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Celso Nobrou Uemori
EXPLORANDO EM CAMPO MINADO: A SINUOSA
TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE MANOEL BOMFIM
EM BUSCA DA IDENTIDADE NACIONAL
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Ciências Sociais, sob a orientação do Prof. Dr. Lúcio Flávio
Rodrigues de Almeida.
Doutorado em Ciências Sociais
Pontifícia Universidade Católica de são Paulo
São Paulo - 2006
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Banca Examinadora
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, inicialmente, ao CNPq pela bolsa de estudo que possibilitou a
elaboração desta tese.
Muitas pessoas estiveram ao meu lado, dando a sua contribuição.
Agradeço ao Prof. Dr. Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida que, com sua incrível
capacidade de trabalho, exigência, rigor e incentivo, motiva todos os seus alunos e
orientandos. Comigo não foi diferente.
Muito aprendi convivendo com os colegas do Núcleo de Estudos de
Ideologias e Lutas Sócias (NEILS), espaço privilegiado para estudo, debate e
pesquisa.
Não poderia deixar de lembrar dos professores e dos colegas das diversas
disciplinas e dos agradáveis momentos que passamos juntos discutindo idéias e
trocando informações.
Ao professor Dr. Elias Thomé Saliba e à professora Drª Tânia Regina de
Luca, que participaram do Exame de Qualificação, agradeço pelas críticas,
sugestões e o cuidado com que leram parte da tese.
Márcio Berti, amigo de muitos anos, emprestou-me livros e solidariedade.
Sempre lembro com saudade de Rita Melo e de Edimílson, amigos desde o
mestrado.
Para finalizar, agradeço à Geralda pela amizade e por ter acompanhado de
perto a elaboração deste trabalho, lendo-o e dando sugestões valiosas.
RESUMO
Manoel Bomfim (1868-1932) foi, por diversas vezes, um autor relegado,
como afirmaram vários intérpretes. Saiu do “ostracismo” graças a iniciativas de
intelectuais vinculados ao Estado Novo, que viram em seu pensamento inspiração
para a busca das raízes da brasilidade e para a exortação do nacionalismo. Mais
tarde, intelectuais de esquerda enxergaram a originalidade e a coragem de um
pensador da Primeira República que se contrapôs radicalmente aos adeptos do
racismo científico, que analisou a história do país revelando o papel do
colonialismo ibérico na formação da mentalidade conservadora da classe
dominante e revelou os fundamentos econômicos e políticos do atraso do país,
afastando-se, assim, da voga do determinismo racial e climático.
Hoje, sua obra volta a ser objeto de interesse de pesquisadores
acadêmicos e de profissionais da imprensa. As idéias de Bomfim ainda
interessam porque sua batalha pela educação e o seu esforço para compreender
as raízes do fracasso do país como nação permanecem atuais.
Este trabalho gira em torno desses eixos temáticos: 1) como Bomfim se
apropriou de idéias e conceitos elaborados, na Europa, com finalidades
conservadoras, e os retrabalhou para criticar os dominantes e, também, para
pensar a “servidão voluntária” dos dominados; 2) a importância das idéias de
Darwin para a elaboração de noções centrais do pensamento de Bomfim, como a
solidariedade, a crítica ao racismo e ao etnocentrismo ocidental e sua posição
antibelicista; 3) as ambigüidades do discurso de Bomfim sobre a formação da
nacionalidade, frisando que a nação tal qual é descrita no livro A América Latina
(1905) não é a mesma que aparece no livro O Brasil na América (1929); 4) a
relação dicotômica entre o Estado parasita e sua “hospedeira”, a nação.
À guisa de conclusão, destaco a originalidade de um pensamento que foi se
construindo no interior do complexo entrelaçamento entre as opções pessoais do
autor e a influência do contexto político e cultural de sua época.
ABSTRACT
Manoel Bomfim (1868-1932) was for a long time a relegated author, as
several interpreters have affirmed. Bomfim went out of the “ostracism” thanks to
initiatives of intellectual entailed to the Estado Novo, (1937-1945), who saw in
his thoughts inspiration for the search of the brasilidade roots and for the
exhortation of nationalism.
Later, intellectuals of left saw the originality and the courage of a First
Republic thinker who opposed radically to the followers of the scientific racism,
who analyzed the country's history revealing the Iberian colonialism role in the
formation of the conservative mentality of the dominant class and, also, the
economic and political foundations of the delay of the country, getting away, this
way, of the vogue of the racial and climatic determinism.
Nowadays, his work is object of the interest of academic researchers and
press professionals. Bomfim's ideas are still important because his battle for the
education and his effort to comprehend the reasons of Brazil's failure as a
nation.
This thesis analyses the following subjects: 1) How Bomfim retook ideas
and elaborated concepts, in Europe, with conservative purposes, and re-worked
them to criticize the dominant and, as well, to think the “voluntary servitude” of
the dominated; 2) The importance of Darwin's ideas for the development of
main concepts of Bomfim's thought, like the solidarity, the criticism to the racism
and to occidental ethnocentrism and his anti belligerence position; 3) The
ambiguity of Bomfim's speech on the nationality formation, stressing that the
nation just as it is described in the book A América Latina (1905) is not the
same nation that appears on the book O Brasil na América (1929); 4) the
dichotomist relationship between State parasite and its "hostess", the nation..
As a conclusion, I highlight the originality of a thought that built itself
inside the complex tangle between the author's personal options and the
influence of the political and cultural context of his time.
SUMÁRIO
Apresentação 1
Manoel Bomfim na historiografia 1
Um perfil difícil de definir 9
Manoel Bomfim e a História intelectual 11
A marca pessoal do autor 12
Contexto e perigo do anacronismo 14
Manoel Bomfim, um intelectual eclético 15
Fontes 16
Capítulo 1 - Dominação e Consentimento 20
Conceitos e idéias estrangeiros 21
Evolucionismo biológico, imitação e livre-arbítrio 22
Um evolucionista perplexo diante da imutabilidade 26
“Escravos passivos da tradição e da rotina” 32
“Os escravos sem voz” 34
“Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho” 41
Parasitismo orgânico e parasitismo social 51
Capítulo 2 – A influência de Darwin 59
A heterodoxia de Manoel Bomfim 59
Companheiros de viagem 61
O discurso crítico de Manoel Bomfim 63
Darwin e Bomfim 68
O Darwnismo no Brasil 73
Darwinismo, altruísmo e guerra 77
Darwin por Manoel Bomfim 82
Darwin e a guerra 97
Capítulo 3 – As origens da “nação” brasileira na obra historiográfica de
Manoel Bomfim 99
A gênese da “nação” brasileira na obra A América Latina 100
A ideologia da mestiçagem em xeque 102
A América Latina, obra anti-romântica 104
A redenção do passado colonial na obra O Brasil na América 105
Duas forças modeladoras: o parasitismo social e a nação como sujeitos 107
A “alma do Brasil” 112
História 115
Manoel Bomfim e a “redescoberta do Brasil” 119
A “cultura” brasileira entre a razão nacional e a razão universal 120
A “ida ao povo” 123
Retratos do Brasil 129
Identidade paulista e identidade nacional 132
Na contra-corrente da eugenia 133
Nacionalismo 136
Capítulo 4 Estado bragantino contra a Nação 141
Nações 141
Estado versus nação 142
Duas tradições 145
Estado e classes 147
Manoel Bomfim e Oliveira Vianna 158
A nação (re)construída de baixo 164
Considerações finais 167
A metáfora organicista 167
Nacionalismo versus internacionalismo 169
As ambigüidades de Bomfim 173
Fontes e Bibliografia 177
Textos de Manoel Bomfim 177
Bibliografia 179
Nota biográfica 192
1
APRESENTAÇÃO
Manoel Bomfim na historiografia
Médico por formação, historiador, psicólogo, pedagogo, educador, autor de
estudos de psicologia, de livros didáticos de história e de compêndios de zoologia
e botânica, Manoel Bomfim (1868-1932) foi, por muito tempo, um intelectual
relegado, pois, como muitos intérpretes afirmaram, sua obra caiu no
esquecimento. Basta comparar a quantidade de estudos que mereceram
Varnhagen, Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato,
Alberto Torres, Oliveira Vianna e Gilberto Freyre. Salvo engano, não há nenhuma
biblioteca que possua sua obra completa, a qual encontra-se dispersa em
diferentes instituições, sendo que algumas são encontradas com muita dificuldade.
Bomfim começou a sair da sombra graças à iniciativa de alguns pesquisadores
como Carlos Maul, Wilson Martins, Darcy Ribeiro, Dante Moreira Leite, Roberto
Ventura, Flora Sussekind, Antonio Candido, Ronaldo Conde Aguiar, entre outros.
Os títulos de vários textos sobre Bomfim fazem alusão ao esquecimento da obra
de um intelectual "radical", "rebelde" e "atual".
Manoel Bomfim foi retirada do esquecimento por autores que estavam, em
termos ideológicos e políticos, em campos opostos. Carlos Maul, signatário do
Manifesto do partido Nacional Fascista, autor de uma obra cuja tese consistia em
afirmar que o nacionalismo era um antídoto contra o comunismo,
1
publicou, em
1935, um livro intitulado Brasil,
2
com fragmentos dos três textos de história de
Bomfim (A América Latina – males de origem, O Brasil na América e O Brasil
nação). Maul realçou o que havia de “genuíno”, de “profundamente brasileiro” nos
textos de Bomfim. Os escritos deste passaram a ser divulgados e conhecidos
graças, em grande medida, à coletânea. Azevedo Amaral saudou a reedição de A
1
MAUL. Carlos. Nacionalismo e comunismo. Rio de Janeiro: Baptista de Souza, 1936.
2
MAUL, Carlos. Nota explicativa. In: BOMFIM, Manoel. O Brasil. Org. por Carlos Maul. São Paulo:
Editora Nacional, 1935.
2
América Latina no primeiro aniversário do Estado Novo. A obra de Bomfim ia de
encontro ao anseio do Estado Novo na sua busca da “nossa própria realidade”.
3
Se Bomfim agradou os integralistas e o Estado Novo, suas teses chamaram
a atenção também de intelectuais de esquerda. Os nacionalistas viam nos
argumentos do autor de A América Latina um apoio teórico para a crítica
antiimperialista. Aqueles que queriam captar a gênese do marxismo ou do
pensamento socialista no Brasil adotaram Bomfim como um precursor. “Pioneiro”
é a palavra de que se serviram outros tantos intelectuais de esquerda para
designar uma pessoa que não caiu na armadilha das teorias raciais, o inovador
que trouxe uma nova perspectiva científica (antropológica) para explicar a
formação da nação e do povo, negando os argumentos que relacionavam a
origem mestiça da população brasileira com o atraso do país. Ou ainda aquele
que nos incitou a entender o Brasil observando a realidade circundante e não
apenas apropriando-se de esquemas explicativos estrangeiros, geralmente mal
digeridos, servindo tão-somente de ornamento.
4
Pioneirismo também é o termo
usado por alguns para destacarem a peculiaridade de um intelectual da Primeira
República que fez a “afirmação das classes desprotegidas” ou que esteve “além
de seu tempo”.
5
Manoel Bomfim aparece nos textos de determinados analistas do
pensamento social brasileiro (que queriam evidenciar o componente crítico de
alguns intelectuais em suas respectivas épocas) ao lado de figuras como Frei
Caneca, Castro Alves, Lima Barreto, Euclides da Cunha, entre outros. Bomfim
3
AMARAL, Azevedo. Prefácio à 2 ª edição. In: BOMFM. Manoel. A América Latina: males de
origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.
4
RIBEIRO, Darcy. Manoel Bomfim, antropólogo. In: BOMFIM, M. Op. cit; o colunista Luis
Nassif referiu-se, sem esconder a sua admiração, várias vezes a Bomfim, ressaltando a sua
atualidade e importância como o “grande intérprete do Brasil” e, também, para criticar os
economistas de plantão que propõem soluções mágicas para solucionar os impasses
político-econômicos do país. Uma obra definitiva sobre o país, São Paulo, Folha de S. Paulo,
São Paulo, 15.02.1993; A dura ressureição de Bomfim, Rio de Janeiro, O Globo, 02.12.1996;
Os “financistas” e os “cruzados”, São Paulo, Folha de S. Paulo, B3, 20.11.2003; O grande
intérprete do Brasil, Folha de S. Paulo, São Paulo, B4, 19.03.2006.
5
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 5 ed., São
Paulo: Ática, 1992.
3
pertenceria à tradição brasileira da “Cultura do contra”
6
, ou seja, faria parte de um
diminuto número de indivíduos que se opuseram ao pensamento conservador. O
autor de A América Latina foi evocado, também, para se refletir sobre o país na
era da “globalização”, pois as suas proposições seriam úteis para pensar um
projeto de nação na perspectiva do multiculturalismo.
7
Os intérpretes de Bomfim compararam-no com outros autores de sua
geração. Na maioria das vezes, o objetivo era marcar a diferença em relação aos
demais, em virtude de ele ser a voz dissonante, sobretudo pelos ataques
desferidos contra a classe dominante e aos racistas.
Menos freqüente foi a busca de pontos comuns. Nesse aspecto, o autor de
O Brasil na América foi posto ao lado de Sílvio Romero, este visto, normalmente,
como o seu antípoda teórico e ideológico e ambos tidos como “pioneiros de uma
ideologia nacional”.
8
Ainda no campo das comparações, as idéias de Bomfim
foram pensadas em relação às afirmações do peruano Manuel González-Prada
9
,
com o objetivo de apreender as críticas de ambos à mentalidade conservadora
das classes dominantes do Brasil e do Peru e, também, os discursos anti-racistas.
O mais comum foi a confrontação com outros, assinalando-se os pontos
discordantes. Grosso modo, pode-se esquematizar assim o cotejo: Sílvio Romero,
Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna fariam parte do grupo de
intelectuais que aceitaram as teorias raciais gestadas na Europa e nos Estados
Unidos, servindo-se delas para elaborar explicações a respeito do atraso do país e
reiterando os fatores negativos ligados à mestiçagem. Bomfim emergiu dos textos
de seus analistas como a “voz isolada” que produziu um discurso crítico em
oposição ao discurso conservador e afirmou, ainda, que havia relação íntima entre
discurso racista e poder. Ademais, ao se afastar da noção de raça, substituindo-a
6
CANDIDO, Antonio. A cultura do contra, Folha de S. Paulo, São Paulo, 7.5.1978, Folhetim, p. 8-
9.
7
ZARUR, George de Cerqueira Leite. A utopia brasileira. Brasília: Abaré, co-edição:
Flacso/Brasil, 2003, p. 71.
8
NUNES, Maria Thétis. Sílvio Romero e Manuel Bomfim: pioneiros de uma ideologia nacional.
Aracaju: Cadernos da UFS, 1976.
9
BECHELLI, Ricardo Siqueira. Nacionalismos anti-racistas: Manoel Bomfim e Manuel Gonzalez
Prada (Brasil e Peru na Passagem para o século XX). 2002. Dissertação (Mestrado em História) –
Departamento de História, Universidade de São Paulo, São Paulo.
4
pela de cultura, o intelectual sergipano atingiu o cerne da teoria da mestiçagem
que, do ponto de vista dos conservadores, cumpria duas funções: explicava o
atraso do país pela idéia de inferioridade racial e, ao mesmo tempo, projetava para
o futuro uma nação branca e homogênea. Por essa perspectiva, os argumentos
“científicos” de Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha (elaborados
com base nos pressupostos de Gobineau, Quatrefages, Agassiz, Broca) seriam
mais “adequados” no contexto da realidade brasileira das primeiras décadas da
República. As transformações socioeconômicas iniciadas com o fim da escravidão
e com a emergência de uma classe média, mas ainda não concluídas, exigiam
uma ideologia que explicasse o atraso e permitisse apontar para o futuro a
concretização da unidade nacional.
10
A crítica de Bomfim seria uma idéia
extemporânea e inoportuna, colaborando para que o autor fosse relegado pelos
seus pares.
De acordo com alguns intérpretes, a homologia entre o social e biológico
colaborou para o esquecimento de sua obra histórico-sociológica. Isto ocorreu
porque tal método teria sido superado por "outras correntes sociológicas"
11
, ou
porque havia "ambiguidades" que dificultaram a recepção da obra de Bomfim,
como apontaram Roberto Ventura e Flora Sussekind e foi sintetizada por Antonio
Candido:
crítica ao
biologismo em sociologia, mas ao mesmo tempo sua utilização como
sistema de conceitos; oscilação entre a linguagem apaixonada e a tentativa de
rigor científico.
12
No caso da crítica às teorias raciais, a preocupação de seus intérpretes foi
apreender o "contradiscurso" do autor de A América Latina. Ressaltou-se que
Manoel Bomfim negou haver oposição entre ciência – associada à objetividade e
neutralidade – e ideologia, que se ligava intrinsecamente a interesses. Questionou
a suposta imparcialidade do discurso científico, ao sustentar a tese de que este
10
ORTIZ, Renato. Memória coletiva e sincretismo científico: as teorias raciais do século XIX. In:
_________. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 31 e 34.
11
CANDIDO, Antonio. Radicalismos. Revista do Instituto de Estudos Avançados, 4(8), São
Paulo, 4(8): 4-18, Jan.- Abr. 1990, p. 11.
12
Idem, p. 11.
5
servia à dominação, seja de classe, seja do imperialismo. A pretensa
imparcialidade ocultaria os interesses "dominantes", que pretenderiam naturalizar
e, com isso, legitimar as hierarquias sociais.
13
Em suma, entre ciência e poder
havia afinidade e não oposição.
Os intérpretes do pensamento de Manoel Bomfim destacaram, ainda,
apropriação de categorias da zoologia e da botânica. Parasitismo definia a relação
entre dominantes (os parasitas) e dominados (os parasitados). O primeiro era a
colônia, o colonizador, o senhor, o capital e o imperialismo. O segundo era a
colônia, o escravo, o proletário e a nação. Havia, pois, uma analogia entre o
organismo social e biológico. Parasitismo seria, para Bomfim, “pressuposto de
investigação”.
14
Vários autores ressaltaram a aproximação de Bomfim ao marxismo. Antonio
Candido associou o "radicalismo" do autor de A América Latina ao socialismo.
Lembre-se que Sílvio Romero chamou-o de "socialista bastardo". O texto de
Roberto Ventura e Flora Sussekind intitula-se Uma teoria biológica da mais-valia?
Manoel Bomfim, de acordo com Dante Moreira Leite, não poderia ser
compreendido porque aderira ao socialismo no momento em que os intelectuais,
"direta ou indiretamente, estavam seduzidos pelas realizações de Mussolini na
Itália
15
".
Desde os anos 80, a obra de Bomfim tem sido sistematicamente estudada
em trabalhos de mestrado, doutorado e em artigos.
16
As análises insistem em
13
Baseado na noção de contradiscurso de Marilena Chauí, Roberto Ventura e Flora Sussekind
afirmaram que Bomfim elaborou um discurso crítico no interior do discurso dominante, como o "seu
negativo, a sua contradição". VENTURA, Roberto; SUSSEKIND. Uma teoria biológica da mais-
valia? (análise da obra de Manoel Bomfim). In: ________. História e dependência: cultura e
Sociedade em Manoel Bomfim. São Paulo: Moderna, 1984. p. 15.
14
MARTINS, WILSON. História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978. (1897-1914).
p. 274. vol. v.
15
LEITE, Dante. Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 5 ed., São
Paulo: Ática, 1992 p. 251. (grifo do autor, no original)
16
Rebeca Gontijo em seu estudo sobre Manoel Bomfim, fez um levantamento minucioso do que
existe sobre o intelectual sergipano, inclusive artigos, teses e dissertações produzidas nos anos 80
e 90. O objetivo da pesquisadora consistiu em revelar que esses textos contribuíram para a criação
de uma memória sobre o autor de A América Latina. GONTIJO, Rebeca. Manoel Bomfim (1868-
1932) e o Brasil na história. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de
História da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.
6
afirmar a “originalidade” de um intérprete da formação sócio-histórica do Brasil,
que desvendou os mecanismos de sustentação do atraso do país e da ideologia
que o justificava. Se, por um lado, a tônica desses estudos consistiu em enaltecer
um intelectual “pioneiro”, “sui generis” em sua crítica ao pensamento conservador,
por outro, emerge desses textos as “ambiguidades” de um egresso da oligarquia,
que elaborou uma crítica ao pensamento conservador sem romper, contudo, com
a sua classe. Outra “incoerência” referia-se ainda a um alegado descompasso
entre um diagnóstico profundo e cortante da realidade social e uma proposta
amena, “reformista” (a educação) como solução, configurando-se, assim, uma
atitude típica de um intelectual movido pelos idéias do reformismo ilustrado, que,
ao cabo, fazia de Bomfim um adepto da conciliação de classes.
Desse ponto de vista, a “ambigüidade” do autor de A América Latina
deveria ser relativizada, uma vez que era a ambigüidade dos intelectuais da
chamada “Geração modernista de 1870” (frustrados que estavam com a
República) e também da sociedade (na qual ainda coexistiam os “valores
paternalistas herdados e a convicção modernizadora dos valores burgueses
desejados”).
17
Ademais, o enfoque na educação, antes de significar um
“decepcionante estrangulamento da argumentação”
18
, organizou o pensamento e
atuação política e intelectual, bem como capacitou-o a pensar a sociedade
brasileira da perspectiva da análise histórica-cultural (superando e negando o
determinismo biológico) e possibilitou-o a conceber a realidade como algo passível
de transformação - pela “ação educativa”.
19
Vista por outro ângulo, essa
ambigüidade, para outros, foi superada, uma vez que na sua obra da maturidade,
O Brasil nação, ele teria defendido a revolução nacional e popular, seguindo o
17
BOTELHO, André. O batismo da instrução: atraso, educação e modernidade em Manoel
Bomfim. 1997. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Departamento de Sociologia da
Universidade de Campinas, p. 43.
18
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: __________. A educação pela noite e
outros ensaios. 2 ed. São Paulo: Ática, 1989, p. 147.
19
BOTELHO, André. Op.cit. p. 46-47.
7
modelo da Revolução Mexicana, abandonando-se, pois, a idéia de redenção
nacional pela educação.
20
Trabalhos acadêmicos e artigos publicados na imprensa ressaltam a
“atualidade” de uma obra que não perdeu o vigor, servindo de material para refletir
sobre um país que convive com problemas multisseculares, como a posse privada
do Estado e em que recursos públicos são desviados para um setor restrito da
sociedade, em detrimento de áreas como educação e saúde. As ideais de Bomfim
tem servido para criticar os economistas brasileiros que estudam no exterior e
trazem na bagagem fórmulas prontas para resolver os problemas nacionais num
passe de mágica.
21
A obra de Bomfim não repercutiu em sua época e foi resgatada
posteriormente por intelectuais identificados com a esquerda e com a direita. Nos
anos 30 do século passado, o seu pensamento serviu ao propósito da política
cultural do Estado Novo que queria “redescobrir” as raízes da brasilidade. Desse
modo, dos seus textos histórico-sociológicos interessaram os aspectos que
serviam à exortação do nacionalismo e do patriotismo. Nas décadas de 70 e 80,
sua obra foi lida e estudada por pessoas que viam em suas idéias um arsenal para
atacar o racismo, o autoritarismo, bem como para forjar um projeto de nação
elaborado na perspectiva das liberdades democráticas e, quem sabe, do
socialismo.
Nesses diversos estudos, o enfoque recai sobre o seu pioneirismo, a sua
crítica radical à classe dominante e aos que viam com pessimismo o futuro de
uma sociedade miscigenada. Bomfim teria aberto um caminho até então
desconhecido para se entender e explicar a realidade do país desvendando a
influência da herança cultural ibérica sobre instituições e sobre a formação da
psicologia coletiva do brasileiro - que faz deste um conservador “instintivo”. O
autor de A América Latina foi visto, então, como um legítimo representante da
20
CANDIDO, Antonio. Radicalismos. Revista do Instituto de Estudos Avançados ...; BARONI,
Márcio Henrique de Morais. Manoel Bomfim: entre continente e nação. 2003. Dissertação
(Mestrado em Sociologia) - Departamento de Sociologia da Universidade de Campinas, Campinas.
21
A idéia de Bomfim, segundo a qual, os que se dizem revolucionários são no fundo
conservadores, realidade verificável quando estes chegam ao poder, foi mencionada por um
colunista em referência à atuação do PT no governo federal. GASPARI, Elio. O governo gosta do
atraso, Folha de S.Paulo, São Paulo, A-16, 2.11.2003.
8
“cultura do contra”, ou seja, um intelectual cuja obra seria útil para questionar
estruturas conservadoras e autoritárias.
De acordo com um estudioso de Bomfim, a concepção elaborada pelos
seus admiradores e biógrafos, exaltando o “rebelde esquecido”, tende para a
apologia que, ao cabo, encobre várias questões: Bomfim não teria produzido uma
“história oficial a contrapelo”, ou seja, um “contradiscurso oficial”? Sua proposta de
revolução não era uma idéia vaga e abstrata na medida em que ele não precisa
nem os sujeitos nem para quem a proposta se dirigia? Sua concepção de nação
não seria mítica, idílica, abstrata? Suas pregações nacionalistas poderiam, quem
sabe, fomentar o xenofobismo e também servir de manancial para justificar
projetos políticos e sociais autoritários.
22
Esta pesquisa foi realizada sem perder de vista o diálogo com os outros
autores que estudaram anteriormente as idéias de Manoel Bomfim. Estamos
conscientes de que o Bomfim que chega até nós somente pode ser delineado
levando-se em consideração o que escreveram os seus amigos, os seus
desafetos, os que o retiraram do esquecimento (tanto os de direita quanto os de
esquerda), os que o transformaram em fonte para projeto cultural de um governo
autoritário; bem como a esquerda que viu em alguns de seus argumentos o
precursor do socialismo, o intelectual solidário com a população pobre ou o crítico
do pensamento conservador; os nacionalistas que enalteceram o pioneiro da luta
antiimperialista etc. A sua obra não é um objeto congelado no tempo, pois vive
graças aos reiterados estudos, interpretações, julgamentos, apologias etc. Seus
leitores e intérpretes são responsáveis, pelo menos parcialmente, pela construção
de sua “identidade” intelectual.
23
22
REIS, José Carlos. Manoel Bomfim e a identidade nacional brasileira. In: LOPES, Marcos
Antônio (Org). Grandes nomes da história intelectual. São Paulo: Contexto, 2003, p. 502-503.
23
Textos literários não são objetos fixos que guardam, intacto, o seu significado original, pois parte
de sua identidade depende de uma “comunidade” formada por editores, tradutores, intérpretes e
leitores. Sobre o assunto, SAID, Edward. O orientalismo reconsiderado. In: _______. Reflexões
sobre o exílio e outros ensaios, São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 64.
9
Um perfil difícil de definir
Identidade, aliás, bastante difícil de captar e definir, pois não existem de
Bomfim diário, cartas, autobiografia, memória, que são elementos importantes
para o pesquisador interessado em reconstruir uma trajetória intelectual. Escritos
de natureza intimista, como as correspondências, dirigidas para o leitor que é, na
realidade, seu confidente, trazem dados valiosos para compreender melhor a
origem, o processo, as tensões, o vai-e-vem, que são partes constitutivas da
construção de idéias, conceitos, opiniões, julgamentos etc. Esse tipo de suporte
informa ao pesquisador sobre quem são os autores prediletos, as linhas de
pensamento que o seduziram, as suas preferências literárias e estéticas, bem
como as suas afinidades ideológicas.
A tentativa de incluir Bomfim nas redes de sociabilidade de sua época é uma
empreitada difícil. Há poucas informações a respeito de sua participação em rodas
boêmias, grupos literários, cafés, livrarias, salões. Nesses ambientes sociais
formam-se redes de intercâmbio, de reconhecimento junto aos pares, de
estratégias de legitimação, laços de afinidades e desafetos. Polêmicas, elogios
mútuos, protecionismos e perseguições são elementos constitutivos desses
agrupamentos. Raros foram os homens de letras da geração de Bomfim que não
participavam ativamente das cotéries. Ao que tudo indica, o autor de A América
Latina não fugiu à regra, pois ele era freqüentador das palestras na Livraria
Garnier, dos cafés e fez conferências, que era uma atividade da moda. Ademais,
beneficiou-se de uma prática comum nessas redes de sociabilidade, qual seja, a de
conseguir colocação, por meio de amigos influentes, em uma repartição pública.
Alcindo Guanabara, então deputado federal, apresentou o amigo Bomfim, em 1895,
ao então Prefeito do Distrito Federal, Werneck de Almeida, que o nomeou para
dirigir o Pedagogium, órgão responsável pela coordenação e controle das
atividades pedagógicas do país.
24
Por outro lado, Bomfim, quando foi Diretor da
Instrução, nomeou o dileto amigo Olavo Bilac para o cargo de inspetor escolar. De
certo modo, Bomfim participou de práticas comuns da “República das Letras”,
como revelam os dois episódios.
24
Manoel Bomfim dirigiu o Pedagogium por dezessete anos, de 1896 a 1905 e de 1911 a 1919.
10
Contudo, ele parece ter deixado de se servir de mecanismos usuais de
inserção, consagração e legitimação junto à comunidade intelectual, como a
participação em polêmica, que era uma forma de afirmar o pertencimento a uma
certa agremiação, definindo a sua identidade, bem como a demarcação das
diferenças em relação às outras. Ademais, havia um público sequioso para
assistir à guerra verbal entre indivíduos e grupos rivais, o que explica, quiçá, o
fato ter sido raro o intelectual que não tenha se envolvido em alguma
escaramuça. Bomfim pode ser colocado entre as exceções.
25
A oportunidade mais clara de envolvimento em uma polêmica aconteceu
quando Sílvio Romero fez uma crítica violenta ao livro A América Latina e ao
autor. Como é sabido, Romero escreveu, em 1906, vinte e cinco artigos na revista
Os Anais apontando os “defeitos” do livro recém publicado e desqualificando
intelectualmente o então jovem Bomfim. A obra A América Latina, na crítica
verborrágica e vilipendiosa de Romero, não passava de um amontoado de erros e
falsidades. Bomfim foi lacônico em sua resposta, limitando-se a afirmar, em
poucas linhas, que o seu estudo tinha uma sólida fundamentação científica, o que
faltava ao seu oponente. Além disso, o autor de História da literatura brasileira
seria um membro das classes conservadoras, ou melhor, um representante tardio
da elite que, no passado, defendera a escravidão.
26
A ocasião poderia ser
importante para o jovem intelectual ganhar visibilidade ao confrontar-se com um
autor consagrado, famoso polemista, que era amado e odiado e tinha grande
projeção na República das Letras.
27
Ademais, o fato de Romero ter gasto tanto
25
MACHADO NETO, A. L. Estrutura social da república das letras: sociologia da vida intelectual
brasileira – 1870-1930. São Paulo: Grijalbo, EDUSP, 1973, p. 147.
26
BOMFIM, Manoel. Uma carta: a propósito da crítica do Sr. Silvio Romero ao livro A América
Latina. Os Anais, Rio de Janeiro, ano II, nº 74, 1906, p. 169-170
27
Exemplo de polêmica entre um jovem intelectual e outro já consagrado aconteceu em 1875,
entre Joaquim Nabuco e José de Alencar, nas páginas de O Globo. Em poucas palavras, o debate
pode ser visto como o confronto entre o adepto do cosmopolitismo (Nabuco) e do nacionalismo
(Alencar). Por outro lado, o ataque desferido contra o consagrado autor de “O Guarani” como uma
estratégia usada pelo jovem Nabuco (o “dândi” que acabara de chegar de uma temporada na
Europa, onde conhecera ícones da intelectualidade como Renan, Taine, Georges Sand, e que
afirmava estar envolvido em “uma espessa camada européia”) para ser visto, admirado e tornar-se
influente. Bomfim era o antípoda de Nabuco, não somente pela sua ênfase na brasilidade, em
oposição ao cosmopolitismo do outro, como pela sua abdicação de servir-se de meios de
consagração. Sobre a polêmica, ver COUTINHO, Afrânio. Apresentação. In: _______. A polêmica
Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro Ltda, 1965.
11
energia e tempo para atacá-lo poder ser visto como o reconhecimento (embora
inconsciente) do mérito do livro e do valor do autor.
Ao não participar do debate com Romero, ele abriu mão de um instrumento
importante e muito utilizado na República das Letras para conquistar público e
construir reputação junto à comunidade intelectual. O desgosto pela polêmica fica
claro ao se observar que, nos textos de Bomfim, a linguagem bélica de que se
serviam os contendores foi dirigida contra as classes dominantes e ao Estado, os
parasitas da nação. E há um aspecto suplementar que precisa ser mencionado.
Quando ele atacava os racistas, sua ira voltava-se contra Le Bon, Lapouge,
Agassiz, mas não deu ênfase, ou sequer citou, nomes como Nina Rodrigues ou
Sílvio Romero.
28
Em outras palavras, a crítica (elaborada com muita virulência
verbal) queria atingir os estrangeiros.
Outro dado suplementar exemplifica porque Bomfim não tirou maior
proveito do seu “capital simbólico”. O autor de A América Latina não aceitou o
convite de Machado de Assis para juntar-se aos “imortais” da Academia Brasileira
de Letras. Pertencer a este seleto grupo garantia visibilidade e distinção social.
29
Do que foi dito, podemos realçar um aspecto que marca a individualidade do autor
de A América Latina em relação à maioria dos intelectuais da sua geração.
Manoel Bomfim e a História intelectual
Este trabalho foi elaborado sem perder de vista a relação complexa entre o
indivíduo que pensa e escreve e as influências externas que atuam sobre ele. O
vínculo entre pessoa e classe social a que pertence precisa de uma atenção
especial. Há sem dúvida determinação, restando saber o grau e a natureza.
Concordo com Mannheim, para quem os intelectuais constituem-se em um
“estrato desamarrado, relativamente sem classe”.
30
A convivência nas instituições
educacionais e experiências culturais comuns favorecem o esmaecimento de
28
Excetuando-se Oliveira Vianna. BOMIFM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da
formação brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 193.
29
AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2000, p. 202.
30
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p. 180 (grifo no original).
12
diferenças de nascimento, status e riqueza, criando-se, desse modo, um grupo
razoavelmente homogêneo e menos identificados a uma classe do que os que
participam do processo econômico. Uma afirmação com essa conotação não
significa que o vínculo com a classe foi superado. Do assunto da autonomia dos
intelectuais em relação às classes ocuparam-se Michael Löwy e Lukács. O
primeiro concorda, em parte com Mannheim. No entanto, há o que Löwy chamou
de “flutuação temporária” de um indivíduo. Em tal situação, ele pode vir a ser
ideólogo ou estar solidário com outra classe, mas em algum momento ele terá de
fazer a opção por uma classe. Lukács
31
escreveu que é possível operar-se a
ruptura parcial ou total dos indivíduos da burguesia com a sua classe. Mas com as
tensões inerentes aos contextos revolucionários, esses intelectuais abandonam a
crítica às contradições do capitalismo passando a fazer a apologia da ordem e
tornam-se mistificadores (ao negar ou “naturalizar” a lutas de classes).
32
A marca pessoal do autor
Do autor de Ideologia e utopia beneficio-me ainda do que escreveu sobre a
relação entre indivíduo e determinadas instâncias coletivas. De acordo com
Mannheim, “não há intelecto puro”
33
, pois idéias e linguagens são elaborações
coletivas, que restringem a autonomia da pessoa. A linguagem do indivíduo é, na
realidade, a de sua época, de seus contemporâneos ou de quem veio antes dele.
Ela é, também, uma “herança” de seus predecessores que “prepararam o
caminho”. Diante disso, é possível falar em autonomia da pessoa? Para
Mannheim, há uma margem de independência, já que “só o indivíduo é capaz de
pensar”, logo, nenhuma instância como “mente de grupo” pode pensar por ele. No
entanto, o sujeito não é um receptor passivo de idéias previamente formadas por
outros, que viveram em outra época e estavam inseridas em outras situações
31
Marx e o problema da decadência ideológica. In: COUTINHO, Carlos. Nelson (Org. e trad.).
Marxismo e teoria literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
32
O autor mencionou o caso de Thomas Carlyle que, de crítico corajoso “dos horrores da
civilização capitalista”, desnudando as contradições suas contradições, passou a ser,
posteriormente a revolução de 1848, um apologista da sociedade burguesa e acabou caindo ao
nível espiritual e moral de um Malthus. Idem, p. 58-9.
33
Op. cit., p. 21.
13
sociais. Não, o indivíduo é um receptor ativo, pois reelabora, substitui, acrescenta
de acordo com as necessidades inerentes ao contexto em que vive.
34
Neste momento, faz-se necessário uma breve referência à apropriação de
autores e idéias estrangeiros pela intelectualidade de países “periféricos”, pois
sentem-se atraídos pelo que se produz na Europa e nos Estados Unidos, vistos
como modelo de "progresso" e "civilização", onde buscam teorias que seriam
capazes explicar o “atraso” do país. A transferência de idéias estrangeiras não se
explica simplesmente como o resultado da dominação cultural exercida pelos
países centrais sobre a “mente colonizada” dos intelectuais locais, tidos como
receptores passivos, pois não teriam outra opção senão aceitar o que lá fora é
visto como verdade universalmente. Estudiosos como Alfredo Bosi, Roberto
Ventura, Mary Louise Pratt, Fernando Azevedo e Renato Ortiz
35
deixam claro que
o "consumo" de teorias estrangeiras implica escolha, transformação e adaptação.
Elas podem receber significados desconhecidos no lugar e no tempo em que
foram elaboradas. Adotar ou não tais “verdades universais” implica, por parte de
quem incorpora, opção pessoal.
Este trabalho foi conduzido observando-se que o indivíduo escolhe o seu
interlocutor, dialoga com ele, capta idéias e modifica-as. Ele não é, pois, uma
caixa de ressonância de uma formação discursiva hegemônica, em que o papel
individual do autor desaparece sob o peso do corpo anônimo de textos coletivos. Á
medida que lia os textos de Bomfim, paralelamente com outros de sua geração,
ficava cada mais evidente a existência da marca individual do autor e de cada
texto em particular.
Do que foi dito, não se conclua que a análise de textos possa prescindir de
elementos exteriores a ele, como as estruturas materiais, as ideologias, os
valores, os interesses hegemônicos das classes, instituições ou grupos. As idéias
não circulam espontaneamente de uma mente para outra, de um texto para outro.
Mas isto não significa desconhecer que há interlocução entre sujeitos que
34
Idem, p.31.
35
BOSI, Alfredo. Colônia, culto e cultura. In: ______. Dialética da colonização. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992; VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história, cultura e polêmicas
literárias (1870-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1991; PRATT, Mary Louise. Imperial
eyes: travel, writing and transculturation. London/New York: Routledge, sd.; Ortiz,Renato. Op. cit.
14
dialogam com a tradição, pensam o já pensado, falam sobre o já dito - inovando, e
reelaborando idéias e discursos. Foi esse o procedimento de Manoel Bomfim.
Contexto e o perigo do anacronismo
Pecado capital do intérprete de uma obra é cair na armadilha do
anacronismo, ou seja, imputar a um autor do passado idéias, visões de mundo
que não seriam factíveis, dado que não havia suporte conceitual para elaborá-los.
Há que estar atento para o fato de que o indivíduo pensou e escreveu sobre as
questões de seu tempo. Para evitar o anacronismo é preciso estar consciente de
que as “questões situadas fora de sua época [estão] despidas de correspondência
histórica com o que então vai-se construindo”
36
, e, por isso, surge a necessidade
de contextualizar a obra. Esta implica repudiar a idéia segundo a qual um dado
texto está em “eterno presente”, como se as idéias fossem algo a-temporal e que
“entram e saem das mentes ao longo dos séculos”.
37
Na realidade, o significado
das idéias contidas em um texto tem a ver com o contexto específico em que elas
emergiram, o que obriga a conhecer a linguagem conceitual e a cultura da época.
Deve-se prestar a atenção, também, para o fato de que o indivíduo dirige-se aos
interlocutores do seu tempo e não para nós. Desse modo, os seus discursos
precisam ser vistos como ações conscientes de quem aceita, critica, julga, repudia
opiniões, enfim, alguém que deseja participar do debate, colocando-se ao lado ou
opondo-se a uma tradição. Daí a necessidade de reconstruir os temas centrais
que estavam em pauta, as suposições ideológicas que orientavam o pensamento,
as aspirações, as frustrações, ou seja, captar o mundo mental no qual o autor
36
VESENTINI, Carlos. Alberto. Maria Quitéria de Jesus: história e cinema. Anais do Museu
Paulista, São Paulo, tomo XXIX, 1979. p. 31.
37
DARNTON, Robert. História intelectual e cultural. In: ________. O beijo de Lamourette: mídia,
cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 190.
15
escreveu o seu livro. Esta pesquisa buscou captar a motivação do autor
38
, ou seja,
apreender o que o ele queria dizer com o texto que estava escrevendo.
Manoel Bomfim, um intelectual eclético
Manoel Bomfim era um intelectual múltiplo. Ele escreveu ensaios
historiográficos, estudos de psicologia, livros didáticos de biologia, artigos sobre
educação e uma obra dirigida ao público infanto-juvenil (Através do Brasil). A sua
atuação profissional também foi marcada pela multiplicidade: foi professor, diretor
do Pedagogium, fundou e dirigiu periódicos, foi deputado e por algum tempo
exerceu a medicina. O seu ecletismo pode ser estendido para o Bomfim leitor.
Sociólogos, historiadores, antropólogos, filósofos, escritores, psicólogos, biólogos
são mencionados em seus escritos histórico-sociológicos, em estudos de
psicologia, em artigos sobre educação. Era um leitor voraz e eclético. Assim como
é difícil definir o seu perfil profissional, o mesmo se dá quanto à definição do seu
perfil intelectual. Ele disparou contra os simpatizantes do racismo científico, o
militarismo, o positivismo, o liberalismo (“demagógico”), leu, citou e beneficiou-se
de idéias de autores que estavam ideologicamente em campos opostos, como
socialistas, anarquistas, liberais e conservadores. Mas há um dado que precisa
ser destacado: ele era um leitor não sistemático, porém tinha uma sensibilidade
aguçada para transformar as diversas idéias que entrava em contanto.
Essa “incoerência” de Bomfim produz no seu leitor inquietação. Como
analisar idéias cheias de ambigüidades, contradições e inflexões? Uma resposta
possível talvez seja analisar o seu pensamento tendo em vista uma certa
característica peculiar à tradição intelectual brasileira. Trata-se do que Luiz Costa
38
Skinner acreditava na possibilidade de recuperar a “intenção original do autor”; os oponentes dos
contextualistas não acreditavam nisso, pois para eles o texto chega até nós através das várias
interpretações, as quais “constituem a realidade histórica do seu ser”. Têm-se, pois, as diversas
interpretações, mas a motivação original é irrecuperável. Sobre o assunto, ver HARLAN, David. A
história intelectual e o retorno da literatura. In: RAGO, Margareth; GIMENES, Renato Aloísio de
Oliveira (Orgs.). Narrar o passado, repensar a história. Campinas; São Paulo: Editora da
UNICAMP, passim.
16
Lima chamou de “a existência precária do sistema intelectual brasileiro”. De
acordo com Costa Lima, o “sistema intelectual brasileiro”
39
caracteriza-se pelo tom
moralista da crítica, o abuso da retórica, o culto da prática, do improviso, o horror à
teorização, o medo de ser original. O autor deu destaque ao que ele chamou de
“cultura auditiva”. Esta foi introduzida no Brasil pelos jesuítas e visava causar
impacto imediato no ouvinte, persuadindo-o pela “perícia verbal”, pela encenação
e não pela força do argumento. A persuasão auditiva queria a submissão do
auditório e por isso dispensava o diálogo e a demonstração racional. O intelectual,
enfim, seria o “especialista do verbo fácil”. Em determinados momentos, Bomfim
rejeitava a teoria em nome da observação direta da realidade. Mesclava análise
racional com discursos sentimental. A sua interpretação ora aproximava-se da
sociologia ora pendia para o discurso moral. A sua inserção nessa tradição não
implica negar o que o distingue e nem quer retirar o mérito dos seus insights.
Fontes
A dificuldade de reconstruir o perfil desse intelectual múltiplo, complexo não
significa que uma aproximação não seja possível e não deva ser tentada. Para
isso, temos a sua obra historiográfica, artigos publicados nos jornais, estudos de
psicologia, manuais didáticos, bem como o livro escrito com Olavo Bilac Através
do Brasil. Também dispomos de textos de amigos, como Bilac, e desafetos (como
Romero) que fornecem pistas valiosas.
Os intérpretes do pensamento de Manoel Bomfim utilizaram, basicamente,
as suas quatro obras historiográficas A América Latina (1905), O Brasil na
América (1929), O Brasil na história (1931) e O Brasil nação (1931), com ênfase
no primeiro livro. Neste trabalho, o material analisado incluiu, além dos quatro
livros de história citados, a sua produção em outros campos. A opção por
trabalhar obras com temas diversificados não foi motivada, tão-somente, pelo
39
Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil. In: Dispersa demanda: ensaios sobre
literatura e teoria. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1981.
17
desejo de entrar em contato com o conjunto da obra desse autor múltiplo, mas,
sobretudo, de tentar apreender uma certa unidade. Em outras palavras, acredita-
se na possibilidade de detectar pontos comuns nas várias obras, que,
examinadas comparativamente, poderão trazer elementos novos que ajudaram a
compreender idéias, valores, pontos de vistas, afinidade ideológica, predileção
por este ou aquele autor.
Mereceu especial atenção captar o como ele trabalhava com as suas
fontes. Fiquei atento não só com as fontes que Bomfim escolhia, mas como ele as
lia. É perceptível o caráter instrumental de sua utilização. Cotejando os seus
textos com as suas fontes, percebo que ele pinçava trechos e desprezava outros.
Retirava do autor o que interessava para reforçar uma idéia e “esquecia” outros
pedaços que poderiam significar a negação da tese afirmada. A relação com os
autores estrangeiros merece um estudo minucioso. Em primeiro lugar, a
observação feita a respeito de como ele lidava com as fontes poder ser estendida
para a forma como ele lia e incorporava também esses os autores; em segundo, é
necessário ficar atento para os autores que aceitava e os que rejeitava; em
terceiro, muita vezes se referia a um determinado autor com o intuito de tomar
emprestado a sua autoridade e, assim, dar legitimidade a uma tese; em quarto,
fica nítido que a influência de intelectuais estrangeiros não significava assimilação
mecânica e passiva, pois Bomfim adotava o procedimento de selecionar, recortar,
aceitar, rejeitar e adaptar conceitos e idéias. Fiquei atento, também, para as
“lacunas”, os “silêncios”, o que “estranhamente” está ausente. A intenção de
captar esses “detalhes” inspira-se numa idéia de Robert Darnton. Quando o
historiador se depara, por exemplo, com uma sabedoria proverbial antiga e não
entende o seu significado, aí está a sua matéria da pesquisa. Se um provérbio,
uma piada, um ritual, uma afirmação é ininteligível para nós, isto significa que
“encontramos algo”.
40
Com esse procedimento, foi possível uma aproximação do
que Skinner chamou de “motivação” do autor, ou seja, a tentativa de captar o que
o nosso autor queria com o texto que estava escrevendo.
40
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural
francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. xv.
18
Este trabalho está dividido em quatro capítulos. “Dominação e
consentimento”, o primeiro capítulo, aborda como Manoel Bomfim apropriou-se e
retrabalhou conceitos como hereditariedade, adaptação, imitação, transmissão
dos caracteres adquiridos (os quais foram elaborados por intelectuais europeus
com o intuito de, muitas vezes, defender argumentos anti-socialistas ou antiliberais
e legitimar a ordem social) para atacar a classe dominante latino-americana. Em
seguida, analisei o conceito de parasitismo social que, na perspectiva de Bomfim,
explicava o comportamento rotineiro da classe dominante, a submissão
“voluntária” dos dominados e o conservadorismo essencial dos que se diziam
portadores da vontade de transformar a ordem vigente.
No segundo capítulo, intitulado “A Influência de Darwin”, trato da influência
de Darwin sobre o pensamento de Bomfim. O autor de A origem das espécies,
cuja teoria da seleção natural serviu para finalidades políticas e ideológicas
diversas (quase sempre conservadoras), mas esteve na origem, assim tentei
demonstrar, de alguns argumentos de Bomfim: a crítica ao etnocentrismo (a idéia-
força que afirmava a superioridade “natural” do homem branco ocidental, dividindo
a humanidade em superiores e inferiores); a adesão ao “relativismo cultural” e a
crença na solidariedade, no altruísmo e na aversão ao militarismo.
No capítulo 3 (“As origens da ‘nação’ brasileira na obra historiográfica de
Manoel Bomfim”) comparo o primeiro livro A América Latina com as demais obras
historiográficas (O Brasil na América, O Brasil na história e O Brasil nação) para
analisar as idiossincrasias, as ambigüidades, as contradições do pensamento de
Bomfim relativamente ao tema nação. Ao contrário de seus intérpretes e do que o
próprio autor diz, os textos elaborados no final da década de vinte não são a
continuação do que escrevera em na obra publicada em 1905. Ao observar as
nuances, as rupturas, os desvios da trajetória do pensamento de Bomfim, procurei
fugir de uma interpretação teleológica.
No quarto capítulo, intitulado “O Estado bragantino contra a Nação”, abordo,
de início, as concepções de Estado e de nação na obra historiográfica de Manoel
Bomfim. Em seguida, discuto dois argumentos de alguns de seus intérpretes: 1) a
de que Bomfim aprovava a reação violenta da população contra o Estado
19
opressor; 2) que ele teria superado a concepção liberal, aproximado-se de um
ponto de vista marxista.
20
Capítulo 1
Dominação e Consentimento
A colônia é parasitada; mas, mesmo
dentro da colônia, o parasitismo se
exerce. Em suma, a vítima das vítimas
é o escravo, e este é o único que não
tem voz, nem para queixar-se.
(Manoel Bomfim, A América Latina: males
de origem)
Na prática, todos esses homens das
classes dirigentes são escravos
passivos da tradição e da rotina”.
(Manoel Bomfim, A América Latina: males
de origem)
Mesmo os mais ousados entre os
homens públicos, os mais
revolucionários, são tão conservadores
como os conservadores de ofício.
(Manoel Bomfim, A América Latina: males
de origem).
A primeira epígrafe revela a relação entre parasitas e parasitados em dois
planos. No externo, referia-se à relação de exploração e domínio das metrópoles
sobre as colônias; no interno, a exploração e dominação de classe.
A relação entre parasitas e parasitados foi pensada preponderantemente
sob a ótica da exploração econômica monopólio ou “exclusivo mercantil” , das
metrópoles ibéricas sobre as colônias, no nível macro. Esse processo de
exploração se transferiu para o mundo das micro-relações pessoais, relações
essas baseadas no frio interesse material. A busca do lucro passou a ser a razão
de ser dos senhores, dos padres, dos agentes do fisco, dos homens de
negócios
41
, todos movidos pela ambição de “sugar”, extorquindo uns aos outros,
41
BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p. 131.
21
sendo a “vítima das vítimas” os escravos, corpo e alma da produção da riqueza
colonial.
Nas sociedades coloniais ibero-americanas, o parasitismo social constituiu-
se, de acordo com Manoel Bomfim, na estrutura que, do exterior, modelou as
consciências, os sentimentos, os pensamentos e a imaginação das classes e dos
grupos sociais, ou seja, dos senhores, dos funcionários públicos, dos homens
livres pobres ou dos escravos.
Neste capítulo, abordaremos esse tema, que foi desenvolvido no livro A
América Latina. Dividimos a exposição em dois momentos: no primeiro, a nossa
preocupação será a de pensar as proposições do autor de A América Latina em
relação às idéias e conceitos que foram elaborados por intelectuais europeus, na
segunda metade do século XIX. No segundo, visamos apreender o que ele tomou
emprestado, como ele operou esses conceitos com a finalidade de explicar os
efeitos do parasitismo social sobre as classes dominantes e sobre os “oprimidos”
das colônias latino-americanas.
Conceitos e idéias estrangeiros
Os intérpretes do livro A América Latina frisaram a lucidez da análise de
Bomfim sobre o conservadorismo da “classe dirigente” latino-americana e das
conseqüências trágicas decorrentes desse comportamento em relação ao atraso
econômico, político, social e cultural para o Brasil, no plano local, e para a América
Latina, no contexto do Continente, frente às nações da Europa e dos Estados
Unidos. O nosso propósito será o de compreender o seu raciocínio relacionando-o
com os autores canônicos que ele conhecia e dos quais tomou emprestado certas
noções caras às Ciências Naturais, à sociologia e à psicologia; conceitos que
estiveram ligados a autores como Charles Darwin, Ernest Haeckel, Th. Ribot e
Gabriel Tarde. Referimo-nos às noções como evolução, hereditariedade, instinto,
adaptação e imitação e livre-arbítrio.
22
Evolucionismo biológico, imitação e livre-arbítrio
Darwin, não resta dúvida, constituiu-se no seu interlocutor privilegiado; sua
influência sobre o nosso autor foi impactante e duradoura. É por ele que
começamos.
Na natureza os seres vivos, animais ou vegetais, estão em eterna luta pela
sobrevivência; o fenômeno ocorre porque há incompatibilidade entre a tendência à
multiplicação geométrica dos indivíduos relativamente à quantidade de alimento
disponível. O desequilíbrio entre esses fatores gera a competição que, por sua
vez, leva à morte dos menos aptos e, deste modo, alcança-se o equilíbrio, até que
a multiplicação cria um novo desequilíbrio e aí se trava a luta, que provoca a
eliminação de muitos indivíduos; assim garante-se a reprodução das espécies. Há
outros fatores naturais funcionando como barreiras à multiplicação, como
predadores naturais, o clima com seus ciclos periódicos de frio ou seca ou a vitória
da espécie imigrante na competição com a nativa. A vida na natureza implica a
eterna luta dos seres entre si e contra o meio. Os que se adaptam sobrevivem; os
inaptos são extintos. A seleção natural força cega, silenciosa e irresistível
“escolhe” ao acaso as variações úteis e elimina as nocivas. As variações
favoráveis são transmitidas aos descendentes por meio do princípio da
hereditariedade. É este o mecanismo que impulsiona as espécies a se
reproduzirem em um esquema que nunca se encerra. Em conseqüência, escreveu
o cientista inglês, “... as formas viventes são hoje diferentes do que foram
outrora”.
42
42
DARWIN, Charles. A origem das espécies e seleção natural. São Paulo: Hemus. 2000, p. 87.
23
Conciliar a lei da hereditariedade e a teoria evolucionista constituiu-se em
um problema para intelectuais como Ribot e Haeckel. A questão residia no
seguinte: a hereditariedade conecta-se às noções de necessidade, conservação e
estabilidade. O evolucionismo, por outro lado, é a teoria que afirma que os
organismos vivos transformam-se contínua e infinitamente. Se os indivíduos
sofressem a ação somente da força hereditária, as formas viventes transmitiriam
aos descendentes características fixas, sem modificações, logo, os dois princípios,
num primeiro momento, seriam incompatíveis. Ribot pensou os seres vivos sob a
ação da hereditariedade e da variação. A primeira sem a segunda significava a
“conservação indefinida”;
43
uma variação favorável morreria com o indivíduo. A
conjugação de ambas tornava possível compatibilizar modificações morfológicas e
psicológicas nas formas viventes, dentro da lógica da evolução e, também, a
formação de um estoque de modificações úteis que seria fixado nos indivíduos
graças aos hábitos e na raça em função da hereditariedade.
44
Haeckel abordou o assunto, afirmando que há duas forças antagônicas
atuando sobre os organismos: a hereditariedade e a adaptação. A primeira é a
força centrípeta ou interna, que conserva. A segunda, centrífuga e externa, que
engendra as infindáveis modificações nos organismos vivos sob a pressão do
meio. O grau de imobilidade ou de variação das espécies animais e vegetais fica
na dependência da ação de uma força ou de outra.
45
Todos os organismos, naturais ou sociais, passam por pequenas mudanças
que se conservam, se acumulam e são transmitidas para as gerações posteriores.
Deste modo, o princípio da hereditariedade esteve na base, tanto para Ribot
quanto para Haeckel, em termos psicológicos de todas as formas de atividade
mental: instintos, faculdades perceptivas, memória, hábitos, imaginação,
capacidade artística e científica, sentimentos, paixões, caráter e desvios do
comportamento como a loucura, alucinação, idiotia e suicídio; em termos sociais,
43
RIBOT, Th. L´héreédité psychologique. Paris. Félix alcan Éditeur, Librairies et Guillaumin
Réunies, 1910, p. 267
44
Idem, p.267.
45
HAECKEL, Ernest. Histoire de la création des êtres organisés d’après lês lois naturelles.
Paris: Librairie C. Reinold – Schleicher Frères e C. Éditeurs, 1903, p. 185.
24
esse princípio explicava a reprodução das castas, das classes, do poder soberano
dos reis e do caráter nacional.
46
Nos autores estudados observa-se a intenção de emprestar das ciências
naturais a linguagem, o seu prestígio, os seus princípios (evolução, seleção
natural, hereditariedade, adaptação, instinto) e a autoridade científica que ela
possuía no século XIX. Ao elaborar as análises recorrendo à analogia da vida das
plantas e dos animais com a do comportamento dos seres humanos e suas
instituições sociais e políticas, almejava-se encontrar uma lei geral que conferisse
objetividade aos estudos.
A psicologia foi a disciplina privilegiada para dar conta de um fator
explicativo bastante utilizado: a transmissão inconsciente das formas de pensar,
sentir e agir. Ao recorrer ao mundo psíquico, esses textos transmitiam a idéia de
forças incontroláveis atuando mecânica e soberanamente sobre a mentalidade
individual e coletiva. Aí se explica a importância da noção de instinto, os inatos e
os socialmente adquiridos, para esses estudiosos do comportamento e da
evolução dos indivíduos e das espécies.
Darwin, cuja influência sobre os autores examinados foi intensa, aludiu à
semelhança entre instinto e hábito, ambos inconscientes, modificáveis e sujeitos
aos mecanismos da seleção natural e da hereditariedade. O instinto foi definido
pelo cientista inglês como “uma memória inconsciente escrita fisicamente no
cérebro”.
47
Para Ribot, os instintos seriam comparáveis ao automatismo das
máquinas e, seguindo Darwin, afirmou que são modificáveis, transmissíveis e
inconscientes, constituindo-se, em suma, em uma “segunda natureza”.
48
Gabriel Tarde usou o conceito de imitação para explicar como ocorre a
propagação e o compartilhamento de idéias, vontades, sentimentos, paixões,
crenças, desejos entre os seres humanos imersos numa rede de microrrelações
sociais. Todo ser social é essencialmente imitativo. Tudo que se associa à
46
RIBOT, Th. Op. cit., passim.
47
DESMOND, Adrian; MOORE, James. Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. São
Paulo: Geração Editorial, 2000, p. 277; ver também RICHARDS, Robert. J. Darwin and the
emergence of evolutionary theories of mind and behavior. Chicago and London: The University
of Chicago Press, 1987, p.98.
48
RIBOT, Th. Op. cit., p. 29.
25
similitude, à repetição, à socialização dos indivíduos, que convivem no mesmo
meio social, é produzido pela imitação, que foi considerada, então, como sinônimo
de costume, moda, simpatia, obediência, instrução e educação”.
49
A lei da
imitação serviu ao autor para expressar o desejo político de ver formar-se
progressivamente sobre a multiplicidade humana uma grande comunidade – “uma
sociedade única”
50
e sem conflitos bélicos.
Le Bon, tencionando combater os socialistas, referiu-se ao princípio da
imitação, definido como mecanismo inconsciente, através do qual idéias e
opiniões podiam propagar-se contagiando a “multidão”, termo que designava uma
coletividade anônima, impessoal, irracional, instintiva que se distinguia do
indivíduo; este era racional e existia como personalidade pessoal e consciente. As
“perigosas” idéias socialistas, propalados pela liderança socialista, estavam
ganhando a “multidão” a massa humana “bárbara” que ameaçava a sociedade
burguesa.
51
O tema do livre arbítrio apareceu na obra desses autores, inclusive Manoel
Bomfim, como depois se verá. O evolucionismo é a teoria da reprodução das
espécies pela via da seleção natural, que escolhia os mais aptos ao acaso e não
admitia, portanto, existência da “consciência”. De acordo com Darwin, “a
consciência estava fora do controle da pessoa”.
52
A hereditariedade, segundo
Ribot, exerce o seu império sobre o caráter e a personalidade. Os sentimentos, a
inteligência, os instintos são transmissíveis de pai para filho. Portanto,
hereditariedade e liberdade são dois termos opostos e incompatíveis. O
determinismo de Ribot e Darwin reapareceu na obra de Haeckel, para quem as
leis da hereditariedade e da adaptação negam todo ato voluntário, que são na
49
TARDE, Gabriel. Les loi de limitation: étude sociologique. Madrid: D. Jorro, 1907, p. IX; sobre
Tarde ver VARGAS, Eduardo Viana. A microsociología de Gabriel Tarde. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, nº 27, ano 10, fev. de 1995.
50
Tarde afirmou: as disparidades quanto à força, à riqueza entre as nações não impedirão “les
progrès incessants de lassimilation internationale”. Op. cit. p. XIX.
51
LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. Rio de Janeiro: F. Briguet e Cia – Editores, 1954.
52
DESMOND, Adrian; MOORE, James. op.cit., p.288. A respeito do livre-arbítrio e a hereditariedade,
Darwin afirmou em uma carta: “Hensleigh acha que resolveu a questão do Livre-Arbítrio, mas a
hereditariedade praticamente demonstra que não temos absolutamente nenhum... Eu diria que nem uma única
palavra deste bilhete é realmente minha; é tudo hereditário...” À Emma Darwin (20-21 de maio de 1848). In:
DARWINM, Charles. As cartas de Charles Darwin. Uma seleta (1825-1859); editada por
Frederick Burkhardt. São Paulo: UNESP, 1996, p. 166-167.
26
realidade resultantes de idéias preexistentes.
53
Em Tarde o tema da liberdade
humana está presente e, mais ou menos de acordo com os autores que o
precederam, ele não cria que os seres humanos pudessem escolher livremente,
pois os indivíduos existiam em relação uns aos outros e pouco sentido fazia
separar o social do individual.
54
O que aproxima Manoel Bomfim de autores como Haeckel e Ribot é a
crença no evolucionismo, a utilização de noções e da linguagem tomadas de
empréstimo das Ciências Naturais, a centralidade da psicologia em suas análises
e a influência de Darwin. Do naturalista inglês, repetindo o que fizera Ribot, ele
anotou a máxima “hereditariedade: eis a lei” como epígrafe de um dos capítulos do
livro A América Latina;
55
Bomfim e Ribot referiram-se ao filósofo Montaigne. O
primeiro, no capítulo “Efeitos da hereditariedade e da educação” e o segundo em
“Lhérédité des instincts”. A alusão à lei da hereditariedade e a Montaigne tinha,
para ambos, o objetivo de enfatizar a força do passado, da tradição (no caso do
intelectual brasileiro), a sujeição do indivíduo ao meio e a transmissão de
características de geração para geração, que dá a idéia de rotina e de imobilidade.
O objetivo de Bomfim consistia em realizar um estudo histórico-sociológico
da realidade latino-americana, especialmente a brasileira. Para fazê-lo, serviu-se
dos mesmos conceitos que podem ser encontrados nos autores acima
mencionados. Interessa, neste momento, sublinhar o que tomou emprestado,
como ele realizou a apropriação e com qual finalidade.
Um evolucionista perplexo diante da imutabilidade
Atormentava o nosso autor, no momento da elaboração do seu livro mais
famoso, a ausência de mudanças sociais, políticas e econômicas nos anos que se
seguiram à Abolição e à queda do Império. É que os organismos vivos, tanto os
naturais quanto os sociais, obedecendo à lei da evolução e do progresso,
deveriam mudar, deixando para trás as estruturas antigas e renovando-se
53
Op. cit., p. 174.
54
VARGAS, Eduardo. Viana. Op. cit., p. 104.
55
RIBOT, Th. Op. cit., p. 157; BOMFIM, Manoel. A América Latina..., p. 154.
27
constante e infinitamente. Como afirmavam o positivismo e as correntes
evolucionistas, as instituições sociais e políticas deveriam passar pelo processo de
superação de estágios.
A persistência de uma sociedade envelhecida, injusta e atrasada foi vista
com perplexidade para um evolucionista. Tudo o que é vivo, chamou atenção
Bomfim, tende a mudar, acrescentar formas novas, aperfeiçoar-se no sentido de
progredir, não se excetuando as sociedades, as quais “sofrem uma evolução
constante”,
56
pois estão submetidas à lei da evolução. A rotina, a permanência, a
conservação “[era] obra dos mortos”
57
. É essa idéia que alimentou o pensamento
e a ação dos intelectuais e políticos do final do século XIX, que se entregaram a
tudo conhecer, examinar e a criticar; que acreditavam no progresso científico e
material; na certeza de poder destruir a Monarquia, a escravidão e a subtração do
monopólio da Igreja, instituições “fossilizadas” e vistas como responsáveis pelo
atraso econômico, social, político e cultural do país. Essas correntes científicas
tiveram um papel importante como instrumento de crítica e de ação política. Para
uma geração horrorizada com a realidade que observava, realidade essa ainda
presa ao passado e que desejava avidamente mudanças, esses esquemas
explicativos desempenharam um papel de largo alcance, pois estava implícita
nessas teorias a inevitabilidade das transformações políticas e sociais.
58
Quando Bomfim escreveu A América Latina, escravidão e monarquia
haviam sido superadas. No entanto, ele e tantos outros intelectuais viveram e
sentiram a frustração com a república, já que as mudanças institucionais não
significaram a “redenção” do país, que a intelectualidade engajada nas lutas
abolicionista e antimonarquista desejou. A modernização da estrutura da nação, a
melhoria das condições de vida, a elevação do nível cultural, a efetiva participação
política da população foram um projeto abortado. O que se via era a republica sob
56
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 160.
57
Idem, p. 162.
58
A respeito da importância e do alcance teórico e político do positivismo e de outras formas de
evolucionismo, ver FURTADO, Celso. Confrontações ideológicas no Brasil, Folha de S. Paulo,
São Paulo, A3, 31/12/.2001; SANTOS, Wanderlei. Guilherme. A práxis liberal no Brasil: propostas
para reflexão e pesquisa. In: _________. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo:
Duas Cidades, 1978 p. 89; BARROS, Roque Spencer Maciel de. A ilustração brasileira e a idéia
de universidade. São Paulo: EDUSP, 1986.
28
a hegemonia da oligarquia, a escravidão que dera lugar a outras formas de
dependência e exploração compulsória do trabalho, a população do campo
vivendo esquecida pelos poderes públicos e as das grandes cidades, como as do
Rio de Janeiro, sobrevivendo no “inferno social” (expressão de Alcindo
Guanabara)
59
, sendo quase toda analfabeta e sem direitos políticos. A vontade de
ver o país atualizado e incorporado ao conjunto dos países capitalistas e
democráticos, isto é, Estados Unidos e Europa ocidental, desejo acalentado pela
geração de intelectuais que pregavam reformas modernizadoras do Estado e da
sociedade, nas três últimas décadas do século XIX, mostrou-se uma quimera.
É nessa atmosfera política e cultural, cuja característica marcante é o
desalento, que Manoel Bomfim se debruçou sobre a história da América Latina
com a intenção de revelar o porquê das mudanças institucionais não terem
alterado a triste realidade dessas nações ainda presas ao passado. A questão
para o autor em estudo consistia, então, no seguinte: como explicar, à luz da
ciência, a resistência das classes dominantes ao progresso?
Para desvendar esse enigma o autor recorre à psicologia, à lei da
hereditariedade e à autoridade científica de Th. Ribot. O seu argumento é o
mesmo do autor de L
hérédité psychologique: o indivíduo ou a coletividade (um
povo) herda dos antepassados características psíquicas, constituindo-se em um
dos efeitos sociais do princípio da hereditariedade, que define a identidade ou
caráter do indivíduo ou do povo; ambos pareciam compartilhar a idéia de que no
fluxo constante e infindável que constitui a vida há “alguma coisa de fixo” (Ribot)
60
:
a identidade ou o caráter nacional. Diante desse tema, é possível captar a sintonia
e a antinomia entre os dois. A similitude está no desejo de casar o princípio
fundamental do evolucionismo – o movimento, a transformação – com a
percepção de que existe algo imutável. Se Darwin explicou a origem, a existência
e a reprodução das espécies, frisando a dinâmica das mudanças, Ribot e Bomfim
colocaram o acento no que há de “fixo”, ou seja, no “caráter nacional”.
59
Alusão à concentração popular nas habitações coletivas, “precárias, insalubres e
superpovoadas”. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação
cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 55.
60
Apud BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 156-157.
29
Para Ribot o caráter nacional era o princípio de onde derivava todas as
instituições, as crenças religiosas, a moral e as características psíquicas de um
povo.
61
Essa definição não diferia do que Gustave Le Bon denominou “alma de
uma raça” as características morais e intelectuais de um povo. Do amálgama de
sentimentos, idéias, crenças e interesses formavam-se um conjunto harmônico
chamado povo, que possuía uma “constituição mental tão fixa como a constituição
anatômica”.
62
A força da hereditariedade trabalhava silenciosamente, de forma
persistente, criando uma “grande identidade e uma grande fixidez”.
63
Para Le Bon
e Ribot os conceitos de caráter nacional (para Le Bon alma é sinônimo de caráter)
e herança psicológica transmitiam a idéia de origem, de essência, de
conservação, de permanência e de imutabilidade. Em Le Bon esse argumento fica
bem claro; tentar alterar a ordem política e institucional era ação vã, pois tão-
somente a superfície estaria sendo tocada, não a alma e esta persistia intacta.
Haveria transformação quando “alma da raça” mudasse.
Bomfim compartilhou com os autores como Ribot, Haeckel, Le Bon, Tarde a
crença na força da tradição, na herança do passado, no império do meio sobre a
formação do caráter, tanto o individual quanto o coletivo, e também na inexistência
de oposição entre consciência individual e sociedade. A citação abaixo esclarece
o que tentamos expor:
um passado todo inteiro contribui para formá-la(sic!)[o espírito]. Mas não lhe é
dado escolher as idéias que irão povoar o seu entendimento e provocar-lhe as
faculdades; a sua inteligência forma-se e desenvolve-se à custa das impressões
que vêm do meio exterior; a sensibilidade põe-se em ação sob o influxo de
estímulos fiscos e morais, ligados às condições ambientais. A sua vida afetiva tem
de se dobrar, desde logo, à ação educativa da sociedade, dentro da qual ele vive;
e a sugestão, a imitação, a ação coercitiva do meio vão quebrar as arestas vivas
do seu caráter herdado. Pode-se dizer que as tendências e as inclinações, a
aptidão e o vigor, isto nós herdamos; e que a educação – no sentido mais extenso
61
RIBOT, Th. Op. cit., p. 120-1.
62
LE BON, Gustave. Leis psicológicas da evolução dos povos. Lisboa: Edição da Typographia
de Francisco Luiz Gonçalves, 1910, p. 15.
63
Idem, p.21.
30
do termo completa a formação do caráter, no sentido da tradição e da
adaptação
64
.
Mas as semelhanças param por aí. Vejamos. No plano das antinomias
entre Bomfim e Ribot, no tocante ao tema do caráter nacional, há uma diferença
sutil: em Ribot o caráter nacional é uma entidade metafísica, um todo harmônico e
a-histórico, resultante de leis psicológicas. Ele foi caracterizado, em suma, como
uma essência, algo idêntico a si mesmo. Assim definido, parece-nos, prescinde-se
da explicação quanto à sua origem histórica. As instituições políticas e sociais, os
valores, as idéias e as crenças dominantes legitimam-se por si mesmos, pois são
efeitos do caráter. Em conseqüência, a relação entre governante e governados, a
definição do bem e do mal, do certo e do errado obedeceriam à lógica determinista
como as das leis das Ciências Naturais. Uma tal proposição teve implicações
políticas conservadoras, pois lutar pela mudança do status quo seria o mesmo que
desafiar ou por em dúvida as leis da Natureza. Por exemplo, Le Bon recorreu ao
conceito de “alma”, para se referir ao caráter de um povo, tendo em vista legitimar
a ordem burguesa, vista como sinônimo de civilização. As reivindicações
socialistas estavam ameaçando a civilização; o ideal de igualdade, defendido
pelos revolucionários, ia contra o princípio natural da desigualdade entre os
homens. O autor de Psicologia das multidões recorreu ao conceito de caráter
nacional para expor claramente a sua convicção anti-socialista e anti-
revolucionária.
O caráter nacional, na visão de Bomfim, nada tem de metafísico. Resulta do
parasitismo ibérico, o qual, de acordo com a sua explicação, originou-se dos
conflitos econômicos e políticos a que a Península Ibérica assistira, cujos efeitos
poderiam ser vistos nas colônias da América. Estamos, pois, no campo da história
e não no terreno das Ciências Naturais. Ademais, ele viu a herança ibérica, ou
seja, o legado do passado, com indignação. Estar ainda preso ao passado, à
tradição era o mesmo que reproduzir a injustiça, a desigualdade, a violência e a
64
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 157. A respeito da inexistência de oposição entre
sociedade e consciência, Bomfim afirmou: “a consciência é a sociedade no indivíduo”. Noções de
psicologia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1917, p. 299. (grifo no original)
31
exploração de classe. As nações ibéricas que emergiram do livro A América Latina
não eram um todo harmônico e indiviso. Pelo contrário, elas nasceram e se
desenvolveram marcadas pela presença da classes e grupos sociais, rigidamente
hierarquizadas e cindidas por interesses materiais e por intermináveis conflitos. Se
a tradição era, para um autor como Le Bon, a condição para existência da
civilização, para Bomfim ela significava a barbárie. O passado não legitimava a
situação presente, pelo contrário, consistia em algo a ser superado. Embora o
intelectual sergipano tenha trabalhado com as mesmas categorias de autores
canônicos europeus, delas se apropriou de uma forma pessoal, de acordo com as
suas convicções políticas e de seu interesse, qual seja, a de analisar a realidade
dos países latino-americanos, preponderantemente, tendo como parâmetro a
história, a sociologia e a economia.
65
Ainda sobre as dessemelhanças, algumas palavras são necessárias a
respeito da centralidade da psicologia como disciplina de análise na obra desses
estudiosos, inclusive Bomfim. Aliás, isso demonstra o quanto ele estava conectado
com o que havia de novidade no universo intelectual europeu. A sociologia, a
psicologia e a psiquiatria revelavam a importância do emocional, do inconsciente e
do irracional na modelagem dos comportamentos.
66
Ao recorrer a essa disciplina,
tornou-se possível pensar o desenrolar da vida humana a partir de um fator
“interno”, o inconsciente. Recorria-se à psicologia para explicar as características
psíquicas dos indivíduos e dos povos. Os mecanismos inconscientes funcionavam
como uma força interna irresistível, atuando paralelamente à razão. O cientista
dispunha de material para sustentar a tese da fixidez do caráter da coletividade,
seja chamado povo, raça ou nação. Uma tal proposição poderia servir a propósitos
65
O como os conceitos sofrem diferentes apropriações e servem para fins diversos pode ser visto
numa comparação entre Nina Rodrigues e Manoel Bomfim no tocante ao papel do passado como
força determinante sobre a consciência dos indivíduos. Para o médico-legista a herança africana,
transmitida pelas sucessivas gerações explicava os caracteres das raças inferiores: o desequilíbrio
mental, a propensão para o crime, o “ódio contra as raças superiores ou dominadoras”; o desejo de
imitar ou querer se parecer com a raça dominante, o fato de os negros serem os principais inimigos
dos negros e de advogarem os interesses da escravidão contra a liberdade. RODRIGUES,
Raimundo.Nina. As raças humanas. Rio de Janeiro – Recife – Porto Alegre: Companhia Editora
Nacional, 1938, p 201-3.
66
CROOK, Paul. Darwinism, war and history: the debate over the biology of war from The origin
of species to the First World War. Cambridge: University Press, 1994, p. 67.
32
políticos conservadores. Como alterar as instituições, as idéias e valores
dominantes se eles são resultados de forças que trabalham no inconsciente?
Ainda que tenha se servido da psicologia, sua análise casou esta disciplina
com a história e a sociologia. O lugar do desenrolar da vida não era apenas no
mundo psíquico. O palco era a história, lugar em que as ações aconteciam na
arena política e na qual os interesses econômicos moviam os atores tanto no
âmbito da relação colonizador/colonizado quanto na esfera das relações de
classes.
O alvo de Bomfim era a classe dominante, a quem dirigiu uma crítica
contundente. O conservadorismo desta classe era de natureza psicológica,
inconsciente, instintivo, “mais afetivo que intelectual”
67
e, por isso, mais difícil de
ser superado. Graças aos mecanismos da adaptação, da imitação e da educação
foi se formando, cristalizando-se e reproduzindo-se a consciência conservadora da
chamada classe dirigente, traduzindo-se no apego à rotina, na aversão ao
progresso e ao novo; bem como na atitude de ver qualquer sinal de mudança
como ameaça ao seu poder e aos seus privilégios seculares.
Sua interpretação coloca o acento no que ele denominou classe dirigente e
não em um coletivo abstrato – povo, nação ou raça. Aqui ele se afasta dos autores
acima citados. Tomou emprestadas as categorias que na Europa serviram para
alimentar argumentos conservadores, anti-socialistas, utilizando-as para formular
uma crítica contundente à classe dominante latino-americana. É em virtude desse
enfoque que muitos dos seus intérpretes aproximaram Manoel Bomfim do
socialismo.
68
“Escravos passivos da tradição e da rotina”
A classe dominante tem consciência das mazelas que o analista lhe atribui?
Seguindo a sua explicação, conclui-se que não, pois, conforme ele anotou, “todos
esses homens das classes dirigentes são escravos passivos da tradição e da
67
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 159.
68
Afirmação desse tipo pode ser encontrada em um estudioso como Antonio Candido. Ver:
Radicalismos. Revista do Instituto de Estudos Avançados ..., p. 12.
33
rotina”.
69
Essa afirmação está em desacordo com o evolucionismo; essa teoria
admitia que há uma força que domina a história e que impulsiona inexoravelmente
as ações humanas em direção a estágios superiores, “tanto material quanto
eticamente”.
70
Aí está a causa, como já foi dito, da perplexidade do intelectual que
acreditava no evolucionismo. Como explicar o comportamento rotineiro da classe
dirigente? O indivíduo ficou impotente sob o peso da força esmagadora do
parasitismo ibérico. A sociologia e a psicologia explicavam como se forjaram o
conservadorismo das classes dominantes, o “instinto social” agressivo, predador e
mercantil e a resistência encarniçada ao progresso.
Essa visão fatalista é a confirmação da sua idéia sobre a inexistência de
oposição entre sociedade e indivíduo. Bomfim aceitou a tese de Darwin, Ribot,
Haeckel, Tarde sobre o império exercido pela hereditariedade e adaptação sobre a
vontade individual. Concordou com esses autores quanto à noção de que a
aparência de liberdade da consciência escondia toda a força da tradição, que não
abdicava do direito que tinha sobre as pessoas. Em poucas palavras, o livre-
arbítrio não existia.
Se a chamada classe dirigente não tinha consciência do que fazia, poderia
ser responsabilizada pelo drama social e político por ele tão enfaticamente
revelado? A pergunta sugere uma comparação com um político e intelectual que
produziu uma crítica à realidade brasileira muito próxima do autor de A América
Latina. Trata-se do abolicionista Joaquim Nabuco. Ambos construíram suas
análises buscando os fundamentos econômicos e sociais por trás dos
acontecimentos. Dedicaram-se a pesquisar as fontes dos “males de origem” de
um país visto como “atrasado” frente às nações capitalistas desenvolvidas. Os
dois revelaram a real condição dos trabalhadores escravos e homens livres
pobres , reduzidos à máquina de produção e despojados de direitos sociais ou
políticos. Dirigiram sua indignação contra o despotismo da classe dominante, que
possuía privilégios injustificáveis; observa-se nos textos de um e de outro a alusão
à hipertrofia do Estado. Se o diagnóstico os aproxima, a causa os opõe. A
69
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 160.
70
Segundo Nicolau Sevcenko, era nisso que acreditava Euclides da Cunha; parece-nos legítimo
estender a Bomfim a convicção do autor de Os sertões. SEVCENKO, Nicolau. Op. cit., p. 133.
34
escravidão, segundo Nabuco, gerou todos esses fatores. Para Bomfim, foi o
parasitismo ibérico. Sobre o nosso assunto – a responsabilidade da classe
dominante –, os dois parecem, mais uma vez, ter a mesma opinião. Vejamos.
O senhor foi o déspota, o algoz no trato com os seus escravos. Se assim se
comportou, seus atos foram inconscientes, porque “a escravidão é que é má e
obriga o senhor a sê-lo”,
71
anotou Joaquim Nabuco. É a instituição servil que
produz o mau senhor; sempre foi assim em qualquer tempo e lugar onde existiu
escravidão. Quando Bomfim afirmou que as elites dirigentes eram “escravos
passivos da tradição e da rotina”, não estava ratificando a opinião de Nabuco? A
meu ver, na análise de ambos o que está influenciando o pensamento é uma certa
concepção sociológica, segundo a qual há instâncias exteriores ao homem que o
governam e determinam sua consciência. Para Nabuco era a escravidão; Para
Bomfim, o parasitismo ibérico. A imitação e a educação completaram a obra da
hereditariedade e da adaptação, afirmou o último. Poderia ser imputada aos dois a
seguinte afirmação: os membros da classe dominante foram educados para
agirem como déspotas ou “parasitas sociais”; o tempo, o costume e os hábitos
sociais cristalizaram comportamentos, sentimentos e “instintos”. O indivíduo,
dentro dessa linha de raciocínio, constituía-se em um epifenômeno da estrutura
a escravidão ou o parasitismo ibérico.
“Os escravos sem voz”
Na obra A América Latina, o estigma, baseado na raça, lançado sobre o
trabalhador nacional, considerado preguiçoso, improdutivo, sem inteligência, em
contraposição ao imigrante, sinônimo de energia para o trabalho e racionalidade,
recebeu do autor a mais severa crítica. Aliás, semelhante ao argumento de
Joaquim Nabuco.
71
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Vozes, 1976, p. 103. Abordei esse
assunto na minha dissertação de mestrado. UEMORI, Celso Noboru. Joaquim Nabuco: lutas,
propostas e diálogos (1879-1888). 2001. São Paulo. Dissertação (Mestrado em História) –
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.
35
Ambos sublinharam as razões histórico-sociológicas. O problema não era
nem racial nem biológico, mas político. Esses homens viviam abandonados pelos
poderes públicos, entregues à miséria material e cultural. Se os homens livres não
queriam trabalhar, este fato se verificava porque quase todo o trabalho era feito
pelo escravo, em decorrência, não havia lugar para o trabalhador livre
72
. Ademais,
a escravidão criou o preconceito contra o trabalho, visto como “coisa de negro”.
Ao se afastar das interpretações baseadas nos pressupostos biológicos,
que era voz corrente na sua época, Bomfim pôde revelar o quanto de irreal existia
na idéia quase consensual sobre ausência de violência na relação entre senhor e
escravo. “Não havia nada de humano nas relações de senhor e escravo”
73
, ele
afirmou. A frase chama a atenção do estudioso da história das idéias do período
por causa do contraste; ela questionava uma noção cara e muito difundida pela
intelectualidade brasileira a respeito da “cordialidade” do brasileiro. Intelectuais
como Nabuco, que tão enfaticamente revelaram a violência do sistema escravista,
ratificaram a suposta ausência de asperezas na relação entre senhores e
escravos.
74
A opção pela perspectiva histórica-sociológica, a vontade de revelar as
condições concretas em que vivia o homem pobre brasileiro, a corajosa iniciativa
em desmistificar a idéia de harmonia de classes numa sociedade dividida entre
senhores e escravos fez da obra de Bomfim um forte contraponto ao pensamento
conservador. Sua análise dispensou as hipotecas deterministas, sejam as de clima
ou de raça, que foram instrumentos teóricos úteis para muitos intelectuais
conservadores. No entanto, não será descabido afirmar que o nosso autor
enveredou seu argumento por um viés determinista.
Diferenciando-se dos conservadores que viam no trabalhador nacional o
“outro” a ser descartado pela sua incapacidade “inata” de se tornar produtivo e,
72
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 140.
73
Idem, p. 133.
74
O abolicionista referiu-se várias vezes ao caráter dócil e pacífico do “brasileiro” com o objetivo
de afirmar que a abolição deveria ser conduzida pacificamente, ou seja, sem o perigo dos conflitos
políticos. Afinal, os escravocratas “emperrados” e os abolicionistas “revolucionários” poderiam
provocar à guerra civil. A via pacífica, pelo Parlamento, era a única forma de se chegar a um
desfecho em que houvesse entre senhores e escravos apenas “sentimentos de benevolência e
solidariedade”; este era o caminho da prudência, do bom-senso porque estava de acordo com a
“índole” do brasileiro. UEMORI, Celso Noboru. Joaquim Nabuco..., p. 71-72.
36
portanto, inapto para ser incorporado à sociedade brasileira capitalista moderna e
“civilizada” que se vislumbrava, Bomfim fez a opção política pela defesa das
“classes desprotegidas”
75
. Sua estratégia argumentativa consistiu em recorrer à
analogia com vida animal e sua fonte principal foi, mais uma vez, Darwin.
76
O
cientista inglês examinou o comportamento de algumas espécies animais que
parasitavam outras, como as formigas que escravizavam pulgões ou outras
formigas. Descreveu a mútua dependência instintiva entre parasitas e parasitados.
Manoel Bomfim, visando dar ênfase à subordinação dos escravos em relação aos
senhores, tomou emprestado das Ciências Naturais as conclusões sobre o
comportamento dos animais e, assim, tentou frisar a dependência, a ausência de
autonomia dos escravizados/parasitados em relação aos senhores/parasitas.
O colonizador educou o colonizado dentro do princípio do parasitismo. O
resultado viu-se no surgimento de diversos parasitas sociais nas colônias. O
escravo, reduzido à máquina de produção, foi disciplinado segundo a lógica do
sistema, ficando sua educação reduzida ao açoite e ao tronco. “Vítima das
vítimas”, o escravo não tinha voz. Educado pelo senhor, aceitou inconsciente e
passivamente a violência cotidiana que sofria. Bomfim relacionou uma coisa à
outra: o comportamento dos escravos era idêntico aos dos animais que hospedam
parasitas. O hospedeiro continua vivendo, embora penosamente, adaptando-se à
nova situação. Sua existência está condicionada às exigências do parasita. Do
mesmo modo, o índio e o africano, transformados em escravos, tiveram de
ajustar-se à nova situação – a privação material, a violência e o trabalho forçado.
77
Aos “oprimidos” apresentavam-se duas opções: adaptarem-se, como as
formigas escravizadas se sujeitavam a existir para os parasitas, ou perecerem. A
relação entre dominantes e dominados não comportava a consciência ou vontade
individual. A imitação, a educação e a transmissão hereditária dos hábitos e
costumes “naturalizaram”, num plano, o uso da força, da violência e da
exploração. No outro, a obediência e a sujeição. O que parece mover a história
75
O termo é de Dante Moreira Leite. Prenúncios de libertação; Manuel Bomfim: ensaio de
afirmação das classes desprotegidas. In: LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro...
76
A origem das espécies e a seleção natural..., especificamente o capítulo VIII, intitulado
Instinto.
77
BOMFIM, Manoel. A América Latina..., p. 126.
37
não eram os homens, mas uma força invisível que, com as suas leis inexoráveis,
traçava e conduzia com mão de ferro os destinos dos homens. Sob este aspecto,
a sociologia de Manoel Bomfim pode-se imputar o fatalismo e o determinismo.
Bomfim sublinhou, a respeito dos grupos dominados, o conformismo mais
que o protesto e mencionou de passagem o suicídio dos escravos, para logo em
seguida lembrar que “[eram] raríssimas as vinganças e as represálias”.
78
A
referência à reação contra a ordem estabelecida foi caracterizada apenas como o
ódio de quem foi educado na violência e a reproduzia “instintivamente” e, assim,
reagia às cegas por meio da violência porque a violência fazia parte dos
costumes. Em poucas palavras, os “oprimidos” de Bomfim equivaliam aos
escravos no discurso de Joaquim Nabuco, os quais não tinham consciência de
sua condição, até por causa da “morte civil a que [estavam] sujeitos”.
79
Outro efeito do parasitismo social via-se no fato de os parasitados
colocaram-se a serviço dos dominantes e defenderem os interesses destes. Na
natureza as formigas escravizadas sustentavam os parasitas, davam-lhes
proteção, carregavam-nas quando precisam migrar. Isso está no texto de Darwin.
Nosso autor recorreu à observação do cientista inglês e traçou um paralelo com o
comportamento das classes dominadas índios, negros ou outros homens pobres
em relação aos seus dominadores as metrópoles ou as classes dirigentes.
No livro A América Latina, Manoel Bomfim sublinhou a participação dos
negros, índios, mestiços ao lado e em defesa dos dominantes, seja o colonizador,
sejam as classes dominantes locais. A colaboração dos índios foi decisiva nas
lutas dos portugueses contra franceses, holandeses em vários momentos. O autor
destacou os esforços individuais de índios que se sacrificaram para salvar um
capitão lusitano. O cerne da sua argumentação consistia no seguinte: o mais
abnegado defensor do opressor eram as suas vítimas; estas forneciam os
capangas que se envolviam nas rixas dos chefes políticos locais e davam o voto a
políticos que usufruíam do poder e, assim, mantinham privilégios. Eram ex-
78
Idem, p. 238.
79
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo ... p. 37.
38
escravos os feitores que brandiam o chicote para forçarem outros a trabalhar.
80
O
que disse o autor merece algumas observações.
Em primeiro lugar quero chamar a atenção para a maneira como Bomfim
lidava com as suas fontes. Quando se refere à participação dos índios ao lado do
colonizador lusitano, a sua fonte História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador
81
,
autor e obra pelos quais tinha grande apreço. Preocupado em reforçar a idéia de
que a vítima sustentava o opressor, no caso o colonizador, Bomfim colocou o
acento no fato de as populações indígenas terem ficado ao lado dos portugueses
e contra os franceses e holandeses. A leitura da obra de Frei Vicente do Salvador
e de outros cronistas da vida colonial revelam que os índios estiveram dos dois
lados. Ele pinçou um aspecto que lhe interessava para fundamentar a sua tese e
“esqueceu” o outro.
O consórcio entre índios, negros, mestiços, colonos que nasceram no Brasil
e reinóis, quando das lutas contra os holandeses foi visto por vários intérpretes da
história do Brasil como o momento inaugural do sentimento de nacionalidade.
Varnhagen, de acordo com um de seus intérpretes, em meados do século XIX,
deu origem a esse tipo de interpretação; pela primeira vez foi possível construir
um panteão de “heróis” nacionais representados por um negro (Henrique Dias) e
por um índio (Felipe Camarão), ambos identificados com a causa do colonizador
lusitano.
82
O historiador Oliveira Lima viu na conjunção dos elementos étnicos que
se formara naquele momento “o despertar de sentimentos patrióticos apenas
adormecidos”
83
e louvou a abnegação, a lealdade e os “bons serviços prestados à
metrópole portuguesa”.
84
Para o também historiador Capistrano de Abreu estava
em jogo o mercantilismo e o nacionalismo; Holanda versus Olinda. A vitória ficou
com o “espírito nacional”. Na luta contra o estrangeiro estiveram representados
todos os elementos étnicos. Assistiu-se às asperezas, aos interesses diversos que
opunham os diversos elementos, às contendas inter-raciais darem lugar à
80
BOMFIM, Manoel. A América Latina..., p., 124-5.
81
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil (1500-1627). São Paulo: Melhoramentos, 1975.
82
WEHLING, Arno. Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional,
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 184.
83
Formação histórica da nacionalidade brasileira. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 81.
84
Idem, p. 82.
39
convergência em nome de um objetivo comum: a expulsão do invasor; reinóis,
negros, mestiços de vários matizes e índios se sentirem pertencendo à
comunidade de brasileiros, como “povo”; era o esboço, ainda que de forma
superficial, da nacionalidade.
85
Joaquim Nabuco, especulando a respeito de qual teria sido o destino da
colônia portuguesa na América se, no século XVI, os portugueses tivessem tido “a
intuição de que a escravidão é sempre um erro” e, em decorrência, não a tivessem
instituído, referiu-se a essas possibilidades: o Brasil seria forte e sadio como o
Canadá ou a Austrália, ou Portugal teria perdido sua colônia para os holandeses.
O Brasil só não passou a ser holandês porque os escravos participaram como
soldados ao lado dos portugueses.
86
Salta aos olhos o contraste entre o ponto de vista de Bomfim e os
argumentos dos autores citados nos dois últimos parágrafos. Estar ao lado dos
colonizadores lusitanos significou para Varnhagen, Oliveira Lima, Capistrano e,
em certa medida, Joaquim Nabuco, comunhão de interesses e arestas raciais
aparadas. A colaboração dos escravos foi encarada sob o ponto de vista do
benefício, considerada um fator a impulsionar a construção da nação luso-
brasileira. O historiador João Ribeiro discordou da proposição desses autores, já
que para ele “índios e brasileiros” estiveram do lado dos portugueses e dos
holandeses.
87
Mas a divergência mais acentuada veio do intelectual sergipano,
para quem o consórcio entre índios e colonizadores constituiu-se em uma
aberração; viu aí o oprimido colaborando com o opressor.
A obediência cega, a fidelidade, a adesão incondicional dos “oprimidos” aos
seus opressores e a violência dirigida contra os seus membros de classe e cor
constituíram-se em um tema recorrente nos discursos de políticos, intelectuais e
cientistas no século XIX e começo do XX. O período das lutas abolicionistas, no
qual a idéia da igualdade jurídica entre brancos e negros foi defendida por muitos
liberais envolvidos com a causa da libertação da população escravizada, viu os
85
ABREU, Capistrano. Capítulos de história colonial (1500-1800). São Paulo: Publifolha, 2000,
p. 123-124.
86
O abolicionismo .., p. 107.
87
História do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1964, p. 156.
40
adversários dessa idéia fazerem alusão à crueldade dos africanos e de seus
descendentes para com os seus “irmãos de raça”. Sílvio Romero, autor de um
manifesto político dirigido contra a proposta de Joaquim Nabuco de abolição
imediata e de negação da tese apregoada ao abolicionista da “superioridade do
negro sobre o branco”, afirmou que os senhores mais cruéis eram os negros
88
;
Louis Couty, adversário dos abolicionistas, referiu-se ao fato de os escravos
domésticos admirarem os senhores e desprezarem os trabalhadores braçais.
89
Nina Rodrigues, querendo fundamentar a sua tese de que negros e mestiços não
podiam ter o mesmo estatuto jurídico do branco, tentou mostrar que eles eram
violentos, impulsivos, irracionais, propensos ao crime porque “o negro conservou
vivaz os instintos brutais do africano”.
.90
Abordando o mesmo assunto, contrapôs-se argumento oposto, que teve em
Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Bomfim os seus defensores. O romancista
escreveu sobre o escravo alforriado que, para se sentir livre, tinha de se tornar
proprietário e devolver com requintes de sadismo as chibatadas que tomara
durante toda a vida; o abolicionista fez referência a uma idéia de enorme alcance
político quando disse que um dos efeitos da escravidão era a existência dos
“mestiços políticos”, ou seja, a convivência no inconsciente coletivo do brasileiro
do senhor e do escravo, do déspota e do submisso.
91
Para Romero, Couty e Nina
Rodrigues, a violência dos negros, principalmente para com os pares de condição,
explicava-se pela suposta origem africana; para Machado de Assis, os alforriados
se comportavam daquela maneira porque os escravos assimilavam e reproduziam
os valores morais e éticos que a escravidão engendrava; o romancista identificou
o problema com a instituição; o mesmo ponto de vista sustentou Joaquim Nabuco,
para quem a escravidão produziu a “mau senhor e o escravo passivo”; em termo
semelhante, Bomfim atribuiu ao parasitismo social o fato de as “vítimas” serem os
88
Joaquim Nabuco. In: __________. Ensaios de crítica parlamentar. Rio de Janeiro: Editores
Moreira, Maximino e c., 1883, p. 167.
89
A escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura – Fundação Casa Rui Barbosa,
1988, p. 101.
90
Os africanos no Brasil ..., p. 161.
91
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
Sobre os “mestiços políticos”, ver NABUCO, Joaquim. O abolicionismo ..., p.126. Escrevi sobre
esse tema em outro lugar. Escravidão, nacionalidade e mestiços políticos. Lutas Sociais, São
Paulo, nº 11/12, abr. 2004, p. 85- 97.
41
melhores defensores dos seus algozes. Couty, Romero e Nina Rodrigues
identificaram uma suposta “natureza étnica essencial” (expressão de Bomfim);
Machado, Nabuco e Bomfim apontaram como causa do fenômeno a instituição.
Isto queria dizer o seguinte: a escravidão ou o parasitismo “educou” os senhores
para possuir, oprimir, usar e abusar da violência e extorquir o trabalho do outro; os
escravos para aceitar como fatalidade o trabalho compulsório e a submissão.
“Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho”
Sílvio Romero
92
, certa vez, indignou-se com a falta de estudos das línguas,
dos mitos e das religiões africanas no Brasil. A dimensão do descaso ficava
evidente pelo fato de nem ser preciso ir à África para pesquisar, pois ela estava
“em nossas cozinhas”. A empreitada exigia pressa, já que os africanos que aqui
chegaram antes da cessação do tráfico estavam morrendo. Romero exortou os
especialistas brasileiros a buscarem esses remanescentes e deu uma dica: “O
negro não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e malgrado sua
ignorância, um objeto de ciência”.
93
Para prosseguir a análise de Bomfim, queremos reter essas duas
representações do negro: máquina econômica e objeto de ciência. No livro A
América Latina, foi destacado o papel deste como força de trabalho no interior da
engrenagem do sistema colonial. A noção do negro como “objeto de ciência”, tão
cara a Romero e, também a Nina Rodrigues
94
, em Bomfim precisa ser repensada.
O escravo como braço a serviço do senhor, idéia forte no texto de Bomfim,
tem um parentesco com o livro de Antonil, Cultura e opulência do Brasil, autor da
conhecida afirmação segundo a qual “Os escravos são as mãos e os pés do
senhor de engenho...”
95
. Sem escravos não haveria nem engenho, nem fazenda,
nem senhor e, poderíamos acrescentar, nem o sistema colonial. Na sua análise
fria, calculista, pragmática e “objetiva” o homem, tanto o senhor quanto o escravo,
92
Estudos sobre a poesia popular do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia de Laemmert & cia.,
1888, p. 10-11.
93
Idem, ibidem.
94
Os africanos no Brasil...
95
Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; são Paulo: EDUSP, 1982, p. 89.
42
existiam em função da mercancia, como afirmou Alfredo Bosi.
96
A interpretação de
Bomfim estava em sintonia com essa idéia: o senhor/parasita só existia porque o
escravo/parasitado existia. Ademais, ambos eram peças que faziam funcionar a
máquina econômica de produção de riqueza para a metrópole – o parasita maior.
O sujeito em ambos os autores era o sistema; às pessoas cabia o lugar de objetos
e suas respectivas funções.
Contudo, o negro não era apenas “máquina econômica”, lembrou Sílvio
Romero. O estudioso da cultura popular deveria vê-lo antes como “objeto de
ciência”. Foi a esta empreitada que se entregaram Nina Rodrigues e Romero. O
primeiro foi em busca dos africanos idosos em “nossas cozinhas”, nas ruas, nas
praças, nos candomblés de Salvador. Queria ouvir os ex-escravos, anotar as suas
falas, histórias, manifestações religiosas, etc. e assim poder aquilatar o quanto a
“cultura popular brasileira” estaria impregnada pelos valores, linguagem, religião
que os africanos das mais diversas procedências trouxeram.
Como homens de ciência, Nina Rodrigues e Sílvio Romero viam os negros
como o “outro”, que era o portador de um universo cultural e religioso ao qual
queriam ter acesso. A perspectiva de ambos, no tocante à população escravizada,
era a do intelectual que do vértice da pirâmide social observava, julgava os que
estavam na base e desejavam produzir sobre eles um saber científico. Manoel
Bomfim, do mesmo modo, cria na ciência para se poder compreender a trama da
vida humana e das relações sociais. Sua opção metodológica baseou-se em
conciliar Ciências Naturais e Ciências Sociais, o que se traduzia na construção da
analogia entre universo biológico e mundo social (parasitas/parasitados e
senhores/escravos). Isso reforçava a adesão à perspectiva científica de
interpretação. As sintonias param por aqui.
Em primeiro lugar, não era o escravo ou a raça que Bomfim, do alto,
munido dos conceitos e dos métodos da ciência do seu tempo examinava, emitia
julgamento e condenava. Pelo contrário, queria entender, condenar e tornar
explícitos as relações sociais e os interesses econômicos que estavam por trás
96
Antonil ou as lágrimas da mercadoria. In: _________. Dialética da colonização. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, p. 160.
43
dos fatos e dos discursos dos conservadores. Nem os escravos eram inferiores
porque eram africanos nem a instituição da escravidão era um “fenômeno natural”,
que corresponderia a uma etapa da evolução de um povo, como escreveu Nina
Rodrigues.
97
Na argumentação do nosso autor, o “problema” não era o negro ou a
raça, mas o sistema. As instituições, inclusive a escravidão, eram criações
humanas, enraizadas na história e estavam imbricadas na rede de interesses
econômicos conflitantes. Sua interpretação estava livre, nesse caso, das hipotecas
deterministas, seja do clima, seja da raça.
O seu discurso carregado de emotividade fugia do padrão dos textos que
tinham a pretensão de serem científicos. Quem elaborava obras com esta
intenção queria passar a noção de que entre a realidade descrita e o leitor não
havia o indivíduo observando, pensando, sentindo e opinando. A descrição
constituía-se numa escrita fria, objetiva e impessoal. Objetivando sublinhar a
condição do homem oprimido, fugindo do que era visto como discurso científico,
Bomfim frisou a idéia de solidariedade e compaixão para com as “classes
desprotegidas”. O que estou tentando dizer fica bem nítido nesse relato de uma
cena de açoite de um escravo, cujo tom se aproxima do texto literário:
Levantava-se o desgraçado, bambas as pernas pela abstinência, trôpegas,
atormentadas, da posição contrafeita dolorosa do tronco, pisados os músculos,
emaciado o rosto, apagados os olhos pelo sofrer acumulado; as mãos, inchadas
não se fecham, túrgidas, luzentes; a sânie transuda por entre os dedos abertos; a
pele rachou desde os primeiros dias; as unhas já caíram; as costas estão em
carne viva... O miserável num desvario de bruto, estende a mão ao executor. Cai o
primeiro bolo, soa um grito, uivo e lamento, gemido violento de todas as dores que
acordam... E os golpes se repetem: é um – Ai!.. Ai! Continuo...
98
Para revelar porque o escravo, educado à base do açoite e de todo tipo de
privação, não “tinha voz”, sua análise deslizava para o determinismo. A analogia
entre parasitas e parasitados, tal qual Darwin observou na vida dos animais, e a
97
As raças humanas. Rio de Janeiro – Recife – Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1938,
p. 206.
98
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 147 (Grifo no original).
44
relação senhor e escravo conferiam ao argumento dele uma tonalidade científica.
Havia, pois, homologia entre o mundo biológico e a sociedade. Em ambos os
casos as vítimas viviam para os parasitas. A “lei” que valia para os naturalistas
valia também para o sociólogo.
Entretanto, quando o assunto era mostrar que nada havia de humano na
escravidão, Bomfim se serviu da linguagem literária, aliás, nada científica.Ficou
evidente a ênfase na emoção e o propósito de se solidarizar com o escravo e,
também, pedir a adesão do leitor. Sua perspectiva divergiu completamente de
Romero e Nina Rodrigues porque não transformou o homem simples em puro
“objeto de ciência”; embora tenhamos lembrado do parentesco entre A América
Latina e Cultura e opulência do Brasil, no tocante ao papel dos indivíduos para o
funcionamento do sistema colonial, a semelhança aqui se esgota. Antonil
descrevera o sofrimento do açúcar, da metamorfose da cana em garapa, desta em
melado e, finalmente, em açúcar. A mercadoria sofria, não quem a produzia. Na
descrição do jesuíta o “ouro branco” ganhou o centro do palco, ficando o escravo
reduzido à mera sombra que vagava pelos engenhos. Bomfim, contrastando, fez
questão de frisar o sofrimento do escravo que, como “mãos e pés do senhor de
engenho”, fora a razão de ser do sistema.
A sua análise filia-se a uma vertente interpretativa de liberais e
antiescravocratas que se esmeraram em desvelar, no século XIX, o fundo de
barbárie que estava oculto por trás da superfície civilizada da sociedade
escravocrata do Império. Referimo-nos em particular a Tavares Bastos
99
e
Joaquim Nabuco.
100
O primeiro convidou os leitores a desviarem a atenção dos
temas relacionados aos partidos políticos para se deter nas “questões sociais”,
que era o que importava. Ambos exortavam os seus leitores a penetrarem no
subterrâneo da sociedade. Lá estava o escravo, o ser humano transformado em
propriedade, inferiorizado e reduzido a condição de “cadáver civil”. A intenção de
Manoel Bomfim estava em sintonia com esse ponto de vista.
99
Cartas do solitário. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasília: INL, 1975, p. 66.
100
O abolicionismo…, p. 47.
45
Antonil era um exemplo do “Intelectual Orgânico” que falava a partir do
sistema colonial
101
e com o objetivo de legitimá-lo. Nina Rodrigues e Romero
falavam em nome da classe dominante e cuja intenção era lembrar aos
defensores da tese da igualdade racial que a civilização ocidental foi uma criação
dos brancos e para os brancos. Bomfim pertencia ao grupo de intelectuais do fim
do século XIX e das primeiras décadas do XX que não via os homens pobres
como um “outro” a ser temido, evitado e excluído. Pelo contrário, concordava com
aqueles que tinham a perspectiva de incluí-lo na sociedade como cidadão.
Se o oprimido não tinha condições de protestar porque não tinha nem voz e
nem consciência, cabia ao intelectual, culto e ilustrado, assumir o papel de porta-
voz dessa gente. Esta parece ser a vontade de Manoel Bomfim.
Os intérpretes da obra de Manoel Bomfim, especialmente A América Latina,
frisaram suas idéias contrastantes em relação ao pensamento conservador,
negando as hipotecas deterministas de raça e de clima. Onde a voz corrente via
no povo formado por negros, índios e mestiços a causa das mazelas sociais de
um país considerado atrasado e “bárbaro”, ele chamou a atenção para os efeitos
da colonização ibérica. Onde muitos enxergaram o papel civilizador do europeu,
mostrou o fundo de barbárie, de violência, de injustiça que resultou da colonização
ibérica. À versão segundo a qual os confrontos com o estrangeiro no período
colonial constituíam-se no embate entre patriotas e estrangeiros, contrapôs o
argumento de que na realidade tratava-se de lutas entre opressores e oprimidos,
cuja causa estava nos interesses econômicos conflitantes. Contrapondo-se à tese
das transições – Independência e Proclamação da República, por exemplo – como
etapas necessárias e fatais do movimento “natural” de evolução política-
institucional do país, sublinhou, em primeiro lugar, a ausência de mudanças e, em
segundo, os fatores de natureza política e – por que não? – cultural, que
impediram a superação do atraso e das heranças do passado.
101
BOSI, Alfredo. Antonil ou as lágrimas da mercadoria. In: ________. Dialética da colonização
..., p. 163.
46
Encerro este capítulo abordando a análise do nosso autor sobre as
independências das colônias ibero-americanas e sobre sua teorização sobre as
forças políticas que nelas atuaram.
O primeiro aspecto a ser tratado diz respeito ao fato de que Bomfim colocou
o acento nos fatores internos na sua interpretação sobre os rumos tomados pelas
revoltas dos colonos contra as metrópoles. Isto significou uma interpretação
alternativa àquela que frisava o papel desempenhado pelos ingleses e a fraqueza
das metrópoles que, ao cabo, queria realçar, em primeiro lugar a preponderância
do fator externo, e, em segundo, que ocorreu apenas a substituição de
colonizador.
Manoel Bomfim centrou o estudo nos agentes que ele chamou de
“remanescentes da metrópole”,
102
que “representavam, direta ou indiretamente, os
interesses parasitários da metrópole”
103
, ou seja, uma parte da “metrópole
plantada na colônia”. Eram os parasitas que estavam interessados na manutenção
dos seus privilégios e, por causa disso, obstaculizaram as mudanças durante as
lutas pela emancipação das colônias ibero-americanas; opunham-se a estes os
revolucionários. A atuação dos “remanescentes”, os “refratários”, segundo a
definição do autor, deu-se em fases: a princípio a “repulsa”, motivada pelo
“instinto” conservador da classe dominante; em seguida, viram que a idéia da
emancipação tornava-se vencedora e já não sendo possível freá-la, astutamente
perceberam a necessidade de “transigir”. Daí veio o momento da “deturpação” da
revolução. Do projeto de reforma inicial dos revolucionários sobrou o meio termo.
Finalmente, os conservadores tomaram a direção. Aí chegou-se à fase da
“escamoteação”. Concluiu o autor de uma forma crua e lapidar: “um pouco mais, e
eles sabem achar na reforma o meio de se garantirem melhor – a si e aos seus
privilégios”.
104
A questão que se coloca é a seguinte: por que e como os revolucionários
deixaram-se vencer pelos conservadores? No fundo, os revolucionários eram
conservadores. Os interesses divergentes, ao final, tiveram suas arestas
102
BOMFIM, Manoel. A América Latina..., p. 213.
103
Idem, p. 215.
104
Idem, p. 219.
47
aparadas. Estes queriam a preservação do status quo; aqueles, apenas a
emancipação. Os extremos, as asperezas iniciais deram lugar à concórdia; os
interesses extremados, analisados mais minuciosamente, eram mais aparência do
que realidade.
Sua explicação para esse fenômeno não se assentou na teoria do caráter
do brasileiro, a suposta “cordialidade”, que permitia a resolução dos conflitos
políticos sem extremismos e pacificamente. No seu entender os revolucionários
aceitaram a adesão dos conservadores porque aqueles estavam submetidos,
assim como os conservadores, ao império do “conservantismo instintivo”. Esta é
uma parte do argumento. A outra se referia ao engano cometido pelos que
achavam que estavam mudando ao tomar as “fórmulas vãs” e as “reformas
escritas”
105
pelo fato em si. Ou seja, os revolucionários confundiram a
independência com a simples proclamação e formalização de tratados. Os
pretensos agentes da mudança compartilhavam com a classe dominante a atitude
de aceitar as palavras, as fórmulas, mas não “podiam aclimatar-se às coisas que
essas palavras designavam”.
106
O mérito do autor está em contrapor-se à opinião corrente de sua época,
que via nas transições pacíficas e conciliatórias um dado positivo da vida política e
institucional do país, pois a ordem social e política ficava preservada da ação
revolucionaria. Esses intelectuais enxergavam nesse tipo de mudança a
concretização da tese evolucionista segundo a qual povos e sociedades deveriam
evoluir paulatinamente e por etapas. Eram os mesmos que viam na evolução o
antídoto contra o perigo das rupturas abruptas e a ameaça de desagregação da
ordem social.
107
Esta perspectiva legitimava a ordem social vigente; sua
reivindicação limitava-se a exigir correções superficiais e pontuais no que era visto
105
Idem, p. 220.
106
Idem, p. 160.
107
Podemos mencionar como exemplo de argumento que via os benefícios da conciliação entre
classes e das mudanças sem rupturas revolucionárias o abolicionista Joaquim Nabuco e o
historiador Oliveira Lima; o primeiro deixou explícito que a tarefa da corrente abolicionista da qual
fazia parte era a conciliação entre proprietários e escravos e não o conflito, que poderia acabar em
guerra civil; o historiador sublinhou a vantagem da evolução em relação à revolução porque a
primeira significava a continuidade com a tradição ibérica. NABUCO, Joaquim. O abolicionismo
..., p. 39; sobre a opinião de Oliveira Lima, ver MALATIAN, Teresa. Oliveira Lima e a construção
da nacionalidade. Bauru, São Paulo: EDUSC; São Paulo, SP: FAPESP, 2001, p. 332.
48
como erro. Haveria um legado a preservar – a tradição, os costumes políticos, a
civilização construída pelo homem branco europeu, a nacionalidade etc. A
perspectiva do autor, no livro A América Latina, discrepou na medida em que o
fundamental – a ruptura com o passado – não veio com a emancipação política
das colônias ibero-americanas.
Opor-se à ruptura com passado equivalia a represar injustiças seculares e
não aceitar que as sociedades, como qualquer organismo, evoluem. Impor
barreiras significava alimentar a convulsão social. O rompimento do dique era a
revolução e quem a preparara não foram os revolucionários, mas as classes
dominantes. O bom senso recomendava suprimir as barreiras, abrir o caminho
para “as necessidades novas que se apresent[avam]”.
108
O autor se referia à
necessidade de o país e a América Latina entrarem em sintonia com a
modernidade. Tolerar as desigualdades, as injustiças, os privilégios de classe era
o mesmo que continuar apegado ao passado. As reformas que visassem a
democratizar a relação da sociedade com o Estado, a tornar realidade a justiça
social tinham a virtude de soerguer países esgotados e inserir todas as pessoas
na sociedade como cidadãos.
A mudança não viria com a prática política da conciliação de classe e da
adoção de idéias sem correspondência com a realidade local; fazia-se necessário
um projeto concreto, elaborado por quem estivesse preocupado em conhecer a
realidade social por meio da observação científica e não apenas dos livros,
reproduzindo fórmulas e modelos.
Porém, entre o ideal e o que a história lhe revelava havia um abismo. Isto o
motivava a elaborar um diagnóstico frio, trágico dos atores políticos que atuaram
no momento das independências. Ele os dividiu, a princípio, esquematicamente
em dois grupos extremos: os realistas e os revolucionários. A seu ver, no entanto,
esses dois partidos estavam divididos em diversos grupos, cada qual com suas
características. Os extremos – os que queriam manter o estado das coisas e os
que desejavam refazê-lo – existiam apenas na aparência. Havia os radicais
(queriam de fato o rompimento com os males da colonização), os adiantados (seu
108
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., 163.
49
radicalismo era pura retórica, pois de fato eram conciliadores), os liberais
(defensores da liberdade, mas como há várias definições para este conceito,
podiam estar contra ou favor de muita gente), os moderados (entre cautelosos e
neutros, de acordo com o momento e a necessidade), os conservadores (ora ao
lado dos moderados, ora ao lado dos reacionários), os reacionários e os
irredutíveis. De acordo com a sua tese não havia de fato projetos próprios e
oposições políticas definidas. As nuances foram se confundindo e se viu a vitória
dos moderados, os que ficaram de fora das lutas e apareceram apenas no final;
por isso apresentaram-se vigorosos e aniquilaram os demais; a miragem dos
extremos deu lugar ao “meio termo”, que no fundo significava a emancipação
política das colônias, mas com a continuidade da mesma classe – a oligarquia –,
no poder. O caso brasileiro foi emblemático: a dinastia portuguesa preservou o
poder posteriormente à Independência.
No livro Brasil nação, obra da maturidade, o autor voltou ao assunto e
explicou porque os “males de origem” não foram superados em quatro momentos
de “crise” da história política e institucional – Independência, Abdicação de D.
Pedro I, Abolição e República. Em todos esses acontecimentos os moderados
dominaram e dirigiram o processo. A vontade de mudanças genuínas,
“revolucionárias”, ao cabo, constituiu-se em projetos deturpados e vencidos. Essa
reflexão sintonizava com idéias e propostas de intelectuais e políticos das últimas
décadas do século XIX, autores de notáveis discursos em prol da Abolição e da
República.
Machado de Assis acompanhou os debates e revelou o quanto de
irrealismo havia nas idéias dos liberais abolicionistas e antimonarquistas.
Percebeu que o regime do trabalho livre traria outras formas de trabalho
compulsório e que as propostas dos republicanos eram pura retórica, sem
inserção no seio do povo, que mal compreendia o que estava acontecendo. A
oligarquia era sagaz, incorporava os discursos dos abolicionistas e sabia se
antecipar às mudanças. O monopólio do poder continuou com ela.
109
109
Em relação ao advento da República e as mudanças que não se viram, ver ASSIS, Machado
de. Esaú e Jacó. São Paulo: Gráfica e Editora EDIGRAF S A. s d., especificamente os capítulos
“Manhã de 15”, “Lendo Xenofonte”, “Pare no D”, “Tabuleta nova”, “Entre os filhos”. Sobre os
50
É possível ver uma sintonia entre o autor de Memórias póstumas de Brás
Cubas e Manoel Bomfim. As idéias do romancista eram-lhe familiares. Em ambos
a mesma noção segundo a qual os conservadores, percebendo a inevitabilidade
da “revolução”, aderiam ao movimento, dirigiam-no e anulavam as intenções
iniciais. Nos dois a mesma percepção a respeito da sorte dos “oprimidos”: a
escravidão daria lugar a outras formas de trabalho compulsório. De acordo com
Bomfim os ex-escravos, agora juridicamente livres, e os demais proletários
continuaram “economicamente mais escravos do que nunca”.
110
A República veio
a ser “um regime da oligarquia”.
111
Se a política da conciliação mostrou-se útil apenas para a classe dominante
perpetuar-se no poder, Bomfim sugeriu que seria uma revolução de fato
pressupunha convicções fortes, embate ideológico, contradições de idéias e
radicalismo na ação política. Esta afirmação se chocava com outro argumento do
autor: as “revoluções” falharam porque a mentalidade dos protagonistas foi feita
no interior do “regime condenado”.
112
Então, como conciliar a primeira afirmação
com esta? Como pensar em atores políticos conscientes da condição do país e do
povo, ambos subjugados e explorados, convictos quanto à necessidade da
mudança e dispostos a não ceder nem contemporizar com os conservadores se
os chamados revolucionários foram feitos e educados no interior do mesmo
sistema – o parasitismo social?
A resposta a esta questão pode ser encontrada no papel que ele atribuiu ao
parasitismo social como força externa agindo sobre os indivíduos. Com efeito, os
escravos, os homens livres pobres, conforme vimos atrás, aderiam de bom grado
à causa dos seus opressores; os inseridos nos órgãos estatais cumpriam seus
papéis automaticamente garantindo o funcionamento da burocracia do Estado.
113
proprietários que se apropriavam das idéias liberais e se antecipavam, alforriando e controlando o
movimento, ver ASSIS, Machado de, Memorial de Aires. São Paulo: Ática, 1985, p. 34-5. Sobre o
tema relacionado à escravidão que se tornava uma forma de trabalho permanente, ver FAORO,
Raymundo. A pirâmide e o trapézio. São Paulo: Globo, 2001, p. 356-361; UEMORI, Celso
Noboru. Escravidão, nacionalidade e mestiços políticos. Lutas Sociais ...
110
O Brasil nação: realidade da soberania nacional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996,
p.366.
111
Idem, p. 390.
112
Idem, p. 370.
113
Bomfim, Manoel. A América Latina ..., p. 188.
51
Todos tinham em comum com a classe dirigente e com os revolucionários o fato
de estarem submetidos à herança da tradição e da educação. Os revolucionários
de ontem tornavam-se os conservadores assim que chegavam ao governo. Aí
controlavam os radicais e selavam o compromisso com a ordem, o bom senso e a
ponderação.
O parasitismo social moldou a consciência do indivíduo, seja a do escravo,
seja a dos membros das classes dirigentes, seja a dos funcionários, seja a dos
revolucionários. Depreende-se que existiam apenas nuances entre os diversos
grupos sociais, mas na essência todos agiam inconsciente e mecanicamente
dentro da engrenagem do sistema colonial, tal qual o senhor e o escravo de
Antonil. Os radicais, vigorosos na retórica, ao final, transigiam, pois que o
“radicalismo” ocultava o conservadorismo. Não existia vontade, definida como
desejo de examinar, escolher, deliberar e decidir, em quem foi educado para
conservar.
114
Se as coisas eram assim, como encontrar os agentes que poderiam
ter rompido com o estado de coisas que ele enfaticamente revelou?
Essa visão desalentadora estava de acordo com a sua concepção filosófica
de liberdade humana; “o homem não é um ser objetivamente livre”,
115
afirmou. Os
constrangimentos não vinham da classe social a que a pessoa pertencia, pois “o
homem é produto da vida anterior e da vida ambiente”.
116
Inexistia contradição
entre indivíduo e sociedade, tal como dissera antes dele Darwin, Ribot, Tarde,
cujas idéias eram bem conhecidos pelo autor de A América Latina.
Parasitismo orgânico e parasitismo social
No final do século XIX, parte da intelectualidade européia foi tomada pela
desconfiança em relação ao futuro da civilização ocidental. A crença iluminista e
liberal segundo a qual indivíduos e sociedades progrediriam infinitamente no
sentido do acúmulo do conhecimento, do aperfeiçoamento científico, moral,
material, ético deu lugar à percepção de que a moderna sociedade industrial
114
Idem, p. 308-309.
115
Idem, p. 338-339.
116
Idem, ibidem.
52
estava em processo de degeneração. Os adeptos da idéia da decadência
acreditavam que a barbárie vivia no interior da civilização. Os bárbaros eram todos
os que apresentavam comportamento “anti-sociais” – os criminosos, as prostitutas,
os vadios, os usurários, os alcoólatras, os agitadores políticos. As ciências
naturais tiveram um papel determinante para dar sustentação para a teoria da
decadência. Se a evolução explicava como as espécies evoluem, do mesmo modo
ela ajudava entender como elas decaem. Na luta pela existência, os adaptados ao
meio social sobreviviam e transmitiam aos descendentes as características
genéticas dominantes. Os que apresentavam comportamentos sociais
“desviantes” eram os não adaptados. O raciocínio parece ser o seguinte: havia um
descompasso entre as exigências da vida moderna, criada pelo desenvolvimento
tecnológico, e a dificuldade de adaptação do enorme contingente populacional que
habitava as cidades industrializadas. Os “derrotados” na luta pela existência
compunham a legião de alcoólatras, mendigos, criminosos, loucos, suicidas.
Criminologistas, biólogos, cientistas sociais, médicos, psicólogos
mobilizaram-se para explicar essas atitudes “anti-sociais”. Na busca do
diagnóstico recorreu-se ao procedimento de relacionar as características físicas
com a disposição psicológica para os comportamentos patológicos. Para alguns o
fator determinante residia no indivíduo. Para outros, no meio social. O que fazia o
criminoso, para alguém como Lombroso, era o retorno atávico da brutalidade do
selvagem que aparentemente fora vencida pela civilização.
Não sem dificuldade, a noção do indivíduo “doente” e perigoso foi
deslocada para grupos e classes. Os inimigos da ordem, da segurança social
eram as “classes perigosas”. Tratava-se de transformar em criminosos potenciais
os trabalhadores pobres, os desempregados e os que não aceitavam o sistema
que os oprimiam. A intelectualidade que tinha na memória ou assistiu à irrupção
dos trabalhadores organizados na “Era das Revoluções” estava apreensiva. A
Comuna de Paris, do ponto de vista dos liberais e dos conservadores, era o
acontecimento emblemático do que poderia significar a concretização do “caos”
social e da “desordem” política.
53
A idéia de degeneração, de debacle coletivo, ligava-se intimamente à noção
de “multidão”. A esse vocábulo associava-se à percepção da “malta” regredindo a
estágios de barbárie e selvageria, à massa descontrolada e incontrolável, livre de
qualquer peia moral, dirigindo seu ímpeto instintivo e irracional para a destruição.
É dentro desse contexto que as noções de hereditariedade e de imitação
seduziram muitos “cientistas”, porque permitia explicar a propagação (ou
“contaminação”) do que era considerado desvio social no interior da população.
A percepção da decadência do Ocidente era uma atitude de intelectuais
conservadores que viam a democracia, o socialismo e a organização dos
trabalhadores com temor. No entanto, a teoria da degeneração uniu adversários
que se separavam teórica e politicamente, como os liberais e os socialistas. O
assunto chamou a atenção de cientistas e escritores como Lombroso, Le Bon,
Durkheim, Benedict Morel, Taine, Zola, Bram Stoker, o medico e jornalista
húngaro Max Nordau.
117
Este último nos interessa mais de perto porque foi citado
por Bomfim na obra A América Latina.
Max Nordau apareceu no texto de Bomfim quando este elaborava as
noções de parasitismo e degeneração.
118
Para o médico húngaro o parasita, que
era o mesmo que dizer degenerado, vivia às custas do trabalho alheio. Nordau era
um admirador de Lombroso, a quem dedicou a obra Dégénérescence. Em uma
carta dedicada ao seu mestre italiano, referiu-se ao motivo pelo qual atacava os
artistas “degerenerados”. Escritores e artistas, de acordo com o médico, tinham
uma influência nada desprezível sobre as massas e, por isso, eles deveriam ser
um ideal de moral e de beleza. Se as suas obras eram “absurdas” e “anti-sociais”,
a influência sobre juventude somente poderia ser danosa.
119
Servindo-se de linguagem médica, Nordau aferiu os sintomas e fez o
diagnóstico do que seria o degenerado. Este apresentava ausência de senso de
moralidade e de pudor. Cometia crimes e demais delitos tão-somente para
117
HERMAN, Arthur. A idéia de decadência na história ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1999,
especificamente o capítulo Degeneração – a ruína do liberalismo.
118
Bomfim, Manoel. A América Latina ..., p. 61.
119
À Monsieur le Professeur César Lombroso. In : NORDAU, Max. Dégénérescence. Paris: F.
Alcan, 1909, p. vi.
54
satisfazer os instintos e não distinguia o bem do mal, nem o vício da virtude
120
. A
sua existência passa a ser canalizada para as satisfações das paixões,
sobressaindo as atitudes egoístas. Anarquistas e revolucionários, ratificando o
ponto de vista de Lombroso, eram para Nordau casos de degeneração, pois o
revoltado era incapaz de se adaptar às condições dadas. Em suma, quem fugia do
“padrão” moral, estético, ético ou político era um caso patológico.
121
Para além de todas as discordâncias, liberais, socialistas e social-
democratas concordavam que no seio da moderna sociedade industrial emergiram
os agentes que a debilitavam.
122
Tornou-se dominante a noção de que habitavam
nos centros urbanos parasitas portadores da doença que se espalhava,
contaminando a população. O parasita era o louco, o criminoso (sobretudo este), o
ladrão, o suicida etc. Também poderia ser o usurário, o agiota, o sinecurista, os
que vivem da exploração do sexo, os charlatões, os sonegadores; enfim, aquele
que colocava o seu interesse pessoal acima do interesse coletivo. O parasita,
orgânico ou social, retira do outro o seu sustento. Essa é a definição de
parasitismo de Jean Massart e Émile Vandervelde, autores do livro Parasitisme
organique et parisitisme social. Referimo-nos a eles porque Bomfim serviu-se do
livro dos social-democratas belgas para elaborar A América Latina.
Certamente, Bomfim conheceu o livro de Vandelverde e Massart quando
esteve em Paris, no início da década de noventa. Nessa época já havia elaborado
o “Parecer” sobre o livro História da América de Rocha Pombo
123
, quando
apresentou as idéias centrais, que seriam retomadas em A América Latina: os
colonizadores ibéricos que não vieram para “fazerem-se americanos” e a
“vocação” destes para invadir e extorquir; a dupla face do parasitismo (no plano
externo, a exploração das metrópoles sobre as colônias e no âmbito interno, a
120
NORDAU, Max.. Op. cit. p. 35.
121
Idem, p. 41.
122
Arthur Herman afirmou que também os “progressistas e até mesmo os socialistas” os que se
preocupavam com a decadência da moderna sociedade industrial e não somente os
conservadores, como argumentam muitos historiadores, Op. cit., p. 121.
123
Esse texto foi escrito por Bomfim em 1899, quando era membro do Conselho Superior de
Instrução Pública do Distrito Federal. Ele foi convidado para elaborar um parecer sobre o livro de
Rocha Pomba Compêndio de ‘História da América. O parecer de Bomfim foi favorável. BOMFIM,
Manoel. Parecer sobre o livro História da América, de Rocha Pombo. In: POMBO, Rocha.
Compêndio de história da América. Rio de Janeiro: Laemmert, 1900.
55
escravização da população nativa); o conservadorismo da classe dominante e a
sua arraigada resistência ao progresso e a sua responsabilidade pelo atraso
econômico, político, cultural e educacional do país; vitimada pelo parasitismo
social, a população aprendeu a cultivar ódio pelas instituições; a astúcia das
classes dominantes locais que, à época das lutas contra a metrópole, resistiram
no início, colocando-se ao lado da metrópole, mas posteriormente transigiram
quando perceberam que a emancipação das colônias era inevitável, trocando
estrategicamente de lado para controlar o ritmo e o sentido das transformações,
limitando-as à mudança governamental, preservando-se assim o status quo e a
presença sobranceira dos conservadores, que subjugaram as aspirações liberais.
Subjugação que não significava derrota completa, pois as duas tradições – a
liberal e a conservadora – continuaram digladiando-se. Em suma, esses são os
tópicos abordados no “Parecer” escrito por Bomfim. Posteriormente, nas demais
obras historiográficas eles reapareceriam.
No referido texto, o autor utilizou a noção de parasitismo para descrever a
ação do Estado metropolitano e da classe dominante colonial sobre,
respectivamente, as colônias e à população escravizada. No entanto, é em A
América Latina, que ele começou a compor em Paris e terminou-o no Brasil, que
se observa o recurso de servir-se da linguagem biológica e comparar parasitismo
orgânico com o parasitismo social. As semelhanças quanto à estruturação do livro
de Massart e Vandervelde e de Bomfim são evidentes, permitindo afirmar que este
beneficiou-se da obra dos intelectuais belgas para dar uma roupagem teórica às
idéias que já tinha.
Fazemos essa afirmação porque a comparação de ambos os livros revela
pontos em comum, como a analogia entre parasitismo orgânico e parasitismo
social, os efeitos destes sobre os parasitas e sobre as suas vítimas
124
e a
propagação dos efeitos através da hereditariedade ou da imitação.
124
Para Massart e Vandervelde o parasitismo causa a debilitação física e intelectual do parasita e
cria no parasitado o “instinto de servidão”; quanto mais “bas-fonds sociaux”, maior a submissão.
Parasitisme organique et parasitisme social. Paris: Librarie C. Reinwald Schleicher, 1898, p.
102 e 147.
56
O parasitismo foi definido por Massart e Vandervelde como uma derivação
do mutualismo, ou seja, relação na qual não havia dependência e exploração. Os
autores citaram o exemplo das indústrias domésticas, em que não havia o havia
intermediário (o atravessador) entre o produtor direto e o consumidor.
125
O
comportamento parasitário era todo ato que prejudicava a sociedade e favorecia
os indivíduos. Os parasitas eram os criminosos, os usurários, quem vivia da
exploração da prostituição, empresários, sonegadores, proprietários de terras (as
“tênias do corpo social”). Em suma, onde fosse observada qualquer forma de
exploração, de extorsão, de condutas que contrariam as normas sociais, vigorava
o parasitismo social.
Na situação em que predominava o mutualismo não se instaurava a “luta
pela vida” e desse modo ninguém perdia. Em oposição, na predominância do
parasitismo a luta pela vida escolhia o vencedor e o perdedor. O meio social
produzia e favorecia o surgimento do mutualismo ou do parasitismo.
Vandervelde e Massart propuseram medidas que deveriam ser adotadas
para defender a sociedade contra os parasitas. Eles apontaram dois mecanismos:
uso da violência e meios preventivos. A sociedade moderna, de acordo com os
intelectuais belgas, estava criando os anticorpos para combater os parasitas,
prescindindo-se, assim, de meios violentos.
126
Quais seriam esses meios? A
deportação de criminosos, medidas legislativas, abolição de privilégios,
desenvolvimento de associações de todos os tipos, a solidariedade dos
trabalhadores. A solidariedade social seria a medida profilática mais eficaz para
evitar a exploração do homem pelo homem.
127
Bomfim estava conectado ao universo intelectual europeu, do qual retirou
noções para sustentar teoricamente as suas idéias. Na Europa, a questão central
consistia em fazer o diagnóstico do mal-estar da modernidade capitalista.
Parasitismo e degeneração, noções cunhadas para descrever o mal-estar da
civilização Ocidental, foram apropriados por Bomfim para pensar a realidade
brasileira, vista como atrasada, retrógrada, agrária, a antípoda das modernas
125
Idem, p. 81.
126
Idem, p. 147.
127
Idem, p. 153-156.
57
sociedades democráticas, liberais e industrializadas. Na interpretação de Bomfim
sobre o país, a barbárie não vinha da massa irracional e destrutiva de Le Bon,
nem dos criminosos, dos suicidas, dos ladrões, os desempregados, ou seja, dos
parasitas que invadiam as cidades fabris e inoculavam o veneno que contaminava
a população, corrompendo toda a sociedade.
Ele estava preocupado em explicar, na obra A América Latina, os efeitos
econômicos, políticos, sociais e psicológicos da colonização ibérica sobre a
formação das nacionalidades latino-americanas. A psicologia social, disciplina que
serviu na Europa para explicar o comportamento das massas, foi utilizada por
Bomfim para entender o comportamento da classe dominante e também as
atitudes dos dominados. De acordo com o autor, a primeira via a dominação, a
utilização da força, a opressão, a usurpação do público em benefício privado como
um dado “natural”. Por outro lado, a população enxergava a dominação como
destino. A influência de idéias que circulavam no ambiente cultural europeu
hegemônico no final do século XIX sobre Bomfim pode ser notada pela
importância que ganhou as noções de instinto, imitação, hereditariedade e
inconsciente, as quais serviram ao propósito de alicerçar a tese de que as atitudes
dos dominantes, dos dominados e a violência do povo contra as instituições
estabelecidas originaram-se na época da montagem do mundo colonial, a
institucionalização da escravidão e do Estado metropolitano, propagaram-se no
tempo por meio da imitação e constituíram-se em hábitos, costumes, tradições
que se incrustaram no inconsciente do “homem brasileiro”. Desse modo, o
passado não vivia no presente, no sentido de Lombroso, como o retorno atávico
de comportamentos do “homem primitivo”. O passado a que Bomfim se refere
remete à escravidão, ao extermínio da população nativa, à opressão de classe e à
violência do Estado parasita. A intelectualidade européia estava perplexa com o
fato de que civilização e barbárie não eram termos opostos e excludentes, mas
duas realidades que conviviam nas modernas sociedades industrializadas. A
perplexidade de Bomfim residia na persistência da “herança” colonial que impedia
a modernização do país.
58
Na Europa, assistiu-se com apreensão o enfraquecimento dos códigos
universais, permitindo o desenvolvimento do individualismo, a indisciplina, a
imoralidade, configurando-se assim a “anomia” das sociedades industriais. Se o
termo anomia pode ser aplicado ao pensamento de Bomfim, este dizia respeito
aos efeitos do parasitismo social, causador do atraso social e econômico do país,
da existência de uma elite despótica e egoísta, de uma população que ora
aceitava a dominação passivamente, ora se revoltava “instintivamente”, e da
hipertrofia do Estado.
Em se tratando de medidas “profiláticas”, em pelo menos um ponto Bomfim
parece ter concordado com os intelectuais europeus
128
: a necessidade de
construir relações humanas baseadas na solidariedade, de engendrar meios para
fazer prevalecer os interesses coletivos sobre os individuais.
Na Europa, para os conservadores a necessidade de criar unidade entre as
pessoas, grupos e classes ligava-se à necessidade de salvar a sociedade,
introjetando nesta o antídoto visando neutralizar os males sociais produzidos pela
moderna sociedade industrial, muitos dos quais derivados da excessiva
valorização do individualismo, o qual deixou campo livre para o desencadeamento
de todo tipo de forças desagregadoras, como as variadas formas de exploração,
extorsão, crime etc. Bomfim recorre às idéias de autores que estavam
preocupados em eliminar os parasitas que infestavam a moderna sociedade
capitalista. Em outro contexto, preocupado com outro problema, o intelectual
brasileiro retrabalhou noções e ideais para adequar-se à sua crítica ao Estado e à
classe dominante - os parasitas da nação brasileira.
128
A eugenia era a saída que muitos intelectuais viam como o antídoto para “curar” uma sociedade
“doente”; essa prevenção profilática podia significar medidas de caráter social, como a intervenção
do Estado tendo em vista promover a higiene pública ou melhorar as condições habitacionais.
Manoel Bomfim estaria de acordo isso, mas repudiaria as medidas que implicassem coerção ou
seleção de indivíduos mais capazes e adaptados. Sobre a eugenia, ver HERMAN, Arthur. Op. cit.
p. 141-150.
59
Capítulo 2
A influência de Darwin
“Ser bárbaro ou civilizado depende do observador e do momento”.
(
Manoel Bomfim, O Brasil nação)
“Darwin chegou inevitavelmente a um ponto de vista que era chocantemente relativo”.
(
Adrian Desmond; James Moore, Darwin: a vida de evolucionista atormentado)
A heterodoxia de Manoel Bomfim
Os intérpretes da obra de Manoel Bomfim ressaltaram a discrepância do
autor em relação ao pensamento dominante no cenário político e cultural da
Primeira República. De acordo com a opinião conservadora o “atraso” do país
devia-se à composição híbrida da população, formada a partir de duas raças
“bárbaras” (índios e africanos) e que deram origem a um “povo inferior”,
característica que se revelava na “indolência” e na “incapacidade inata” para o
trabalho intelectual; em conseqüência, o país estava preso a uma fatalidade: era
impossível tornar-se uma sociedade capitalista e democrática, como as nações
européias e os Estados Unidos. O passado, identificado com a colônia e a
escravidão, incidindo sobre o presente, atravancava o “progresso” e a “civilização”.
O diagnóstico pautava-se primordialmente pelo determinismo racial. Daí a
aceitação da idéia de que o caldeamento racial produziu um povo defeituoso, pois
os mestiços herdavam o que havia de “inferior” das matrizes; essa afirmação
fundamentava-se no que foi chamado de Darwinismo Social, concepção da qual
se serviram os conservadores na Europa para legitimar a dominação de classe, o
imperialismo ou mesmo a eliminação dos “menos aptos” na competição pela
existência na sociedade capitalista do século XIX. Essa teoria foi apropriada por
parte da elite intelectual brasileira com a finalidade de explicar, do ponto de vista
racial, o descompasso entre o “ideal” (Europa e Estados Unidos) e a realidade
(econômica, social e cultural) do país.
60
O imigrante europeu, considerado o mais preparado para a função que
exigia vigor, disciplina, inteligência, viria para substituir o trabalhador nacional,
visto como incapaz. Por trás da afirmação de que o país carecia do trabalhador
estrangeiro estava o desejo de ver formar-se uma população “homogênea”,
branca sem dúvida, pois como muitos afirmaram no Brasil não havia nem povo
nem nação. A superação do “atraso” e a modernização das instituições políticas
implicavam a exclusão social e a discriminação racial. O Darwinismo Social servia
de alicerce para projetos políticos autoritários e excludentes. A “ciência” passou a
ser vista como o “anjo tutelar da sociedade”, permitindo diagnosticar e propor
soluções.
É nessa atmosfera política-cultural que a voz quase solitária de Manoel
Bomfim atraiu a ira de seus adversários, ficou esquecida por muito tempo por seus
contemporâneos e, mais tarde, chamou a atenção de seus admiradores e
intérpretes. Estes sublinharam o senso de realismo, o vigor da sua crítica anti-
racial e o seu “contra-discurso” que se contrapunha às proposições hegemônicas.
As suas idéias foram cotejadas com a de autores como Sílvio Romero, Nina
Rodrigues, Euclides da Cunha e a comparação tinha como objetivo frisar a
mentalidade conservadora destes, profundamente influenciada pelas teorias
raciais, em contraposição às concepções radicais de Bomfim.
O seu radicalismo pode ser visto na crítica contundente à classe dominante
brasileira; na recusa em aceitar a noção da inferioridade de índios, negros e
mestiços; na defesa liberal e democrática da necessidade de organizar a
sociedade a partir das classes e grupos que a compõem e não do Estado, na total
recusa em ver como dado natural e justificável qualquer forma de dominação e
exploração, seja de classe, de raça ou de países; na busca de vias que pudessem
romper com o status quo a educação popular, num primeiro momento, ou a
revolução, posteriormente; na sua crítica dirigida às várias correntes de
intelectuais que, baseando-se em pressupostos pretensamente científicos,
propagavam opiniões racistas. É este último assunto que será objeto de estudo
neste capítulo.
61
A minha intenção não se resumirá em expor o que Manoel Bomfim afirmou
em relação ao tema, mas como ele o fez, o seu objetivo e o que tornou possível a
sua heterodoxia. Neste primeiro momento, enfatizo a influência de Darwin e a
interpretação que Bomfim fez das suas idéias, as quais serviram a diversos usos
teóricos e políticos e que se tornaram dominantes na vida mental da época. No
segundo, desejo tratar do tema do altruísmo, da solidariedade e da crítica aos
defensores da guerra nos textos de Manoel Bomfim; aqui também a presença das
concepções do autor de A origem das espécies é marcante.
Companheiros de viagem
Raros foram os intelectuais que, seja na Europa, seja no Brasil, recusaram-
se a aceitar a teoria que afirmava a existência de raças superiores e inferiores e
não enxergava na mestiçagem um fator degenerativo das populações nos
aspectos físicos, morais e intelectuais. O naturalista inglês Alfred Russel Wallace
(1823-1913), que elaborou a teoria da seleção natural em 1858, sem conhecer as
conclusões do seu amigo Darwin, nas palavras de Stephan Jay Gould “foi um dos
poucos não-racistas do século XIX”.
129
Wallace afirmou que a capacidade
intelectual é inata, independente se são povos “primitivos” ou “civilizados”; a
capacidade mental é idêntica, o que difere é a subutilização das potencialidades
pelos primeiros. Embora tenha defendido um ponto de vista pouco ortodoxo, ele
corroborou a opinião corrente sobre a superioridade ocidental, com as suas leis,
governo, ciência, cultura em relação aos povos “primitivos”.
130
Quatrefage,
opondo-se à visão pessimista dos antropólogos poligenistas quanto aos malefícios
morais, intelectuais e físicos decorrentes da mestiçagem, afirmou que o
caldeamento étnico era norma e não exceção entre os povos, inclusive os
europeus. Não há, segundo o autor, qualquer evidência de que a hibridização
tenha produzido seres degenerados; ele mencionou o caso dos paulistas,
população quase toda composta de mestiços e que, no entanto, eram as pessoas
129
A seleção natural e cérebro humano: Darwin versus Wallace. In: _______. O polegar de
panda: reflexões sobre a história natural. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 43.
130
Idem, p. 43-44
62
mais inteligentes do Brasil e suas mulheres destacavam-se pela beleza.
131
Walter
Bagehot, influenciado por Quatrefage, reiterou a noção segundo a qual raramente
um povo pode ser considerado puro, contrariando os defensores da tese de que
os mestiços seriam inferiores aos seus ascendentes, já que herdavam as suas
características negativas, ele argumentou que, em certos casos, os descendentes
poderiam ser melhores que os seus pais: mais adaptados ao meio e às
circunstâncias.
132
O discurso anti-racista de Manoel Bomfim tinha correspondentes no
universo intelectual europeu. Não é fora de propósito supor que ele tivesse
conhecido alguns dos autores citados, até porque ele mencionou em seus textos
autores como Bagehot e Quatrefages. No Brasil da Belle Époque, o autor de
América Latina teve poucos companheiros de viagem. Podemos mencionar
Machado de Assis, Araripe Jr, Lima Barreto, Cruz e Sousa e Alberto Torres.
O autor de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) percebeu a
potencialidade ideologicamente racista do darwinismo social.
133
No conto O
alienista Machado
134
refletiu sobre o potencial de arbítrio e de autoritarismo
inerentes aos homens que se diziam agir em nome da “ciência”. Araripe Jr,
abolicionista, defensor da democracia e nacionalista, não aceitou a teoria da
seleção natural, noção-chave do darwinismo social. Contrapôs-se aos que viam na
composição mestiça da população brasileira um obstáculo que pretensamente
inviabilizava a democracia, o progresso e a civilização. Enxergou, como Manoel
Bomfim, o que existia por trás das teorias raciais difundidas pelos europeus: a
vontade de “autorizar a expansão e justificar a expropriação dos povos sem
esquadras...”
135
A percepção dos perigos inerentes à prática de homens
131
“Formation des races humaines. In : ________. Introdution à l’étude des races humaines.
Paris: Schleicher, 1905, p. 178-9. O texto foi ilustrado com desenhos mostrando mestiças altivas,
vigorosas e belas, cuja intenção era realçar a idéia de que os cruzamentos raciais não debilitavam
o corpo.
132
BAGEHOT, Walter. Lois scientifiques du développement. Paris: Félix Alcan, Éditeur, 1908, p.
75-76.
133
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003,
p. 125.
134
O alienista. São Paulo: Cultrix, 1967.
135
ARARIPE JR., Tristão de Alencar. Sílvio Romero polemista. In: ____________. Teoria crítica e
história literária (seleção e apresentação de Alfredo Bosi). São Paulo: EDUSP, 1978, p.377.
63
investidos de autoridade científica, legitimadora da odiosa discriminação das
raças consideradas inferiores e a consciência de que as teorias que falavam de
raças superiores e inferiores faziam parte do aparato ideológico das nações neo-
colonizadoras, colocou Lima Barreto entre as poucas vozes dissonantes. Cruz e
Sousa, poeta, negro, descendente de escravos e forros protagonizou um feliz e
quase isolado caso em que a poesia se contrapôs ao racismo. Denunciou a
“Ditadora ciência das hipóteses”,
136
que negava aos negros e aos mestiços a
capacidade de “entendimento” e de criação artística; ademais, reiterou a opinião
de Machado e Lima Barreto a respeito do caráter autoritário da ciência oficial que
sufocava as opiniões divergentes.
O discurso crítico de Manoel Bomfim
Foi um grande mérito de Bomfim a sua crítica aos “sociólogos do egoísmo e
da exploração”.
137
Estes eram, de acordo com o autor, os propagadores das
teorias pretensamente científicas, destinadas a dar legitimidade à dominação e à
exploração dos colonizadores, de classe e/ou racial.
A ciência oficial européia construiu o seu esquema explicativo cindindo a
humanidade entre inferiores e superiores o Ocidente e o mundo não-ocidental.
Esse sistema binário permitiu hierarquizar e definir quem era adiantado e quem
era atrasado. Havia o ser europeu (dotado de capacidade para o progresso e a
civilização) e o ser não-europeu (fadado à barbárie e à estagnação). Essa
construção teórica operava mediante a generalização, a redução e o apagamento
das diferenças. Desapareciam, pois, as nuances, as idiossincrasias, as
vicissitudes individuais. Tratava-se, em outros termos, da construção de
estereótipos, cuja força de convencimento fazia parecer um “fato biológico”,
permanecendo protegido da contestação e “imune à experiência”.
138
136
BOSI, Alfredo. Poesia versus racismo. In: _________. Literatura e resistência. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002, p.167-168.
137
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 244.
138
Sobre o assunto, ver BOSI, Ecléa. Entre a opinião e o estereótipo. In: ________. O tempo vivo
da memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
64
Outra característica desse modo ocidental de ver a si mesmo e ao “outro”
foi a adoção de um padrão universal; classes, raças e nações tinham o seu lugar
fixo, a partir do qual eles eram observados, analisados, tornando-se, assim, objeto
de “ciência”; essa atitude era profundamente antiempírica, de acordo com Edward
Said; importava o que este denominou de “visão orientalista”, não os dados
empíricos sobre o Oriente ou qualquer outra parte do mundo.
139
Esse discurso, de
teor pretensamente científico, apresentava-se como imparcial, impessoal e neutro.
Era como se a verdade estivesse “inscrita nas coisas”, inexistindo o sujeito que
observa, analisa e tira conclusões a partir de premissas pessoais, de grupo ou de
classe; em conseqüência, a “ciência” estaria fora do raio de ação dos interesses
econômicos e políticos; uma coisa era a “ciência”; outra, o poder.
A negação da narrativa é outro aspecto desse discurso científico que
estamos caracterizando. A história se serve da narrativa para pensar e descrever
as transformações; como os homens, as nações, as instituições nascem,
desenvolvem-se e declinam; trata-se de lidar com as mudanças e com a diacronia.
Para quem desejava enxergar a realidade do alto – “pan-opticamente”
140
, como se
ela fosse algo estático, plano, homogêneo, cujos detalhes, nuances, movimentos e
mudanças eram suprimidos; predominava a visão sincrônica em detrimento do
ponto de vista diacrônico; assim procedendo, torna-se possível criar a idéia de um
eterno presente, como se inexistisse clivagem entre passado, presente e futuro;
abria-se a possibilidade de projetar para os tempos pretéritos o que se via no
presente; constituía-se uma forma conservadora de analisar a realidade, já que
negava a idéia de transformação.
Manoel Bomfim fez a crítica aos autores do Brasil e do estrangeiro que, em
nome da ciência, defenderam proposições que se chocaram com a sua forma de
pensar; ele cravou uma cunha na opinião corrente ao dissociar “ciência falsa” do
139
SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p. 79.
140
Essa é uma estratégia do Orientalismo, que se baseia numa visão unitária do Oriente. Já a
narrativa é um ponto de vista em oposição “à teia unitária da visão”. SAID, Edward. Orientalismo:
o oriente como invenção do Ocidente ... p. 246.
65
que ele denominou de “ciência verdadeira”.
141
Aquela estava associada aos
“povos poderosos e injustos que investiam contra as populações mais fracas” e
defendia a teoria da superioridade biológica e racial. Esta fundava-se na
“observação criteriosa e desapaixonada dos fatos”; se a outra era pretexto para a
dominação colonial, portanto estava ligada a interesses econômicos e político, a
“ciência verdadeira” afirmava o primado da cultura em detrimento do biológico.
Ao reivindicar a existência de uma ciência autêntica, objetiva, impessoal e
neutra, o nosso autor reiterava o ponto de vista de Nina Rodrigues, um
pesquisador conservador e racista. No seu estudo Os africanos no Brasil
142
, ele
separou interesse econômico de objetivos “científicos”. Uma coisa era os
interesses escravistas, que consideravam o negro como “máquina econômica”,
sujeitando-o à mais vil exploração; outra, era objetivo do pesquisador, para quem
negros e mestiços eram “objeto de ciência”. O argumento, tingido de cientificismo,
em favor da existência de raças superiores e inferiores explicava-se pelas leis da
natureza. A ciência e os cientistas aparentavam viver numa espécie de redoma,
isolados das disputas políticas e econômicas.
O grande mérito de Bomfim, no tocante a esse tema, foi, segundo Roberto
Ventura e Flora Sussekind, ter elaborado um discurso crítico no interior “do próprio
discurso dominante, como o seu negativo, a sua contradição”.
143
Ele deixou a
inquietante questão: quais eram os interesses que se ocultavam por trás do
argumento segundo o qual inexistia qualquer vínculo entre ciência e poder, entre
ciência e dominação ou entre ciência e exploração? Não havia, de acordo com o
nosso autor, contradição entre os elementos, mas afinidade. A sua crítica não se
limitou a contrapor características (físicas, morais ou intelectuais) “positivas” em
oposição às proposições correntes dos cientificistas a respeito da condição
inferior, da barbárie dos negros, índios e da degeneração derivada da
141
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1997, p. 196.
142
Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1932.
143
Uma teoria biológica da mais-valia? (Análise da obra de Manoel Bomfim). In: __________.
História e dependência: cultura e sociedade em Manoel Bomfim..., p. 14-15.
66
mestiçagem. Na sua argumentação a acento recaiu sobre a relação entre cultura,
ciência e política, ainda que ele não tenha escapado desse tipo de comparação
144
.
Sua argumentação se alicerçou no relativismo histórico. Para ele era
inconcebível imaginar a Humanidade dividida em duas partes distintas e
estanques, os adiantados e os atrasados; o ser europeu em contraposição ao não
europeu como entidades homogêneas e fixas. Ao fazer uso da noção de cultura e
não de natureza ele pôde pensar as sociedades, tradições, costumes em termos
da diversidade. Havia diferentes perspectivas históricas, civilizações, mas não
diferença “essencial de valor psíquico”.
145
Por isso, ele afirmou: “Há diferenças de
momento”.
146
A análise diacrônica trouxe a possibilidade de questionar as teses que se
fundamentavam no “essencialismo sincrônico”, noção relacionada à intenção de
antropólogos, etnólogos ou lingüistas de elaborar a idéia de uma realidade imóvel,
sempre idêntica a si mesma. Ao pensar historicamente, Bomfim enxergou as
nações e paises em movimento, transformando-se; esse raciocínio viabilizou a
crítica àqueles que propagavam a falaciosa concepção da superioridade dos
“dolicocéfalos” alemães, anglo-saxões, franceses; segundo esse ponto de vista
os vitoriosos do momento encontravam-se nessa condição em virtude de um
potencial inscrito na organização psíquica, isto é, biológica; tratava-se de estender
ao passado o que se observava no presente; os fortes sempre foram fortes; os
vitoriosos do momento foram os vencedores desde sempre; a vitória do
colonizador europeu seria a prova da sua superioridade sobre os perdedores; o
fato de terem sido vencidos ou exterminados comprovaria a condição inferior dos
índios, dos negros ou dos árabes. Este raciocínio fazia coincidir o fato (a
144
Sua análise destoante em relação às interpretações correntes a respeito da formação histórica
do Brasil da época não o impediu de reiterar a idéia bastante comum sobre as influências e
contribuições das três raças que entraram na composição da população. Daí a caracterização das
qualidades e dos defeitos de cada uma delas. Manoel Bomfim referiu-se à “afetividade”,
“dedicação”, “docilidade”, “submissão” dos negros; aludiu ao desejo irrefreável de “liberdade”,
“coragem”, “instabilidade intelectual etc dos indígenas. Apesar de reforçar o senso-comum, ele
sublinhou que o mais importante era reconhecer a capacidade de progredir de índios e negros e
também saber “se são civilizáveis ou não”. América Latina...,p. 238-43; LEITE, Dante Moreira. O
caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia..., p. 254.
145
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América ... p. 196.
146
Idem, ibidem.
67
existência dos vencedores e derrotados) com a representação (superioridade
ocidental/inferioridade dos não-ocidentais), afastando-se a possibilidade da
comprovação empírica.
O procedimento metodológico de Bomfim consistiu em submeter essa visão
canônica ao teste da observação e da experiência. A idéia da superioridade dos
“loiros” sobre os “morenos” ficaria em pé frente ao tribunal da história? Recorrendo
a esta disciplina tornava-se possível perceber que os povos adiantados de hoje
foram atrasados no passado; as nações que se julgam civilizadas já foram vistas
como bárbaras. O árabe, conquistado e colonizado pelos franceses, foi visto como
inferior porque foi vencido. No entanto, no passado, quando a Europa ainda era
“bárbara”, “resumi[ra] toda a ciência e riqueza ocidental”
147
; etnólogos e
antropólogos referiam-se aos franceses, aos ingleses, aos alemães, aos suecos
(“os dolicocéfalos louros”) como nações “fortes e ricas” e, por isso, superiores aos
“morenos” do Mediterrâneo (os gregos). Contra essa afirmação, Bomfim lembrou
da arte, da filosofia, da filosofia da Antiguidade Clássica, de Aristóteles, de
Hipócrates etc; seriam, pois, os franceses modernos superiores aos antigos
gregos? Em suma, de uma perspectiva histórico-sociológica, a relação entre
superiores e inferiores conectava-se a elementos econômicos, políticos e culturais;
por exemplo, a hegemonia dos ingleses se assentava no seu poder bélico
148
e não
em uma hipotética qualidade inata da “raça anglo-saxônica”. Tudo fica na
dependência do momento histórico e das tensões geradas pela dinâmica das
forças contraditórias. Bomfim nos convidou a refletir sobre a dupla vitória dos
“fortes”: em um plano, na dominação política e, em outro, na justificação teórica
dessa dominação; a tarefa de construir a versão do vencedor de um dado
momento coube aos “sociólogos a serviço dos fortes”. Sua análise desvendou a
conexão entre “verdade” e interesse; entre “ciência” e ideologia.
147
Idem, p. 246.
148
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 247.
68
Darwin e Bomfim
Os estudiosos do pensamento de Manoel Bomfim sublinharam a sua
análise contrastante em relação à opinião corrente, influenciada esta pelo racismo
científico. A indagação de quem lê os livros do autor recai sobre como ele
conseguiu escapar da força persuasiva das teorias raciais que ganharam tantos
adeptos na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina.
O “contradiscurso” ou discurso crítico de Manoel Bomfim produziu
estranhamento; o historiador norte-americano Thomas Skidmore achou curiosa a
conclusão do intelectual sergipano, quando poucos europeus e norte-americanos
negaram-se a aceitar a “teoria das raças inferiores”.
149
Skidmore, de acordo com
Ronaldo Conde Aguiar, desconhecia, pelo menos não mencionou em seu livro, o
fato de Bomfim ter estado em Paris no começo do século XX, quando iniciou a
redação da obra A América Latina, e teve contato com “as mais recentes
tendências da antropologia”. Portanto, ao contrário da afirmação do brasilianista,
Bomfim estava familiarizado com a produção das teorias que poderiam subsidiar a
crítica aos pressupostos racistas. Durante a sua permanência na Sorbonne,
estagiando no laboratório de Alfred Binet, leu as obras de Waitz, Martin de
Moussy, Quatrefages e, possivelmente, Bagehot.
150
Estes autores foram
mencionados em seus escritos e contribuíram para a elaboração de sua
argumentação. É possível encontrar, também, ressonâncias de autores
anarquistas, como Kropotkin, Proudhon e Bakunin. Parte da obra de Marx pode ter
sido lida por Bomfim.
Sem subestimar a influência dos autores acima citados, queremos ressaltar
a importância de Darwin. Este foi a sua maior influência, a quem se referia com
enorme admiração e de quem se serviu. Entre 1905 e 1910, Bomfim pretendia
escrever um estudo sobre o naturalista inglês, o qual deveria se chamar A Moral
149
Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976, p. 133.
150
AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2000, p. 301.
69
de Darwin.
151
Ademais, a influência de Darwin sobre o pensamento do nosso autor
é perceptível lendo-se os livros didáticos de zoologia que este produziu e nos
quais a teoria do naturalista inglês ocupa um lugar central.
152
Na trajetória
intelectual de Bomfim há inflexões em seu pensamento, porém a influência de
Darwin nunca deixou de existir. Por isso insistimos em enfatizar a importância do
autor de A origem das espécies.
Vimos no Capítulo 1 que da obra do naturalista inglês Bomfim pinçou a
concepção de hereditariedade para explicar a natureza do conservadorismo da
classe dirigente. Quando quis explicar a “servidão voluntária” dos dominados em
relação aos seus opressores, o cientista inglês forneceu exemplos, apropriados
por Bomfim, de animais que viviam para os que os escravizavam. No período que
antecedeu e no transcurso da Primeira Guerra, a intelectualidade brasileira
envolveu-se em intensos e calorosos debates, cujo foco era a tomada de posição
favorável aos aliados, os ataques aos alemães, que representavam a “barbárie”
ameaçando a “civilização latina”, a “liberdade” e a “cultura”. Em um momento em
que a elite cultural do país discursava nas praças, fundava ligas de defesa dos
aliados, em que jornais e revistas reproduziam a propaganda pró-aliada
153
, Manoel
Bomfim entrou no debate para argumentar que as idéias de Darwin foram
distorcidas por políticos e intelectuais alemães, que delas se serviram para
justificar a política expansionista do governo alemão.
154
A presença de Darwin no pensamento de Bomfim pode ser detectada ainda
em outros aspetos. Um leitor atento de Darwin poderia ser levado a negar dos
valores absolutos e universais e questionar a concepção segundo a qual a
Humanidade estaria hierarquicamente dividida em raças superiores e inferiores,
ou ainda que o homem branco ocidental ocupava o ápice da evolução. Na teoria
de Darwin, a sobrevivência de determinada espécie ficava na dependência da
relação entre as características geneticamente herdadas e o meio; por exemplo, a
pelagem grossa de um animal em clima quente seria um desastre e um feliz caso
151
Idem, p. 28.
152
Compêndio de zoologia geral. Paris: Garnier, 1902; Elementos de zoologia e botânica
gerais. Paris: Garnier, 1904.
153
Sobre o tema, ver SKIDMORE, Thomas E. Op.cit., p. 167-170.
154
Ainda neste capítulo, voltaremos ao assunto.
70
de adaptação a um ambiente frio
155
. Transportando-se essa percepção para o
campo da moral, tinha-se que o bem e o mal, o vício e a virtude não poderiam ser
definidos em termos de valores absolutos e universais, pois estavam
condicionados ao contexto social
156
; portanto, a sua teoria abria o caminho para o
relativismo. Bomfim afirmou que “ser bárbaro ou civilizado depend[ia] do
observador e do momento”.
157
A raiz dessa asserção, reveladora da sua adesão
ao “relativismo”, estava fincada na teoria do cientista inglês.
Em grande medida pode ser atribuída a Darwin o ataque desferido pelo
nosso autor aos teóricos que defendiam a existência de raças superiores e
inferiores e justificavam a escravidão com base nesse argumento. Ainda que o
autor de A origem das espécies acreditasse na superioridade cultural dos
britânicos e tivesse manifestado o seu horror ao ver os fueguinos – os quais ainda
estariam vivendo como bárbaros – quando de sua viagem a bordo do Beagle,
contudo, ele cria na capacidade de “aperfeiçoamento” dos “selvagens”.
158
No interior das concepções de Darwin encontram-se elementos importantes
para contestar as diversas correntes que, no século XIX, queriam provar a
inferioridade dos não-brancos e ocidentais com argumentos supostamente
científicos. Essas correntes pseudocientíficas podem ser divididas em três
“escolas”:
159
a etnológica-biológica, a histórica e o darwinismo social. A primeira
originou-se na segunda metade do século XIX nos Estados Unidos, migrou para a
Europa e chegou ao Brasil através de etnólogos e antropólogos que liam e
admiravam cientistas franceses e alemães. O zoólogo suíço Louis Agassiz (1807-
1873), que trabalhava em Harvard, foi o representante mais destacado desta
escola.
155
DESMOND, Adrian; MOORE, James. Darwin: a vida de um evolucionista atormentado ..., p.
260.
156
Idem, p. 281.
157
BOMFIM, Manoel. O Brasil nação ..., p. 198-9.
158
GOULD, Stefhen Jay. Prefácio. In: DARWIN, Charles. As cartas de Charles Darwin. Uma
seleta (1825-1859) ..., p. 15.
159
Sobre o tema, ver SKIDMORE, Thomas E. Op.cit., p. 65-70; Sobre Agassiz, ver SCHWARCZ,
Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-
1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 48; GOULD, Stephen Jay, Racism arguments
and QI. In: Ever since Darwin: reflections in natural history New York: W.W. Norton & Company,
1992, p. 243.
71
Os proponentes desse grupo criaram uma versão laica da teoria cristã
(poligenista) da origem do homem. Agassiz afirmava que a explicação para a
existência de várias espécies de animais residia na diversidade climática; as
diferenças de clima serviram, do mesmo modo, de argumento para explicar
porque havia várias espécies humanas; a asserção se completou ao conferir uma
base “científica” para afirmação segundo o qual os homens que viviam no clima
temperado, ou seja, os brancos ocidentais, eram superiores aos povos não-
brancos. Havia, pois, uma relação mecânica e automática entre o meio e as
características físicas de cada espécie, inclusive entre os homens.
Para Darwin, em contraposição, o sucesso ou o fracasso de uma espécie
dependia do fator interno (a herança genética) e do fator externo (o meio). É o
acaso que “escolhe” quem sobreviverá, gerando descendentes, ou quem
desaparecerá. Portanto, ele quebrou o esquema binário meio/características
fenotípicas. A partir de suas descobertas, ficava difícil afirmar, em primeiro lugar,
que o habitante do clima temperado era superior ao que residia em locais de clima
quente; em segundo, que havia povos adiantados e atrasados; em terceiro, que os
discursos racistas tinham uma fundamentação científica e que estavam
desconectados dos interesses políticos e econômicos.
A respeito deste último aspecto, o naturalista inglês captou com muita
argúcia o enlace entre a política e as teorias raciais. Em uma carta endereçada a
A.W. D. Fox, em 4 de setembro de 1850, Darwin se referiu a Louis Agassiz e à
versão deste sobre a origem da humanidade a partir de “vários centros de
criação”, que correspondia às diversas raças humanas (teoria poligenista). Deus
criara brancos e negros como espécies separadas e a mistura só poderia trazer
conseqüências desastrosas, afirmava. Na carta, Darwin mencionou as
conferências proferidas por Agassiz nos Estados Unidos, “nas quais ele
[sustentava] a doutrina das diversas raças” e completou: “para grande alegria, diria
eu, dos sulistas”. O naturalista inglês associou as proposições do naturalista norte-
americano com os interesses escravistas. Além disso, não será demais lembrar a
aversão de Darwin pela escravidão, sentimento que nasceu por ocasião da
viagem do jovem naturalista a bordo do Beagle, quando aportou no Brasil e ficou
72
impactado frente ao espetáculo de violência e de sadismo oferecido pelos
senhores no trato com os seus escravos. Jurou nunca mais pôr os pés num país
que admitisse a escravidão.
160
A escola histórica, a segunda vertente, contou com figuras como Thomas
Carlyle e Gobineau. Articulava raça e história para reforçar teses racistas a
respeito da superioridade dos brancos. Havia evidências de que a raça ocupava
um papel central na história, e esta revelava que os ocidentais não eram
vencedores por acaso. Possuíam capacidade inata para a criação, a civilização e
o progresso. A ciência” autorizava, pois, que os países do Atlântico-Norte se
tornassem os senhores da Terra. Darwin mais uma vez pode ser invocado para
fazer a crítica a essa vertente do pensamento racista. Para o naturalista há
elementos que permitem contestar a tese de que a humanidade está
hierarquicamente dividida entre povos superiores e inferiores. Na teoria do autor
de A origem das espécies não existe um critério a partir do qual seja possível
classificar as espécies segundo a definição de quem seria superior ou inferior.
Para Darwin o decisivo era pensar o ser relativamente aos antepassados e não
em relação a outras espécies. Em outros termos, somente deturpando o raciocínio
de Darwin poder-se-ia afirmar que há espécies melhores ou piores. Ademais,
outra grande novidade das descobertas de Darwin é que na evolução dos seres
vivos não existe um sentido obrigatório e nem um ponto fixo, um lugar mais alto,
no qual estaria a espécie humana. Essa asserção permite dizer que inexiste no
pensamento de Darwin a noção de progresso, no sentido da mudança qualitativa
do simples para o complexo, do homogêneo para o heterogêneo, tal qual definido
por Spencer. A partir das idéias de Darwin seria impossível construir uma escala
evolutiva na qual os brancos estariam no topo e os povos não-bancos ocupavam
postos “inferiores”.
161
Ademais, não será descabido afirmar que a crítica de Bomfim aos
intelectuais brasileiros que se contentavam em assimilar e reproduzir idéias
alheias, sobretudo quando elas vinham chanceladas pela autoridade de cientistas
160
As cartas de Charles Darwin. uma seleta, 1825-1859 ..., p. 182.
161
HIRST, Paul Q. Evolução social e categorias sociológicas. Rio de Janeiro: 1977, p. 21-22.
73
renomados da Europa e dos Estados Unidos (como Agassiz, Lapouge, Gobineau
etc) pode ter tido em Darwin uma inspiração. Percebe-se nas cartas do cientista
inglês, ou mesmo nos textos de seus biógrafos, a sua preocupação em submeter
todas as idéias, concepções existentes ao crivo da observação, da experiência e
da crítica. Em suas cartas, ele deixa entrever que o trabalho científico exige que
se submetam as descobertas heterodoxas à crítica dos adversários.
162
A crença segunda a qual “verdade” científica construía-se no embate entre
opiniões divergentes, que pode ser imputada a Darwin, era comungada pelo nosso
autor. É a partir dessa perspectiva que concordamos com a boa observação de
Darcy Ribeiro, para quem o Manoel Bomfim distinguia-se na ambiência intelectual
da época pela sua capacidade de “olhar ao redor de si, com olhos capazes de ver
as evidências. Outros apenas liam e citavam”.
163
O Darwnismo no Brasil
A heterodoxia de Bomfim em relação ao racismo tornou-se possível,
também, pela influência das idéias darwinistas que chegaram ao Brasil
posteriormente a 1870 e encontraram abrigo nas Faculdades de Medicina da
Bahia e do Rio de Janeiro, duas instituições de ensino em que Manoel Bomfim
estudou.
164
O darwnismo de que estamos falando não é a teoria que serviu aos
políticos e intelectuais da Europa para justificar e naturalizar a vitória dos mais
fortes, dos mais aptos, sejam as classes, as “raças” ou as nações. O darwnismo
pode ser visto pela perspectiva de uma teoria a partir da qual é possível fazer a
crítica aos valores, padrões e ideologias hegemônicas.
O darwinismo era uma corrente científica que fazia parte do que Sílvio
Romero chamou de um “bando de idéias novas”.
165
O “cientificismo”, nas palavras
162
Sobre o assunto, ver a carta de Darwin endereçada A J. D. Dana, 29 de setembro de 1856. In:
DARWIN, Charles. As cartas de Charles Darwin. Uma seleta, 1825-1859 ..., p. 241-242.
163
Manoel Bomfim, antropólogo. In: BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 16.
164
Ele deu início ao curso de medicina na Faculdade da Bahia em 1886; dois anos depois foi morar
no Rio de Janeiro e continuou o estudo na Faculdade de Medicina daquela Província. Formou-se
em 1890.
165
Sílvio Romero se referia ao Positivismo, ao evolucionismo, ao darwinismo, à crítica religiosa, ao
naturalismo. Academia Brasileira de Letras (Discurso pronunciado em 18 de dezembro de 1906,
74
de Roque Spencer Maciel de Barros, incentivava os cientistas a acreditarem no
poder da ciência para revelar o “ser” das coisas, criar idéias e valores
166
,
diagnosticar as causas da mazelas sociais e propor soluções. As correntes
evolucionistas, incluindo o darwinismo, forneceram o substrato teórico para
aqueles que observavam horrorizados o atraso do país seja na cultura, seja na
política, seja na economia e se identificavam com o progresso e a civilização.
Viam uma sociedade “fossilizada”, ainda presa ao passado colonial. O
“cientificismo” não se constituiu somente em um instrumento teórico de
compreensão da realidade política e social brasileira, pois era também uma forma
de intervenção sobre uma realidade que desejavam ver transformada. Sendo
assim, desempenou um papel importante, no final do século XIX, no combate à
escravidão e à monarquia.
Os darwinistas opuseram-se ao dogmatismo, ao sistema autoritário de
educação, à teologia, à metafísica. Nada podia ser aceito antes de ser submetido
ao exame da confrontação, do debate, da observação, da experimentação e da
livre crítica. Era, portanto, um instrumento importante de combate ao
conservadorismo incrustado nas instituições.
As Faculdades de Medicina (do Rio de Janeiro e da Bahia) constituíram-se
em centros importantes de divulgação do darwinismo e de formação de jovens
politizados.
167
O currículo reivindicado por alguns professores privilegiava um
ensino menos teórico e mais experimental. A atuação do médico, professor e
jornalista Miranda de Azevedo (1851-1907) exemplifica a relação entre a prática
da medicina e atividade política, descartando-se a separação entre as duas
esferas de atuação. Seus trabalhos acadêmicos revelavam a preocupação com a
saúde pública e com a instrução popular. Como jornalista empenhou-se pela
causa republicana e pelo combate à Monarquia; repudiou o dogmatismo e o
autoritarismo; manifestou sua adesão à orientação científica na condução da
pesquisa e a radical rejeição dos princípios da metafísica. Na Faculdade de
por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha). In: _______. Provocações e Debates. Porto:
Imprensa Moderna, 1908, p. 358-9.
166
A ilustração brasileira e a idéia de universidade ... , p. 20.
167
Sobre o tema, ver COLLICHIO, Terezinha Alves Ferreira. Miranda Azevedo e o Darwinismo
no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988.
75
Medicina do Rio de Janeiro, nos anos oitenta do século XIX, havia grande
interesse pelas ciências naturais e muitos eram darwinistas; o positivismo perdia
força na instituição, florescendo na Escola Politécnica.
168
As idéias e opiniões de Manoel Bomfim ficam mais claras para quem estuda
os seus textos se as relacionarmos com a atmosfera política e cultural em que ele
estava inserido e que viveu intensamente no universo acadêmico ou fora dele.
Se não havia muitos espaços para o pensamento contrastante em relação às
opiniões dominantes, sobretudo quanto às teorias raciais, difícil será negar a
existência de algumas brechas; autores como Bomfim delas se beneficiaram,
correndo o risco de sofrer com a marginalização e com a perda de prestígio
social.
169
O seu discurso anti-racista correspondia à maneira como ele lidava com as
opiniões correntes, que se apresentavam como verídicas e válidas somente
porque se ligavam à tradição e à herança. Era um dos mecanismos de que se
servia o pensamento conservador visando à legitimação dos seus argumentos. O
conservadorismo se alimentava do rotineiro, das idéias envelhecidas e
engessadas, da aceitação passiva dos aforismos estéreis, das concepções
genéricas, prontas e acabadas. O pensamento radical, por sua vez, acreditava na
força das idéias, na originalidade, na iniciativa e na ação. A “verdadeira ciência”
exigia o embate de idéias, o livre exame. Abdicar da confrontação significava ver o
enfraquecimento, a perda de vigor das idéias e das concepções até a sua
completa estagnação. Bomfim parece estar reiterando o ponto de vista de Stuart
Mill, para quem o intelectual e as idéias precisam de adversários; a hegemonia
sem inimigos significa a esclerose do pensamento e do sujeito que pensa.
170
A “verdadeira ciência” rejeita a ilusão de que basta ler para entender a
realidade; a leitura em si não prepara uma pessoa para entender cientificamente
168
A informação é de Carlos von Koseritz; ver COLLICHIO, Terezinha Alves Ferreira. Op.cit, p. 32.
169
A respeito afirmou Marisa Corrêa: “E talvez não tenha sido por acaso que alguns intelectuais da
passagem do século que explicitamente combateram o racismo em sua produção intelectual, como
Lima Barreto ou Manoel Bomfim, tenham sido ridicularizados enquanto viveram excluídos de
instituições que formal ou informalmente tinham algum significado de aceitação de seu papel”. Cf.
As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista:
EDUSF, 1998, p.67.
170
Sobre a liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
76
as coisas. Ela só educa a inteligência se desenvolver o espírito de observação; é
preciso confrontar o que se lê com a realidade à qual o texto se refere. Sem a
experiência e a observação estamos no campo da verborragia, da repetição etc.
Manoel Bomfim sublinhou a necessidade de não aceitar de imediato o que
vinha como dogma e protegido por uma aura de autoridade e, portanto,
salvaguardado da crítica e da contestação. Isso ele aprendera com os seus
mestres. Na condição de professor, pesquisador e escritor ele pretendia educar as
consciências da necessidade da crítica e do livre exame. Tomar como verdadeiras
opiniões com base apenas na pretensa autoridade de um determinado autor ou
idéias lastreadas por “falsos prestígios”
171
, é cair em erro e praticar “ciência falsa”.
Ele exortava os seus ouvintes e leitores a repudiar a rotina, a ausência de
vontade, a falta de iniciativa, pois o conservadorismo se alimentava da
passividade; preconizava a necessidade do espírito ativo, questionador, já que
“viver é acrescentar alguma coisa ao que existe”.
172
A Constituição republicana, resultado de cópia de outras, mas mal adaptada
às condições do país
173
e a opinião quase consensual a respeito dos “defeitos” do
trabalhador nacional em comparação às “virtudes” do imigrante
174
, são dois
exemplos da assimilação e reprodução, “sem mais exame”, de idéias que
ganharam estatuto de verdade de tão repetidas; a reiteração do senso-comum
permitia a propagação de concepções conservadoras, discriminatórias,
preconceituosas, como o argumento de que o povo era o “problema”, quando se
tratava de encontrar a causa das mazelas sociais e econômicas do país. O
mesmo esquema explicativo vale para o autor refletir sobre como se deu a
recepção e a propagação das teorias racistas no Brasil.
Os intelectuais brasileiros, no esquema interpretativo de Bomfim,
aceitavam, justificavam e queriam comprovar a veracidade das teorias sobre a
superioridade racial com base na autoridade e no prestígio, tanto dos intelectuais
quanto das disciplinas como a história, a antropologia e a etnografia, cujas
171
BOMFIM, Manoel. O progresso pela instrução. In: BOMFIM, Manoel et alii. Discursos. Rio de
Janeiro: Tipografia do Instituto Profissional, 1904, p. 21.
172
Idem, p. 20.
173
Idem, p. 172.
174
Idem, p. 177.
77
“competências” eram reconhecidas nos paises centrais; o critério para a aferição
da “verdade” não passaria, assim, pela demonstração, resultante do trabalho
árduo da pesquisa, pois a “verdade” já estaria inscrita nos textos, por exemplo, de
Le Bon, Lapouge ou Gobineau.
Sílvio Romero, na série de artigos que escreveu para criticar o livro A
América Latina
175
, fez uso do procedimento questionado por Bomfim; a obra
examinada não passava, de acordo com Romero, de um amontoado de “erros”; os
equívocos poderiam ter sido evitados se Bomfim tivesse lido determinados textos
da lavra de reputados especialistas. Ademais, colocar em dúvida a doutrina da
desigualdade racial não fazia sentido, pois ela fora gerada mediante
“investigações sinceras, objetivas, imparciais” por parte dos “maiores espíritos e
os mais profundos sábios”.
176
Portanto, essas proposições “científicas” não tinham
qualquer relação com a política.
Bomfim teria evitado os “enganos”, depreende-se do argumento desse seu
crítico, se tivesse recorrido aos textos “corretos” e reafirmado o que disseram os
antropólogos, etnólogos e historiadores europeus, cujas teses estariam a salvo de
qualquer questionamento, já que resultariam de pesquisas isentas. Além de refletir
sobre os interesses que estavam por trás dos que, em nome da ciência, emitiam
juízos de valor condenando o mundo não-europeu e a população não-branca,
Bomfim chamou a atenção para a necessidade de o pesquisador ficar atento para
não confundir a realidade observada com as pré-noções encontradas nos livros e
chanceladas pela ciência européia. A sua análise foi fiel ao que ele propunha.
Darwinismo, altruísmo e guerra
A história da obra A origem das espécies está ligada às idéias heterodoxas
nela contida, bem como aos usos e abusos políticos a que ela se prestou. A
noção-chave de “luta pela existência” serviu aos mais diferentes propósitos
175
Romero escreveu vinte e cinco artigos para a revista Os Anais; posteriormente eles foram
publicados no livro intitulado A América Latina (análise do livro de igual título do Dr. M. Bomfim).
176
ROMERO, Sílvio. A América Latina (análise do livro de igual título do Dr. M. Bomfim). Porto:
Livraria Chardon de Lello & Irmão Editores, 1985, p. 213.
78
políticos. Uma interpretação possível da teoria de Darwin consistia em conceber
os organismos vivendo em eterno conflito de todos contra todos. O naturalista
inglês revelou que as espécies eram mutáveis e na evolução muitos organismos e
espécies morriam. A perpetuação de alguns indivíduos e espécies provocava a
destruição de outros; essa visão rompia com a tradicional concepção de um Deus
benévolo, que teria criado e ordenado um mundo (a Natureza) estático,
harmonioso, com cada ser ocupando o seu lugar fixo em um sistema hierárquico
ascendente, na qual o homem ocuparia o ponto mais alto.
O mecanismo da seleção natural, a força cega que “escolhia” quem viveria
e quem morreria foi pensado, segundo o próprio Darwin, a partir da obra de
Malthus, Ensaio sobre a população. Desse modo, a seleção natural, conceito
biológico, foi inspirada em um livro de economia-política. Posteriormente, A origem
das espécies, livro que trata dos seres se relacionando na natureza, serviu para
dar fundamento a discursos político-ideológicos.
A percepção de que havia leis que presidiam a vida dos animais, das
plantas e, também, dos seres humanos e das sociedades atraiu a atenção de
muitos. Na “luta pela sobrevivência” ocorria tanto na natureza quanto nas
sociedades, logo, nos dois casos o progresso implicava competição, violência, dor,
combate e morte. Essa idéia seria apropriada em países como Inglaterra, França e
Alemanha que assistiam assombrados aos avanços da industrialização, da
ampliação em escala planetária do comércio, da ascensão da burguesia e do
proletariado e do aumento vertiginoso da população nos grandes cidades
industriais. Essa visão foi útil para a legitimação do capitalismo, do individualismo
da realização do interesse pessoal , das iniciativas de controle populacional, da
depuração eugênica (eliminação dos alcoólatras, dos doentes, dos loucos, etc) e
da tentativa de controlar as reivindicações dos trabalhadores. O darwinismo
poderia reforçar o status quo, o elitismo, a conquista, a repressão, o racismo e o
militarismo (visto como uma necessidade biológica). Tudo em nome da concepção
de que a vida em sociedade é luta, competição em que há vencedores e
perdedores, os aptos e os despreparados. Da teoria da seleção natural foram
extraídos elementos para a defesa do livre mercado, do fim dos monopólios,
79
considerados privilégios “não naturais”, pois tudo dependia da competição e do
talento. Com base na teoria de Darwin, os grupos sociais ligados às indústrias e
ao comércio e profissionais liberais tinham condições de reivindicar a retirada dos
privilégios do clero e da classe proprietária de terras. Em poucas palavras, “isso
transformava a natureza numa aliada das classes médias”.
177
Se as proposições do cientista inglês forneceram material para os liberais,
elas constituíram manancial para radicais ateus socialistas
178
, os quais
perceberam o potencial de crítica ao clero na concepção material, que era a base
da análise darwiniana da vida dos organismos vivos, concepção essa que poderia
ser transferida para o exame da sociedade. Poder-se-ia concluir, a partir da teoria
de Darwin, que Deus não existia e Ele nada tinha a ver com a origem, reprodução
e evolução das espécies, já que os fenômenos explicavam-se através do
mecanismo da seleção natural. Tudo dependia do acaso (das variações úteis) e
das forças materiais, ficando eliminada qualquer atuação de instâncias
transcendentes.
As idéias de Darwin foram apropriadas também pelos socialistas e
anarquistas. Ambos os grupos idealizaram a vida social pautada na cooperação e
na igualdade e rejeitaram a competição e o individualismo. Tomamos os exemplos
de Wallace, o socialista amigo de Darwin, e o anarquista russo Pietr Kropotkin. O
primeiro distinguiu animais de pessoas e afirmou que mesmo os povos primitivos
apresentavam “divisão do trabalho”: homens e mulheres dividiam-se, ficando uns
encarregados de coletar e pescar, outros de plantar e colher. Realçou o fato de a
divisão não se relacionar com a competição, mas com a cooperação, pois cada
indivíduo se voltava para a comunidade. Por isso sublinhou a solidariedade
existente nos momentos difíceis, como nos casos de doenças e na hora da
distribuição de alimentos. De acordo com Wallace, a seleção natural aperfeiçoava
as práticas que levavam à coesão social; a solidariedade, não a competição,
proporcionava as condições de vitória na “luta pela existência”.
177
DESMOND, Adrian; MOORE, James. Op. cit., p. 434.
178
Idem, p. 314.
80
A afirmação da singularidade humana implicava a oposição ao
determinismo biológico. Os seres humanos não eram governados pelas leis que
regiam os animais, pois estes estariam sujeitos à mão de ferro de uma natureza
violenta. Nos seres humanos, ao contrário, a inteligência, a criatividade, a
capacidade de criar, de inventar permitiram vencer os óbices impostos pelo meio.
Pertencendo ao mundo da cultura, humanos podiam usar as suas potencialidades
para desenvolver laços de solidariedade, de sentimentos e práticas altruísticas.
Wallace afirmou tudo isso com o propósito de revelar a sua utopia de uma
sociedade em que prevaleceriam a “perfeição moral”, a igualdade e as
associações voluntárias.
179
Se Wallace realçou a diferenciação entre seres humanos e animais, do
ponto de vista da dicotomia cultura/natureza, Kropotkin desenvolveu a sua
concepção de “Ajuda mútua” com base em um pretenso sentimento altruísta que
existiria tanto no homem quanto no animal. Não descartou, contudo, que pudesse
ser encontrado em ambas as espécies o sentimento oposto: o de dominar e de
submeter
180
, mas a cooperação, a vontade de se unir aos outros membros da
espécie é um fator predominante na natureza, não se excetuando o homem. A
teoria da evolução explicava a gênese e o desenvolvimento do instinto gregário
entre animais e entre os seres humanos.
181
Na luta pela existência, a cooperação
constituía-se em um instrumento importante para a sobrevivência dos animais
para enfrentar o frio, as inundações, a escassez de alimento e para combater em
condições vantajosas os inimigos, mesmo os mais bem equipados em termos
bélicos
182
. Ele mencionou os animais que vivem em bandos para caçar e se
proteger dos predadores. A “Ajuda mútua” veio a ser, portanto, um fator crucial
para conservação e a evolução das espécies. No fundo, o assunto abordado
adentrava o campo da ética. Kropotkin enxergou na “simpatia mútua” a
“consciência moral” embrionária, base do sentimento de justiça e igualdade. Por
179
Sobre Wallace, ver DESMOND, Adrian; MOORE, James. Op. cit., p. 539 e 572; CROOK, Paul.
Op. cit., p. 57.
180
KROPOTKIN, Pietr. Etica: origem e evolucion de la moral. Buenos Aires: Editorial Argonauta,
1925, p. 39.
181
CROOK, Paul. Op. cit., p.107.
182
KROPOTKIN, Pietr. Op. cit., p. 30.
81
isso destacou o espírito de sacrifício entre os animais. Quanto à humanidade,
referiu-se aos homens vivendo em entidades coletivas – o clã, a comunidade rural,
as repúblicas de cidades livres e fraternidade entre as nações.
183
A obra Ajuda mútua foi escrita em 1902, em inglês, com o objetivo de
refutar a tese exposta por Huxley no artigo “The struggle for existence in human
society”, no qual o discípulo de Darwin afirmara que na natureza a vida
caracterizava-se pela guerra de todos contra todos. A natureza era o palco de
gladiadores, em que os instintos violentos prevaleciam, predispondo os
organismos à luta e à competição. Nada mais distante desse universo do que a
interdependência e a gregaridade entre os indivíduos. Portanto, esse
comportamento amoral não poderia ser modelo para se pensar as sociedades
civilizadas. Se estas fossem organizadas tomando-se como parâmetro o mundo
dos animais veríamos instalada a anarquia, ou seja, “o brutal mundo
hobbesiano”.
184
Kropotkin e Huxley sustentaram dois pontos de vista sobre a natureza: o
primeiro cria na existência de um “instinto de simpatia”, a sua “parte mais nobre”;
para o segundo o seu “ser” era a luta sem freios e sangrenta; para Kropotkin havia
dissociação entre biológico e social; para Huxley não existia distinção: o que valia
para os animais valia para o homem. Darwin constituiu-se no interlocutor
privilegiado para ambos, já que na obra do cientista inglês é possível encontrar
esses dois pontos de vista. Sua teoria da seleção natural afirmava que na
complexa relação dos organismos vivos entre si e com o meio havia os
vencedores e os perdedores; isso poderia ocorrer através da competição e da luta
ente indivíduos e espécies; a vitória ou a derrota poderia, por outro lado, depender
do grau de coesão, de solidariedade do grupo. Um reformista liberal poderia
justificar a livre concorrência a partir dessas idéias; um anarquista poderia apoiar-
se nos mesmos textos para dar sustentação teórica para a utopia em que os seres
humanos viveriam em comunidades solidárias e fraternas. Portanto, a concepção
de “luta pela sobrevivência” serviu aos mais diferentes propósitos políticos,
183
Idem, p. 34.
184
GOULD, Stephen Jay. Kropotkin não era nenhum Pancrácio. In: ______. Viva o brontossauro:
reflexões sobre a história natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 321.
82
cabendo a cada autor “pinçar” da obra de Darwin o aspecto que interessava.
Assim procederam Huxley, Kropotkin, Manoel Bomfim e outros.
Nessa contenda teórica pela apropriação da noção de seleção natural, o
pêndulo talvez se dirija para Kropotkin se considerarmos que, como lembrou Jay
Gould, a luta pela existência, no sentido conferido pelo autor de A Origem das
espécies, é uma metáfora e não uma “afirmação explícita sobre combate
sangrento”.
185
Ela pode se referir tanto à competição quanto à cooperação. Na
teoria de Darwin, a idéia fundamental é a dependência entre os seres vivos e
destes em relação ao meio , a garantia da vida e a capacidade de deixar
descendentes. A luta pela sobrevivência pode significar, por um lado, dois cães
brigando por um alimento escasso; por outro, um vegetal tentando sobreviver no
deserto
186
ou uma planta que produz mais sementes do que a competidora e
assim tem chances de deixar descendentes.
187
Em poucas palavras, ele realçou a
luta pela vida e não a destruição desta.
No livro The descent of Man, Darwin aproximou animais e homens. Ambos
compartilhariam várias características comuns, como o “instinto de sobrevivência”,
o “amor da mãe pelo descendente”, a imitação, os instintos adquiridos que são
transmitidos aos descendentes, a atenção, a emoção, a memória, a imaginação, a
escolha, a razão.
188
Ademais, nas duas espécies predominaria o “instinto social”,
as afinidades, a sociabilidade e a cooperação, ou seja, todos os fatores
determinantes para manter a coesão, seja a do grupo, a da espécie ou a da
sociedade.
Darwin por Manoel Bomfim
Manoel Bomfim ocupou-se de Darwin para salvá-lo das garras dos
“teoristas do egoísmo e da rapinagem”
189
, os quais justificavam, com base na
185
Idem, p. 320.
186
DARWIN, Charles. A origem das espécies e a seleção natural ..., p. 69.
187
CROOK, Paul. Op. cit., p. 16.
188
DARWIN, Charles. The descent of man. Chicago; London; Toronto: Encyclopaedia Britannia,
1952, especialmente capítulo III.
189
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 249.
83
concepção de luta pela existência, a dominação de classe, a exploração do
trabalho, a extinção dos povos considerados inferiores e a guerra. Esforçou-se o
autor de A América Latina, em primeiro lugar, para revelar o enlace entre discurso
e política, tornando possível “desnaturalizar” toda forma de discriminação, de
dominação e de guerra; em segundo, para explicitar a sua utopia, cuja existência
humana, em todos os níveis, estivesse baseada na cooperação e no sentimento
altruísta.
A “luta pela existência”, noção-chave para Darwin explicar a gênese e a
evolução das espécies foi apropriada, como vimos, por diversos autores e com
objetivos opostos. Para o esquema explicativo de Bomfim constituiu-se, também,
em um elemento importante. O seu argumento se aproximou das proposições do
socialista Wallace e do anarquista Kropotkin, embora ele não os tenha
mencionado. Sua interpretação da “luta pela existência” é a mesma de Jay Gould:
viu-a como uma metáfora. Os animais podem protagonizar combates cruentos por
causa de um estoque de alimento reduzido, porém esse aspecto não esgota todo
o seu significado tal qual concebido pelo autor de A origem das espécies, pois a
“luta pela vida quer dizer tendência a viver, esforço para conservar a vida e
propagá-la e não, simplesmente, conflito material, agressão cruenta”.
190
Novamente Darwin foi evocado para fundamentar a concepção das
relações humanas fundadas na fraternidade. Daí a alusão à idéia de que o
progresso social humano equivalia ao aprimoramento do sentimento altruísta e de
solidariedade; em nome de sua utopia identificou a superioridade humana e a
capacidade de construir relações de cooperação, combatendo tudo o que se
opunha à “harmonia e unificação da espécie humana”.
191
O paralelismo entre vida
social (humana) e vida animal serviu, agora, para afirmar que raras eram as
disputas no interior da mesma espécie e que “nunca se faz no sentido de um
grupo obrigar o outro trabalhar para si”.
192
Esse debate referia-se ao tema da evolução e da ética. Os contendores
separaram-se em campos opostos e sustentaram duas visões da natureza. De um
190
BOMFIM, ManoeI. A América Latina ..., p. 249.
191
Idem, p. 250.
192
Idem, p. 254.
84
lado, a idéia de que ela impulsionava os seres vivos para a competição. De outro,
a de que ela os predispunha para a vida coletiva e solidária. Se a natureza era
amoral, ela não poderia ser guia para a organização da sociedade. Se ela era uma
arena de gladiadores, poderia servir de pretexto para reforçar, naturalizando, as
relações sociais e econômicas capitalistas. Se a natureza era, em oposição, moral
e benfeitora, desse argumento seria possível retirar a proposição segundo a qual
“a sociedade humana deve fundar-se em nossas inclinações naturais”
193
, isto é,
para a vida em que os indivíduos se aproximem dos outros, motivados unicamente
pelos interesses da coletividade.
Recaiu sobre Darwin a atenção dos autores, não se excetuando Manoel
Bomfim, para quem o naturalista inglês rompeu com a filosofia moral utilitarista
inglesa.
194
Ele se referiu à doutrina que preconizava a maximização da felicidade e
a diminuição do sofrimento na vida das pessoas como o fim último da ação. Ao
afirmar que Darwin rompera com os pressupostos dos utilitaristas, Bomfim
recuperava a crítica que fizeram os adversários da escola de Jeremy Bentham. A
objeção dizia respeito ao meio através do qual buscava-se a felicidade. A ressalva
questionava o sujeito da ação, qual seja, o eu frio, calculista, hedonista que
desprezava os sentimentos, as disposições naturais que levavam as pessoas a
buscarem a companhia das outras. Darwin enfatizou as inclinações inatas dos
seres para a vida coletiva, que eram indispensáveis na luta dos seres vivos para
garantir a vida, a saúde e o bem-estar do grupo. Os utilitaristas enfrentaram a
espinhosa questão de compatibilizar felicidade pessoal e felicidade coletiva, dado
que era facultado às pessoas perseguirem-na individualmente. A solução
preconizada para harmonizar os interesses, propostas por Bentham e Stuart Mill,
consistia na reivindicação da aplicação de sanções externas, como a lei, a religião,
a educação ou a opinião pública.
195
193
GOULD, Stephen Jay. Kropotkin não era nenhum Pancrácio. In: _____. Viva o brontassauro
..., p, 323.
194
A tradição filosófica mencionada viria desde Bacon, Locke, A Smith até Stuart Mill e Spencer.
BOMIFM, Manoel. A América Latina …, p.250.
195
Sobre Bentham, ver RICHARDS, Robert J. Darwin and the emergence of evolutionary
theories of mind and behavior, p. 235; MiILL, Stuart. O utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 41.
85
O autor de A origem das espécies não precisou enfrentar essa questão,
pois, de acordo com a sua teoria, as motivações morais não tinham relação com o
cálculo dos agentes, mas com uma determinação da natureza. Por isso, Bomfim
atribuiu ao naturalista inglês a seguinte afirmação: a moral alicerçava-se nas
inclinações instintivas dos indivíduos em se juntar aos demais, “fora de qualquer
cálculo”.
196
Em outros termos, as comunidades que não cuidavam da preservação
das instâncias que cimentavam e davam força às coletividades poderiam
desaparecer. Impossibilitados de enfrentar com sucesso as dificuldades impostas
pelo meio e a competição com os grupos rivais, elas sofreriam a ação da seleção
natural, que preservava quem conseguia manter-se coeso. As ações úteis eram
aquelas que promoviam a aproximação entre os seres.
A idéia de comparar vida humana e vida animal, tendo em vista transformar
vitórias e derrotas nas sociedades humanas em um dado “natural”, criando uma
relação direta e mecânica do tipo vitoriosos/povos superiores e derrotados/povos
inferiores, recebeu de Bomfim forte crítica. O seu argumento consistiu no seguinte:
a disputa do chacal com outro chacal “faz valer apenas os seus recursos próprios”.
Já nas sociedades humanas há outros elementos que definem quem vence e
quem perde. A “luta pela existência” no universo humano envolveria “renome de
família, fortuna herdada, prestígio de classe, dando a um deles tal superioridade
que o faz vencer, quando, individualmente e isolado, ele seria vencido pelo seu
competidor”.
197
Se os índios da América foram derrotados pelos colonizadores
europeus, isto não significa que havia a força ou a fraqueza essenciais. Os
europeus venceram porque vieram mais bem equipados em termos bélicos. Para
saber das razões da supremacia Ocidental seria recomendável consultar livros de
história militar, em vez de recorrer a tratados de biologia. Mesmo na natureza, os
mais aptos para a competição não são necessariamente os mais fortes
fisicamente. Os mastodontes e mamutes desapareceram, já as formigas
multiplicaram-se.
198
196
Bomfim, Manoel. A América Latina ..., p. 250.
197
Idem, p. 254.
198
Idem, p.256.
86
A intenção de Bomfim consistia em realçar, primeiramente, que o paralelo
entre mundo da natureza e universo social era uma metáfora, pois os mecanismos
que garantiam a supremacia de indivíduos, grupos ou classes tinham a ver com
elementos inerentes às sociedades de classes, como poder econômico, prestígio
social etc; em segundo lugar, que a natureza ensinava que a conjunção de
interesses e esforços era um dado decisivo para o progresso social e o
aperfeiçoamento da sociedade e das pessoas.
Entre os homens deveria predominar a solidariedade, o incentivo para o
aprimoramento do sentimento altruísta. A luta não pode ser entre as classes, as
nações ou entre indivíduos, mas dos homens contra a natureza. Bomfim fez a
distinção entre natureza e cultura, afastando-se, pois, do determinismo biológico.
Cria no poder da ciência, da tecnologia, da inteligência, elementos essencialmente
humanos, para combater a fome, o frio, a pobreza, as moléstias, a velhice etc.
Para Manoel Bomfim, pretender aperfeiçoar as pessoas atirando-as em
uma arena de gladiadores era uma aberração. Ele indagou se não seria absurdo
querer melhorar o homem “fazendo-o voltar justamente à primitiva condição
animal”. Ademais, se o homem possui esse “instinto” (o da competição), todo
esforço deve ser feito para eliminá-lo.
199
Toda essa argumentação envolvendo as idéias de Darwin foi elaborada,
principalmente, com o objetivo de criticar os que se apropriavam das concepções
do naturalista, deturpavam-nas e punham-nas a serviço de discursos racistas e
legitimadores do tráfico de escravo e da escravidão. O seu alvo no livro A América
Latina foi o historiador português Oliveira Martins, que justificara um e outra em
nome da teoria de Darwin.
A ênfase na idéia de solidariedade relacionava-se aos mais diferentes
propósitos. Era a manifestação do desejo de ver o planeta transformado em um
espaço comum para a convivência harmoniosa e pacífica da espécie humana.
Tratava-se, aqui, do ideal de uma “Pátria Humana” (termo usado por Euclides da
Cunha).
200
No raciocínio de Bomfim a solidariedade universal tornar-se-ia
199
Idem, p. 255.
200
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão …, p. 121.
87
realidade mediante a paulatina superação das desigualdades econômicas entre as
nações e, para a realização desse projeto, seria necessário fazer da ciência um
instrumento de controle e dominação da natureza em benefício de todos os
homens. O autor que fez tal afirmação era um intelectual em que o sentimento
nacionalista e o cosmopolitismo conviviam. Ser cosmopolita significava querer ver
o país participando da comunidade internacional ocidental. Ser patriótico implicava
buscar a originalidade nacional. A coexistência de nacionalismo e de
cosmopolitismo produziu um raciocínio no qual se tornava imperioso voltar-se para
o interior do país e para o seu passado, tentando encontrar o “eu nacional”, mas
sem perder de vista a Europa e sem cultivar “qualquer pensamento exclusivista”
nem sustentar “qualquer preocupação agressiva”.
201
A vontade de ser ao mesmo tempo um “homens do seu tempo e do seu
país” (a expressão é de Silvio Romero) constituiu-se numa característica saliente
dos homens “ilustrados” brasileiros no período da Belle Époque. Joaquim Nabuco
expressou de forma explícita e sincera o dilema do intelectual que se via diante da
necessidade de pensar a realidade nacional, vista como imperfeita e inacabada,
tendo como modelo os países do Atlântico Norte, expressão acabada do
“progresso” e da “civilização”. No seu livro de memória afirmou: “sou antes
espectador do meu século do que do meu país: a peça para mim é a
civilização”.
202
É o sentimento do homem culto brasileiro que tinha um pé no Brasil
e outro na Europa
203
e nutria um certo mal-estar em relação ao seu país e ao seu
povo, feito de uma população multirracial e cuja maioria compunha-se de iletrados.
Achava-se no direito de estar em outro lugar, de pertencer a um outro mundo.
Bomfim, diferentemente, deixou clara a sua identificação com o país e o seu
desejo de ver incorporadas à nação todas as pessoas, independente da classe
social ou da etnia
204
. Fica evidente para o leitor dos seus livros o seu esforço para
201
BOMFIM, Manoel. Advertência. In: BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 34.
202
Minha formação. São Paulo: Três Livros e Fascículos, 1984, p. 47.
203
Evaldo Cabral de Mello utilizou o termo “dilema do mazombo” para descrever essa condição do
intelectual latino-americano. Uma sociedade escravocrata, mais de cem anos após a Abolição.
Jornal da Tarde, São Paulo, 18.9.1999. Caderno de Sábado, p. 6.
204
Joaquim Nabuco, lembre-se, tinha a mesma opinião. Os ex-escravos e os seus descendentes
tinham o direito de participar da sociedade capitalista e democrática, por ele imaginada como a
ideal. Ver O abolicionismo; UEMORI, Celso Noboru. Joaquim Nabuco ...
88
contraditar os discursos racistas. Um efeito imediato do preconceito racial foi o de
estigmatizar os não brancos, transformando-os em pessoas intelectualmente
“incapazes”, permitindo o seu afastamento da concorrência em determinadas
profissões, como na imprensa, por exemplo. Os protestos de escritores negros e
mulatos, como Cruz e Sousa e Lima Barreto, são exemplos elucidativos. Nesse
caso, a ciência serviu ao propósito de excluir; Bomfim dela fez uso para afirmar a
sua vontade de ver destruída as bases teóricas que sustentavam os pensamentos
e as práticas de exclusão. Para combater o racismo e os seus propagadores ele
evocou Darwin e suas concepções anti-racistas. A insistência na necessidade de
se cultivar sentimentos altruístas, de construir relações humanas alicerçadas na
solidariedade visava, entre outras coisas, afirmar que a nação brasileira deveria
incluir fraternalmente, como cidadãos, todas as pessoas e estratos sociais. Ser
altruísta e solidário implicava não ser racista.
A idéia de solidariedade não dizia respeito apenas às relações pessoais, de
grupos e classes. No pensamento de Bomfim ela tinha uma conotação mais ampla
e estava relacionada à percepção de alguns intelectuais que viam com apreensão
a crescente interferência do imperialismo norte-americano sobre a América Latina.
Ele percebeu o enlace entre os discursos em defesa do Pan-Americanismo e o
interesse estadunidense em afastar a influência da Europa e consolidar a sua
hegemonia. Quando grande parte da intelectualidade e de políticos brasileiros
aderiu ao projeto do governo norte-americano, nosso autor a ele fez oposição.
É a partir dessa postura política que podemos entender, em parte, o
objetivo e o conteúdo do livro A América Latina e da ênfase na concepção de
solidariedade. Nesse livro ele realçou o destino comum dos povos ibero-
americanos
205
, resultado de séculos de exploração e dominação colonial (o
parasitismo ibérico), que geraram os “males de origem”. A idéia de solidariedade,
nesse contexto, chamava a atenção para a necessidade de fazer convergir força e
vontade dos países latino-americanos, tendo em vista contrapor-se politicamente
ao inimigo comum, o imperialismo Norte-Americano. Em outros termos, quanto
205
No capítulo que se segue, mostraremos que, posteriormente, ele vai realçar as características
específicas que fizeram do Brasil um país com características peculiares relativamente aos países
hispano-americanos.
89
mais fracos os vínculos entre as nações latino-americanas, mais estariam
expostas à ambição e à cobiça estadunidense e dos demais países que queriam
“dividir a Terra entre si”.
206
O ambiente político-cultural das primeiras décadas da jovem República
também favoreceu um certo saudosismo de outra época e o desejo de buscar uma
solidariedade perdida ou a ser construída no futuro. A intelectualidade via perplexa
o caminho tomado pelo novo regime. Republicanos e monarquistas expuseram o
seu desalento. O país transformado em cassino (o reino da “ladroagem e da
jogatina”)
207
, a mercantilização das relações, o individualismo exacerbado e o
desejo de alcançar prestígio social pela via da acumulação de riqueza configuram
a imagem do caos. A República trouxe para o centro da vida pública o homem de
negócios, os que voltavam todas as suas energias para o enriquecimento. No
Império, ele existia enquanto personagem marginal, pois os representantes mais
proeminentes da Monarquia ocupavam-se principalmente com a política, como
revelou Caio Prado Jr.
208
Todas as barreiras de caráter moral que existiam no
passado, para frear ambição do especulador e negocista, foram suprimidas. Via-
se a emergência de um “novo espírito”
209
, o da busca da acumulação da riqueza a
qualquer custo.
206
Apud NUNES, Maria Thetis. Sílvio Romero e Manuel Bomfim: pioneiros de uma ideologia
nacional. Aracaju: Cadernos da UFS, 1976, p. 7.
207
Referência ao que se viu posteriormente à implementação da política financeira, denominada de
Encilhamento, da autoria Rui Barbosa, então ministro da Fazenda do Governo Provisório. Em uma
carta dirigida a André Rebouças, em 28 de janeiro de 1893, o monarquista Joaquim Nabuco
expressou o seu desalento com os caminhos tomados pela jovem República, transformada em
“reinado da ladroagem e da jogatina” e em que se perderam quaisquer parâmetros de moralidade.
Cartas a Amigos. In: NABUCO, Joaquim (Coligidas e anotadas por Carolina Nabuco). São Paulo:
Instituto Progresso Editorial S A, 1949. (Obras Completas de Joaquim Nabuco, t.. XIII, vol. I), p.
220-221.
208
História econômica do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 228-229.
209
Idem, p. 229. Nicolau Sevcenko afirmou que Euclides da Cunha e Lima Barreto estavam
chocados com o desaparecimento de qualquer freio ou contrapeso à ambição, ao egoísmo e a falta
de solidariedade entre as pessoas do seu tempo. É nas primeiras décadas da República que
Sevcenko detectou a mudança de “sensibilidade e mentalidade”. Ele tipificou essa transformação
analisando dois discursos sobre a paisagem brasileira. A primeira é a do romancista, deputado e
ministro conservador José de Alencar, figura destacada na vida política do Império. O outro é o de
Vicente de Carvalho, “líder republicano e positivista, deputado Constituinte paulista e fazendeiro de
café em Franca”. No romance O Guarani a paisagem brasileira é enaltecida tão-somente pela
beleza e como ornamento; Vicente de Carvalho viu a mesma paisagem, em de 1916, do ponto de
vista da utilidade, a do valor que ela tinha no mercado. Ver SEVCENKO, Nicolau. Literatura como
missão ..., p. 238-41. Bomfim e outros intelectuais de sua geração estavam vivendo essa
90
É a partir daí que se torna possível captar o significado da crítica ao status
quo levada a cabo pela geração de Manoel Bomfim. Como tantos outros, ele
enxergou na competição e no conflito não a possibilidade do progresso da
sociedade e das pessoas, mas a desagregação e a imoralidade. A inteligência, o
trabalho e o esforço nem de longe garantiam o sucesso profissional, segundo a
ótica dos homens cultos que estavam descontentes com a República. Acusavam
esta de ser o reino da mediocridade, dos espertos, dos calculistas, dos
pragmáticos que apostavam no enriquecimento fácil e rápido.
Imerso nesse meio, nosso autor, e não só ele, defendeu uma curiosa
relação com o Ocidente modelo a ser seguido. Deste desejava-se a tecnologia,
a ciência elementos capazes de criar riqueza e bem-estar , a democracia, mas
rejeitava-se a competição e o conflito, o mercado, enfim. A percepção de estar
vivendo em mundo hobbesiano motivou Bomfim a imaginar formas de convivência
social em que predominassem a solidariedade e a harmonia. Pelo exposto acima,
a concepção darwinista de “luta pela existência”, como sinônimo de concorrência e
disputa, não tinha condições de encontrar terreno fértil para fincar raízes no Brasil
da Belle Époque.
Ademais, a abolição da escravidão e a implantação da República não
trouxeram transformações estruturais. O país continuava sendo uma economia
agro-exportadora e assentada no latifúndio e inexistia uma classe média urbana, a
quem a concepção de luta pela existência serviria de justificativa ideológica contra
a classe conservadora, a oligarquia.
Na Inglaterra da segunda metade do século XIX, as idéias de Darwin
tiveram grande aceitação entre os industriais, comerciantes e profissionais liberais.
A classe média em ascensão vislumbrou na teoria do naturalista a justificativa
ideológica para atacar a Igreja e a aristocracia rural e para propagar a doutrina do
livre-comércio, da competição, da meritocracia e do fim dos monopólios.
transição. Pode-se compreender muito do que pensaram e disseram a partir da constatação de
que eles enxergavam como um problema a predominância do utilitário e do individualismo
relativamente aos valores éticos que ligavam as pessoas. Daí a ênfase nos seus textos na
necessidade de resgatar ou construir laços de solidariedades.
91
O que foi escrito explica, em parte, o motivo pelo qual Bomfim contrapôs à
ética utilitária à “moral de Darwin” e fez a opção por esta. Aquela fora associada
ao indivíduo calculista, insensível, pragmático, que agia tão-somente motivado
pelo interesse pessoal. Esta caracterização da ética utilitária coincidia com a
percepção da intelectualidade brasileira a respeito do comportamento amoral das
pessoas no início do período republicano.
Torna-se compreensível, ademais, que o nosso autor não estivesse
predisposto a aceitar a teoria de um Stuart Mill. Para o autor de O utilitarismo, o
interesse público não podia estar em questão. Neste aspecto, Bomfim e Mill
concordariam. No entanto, para Mill inexistia o vínculo, direto e automático, entre
virtude/ações boas e vícios/ações condenáveis, pois para ele, uma pessoa poderia
agir motivada pelo interesse particular e o seu gesto acabar contribuindo para a
felicidade da maioria. Do mesmo modo, um gesto de uma pessoa virtuosa poderia
resultar em prejuízo para a coletividade.
210
Tal argumento chocava-se com a visão do autor de A América Latina, pois
no seu raciocínio, interesse particular e bem geral eram termos antagônicos e
inconciliáveis. O primeiro foi vinculado ao individualismo, à ambição, ao egoísmo,
à dominação, ao colonialismo, ao poder, à exploração, à escamoteação, ao
preconceito. O segundo referia-se à idéia de integração entre as pessoas e entre
as nações, de fraternidade, de harmonia social, de cooperação. Por isso, Bomfim
ficou mais próximo do anarquista Kropotkin, do socialista Wallace, ou das
concepções de Darwin e distante dos utilitaristas. Ele comungava com os três a
concepção segundo a qual os seres humanos tendem a procurar a companhia dos
outros e em que a troca, o acolhimento, a negação dos exclusivismos devessem
prevalecer nas relações sociais.
A rejeição da ética utilitarista tinha a ver com a inclinação de Bomfim pelo
“socialismo”, ou o que muitos entendiam por socialismo em sua época. Ele assim
foi considerado por Sílvio Romero, que o chamou de “socialista bastardo”; Antonio
Candido associou o seu “radicalismo” à proximidade dele dessa corrente política e
de pensamento. Roberto Ventura e Flora Sussekind escreveram um texto sobre o
210
MILL, Stuart. O utilitarismo ..., p. 44--45.
92
autor intitulado Uma teoria biológica da mais-valia? Dante Moreira Leite afirmou
que Manoel Bomfim não poderia ser compreendido em seu tempo porque aderira
ao socialismo no momento em que os intelectuais, "direta ou indiretamente,
estavam seduzidos pelas realizações de Mussolini na Itália
211
." No começo do
século XX havia uma certa sedução de parte da intelectualidade pelos ideais
identificados com o socialismo.
212
Frise-se que ele era amigo de Elysio de
Carvalho, o qual dizia ter lido "escritores socialistas", frequentou centros operários
e idealizou a Universidade Popular, cuja finalidade era propiciar o acesso dos
trabalhadores ao ensino superior.
213
Esse ideal “socialista” estava muito próximo das proposições de certos
liberais que, no século XIX, tiveram de repensar o próprio liberalismo no momento
em que a Europa assistia à ascensão das massas e o fortalecimento das
reivindicações dos socialistas. A resposta do que Spencer Maciel de Barros
denominou de “novo liberalismo”
214
foi enfatizar problemas concretos (sociais e
econômicos) sem, contudo, abandonar as idéias abstratas, como os direitos
inalienáveis do homem. Coube a intelectuais como Stuart Mill refundar o
liberalismo, agora “com olhos abertos para os novos problemas sociais”.
215
Os rumores desse debate chegaram ao Brasil. Nas três últimas décadas do
século XIX a questão central que os liberais tiveram de enfrentar era de outra
natureza, pois a preocupação dos liberais brasileiros concentrou-se na luta contra
a escravidão e pela implantação da República. Os reformadores sociais do
período viam as instituições como organismos velhos e fossilizados e enfatizaram
a necessidade de reformá-las, condição indispensável para o país resolver seus
211
O caráter nacional brasileiro ..., p. 251. (grifo do autor, no original)
212
A respeito afirmou Wilson Martins: "a idéia, ou, pelo menos, a palavra de socialismo estava tão
generalizada (...) em 1906". Cf. História da inteligência brasileira ... , vol. v, p. 304.
213
A respeito dos objetivos da Universidade Popular, afirmou: "empreender o ensino superior e
educação social do proletariado". Apud AGUIAR, Ronaldo Conde. Op. cit., p. 280-1. A filiação de
Bomfim e Elysio de Carvalho ao "socialismo" pode ser matizada caso se leve em conta que
Carvalho afirmou ter lido autores socialistas, porém cita anarquistas (Proudhon, Bakunin,
Kropotkin) e afirmava ser um "individualista coletivo". MARTINS, Wilson. Op. cit., p. 349.
Raymundo Faoro lembrou que Machado de Assis teve contato com o “confuso rumor que o fim do
século XIX projetava da Europa para o mundo, rumor que confundia, apaixonadamente,
socialismo, anarquismo e comunismo”. Cf. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio ..., p. 360.
214
BARROS, Roque Spencer Maciel. A ilustração brasileira e a idéia de universidade ..., p.65.
215
Idem, p. 68.
93
dramáticos problemas econômicos e sociais. Era preciso “libertar” do cativeiro o
homem, a terra, o voto e a consciência. O país idealizado pressupunha o trabalho
livre, a pequena propriedade, a laicização da vida cultural e educacional e o
sufrágio universal. O problema a ser enfrentado pelos homens “ilustrados”
brasileiros ultrapassava a questão das liberdades individuais. A tarefa de refundar
o Estado e a “nação” implicava enfrentar aspectos concretos da realidade, como a
distribuição da terra, a inserção dos ex-escravos e de outros trabalhadores pobres
da cidade e do campo na sociedade como cidadãos, a instrução etc.
Foi nessa atmosfera política-cultural que as idéias liberais do “novo
liberalismo”, do socialismo, do comunismo e do anarquismo, as quais muitas
vezes eram confundidas, subsidiaram de alguma forma a crítica social na Belle
Époque brasileira. Não era por outro motivo que políticos e intelectuais liberais,
cujos discursos formavam um contrapeso em relação ao pensamento dominante,
foram chamados pejorativamente de “anarquistas”, de “socialistas” ou de
“comunistas”, ou foram vistos por seus intérpretes com inclinação a aceitar as
idéias dessas correntes de pensamento.
216
A aproximação de Bomfim do “socialismo”, no momento em que escreveu o
livro A América Latina, faz sentido se o pensarmos como um reformador social
liberal, muito perto do Joaquim Nabuco abolicionista, que foi atraído pelas
concepções da “esquerda”, das quais se serviu para refletir sobre a realidade
nacional, desigual e injusta. Ser “socialista”, nesse contexto, referia-se, em
primeiro lugar, à necessidade de dotar a população desprotegida pelo Estado dos
direitos à cidadania: a instrução, a moradia, o voto; em segundo, ao dever ético de
216
É o caso de Joaquim Nabuco. Nos quase dez anos (1879-1888) em que batalhou no
Parlamento, nas praças, na imprensa pela causa abolicionista, pela “democratização da terra”,
pelas liberdades individuais, pela federação, pela instrução da população, pela emancipação
econômica e social da população pobre do campo e da cidade e pelos direitos de cidadania de
todos os brasileiros, inclusive os ex-escravos, os seus adversários o chamaram de “anarquista” ou
“comunista. Por outro lado, os seus intérpretes o viram com pendores socialistas; Gilberto Freyre
afirmou que o abolicionista foi o “pioneiro” do socialismo (no sentido ético). Paula Beiguelman
enxergou no pensamento abolicionista o correspondente do raciocínio socialista; Marco Aurélio
Nogueira indagou sobre a possibilidade de ele ter lido O manifesto comunista. Cf. TORRES, João
Camilo de Oliveira. Os construtores do Império: ideais e lutas do Partido Conservador Brasileiro,
Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969, p. 38-39; BEIGUELMAN, Paula. Formação política
do Brasil. 2 ed., São Paulo: Pioneira, 1976, p. 174; FREYRE, Gilberto. Joaquim Nabuco. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 1948, p. 10; UEMORI, Celso Noboru. Joaquim Nabuco ..., p.4-7.
94
construir vínculos entre o homem culto e a população, sendo ele o seu porta-voz
ilustrado. Certamente, era esse o ponto de vista do nosso autor. De um texto
laudatório dedicado ao seu amigo Olavo Bilac pode-se imputar a ele os atributos
com que qualificara o poeta. A seu ver, Bilac comungava com todas as “grandes
aspirações da sua época: socialista, internacionalista e pacifista”.
217
O termo
“socialista”, tanto para Bilac quanto para Bomfim, tinha a ver com a concepção de
solidariedade, de justiça, de fraternidade, interesses convergentes e “democracia
social” (sendo este o autêntico “ideal moderno”).
218
As razões pelas quais muitos aproximaram Bomfim do “socialismo” residiam
na sua crítica social. Por ter revelado que a riqueza fora gerada graças à
exploração do trabalho do escravo; que a relação fundamental na sociedade
colonial era a de classes antagônicas e não a de raças; ao embasar as suas
análises em concepções econômicas e políticas.
No entanto, não será demais lembrar que, em A América Latina, é possível
detectar o que Antonio Candido denominou de “ambigüidade do radicalismo”.
219
A
ambigüidade refere-se ao “descompasso” entre a radicalidade do diagnóstico
sobre a formação histórica da realidade brasileira (os “males de origem”) e a
solução apresentada. Antonio Candido esperava uma “conclusão mais forte”, mas
o autor teria deslizado de uma perspectiva “revolucionária” para uma “visão
ilustrada”:
220
a crença de que a instrução pública seria o “remédio suficiente”.
221
217
Olavo Bilac: estudo sobre a vida intelectual do poeta. Kosmos, Rio de Janeiro, abr. 1904. (grifo
nosso). Francisco Foot Hardman, autor de um artigo sobre a literatura anarquista, no período
conhecido como pré-modernismo referiu-se aos temas que faziam parte do ideário anarquista: a
oposição capital x trabalho, “o internacionalismo, pacifismo e antimilitarismo, cientificismo
progressista, anticlericalismo, solidariedade universal dos explorados”. Cf. Palavra de ouro, cidade
de palha. In: SCHWARZ, Roberto (Org). Os pobres na literatura Brasileira. São Paulo:
Brasiliense, 1983, p. 81. Observe-se que Bilac e Bomfim defenderam os mesmos ideais. Ademais,
como lembrou Brito Broca e Machado Neto, a época assistiu à penetração do socialismo utópico e
do anarquismo (na versão de Tolstoi e Kropotkin) no meio intelectual. BROCA, Brito. A vida
literária no Brasil – 1900. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, p. 163; Machado Neto, A. L..
Estrutura social da república das letras: sociologia da vida intelectual brasileira – 1870-1930.
São Paulo: Grijalbo, EDUSP, 1973. p. 210.
218
BOMFIM, Manoel. Olavo Bilac: estudo sobre a vida intelectual do poeta. Kosmos, Rio de
Janeiro, abr. 1904.
219
Radicalismos. Revista do Instituto de Estudos Avançados ..., p. 17.
220
Idem, p. 17.
221
Lembramos que estamos nos referindo à obra A América Latina, que é de 1905. Mais de vinte
anos depois ele defenderá a “saída revolucionária”, nos moldes da Revolução Mexicana.
95
De fato, fica difícil pensar que o Estado que, de acordo com Bomfim,
emergira do processo colonial como um organismo externo e antagônico em
relação à sociedade, principalmente no tocante às necessidades mais
elementares da população pobre, poderia abandonar a sua “vocação” para servir à
“classe dirigente”, passando a instruir o povo, sem a qual não haveria como
superar a ordem vigente. Tudo isso, implicava questionar o poder da classe
dominante e do Estado. A explicação para essa aparente contradição entre o
diagnóstico radical e o remédio conciliador reside em três pontos. Em primeiro
lugar, Bomfim certamente não poderia vislumbrar nas classes populares, no
momento em que escreveu A América Latina, um potencial revolucionário. Em
segundo, a solução por meio da educação constituía-se em uma reivindicação
antiga, que remonta às três últimas décadas do século XIX, e continuou sendo o
foco privilegiado em sua época. Ao invés de inovar, ele corroborava uma opinião
hegemônica.
222
Em terceiro, essa saída “conservadora” estava conforme a sua
convicção segundo a qual deveriam prevalecer nas relações humanas os vínculos
associativos.
Os antagonismos abordados em termos de exploração e de luta entre
interesses divergentes no livro A América Latina foram vistos como o resultado
trágico do parasitismo ibérico. Isto não significa que Bomfim tenha vislumbrado na
luta de classes a concepção que explicava as transformações históricas.
Por outro, é possível captar um ponto de vista crítico em relação aos
discursos que pretendiam justificar o sistema capitalista. A respeito do assunto,
Bomfim escreveu um artigo em 1901, no qual ele discutiu as opiniões de B. Clark,
professor de economia política da Universidade de Colúmbia, autor do texto The
humanitarian.
223
Clark afirmara que na “sociedade do futuro” as desigualdades
sociais e econômicas iriam desaparecer com o desenvolvimento do capitalismo.
Seu raciocínio consistia no seguinte: o fosso social existente no capitalismo
diminuiria no futuro, propiciando aos “homens caminharem para a igualdade”,
222
A educação como uma das propostas que poderia “redimir” o país estava nos discursos de
vários intelectuais e políticos que lutaram pela causa abolicionista e republicana no final do século
XIX e continuou sendo nas décadas que se seguiram.
223
BOMFIM, Manoel. A sociedade do futuro. A Universal, Rio de Janeiro, 30 dez. 1901, ano I, p.
188-189.
96
graças à capacidade do sistema de gerar riqueza e distribuí-la, propiciando ao
operário o bem-estar e o luxo. Em seu prognóstico, alcançando esse estágio, a
luta de classes estaria superada, cessando a rivalidade entre capital e trabalho. O
“nivelamento” não ficaria restrito ao aspecto material, uma vez que os
trabalhadores teriam acesso à cultura, podendo desenvolver a inteligência. Ao
cabo surgiria um “tipo superior de fraternidade humana”, que o comunismo
prometia, mas não tinha condições de realizar. Na “sociedade do futuro”
imaginada por Clark a diversidade de fortuna não seria um elemento gerador de
divergências, tornando-se possível viver em harmonia e fazer valer o mérito
pessoal.
Bomfim expôs as teses de Clark, discordou e as tachou de conservadoras.
Depreende-se de suas palavras que ele suspeitava da idéia de que seria possível
chegar automaticamente à igualdade política, social e intelectual com o sucesso
do capitalismo. É possível, pois, acompanhando este raciocínio, captar, um ponto
de vista anticapitalista. No entanto, é importante lembrar, para Bomfim, as
transformações sociais e políticas não viriam com o acirramento da luta de
classes. De fato, Manoel Bomfim fez referência ao “espírito germânico”, o qual
estaria materializado no culto do individualismo extremado, que teria produzido
Stirner e Nietzsche e, de acordo com Ronaldo Conde Aguiar, o materialismo
histórico de Marx. É neste texto que ele criticou a concepção de luta de classes.
224
Ao nosso ver, ele comungava a crença bastante difundida entre a
intelectualidade da Belle Époque a respeito da força das idéias
225
, a crença no
poder da ciência e da razão para o aprimoramento da inteligência, tornando
possível desenvolver a capacidade de observação, de compreender a realidade
social e de mudá-la. É nesse contexto que podemos compreender a ênfase na
educação. Ele propôs um ideal de reforma, cujo processo se desenvolveria
paulatinamente, sem rupturas bruscas. Bomfim estava próximo dos autores que,
na Europa e no Brasil, tematizaram em suas obras as formas de associação
224
A obra do germanismo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 17 ago. 1914 (a esse texto de
Bomfim voltaremos no próximo item a ser abordado); AGUAI, Ronaldo Conde. Op. cit, p. 426-427.
225
Afirmou o autor: “a idéia é o primeiro momento para a ação; a idéia é uma força”. Cf. O
progresso pela instrução. In: BOMFIM, Manoel et alii. Discursos ..., p. 20.
97
humana baseadas no modelo das comunidades libertárias. Os “anarquistas”
brasileiros liam e se inspiravam em Kropotkin, Fourier ou Tolstói.
226
Darwin e a guerra
Acompanhei o esforço de Bomfim para desvincular as idéias de Darwin das
teorias racistas. Para finalizar o capítulo, abordaremos o que ele escreveu sobre a
tentativa de diversos intelectuais de conectar as idéias de Darwin a uma pretensa
inclinação inata da espécie humana para a guerra. Sobre o tema ele escreveu, no
primeiro ano da Primeira Guerra, dois artigos, que foram publicados no Jornal do
Commercio, intitulados A obra do germanismo e Darwin e os conquistadores.
227
Em Darwin e os conquistadores, o alvo de sua crítica foi o General Von
Bernardi, autor muito lido em sua época e cujos livros foram traduzidos para várias
línguas. Bernardi apropriou-se da noção de “luta pela existência” com a finalidade
de afirmar que a guerra era uma necessidade biológica. Procurava naturalizar um
assunto de caráter econômico e político. Para ele havia paises fortes e fracos e
cabia aos primeiros o direito legítimo de conquistar, dominar, expandir o seu
território. Esta tese opunha-se diametralmente às idéias de Bomfim, para quem a
solidariedade e a simpatia mútua deveriam nortear as relações humanas, inclusive
entre as nações. A noção de civilização também colocava em campos opostos o
general e o intelectual brasileiro. Para o primeiro, civilização significava força,
vitalidade e vontade de expansão territorial. Para Bomfim, civilização associava-se
à reunião dos seres humanos em tribos e nações, até formar-se a solidariedade
universal que uniria a espécie humana pelo sentimento de simpatia.
Bomfim viu no militarismo de Bernardi a manifestação do “espírito” alemão.
A solidariedade, do ponto de vista germânico, era “só para dentro”, nacional. Para
fora, preconizava a necessidade da força, da dominação. Esta forma de conceber
226
HARDMAN, Francisco Foot. Palavra de ouro, cidade de palha. In: SCHWARZ, Roberto (Org).
Os pobres na literatura Brasileira..., p. 84.
227
A obra do germanismo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 17 ago. 1914; Darwin e os
conquistadores, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 13 nov. 1914.
98
as relações internacionais não tinha outra dimensão que a “grandeza material”.
228
O nosso autor esmerou-se em atacar os que utilizaram as concepções de Darwin
com o intuito de dar suporte teórico para legitimar o que ele chamou de
“imperialismo”.
228
Darwin e os conquistadores. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 13 nov. 1914.
99
Capítulo 3
As origens da “nação” brasileira na obra historiográfica de Manoel Bomfim
“L’oubli, et je dirai même l’erreur historique, est um facteur
essentiel de la création d’une nation, et c’est ainsi que le
progrès des études historiques est souvent pour la nationalité
un danger”.
(Ernest Renan, Qu’est-ce qu’une nation?)
Abordar as idiossincrasias, as ambigüidades do pensamento de um
intelectual, não implica diminuir a importância do autor nem do que ele disse. Não
cabe ao pesquisador julgar os autor analisado, mas compreender seus objetivos,
motivações, interesses visão de mundo. No caso de Manoel Bomfim, as
contradições entre o primeiro livro A América Latina (1905)
229
e os demais O
Brasil na América (1929), O Brasil na história e O Brasil nação, (ambos de 1931)
são tão flagrantes como pouco notadas pelos seus intérpretes.
Existem análises que procuram comparar as idéias de Bomfim com as de
outros autores como Euclides da Cunha, Silvio Romero (sobretudo este), Nina
Rodrigues. A comparação pode ajudar a entender o pensamento de Bomfim pela
via do contraste ou da aproximação, mas obscurece um aspecto que, ao nosso
ver, é importante: a obra de Bomfim (conjunto dos textos) não é homogênea. Ao
construir uma linha de continuidade entre o seu primeiro livro (A América Latina),
de 1905, e os que foram elaborados mais de 20 anos depois, não se observando
ou desprezando-se a inflexão do autor, como fizeram de modo geral os seus
intérpretes, estes ratificaram o que Bomfim afirmou no “Prefácio” do livro O Brasil
na América, qual seja, que esta obra era um desdobramento da anterior, não
havendo “modificação de sentimentos, nem novidade de pensamento.
230
Daí a
229
BOMFIM, Manoel. A América Latina ...
230
Prefácio. In: BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio
de Janeiro: Topbooks, 1997 (o grifo é nosso), p. 27.
100
necessidade da análise minuciosa, no tocante aos temas “nação” e identidade
nacional visando captar as antinomias e inflexões. Eis o nosso objetivo neste
capítulo.
A gênese da “nação” brasileira na obra A América Latina
No livro A América Latina, Bomfim frisou o que havia de comum entre
Espanha e Portugal e também entre as colônias ibero-americanas. O “caráter das
nacionalidades ibéricas” foi se formando ao longo de séculos de invasões,
conquistas e lutas. A influência árabe, por exemplo, não foi vista sob a ótica das
“contribuições” de sua cultura e ciência, que teriam revitalizado o Ocidente. O
contato secular com os árabes forjou nos povos ibéricos a predisposição para a
guerra, às ações predatórias e à extorsão. Foram os portugueses e espanhóis que
aqui na América criaram um novo mundo, diga-se, nada paradisíaco, pois deram
origem e formaram nações marcadas pelas cizânias, pela violência, pelos ódios
exacerbados e pelo desejo de explorar. O que foi dito valia para todas as
sociedades latino-americanas, pois elas resultaram de séculos de colonização
ibérica.
A questão fundamental do autor consistiu em refletir sobre o Brasil, uma
nação “atrasada”, pobre e formada por uma população “heterogênea, instável,
cindida em grupos, possuída de ódios entre si”.
231
Ademais, o país era
“dependente” econômica, política e culturalmente e no qual formou-se, por um
lado, uma classe dominante conservadora, que enxergava em qualquer sinal de
mudança a ameaça ao seu poder e privilégios e, por outro, uma população
apática, que concebia a opressão como destino. Mesmo os que propunham
mudanças, seja dentro da ordem, seja pela via revolucionária, no fundo eram
conservadores. Tudo isso foi visto pelo autor como uma herança do parasitismo
social ibérico. A sua “redescoberta do país” revelou uma sociedade que nasceu
sob o signo da exploração de classe e conectada aos interesses econômicos da
Metrópole.
231
A América Latina ..., p. 144.
101
O discurso sobre a nação, tal qual foi apresentada em A América Latina,
contrasta com o que é conhecido como discurso ideológico nacional, pois este
concebe a nação como um organismo homogêneo, estando ausentes os
antagonismos e as contradições de classes. Para afirmar-se na condição de
“comunidade indivisa” o discurso sobre a nação precisa contrapor a ela o “outro”, o
seu antípoda o estrangeiro.
232
Exemplifica essa concepção o ponto de vista elaborado pelos intelectuais
brasileiros, quando eles tiveram que pensar sobre a formação do Estado nacional,
no momento em que ocorreu a ruptura política do país em relação a Portugal. Eles
fizeram a distinção entre as duas Américas (a luso-brasileira e a hispano-
americana). As ex-colônias da metrópole espanhola foram associadas ao
caudilhismo, ao militarismo, à instabilidade política e às guerras civis. A “nação”
brasileira, por sua vez, foi vinculada à idéia de unidade e de estabilidade política.
Isto teria ocorrido graças à forma como aconteceu a ocupação e a colonização do
território que coube a Portugal e, sobretudo, à presença da monarquia, antes e
depois da Independência.
233
Desse modo, os intelectuais enfatizaram a noção de
uma “comunidade indivisa” (a “nação”) em oposição à fragmentação das
repúblicas as antigas possessões espanholas. O discurso nacionalista, cujo
objetivo era legitimar o colonizador lusitano e o Império, opôs a “paz” e a
“estabilidade política” da Monarquia brasileira ao “caos” e à “anarquia” das
repúblicas latino-americanas.
Na obra A América Latina o procedimento de Bomfim foi outro, pois realçou
o que aproximava a América Portuguesa da América Espanhola. O autor
concebeu a América Latina como “unidade”, no sentido em que os países
compartilhavam um destino comum: o peso da herança ibérica refletido na
pobreza, na “dependência” econômica, na violência institucionalizada, na
instabilidade política e no autoritarismo. No momento em que Bomfim escrevia o
232
CHAUÍ, Marilena. Ciência e ideologia. In: ________. Cultura e democracia: o discurso
competente e outras falas. São Paulo: Moderna, 1982, p. 20; ver, também, SANTOS, Afonso
Carlos dos. A invenção do Brasil: um problema nacional? Revista de História, São Paulo, 1985, n
118, p. 6.
233
Defendeu esse ponto de vista o historiador Oliveira Lima. Sobre o assunto, ver MALATIAN,
Teresa. Oliveira Lima e a construção da nacionalidade ..., p. 190.
102
livro, os debates em torno do Pan-Americanismo dividiam a intelectualidade entre
os que apoiavam a iniciativa do governo norte-americano e os que a ela opunham-
se. Nesse contexto, fazia sentido conceber a América Latina como uma unidade
em oposição à pretensão estadunidense.
No livro A América Latina, ele voltou ao passado para “redescobrir o Brasil”
e, assim, fazer o inventário da origem das nossas mazelas sociais, políticas e
econômicas. Suas afirmações revelaram que debaixo da camada de verniz de
civilização que pudesse iludir alguém, existia uma realidade trágica, a qual ele
trouxe à tona. A crítica aos que associavam o “atraso” do país à composição
mestiça do povo, na realidade, tinha a finalidade de revelar o quanto existia de
tentativa de ocultar os interesses políticos dos que proferiam tais afirmações.
A ideologia da mestiçagem em xeque
Na obra A América Latina, Bomfim sugeriu ao leitor o conhece-te a ti
mesmo como a condição necessária para o pensamento radical. O radicalismo do
nosso autor pode ser captado em sua análise da gênese da nacionalidade. As
suas idéias chocaram-se com uma concepção cara ao pensamento social
brasileiro: a de que se forjou nos trópicos uma civilização mestiça, original e
redentora, que seria, de acordo com George de Cerqueira Leite Zarur, o “marco de
nossa identidade”.
234
Essa noção esteve associada a uma pretensa característica
do caráter nacional brasileiro: a “cordialidade”. A “lição” que o brasileiro teria para
dar ao mundo residia na aversão aos extremismos e na capacidade de enfrentar
as tensões sociais e políticas através da conciliação, sem recorrer às rupturas
bruscas. Essa qualidade distintiva, relativamente aos outros povos, foi vista como
um feliz resultado da colonização portuguesa. O “homem cordial brasileiro”
235
seria
234
A utopia brasileira: povo e elite ..., p. 17.
235
O homem cordial, na concepção de Bomfim, refere-se ao caráter pacífico, ordeiro, dúctil do
brasileiro. Essa definição servirá para Bomfim argumentar a favor da tese segundo a qual os
brasileiros não recorrem à violência, mesmo em um país que os mantém em precárias condições
de vida. Como se verá no decorrer deste trabalho, este traço psicológico do brasileiro foi visto por
Bomfim como algo positivo.
103
o produto do encontro entre povos que tinham a predisposição para aceitar o
“outro”.
A teoria da mestiçagem, na história cultural brasileira, serviu para as mais
diferentes finalidades: justificar as deformações da sociedade, associando a
formação mestiça do povo ao atraso do país; projetar a modernização do Brasil,
no sentido ocidental, por meio do “branqueamento”; e como discurso ideológico,
que oculta as hierarquias e as desigualdades. Explicando: “A fábula das três
raças”
236
permitiu criar a idéia de totalidade e, assim, fazer crer que a sociedade
estava aberta a todas as classes e grupos, inexistindo barreiras sociais ou raciais.
Por outro lado, a concepção de povo mestiço, na qual está embutida a idéia de
conciliação e harmonização de culturas diversas, pôde ser utilizada
ideologicamente como um fator de “correção” das desigualdades e violência
inerente à escravidão. A distância social e econômica entre escravos e senhores e
entre o europeu (ou seu descendente) e os índios teria sido “corrigida” pelo
caldeamento racial, já que brancos, negros e índios não se recusavam a aceitar o
“outro”. Do ponto de vista econômico a desigualdade existe e é reconhecida,
enquanto da perspectiva cultural cria-se a possibilidade de “democratização”.
237
A
inferioridade socioeconômica e a exclusão política dos negros, índios e mestiços
estariam compensadas pela igualdade “cultural”. A idéia de totalidade possibilitou,
também, integrar a diversidade cultural do país em algo chamado “cultura
brasileira”.
As idéias apresentadas no livro A América Latina confrontam-se
radicalmente com as concepções descritas no parágrafo acima. De fato, nessa
obra, o autor não tentou apaziguar ou escamotear a violência, as desigualdades
econômicas e sociais e a opressão de classe, que constituíram a matéria-prima de
236
DAMATTA, Roberto. Digressão: A fábula das três raças, ou o problema do racismo à brasileira.
In: ________. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1984.
237
Ponto de vista correlato pode ser encontrado em Gilberto Freyre. Ele afirmou que, se a
monocultura latifundiária criou uma distância social entre os estratos superiores e a massa
composta de negros, configurando-se a “aristocratização” da sociedade, a miscigenação funcionou
como um antídoto, “corrigindo” os desequilíbrios entre “a casa-grande e a mata tropical; entre a
casa-grande e a senzala”. O intercurso sexual entre os senhores brancos e índias, negras, mulatas
permitiu a “democratização social”, materializada pela subdivisão da grande propriedade,
favorecendo os filhos legítimos ilegítimos dos senhores. Ver Prefácio à 1ª Edição. In: ______.
Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,1987, p. ix.
104
sua reflexão radical sobre o passado do país. O radicalismo de sua análise cravou
uma cunha na teoria da mestiçagem, pois desvendou os interesses particulares,
causa das cisões internas e tudo o mais que o mito da das três raças esforçava-se
para ocultar. Isto é verdade para o livro de 1905. Porém, para o que irá escrever
mais de vinte anos depois (O Brasil na América), a história é outra.
A América Latina, obra anti-romântica
Manoel Bomfim, como tantos outros intelectuais brasileiros, estava
obcecado pela busca das origens da nacionalidade. Lembramos que a identidade
nacional veio a ser um problema após a emancipação política de 1822. O
Romantismo foi o movimento político-literário que se propôs a pensar o país,
agora uma ex-colônia, buscando construir a imagem do “eu nacional” em oposição
ao “eu metropolitano”.
238
A natureza tropical e os índios foram os elementos
escolhidos para caracterizar a cor local a beleza exótica da primeira e a
“liberdade” dos autóctones. Os romances de José de Alencar – referimo-nos a O
Guarani Iracema – representavam o esforço do romancista em reconstruir o
instante inaugural, ou seja, a gênese da “nação”, no momento em que o branco
europeu entrou em contato com o índio. O encontro não foi visto como um
“choque de civilizações” ou de raças. Pelo contrário, o Brasil nasceu por um ato de
entrega mútua, amorosa, fraternal entre o europeu ou descendente deste (Ceci e
Martim) e os ameríndios (Peri e Iracema).
Visto por esse aspecto, A América Latina é uma obra anti-romântica, pois
das páginas desta emergiu um país dilacerado, fendido, pobre, enfim, uma
“nação” que nasceu em ruínas realidade jamais superada. O Brasil é o resultado
desastroso da colonização ibérica. Bomfim acentuou as assimetrias, hierarquias,
antagonismos e conflitos. Enfim, a obra é anti-romântica porque, recorrendo à
metáfora do parasitismo, revelou um país gerado sob o signo da violência, da
exploração, da dominação e da exclusão, contrapondo-se, pois, à idéia de uma
238
AGUIAR, Flávio. A comédia nacional no teatro de José de Alencar. São Paulo: Ática, 1984, p
13.
105
sociedade que nascera do enlace harmonioso e pacífico entre o europeu e o
“selvagem”. A categoria “parasitismo” tornou possível explicitar a oposição entre,
por um lado, metrópoles e colônia, entre o “imperialismo” e as sociedades latino-
americanas e, por outro, entre os senhores e os escravos, o capital e o trabalho.
A redenção do passado colonial na obra O Brasil na América
A análise comparativa entre A América Latina (1905) e O Brasil na América
(1929) revela as mudanças de ponto de vista do autor em relação à questão da
origem da “nação”. O segundo livro mostrou uma guinada do nosso autor em
direção a uma abordagem da nacionalidade dentro do cânone consagrado pelo
Romantismo. O leitor de O Brasil na América surpreende-se diante das idéias
antípodas em relação às expostas no seu primeiro livro. Como fizera Alencar,
Bomfim quis fechar as feridas abertas pela violência e pelos conflitos
desencadeados durante a colonização portuguesa, violência e conflitos que ele
explicitara de forma nua e crua.
239
Se em A América Latina ele enxergou a
violência, o ódio como fatores mediadores das relações sociais entre as classes,
em O Brasil na América o acento foi colocado na harmonia, na cooperação e na
solidariedade entre o colonizador e os “selvagens”.
O foco, agora, recaiu sobre justaposição de contrários a fusão das
tradições das matrizes lusa e indígena , gerando a síntese: a “cultura brasileira”.
Esta não era portuguesa nem “tupi”, havendo a perda das identidades separadas
e engendrando-se algo original. Se a convicção cristã chocava-se com muitos
aspectos dos costumes locais, isto não foi empecilho para que os colonizadores
aceitassem a “cultura”, as formas de lidar com a natureza, a utilização de certos
utensílios e os alimentos. Assistiu-se à fundação de uma nova sociedade (“numa
caboclagem tinta de cristianismo”), mais próxima do viver dos índios do que da
sociabilidade do Reino.
240
O encontro entre portugueses e a população nativa não
foi caracterizado da perspectiva do confronto de civilizações, da imposição cultural
239
Sobre Alencar, ver MARCO, Valéria de. A perda das ilusões: o romance histórico de José de
Alencar. Campinas: Editora da Unicamp, 1993, p. 90-91.
240
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América ..., p. 109.
106
ou da “aculturação”. Pelo contrário, o autor esforçou-se por suprimir todas as
asperezas e conflitos, até o ponto de afirmar que se houve vencedor e vencido,
isto não era o mais importante, dado que o fundamental estava no “influxo
recíproco” e na a “quebra da coesão primitiva”.
241
Entre colonizador e índios predominaram as trocas, os compartilhamentos.
Deste modo, os desbravadores do sertão utilizavam os caminhos percorridos
durante séculos pela população autóctone e a prática da navegação demonstrava
o intercâmbio de mão dupla, pois ela não se fazia tal qual no Reino e nem
tampouco a “simples pirogagem do tupi”.
242
A imagem recorrente nesse discurso
sobre a formação da “nação” brasileira é a de camadas de tons e cores diversas
superpondo-se, amalgamando-se, sem a predominância de uma ou outra matriz.
Assistiu-se, de acordo com Bomfim, ao encontro de dois povos que tinham
a predisposição para assimilarem e serem assimilados. Ele comparou os índios ao
papel branco, cujo “ânimo plástico” tornou possível “escrever as virtudes mais
necessárias”. Era a argila facilmente moldável, que não impunha resistência e
adaptava-se sem resistência “às formas superiores de vida”.
243
Se na obra A
América Latina o colonizador lusitano, de caráter guerreiro e predador, educou o
colonizado, transformando-o em sua imagem e semelhança, no livro de 1929,
portugueses e índios educaram-se mutuamente. Uns e outros emprestaram e
tomaram de empréstimo práticas e saberes.
Para elaborar a concepção de um colonizador predisposto a aceitar e
conviver pacificamente com o “outro”, Bomfim reconstruiu a imagem dos
portugueses, comparado com o que aparecera no seu primeiro livro. Neste, ele
frisou
244
o contato com os estrangeiros, o árabe, por exemplo, que formou seres
violentos, saqueadores, verdadeiros parasitas obcecados pela riqueza material. E
se eram assim é porque foram “educados” pelos diversos povos que invadiram
sucessivamente, durante séculos, a península. No livro O Brasil na América, ele
241
Idem, p. 185.
242
Idem, p. 185.
243
Idem, p. 141.
244
Ele sublinhou esse aspecto do “caráter” dos portugueses, que não o impediu de dizer o oposto,
ou seja, lembrar o leitor da “força de assimilação” das “raças ibéricas”. Isso demonstra como o
autor “manipula” as informações de acordo com a idéia que quer desenvolver no momento. A
América Latina ..., p. 234.
107
tratou de marcar as diferenças entre a formação histórica de Portugal em relação
à da Espanha. Portugal, à época dos “Descobrimentos”, já teria se constituído em
uma unidade política independente e em uma nação com contornos políticos
definidos, enquanto a Espanha não passava de um conjunto de povos justapostos
e desunidos. Quanto aos traços psicoculturais, as diferenças foram realçadas: o
português era tenaz, bondoso, solidário, assimilável e assimilador; o espanhol, por
sua vez, era sobranceiro, orgulhoso de sua raça, arrogante, inclinado para os atos
violentos etc.
245
Ao fazer essa diferenciação, não há como negar a aproximação
do autor, que nunca abandonou sua convicção republicana, dos historiadores
monarquistas, os quais criaram a idéia de uma nação brasileira unitária e indivisa
obra realizada pelo governo imperial e a sua antípoda, as repúblicas hispano-
americanas, cujas características realçadas eram a instabilidade política e o
caudilhismo.
Duas forças modeladoras: o parasitismo social e a nação como sujeitos
Manoel Bomfim recusou, por um lado, a interferência de forças
transcendentais a metafísica, a mística e a sobrenatural e , por outro, a
pressão de determinações impessoais da raça e do clima sobre os indivíduos e
sobre a sociedade. Em A América Latina, Bomfim analisou as sociedades latino-
americanas de uma perspectiva econômica e social. O parasitismo era uma
categoria de análise que permitiu pensar a sociedade colonial como uma
estrutura, na qual os indivíduos e grupos tinham funções, mas não vontades
pessoais. Havia uma racionalidade subjacente moldando as “vontades”: o desejo
de se apossar da riqueza produzida pelos escravos tornou-se o objetivo único,
transcendendo classes e grupos. O parasitismo era o sujeito, a força exterior que
controlava, determinava e submetia a totalidade da vida e dos comportamentos
dos funcionários do Estado, dos feitores, dos senhores, dos escravos,
componentes que garantiam o funcionamento e a conservação da máquina de
produzir e extorquir riqueza.
245
Idem, p. 77.
108
Em O Brasil na América, o sujeito passa a ser a “nação”. A nação-sujeito
pode ser vista como a força preexistente, que de fora modelava as consciências.
Ela era uma estrutura, como o parasitismo, mas diferindo deste pelo fato de ser
uma entidade imaterial. Bomfim referiu-se à “alma brasileira”, ao “gênio brasileiro”,
à “energia brasileira”. Os indivíduos, também aqui, não agiam movidos pela
iniciativa e pelo interesse de pessoal, de grupo ou de classe, pois obedeciam ao
interesse coletivo.
Para construir o seu argumento, parece que o autor seguiu a lição de
Ernest Renan, o qual, em uma conferência proferida na Sorbonne, em 11 de
março de 1882
246
, afirmou que a narrativa sobre a nação exigia o esquecimento. A
nação, de acordo com Renan, não era um dado natural, mas uma construção
humana, portanto, histórica. Edificá-la significava unir territórios e isso somente
poderia ser feito com o emprego da violência. No caso da França, a construção da
nação implicou a união da França do Norte e a França do “Midi”, conseguida à
custa de extermínio e de terror que durou quase um século.
247
E se a nação
refere-se ao que existe de comum entre as pessoas que vivem no mesmo
território, torna-se necessário “esquecer” tudo que lembra que ela foi gestada num
tempo histórico definido e que essa coisa comum foi produzida artificialmente e
por meio da violência. Todo cidadão francês deveria esquecer o massacre de São
Bartolomeu ou os massacres do “Midi”. Sentimento nacional é consenso e ambos
somente poderiam ser concretizados violentando-se a história.
É preciso reconhecer que Bomfim fez exatamente isso na obra agora
analisada. Nota-se a intenção explícita de apagar da memória histórica os
antagonismos, as contradições, a violência. Se em A América Latina, ele realçou o
interesse material, que funcionava como uma força centrifuga, dispersando e
colocando os atores em campos opostos e em confronto, em O Brasil na América,
246
Qu´est-ce qu´une nation?”. In : ______. Discours et Conferences. Paris: Calmann Lévy,
Éditeur, 1887.
247
Idem, p. 285. Renan não mencionou a Comuna de Paris, mas esse acontecimento traumático
da história francesa do século XIX deve estar por trás da idéia de que a construção do discurso
sobre a nação precisa ocultar a violência.
109
ele privilegiou a força centrípeta e imaterial “a vontade de ser uma nação”
248
que unificou vontades, consciências e ações em torno de um objetivo comum. As
personagens apareceram inscritas, em sua narrativa, na mesma temporalidade.
Assim, as incursões dos bandeirantes em direção ao sertão e os combates dos
colonos pela expulsão dos franceses, ingleses e holandeses foram explicados da
perspectiva de personagens que agiram movidos por um ideal abstrato, o desejo
de construir a nação. Para ser fiel ao seu raciocínio, ele “apagou” dos paulistas a
imagem que os associava à caça aos índios e à busca do ouro; dos paulistas
restou a representação edificante dos “criadores de caminhos”
249
, dos povoadores,
dos civilizadores e dos conquistadores de territórios.
O procedimento do autor encaixa-se na forma usual empregada pelos
historiadores que se dedicaram a estudar a história nacional da perspectiva
nacionalista, desde a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em
meados do século XIX. Desse viés, a nação “deixa de ser objeto para ser
parâmetro”.
250
O pesquisador está preocupado em elaborar o que Gramsci
chamou de a “biografia da nação”
251
tendo como base a idéia abstrata de uma
entidade homogênea e idêntica a si mesma. É essa idéia que determinará os
temas, acontecimentos, atores históricos que devem ser lembrados e os que
precisam ser esquecidos.
Se a narrativa de Bomfim sobre a nação quer produzir o “esquecimento”,
nada mais ilustrativo do que a forma como abordou a participação dos negros no
período colonial e “ausência” da história de Palmares no livro O Brasil na América.
Nesta obra, ele afirmou que a influência dos negros foi menor se comparado à do
índio. Tal afirmação tinha, a nosso ver, esses objetivos: enfatizar que o “povo”
brasileiro era o resultado da mistura, preponderante, entre europeus e índios e
248
A expressão é Homi K. Bhabha, em referência à narrativa sobre a narração de Ernest Renan.
DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna. In: ______. O local da
cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 225.
249
O Brasil na América ..., p. 306.
250
SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. A invenção do Brasil: um problema nacional? ..., p. 7.
251
GRAMSCI, Antonio. El Risorgimento. In: ________. Cuadernos de la carcel. México: Juan
Pablos Editor, p. 96-7.
110
apagar o antagonismo, a exploração de classe e a violência.
252
Ao “suprimir” o
negro do seu esquema teórico, no limite, ele estava negando a concepção de “luta
de classes”, pois desaparecia a “vítima das vítimas”, a máquina de trabalho, quem
produzia a riqueza e de quem se extorquia a “excedente”. Em outras palavras,
com a “supressão” dos negros tornou-se possível afirmar a origem cabocla do
brasileiro e a reiteração da idéia de que a escravidão aqui foi branda em relação à
dos Estados do Sul.
253
A “cordialidade” do senhor e a “afetiva submissão” dos escravos evitaram
os choques violentos que aconteceram em outras colônias da América. Bomfim
tentou diminuir a magnitude dos protestos dos escravos, pois “as revoltas se
limitavam aos quilombos de negros fugidos”.
254
Chama a atenção o fato de a
história de Palmares aparecer de modo marginal nos textos de Bomfim. O famoso
quilombo era um assunto bastante comum – ou quase obrigatório – em obras que
tratavam do Brasil colonial e da escravidão. Palmares foi associado ao perigo
interno (o “nosso Haiti”), ao heroísmo (a “Tróia Negra”) dos escravos que não
aceitaram a escravidão. O reduto de negros foragidos da Serra da Barriga foi
exaltado porque representava exemplo grandioso da luta pela liberdade ou
condenado pelo perigo que representava. Ele apareceu como símbolo do
confronto, da tensão entre a ordem e o desejo de emancipação. De alguma forma,
esses textos revelavam os conflitos que a escravidão gerava: a reação violenta
dos escravos contra a violência institucionalizada.
255
Em O Brasil na América, o autor esforçou-se para amenizar a brutalidade
do senhor e realçar a tímida reação dos escravos. Quanto a Palmares, a ênfase
recaiu sobre a ausência de tensão e conflitos, pois o quilombo da serra da Barriga
252
É de Bomfim a afirmação: “Não havia nada de humano nas relações de senhor e escravo”. Cf.
A América Latina ..., p. 133.
253
O Brasil na América ..., p. 204-205.
254
Idem, p. 204.
255
A história de Palmares foi lembrada, por exemplo, por Oliveira Martins, Oliveira Lima, Manuel
Quirino, Nina Rodrigues, João Ribeiro. Ver MARTINS, Oliveira. O Brasil e as colônias
portuguesas. Lisboa: Guimarães e Cia Editores, 1978 p. 66-67; LIMA, Oliveira. Formação
histórica da nacionalidade brasileira. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 117-118; RODRIGUES,
Raimundo Nina. Os Africanos no Brasil...; QUIRINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil.
Recife: Massangana, 1988, p. 118; RIBEIRO, João. História do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves. 1964, p. 268-269.
111
foi uma “organização política e não um reduto de ódios”.
256
Domingos Jorge Velho
e seus homens, que foram designados para “resolver o caso dos palmarinos”,
Bomfim associou a imagem das povoações que surgiram desta “segunda
passagem dos paulistas”.
257
As poucas referências ao reduto de “negros
aldeados” tinham a intenção de atenuar a violência em uma sociedade fundada na
escravidão e para sublinhar a obra dos paulistas como criadores de povoados no
interior, “civilizando” o sertão e integrando o país. A “vontade de nacionalidade”
258
fez Bomfim “esquecer” os acontecimentos da serra da Barriga porque, se ele os
incluísse em sua narrativa sobre a nação brasileira, teria, necessariamente, de
reconhecer a existência de conflitos internos (entre os insurretos, de um lado, e o
governo e proprietários, de outro) que ele se esmerou em escamotear.
259
Se
oposição e conflitos havia, estes diziam respeito à luta contra os estrangeiros.
Os negros foram mencionados no momento em que o autor quis reforçar a
noção da identidade do brasileiro e da suposta cordialidade do caráter nacional.
Os negros foram introduzidos na narrativa para reforçar a idéia de que a
mestiçagem gerou uma população dotada de plasticidade, traduzida na
capacidade de aceitar o novo, de aderir ao progresso, de recusar o rotineiro, de
não ter preconceito contra o passado. Os negros foram evocados, ainda, para que
o autor pudesse amenizar as assimetrias de classe geradas pela escravidão.
Graças à sua “índole” dócil, a sua “afetiva submissão”, os africanos e seus
descendentes serviram de canal de comunicação para aproximar a “casta
superior” do “povo”. A sua “brandura”, “ternura” e dedicação desinteressada pelos
seus senhores (ele refere-se aos cuidados da ama-de-leite para com o menino
branco) tornaram possíveis criar uma espécie de compensação para a crueldade
que se observou na história do Brasil, como a dos inquisidores e do tráfico e da
256
O Brasil na América ..., p. 204.
257
Idem, p. 324.
258
A expressão é de Homi Bhabha. Ver DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da
nação moderna ..., p. 226.
259
Abordaremos no próximo capítulo a maneira como outros conflitos internos, as chamadas
rebeliões coloniais, apareceram em seus textos.
112
escravidão. Em suma, ele fez referência aos africanos para encobrir os rigores, os
conflitos e as tensões que marcaram a conquista, a colonização e a escravidão.
260
A “alma do Brasil”
Ao eleger os índios como o elemento constituinte da formação da
população e da “cultura” brasileiras, Bomfim aproximou-se do Romantismo.
Reiterou a aproximação ao argumento segundo o qual a influência dos negros foi
pequena.
261
Lembramos que a perspectiva nacionalista adotada pela
intelectualidade que se dedicou a pensar a gênese da “nação”, nos anos que se
seguiram à emancipação política de 1822, ocultou os escravos. Não será demais
mencionar que havia uma intenção política e ideológica nessa atitude. A elite
política e intelectual desejava criar a imagem de uma “nação” homogênea e
indivisa, de uma sociedade que teria sido gerada pelo consórcio amistoso, pacífico
entre os portugueses e os índios. A introdução dos negros colocaria em cena a
escravidão, evocando aspectos que não correspondiam à concepção paradisíaca
que estava sendo construída. Traria à baila o tráfico negreiro, a violência
institucionalizada, a transformação de seres humanos em “objetos”, enfim, a
classe que tudo produzia e nada tinha, como denunciaram os abolicionistas no
final do século XIX.
262
Ademais, “livrar-se” dos escravos tinha o significado de
fazer desaparecer dos discursos a classe temida, aquela que poderia repetir aqui
o que fizeram os escravos do Haiti no final do século XVIII. Lá os negros fizeram a
independência, proclamaram a república e expulsaram os brancos; aqui o
“haitianismo” representava o temor dos proprietários que dependiam da
escravidão em um país, cuja população compunha-se majoritariamente de
mestiços. A luta política em torno da construção do Estado-Nação confundia-se
260
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América ..., p. 203 e 335.
261
Para Bomfim influência dos africanos e seus descendestes existiu, porém não alterou a feição
da “população já feita”, delineada pela mistura de índios e brancos. Idem, p. 202.
262
A conotação política e ideológica que está por trás do escamoteamento dos escravos e da
escravidão fica explícita no fato de a “Carta constitucional outorgada em 1824 não mencionava
sequer a existência de escravos no país. Não obstante o artigo 179 definir a liberdade e a
igualdade como direitos inalienáveis dos homens, centenas de negros e mulatos permanecerem
escravos”. Cf. COSTA, Emília Viotti da. Liberalismo: teoria e prática. In: _______. Da monarquia à
República: momentos decisivos. 7 ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 137.
113
com a batalha simbólica. No processo de elaboração da identidade nacional,
construiu-se uma representação da sociedade como um todo orgânico, ficando
definido quem ficava dentro e quem saía, os aliados e os inimigos. Ademais, esse
“imaginário social”
263
serviu ao propósito de fazer esquecer a violência e os
conflitos do passado – referimo-nos ao embate entre colonizadores e índios e a
escravidão. O discurso hegemônico pôde criar uma nação abstrata, delineada
como um espaço plano e liso. Nesse esquema, a contradição, o antagônico, ou
seja, o inimigo localizava-se fora da comunidade.
264
Tal procedimento viabilizou
reconstituir a origem da nação, apagando os conflitos pela terra, o extermínio dos
nativos e “reconhecer a prática da conciliação como atributo e função
fundamentais da autoridade”.
265
Para construir a representação da nação, os românticos optaram pelos
índios porque, diferentemente dos negros, eram “filhos da terra”. A “cultura”
brasileira (a literatura, a poesia, a língua nacionais) seria extraída das tradições,
da linguagem, dos costumes dos “autóctones”; a “cultura” nacional almejada
deveria estar enraizada no solo pátrio, por isso a necessidade de sublinhar a cor
local e enobrecer os “selvagens”. Na obra de um José de Alencar esse objetivo se
vê com clareza. Ele se esmerou para contradizer a concepção segundo a qual os
índios eram bárbaros e incivilizáveis; essa caracterização, de acordo com o autor
de Ubirajara, foi propagada pelos jesuítas e “aventureiros”, os quais batalhavam
pela posse da alma ou do corpo dos nativos. Separados por interesses
inconciliáveis, eles sustentavam a mesma opinião: os índios eram “feras
263
A categoria “imaginário social” foi emprestada de Baczko. Para este autor a “imaginação social”
é um dos aspectos do sistema simbólico que toda sociedade produz e que permite elaborar uma
“certa representação de si”, ou seja, a sua identidade. BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In:
Enciclopédia Einaldi. Lisboa: Imprensa Oficial – Casa da Moeda, 1985, v. 5, p. 309.
264
O sistema dicotômico, estruturado entre o “dentro” e o fora”, entre o organismo homogêneo e
uno e a ameaça exterior pode ser visto no romance O guarani, de Alencar; ele criou dois campos
de forças que se opunham: um era o núcleo familiar de D. Antônio de Mariz, símbolo do poder, da
hierarquia e da estabilidade da comunidade; o outro estava representado pelos “estrangeiros”: os
Aimorés e os aventureiros errantes. Os primeiros (bárbaros, selvagens e vingativos) eram os
antípodas de Peri (símbolo da adesão e do amor devoção ao colonizador); os vilões
personificavam o amor carnal, o interesse material, o viver sem regras, tudo que podia corromper e
destruir a harmonia, a estabilidade, os valores, as tradições da família ou da nação. O Guarani. 9
ed. São Paulo: Ática, 1981.
265
MARCO, Valéria de. A perda das ilusões: o romance histórico de José de Alencar ..., p. 91.
114
humanas”.
266
A prosa e a poesia românticas trataram de desmentir tal argumento.
Por isso a imagem dos “selvagens” foi associada a valores honoríficos que, para
um Alencar, constituíam-se na antítese do que ele via como os elementos capazes
de ameaçar e desestabilizar a família, a sociedade e a tradição: o interesse
material, a competição e o individualismo. Os índios, em sua obra, encaixavam-se
na imagem construída e propagada por gente como Montaigne, Rousseau,
Southey, Alencar, Gonçalves Dias, em que tudo era positividade: o súdito fiel, o
destemor, a hospitalidade, a bondade fraternal. Retirados da história e da
realidade concreta, os “filhos da terra” foram transformados em figuras míticas. Em
O Brasil na América, os “brazis” tinham características idênticas. Tanto Alencar
quanto o nosso autor foram em busca da “alma do índio”.
O objetivo primordial consistiu em buscar a “alma do índio” a fim de
encontrar e revelar a “alma do Brasil”. Para os dois a “alma do Brasil” estava no
interior do país. Não é por acaso que na obra O guarani o solar do fidalgo
português D. Antônio de Mariz localizava-se no sertão. Ao assim proceder, o autor
tinha o objetivo de reconstruir o momento inaugural do país, sublinhando a
conexão harmoniosa entre o homem e a natureza, entre o “branco civilizador” e o
“mundo novo descoberto”.
267
Ademais, ao ambientar o seu enredo no sertão
“deserto e inculto” distante do litoral , ele pôde criar, por um lado, uma
comunidade isolada e imune à influência estrangeira; por outro, uma sociedade
sem escravidão. Alegoricamente, a floresta intocada serviu como uma espécie de
cordão de segurança, destinada a proteger o cerne de um país que nascia sem a
mácula da escravidão e definindo desde o começo a sua autonomia como
“nação”. A brasilidade delineava-se no interior, no seio da natureza, através do
enlace amoroso entre Ceci e Peri.
266
ALENCAR, José. Advertência. In: ______. Ubirajara (Lenda Tupi). São Paulo: Editora Literart,
s.d. p. 98.
267
MARCO, Valéria de. Op. cit. p. 31.
115
A forte presença do sentimento de brasilidade em Bomfim
268
produziu
concepção idêntica. Por isso ele referiu-se, enfaticamente, no livro O Brasil na
América, aos caminhos, aos rios e às estradas, que levavam os “criadores de
povoados” e “agentes civilizadores” de centros como Salvador, Recife e São Paulo
em direção ao sertão. Separados pelo tempo e em contextos diferentes, ambos
queriam produzir a imagem de uma “cultura” que surgiu e mantinha-se
“autenticamente brasileira”. Ele evocou os escritores românticos porque ninguém
teria captado com mais sensibilidade o “gênio brasileiro”, cuja identidade se definia
pela paisagem tropical, pelo seu povo e pela sua história.
269
História
O olhar de Bomfim voltou ao passado na tentativa de revelar as tradições e
as experiências comuns dos brasileiros, tradições e experiências que viviam no
presente, em cada pessoa. Eram elas que deveriam orientar, dar força e confiança
quanto ao rumo que o país deveria tomar, visando o progresso econômico, social,
político, moral e cultural. Cabia ao historiador estudá-las da perspectiva
nacionalista. Essa preocupação tinha implicações profundas na concepção de
história do autor. Ele aceitou a lição de F. Martius segundo a qual a história
deveria ser “mestra da vida”
.270
O historiador tinha uma função: cabia a ele
fomentar o patriotismo. O ofício tinha mais a ver com a militância em prol da
propaganda nacionalista do que com a análise. A obra O Brasil na América
encaixa-se nessa perspectiva.
268
O peso e a influência do patriotismo de Bomfim no que ele produziu podem ser vistos no livro
Através do Brasil (1910), o qual foi escrito com o seu dileto amigo Olavo Bilac. Na “Advertência e
Explicações”, os autores afirmaram que ao contar as aventuras dos meninos Carlos e Alfredo, que
percorrerão o país em busca do pai, tinham o objetivo de levar ao leitor infantil a conhecer a “vida
brasileira” – “as suas gentes , os seus costumes, as suas paisagens”. Sublinharam os autores que
escolheram o rio São Francisco como cenário principal porque este é o “grande rio,
essencialmente, unicamente brasileiro”. Cf. Através do Brasil. (Org. Marisa Lajolo). São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 46.
269
O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks,1996, p. 292.
270
Martius, C. F. Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 389-411, nº 24, jan. 1845, p. 410. Esse texto ganhou o
concurso patrocinado pelo Instituto Histórico e Geográfico em 1848; essa instituição foi criada, em
1839, para elaborar a memória nacional do ponto de vista da Monarquia.
116
Ademais, sua opção pela “razão nacional” em detrimento da “razão
universal” permitiu o questionamento do conceito de História Universal. Depois de
perguntar a quem interessava afirmar a existência desta última, Bomfim disse que
o conceito servia aos países ocidentais para separar e hierarquizar as nações em
fortes e fracas, valorizando as suas tradições e desqualificando as demais. Este
esquema foi comparado pelo nosso autor com o sistema planetário: a Europa
ocuparia o centro do “universo” e as outras sociedades (outros planetas)
orbitariam em torno desse centro de gravidade. Se as coisas eram assim, disse
Bomfim, seria necessário desprezar o conselho de Copérnico, o qual teria
sugerido aos astrônomos que, em nome da objetividade, estudassem o sistema
planetário a partir de dois focos ou de dois ângulos: tanto do ponto de vista da
Terra quanto do Sol. Transferindo esse raciocínio para o estudo da história,
almejava-se eliminar a visão pessoal, os julgamentos baseados em valores, ou até
mesmo os preconceitos. Para o nosso autor tal atitude não era factível, pois cada
historiador julgava a si e ao outro de acordo com a respectiva tradição a que
pertencia. Cabia, então, a “cada povo defender a sua própria história”.
271
A crítica do ponto de vista etnocêntrico, resultante da perspectiva
nacionalista de que estava imbuído o autor, chama a atenção pela sintonia de
pensamento com Oswald Spengler, autor de A decadência do Ocidente, publicado
em 1918, o qual foi lido e traduzido em vários idiomas, dentro e fora da Europa.
272
Bomfim não o cita, mas a semelhança existe. Em ambos há a conexão entre o
sistema planetário e a história: a comparação entre a perspectiva eurocêntrica e
relativista, respectivamente, ao “sistema ptolomaico” e ao copernicano.
273
O
objetivo dos dois consistiu em questionar o conceito de História Universal e,
assim, retirar do Ocidente a primazia de ser o parâmetro a partir do qual
271
BOMFIM, Manoel. O Brasil na história: deturpação das tradições e degradação política. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1931, p. 42.
272
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos
frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 179. O livro ficou pronto em 1914,
mas a guerra retardou a revisão a publicação. Sobre a repercussão da obra e das idéias de
Spengler, ver HERMAN, Arthur. A idéia de decadência na história ocidental..., p. 255 e seg.
273
Spengler serviu-se da imagem copernicana para argumentar que não havia hierarquia entre as
diversas culturas, pois cada povo tinha a sua. Cabendo ao pesquisador pensá-las em suas
singularidades. Sobre o assunto, ver SCHLANGER, Judith. Les métaphores de l’organisme. 2
ed. Paris: Éditions L’Harmattan, 1995, p. 161.
117
civilizações e culturas não-ocidentais eram classificadas e julgadas. Em
conseqüência, não poderia mais se falar, de acordo com ambos, em valores,
idéias, conceitos com validade universal, como a “supremacia da razão, a
humanidade, a felicidade do maior número”.
274
Desse modo, inexistem a Arte, a
História, a Tradição, a Cultura, mas artes, histórias, tradições, culturas isoladas e
singulares. No argumento de Spengler, o conceito de “Humanidade” perde
sentido, pois o que existem são “culturas, povos, línguas, verdades, deuses,
regiões”
275
com as suas singularidades inconfundíveis. Para o autor, os adeptos
da História Universal enxergavam as suas “verdades inabaláveis” apenas do seu
ângulo e desconheciam que há “outras verdades”, daí a necessidade de sair da
“sua esfera”.
276
De acordo com o seu ponto de vista, essa distorção originava-se
do fato de o historiador deixar conduzir a sua pesquisa a partir de sua visão de
mundo e não se dando conta de que existem outras; ele está exortando o
pesquisador a esforçar-se para afastar do seu trabalho o preconceito, que
aparecia quando se adota uma visão de mundo unilateral e esquece-se que há
outras.
O texto de Spengler é a manifestação do mal-estar vivido por grande parte
da intelectualidade européia nos anos 20, sobretudo posteriormente à Primeira
Guerra. No rastro da destruição deixada por esta, emergiu a desconfiança em
relação a uma Europa como modelo de progresso e civilização.
277
Tomava-se
distância de tudo o que se referisse ao ideal de absoluto, de objetividade
278
, de
“verdades” que seriam válidas para todos no tempo e no espaço. Havia, pois, que
pensar a realidade tendo em vista o específico, o circunstanciado, o singular. Na
onda de ceticismo reinante, a Razão e a ciência foram colocadas em xeque.
274
SPENGLER, Oswald. A decadência do Ocidente. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1973, p. 38.
275
Idem, p. 39.
276
Idem, p. 41.
277
A obra de Spengler é a manifestação de um sentimento bastante difundido de que o Ocidente
estava em coma. O racionalismo Iluminista encontrava-se em crise e era incapaz de responder às
inquietações que surgiam numa realidade em que tudo era mudança e instabilidade. Nessa
atmosfera cultural e política, Spengler anunciou o ocaso do Ocidente. Para ele todas as
civilizações nasciam, ascendiam, decaiam e morriam. HERMAN, Arthur. Op.cit., p. 251-252.
278
Spengler afirmou: “Mas a Humanidade não tem nenhum objetivo, nenhuma idéia, nenhum
plano, como não têm as espécies das borboletas ou das orquídeas”. Cf. A decadência do
Ocidente, p. 39.
118
Rejeitava-se o racionalismo Iluminista e se fazia a apologia do irracional, da
intuição. Para Spengler, constituía-se em uma ilusão tentar apreender a realidade
somente pelo intelecto, sem recorrer à intuição.
279
Parecerá estranho que um intelectual como Manoel Bomfim, que nunca
abandonou a crença nos valores democráticos, tenha compartilhado idéias e
concepções com pensadores como Spengler, que nutria profunda aversão pelo
liberalismo e afirmava que a liberdade produzia a “decadência cultural” e à perda
da vitalidade”.
280
Das proposições do pensador alemão não interessaram ao
intelectual brasileiro os argumentos a favor de um governo autoritário. Buscou no
manancial de idéias disponível em um ambiente intelectual europeu reticente no
tocante à tradição ocidental cujos alicerces assentava-se até o século XIX na
ciência e na Razão idéias e concepções que podiam servir ao seu projeto de
forjar a identidade nacional. Encaixava-se perfeitamente no seu raciocínio a noção
de caducidade e de perda de vigor da civilização ocidental, já que era o seu
objetivo definir a singularidade do país, contrapondo a um “outro”, que era a
“velha” Europa. Tornou-se viável, assim, contrapor a juventude de uma nação
cheia de vigor e de potencialidades à Europa “envelhecida” e “decadente”.
281
A idéia mais atraente para Bomfim, entretanto, consistiu na negação do
conceito de História Universal e na defesa do relativismo histórico. Ajustava-se ao
seu propósito de “redescobrir” as raízes da brasilidade a noção segundo a qual
povos e culturas existiam enquanto entidades circunscritas no tempo e no espaço
e, portanto, possuíam especificidades e estavam dotados de capacidade de auto-
expressão.
No tocante à revolução copernicana produzida na pesquisa histórica, no
entanto, é importante observar que há uma sutil diferença entre o argumento de
Spengler e as afirmações de Bomfim. O pensador alemão concebeu um sistema
desprovido de centro, pois a cultura ocidental não ocupava mais o lugar
279
Idem, p. 62.
280
HERMAN, Arthur. Op. cit., p. 259.
281
Analisando o novo nacionalismo brasileiro que emergiu no decurso da Primeira Guerra, Thomas
Skidmore afirmou: “Para esses brasileiros, a agonia da Europa era um depurativo. E encorajavam-
nos nessa análise intelectuais como Oswald Spengler, que prediziam abertamente e de há muito o
fim da cultura européia”. Cf. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro ..., p.
190.
119
privilegiado em relação a outras, como a da Índia, Babilônia, Egito ou China.
Relembrando, ele recomendava a adoção do método copernicano, o único que
afastava o subjetivismo e o preconceito, pois obrigava o pesquisador a estudar o
objeto pesquisado a partir de vários ângulos e não fechando o seu olhar
exclusivamente na sua visão de mundo. Em contraposição, o intelectual brasileiro
viu como procedimento justificável a adoção do ponto de vista subjetivo e assim
ficava o historiador livre para julgar a partir de suas concepções pessoais. Exigir o
“efetivo objetivismo” seria o mesmo que pedir, no âmbito individual, que o
“indivíduo [saísse] de si mesmo”.
282
Em outros termos, Bomfim sugeria o seguinte:
se as nações hegemônicas usam e abusam da história para exaltá-las e para
vilipendiar as outras, que faça o mesmo o historiador brasileiro, cabendo, pois, a
este enaltecer as tradições do seu país.
283
De tudo o que foi dito, fica a inquietante questão: como explicar esse neo-
romantismo de Manoel Bomfim? A dúvida deverá será esclarecida se pensarmos
no que disse o nosso autor à luz dos debates travados, nos anos 20, em torno da
“redescoberta” do Brasil.
Manoel Bomfim e a “redescoberta do Brasil”
A aproximação de Manoel Bomfim do Romantismo pode ser melhor
compreendida caso se pense no que ele disse relativamente aos assuntos,
propostas e debates que a década de 20 assistiu. Referimo-nos ao período
Modernista.
284
Lendo-se os textos O Brasil na América, O Brasil nação e O Brasil
282
BOMFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições e degradação política ..., p.
41.
283
Idem, p. 43.
284
Não será o nosso objetivo abordar temas quanto à periodização, à batalha contra os
“passadistas” e à crítica que hoje se faz à noção de “pré-modernismo”. No que concerne a este
último tópico, há quem discorde da periodização entre “pré” e modernista. Os críticos argumentam
que o chamado pré-modernismo é uma construção, resultante de uma batalha política-ideológica,
cujos vencedores foram os que são chamados de “modernistas”, os intelectuais e artistas que
participaram da Semana de Arte Moderna, em 1922. Os “vencedores” passaram a estabelecer a
periodização, os modelos de análise e os assuntos relevantes; consolidado a hegemonia, os
“modernistas” relegaram as manifestações culturais que foram produzidas antes de 1922 como
algo de pouco valor estético e de baixa inventividade. O passado do país passou a ser estudado
pelas “lentes do movimento de 1922” e ficaram ocultos “processos culturais relevantes que se
120
na história, percebemos nosso autor preocupado em participar das disputas
teóricas e políticas em que se envolveram historiadores, sociólogos, artistas e
escritores. A atmosfera política e cultural desse período favoreceu a fermentação
do debate em torno da brasilidade, a reflexão sobre as mazelas do país e a
elaboração de projetos de reformas. Se o modernismo é lembrado pelo que trouxe
de inovação e de ruptura, por outro lado, há a possibilidade pensá-lo no “sentido
de continuidade histórica”
285
, mais especificamente retroagindo ao Romantismo. O
neo-romantismo de Bomfim não se configurou em um caso isolado.
O nosso objetivo consiste em captar as sintonias e as antinomias entre as
proposições de Bomfim e o que poderíamos chamar de repertório temático que
circulou na década de 1920: 1) a tentativa de delinear a cultura e a civilização
brasileiras, baseada na dialética entre a razão local e a razão universal; 2) a “ida
ao povo”; 3) o nacionalismo; 4) o destaque para os índios como elemento
preponderante na formação híbrida da população brasileira; 5) a valorização da
intuição em detrimento da análise racional; 6) a busca da síntese da nação em
termos de “retratos do Brasil”; 7) a crítica aos adeptos da eugenia.
A “cultura” brasileira entre a razão nacional e a razão universal
A tradição do pensamento intelectual brasileiro bifurcou-se em duas
vertentes. Uma voltava-se para o Atlântico, visando encontrar a ligação entre a
sociedade e a cultura brasileiras e as bases civilizacionais européias. Outra foi
para o sertão em busca dos traços distintivos que teria dado ao país uma feição
própria. A primeira vertente via a dependência cultural como um fator positivo,
gestavam na sociedade brasileira, a rigor, desde a primeira década do século XIX”. Cf. HARDMAN,
Francisco Foot. Antigos modernos. In: Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992,
p. 290; MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: companhia das Letras, 2001, p.15-
16.
285
Sobre o assunto, ver CASTELLO, José Aderaldo. Modernismo ou neo-romantismo. Cultura, n
5, jan./mar. 1972. Do mesmo modo, é possível construir uma ponte entre os “modernistas” do final
do século XIX e os Modernistas da década de 1920, destacando concepções, temas e atitudes
comuns, ou influências e “precursores não reconhecidos” da época da Escola do Recife (como
Sílvio Romero e Araripe Jr.) sobre a geração de Mario e Oswald de Andrade. PAES, José Paulo.
Canaã e o ideário modernista. São Paulo: EDUSP, 1992; HARDMAN, Francisco Foot. Antigos
modernos. In: Tempo e História ...
121
razão pela qual deveria ser cultivada. A segunda realçou a cor local, a
autenticidade de nossa cultura.
286
O romantismo insistiu na formação de uma cultura brasileira, fundada nos
elementos da terra e, por isso, foi em busca das raízes da brasilidade. A criação
literária da metade do século XIX e a historiografia produzida dentro dos institutos
históricos e geográficos expressavam o momento em que o projeto centralizador
da Monarquia saiu vitorioso frente às reivindicações provinciais. A idéia de um
“Brasil” unificado e indiviso politicamente teve nas obras historiográficas e na
literatura os seus correspondentes. A ênfase nas raízes brasileiras fazia sentido
num contexto em que se afirmava a coesão nacional. Os historiadores do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro conectaram a idéia de nação brasileira à
colonização portuguesa e, nos seus discursos, o “outro” (os “bárbaros”) foi
identificado, no plano interno, aos índios e negros e, no externo, às repúblicas
espanholas.
287
Tratava-se, pois, de conectar as origens da brasilidade à matriz
luso-brasileira.
A crítica a esse pensamento veio com a chamada de “Geração de 1870”,
que contou com muitos intelectuais que gravitaram em torno da Escola do Recife.
Coube à geração de Sílvio Romero, Tobias Barreto e Joaquim Nabuco a iniciativa
de colocar em xeque os pressupostos que se tornaram hegemônicos na segunda
metade do século XIX. Se os “modernistas”
288
das últimas décadas do século XIX
e do começo do XX insistiram na necessidade de ser cosmopolita, ou seja, ser ao
mesmo tempo “homens do nosso século e do nosso país”, é porque a situação era
outra e diverso era o objetivo. Estava em jogo para essa geração o desejo de
conectar o Brasil, visto sob a ótica do atraso, ao Ocidente. Por isso, viu-se o
286
Sobre o assunto ver AZEVEDO, Fernando. Cultura brasileira. São Paulo: EDUSP, 1971.
(Obras completas, v. 13), p. 353-4; COUTINHO, Afrânio. A polêmica Alencar-Nabuco ..., p. 7;
BARROS, Roque Spencer Maciel de. A ilustração brasileira e a idéia de universidade ..., p. 12.
287
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional”. Estudos históricos, Rio de Janeiro:
FGV, 5-27, n 1, 1988 , p. 6 -7.
288
Foi José Veríssimo que denominou a geração de Sílvio Romero, Tobias Barretos, Araripe Jr,
Capistrano de Abreu de “modernista”. O Modernismo. In: VERÍSSIMO, José. História da
Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
122
esforço teórico e político de lutar contra o passado, pois este trazia à tona tudo o
que era identificado como empecilho para a modernização do país, seja na
economia, seja na política, seja na esfera cultural. Para acertar o relógio com o
Ocidente, de onde vinham as idéias, os valores e as ideologias, via-se como
necessidade inadiável a superação a Monarquia, a escravidão, o poder da Igreja e
o Romantismo. Nessa atmosfera de negação do passado, quase todos aderiram
ao ideário republicano, lutaram pela implantação do trabalho livre e viram no
romantismo apenas os “seus dons enganosos”.
289
A abolição, a República e a
imigração configuravam no seio dessa intelectualidade a materialização da
almejada “modernização” ou “atualização” do país.
É na Belle Époque que se percebe com clareza o mal-estar do homem
culto brasileiro, dividido entre Europa (o “universal”) e o Brasil (o “local”), tornando-
se evidente a ambigüidade do intelectual que queria pensar as mazelas sociais,
políticas, cultural, construindo propostas para transformar a sociedade e, ao
mesmo tempo, sentindo ou querendo pertencer a uma outra realidade: a européia.
Tobias Barretos publicava um periódico escrito em alemão numa pequena cidade
do Pernambuco e Joaquim Nabuco, na juventude, escrevia poemas em francês
tratando do conflito franco-germânico em torno da Alsácia-Lorena. Nabuco, em
seu livro de memórias, escrito depois do seu engajamento na causa abolicionista,
revelou sem rodeios sua convicção cosmopolita, ao referir-se à condição do
homem culto americano, que pertencia a duas tradições culturais: a da América,
sedimento novo e “flutuante” e a da Europa (as “camadas estratificadas”). A
européia predominava sobre aquela e, em conseqüência, a imaginação desses
intelectuais deixava-se atrair pelo universo cultural europeu. Daí nutrirem certo
desdém pelas raízes brasileiras.
Na perspectiva de Nabuco e de tantos outros de sua geração, o importante
era captar e realçar o “fundo comum de língua, religião, arte, direito e poesia” que
existia entre o Brasil e o Ocidente.
290
A luta política de Nabuco pela abolição tinha
289
A expressão é de Sílvio Romero. Academia Brasileira de Letras (Discurso pronunciado em 18
de dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha). In: ROMERO, Sílvio.
Provocações e debates. Porto: Imprensa Moderna, 1908, p. 358.
290
NABUCO, Joaquim. Minha formação ..., p. 42.
123
como objetivo criar as condições para o país participar do concerto das nações
capitalistas e democráticas. Seria o desabrochar de uma realidade embrionária e
latente, qual seja, a confirmação de que as bases civilizacionais do Brasil eram
européias. A proposição de Nabuco, compartilhada pela sua geração,
contrapunha-se aos românticos, os mesmos que queriam captar a matriz da
nacionalidade nos elementos da terra. Para a “Geração de 1870”, a “razão
nacional” deveria subordinar-se à “razão universal”.
A geração dos anos vinte do século passado procurou um equilíbrio na
dialética do localismo e do cosmopolitismo. O objetivo consistia em ir ao encontro
das raízes da brasilidade e, ao mesmo tempo, estar atento ao que existia de novo
na Europa, sobretudo na vanguarda parisiense. No primeiro momento o objetivo
foi o de alcançar a renovação estética e aí se deu o embate contra o que era visto
como “passadismo” (Romantismo, Naturalismo, Simbolismo e Parnasianismo). Em
um segundo momento, posterior a 1924, a problemática passou a ser outra:
291
tratava-se pensar a questão nacional, sem abandonar o ponto de vista
internacionalista. A criação de uma “cultura brasileira” consistia, assim, no primeiro
passo para garantir a entrada no concerto da civilização universal. Ser moderno
pressupunha integra-se ao Ocidente, mas essa inserção deveria se processar
desenvolvendo a nossa fisionomia nacional. Não se tratando, pois, de buscar as
raízes européias na constituição da civilização e cultura brasileiras, como desejava
Nabuco. Ser moderno era, pois, compatibilizar nacionalismo e cosmopolitismo.
A “ida ao povo”
A opção da geração “modernista de 1870” pelo cosmopolitismo, revelando o
desejo de estar à altura do século da eletricidade, do telégrafo, das fábricas, da
ciência, experimentou uma outra ambigüidade. Referimo-nos à relação
ambivalente entre a elite intelectual e o “povo”.
291
Eduardo Jardim de Moraes, em seu estudo sobre o Modernismo, distinguiu dois momentos no
movimento modernista: de 1917 a 1924, a ênfase recaiu na modernização do “nosso ambiente
cultural”; de 1924 a 1929, o foco principal concentrou-se na questão nacional. A brasilidade
modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978, p. 52.
124
Os homens cultos brasileiros, leitores de Taine, Renan, Lapouge,
Gobineau, estavam conscientes da origem mestiça da população brasileira,
sobretudo da influência africana. Mesmo admitindo a formação híbrida da
população, deixaram-se conduzir pelas teorias raciais e propagaram a idéia do
branqueamento, como foi o caso de Sílvio Romero. Joaquim Nabuco reconheceu
a importância dos escravos como aqueles que produziram a riqueza do país e por
isso mereciam a liberdade e deveriam ser integrados na sociedade hegemônica
como cidadãos. Esse discurso, no entanto, conviveu com o racismo, embora
muitos dos seus intérpretes queiram negar.
292
Na juventude, quando acabara de chegar da Europa, depois de ter contato
com a fina flor da intelectualidade francesa, Nabuco, durante a polêmica que
travou, em 1875, com José de Alencar, referiu-se à peça teatral deste último, O
demônio familiar
293
, cujo protagonista é um menino escravo. O futuro abolicionista
aludiu ao linguajar dos escravos que Alencar levou ao palco e arrematou: “já é
bastante ouvir nas ruas a linguagem confusa, incorreta dos escravos; há certas
máculas sociais que não se devem trazer ao teatro, com o nosso principal
elemento cômico, para fazer rir”.
294
Nina Rodrigues reconheceu a influência africana na formação “cultural”
brasileira, mas aceitou a concepção da suposta superioridade intelectual,
psicológica e cultural do homem branco.
295
Como o negro e seus descendentes
eram seres infantis, justificava-se a elaboração de uma legislação específica para
negros e mestiços.
296
Esses exemplos revelam o drama do homem culto brasileiro, dividido entre
dois mundos; e a Europa como modelo e base de inspiração. Mesclava, em
relação ao povo iletrado, viva simpatia e um certo horror ou vergonha. Era uma
visão ilustrada, de homens que se julgavam esclarecidos e que viam a civilização
292
A respeito do assunto, ver UEMORI, Celso Noboru. Joaquim Nabuco: lutas, propostas e
diálogos (1879-1888) ... p. 81.
293
A peça estreou em 1857 no Rio de Janeiro. ALENCAR, José Martiniano de. O Demônio
Familiar: comédia em quatro atos. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Serviço de
Documentação, 1957.
294
COUTINHO, Afrânio. A polêmica Alencar-Nabuco ..., p. 106.
295
Os africanos no Brasil...
296
As Raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil ..., p. 241-2.
125
como obra do homem branco. O homem pobre era o “outro”, que precisava ser
“civilizado” e a quem se via com certo desdém. Visto por este ângulo, o ponto de
vista dos “modernistas” do final do século XIX coincide com o dos historiadores do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: em ambos os casos era a elite
esclarecida, aquela que ocupava o topo da pirâmide social, que definia quem
poderia pertencer ou ficar fora da nação.
297
A geração modernista dos anos vinte rompeu com essa atitude. O “povo
brasileiro”, dizia-se, era a realidade encoberta, recalcada por séculos de cultura
importada, precisando ser redescoberto. As manifestações culturais da população,
tingidas pelas influências africanas e indígenas, constituíram-se em objeto de
pesquisa e serviram como inspiração para a literatura, a pintura e a música.
Redescobrir o “povo” significava “redescobrir o Brasil”, propósito que se afinava
com o intento de Euclides da Cunha ou de Nina Rodrigues, como lembrou Antonio
Candido.
298
O primeiro quis entender a vivência cultural e religiosa do sertanejo; o
segundo foi pesquisar a influência africana. Ambos foram em busca do “povo”,
servindo-se de instrumentos teóricos fornecidos pela ciência oficial européia e
deixaram-se levar pelo determinismo racial. Os modernistas dos anos vinte
também foram ao “povo”, mas sem recorrer ao aparato teórico em que se
basearam os autores que defenderam a suposta superioridade do homem
branco.
299
Esse fato explica-se, quiçá, por dois motivos: o descrédito das teorias
raciais naquele momento e a rejeição dos modernistas do “lado doutor”, da secular
influência estrangeira.
Nos anos vinte, Bomfim compartilhava com os intelectuais de sua geração a
vontade de “libertar as forças escondidas da nação” por meio da redescoberta do
Brasil “autêntico”, realidade que permanecera escondida por trás de uma realidade
construída a partir de pressupostos teóricos falsos, manipulados por intelectuais
que estiveram interessados em distorcer a “verdade”, a história e a tradição
brasileira porque estavam motivados pelo interesse de afirmar a superioridade dos
297
Para o IHGB, ver GUIMARÂES, Manoel Luís Salgado. Op. cit., p. 7.
298
Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8 ed. São
Paulo: TA Queiroz, 2000; Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro), p. 113.
299
Excetue-se um autor como Oliveira Vianna e sua tese da superioridade racial dos “arianos”.
126
países fortes ou a condição inferior (racialmente falando) dos não-brancos. Já no
livro de 1910, Através do Brasil, ele e Bilac queriam colocar as crianças, os seus
leitores, em contato com a “cultura popular”, exemplificado por canções de origem
africana e entoadas por um mulato.
300
Os autores tinham a intenção de revelar ao
leitor das cidades o folclore, cantigas, hábitos da gente do interior. Nesse intento
revelava-se a disposição de educar os leitores, o público infanto-juvenil, para
“abrasileirar” o brasileiro. A matéria-prima estava no interior, o qual despontou na
obra Através do Brasil como o cerne da nação, tal qual afirmara Euclides da
Cunha no livro Os sertões.
No livro de 1929, O Brasil na América, o nosso autor pretendia encontrar o
cerne da nacionalidade, a “alma brasileira”, no passado cabralino, no momento
inaugural em que se deu o encontro dos índios e dos europeus. A ênfase nas
manifestações populares do homem do interior e a insistência em voltar-se para o
passado colonial colocam Bomfim em sintonia com os intelectuais dos anos vinte.
Na obra O Brasil na América e nos textos dos modernistas destacou-se o Brasil
como mito, simbolicamente representados pelos “totens amazônicos” de Oswald,
Mário e Alcântara Machado ou o caboclo-tupi do verde-amarelismo e da Anta
301
. A
busca dessa força espiritual e instintiva, encoberta e redescoberta, recalcada e
revelada, teve no índio o elemento fundante. Aqui é possível vislumbrar o retorno
do Romantismo, que fora enxotado da vida cultural do país pelos epígonos da
Escola do Recife e negado pelos modernistas num primeiro momento. Como já foi
indicado, Bomfim participou também da retomada do Romantismo.
Acreditamos, no entanto, que é possível captar uma abordagem pessoal de
Bomfim relativamente ao assunto. Os modernistas e os românticos viram na
miscigenação entre os autóctones e os europeus a origem do brasileiro, que não
era nem índio nem português; ambas as correntes comungaram da concepção
segundo qual o que menos importava era se houve vencedor ou vencido.
Destacaram a vitória da civilização luso-americana, triunfo atingido pelo
desaparecimento dos “nativos” para dar nascimento ao homem brasileiro, como
300
Através do Brasil ..., p. 90-92.
301
BOSI, Alfredo. Moderno e modernismo na literatura brasileira. In: ______. Céu, inferno. São
Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 216
127
tipo mestiço.
302
Bomfim concordava com tudo isso, mas há uma peculiaridade em
sua proposição que queremos sublinhar. Tanto para um Alencar quanto para os
modernistas, o índio foi percebido como figura mítica, ou seja, como personagem
retirada da realidade histórica. Para Bomfim, que acreditava na importância da
história, ficou difícil pensar nos índios como uma pura abstração. Queria realçar e
reiterar o que disseram os românticos e os modernistas: a incorporação dos
nativos à vida colonial e a sua contribuição para a formação da “cultura brasileira”,
mas se viu diante da necessidade de abordar o assunto do ângulo da história e
não do mito. Daí a insistência em afirmar que não “houve extermínio” e que se
tratava de “deturpação” as afirmações que ligavam o morticínio dos índios às
incursões dos bandeirantes pelo sertão. Estes foram caracterizados pelo autor de
O Brasil nação como os agentes individuais que realizaram o ideal coletivo a
formação da nação. A necessidade de frisar a idéia da incorporação dos índios à
vida colonial, levou-o a negar enfaticamente que houve extermínio. Ao se sentir
obrigado a historicizar o assunto, chegou a justificar a escravização dos
“selvagens”. Reproduzimos a sua afirmação: “o índio é a possibilidade de explorar
a terra e de haver riqueza; e desde que a moral do momento admita a escravidão,
escravizavam-no, para tirar-lhe o trabalho”.
303
Se a presença do índio preponderou, ao lado do europeu, na formação da
“civilização brasileira”, relembramos, Bomfim sublinhou a pequena influência dos
negros. Isto chama a atenção pelo fato de se contrapor a algo que parecia
evidente para pessoas como Sílvio Romero e Nina Rodrigues. O primeiro propôs
aos pesquisadores que estudassem os africanos e seus descendentes não
somente do ponto de vista econômico, mas como “objeto da ciência”; o segundo
esmerou-se para descobrir e revelar o quanto a “civilização brasileira” estava
impregnada pela presença africana.
Em nosso autor, a insistência na predominância tupi tem a ver com o seu
esquema explicativo. Relembramos: no livro de 1905, A América Latina, ele
enfatizou os antagonismos e a oposição de interesses (colônia x metrópole,
302
CASTELLO, José Aderaldo. Op. cit., p. 125.
303
Cf. O Brasil na América ..., p.117. Lembramos que uma afirmação desse teor foi usada, muitas
vezes, pelos porta-vozes dos proprietários para justificar a escravidão dos negros.
128
colonizadores x índios, senhores x escravos), fatores responsáveis pelos conflitos
e instabilidade política. Mais de 20 anos depois, o enfoque recaiu sobre os fatores
que geraram uma sociedade harmônica e estável. Desse modo entende-se porque
Bomfim tentou convencer o leitor de que a influência dos africanos foi pequena,
inclusive em termos numéricos. Não tendo como se referir à escravidão sem falar
do antagonismo senhor x escravo, optou por “esquecê-lo”. Sua narrativa sobre a
formação da nacionalidade, por outro lado, privilegiou os índios porque estes eram
os “filhos da terra”, como tinham dito os românticos. A busca das raízes da
brasilidade promoveu a elevação dos autóctones à condição de matriz
determinante porque poderia servir de denominador comum quando se desejava
encontrar a singularidade do “ser” brasileiro. Nisto está a explicação para a
aproximação do nosso autor do Indianismo.
A insistência na temática indígena, nos anos vinte, tinha a ver com a
intenção de “redescobrir” o país e de enraizar a “cultura brasileira”. Por isso o
destaque para o mito tupi.
Outro aspecto a que serviu esse mito foi a de atender ao desejo conceber a
idéia de integração. Integrar o homem brasileiro e a sua “cultura” à terra; as
classes, os grupos, à nação; as “raças” que afluíram ao país em um todo
harmônico; o passado com presente; o moderno com o arcaico; o nacional e o
estrangeiro. Tanto na versão da Anta (e do verde-amarelismo) quanto da
antropofagia o índio foi visto como um denominador que uniu o “civilizado” e o
“selvagem”. Em termos simbólicos, o tupi apareceu nos manifestos dessas duas
correntes como o elemento que interagia com o colonizador, de forma pacífica ou
violenta, devorando-o e integrando-o.
304
Para Plínio Salgado, os índios eram uma
raça assimiladora, não tinham preconceitos e, ademais, quebravam as
especificidades das outras raças com as quais entrava em contato. Se eles
desapareceram fisicamente, sobreviveram nas “veias do sangue branco”.
305
O
influxo do europeu, africano, asiático não destruiu o “sangue” tupi, do qual formou-
304
Para o “Verde-amarelismo” a anta era um animal pacífico; o jabuti, símbolo dos Antropofágicos,
era considerado um animal violento.
305
MORAES, Eduardo Jardim de. Op. cit., p. 132.
129
se a nacionalidade.
306
Já Oswald de Andrade pensou a relação entre o
colonizador e os “selvagens” do ângulo da antropofagia: deglutição violenta, mas
com a absorção de certos aspectos do “devorado”, mesclando negação e
aceitação. No começo da década de 30, Plínio e Oswald seguiriam caminhos
políticos diferentes. O primeiro fundando e chefiando o Integralismo e o segundo
filiando-se ao Parido Comunista. Porém, nos anos 20, havia algo que os unia
teoricamente: ambos acreditavam na mesma forma de conhecer a brasilidade.
Manoel Bomfim compartilhava com os modernistas esse desejo de
“redescobrir” o país, a sua “cultura”, definir a constituição da “alma do brasileiro” e
tentar captar o fator que teria forjado o sentimento de pertencer à comunidade
nacional. Dessa perspectiva, entende-se a centralidade do mito indígena e a
retomada do Romantismo no livro O Brasil na América. Como já foi dito, neste livro
os índios foram caracterizados como a “raça” que assimilava e deixava-se
assimilar e que esta característica sobreviveu na “alma do brasileiro”. Tal
proposição tinha a finalidade de ratificar uma noção bastante divulgada em sua
época: a de que o brasileiro nasceu do caldeamento de raças, o que lhe
proporcionou um caráter plástico, assimilador, formando-se assim um povo
predisposto a aceitar o “outro”, absorvê-lo e modificá-lo. A mestiçagem permitia
valorizar o país relativamente à Europa. Esta foi associada à decadência e à
estagnação; o Brasil, à joviabilidade e à potencialidade de renovação.
307
As bases
do progresso estavam no passado, daí a necessidade de enaltecer a tradição, na
qual estavam depositadas as fontes da renovação, “estímulo e orientação”.
308
Retratos do Brasil
306
CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo
hipertardio. 2 ed. Belo Horizonte: Una Editora; São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 1999,
p. 193.
307
A respeito afirmou Manoel Bomfim: “É mentira que as camadas populares sejam impermeáveis
ao progresso. Dificilmente se encontrará povo mais plástico e adaptável. Isto lhe vem, certamente,
dos cruzamentos extensos em que ele foi se formando, sem qualquer manifesta tendência à
imobilidade” Cf. O Brasil na história ..., p. 245.
308
BOMFIM, Manoel. Op.cit., p. 15. A valorização da mestiçagem, a idéia do índio como “raça”
assimiladora e assimilável, ou como matriz dominante da formação mestiça do brasileiro e a
glorificação do passado colocam o Bomfim da maturidade muito próximo de Plínio Salgado, que
nos anos 30 liderou um movimento de direita. Porém, essa proximidade não permite dizer que
Bomfim tivesse qualquer simpatia por regimes fascistas.
130
A obra O Brasil na América pode ser pensada em comparação com os
ensaios que foram produzidos na década de 20, como Retrato do Brasil e
Macunaíma. A época foi marcada pela vontade de “redescobrir” o Brasil, de tentar
encontrar os fatores determinantes do seu atraso e interrogar se este era destino
ou contingência e, portanto, se havia possibilidade de redenção. Em Mário de
Andrade, Paulo Prado e Manoel Bomfm havia o desejo comum de delinear o
caráter do brasileiro, ou seja, de compor o seu retrato psicológico e moral.
Prado localizava no passado colonial a chave para compreender a
formação do Brasil e do povo. A cobiça pelo ouro e a volúpia do colonizador
português definiram a origem e o desenvolvimento do brasileiro na colônia.
Luxuria, apatia, melancolia, carência de energia física e mental e instabilidade
caracterizavam o “ser” do brasileiro.
309
No seu argumento detecta-se a insistência
em afirmar, tendo como elemento contrastante os Estados Unidos, o que teria
faltado à nossa formação. Na Nova Inglaterra, o elemento religioso (o puritanismo)
e “a hierarquia social dos velhos pioneiros” garantiram a formação de um povo e
de uma nação estáveis e dotados de forte sentimento de coesão coletiva.
310
O
Brasil, em contraste, não viu nascer um fator estabilizador, seja no aspecto
religioso, cultural, intelectual ou político. Mesmo a manifestação do sentimento
nacional se vislumbrou tão-somente em dois momentos: na luta contra o invasor
holandês e na expansão geográfica.
311
Na colônia os homens motivavam-se preponderantemente pela cobiça,
inclusive os bandeirantes. Daí a ausência de ligação sentimental com “o torrão
natal”.
312
Se Paulo Prado reconheceu a origem e formação mestiça da população,
insistiu na idéia de instabilidade e conflitos étnicos: o mulato sentia-se inferior ao
branco rico, desprezava o mameluco e vangloriava-se de não ter ascendentes
índios
313
..Em seu Retrato o país e o povo foram delineados na perspectiva das
forças centrífugas, do que dispersava, do individualismo (“vida isolada e livre do
309
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. 5 ed. São Paulo: Editora Brasiliense Ltda, 1944.
310
Idem, p. 200.
311
Idem, p.133-134.
312
Idem, ibidem.
313
Idem, p. 137.
131
colono”)
314
e da falta de vida coletiva. Servindo-se de uma imagem metafórica,
Prado explicitou a sua opinião sobre o futuro do Brasil: “não progride; vive e
cresce, como cresce e vive uma criança doente no lento desenvolvimento de um
corpo mal organizado.”
315
Esse retrato pessimista e sombrio de nossa gente tinha algum grau de
parentesco com Urupês de Monteiro Lobato
316
e compartilhou com Mario de
Andrade a noção segundo a qual “o brasileiro não tem caráter”. A obra
Macunaíma confirma a ausência de um traço definidor. Por ter se originado de
matrizes diversas o brasileiro seria múltiplo, incoerente, desencontrado.
317
O perfil
do brasileiro teria se definido desde o início da colonização pela síntese das três
raças.
Manoel Bomfim quis criar uma concepção de nação e de povo edificantes,
de acordo com a sua perspectiva nacionalista. Na sua síntese, a nacionalidade
formara-se já em meados do século XVII, no momento em que os “brasileiros”
enfrentaram os estrangeiros para manter a integridade territorial. No período
colonial definira-se a nação como entidade homogênea, o povo (resultado da
mestiçagem do branco com o índio), bem como a tradição. Sua proposição
diferencia-se, pois, de Paulo Prado. A nação-sujeito modelava as consciências,
produzindo coesão coletiva, inibindo, assim, o individualismo. Na obra O Brasil na
América os indivíduos atuaram em prol do ideal coletivo, sejam os bandeirantes,
sejam os homens que lutaram contra os invasores estrangeiros. A nação e o povo
existiam já na colônia como entidades formadas e definidas. Desse modo, o país
não precisava criar uma tradição, pois esta já existia e sinalizava os rumos a
314
Idem, p. 200.
315
Idem, p. 204.
316
A relação entre parasitas e parasitados permite comparar Bomfim com Monteiro Lobato. É o
que fez Silviano Santiago. O autor de Urupês utilizou em seus contos a analogia entre organismo
biológico e social. Na sociedade e na natureza agiam os "depredadores", os que sugavam a seiva
dos hospedeiros e tirava-lhes a vida. O parasita é o caboclo "indolente", "explorador do trabalho
alheio", os "neros de pés-no-chão" incendiando a serra da Mantiqueira. Para o "fazendeiro
malogrado", era o caipira do Vale do Paraíba (personificado no Jeca Tatu) o responsável pela
decadência e a ruína dos fazendeiros. Para Bomfim, o parasita era a classe dominante que vivia às
custas da exploração do trabalho alheio e era incapaz de viver sem ele. Um dínamo em
movimento. Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 28.6.1998, p. A 1-5.
317
BOSI, Alfredo. Situação de Macunaíma. In: ____. Céu e inferno ..., p. 201.
132
serem seguidos, tendo em vista o progresso social, político e moral. Se é preciso
pensar no futuro, em avançar, o passado não pode ser esquecido, pois é nele que
estão os valores que precisam ser reforçados e apurados.
318
Opondo-se à proposição de Prado, nosso autor insistiu nos fatores que
favoreceram a coesão entre os homens e destes com o solo e com a “cultura”
brasileira. Bomfim quis afirmar que a nação tinha tradição, raiz cultural e caráter
específico.
319
Identidade paulista e identidade nacional
Digna de nota é a similaridade, em alguns aspectos, entre o discurso
nacionalista de Bomfim e a tese defendida, desde o final do século XIX, por uma
vertente da historiográfica que queria construir a identidade paulista. São Paulo se
destacava, no cenário da República, no ponto de vista dessa vertente, pela
prosperidade econômica, por ser branca, por ter ascendentes ilustres (os
bandeirantes) e por ter ficado livre do “flagelo” da mistura com os negros, já que
os africanos, diferentemente do resto do Império, foram introduzidos tardiamente
318
Essa apologia do passado precisa ser vista com muito cuidado, pois há nas três obras da
maturidade duas tradições: a primeira, que tinha a ver com a consciência da nacionalidade e o
ideal republicano, conferia identidade, afinidade de propósitos no interior da sociedade. Esta
precisava ser recuperada e cultivada, pois ela encarnava a “essência”, os “motivos íntimos” do
brasileiro. A segunda referia-se às forças, encarnadas no Estado bragantino, que reiteradamente
sufocaram a vida democrática, impedindo o seu desabrochar. Este será o assunto do próximo
capítulo.
319
Comparar Paulo Prado e Manoel Bomfim significa fazer um paralelo entre duas biografias que
possuem em comum apenas o interesse pela questão nacional. Bomfim era filho de um ex-
vaqueiro sergipano que posteriormente se tornaria proprietário de terras e comerciante. Prado
pertencia à aristocracia paulistana ligada à empresa de café, freqüentador dos círculos intelectuais
paulistano e parisiense, empresário e mecenas. Bomfim fez apenas duas viagens para o exterior e
jamais revelou admiração por algum país estrangeiro. A homenagem ao Sergipe (no livro A
América Latina) e a Frei Vicente do Salvador, que teria sido o “primeiro definidor d tradição
brasileira”, (no livro O Brasil na América) são a prova do valor que ele dava à pátria. Do que foi
dito, pode-se inferir dois pontos de vista sobre o povo. Bomfim tinha mais facilidade para se
identificar com a população, ainda que ele tenha pertencido à elite intelectual. Prado exemplifica o
brasileiro culto que se sente exilado em seu país. Daí a dificuldade para enxergar com simpatia o
povo que é, ao cabo, o “outro”.
133
na capitania – lembremo-nos de que Bomfim insistiu na pouca influência negra na
formação da população).
320
Nos anos 20, a figura emblemática a este respeito era o historiador Alfredo
Ellis Jr, preocupado em destacar a diferença de São Paulo em relação ao
Nordeste açucareiro e, em segundo, de justificar a liderança paulista. A insistência
em reconstruir a história da formação nacional, apagando conflitos e diversidades
internos (regionais inclusive) não impediu Bomfim de compartilhar certas posições
com Ellis Jr. Este e Bomfim (no livro O Brasil na América) estavam de acordo em
muitos aspectos, como a exaltação dos paulistas (os bandeirantes), a
preponderância da mestiçagem luso-tupi e a pouca importância do negro na
formação da cultura (paulista ou brasileira).
O discurso regionalista do historiador coincidiu com o discurso nacionalista
de Bomfim. Ambos ficaram lado a lado ao afirmarem que o caráter do brasileiro
não resultou do encontro das três raças tristes, contrapondo-se a uma outra
vertente paulista, representada por Paulo Prado e Cassiano Ricardo.
321
Ambos
estavam preocupados com a questão da identidade – paulista (Ellis Jr.) e nacional
(Bomfim). O Primeiro produziu uma imagem positiva dos paulistas e Bomfim, do
outro lado, enalteceu o povo brasileiro.
A história regional não se encaixava no discurso nacionalista de Bomfim,
pois a idéia-chave que está nos livros da década de 1920 é a da nação como
organismo e cuja história não testemunhou movimentos separatistas. A
proximidade com uma visão paulista da história do Brasil revela, mais uma vez,
que Bomfim apropriou-se de uma idéia que, originalmente, fora elaborada para
outra finalidade.
Na contra-corrente da eugenia
320
Sobre a identidade paulista, ver ADDUCI, Cássia Chrispianiano. A “Pátria Paulista”: o
separatismo como resposta à crise final do Império brasileiro. São Paulo: Arquivo do Estado,
Imprensa Oficial, 2000, p. 103.
321
Sobre Alfredo Ellis, Jr, ver MONTEIRO, John Manuel. Caçando com gato. Raça, mestiçagem
e identidade paulista na obra de Alfredo Ellis Jr.,Novos Estudos Cebrap, São Paulo, mar. 1999, n
38, p. 79-88.
134
Nesse ponto da discussão, cabe indagar a respeito das implicações do
sentimento nacionalista para o pensamento de Bomfim. O nacionalismo pode ser
apontado como motivo, entre outros, do reconhecimento e exaltação da mistura
racial. A nação brasileira teria se formado como uma comunidade composta por
várias etnias. Ademais, a população, como tipo etnográfico, estava incompleta,
inacabada, pois “novas e repetidas” misturas se fariam. As sociedades
miscigenadas caracterizam-se pela capacidade de destruir e reconstruir tradições,
instituições, valores e costumes, ficando aptas para aceitar novidades, uma vez
que o apego ao passado não seria empecilho para ir além. Mistura era sinônimo
de vitalidade, de potencialidade para inovar e progredir e não, como afirmavam,
desde o século XIX, os adeptos de Gobineau e Agassiz, instabilidade psíquica e
decadência social e cultura. No livro O Brasil na América, Bomfim, contrapondo-se
à voz corrente, além de exaltar a mestiçagem como elemento definidor da
identidade nacional, sentenciou: a população brasileira jamais será um tipo
branco. O Brasil se construiu (o processo não se completara) na confluência de
tradições, costumes, instituições diversas e o brasileiro se definia pelo contraste,
pois não era português, nem índio e nem negro, mas a síntese das três matrizes.
Síntese e contraste não significavam que ele não tivesse um perfil definido. Pelo
contrário, ele tinha “valor próprio”
322
, ou seja, possuía singularidades.
Ao afirmar que o Brasil era mestiço, jamais seria branco “puro” e que a
formação cruzada da população não se completara, Bomfim ficava quase sozinho
em meio à proliferação do racismo. Nos anos 20, lembre-se, a eugenia era uma
idéia bastante difundida na América do Sul (Brasil, inclusive), na Europa e nos
Estados Unidos. Neste país como aqui, relacionava-se com à questão da
imigração. O debate envolvia intelectuais e políticos, os quais queriam definir
quem eram os estrangeiros desejáveis e indesejáveis. Em 1924, foi aprovada a
Immigration Restriction Act nos Estados Unidos. Este dispositivo legal passou a
ser modelo para vários países, inclusive para o Brasil. A eugenia foi aplicada em
vários estados norte-americanos, na Dinamarca e na Suíça. Nos anos 20,
organizou-se no Brasil um movimento eugenista, muito embora aqui não se tenha
322
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América ..., p. 184.
135
implantado o que se viu nos Estados Unidos, como a esterilização compulsória e a
proibição de casamentos inter-raciais.
323
Nos Estados Unidos estava em jogo a
preservação do “caráter e da estrutura social do país”.
324
No Brasil, também havia preocupação em selecionar os imigrantes,
motivada, sobretudo, pela possibilidade de chegarem ao país negros provenientes
dos Estados Unidos ou da África. A questão da imigração ainda estava associada
ao “perigo amarelo”, à eventual formação de “quistos” (caso dos japoneses e
alemães) de estrangeiros inassimiláveis, à vontade hegemônica de branquear a
população com aumento do contingente europeu (garantindo-se a supremacia
demográfica dos brancos e a preservação da hierarquia racial). O debate girava
em torno das noções de civilização, progresso e estabilidade política e social. Um
país cada vez mais branco seria viável com a chegada maciça de europeus,
desde que fossem selecionados os mais assimiláveis e os que não
representassem ameaça à ordem pública.
325
Poucos se opuseram ao paradigma racial vigente, tanto nos Estados
Unidos como no Brasil. Lá, sobressaiu a figura de Franz Boas e aqui, Roquete-
Pinto. Ambos criticaram os eugenistas. Argumentaram que faltava base científica
para sustentar a tese, segundo a qual, os “elementos melhores” deveriam ser
preservados e os “inadequados”, eliminados. A questão colocada pelos dois
residia no seguinte: como definir o critério, em se tratando de pessoas e não
animais ou vegetais, a partir do qual seriam classificados os melhores e os
“inadequados”.
326
Boas e Roquete-Pinto foram interlocutores importantes para
Gilberto Freyre chegar ao seu “achado” (a mestiçagem como elemento definidor
da identidade nacional). Ao unir casa-grande e senzala, sobrados e mucambos,
Freyre “oferece ao brasileiro uma carteira de identidade”, pois a mestiçagem teria
323
PALLARES-BURKE. Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo:
Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2000. p. 291.
324
Idem, p 294.
325
RAMOS, Jair de Souza. Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais e a
categoria de imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20. In: MAIO,
Marcos Chor; SANTOS, Roberto Ventura (Orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ/CCBB, 1996, p. 59-82.
326
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Op. cit., p. 338.
136
produzido a unidade nacional.
327
Mas há um aspecto da trajetória intelectual de
Freyre que é preciso mencionar. Antes de ter transitado do biológico para o
cultural, de ter se aproximado das teorias de Boas e da antropologia de Roquete-
Pinto, de escrever Casa-Grande e Senzala, o jovem Freyre simpatizara com os
eugenistas norte-americanos, idealizara uma população brasileira mais branca
(possibilidade tornada real com a imigração de europeus), teve certa simpatia pela
Klu Klux Klan.
328
Comparando-se as trajetórias intelectuais de Freyre e Bomfim observa-se o
quanto este discrepou em relação aos intelectuais de sua geração. Freyre deixou-
se influenciar, em um período de sua vida, pela força das idéias racistas que
pairaram sobranceiras no Ocidente. As idéias de Bomfim sofreram mudanças,
inflexões, mas a atitude contrária aos racistas estava no jovem autor de A América
Latina e permaneceu no intelectual maduro que escreveria a trilogia sobre a
formação histórica do Brasil (O Brasil na América, O Brasil na história e O Brasil
nação). O sentimento nacionalista, outro aspecto que o acompanhou durante toda
a vida intelectual de Bomfim, ajudou a ser “do contra” também em se tratando de
se opor aos racistas. Para Bomfim, a nação deveria ser a comunidade de todos as
pessoas, sem exceção. Pelo menos foi o que disse no livro O Brasil na América.
329
Nacionalismo
Tentamos mostrar, neste capítulo, que há “dois” Bomfins o autor da obra
A América Latina e o do O Brasil na América. A questão que precisa ser
enfrentada é a seguinte: por que o nosso autor mudou de ponto de vista? Existem
casos de intelectuais que mudaram de opinião ao passarem por momentos
revolucionários. A respeito do tema, temos, por exemplo, a explicação de Lukács
para a mudança de rota de autores como Guizot e Carlyle, posteriormente à
327
Ortiz, Renato. Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional. In: ______. Cultura brasileira e
identidade nacional ..., p. 42.
328
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Op.cit., p. 272, 273, 274.
329
Essa afirmação revela que o nacionalismo de Bomfim não se aproximava da xenofobia, no
entanto, é preciso fazer uma observação. No livro O Brasil nação, o autor abordou o tema da
imigração e mostrou-se reticente quanto à chegada de estrangeiros. Abordarei o assunto no
capítulo 4.
137
Revolução de 1848. O primeiro, antes de 1848, foi um “daqueles notáveis
historiadores franceses, que descobriram cientificamente a função da luta de
classes na história das origens da sociedade burguesa”.
330
Depois da Revolução,
esmerou-se em apontar o “equívoco” desta e em defender a necessidade da
monarquia de julho. Thomas Carlyle deixou de ser um corajoso e brilhante crítico
das mazelas que o capitalismo era capaz de produzir para se tornar, depois do
episódio de 1848, um apologista da “ordem” e do sistema capitalista
331
. Em outros
termos, esses “ideólogos burgueses” abandonaram a análise em base materiais,
científica, da sociedade capitalista, para abraçar mistificações em uma “fuga
pseudo-histórica”, e passaram a defender a idéia de compromisso entre a ordem
burguesa e o que restou do feudalismo.
No debate sobre a relação entre os intelectuais e as classes a reflexão de
Mannheim, Lukács, Michael Löwy deixaram pistas esclarecedoras. Para
Mannheim, os intelectuais constituíam um “estrato desamarrado, relativamente
sem classe”.
332
Formariam um grupo razoavelmente homogêneo e menos
identificado a uma classe do que os que “participam do processo econômico”.
333
Educação e convivência numa atmosfera cultural comum tenderiam eliminar “as
diferenças de nascimento, status e riqueza”.
334
Isto não é o mesmo que dizer que
os intelectuais tenham rompido todos os laços de classe.
Ao abordar os casos de Guizot e Carlyle, Lukács demonstra que um
intelectual da classe dominante pode adotar, ainda que temporariamente, a
perspectiva do proletariado. Michael Löwy está de acordo com Lukács e concorda,
em parte, com a observação de Mannheim no tocante à relação entre a categoria
dos intelectuais e as classes. E chama a atenção para um aspecto que teria
escapado ao autor de Ideologia e utopia: a “flutuação é um estado temporário”
335
330
Cf. Luckács, G. Marx e o problema da decadência ideológica. In: COUTINHO, Carlos Nelson
(org). Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 51.
331
Idem, p. 58-59.
332
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia ..., p. 180.
333
Idem, p. 180.
334
Idem, p. 181.
335
LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen. 5 ed. São
Paulo: Busca Vida, 1991, p. 86.
138
no campo da luta de classes, pois cedo ou tarde, o intelectual flutuante terá de
decidir entre uma classe e outra.
Do que foi dito acima, seria legítimo afirmar que a antinomia de Manoel
Bomfim poderia ser explicada recorrendo-se à idéia de “flutuação temporária”? Na
obra A América Latina, sua análise procurou captar a emergência da nação,
focalizando as relações sociais e econômicas. Essa perspectiva, fundada em
bases matérias, possibilitou ao autor revelar os conflitos entre o colonizador e o
colonizado ou entre a classe proprietária e os escravos. Nesse texto, o enfoque
recaiu sobre os interesses que colocaram em campos opostos indivíduos, grupos
e classes. No livro O Brasil na América, em contraposição, reconstruiu o passado
colonial e transmitiu a idéia de conciliação e de harmonia, abdicando da análise
em bases materiais e substituiu os nexos políticos e econômicos por vínculos
simbólicos. Essa reviravolta permitiu trocar a concepção de luta de classes pela
idéia de integração (daí a retomada do romantismo e a importância do indígena
como elemento integrador). Da constatação, torna-se factível a hipótese segundo
a qual ele teria abandonado a perspectiva das “classes desprotegidas” para
abraçar os interesses da classe dominante? Seria a trajetória de Bomfim a
exemplificação do intelectual oriundo da classe dominante que, temporariamente,
escapa do círculo de interesse de sua classe e passa a defender os “oprimidos” e,
mais tarde, retorna à sua origem?
A meu ver, a questão do “desvio” de Bomfim não encontra explicação no
argumento que se alicerça na perspectiva de classes. Entende-se a sua antinomia
se pensarmos no que ele afirmou, em O Brasil na América, do ângulo da
exacerbação do sentimento nacionalista, sobretudo depois da Primeira Guerra.
A fermentação nativista que se seguiu à Guerra pode ser vista na formação
da Liga da Defesa Nacional, criada no início de 1916 tendo à frente Olavo Bilac
, a Escola de Civismo, a Revista do Brasil, criada em 1916 e a Liga Nacionalista,
fundada em meados de 1917. Os modernistas, sobretudo depois de 1924, em seu
empenho pela “redescoberta do Brasil”, foram fortemente influenciados pelo
nacionalismo. Em todas essas manifestações depreende-se a intenção de evocar
139
as tradições, ir ao encontro de “nossa terra e de nossa gente”, do folclore, do
homem do interior, objetivando fomentar a consciência e a coesão nacionais.
Buscavam-se os elementos que possibilitariam criar a idéia de um país integrado.
Daí o abandono da dicotomia norte/sul, sertão/litoral, substituída pela oposição
entre o genuinamente nacional e a cópia do estrangeiro.
336
O desejo de revelar ao
brasileiro as coisas do Brasil e criar a consciência do valor do país e do povo
promoveu a exaltação dos bandeirantes, a valorização da mestiçagem e de tudo
que dizia respeito ao “autenticamente” brasileiro, originando-se daí a suspeita ou
rejeição do cosmopolitismo. É nessa atmosfera cultural que se entende a
revalorização do romantismo, sobretudo o indianismo, pois se almejava captar a
cor local, os elementos que constituíam a nossa especificidade.
Compartilhando a mesma aspiração nacionalista com intelectuais, artistas e
militares
337
de sua geração, Bomfim quis intervir politicamente no debate,
transformando o “ato da fala” em ação.
338
O seu discurso pode ser visto como uma
prática política-pedagógica destinada a educar o brasileiro pelo contato com as
coisas da pátria. Nesta perspectiva exacerbadamente nacionalista foi produzido o
livro O Brasil na América. Lendo-se esta obra com certo distanciamento crítico não
há como negar que Bomfim produziu uma concepção mítica sobre a história
colonial brasileira e o que ele disse poderia alimentar discursos xenófobos e
autoritários.
339
Tomado pelo desejo de criar um discurso nacionalista, capaz de seduzir
corações e mentes, nosso autor negou o que afirmara em 1906 em uma carta
escrita para rebater timidamente a crítica de Sílvio Romero ao seu livro América
Latina. Faltou a Sílvio Romero, argumentou Bomfim, o “método científico de
336
LUCA, Tânia Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação, p. 201. São
Paulo: Editora Unesp, 1999.
337
Lembre-se que, ao longo dos anos vinte, os “tenentes” adotaram posições nacionalistas.
338
Segundo Quentin Skinner, o discurso, além de ter um significado, é “também uma ação”.
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Quentin Skinner. In: ______. (Org.). As muitas faces da
história. Nove entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 332.
339
José Carlos Reis, em seu texto sobre a obra de Bomfim, indagou se o autor não teria criado
uma idéia mítica, idílica da identidade nacional brasileira e se as suas concepções não estariam
jogando lenha na fornalha de propositores de governos autoritários, os quais poderiam encontrar
no que ele disse justificação para os seus propósitos. Manoel Bomfim e a identidade nacional. In:
LOPES, Marcos Antônio (Org). Grandes nomes da história intelectual..., p. 503.
140
pensar e julgar”.
340
Ora, a na composição d’O Brasil na América esteve ausente o
tal “método científico” antes defendido com tanto ardor. Esse fato explica-se tendo
em vista o seu objetivo: produzir uma imagem positiva, até mesmo apologética, do
país. Para realizar esse intento, precisou abandonar a análise econômica e
política, cujo foco recaíra, no livro A América Latina, sobre os interesses materiais
e os antagonismos que atravessavam a sociedade brasileira.
Para criar uma concepção edificante do país, ele aderiu à perspectiva
cultural e parece ter seguido a sugestão de Renan, para quem “L’oubli, et je dirai
même l’erreur historique, est un facteur essentiel de la création d’une nation
(...)”.
341
340
Uma carta: a propósito da crítica do Sr. Sílvio Romero ao livro A América Latina. Os Anais, Rio
de Janeiro, ano II, nº 74, 1906.
341
Renan, Ernest. “Qu’est-ce qu’une nation? In : Renan, Ernest Discours et conférences ..., p.
284-285.
141
Capítulo 4
O Estado bragantino contra a Nação
Nações
Neste capítulo, o nosso objetivo será o de abordar a relação entre Estado e
“nação” na obra historiográfica de Manoel Bomfim. Preliminarmente é preciso
relembrar que o conceito de nação não tem o mesmo significado comparando-se o
seu primeiro livro A América Latina (1905) e as obras que foram escritas mais de
duas décadas depois (O Brasil na América, O Brasil na história e O Brasil nação).
Em A América Latina a nação foi definida como um organismo mal-formado,
doente, debilitado, atravessado por antagonismos e conflitos. Nos outros livros,
Bomfim construiu a imagem de uma entidade que nasceu e se desenvolveu como
um organismo homogêneo, uno, sem contradições.
Para o nosso autor, a nação possuía uma “essência”, uma “alma” ou
“motivos internos”.
342
A nação ou o indivíduo definia-se pela síntese de motivações
ou tendências. O desequilíbrio seria provocado pela perda da razão. No indivíduo,
o desequilíbrio ocorre com a “perda da unidade mental”.
343
Já o organismo
nacional se desequilibra quando, por exemplo, um grupo social faz prevalecer o
seu interesse particular em detrimento da sociedade ou quando uma força exterior
a desvia do caminho traçado de acordo com os seus “motivos internos”. Na
pessoa o egoísmo vence o altruísmo; na sociedade ocorre a perda de uma grande
novidade da vida moderna, que é a noção de que indivíduos e grupos devem viver
em harmonia e que têm o direito de reivindicar a igualdade política e a justiça. A
evolução de um e da outra deve dar-se em estrita obediência com a nação,
“mantendo a “essência de si mesma”.
344
A quebra dessa regra configura-se em uma patologia. O indivíduo, centrado
em si mesmo, isola-se e deixa de participar da sociedade a que pertence. A
342
BOMFIM, Manoel. O Brasil nação ..., p. 138.
343
Idem, p. 137.
344
Idem, p.138.
142
nacionalidade, por sua vez, desvirtua-se ao negar a sua “essência” e é obrigada a
trilhar um caminho diferente da tradição à qual estava ligada.
Estado versus nação
Nosso autor gostava de pensar e expor o seu raciocínio por meio da
construção de bipolaridades. Opôs colônia e metrópole, senhor e escravo, parasita
e parasitado. Interessa para este capítulo a oposição entre nação e Estado.
Aquela foi caracterizada como uma entidade natural, criada pelos brasileiros,
enraizada na tradição, na terra e na cultura. O Estado, por sua vez, era o invasor,
a antinação, o espoliador, o parasita, o usurpador, o vírus que tomou conta de um
organismo saudável. A nação brasileira foi construída de baixo, pela sociedade.
Os interesses de uma não eram os do outro. A hipertrofia do Estado implicava o
enfraquecimento da nação.
No esquema explicativo de Bomfim (penso especificamente nas obras O
Brasil na história e O Brasil nação) a relação binária Estado/nação estruturou a
argumentação. Em outros termos, tudo o que se referia ao primeiro dizia respeito
ao negativo; por outro lado, à segunda ele agregou noções que remetiam à
positividade. Em sua recriação da história do Brasil, contrapôs Estado e nação
como se fossem dois campos de força; a dicotomia serviu de parâmetro para o
autor delinear personagens, movimentos políticos, acontecimentos, os quais
referiam-se ou à nação e, portanto, ao “povo”, à liberdade, à justiça, à igualdade;
ou ao Estado e, conseqüentemente, à opressão, à injustiça.
O Estado apareceu representado pelos reis da dinastia dos Braganças (D.
João VI, D. Pedro I e D. Pedro II) e associado à corrupção, ao fisco, à exploração
da riqueza colonial, ao estado policial, à miséria social e cultural da população,
enfim, à dissolução das “boas energias”
345
da nação. As ações maléficas
promovidas pelo Estado contra a nação poderiam ser notadas na tentativa de
aniquilar a vida municipal que, segundo Bomfim, deu aos ingleses a capacidade
ser “povo livre” e que existiu algo parecido nos primeiros séculos do Brasil-
345
Idem, p. 58.
143
Colônia.
346
Por ser um corpo estranho e ilegítimo ele educou o “povo” para a
desobediência às leis e a predispôs às ações armadas, atitudes que negavam o
“caráter” pacífico, o qual fora forjado pela mestiçagem. Por ser a força que
trabalhava pela manutenção do status quo, o Estado abafou a tendência do
brasileiro para assimilar o novo, de progredir no sentido social e político
(relembrando que também essa característica foi o resultado da mestiçagem, que
possibilitou a fusão de povos que aceitaram sem freios o “outro”).
Em sua incursão pela história, Bomfim realçou a aspiração da
nacionalidade em choque com a monarquia, seja a que precedeu a
Independência, seja a que sucedeu. É nessa perspectiva que ele estabeleceu a
cronologia e delineou os “fatos decisivos” da história da Colônia e do Império. Em
seu esquema explicativo, merecerem destaques os embates travados entre a
aspiração do Estado Bragantino e a vontade da nacionalidade. As revoluções de
1817, 1824 e 1848, todas ocorridas em Pernambuco, as disputas políticas no
interior da Assembléia Constituinte, o movimento político entre 1926 e 1931, ano
da abdicação de D. Pedro I, a atuação da imprensa radical, os levantes de várias
províncias durante a regência expressavam o “espírito da nacionalidade”, o qual
foi conectado à autonomia municipal e provincial, à federação, à republica, à
democracia, à liberdade, à justiça, ao progresso. Por sua vez, o Estado (a
antinação) representava a centralização política, o autoritarismo, a preservação do
status quo. Ele escreveu sobre a luta política entre exaltados (“revolucionários” e
nacionalistas) e moderados (“instintivamente conservadores”). O primeiro lutava
contra o poder do Império (mais especificamente o Poder Moderador, a
centralização, a vitaliciedade no Senado), reivindicando, no limite, a República; o
segundo, reagia pregando a necessidade da ordem, da sensatez, da moderação,
das mudanças lentas, da necessidade da censura, da repressão policial, da
autoridade, da legalidade, de aniquilar os “espíritos revolucionários”.
347
Em tal esquema binário, desapareceram as diferentes temporalidades, as
idiossincrasias, as especificidades dos acontecimentos que o autor mencionou.
346
Idem, p.254.
347
Idem, p.148.
144
Assim, A Revolução Pernambucana, A Confederação do Equador, a Praieira, as
revoltas das províncias contra o governo da Corte, entre outros movimentos
políticos foram encaixados em uma totalidade simples. Bomfim adotou uma
perspectiva a-histórica, atitude que permitiu encobrir as especificidades,
historicamente construídas, em essência. Por outro lado, na sua narrativa sobre a
nação não existem sujeitos políticos, portadores de interesses políticos,
econômicos e visões de mundo. Há, sim, um sujeito abstrato, que pode ser
chamado de sentimento de nacionalidade ou de consciência nacional. Os
paulistas, construtores de caminhos e de povoados, os brasileiros que lutaram
contra os estrangeiros pela preservação do território, os rebeldes de 1817, e todos
os demais personagens que participaram dos movimentos políticos do Primeiro
Reinado, da Regência e do início do Segundo Reinado agiram movidos em defesa
do “legítimo espírito nacional”
348
e contra o Império. Não existiram, portanto,
interesses de grupos, de classes ou regionais.
349
O mesmo raciocínio vale para o que disse sobre as personagens evocadas.
Por exemplo, José Bonifácio apareceu em dois registros antagônicos. No
momento em que tratava da Independência, Bomfim colocou o “Patriarca” em
oposição a D. Pedro. Este queria, de acordo com o autor, criar uma monarquia
dual, luso-brasileira; Bonifácio teria abortado essa iniciativa. O primeiro não queria
a Independência e, conseqüentemente, desejava manter a O Brasil ligado a
Portugal; o segundo, tomado pelo “brasileirismo”, ficou ao lado da nação, que
queria autonomia.
350
Em outro lugar, o mesmo Bonifácio foi descrito como “um
funcionário português”, adepto da Monarquia e o grande responsável pela vitória
do Império sobre a legitima aspiração nacional - a república.
351
Em outros termos,
o Andrada foi lembrado pelo “brasileirismo” quando se opôs a D. Pedro e à re-
união das duas monarquias; quando golpeou os adeptos da república foi taxado
348
Idem, p. 93.
349
Esta insistência em afirmar que o que estava em jogo era o interesse maior, coletivo, da Pátria
levou Bomfim a dizer que Frei Caneca e os demais protagonistas da Confederação do Equador
não almejavam encabeçar um movimento separatista, ou seja, “atentar contra a unidade”. Idem, p.
83.
350
Idem, p. 62.
351
BOMFIM, Manoel. O Brasil na História ..., p. 512.
145
de “conservador” e “anti-revolucionário” e de tudo ter abandonado (a tradição
radical, liberal, maçônica e democrática) e “caído nas boas graças do Príncipe”.
352
Duas tradições
A noção de tradição tem, na obra de Manoel Bomfim, significados
diferentes. No seu primeiro livro, A América Latina, ela referia-se a um passado
que deveria ser superado, uma vez que dizia respeito aos “males de origem”
produzidos pelo parasitismo ibérico; nesta obra ele descreveu a nação como uma
ferida aberta, realidade resultante de séculos de exploração da Colônia pela
Metrópole e pela dominação e exploração de classe. A construção de uma
sociedade moderna, nos moldes dos paises capitalistas e democráticos do
Atlântico Norte, exigia, em primeiro lugar, que se fizesse um inventário do
passado, revelando as causas primordiais das nossas mazelas sociais, políticas e
econômicas. Conhecido o passado, dever-se-ia pensar em como superá-lo. No
livro O Brasil na América, a sua concepção de nação é outra. No primeiro texto,
ele quis explicitar as forças econômicas e políticas que moldaram um país pobre e
“dependente”; revelou a ideologia que elidia uma visão conservadora, de viés
racista, que culpava o povo pelo “atraso” do Brasil. Já o leitor de A América Latina
vê emergir do livro uma sociedade estruturada em classes, grupos antagônicos e
conflitantes; a sua reflexão baseou-se em uma análise política e econômica, o que
possibilitou desvendar as bases materiais dos nossos “males de origem”. Se, no
primeiro livro, o propósito consistiu em retirar o véu que encobria uma sociedade
que, desde a origem, apresentava contradições inconciliáveis, o texto escrito
quase vinte anos depois tratou de ocultá-las. Para defender esse ponto de vista,
Bomfim adotou a perspectiva cultural em detrimento da análise econômica e
política, da qual se serviu anteriormente.
Nos textos O Brasil nação e O Brasil na história, o foco da reflexão centrou-
se na relação entre Estado e nação, configurando-se a bipolaridade que norteou a
352
Idem, p. 512. Feijó foi uma personagem bastante mencionada por Bomfim e merecerá uma
abordagem especial, o que será feita mais adiante.
146
construção da sua análise. Nos escritos da maturidade, os conflitos e os
antagonismos diziam respeito à configuração dos interesses conflitantes entre as
duas entidades. Desse modo, Bomfim pensou em duas tradições: uma estava
ligada à nação; outra, ao Estado. Aquela precisava ser preservada; esta, negada.
A primeira era “estímulo e orientação”
353
para delinear os rumos que o país
precisava tomar, tendo em vista a superação do atraso e modernizá-lo. Sua
herança consistia, no âmbito cultural, na possibilidade da convivência pacífica e
solidária, na identificação afetuosa dos brasileiros com a Pátria, na consciência da
nação como dotada de identidade e na predisposição dos brasileiros para
aceitarem o novo. Na esfera política, ela se referia à vida local, à democracia, à
liberdade, na acepção liberal. Por outro lado, o Estado deixou como herança a
concentração do poder, as clivagens regionais, o autoritarismo, os rigores do fisco,
da polícia e, em conseqüência disso tudo, a indisposição de pessoas, de grupos,
classes, contra essa entidade. Se havia violência, essa resultava primordialmente
da tensão, dos atritos, das disputas políticas entre Estado e nação. No âmbito
desta, predominava a convivência solidária, embora ele não negasse a existência
de grupos, classes, instituições que tinham interesses distintos. A convergência
tornava-se possível porque havia uma força exterior com capacidade aglutinadora:
a consciência nacional.
354
Em outros termos, ele concebeu a nação como um
espaço em que forças em luta convergiam em torno de um centro; ela foi
concebida como uma entidade idêntica a si mesma. O Estado, por sua vez, era o
“outro” que asfixiava as suas energias; a narrativa do conflito entre os dois dizia
respeito à luta entre o desejo de mudar e a aspiração pela perpetuação do status
quo.
353
O Brasil na história ..., p. 14.
354
Idem, p. 171.
147
Estado e classes
O Estado “educou” a burocracia para agir como parasita, fiscalizando,
confiscando, atuando como força repressiva; acostumados a lidar com a extorsão
e a violência, os funcionários passam a agir como autômatos; a vontade de
conservar o status quo e os privilégios enraízam-se, propagam-se pela “imitação”
a ponto de se tornarem quase uma “segunda natureza”. Sendo as coisas dessa
maneira, seria legítimo, do ponto de vista do autor, que a população reagisse
violentamente contra a entidade que se mantinha alheia aos seus interesses e
necessidades mais elementares (educação, moradia, alimentação, direitos
políticos)?
Para Roberto Ventura e Flora Sussekind, o argumento da legitimidade do
levante popular contra o Leviatã é uma proposição que pode ser encontrada no
pensamento de Bomfim.
355
De fato, o autor de A América Latina fez essa
afirmação, porém uma leitura minuciosa dos seus textos revela que há outras
noções que a contradizem. Ele se referiu reiteradamente ao caráter “pacífico e
dúctil” da “alma brasileira”. A herança indígena fez o brasileiro suportar
cordialmente, sem ódios, as privações e as violações sofridas no país onde
“menos se respeita a vida humana”.
356
O leitor fica surpreso ao se deparar com
uma afirmação desse teor, sendo o autor um ardoroso crítico das chamadas
classes dirigentes, aos quais culpava pelo atraso do país e pelas mazelas sociais,
cuja vítima maior era a população, com quem sempre esteve solidário.
Em outro lugar, ele mencionou a reação do povo contra o poder público;
reação essa que se manifestava pelo “desrespeito” às leis, o “desamor” pelas
autoridades constituídas, a luta armada. Para ele, as “revoluções violentas” contra
o Estado faziam parte dos “males” ou “viços” da nossa “educação política”; o ódio
pelas instituições não era um dado suplementar, superficial da vida política do
país, mas transformara-se em uma “tradição”, tornara-se “instinto”
357
. “Instinto” é a
355
VENTURA, Roberto; SUSSEKIND, Flora. Uma teoria biológica da mais-valia? (Análise da obra
de Manoel Bomfim). In: História e dependência: cultura e sociedade em Manoel Bomfim ..., p. 43.
356
BOMFIM, Manoel. O Brasil na História ..., p. 217-218.
357
BOMFIM, Manoel. A América Latina ..., p. 210.
148
palavra de que se serviu o autor para explicar a dominação e o consentimento.
Aqueles que faziam parte da estrutura burocrática agiam como “autômatos”
quando extorquiam, fiscalizavam e puniam; por outro lado, os dominados
pactuavam muitas vezes com os seus algozes. De todo modo, quem dominava e
quem era dominado participavam do jogo de poder de forma inconsciente. A
insubordinação nada mais era do que a manifestação “instintiva” dos parasitas
contra o opressor.
358
Os conflitos existiam; isso era um aspecto detectável na
história política do país. Contudo, a constatação do fato não encobria a
dificuldade por ele demonstrada em aceitar tudo que escapava do esquema que
previa assimilação, adaptação orgânica e consentimento.
359
Se pensarmos na noção de “ordem” de que ele se serviu, o que estamos
tentando dizer ficará mais claro. Esse termo pode significar estagnação, fixação,
conservantismo, hábitos arraigados, resistência à mudança, automatismos, tirania,
a força maléfica do passado sobre o presente. Em outra acepção, ordem
significava mudança, a ausência de dominação, seja de classe, seja a do Estado.
No primeiro caso, ordem remetia à noção de absoluto, de algo definitivo; no
segundo, o vocábulo queria dizer estágio, fenômeno transitório. Bem ao seu gosto,
ele construiu mais um esquema binário, contrapondo o positivo ao seu oposto. É
próprio da vida, seja a da Natureza, seja a da sociedade, evoluir superando o
velho (o que perdeu a sua razão de ser e já não tem mais utilidade). Insistir em
preservar, à força, o que envelheceu tem o mesmo significado de represar o rio.
Este deve seguir a sua tendência assim como o “povo” precisa guiar-se pela sua
“vocação”, a tradição. Vida é movimento, é abandonar as formas envelhecidas e
adaptar-se às exigências do meio e do tempo. Bomfim estava sendo fiel à sua
358
Não se tratava, como queriam alguns, da predisposição inata da massa para a violência, seja
porque ela não era portadora da Razão, seja porque fazia parte do “caráter” (característica
psicológica) da população mestiça do país. A explicação para o fenômeno estava na história e não
em argumentos biológicos, como queriam os que esposavam concepções racistas.
359
Se no livro A América Latina, ele insistiu na violência como um fator constitutivo da nossa
“educação política”, nos demais textos historiográficos, ele esforçou-se para argumentar que os
brasileiros, desde a Colônia, eram “sábios, disciplinados, ordeiros, pacíficos”; somente havia
“perturbação” quando os colonos sentiam como intolerável a exploração da Metrópole. Cf. O Brasil
na história ..., p. 222.
149
convicção evolucionista.
360
Tentar manter a “ordem”, ou seja, a estagnação,
acabará produzindo a “desordem”, os protestos, as turbulências. A violência
política vem à tona, então, quando as classes dirigentes querem conservar
institucionais condenadas. Os adeptos da “ordem”, visto do ângulo negativo,
seriam os “sensatos”, ou seja, aqueles que diziam que ainda não chegou a hora
de mudar, aqueles que se esmeravam em manter a espoliação, a injustiça, a
ignorância e os privilégios.
361
Para Bomfim as transformações eram bem vindas e
necessárias, mas elas tinham de obedecer a um parâmetro que era definido pela
tradição à qual a sociedade pertencia. Assim como o rio deveria seguir o seu
destino, guiado pelas margens, as mudanças políticas, sociais e institucionais
deveriam ser conduzidas, também, obedecendo-se à tradição, que era “estímulo e
orientação”.
362
O nosso argumento ganha força se pensarmos que Bomfim tinha predileção
pelas forças que agregavam, que levavam à assimilação; por outro lado, ele tinha
muita dificuldade em pensar a realidade do viés das forças dispersivas, do que
fugia do centro, da quebra do equilíbrio. Essa constatação pode ser observada em
seus escritos sobre educação, medicina ou psicologia. Em todos eles, a sua
grande preocupação era demonstrar que o homem era um ser essencialmente
social; daí a ênfase em categorias como “imitação”, assimilação social, adaptação,
tradição, instintos sociais, hereditariedade e solidariedade; a educação servia,
entre outras coisas, para incutir na criança os valores da sociedade que a
recebeu. Desse modo, a vida do indivíduo confundia-se com a vida da sociedade
e da espécie. Ser humano queria dizer comunicar-se, relacionar-se com o
semelhante. Pensamentos, sentimentos e escolhas definiam-se pela pressão
exercida de fora da consciência, ou seja, pelo meio social. Em outros termos,
educar consistia em formar um indivíduo moral. Quando ocorria a
incompatibilidade entre a pessoa e as normas ou regras de convivência social
360
A concepção de que a vida social ou individual caracteriza-se pelo fluxo contínuo, pela mudança
é que levou Bomfim a criticar o positivismo, visto que esta doutrina seria “armada em
generalizações preconcebidas”, ou seja, não tinha a maleabilidade que permitia captar “os
imprevistos e os novos aspectos da evolução social”. Cf. O Brasil na história, p. 65.
361
Idem, p. 243.
362
Idem, p. 15.
150
estava-se diante de uma patologia.
363
Por exemplo, o “alucinado” era um
“desequilibrado moral” porque era egoísta. Ele podia ser considerado doente
porque abandonou o altruísmo, deixando-se tomar pelo “amor-próprio”.
364
Do
mesmo modo, o ciúme configurava-se na manifestação do “instinto egoísta” de
propriedade, de egocentrismo. Completamente tomada por este sentimento, a
pessoa perde o interesse pelos demais.
365
Se Bomfim pensou e escreveu sobre vários temas, em todos os seus textos
existe a preocupação em analisar os seus objetos de estudo seguindo a premissa
segundo a qual a realidade somente poderia ser compreendida se a parte fosse
observada em relação ao todo. Sintetiza isso que estou tentando dizer uma
passagem do livro Pensar e dizer (1923), na qual o autor explicitou o seu método.
Em uma linguagem simples e de forma didática, ele comparou o procedimento do
pesquisador, que poderia ser o psicólogo, o historiador, o sociólogo, o biólogo,
com o leitor. Para entender a idéia que o autor do livro construiu seria preciso
entender que havia uma trama, uma interdependência entre a palavra, o
parágrafo, o capítulo, o livro, a obra, a filosofia do pensador e a conexão desta no
“conjunto de sua época”.
366
Em outras palavras, a fidelidade de Bomfim ao seu método teve profunda
implicação em sua análise histórica e social. Ele tinha muita dificuldade de pensar
as coisas fora do esquema da estrutura, do organismo, na qual as partes
encaixavam-se perfeitamente no conjunto. Não havendo incompatibilidade entre o
macro e o micro, tínhamos uma condição ideal. O organismo saudável era aquele
em que tudo funcionava em harmonia e em que a chegada de um corpo estranho
não provocava grandes traumas, porque este poderia ser assimilado sem traumas.
A dificuldade de assimilação configurava-se em uma anomalia. É dessa
perspectiva que analisou o tema da imigração.
363
BOMFIM, Manoel. Pensar e dizer: estudo do símbolo no pensamento e na linguagem. Rio de
Janeiro: Casa Electros, 1923, p. 19.
364
BOMFIM, Manoel. Das alucinações auditivas dos “perseguidos”. Rio de Janeiro: Tipografia
Espíndola, 1904, p. 4.
365
BOMFIM, Manoel. O ciúme. Os Anais, Rio de Janeiro, ano II, nº 49 e 50, 1905, p. 3-5.
366
Pensar e dizer: estudo do símbolo no pensamento e na linguagem ..., p. 22.
151
Comparou o que acontecia nos Estados Unidos com o Brasil. Lá, o
adventício prontamente incorporava-se à nação, pois ao chegar encontrava uma
população instruída, livre, consciente dos seus direitos e de que não era inferior a
outros povos. Desse modo, o imigrante tornava-se americano e não havia a
possibilidade formação de quistos étnicos. Aqui, dado o “nível médio mental, social
e político das populações [do Brasil]” ficava inviável aceitar a entrada maciça de
estrangeiros “sem que a vida geral da nação se perturb[asse], e que todo caráter
nacional se ressent[isse].”
367
Nos Estados Unidos a população local impunha a
sua suposta superioridade mental sobre as gentes que chegavam; no Brasil
aconteceria o inverso: os brasileiros, que se reputavam inferiores, teriam que
conviver com o “outro” que se julgava superior. Desse modo, estaria criada uma
situação em que conflitos e indisposições sobrepujariam a convivência pacífica e a
assimilação. Melhorando o nível “mental e moral” dos brasileiros, o país estaria
apto a se abrir para todos, porque nessa condição o estrangeiro viria para
incorporar-se, misturar-se aos demais. A parte (o imigrante) encaixaria-se no todo
(a nação) sem atritos e nem arestas.
O mesmo raciocínio foi usado para analisar a classe dirigente, aquela que
dominava o Estado. Mais uma vez Bomfim se serviu da noção de assimilação para
descrever o comportamento corporativo que tomava conta da burocracia, e que
era fundamental para manter a máquina estatal funcionando, evitando-se qualquer
desvio de rota. Bomfim referiu-se à tradição, ao “espírito de classe”, ao “molde
geral” para explicar como se formava o arcabouço ideológico, o qual funcionava
como uma força aglutinante, moldando as consciências individuais; o aparelho
estatal foi pensado como uma entidade com feição própria; portanto, havia apenas
o interesse da organização. Os interesses individuais abdicavam de suas
prerrogativas e se deixavam moldar pela estrutura. Ao cabo, todos
compartilhavam a vontade comum de conservar o status quo. O “espírito de
classe” não abria mão de sua prerrogativa assimiladora, nem mesmo em se
tratando dos “forasteiros”. O recém-chegado logo entendia o que queria dizer o
367
BOMFIM, Manoel. O Brasil nação ..., p. 482-483.
152
lema “assimila-me, ou elimino-te”.
368
A força agregadora da classe absorvia,
apagava os traços particulares, as vontades particulares dos elementos que
vinham de outra; em suma, sempre vencia o espírito de corpo. Para explicar o
funcionamento do Estado, o autor recorreu mais uma vez à idéia de que o todo
assimilava as partes.
A análise cuidadosa do seu argumento sobre educação revela a vontade do
autor em reiterar que “educar é ensinar a vida social”;
369
em outros termos, a
função precípua da educação consistia em engendrar o indivíduo socializado,
cabendo à escola formar pessoas disciplinadas e de “moral apurada”. De acordo
com o autor, a relação entre indivíduo e sociedade deveria ser pautada pela
harmonia, e a instrução teria um papel importante a cumprir, propiciando a
adaptação da criança ao “meio moral-social”.
370
Na argumentação de Bomfim, o homem natural não existia, pois ele era um
ser social, produzido pela educação. Nosso autor negava, portanto, o
determinismo biológico. O homem estava subordinado ao instinto social. Bomfim
substituiu, pois, a determinação biológica pela cultural. Ao contrário do bruto, a
pessoa tinha, dado que ele era “livre”, capacidade de escolher. Mas qual era o
limite da sua liberdade? A vontade individual tinha de se submeter ao interesse
coletivo, o da nação. Na sua proposição não havia contradição entre vida privada
e vida social. Posto as coisas dessa forma, fica difícil detectar em Bomfim a
predisposição em legitimar a reação violenta dos membros da sociedade contra o
Estado, ainda que este descuidasse das necessidades prementes daqueles. O
foco de sua argumentação em prol da instrução recaiu sobre a necessidade da
adaptação dos indivíduos à sociedade, criando a solidariedade social.
Desenvolver a inteligência não produzia a intransigência, a disposição para
desobedecer às leis, como muitos afirmavam. Educar o brasileiro significava
aprimorar as suas características “intrínsecas”, como a plasticidade do caráter, a
ausência de preconceito, a predisposição para aceitar o progresso, a cordialidade.
368
Idem, p. 452-453.
369
Cultura e educação do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Pongentti, 1932, p.19
370
O Brasil nação ..., p. 546.
153
Podemos pinçar em algumas passagens o nosso autor defendendo a
reação dos parasitas contra o Estado (o parasita); uma população consciente, por
exemplo, não “toleraria a realidade política em que é governada”;
371
porém, a
partir de uma asserção desse teor não podemos inferir que ele tenha legitimado
pura e simples o uso da violência. A explicação para o fato, a meu ver, deve-se a
dois fatores: a sua metodologia, mencionada acima, e à sua perspectiva
nacionalista. Sua visão de mundo foi moldada pela idéia de nação. Se o foco do
seu argumento incidia sobre uma entidade concebida como um organismo, no
qual as partes combinavam-se formando um conjunto harmônico, a noção de
classe tornou-se secundária ou descabida.
372
Bomfim reportou-se, é verdade, a Blanqui, Bakunin, Proudhon, Fourrier,
portadores de “efetivas novidades políticas e sociais”. Sua crítica dirigiu-se aos
abolicionistas (especialmente a Joaquim Nabuco), adeptos, segundo Bomfim, do
“liberalismo manso” e favoráveis a simples emancipação gradual e distante da
“zona perigosa”, posição oposta à de pessoas como Castro Alves, que, a seu ver,
defendia a abolição pela via “revolucionária” e “intransigente”.
373
As “efetivas
novidades” referiam-se às “pretensões socialistas” que, por sua vez, nada mais
eram que a “questão social”.
374
Ao analisar a propaganda republicana, Marx foi
evocado. Queriam os republicanos a propagação de discursos de cunho liberal e
vazio de conteúdo, distante das “aspirações nacionais” (“ânsia de liberdade e de
justiça”). O autor de O Capital apareceu para lembrar que a questão de fundo
referia-se aos “aspectos sociais e econômicos”.
375
O programa republicano estava
defasado em relação à sua época, pois não passava de mescla de um liberalismo
ultrapassado e de um “positivismo cego”.
376
Em suma, as tais “novidades” diziam
respeito à resolução das carências sociais, políticas, econômicas da população. A
menção a Marx e a outros socialistas e anarquistas atendia ao propósito de
apontar a limitação das pretensões abolicionistas e republicanas, que não
371
Idem, p. 549.
372
Roberto Ventura e Flora Sussekind fizeram menção a esse fato. Op. cit., p. 46.
373
BOMIFM, Manoel. O Brasil nação, p. 363.
374
Idem, ibidem.
375
Idem, p. 416
376
Idem, ibidem.
154
enfrentaram a “questão social”. Mas estava longe do horizonte teórico e político de
Bomfim admitir a luta de classes como instrumento que poderia ter levado adiante
as reformas que ele via como necessárias.
É digno de nota que o autor de O Brasil nação assumiu um ponto de vista
que criticara. Referimo-nos ao juízo de valor sobre Joaquim Nabuco. Bomfim o viu
como um adepto do “liberalismo manso” e do abolicionista que se esquivou da
“zona perigosa”. Os discursos de Nabuco, à época da campanha abolicionista,
tinham dois alvos. Por um lado, dirigiu-se aos escravocratas recalcitrantes, que
queriam manter a escravidão – na década de oitenta do século XIX já era uma
instituição arcaica e condenada. Por outro, desejava alertar os abolicionistas que
atuavam diretamente junto aos escravos nas ruas e fazendas, incentivando-os à
insurreição. Alertava os escravocratas e os radicais a respeito do perigo da guerra
civil, repetindo-se aqui o que ocorrera nos Estados Unidos. Aos que insuflavam a
escravaria, ele lembrou que a abolição deveria ser feita conciliando todas classes
e em benefício de toda sociedade. Ademais seria um “suicídio político” instilar no
coração do escravo o “ódio que ele não sente”.
377
Em suma, em seus discursos no
Parlamento, na imprensa, na praça pública Joaquim Nabuco pedia que a
escravidão fosse abolida pela via parlamentar, ou seja, de forma pacífica, distante
dos extremismos e da “zona perigosa”. Era sinônimo de sabedoria política e
moderação evitar a todo custo a luta de classes.
O discurso de Bomfim coincidiu com o de Nabuco quando o assunto era a
“massa”. Para o abolicionista os escravos não tinham consciência da condição de
oprimidos. Dormiam e acordá-los poderia colocar em movimento paixões latentes
tão-logo fosse “quebrado o freio do medo”.
378
Por isso, os discursos em prol da
emancipação tinham de ser voltados para os adeptos do Partido Abolicionista,
gente ilustrada como Nabuco; a eles cabia guiar o movimento, impedindo desvios
pelos caminhos da revolução. Quando analisava a transição da Monarquia para a
República, o autor de O Brasil nação aludiu, também, à “massa da nação”; esta
tinha “aspiração democrática”, mas era uma vontade inconsciente, que não podia
377
Nabuco, Joaquim. O Abolicionismo ..., p. 39.
378
Idem, p. 40.
155
se expressar em forma de ação política, pois “valia apenas como instinto”. A
República tornou-se um fracasso porque faltou um “iluminado”, que viria do seio
da população, ou de uma elite política educada e, assim, capacitada a transformar
esse desejo instintivo em “forma consciente”. Quem tinha esse treino era a classe
dirigente, mas ela não queria mudanças. Os radicais republicanos teriam
concretizado “as aspirações revolucionárias” se tivessem aproveitado as
concepções dos revolucionários, como Marx. Para a realização das reformas
estruturais, e desse modo alcançar o progresso social, Bomfim apostava mais em
pessoas do que em movimentos coletivos.
379
Se ele falou tantas vezes em
solidariedade, esta significava a comunhão de interesses particulares gravitando
em torno do interesse maior, o da nação, e não como a reunião de forças dos
parasitados para enfrentar os seus opressores.
Ele compartilhou com Nabuco, a quem criticou fortemente, a noção
segundo a qual cabia a poucos a condução do movimento, controlando,
metamorfoseando intuição em ação, educando a massa para as “aspirações
revolucionárias”. O nosso autor não nutria, assim como o abolicionista, certa
reserva quanto à ação de cunho popular, temeroso de que ódios sublimados
pudessem explodir em revoltas incontroláveis? A idéia de insurreição popular
contrariava o caráter nacional do brasileiro, a qual pressupunha cordialidade e a
capacidade de assimilar o diferente. Em ambos havia a noção de que a
predisposição psicológica e cultural do brasileiro aconselhava a moderação e que
fosse evitado recorrer à violência.
380
Embora Bomfim tenha falado da necessidade de substituir a classe
dirigente, de ter atacado os moderados, e de fazer menção aos revolucionários
europeus, fica para nós a dúvida a respeito de qual seria o instrumento em que
estava pensando para promover as transformações da realidade social e política
do país. Ele usou o termo “aspiração revolucionária”, que pode ter o significado de
ruptura brusca. Contudo, o nosso autor não abdicava de sua convicção
379
Ele manifestou, por exemplo, toda a sua admiração por Feijó, como termos a oportunidade de
abordar.
380
Sobre o tema em Nabuco, ver UEMORI, Celso Noboru. Joaquim Nabuco: lutas, propostas e
diálogos (1877-1888) ..., p. 56.
156
evolucionista, a qual ligava-se à idéia de um fluxo constante. O evolucionismo
ajustava-se ao propósito dos que concebiam a história como a sucessão linear de
acontecimentos. Intérpretes da Independência, que viram com júbilo o fato de que
a emancipação política da ex-colônia da Metrópole ocorreu de forma pacífica,
garantindo a unidade nacional, afirmaram que 1822 foi mais uma etapa da
evolução histórica do Brasil português.
381
Esta concepção desembocava em uma
visão fatalista, que, ao cabo, expressava uma perspectiva política conservadora,
pois projetava transformações sem rupturas revolucionárias, prevalecendo a
noção de evolução contínua e linear.
Ao preconizar, no livro A América Latina, a instrução como instrumento
capaz de romper com o legado da colonização – a continuação da oligarquia, a
marginalização e as várias modalidades de espoliação da população pobre –,
Bomfim deixava clara a sua dificuldade em aceitar a ruptura abrupta com a ordem
vigente.
Mais tarde, na obra O Brasil nação, ele preconizou a via revolucionária.
Muitos viram nessa proposição um avanço em relação à sua posição anterior. Ele
teria superado a “ambigüidade do radicalismo” (ou “visão ilustrada”)
382
em
benefício de uma postura que, agora sim, correspondia ao seu diagnóstico. Em
afirmações desse teor há a idéia de que Bomfim “amadureceu”, “evoluiu” ao
substituir a proposta gradualista (educação) por outra, “mais avançada”.
383
A meu ver, não ocorreu a ruptura que muitos dos seus intérpretes
apregoam, entre o jovem que viu na instrução o caminho a ser seguido para
acabar com a “herança colonial” e o intelectual maduro que enxergou na
381
Expressaram essa visão historiadores como Varnhagen e Oliveira Lima. Sobre o assunto, ver
Malatian, Teresa, Oliveira Lima e a construção da nacionalidade, pp. 208-9.
Euclides da Cunha, no
contexto dos debates travados no momento em que antecedeu a transição da Monarquia para
República, viveu o dilema de acreditar no evolucionismo como concepção filosófica e, ao mesmo
tempo, “pregar a revolução como um modo de abreviar a passagem da Monarquia para a
República, a exemplo do que fizera a França para derrubar o Antigo Regime”. Cf. VENTURA,
Roberto. Retrato interrompido da de via de Euclides da Cunha. (Organização Mario César de
Carvalho e José Carlos Barreto de Santana). São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 80-81.
382
CANDIDO, Antônio. Radicalismos. Revista do Instituto de Estudos Avançados, (48), 4-18 ...,
p. 17.
383
Idem, p. 17.
157
revolução, nos moldes mexicano, a saída. Para começar, o leitor fica sem saber
quem seriam os agentes que conduziriam a tal revolução.
Em segundo lugar, a hipótese de que Bomfim teria transitado de uma
posição moderada (ao defender a educação como instrumento capaz de superar o
legado deixado pelo parasitismo ibérico) para outra, radical (de corte de
revolucionário), no início da década de trinta, é questionável. No livro Cultura e
educação do povo brasileiro, que é de 1932, nosso autor preservou seu
pensamento critico, porém continuou acreditando na potencialidade
transformadora da educação.
384
Em terceiro lugar, nas obras da maturidade, ele
fez a apologia das tradições ao ponto vê-las como o manancial da “alma da
nação”; transformar a realidade era preciso, bem como repensá-la à luz da
história, mas não se poderia esquecer de uma coisa: “uma nação evolui mantendo
a essência de si mesma”.
385
Ou seja, os agentes que desejavam mudar
precisavam levar em consideração que havia algo do passado a ser preservado.
Se era preciso avançar, trilhar o caminho da modernidade e do progresso, tudo
deveria ser feito sem se esquecer do legado que se engendrou nos primeiros
tempos da colonização: a vontade de pertencer à pátria, a consciência nacional, a
harmonia entre grupos, classes e etnias.
A crítica de Bomfim foi dirigida contra o Estado bragantino, que teria
sufocado as tradições, a vida local (o municipalismo) e perpetuado a dominação
da oligarquia sobre as instituições. Esta era a realidade observada por ele e que
ele gostaria ver superada. Em contrapartida, pensou no que seria o ideal: o Estado
como um órgão da nação. Neste novo contexto, não haveria incompatibilidade de
interesses entre um e outra. O pecado original residia no fato de o Estado ter se
sobreposto à nação já feita, que tinha as suas tradições e a sua feição própria.
Nesse sentido, estabeleceu-se uma relação artificial entre duas entidades que não
podiam harmonizar os seus interesses.
O modelo idealizado pelo autor era o self-governement inglês e norte-
americano. De acordo com Bomfim, nos dois primeiros séculos da colonização
386
,
384
Cultura e educação do povo brasileiro ....
385
O Brasil nação, p. 38.
386
Idem, p. 254-255.
158
formaram-se instituições locais, que foram anuladas com a chegada do Estado
bragantino, suprimindo-se, assim, a vida dos municípios. Deu-se o oposto nas
colônias anglo-saxônicas, pois o Estado desenvolveu-se a partir da nação,
mantendo uma relação orgânica com ela. Na vida moderna, o Estado nada mais
era do que um órgão conciliador e regulador, gerindo as demandas coletivas da
sociedade e a “conciliação os interesses parciais”.
387
O que acontecia no Brasil,
onde o Estado definia-se como uma entidade exterior e opressora da nação,
colocava-o no rol das sociedades arcaicas, que admitiam ainda o despotismo. Mas
de que forma superar essa condição e adentrar o restrito círculo das sociedades
modernas? Parece-nos que Bomfim apontava para a educação, mais do que para
medidas destinadas a provocar mudanças bruscas. Ele defendeu a necessidade
de desenvolver a cultura geral, “inspirada nas condições da terra”
388
, e fortalecer a
nação mediante a instrução da população. Nada poderia se esperar da elite
porque esta estava preocupada tão-somente em buscar no estrangeiro modelos
prontos que não podiam ser aplicados à realidade brasileira. Há em Bomfim o
esforço de tentar compreender os problemas que ele vivenciava, e para elucidá-
los ele recorreu à história. Feito o diagnóstico, a solução pensada transitou entre
uma idéia vaga de revolução e a instrução. Esta segunda via esteve presente
tanto no Bomfim que escreveu A América Latina quanto no autor da maturidade.
Manoel Bomfim e Oliveira Vianna
Passo à inserção das concepções de Bomfim acerca do Estado e da nação
no debate relativo papel do Estado em uma ex-colônia, na qual, como muitos
afirmaram, não havia “nem povo nem nação”.
Construir, descobrir, redescobrir, organizar a nação foi e é um tema
recorrente no que é conhecido como pensamento social brasileiro desde o século
XIX.
387
Idem, p. 258.
388
Idem, p. 258.
159
Durante o Império, a população brasileira, composta majoritariamente por
negros e mestiços, foi vista como um perigo para a sociedade e a família por
inocular em uma e em outra vícios e imoralidades, como a indolência, a preguiça,
a imoralidade, a predisposição para a perturbação da ordem pública. A idéia de
que a escravidão trouxe com os africanos os malefícios para a sociedade e/ou a
família tornou-se um assunto que chamou a atenção de intelectuais e políticos de
épocas, contextos e ideologias diversos. Para o assunto convergiu a atenção, por
exemplo, de José Bonifácio, José de Alencar e Joaquim Nabuco. Reivindicando o
fim do tráfico, da escravidão ou da necessidade de tornar o país atraente para
receber imigrantes europeus, o que estava em pauta, no Império, era civilizar o
país. Recaía sobre a população pobre, de maioria não branca, o estigma der um
ser “problema”, sendo identificado como o “perigo interno”. A vitória da civilização
significava a vitória do homem branco ocidental que, no julgamento da elite do
período, era o modelo de perfeição e o alvo a ser alcançado. O problema consistia
no seguinte: como forjar um povo homogêneo etnicamente, disciplinado no
trabalho, obediente e morigerado. Nas últimas décadas do Império e na República
tornou-se lugar comum preconizar, por um lado, a educação como a medida
indicada para transformar uma população despreparada para o mercado de
trabalho em formação, incutindo a noção de trabalho como valor moral, a
disciplina; por outro, a ação firme da polícia, para combater a vadiagem. Se o povo
e a nação não existiam ou, se existiam, eram organismos malformados, doentes.
Cabia ao Estudo construí-los, formá-los ou curá-los e guiá-los. Era uma
perspectiva paternalista e autoritária.
Entre os contemporâneos de Manoel Bomfim, Oliveira Vianna foi o
intelectual mais conhecido por sua posição a favor de um Estado centralizado e
forte. Comparando os textos de um e de outro, é possível detectar o contraste, as
idéias antagônicas, a abordagem e as conclusões diversas no tratamento dos
mesmos fatos e assuntos, revelando que cada qual pertencia a um espectro
diferente no interior do debate político dos que pensavam a questão do Estado
nos anos vinte.
160
A comparação entre Vianna e Bomfim justifica-se, em primeiro lugar,
porque o autor de Populações meridionais do Brasil foi, quiçá, o interlocutor
privilegiado do nosso autor; em segundo, porque a análise comparativa, pela via
do contraste, ajudará a elucidar os valores, a visão de mundo, a posição política e
a intenção de Bomfim ao fazer o culto do passado, da nação e da tradição.
Se a dissonância sobressai na análise comparativa, há pontos em comum:
ambos estavam preocupados em compreender o presente, bem como precisavam
“inventar” um passado. Na incursão pela história, queriam encontrar o centro
aglutinador, o cerne, o ponto de equilíbrio que teria produzido a estabilidade, a
coesão social da sociedade colonial. Oliveira Vianna enxergou na família patriarcal
(o clã rural) o centro de gravitação. Manoel Bomfim enfatizou o sentimento
patriótico, que funcionou como uma espécie de superestrutura que, de fora,
moldou as consciências individuais, inibindo o aparecimento de forças
desagregadoras. Mas a sintonia aqui se esgota.
Embora Vianna tenha apontado o domínio rural como uma força centrípeta,
capaz de congregar as diversas forças sociais e étnicas, de organizar a defesa, de
onde partiam as bandeiras desbravadoras rumo ao sertão, parece-nos que ela foi
insuficiente para criar a coesão de grupos e classes. A sociedade colonial que
emergiu do livro Populações meridionais do Brasil caracteriza-se pela incoesão,
pela predominância dos interesses particulares, pela cobiça e pela presença do
poder sem rédeas do caudilhismo. No seu pensamento político, o grande
problema residia na presença onipotente e sobranceira do clã rural, impedindo a
formação da solidariedade nacional. O seu argumento baseou-se em uma curiosa
idéia: ao clã rural faltaram inimigos, seja o externo (o estrangeiro), seja o interno (a
“classe inferior”). Estiveram ausentes na vida colonial, então, as lutas pela
conquista e a preservação do território e a luta de classes. Outra teria sido a
história se o caudilhismo tivesse quem combater e, desse modo, fosse obrigado a
construir vínculos políticos, criando dependência mútua. Sem freios, o poder
privado campeou livre, impondo suas leis e sua vontade. O que se viu, foi a
disseminação da rebeldia da caudilhagem, gerando uma sociedade dispersa,
incoerente, conflituosa. A coesão social não é um dado natural, pois se engendra
161
socialmente quando existe o temor, dado que “a solidariedade é o resultado do
medo”.
389
O argumento de Bomfim, em contraste, realçou, como dissemos, o liame
que unia grupos, classes, o homem à terra, o brasileiro à nação, as regiões ao
território. Se houve disputa, esta se referia à luta dos brasileiros contra os
estrangeiros. De resto, todas as ações humanas convergiam para a construção e
consolidação da nação como uma entidade coesa e harmoniosa. Os bandeirantes,
por exemplo, na ótica de Bomfim, eram os desbravadores que construíam o país.
De acordo Oliveira Vianna, os paulistas representavam os impulsos individuais e a
cobiça, atuando como força desagregadora.
O que ambos afirmaram sobre Feijó, personalidade pela qual revelaram
grande admiração, ajudará a elucidar não somente as opiniões de Bomfim e
Vianna a respeito desse político, como também os pontos de vista de ambos no
tocante aos assuntos relacionados ao Estado, à nação e às respectivas adesões
políticas e ideológicas. Os dois referiram-se a Feijó enfatizando a integridade de
caráter, a coerência, a firmeza em suas convicções.
Contudo, analisarei as discrepâncias. Na argumentação de Vianna, o
Regente foi destacado como o fundador do poder civil, defensor do prestígio da
autoridade e da ordem, bem como por ter atacado uma “herança” da colonização,
que era a dispersão, integrando o país.
390
Do seu lado, Manoel Bomfim realçou o
democrata, o “abolicionista de coração”,
391
o republicano, o defensor da
descentralização e do sistema representativo, o adepto do regime presidencial e o
“oposicionista da política imperial”.
392
No governo, ainda de acordo com o autor de
O Brasil nação, foi duro com os oposicionistas (os exaltados e restaurados). Não
se deduza disso que Feijó transformou-se em governante autoritário, apesar de ter
sido implacável com os restauradores e ter transigido com os “companheiros
389
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Paulistas, fluminenses, mineiros. São
Paulo: Monteiro Lobato & Cia, 1920, p.175. vol. 1.
390
Pequenos estudos de psicologia social. 3 ed. São Paulo; Rio de Janeiro; Porto Alegre:
Companhia Editora Nacional, 1942, p. 189-191.
391
O Brasil nação ..., p. 161.
392
Idem, p. 163.
162
radicais, “quando estes quiseram impor-se pela força”.
393
No poder, apesar das
medidas adotadas para preservar a ordem, Feijó, segundo Bomfim, não abdicou
de suas idéias e convicções políticas.
Vianna e Bomfim foram buscar nos atos e nas concepções de Feijó aquilo
que condizia com as suas respectivas visões de mundo e opções políticas e
ideológicas. Feijó foi, de acordo com Vianna, um “estupendo criador da ordem”
394
,
vale dizer, do Império. Bomfim enfatizou o liberal intransigente na defesa do
sistema representativo republicano. Era como se o Regente tivesse atuado como
uma “voz isolada”, defendendo a democracia e a descentralização.
Oliveira Vianna e Bomfim expressaram dois pontos de vistas acerca do
papel do Estado e do liberalismo. O primeiro analisou o passado com o objetivo de
mostrar que o liberalismo fora uma planta exótica que não pôde se implantar no
Brasil. Em primeiro lugar, porque a nossa formação histórica e cultural engendrou
um povo com “espírito de clã”, ou seja, o homem que dependia de um chefe, que
não sabia agir autonomamente. Frente a esta realidade, não se poderia falar em
liberdade consciência, de expressão ou associação. Em segundo lugar, porque a
experiência histórica brasileira revelou a impossibilidade de se adotar o liberalismo
sem criar a “anarquia” política. Chamou a atenção o autor de Populações
meridionais do Brasil para o exemplo do que sucedeu com a adoção do Ato
Adicional (1834) e a implantação de instituições liberais. Viu-se, então, a
descentralização do poder e a ascensão dos poderes locais.
395
Com a Lei
Interpretativa do Ato Adicional (1840), observou-se a centralização do poder,
retirando-se da oligarquia as prerrogativas legais que lhes conferiam a autoridade
sobre a justiça, a polícia e a burocracia. Foi corrigido, pois, um “erro histórico”, de
vez que a “Republica” levaria necessariamente ao desmembramento do país.
Bomfim enxergou nos levantes das províncias durante o período Regencial a
manifestação do “espírito evolucionário”, da “parte viva da nação”, do
republicanismo ou da resistência ao governo imperial sediado na Corte.
396
393
Idem, p. 162.
394
Pequenos estudos de psicologia social ..., p. 195.
395
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil ..., pp. 229-30.
396
O Brasil nação ..., p. 148.
163
Para Vianna, o poder local, sinônimo de caudilhismo, opunha-se à nação.
Em consequência, a vitória do poder central, personificado no Imperador D. Pedro
II, significou a supremacia do centro e da nação. Para Bomfim, a nação idenficava-
se com a federação e as municipalidades. Portanto, o monopólio do poder
restituído ao Imperador teve a conotação de derrota das forças que a
representavam.
Na ótica de Vianna, o país não existia como uma unidade nacional. Se as
coisas eram assim, cabia ao Estado – “soberano, incontrastável, centralizado,
unitário” – criar a nação, “(...) impondo-se a todo o país pelo prestígio fascinante
de uma grande missão nacional”.
397
Na concepção de Vianna, a nação era ainda
um projeto. Por outro lado, para Bomfim, ela existira no passado colonial e fora
deturpada pelo Estado bragantino. Vianna propunha a criação do inusitado,
enquanto Bomfim queria resgatar uma experiência pregressa, pois o espírito de
nacionalidade, embora tenha sido parcialmente anulado pelo Estado, ainda estaria
vivo.
A valorização da solidariedade nacional, do espírito público e do desejo de
ver suprimidos da vida pública os interesses particulares são pontos sobre os
quais ambos estariam de acordo. O Estado forte seria, para Oliveira Vianna, a
solução para atacar a predisposição psicocultural do brasileiro para o
autoritarismo, a dispersão, os antagonismos políticos, o individualismo, o espírito
de clã. Se o mal de origem encontrava-se na cultura autoritária, o remédio
indicado seria o “autoritarismo ilustrado”.
398
Cabia ao Estado constituir a nação e
tutelá-la. Para Vianna, as liberdades civis e políticas foram abortadas pelas forças
locais (os caudilhos) e a descentralização conferiu poder ao clã rural. Nesta
equação, portanto, quanto maior a presença do Estado mais liberdade.
Encontramos nos argumentos de Bomfim, em contraste, a vontade de chamar a
atenção para as experiências da vida local, das aspirações republicanas e
397
Populações meridionais do Brasil ..., p. 305.
398
MORAES, João Quartim de. Oliveira Vianna e a democratização pelo alto. In: In: BASTOS,
Elide Rugai; MOARES, João Quartim de (Orgs.). O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas:
Unicamp, 1993, p. 101.
164
democráticas que ele procurou captar no passado colonial e imperial; experiências
essas que foram derrotadas reiteradamente pelo Estado bragantino.
A nação (re)construída de baixo
Os anos 1920 do século passado foram marcados por uma profunda
desconfiança em relação ao liberalismo, contrariando o “otimismo” do século XIX,
época que acreditava no fortalecimento e na proliferação da chamada “civilização
liberal”. Posteriormente à Primeira Guerra (1914-1918), viu-se o colapso das
bases que fundamentavam o liberalismo, como a autoridade constitucional dos
governos, as assembléias representativas, as eleições e os direitos civis e
políticos.
399
A descrença nas instituições liberais mesclou-se à desconfiança na
crença nos poderes auto-reguladores do mercado e assistiu-se ao crescimento da
demanda por regimes autoritários, ou seja, o apelo pela presença sobranceira do
Estado. Viu-se, outrossim, a negação do comunismo, da revolução, o ataque à
Razão, à ciência, bem com a nostalgia pelos valores do passado, como a tradição
e as comunidades orgânicas, na qual cada estamento tinha o seu papel a
desempenhar na sociedade. Buscava-se o antídoto contra a idéia de luta de
classes e o individualismo burguês.
400
No Brasil, no mesmo período, parte
significativa da intelectualidade estava predisposta a aceitar a idéia de conceber o
Estado como um anjo tutelar da sociedade e considerar esta como um organismo
fixo e homogêneo; ver no passado, na tradição uma “realidade inscrita” (pré-
política) encoberta e que poderia ser descoberta e revelada pelo intelectual por
meio da intuição
401
, atitude que mostrava haver certo ceticismo em relação à
Razão, à ciência e, também, recusa em aceitar a cultura importada e o
cosmopolitismo. A Razão Nacional deveria sobrepor-se à Razão Universal; em
conseqüência, a atenção dos intelectuais dos anos vinte dirigiu-se
399
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia
das Letras, 1995, p. 113.
400
Idem, p. 117.
401
Referimo-nos aos modernistas que se propuseram a captar a “alma brasileira” recorrendo à
intuição. MORAES, Eduardo Jardim. A brasilidade modernista ..., p. 41.
165
preferencialmente ao interior do Brasil, visando encontrar o sertanejo, a cultura
popular ou, ainda, a “alma do país”.
Outro aspecto que uniu as aspirações de grande parte da intelectualidade
d’além mar e daqui foi o repúdio ao individualismo burguês. No Brasil, essa atitude
manifestou-se por meio da valorização da solidariedade social e da cordialidade.
Manoel Bomfim pensou e escreveu nessa atmosfera política e cultural.
Estava em sintonia com a sua geração quanto a temática da questão nacional, a
tentativa de elaborar o retrato do Brasil, a concepção segundo a qual havia uma
“realidade” latente encoberta e que poderia ser revelada através da intuição
402
, a
ênfase na vida coletiva em detrimento do individual, a idolatria pelo passado.
Bomfim compartilhou ainda com outros tantos do seu tempo o desalento em
relação a República e ao atacar o assalto das instituições republicana pela
oligarquia. Porém, o leitor de sua obra historiográfica (referimo-nos aos textos da
maturidade) vislumbra um intelectual nadando contra a corrente ao fazer a defesa
da sociedade, dos ideais e das instituições liberais. Se na Europa e aqui se
apregoava a primazia do Estado em detrimento da sociedade civil ou da nação, o
nosso autor bateu forte na tecla da necessidade de reconstruir a nação a partir de
baixo. A nação apresentava-se aos seus olhos como um organismo doente; no
diagnóstico ele esteve ao lado dos intelectuais autoritários; contudo, o remédio a
ser aplicado Bomfim compartilhou ainda com outros tantos o desalento em relação
a República e ao atacar o assalto das instituições republicana pela oligarquia ia no
sentido contrário, pois a cura da nação não deveria dispensar o fortalecimento das
organizações da sociedade civil, das instituições liberais, das liberdades civis e
políticas, da instrução visando capacitar o povo para constituir-se como
cidadãos
403
. Mesmo quando falou em revolução, embora, como já observei, ele
não tenha precisado os sujeitos, é no âmbito da sociedade que estava pensando.
402
Embora Bomfim não tenha abandonado a crença na ciência, encontramos no Prefácio ao livro
O Brasil nação a menção à influência de Bérgson; a tese de que o “conhecimento tem de ser
surpreendido diretamente, no transmutar das coisas”; a centralidade do “afeto” que (...) predispõe
para essa condensação de experiência em que se intui a verdade” (grifo nosso). Cf. Prefácio. In:
BOMFIM, Manoel. O Brasil nação ..., p. 35-36.
403
De acordo com José Murilo de Carvalho
403
, Vianna filia-se a uma antiga tradição que remonta
ao Império, qual seja, a dos liberais conservadores, como era o caso emblemático o Visconde do
Uruguai, cujo pensamento teve grande influência na formação das idéias de Vianna. O modelo de
166
Para Oliveira Vianna a sociedade seria tanto mais livre quanto maior a
presença do Estado que deveria protegê-la da oligarquia. Bomfim, divergindo,
defendeu a idéia segundo a qual uma sociedade forte baseava-se na democracia
e na liberdade. O Estado precisava deixar de ser o parasita da nação,
subordinando-se aos interesses desta.
sociedade e de política idealizado por Vianna era o liberal, de acordo com Murilo de Carvalho. O
autoritarismo, desse modo, não era um fim em si, mas o meio para alcançar a sociedade liberal. Se
as concepções liberais conservadoras de Uruguai serviram de referência para o autor de
Populações Meridionais do Brasil, podemos apontar a comunhão de idéias entre Bomfim e Tavares
Bastos. Vianna e Uruguai, Bomfim e Bastos tinham em mente a sociedade liberal; divergiam
quanto ao caminho: os primeiros recomendavam o governo forte; Bomfim e Bastos apontaram para
as concepções liberais. A utopia de Oliveira Vianna. In: BASTOS, Élide Rugai; MOARES, João
Quartim de (Orgs.). O pensamento de Oliveira Vianna.. , p. 22-23.
167
Considerações finais
Para finalizar, apresento algumas observações que são, na realidade,
desdobramentos de questões tratadas até aqui. Abordo o papel da metáfora do
organicismo na elaboração das concepções teóricas e políticas do autor estudado,
a relação entre nacionalismo e internacionalismo na trajetória intelectual de
Bomfim e, mais brevemente, as causas das ambigüidades do seu pensamento.
A metáfora organicista
O pensamento de Bomfim organizou-se em termos da idéia de
organismo.
404
Na obra A América Latina, ele elaborou a analogia entre os
organismos vivos e organismos sociais. Esta metáfora não se destinava a unir os
saberes biológico e sociológico. O autor frisou a separação entre ambos,
afirmando que as leis que determinavam o funcionamento do mundo das plantas e
dos animais eram distintas das que regiam a vida dos homens. Isso ele aprendeu
com Darwin, como abordei no segundo capítulo. O organicismo apareceu
fundamentalmente como recurso discursivo para persuadir o leitor a respeito da
tese segundo a qual o parasitismo produzia a dependência de mão dupla entre
escravo e o seu explorador. O primeiro não conseguia viver fora dessa condição; o
segundo somente existia em função do trabalho do outro. Nessa relação
parasitária perdiam os dois lados, pois o dominado passava a ver a dominação
como dado natural e o dominante perdia vitalidade e decaía. Bomfim serviu-se da
metáfora organicista para tomar emprestado o prestígio das ciências naturais,
404
A metáfora organicista foi mencionada por Teresa Malatian para explicar o diagnóstico de
Manoel Bomfim sobre as nações latino-americanas. Ela destacou a centralidade do conceito de
parasitismo no discurso do autor de A América Latina como elemento essencial para elucidar as
causas do atraso e da inferioridade das ex-colônias ibero-americanas em relação à Europa e aos
Estados Unidos. A análise de Malatian difere, em parte, da minha, pois ela enfatizou a nação como
“um tipo indeterminado” ou um organismo amorfo. Isto é verdade quando a referência é o livro A
América Latina. As coisas mudam de feição caso a obra abordada seja O Brasil na América. Nesta,
a nação apresenta-se como um organismo homogêneo. A análise feita pela autora, a meu ver,
corre o risco de generalizar ao tomar o todo pela parte, perdendo assim as nuances da reflexão do
intelectual sergipano sobre a nação. Metáfora e nação: a identidade Latino-Americana em Manuel
Bomfim. In: GRACINDO, Eliane; IOKOI, M. Gricoli (Orgs.). América Latina Contemporânea:
desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: Expressão Cultural; São Paulo: EDUSP, 1996. (América:
raízes e trajetórias; 4).
168
conferindo credibilidade às suas concepções sociológicas e, também, para
explicitar como as classes dominantes degeneram.
A concepção de nação como um corpo orgânico acompanhou a trajetória
intelectual de Bomfim. Em A América Latina, a sua análise procurou mostrar as
causas econômicas e políticas do fenômeno da “dependência” (no plano externo)
e do atraso, do desequilíbrio e da falta de harmonia (no âmbito interno) do país.
Na trilogia historiográfica escrita nos anos 20, o seu esforço convergiu para
convencer o leitor de que a nação nasceu como um todo harmonioso. Na primeira
obra, o parasitismo ibérico foi apontado como causa de a nação ter ficado longe
do ideal e, nas demais, ele frisou a ão do Estado impedindo o desenvolvimento
de uma nação que nascera como conjunto integrado.
O recurso à metáfora organicista tem relação com autores como Saint-
Simon, Comte, Spencer e Durkheim e os românticos.
405
Suas afirmações
aproximam-se das proposições do autor Da divisão do trabalho social, como
lembrou Renato Ortiz.
406
Na Europa, a ênfase na idéia do corpo, da harmonia dos
contrários, das partes que funcionam em função do conjunto tinha relação com o
que se estava observando na sociedade industrial moderna com as suas
máquinas, a agitação urbana, a ascensão das massas e a agudização da luta de
classes. O que não se encaixava no figurino da “normalidade” era visto como
doença ou anomalia.
No pensamento de Bomfim, patologia não se referia às massas
“indisciplinadas” e violentas das sociedades industriais européias, mas ao
parasitismo ibérico, causador de assimetrias e desequilíbrios, como a hipertrofia
do Estado, a distância social e política entre povo e elite. Essa idéia está presente
na obra A América Latina. Nos outros escritos historiográficos, o autor buscava a
conciliação dos oposto, como a fusão das raças e das culturas. Na base do seu
405
De acordo com Judith Schalenger o romantismo buscava unidade, harmonia e conciliação de
opostos. Les métaphore de l’organisme ..., p. 44.
406
Memória coletiva e sincretismo científico: as teorias raciais do século XIX. In: ____. Cultura
brasileira e identidade nacional ..., p. 23. A educação, assunto sobre o qual Bomfim tantas vezes
escreveu, tinha uma função social (durkheimiana) bem definida: adaptar a criança ao meio social.
169
discurso nacionalista encontrava-se a vontade de “equilibrar antagonismos”.
407
A
idéia-força da argumentação do autor consistia em afirmar a unidade das raças, a
cooperação entre Estado e nação e combinação da modernidade com a tradição.
A adesão de Bomfim à metáfora organicista torna difícil aceitar a suposição
de que as idéias de Marx encontraram espaço no pensamento do autor de A
América Latina. A meu ver, a noção de “divisão do trabalho social” estaria mais
ajustada ao seu universo conceitual do que a de luta de classes.
Bomfim buscou em Darwin idéias para sustentar a sua concepção de
sociedade como um organismo. Daí a ênfase nos elementos que agregavam os
indivíduos, afastando-se, pois, do marxismo. Kautsky exemplifica a combinação de
marxismo e darwinismo, transformando a luta entre as espécies em luta de
classes. As noções de solidariedade e instintos sociais diziam respeito à
organização do proletariado e à rejeição do individualismo.
408
Por outro lado,
solidariedade, para Bomfm, refere-se à comunidade nacional, que se opunha ao
estrangeiro. O autor de A origem das espécies foi evocado para elaboração de
dois projetos distintos: Kautsky visava a emancipação da classe operária e
Bomfim queria construir o seu discurso nacionalista, o qual pressupunha conciliar
opostos (modernidade e tradição, raças e, quiçá, classes). O autor de O Brasil na
América estava preocupado em equilibrar antagonismos e não em acirrar a luta de
classes.
Nacionalismo versus internacionalismo
A perspectiva nacionalista de Manoel Bomfim balizou, na sua interpretação
da formação social e histórica do Brasil, temas, personagens, pontos de vistas,
407
O termo “equilíbrio de antagonismos” foi usado por Pallares-Burke a respeito de Freyre. Há
aspectos que aproximam o autor de Casa-grande e senzala e Bomfim, como a noção de
mestiçagem como elemento definidor da identidade nacional, a valorização do passado e a
propensão para pensar a realidade a partir da idéia de “equilíbrios de antagonismos”. Freyre se
inspirou em intelectuais ingleses do século XIX, sobretudo Spencer. A idéia de equilíbrio foi
tropicalizada, tornando-se importante para construir a tese sobre a conciliação das raças, o que
veio a ser conhecido com “democracia racial”. A respeito de Freyre, ver PALLARES-BURKE, Maria
Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos ... p. 376.
408
MASSIMO L, Salvadori. Kautsky entre ortodoxia e revisionismo. In: HOBSBAWM, Eric et alli
(Orgs). História do Marxismo II: o marxismo da Segunda Internacional. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982, p. 305.
170
julgamentos. A obra A América Latina foi escrita no contexto do Pan-
Americanismo e sinalizava para a necessidade de construir a unidade latino-
americana para se precaver contra a interferência dos Estados Unidos. Neste
texto, o acento recaiu sobre os distanciamentos, as hierarquias, as fricções entre
os diversos parasitas e parasitados (os escravos versus os senhores, metrópole
versus colônia, ex-colonias versus imperialismo estadunidense). N’O Brasil na
América, por outro lado, o autor privilegiou as “zonas intermediárias”, ou seja, as
“aproximações” e os “amaciamentos”. Desse modo, o que era relação de
parasitismo entre colonizador e colonizado transforma-se em ajuste, justaposição
ou fusão. A clivagem referia-se à dicotomia entre o local e as colônias espanholas:
a América Portuguesa foi associada à fusão, ao equilibro, à homogeneização (o
homem e a terra, as diversas raças, o colonizador e o colonizado, os espaços
geográficos, o poder central e os poderes regionais). A realidade hispano-
americana, por sua vez, foi descrita da perspectiva da dispersão, da
desagregação, do faccionismo político. Se Bomfim escreveu A América Latina
preocupado em contra-argumentar as opiniões preconceituosas dos europeus a
respeito da América Latina, ele reiterou no texto O Brasil na América outros
estigmas.
De A América Latina a O Brasil na América, a trajetória do pensamento de
Bomfim sofreu um certo fechamento de perspectiva, centrando-se no local e
abandonando o ponto de vista latino-americano. Tratava-se agora, em outro
contexto, no qual o nacionalismo ganhou nova roupagem, posteriormente à
Primeira Guerra, de delimitar e definir a peculiaridade do “eu” nacional. Essa
atitude teve conseqüência teórica digna de nota. Na ânsia de elaborar a idéia da
nação com características próprias, ele passou a valorizar a cultura em quase total
detrimento da análise econômica e reelaborou a sua interpretação da história
suprimindo o que se relacionava à mobilidade populacional, instabilidade,
dispersão, tensões, embates no Brasil colonial.
O autor criticara os “deturpadores” da história, ou seja, os que, em nome de
uma perspectiva universal, ocultaram as tradições nacionais, reproduzindo a
versão dos mais fortes. Todavia, se os adeptos das ditas idéias universais
171
escondiam interesses dos países imperialistas para justificar a sua dominação,
Bomfim propunha uma abordagem da história que negava as contradições e as
relações de dominação internas. Em suma, da análise que procurava pensar a
América como continente e dentro dela a oposição entre duas Américas (Estados
Unidos e os países latino-americanos) passou a olhar a nação brasileira como
uma realidade “insulada”. Querendo mostrar a singularidade da história e da
cultura brasileiras, Bomfm subordinou o internacionalismo
409
que estava presente
em A América Latina à abordagem centrada na abordagem estritamente nacional.
O tema nacionalismo versus internacionalismo chama a atenção para a
comparação entre Bomfim e Hobson. Este escreveu o seu estado pioneiro sobre o
“novo imperialismo” no mesmo período em que o intelectual brasileiro iniciou a
elaboração do livro A América Latina em Paris.
410
Há pontos comuns detectáveis
realizando-se rigoroso paralelismo: ambos utilizaram a noção de parasitismo;
411
um e outro revelaram os interesses econômicos que estavam por trás do discurso
“científico”, o qual separava a humanidade entre superiores e inferiores e
justificava a dominação dos países ocidentais sobre os povos não-brancos; a
teoria da seleção natural, para os dois, não servia para explicar os sucessos e os
fracassos das pessoas, pois na sociedade humana vitória ou derrota dependia de
fatores como a presença ou a ausência de igualdade de oportunidades;
concordavam com a afirmação segundo a qual o progresso das nações prescindia
das guerras (contrariando os que justificavam a luta como fator essencial para
fortalecer os indivíduos e as nações). Discordavam ainda dos que defendiam a
teoria malthusiana, ao afirmar que a aplicação da ciência à agricultura resolveria o
déficit de alimento em países populosos; na relação entre os seres humanos e
entre as nações, o método racional substituiria o natural e, além disso, o dispêndio
409
Lembrou Renato Ortiz que em A América Latina a “problemática brasileira somente existe
enquanto parte de um sistema mais abrangente, o da América Latina”. Op. cit., p. 23.
410
Em 1902 apareceu a primeira edição do livro Imperialism – A Study.
411
Para Hobson os grandes grupos financeiros eram os “parasitas do patriotismo”; o Imperialismo
não beneficia a nação, mas algumas classes. São os representantes destas classes que propagam
belas palavras sobre a necessidade de acabar com a escravidão e estender os benefícios da
civilização às “raças inferiores”, como “bons governos”, o cristianismo. Estúdio del Imperialismo.
Madrid: Alianza Editorial, 1981, p. 77.
172
de energia em formas primitivas de pugnas deveria ser canalizado para outros
fins, como o altruísmo e a solidariedade.
412
Construindo-se um paralelo entre o Bomfim que escreveu O Brasil na
América e Hobson, observa-se a oposição entre duas perspectivas de abordagem.
O primeiro centrou os seus esforços no “conhece a ti mesmo” nacional. O segundo
baseou o seu pensamento em âmbito universal. Bomfim quis revelar as tradições
nacionais em oposição às outras, inclusive as latino-americanas. Hobson
concebeu as nações dentro de um sistema amplo (a federação), implicando
intercâmbio de pessoas, bens, informações. Ambos abordaram o assunto da
mestiçagem e coincidiram quanto ao diagnóstico: os cruzamentos raciais
propiciavam o progresso da vida orgânica e social.
No entanto, há sutis diferenças. Bomfim viu a importância da mestiçagem
para definir a identidade nacional. Hobson, por outro lado, cria que os
cruzamentos, em um contexto em que as nações estariam convivendo
pacificamente e ajudando-se mutuamente, serviria para dinamizar a civilização e
incrementar o progresso humano.
413
O autor de O Brasil nação não queria o
isolamento do país da comunidade internacional e concordaria com Hobson que
os intercâmbios comercial, cultural, de informações e tecnológico eram uma
realidade e que o Brasil não poderia ficar fora. Bomfim queria a inserção do país,
mas sem prejuízo da tradição que definia a sua identidade.
Ao canalizar os seus esforços para a construção de um discurso
pedagógico nacionalista, Bomfim substituiu, muitas vezes, a análise por
afirmações de cunho moral. Daí, a combinação de interpretação estrutural da
realidade, quando o seu ângulo de visão se alarga, com o estreitamento de
perspectiva, quando o geral dá lugar ao maniqueísmo. Penso nas referências de
Bomfim à noção de “imperialismo”. A propósito, lembrou Ronaldo Conde Aguiar
que foi em A obra do germanismo que o nosso autor, pela primeira vez, utilizou o
412
A despeito dos pontos em comum entre Hobson e Bomfim, o tema da eugenia os separava.
Afirmei que Bomfim repudiou-a. Hobson, por outro lado, ainda que tenha rejeitado os “sistemas
mais primitivos de seleção”, aceitou, no contexto de uma organização política internacional, a
“eugenia racional”, a qual traria benefícios ao conjunto da sociedade universal. Cf. HOBSON, J.A.
Op. cit., p.185-186.
413
Idem, p. 185.
173
“verdadeiro nome”
414
para se reportar à dominação política e econômica de uma
nação sobre outras. Imperium significava “voracidade, a sede de riqueza e poder”.
Também no ensaio O Brasil nação, ele fez referência à dominação e exploração
das riquezas naturais (petróleo, por exemplo) pelos países europeus.
415
No
entanto, esta perspectiva internacionalista não se manifestou plenamente mesmo
quando o autor abordou os acontecimentos da Primeira Guerra. No artigo A obra
do germanismo, a sua análise circunscreveu, pontuou e o ângulo de percepção
ficou limitado, pois “império” foi visto como a vontade de expansão e dominação
política exclusivamente da Alemanha. Era como se outros países europeus não
tivessem idêntica pretensão. Aliás, para ele havia o “imperialismo nocivo” (o
alemão) e “impérios” justificáveis, como, por exemplo, a dominação inglesa sobre
os bôeres, saudada como uma “socialização civilizadora”.
416
Os intelectuais que se posicionaram contra os alemães quando da Primeira
Guerra solidarizam-se com os franceses. A adesão objetivava construir a idéia de
uma identidade latina em contraposição ao germanismo. Bomfim atacou os
alemães, mas não se juntou aos francófilos. A influência do nacionalismo fazia se
notar. Ao fechar o seu ângulo de observação para a questão nacional, o esboço
de internacionalismo perdeu espaço no seu pensamento.
As ambigüidades de Bomfim
No livro A América Latina, a interpretação do intelectual sergipano pode ser
aproximada aos libelos dos liberais abolicionistas do final do Império, que
revelaram as raízes econômicas (fincadas profundamente na escravidão) do
atraso e da barbárie de um país que somente na aparência era civilizada. Bomfim
ficava lado a lado, ainda, com Euclides da Cunha e Lima Barreto.
417
Este revelou a
condição em que vivia a população pobre da Capital Federal. O autor de Os
sertões trouxe à tona a população esquecida do sertão, revelando um país cindido
414
O Rebelde esquecido: tempo vida e obra de Manoel Bomfim ...,p. 428.
415
O Brasil nação ..., p. 45.
416
A obra do germanismo ....
417
Sobre Euclides e Lima Barreto, ver BOSI, Alfredo. O fio vermelho. Folha de S. Paulo, São
Paulo, Folhetim, 17 mai. 1981.
174
entre o litoral (“civilizado”) e o sertão (“bárbaro”) e denunciou o genocídio social
promovido pelo governo republicano. No pensamento dos três aparecia a cisão
entre elite e povo; entre governo e sociedade civil. Este Bomfim pode ser
aproximado aos discursos dos abolicionistas ou dos radicais das primeiras
décadas da República.
Quando escreveu O Brasil na América houve uma mudança rumo ao
conservadorismo. As idéias do livro publicado em 1929, em que valoriza a
mestiçagem (do português com o índio), atenua a participação do negro na
formação da nacionalidade, realça a identificação com a terra e defende a tese de
que o encontro entre o português e o nativo resultou em assimilação recíproca e
colaboração, aproximam-no da ala verde-amarela do modernismo paulista.
Ademais, ele transitou de uma perspectiva anti-romântica (ao desmistificar
a idéia mítica da fusão de raças) para a adesão ao ideário romântico. Ao aludir à
nação como a “alma do povo”, ele poderia ter aderido à concepção essencialista,
a qual está ligada à idéia de uma entidade natural, imutável, cuja origem remete à
criação divina. Nesta abordagem, o foco recai sobre os “aspectos emocionais e
idealizados da comunidade”, afastando-se das dimensões econômicas e
políticas.
418
Vistas as coisas desse ângulo, poder-s-ia ligar Bomfim às correntes
fascistas dos anos 1920? Não é tão simples assim. A trajetória do seu
pensamento é complexa e sinuosa. A análise exige cuidado. A nação não era uma
comunidade baseada em fatores inalteráveis como raça ou língua, em que
predominaria “um tipo branco de relativa pureza”.
419
Era, de modo diverso, uma
entidade histórica e cultural e potencialmente transformável (no caso brasileiro, a
mudança não se efetivava por causa do Estado-parasita que lhe tolhia o
movimento). Atraso, estagnação ou retrocesso do país eram causados por fatores
transitórios e não se ligavam a causas imutáveis.
A análise minuciosa dos textos de Bomfim revelou o nacionalista que
saudava a nação em discurso carregado de forte sentimentalismo e, ao mesmo
418
GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo no século XX.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p.9-10.
419
BOMFIM, Manoel. O Brasil nação ..., p.183.
175
tempo, elaborava uma crítica racional (baseada em fundamentos político e
econômico) ao abordar o Estado. O autor moderno que tinha um pé na ilustração
e defendia os valores universais a ela vinculados e, no entanto, filiava-se à
tradição romântica, exaltando o específico e o local. O intelectual que pode ser
rotulado de liberal ou marxista, foi apropriado pelo Estado Novo e é reverenciado
por amplos círculos da esquerda. O “radical” que atacava o conservadorismo de
alguns de seus pares, mas assimilava acriticamente certos pressupostos aceitos
por esses mesmos conservadores. O sociólogo que deixou sua análise ser
contaminada pelo moralismo. O indivíduo que fez um diagnóstico radical da
realidade social do país e propôs, no entanto, uma solução moderada.
Este trabalho abordou a trajetória intelectual de Bomfim visando captar
como ele lidou com as questões da sua época, com quem dialogou e com quais
intenções. Os significados de suas proposições devem ser buscados tanto no
âmbito individual quanto nas influências da atmosfera política e cultural da década
de 1920, período que me interessa neste momento. Refiro-me ao particular porque
entendo que Bomfim escolhia com bastante liberdade autores, apropriava-se de
idéias, retrabalhava-as e lhes conferia uma função inédita. Foi uma voz quase
solitária ao atacar o racismo e os adeptos da eugenia, correndo o risco do
ostracismo intelectual.
Quero ressaltar também o quanto muitas das ambigüidades, das
“fragilidades”, que procurei explicitar, se explicam se elas forem pensadas tendo
em vista o contexto político e cultural das primeiras décadas do século XX.
Bomfim não esteve além de seu tempo, como afirmaram alguns de seus
admiradores e intérpretes. Compartilhou com os seus amigos e desafetos a
experiência de viver em uma época em que havia poucas instituições científicas
de ensino e de pesquisa. Como a maioria deles, Bomfim era polígrafo e
autodidata. Ademais, a sociedade da Primeira República era ainda
predominantemente agrária e tradicional. É nesse meio que o homem de letras
tinha de disputar a atenção do público, que era, seguindo a tradição, mais
176
auditório do que leitor.
420
Nesse contexto, Bomfim atacou os que faziam uso da
verborragia vazia (Rui Barbosa, por exemplo) e, no entanto, não poucas vezes,
apelou para o sentimentalismo, juntando-se aos que Luiz Costa Lima chamou de
“especialistas do verbo fácil”.
O estudo da obra de Bomfim pôde revelar a complexidade de um
pensamento que se construiu da confluência de uma trajetória intelectual marcada
por marcante intuição pessoal e grande originalidade com as sugestões do
contexto político e cultural de sua época.
420
MACHADO NETO, A.L. Estrutura social da república das letras (sociologia da vida intelectual
brasileira – 1870-1930) ..., p. 120.
177
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Nota Biográfica
Manoel Bomfim nasceu em Bom Fim do Carira, povoado que pertencia à
província de Sergipe, em 8 de agosto de 1868. Filho de Paulino José do Bomfim –
um vaqueiro que se tornaria senhor de engenho e comerciante – e Maria
Joaquina, viveu a infância e parte da juventude no Engenho Bomfim. Em 1885,
contra a vontade do pai, partiu para Aracaju e deu inicio ao curso preparatório
para o ensino superior de medicina, que começaria em Salvador.
Em 1888, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde prosseguiu os estudos.
Apresentou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1890, a dissertação
Das nefrites, que lhe deu o título de doutor.
O prefeito Francisco Furquim Werneck de Almeida convidou Manoel
Bomfim para o cargo de subdiretor do Pedagogium, no qual foi empossado em 25
de junho de 1896. Criado por Benjamim Constant, quando este, no começo da
República, era ministro da Instrução, Correios e Telégrafos, o Pedagogium tinha a
função de coordenar e controlar as atividades educacionais do país, bem como
impulsionar a melhoria do ensino, oferecendo aperfeiçoamento e apoio material
aos professores.
Manoel Bomfim é conhecido como um batalhador em prol da instrução
pública; atuou como professor da Escola Normal do Rio de Janeiro e escreveu
sobre um dos seus assuntos preferidos: educação. Fundou e dirigiu a revista
Educação e Ensino, patrocinada pela Diretoria da Instrução Pública; lançou a
revista Pedagógica.
Data de 22 de abril de 1899, o parecer de Manoel Bomfim ao livro
Compêndio de história da América, de Rocha Pombo, que foi apresentado ao
Conselho Superior de Instrução Pública do Distrito Federal. Bomfim era, na época,
membro da comissão que promoveu concurso para escolha de um compêndio a
ser adotado nos cursos de História da América da Escola Normal. O parecer
continha várias idéias que reapareceriam na sua obra mais conhecida do autor –
América Latina: males de origem. Nesse momento, já era marcante seu interesse
pelas questões sobre a América Latina.
193
Em 1901, Bomfim participou da fundação da revista quinzenal A Universal e
na ocasião escreveu para outras revistas (Ilustração Brasileira, Os Annaes e
Kosmos) e vários jornais, como A Notícia, Tribuna, Jornal do Commercio, O Paiz,
A Nação, A Academia, O Correio da Semana, Correio do Brasil, A Crônica e A
Rua.
Em 1902, foi com a família para Paris, onde estudou, na Sorbonne,
psicologia experimental com Alfred Binet e George Dumas, Na capital francesa,
começou a escrever, em 1903, América Latina: males de origem. Concluiu a obra
no Rio de Janeiro e a publicou em 1905.
Ainda neste ano, Bomfim, juntamente com o poeta Cardoso Junior e o
jornalista Renato de Castro, lançou a revista semanal O tico-tico, voltada para o
público infantil e que foi, por décadas, um sucesso editorial.
Manoel Bomfim teve uma curta carreira política, mais precisamente um
mandato de dois anos como deputado federal. Entre 1907 e 1908, ocupou a vaga
do General Oliveira Valladão, que foi para o Senado. A reforma da educação
norteou os seus discursos e atuação. Tentou voltar à Câmara em 1909, mas
perdeu a eleição.
Data de 1910, a publicação do livro Através do Brasil, obra escrita em
parceria com Olavo Bilac, e dirigida para o público infanto-juvenil. Assim como a O
tico-tico, foi um sucesso de venda por várias décadas.
A segunda e última viagem de Bomfim à Europa aconteceu em 1910. Desta
vez foi estudar a organização do ensino profissional a pedido do governo
municipal. Retornou ao Brasil em 1911.
A vinculação afetiva com a província de origem, à qual dedicou o livro A
América Latina, talvez o tenha motivado a tornar-se, em 1912, sócio
correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Sergipe.
Assim como outros intelectuais, Manoel Bomfim se posicionou contra a
Alemanha na época da Primeira Guerra. Em 1915, ingressou na recém-criada Liga
Brasileira pelos Aliados, que foi presidida por Rui Barbosa.
Historiador, autor de livros para criança e artigos para revistas e jornais
sobre educação, Bomfim tornou-se, também, estudioso de psicologia. Autodidata
194
nesta área do conhecimento, deixou alguns livros sobre o assunto. Criou o
primeiro laboratório de psicologia experimental no Brasil, o qual funcionava no
Pedagogium.
Intelectual dedicado à questão nacional escreveu sobre tema, além de
América Latina: males de origem, O Brasil na história (1931), O Brasil na América
(1929) e o Brasil nação (1931).
Manoel Bomfim morreu 21 de abril de 1932.
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