da arte e da cultura
faz-se a partir de uma teoria da experiência. Podendo, muitas vezes, tratar daquilo
de que todos sabem e sobre o que ninguém quer falar. Adorno afirma que a arte é o
lugar do conteúdo de verdade:
16
O conteúdo de verdade das obras de arte é a resolução objectiva do enigma de cada uma
delas. Ao exigir a solução, o enigma remete para o conteúdo de verdade, que só pode
obter-se através da reflexão filosófica. Isto, e nada mais, é que justifica a estética.
Enquanto que nenhuma obra de arte fica absorvida em determinações racionalistas nem
no que por ela é julgado, todas se dirigem, no entanto, em virtude da indigência do seu
carácter enigmático, à razão interpretativa (
ADORNO, 1970, p.149).
Ainda Adorno: “na instância suprema, as obras de arte são enigmáticas,
não segundo a sua composição, mas segundo o respectivo conteúdo de verdade”
(1970, p.148). Esse enigma a que se refere o autor seria a busca do sujeito pelo
conteúdo de verdade presente no objeto. No entanto, “para o seu enigma falta a
chave” (
ADORNO
, 1970, p.148). Ou, de forma mais enfática: “O enigma é saber se a
promessa é fraude” (
ADORNO
, 1970, p.149) Tratar a arte como enigma implica dizer
que ela é algo autônomo em relação a conceitos pré-existentes, o que significa que
ela provoca a razão, incitando-a a refletir. E é nesse momento que surge o conteúdo
de verdade.
Esses conteúdos de verdade, que Adorno afirma estarem nos objetos
artísticos, são criados ao mesmo tempo em que se traduzem os enigmas presentes
nestes mesmos objetos. Esses enigmas, porém, não são estáticos, findáveis, estão
sempre em renovação, por isso uma obra de arte é inesgotável na sua significação.
De fato “a necessidade de interpretação das obras enquanto necessidade da ela-
boração do seu conteúdo de verdade é o estigma da sua insuficiência constitutiva.
Não atingem o que nelas é objectivamente querido. A zona de indeterminação entre
o inacessível e o realizável constitui o seu enigma” (
ADORNO
, 1970, p.149). A con-
clusão a que se chega é que a obra de arte, em tendo conteúdos de verdade, não os
tem objetivamente.
Seria plausível dizer que os enigmas de uma obra de arte, aqui especi-
ficamente da literatura, quando são descobertos dão origem a outros enigmas, uma
vez que o olhar do observador se ajusta e cria novas relações. “Aprender o conteúdo
de verdade postula a crítica. Nada é apreendido se a sua verdade ou falsidade não
for compreendida, e isso é afazer da crítica. O desdobramento histórico das obras
pela crítica e a manifestação filosófica do seu conteúdo de verdade encontram-se
17
em interacção” (
ADORNO
, 1970, p.149). Seria dizer que um enigma para ser resolvido
necessita de um ser “pensante” com capacidade de reflexão.
Aqui entra o papel da filosofia. A literatura fornece os meios e a filosofia se
encarrega de dar suporte para que a reflexão aconteça. No entanto, para ser resolvido
o enigma, há necessidade da capacidade interpretativa do sujeito que perceba a
presença do conteúdo de verdade na obra, pois a reflexão não parte de uma com-
preensão pré-estabelecida, de forma que o conteúdo de verdade é sempre novo.
Assim, a arte é o meio pelo qual se liberam reflexões sempre novas, e a crítica tem
papel fundamental nessa atividade. A característica principal da arte é levar o ser
humano à reflexão.
Adorno sustenta que o vínculo existente entre filosofia e arte se dá por
intermédio da crítica recíproca entre ambas. Para ele, a arte não tem acesso à essência
da filosofia, da mesma forma acontece com a filosofia. Cada qual possui capacidade
de atingir somente a própria imanência. “O tal enigma proposto pelo autor se refere à
busca do sujeito pelo conteúdo de verdade presente no objeto. O que constitui o enigma
nas obras de arte é, justamente, o seu processo de imanência, algo que está sempre em
devir, não se caracterizando como algo fixo e, por esse motivo, é impossível de ser
resolvido, mas, simplesmente, recriado e deslocado.”
7
Adorno afirma ainda que “A
filosofia e a arte convergem no seu conteúdo de verdade: a verdade da obra de arte que
se desdobra progressivamente é apenas a do conceito filosófico” (ADORNO, 1970, p.151).
Para Adorno, o conceito de razão tem caráter racional e irracional, mas
não sob o mesmo aspecto. Enquanto razão instrumental é irracional porque
superestima a cientificidade e visa atingir fins instantâneos, abdicando da busca pela
liberdade e pelo esclarecimento. No entanto, ao tomar conhecimento do equívoco
através da autocrítica, a razão pode retornar ao caminho da verdade. Assim, ao
7
BONI, Cheila Mara Battistella. Relação entre Filosofia e Literatura: um diálogo fundamentado
na teoria de Adorno. Monografia apresentada ao curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia de
Passo Fundo, em dezembro de 2004, RS, sob orientação do Ms. Gerson Luís Trombetta.
18
reconhecer-se como portadora de irracionalidade, a razão se autolegitima perante o
mundo. A razão presente no objeto artístico não é reconhecida pela razão
tradicional, porque se trata de um conhecimento originário, desprovido de conceito.
E o enigma presente na obra permanece insolúvel, porque a arte não compartilha
das regras da racionalidade tradicional. Então, pode-se concluir que o sujeito que
aprecie a arte enquanto estética, saberá que quanto mais se aproximar do conteúdo
de verdade da obra mais reflexiva e autônoma será sua postura perante ela.
Por não ser a obra de arte portadora da capacidade de fala, ela é incapaz de
fornecer resposta a seu próprio caráter enigmático. Assim, as diferentes reações que o
expectador (leia-se também leitor para o caso da literatura) possa ter ao refletir sobre
ela é que constituem a verdade filosófica. “Esta reflexão acerca do conteúdo de verdade
da obra desencadeia um desenvolvimento mimético e cognitivo não dominado,
transformando o expectador em um ser de capacidades autônomas.”
8
Seria dizer que a
arte tem papel fundamental na história do sujeito, podendo fornecer ferramentas para
levá-lo à reflexão, despertando, assim, a consciência humana.
1.2 NARRATIVA REALISTA
Para se entender melhor uma obra literária é preciso estar atento ao contexto
histórico, porque a literatura, em sendo um mostruário, deixa transparecer na obra
características comuns de uma determinada época. Para este trabalho o período
Realismo
9
estará em exposição, pois, como o próprio nome diz, o movimento está
8
BONI, Relação entre Filosofia e Literatura (2004).
9
Em meados do século XIX o Romantismo já dava mostras de esgotamento, especialmente porque
derivou para o sentimentalismo piegas, exagero na imaginação. A literatura realista despede-se do
sentimentalismo; o escritor procura ausentar-se da obra e pretende ficar como observador impassível e
refletir a vida na sua obra. Deve-se encarar o Realismo como um movimento específico do século
XIX, mais precisamente em 1865 quando do seu início em Portugal com o episódio polêmico da
Questão Coimbrã. No Brasil seu marco foi 1881 com a publicação de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis e O mulato, de Aluísio Azevedo. Com suas tendências voltadas à
realidade, o Realismo se faz na união do espírito à vida. Essas tendências logo se cristalizaram
dando origem a uma literatura bem mais próxima do momento presente e de uma visão mais objetiva
19
diretamente ligado a registrar fatos verossímeis à realidade externa do romance.
Características desse período literário se contrapõem às do Romantismo e desvendam
um perfil diferente de homem: mais preocupado com sua história.
Assim sendo, um período literário é, então, definido por características
comuns encontradas em várias obras de uma determinada época. Isso se faz para
que se possa entender com mais clareza o objetivo de dada manifestação artística.
Neste capítulo, particularidades do Realismo, que se contrapõe ao Romantismo
10
,
serão exploradas de forma sistemática, já características do período romântico
aparecerão de forma implícita na alise de Emílio
11
, obra que servirá de painel
filosófico para que se construa a contraposição no que diz respeito ao comportamento
da mulher. As duas a serem analisadas: Sofia, do livro V de Emílio ou Da Educação, de
Rousseau, e Capitu, da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis.
do mundo e da vida. Ocupou uma época cultural de maior relevância no Brasil pelas circunstâncias
históricas, nacionais e internacionais, coincidindo com o advento da civilização burguesa, democrática,
industrial e mecânica, e com a penetração da ciência no mundo das idéias e da prática por meio da
biologia. O sistema de idéias e normas que caracterizou essa época exerceu tal influência no Brasil
que a sua marca até hoje ainda se faz notar em muitos espíritos. Daí a importância da época na
expressão literária. (
COUTINHO, 1988, p.179-181)
10
Movimento literário que dominou a literatura européia desde o final do século XVII até meados do
século XIX. Caracteriza-se por sua entrega à imaginação e à subjetividade, pela liberdade de
pensamento e de expressão e pela idealização da natureza. O Romantismo nasceu em oposição ao
Classicismo e representa a estética e os anseios da classe burguesa em ascensão. Acredita-se que o
Romantismo tenha tido início na Escócia, Inglaterra e Alemanha, países europeus mais desenvolvidos,
mas foi somente na França, após a revolução de 1789, que o movimento se expandiu. Os autores
românticos encontram sua primeira fonte de inspiração em pensadores europeus como Jean-Jacques
Rousseau e em Goethe. Grande parte dos movimentos libertários e abolicionistas do final do século
XVIII e princípio do século XIX originou-se em conceitos da filosofia romântica. “O culto e a exaltação do
infinito, o fato de não se contentar com menos que a infinidade, constituem características marcantes do
espírito romântico. (...) O próprio positivismo se enquadra nesse espírito. (...) As características
assumidas pelo Romantismo em política, arte e costumes estão intimamente ligados (...) à defesa e
exaltação das instituições humanas fundamentais, nas quais personifica o Princípio infinito: Estado,
Igreja, com tudo o que implicam. Em arte, busca a realização do infinito através de formas grandiosas e
dramáticas, em que os conflitos são levados ao extremo para depois reconciliarem-se e pacificarem-se
de maneira igualmente extremada e definitiva. Nos costumes, o amor romântico busca a unidade
absoluta entre os amantes, sua identificação no infinito; em favor dessa unidade ou identificação
sacrifica o sentido autêntico da relação amorosa e sua possibilidade de constituir a base para uma vida
em comum” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho
Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.860).
11
Há de se ter claro que esta obra, também objeto de análise, será tratado como obra filosófica e não
literária, por isso a não conceituação similar a Dom Casmurro.
20
No período romântico, a imaginação e a observação de alguns ficcionistas
ampliaram largamente a visão da terra e do homem. No entanto, a estratificação
dos grupos familiares, regidos por padrões uniformes e superpostos à escravaria
e aos desclassificados, ainda não propiciava a multiplicidade das dúvidas e
opções morais dentro da arte literária. Mas, mesmo assim, a consciência social
de alguns escritores já imprimia aos romances um cunho realista que provinha
dos costumes e dos tipos humanos.
O romancista do período romântico narrava as crises da vida, os estados
da alma e do coração. O escritor realista procurava descrever não os estados e sim
a história do coração, da alma e da inteligência. Fazia isso de forma a descrever o
homem no seu estado normal e assim conseguia revelar o que era o homem na sua
realidade. Isso se fazia porque o Realismo mostrava o temperamento, o estado de
espírito que existia quando o homem preferia encarar os fatos, deixando que a
verdade ditasse a forma; os sonhos deveriam estar subordinados ao real. A emoção
devia fugir ao sentimentalismo ou à artificialidade, por isso as personagens se
mostravam como indivíduos concretos, conhecidos; os incidentes do enredo decorriam
do caráter das personagens e os motivos humanos dominavam a ação.
Quanto à análise dos personagens do período realista, pode-se dizer que
todos são tipos reais, extraídos da realidade, e o drama se constrói em decorrência
de atitudes dos próprios personagens, compreendidos pelo próprio escritor que buscou
tipos inspirados em pessoas reais.
Como o escritor realista via e criava seus personagens é o que Bosi (1994,
p.169) mostra quando Émile Zola escreve a respeito de seus personagens:
(...) eu quis estudar temperamentos e não caracteres. (...) Escolhi personagens sobera-
namente dominados pelos nervos e pelo sangue, desprovidas de livre-arbítrio, arrastadas
a cada ato de sua vida pelas fatalidades da própria carne. (...) o meu objetivo foi acima de
tudo um objetivo científico. Criadas minhas (...) personagens, (...) dei-me com prazer a
formular e a resolver certos problemas; assim, tentei explicar a estranha união que se
pode produzir entre dois temperamentos diferentes e mostrei as perturbações profundas
de uma natureza sangüínea em contato com uma natureza nervosa.
21
Uma vez criadas as personagens, constrói-se o seu ambiente, que, no
Realismo, retrata o presente nos cortiços, nas cidades, nas fábricas, nas relações
conjugais etc. Os temas, voltados aos costumes, às mazelas da vida pública, aos
contrastes da vida íntima, são narrados de forma lenta, com as impressões apoiadas
na sensibilidade. A linguagem, a mais próxima da realidade, da simplicidade, da
naturalidade possível, apresenta as vicissitudes da burguesia que rasgava os véus
idealizantes que ainda envolviam a ficção romântica. Os escritores realistas, então, se
dispunham a aceitar a existência tal como ela se apresentasse aos sentidos, sem
metáforas: tudo deveria ser visível, superficial – ao toque da mão –, pois na superfície
se alojava o sentido das coisas.
A literatura, então, passa a refletir o que há no interior de uma realidade
específica, sem subjetividades. Se havia algo de ruim na sociedade, isto servia de
tema para criar/recriar; tudo deveria vir da realidade circundante. Foi dessa maneira
que a pena de Machado de Assis criou/recriou Dom Casmurro.
1.3 DOM CASMURRO: OBRA REALISTA MACHADIANA
A literatura do período realista se apresenta como e com ferramentas para
sustentar críticas e reflexões, seja pela descrição de paisagens, de acontecimentos,
seja pela preocupação com o ser que compõe o cenário da ficção. A idéia de busca
de identidade percorreu os períodos do Realismo comprovando que as palavras
podem assumir a posição de testemunhos de críticas.
Machado, que se encontra dentre os escritores realistas que souberam
analisar a alma humana com seus requintes, em vez de apologia à paixão amorosa,
como outros ficcionistas, escreve travestindo o problema em personagens femininas,
defendendo, assim, a ambição de mudar, mudar de classe, de status, mesmo que
essa mudança custe à heroína sacrifícios no plano afetivo.
Numa sondagem profunda da sociedade burguesa do Rio de Janeiro,
Machado junta os dois processos da literatura: a pesquisa de valores espirituais,
22
num plano universal, e o conhecimento do homem e da sociedade num plano local,
como um eixo que se cruza na vertical e na horizontal, cujas coordenadas delimitam
um espaço não geográfico ou social, mas humano que os engloba e transcende.
A importância de Machado foi tanta para a literatura que ele é comparado a
grandes nomes, é o que se confirma quando ele é incluído no comentário que Bosi
(1994, p.168) faz a respeito dos melhores no cenário literário:
O supremo cuidado estilístico, a vontade de criar um objeto novo, imperecível, imune às
pressões e aos atritos que desfazem o tecido da história humana, originam-se e nutrem-se
do mesmo fundo radicalmente pessimista que subjaz à ideologia do determinismo. E o que já
fora verdade para os altíssimos prosadores Schopenhauer e Leopardi, não o será menos
para os estilistas consumados da segunda metade do século XIX, Flaubert e Maupassant,
Leconte de Lisle e Machado de Assis.
A filosofia implícita na obra de Machado é pessimista e céptica por ver o
homem como um ser corrompido, presa das forças malignas, do egoísmo, da
sensualidade, do ódio. Na gênese desse posicionamento há tendências latentes no
espírito do homem em direção às misérias humanas. E essa preocupação em definir
o homem e suas relações na vida social, de forma específica, é que o constitui como
diferente de muitos outros escritores. “Nenhum outro escritor foi tão longe na crítica
e denúncia do sistema social, da sua estrutura política e das relações familiares
sobre que se sustentava.”
12
Machado era um transfigurador da realidade. Para ele, a arte era ilusão,
verossimilhança, transfiguração do real, e a missão do artista era criar um mundo
especial, semelhante ao real, que despertasse uma ilusão da vida sem ser a vida,
que captasse a realidade em flagrantes. A introspecção e a sondagem psicológica
punham à mostra uma nova espécie de realidade, a que, com genialidade, Machado
soube, pela paciência com que aprendeu a investigar, aprimorar o instrumento expres-
sional, disciplinar o temperamento, a inspirão e a imaginação, unindo o passado, o
eterno e a tradição à novidade e à originalidade. Machado construiu uma verdadeira
12
Elódia Xavier, in Machado de Assis. Uma Revisão, p.112.
23
obra de arte, na qual predomina a realidade, o meio. Para ele, a verdade histórica
existia para ser transmutada em verdade estética e ética.
No leitor, Machado opera tanto movendo a emoção quanto despertando a
inteligência. Faz isso através de um penetrante e sagaz uso das forças analíticas
do intelecto. Em vez de cópia ou informação da realidade, de sensações físicas, o
que se nota em sua obra é o tom sugestivo de efeito imaginativo, criador de
atmosfera, de sentimentos e de emoções vagas, sutis, de repercussão duradoura
que permanece no leitor.
A preocupação de Machado com a estrutura, com a construção dos perso-
nagens, com o desenvolvimento da intriga, com o ponto de vista do narrador, e com
outros elementos e artifícios se faz para que se possa estabelecer uma tendência
realista, mais especificamente em Dom Casmurro, momento em que atinge a sua
plenitude artística. Quando conta a história de Capitu, Machado usa o processo de
narrador em 1.ª pessoa, deixando figurar as variações de sentimento do narrador e
não as dos outros personagens, ficando, assim, os fatos limitados ao que esse
narrador-personagem sentiu, viveu.
A temática de Dom Casmurro faz parte dos assuntos machadianos que
traduzem o sentimento trágico da existência: o pessimismo intnseco, a contradição
essencial do homem, o caráter absurdo e inseguro da vida, a volubilidade dos julgamentos
humanos, a crueldade, a inconstância do ser humano, a relatividade da felicidade, a
frivolidade e a natureza pérfida da mulher, a vaidade, o sensualismo, o sonho como
fuga à dura contingência terrena e enganosa natureza do amor, e a presença do
adultério sob vários aspectos, entre outros.
Especialmente em Dom Casmurro, Machado desenvolve o enredo numa
captação do estado de alma, no qual revela os finos dons de observador e de
analista – suas delicadas sondagens psicológicas. Essa obra é o seu romance mais
sofrido, mais humano. Bentinho e Capitu em posição ímpar, juntamente com os
outros personagens, não apresentam uma estrutura moral unificada, são seres
divididos consigo mesmos. E essa cisão interna entra no declive dos compromissos
e da instabilidade de caráter.
24
O livre-arbítrio está limitado não só pelos obstáculos que a natureza indi-
ferente oferece, mas pelas contradições e perplexidades internas; a duplicidade da
consciência moral é revelada a cada passo. Esses seres estão, de tal modo, enca-
deados no universo que um se utiliza, segundo as suas necessidades ou seu
capricho, daquele que está imediatamente inferior, enquanto que este último, sem
que possa alcançar ou compreender sequer os móveis da ação que padece, exerce
a mesma pressão arbitrária sobre outros, ainda menos classificados, que se acham
sob seu donio. Como exemplo dessa dominação, na análise, há de se mencionar
Capitu em posição superior quando incita Bentinho a não ir para o seminário; é ela
quem direciona as ações. Também Bentinho, no enlevo de ter sido traído, tenta se
vingar em seu filho, que está num plano imediatamente inferior. Bentinho tenta
contra a vida do menino quando é tomado pelo ciúme ao perceber que seu filho
tinha as feições do seu melhor amigo. Já, em posição inferior, se sente Capitu
quando é abandonada pelo marido na Europa. Essa relão se fezo intrincada que,
mesmo Bentinho se sentindo superior por tê-la abandonado, assume posição de
inferioridade quando sofre as amarguras de estar sem ela.
Em Dom Casmurro, Machado vai demolir todo o social no homem para
buscar a sua essência (por isso Bentinho é descrito em seu sentimento de dor, em
sua casmurrice), criando modelos que hão de sobreviver e inspirar a alma popular,
retificando a consciência e o caráter do coletivo. E isso faz com que, na contemplação
da verdade, não se perceba mais senão o absurdo e o mal da existência.
Na obra machadiana temos pontos relevantes que corroboram para a
validação da obra realista, como a problemática do tempo, pois mostra como o
romancista se antecipou a soluções mais modernas na captação do tempo psicológico.
E isso influi na estrutura, nos artifícios estilísticos, por isso sua obra acaba expres-
sando angústia temporal, o que pode ser visto como a busca pelo sentido da vida
através da experiência humana. Outro artifício seria o estilo indireto livre que possibilita
o processo de dissimulação, em que o autor procura se esconder atrás do personagem
e não dizer tudo, apenas sugerir.
25
No que diz respeito à mulher, Machado denuncia a condição de desigualdade.
Dom Casmurro rompe a barreira do tempo e escancara um novo comportamento da
mulher ainda completamente inaceitável para os paradigmas da época. Nessa obra
tem-se o privilégio de poder sondar atitudes variadas em situações inusitadas.
Situações estas que envolvem os representantes dos dois gêneros em pé de
igualdade (Bentinho e Capitu). A questão que aí se discute está relacionada à ética:
os saberes e o comportamento moral da mulher no século XIX.
As figuras femininas de Machado são seres complexos e fascinantes, de
carne e osso, vividos, retirados ou restituídos do mundo e que fazem parte de uma
narrativa psicológica, representando o que o indivíduo vive por si, na sua distância
interior, num movimento livre no tempo. “A mulher é sempre (...) um elemento
perturbante e incerto, um ser estranho e fascinante que acentua o trágico da vida,
porque é contraditória e surpreendente como a fatalidade. Tem um fluido inquietante, e
algumas são nitidamente condicionadas por um fator arbitrário e irracional que
escapa à definição, como Capitu” (
COUTINHO
, 1997, p.106).
Schüler
13
consegue exprimir toda essa fluidez com que a mulher machadiana
age, aparece, impõe-se. A importância e a sutileza dessas mulheres não poderiam ser
mais bem descritas: “As mulheres de Machado sugerem muito, mais do que dizem.
Adivinha-se o que vai no coração delas por atitudes, gestos, olhares, e nunca se tem
certeza de lhes ter desvendado os verdadeiros motivos nos sinais exteriores.”
Muitas mulheres participaram do processo de busca de se conhecer, de
querer saber as razões que as faziam menores que os homens; quais critérios que
embasariam atitudes machistas. Capitu pode ser considerada como mulher de
vanguarda por querer ser diferente de outras de seu contexto. Ela viveu experiências
inusitadas como refletir, num tempo em que à mulher não era dada a permissão de
“falar”, quanto mais de pensar! Em vez de ser subjugada é ela quem direciona
13
SCHÜLER, Donald. Teoria do Romance. São Paulo: Ática, 1989.
26
Bentinho, tanto que, ao ficar sem ela, ele se casmurra em si. Mas, para entender
esse feito de Capitu, é preciso saber em que situação social vivia a mulher:
“condenada” a viver no âmbito doméstico/privado enquanto ao público somente o
homem tinha acesso. A esse contexto se encaixa Sofia, de Rousseau, a mulher modelo
de qualidades e virtudes, a perfeita esposa e mãe; aquela que a sociedade admitia
como companheira ideal para o homem social. Faz-se necessária, então, uma
exposição sobre como a mulher rousseauniana deveria se comportar mediante as
normas de uma sociedade embasada em preceitos de submissão.
27
2 MULHERES, PORTAS ADENTRO!
A intenção deste título é provocar olhares para a situação da mulher, não
só nos séculos em análise, mas em tempos atuais. Por mais que se tenha “ganho”
liberdade no sentido de concorrer com o homem no mercado de trabalho, parado-
xalmente, em certo sentido, a mulher continua “confinada” ao âmbito doméstico, seja
para dar conta dos afazeres, seja para criar os filhos. Pior ainda, hoje, ela deve dar
conta do doméstico e do profissional e, não raras vezes, sozinha. Tenha ou não con-
quistado o mercado de trabalho, a função doméstica continua sendo atribuída à
mulher. O que se nota é que o tempo passou, mas continua sendo “natural” que os
homens queiram a mulher como refúgio para o cansaço do dia-a-dia. Ela é o “repouso
do guerreiro”, mas em que braços poderá ela também descansar?
Neste capítulo, o trabalho será o de comentar sobre as condições da
mulher modelo rousseauniana, assim como mostrar algumas discussões de filósofos
a respeito desse modelo de mulher confinada à esfera privada.
A caracterização da mulher como fêmea e a negação para todas as mulheres
dos princípios de individualidade fizeram com que se criasse o feminino como objeto
filosófico. Todas as mulheres são “a mulher” e tudo o que se afirme de uma delas é
válido para todas e para cada uma delas. Uma vez negados os princípios de
individualidade, inicia-se o “processo de fabricação da mulher como absolutamente
outro” (
VALCÁRCEL
, 1997, p.27). E a mulher passa a ser o resíduo natural, o ser em
estado p-potico, irracional, misterioso, enfim, algo com aparência humana que vive
sua obscura potência natural de anarquia dentro de uma cultura machista. Sob estes
conceitos surge a mulher ideal de Rousseau.
Esta imagem rousseauniana, embasada em aspectos desprezíveis, o que
torna a mulher desqualificada e a faz submissa, atravessou o século XVIII e
encontramo-la no século XIX, mesmo quando as relações público-privadas já não
eram as mesmas pelo fato de a mulher ter começado a sair de casa para trabalhar.
No entanto, nem por isso a mulher conquistou sua cidadania. Esta conquista é
28
recente, data, em boa parte do Ocidente, da Segunda Guerra. O direito de votar e
ser eleita, marco da cidadania, não garantiu, porém, às mulheres, igualdades como
autonomia, direitos sobre suas propriedades, sua família, seu domicílio, sua educação,
seu trabalho, seu matrimônio, sua herança; a mulher continua sem direitos políticos.
A democracia patriarcal construiu relativa igualdade entre os homens à custa do
rebaixamento das mulheres. E, para justificar tal desigualdade, afirmava-se que essa
desigualdade era essencial e constitutiva. Mesmo com todas as mudanças do pós-
guerra a mulher continuou sendo vista por sua “natureza” feminina e não pelo seu
potencial humano.
A necessidade de mão-de-obra barata era usada para suprir a demanda
em decorrência da Revolução Industrial. Concomitantemente, a sujeição aparecia
como condição para estruturar a sociedade. O contrato social, entendido por Rousseau
como a busca de condições para que a sociedade resulte na menos repressiva
possível, quanto à liberdade e à autonomia, permite que os indivíduos se submetam
voluntariamente ao Estado ou à outra legislação. Assim, a liberdade transforma-se
em obediência e em troca se ganha a proteção. As ações humanas obedecem,
então, à lógica: dominados e oprimidos pelos que estão em cima se compensam
oprimindo e dominando os que estão em situação inferior, por exemplo: o homem
pode oprimir a mulher, já que ela é tida como inferior.
Para Rousseau, sociedade não opressiva se fará quando se resolver a
tensão entre indivíduo e poder, e isto será possível quando o poder não for mais
alheio ao cidadão, senão ditado por uma vontade geral que representa vontades
particulares que compõem o todo social. Rousseau, porém, para compor essa
sociedade, necessita partir de um homem novo, virtuoso para sustentar esta sociedade
do Contrato Social.
Ao contrário dessa sociedade idealizada por Rousseau, já existia, porém, a
organizada a partir do sedentarismo. Com esse evento, a família aparece como
conseqüência da necessidade de vínculos afetivos entre os que viviam juntos. Por
isso, reconhece Rousseau, começou a desigualdade entre homem e mulher: ao dividir-
29
se o trabalho em função do sexo. Cada família, então, formou uma pequena socie-
dade em que as mulheres se tornaram sedentárias e se acostumaram a cuidar da
cabana e dos filhos enquanto o homem buscava subsistência.
A sociedade civil nasce em Rousseau quando os homens, impotentes para
fazer frente às novas necessidades criadas, juntam seus esforços para sobreviver. O
processo de socialização leva a um processo de dependência que, para Rousseau,
é negação da essência natural do homem.
Rousseau estabelece diferença entre economia geral ou política e economia
particular ou doméstica, afirmando que o Estado não tem a ver com a família, a não
ser que seus chefes devem procurar a felicidade. As regras da sociedade não são as
mesmas que regem a família. A autoridade do pai, estabelecida pela natureza, não
deve ser compartilhada com a mãe, porque é preciso que o governo seja único. A
realidade de um governo absoluto, estabelecido por natureza, não tem nada em
comum com a vontade geral que movia a decisão na sociedade civil. Mulher e
filhos estão sujeitos ao pai na sociedade familiar sem faculdades de apelação. O
pai impõe regras de conduta, alheias aos princípios liberais que constam no
Contrato de Rousseau.
A mulher retratada por Rousseau pertence à esfera privada dos sentimentos
naturais. As vantagens da cidadania, a proteção da lei, a igualdade, a representa-
tividade de sua vontade não são gozadas por ela, nem mesmo liberdades do “estado
natural” pré-social. A sujeição tem explicação teórica no modelo de relação sexual:
os dois concorrem para o mesmo fim de maneira diferente, um deve ser forte e ativo,
o outro (a mulher) passivo e débil.
A mulher, como esposa e mãe, deve ficar de fora da cidadania, porque há
necessidade de submissão absoluta ao homem, já que ela é definida como sendo
sentimento e desejo, deve atender, assim, às necessidades de afeto do homem. É a
partir de um cidadão não alienado (aquele que reconhece as leis) que se constrói a
sujeição da mulher. A ela as leis lhe são impostas sem mediação de sua vontade.
30
O pensamento dominante que tornou possível a prática de exclusão da
mulher se chamou misoginia romântica, que, funcionalmente, é uma prática
excessiva por ser uma resposta contundente contra o que a modernidade estava
buscando com seus ideais de vida. A misoginia romântica é a afirmação de que os
homens são genericamente superiores às mulheres. Seria uma superioridade natural
que corresponderia a uma inferioridade também natural. E isso se devia a traços
essenciais e divergentes tanto nos homens quanto nas mulheres, que eram facil-
mente subjugadas por sua natureza frágil. Em síntese: ser mulher deixou de ser
reconhecida por suas características morfológicas e visíveis e, sim, como fêmea da
espécie. A mulher guardava mais semelhança com outra fêmea do que com o seu
próprio par – o homem – a quem foi dada a razão para que fosse forte, o senhor que
devia ser satisfeito nos seus desejos pela mulher.
A mulher deveria ser orientada com severidade, pois a dependência era
condição natural da mulher: foi feita para obedecer. Sua liberdade devia ser restrita
para que não houvesse o perigo de ela se entregar a tipos de vícios já que era
inconstante no seu gosto pelas coisas. Devia, então, ser tratada com freio e
submetida ao julgamento do homem. A mulher rousseauniana devia ficar em casa e
cuidar exclusivamente do lar e da família e não se entregar a nenhum outro talento
que pudesse prejudicar os seus deveres de esposa e de mãe. Também não podia
ficar ociosa, pois este seria um defeito perigoso e dificilmente se curaria dele.
Rousseau admite que a ordem civil dependia do direito dos maridos sobre
as esposas, direito este que vem da natureza, da diferença de atributos naturais. “Ou
seja, as mulheres não são ‘indivíduos’ livres e iguais, mas súditos naturais”
(
PATEMAN
, 1993, p.84). Por isso as mulheres eram comandadas pelos pais e depois
pelos maridos. E, como a família representasse uma pequena pátria onde se
formava o bom filho, o bom marido, o bom pai, e desse império deveriam sair para
que fossem bons cidadãos, a mulher “reinava” ao se deixar comandar no que fazia.
(
PATEMAN
, 1993, p.148)
31
A situação de subordinação da mulher em relação ao homem é claramente
percebida em Emílio já que à mulher cabia o “dever ser”. Nesta obra Rousseau
afirma a situação de inferioridade da mulher e diz que a natureza dela é e deve ser
doméstica, dependente, passiva e débil para que o homem chegue a ser forte e cidadão
ativo. Para ele, a domesticação da mulher se obtém pela transformação dela em
esposa e em mãe, porque, como esposa, se torna dependente do homem, tendo como
dever fundamental agradar ao marido, atendendo suas necessidades particulares. E,
quanto às relações de mãe com os filhos, a ela cabe o dever de criá-los.
Partindo da idéia de que à mulher era dado o “direito” ao privado, o pensa-
mento a respeito da cidadania era de omitir os direitos da mulher. Essas qualidades do
“feminino” desenhavam, então, a mulher ideal para o contexto da misoginia romântica.
A mulher, modelo rousseauniana, aquela em estado de natureza, por isso
sem razão e sem sabedoria, não ficou só na ficção romântica, ela passou a
representar a mulher ideal, o modelo de mulher, aquela em desvantagem, porque,
enquanto o homem devia ser educado para compreender a estrutura da necessidade
e relacionar-se diretamente com ela usando a razão, a consciência, devia ser educada
para experimentar, através de um sistema de restrições, sua dependência de
convenções sociais. Em suma, a educação que a mulher recebia devia estar em
função dos homens: agradar-lhes, ser-lhes útil; fazer-se amar por eles, honrá-los
e criar seus filhos. A mulher devia, pela educação, aprender a ser doce e agradável ao
marido e aos filhos.
Não foi só Rousseau quem pensou assim! Com exceção de poucos
filósofos, a maioria deles assume uma postura paradoxal: reconhecer a igualdade de
todos os seres humanos e, ao mesmo tempo, negá-la para a metade do gênero
humano – às mulheres (
TOMMASI
, 2002, p.109). Essa negação de igualdade começa
por privar a mulher do âmbito público e condená-la ao privado.
32
2.1 PÚBLICO E PRIVADO
14
A restrição da mulher à esfera pública se devia a sua limitação de atuação
uma vez que seria inacessível a ela determinadas atividades por sua natureza frágil,
ou ainda, porque, se ela adentrasse na esfera pública, poderia ficar marcada como
não feminina.
Segundo Rousseau, o homem possui uma qualidade muito específica, a
respeito da qual não pode haver contestação, é a faculdade de aperfeiçoar-se, o que
é negado à mulher porque, universalmente falando, ela é subordinada pela identificação
dela com a natureza, conceito este que se entende ser cultural. Rousseau já afirmava
que a mulher era o selvagem a domesticar, em contraposição ancestral natureza-
cultura e como a plenitude originária e ideal. Ambos os sentidos estão presentes no
“bom selvagem” de Rousseau, porém quando o mesmo Rousseau se refere à
mulher, significa o estado pré-político – situação que antecede a aparição do cidadão
como homem racional que tem direito à liberdade e igualdade. Este estado de
natureza representaria o reino da necessidade e da desigualdade.
Carvalho comenta sobre essa idéia:
Sem dúvida, o termo homem empregado por Rousseau não tem o sentido neutro, (...)
refere-se exclusivamente ao sexo masculino. As mulheres, seres incapazes de transcender
sensações corporais, não podem ser consideradas como agentes livres, mas, ao contrário,
Rousseau as define como natureza. Mergulhadas no reino das necessidades primárias, as
mulheres, além de possuírem desejos insaciáveis são, ao mesmo tempo, fonte permanente
das paixões e das tentações do homem (
CARVALHO, 2002).
Rousseau não vê com bons olhos a situação social da mulher, considera
que a presença dela no público marca o alcance da decadência social. E quando as
14
Para um aprofundamento sobre esse assunto, o que não faz parte do escopo deste trabalho,
sugere-se Hannah Arendt em A Condição Humana ou Habermas em Mudança Estrutural da Esfera
Pública.
33
qualidades femininas passam a ser valores sociológicos, a sociedade pode
considerar-se depravada.
15
Desta forma, pela função que deve desempenhar, a mulher está fora da
esfera social. Deve sim estar voltada a fazer do filho homem um cidadão. É nessa
“relação de parasitismo” que o filho encontra sustentação para exercer sua
cidadania. Enquanto ela, por causa da função de esposa e de mãe, não tem lugar
nas atividades públicas. E é sobre este conceito de público e privado que se constrói
a função da mulher. O próprio conceito limita o lócus da família e o “mundo
contaminado” de fora.
Neste sentido, como menciona Cobo, a família representa para o homem
social e do sexo masculino um instrumento adequado para voltar a encontrar a
unidade perdida. O afeto da falia e a total sujeição da mulher adoçam os possíveis
conflitos que podem fragmen-lo. Essa família, composta essencialmente pela
mulher, deve proporcionar repouso e evitar conflitos para que o homem possa conter
a violência que pode emergir a qualquer momento e pô-lo em conflito. Por isso a
mulher deve ser condescendente e se deixar ser subjugada. Deverá fazer-se
agradável em vez de provocá-lo; sua violência deve estar nos seus encantos.
16
Aspectos simbólicos marcam critérios de atuação, expectativas, virtudes,
enfim, um mundo que corresponde ao feminino como sinônimo de privado,
intimidade, devoção, discrição, passividade, sacrifício. O privado não corresponde
somente a uma divisão de trabalho, mas a uma divisão de mundo. O limite da esfera
15
La presencia de la mujer em lo público marca el alcance de la decadencia social. (...) cuando las
cualidades femeninas pasan a ser valores sociológicos, la sociedad puede considerarse
depravada” (por
PETIT
, 1994).
16
En este sentido, la familia es para el hombre social y varón un instrumento adecuado para volver a
encontrar la unidad perdida. El afecto de la familia y la total sujeición de la mujer dulcifican los
posibles conflictos que fragmentan al individuo (...) Pese a que la familia debe proporcionar reposo
y evitar conflictos al varón, no siempre cumple la función deseada. La violencia, soterrada y
subyacente, puede emerger en cualquier momento y devolver el conflito al varón: ‘Si la mujer está
hecha para complacer y para ser subyugada, hacerse agradable al hombre en lugar de provocarlo;
su violencia está en sus encantos’” (
COBO, 1995, p.244-245).
34
privada se estabelece, supostamente, em virtude da biologia da mulher. No
entanto, sabe-se que o biológico não impõe tipos de atitudes, modo de perceber e
de fazer, forma de comportar-se. Mas o que se sabe é que valores como Razão,
Utilidade e Virtude restringiram a mulher à esfera privada e à imposição de seu
destino: portas adentro!
Petit (1994, p.116-117) comenta que a Razão seria o valor contrário à
natureza e o primeiro a manter a mulher fora da esfera pública: Razão sucede a
negação do caráter político da mulher (e, portanto, plenamente humano) e seu
conseqüente confinamento ao mundo privado da Necessidade. A mulher está fora
da Razão apesar de que uma das características da razão ilustrada é precisamente
a pretendida universalidade com que a comportem todos os sujeitos humanos. Há
um empenho da razão patriarcal em expedir marcas diferentes a uma parte da
espécie humana que tem por objetivo estabelecer supostas descrições de modali-
dades de ser. Enquanto a Razão se considera a central humana, a mulher não está
definida como Razão: para ela se dá a outra “modalidade de ser”, a outra categoria
de diferencial. À mulher se aplica a categoria da Natureza como mecanismo
conceitual discriminatório.
17
A mulher, para Rousseau, é natureza porque está sendo considerada
como sexo, paixão cega a incitar os desejos do homem. No entanto, a libido é algo
que deve ser refreado, controlado, e é o marido quem deve fazê-lo para que a
mulher seja mãe virtuosa e esposa sacrificada. Ela também é natureza porque é
mãe e sente paixão pelos seus filhos e por ter a capacidade de tê-los, mesmo que
17
Razón, sucede la negación del carácter político de la mujer (y, por lo tanto, plenamente humano) y
su consecuente confinamento al mundo privado de la Necesidad. A mujer está fuera de la Razón a
pesar de que uma de las características de la razón ilustrada es precisamente la pretendida
universalidad con que la comporten todos los sujetos humanos. Hay em empeno de ‘la razón
patriarca’” (...) em ‘expedir unas marcas diferenciales’ a uma parte de la espécie humana que
tienen por objeto estabelecer presuntas descripciones de modalidades de ser. En cuanto la Razón
se considera lo céntricamente humano (...) la mujer no está definida como Razón: para ella se
acude a outra ‘modalidad de ser’ a outra categoria diferencial. A la mujer se le aplicará la categoria
de Natureza como ‘mecanismo conceptual descriminatorio’”.
35
nunca os tenha. É por essa “relação metonímica”, como menciona Petit (1994,
p.116), que tem com o filho, que é também considerada infantil. Não podendo,
então, ela, fazer parte do público, pois, se sair da esfera privada, uma desordem
pode se instaurar no âmbito político. Assim, à mulher são dadas fuões queo
pertencem à vida pública.
Pateman (1993, p.152) ilustra com um posicionamento de Rousseau sobre
a mulher:
Rousseau enfatiza que as mulheres são incapazes de pensar de maneira adequada (e, de
qualquer modo, deve-se impedir que elas o façam). Princípios abstratos e verdades
especulativas estão reservadas aos homens. As mulheres devem estudar as mentes dos
homens aos quais estão submetidas, para que saibam como se comunicar com seus
senhores.
O segundo valor a manter a mulher fora do público é a virtude. Explica
Petit, a mulher virtuosa é o ideal que define, em seu dever, que deve ser “como
Deus manda”, neste caso, “como a razão manda”. A mulher virtuosa é aquela que
vence a paixão, domina o desejo sexual e se contenta com a domesticação e com o
seu “sitio” dentro da esfera privada familiar. Uma mulher boa, sob o ponto de vista
moral, se define pela relação que tem com seu corpo. A mulher moral é a que cultiva
a virtude principal da castidade, quer dizer, aquela que domestica seu sexo acima do
amor e a serviço dos outros, filhos e marido, principalmente. Por outro lado, se a
mulher não cultiva o valor da virtude, da moralidade, pode ser considerada perso-
nificação do mal, fonte das paixões e dos desejos. Por isso é capaz de converter os
homens em escravos, uma vez que a natureza lhe concedeu mais facilidade para
excitar desejos (
PETIT
, 1994).
Sendo assim, o homem pode contar com o poder da repressão contra os
poderes de sedução da mulher, pois é preciso reprimir a sexualidade e o ser
apaixonado feminino e orientá-lo através da exaltação de virtudes domésticas,
fazendo, assim, a mulher tornar-se exclusivamente esposa e mãe. A mulher virtuosa
é mãe e esposa, cujo locus é a casa e o dever e razão de ser é atender os filhos,
ocupar-se da economia doméstica e, sobretudo, servir de repouso ao cansado
36
cidadão-produtor que é seu marido. A decência e a moralidade da casa são
sustentadas pela virtude da mulher que contrasta com a imoralidade de fora, ou
seja, o âmbito privado seria o ninho das virtudes domésticas e o público, arena do
vício e da prostituição. Enfim, a mulher virtuosa é a que consegue controlar suas
paixões sexuais.
Cobo explica que a paixão sexual das mulheres é contemplada por
Rousseau como uma poderosa força dificilmente controlável. A regulação desse
desejo ilimitado se realiza no marco familiar patriarcal cujo objetivo é a produção de
formas de comportamento que normalizem o desejo sexual feminino para que o
homem possa exercer plenamente sua cidadania e alcance definitivamente sua
unidade psíquica. Apesar de toda retórica sentimental e da apelação de sentimentos
e afetos, Rousseau contempla a relação da parceira no matrimônio como uma
relação, de certo modo, sadomasoquista. A relação entre homem e mulher no
matrimônio é concebida por Rousseau como uma permanente luta, parece um
combate apoiado no binômio força-resistência. A obrigação da esposa é mostrar
uma resistência que não tenha mais valor que estimular ao marido para que alcance
a vitória total. A repetição destas vitórias do homem na relação matrimonial reforça
seu papel de sujeito de poder e trata de combater sua insegurança e ansiedade. No
matrimônio, fica determinado que a sujeição da mulher pelo homem conduzem-na à
virtude. O exercício da virtude pela mulher rousseauniana culmina com a mater-
nidade. A mãe deve derramar ternura e amabilidade por sobre seus filhos
18
.
18
“La pasión sexual de las mujeres es contemplada por Rousseau como una poderosa fuerza
difícilmente controlable. La regulación de esse deseo ilimitado se realiza en el marco familiar
patriarcal y su objetivo es la produción de formas de comportamiento que normalicen el deseo sexual
femenino a fin de que el varón pueda ejercer plenemente su ciudadanía y alcance definitivamente
su unidad psíquica. Pese a toda la retórica sentimental y la apelación a sentimientos y afectos,
Rousseau contempla la relación de la pareja en el matrimonio como una relación, en cierto modo,
sadomasoquista. (...) la relación entre el varón y la mujer en el matrimonio es concebida por
Rousseau como uma permanente lucha; aparece como un combate, apoyado en el binômio fuerza-
resistencia. La obligación de la esposa es mostrar una resistência que no tenga más valor que
estimular al marido para que alcance una victoria total. La repetición de estas victorias del varón en
37
O outro valor a manter a mulher fora da esfera pública seria o da utili-
dade
19
. Para Rousseau, a utilidade social é motivo para manter a mulher na esfera
privada sob a supervisão do marido e afastada dos assuntos públicos. Porque, em
primeiro lugar, existe o interesse da espécie: a mulher deve trazer ao mundo o maior
número de filhos possível. Em segundo lugar, a mulher deve estar confinada num
espaço privado onde possa ser vigiada pelo marido e para assegurar que os filhos
sejam legítimos. E, por fim, a utilidade social da mulher se mede em razão de suas
virtudes como mãe do cidadão: a mulher mantém a ordem familiar necessária para o
desenvolvimento do mundo público e político. Petit completa dizendo que sem a
mulher na esfera privada que vele pela manutenção e pela moral doméstica dos
futuros cidadãos não se concebe o herói livre e racional rousseauniano: sem Sofia
doméstica não existiria o Emílio cidadão. Para que surja o cidadão na sociedade, é
indispensável que a mulher fique em sua casa.
20
Por outro lado, os homens, em sendo chefes de família, devem ter acesso
aos corpos das mulheres, uma vez que estes representam a “natureza” a ser controlada
para que a ordem social seja mantida. E já que as mulheres são incapazes de
desenvolver a moralidade política necessária aos participantes da sociedade civil, são
excluídas da condição de indivíduos livres e iguais; sua utilidade social se resume em
criar os filhos e cuidar do marido.
Em Rousseau, a família é o que embasa o âmbito privado que, por sua vez,
sustenta o âmbito público. A esfera privada seria o espaço em que se controlaria,
la relación matrimonial refuerza su papel de sujeto de poder al tiempo que trata de combatir su
inseguridad y ansiedad (...) Se há señalado que la sujeción y el control de la mujer por parte del
varón en el matrimonio conduce a la mujer a la virtud. (...) El ejercicio de la virtud de la mujer
rousseauniana culmina con la maternidad. La madre debe derramar ternura y solicitud hacia sus
hijos” (
COBO, 1995, p.246-245) .
19
O útil se consagrou como ética e critério de atuação no sistema utilitarista de Bentham: a maior
felicidade possível para o maior número de indivíduos possível.
20
Sin la mujer em la esfera privada que vele por el mantenimiento y por la moral doméstica de los
futuros ciudadanos – sin ser ella misma ciudadana –, no se concibe em el héroe libre y racional
rousseauniano: sin la Sofía doméstica, no existiria el Emilio. Para que surja el ciudadano em la
sociedad, es indispensable que la mujer se quede em su casa” (
PETIT, 1994, p.128).
38
neutralizaria e transformaria o potencial perigoso e mau que poderia se encontrar na
natureza feminina – possibilidade de a mulher se rebelar contra uma sujeição
eticamente ilegítima –. O cidadão rousseauniano não pode ser concebido sem a
família patriarcal, pois somente juntos e unidos pelo matrimônio, os dois sexos
adquirem a perfeição moral e se convertem em unidade. Segundo Cobo, Rousseau
acredita nessa complementaridade como condição de possibilidade da existência do
matrimônio. Se houvesse igualdade, haveria conflitos que poderiam pôr em questão
a sobrevivência do esquema doméstico e político patriarcal. A teoria da comple-
mentaridade dos sexos em Rousseau corresponde à complementaridade da família
e do Estado. Do mesmo modo que a família é o suporte estrutural do Estado, a
mulher constitui o fundamento da autonomia moral do homem. Do mesmo modo que
os sexos não concorrem à unidade moral da igualdade, senão à autonomia do
homem e à sujeição da mulher, assim a família e o Estado repousam sobre os
mesmos valores. A teoria do Estado de Rousseau se organiza em torno da defesa e
salvaguarda da liberdade e da igualdade dos cidadãos (homens) e a família na
concentração da autoridade do esposo e na completa sujeição da mulher.
21
Essa concepção de família se faz de forma que a privacidade não esteja
em oposição à sociedade, senão como complemento indispensável e necessário. Da
mesma forma que se crê na complementaridade dos dois sexos, assim o é com os
21
Rousseau cree en la complementariedad de los sexos como la condición de posibilidad de la
existencia del matrimonio. Si entre los dos sexos, en lugar de complementariedad, hubiese
igualdad se producirían conflictos que pondrían en custión la supervivencia del esquema doméstico
y político patriarcal. (...) La teoría de la complementariedad de los sexos en Rousseau se
corresponde a su vez con la complementariedad de la familia y del Estado. La unión de los sexos
se superpone con la unión de las dos esferas (pública y privada) en una unidad moral superior. Del
mismo modo que la familia es el soporte estructural del Estado, la mujer constituye el fundamento
de la autonomia moral del varón. (...) Del mismo modo que los sexos no concurren a esa unidad
moral desde la igualdad, sino desde la autonomia del varón y la sujeición de la mujer, la familia y el
estado tampoco reposan sobre los mismos valores y normas. (...) La teoria del Estado de
Rousseau se organiza en torno a la defensa y salvaguardia de la liberdad y de la igualdad de los
ciudadanos (varones) y la familia en la concentración de la autoridad del esposo y en la completa
sujeición de la mujer” (
COBO, 1995, p.242-243).
39
âmbitos público e privado. Ambos os espaços se necessitam mutuamente, sendo
que o cabeça da família é, ao mesmo tempo, um cidadão, e a família só se relaciona
com a sociedade através de seu chefe. Rousseau não deixa dúvida quanto à deno-
minação do homem no seio de família: o homem não só é o sujeito político como
também é o sujeito do espaço privado. Em ambos os espaços a legitimidade do poder
repousa sobre sua qualidade de sujeito.
22
A sociedade de Rousseau repousa sobre o conceito de virtude. O problema é
que ela adquire significados diferentes para cada gênero. O homem alcança virtude
ao exercer a cidadania, e a mulher ao desempenhar as funções de esposa e de
mãe. Para Cobo a família rousseauniana atua como suporte material e ideológico
básico do Estado. O sujeito da família é, sem dúvida, o homem, porém a família é o
âmbito feminino por excelência. A função da mulher como transmissora dos valores
políticos e morais é um traço fundamental deste ideal familiar patriarcal. A mulher
tem a tarefa de educar o filho para que ele possa exercer, no futuro, a sua cidadania.
No entanto, precisa da mãe para que lhe ensine o sentimento do estado de
natureza: a piedade, que será transportada ao espaço público quando se converter
em cidadão.
23
Quanto a implicações da teoria moral e política, Young (1987) menciona
que o individualismo pode ser constituído mediante o enriquecimento comunicativo
intersubjetivo das qualidades e realizações: somente através da vida política o
22
“El varón no solo es sujeto político, sino que también es sujeto en el espacio privado. En ambos
espacios, la legitimidad del poder reposa sobre su calidad de sujeto” (
COBO, 1995, p.249).
23
La familia rousseauniana actúa como el soporte material e ideológico básico del Estado. El sujeto
de la familia es, sin duda, el varón, pero la familia es el âmbito femenino por excelência (...) La
función de las mujeres como transmisoras de los valores políticos y morales es un rasgo
fundamental de este ideal familiar patriarcal. La asignación a las mujeres de la tarea de educar a
los hijos para ejercer en el futuro la ciudadanía reposa en la idea de que la mujer es la portadora de
la piedad. Las mujeres, a través del ejercicio de la maternidad hacen posible que los niños recuperen
esse sentimiento del estado de natureza. Una vez interiorizada, la piedad será transportada al
espacio público cuando los hijos de la familia patriarcal se conviertan en ciudadanos”. (
COBO,
1995, p.249-250)
40
indivíduo torna-se capaz de concretizar suas capacidades. A mulher, em não
fazendo parte da vida pública e política, se acha excluída, e isso contradiz a promessa
democrática liberal de emancipação e igualdade universais. A respeito de uma
sociedade não opressiva, continua Young, só será possível quando não houver
tensão entre indivíduo e poder. É necessário que se tenha uma sociedade em que
se faça valer a vontade geral.
2.2 IMPARCIALIDADE
As Revoluções Francesa e Americana abriram espaço para a filosofia
política com o pacto entre iguais. No entanto, em nenhum desses momentos a
mulher foi reconhecida como igual.
Uma ética emancipatória deve revelar uma concepção de razão normativa
que não oponha razão à natureza. O ideal de imparcialidade exprime a lógica da
identidade que nega e reprime a diferença. Esse ideal de razão imparcial e universal
gera um antagonismo entre razão e desejo ou afetividade. A ética moderna tenta
caminhar na direção de refletir racionalmente, por exemplo, se o conceito de
imparcialidade for analisado, percebe-se que se esbarra em outros conceitos que
só acumulam mais dúvidas: imparcialidade pode significar ser justo, mas, em
relação a quê?
Conforme Young (1987, p.69-70), o conceito de imparcialidade sem considerar
necessidades e desejos seria:
Imparcialidade designa um ponto de vista da razão que fica à parte de quaisquer inte-
resses e desejos (...) significa ser capaz de enxergar o todo, de ver como todas as
perspectivas e interesses particulares em dada situação moral se relacionam mutuamente
de um modo que, por causa de sua parcialidade, cada perspectiva não pode ser vista a si
própria (...) O ideal de imparcialidade exige construir o ideal de um eu abstraído do
contexto de quaisquer pessoas reais: o eu deontológico não está comprometido com
quaisquer fins particulares, não tem história particular, não é membro de comunidade
alguma, não tem corpo.
No entanto, esse ideal é ilusório. A dicotomia entre razão e desejo surge na
teoria política, na distinção entre o domínio público universal da soberania e do Estado,
por um lado, e, por outro, no domínio privado das necessidades e desejos.
41
A filosofia de Rousseau tem como paradigma de público cívico não a
institucionalização que reordena a vida social numa rígida divisão de público e
privado, depois da reação de um público formado por homens de quaisquer classes
e por mulheres aristocráticas que discutiam negócios do Estado em casas de café,
em salões, teatros, no século XVIII, mas a de um Estado que refreava o desejo, o
sentimento de particularidade e interesse por leis impostas pela ameaça de castigo.
A respeito dessa separação entre público e privado, Young (1987, p.73) escreve:
A teoria política normativa e a prática política modernas têm por objetivo encarnar a
imparcialidade no domínio público do Estado. Como a imparcialidade da razão moral, esse
domínio público (...) atinge a generalidade pela exclusão da particularidade, desejo,
sentimento e aqueles aspectos da vida associados com o corpo. Na teoria e prática
políticas modernas esse público consegue uma unidade em especial pela exclusão de
mulheres e outros que se relacionam com a natureza e o corpo.
As mulheres são excluídas por serem identificadas e representarem senti-
mentos, pois a oposição da razão deontológica entre dever moral e sentimento
desconhece o papel dos sentimentos. E, assim, as decisões morais fundadas em
considerações de simpatia, cuidado e necessidades são definidas como não racionais,
não objetivas, meramente sentimentais contrário à racionalidade moral. Young, sob
o ponto de vista dos feministas, comenta:
Os feministas mostraram que a exclusão teórica das mulheres do público universalista não é
mero acaso ou aberração. O ideal do público cívico exibe uma vontade de unificar, e exige a
exclusão de aspectos da existência humana que ameaçam dispersar a unidade fraternal de
formas retas e verticais, especialmente exclusão de mulheres. Dado que o homem como
cidadão exprime o ponto de vista universal e imparcial da razão, alguém tem que cuidar de
seus desejos e sentimentos particulares (grifo nosso) (
YOUNG, 1987, p.73).
Expulsando desejo, afetividade e necessidade, a razão deontológica os
reprime, e põe moralidade em oposição à felicidade. A função do dever é dominar a
natureza inferior, e a tarefa da razão é controlar e censurar o desejo. Para Rousseau
a natureza sensível e carente do homem é ordenada no domínio privado, do qual as
mulheres são as adequadas guardiãs morais. E, por essa mesma função, a mulher é
excluída da vida pública para que a formação familiar seja protegida.
42
Young (1987, p.76), expõe essa visão rousseauniana sobre a exclusão
“necessária” das mulheres:
No esquema social (...), as mulheres devem ser excluídas do domínio público da cidadania
porque são as zeladoras da afetividade, do desejo e do corpo. Permitir apelos a desejos e
[a] necessidades físicas para motivar debates públicos prejudicaria a deliberação pública
pela fragmentação de sua unidade. Além do mais, mesmo no seio do domínio doméstico,
as mulheres devem ser dominadas. Sua sexualidade perigosa e heterogênea deve ser
mantida casta e limitada ao casamento. Impondo a castidade às mulheres manter-se-á
cada família como uma unidade distinta, evitando o caos e a mistura de sangue que seria
produzida por filhos ilegítimos. Essas mulheres castas e confinadas podem ser então as
adequadas zeladoras do desejo dos homens, ao moderar seus impulsos potencialmente
desagregadores através da educação moral. O desejo dos homens pelas mulheres (...)
ameaça despedaçar e dispensar o domínio racial universal do público, bem como romper
a nítida distinção entre público e privado. Como guardiãs do reino privado da necessidade,
do desejo e da afetividade, as mulheres devem garantir que os impulsos dos homens não
os afastem da universalidade da razão. Ademais, a pureza do lar cuidado pela mulher há
de moderar os impulsos possessivamente individualistas do domínio particularístico dos
negócios e do comércio, o qual, como a sexualidade, constantemente ameaça explodir a
unidade da sociedade sob o guarda-chuva da razão universal.
A idéia de cidadania igualitária atinge unidade porque exclui particulares. A
política emancipatória, ao contrário, deve fomentar uma concepção de público que,
em princípio, não exclua ninguém, nem aspectos das vidas das pessoas. O significado
de público é o que é aberto e acessível. É qualquer lugar a que se possa ter acesso.
Assim como poder contestar, discutir, participar, comunicar questões quanto a valor
moral ou desejabilidade humana de uma instituição ou prática cujas decisões
atingem um grande número de pessoas.
Por outro lado, há também a necessidade de se reconhecer a mulher neste
contexto como ser humano, capaz de fazer escolhas e não como alguém a ocupar
um lugar já designado por homens. Precisa-se buscar uma forma de estrutura social
que agregue valores às funções desempenhadas por mulheres e que permita a elas
livre arbítrio quanto à posição a ocupar na sociedade. Carece desmistificar a imagem
de que, pelo fato de o homem e a mulher serem distintos no corpo, isso possa
representar obstáculo para a igualdade. Pois, como já disse Poulain de La Barre
43
(1984), a diferença anatômica é irrelevante; o fundamental é que os dois sexos têm
em comum o espírito e esse não é marcado pelo sexo.
O próximo seguimento terá como objetivo evidenciar, por meio de ações, por
mais “quietas” que possam parecer, executadas por Capitu, no seu enlevar de menina-
mulher, que a literatura pode assumir uma função interessante: oferecer meios para se
refletir sobre as condições humanas, aqui especificamente, as da mulher.
44
3 CAPITU: A ANTI-SOFIA
Neste capítulo pretende-se analisar o perfil da mulher a partir das perso-
nagens Capitu da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Sofia, do livro Emílio
ou Da Educação, de Jean-Jacques Rousseau. Por um lado, tem-se Capitu que,
transgredindo a ordem estabelecida, extrapola o seu momento histórico e mostra-se
autônoma no seu fazer história. Por outro, Sofia, a mulher perfeita, aquela que deve
ser o repouso do guerreiro, a guardiã da moralidade, a natureza pura, a sexualidade,
a que existe porque é vista pelos outros.
Enquanto Emílio traz a marca da repressão e submissão, Dom Casmurro
traz a “marca inconfundível de uma pessoa humana, na sua trivial originalidade”
(
COUTINHO
, 1997, p.109). Este romance apresenta indícios de libertação, o que
pode ser percebido no comportamento de Capitu. Por isso a obra oferece situação
privilegiada para se fazer uma reflexão ética feminista.
Parece que Machado premeditou sua criação mais popular Capitu – menina
de “olhos oblíquos e dissimulados” ou mulher dos “olhos de ressaca” –, contrariando
e indo além do que a teoria literária propõe. A teoria diz que, como escreve
Lorenski
24
, quando o autor compõe, ele, através das personagens, apresenta uma
visão de mundo que se rompe no confronto das personagens. O próprio autor,
fazendo uso de sua liberdade, manipula os personagens para que esse confronto
aconteça, resultando daí o protagonista e o antagonista que discutem e agem conforme
visões de mundo vigentes na sociedade retratada. E é desse desacordo entre ações
e falas dos personagens que nascem, crescem e se desenvolvem os conflitos. Ao
final da saga, os protagonistas hão de convencer o opositor, ou abrir mão da posição
adotada para que se chegue a um acordo final, melhor que a posição inicial. Dom
Casmurro quebra essa estrutura teórica e põe as duas figuras centrais (Bentinho e
Capitu) ora como protagonistas ora como antagonistas.
24
Nelson Lorenski. Tabalho sobre teoria do romance não publicado.
45
Capitu, desde o início, mede forças com Bentinho para ocupar lugar de
protagonista. E ela consegue destaque ao mascarar pela dispersão dos atos e das
palavras; ultrapassa o individual, deixando vir à tona interesses do gênero feminino.
O confronto entre Capitu e Bentinho acontece e não há um desfecho. Capitu não
convence seu opositor (Bentinho) nem ele abre mão de sua posição adotada na
saga dos protagonistas. Capitu também se mantém na disputa pelo papel principal.
Daí o impasse e o triste fim para os dois; não há protagonista versus antagonista, e,
ao mesmo tempo, os dois exercem o duplo papel de ser protagonista e/ou antagonista.
A personagem Capitu é analisada para que se reflita sobre as “capitus” do
presente. Ela, como muitas, ainda hoje, para conseguir “status de mulher”, camuflava-
se na fragilidade e na inocência de menina-fêmea, como se olhasse por uma “tela de
burca” para acompanhar os movimentos do mundo e lutar pela desestabilização da
hierarquia entre os gêneros homem e mulher. Talvez assim o fizesse porque ainda
lutava contra sua própria visão preconceituosa, como bem o disse Poulain de La
Barre (1984): as mulheres também não escapam à visão preconceituosa sobre o seu
próprio sexo: consideram-se a si mesmas como incapazes e aceitam como justa sua
situação de subordinadas. Vêem-se a si mesmas como os homens as vêem e com
base em idênticos preconceitos. Acreditam que têm menos espírito que os homens,
e que devem, em tudo, ser inferiores a eles, como na realidade o são.
Na sua luta de convencer-se, Capitu, na simplicidade de suas atitudes
monossilábicas, tecidas pela mão do “mestre”, rascunhava a emancipação da mulher
sem se importar se outra mulher compartilhava com ela tal façanha no seu palco de
sutilezas! Esses indícios que Capitu ia deixando denunciavam, no decorrer da trama,
que os pequenos acontecimentos podiam fazer parte de uma realidade, não só no
tempo da escritura, mas também na atualidade: a aproximação de Escobar (repre-
sentante do desconhecido, do diferente, do sonho) à família de Bentinho; a morte de
Escobar; a atitude de Capitu perante o cadáver; o filho que poderia não ser de
Bentinho; o fecho da pequena tragédia em que alguns se sacrificam para o bem-
estar e gáudio de outros.
46
Não é difícil perceber indícios de que Capitu agia diferente de seu tempo,
por exemplo, o fato de ela não ter como descrição, no seu cotidiano, situações de
envolvimento com seu filho Ezequiel, contrariando o que se esperava para a época:
enaltecimento da mulher como mãe. Rousseau expressa o paradigma da mulher
perfeita afirmando que “a atração da vida doméstica [era] o melhor contraveneno
para os maus costumes. O aborrecimento das crianças, (...) torna-se agradável (...) e
os cuidados domésticos tornam-se a mais cara ocupação da mulher” (
EMÍLIO
,
p.21).
25
Mesmo que fosse esse o pensamento que predominava sobre a mulher,
Capitu não dá mostras desse comportamento. Não que ela não tenha sido boa mãe
e esposa, mas o seu foco principal não era sê-lo, como mandava o pensamento
rousseauniano.
A mulher perfeita devia ser passiva e fraca em relação ao homem. Sua
função era de agradar ao homem e, pelos seus encantos, deveria escravizá-lo.
Nesse jogo amoroso, o equilíbrio acontecia porque, enquanto ele era dotado de
razão para governar as paixões, ela o era de pudor para conter seus (os dela) desejos
ilimitados. Capitu, ao contrário disso, mesmo mantendo um relacionamento amoroso
com Bentinho, mostra-se autônoma nas suas decisões e desejos.
Falando de amor, Rousseau distingue o moral do físico. O físico seria o
desejo que leva um sexo a unir-se a outro. O moral é o que determina esse desejo e
o fixa num só objeto ou que faz com que se tenha por esse objeto um grau bem
maior de energia; seria um sentimento artificial, um costume social celebrado com
habilidade e cuidado pelas mulheres. Havendo, pois, condições para que essa
relação homem/mulher possa acontecer:
(...) enquanto o sexo ‘forte e ativo’, pela razão consegue tornar-se superior às tentações, a
mulher a elas sucumbe na maioria das vezes, pois o precário freio do pudor não é
suficiente para controlar os desejos. A fraqueza e a passividade da mulher evidenciam-se,
assim, para além do corpo físico, na incapacidade para moderar seus desejos insaciáveis.
25
Neste capítulo, em vez do autor, citar-se-á a obra seguida pela página, a saber: Dom Casmurro e
Emílio.
47
Isto significa, de acordo com a visão de Rousseau, que, por não possuírem autodomínio,
as mulheres não são seres livres e, por esta razão, encontram-se aquém da esfera da
moralidade, imersas no reino da necessidade e da natureza (
CARVALHO
, 2002).
Isso significa dizer que a mulher não se encontra no mesmo estado de
evolução. A desigualdade se daria porque ela estaria em estado de natureza,
enquanto o homem já pertenceria ao estado mais evoluído – o da razão. No entanto,
não há de se questionar essa desigualdade, porque a resposta estaria na definição
da própria palavra natural, e menos ainda há de se procurar a ligação entre as duas
desigualdades, pois
(...) seria perguntar se aqueles que mandam valem necessariamente mais do que os que
obedecem e se a força do corpo ou do espírito, a sabedoria e a virtude sempre se
encontram, nos mesmos indivíduos, na proporção do poder ou da riqueza: tal seria uma
boa questão para discutir entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não
convém a homens razoáveis e livres, que procuram a verdade (
ROUSSEAU, 1978, p.235) .
Poder-se-ia entender, então, que o estado de natureza a que Rousseau se
refere, quando do discurso sobre o homem em estado “selvagem” seria o mesmo em
que a mulher se encontra? A mulher não teria, então, “evoluído”? Ou há “estados de
natureza” diferentes para cada gênero? Parece, pelas características relativas ao
homem
26
, que não
27
.
Para Rousseau esse conceito de natureza tem valoração diferente quando
aplicado à mulher. É o que Carvalho (2002) menciona:
(...) ao ser aplicado à mulher, [este conceito] sofre uma transformação valorativa em
relação ao mesmo conceito quando referido ao hipotético estado de natureza de
Rousseau. (...) Quando aplicado à mulher, não tem a conotação positiva de plenitude
originária e ideal, (...) é outra: a mulher é natureza no sentido de representar aquilo que se
opõe à razão e que precisa ser dominado e controlado (...); [representa] o reino da
necessidade e da irracionalidade.
26
“Mas o homem selvagem, vivendo disperso entre os animais e vendo-se desde cedo na iminência
de medir forças com eles (...), fez a comparação e, verific[ou] que (...) ultrapassa em habilidade (...)
um selvagem robusto, ágil, corajoso como todos eles o são” (
ROUSSEAU, 1978, p.239).
27
Essa questão referente a tipos diferentes de natureza fica para um próximo trabalho.
48
Capitu, nas suas ações, deixa claro que não pertence a esse estado de
primitividade. Ela rompe o paradigma de mulher submissa e comanda a narração
desde o seu início. Como ilustração pode-se ter quando ela se mostra contrária à
decisão de Bentinho ir ao seminário, ou quando, vista pelos olhos do narrador
(homem!), ela refletia.
Ao criar Capitu, Machado não a insere no contexto em que o conceito
rousseauniano é válido, ele se calca num tempo fictício, futurista. Quer dizer, a
roupagem, o conflito e a época são do momento da narrativa (século XIX), mas o
tempo dentro das ações de Capitu não pertence à época em que se desenrola a
narrativa. Por isso pode-se dizer que Capitu é mostra de mulher na vanguarda,
porque, mesmo que o protótipo de dama do século XIX fosse o da mulher idealizada
em termos de delicadeza e encanto, passiva, sexualmente falando, e, emocionalmente
instável, ela desbanca esse modelo e dá indícios de libertação dessas peias sociais
e domésticas. E vai mais longe, insinua o adultério, reforçando a idéia de leviandade
moral e crise ética, mesmo que seja a moral do herói da exceção (mulher). Ela
rompe com a ordem estabelecida, delimitando uma fase de heróis, amor-fatalidade,
natureza-refúgio, mulher-diva em nosso contexto histórico-literário.
De outro lado, tem-se o incrível Rousseau que diz ainda que, quanto à
conseqüência do sexo, “o macho só é macho em certos momentos, a fêmea é fêmea
durante a vida toda, ou, ao menos durante a sua mocidade; tudo a leva sem cessar
a seu sexo” (
EMÍLIO
, Livro V, p.428). E é por isso que a mulher rousseauniana tem
como destinação fazer filhos, pois é de sua natureza ser mulher e ser mãe. Para ela
não existe a possibilidade de mudança uma vez que não há como mudar seu
temperamento e gosto; a mulher não suportaria exercer atividades de homem. E se
houvesse mudanças, e a mulher tivesse o mesmo trabalho, os homens também
passariam pelas mesmas mudanças, existindo, assim, sempre a mesma diferença.
Sustentar que os dois sexos são iguais, que seus deveres são os mesmos, é perder-
se em declarações vãs, pois a justificativa para tal desigualdade está na natureza e
assim deve permanecer (
EMÍLIO
, p.429).
49
Por outro lado, voluntariamente ou não, conscientemente ou não, tem-se
um jeito esperto de descortinar a realidade. E esse jeito mostra uma estratégia
possível de representação num mundo em que a mulher se encontra numa situação
de marginalidade (
GOTLIB,
1990, p.52). Essa nova forma de existir é mostrada por
Capitu que não aceita as condições de marginalidade em que vivem as mulheres.
Capitu é como Alice
28
nas suas aventuras, especialmente na metaforização da casa
do espelho, quando cresce tanto que não cabe mais dentro da casa, e, em pleno
desconforto, coloca um braço fora da janela e um pé por dentro da chaminé
(
GOTLIB, 1
990 p.53). Ela cresce, e se expande tanto que a situação da narrativa fica
pequena, e ela, então, como se “olhasse pela fresta da janela”, na sua ingenuidade
esperta, pratica o exercício clandestino de espionagem do mundo. No decorrer da
narrativa, o espaço se abre, se expande e se elasticiza. E não cabendo mais no
espaço reservado para ela por aquela sociedade e também não entendendo o seu
momento de transformação, tal qual Clarice
29
faz nos seus contos, lança seu olhar a
nenhum território específico; não sabe sua identidade, só sabe que é, mas é o quê?
Nesse processo doloroso de perda da referencialidade, Capitu experimenta
sentimentos ambivalentes e angustiantes, pois esse novo olhar abala uma ordem
de valores preservada ao longo da história pela sociedade, sob a rubrica
equívoca do homem. É nesse processo que ela, dolorosamente, busca a sua
identidade de mulher.
Já Sofia não passa por processo semelhante, a começar pela educação
que, segundo Rousseau, deve ser diferente para cada sexo, uma vez que homem e
mulher não são constituídos da mesma maneira, nem de caráter nem de temperamento,
28
Personagem do conto “Alice no país das maravilhas” de Lewis Carroll.
29
Escritora que faz parte da terceira geração (1945) do Modernismo brasileiro. Clarice Lispector
construiu uma obra de ficção voltada ao feminino, essencialmente introspectiva – ela mergulha na
intimidade de seus personagens, investigando profundamente em busca do que seria o próprio
cerne existencial dessas criaturas.
50
portanto cada gênero com suas particularidades. E, por isso, cabe à mulher, enquanto
mãe, saber educar de forma distinta os filhos e filhas! (
PATEMAN
, 1993, p.148). A
respeito disso escreveu Rousseau, ao contrário das mulheres, os homens são seres
livres naturalmente e, por isso, sua educação deve estar voltada ao desenvolvimento
do autodomínio e ao futuro exercício da cidadania. Por serem feitos para comandar
não podem receber ordens o tempo todo, logo uma educação repressiva não é
adequada. Por outro lado, as mulheres são seres naturalmente dependentes que
devem ser acostumadas desde pequenas a se acharem “submetidas ou a um homem
ou ao julgamento dos homens” (
EMÍLIO
, v, p.439).
As idéias de Rousseau em relação à educação de meninas são de que
elas devem ser preparadas para serem mães e esposas, com regras repressivas,
assim como Sofia, que foi educada para se tornar a mulher perfeita para Emílio. A
inferioridade natural da mulher e suas tendências para ser conquistadora, astuta e
apaixonada por natureza devem ser respeitadas e conduzidas por caminhos desejáveis
para que, desde menina, a mulher seja acostumada à restrição.
É incrível, mas Rousseau, mesmo sendo defensor da igualdade, liberdade
e fraternidade (ideais da Revolução Francesa, da qual ele foi um dos teóricos), não
só aceita como justifica a desigualdade existente entre homens e mulheres:
Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de natural ou
física, por ser estabelecida pela Natureza e que consiste na diferença das idades, da
saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito ou da alma; a outra que se pode
chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção
e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Esta
consiste nos vários privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem
mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se
obedecer por eles (
ROUSSEAU, 1978, p.235).
Rousseau continua justificando a desigualdade homem/mulher por ser
um fato da natureza, mesmo que entre em contradição quando atribui à mulher a
disposição natural para guiar o homem. Justifica-se dizendo que há grande
diferença entre conceder o direito de mandar e guiar ao que manda. E adverte
que essa ordem natural não deve ser modificada, pois isso seria uma aberração.
51
A natureza determinou a inferioridade feminina e assim deve ser. As tentativas de
igualdade entre os sexos são absurdas, pois as leis da natureza não devem ser
violadas, cabendo ao ser responsável por ter os filhos de obedecer ao outro.
Para Rousseau é um escândalo que a mulher queira mandar, que ela não
aceite a subordinação, pois tal subordinação ocorre conforme as leis da natureza. E
ainda mais, a mulher tem um único meio para demonstrar autoridade e exercer
influência sobre o homem, é por meio de carícias, súplicas e do pranto. Mesmo que
a mulher dê demonstrações de genialidade, é melhor que permaneça ignorada, pois
sua glória deve ser a estima do marido; seus prazeres devem ser restritos à
felicidade da família.
Por outro lado, pode-se ver a mulher pelos olhos dissimulados de Capitu.
Ela não segue o padrão das mulheres da época, e sim desconstrói o que está em
voga: o de que a mulher deve viver o sofrimento natural (parto) e o sofrimento
artificial (os que a sociedade lhe impõe). Sobre essa identidade da mulher, Irigaray
(1992) menciona que a maior parte das mulheres vive só seu parto, que nada lhe
permite falar dele, senão que são valorizadas como mães, quer dizer, como
sofredoras. São identificadas como tais e como tais transmitem esta identidade. Para
ser mulher tem de sofrer e deve cultivar uma identidade dupla: virgem e mãe, em
função de cada uma das etapas de sua vida.
30
Há de se mencionar que em Dom
Casmurro não há menção ao ato de parir de Capitu nem à sua gestação, o que
contribui para reforçar a tese: Capitu não foi feita para reproduzir. E, independente
de ter ou não ter filhos, ela buscava uma função social que não a de mulher, esposa
ou de mãe, queria se afirmar como sujeito de suas ações. A afirmação disso pode
estar quando não aparece, no romance, nas suas atividades de mãe (Quisera
30
Creo que la mayor parte de las mujeres viven solas su parto, que nadie lês permite hablar de ello
como sujetos, sino que, por el contrário, siempre se las valora como madres, es decir, como
sufridoras. Son identificadas como tales y como tales trasmiten esta identidad, (...) para ser mujer
hay que sufrir. (...) Las mujeres deben cultivar una doble identidad: vírgenes y madres, en función
de cada una de las etapas de su vida”.
52
Machado afirmar o não-papel de mulher-mãe e sim o de mulher-sujeito?). Na sua
dissimulação, Capitu teria refletido “como ser mãe sem ser primeiro mulher? E como
ser mulher sem ser sujeito?” Ela pensaria a respeito da função da mulher medida
pela capacidade de ter filhos, e sobre como a vida da mulher se definiria a partir
dessa capacidade?
Diz Rousseau que não importa que não fique tendo filhos a vida inteira,
mesmo assim continua sendo da natureza que a mulher seja definida como mãe.
Quer dizer, ela é mulher porque pode ser mãe e para sê-lo não precisa ser sujeito.
Já Capitu é criada como modelo de mulher-sujeito, não como mulher-mãe, como
pregava Rousseau.
Machado de Assis antevê a fratura na ordem patriarcal da modernidade
quando da entrada de Capitu em cena, pois ela demonstra segurança, inquietude
entre o oculto e o dissimulado, mesmo que o poder dominador do discurso masculino
(visto que o narrador se faz em primeira pessoa, a de Bentinho) tente recolocá-la na
condição de silenciada e sujeitada, o que resulta na morte como única saída para
ela. Não há como dar conta da proposta a que ela veio. Tal qual Madalena
31
que, ao
projetar-se na vida de liberdade, é tiranizada por seu par Paulo Honório, e, ao final,
cansada de lutar, Madalena se suicida. Também Capitu luta para manter seu
espaço, pensamentos e ideais, desde o início do romance, quando não aceita que
Bentinho vá para o seminário. E cada nova batalha a mantém entretida e a faz forte
até diante da mais provável saída para uma personagem que ousou romper
paradigmas: o abandono e a morte.
Essas mulheres vanguardistas contrariam a visão de Rousseau sobre a
diferença entre homem e mulher. O desenvolvimento da razão, da língua e das relações
sociais é simultâneo ao desenvolvimento da diferença sexual, uma diferença que
necessariamente implica a dependência e a submissão das mulheres aos homens.
31
Personagem do romance São Bernardo de Graciliano Ramos em que, como em Dom Casmurro, é
narrado pelo par masculino, mostrando, assim, a mulher pelos olhos do masculino.
53
Às mulheres caberia controlar seus desejos insaciáveis, egocêntricos, no entanto, as
mulheres seriam incapazes de desenvolver a moralidade necessária na sociedade
civil. O forte seria o homem, e a mulher deveria completá-lo.
Já em Dom Casmurro há a exposição da fragilidade e imaturidade de
Bentinho, dando mostra de que o papel feminino não é o de completar o masculino e
sim o de fazer acontecer a relação entre os dois. Tem-se, diferente da filosofia de
Rousseau, a inversão de papéis: Capitu toma a dianteira, conduzindo a trama, e
Bentinho assume o papel de dependente das ações tramadas por ela. O próprio
Bentinho assume tal dependência ao referir-se às lembranças de Capitu e aos
momentos vividos ao lado dela quando explica o porquê de tanta casmurrice: “não
consegui recompor o que foi e o que fui. (...) Se só me faltassem os outros, vá (...)
mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. (...) Deste modo, viverei o que vivi (...)”.
(grifo nosso) (
DOM CASMURRO
, p.810-811). Fechando o romance, há também em
Bentinho o resultado daquela paixão: tornou-se um homem só e triste, talvez um
“depressivo” – “Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe
pôs o vulgo de homem calado e metido consigo” (
DOM CASMURRO
, p.809).
Bentinho, por várias vezes, admite a posição de superioridade de Capitu:
“Capitu refletia. A reflexão não era cousa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo
apertado dos olhos.” Aqui, superioridade, porque à mulher da época não era dado o
direito de pensar! Seguindo na descrição desse perfil, temos Capitu preferindo,
tendo idéias atrevidas, decidindo: “Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já
idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram atrevidas
em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas e alcançavam o fim proposto,
não de salto, mas aos saltinhos. (...) Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui
particular (...) Capitu preferia tudo ao seminário (...)” (
DOM CASMURRO
, p.828-841).
Percebe-se que ela comandava a ação, pois o seminário era para Bentinho, e a ela
coube preferir!
54
Esse comportamento, atípico para a mulher, ameaça a segurança do
masculino, daí a resistência de Bentinho e o conflito amoroso que vive na fantasia da
traição. Os dois, então, na luta contra a ameaça de sujeição, eliminam a possibilidade
de encontro entre masculino e feminino (
VIANNA
, p.69).
Não há como negar tamanha ousadia para a época. E o mais interessante:
é pelos olhos de Bentinho que Capitu cresce e toma proporções gigantescas, tão
gigantes que não cabe no espaço reservado pelo masculino (é importante reafirmar
que é pela visão de Bentinho que ela existe assim!). E o mesmo Bentinho, ao final,
tenta destruí-la na tentativa de se sobrepor na narrativa. Capitu, então, não podendo
mais existir num espaço ainda não reconhecido, é tirada de cena. É possível
perceber que não há como fazê-la caber naquele contexto do século XIX. Realmente
não tem como mantê-la viva na sua audácia e ousadia!
Capitu protagoniza a narrativa alicerçando todo o enredo e conduzindo as
ações, principalmente as relativas a Bentinho. Nesse sentido, constata-se, sobretudo,
para a época, inversão dos papéis homem-mulher: “Capitu era Capitu, isto é, uma
criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem” (fala de Bentinho,
DOM
CASMURRO
, p.841). A inversão ganha crédito pelo fato de o romance ser narrado em
1.ª pessoa – Bentinho. Isso reforça a intenção de pôr à mostra o comportamento de
Capitu como revolucionário.
No outro extremo está Sofia que vive a condição de mulher sujeitada:
Sofia deve ser mulher como Emílio é homem, isto é, ter tudo o que convém à constituição de
sua espécie e de seu sexo para ocupar seu lugar na ordem física e moral. (...) talvez seja uma
das maravilhas da natureza ter feito dois seres tão semelhantes constituindo-se tão
diferentemente. Tais relações e tais diferenças devem influir no moral (...). Uma mulher perfeita
e um homem perfeito não deve assemelhar-se nem de espírito nem de fisionomia (...). Se a
mulher é feita para agradar e ser subjugada, ela deve tornar-se agradável ao homem ao invés
de provocá-lo. Sua violência está nos seus encantos (...). Então o amor-próprio une-se ao
desejo, e um triunfa da vitória que o outro o obrigou a ganhar. Daí nascem o ataque e a
defesa, a ousadia de um sexo e a timidez de outro, finalmente a modéstia e o pudor com que
a natureza armou o fraco para escravizar o forte (
EMÍLIO, p.423-425) .
Sofia é o protótipo da heroína romântica. Tem intuição em vez de razão; é
muito sensível e tem paixão em alto grau pelo marido “perfeito” que já existe na sua
55
imaginação. A existência dela se resume em tornar-se mãe e dona de casa com
reputação imaculada, mas não deixando de ser sedutora: a perfeita “mulher-anjo”.
Jamais poderá ficar sem marido, já que seu maior interesse é tornar-se propriedade
apreciada e ter um final feliz como toda heroína romântica.
Os desejos da mulher rousseauniana são tidos como depravação, algo
instintivo, que devem ser controlados pelo pudor, ao contrário do homem que tem a
razão para governá-lo. O homem foi dotado de inclinações sem medida, mas também
de lei que as regula para que ele seja livre e senhor de si. A mulher é dotada de
força para resistir, e o homem de razão para autorizar a mulher a se defender.
Para Rousseau, as mulheres são dominadas porque a natureza o quer: “O
domínio das mulheres não lhes cabe porque os homens o quiseram, mas porque assim
o quer a natureza: já lhes pertencia antes que parecessem tê-lo” (
EMÍLIO
, p.427).
Sobre a diferença entre os sexos, Rousseau diz:
Não há nenhuma paridade entre os dois sexos quanto à conseqüência do sexo. O macho só é
macho em certos momentos, a fêmea é fêmea durante a vida toda (...); tudo a leva sem cessar
a seu sexo, e, para bem desempenhar-lhe as funções, precisam de uma constituição que se
prenda a ele (...). Quando a mulher se queixa a respeito da injusta desigualdade que o homem
impõe, não tem razão; essa desigualdade não é uma instituição humana ou, pelo menos, obra
do preconceito, e sim da razão (...) (
EMÍLIO, p.428-429) .
Em Rousseau, as mulheres deveriam aprender os deveres domésticos e a
amar esses deveres, sendo subservientes para suportar injustiças. E se quisessem
liberdade, sofreriam as conseqüências, podendo até ser maltratadas pelos maridos.
Muito mais ainda ao que se refere à fidelidade: “Sem dúvida não é permitido a
ninguém faltar à sua palavra, e todo marido infiel que priva a mulher da única
recompensa aos austeros deveres de seu sexo é um homem injusto e bárbaro; mas
a mulher infiel vai além, ela dissolve a família e rompe todos os laços da natureza”
(
EMÍLIO
, p.428). Ou seja, à mulher rousseauniana cabe obediência e aceitação.
Já Capitu se mostra dona de sua própria história, não traz uma imagem
pronta do que deve ser um marido; ela o constrói da forma como quer, enfrentando
sem timidez os percalços que a ameaçam. Veja-se quando ela toma as dores de seu
amado e reage à iminência de ele ser mandado para o seminário:
56
Capitu, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se estar
com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Então eu, para dar força
às afirmações, comecei a jurar que não seria padre. (...) Capitu não parecia crer nem
descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. (...) Enfim, tornou a si, mas tinha
a cara lívida, e rompeu nestas palavras furiosas: _ Beatas! carolas! papa-missas! (...) É
verdade que também gostava de mim, ou melhor, de outra maneira, cousa bastante a
explicar o despeito que lhe trazia a ameaça da separação (...) (
DOM CASMURRO, p.827).
Bentinho não quer ir para o seminário, mas não reage diante do fato: “Eu,
assustado, não sabia que fizesse; repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma
noite declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminário” (
DOM
CASMURRO
, p.829). Diante da não-ação de Bentinho, é Capitu quem busca soluções
para que ele não vá. É ela quem planeja o pedido que ele deveria fazer a José Dias
para que este intercedesse junto à mãe. Capitu conduz a conversa, fazendo uso
constante do imperativo, dá ordens a Bentinho. O que demonstra de quem era o
papel principal. Sempre que é necessário deliberar e remover algum obstáculo no
destino de ambos, Capitu é o caráter mais forte; pensa e decide por ele.
Machado de Assis passa uma imagem diferente da mulher daquela época.
Era uma visão futurista, mas sutilmente descrita. Oferecia a chance de, aos que
compartilhavam da idéia, interpretar Capitu como a anti-heroína, a revolucionária, a
mulher em busca de si mesma; aos que não aceitavam o comportamento revolu-
cionário, podiam vê-la como a antagonista de Bentinho. Como heroína ou anti-
heroína, o que se vê é que quando quer algo provoca uma situação e a sustenta até
o desfecho do ato. Veja-se o acontecimento do primeiro beijo que, ao contrário da
mulher rousseauniana que vivia o amor calcado numa relação artificial, já que o
homem devia resistir o amor para que fosse independente, mostra um Bentinho
apaixonado, entregando-se a esta paixão, e Capitu assumindo seu desejo de mulher.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava
sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso
acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois
sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-
lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe
que esta[va] feia; mas nem esta razão a moveu. _ Levanta, Capitu! Não quis, não levantou
a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu
desci os meus, e... Grande foi a sensação do beijo (
DOM CASMURRO, p.844).
57
Desde o início da saga amorosa, foi de Capitu o primeiro passo para o
encontro dos dois, como nesse ato do beijo. Esta cena mostra uma menina decidida
que sabia disfarçar diante de uma situação “proibida”. Disfarçava para os outros,
mas não para si mesma. Enquanto Capitu buscava satisfazer seus desejos, a mulher
rousseauniana era naturalmente coquete e fútil.
Pode-se argumentar que Machado, como autor realista, não se intromete
na vida de suas personagens. Essas personagens deviam atuar conforme as
circunstâncias na busca da solução do conflito instaurado. Ao autor cabia retratar a
vida contemporânea, a preocupação com homens e mulheres, emoções e tempe-
ramentos, sucessos e fracassos da vida do momento. Assim sendo, o livre-arbítrio e o
amor-próprio são tecidos nas ações de Capitu num mundo que existia só para ela,
pois nada daquilo tinha significado para a empregada, para a amiga dela com quem
travava contato; é um universo só de Capitu. Um mundo que Capitu ousou criar!
Sozinha tecia seu mundo e seu tempo. Não era como as mulheres de sua época,
como já disse Poulain de La Barre (1984, p.98), que estavam tão persuadidas de sua
inferioridade que viam com maus olhos aquelas que procuravam trilhar caminhos
convencionalmente interditados.
Enquanto Sofia deveria viver para atividades domésticas, ter filhos e ser “o
repouso do guerreiro”, Capitu mostra a não obrigação com atividades domésticas:
“As curiosidades de Capitu (...) eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis,
assim úteis como inúteis (...). No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler,
escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por
exemplo, a fazer renda (...)” (grifo nosso) (
DOM CASMURRO
, p.841).
Capitu esbanjava liberdade, aprendia o que queria e quando queria:
Tio Cosme ensinou-lhe gamão. Um dia fui achá-la desenhando a lápis um retrato (...)
aprenderia pintura, como aprendeu música mais tarde. Já então namorava o piano (...) Lia
nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das
pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar (...) (
DOM CASMURRO, p.841).
58
O resultado do comportamento de Capitu é colocar uma alma em pânico (a
de Bentinho) perante a visão real da existência. Desde o início se percebe como as
posições entre os dois (Capitu e Bentinho) se estruturam – sempre Capitu no plano
superior: a cena dos dois quando crianças escrevendo os nomes no muro; Bentinho
penteando-lhe os cabelos; Capitu dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” e
Bentinho tímido, “insciente dos assuntos do coração” (”era virgem de mulheres”). Ao
contrário do homem rousseauniano que deveria aprender “certas coisas”, Bentinho
era puro, não conhecia as coisas do amor: “não vivia com rapazes, que me
ensinassem anedotas de amor” (
DOM CASMURRO
, p.823/849).
Há uma passagem em Dom Casmurro, o episódio do primeiro beijo, em
que o próprio Bentinho admite sentir emoção:
Vendo-me calado, enfiado, cosido à parede, achou talvez que houvera entre nós algo
mais (...) Como eu quisesse falar também para disfarçar o meu estado, chamei algumas
palavras cá de dentro (...), e encheram-me a boca sem poder sair nenhuma. (...) E todas
as palavras recolheram-se ao coração, murmurando: “Eis aqui um que não fará grande
carreira no mundo, por menos que as emoções o dominem...” (
DOM CASMURRO, p.845).
Bentinho revela-se sentimental também em relação à mãe quando ela
adoece: “mas não escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atrás de
mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e rolava comigo, e
chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol” (
DOM CASMURRO
, p.885).
Essas manifestações registram um momento raro, as sentimentalidades de Bentinho,
se analisarmos o contexto da época no tocante à expressão de emoções por parte
do masculino, e, principalmente, se usarmos como parâmetro o outro par masculino
em análise, Emílio, que não deveria ser suscetível a sentimentos:
Emílio é laborioso, sóbrio, paciente, firme, cheio de coragem. Sua imaginação (...) não
amplia nunca os perigos; é sensível a poucos males e sabe sofrer com resignação
porque não aprendeu a disputar-se com o destino. (...) acostumado a sofrer sem
resistência a lei da necessidade, quando precisar morrer, morrerá sem gemer e sem se
debater (...) Emílio tem a virtude de tudo que se relaciona consigo mesmo. (...) Ele se
considera sem deferências para com os outros e acha bom que os outros não pensem
nele. Nada exige de ninguém, e acredita nada dever a ninguém. Está só na sociedade
humana e não conta senão consigo mesmo. (...) Não tem erros ou só tem os que nos
59
são inevitáveis; não tem vícios, ou só tem os que nenhum homem pode evitar. Tem o
corpo sadio, os membros ágeis, o espírito justo e sem preconceitos, o coração livre e
sem paixões (
EMÍLIO
, p.231-232).
O que se percebe no homem rousseauniano, criado para ser perfeito, é que a
natureza, que serve para emancipação de Emílio, serve também para a domesticação
de Sofia que fora criada para ser submissa. A mulher, para Rousseau, pertence a uma
esfera privada, e as vantagens de cidadania: proteção da lei, igualdade e represen-
tatividade de sua vontade, não fazem parte de sua vida. Na natureza dessa mulher
está o desejo de ser subjugada, pois foi educada assim! A mulher deve ser
doméstica, dependente e passiva, porque o homem precisa disso para ser forte,
ativo e independente.
O que se percebe é que, mesmo estando Machado de Assis aquém do
tempo em que as mulheres começam a escrever para mostrar a identidade feminina,
ele a revela através da Capitu. Ele cria essa personagem exatamente para mostrar
um novo tipo de mulher, aquela capaz de romper com as amarras do contexto
público e fazer a travessia de si mesma, inscrevendo-se no espaço público também.
Com isso irrompe na história uma mulher que valoriza o sensual, a intimidade, a
intuição, o sensível, a estética como ética. Pode-se dizer que a mulher procura uma
identidade feminina para existir como presença na cultura, não como o avesso da
identidade do homem, nem o seu contrário (
OLIVEIRA
, p.154-5).
Muito se tem ainda para falar de Capitu em relação à Sofia ou em relação a
qualquer outra mulher do seu tempo, visto que essa personagem atravessou a
barreira do preconceito e da ingenuidade, porque ousou viver segundo suas
vontades, colocando-se em pé de igualdade com Bentinho. E, superando a
ingenuidade, conseguiu discernir, em meio a pensamentos masculinos dominantes,
o que deveria fazer para buscar sua identidade de mulher. O que é mais importante
ficar disso tudo é que se perceba que ela não queria senão buscar as coisas pelas
60
quais poderia ser feliz
32
. Não só foi ao encontro do ser amado, mas também
procurou desenvolver potencialidades que permitiram, de algum modo, afirmar a sua
satisfação diante da vida. Queria ser mulher, mulher-sujeito de seus atos e
pensamentos.
32
Monique CANTO-SPERBER diz em A Inquietude Moral e a Vida Humana que a felicidade também
depende do acréscimo de uma atividade que permita atingir metas fixadas, de projetos de vida. E
Capitu assim o fez no seu cotidiano.
61
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A desigualdade entre homem e mulher é sabida desde que houve a divisão
de trabalho e tem sido tema de diversos estudos. Inclua-se também a criação de
ficções na literatura que, indiretamente, porque é assim que a literatura desenvolve
temáticas importantes como essa, passam mensagens subliminarmente, seja para
provocar reflexões no campo da Filosofia, da Antropologia, Sociologia, ou seja, no
próprio campo da literatura. Esse tema, não necessariamente tomando como ponto
de partida a literatura, foi significativamente analisado durante o século XX, o que foi
decisivo para que houvesse mudanças na área social e na legislação.
Mesmo tendo havido mudanças, não se fizeram suficientes para que a
mulher ocupasse o lugar a que lhe cabe nas diversas escalas sociais. Daí o interesse
em mostrar e compreender a persistência de situações de desigualdade na época
atual entre homem e mulher e como isso reflete na área da filosofia.
O ponto de partida dessa pesquisa foi mostrar como a literatura pode servir
como ponto de partida para a reflexão, evidenciando que, por meio de suas
construções, os meandros do pensamento coletivo de uma determinada época podem
ser conhecidos. E, a partir desse conhecimento, a reflexão pode tornar-se possível.
Numa visão grega, seria fácil dizer que a literatura tem funções como
expressão artística, educação do público e a catártica. Esta última se dá quando uma
peça permite reduzir no público a “tensão pulsional” provocada por conflitos indivi-
duais e sociais encenados. Isso ocorre por meio da identificação de pessoas do
público com um ou outro personagem da peça. Sob este ponto de vista, podemos
dizer que Dom Casmurro retrata a situação da mulher na figura de Capitu. O que
pode levar o leitor ao entendimento de mensagens implícitas no romance que refletem
a condição de mulheres reais que passam pelo drama de serem subjugadas no século
XVIII, XIX e, não menos, em pleno século XXI!
62
Conceitos formulados ao longo da história da filosofia dão conta de
justificar a condição de inferioridade da mulher como sendo natural, universal e
imutável. A concepção da desigualdade natural dos sexos é vista principalmente em
Rousseau, para quem a mulher ideal devia ser do modelo romântico: aquela que
devia servir como repouso do guerreiro, enquanto o homem devia comandar as
ões dela tanto na esfera pública como na privada. Ao contrário disso, foi possível
perceber filósofos que se propõem a defender a igualdade da mulher, posicionando-
se em relação a essa concepção e se preocupando em demonstrar a sua inconsistência.
Essa concepção filosófica sobre a inferioridade feminina que respalda
teoricamente situações concretas de opressão da mulher e, conseqüente enaltecimento
do homem, se faz presente em Jean-Jacques Rousseau, especialmente no livro V
de Emílio ou Da Educação. O pensador francês procura, de forma direta e explícita,
justificar a inferioridade da mulher em bases antropológicas: o trabalho seria o fator
predominante para tal formação social de desigualdade – enquanto o homem
buscava alimento, a mulher se sedentarizava cuidando dos filhos. Tal condição se
calcou na necessidade de o homem ter quem lhe proporcionasse bem-estar e
segurança. Para isso seria a mulher encarregada de cuidar dos interesses dele,
exclusivamente particulares ao que se refere ao âmbito doméstico: alimentação,
vestimenta, afeto, sexo e assegurar a procriação. Para conseguir isso, por um lado,
desmerecia-se a inteligência da mulher para a participação na esfera pública e, por
outro, enaltecia-se a mulher como possuidora de virtudes para o âmbito doméstico.
O pertencimento da mulher à esfera privada seria por uma necessidade
moral, a qual a faria cumprir a “missão” lhe confiada pela natureza: ser mãe e
esposa. Isso significa dizer que a sujeição da mulher é “natural” e condição para a
autoridade do marido, cuja explicação está no modelo de relação sexual: um deve
ser forte e ativo, outro passivo e fraco. Em outras palavras, a mulher nasceu para ser
subjugada. E não há possibilidades de a mulher se igualar ao homem, pois, mesmo
que a mulher “evolua”, o homem também passará pelo mesmo processo, havendo,
assim, sempre um decréscimo em relação à mulher.
63
Rousseau, na sua antropologia sobre a inferioridade natural da mulher e
conseqüente confinamento ao âmbito privado, expõe que a presença da mulher na
esfera pública marca o alcance da decadência social, pois quando as qualidades
femininas passam a ser valores sociológicos, a sociedade pode considerar-se
depravada. Tal depravação ocorreria porque a mulher possui o desejo, especial
poder capaz de desencaminhar o mais virtuoso cidadão. A esfera pública seria a
representação da razão, e a privada, da paixão, não podendo, portanto, a paixão se
sobrepor à razão. Para se conseguir manter a sociedade embasada em valores que
não passionais, o homem domesticaria a mulher transformando-a em esposa e em
mãe. Assim ela seria a representação do sentimento e do desejo, atendendo às
necessidades de afeto do marido.
Por isso, segundo Rousseau, a mulher deve pertencer à esfera privada
com todas as restrições. Posição esta que contraria o princípio da individualidade,
pois sua “forma autêntica e legítima (...) só pode ser construída mediante o
enriquecimento comunicativo intersubjetivo das qualidades e realizações de cada
indivíduo concretamente ao ponto da singularidade e incomparabilidade. (...) [E é] só
através da vida política [que] poderia o indivíduo tornar-se esse indivíduo específico,
insubstituível ‘chamado’ ou destinado a concretizar suas próprias incomparáveis
capacidades” (
YOUNG
, 1987, p.66).
Além desse princípio, Rousseau quebra também o da imparcialidade, que tem
como definição ética o ponto de vista que fica à parte de quaisquer interesses e desejos
que façam parte da rao moral. No momento em que esse princípio só é aplicado
ao homem, já que se condena a mulher ao privado, Rousseau age com parcialidade,
e a mulher não é vista como ser “livre” para ter direito a informações gerais e a
científicas, uma vez que “a pessoa não é somente uma estrutura ontológica consciente
e livre; mas é também vivência cultural e histórica, com informações gerais e
científicas, com uma filosofia, uma religião e com experncias cotidianas diferentes”
(
HÜHNE
, 1997, p.33).
64
Por outro lado, pode-se ver a situação da mulher pelos olhos de Capitu.
Segundo Nietzsche, “transgredir normas e regras estabelecidas é a verdadeira
expressão da liberdade e somente os fortes são capazes dessa ousadia. Para
disciplinar e dobrar a vontade dos fortes, a moral racionalista, inventada pelos
fracos, transformou a transgressão em falta, culpa e castigo” (por
CHAUÍ
33
, p.353).
Seguindo esse raciocínio, pode-se abrir espaço para pensar na ousadia de Capitu
que, na sua fortaleza, quebra o paradigma de mulher subjugada. Ela transgrediu o
modelo rousseauniano para buscar o que realmente queria sem se importar com o
que pensavam a respeito dela. A escolha pelo marido ideal foi dela, pois, se
dependesse dele (Bentinho), talvez nem chegassem a se casar; ele seria padre,
mesmo sem vocação. Capitu ultrapassou limites, foi capaz de, no seu cotidiano
banal, evidenciar questões como identidade, existência e liberdade. Ela foi tão forte
na narrativa que foi capaz de “casmurrar” Bentinho depois de tê-lo feito homem
34
;
ela o ergue e o destrói. E, na sua identidade de mulher, ela assume seu lugar do
começo ao fim do romance, mesmo pagando preço alto de sua solidão e morte. O
que fica dessa saga amorosa é que Bentinho pode representar a realidade do século
XVIII e XIX com todos seus pudores e discriminações, e Capitu compõe uma realidade
ficcional futurista.
Em meio aos enlevos de Capitu, pode-se perceber a alusão de Machado
de Assis à concepção de mulher diferente da que predominava no tempo dele. Este
escritor vai além dos conceitos dominantes e propõe uma mulher que desde menina
sabia o que queria e o que não queria. Por exemplo, ela não queria que Bentinho
fosse para o seminário, assim como se recusou a jurar que seria Bentinho a realizar
o seu casamento com outro. Ela, inteligentemente, reverte o juramento dizendo ser
33
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática S.A., 1995.
34
Aqui, pode-se usar o primeiro beijo como simbologia de tê-lo tornado homem uma vez que não se
tem, no romance, outro indício de que Bentinho tenha tido outro relacionamento com outra mulher
sem ser com Capitu.
65
melhor que jurassem que se casariam. Esse é um dos tantos episódios em que se
pode perceber uma mulher de cabeça erguida, cônscia de seus desejos e das
possibilidades de realizá-los. Também se pode perceber que o casamento, mesmo
sendo a aspiração máxima das mulheres da época, não o era assim para Capitu. Ela
o quer, mas quer com aquele homem que escolhera e não porque seu pai o quis, ou
porque era convencional casar-se. O que demonstra uma quebra de valor para a
época. Capitu foi tão bem construída/criada que pode representar qualquer mulher
real do seu tempo, e mais ainda, sua imagem pode ser o retrato de muitas outras
ainda nos dias de hoje.
No século XIX tem-se a materialidade do silêncio feminino, mas não nas
mãos de Machado de Assis, que dá poderes dissimulados que vão marcar a
emergência de uma nova demarcação entre o espaço doméstico e o público para a
mulher. Este bem definido como mundo do homem, e aquele como espaço da
mulher. A confirmação desse rompimento pode-se ter em Dom Casmurro, mesmo
sendo pela visão de um homem, o grito do feminino abre espaço para mostrar a
questão da mulher. Neste romance, usando como meio a literatura, Machado quer
mostrar um tempo futurista, e o faz de forma indireta pelas ambigüidades com as
quais veste suas mulheres, principalmente Capitu. E, nas sutilezas das ações dela,
quer chamar atenção para a condição de exploração em que vive a mulher do seu
tempo. Poderíamos dizer que Machado usou a ferramenta que tinha em mãos e
construiu um novo modelo feminino com o intuito de denunciar a discriminação que a
mulher sofria ao ser rotulada como menos capaz. O grito dessa mulher atingiu/atinge
somente os que queriam/querem ouvir, porque nem todos tinham/têm a prontidão
para entender as mensagens subliminares que a arte de escrever traz como
característica.
Quando se lê a história da mulher, percebem-se avanços no que diz
respeito à participação delas na sociedade. Estabeleceram-se muitas possibilidades
a partir do século XX: o movimento feminista conseguiu marcar mudanças
significativas nas esferas pública e privada – a mulher já é considerada em vários
66
setores da vida pública como “ser” capaz de assumir responsabilidades antes
designadas somente a homens –; no âmbito doméstico, em muitos casos, deixou de
ser a “dona-da-casa” e a mãe para se tornar a companheira do marido, que passou
a compartilhar dos afazeres domésticos e do cuidado com os filhos; até já podemos
verificar o oposto do modelo acontecendo – as mulheres cuidam do sustento
trabalhando fora, e o marido se encarrega dos filhos e da casa –. No entanto, os
casos de submissão e até de violência contra a mulher ainda apavoram muitas delas
que vivem à espera de novas oportunidades para se sentirem “cidadãs” com seus
direitos atendidos.
Com essas reflexões, tendo como objeto de estudo Sofia de Rousseau e
Capitu de Machado de Assis, buscou-se mostrar o modelo de mulher submissa e
evidenciar ações de uma mulher de vanguarda que desconstrói o modelo ideal de
mulher, dando a entender que a literatura não se preza somente ao entretenimento,
mas também a chamar para reflexões importantes, aqui, especificamente, para a
desvalorização e discriminação da mulher.
67
REFERÊNCIAS
Obras de Rousseau
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Tradução de Sérgio Milliet. São
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.
_______. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural. Coleção Os
Pensadores, 1978.
_______. Cartas Morais. In: Escritos sobre a religião e a moral. Tradução de José Oscar de
Almeida Marques. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução n.2 Campinas:
IFCH/UNICAMP, 2002.
Obras de Machado de Assis
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Nova Cultural,
1994. 176p.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Queda que as mulheres têm para os tolos – e outros
textos. Belo Horizonte: Crisálida, 2003. 88p.
CANUTO, Angela. Machado de Assis: memória de um frasista. São Paulo:
Lemos Editorial, 2002.
COUTINHO, Afrânio. Machado de Assis: Obra Completa. 9.ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguiar S.A., 1214p., v.1., 1997.
Estudos sobre Rousseau e sua obra
AMORÓS, Célia. Hacia una crítica de la razón patriarcal. Madrid: Anthropos Editorial del
Hombre. (Pensamento Crítico/Pensamento Utópico), 1985.
BEYSSADE, Jean-Marie. Jean-Jacques Rousseau. Dicionário de ética e filosofia moral.
(org. Monique Canto-Sperber). São Leopoldo: Unisinos, 2003.
BUCHENAU, Ana Isabel Aliaga. A Educação da Sofia de Rousseau e da Lotte de
Goethe: pode o romantismo ser reacionário? University of North Carolina at Chapel Hill,
2004. Disponível em 26/01/2006 <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ligia.htm>
CAMPS, Victoria; Norbert BILBENY, et al. Historia de la ética (Rousseau). Barcelona:
Editorial Crítica, 1992.
68
CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau. Tradução de Erlon José Paschoal,
Jézio Gutierre. São Paulo: Unesp, 1999.
COBO, Rosa. Fundamentos del patriarcado moderno. Jean Jacques Rousseau. Madrid:
Ediciones Cátedra, (Feminismos, n.23), 1995.
DOMENECH, Jacques.”Rousseau – a idéia de um povo feliz” História Argumentada da
Filosofia Moral e Política. (Marcelo Fernandes de Aquino Org.). São Leopoldo: Unisinos,
2004.
MARQUES, José Oscar de Almeida. “Rousseau e os perigos da leitura, ou por que
Emílio não deve ler fábulas. Itinerários. Revista de Literatura. FCL-UNESP, Araraquara,
nº 22, 2004.
NASCIMENTO, Milton Meira do. Reivindicar direitos segundo Rousseau. Clássicos do
Pensamento Político. Célia Galvão Quirino; Cláudio Vouga e Gildo Marcas Brandão
(Orgs.). São Paulo: Edusp, 1998.
PATERMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1993.
VARGAS, Yves. Introduction à l’Emile de Jean-Jacques Rousseau. Paris: Presses
Universitaires de France, 1995.
Estudos sobre Estética/Literatura/Machado de Assis e sua obra
ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura. Tradução de Celeste Aída Galeão. Revista
Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.36, 1991.
_______. Teoria estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa/Portugal: Edições 70, 1970.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G.
Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudeleire um lírico no auge do capitalismo. Tradução de
José Martins Barbosa e de Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense. 1989. Obras
Escolhidas; v. III., 1989.
_______. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense. Obras Escolhidas; v.1., 1994.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 33.ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. Tradução de Fábio Fonseca
de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 7.ed., Rio de Janeiro: Itatiaia
Limitada. 383p. v.2., 1993.
_______. Direitos humanos e literatura. Disponível em 26/01/2006
<http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/textos-dh/literatura.html>. Acesso em 17 dez. 2005.
69
COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 14.ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil S.A., 1988. 321p.
CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade. São Paulo:
Edusp, 1999.
DINIZ, Júlio. O olhar (do) estrangeiro – uma possível leitura de Clarice Lispector. Revista
Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.101, abr./jun., 1990.
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Tradução de Mauro Sá Rego Costa. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Traçada por estranha e desconhecida mão. Revista Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, n.101, abr./jun., 1990.
GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra , 2003.
GOTLIB, Nádia Battella. O desejo não mora em casa (alguns espaços na obra de Clarice
Lispector). Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.101, abr./jun., 1990.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Tradução de
Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HAMBURGER, käte. A lógica da criação literária. Tradução de Margot P. Malnic. São
Paulo: Pespectiva. Coleção Estudos, 1986.
LAFOND, Jean. Gêneros Literários. Dicionário de ética e filosofia moral. Monique Canto-
Sperber (Org.). São Leopoldo: Unisinos, 2003.
MOISÉS, Massaud. Machado de Assis: ficção e utopia. São Paulo: Cultrix Ltda, 2001.
NASCIMENTO, Naira de Almeida. Retratos e Simulacros Machadianos: uma leitura de
enquanto isso em Dom Casmurro. Revista Letras/Universidade Federal do Paraná,
Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Curitiba, n. 61, 2003.
PROENÇA FILHO, Domício. Capitu – Memórias Póstumas. Rio de Janeiro: Artium, 1998.
RIBEIRO, Eliana Bueno. Passeando em São Bernardo. Revista Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, n.101, abr./jun., 1990.
ROGER, Alain. Estetismo. Dicionário de ética e filosofia moral. Monique Canto-Sperber
(Org.). São Leopoldo: Unisinos, 2003.
SABINO, Fernando. Amor de Capitu. São Paulo: Ática, 1998. 292p.
SECCHIN, Antonio Carlos; ALMEIDA, José Mauricio G. de; SOUZA, Ronaldes de Melo e.
Machado de Assis, uma revisão. Rio de Janeiro: In-Fólio, 1998.
STEIN, Ingrid. Figuras femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984.
XAVIER, Therezinha Mucci. A personagem no romance de Machado de Assis. Rio de
Janeiro: Presenta, 1986. Coleção Atualidade Crítica, n. 9.
70
Estudos sobre Ética/Gênero
ALBORNOZ, Suzana. A ética da não-violência como uma ética feminina. In: Márcia Tiburi,
M. Menezes; E. Eggert (orgs.). As mulheres e a filosofia. São Leopoldo: Unisinos, 2002.
AMORÓS, Celia. Enciclopédia ibero americana de filosofia. Cuestiones Morales. Madrid:
Trotta. Tomo 12. 1996.
_______. Tiempo de Feminismo: sobre feminismo, projecto ilustrado y postmoderdad.
Madrid: Cátedra S. A., 1997.
BENHABIB, Seyla, CORNELL, Drucilla. Além da política do gênero. Feminismo como
crítica da modernidade. Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos, 1987.
BORDO, Susan R. Gênero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1997.
BRANDÃO, Ruth Silviano; BRANCO, Lúcia Castello. Com-siderações em torno de um
buraco. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.101, abr./jun., 1990.
CANTO-SPERBER, Monique. A inquietude moral e a vida humana. Tradução de Nicolas
Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2005.
CARVALHO, Maria da Penha Felício dos Santos de. As observações kantianas sobre o belo
sexo. In: Márcia Tiburi; M. Menezes; E, Eggert (orgs.), As Mulheres e a filosofia. São
Leopoldo: Unisinos, 2002.
_______. A mulher e o exercício da cidadania segundo Rousseau. Perspectiva Filosófica –
Revista Semestral do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de
Pernambuco, v.9, n. 17, 2002.
_______. As duas faces da moral na Casa de bonecas. Ethica – Caderno Acadêmico -
Universidade Gama Filho. Rio de Janeiro, 1998.
CARVALHO, Marie Jane. Qual cidadania desejamos? In: Márcia Tiburi; M. Menezes; E,
Eggert (orgs.), As mulheres e a filosofia. São Leopoldo: Unisinos, 2002.
CONDORCET, Jen Antoine; GOUGES, Marques de; LAMBERT, Olympe de;
PULEO, Anne T. de. La ilustración olvidada: la polémica de los sexos en el siglo XVIII.
Barcelona: Anthropos. (Pensamento Crítico/Pensamento Utópico; 81), 1993.
COLLIN, Françoise, PISIER, Evelyne, VARIKAS, Eleni. Les femmes, de Platon à Derrida.
Anthologie critique. Paris: Plon, 2000.
EGGERT, Edla. Narrativa: uma filosofia a partir da experiência das mulheres? In: Márcia
Tiburi; M. Menezes; E, Eggert (orgs.). As mulheres e a filosofia. São Leopoldo:
Unisinos, 2002.
GRIMSHAW, Jean. “Feminismo e filosofia”. In Nicholas Bunnin e E. P. Tsui-James (orgs.).
Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2002.
_______. The idea of a female ethic. In: A companion to ethics. Cambridge, 1991.
71
HABIB, Claude. Femmes, Féminisme. Dictionnaire de philosophie politique. Philippe
Raynaud et Stéphane Rials (direction). Paris: PUF, 2003. p.276-283.
HELLER, Agnes e F. FEHER. A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1998.
HÜHNE, Leda Miranda (Org.); Gerd BORNHEIM; et al. Ética. Rio de Janeiro: UAPÊ:
SEAF, 1997.
IRIGARAY, Luce. Yo, tu, nosotras. Feminismos. Tradução de Pepa Linares. Madrid:
Ediciones Cátedra, 1992.
JAGGAR, Alison. Ética Feminista. Dicionário de ética e filosofia moral. Monique Canto-
Sperber (Org.). São Leopoldo: Unisinos, 2003.
JAGGAR, Alison M.; BORDO, Susan Rousseau. Gênero, corpo, conhecimento.
Tradução de Britta Lemos de Freitas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997
KUBISSA, Luisa Posada. Sexo y esencia – de esencialismos encubiertos y
esencialismos heredados: desde um feminismo nominalista. Madrid: Horas y Horas, 1998.
LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Tradução de
Vera Whately. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. A cicatriz do andrógino. Revista Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, n.101, abr./jun., 1990.
PETIT, Cristina Molina. Dialética feminista de la Ilustración. Barcelona: Editorial
Anthropos, 1994.
POULAIN DE LA BARRE, François. De l’égalité des deux sexes. Paris: Fayard, 1984.
PRÁ, Jussara Reis. Espaço público, gênero e políticas feministas. In: Márcia Tiburi;
M. Menezes; E, Eggert (Orgs.). As mulheres e a filosofia. São Leopoldo: Unisinos, 2002.
QUEIROZ, Vera. As várias faces do feminino. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro,
n.101, abr./jun., 1990.
_______. A paixão da morte: a personagem feminina nos romances de Lya Luft. Revista
Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.101, abr./jun., 1990.
RUSS, Jacqueline. Pensamento ético contemporâneo. Tradução de Constança
Marcondes César. São Paulo: Paulus, 1999.
SOUZA, Ricardo Timm de. “Identidade e diferença: da mera identificação ao diferencial de
gênero. In: Márcia Tiburi; M. Menezes; E. Eggert (orgs.). As mulheres e a filosofia. São
Leopoldo: Unisinos, 2002.
TOMMASI, Wanda. Filósofos y mujeres. La diferencia sexual en la historia de la
filosofia. Madrid: Narcea S.A. de ediciones, 2002.
VALCÁRCEL, Amélia. La política de las mujeres. Madrid: Ediciones Cátedra, (Feminismos,
n.38), 1997.
72
_______. Sexo y filosofía: sobre “mujer” y “poder”. Barcelona: Anthropos. (Pensamento
Crítico/Pensamento Utópico; 60), 1991.
VIANNA, Lúcia Helena. “O espelho do silêncio”. Revista tempo brasileiro, Rio de Janeiro,
n.101, abr./jun., 1990.
WERNECK, Maria Helena Vicente. O feminino na leitura. Revista Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, n.101, abr./jun., 1990.
WOLLSTONECRAFT, Mary. Vindicación de los derechos de la mujer. Tradução de
Carmen Martinez Gimeno. Madrid: Ed. Cátedra. (Feminismos, nº 18), 1994.
YOUNG, Íris Marion. A imparcialidade e o público cívico: algumas implicações das críticas
feministas da teoria moral e política. Feminismo como crítica da modernidade. Tradução
de Nathanael da Costa Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987.
73
UNIVERSIDADE GAMA FILHO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Av. Presidente Vargas, 62 - Candelária - RJ
CEP 20071-000. TEL. (021) 2518.2028 - R. 359 - E-mail
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Av. Presidente Vargas, 62 - Candelária - RJ
CEP 20071-000. TEL. (021) 2518.2028 - R. 359 - E-mail
“A LITERATURA COMO PONTO DE PARTIDA PARA UMA
REFLEXÃO ÉTICA FEMINISTA:
CAPITU – A ANTI-SOFIA”
Dissertação de Mestrado apresentada por Sueli do Rocio de Lara em 16 de
março de 2006 ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UGF-RJ, e
aprovada pela Comissão Julgadora formada pelos seguintes membros:
Prof.ª Dra. Maria da Penha Felício dos Santos de Carvalho
(Orientadora UGF)
Prof. Dr. Edson Peixoto de Resende Filho
(Pós-Graduação em Filosofia - UGF)
Prof.ª Dra. Deise Quintiliano Pereira
(UERJ)
Prof. Dr. Edson Peixoto Resende Filho
Coordenador de Pós-Graduação em Filosofia
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo