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MÁQUINAS DESEJANTES E MODOS DE VIDA: A CONCEPÇÃO DE
DESEJO NO
ANTI
-
ÉDIPO
DE DELEUZE E GUATTARI
Por
Clécio Ferreira Branco
Dissertação apresentada ao departamento de pós
-graduação em filosofia
da Universidade Gama Filho como parte d
os requisitos para obtenção do
título de mestre em filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Vasconcellos
Março de 2006
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ii
MÁQUINAS DESEJANTES E MODOS DE VIDA: A CONCEPÇÃO DE
DESEJO NO ANTI
-
ÉDIPO DE DELEUZE E GUATTARI
Clécio Ferreira Bran
co
Dissertação de mestrado
apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da
Universidade Gama Filho,
submetida à aprovação pela Banca
Examinadora composta pelos
seguintes membros:
___________________
____________________________
Prof. Dr. Jorge Vasconcellos (orientador)
_______________________________________________
Prof. Dr. Mário Bruno (UERJ)
_______________________________________________
Prof. Dr. Norman Madarasz (CAPES/PPGF
-
UGF)
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iii
DEDICATÓRIA
Para Lindóia, minha mãe. À Dilnéia
Branco, por me tolerar nesses dias de
pesquisa. A Rafael e à Gladys, por
suportarem meu isolamento.
iv
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, ao meu orientador Prof. Dr. Jorge Vasconcellos
por sua dedicação e responsabilidade.
À Profa. Dra. Silvia Pimenta, por ler meus ensaios e oferecer
críticas preciosas.
v
RÉSUMÉ
En considérant la valeur donnée au concept de désir en tant que
production, de la forme comme il est représenté par Deleuze et Guattari
dans
L´Anti
-
Œdipe
, nous défendons que celui-ci aurait des implications
importantes sur la formation de la pensée et la vie. Le désir, comme
production, s´inscrit dans la critique deleuzienne des philosophies de la
représentation et, plus tard, avec Guattari, il inclut une critique de la
notion psychanalitique le concept se trouve, ancré sous la loi de la
castration. Le désir comme création de styles de vie se trouve dans
Anti
-
Œdipe
où, pour comprendre les évènements sociaux, il est devenu
impérieux de considérer la force du désir opérant aux niveaux successifs
de la famille à la société. Tout en répudiant la relation avec le négatif et
des valeurs qui déprécient les puissances de la vie, de la pensée et du
désir, les auteurs font usage de nouveaux concepts qui opèrent
ensemble: rhizome, corps sans organes, devenir, parmi d´autres, qui
conduisent la pensée et la vie à partir d´un champ d´immanence. Les deux
principaux courants la métaphysique classique et la philosophie de la
différence
- , maintiennent des axes distincts ayant des conséquences
directement liées aux modes de penser et de vivre. Dans le premier cas, la
pensée et la vie dépendent de la transcendance; dans le deuxième cas, le
désir, la pensée et la vie partagent, chacun de sa manière, un plan
immanence. Par conséquent, y a-t-il une nouvelle forme de penser le désir
séparé des préssuposés de la carence et du manque. Le désir est defini
par le corps sans organes qui est son camp d´immanence.
vi
BRANCO, Clécio F. Máquinas desejantes e modos de vida: a
concepção
de desejo no Anti-Édipo de Deleuze e Guattari. Dissertação de Mestrado,
Orientador: Prof. Dr. Jorge Vasconcellos. Rio de Janeiro: Programa de
Pós
-
Graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho, 2006.
RESUMO
Considerando o valor dado ao conceito de desejo como produção,
da maneira como é apresentado por Deleuze e Guattari em O Anti-
Édipo
,
defendemos que o mesmo teria implicações importantes na formação do
pensamento e da vida. O desejo, como produção, se inscreve na crítica
deleuzeana às filosofias da representação, e, mais tarde com Guattari,
inclui uma crítica à noção psicanalítica do desejo sob a lei da castração.
Nossa pesquisa busca os elementos que operam esse conceito. O desejo,
como criação de estilos de vida, se encontra no
Anti
-
Édipo
, onde para
entender os acontecimentos sociais tornou-se imperioso considerar a
força do desejo operando em níveis sucessivos, da família à sociedade.
Repudiando a relação com o negativo, valores que menosprezam as
potências do desejo, os autores fazem uso de novos conceitos, que
operam em conjunto: rizoma, corpo sem órgãos, devir, dentre outros que
conduzem o pensamento e a vida a partir de um plano de imanência. As
duas principais correntes a metafísica clássica e a filosofia da diferença
- mantêm eixos distintos e com conseqüências diretamente ligadas aos
modos de pensar e viver. No primeiro caso, o pensamento e a vida
dependem da transcendência; no segundo caso, o desejo, o
pensamento e a vida partilham, cada um a seu modo, de um plano de
imanê
ncia. Conseqüentemente uma nova maneira de pensar o desejo,
separado dos pressupostos da carência e da falta. O desejo se define
pelo corpo sem órgãos que é seu campo de imanência.
vii
SUMÁRIO
Introdução.......................................................
...................................................1
Capítulo I
Um modo de fazer filosofia.........................................................11
Agenciamentos: encontros em filosofia........................................................18
Capítulo
II
A concepção metafísica do desejo...........................................23
Desejo de alguma coisa: desejo e objeto......................................................23
O nascimento do amor........................................................
............................28
Capítulo III
O inconsciente “caldeirão efervescente”...............................35
As sínteses do inconsciente: forças que repetem.......................................43
Despedindo
-
se do desejo falta...................
....................................................53
Esquizofrenia e modos de vida......................................................................55
As máquinas desejantes.............................................................................
....58
O inconsciente e a criação do pensamento..................................................59
Capítulo IV
Desejo, natureza e sociedade..................................................67
Desejo e poder...............................................
..................................................70
Diferentes modos de codificação dos fluxos................................................75
Máquina social: a formação do socius..........................................................76
Máquina primi
tiva ou máquina selvagem......................................................77
Máquina bárbara ou despótica.......................................................................78
Máquina capitalista civilizada...........................................
..............................80
Capítulo V
O
Anti
-
Édipo
: o desejo como possibilidade de modos de
vida....................................................................................................................90
Experimentações com a própria vi
da..........................................................101
Conclusão.......................................................................................................110
viii
Referências bibl
iográficas............................................................................118
Anexo
Glossário dos conceitos utilizados neste trabalho.....................124
ix
“Na filosofia da diferença de Gilles
Deleuz
e, o homem não é divino e a vida não
é bela ou feia. Não há nenhuma entidade
transcendente que sirva de modelo para a
vida, portanto, não existe esperança que
faça o homem fugir de sua condição
estética e ética. A vida será sempre o
resultado das interaçõe
s maquínicas entre o
homem e a natureza”
. Clécio Branco, 2006.
x
1
INTRODUÇÃO
Nossa pesquisa procurou investigar a crítica do
Anti
-
Édipo
ao conceito
de desejo que se manteve fiel à noção do platonismo e que se encontra
historicamente nas filosofias da representação. O propósito principal desse
trabalho foi elaborar um mapeamento, localizando onde esta crítica investiga a
estreita relação entre desejo, pensamento e modos de vida.
Se, como ficou marcado em O que é a filosofia?, de Deleuze e Guattari,
publicado pela Editora 34 (São Paulo) e traduzido por Bento Prado Júnior e
Alberto Alonso Muñoz, um conceito pode sofrer os efeitos dos acontecimentos,
ou, que “todo conceito remete a um problema”
1
, e também é verdade que “um
conceito se esvanece, perde seus contornos ou adquire outros novos que o
transformam”
2
, nosso trabalho procurou essa questão em relação ao conceito
de desejo. Os conceitos podem se instalar seguros por algum tempo, até que
um
outrem
esboce uma nova cara assustadora, impondo desconforto à
calmaria, o que pode ser o prenúncio da reinvenção do conceito. A noção que
vinha sendo mantida durante muito tempo, preservou-se fiel à matriz da
carência e da falta, sempre se definiu a partir do exterior. A questão deveria
ser pensada sobre tudo como um problema que envolve diferentes maneiras
de viver, pelo menos em suas duas vertentes. A vertente tradicional da
metafísica clássica que se desdobra em sedentarismo: desejo que espera o
objeto alhures, renúncia em troca de promessas de felicidades futuras no
mundo onde nada falta. O homem precisa se ajustar aos ideais teológicos da
moral religiosa, carregar cargas, o peso do “não” a tudo que é paixão.
Modernamente, os psicanalistas reinventaram o desejo como uma
defasagem, desejo que alucina um objeto perdido para sempre. A questão não
é atacar a psicanálise, mas é necessário desmontar as armadilhas da matriz
que aprisionou o desejo e reinventar o conceito.
1
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz..
São Paulo: Ed. 34, 2004,
p. 27.
2
Id., p. 41
-
42.
2
Com Deleuze e Guattari, surge uma outra vertente que pensa o desejo
diretamente ligado à produção. Nesse novo caminho, pode-se pensar
diferentemente do determinismo da falta. Nesse caso, não um objeto a ser
desejado: deseja-se não porque falta, mas porque o “desejo é causalidade
h
umana”
3
. Os objetos são todos segundos em relação a ele, o que implica a
mudança no modo de pensar. Para Deleuze e Guattari, o importante é que o
desejo tenha o seu próprio campo de imanência, isso para livrar a vida do
determinismo moral. Daí, ligar o des
ejo
à noção de máquina
.
Esse
empreendimento faz parte do grande esforço em fazer do pensamento uma
atividade afirmativa
4
. Deleuze, em parceria com Guattari, destitui o desejo de
toda falta e o inconsciente da triangulação familiar. Inconsciente e desejo
pa
ssam a fazer parte do universo das máquinas desejantes.
No capítulo dois de
Diálogos
, Deleuze faz a seguinte afirmação: “O
desejo é sempre agenciado, maquinado sobre um plano de imanência”
5
. Logo,
não é válido colocá-lo relacionado à falta ou à lei, ou que
esse seria um desejo
impossível. Seria o mesmo que submeter o desejo às instâncias
transcendentes que submetem tudo a um juízo moral. Deleuze e Guattari
colocam o desejo num plano de imanência, logo, não pode haver um a priori
do desejo. O plano de imanência desse é o corpo sem órgãos de que nos fala
Antonin Artaud
6
.
Freud descobriu o “inconsciente de intensidades” que circula fluxos de
desejo, mas, como diriam os autores do
Anti
-
Édipo
, o seu erro foi ter reduzido
tudo ao espaço familiar. O inconsciente é um complexo acoplamento de
máquinas. “As máquinas desejantes rosnam, no fundo do inconsciente"
7
.
O
desejo desliza do campo de imanência e não respeita nenhuma lei. Uma nova
maneira de pensar o inconsciente e o desejo inscrevendo-o numa ontologia da
3
ESPINOSA, B. In: Os Pensadores: introdução. Trad. Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Ed. Abril
Cultural, 1979. p. XX.
4
DELEUZE, G
. Nietzsche e a filosofia.
Trad. Alberto Campos. Lisboa: Ed. 70, 1981, p. 29..
5
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Tr. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed. Escuta, 1998, p.
121.
6
LINS, D. Antonin Artaud.
O Artesão do Corpo Sem Órgãos.
Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 1999,
p. 62.
7
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esqu
izofrenia
Trad. Georges Lamaziere.
Rio de Janeiro: Ed. Imago 1976,
p. 74.
3
difer
ença. Tal maneira de pensar implica uma crítica à psicanálise, à medida
que esta limita o desejo ao território da família
8
.
Para atingir este objetivo, traçamos o seguinte roteiro: o primeiro
capítulo, trata de uma justificativa para nosso desenvolvimento. Com Félix
Guattari, em O que é a filosofia?
9
, Deleuze apresenta a tarefa do filósofo como
um trabalho de artesão, que não se identifica em nada com os contadores de
história da filosofia. Criar conceitos é sempre uma forma de procriar, proliferar,
in
festar o pensamento daquilo que ainda não foi dito, um impensado entre as
coisas pensadas. É o que Deleuze chama de roubo, mas um furto espiritual,
um afeto que se desdobra em criação. A atitude filosófica é sempre criação de
conceitos. Estes estão espalhados ao longo da obra de Deleuze, mas
principalmente nos textos em parceria com Guattari: O Anti-
Édipo
10
, Mil
Platôs
11
e O que é a Filosofia?
12
Percebe-se uma interligação entre os
conceitos nessas obras, como acontece com o conceito de
rizoma
que
trabalha por conexões e não se deixa sobrecodificar. O rizoma trabalha com
outros conceitos: as
multiplicidades
, que se definem pelo
fora
,
linha abstrata,
linha de fuga, ou
desterritorialização
, é a forma como elas mudam de natureza
e podem se conectar a outras. “Por
fora
existe o
plano de consistência
, que é o
plano de todas as
multiplicidades”
13
, longe dos riscos de uma hierarquização
ou de uma sobrecodificação. Assim acontece com o conceito de
desejo
que
opera sempre por
fluxos
desterritorializados e descodificados
.
O desejo
trabalha por agenciamentos maquínicos, esses conceitos vêm carregados de
sentido para se elaborar a noção de inconsciente, tal qual se encontra em
Diferença e Repetição. Esse inconsciente não depende de nada para existir, e
o desejo não se remete
a nenhuma lei ou instância que não seja ele mesmo
14
.
8
SILVA, Cíntia Vieira da. O conceito de desejo na filosofia de Gilles Deleuze. São Paulo: UNICAMP,
2000, p. 1. (Dissertação de Mestrado).
9
Op.cit
.
10
Op.cit.
11
DELEUZE, G. e GUATTA
RI, F.
Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.
v. 1.
Trad. Aurélio Guerra
Neto e Célia Pinto Costa
.
São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 17. (Grifo meu)
12
Op.cit
.
13
Op.cit.
(Grifo meu)
14
A questão não é substituir o inconsciente psicológico da psicanálise por um outro, desmerecendo o
primeiro. O fato é que existe por de baixo do inconsciente descritivo, as intensidades, devires, libido em
estado puro. Para pensar a criação de modos de vida, a filosofia da diferença de Gilles Deleuze faz uso
desse inconsciente pré
-i
ndividual.
4
O alvo é o modelo de funcionamento do pensamento calculável,
ordenado, previsível e explicável casualmente. Os conceitos são o sentido
próprio do poder criativo das pré-realidades caóticas: rizoma, corpo
sem
órgãos, fluxos, códigos, etc., são sistemas anti-sistemas. “São conceitos que
correspondem ao funcionamento acidental, incidental, ocasional, catastrófico,
turbulento”
15
.
A essência do movimento da vida é fluida, descontrolada e
constantemente desorgani
zadora. Sempre houve uma preocupação em conter
o
caos
, mas, hoje, tornou-se necessário um novo olhar cientifico sobre as
coisas
16
. Baremblitt diz que, os cientistas “têm-se dedicado a estudar o que
chamam de Interface, ou seja, a passagem de uma condição de uma ordenada
e determinista a uma desordenada e caótica, e vice-
versa”
17
. Todas as coisas
se assentam sobre essa superfície imanente, daí a criação de conceitos que
possam dar conta das passagens que destroem entidades específicas e que
surgem outras qual
itativamente novas.
O segundo capítulo trata da concepção do desejo que sempre
dependeu de um objeto de fora, ou que não tenha objeto possível. Do
platonismo a nossos dias, desenvolveu-se teologias, dramas teatrais
idealistas, verdadeiras armadilhas ao desejo. A psicanálise circunscreveu o
desejo no pequeno espaço familiar e injetou um fardo moral em suas costas,
desejo incestuoso. Desejamos o que não podemos, por isso, é preciso abrir
mão de parte da felicidade para se viver em sociedade
18
. Com alguma
difer
ença, a metafísica clássica e a psicanálise se mantiveram fiéis à mesma
matriz: somos uma metade desde o início, procuramos algo que não está em
nós. A noção negativa do desejo pode ser vista como estratégia para subjugar
a sua natureza revolucionária. Por que no desejo subjaz a potência de
metamorfose, dele deriva toda criação.
O terceiro capítulo se refere à leitura do inconsciente, sob o ponto de
vista da crítica do
Anti
-
Édipo
. Com o advento da psicanálise, pensar o desejo
implica pensar as noções do inconsciente: o inconsciente freudiano perdeu a
15
BAREMBLITT, G.
Introdução à esquizoanálise
. Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari, 1998, p. 110.
16
Cf. OLIVEIRA, Luiz Alberto de “Biontes, Bióides e Borgues”. In: NOVAES, A. (org). O Homem
Máquina:
a ciência manipula o corp
o
. São Paulo: Ed
. Companhia das Letras, 2003.
17
BAREMBLITT, G.
Op. Cit.,
p. 110.
18
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Trad. José Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Ed.
Imago, 1996.
5
riqueza efervescente e a inquietude do ateísmo de suas origens e voltou-se a
se centrar na análise do eu e na interpretação
19
. Mas, as divergências não nos
devem fazer perder de vista o valor dinâmico do inconsciente freudiano, que o
seu autor tantas vezes sublinhou. Segundo Pardo
20
, Freud logo cuidou em
reterritorializar a produção primária em uma determinada codificação, ligando a
libido a um objeto, e, portanto, atou o desejo a uma falta: negando desse modo,
ao
desejo, a sua característica de livre produção de intensidade. Para
compreender o sentido dinâmico do inconsciente, os autores do
Anti
-
Édipo
consideram apropriado relacionar o uso do termo esquizofrenia ligado
especificamente ao inconsciente: um inconsciente que antes de sofrer as
injunções da edipianização é esquizofrênico, mas não é como o zumbi da
psiquiatria. A questão não é mais interpretar o inconsciente em relação restrita
ao sexual fechado no triângulo familiar, o inconsciente opera por deslizamento
e agenciamento, é rizoma. Então, a relação não se fecha na sexualidade, “mas
também com o animal, com o vegetal, com o mundo, com a política, com o
livro, com as coisas da natureza (...) todo tipo de devires”
21
.
Em
O
Anti
-
Édipo,
são as “máquinas desejantes que rosnam” por trás do
inconsciente da psicanálise. Não é o inconsciente reprimido pelo recalque que
aparece nos atos falhos e nos sonhos. Não que esse não exista, mas o fato
é que, para haver criação, não basta um inconsciente que recorda.
Recordar
e
repetir
não diz em respeito ao ato de pensar que se sempre a partir do
impensado.
No quarto capítulo, relacionamos o inconsciente “máquina desejante”
com as forças produtivas e sociais. Segundo a escrita do
Anti
-
Édipo
foi esse o
erro das análises de maio de 68, na França: uniram Marx e Freud, mas
restringindo as forças do desejo e do inconsciente às interpretações do micro
espaço familiar e as forças produtivas sob a ótica econômica. A nova maneira
de enxergar consiste em pensar os acontecimentos injetando o desejo na
sociedade como um todo. Segundo Deleuze e Guattari, as condições daqueles
dias mantinham recalcadas “as questões do sexo e da enunciação para o lado
19
Em 1923, no artigo “O ego e o id”, Freud fala de um inconsciente dinâmico que é pura força. Este é o
inconsciente que interessa à nossa pesquisa.
20
PARDO, Luiz J.
Deleuze, violentar el pensamiento
. Paidos: Madri, 1990.
21
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia
, v
. 1. Trad. Aurélio Guerra
Neto. São Paulo:
Ed. 34, 2004, p. 20.
6
da representação, o mais afastado possível da produção”
22
. Os autores
pretendem introduzir uma nova análise do desejo, do inconsciente e da
loucura. Com eles, procuramos mostrar que o capitalismo e o desejo
trabalham, acerto ponto, numa relação de semelhança. Os fluxos do desejo,
livres e descodificados, ameaçam toda hierarquia de valores familiares e
sociais. O capitalismo tem algo em comum com esses fluxos, a máquina
axiomática capital-dinheiro, desterritorializa os territórios sociais e os da
natureza, para transformar tudo em dinheiro. O movimento ondulante do
capitalismo transforma tudo em lucro, não respeitando nada. A diferença em
relação ao desejo é que ele não produz um produto pré-especificado, desejo é
produção de produção. Daí, a questão ética do desejo.
Finalmente, no capítulo cinco, para fazer sentido com o que
defendemos, é preciso lembrar e tirar lições das “revoluções traídas”. Ler
O
Anti
-
Édipo,
além da dose necessária de embriaguês, é preciso doses de
humor. Para Furtos e Roussillon, “a loucura, o desejo e a revolução formam
uma trama da sua reflexão”
23
.
Ou, pelo menos devemos buscar a questão mais
ampla desse livro. As teorias revolucionárias se ocuparam da hipótese de que
o poder pertenceria a uma classe dominante que se define pelos seus
interesses.
24
Porém, a grande questão que se escondia por trás dessa
hipótese foi rev
elada pelo
Anti
-
Édipo
. As massas que não partilham os mesmos
interesses das chamadas classes dominantes abraçam estreitamente o poder e
desejam dele uma parcela. Tanto La Boétie, Espinosa e, mais recentemente
Reich, advertiram quanto a essa questão. As massas, normalmente, não são
enganadas pelos seus governos, elas desejam e mendigam uma parcela do
poder. Foucault, em sua introdução ao
Anti
-
Édipo
, edição americana, adverte-
nos quanto ao fascismo interiorizado e presente em todos nós. Em outra
22
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. In: CARRILHO, Manuel M. (org.). Capitalismo e Esquizofrenia:
dossier Anti
-
Édipo
. Trad. José Afonso Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 58.
23
Id. “O Anti
-
Édipo: tentativa de exploração
”,
p. 30.
24
Segundo Battista Mondin, a tese marxista e seus seguidores “defendem que a existência organizada dos
indivíduos, ou seja, a sociedade, é o resultado da organização dos meios de produção e da distribuição
entre os homens; forneceu um diagnóstico agudo e claro da sociedade moderna como sociedade baseada
na produção e apropriação privada da riqueza socialmente produzida, como sociedade que divide a
comunidade dos sujeitos em classes opostas: capitalistas e trabalhadores; mostrou que a distribuição
iníqua dos meios de produção produz inevitavelmente a luta de classes e que esta, por sua vez, levará ao
fim do capitalismo e ao triunfo do socialismo. O materialismo dialético elaborado por Marx, com a
colaboração de Engels, foi retomado e desenvolvido por Lênin, Stalin e Mão; e, segundo tendências
revisicionistas, por Gramsci, Marcuse, Bloch e Garaudy”. Cf. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia
.
São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 173.
7
ocasião, numa entrevista com Deleuze, declara Foucault: “Marx e Freud talvez
não sejam suficientes para nos ajudar a conhecer essa coisa o enigmática,
simultaneamente visível e invisível, presente e escondida, investida por todo
lado, a que se chama poder”
25
. A ilusão é acreditar que o poder e o desejo a
ele se encontrariam com aqueles que ocupam cargos influentes:
magistrados, governantes, o chefe de polícia, etc. O poder está difuso e pode
ser exercido em todo lugar onde haja relações: entre professores e alunos,
entre médicos e pacientes, em casa, entre os membros da mesma família.
Foucault adverte para esse exercício do poder fascista que habita dentro de
todos nós. Daí, o pensador tomar O
Anti
-
Édipo
como “uma introdução à vida
não fascista”. Os autores extraem potência dos acontecimentos, o que para
Baremblitt, “Eles se declaram
bricoleurs
, juntadores de idéias, sobretudo
juntadores de elementos cuja característica em comum é não ter nada em
comum”
26
. É preciso inventar singularmente um protocolo para a criação de
estilo vida. Este pode ser inspirado em Carlos Castañeda, em Antonin Artaud,
etc.
Ao final do texto, encontra-se, em anexo, um glossário para auxiliar o
leitor na compreensão dos conceitos que aparecem ao longo de nossa
pesquisa, uma síntese do vocabulário que deve servir de apoio para a leitura
da dissertação. Os iniciados na filosofia de Deleuze não encontrarão
nenhuma dificuldade em lidar com os conceitos descritos. Deleuze e Guattari
inventaram uma nova linguagem, não que tenham sido “ajudados” pel
os
intercessores, mas é certo que tenham sido afetados pelas vidas e por suas
idéias. Os conceitos são, desta forma, uma co-criação com os inumeráveis
intercessores: livros, animais, crianças, mas, sobretudo, alguns caros
pensadores; dentre eles, Nietzsche
, Espinosa, Foucault e Bergson.
Para que fiquem bem claros os motivos e os ensejos que encetaram
esta pesquisa, cumpre discorrermos sobre o contexto a partir do qual se
desenvolveram as proposições de Deleuze e Guattari, bem como o destinatário
dessa grande e enigmática obra da filosofia contemporânea. Desta forma,
abriremos, como se pode ver a seguir, um tópico destinado a esse fim.
25
Id. Ibid., p. 22.
26
BAREMBLITT, G.
Introdução à esquizoanálise
. Belo Horiz
onte: Instituto Félix Guattari, 1998, p. 18.
8
O livro não deveria ser visto apenas como um efeito do acontecimento
político de maio de 68 na França, mas, também como uma referência a esta
data a partir da qual tudo eclodiu. Não é simples, um contexto que ganha
corporeidade com a “revolução frustrada” daqueles dias. Segundo Manuel
Carrilho, “maio de 68 foi a manifestação de todas as pulsões libidinais em cuja
violenta repressão o poder sempre se constitui”
27
. A proposta do livro é
grandiosa quando se define como uma análise do poder e do desejo nos
momentos em que esses mais se fazem presentes, nos acontecimentos
sociais. É uma outra maneira de interpretar a sociedade e a história. O desejo
está enxertado de uma ponta à outra nos acontecimentos sociais. O nazismo
da Alemanha de Hitler e, toda espécie de fascismo, não só o da Itália de
Mussolini são frutos de um movimento revolucionário, e se não for visto desta
forma corremos o risco de não entendermos esses acontecimentos. “O que
animava as massas alemães? Era uma libido revolucionária que se cristalizou
numa máquina medonha e o stalinismo é, de certo modo, a mesma coisa”
28
.
O livro ressalta que, para entender as formações macros, as superestruturas, é
preciso considerar “uma infra-estrutura, é dela que o desejo faz parte. E a
economia para continuar a ser política tem de ser, fundamentalmente,
libidinal”
29
. É preciso ter à mão esses fatores que potencializam a produção do
An
ti
-
Édipo.
A quem se dirige esse livro? Nas palavras de Deleuze: “Felix diz que o
nosso livro se dirige a pessoas que têm entre 7 e 15 anos”
30
, mas isso não
pode ser tomado assim, em minha opinião, é claro. Deleuze se remete a uma
conversa informal que teria tido com Guattari, mas que não poderia ser tomada
como uma tese. O livro começa o primeiro capítulo com palavrões e isso se
aproxima muito das crianças naquela idade, no entanto, certamente, não é um
livro que se dirija às crianças. É o próprio Guattari quem diz que se deve
“começar pelo domínio das questões teóricas”
31
, e isso envolve a compreensão
do inconsciente psicanalítico, o entendimento da repressão do Édipo dos
27
CARRILHO, M. M.
Capitalismo e esquizofrenia:
dossier sobre o Anti
-
Édipo. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1976, p. 7.
28
Id., p. 9.
29
Id., p. 10.
30
Id. Deleuze e Guattari explicam
-
se... Entrevista 1, p. 63.
31
Id. Ibid.
, p. 57.
9
psicanalistas e da teoria do desejo de Deleuze e Guattari. O livro se destina a
quem está cansado da psicanálise e aos revolucionários que sonham que, com
suas interpretações da realidade, vão realizar uma sociedade mais justa. A
advertência do
Anti
-
Édipo
é para que os acontecimentos “daqueles dias” que
mostraram que os homens nem sempre agem conforme os seus interesses
revolucionários não sejam esquecidos e, finalmente, para os pensadores livres
que desejam experimentar novas maneiras de pensar e viver. O Anti-
Édipo
é
um livro de filosofia política, e no dizer de Foucault, “um manual de étic
a”. É um
ensino sobre como ficar longe do desejo fascista. É preciso escolher qual dos
muitos eixos críticos com os quais se irá trabalhar no
Anti
-
Édipo
. É um livro que
fala de Sociologia, uma análise da sociedade capitalista que descodifica todos
os códigos para ligar à máquina axiomática do capital. Aborda a História sobre
uma outra perspectiva. Existe uma história universal, que não é a da
necessidade e sim da contingência, que aparece em três formas de civilização,
a “primitiva”, a “despótica” e a nossa, atual “capitalista”. Eles incluem
personagens e conceitos da literatura para falar de psicanálise, no sentido de
subvertê
-
la.
Preferimos não enveredar pela crítica à psiquiatria que também é tema
fundamental do livro. Por sua extrema complexidade, exigiria uma outra
pesquisa. Por esse mesmo motivo, optamos por não incluir a crítica que se faz
à psicanálise lacaniana. Portanto, quando seguimos a crítica do Anti-Édipo à
psicanálise, estamos com os autores, focando a psicanálise freudiana.
Escolhemos a crítica à noção do desejo-falta que inclui seu corolário: a
castração que opera no inconsciente as forças de anti-produção e a crítica à
representação psíquica que mantêm o inconsciente no teatro familiar. Isso
inclui a crítica ao complexo de Édipo que funci
ona como máquina repressiva do
desejo. A subversão do livro inclui a substituição da idéia do inconsciente como
teatro pela idéia de inconsciente na qualidade de usina, questão de produção
de inconsciente e não de representação de conteúdos dele. A psicaná
lise,
limitada às interpretações edipianas, encontra seu limite na esquizofrenia. Para
O Anti
-
Édipo
, o delírio é histórico
-
mundial, não familiar: deliram
-
se raças, tribos,
culturas, organizações, posições sociais, etc. É uma tentativa de algo novo, e o
que
se propõe com os "platôs" é justamente a tentativa de constituir um
pensamento que se efetue através do "múltiplo" - e não a partir de uma lógica
10
binária, dualista, do tipo "um-dois", "sujeito-objeto", que se efetue por
dicotomia, tal como vemos na psicanálise, na lingüística e na informática. Visa-
se, portanto, à construção de uma teoria das multiplicidades que seja imanente,
que coloque propostas concretas de pensamento, ao invés de simplesmente se
limitar à crítica da psicanálise. Essas são algumas das questões do livro que
pretendemos explorar.
11
CAPÍTULO I
- UM MODO DE FAZER FILOSOFIA
No início dos anos 70, em resposta a um crítico severo que o acusava
de estar filosoficamente acuado, o pensador Gilles Deleuze escreveu
:
sou de uma geração, uma das últimas gerações que
foram mais ou menos assassinadas com a história da
filosofia. A história da filosofia exerce em filosofia
uma função repressora evidente (...)
32
.
Deleuze se opõe ao estilo de fazer história da filosofia que tem como
princípio fazer comentários ou recontá
-
la.
Você não vai se atrever a falar em seu nome
enquanto não tiver lido isto e aquilo, e aquilo sobre
isto. Na minha geração muitos não escaparam disso,
outros sim, inventando seus próprios métodos e
no
vas regras, um novo tom
33
.
Portanto, no lugar do comentário, tem-se uma tentativa de co-
pensamento,
situando a reflexão não exatamente no domínio de um determinado sistema
teórico a ser explicado. “Mas eu me compensava de várias maneiras. Primeiro,
gostan
do dos autores que se opunham à tradição racionalista dessa história”
34
.
Nem sobre o pensamento de Deleuze, nem acerca da obra de Nietzsche, mas
por entre esses autores. Como afirma Roberto Machado, “o pensamento de
Gilles Deleuze sempre se exerceu em relação a domínios ou objetos
heterogêneos”
35
. É a função dos intercessores tudo que causa uma
32
DELEUZE, G.
Conversações
. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 14.
33
Id.
34
Id. Ibid.
35
MACHADO, R.
Deleuze e a filosofia
. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1990, p. 3.
12
experiência sensível, um acontecimento, um conceito, a arte, a música, muitos
pensadores.
E entre Lucrécio, Hume, Espinosa, Nietzsche, há
para mim um vínculo secreto constituído pela crítica
do negativo, pela cultura da alegria, o ódio à
interioridade, a exterioridade das forças e das
relações, a denúncia do poder... etc
36
.
Trata
-se de uma filosofia do acontecimento, uma filosofia da
multiplicidade, cujas bases rompem com a filosofia do sujeito, da consciência.
Propõe lidar com a criação de conceitos e com a produção de acontecimentos
que os atualizem no perpétuo jogo entre virtuais e atuais:
virtus
37
, que é força
ligada ao
actualis
, é o ato que torna a força efetiva. No breve texto, “O atual e
o virtual”, Deleuze diz: “toda multiplicidade implica elementos atuais e
elementos virtuais”
38
. Não haveria, segundo Deleuze, objeto totalmente atual,
pois as imagens virtuais envolvem o atual, o “envolvem em círculos de
virtual
idade” que sempre se renovam, que se emitem permanentemente. A
filosofia consistência ao virtual através da criação de conceitos e a
consistência dos conceitos estaria nos acontecimentos. Os acontecimentos se
dão sobre um plano de imanência, aquilo que é criado pela vida, que não tem
um pressuposto, que não tem um plano de referências. A criação de conceitos
vai sempre pelo plano de imanência, sempre em criação a partir dos próprios
acontecimentos como singularidades pré-individuais e impessoais. Neste
sentido, a filosofia de Deleuze e Guattari tem uma propriedade criadora. A
atitude filosófica realiza-se na ação criadora, não é contemplação, não é
reflexão e, também, não é comunicativa.
Os conceitos de Deleuze (fluxos, códigos, cortes, encontro, desejo, etc.)
estão espalhados ao longo do
Anti
-
Édipo
. Não aparecem em uma seqüência.
Essa forma de escrever vem ao encontro daquilo que Deleuze define como
“um modo de fazer filosofia”. O que é a filosofia para Deleuze? No decurso de
sua obra, ele a define como a arte de formar, de “inventar conceitos, de criar
conceitos”. Não se fazia necessário tão somente que esta resposta acolhesse
36
DELEUZE, G.
op.cit
.
37
Energéia ou
dunamis
de onde deriva a
palavra dinamite (
em Aristóteles
38
DELEUZE, G. e PARNET, C. In:
Diálogos
. Trad. Heloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed. Escuta,
1998, p. 173.
13
a questão, ou seja, o que é a filosofia? Deleuze nos provoca com idéias de
pensar e de criar conceitos, como dispositivos, ferramentas, algo que é
inventado, criado, produzido, a partir das condições dadas e que opera no
âmbito mesmo destas condições. O conceito é um dispositivo que faz pensar.
A idéia é não se refugiar na "reflexão sobre", mas de operar, criar,
experimentar, sem ser "agitando velhos conceitos estereotipados como
esqueletos destinados a intimidar toda criação, (...) [não se contentando] em
limpar, raspar os ossos"
39
. Deixando emergir as multiplicidades, tais como
conceitos e experimentações. Dizem, Deleuze e Guattari:
era preciso formular essa questão entre amigos,
como uma confidência ou uma confiança, ou então,
face ao inimigo, como um desafio. E, ao mesmo
tempo uma dúvida, se era isso, mas eu não sei bem
se era isso, nem se eu fui assaz e convincente
40
.
situações em que os conceitos filosóficos são personagens
conceituais, que contribuem para a definição do que é fazer filosofia: amigo é
um desses personagens que seria uma testemunha favorável à origem grega
da filosofia, (
philos
-
sofia
) amigos da sabedoria. Outras civilizações (não
gregas) possuíam sábios
41
mas os gregos os substituíram por filósofos, esses
amigos da sabedoria, que a buscam incessantemente, mas que não se
apropriam dela.
que os personagens são conceitos, e os meios,
as paisagens, são espaços-tempos. Escreve-
se
sempre para dar vida, para liberar a vida onde ela
está aprisionada, para traçar linhas de fuga
42
.
Diz Deleuze: “Amigo designaria uma certa intimidade competente, uma
espécie de posto material, e uma potencialidade, como aquela do marceneiro
39
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Muñoz. São
Paulo: Ed. 34, 1992, p. 109.
40
Id. p., 9
-
10.
41
A sabedoria é mais ligada a sacerdotes, a religiões, a Estados, a leis, a estruturas fixas que devem ser
conhecidas por meio de alguma ascese ou de algum exercício que leve à ascensão até essas formas, do
que
propriamente a um exercício de pensamento. Então, a nossa questão sempre vai estar ligada a um
retorno para a imanência do pensamento.
42
DELEUZE, G.
Conversações
. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 176.
14
com a madeira”
43
. O bom marceneiro é, potencialmente, madeira, ele é um
amigo da madeira. Então, o bom filósofo, digamos assim, é, em potência,
amigo da filosofia. É ele quem faz, quem cria, quem forma e inventa os
conceitos que fazem a filosofia. E ao nos depararmos com a criação de
conceitos, deparamo-nos, também, com a criação de conceitos inviáveis,
arbitrários, inconsistentes e outros que são bem-feitos, que testemunham uma
criação, ainda que uma criação inquietante e perigosa como é o caso
de
Deleuze e Guattari. Assim, “o filósofo é o amigo do conceito, o filósofo é o
conceito em potência”
44
e a filosofia é a disciplina que consiste em criar
conceitos, conceitos sempre novos. As ciências buscam suas verdades
criando proposições, mas “criar c
onceitos no sentido restrito compete apenas à
filosofia”
45
. Este é o objeto da filosofia. Diz Deleuze:
Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos,
como corpos celestes, não céus para os
conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou,
antes,
criados, e o seriam nada sem a assinatura
daqueles que os criam
46
.
Segundo Deleuze, Nietzsche determinou, de um certo modo, qual
deveria ser a tarefa da filosofia, quando escreve:
Os filósofos não devem mais se contentar em limpar
os conceitos, polir
os conceitos e fazê
-
los reluzir, mas
é necessário que eles comecem por fabricá-
los,
afirmá
-
los, persuadindo os homens a utilizá
-
los
47
.
43
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Muñoz. São
Paulo: Ed. 34, 2004, p. 18.
44
Id.
45
Id. Ibid.
46
Id. Ibid. Deleuze não está falando aqui da assinatura do homem indivíduo, filósofo que criou o
conceito, mas sim do homem-filósofo acontecimento circunstancial, de um dado contexto histórico, de
uma dada época: o homem de seu tempo. De um homem com sua assinatura comprometida com os
acontecimentos de seu tempo. Assim como o
cogito
tem a assinatura de Descartes, o
conatus
tem a
impressão de Espinos
a,
essência
pertence a Platão, etc.
47
Id. Ibid.
15
e, aí, nós poderíamos dizer: utilizar os conceitos como ferramentas
48
. A
filosofia não deve redizer o filósofo, mas dizer o que ele subentendia
necessariamente, naquilo que ele dizia, mas que não estava dito
explicitamente. Aquilo deve estar presente no que determinado filósofo disse,
mas não estava explícito, neste caso não deve ser redizer, copiar o que o
filósofo havia dito, mas roubar aquilo que ele diz a partir daquilo que se
entendeu que ele disse, a partir de um roubo que é singular. Cada um rouba a
seu modo, o que remete àquilo que Deleuze disse no início, ou seja, que a
tarefa da filosofia é sempre uma tarefa de criar conceitos. Ainda quando lança
mão de um conceito de Nietzsche, de Espinosa, de Bergson, ele está
recriando aqueles conceitos, ele não os está copiando. No entanto, “a filosofia
sempre teve seus inimigos, e ainda os tem”
49
. Quais seriam os atuais inimigos
da filosofia? A informática, a comunicação, que fazem uma promoção
comercial e uma apropriação dos conceitos. Para Deleuze: “(...) apoderaram-
se da própria palavra conceito e disseram: é nosso negócio, somos nós os
criativos, nós somos os
conceituadores
! Somos nós os amigos dos conceitos,
nós os colocamos em computadores (...)”
50
.
Os técnicos, nessas disciplinas, falam em criatividade, em ter de ser
criativo no mundo empresarial. No entanto, o que Deleuze e Guattari
consideram como conceitos criativos? São aqueles que tratam dos planos
problemáticos da época contemporânea. Não é o caso da apropriação do
conceito de rizoma, que a informática utiliza para fazer uma promoção
comercial. Um pelotão de “conceituadores”, uma raça de jovens executivos
que tenta se comunicar com os conceitos da filosofia. “Eis que o conceito se
tornou o conjunto das apresentações de um produto (...) que se pode
vender”
51
.
48
A noção de conceito como ferramenta nos remete às questões éticas e estéticas. A criação de conceitos
nos leva a pensar a criação de uma nova forma de pensar e, conseqüentemente, a criação de novos modos
de
viver. Por exemplo, a noção de um pensamento cartográfico que nos aproxima das noções de
movimento da vida, um pensamento que é desejo, pensamento-ação, linhas que se conectam a partir dos
agenciamentos e dos encontros, um modelo rizomático que elimina um a priori. Deleuze, ao trabalhar a
história da filosofia, não trabalhava com uma reflexão sobre os momentos filosóficos, mas como a arte do
retrato em pintura, “são retratos conceituais” em que se pinta parecido, mas a semelhança daquele retrato
deve ser produzida, não reproduzida. Então, Deleuze não trabalha os conceitos como reprodução, mas
como produção.
49
Id. Ibid., p. 19.
50
Id. Ibid.
51
Id. Ibid.
16
Segundo Deleuze, o conceito é aquilo que impede que o pensamento seja
apenas uma conversa, um bate-papo, uma opinião, “um conselho, uma
discussão, uma tagarelice”
52
. Todo conceito é forçosamente um paradoxo;
nunca vem pronto com começo, meio e fim para ser declamado. O conceito de
rizoma, por exemplo, está ligado ao modo do pensamento. O pensamento
rizomático é como a grama, é como a erva daninha que não se sabe como
surgiu, como acabou, começa pelo meio, é sempre entre dois. “Tudo é o
rizoma. Pensar nas coisas, entre as coisas é justamente criar rizomas e não
raízes, (...). Criar população no deserto e não criar espécies e gêneros em
uma floresta. Povoar sem jamais especificar”
53
.
É assim que eles tratam as questões. O que Deleuze propõe é a fuga das
questões. “As objeções nunca levaram a nada. O mesmo acontece quando me
colocam uma questão geral. O objetivo não é responder a questões, é sair
delas”
54
.
Responder a uma questão é obturar essa questão, é impedir que ela se
movimente no sentido de múltiplas saídas que ela possa ter. Muito mais
interessante que a resposta, “é o silêncio ou a gagueira, e que seria como uma
linha
de fuga da linguagem (...). Dir-
se
-ia também: desfazer o rosto, fazer com
que o rosto fuja”
55
. Responder a uma questão é fazer com que ela se reduza a
uma única saída, é levá-la ao nível de um pressuposto de origem, de um
fundamento que tem que desencadear as raias de uma verdade única,
cientificista. Os inconvenientes dessa imagem de pensamento vêm do fato de
determinar os fundamentos, um sistema de raízes, ponto de partida: “(...) do
qual dependem todos os enunciados produzidos, de fazer reconhecer e
ident
ificar em ordem de significações dominantes ou de poderes
estabelecidos: quando se diz: “Eu, na qualidade de (...)”
56
.
Sempre se parte de um pressuposto, de um fundamento ou de uma
escola. Não é voltar às questões do passado, num movimento arqueológico,
apr
isionar
-
se no passado para fazer filosofia. Não seria nem esse passo para o
passado, nem um olhar para o futuro, como previu o socialismo, nunca se
52
DELEUZE, G.
Conversações
. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 170.
53
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad Heloísa Araújo Ribeiro . São Paulo: Escuta, 1998, p. 36.
54
Id., p. 9.
55
Id. Ibid., p. 32.
56
Id. Ibid., p. 37.
17
tratou de ter respostas prontas para as questões. O marxismo se pautou
sempre por um projeto para o futuro, projetos alternativos para uma sociedade
sem classes, um projeto para o mundo. Deleuze está interessado mais em
processos. O pensamento cartográfico, o pensamento rizomático, entre outros,
estão sempre nos remetendo a processos. Não se trata de dar respostas aos
problemas, mas sim de abrir as questões ao campo das multiplicidades e das
criações singulares. Deleuze propõe uma saída das formas binárias do
tratamento das questões e propõe a criação de conceitos como uma forma de
criar inquietações, deixar as q
uestões sobre uma certa tensão. Em vez de ir ao
passado ou de se dirigir ao futuro, tratar
-
se
-
ia de captar os devires perceptíveis
que se gestam na atualidade, trata-se de se conectar aos devires. Como diz
Deleuze: “Trata-se, antes, no devir, de involuir: não é nem regredir, nem
progredir. Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio, cada vez mais simples,
tornar
-se cada vez mais deserto e, assim, mais povoado”
57
.
O devir filósofo não tem nada a ver com a história da filosofia, devir é
justamente não imitar, não partir de um modelo pronto, como pretende a
informática quando se apropria do conceito de rizoma. É não partir de posições
e pressupostos teóricos pré-estabelecidos, máquinas binárias (questão–
resposta, feminino–masculino, homem–animal). “Há sempre uma máq
uina
binária que preside a distribuição dos papéis e que faz com que todas as
respostas devam passar por questões pré-formadas”
58
. Tem de se passar pelo
sujeito do enunciado, do lugar de onde se está falando, de qual raiz ou ramo:
“assim se constitui uma tal trama que tudo o que não passa pela trama não
pode, materialmente, ser ouvido”
59
.
Deleuze não parte para a construção da filosofia dessas máquinas
binárias. O devir filósofo é como as núpcias entre dois reinos, para se opor à
noção de máquinas binárias. O exemplo de Deleuze está nas núpcias entre as
vespas e as orquídeas: a orquídea parece formar uma imagem de vespa,
mas, na verdade, há um devir
-
vespa da orquídea, um devir
-
orquídea da vespa,
uma dupla captura, pois “o que” cada um se torna não muda menos
do
57
Id. Ibid., p. 39.
58
Id. Ibid., p. 29.
59
Id. Ibid.
18
“aquele” que se torna”
60
. Nesse encontro
entre
-
dois
, muito de cada um se
desterritorializa no outro. O agenciamento é justo assim, não se trata de uma
totalização, mas de um “roubo”. “A vespa se torna parte do aparelho reprodutor
da orquídea, ao mesmo tempo em que a orquídea torna-se órgão sexual para
a vespa. Um único e mesmo devir, um único bloco de devir”
61
. É, na verdade,
“uma dupla captura”: um processo desterritorializante em que a vespa deixa de
ter o seu território restrito e a orquídea deixa de ter exclusividade sobre o seu
território. O que se passa entre esses dois reinos? Um processo de
desterritorialização, perder-se em relação ao território originário para
encontrar
-se numa outra situação de misturas entre territórios. Nesse
processo, não nada a compreender ou a interpretar. Isso foi mal visto no
caso do pequeno Hans
62
. Freud e a família do pequenino Hans canalizaram
tudo para um único centro, falou-se o tempo todo em nome da criança,
faltou escutarem-na: “a criança tenta de todos os modos e de todas as formas,
escapar. Não se parou nunca de lhe QUEBRAR SEU RIZOMA, de lhe
MANCHAR SEU MAPA, de colocá-lo no bom lugar”
63
. Ainda voltaremos a
tocar nessa questão.
“Os conceitos”, dizem Deleuze e Guattari, “são exatamente como sons,
como cores, como imagens, os conceitos são intensidades. São intensidades,
que passam ou não passam”
64
. Não se trata também “de fazer parte de uma
escola filosófica ou de se criar uma escola”. Não se trata de criar uma escola
deleuzeana. Uma escola é confortável, é alguma coisa que nos acolhe e nos
salvaguarda dos perigos das experimentações perigosas. É um lar seguro de
onde se parte das mesmas teorias, dos mesmos princípios, da mesma prática
clínica. Não ter escola implica uma certa solidão, não uma solidão solitária,
ma
s uma solidão povoada de encontros, encontros com o devir que irrompe,
ou com as núpcias. Que se construa essa solidão exilada de escolas, exiladas
60
Id. Ibid., p. 10.
61
Id. Ibid.
62
Os autores se referem ao caso do Pequeno Hans, menino de quatro anos e meio que desenvolveu uma
fobia à cavalos. O professor Sigmund Freud, como aparece na descrição do caso, orientou o pai do
menino a observá-lo e, de uma certa maneira, tratá-lo. A leitura do caso, bem como da análise de
Hans,
revela
-se soberba em possibilidades de apreensão dos conceitos fundamentais da psicanálise. FREUD,
Sigmund: Analise de uma fobia em um menino de cinco anos (1909). Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. X. Rio de Janeir
o: Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1996.
63
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs:
capitalismo
e
esquizofrenia
. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra
Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 23.
64
Id, p. 15.
19
de idéias pré-concebidas, de fundamentos inamovíveis, de modelos
estratificados. Como fazer uma escola na so
lidão?
AGENCIAMENTOS: ENCONTROS EM FILOSOFIA
Não se trata apenas do encontro inter-pessoas, mas de um encontro de
idéias, de movimentos, de acontecimentos. Desde que saibamos vê
-
los, desde
que com eles nos conectemos, desde em que neles nos impliquemos. Tais
encontros são como um devir, devir vespa
-
orquídea, no qual cada um encontra
o outro ainda que cada um não tenha nada a ver com o outro. É o encontro da
diferença que produz um algo entre os dois. Não é o encontro em que um se
torna o outro, é o encontro que introduz um
entre
-
dois,
é uma novidade, uma
nova possibilidade de vida: no trabalho, na família, na escola, na religião, na
rua, em qualquer lugar. Não é cópia de modelo pronto, não é assimilação de
um pelo outro, não é interpessoal, é uma mistura em que um rouba o outro e o
roubo não é plágio nem cópia: roubar uma potência não é copiar nem de
plagiar. Trata-se de se deixar afetar por uma potência que se encontra no
pensamento do outro. Assim como Deleuze e Guattari que se roubaram o
tempo todo, mas não deixaram sinais de plágio ou cópia. Essa captura, esse
encontro entre dois, é sempre uma dupla captura, o roubo é um duplo roubo, e
as núpcias são sempre fora e entre. Diz Deleuze: “a justiça e a justeza de
idéias são coisas ruins, não são idéias muito boas, tanto faz se aparecem num
filme, num livro, numa música ou numa obra de arte, nada de justeza, apenas
idéias”
65
.
Assim sendo, que produzam o encontro, o devir, o
entre
-
dois
, o roubo, as
núpcias: esse
entre
-
dois
das solidões, que o é de ninguém, mas está
entre todos. “Não se deve procurar se uma idéia é justa ou verdadeira
66
. Seria
preciso procurar uma idéia bem diferente, em outra parte, em outro domínio,
tal que, entre os dois, alguma coisa se passe, que não está nem em um nem
65
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. Heloísa
Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed. Escuta, 1998. p.
17.
66
Seria como um olhar pré-concebido sobre as coisas. Imaginemos o quanto se perdeu de Espinosa ao se
fechar preconceitualmente na questão do panteísmo. O mundo cristão perdeu a essência da obra de
Espin
osa, não viu nada, apenas odiou a questão panteísta. Pensemos no caso de Carlos Castañeda: deixá-
lo de lado por causa do elemento místico ou, quem sabe por causa da mescalina do peyote.
20
em outro”
67
. Esse é o sentido do agenciamento, buscar em outros planos,
outros saberes uma idéia que complemente uma outra: rizoma da Botânica,
linhas e mapas da Geografia, entre outros. “Ora, geralmente, não se encontra
essa outra idéia sozinho, é preciso um acaso, ou que a
lguém a dê a você. Não
é preciso ser sábio, saber ou conhecer determinado domínio, mas aprender
isso ou aquilo em domínios bem diferentes”
68
.
Não precisamos valorar as idéias, dar-lhes um estatuto de justiça ou
justeza, assim como tentaram fazer com a vida, esquecendo que à vida nada
falta, não é uma questão de valorá-la ou aquilatar o pensamento, mas de
transvalorar os valores. Os encontros são agenciamentos de idéias e é desses
encontros que se extrai a potência dos conceitos.
Para Deleuze e Guattari, a história da filosofia sempre se comportou como
um agente de poder em relação ao pensamento. Se não se leu Platão,
Descartes, Hegel, Kant, Heidegger
69
, como se pode estar falando essas
coisas? “Uma formidável escola de intimidação que fabrica especialistas d
o
pensamento, mas que também faz com que aqueles que ficam fora se ajustem
ainda mais a essa especialidade da qual zombam”
70
. É assim que a história da
filosofia concebe a filosofia. Essa história é feita como uma forma de
“intimidação do pensamento”
71
, uma forma de fazer o pensamento ter receio,
um meio de fabricar especialistas da justiça e da justeza. Diferente do
pensamento que se orienta pela imanência, pelo movimento da vida, pelo
plano
rizomático,
que não se reporta a Descartes ou a quem quer que seja.
Deleuze prefere usar como intercessores os autores que pareciam fazer parte
da história da filosofia, mas que escapavam dela, ou por um lado ou por todas
as partes
72
. Todos eles, curiosamente, têm uma vida atravessada pela
fragilidade, entretanto, com uma constituição insuperável. Eles procedem
apenas por potência positiva e de afirmação. Talvez, o que esses pensadores
tivessem de tão sedutor, fosse esse “culto à vida”. São encontros entre
pessoas e idéias que fazem um outro tipo de história da filosofia, assim como
foi o encontro de Deleuze e Guattari: “o que fizemos foi um agenciamento a
67
Id., p. 17.
68
Id., p. 18.
69
Id., p. 21.
70
Id. Ibid.
71
Id., p. 21
-
2.
72
Id., p. 9
45.
21
dois, onde algo passava entre os dois”
73
. Sobre esse encontro, Deleuze se
refere como tendo um devir-filósofo e muitos outros devires. “Félix era um
homem de grupo, de bandos ou de tribos, no entanto, era um homem sozinho,
deserto povoado de todos esses grupos e de todos os seus amigos, de todos
os seus devires”
74
. Nesse tipo de encontro, não é o trabalho a dois que conta,
não é o que cada um faz estando em dois: “mas o que contava para nós era
menos trabalhar juntos do que trabalhar
entre
-
dois
75
.
Era assim que eles deixavam de ser o autor, não havia uma parte de um e
de outro, mas o efeito dos acontecimentos
entre
-
dois.
Dizem eles:
“Escrevemos este livro como um rizoma. Compu
semô
-lo com platôs
(...).Tivemos experiências alucinatórias, vimos linhas, como fileiras de
formiguinhas, a abandonar um platô para ir a um outro”
76
.
Esse
entre
-
dois
remetia a outras pessoas diferentes, tanto de um lado,
quanto de outro: o deserto crescia e ia se povoando cada vez mais, não tem
nada a ver com escola, com processos de re-cognição, mas tem a ver com
encontros. Daí, os devires, os roubos, as núpcias com reinos diversos,
trabalhos
entre
-
dois
: “eles se compõem como dois riachos, dois rios”
77
, que ao
se juntarem fazem um terceiro. Passa a ser, tão somente acontecimento que
destrói o verbo ser, o eu sou se dissolve um no outro. “Quando eu dizia que
Félix e eu éramos mais como riachos, queria dizer que a individuação não é
necessariamente pessoal”
78
. Isso porque há muito de impessoal que nos
atravessa, toda uma natureza que nos afeta o tempo todo. “Não temos
certeza alguma de que somos pessoas: uma corrente de ar, um vento, um dia,
uma hora do dia, um riacho, um lugar, uma batalha, uma doença têm uma
individualidade não pessoal”
79
.
São como dois riachos, dois rios. Sobre a
produção do
Anti
-
Édipo
,
O que é a filosofia
e
Mil Platôs diria Deleuze: não
trabalhamos juntos, trabalhamos com os “ecos” que se produzem
entre
-
dois
.
Não se pode negar a história da filosofia, e não é esse o que preconizam
Deleuze e Guattari, mas sim de criar uma outra maneira de se fazer filosofia.
73
Id., p. 24.
74
Id. Ibid.
75
Id. Ibid.
76
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia
.
Vol. 1 Trad. Aurélio Guerra
Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 33
-
34.
77
DELEUZE, G.
Conversações
. Trad
. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 176.
78
Id.
79
Id. Ibid.
22
Então à medida que abordarmos questões históricas, de seqüências, de obras,
de pensamentos, de lugares e de tempos, partiremos sempre de um ponto de
vista geológico, de um ponto de vista de um arqueólogo, isto para mencionar
um pensador que nos é afim, Foucault que, assim como Deleuze, faz uso da
história da forma mencionada. Foucault sempre viveu a relação com a história
como se essa fosse uma condição praticamente negativa. A história nunca foi
fundamento de nada a não ser um limitador do qual nós devemos fugir para
criar. Então, podemos livrar as nossas costas do peso da história nesse
sentido; ela vai ter apenas uma função à medida que ela é co-presente ao
nosso modo de vida. E, assim, a memória seria um impedimento do devir.
Nietzsche tem uma postura em relação à história a qual destitui a erudição e o
acúmulo de saberes e a história como um inimigo da vida
80
. No lugar do
tempo histórico, o intempestivo, “o esquecimento contra a memória, a
geografia contra a história, o mapa contra o decalque (...)”
81
.
80
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva. Da utilidade e desvantagem da história
para a vida. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003
.
81
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. In: MARCONDES, F. C. O escavador de silêncios: formas de
construir sentidos na comunicação. São Paulo: Ed. Paulus, 2004, p. 67.
23
CAPÍTULO II
A CONCEPÇÃO METAFÍSICA DO DESEJO
O conceito de desejo tem uma longa e importante tradição histórica no
Ocidente e está dividida em duas versões principais. A primeira estaria ligada
ao modelo platônico e que, mesmo na atual leitura psicanalítica, não perdeu a
sua tendência de se reportar à insuficiência da falta. E, para rediscutir a teoria
do desejo, o poderíamos deixar de fora a versão que vem sendo tecida por
Deleuze e Guattari, que se encontra desde Espinosa, e que, em nossos dias, é
o tema do
Anti
-
Édipo
. Essa importância é, sobretudo, ética, porque a imagem
de desejo, dependendo em qual se assume, contém implícita ou
explicitamente, valores que tendem a conduzir a existência de um modo
criativo e afirmativo ou de uma forma moral e sedentária
82
. O Anti-
Édipo
apresenta o conceito de desejo no entrelaçamento com a própria produção da
realidade e é por isso que pode ser entendido a partir dessa exterioridade
que se faz presente nos acontecimentos da sociedade. Rever essas
concepções do desejo implica também em rediscutir a teoria do inconsciente, e
é esse o trabalho do
Anti
-
Édipo
: o desejo é máquina e o inconsciente é
maquínico.
82
A Filosofia de Gilles Deleuze pretende ultrapassar a característica dominante no pensamento platônico,
ou seja: o dualismo que considera o mundo material como um mundo decaído e alienado do mundo das
essências. Esse dualismo faz com que o mundo seja, ou uma reprodução perfeita ou uma imitação mal
feita, uma participação limitada com o mundo ideal, perfeito, eterno, incorruptível, divino: o mundo das
Idéias. Neste sentido, tal
concepção
constitui uma maneira de pensar o desejo como negatividade. O
desejo é sensibilidade, fluidez e devir, por isso uma ameaça ao perfeito estado desencarnado da Idéia de
perfeiç
ão. No
Banquete
, que citaremos mais adiante, essa concepção do desejo irrompe no discurso de
Aristófanes e no de Ágatão. O método da divisão, no
Sofista
, no
Político
e no
Fedon
apresenta as
maneiras de encurralar o simulacro. Em Lógica do sentido, Gilles D
eleuze
trata da reversão do
platonismo que se inicia ao final do
Sofista
.
24
DESEJO DE ALGUMA COISA: DESEJO E OBJETO
A questão, neste capítulo, é fazer uma comparação entre duas formas
de conceber o desejo: a primeira concepção segue a tradição metafísica, é
aquilo que se tornou “natural” e passou a ser aceita como “bons costumes”. O
centro de referência para essa concepção do desejo se encontra no
platonismo
83
, que solidificou um modo de viver e de pensar calcado na moral,
na razão e no Estado. Esse modo de vida, ao longo do tempo, sofreu
inovaçõ
es
84
de dentro da filosofia, com a teologia e mais modernamente com a
psicanálise. Essas inovações criaram mecanismos de assujeitamento das
paixões, pela desqualificação do desejo. Vejamos essa via que triunfou no
Ocidente judaico-cristão e que se pelas lentes do Estado, da razão e da
83
Referimo-nos ao dualismo que se reflete em todos os setores da filosofia. Segundo Battista Mondin,
em seu livro Introdução à filosofia.( São Paulo: Edições Paulinas, 1980. p. 163), “na
lógica
, onde segue-
se o procedimento dialético; na
gnosiologia
, que desvaloriza o conhecimento sensitivo, reduzindo-o à
função de reavivar a lembrança das Idéias (teoria da reminiscência); na
psicologia
, com a identificação a
uma só alma, espiritual e imortal, considerando o corpo uma prisão e um obstáculo às atividades da alma;
na
ética
, onde se ordena um rígido controle ou antes a completa supressão dos instintos e das paixões, o
que torna possível a separação da alma da prisão do corpo, é a contemp
lação das Idéias; na
estética
, coma
desvalorização da comédia, da tragédia e das artes figurativas, pois não favorecem a elevação do espírito;
na
polític
a, com a divisão da sociedade em classes e a atribuição do governo ao filósofo-rei”. O Estado
justo deverá ser aquele cujo governo estiver nas mãos do filósofo, daquele que já contemplou o Bem em
si e que não confunde com ele as coisas que dele participam; aquele que, depois de contemplar o Bem,
reconheceu o dever que lhe incumbe de levar os outros a compartilharem a sua visão. Platão resume, na
República
, V. (473): “A menos que os filósofos sejam reis ou que os que hodiernamente se nomeiam reis
e soberanos sejam verdadeira e seriamente filósofos, de sorte que a autoridade política e a filosofia
acopladas se encontrem no mesmo indivíduo, enquanto que se excluam do governo quantos atualmente
aspiram a uma das duas vocações sem a outra, fora disto (...) não há medicina para os males que afligem e
devastam o Estado e o próprio gênero humano, nem jamais surgirá na Terra e virá à luz do sol o Estado
perfeito, cujo o plano projetamos”. Esta nova política e este novo Estado não se baseiam na retórica (tal
como queriam os sofistas), mas tem a filosofia por seu instrumento de acesso aos verdadeiros valores da
Justiça e do Bem. Três são as obras de Platão dedicadas especialmente à política: a República, a Política
e As Leis
, cuja referência se encontra na bibliografia final deste trabalho.
84
Se é verdade que Sócrates e Platão questionavam os homens; Aristóteles questionava as coisas. A
preocupação constante de Aristóteles é vencer a abstração da Idéia Platônica, concretizar, individualizar o
conceito, o que nova valorização ao sensível, como também confere nova valorização ao pensamento.
Em
Ética à Nicômaco, X 1179b 35, (apud GILES, Thomas Ransom, Introdução à filosofia. São Paulo:
Edusp, 1979. p. 52.), Aristóteles diz que “não basta saber que coisa é a virtude: é mister tornar-nos bons.
Se bastassem os raciocínios, bem deveríamos fazer de tudo para procurarmos muitos. Mas, contudo,
embora servindo para reafirmar no culto do belo e do bom os mais nobres e bem nascidos dentre os
jovens, eles são impotentes no induzir ao bem e à beleza a grande maioria”. Depois, os representantes, do
platonismo e do aristotelismo vão aparecer na Filosofia Medieval. Santo Agostinho vai viver no
maniqueísmo
entre o bem e o mal, a luz e as trevas, Deus e o Diabo, espírito e a matéria. Formas
teológicas da repressão do desejo e da paixão. As Idéias desencarnadas do platonismo se transferem para
Deus que tem em Si os arquétipos de todas as coisas. Conhecer a verdade é o mesmo que conhecer a
Deus. Tomás de Aquino introduz na teologia as idéias de Aristóteles. As provas da existência de Deus se
fundamentam na doutrina do Ser. A primeira prova é uma explicitação do axioma: aquilo que é movido é
movido por um outro. É a cadeia infinita de causas e efeitos: toda causa é causada, mas deve haver uma
causa que causa todas as outras. Essa é a causa primeira que é Deus. (Suma Teológica, parte I questão II,
artigo 3. apud GILES, Thomas Ransom,
Introdução à filosofia
. São Paulo: Edusp, 1979. p. 58.)
25
moral. A outra, que abordaremos mais adiante, toma o caminho da afirmação
da vida na paixão pela terra, para além do juízo de Deus
85
, Nessa concepção,
ao desejo nada falta, ele se afirma em sua força, em sua natureza de produ
ção
da realidade. Voltaremos a falar. sobre essa noção mais adiante
Para pensarmos o desejo relacionado a objeto, faz-se necessário uma
breve consideração sobre o que se passa na cena de O
Banquete
86
. Ao
visitarmos esse texto, damo-nos conta de que ele foi produzido 2500 anos.
Entretanto, falar sobre
O
Banquete
é abordar uma situação ou um problema de
hoje. Não estamos nos referindo a uma história ou a uma investigação
arqueológica:
O Banquete de Platão nos fala de uma questão atual ou, pelo
menos, pode
mos dizer que há algo de atual nesse diálogo.
O que se passa na cena de O
Banquete
é o seguinte: há um jantar
comemorativo na casa de um poeta (Agátão) que acaba de ganhar um prêmio
num concurso de tragédia. Nesse jantar comemorativo, decidem, ali mesmo,
instituir um novo concurso
87
, Não é mais um concurso de tragédias, mas um
concurso de oratória, cujo tema central deveria ser o amor; cada um deveria
discorrer sobre ele, e o mais belo discurso seria o vencedor. Os discursos são
em número de sete, mas vamos refletir apenas sobre dois dos sete. São os
mais significativos para este trabalho, a saber, o discurso de Aristófanes e o
outro de Agátão com Sócrates
88
.
Aristófanes é um escritor de comédias e de sátiras políticas, um poeta
cômico. Aristófanes, através de um mito, discursa sobre o amor: no início havia
três gêneros, um masculino, um feminino e um terceiro gênero andrógeno.
Cada indivíduo, no início, era uma espécie de duplo, ou seja, tinha o dobro das
coisas que nós temos: tamanho, órgãos, membros, etc. Diz Platão: “o homem
de então tomava a direção que lhe bem parecia; (...) movimentava-se muito
85
Assujeitamento não do desejo, mas também do pensamento. A teoria das Idéias no Fedro determina
as reminiscências aos modelos. (PLATÃO. Fedro, São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 87 90). No
Fédon
, o sentido de aprender aparece como recordar. A intimidação do pensamento se por
conseqüência da então existência do mundo que modela a vida. A gênese de um juízo se encontra na
realidade supra celeste onde a culpabilidade se confronta com a inocência do devir. É ver o desespero
de Santo Agostinho diante da música cantada. (AGOSTINHO. “O prazer do ouvido”. In:
Confissões
.
Trad. J. Oliveira Santos e Ambrósio de Pina. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1999. p. 293, Coleção Os
Pensadores).
86
PLATÃO.
O Banquete
. Trad. Jean Melville.
São Paulo: Martin Claret, 2004.
87
Sobre o tema, ver: LACAN, J. O Seminário 8: a transferência. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
88
PLATÃO,
O Banquete
.
Op.cit., p. 1
21
122.
26
depressa, riscando
-
se círculos no ar (...). Eram por conseguinte de uma força e
um vigor terríveis e uma grande presunção eles tinham”
89
.
E, segundo Aristófanes, esses seres, dessa forma unidos, juntavam
tamanha força e presunção que tentaram, unidos entre eles, fazer uma
escalada aos céus
90
. Depois de muito refletir, Zeus, que era o maior dos
deuses, decidiu tomar a seguinte deliberação: cortar cada um deles em duas
partes, assim, obteria uma dupla vantagem: os homens, sendo mais
numerosos, seriam ao mesmo tempo mais úteis e, por terem sofrido um corte
em forma de punição, seriam mais submissos. Isso permaneceria como uma
ameaça de uma nova intervenção dos deuses
91
. O que temos aqui é uma
ameaça velada no mito: transformar todo mundo em um “monstro”, um aleijado
para não serem presunçosos e não ameaçarem tomar de assalto os territórios
celestiais que é de domínio exclusivo dos deuses.
E, Aristófanes continua o seu relato dizendo que a cada um que Zeus
cortava, ele mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o
lado do corte, afim de que contemplando a própria mutilação fosse mais
moderado. Entretanto, o que nos interessa nessa história é o desfecho. Eles
morriam de fome e de inércia em geral por nada quererem fazer longe um do
outro.
Platão parte de uma antiga natureza para lançar o amor (desejo) como
veículo de reencontro do complemento perdido. Ele apresenta o amor como
resposta para curar a ferida do corte. Nisto consiste o amor, nesta busca pela
restauração, busca pela inteireza originária, busca de uma completude
perdida. O que move os seres nesse discurso de Aristófanes? Seria essa
89
Id.,
p. 122.
90
Algo semelhante se passa nos primórdios da formação do judaísmo bíblico: “Ora, a terra toda tinha
uma língua, e uma maneira de falar. Partindo eles do oriente, acharam uma planície na terra de
Sinear e habitaram ali.
Disser
am uns aos outros: vinde, façamos tijolos e queimemo
-
los bem. Os tijolos lhes serviram de
pedra e o betume de cal.
Então disseram: vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo cume toque no céu, e
façamo
-
nos um nome, para que não sejamos espalha
dos sobre a face de toda a terra.
Mas desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificaram.
Disse o Senhor: o povo é um e todos têm uma só língua. Isto é o que começam a fazer; agora não
haverá restrição para tudo o que eles inte
ntarem fazer.
Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que não entenda um a língua do outro.
Assim, o Senhor os espalhou dali sobre a face de toda a terra, e cessaram de edificar a cidade.” (Bíblia
Sagrada, livro de Gênesis, 11).
Assim, ao longo do Antigo Testamento (principalmente no Pentateuco), vai se encontrar uma série de
repressões e recalcamento às manifestações de força do homem.
91
PLATÃO.
op.cit.,
p. 121.
27
busca de um estado primitivo? Parece que sim, esta nostalgia pela inte
gridade
primeira, esta saudade da unidade originária, daquela totalidade esférica
rompida pela vontade dos deuses.
Duas questões estão colocadas aqui nesse mito. A primeira tem relação
com o tipo de amor instaurado a partir do corte: o amor é uma nostalgia que
remete à totalidade perdida, à integridade ferida, mas também faz pensar na
impossibilidade dessa restauração integral, o que faz da (in)completude uma
constituição dos seres. É aqui que faz sentido dizer que o mito do discurso de
Aristófanes fala de uma realidade familiar, fala de nossos tempos. Quem o
percebe que as teorias contemporâneas falam do desejo nesses termos? São
elementos que compõem o nosso imaginário do desejo. E como isso se tornou
tão comum, o amor que completa o amado funda uma passividade e uma
submissão em relação a um outro qualquer que se encontra fora do amado.
Felicidade é uma esperança que se encontra fora dos homens e que é
possível a partir desse objeto que vem de fora. Essa história não nos parece
familiar, tão familiar
que, freqüentemente, a tomamos por natural?
um outro elemento, no discurso de Aristófanes, que deve nos
interessar, é o fato de que em
tal
completude originária dos seres duplos e
redondos havia uma grande força. Eles eram muito fortes, tinham uma
potê
ncia extraordinária, tinham uma arrogância que os tornavam soberbos até
ao ponto que culminou com a idéia de tomarem de assalto o território sagrado
dos deuses. Foi essa força e essa presunção que levou Zeus a tomar
providências: enfraquecer os insurretos, quebrar-lhes o orgulho e subjugar as
forças ativas para mantê
-
los em estado de conservação.
Platão se faz valer da estória de O
Banquete
para introduzir no desejo a
moral da finitude
92
: quebrar-lhes o orgulho, tornar os homens impotentes, feri-
92
O sentido em que o termo “finitude” está sendo tomado não tem nenhuma relação com a noção
simplista de limites. O valor desse termo se refere à gênese da castração. O homem está diante de sua
impossibilidade originária, cortado em sua fundação. Essa impossibilidade pode ser tomada como
genética da criação, como tem sido o caso da interpretação psicanalítica. A castração inaugura um real
que pode se desdobrar na criação do falus. Mas não estamos falando de uma castração restrita ao
complexo de Édipo, desejamos avançar para os planos da existência adentrando no ilimitado. Não existe
aqui a noção de limitação interior ou exterior, operação psíquica da castração que insere no inconsciente
uma lei (não-deves) ou, as questões teológicas de finitude/infinitude. Guilherme Castelo Branco, (no
texto,
A coisa e o desejo: a ontologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro,
Ed.
Nau, 1995, p. 47 68), nos
fala acerca da Coisa (das Ding) como uma potência criadora. Deleuze e Guattari nos apresenta o desejo
como causa das realidades. O termo finitude em, O Banquete, pode ter esse sentido de impossibilida
de
restrita à castração, mas nós estamos divergindo.
28
los, mutilá-los, torná-los doentios, enfraquecê-los para que não mais ameacem
a ordem instituída pelos céus. A ferida fica como “memória do castigo”
93
.
Platão faz todo homem carente de uma metade. Nada melhor do que o desejo
para fundar tal projeto de incompletude: Zeus instaurou um corte na natureza
humana que deu lugar ao desejo e que torna os humanos fracos. aqui
alguma coisa que se mantém na linha do enfraquecimento político do homem.
A ética ascensional ao Mundo das Idéias é soldada aqui no discurso de
Aristófa
nes: introduzir uma articulação, através do mito, de uma certa idéia de
fraqueza política na existência, uma idéia sobre a incompletude do homem.
Essa incompletude torna-se intrínseca ao desejo; em suma, uma relação
entre desejo e docilidade. Isto porque o desejo deriva de uma incompletude e
essa é uma fraqueza, porque torna os homens mais servis e mais
enfraquecidos. É evidente que Platão esteja utilizando aqui um misto de
determinação política por parte dos deuses de prolongarem sua dominação
sobre os homens e, ao mesmo tempo, de produzir nos humanos uma
insuficiência, uma fraqueza, uma debilidade chamada desejo. não estamos
falando de Zeus, mas de hoje, pois o poder sempre nos quis fracos,
impotentes, doentios: o poder nos quer insuficientes e dócei
s. Temos aqui uma
teologia, a fundação de uma religião, um elogio à fraqueza e uma exaltação à
morbidez.
O que Platão quer passar no mito de Aristófanes é que o ponto de
fundação do desejo, assim como a constituição de uma impotência, faz parte
de um mesmo processo, o exercício de um poder. Em outras palavras, a
questão do desejo e a questão do poder são indissociáveis, desde Platão.
O NASCIMENTO DO AMOR
Deixando o discurso de Aristófanes para trás, vamos tomar o segundo
discurso. Entra em cena Sócrates, ele não faz exatamente um discurso. Ele
usa um interlocutor a quem se dirige e extrai dele uma espécie de sabedoria,
93
PLATÃO.
Op.cit
., p. 120
-
126.
29
de revelação. Em O
Banquete
, o interlocutor de Sócrates é Agátão. Foi Agátão
quem começou o discurso e a quem Sócrates vai dirigir as perg
untas
94
.
Para Sócrates, saber significa saber definir a essência das coisas. Quem
não sabe definir as essências das coisas, fala, mas não sabe nada, não diz
coisa com coisa e acaba entrando em contradição consigo mesmo. Definir
uma coisa, para Sócrates, é atingir a sua essência. Na intervenção que faz ao
discurso de Agátão, ao invés de arranjar argumentos sobre o amor ou florear
os méritos do amor, Sócrates quer uma definição do amor, deseja examinar a
sua essência, quer a natureza do amor para depois verifi
car os seus efeitos.
Sócrates pergunta: “o amor é amor de nada ou amor de algo?”
95
. E Agátão
responde: é amor de algo. E Sócrates diria assim: e o amor deseja e ama
quando ele tem isto que ele deseja e ama, ou quando ele não o tem? Agátão
responde: quando n
ão o tem. Sócrates montou uma armadilha para Agátão.
Com duas frases, Sócrates faz uma desarrumação no discurso de
Agátão, numa suposta atitude de quem ignora, nisto consiste a sua
genialidade. Se o amor é o amor de alguma coisa, o amor pode existir em
relação a alguma coisa que está fora de si, algum objeto que o amor não
possui.
O homem deseja algo que não possui, algo que foi “perdido” e é esse algo
que se encontra num mundo metafísico. Na busca desesperada no mundo das
sensibilidades, o homem estaria, em vão, buscando aquilo que ele próprio não
tem e o é. O homem busca aquilo que lhe falta essencialmente. O amor ou
o desejo é carente de um objeto que não está à mão.“Quem deseja, deseja
aquilo de que é carente”
96
, sendo que não desejaria se não fosse carente.
Platão introduziu a noção de objeto na relação intrínseca do desejo com o
objeto, com algo que está alhures daquele que deseja. Nesse caso, diz
Sócrates: “o que se deseja é simplesmente prolongar no futuro isso que se
tem hoje”
97
. Desejar ou amar, nesse caso, seria querer o que se tem agora no
futuro, prolongar futuro adentro o que se tem no presente, preservar,
conservar. “Este, então como qualquer outro que deseja, deseja o que não
94
Id., p. 134
-
136.
95
Id. Ibid.
96
Id., p.135.
97
Id. Ibid.
30
está à mão nem consigo”
98
. Platão definiu o amor de forma mais simples: “O
amor é por natureza carência, carência de objeto, objeto que viria a suprir essa
carência”.
99
No entanto, estamos vendo que é impossível que essa carência
seja sustada ou interrompida, visto que sempre que se tem o objeto dos
desejos, não se o tem para sempre, não se pode o ter no futuro. De forma que
o amor, segundo Platão, é sempre escavado por uma certa falta de ser objeto
ou pela falta desse no futuro: uma trágica incompletude. Não é de surpreender
que não saímos da lógica anterior do discurso de Aristófanes, afinal quem está
descrevendo os
diálogos
é o mesmo Platão. Pela boca ou pelas mãos de
Platão, Sócrates impõe uma definição mais rigorosa à noção de desejo-
amor,
a saber, a lógica da incompletude.
Sócrates introduz no diálogo um outro personagem para fazer um
estratégico desvio: Diotima que era entendida em questões de amor e,
supostamente, tudo o que ele sabe sobre amor aprendeu com ela. Diotima
contou para Sócrates como nasceu o amor.
O amor nasceu da seguinte maneira: os deuses foram dar uma festa em
homenagem ao nascimento de Afrodite. Nessa ocasião estava presente, entre
os convidados, um deus chamado Poros, que pode ser traduzido por
esperteza. E nia, que significa pobreza, invadiu a festa dos deuses para se
aproveitar do momento em que Poros se encontrava embriagado de néctar.
Desse encontro amoroso de uma humana com um deus, nasceu um filho. O
filho de Pênia com Poros se chamou Eros. O amor é sempre pobre, no sentido
em que ele é sempre um pedinte, um indigente. Isso pelo lado da mãe, mas
pelo lado do pai ele é esperto, insidioso, maquinador, cheio de estratagemas e
recursos. O amor, nesse mito, é filho de um deus com uma mortal, se por um
lado parece ser auto-suficiente, por outro lado, é carente de algo que não tem.
O amor tem uma função de complementação entre a Terra e o Céu, entre os
homens e os deuses, entre aquilo que se separou.
Tanto em Aristófanes, quanto nesse diálogo de Sócrates com Agáton, o
amor busca algo que ele não tem, o amor busca algo do qual carece, busca
algo
que está fora dele, busca algo para preenchê-lo, é a mesma história de
98
Id. Ibid.
99
Id. Ibid.
31
desejar ter o futuro que o tem. O amor, então, busca algo que seja perene,
eterno e imortal.
A perfeição do objeto deve compensar a imperfeição do sujeito
100
. O que
temos aqui? Uma transcendência, uma teologia. Em que sentido é
transcendente? Algo que vem de fora, que vem de cima e que vai suprir a
falta. Essa matriz transcendente está inteiramente intocada, ela permeia nosso
discurso e nossa vivência do desejo. A matriz permanece intocada por que ela
é desencarnada, fixa e suspensa acima do mundo.
Agora se é mais sofisticado, não se acredita nesse objeto salvador,
tal como fora em Platão. Não se crê mais neste objeto que viria nos salvar. De
uma certa forma, ficou-se até mais triste, porque se fez da resignação a esta
carência uma nova religiosidade: se o desejo foi definido como uma carência,
então, essa carência sempre anseia por uma completude, e não podemos
dizer que esse anseio não seja religioso na sua matriz.
O que interessa para esse trabalho são os pares: perfeição-
imperfeição,
eternidade
-mortalidade, completude-incompletude. É a dialética da
dependência que faz com que o homem dependa daquilo que não tem. O
homem fica dependendo sempre desse preenchimento, dessa compensaç
ão
que o objeto pode oferecer em relação às insuficiências, carências e
precariedades. Carência e precariedade são a mesma dinâmica da
religiosidade
101
.
A vida se resumiu a uma promessa, com Platão, com o cristianismo e com
outras formas de aspiração à transcendência. Aqui pode se encaixar aquilo
que se diz ser da natureza do psiquismo humano, ou seja, uma idéia que se
tornou comum (senso comum), aquilo que se atribui à natureza do psiquismo:
100
O objeto é o que se encontra fora do mundo das sensibilidades (o Bem suspenso e desencarnado), o
homem tal qual se encontra, é imperfeito. A divisão entre o mundo das essências e o mundo das
aparências, o mundo dos modelos e o mundo das cópias, o mundo das Idéias e o mundo das imagens, o
mundo do original e das cópias ou dos simulacr
os. Enfim, geralmente temos a idéia de que há o mundo do
Ser enquanto Ser, e o mundo dos seres terrenos. Esses dois mundos são absolutamente separados. E o
mundo das essências, das Idéias, dos modelos, do inteligível, do Ser em si, seria o mundo
verdadeira
mente real, a realidade inteira estaria neste mundo. O método da divisão se encontra ao longo
do
Fédon
, do
Sofista
e do
Político
. Platão instaurou, (seguido de perto pelos teólogos) com o método da
divisão
, o modelo por excelência do que é transcendência. A transcendência revela todas as suas
particularidades, os seus aspectos, o seu caráter na obra platônica: Platão vai gerar o modelo por
excelência de transcendência, assim como Espinosa, que é seu contraponto máximo, gera o modelo por
excelência da ima
nência. Espinosa foi o filósofo que concebeu o plano mais puro de imanência.
101
Santo Agostinho (op.cit., p. 261) traduz dessa forma: “Quando se vê que todas as coisas do mundo são
mutáveis, o quê verdadeiramente é, se não que transcende todas as coisas existentes neste mundo (...) é
como se alguém visse de longe a Pátria, mas houvesse no meio o mar que os separa dela”.
32
o homem é naturalmente religioso, o homem busca naturalmente as coi
sas
que são do Alto ou ainda, o homem tem sede de Deus. Nessa dialética, se
convencionou dizer que o psiquismo é isso. Mas valeria a pena pensar que
essa concepção é histórica, nasceu lá com os gregos da Grécia Clássica. Para
Platão, isso não é um problema, é um propulsor que eleva o homem a uma
esfera inteligível em que ele contempla a Idéia e isso estimula o pensar
filosófico, no qual pela filosofia o pensador poderia encontrar estabilidade,
inteireza, justeza, perenidade que a nossa condição de mortai
s nos nega.
A divisão do mundo, operada por Platão, instaura uma separação no seio
do ser, operando, com seu método da divisão, uma diferença de natureza
entre dois planos. De um lado, estabeleceu um plano divino constituído por
Idéias, mundo ideal acima d
as estrelas, mundo das essências ou puras formas
inteligíveis, lugar dos modelos superiores que implicam uma realidade
verdadeira que existe em si e permanece imutável, suspensa na identidade a
si mesma, apreendida apenas pelo pensamento. De outro lado, o plano dos
corpos sensíveis, mundo terreno das aparências, da matéria, das imagens que
se refletem nos corpos sublunares, lugar dos fluxos, das mudanças e devires,
sempre diferentes do que são, região inferior apreendida pela experiência
sensível e que, no
melhor dos casos, conquista uma realidade segunda, isto é,
torna
-se cópia, caso se deixe ordenar e medir à semelhança do mundo
modelar das alturas.
Esse modelo inventado por Platão vai se constituir em uma crítica às
formas de conceber o desejo em relação à concepção na Grécia pré-
socrática,
o que produziu uma verdadeira reviravolta nas concepções do desejo, do amor
e do amante. O amante não terá mais, como objeto dos desejos, os belos
corpos, mas as formas inteligíveis das quais partem os reflexos dos co
rpos
sensíveis. Giovanni Reale diz da tese platônica: “Platão apelou para a razão
na luta contra o eros, mas isso não lhe foi suficiente para alcançar a virtude.
Indo além do racionalismo socrático, ele devia refugiar-se na mística e tentar
nela a própria
salvação”
102
. Platão estabelece um escalonamento com cheiro
de santificação. “O homem deve passar: 1) do amor pela beleza dos corpos, 2)
ao da alma, 3) à beleza das atividades humanas e, finalmente, 4) à beleza dos
102
REALE, G.
Corpo, alma e saúde:
o conceito de homem de Homero a Platão. Trad. Marcelo Perine.
São Paulo: Ed. Paulus, 2002, p. 241..
33
conhecimentos, até alcançar 5) a contemplação e a fruição do bem em si”
103
.
Não haverá mais as singularidades da beleza e dos corpos, mas uma forma
universal de beleza, uma forma única de corpo belo e uma única forma de
desejar. Assim, o desejo tornou-se objeto de consideração teológica que
aparecerá
nas práticas confessionais dos padres e pastores. Hoje, menos
confissão, elas foram gradativamente sendo substituídas pelas terapias, que
prevêem “a cura da alma do louco definido como doente mental e a cura da
alma edipiana portadora de um desejo inconsciente interpretado como
incestuoso e parricida, isto é, culpado”
104
.
Essa questão fica mais complexa quando quem está falando não é mais
Platão, nem os teólogos. As coisas podem ser mais intrigantes quando não
estando mais em paisagens socráticas ou cristãs, quando não estamos mais
falando nem de alma nem de Deus, porque somos modernos, no entanto,
continuamos funcionando com a mesma matriz do desejo atrelado na falta e
na insuficiência: desejo como insuficiência do ser, desejo como incompletude,
desejo como nostalgia, em busca de uma inteireza perdida cujo objeto
continua a ser concebido como promessa de completude que vem de fora
como uma miragem, um fantasma de preenchimento que supriria a falta.
Dessa matriz, o mundo moderno não se livrou, ela atravessou os
tempos. Caímos do Mundo das Idéias, matamos Deus, escapamos da própria
idéia de alma, no entanto, conservamos a matriz: o modo de funcionamento é
uma matriz que pode ser batizada de transcendente. No entanto, somos
“modernos”, não podemos continuar acreditando que essa carência possa ser
suprida por Deus, nem pela essência. É que se incorpora a resignação
sobre essa impossibilidade e dela fizemos uma nova “religião”. A resignação
não é um anseio pela completude, mas a aceitação da impossibilidade de
superar esta incompletude. Contudo, esta nova atitude o muda a matriz,
aumenta o grau de complexidade. Ela apenas produz, nessa matriz da
transcendência, uma dobra suplementar que interioriza ainda mais a matriz.
Por que a interioriza? Porque o desejo passa a ser visto não mais como uma
carência a ser suprida, mas como uma carência a ser interiorizada, como uma
103
Id.
Ibid.
104
FUGANTI, L Saúde, Desejo e Pensamento. São Paulo: HUCITEC, 1994, p. 25, 26. (Filósofo PUC -
SP).
34
carência a ser assumida e que, ao ser incorporada, passa a fazer parte da
vida. O desejo sofreu esta transformação curiosa, se interiorizou. É a
castração, é a falta, é a impossibilidade irreversível: “você tem que aprender a
conviver com isso”, “essa é sua questão”, ou ainda, “esse é seu problema”.
Não é mais uma carência a ser suprida, mas uma carência a ser assumida
105
.
É uma concepção lamuriosa do desejo, chorosa, um mar de desgraças. Se
não fosse suficientemente entristecedor, é preciso lembrar que a carência, a
lamúria e a falta se constituem em terreno fértil para os sacerdotes. O que vai
se construindo é uma progressiva despotencialização da vida. Em outras
palavras, o homem vai se afastando do que pode: ele deixa de ter fé na terra e
passa a lamentar estar nela. E o sacerdote vai viver dessa lamúria, as religiões
vão amesmo aprofundar esta lamúria. Aprofundam-nas porque dela vive
m.
Dessa forma, os sacerdotes são chamados para oferecer um bálsamo que
alivie as dores. Eles intensificam a dor para depois aliviarem, esse é o
comércio.
105
Pelo fato de ter citado Lacan brevemente, e não sendo nosso propósito aprofundar a questão do desejo
nesse autor, devemos, entretanto, a ele uma justificativa para que não suceda uma injustiça. O autor
Guilherme Castelo Branco, (Op. Cit.) demonstrou o Lacan que avança na psicanálise adentrando em
terrenos aproximados do que estamos tratando, isso, é claro, guardando os limites de cada plano. A
referên
cia ao das Ding (a Coisa), ao ser colocada no centro, um centro como um nada que impulsiona
a
constituição do novo. Diz Castelo Branco, “a coisa por outro lado, torna possível um conceito específico à
psicanálise: o desejo. O sujeito está condenado a desejar porque é impossível a ele mesmo, entre
significante e marcado pela linguagem, preencher o vazio fundamental da Coisa. Advindo da Coisa, em
suplência ao seu vazio insuperável, o desejo só pode existir enquanto falta
-a-
ser (...)”. (id., p. 60).
35
CAPÍTULO III
-
O INCONSCIENTE “CALDEIRÃO EFERVESCENTE
Voltamos a trabalhar a noção de desejo, mas agregando os componentes
criados por Deleuze e Gu
attari:
máquina desejante, produção de intensidade,
natureza
e sociedade. Félix Guattari, na introdução do seu O inconsciente
maquínico
106
, começa com a interrogação: “O inconsciente ainda tem algo a
nos dizer?”
107
. Fala-se disso depois de se ter abordado tantas coisas sobre o
inconsciente, falou-se de cima do inconsciente. “Primeiro, que é, exatamente,
este inconsciente? Um mundo mágico e oculto não se sabe em que dobra do
cérebro? Um minicinema, especializado em pornô infantil ou na projeção de
planos fixos a
rquetípicos?”
108
. O ponto de partida se deve a Freud, como
afirmam os autores do
Anti
-
Édipo
: a psicanálise descobre a “produção
desejante”, mas encobriu tudo sob o manto do idealismo. “No lugar do
inconsciente como usina colocou-se um teatro antigo; no lugar das unidades
de produção colocou
-
se a representação (...)”
109
.
Assim como na filosofia da representação, na teoria psicanalítica
110
o
desejo está ligado a atributos: força que impulsiona; anima o sujeito a obter
objetos, reais ou simbólicos; os objetos procurados são os perdidos, o que faz
com que a vivência do desejo seja uma espécie de nostalgia; o desejo é
insaciável, o que faz com que a busca do objeto seja interminável, quase um
106
GUATTARI
, F.
O inconsciente maquínico:
ensaios de esquizo
-
análise
.
Trad. Constança Marcondes
César São Paulo: Ed. Papirus, 1988.
107
Id. p. 9.
108
Id. Ibid.
109
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
O Anti
-
Édipo:
capitalismo e esquizofrenia
. Trad..Georges Lamaziere
Rio de Janeir
o: Ed. Imago, 1976, p. 41.
110
Segundo o texto já mencionado de CASTELO BRANCO, “sem dúvida, um dos maiores mal-
entendidos que existe sobre a psicanálise decorre da suposição de que o desejo não se articula às
orientações do mundo social. O desejo obedece a
uma orientação, tem um encaminhamento, está marcado
em seu núcleo por sua referência ao mundo familiar”. (CASTELO BRANCO, Guilherme, 1995, p. 62).
36
retorno à vontade de Schopenhauer:
111
Trata-se de uma força impulsora que
induz
o sujeito a obter objetos que, a rigor, não existem. Tenta-se encontrar
outros objetos que reativem as marcas deixadas pelas primeiras experiências
de prazer. A vivência do desejo é essa nostalgia, porque o desejo não tem
objeto específico. Tal condição faz com que o desejo ou o desejante continue
uma busca interminável.
No projeto (1895)
112
, Freud distingue
113
dois tipos de inconsciente: o
inconsciente vislumbrado a princípio, “caldeirão efervescente” e o inconsciente
que se fechou no complexo de Édipo (primeira e segunda tópica). No
Anti
-
Édipo
, os autores tomam o primeiro momento da descoberta de Freud, ou
seja, um inconsciente diretamente relacionado aos processos primários. Freud
fala de uma instância psíquica independente e com leis próprias de
funcioname
nto. Propõe que o núcleo do sistema inconsciente consiste em
agências representantes da pulsão que quer descarregar seu investimento;
portanto, em moções de desejo. Essas moções pulsionais estão coordenadas
entre si, subsistem umas junto às outras sem infl
uenciar
-se e não se
contradizem entre elas. Dentro desse sistema, não existe negação, não existe
dúvida nem grau algum de certeza
114
.
Em
Diferença e Repetição
115
, no qual o
inconsciente tem as proporções do primeiro momento da psicanálise, diz
Deleuze: “Os investimentos, as ligações ou integrações são sínteses passivas
(...). As pulsações nada mais são que excitações ligadas. Ao nível de cada
ligação, um
eu
se forma no Isso (...)”
116
. Cada ligação, um
eu
se forma
no
inconsciente, são formações de
eus
passivos. O que para Deleuze, “o Isso se
povoa de
eus
locais que constituem o tempo próprio do Isso, o tempo do
presente vivo, onde se operam as integrações correspondentes às
111
Segundo Schopenhauer, o homem faz passar de uma insatisfação para outra infinitamente. O
homem passa de uma inquietação, de um estado de angústia por não ter ainda o que quer, para um outro
estado de insatisfação e tédio, tão logo adquira o que ele quer, porque logo em seguida, deseja outra coisa
que não tem. Então, outra vez vem a insatisfação por não ter e o tédio por ter. (cf. SCHOPENHAUER, A.
O mundo como vontade e representação
. Trad. M. F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto , 2004.
112
FREUD, S.
Projeto para uma psicologia científica
. Trad. José Luiz Meurer. (1895) Vol. I. Rio de
Janeiro: Ed. Imago,
1996.
113
Sobre o tema, consultar também O Ego e o
Id
. (1923) Vol. XIX. No apêndice A, p. 73, Freud
apresenta O Inconsciente Descritivo e o Inconsciente Dinâmico.
114
FREUD, S. O inconsciente. Trad. Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques Brito e Christi
ano
Monteiro Oiticica. (1915) Vol. XIV. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996, p. 191
-
194.
115
DELEUZE, G.
Diferença e Repetição
. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal,
1988.
116
Id., p. 167.
37
ligações”
117
. Para os interesses desse trabalho, vamos nos referir a esse
inconsciente que dia
loga com a filosofia.
Garcia
-
Roza, seguindo Freud, afirma:
O inconsciente não é o que se oferece benevolente à
escuta do psicanalista, mas o que teima em se
ocultar e que se oferece distorcidamente,
equivocadamente, dissimulado nos sonhos, nos
sintom
as e nas lacunas do nosso discurso
consciente
118
.
Esse inconsciente se exprimiria através dos atos falhos, nos sonhos e
nos sintomas. Não é esse o inconsciente das “livres sínteses”, “caldeirão
efervescente” das primeiras observações de Freud. Mas ele próprio havia
admitido, em 1905, a possibilidade de uma crítica filosófica acerca do
inconsciente psicológico, diz ele: “bem sei que aqueles, enfeitiçados por uma
boa educação filosófica (...), hão de se opor à admissão de um ‘inconsciente
psíquico”
119
. No mesmo texto, o pai da psicanálise admite a possibilidade de
uma revisão em sua definição de inconsciente, mas não necessariamente do
conceito. Disse Freud: “Mas as definições são matéria de convenção e podem
ser alteradas”
120
. Não creio que fosse a intenção de Freud se fixar no campo
que é próprio da filosofia, isto é, esse inconsciente que não se deixa observar
e que, portanto, o pertence ao campo teórico da psicanálise. Os sintomas
observados por ele poderiam ser explicados pelo desvelamento do
inconscie
nte que é formado pela repressão, esse não tem relação com o
inconsciente a-psicológico, pelo menos neste sentido de causa e efeito. Ao
abordar
processos primários, ele faz uso aproximado daquilo que a filosofia de
Deleuze vai considerar como energia, força, desejo, vontade, intensidade,
superfície de produção, entre outros. O aparelho psíquico, em seu começo,
seria um mecanismo de contenção de energia livre, uma forma de não haver
dispersão de quantidade. Dessa maneira, poderíamos falar de um aparelho
psíq
uico: ele não é o que contém a energia, mas é resultante dessa
117
Id., p. 166.
118
GARCIA-ROZA, L. A. Palavra e verda
de:
na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de Janeiro: Ed.
Jorge Zahar, 2001, p. 8.
119
FREUD, S. A relação dos chistes com os sonhos e o inconsciente. Trad. Vera Ribeiro. (1905), Vol.
VIII. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996, p. 153.
120
Id.
Ibid
.
38
contenção, é a ligação da energia, sua transformação de energia livre em
energia ligada, essa operação se constitui no aparelho psíquico. Nisso, se dá a
organização do princípio do prazer que se faz pela ligação, isto é, pela
passagem do prazer, esse entendido como pura experiência subjetiva e
referido a uma quantidade de excitação não vinculada, para um estado de
integração que nos possibilitafalar de aparelho anímico. A função desse é
mante
r o nível de excitação o mais baixo possível e de uma forma constante.
Essa é a posição de Freud: reconhecemos nosso aparelho mental como
sendo, acima de tudo, um dispositivo destinado a dominar as excitações que
de outra forma seriam sentidas como afliti
vas ou teriam efeitos patogênicos”
121
.
O inconsciente freudiano brotou da experiência clínica e foi a partir dos
relatos dos sonhos que ele desenvolveu uma noção tópica para o
inconsciente. Os mecanismos do sonho - condensação, deslocamento e
simbolismo
- são constitutivos dos processos primários e esses reaparecem
em outras formações do inconsciente: atos falhos, lapsos, etc., equivalentes
aos sintomas e a realização do desejo
122
. Mas o
isso
não se expressa
dessa forma, ele se realiza na sociedade produzind
o toda a realidade.
As funções consideradas na descrição do inconsciente tópico não
deveriam nos levar a uma desconsideração à descoberta inicial de Freud.
Teríamos que nos valer da descrição para explicar os conflitos, a repetição que
faz o sofrimento e as resistências que se impõem às mudanças. O
inconsciente que Freud descobriu é definido como sistema que se caracteriza
como
processo primário permeado de mobilidade de investimentos, energia
livre, ausência de negação, de dúvida, de grau de certeza, indiferença perante
a realidade e regulado exclusivamente pelo princípio do prazer-desprazer. No
nível primário, os investimentos do desejo chegam ao desenvolvimento pleno
do prazer, as defesas são totalmente consumidas, as energias fluem
livremente. nos
pro
cessos psíquicos secundários, a energia é investida na
consciência e, portanto, se liga às representações. São os dois modos em que
a energia desliza. Nos
processos
primários,
um escoamento livre de
energia; nos processos secundários, a energia se liga à representação. Os
121
Id.
Sobre
o narcisismo: uma introdução, p. 92.
122
cf. FREUD. S
A interpretação dos sonhos
. op.cit.
39
dois modos de funcionamento correspondem igualmente à oposição dos
princípios:
de prazer e de realidade.
Seria esse lugar psíquico, ou esse não-
lugar
123
, um dinamismo de
multiplicidade de lugares que viria a ser recoberto por um psiquismo nas
ligações das sínteses passivas, mas não por essas. As instâncias psíquicas
são formas de organização em cima das forças não orgânicas. O que
encontramos no Isso são representantes, sendo que cada representante é
uma ligação de excitações, de síntese.
A energia nunca chega ao psiquismo, a
não ser pelos seus representantes primários. São
eus
passivos,
contemplantes. Esses
eus
são a camada que recobre o Isso, ou em outras
palavras, esses representantes são a energia presentificada no Isso. No
Projeto para uma psicologia científica
124
, Freud postula que a primeira
diferenciação a se produzir no Isso é a de um
eu
passivo, o que na verdade
seria uma pluralidade de
eus
passivos. São ligações provenientes das sínteses
passivas que operam uma passagem de um estado disperso aos estados
parciais de integração e organização do Isso.
Se o
eu,
que se forma inicialmente, não é o Eu que unifica tudo numa
identidade, este se formará posteriormente nos processos secundários. Os
eus
que se formam nas sínteses não são, contudo, o Eu unificador, mas esses
eus
parciais, sínteses passivas que correspondem às primeiras ligações
efetuadas sobre representantes pulsionais dispersos. As ligações não são,
portanto, efetuadas pelo Eu (ego), mas pré-condições do Eu. O Isso não pode
ser
encarado como um conceito tópico, seria mais o momento inicial da
gênese do aparelho psíquico. Ainda estamos numa ordem anterior ao
processo secundário.
Ao falar
Sobre
o narcisismo, em 1914, Freud afirma que “uma unidade
comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo, o ego tem
que ser desenvolvido. As pulsões auto-éróticas, contudo, ali se encontram
desde o início (...)”
125
. O que temos, antes de um ego unificador, é essa forma
primitiva de relação entre a pulsão e seus representantes
-
fixa
ção ou inscrição
- o que Freud chama de recalcamento primário ou originário. E o que seria o
123
CASTELO BRANCO, Guilherme, Op. Cit., 1995, p. 25
28.
124
FREUD, S. Op. Cit.
125
Cf. GARCIA-ROZA, Luiz A. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das
pulsões.
Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,1999, p. 51.
40
recalque primário ou como funcionaria? Uma forma de repetição ao modo
freudiano.
Para Laplanche e Pontalis, o recalque é uma
operação pela qual o sujeito procura repelir ou
manter no inconsciente as representações
(pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma
pulsão. O recalque produz-se nos casos em que a
satisfação de uma pulsão suscetível de
proporcionar prazer por si mesma ameaçaria
provocar desprazer relativamente a outras
exigências
126
.
É a forma como entramos no mundo, a partir de alguns valores significantes,
fantasias originárias que ofereçam uma base de linguagem a partir do qual se
possa erguer o universo (simbólico) que habitaremos. Não se trata de uma
operação repressora sobre o que estava lá, mas sim de colocar alguma coisa
onde não havia nada.
Lacan destaca, quanto a isso, o enigma do desejo do Outro
127
: o Outro
me diz: “eu te amo”, mas, porque será que ele me disse isso? O que ele quer
de mim, ao dizer isso? Essa questão, quanto ao desejo do outro, sempre se
impõe. Como, para a psicanálise, desejamos sempre uma outra coisa que não
aquilo que parecemos desejar conscientemente - é o desejo inconsciente da
psicanálise
-
, então esta dimensão do des
ejo do Outro sempre se impõe a nós:
ele disse isso, mas o que ele quis dizer? Lacan destacou, então, a incidência
traumática deste che vuoi?
ao
qual respondemos com a(s) fantasia(s)
originária(s). Essa equivale ao recalque originário. Cria-se um hiato entre a
maneira como o indivíduo se e o ponto a partir do qual está sendo
observado para parecer aceitável a si mesmo então, o que você quer de
mim?
- Qualquer tentativa de responder, lança-o na fantasia. O que ele quer
de mim? Respondemos com as fantasia
s originárias.
Freud destacara as protofantasias
128
que dizem respeito à castração,
sedução e cena primária. Destaca ainda as teorias sexuais infantis, que
126
LAPLANCHE, J. & PONTALIS, D. Vocabulário da Psicanálise. Trad. Pedro Tamen. São Paulo:
Martins Fontes, 1998, p. 430.
127
cf. CASTELO B, G.
O olhar e o amor
:
a ontologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro
: Ed. Nau, 1995.
128
São as fantasias originárias.
41
procuram responder às perguntas sem respostas: de onde vêm os bebês, qual
o papel da diferença sexual na produção dos bebês, qual a função do ato
sexual. São questões para as quais nunca teremos as respostas satisfatórias;
pois são as teorias que elas mesmas constroem a respeito que servirão como
resposta. Quanto a esses assuntos, nunca podemos responder tudo. Aliás,
Freud coloca que não temos uma pulsão epistemofílica. Só começamos a
'querer saber' à medida que entramos em contato com esses pontos opacos,
em torno dos quais organizam-se certas explicações, nunca satisfatórias,
fornecidas pelos adultos, que parecem sempre querer esconder algo. Este
ponto vazio, opaco, que indica “um mais além”, uma falta de saber que pode
ser superada, põe-nos a trabalhar para saber algo. Temos de aprender a
“falar”, dar significações a esses pontos vazios. São construções “teóricas”
que servirão como um "forro" de linguagem, a partir do qual entramos no
mundo sofrendo e achando graça por coisas singulares, que outros poderão
desprezar ou valorizar de modo inteiramente diferente. Se essa função não
estiver operando, o mundo fica deslibidinizado e sem graça, assim como um
belo seio ou bunda feminina podem transformar-se em um repugnante pedaço
de carne se o revestimento simbólico que os torna desejáveis se perde,
deixando entrever o real da carne.
O recalque originário é o que irá permitir este trabalho de recobrimento
simbólico do universo, condição para que entremos no mundo como sujeitos
desejantes. Em Freud, todo o universo infantil sucumbe à amnésia a partir do
entrecruzamento dos complexos de Édipo e castração, que met
aforizam
justamente este momento de tomada da criança pela lei do desejo.
Identificando-nos com a proibição parental, internalizamos a lei e passamos a
desejar e ter acesso a um gozo possível. Antes disso, qualquer gozo era ao
mesmo tempo possível e proibido. Éramos perversos polimorfos, porém
qualquer objeto de gozo era incestuoso (a mãe, a priminha, a irmãzinha, etc.,
nunca pode). A partir da operação conjugada dos tais complexos, continua a
haver o incestuoso. Não se trata mais de desejar a mãe, simplesmente não
mais a desejamos. Isso é que é internalizar a lei. Esse é o inconsciente que
jamais se torna consciente, mas que jamais tampouco deixa de ter eficácia
causal. São marcas, traços mnêmicos, como diz Freud. Mas não é que tenham
42
sido 'reprimidos'. São as 'fundações' (portanto, 'produções' tanto quanto o
prédio visível) que apoiaram nosso universo psíquico.
Para Deleuze, essa seria “a grande virada do freudismo”
129
. O recalque
primário não pode ser visto como um “esquema negativo”, ele constitui a
gêne
se de uma forma de repetição. “Recalco porque repito, esqueço porque
repito”
130
. Na visão de Deleuze, o recalque extrai do princípio de prazer ou do
princípio de realidade, a sua potência positiva
131
. Para Deleuze, a grande
virada se encontra na formulação do conceito de pulsão de morte. No texto
Além do princípio do prazer (1920), “o instinto de morte é descoberto não em
relação com as tendências destrutivas, não em relação com a agressividade,
mas em função de uma consideração direta dos fenômenos de repetiçã
o”
132
. O
princípio do prazer já pode ser considerado um efeito psicológico, mas a
pulsão de morte é um fenômeno transcendental no sentido deleuzeano.
Dizendo de outra forma, a descarga pulsional que se constitui em prazer se
relaciona com o exterior, com um outro que não sou eu mesmo. uma
operação psíquica no princípio do prazer, uma criação desse na relação com o
exterior. Aquilo que antes era pura força desrruptiva, força de “morte”, no
princípio do prazer é organização mínima de uma consciência. Para Castelo
Branco, seguindo Lacan, “a pulsão de morte é uma ‘sublimação criacionista’
que fora do mundo da natureza, realiza uma autêntica produção
ex nihilo
133
. A
repetição da diferença é silenciosa junto com a pulsão de morte, ao passo que
o princípio do “prazer é ruidoso”: uma experiência é transcendental e trás
consigo a diferença pré-conceitual; a outra é psicológica e repete o caminho
anteriormente percorrido, uma re
-
vivência do prazer já experimentado.
A primeira teoria do recalque possibilita essa repetição mascarada (já
não é mais apenas o recalque primário), Deleuze aponta o caso Dora: “os
disfarces no trabalho do sonho ou do sintoma a condensação, o
129
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Ed. Graal,
1988, p. 44.
130
Id., p. 47.
131
Id., p. 44.
132
Id. Ibid.
133
CASTELO B, G. O olhar e o amor: a ontologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Ed. Nau, 1995, p.
59.
43
deslocamento, a dramatização – vêm recobrir, atenuando-a uma repetição
bruta e nua (como repetição
do mesmo)?”
134
.
Aqui aparece, talvez pela primeira vez, a crítica de Deleuze à
interpretação do inconsciente como um teatro, mas não tão forte como vai
aparecer mais tarde no
Anti
-
Édipo
e outros escritos: “Dora
135
elabora seu
próprio papel e repete seu amor pelo pai através de outros papéis
desempenhados por outros e que ela própria desempenha em relação a
outros”
136
. o as fundações genéticas da repetição bruta que aparecem
disfarçadas no momento em que o desejo encontra no seu caminho um
recalque que impede a sua expressão. As experiências recalcadas se
constituem em elementos internos da repetição. Deleuze afirma que “o disfarce
é então compreendido na perspectiva de uma simples oposição de forças, a
repetição disfarçada sendo o fruto de um compromisso
secundário entre forças
opostas do Eu e do Isso”
137
. Como aborda o referido autor, Freud, Em
Para
além do princípio do prazer, não abandona a posição de que o instinto de
morte seja uma força que retorna “ao estado de uma matéria inanimada, o que
mantém o modelo de uma repetição totalmente física ou material”
138
. O nu e o
travestido andam juntos, a repetição não se encontra sob o manto das
máscaras. “As máscaras nada recobrem, salvo outras máscaras”
139
.
AS SÍNTESES DO INCONSCIENTE: FORÇAS QUE REPETEM
O conceito de rizoma, em Mil Platôs, serve para mostrar o novo
funcionamento do desejo que se harmoniza com o que aparece em
Diferença
e repetição quanto a noção de repetição: o que repete diverge e descentra, o
que leva a filosofia da diferença a pensar um novo conceito de repetição.
Dizemos um “novo conceito” porque no mundo da representação, o conceito é
submetido à identidade pela forma do Mesmo na re
-
cognição. Para ultrapassar
134
DELEUZE, G.
op.cit
., p. 45.
135
FREUD, S.
Fragmento da análise de um caso de histeria
. Trad. Vera Ribeiro. (1905) Vol. VII. Rio de
janeiro: Imago, 1996.
136
Id. Ibid.
137
Id. Ibid.
138
Id. Ibid.
139
Id. Ibid.
44
esse estado de prisão da diferença, Deleuze estuda as sínteses do tempo nela
envolvi
das:
fazer da repetição não aquilo a que ‘transvasa’ uma
diferença, nem aquilo que compreende a diferença
como variante, mas o pensamento e a produção do
‘absolutamente diferente’; fazer com que, para si-
mesma, a repetição seja a diferença em si mesma
140
.
A apreensão da repetição depende das sínteses do tempo: sínteses passivas
que possibilitam as sínteses ativas.
É o recalcamento primário que inaugura um dos tipos de repetição que
Deleuze trabalha exaustivamente em
Diferença e Repetição
141
. Ela não apon
ta
para um primeiro termo, mas está irremediavelmente investida por máscaras.
Como diz Garcia-Roza: “Não possuímos uma sexualidade que é mascarada; a
sexualidade é constituída pelas próprias máscaras. A sexualidade humana é,
essencialmente, disfarce”
142
. As repetições das máscaras, para Deleuze,
constituem
-se de falsos movimentos que estão em oposição ao movimento
real
143
. A questão fica muito mais intrigante quando a arrastamos para além do
sexual: estamos no campo das representações, de um Eu que se forma sob
re
um “estofo de linguagem” que vem a se constituir em máscaras sobre
máscaras, Eu que recobre intensidades de afecções. “A questão é eliminar
qualquer
a
priori
do espírito: a emergência da subjetividade supõe, primeiro,
um estado passivo”
144
, que afasta a possibilidade de um Eu que pensa. Então,
a psicanálise, nesse feliz momento, criaria um problema para o
cogito
. Castelo
Branco, escavando Lacan nos termos do
cogito,
cita: eu penso onde não
estou, eu sou onde não penso (...) o que confirma a tese freudiana da divisão
do sujeito”
145
. Mas esse inconsciente, ainda que minimamente tramado e
tecido em seu fundo como uma linguagem, tem nesse fundo o seu
140
Id., p
. 162.
141
Id., p. 55
-
6.
142
GARCIA
-
ROZA, L. A.
Acaso e repetição em psicanálise:
uma introdução à teoria das pulsões
. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, , 1999, p. 51.
143
Cf. DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Ed.
Graal, 1988, p. 55.
144
BRUNO, M. Lacan & Deleuze: O trágico em duas faces do além do princípio do prazer. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2004, P. 150.
145
CASTELO BRANCO, G. O olhar e o amor: a ontologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Ed. Nau,
199
5, p. 20.
45
fundamento. O pensamento se rebate na cadeia significante, pode-
se
considerar um avanço, mas não é que Deleuze espera levar a crítica ao
negativo.
Deste modo, a espontaneidade, da qual tenho
consciência no Eu penso, não pode ser compreendida
como o atributo de um ser substancial e espontâneo,
mas somente como a afecção de eu passivo que sente
seu próprio pensamento, sua própria inteligência,
aquilo pelo qual ele diz
EU,
exerce-se nele e sobre ele,
mas não por ele
146
.
O problema se encontra no
Eu
organizador das representações que se
forra da camada recalcada. Sendo assim, quando se pronuncia “Eu”
,
fala
-
se
de um outro qualquer que se estende para além de si mesmo, fala-se de
organismos: família com suas crenças e valores, religião, sociedade, etc.
Freud definiu o aparelho psíquico como uma organização capaz de
transmitir e organizar energias determinadas. Para isso, ele utiliza o modelo
científico da época que se preocupava em determinar a passagem da
quantidade à qualidade
147
. O pai da psicanálise pensou as sínteses passivas
do inconsciente através do modelo neuronal. Segundo Castelo Branco, essa
posição de Freud “não é nada ingênua”, visto que as relações entre as forças
psíquicas e o elemento corporal, exterior e interior, têm “enormes
conseqüências para os domínios da filosofia como a teoria do conhecimento, a
ontologia, a ética, etc.”
148
. Em 1889, Freud admite que sobre a postulação das
atividades inconscientes, a filosofia terá que optar por uma corrente que
postula um inconsciente místico, às vezes intangível e indemonstrável, ou por
outra corrente que defende ser o inconsciente uma atividade mental, portanto,
assunto de psicologia
149
. Mario Bruno, em seu livro Lacan & Deleuze: o trágico
em duas faces do além do princípio do prazer, aceita o desafio de nos
apresentar as sínteses do tempo a partir de Diferença e repetição. Para o
146
DELEUZE, G.
Op.cit
.,
p. 151.
147
Sobre o tema, ver FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. Trad.José Luiz Meurer. (1895)
Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
148
CASTELO BRANCO, G. O olhar e o amor: a ontologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Ed. Nau,
1995, p. 18. O texto referido por Castelo Branco se encontra nas Obras Psicológicas Completas. Na
edição brasileira aparece sob o título: O interesse filosófico da psicanálise. Vol. XIII. Ed. Imago: Rio de
Janeiro: Ed. Imago,1996, p. 181.
149
Id., p. 18
46
autor, “Deleuze se distancia de uma tradição inaugurada pela filosofia do
cogito
que parte do pressuposto de que o sujeito é responsável pela
recognição”
150
. As sínteses passivas não são operadas por um sujeito, ainda
não um constituído. A constituição do sujeito é operada pelas sínteses.
No
momento dessas, não estamos no campo de uma consciência, as sínteses
passivas são inconscientes. Para Bruno,
não se trata de um eu penso intuído, nem de um
sujeito transcendental, ambos elevados à condição de
princípio. O conceito de transcendental, em Deleuze,
pressupõe uma ruptura com a filosofia do
cogito
. Para
Deleuze, não há sujeito
a priori
151
.
A noção de transcendental ficou bem definida em
A Imanência: uma vida...
O que é um campo transcendental? Ele se distingue
da experiência, desde que não
se remeta a um objeto
nem pertença a um sujeito (representação empírica).
Também se apresenta como pura corrente de
consciência a-subjetiva, consciência pré-
reflexiva
impessoal, duração qualitativa da consciência sem
eu
152
.
Se, nesse momento, não pode haver um sujeito a
priori
, porque esse
deriva de uma experiência, a questão passa ser a de descobrir a experiência
de subjetivação que o opera. As sínteses passivas são as condições das
sínteses ativas. Seguindo Deleuze, diz Bruno: “são como sínteses
inconsci
entes, as condições de emergência das sínteses ativas. As sínteses
ativas são empíricas e as passivas, transcendentais”
153
. se pode falar de
um sujeito a
posteriori
, no momento em que a síntese é empírica. Para pensar
as condições em que as sínteses passi
vas se dão, é preciso pensar as noções
de diferença e de repetição em Deleuze. Ele vai inventar o conceito de
diferença que se distancia da tradição, que reduz a diferença à simples
150
BRUNO, M. Lacan & Deleuze: o trágico em duas faces do além do princípio do prazer. Rio de
Janeiro: Forense Universitária , 2004, p. 148.
151
Id. Ibid.
152
VASCONCELLOS, J. FRAGOSO, A da. (orgs.) Gilles Deleuze: imagem de um Filósofo da
imanênc
ia. Paraná: Ed. UEL, 1997, p. 15.
153
BRUNO, M.
Op.cit
.,
p. 149.
47
diferença conceitual
154
. Deleuze estabelece um programa para entendermos o
conceito de repetição. Seguimos a ordem citada, em Lacan e Deleuze, de
Mario Bruno: 1). “ligar a repetição a uma prova seletiva, colocá-la como objeto
supremo da vontade. 2). Opor a repetição às leis da natureza. 3). Opor a
repetição à lei moral. 4). Opor a repetição às generalidades do hábito e às
particularidades da memória”
155
.
Para não se confundir repetição com re-cognição, é preciso livrar a
repetição da condenação moral. Deleuze, em Diferença e Repetição, fala do
nu e do travestido
156
, para se referir à diferença pura e à diferença das
máscaras, respectivamente. Temos o direito de falar de diferenças diante de
elementos diferentes do ponto de vista conceitual, mas estaremos restritos ao
campo da re-cognição e da representação, seria um re-lembrar. Deleuze, diz
isso de outra maneira: “Temos o direito de falar de repetição quando nos
encontramos diante de elementos idênticos que têm absolutamente o mesmo
conceito. Mas (...), desses objetos repetidos, devemos distinguir um sujeito
secreto que se repete atravé
s deles, verdadeiro sujeito da repetição”
157
.
Freud, no texto Recordar, repetir e elaborar, acentua o fato de que o
paciente, na repetição, não recorda alguma coisa que esqueceu, mas sim
que ele
atua
158
. A questão é relacionar a repetição precedente com o real que
sempre retorna. O que retorna ao mesmo lugar, por trás do aparente, é
sempre o real. Inspirado em Bergson, Deleuze e Guattari tomaram a Realidade
como o Ser do Devir, é o lugar de todos os devires. O real é esse furo que
insiste em não se representar, esse em Si silencioso que se esconde por trás
de todas as máscaras. O real reside além dos disfarces, dos significantes, está
além do princípio do prazer
159
.
O real está além da repetição do mesmo, não
porque a negue, mas porque a funda; é uma outra repetição, mas que não
154
Sobre o percurso do conceito de Diferença, ver REGINA Schöpke. Por uma filosofia da diferença:
Gilles Deleuze, o pensador nômade
.
São Paulo: Contraponto; Edusp, 2004.
155
BRUNO, M.
Op.cit
., p
. 149.
156
DELEUZE, G.
Op.cit
.,
p. 55.
157
Id. Ibid.
158
Cf. FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. (1914), Vol. XII.
Trad.Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996, p. 161
163.
159
"
Além
do Princípio do Prazer" foi escrito em 1920 e com este texto Freud introduz uma nova força
regendo nossa vida que até então era governada exclusivamente pelo princípio do prazer. Mas, uma força
não destrona outra. No princípio do prazer, o conflito se entre as forças da sexualidade e as forças de
a
uto
-conservação. Estamos aqui em um âmbito restrito ao humano, um humano separado das grandes
forças da Natureza
.
48
pertence mais ao que é próprio da psicanálise. Não estamos mais nos
referindo a um organismo tópico (id, ego e super ego), mas entramos num
campo intensivo de forças que irrompem por trás do psiquismo. Deleuze se
referiu às repetições não mais no campo do psiquismo, mas adentrou nos
elementos que causam todas as coisas. “É preciso pensar a repetição com o
pronominal, encontrar o em Si da repetição, a singularidade naquilo que se
repete, pois o há repetição sem repetidor, nada de repetido sem alma
repetidora”
160
. A repetição travestida disfarça o em Si da repetição ou essa,
nua de travestimentos, arrasta consigo toda forma de repetição mascarada.
“Em todo caso, a repetição é a diferença sem conceito”. Num caso, a diferença
se apresenta à consciência como diferença entre coisas exteriores, segundo
Deleuze, “entre objetos representados sob o mesmo conceito, caindo na
indiferença do espaço e do tempo”
161
. Mas existe o outro caso em que a
“diferença é interior à Idéia; ela se desenrola como puro movimento criador de
um espaço e de um tempo dinâmicos que correspondem à Idéia
162
. Assim,
Deleuze nos apresenta essa possibilidade de diálogo com o que de mais
pertinente na psicanálise em relação à filosofia da diferença. duas
repetições: “A primeira repetição é repetição do mesmo e se explica pela
identidade do conceito ou da representação (...)”
163
. Essa primeira repetição
circunscreve um inconsciente recoberto pelo psiquismo; mas a segunda é a
que compreende a diferença em si, e “compreende a si mesma na alteridade,
na heterogeneidade de uma ‘apresentação’ (...). Uma é repetição ‘nua’, a outra
é repetição vestida, que forma a si própria vestindo-se, mascarando-
se,
disfarçando
-
se”
164
. São as sínteses do tempo puro de que nos fala Bruno,
comentando Deleuze: “configura-se uma síntese que aprofunda a primeira, é a
síntese dos objetos virtuais ou segunda síntese passiva”
165
.
As sínteses passivas são de um tempo puro que insiste repetindo, é
força que irrompe e caotiza os organismos” mentais. Os eus passivos são
objetos virtuais, não constituem uma memória, são integrações locais
160
DELEUZE, G.
Op.cit
., p. 55.
161
Id.
162
Id. Ibid.
163
Id. Ibid., p. 55
6.
164
Id. Ibid.
165
BRUNO, M
.
Op.cit
.,
p. 161.
49
contemplantes, o eu ativo é uma tentativa de integração global”
166
. Com as
sínteses passivas, somos contemplantes. “Mil contemplações e contrações
constituem o domínio de base das sínteses passivas. Nesse mundo das
sínteses passivas, os eus são somente sujeitos larvários”
167
, processo
desejante
-produtivo molecular que se auto-produz em forma de ciclo de
repetição, mas onde se repetem as diferenças. São mil sínteses, para cada
uma,
um eu se forma no Isso, sempre repetindo as diferenças, eterno retorno
de um inconsciente sempre outro. Mas qual é o sentido dos termos, contração
e contemplação? A contração é o “hábito de contrair”, se dá quando, na
repetição de uma série, se espera a sua continuação, ou seja, se espera que
essa se repita. Cria-se uma alma contemplativa que aguarda o aparecimento
complementar da série. É uma expectativa contemplante da continuidade
material de uma dada série, funciona como um
animus
que contempla a
perpe
tuação. Deleuze afirma que “em sua essência, o hábito é contração”
168
.
Esse primeiro bloco de sínteses constitui aquilo que Freud chama de
prazer como processo,
169
ou seja, o prazer como descarga parcial em um
órgão. O que Bruno descreve como um processo que
“não remete a um sujeito,
que teria como meta ou tendência a procura de uma satisfação global”
170
. Para
Deleuze, a questão é saber se o prazer é uma contração, uma tensão, ou se
está sempre ligado a uma processo de descontração”
171
. Ou seja: “o prazer é
princí
pio, na medida em que ele é a comoção de uma contemplação
transbordante que contrai em si mesma os casos de descontração e de
contração”
172
. O prazer só se converte em princípio quando as excitações
esparsas estiverem unidas. As ligações funcionam como a ativação deste, são
os investimentos que formam um princípio. Nas sínteses passivas, ainda não
existiria um aparato psíquico, mas apenas uma primeira camada do Isso.
Deleuze diz de outra maneira: “sob o eu que age pequenos eus que
contemplam e que tornam possíveis a ação e o sujeito ativo”.
173
São essas
166
Id. Ibid
167
Id. Ibid. p. 1
61
2.
168
DELEUZE, G.
Op.cit
., p.
133.
169
FREUD, S. Além do princípio do prazer. (1920) Vol. XVIII. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio
de Janeiro: Ed. Imago, 1996.
170
BRUNO, M
.
Op.cit
.,
p. 2.
171
DELEUZE, G.
Op.cit
.,
p. 133..
172
Id., p. 134.
173
Id. Ibid
., p. 135.
50
milhares de testemunhas contemplantes e passivas que forram o isso para
que, em seguida, se possa ter um sujeito que age.
Freud introduz, em 1920, o
Princípio da realidade
no
Princípio do Prazer
.
Estes são os modos de funcionamento do aparelho psíquico. O princípio do
prazer coincide com os processos primários - a energia psíquica escoa
livremente
- mas no processo secundário se introduz elementos de auto-
preservação do ego. A energia é “ligada” e escoa com retenções, promove
adiamento dele para garantir a integridade do ego. Mas Freud “vê”, nesse
instante, um além do princípio do prazer. uma repetição que tende a
compulsão, algo “primitivo”.
174
em todo organismo uma tendência a voltar
ao seu estado inorgânico que pode ser chamado de
Thánatos,
ou pulsão de
morte. Por outro lado, uma outra força que tende a preservar a vida, pulsão
de vida, ou
Eros
. Eros é o amor que liga as excitações esparsas e com elas
opera o Princípio do prazer.
Thánatos
e Eros ganham estatuto transcendental.
É aqui que Deleuze introduz o princípio transcendental como uma paixão pela
repetição. “Freud fala de ligação ou de investimento. Deleuze compreende
essa paixão como diferença que se produz pela repetição das excitações.
vimos
a síntese originária do tempo: o
habitus”
175
. Portanto, a camada de
origem do Isso é um
pathos
originário que contempla passivamente, que
em
Diferença e Repetição e em Lógica do Sentido, Deleuze chama de “campo
transcendental”. O campo transcendental é, por conseguinte, o espaço
específico das Idéias, ou melhor, da gênese das idéias. Desse modo, Deleuze
opõe a um universo extensivo, constituído por coisas e representações, por
identidades e diferenças referidas a uma identidade, um universo intensivo,
constit
uído por singularidades pré-individuais. Este espaço é absolutamente
prévio e de diferenças puras onde a repetição se liberta do Mesmo e que será
caracterizado em Mil platôs como rizomático e explicitado através do conceito
de ‘Máquinas Desejantes’ e ‘Corpo Sem Órgãos’. Torna-se, então, o lugar de
emergência de todo o pensamento, é o campo de imanência do desejo. E este
tem as suas exigências, efetua as suas reivindicações de um modo mais ou
menos sutil através de todos os passos em que efetua a realidade.
São
174
FREUD, S. Além do princípio do praze.r. (1920), Vol. XVIII. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio
de Janeiro: Ed. Imago, 1996, p. 37.
175
BRUNO, M
. Op.cit
.,
p. 164.
51
agenciamentos do desejo, e, como tais, livres. No entanto, assim o são em
relação a coisa nenhuma. Mas não se trata de um desejo que reside num
sujeito, mas sim, nas máquinas desejantes.
Por isso, não é mais o inconsciente
psicológico da repressão, do recalque, que produz recordação, fantasmas,
atos falhos, entre outros.
O inconsciente, em
Diferença e Repetição
, não pode ser representado, e
não funciona sobre um fundo “tecido como numa linguagem.” Ele é a-
psicológico, pré-psicológico, fora da representação, desorganizador dos
“organismos”, não se hierarquiza e não se deixa sobrecodificar. É o
inconsciente efervescente de pequenos eus, milhares de “inconscientes.” Não
tem identidade alguma, nele não subsiste nenhum modelo e nele se desfazem
todas as máscaras. É um inconsciente descentrado e descentralizador,
portanto, longe da representação. Para Deleuze, “a representação tem apenas
um centro, uma perspectiva única e fugidia e, portanto, uma falsa profundidade;
ela mediatiza tudo, mas não mobiliza nem m
ove nada”
176
.
A filosofia da diferença de Deleuze, inspirada em Henri Bergson e
Nietzsche, nos apresenta esse inconsciente ontológico. O inconsciente, aqui, é
esse “lado de fora” que constrange a consciência para pensar, porque o
pensamento não é inato nem adquirido como parece supor a filosofia da
representação. Se o pensamento busca seus objetos nas máscaras do já
adquirido, tudo que ele pode inventar é uma moral e, conseqüentemente, uma
intimidação, uma limitação que se repete na recognição e na represen
tação.
Segundo Pardo
177
, esse campo inorgânico não pode entrar na
consciência e formar parte dela, recebendo o nome de inconsciente. Mas
não estamos falando de um inconsciente psicológico, portanto, é irrelevante a
distinção entre desejo consciente e inconsciente. Esse inconsciente é variação
incessante no qual nada pode ser estático, é o lugar da diferença absoluta
onde o Ser é puro devir. Esse devir para Deleuze e Guattari, como geração
contínua do novo absoluto e da pura diferença, acontece incessantemente no
que eles chamam de superfície de produção. São movimentos, são “unidades”
176
DELEUZE, G.
Op.cit.,
p. 106.
177
PARDOS, L. J.
Deleuze, violentar el pensam
iento.
Madri: Paidos, 1990.
52
que não podem se “fixar” que são animadas por um Elã”
178
, energia vital que
impulsiona todo movimento. Essas “unidades” subjazem a todas as “entidades”
“macro” que compõem a realidade, encontra-se com o “caos” “originário” de
partículas de energia fora de toda realidade do determinismo causal. “São
puras intensidades, são multiplicidades, são hecceidades
179
ou entidades, são
devires, são fluxos”
180
. São matérias pré-formadas de energias ainda não
orientadas, são fluxos puros de energia que se traduz no
Anti
-
Édipo
por
desejo. “Corresponde ao que Freud denominava
Isso
ou, pelo menos, a
camada primária do
Isso
181
. O inconsciente é o inonimável, o irrepresentável,
apresenta
-
nos o mundo
das diferenças puras.
Compõe
-se de um conjunto infinito de positividades, não tem negação
nem negatividade; não reconhece falta, ausência, nem nostalgia alguma; não
tem ordem alguma, é um
caos
preenchido por multiplicidade que Freud
compara a um “caldeirão fervente de estímulos”; cada um de seus elementos
constitutivos é uma “unidade” absolutamente diferente das outras, que se
caracteriza por sua intensidade, sendo que sua intensidade pode se definir
como a potência que tem de gerar a partir dela e de su
as combinações com as
outras que é algo completamente novo. Esse algo pode se chamar do dado
alucinatório em contraposição ao “eu penso” do
cogito
. Lembram Deleuze e
178
Expressão tomada de Bergson. (A evolução criadora. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.). Para Bergson, o homem é capaz de superar o domínio da inteligência e de guardar o
impulso criador, superando o nível estático da moral e da religião até transcender plenamente o élan vital,
o impulso vital, que, definitivamente, é de Deus, senão é o próprio Deus.
179
Hecceidade é o princípio de individuação. Deleuze não utilizará mais o conceito de subjetividade tal
qual
a tradição da filosofia clássica denomina, mas tratará agora de
hecceidade
. O texto que melhor
ilustra o significado do termo é talvez o último de Deleuze
: Imanência: uma vida..
. AGAMBEN, Giorgio.
Imanência Absoluta. In: ALLIEZ, Eric (org.). Gilles Deleuze
:
uma vida filosófica. Trad. Cláudio William
Veloso. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 169 – 192. “A vida do indivíduo é substituída por uma vida
impessoal, embora singular, que produz um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior e
exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade do que acontece. “Homo Tantum” por quem todo
mundo se compadece e que atinge a uma certa beatitude. É uma hecceidade que não é mais de
individuação, mas sim de singularização: vida de pura imanência, neutra, além do b
em e do mal, já que só
o sujeito que o encarnava no meio das coisas a tornava boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga
em benefício da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora não se confunda
com nenhum outro. Essência, sing
ular, uma vida...”. O texto também se encontra em, DELEUZE, G.
Pure
Immanence: Essays on A Life. Trad. para o inglês de Anne Boyman. New York: Cambridge, 1997, p. 25
- 33. Ainda pode-se encontrar o mesmo texto em VASCONCELLOS, J. FRAGOSO, A da. (orgs.) G
illes
Deleuze:
imagem de um Filósofo da imanência. Paraná: Ed. UEL, 1997, p. 15.
180
BAREMBLITT, G. Introdução à esquizoanálise. Belo Horizonte: Gráfica e editora Cultura, 1998,
p.93.
181
DELEUZE, G.
Op.cit.,
p. 165. (Em português “isso”, traduzido do “ça” um advérbio de lugar móvel
“ça et là” do francês [um aqui e ali]. Nota dos tradutores).
53
Guattari: “Um ‘eu sinto que estou virando mulher’, ‘que estou virando deus’,
etc., que não
é nem delirante nem alucinatório (...)”
182
.
Esse inconsciente é libido, fluido, escorre por baixo de nossos triângulos
familiares e dos organismos. Um inconsciente assim não suporta interpretação
porque não é um teatro, mas uma fábrica, ele não representa,
ele maquina, ele
não faz triângulo papai-mamãe, mas produz e conecta e escoa por toda parte.
O inconsciente é uma força que circula os espaços sociais e políticos. É uma
questão de desejo. Este deve ser o ponto.
DESPEDINDO
-
SE DO DESEJO FALTA
O conceito de desejo é inseparável do conceito de inconsciente tanto
na psicanálise quanto na crítica do
Anti
-
Édipo
que em cada situação com
as suas características: no primeiro caso, o desejo que carece, que tem falta;
no segundo, ao desejo não falta nada, é o desejo que faz as necessidades, o
desejo é invenção e produção. Ele seria elemento organizador da nossa
psique, da nossa subjetividade à medida que se tornasse um sujeito moral e
um sujeito racional: o sujeito moral é o pressuposto do sujeito racional
183
. A
idéia de que o desejo não produz realidades, ou de que as realidades que ele
produz são realidades de aparência, um teatro papai-mamãe e Édipo, ou
ainda, em forma de um “inconsciente estruturado como numa linguagem”, no
fundo é sempre a velha dicotomia entre a Idéia e a matéria: platonismo que
assume roupagens distintas (figuras arcaicas, modernas ou pós-
modernas),
mas são sempre os mesmos modos de julgar a vida, os velhos modos de
armar arapucas ao desejos ou de investir na própria repressão.
182
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-
Édipo
:
capitalismo e esquizofrenia
.
Trad. Georges
Lamaziere.
Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976,
p. 34
35.
183
Segundo Marilena Chaui, Aristóteles acrescenta à consciência moral, trazida por Sócrates, a
vontade
guiada pela razão como o outro elemento fundamental da vida ética..Razão pura teórica e prática são
universais, isto é, as mesmas para todos os homens em todos os tempos e lugares podem variar no
tempo e no espaço os
conteúdos
dos conhecimentos e das ações, mas as
formas
da atividade racional de
conhecimento e da ação são universais. Em outras palavras, o sujeito
,
em ambas, é
sujeito transcendental
,
como vimos na teoria do conhecimento. A diferença entre razão teórica e prática encontra-se em seus
objetos. A razão teórica ou especulativa tem como matéria ou conteúdo a realidade exterior a nós, um
sistema de objetos que opera segundo leis necessárias de causa e efeito, independentes de nossa
intervenção; a razão prática não contempla uma causalidade externa necessária, mas cria sua própria
realidade, na qual se exerce. Essa diferença decorre da distinção entre necessidade e finalidade/liberdade.
Cf.
CHAUÍ, Marilena.
Convite à filosofi
a.
Ed. Ática: São Paulo, 2000.
(Especialmente o capítulo 5)
54
O desejo vinha sendo pensado sempre na linha de crates, Platão,
Schopenhauer, entre outros. Em nossos dias, pela psicanálise, sempre atado a
uma carência, sempre fechado em torno de algo faltoso. Se a vida é uma falta
em ser, sempre a partir dessa carência, o desejo é justamente essa falta. Isso
implica a permanência da relação de um sujeito e de um objeto, em que o
desejo é pensado em relação ao objeto que, a partir do jogo da realidade,
sempre terá que ser parcial e representativo, que o objeto total espara
sempre perdido (a criança e a mãe na relação simbiótica, o mundo e as Idéias
em Platão, a imagem de Deus no judaísmo e o Éden do cristianismo). Nessa
linha de pensamento, o sujeito do desejo não passa de uma representação do
absoluto, uma imagem desfigurada como aparece no cristianismo: o homem
na queda do Éden perdeu a semelhança com o criador
184
. A condição doentia
do homem passou a se conformar com aquilo que se considera normalidade. E
o que é o normal? Os doentes, os fracos. O temor dos fracos não
é justamente
a força dos fortes, o desejo, a potência da vida? O temor dos fracos é o mundo
cintilante das metamorfoses, mas o temor dos fortes deve ser exatamente os
fracos. Nietzsche soube disso como ninguém: “os doentes são o maior perigo
para os sãos; não é dos mais fortes que vem o infortúnio dos fortes, e sim dos
mais fracos”
185
. Para Nietzsche, o que deveria ser temido é o
nojo
ao homem;
e também a grande
compaixão
pelo homem”
186
. Daí, segundo o pensador,
adviria o grande perigo para a vida: “supondo que esses dois um dia se
casassem, inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a “última
vontade” do homem, sua vontade do nada, o niilismo. (...) Os
doentes
são o
grande perigo do homem: não os maus, não os “animais de rapina”
187
.
Deleuze, em Lógica do Sentido
188
, apresenta a reversão do platonismo
,
um ataque à representação que continua a ser operada ao longo do
Anti
-
Édipo
, nos conceitos de Desejo, de Inconsciente e do Complexo de Édipo. Em
Lógica do sentido, Deleuze não fala de falta ou carência relacionadas ao
desejo, mas fala do ser e do devir. Este ser que se manifesta numa
184
DELEUZE, G.
Lógica do sentido
. Trad. Luiz Roberto Salinas Fontes. São Paulo: Ed. Ática, 2003, p.
263.
185
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César. São Paulo: Companhia d
as
Letras, 2001, p. 111.
186
Id.
187
Id. Ibid.
188
DELEUZE, G. Lógica do sentido. Trad. Luiz R. Salinas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003, p. 259 -
271.
55
multiplicidade de vozes, o que Espinosa se referiu na doutrina da
univocidade
189
do ser ou da imanência do ser. O conceito de Desejo, em
Deleuze em Guattari, está relacionado ao conceito de Devir. “O Devir é o
princípio da vontade de potência, do (...) mundo cintilante das metamorfoses,
das intensidades, comunicantes, das diferenças de diferenças, (...) mundo de
simulacros ou de mistérios”
190
, mundo dionisíaco onde o Ser é sempre outro
que não ele próprio.
não cabe falar de desejo-falta, pois aquilo que falta acaba por ocupar
um lugar de objeto. Para escapar do objeto não é suficiente silênciá-lo sob o
signo da falta ou dos fantasmas: ele se presentifica no vazio da carência de
ser
objeto. Essa carência
em
-
ser
nem mesmo pode se constituir em campo de
imanência ao desejo, pois a falta remeteria o desejo a algo que funcionaria
como um ponto de partida, uma lembrança, uma imagem ou mesmo uma lei
onipresente que funda um significante. Qualquer operação dessa ordem
roubaria do desejo a sua natureza livre e imanente ao corpo sem órgãos. Este
é um corpo destituído de imagem.
O desejo está em estreita relação com a matéria em movimento, ao plano
de imanência, então, não é o desejo que desejava o perdido, mas o desejar
em infinito, movimento em ação mergulhado sempre num campo intensivo. O
processo de desejo é gozo e não carência ou demanda. O desejo não tem
nada a ver nem com a carência, nem com a lei. Então, desejar não significa
almejar
algo que não se tem, porém afirmar uma diferença. Para Deleuze e
Guattari, desejar é afirmar as coisas que se tem. Em outras palavras, afirmar
uma força que se tem, uma potência, uma vontade, um desejo que se possui.
ESQUIZOFRENIA E MODOS DE VIDA
Pard
o
191
trabalha o inconsciente na linha de Bergson, ou seja, um
inconsciente a-psiscológico. Segundo ele, parece estranho manter-se em
suposta afinidade com o vocabulário da psiquiatria e da psicanálise, que,
189
“A univocidade do ser significa que o ser é Voz, que ele se diz em um só e mesmo ‘sentido’ de tudo que se
diz. (...) um Ser para todas as formas e vozes, uma insistência para tudo o que existe, um fantasma
para todos os vivos, uma só voz para todo o rumor e todas as gotas do mar”. Id. Ibid., p. 185.
190
Id. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.
388..
191
PARDO L, J. .
La política de la diferencia.
In
: Deleuze, violentar el pensamiento
. Madri: Paidos, 1990.
56
segundo Deleuze e Guattari, inventaram uma noção equivocada da
esquizofrenia. Por que seguir, apesar disso, falando de esquizofrenia? Para
Deleuze e Guattari, precisamente a propósito de Artaud, cujas citações têm um
papel primordial em O Anti-
Édipo
, havia indicado que: “a esquizofrenia não é
unicamente um fato humano ligado à medicina psiquiátrica, mas uma
possibilidade do pensamento, que não se revela como tal, senão na abolição
de toda imagem”
192
. A esquizofrenia tal qual é defendida no
Anti
-
Édipo
designa
um modo de funcionamento do pensamento, sem pressupostos objetivos nem
subjetivos, um pensamento discordante do modelo psicológico. Como ficou
definido no
Anti
-
Édipo
, “(...) a esquizofrenia é o universo das máquinas
desejantes, produtoras e reprodutoras, a universal produção primária como
realidade essenci
al do homem e da natureza”
193
.
Para que haja máquina desejante, tem de haver o universo
esquizofrênico
194
, se não a máquina desejante não opera: o esquizofrênico
aqui é tomado em contraposição à noção psiquiátrica, não tem o mesmo
sentido clínico e patológico. Deleuze e Guattari tratam “o esquizo como
Homo
natura
195
. O esquizofrênico hospitalar é uma produção da psiquiatria, esse é
como se tivesse sofrido uma parada no processo. Dizem os autores do
Anti
-
Édipo
: “o fim do processo, ou a sua continuação ao infinito, que é estritamente
a mesma coisa que sua parada brutal e prematura, é a causação do
esquizofrênico artificial, como se no hospital, trapo tornado autista,
produzido como entidade”
196
. A esquizofrenia, da qual estamos tratando nesse
trabalho, é a condição universal do homem, enquanto um ser criador
197
. O
corpo esquizofrênico é aquele que está atravessado por múltiplas linhas de
fuga. Essa é a maquinação do desejo, como movimento criativo, e não uma
patologia. A psicanálise deu à esquizofrenia um estatuto c
línico, convertendo
-
o
em seu próprio limite. O que a psicanálise fez foi aprisionar o universo das
máquinas desejantes num diagnóstico médico. Na verdade, a psicanálise não
192
Id., p. 118.
193
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
O Anti
-
Édipo:
capitalismo
e
esquizofrenia. Trad.Ge
orges Lamaziere.
Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 19.
194
O termo esquizofrênico é usado em “homenagem ao funcionamento “psíquico” dos esquizofrênicos,
mas não é tomado como uma entidade nosológica já deteriorada e doente, mas como o seu funcionamento
li
vre dos organismos.
195
Id., p. 19.
196
Id. Ibid.
197
Cf. Id. Ibid., p. 21.
57
deu conta da esquizofrenia. O esquizofrênico não entra na linha interpretativa
do analista, a produção de enunciados da esquizofrenia não inclui papai-
mamãe: “o esquizofrênico não deita no divã”. Sobre isso dizem Deleuze e
Guattari:
O passeio do esquizofrênico: é um modelo melhor do
que o neurótico deitado no divã. Um pouco de ar livre,
uma relação com o exterior. Por exemplo, o passeio
de Lenz reconstituído por Buchner. É diferente dos
momentos em que Lenz se encontra em casa de seu
bom pastor, que o força a situar-se socialmente, em
relação ao Deus da religião, em relação ao pai, à
mãe
. Lá, ao contrário, ele está nas montanhas, sob a
neve, com outros deuses ou sem deus algum, sem
família, sem pai nem mãe, com a natureza
198
.
Os controladores, os padres, os gurus, os místicos de todos os tipos
voltam a força ativa do desejo produtivo contra si mesmo, o que acaba criando
a enfermidade chamada culpabilidade que acompanha qualquer expressão
ativa do pensamento. “E o que seria a psicanálise freudiana sem os famosos
sentimentos de culpa que se atribuem ao inconsciente?”
199
. Para Deleuze e
Guattari
, a esquizofrenia é o modelo para a produção de um ser humano
capaz de expressar desejo produtivo, mas é uma esquizofrenia ativa. Deleuze
e Guattari fazem uma dupla advertência: em primeiro lugar, a esquizofrenia
não remete à entidade clínica, assim denominada, que não é senão uma
produção hospitaleira artificial obtida, segundo recordava Laing
200
, pela
paralisação do processo esquizofrênico e que não pode confundir-se com o
próprio processo; em segundo lugar, seria difícil aceitar esquizofrenia
dependente da nosologia
201
psicanalítica, porque a esquizofrenia é
precisamente o limite clínico da psicanálise, a psicose que se fecha a seu
campo de acesso (não se pode recostar, deitar, o esquizofrênico num divã).
Há um uso deliberadamente psicanalítico, freudiano, da
esquizofrenia ao longo
do
Anti
-
Édipo
, mas, na verdade, não tem esse sentido.
198
Id. Ibid., p. 16.
199
Id. Ibid., p. 79.
200
Cf. LAING, Ronald. O eu dividido. estudo existencial da sanidade e da loucura. Trad. Áurea B.
Weissenberg. Petrópolis: Ed. Vozes
, 1978.
201
Es
tudo das doenças, estudo das moléstias.
58
Poderíamos pensar que o processo esquizofrênico cessaria por completo
a formação do sujeito da cultura ou que este processo é anulado ou superado
pelos processos secundários da formação da personalidade. Contudo, não é
assim que ocorre, pois o processo esquizofrênico pode aparecer em forma de
sintomas, mas também em criações que irrompem a vida (esquizoanálise). A
evolução do indivíduo, dentro da cultura, não elimina a esquizofre
nia, pois esta
acompanha os indivíduos em nível inconsciente, mas sempre passível de se
insurgir em linhas de fuga. Não foi esse o caminho do pequeno Hans? Ele
buscava construir um
rizoma
com a casa da família ao lado, com a menina de
cima, com a vizinhanç
a
- pelo fato de serem essas linhas obstruídas pelo
enraizamento na família
-
por ser vigiado pelo pai. Pela interpretação de Freud,
o menino só conseguiu escapar sob a forma de um devir
-
animal (devir
-
cavalo),
em forma de fobia
202
. A fobia é a vergonha do pequenino Hans, a vergonha de
sua força desejante.
AS MÁQUINAS DESEJANTES
As máquinas desejantes estão por baixo da tópica do aparelho psíquico:
O
Anti
-
Édipo
se ocupa em devolver o dinamismo à quina desejante
resgatando
-a dessas limitações e indo mais longe ainda, inserindo o
inconsciente, numa análise da sociedade capitalista. O Isso, conectado a uma
composição maquínica, que é o corpo e seus membros - ânus, boca, olhos,
nariz, etc. - liga fluxos e desliga quando convém, é o inconsciente maquínico
do
Anti
-
Édipo
. A máquina desejante não se faz sem a máquina social, nem
sem a máquina natureza, essas estão todas acopladas umas às outras: Sol no
ânus, ânus nas fezes, boca e aparelho digestivo ligados ao ânus que se liga ao
mundo.
203
. A natureza também é máquina desejante, por isso, no texto é
falado da relação continuada, homem-natureza. O desejo relacionado, quase
sempre, com carência ou falta (Platão, Freud e Lacan), no
Anti
-
Édipo
, é
substituído pelo conceito de produção (Deleuze e Guattari) e seus correlatos
se
ntidos: vontade de poder (Nietzsche) e afeto ativo (Espinosa).
202
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia
.
Vol. 1. Trad. Aurélio
Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 23.
203
Cf. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O
Anti
-
Édipo:
capitalismo
e esquizofrenia. Trad.Georges
Lamaziere
. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 15.
59
A produção desejante é da máquina inconsciente. Freud estaria de acordo
com isso, a construir um lugar de produção restrito ao teatro familiar
burguês. Assim, ele instaurou um campo representacional, reduzindo o
inconsciente às fantasias “do segredinho sujo familiar”. O inconsciente sozinho
tem poder para criar seus objetos. As necessidades derivam do desejo, ele
não necessita de interdição para desejar. Desejar é produzir. O desejo é
potênci
a produtiva da vida, produção de tudo. Se o desejo é máquina, a ele
nada falta, posto que é produção.
Esta noção de máquinas (técnicas, sociais, desejantes), presente desde a
introdução do
Anti
-
Édipo
e posteriormente reunidas em Mil Platôs, sob o nome
de máquina abstrata, aponta para a construção de um plano de maquinação e
conexão permanentes, no qual linhas, processos, intensidades, objetos
incorporais e variações. Este plano é o plano de imanência, cujo processo é de
co
-produção e acoplamento: nele não existem sujeitos ou unidades pré-
formadas, mas multiplicidades. O funcionamento das máquinas, em seus
arranjos e aparelhos, produz o mundo juntamente com os sujeitos e os objetos
que os constituem.
O INCONSCIENTE E A CRIAÇÃO DO PENSAMENTO
No que tange ao inconsciente como produção primária, Pardo, seguindo
Deleuze e Guattari, associa-o com a primeira caracterização que Freud faz do
inconsciente, como “processo primário”. Nele, a energia, a libido, a energia do
Isso
não está ligada a nenhum objeto, nem a nenhuma função
204
. É uma
energia livre que circula libido em estado puro. Ainda somos presos aos
modelos de observação centrados, e o destronamento desses, segundo
Oliveira, vai “depender de uma profunda renovação de nosso entendimento
sobre a composição e a estruturação do mundo físico(...)”
205
. Em 1938, Freud
vislumbrou essa realidade no inconsciente, citado aqui por Sandler:
Caso pudéssemos ver de modo suficiente claro,
poderíamos descobrir que aquilo que parece ser um
204
Cf. FREUD, S. O inconsciente descritivo e o inconsciente dinâmico. Trad. José Octavio de Aguiar
Abreu. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 73
75.
205
OLIVEIRA, A. L.
Bi
ontes, bióides e borgues
.
In
: NOVAES, Adauto (org.). O Homem-Máquina: a
ciência manipula o corpo
. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 142.
60
corpo sólido é feito de partículas de tal e tal tamanho
e forma, e ocupa esta ou aquela posição relativa’. (...)
tentamos incrementar à eficiência dos nossos órgãos
sensoriais na maior extensão possível por meio de
modos artificiais; mas pode-se esperar que todos
esses esforços vão falhar em afetar o desfecho final.
A realidade vai permanecer incognoscível
206
.
O que Freud está dizendo se assemelha ao que Deleuze e Guattari
apresentam como processo que precede não lógica nem cronologicamente,
senão ontologicamente, a tudo o que reconhecemos como territórios, ou
entidades reais circunscritas e definidas - natureza, sociedade, linguagem e,
inclusive, sujeitos -. Mas a psicanálise insiste “sempre para reduzi-lo, destruí-
lo, conjurá-lo. O inconsciente é concebido enquanto uma contra-
consciência,
um
negativo, uma parasitação da consciência (...)”
207
. Não é mais o
inconsciente que produz por falhas, conflitos, lapsos e trocadilhos. O que a
Psicanálise designa como produção ou formação do inconsciente sempre tem
a ver com falhas, conflitos imbecis, compromissos débeis ou trocadilhos
grosseiros. “Se trata sobretudo do desejo o inimigo que se esconde no
coração do inconsciente”
208
.
Pardo diz que a partir do
Anti
-
Édipo,
o
Isso
seria um campo de variação
intensiva povoado por singularidades impessoais, pré-subjetivas e pré-
individuais
209
. “Há uma experiência esquizofrênica das quantidades intensivas
em estado puro, até um ponto quase insuportável”
210
. o seria essa a
operação que nos força a pensar? Segundo Deleuze,
(...) tanto quanto pensamento involu
ntário,
suscitado, coagido no pensamento, com mais forte
razão é absolutamente necessário que ele nasça, por
arrombamento, do fortuito no mundo. O que é
primeiro no pensamento é o arrombamento, a
violência, é o inimigo
211
.
206
SANDLER, C. P. As origens da psicanálise na obra de Kant: a apreensão da realidade psíquica. Vol.
3. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 2000, p. 35
36.
207
DELEUZE, G. Quatro proposições a respeito da psicanálise.
In
: Psicanálise; poder e desejo. São
Paulo: Coleção IBRASI, 1979, p. 65
66.
208
Id. Ibid.
209
Cf. PARDO, L J.
Deleuze, violentar el pensamiento
.
Madri: Paidos
, 1990, p. 119. (trad. Nossa).
210
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
O Anti
-
Édipo:
capitalismo e esquizofrenia
. Trad.Georges Lamaziere.
Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 34..
211
Id. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.
230. (Sobre o tema, ver a tese de Auterives Maciel Jr. IP.
UFRJ, 2001, como descrito na nota seguinte).
61
É quando a consciência enfrenta um não-saber, no qual estariam
implicadas duas questões: uma questão ética e uma estética. Frente ao
inconsciente, o homem se desnudo, sem referência e, portanto, forçado a
pensar. Em sua tese, Auterives Maciel apresenta, na linha de Deleuze, que a
criaçã
o do pensamento não se na ordem de uma consciência psicológica,
mas se remete a um tipo de inconsciente, diz o autor da tese:
Ora, esta forma de pensamento, que se estabelece
no limite do saber, refere o pensar a um impensado
radical, isto é, a um inconsciente. Tudo se passa
como se a gênese do pensar escapasse às
determinações da consciência. Considerando o
impensado como um para além da representação e,
conseqüentemente, da realidade recortada e
simbolizada por nós, cabe perguntar se o movimento
que engendra o pensar não advém de um Fora
estranho ao saber
212
.
Mas o Fora não pode ser confundido como o algo” que vem para “o
dentro” e, pronto, põe-se a maquinar o pensamento. O fora da “ilha”, nas
palavras de Castañeda
213
. É o todo que rodeia a ”ilha”, tomando como ilha a
noção desse autor, tudo o que sabemos e pensamos, a forma como nos
vestimos, fazemos religião, acreditamos nas coisas e delas representamos.
Algo parecido com o que Deleuze e Guattari consideram. “O fora não tem
imagem, nem significação, nem subjetividade”
214
. O Fora, poderia se referir
ao fora de toda representação, no qual o pensamento é forçado a pensar por
que algo que ainda não é pensamento desorganiza a consciência, antes de
qualquer imagem, portanto, longe dos riscos da representação. Um Fora de
qualquer mundo, o pensamento não pode vir de nenhum “dentro”, “ele vem
desse Fora, e a ele retorna; o pensamento consiste em enfrentá-lo. A linha do
212
MACIEL, A. Jr. O que nos faz pensar? As condições do pensamento na experiência limite. Rio de
Janeiro: IP/ UFRJ, 2001, p. 97. (Tese de d
outorado).
213
Cf. CASTAÑEDA, C. Porta para o infinito Trad. Luzia Machado da Costa. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Era, 1998.
214
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio
Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: E
d. 34, 2004, p. 34.
62
fora é nosso duplo, com toda alteridade do duplo”
215
. Um não lugar por trás de
tudo que é psiqui
smo, o momento em que o inconsciente é processo primário.
A energia escoa-se livremente, passando sem
barreiras de uma representação para outra segundo
os mecanismos de deslocamento e de condensação;
tende a reinvestir plenamente as representações
ligada
s às vivências de satisfação constitutivas do
desejo
216
.
A força desse inconsciente é a discórdia de sensibilidade que força cada
faculdade a sair dos eixos”
217
. E esses não são as formas derivadas do
senso
comum
que fazem o pensamento girar em torno de um
centro. Entretanto, para
que o pensamento invente, é preciso que o incomparável seja enfrentado. Sob
tais condições, contudo, o pensamento pode adquirir uma força capaz de criar
as condições materiais que o engendram. assim, o pensamento não se
percebe
mais como um estado, mas como um devir, como um processo
construtivo e criativo.
218
Segundo Badiou, em Deleuze, O Clamor do Ser, “o
Fora como instância de força ativa, apoderando-se de um corpo, selecionando
um indivíduo, o ordena à escolha de escolher”
219
. Depois, Badiou conclui com
Deleuze: é justamente do autômato assim purificado que se apodera do
pensamento do Fora, como o impensável no pensamento”
220
. As condições do
pensamento dependem de uma depuração, de um descentramento que as
forças da imanência podem operar. Pensar não é o escoamento espontâneo
de uma capacidade pessoal. É o poder, duramente conquistado contra si, de
estar obrigado ao jogo do mundo”
221
. Não é aqui
,
nesse limite, que se encontra
todo sentido de um modo de vida? O Fora que constrange o pensamento a
pensar não carrega consigo nenhum juízo, nada de valor, nada pronto que
facilite a criação, nem mesmo a noção de uma pequena idéia. Eis o sentido da
215
DELEUZE, G.
Conversações
. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 137.
216
LAPLANCHE, J. e PONTALIS, D. Vocabulário da Psicanálise. Trad. Pedro Tamen. São Paulo:
Martins Fontes, 1988, p. 371. (O texto de Freud referente ao tema se encontra no volume I, Obras
Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996).
217
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed.
Graal, 1988, p. 233.
218
Cf. Id.
Lógica do sentido
. Trad. Luiz A
lberto Salinas Fortes. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003, p. 153.
219
BADIOU, A.
Deleuze, o clamor do ser.
Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1997,
p. 20.
220
Id.
221
Id. Ibid.
63
expressão “anarquia” que se refere ao “nomadismo das singularidades”
222
.
“Anarquia coroada” pertence a esses homens que renunciaram às idéias
prontas, “que constituíam a sua atualidade, sentimental, intelectual ou social, e
que tiveram a potência de exceder os seus limites, de ir para ‘lá onde a
hybris
os eleva”.
223
Portanto, é o momento mais sublime da existência, o momento
ético e estético, o momento em que o homem pode inventar e reinventar
modos de viver.
Esse lugar da gênese do pensamento não seria, portanto, num eu que
pensa, que não estamos mais em terrenos psicológicos, não na forma de
um
inconsciente psicológico, estruturado ou simbólico. Segundo Maciel, “o
inconsciente que aqui apresentamos é efeito de um evento que coloca em fuga
a memória”
224
. Para o autor da tese, O que nos faz pensar
?
As condições do
pensamento na experiência-limite, a memória funciona como fundamento, por
isso escapa na “gênese do ato de pensar”, o que ocasiona a perda de toda
identidade. Não é mais o inconsciente de que nos fala a psicanálise. “Dizemos
isso pelo fato de que na construção psicanalítica o inconsciente é
sempre
entendido como uma contra-consciência que se instaura a partir de
recalque”
225
. A gênese do pensamento não se fundaria nem no recalque
primário nem no recalque secundário, esses são processos psíquicos que se
tecem sob o tempo cronológico. O inconsciente a-psicológico não está
submetido às marcas mnêmicas da memória do tempo passado de
cronos
,
esse tempo alude ao inconsciente psicanalítico. O tempo da gênese do
pensamento é o tempo vazio “e, enquanto tal, se apresenta como erosão da
memória, introdução no seio do próprio passado de um esquecimento ou de
uma falha mnêmica que põe fim ao conteúdo ideativo da memória”
226
. Para
Maciel, é como se o homem ficasse desprovido de memória para solucionar
seus problemas do presente. Na verdade, o homem se nessa condição de
impoder “obrigado” a pensar. Para o autor:
222
Id. Ibid., p. 21.
223
Id. Ibid.
224
MACIEL, A. Jr. O que nos faz pensar? As condições do pensamento na experiência limite. Rio de
Janeiro: IP/ UFRJ, 2001, p. 182. (Tese de doutorado).
225
Id.
226
Id. Ibid.
64
O desequilíbrio funcional do ego dá-se, então, pelo
excesso de intensidade que engendra a partir do Id.
Mas, o Id aqui não se confunde com a região do
recalcado. Trata-se do território das moções
pulsi
onais que se repetem quando ativadas pelos
signos intensivos determinados no encontro com as
forças do Fora. É o transbordamento intensivo,
portanto, como repetição originária, que determinará
essa síntese do tempo constituinte do inconsciente do
pensament
o puro
227
.
Esse é o inconsciente que não tem nada a ver com as lembranças
reprimidas, mas, um inconsciente a ser fabricado. Em 1923, Freud reconheceu
“que o
Ics
. não coincide com o reprimido; é ainda verdade que tudo que é
reprimido é
Ics
., mas nem tudo o que é
Ics
. é reprimido”
228
. Não sujeito de
enunciação nem objeto do desejo, fluxos, condição da produção
desejante. “O inconsciente é uma substância a ser fabricada, a fazer circular,
um espaço social e político a ser conquistado”
229
. Tudo deve ser fabricado, o
que existe antes é desejo puro
230
, “sistema de signos a-significantes com os
quais se produz fluxos de inconsciente em um campo social”
231
. Nesse sentido
o desejo é força de transformação, “quer sempre mais conexões e
agenciamentos. Mas a psicanálise corta e achata todas as conexões, todos os
agenciamentos, ela odeia o desejo, odeia a política”
232
. O exemplo disso fica
por conta da análise do pequeno Hans
233
. E por que não dizer também do
homem dos lobos?
234
Nesse caso, especificamente, Freud ignorou a
gica
227
Id. Ibid.
228
FREUD.
S.
O Ego e o Id. (1923) Vol. XIX. Trad. JoOctavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Ed.
Imago, 199
6, p. 31.
229
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed. Escuta, 1998, p.
94.
230
É preciso ressaltar o significado de “desejo puro”. Platão fala no
Filebo
do prazer puro:
“acrescentemos a estes prazeres aqueles que procuram as ciências, se nós não encontramos aqueles que
procuramos (incluídas uma voracidade de aprender e, com esta fome de ciências, uma dor original).
(...) Esses prazeres do conhecimento não são misturados com nenhuma dor e, longe de pertencerem à
massa dos homens, eles são o quinhão de apenas um pequeno número (...). Eis então separados os
prazeres puros e aqueles que se poderia com alguma razão chamar de impuros”.
Apud
. BASS Bernard.
O
Desejo Puro. Trad. Ana Lúcia Lutterbach Rodrigues Holck. Rio de Janeiro: Ed. Revinter, 2001, p. 13. O
sentido referido do “desejo puro” está relacionado com a sua natureza imanente ao corpo sem órgãos. Não
se remete a um sujeito, nem se dirige a um objeto.
231
Id.Ibid.
232
Id. Ibid.
233
FREUD, S.
Análise de uma fobia de um men
ino de cinco anos.
(1909) Vol. XVII. Trad. José Octávio
de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996.
234
FREUD, S. História de uma neurose infantil. (1918 [1914]) Vol. XVII. Trad. Eudoro Augusto
Macieira de Souza. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996. O Homem dos Lobos se refere a Serguei
65
dos lobos que andam em matilhas, para reduzir tudo ao nível de representação
do objeto supostamente perdido
235
.
Sendo assim, não é mais possível falar de um Eu espontâneo que
pensa, mas sim de um eu que se assenta e vacila sobre o “inconsciente
efer
vescente” que irrompe a consciência e obriga a pensar. Este não pode ser
confundido com o inconsciente reprimido pelo recalque. O que forra o
inconsciente da “filosofia da diferença” não é nem mesmo o recalque primário,
na verdade, trata-se de um inconsciente desforrado. Contudo, é necessário o
processo secundário que compõe a organização mínima para pensar e atuar.
O problema de Freud foi converter esse mínimo em redução de tudo: fazer
com que o princípio de realidade se transformasse em processo de interr
upção
do plano de imanência. A partir do estado primário em que se encontram as
forças desejantes, Freud fala de um estado “perverso polimorfo
236
no qual a
energia não está organizada em nenhuma zona genital, mas como diz Freud,
“todo corpo é uma zona eróge
na”
237
. Sendo livre circulação da energia
desejante, não está organizada em torno da primazia centralizadora das zonas
genitais e, portanto, não pode entrar no circuito da culpa e da determinação de
responsabilidades; de fato, categorias como complexo de culpa”, “complexo
de Édipo” só têm
significado para o vocabulário da psicanálise. O desejo não é
nem definido pela lei, nem envenenado pela culpa, pois a lei chega ao desejo,
como no mito de Édipo, com o descobrimento de sua culpa. Com esse
trabalho da fo
rmação de um
eu
, dizem os autores do
Anti
-
Édipo:
a produção não é mais do que produção de fantasma,
produção de expressão. O inconsciente cessa de ser
o que ele é, uma usina, uma oficina, para tornar-
se
um teatro. E nem mesmo um teatro de vanguarda
Constantinovitch Pankejeff . Este é o mais elaborado e sem dúvida o mais importante de todos os casos
clínicos de Freud. Terceiro e último grande tratamento psicanalítico, depois de Dora
.
235
Cf. DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Mil
Platôs: capitalismo e esquizofrenia
.
Vol. 1. Trad. Aurélio
Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 39
52.
236
A expressão perverso-polimorfo refere-se à sexualidade infantil que ainda não tem um centro
integrador, que mais tarde estará na região genital propriamente dita. A criança sente prazer sexual com
vários de seus órgãos, e um prazer local. Não uma integração entre esses vários prazeres. Assim, o
prazer oral não remete ao prazer fálico nem ao prazer anal, nem ao prazer escopofílico, etc. Essa
concepção se encontram em "
Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" de Freud
”.
FREUD, Sigmund.
(1905) Vol. VII. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996.
237
Id.
66
(...)
, mas o teatro clássico, a ordem clássica da
representação
238
.
Nesse ponto, encontra
-
se a tensão já anunciada por Freud em
O interesse
filosófico da psicanálise (1913), o inconsciente pode ser facilmente descrito e
acompanhado em “seus desenvolvimentos, se o abordarmos pelo lado de sua
relação como o consciente, com o qual tem tanto em comum”
239
. Esse é o
inconsciente abordado na clínica. Mas, segundo O
Anti
-
Édipo
, “o inconsciente
é órfão e se produz a si mesmo na identidade da natureza e do homem”
240
. Os
pais
não estão nessa questão. As ações, que dependem de uma certa maneira
da família, pertencem à sobrevivência, mas viver, respirar, defecar, urinar,
desejar, etc., são formações que independem de família. O desejo, como
processo esquizofrênico, não se relaciona com nenhum objeto, com nenhuma
falta. É um campo de intensidades que não se define nem por sua qualidade
nem por sua quantidade. Sua intensidade se define como potência, puro devir
e pura diferença. O inconsciente desejante só está voltado para a produç
ão do
novo, produção de produção. Aqui temos uma natureza móvel, fluida,
escorregadia, devires, loucuras, sentidos que não se prendem, que não se
paralisam, que não respeitam limites, que não pedem permissão ao pai, a
Deus, à Lei, ao Estado, à tirania de qualquer ordem. Para Deleuze e Guattari,
o inconsciente está relacionado ao corpo sem órgãos: “O inconsciente é uma
terra desterritorializada, povoado com matérias instáveis não-formadas, fluxos
em todos os sentidos, intensidades livres ou singularidades
mades,
partículas loucas ou transitórias”
241
.
238
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-
Édipo
:
capitalismo e esquizof
renia
. Trad. Georges
Lamaziere. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 75
-
76.
239
FREUD, S. O Interesse filosófico da psicanálise. Vol. XIII. Trad. Órizon Carneiro Muniz. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1996, p. 181.
240
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op.cit. p. 68.
241
Id. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São
Paulo: Ed. 34, 2004, p. 53.
67
CAPÍTULO IV
DESEJO, NATUREZA E SOCIEDADE
Em
O Anti-
Étipo
, logo no primeiro capítulo, Máquinas Desejantes
,
Deleuze e Guattari trabalham diversos conceitos que vêm sendo citados ao
longo desse trabalho: máquinas desejantes
,
corpo sem órgãos
,
fluxos
,
códigos
,
rizoma
e outros conceitos
.
Seria, no caso, uma máquina órgão que se
liga a uma máquina fonte, que emite um fluxo que é cortado por outro: o seio,
por exemplo, é uma máquina fonte, produtora de leite a qual se conecta à
boca. Trata-se de fluxos e cortes, pois essas máquinas desejantes rompem
fronteiras de um
eu
,
não eu
,
interior, exterior
,
sujeito, objeto. Trata-se também
de percebermos que tudo se encaixa numa imensa cadeia produtiva: máqui
na,
máquina órgão, corte de fluxos, circulação de fluxos, produção, etc. Tudo é
produção! Produção de ações e de paixões, produção de consumo, produção
de volúpias, de angústias, de dores. Tudo é produção! “A indústria, então, não
é mais tomada numa relação extrínseca de utilidade, mas na sua identidade
fundamental com a natureza como produção do homem e pelo homem”
242
. A
própria relação homem-natureza diz de uma condição humana da natureza:
fluxos do homem cortando a natureza e fluxos da natureza atravessando o
242
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
O Anti
-
Édipo:
capitalismo e esquizofrenia
. Trad..Georges Lamaziere
Rio de Janeiro: Ed.
Imago,
1976, p. 52.
68
homem. A natureza, como produção do homem, não o homem que cria a
natureza, mas o homem que é atravessado pela vida em todos os planos da
vida e em todas as formas. Então, podemos falar de fluxos de ar, fluxos de luz,
fluxos de água; perfumes das flores que nos tocam, nos afetam, fluxos de
vento que nos atravessam,“(...) não existe também distinção homem-
natureza”
243
. O tempo todo, o homem está nessa relação com a natureza e a
natureza com o homem.
As máquinas desejantes são produção de produção: uma máquina que
produz fluxos e uma outra a ela conectada processando um corte, uma
interrupção dos fluxos. Seio e boca são máquinas que funcionam em relação à
outra que também produz um corte. O desejo não faz apenas um
acoplamento: os fluxos se conectam todo o tempo a objetos parciais. Os
objetos parciais se definem pela escolha de peças trabalhadoras dispersas:
“(...) não cessam de remeter a uma peça de uma máquina totalmente
diferente, como o trevo vermelho e o zangão, a vespa e a flor de orquídea
(...)”
244
. Toda essa dispersão do modo de funcionamento das máquinas
desejantes está em oposição ao modo estrutural da psicanálise. As máquinas
escapam a qualquer forma estrutural ou representativa, de funcionamento. São
“ponto de fuga ativo onde a máquina revolucionária, a máquina artística, a
máquina científica, a máquina (esquizo)
analítica se tornam peças e pedaços
umas das outras”
245
.
Qual o lugar da relação do desejo com a sociedade? A vida é fluxo, são
fluxos por toda parte e de todos os tipos. um atravessamento de variados
fluxos: os corpos são uma interceptação de fluxos que os atravessam: fluxos
de pensamento, de sangue, de baba, de esperma, de merda, de menstruação,
de urina, de palavras, de toda parte. Produção contínua de fluxos pela via dos
objetos parciais, permanentemente cortados também por outros objetos
parciais. São máquinas-órgãos que se conectam às máquinas fontes, são as
sínteses conectivas. Essas sínteses são combinações e arranjos, neste caso,
as conexões acontecem quando objetos parciais se cone
ctam e extraem fluxos
de outros objetos, quando cortam fluxos.
243
Id. Ibid., p. 18.
244
Id. Ibid., p. 409.
245
Id. Ibid., p. 408.
69
Os fluxos são um processo de transversalização permanente, em que
uma máquina corta os fluxos da outra. No limite, coisas e pessoas se misturam
aos fluxos. Homem e natureza seriam um cruzamento de inúmeros fluxos.
Voltando à questão anteriormente formulada, no que tange ao desejo em sua
relação com as formações sociais, as máquinas sociais sempre se
preocuparam em codificar os fluxos do desejo. Cada sociedade teve seus
métodos de marcar os cód
igos. Deleuze e Guattari têm definido o desejo como
o campo intensivo pré-subjetivo, povoado por singularidades e atravessado
pelo processo esquizofrênico do inconsciente. Sabemos inclusive como achá-
lo e como chegar a ele, a partir da construção da subjetividade ou da
genealogia da representação. Mas de onde procederia a sociedade? O que é o
social? Seria como uma lei ou instância transcendente que se impõe sobre o
corpo sem órgãos como uma maldição? Teríamos de sair da tradicional
oposição entre o homem e a natureza, pensar a esquizofrenia como desejo
que carrega o campo intensivo do inconsciente e faz circular os fluxos libidinais
entre as máquinas desejantes. E esse processo funcionaria dentro da
sociedade, produzindo realidades: lutas, revoluções, traições, religiões, artes,
ciências, etc. Porém, a preocupação da sociedade sempre foi com a tarefa de
controlar os fluxos livres
246
. Toda sociedade sempre foi uma forma
determinada de organização do desejo, de tentativa de controle do campo
intensivo em que circula o desejo inconsciente e, portanto, uma certa
organização do processo primário da esquizofrenia. É por isso que a
esquizofrenia, quando é considerada como processo e não como entidade
clínica, ameaça toda forma de sociedade; e é por isso que o desejo é
revolucionário. Não é que queira a revolução ou que queira inconscientemente
o que os revolucionários querem conscientemente, é que seu querer, seu
desejar, é em si mesmo revolucionário, põe em questão toda forma de
dominação, de servilismo, de exploração. Não duas formas de produção: o
modo de produção social e o modo de produção desejante, a produção social
é uma certa organização, uma certa repressão da produção desejante.
A sociedade se define pela codificação dos fluxos. A circulação dos
fluxos, pela descodificação da sociedade. O poder político não é outra coisa
246
Cf. Aula de Deleuze. Disponível no site http://www.imaginet.fr./deleuze/.
70
que uma determinada codificação do desejo inconsciente. Toda mudança
social é de alguma maneira um tipo de descodificação. O funcionamento das
máquinas desejantes ameaça a sociedade, assim como, o funcionamento da
sociedade se assenta na codificação dos fluxos não codificados das máquinas
desejantes. A paranóia de toda sociedade sempre foi a de erradicar, higienizar
seus espaços de toda e qualquer forma de esquizofrenia.
DESEJO E PODER
Nietzsche indica os modos de marcar o homem em A Genealogia da
Moral
, ao designar a origem de todo aparato perverso da organização política.
O objetivo é fazer uma memória no “bicho homem”, gravar com fogo para que
não esqueça “os mais horrendos sacrifícios (...), as mais repugnantes
mutilações, os mais cruéis rituais religiosos (...). O empalamento, o
dilaceramento ou o pisoteamento por cavalos (o esquartejamento), a fervura
do criminoso em óleo ou vinho (...)”
247
.
O ritual de crueldade tinha como objetivo gravar no homem esta
mensagem que de se conservar sempre na memória: “com a ajuda da
moralidade do costume e da camisa-
de
-força social, o homem foi realmente
tornado confiável”
248
. Tornou-se “um dos nossos”, um igual e um signo talhado
em sua carne o denuncia. Como assinala o texto de Nietzsche supracitado, a
inscrição é para fazer com que o homem ande “junto”, é uma marca que o
identifique. Não é o castigo de um delito qualquer ou a expiação de uma culpa,
é o “devir-sensível” da aliança que define a relação do indivíduo com o seu
grupo.
A inscrição é em si mesma um conjuro, o mecanismo sob o qual a
sociedade codifica os fluxos de desejo, assegurando-se de que nunca
247
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia
das Letras, 2001, p. 50
-
52.
248
Id., p. 49.
71
circularão fora das margens do território selado pelo signo da aliança. Não
estaria assim formada uma condição para que o homem desejasse a própria
repressão?
La Boétie, no século XVI, formulou uma questão muito interessante, “por
que os homens desejam a servidão?” O
Discurso da Servidão Voluntária
toma
a questão do poder na sociedade a partir do ponto de vista da base e
interroga
-se sobre o porquê de os homens, tendo nascidos para a liberdade,
investem em um senhor que, “não tem o poder de prejudicá-los senão
enquanto tem vontade de suportá-lo (...) ver um milhão de homens servir
miseravelmente, com o pescoço sob jugo não obrigados por uma força
maior”
249
. E de uma certa forma idolatrando e apaixonados pelos tiranos que
os subjugam.
Para La Boétie, os homens, uma vez nascidos na tirania, tomam gosto
pela servidão: “desse modo os homens nascidos sob o jugo, mais tarde
educados e criados na servidão contentam-
se
em viver como nasceram
(...),
consideram natural a condição do seu nascimento”
250
. A educação e os
costumes num regime tirânico não formam apenas o homem servil, mas o
homem que passa a ter pr
azer em viver na servidão.
Espinosa, um culo mais tarde, definiu servidão da seguinte forma: “os
homens, sabem e desejam o que querem, mas acabam de fazer sempre o que
não querem”, e indaga “o que levam os homens a combater pela sua servidão
como se trat
asse de sua liberdade?”
251
. Se a sociedade daquele tempo fez uso
das atrocidades para fazer com que as relações de aliança garantissem a
submissão dos fluxos descodificados, quais seriam as ferramentas usadas
atualmente para atingir os mesmos fins? Que tipo de perversidade se pratica
na atualidade? Não devemos nos enganar sobre o fascismo, “as massas não
foram enganadas, mas desejaram o fascismo nesse momento, nessas
circunstâncias, e é isso que é preciso explicar, essa perversão do desejo
249
LA BOÉTIE. Discurso da servidão voluntária
.
Trad. Laymert G. dos Santos. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1982,
p. 12.
250
Id. Ibid. p. 31.
251
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
O Anti
-
Édipo:
capitalismo e esquizofrenia
. Trad
..Georges Lamaziere
Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 52.
72
gregário”
252
. Dos escombros do gueto de Varsóvia, ainda ressoa a oração de
Yossel Rankover:
253
Não é verdade que Hitler tenha qualquer coisa de
bestial. Ele é estou profundamente convencido
disso
um típico produto da humanidade moderna. A
humanidade em seu conjunto foi quem o engendrou
e criou, e ele exprime abertamente, sem subterfúgios,
os seus desejos mais íntimos e mais secretos
254
.
Os processos primários não têm do que se envergonhar. A criança no
estado “perverso polimorfo” não precisa se envergonhar, são fluxos
desco
dificados que engendram o movimento das máquinas. Mais tarde, um
órgão estratificado é criado em cima do plano de imanência do desejo,
para
que possa por assim dizer envergonhar-se do próprio processo de sua
formação e reconhecer-se na imagem transgressional que advém dele. Para
que isso possa se fazer é necessário que seja posto como propriedade de um
eu, sujeito fixo e especificado sobre tal ou qual sexo como responsável de
suas máquinas desejantes, e que os objetos parciais constituídos pelas
síntese
s passivas dos fluxos se convertam em pessoas globais, que fazem
parte de uma identidade sob tal ou qual sexo e dadas, portanto, como
proibidas ou permitidas para uma relação no marco de um sistema de
filiações. Essa máquina repressora que se assenta sobre a imanência do
desejo torna-se o seu juiz. Essa é a operação da representação, que a
interpretação psicanalítica expressa em sua forma mais simplificada. Sobre
essa operação, dizem os autores do
Anti
-
Édipo
: “e vê-se muito bem o
interesse de uma operação como esta do ponto de vista da produção social,
que não poderia conjurar de outro modo a potência de revolta e de revolução
do desejo”
255
. A psicanálise introduz a operação do “duplo cego”, ela introduz o
desejo na triangulação para depois proibi-lo de realização neste mesmo
triângulo.
252
Id. Ibid.
253
Sob as ruínas do gueto de Varsóvia encontrou-se uma carta testamentária, enterrada sob pedaços de
corpos humanos. Esta carta se encontrava dentro de uma garrafa que não foi usada como coquetel
molotov, a única talvez. Antes de morrer, Yossel escreveu essa oração e guardou no pequeno recipiente.
254
KOLITZ, Z. Yossel Rakover dirige-se a Deus. Trad.Fábio Landa. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003. p.
10.
255
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op.cit.
p., 156.
73
Estendendo
-lhe o espelho deformante do incesto (...)
envergonhamos o desejo, deixamo-lo em estupor,
pomo
-lo numa situação sem saída, e finalmente o
persuadimos a renunciar a si mesmo’ em nome dos
interesses superiores da civ
ilização
256
.
Um fascismo molecular, forma “aceitável”, civilizada, subproduto de um
fascismo de Estado.
257
Como podemos ver, não é simplesmente a sociedade que reprime o
desejo, mas uma maquinação do micro espaço familiar que, agindo sobre o
campo do desejo, faz com que esse se volte contra si mesmo. Perguntam
Deleuze e Guattari: “ou Édipo não será uma exigência ou conseqüência da
reprodução social, enquanto essa se propõe a domesticar uma matéria e uma
forma genealógicas que lhe escapam por todos os lados?”
258
. Nos
perguntamos como seria possível o incesto? Como o neném poderia transar
com a mãe? Não seria uma forma de injetar no eu uma maneira cristã de ter
vergonha do desejo? Nietzsche não havia percebido isso? “(...) refiro-me à
moralização a ao amolecimento doentios, em virtude dos quais o bicho
‘homem’ aprende afinal a se envergonhar de seus instintos. A caminho de
tornar
-
se ‘anjo’ (...)”
259
.
Injetar algo de moral no desejo: não foi sempre essa a tarefa do Estado
e, atualmente não tem sido, também, a tarefa de psicólogos e psicanalistas?
“E o que seria a psicanálise freudiana sem os famosos sentimentos de culpa
que se atribui ao inconsciente?”
260
. O ateísmo de Freud ou a sua negação de
Deus não passa pelo mesmo sentido da morte de Deus em Nietzsche: em
Freud
Deus esmorto, mas o Pai na triangulação substitui tudo aquilo que
256
Id. Ibid.
257
Cf. DELEUZE, G.
Conversações
. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 213.
(Deleuze não esqueceu de se referir a Primo Levi. O sofrimento em situações consideráveis pode fazer o
homem envergonhar-se de si. Esse fato é evidente no Gueto de Varsóvia em Yossel Rakover dirige-se a
Deus
: “Eis, portanto, a que ponto chegamos: pensar que a vida é uma infelicidade, a morte uma
libertação, o ser humano uma praga, o animal um ideal, o dia um horror e a noite uma dádiva.” KO
LITZ,
Zvi.
Op,cit
., p. 1 ).
258
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
O Anti
-
Édipo
:
capitalismo e esquizofrenia
. Trad..Georges Lamaziere
Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976,
p. 29.
259
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001, p. 57.
260
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op.cit
., p. 79.
74
Deus representa. O juízo de Deus se presentifica na castração, na falta, no
complexo de Édipo, enfim, na triangulação familiar. uma luta compulsiva
para manter a ficção, usada para evitar o reconhecimento da morte de Deus,
daquilo que Deus representa. Fizeram um inconsciente crente, principalmente,
na ordem estabelecida.
Podemos encontrar a psicanálise fazendo um papel doutrinário que
expressa as condições precisas de repressão do desejo na sociedade
burguesa e nas sociedades capitalistas “civilizadas”. Essas condições se
resumem facilmente: a organização social como agente da repressão se faz
substituir na representação por um agente secundário transmissor do juízo de
Deus, a saber, a família. E a (in)organização libidinal é representada
invertida
como pulsão incestuosa. O complexo de Édipo estaria ali para
impedir o incesto impossível. A psicanálise não é mais do que o
desenvolvimento deste esquema e uma combinação das relações poss
íveis
entre seus personagens. Cumpre aqui a função para a qual é designada:
manter o desejo cortado do campo social e separado da organização da
produção social a que se subordina.
Para isso, não basta a desnaturalização do inconsciente que consiste em
des
ignar
-lhe, como proprietário, um eu fixo. É necessário que passe por
introduzir nele as disjunções exclusivas (homem/mulher, pai/filho, morto/vivo) e
por interpretar todo conflito de desejo como um embate entre funções paterno-
filiais ou materno-
incestuosa
s. Desse modo, a relação entre Marx e Freud, a
cuja síntese procedia boa parte da vanguarda intelectual européia na época da
aparição do
Anti
-
Édipo
, esquecia-se de um ponto importante: se a psicanálise
pôde, alguma vez, ter expressado a economia libidinal da burguesia, essa
economia libidinal se converteu também em um poderoso instrumento de
submissão do desejo das massas e as condições de organização libidinal do
capitalismo.
Freud reconhecia uma certa resistência inicial nos pobres para se
deixarem analisar: é muito complicado fazer com que se libertem de sua
enfermidade, porque é o que têm. A repressão do desejo das massas de
miseráveis sempre ficou por conta da religiosa. É de lá, da submissão às
doutrinas religiosas, que provêm as promessas do reino que fazem com que o
desejo desses se torne objeto de nojo e renúncia. No entanto, ainda resta uma
75
questão, diferentemente da repressão, o recalcamento é inconsciente.
Contudo, este se dá de tal maneira que a repressão também se torna desejada
pelas
massas paupérrimas, deixando de ser consciente. O recalcamento é um
instrumento que se coloca a serviço da repressão e aquilo sobre o que ele
incide se torna objeto de repressão, como a produção desejante, por exemplo.
A família e a religião passam a funci
onar como instâncias delegadas para esse
recalcamento.
Como ficou demonstrado, a máquina social (
socius
) sempre se
preocupou em codificar o desejo. O grande temor passava pela angústia e
medo dos fluxos descodificados. “O problema do
socius
sempre foi este
:
codificar os fluxos do desejo, inscrevê-los, registrá-los, frear com que nenhum
fluxo escorra (...)”
261
. Se Édipo é o recalcamento do desejo, a sua continuação,
agora em forma do
socius
, não tornaria o desejo cada vez mais edipiano?
DIFERENTES MODOS DE C
ODIFICAÇÃO DOS FLUXOS
No terceiro capítulo do
Anti
-
Édipo,
uma elaborada forma de
compreender a realidade social. Dentro de uma seqüência evolutiva
(Selvagens, Bárbaros e Civilizados), os autores fazem uma divisão da história
da humanidade em três estágios: o primitivo, o bárbaro e o civilizado.
Baremblitt ressalta que “todos os componentes da História, de cada uma
dessas formações sociais são produzidos, reproduzidos e antiproduzidos
segundo modalidades sui generis
262
. Na verdade, não uma forma única e
fixa de formação de um
socius
que marca, ordene e controle a produção
desejante. Em cada uma das situações históricas, ou em cada uma das fases,
uma entidade que permanece, mas adaptando-se a esse referido contexto:
“corpo cheio”, “corpo pleno”, no qual toda produção desejante se rebate.
Segundo Baremblitt, nos passos de Deleuze e Guattari, “na formação territorial
primitiva é o corpo cheio da terra, na imperial é o corpo cheio do imperador e
no capitalismo é o corpo cheio do capital-dinheiro”
263
. O corpo pleno, em toda
261
Id., p 50
-
51.
262
BAREMBLITT, G. Introdução à esquizoanálise. Belo Horizonte: Biblioteca do Instituto Félix
Guattari, 1998, p. 117.
263
Id. Ibid.
76
formação social, corresponde a entidade sem a qual nenhum indivíduo poderia
sobreviver ou escapar.
Usando essa divisão, Deleuze e Guattari abrem uma nova dimensão ao
transformarem a relação da sociedade com o território, com o déspota e c
om o
capital, em três máquinas sociais distintas, diferentes "regimes de signos". Os
autores inauguraram uma nova visão da sociedade como operatória e
produção
-
de
-si, e não mais como representação ou princípio. “Em resumo a
história universal não é apenas retrospectiva, ela é contingente, singular,
irônica e crítica”
264
.
MÁQUINA SOCIAL: A FORMAÇÃO DO
SOCIUS
Não é nosso objetivo percorrer todo o trajeto do capítulo três, mas
apresentar uma síntese do modo de operação dessas máquinas. Cumpre
então, iniciar esta tarefa com algumas considerações acerca da própria noção
de
máquina social. "A quina social é literalmente uma máquina,
independente de qualquer metáfora, enquanto apresenta um motor imóvel e
procede aos diversos tipos de cortes: extração de fluxo, separação de cadeia,
repartição de partes”
265
. O papel da máquina social foi sempre o de codificar
os fluxos. Fazendo uma alusão à psicanálise podemos afirmar que o trabalho
do
socius
é o recalcamento secundário. Esta “é a mais alta tarefa da máquina
social”
266
, extrair, separar, organizar “as produções de produção, as produções
de registro, as produções de consumo”
267
. E o temor de toda sociedade é o de
perder o controle dessa operação e deixar escapar um fluxo descodificado.
Para se instalar uma máquina social, é preciso que entrem em ação os
mecanismos de marcação, como foi brevemente lembrado em Nietzsche:
fazer uma memória intensa de filiação, uma memória estendida de alianças
contingentes. É a marcação dos corpos que codifica os fluxos e inaugura a
264
DELEUZE, G. e GUATTARI,
F.
O Anti-
Édipo:
capitalismo e esquizofrenia. Trad. Georges
Lamaziere. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 178.
265
Id., p. 180.
266
Id. Ibid.
267
Id. Ibid.
77
norma
lização dos costumes.
268
Uma forma de crueldade é fazer do homem
uma memória. Para isso é preciso inventar uma dívida impagável e adestrar o
homem em “blocos de dívidas”. Moisés soube como ninguém operar esse tipo
de marcação sobre as tribos de Israel. Ele dividiu a multidão em doze blocos,
definiu papéis, nominou signos de acordo com linhagens, lançou mão dos
mitos, estabeleceu rituais de acertos de contas e uniu os milhares de
refugiados no deserto sob a proclamação de uma “raça eleita”, “sacerdócio
real”, “povo escolhido de Deus”. No “ritual do santuário” mosaico as dívidas
podiam ser pagas de acordo com o nível social de cada um, que compreendia
desde um rebanho para os mais abastados - dependia do tipo de delito - até
um pequeno pombo, para os mais desafo
rtunados
269
.
Todavia, uma marcação é sempre marcação de alguma coisa. Tudo
começa com a proibição do incesto
270
. É o fluxo intensivo desejado que não
pode escapar de ser cortado e o seu recalcamento é condição necessária para
a produção social. O recalcamento da memória filiativa intensa, ao produzir os
limites do
socius
inaugura um sistema de representações que, bloqueando
parcelas de fluxos, inicia o movimento de distensão, produtor dos
descompassos entre o desejado e o seu representante, em que se instala,
então, o desejo produtivo.
MÁQUINA PRIMITIVA OU SELVAGEM
Como apontamos anteriormente, toda sociedade tem seus modos
próprios de codificar os fluxos de desejo. Começa-se com a sociedade
selvagem na qual o corpo pleno é a terra”
271
. Movimento que parte de um
fluxo intensivo único, primordial, "grande êxtase inengendrada", pura
intensidade, de onde tudo provém e para o qual tudo retorna, e que se
desdobra, pela sua contínua divisão, na criação de um espaço em extensão;
um espaço sobre o qual se maquinam os corpos e objetos, e que é, por sua
268
Id. Ibid., p. 189
-
90.
269
As descrições detalhadas dessas ofertas se encontram no livro de Levíticos, na Bílbia Sagrada, cuja
autoria é atribuída a Moisés.
270
Cf. FREUD, S. Totem e Tabu. (1913 – 1914) Vol. XIII. Trad. Órizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro:
Ed. Imago, 1996.
271
Cf. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-
Édipo:
capitalismo e esquizofrenia. Trad..Ge
orges
Lamaziere Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 183
78
vez, modificado e re-criado por eles. “A unidade primitiva, selvagem, do desejo
e da produção é a terra”
272
. Todos estão sujeitos a um mesmo corpo moral,
cultural, local, um mesmo sistema de signos, nada lhes escapa: a eco
nomia de
rebanhos, os rituais religiosos, entre outros. “Os seres humanos aqui são
peças, e a memória se inscreve no corpo de cada um”
273
. Tudo está sujeito ao
código, sejam as mulheres, os rebanhos, as sementes, os fluxos de esperma
ou mesmo os fluxos de menstruação. Sobre esse rito, comenta Marcondes:
“voz falante, corpo marcado, olho que goza constituem blocos de dívida
abertos, móveis e finitos, tudo isso, para domar o homem, capacitá-lo à
aliança, inseri-lo na relação credor-
devedor”
274
. As marcas precisam grudar
bem no corpo, caso contrário ele será considerado um mau devedor. O
instituto da dívida está presente em toda a sociedade, para se adquirir
qualquer coisa sempre foi preciso “pagar” sob formas diversas, com dinheiro
ou com rituais. Todos os princípios de vigência do
socius
está subordinado à
dívida. O corpo é marcado por tatuagens e circuncisão. São as inscrições da
máquina da crueldade. O homem perde a sua memória individual para receber
uma memória coletiva. “É o investimento coletivo de órgãos que liga o desejo
no
socius
e reúne num todo sobre a terra a produção social e a produção
desejante”
275
. A máquina territorial primitiva codifica os fluxos, investe os
órgãos, marca os corpos para garantir uma unidade coletiva de produção.
Furtos e Roussillon, comentando O
Anti
-
Édipo
, afirmam: “o código está
diretamente memorizado, no corpo: tatuar, excisar, cortar, escarificar, mutilar,
cercar, iniciar, é a escrita da crueldade”
276
. Para o homem gozar plenamente
os seus direitos e deveres, tem de ter “todo o seu corpo marcado sob um
regime que refere seus órgãos e seu exercício à coletividade (a privatização
dos órgãos começará com ‘a vergonha que o homem experimenta à
vista
do homem’)”
277
. Embora se tratando da marcação do corpo, o alvo não são os
órgãos do corpo, mas a inscrição do desejo no corpo pleno. A máquina social
272
Id. p. 178.
273
MARCONDES, C. F. O escavador de silêncios: formas de construir e de desconstruir sentidos na
comunicação
.
São Paulo: Ed. Paulus, 2004, p. 102.
274
Id. Ibid., p. 104.
275
DELEUZE, G. e G
UATTARI, F. O
p. cit
., p.181.
276
FURTOS, J. e ROUSSILLON, R. “O Anti-Édipo: tentativa de exploração”.
In
: CARRILHO, Manuel
Maria (org.) Capitalismo e esquizofrenia: dossier Anti-Édipo. Trad. José Afonso Furtado. Lisboa: Assírio
& Alvim, 1976, p. 42.
277
DELE
UZE, G. e GUATTARI, F.
Op.cit
., p.183.
79
desloca a ênfase dos organismos e objetos para os processos produtivos e
criativos engendrados por eles. Portanto, busca-se no tratamento do desejo, e
não em algum lugar do cérebro, o princíp
io produtivo do
socius
.
MÁQUINA BÁRBARA OU DESPÓTICA
O segundo tipo de formação social aparece com a organização do
Estado, a sociedade bárbara ou despótica. A formação do Estado revela uma
profunda reorganização dos modelos antigos. O corpo pleno deixa de ser a
terra e passa a ser o corpo do déspota. Na visão de Deleuze e Guattari,
A unidade imanente da terra como motor imóvel
lugar a uma unidade transcendente de uma natureza
totalmente diferente, a unidade de Estado; o corpo
pleno não é mais o da terra, mas o do Déspota. O
Inengendrado, que se encarrega agora da fertilidade
do solo e da chuva do céu e da apropriação geral das
forças produtivas
278
.
O déspota diz: “Eu sou o caminho”, e com isso ele funda o significante,
porque os súditos hão de se questionar: “o que Ele quis dizer”? Na sociedade
anterior, a preocupação se concentrava no “como isso funciona”, mas na nova
ordem despótica, o significante impõe a lógica de “o que isso quer dizer”. O
sentido e as respostas remetem sempre a uma insuficiência da simplificação
dos significados. Marcondes, citando Derrida, diz: “o significante (...) remete a
um
logos
absoluto, há conteúdos teológicos-metafísicos que inviabilizam a
relação de significação, conduzindo-a a uma
aporia
279
. Em outras palavras, o
déspo
ta segrega o
logos
de Deus elevando-o ao nível de significante
despótico: uma primeira aparição de um estrato de juízo de Deus. Ninguém
atinge os significantes, todos se limitam aos significados. Essa é a forma de se
preservar o antigo recalque da sociedade primitiva. Os signos do
socius
anterior não se apagam totalmente, uma sobrecodificação dos novos
códigos sobre os “tijolos” da antiga civilização; na verdade, a nova civilização
se edifica sobre as ruínas daquela. A decadência do
socius
da civilização
278
Id., p. 185.
279
MARCONDES, C. F. O escavador de silêncios: formas de construir e de desconstruir sentidos na
comunicação
.
São Paulo: Ed. Paulus, 2004, p. 108.
80
primitiva cedeu espaço para o surgimento do “déspota paranóico”
280
. Ele,
auxiliado por seu séqüito (padres, exércitos, doutores, escribas e funcionários
burocratas), espalham o terror por onde passam. Dizem os autores do
Anti
-
Édipo
:
O que define a paranói
a é essa potência de projeção,
essa força de repartir de zero, de objetivar uma
completa transformação: o sujeito salta fora dos
cruzamentos aliança-filiação, instala-se no limite, no
horizonte, no deserto, sujeito de um saber
desterritorializado que o religa diretamente a Deus,
conectando
-o ao povo. Pela primeira vez, da vida e
da terra retirou-se alguma coisa que vai permitir
julgar a vida e sobrevoar a terra, princípio de
conhecimento paranóico. Todo o jogo relativo das
alianças e das filiações é levado ao absoluto nessa
nova aliança e nessa filiação direta”
281
.
A filiação a que se referem os autores é direta com Deus, mas o
déspota é o seu representante na terra a quem o povo deve seguir. Moisés
ainda parece oferecer um bom exemplo dessa transformação. Ao tirar o
“Israel” do Egito, desterritorializa o
socius
do império egípicio para lançar
aquela multidão no deserto. Daí, até uma nova aliança, o representante de
Deus na terra é o déspota. O fato marcante se quando, na subida ao Sinai,
após os quarenta dias, o povo desorientado decide presentificar Deus em
forma de um bezerro de ouro, retorno ao antigo “território” egípicio
282
.
Para Furtos e Roussillon, “a idade bárbara é uma introdução à falta,
castração do objeto completo separado: a idade bárbara segrega sujeitos
depressivos”
283
, e a terra se transforma no exílio dos alienados. A partir deste
instante, um Outro passou a falar em nome de alguém.
280
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op.cit.,
p. 244.
281
Id., p. 2
45
-
246.
282
Ver o interessante episódio no livro de Êxodo, cap. 32, da Bíblia Sagrada.
283
FURTOS, J. e ROUSSILLON, R. O Anti-
Édipo
: tentativa de exploração. In: CARRILHO M, M.
(org.)
Capitalismo e esquizofrenia: dossier Anti-Édipo. Tr. José Afonso Furtado. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1976, p. 43.
81
Se este momento pôde ser considerado como “o primeiro grande
momento de desterritorialização”
284
, o mesmo não pode ser comparado com a
civilização capitalista que vai operar com a descodificação total dos códigos.
MÁQUINA CAPITALISTA CIVILIZADA
O fluxo do comércio e do dinheiro, entre os comerciantes que buscam
maiores lucros, entram num sistema de descodificação, formando um novo
corpo pleno, o capital-dinheiro. Na sociedade capitalista, aparece um
paradoxo: “o
sócius
perde o controle dos fluxos ocorrendo processos de
desterritorialização dos códigos e de reterritorialização sucessivos”
285
. Os
fluxos descodificados substituem os códigos até então colocados. Todos os
antigos códigos são substituídos por uma axiomática de quantidades abstratas
na forma de moeda. Nada resiste à fantástica máquina capitalista: “a
descodificação dos fluxos, a desterritorialização do
sociu
s formam assim a
tendência mais essencial do capitalismo. Ele não cessa de aproximar-se de
seu limite, que é um limite propriamente esquizofrênico”
286
. Por um lado, libera
os fluxos, mas ao mesmo tempo leva esses fluxos até um determinado limite
que se fosse além levaria a sua própria dissolução e a partir de então ele
recodifica os fluxos.
O capitalismo não tem um território pré-definido como no sistema feudal,
o império atual é nômade. O império de hoje vive de contradições”
287
, não
teme aquilo que foi o terror de toda sociedade. Em nossa sociedade, os fluxos
descodificados são re-dirigidos pela máquina capitalista, tornam-
se
organismos burocráticos e são engendrados no corpo pleno: os fluxos de
capital deslizam semelhantemente ao nômade ou ao esquizo. O nômade, à
semelhança do esquizo, é o desterritorializado por excelência, aquele que foge
e faz fugir tudo. Ele faz da própria desterritorialização um território subjetivo. O
império de hoje depende das flutuações dos fluxos de toda ordem: fluxos de
emprego, de informações, de capital, de bens, de modas e os de
conhecimento. A máquina capitalista circula a terra em busca da captura do
284
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op.cit
. p. 245
-
282.
285
MARCONDES, C. F.
Op.cit
., p. 110.
286
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op.cit
., p. 52.
287
Cf. Aula de Deleuze disponível no site http://www.imaginet.fr./deleuze/.
82
desejo das massas. Os chamados “serviços do bem” são o sonho de consumo
de toda a sociedade capitalista.
O trabalhador não está mais preso à terra, e o capital desliza sem aviso
prévio para qualquer território onde haja maior “promessa” de lucros, liquidez,
segurança e, hoje, mais do que nunca, onde as políticas de sustentabilidade
sejam sustentáculos sociais. O capitalismo funcio
na com base em um mercado
mundial e não encontra nenhuma fronteira que possa impedir a sua expansão.
Deleuze falou da sociedade contemporânea como a sociedade de controle;
288
ele reafirma o que Foucault havia defendido, que o novo funcionamento do
poder opera “ao ar livre” e por modulação contínua; num tipo de controle que
nunca destrói as coisas completamente; ao contrário disto, as transformam
contínuas, ilimitadas e rapidamente, de forma imperceptível - como “um gás” -
não as deixando jamais terminar. “É uma fantástica fabricação de riqueza e
miséria”
289
. O capitalismo se faz polícia do mundo: invade, mata, modifica as
paisagens, destrói, assassina qualquer forma de vida, desde que, de algum
modo, haja uma interposição dos fluxos, isto é, o capital-
dinhei
ro em seu
movimento ondulatório pelo planeta. Não é mais a velha toupeira monetária
dos meios de confinamento, “mas a serpente o é das sociedades de
controle”
290
. Encontramos aí, nos dispositivos de controle, uma ilimitada
potência que se enrosca no incontrolável movimento sinuoso da serpente
financeira pois, se “o homem da disciplina era um produtor descontínuo de
energia, (...) o homem do controle é, antes, ondulatório, funcionando em órbita,
num feixe contínuo”
291
.
Mas além de fazer tudo correr solto, a con
dição capitalista impõe a tudo a
“lei do valor”, cria um equivalente geral para todas as coisas: o dinheiro é o
equivalente geral; não tem a preocupação de codificar tudo, mas de
axiomatizar com a máquina abstrata
capital
-
dinheiro
. O dinheiro passa a reger
tudo: os modos de vida, as relações com a natureza e as relações com a vida
em geral.
288
DELEUZE, G.
Post
-escriptum sobre as sociedades de controle”. In:
Conversações.
Trad Peter Pál
Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
289
Id.
Conversações
, p. 213.
290
Id. Ibid., p. 139.
291
Id. Ibid.
83
Os códigos medievais vinham de uma ordem superior (Igreja, Estado,
reis, nobreza, etc.), mas a “lei do valor” é imanente, é mais problemática do
que os códigos, ela tem um funcionamento que atravessa tudo. Ela não vem
de cima, ela se infiltra pelo meio, e contamina a tudo e a todos. A tendência
mais essencial do capitalismo é essa capacidade de desterritorializar,
descodificar tudo. É que o capitalismo se aproxima cada vez mais de um
limite esquizofrênico.
Deleuze e Guattari já haviam mostrado o que de comum entre
capitalismo e esquizofrenia. Na esteira “descodificante”, tanto os fluxos quanto
o regime de produção capitalista arrastam consigo toda formulação de
códig
os, com uma diferença peculiar do capitalismo: ele desfaz todos os
valores para introduzir um único que serve ao regime de produção, o capital-
dinheiro. Os afetos, o conhecimento, o desejo são fortemente incorporados ao
atual regime de acumulação capitalis
ta.
uma advetência, ao longo do
Anti
-
Édipo,
para a estreita relação entre
produção desejante e produção social. Os autores mostram que o
socius
não é
um todo autônomo, mas um campo de variações entre uma instância de
agregação (máquinas molares técnicas e sociais) e uma superfície de
errância (máquinas desejantes) como regimes diferentes de uma mesma
produção imanente, contrariando a tradição e a psicanálise que atrelam o
desejo à falta e a economia política capitalista que reduz as relações entre
forç
as à dimensão capital-trabalho. A economia do desejo e a economia
política são uma só: economia de fluxos. Homem e natureza estão imersos
numa universal produção primária, produtividade de fluxos e cortes de fluxos
da produção desejante.Esta se caracteriza pelo produzir sempre o produzir,
pelo injetar o produzir no produto, pela produção de produção. Não existe mais
distinção homem-natureza: “a essência humana da natureza e a essência
natural do homem se identificam na natureza como produção ou indústria, i
sto
é, igualmente na vida genérica do homem”
292
. Esta afirmação implica, por um
lado, na desnaturalização das análises que inscrevem o campo social numa
dicotomia totalizante e excludente entre o nível molar (macropolítica) e o nível
292
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op,cit.,
p.18.
84
molecular (micropolítica)
293
. Como disseram os autores de Mil Platôs: “tudo é
político mas toda política é ao mesmo tempo macro e micropolítica”
294
.
Donzelot, comentando O
Anti
-
Édipo
e as subversões que este livro opera,
tanto na psicanálise quanto no marxismo, afirma que o lugar que ocupa o
conceito de produção na obra faz “do empreendimento de Deleuze e Guattari
um marxismo de dimensões mais amplas”
295
. Se o desejo é produção, não
espaços restritos de produção desejante. É preciso reescrever “o aparelho
psiquiátrico e psicanalítico”, que se referem ao desejo o como “produção
mas à lei, referindo-o não ao espaço político e social mas ao enclave irrisório
da família”
296
. O propósito é lançar o desejo “no conjunto marxista das forças
produtivas. Ele é refreado, regulado, por aquilo que regula qualquer
produção”
297
.
Deleuze, em uma de suas aulas sobre O
Anti
-
Édipo
relativa ao modo de
funcionamento do capitalismo, afirma que o que passa sobre o corpo de uma
sociedade são sempre fluxos
298
. Os fluxos, numa formação social, falam dos
caracter
es dos investimentos sociais, coletivos, e dos investimentos
inconscientes no próprio campo social.
O
socius
, como dispositivo historicamente produzido, é pensado em seu
funcionamento maquínico que se define por fluxos heterogênicos,
independentes e irredutíveis, geradores de infinitas formas de semiotizações.
Desse modo, ele não se constitui por objetos e sujeitos que o pré
-
existem, mas
se produz, ao mesmo tempo, num mesmo plano, como efeito do encontro dos
corpos que os fluxos estabelecem entre si. O ser vivo é, assim, um corte no
fluxo. Os fluxos são o corpo primeiro do
socius
”; sempre acontecem e vão
sendo definidos a partir das especificidades dos encontros. Corpo, que os
autores de O
Anti
-
Édipo
e de Mil Platôs denominam de corpo sem órgãos, que
são os corpos das afecções, encontro de fragmentos que escapam aos
princípios de organização, de formalização e de organismo. Na definição de
293
GUATTARI, F. e ROLNIK, S.
Micropolítica
: Cartografias do Desejo. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,
1986, p. 127
-
8.
294
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Trad. Aurélio G.
Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São P
aulo: Ed, 34, 1995, p. 90.
295
DONZELOT, J. Uma anti-
sociologia
. In: CARRILHO, Manuel, M. (0rg.). Capitalismo e
esquizofrenia: dossier Anti
-
Édipo
. Trad. José Afonso Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim,1976, p. 167.
296
Id.
297
Id. Ibid.
298
Aula de Deleuze, disponível
no site http://www.imaginet.fr./deleuze/.
85
Deleuze e Guattari: “ele é não desejo, mas também desejo. (...) Ao Corpo Sem
órgão não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é
um limite”
299
.
O encontro dos corpos, momento em que os fluxos se conectam, é
presidido por uma operação maquínica. No entanto, essa operação não deve
ser confundida com as das máquinas técnicas que trabalham por produção de
pr
oduto. As máquinas desejantes não querem dizer nada, não desejam nada,
apenas funcionam por desarranjo, fragmentação, acoplamento e, quando
agenciadas, produzem territórios, outras máquinas, fluxos e universos
existenciais. Em Mil Platôs, Corpo sem Órgãos é também o nome do plano de
consistência das multiplicidades, o que assegura a junção de heterogêneos num
conjunto aberto, tornando-se, portanto, parte importante na elaboração
conceitual de uma teoria das multiplicidades. No entanto, ele mesmo não seria
tanto “uma noção, um conceito” quanto “um conjunto de práticas”
300
, que
possibilita uma ruptura em relação aos estratos que ordenam as multiplicidades,
como as do organismo, da significância e da subjetivação. Por isso, ele se opõe
e combate o organismo como fruto do sistema do juízo distributivo de Deus, que
ordena os órgãos segundo funções e finalidades, constituindo um organismo
através da estratificação do corpo. Assim, a constituição de um corpo sem
órgãos requer uma desestratificação, que deve ser feita com “prudência”, “como
dose, como regra imanente à experimentação”
301
. Os agenciamentos do desejo
produtivo dependem da constituição de um corpo sem órgãos. uma
dificuldade a ser superada nesse processo de “construção de um corpo sem
órgãos”. A desorganiz
ação dos órgãos, ou, como aparece em
Lógica do sentido
,
a identificação da fissura incorporal de superfície, pode ser conseguida de várias
maneiras: os drogados com suas químicas, os masoquistas com suas dores,
entre outros., mas é preciso ter prudência para não ultrapassar o delicado limite
do corpo. A prudência consistiria em observar o que se separa de um corpo sem
órgãos da morte do corpo. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari advertem:
“experimentação muito delicada, porque não pode haver estagnação dos
mo
dos, nem derrapagem do tipo: o masoquista, o drogado tangenciam estes
299
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia
.
Vol
. 3. Trad. Aurélio Neto,
Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 9.
300
Id.
301
Id. Ibid., p. 11.
86
perpétuos perigos que esvaziam seu CsO em vez de preenchê-
lo”
302
. É preciso
impedir que o corpo seja desterritorializado a ponto de encontrar a morte, ficar
na superfície preservando a vida. Voltaremos a abordar essa questão no
capítulo cinco.
Deleuze e Guattari, ao afirmarem que onde produção e reprodução
sociais, produção desejante
303
, sinalizam que as formas de produção social
implicam, elas também, um elemento de anti-produção acoplado ao processo
de produção. Cada sociedade teve a sua espécie de superfície de registro.
304
Um corpo pleno denominado como
socius
(corpo da terra, corpo do déspota ou
capital) que, funcionando como superfície de registro, rebate-se sobre as
formas produtiva
s e apropria
-
se delas, desarranjando
-
as.
No caso do capitalismo, o capital se constitui como o corpo sem órgãos
do processo capitalista, inserindo-se entre o produto e o produzir como fluxo
de poder mutante que toma para si a deriva da força de trabalho e os limites
de sua própria fruição. Desse modo, o capital não é apenas a “substância
fluida e petrificada do dinheiro, mas confere à esterilidade do dinheiro a forma
sob a qual este produz dinheiro”
305
e uma mais-valia valor “como substância
motora de si pró
pria”.
306
“O corpo pleno transformado no capital do capital-
dinheiro suprime a distinção da produção e da anti-produção; ele mistura em
todo lugar a anti
-
produção às forças produtivas, na produção imanente de seus
próprios limites sempre alargados”
307
.
O capitalismo opera os fluxos com a condição de os introduzir numa
máquina não mais de código, e sim numa máquina axiomática, cujo limite é
determinado pelo valor do lucro. O capitalismo permitiria as
desterritorializações até um certo limite para depois rete
rritorializar tudo.
A positividade do funcionamento capitalista é de se constituir sobre o
negativo das outras sociedades (enfraquecimento dos códigos). Ele não
enfrenta esta situação de fora, ele vive dela e nela encontra,
concomitantemente, sua condição e sua matéria, impondo-a com toda a
302
Id. Ibid., p. 13.
303
Cf. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-
Édipo:
capitalismo e esquizofrenia. Trad..Georges
Lamaziere Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 52.
304
Cf. Id.
Ibid., p. 177
-
345.
305
Id. Ibid., p. 25.
306
Id. Ibid., p. 288.
307
Id. Ibid., p. 42
5.
87
violência. “Sua produção e repressão soberanas podem acontecer a esse
preço”
308
.
O capitalismo se engrandece sobre este signo: o de estar sempre pronto
para ligar um axioma a mais à máquina. Seu funcionamento é paradoxal à
medida que se constitui historicamente sobre aquilo que as outras sociedades
temiam: a existência e a realidade de fluxos descodificados que ele toma para
si, desterritorializando e produzindo combinatórias em escalas cada vez
maiores. “O capitalismo é a única máquina social (...) que se constitui como tal
sobre fluxos decodificados, substituindo os códigos intrínsecos por uma
axiomática das quantidades abstratas em forma de moeda”
309
. Tendo como
combustíveis para sua acumulação, a “vampirização” da vida do trabalhador e
de seu lazer. “O capital é trabalho morto que como um vampiro se reanima
sugando o trabalho vivo e quanto mais o suga mais forte se torna”
310
. Confirma
Marx, abordado por Deleuze e Guattari: “O capital se torna assim um ser bem
misterioso, pois todas as forças produtivas parecem nascer dentro dele e
pertencer
-
lhe”
311
.
O capitalismo tem esse duplo movimento, ao mesmo tempo que
descodifica todos os códigos, ele procura também re-codificar: descodificação
ou desterritorialização dos fluxos e a sua reteritorialização, por vezes, violenta.
Quanto mais a máquina capitalista se desterritorializa e descodifica os fluxos
para deles extrair a mais valia, mais os aparelhos burocráticos do capitalismo
reterritorializam, com toda força aqueles fluxos desterritorializados. O
capitalismo indica através de quais canais os fluxos desterritorializados podem
passar: os fluxos do cabelo, os fluxos da boca, os fluxos da orelha e os fluxos
do corpo em geral podem fluir livremente até o limite de sua subversão ditado
pela máquina axiomática. Daí em diante, toda a transformação será
convergida para o capital-dinheiro. Nisto consiste o paradoxo, em toda busca
de saída, ao seu final ou em seu percurso, está também a sua captura ou seu
fim.
308
Id. Ibid., p. 51.
309
Id. Ibid., p. 117.
310
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. In: CARRILHO, Manuel, M. (org). Trad. José Afonso Furtado.
Capitalismo e esquizofrenia:
dossier Anti
-
Édipo
.
Lisboa: Assírio & Alvim
.,
1976, p. 56.
311
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op.cit
.,
p. 26.
88
Nas “revoluções frustradas”, não se contou com esse limiar. Maio de 68
caminhou até esse ponto, as forças dominantes capitalistas “permitiram” que
se fosse até o seu limite. Esqueceu-se do contra-fluxo que atravessa todos os
códigos e que funciona de maneira estranha ao desejo revolucionário. Este se
volta contra os ideais de libertação com a permissão das massas
revolucionárias. Os partidos e os sindicatos já se encontram divididos por
fluxos “desembestados”. Quando as instituições percebem esses fluxos
desgovernados, surgem, então, os temores que facilitam a ação de um contra-
desejo. A axiomática capitalista é uma laminação dos modos de viver, de
pensar, de existir, de sentir. É o achatamento de toda possibilidade criativa.
Essa virtualidade capitalista é capaz de penetrar em todo lugar, e em todo
movimento cultural, político, religioso. Não é assim que se passam com as
obras antigamente sacras? Hoje, são objetos de valor capitalista, perderam o
seu significado religioso.
O problema parece ter sido o de se considerar os fluxos, as
desterr
itorializações e o desejo sob uma forma ingênua. Mesmo nas leituras
críticas que se fez sobre o desejo, pensava
-
se em torno de um desejo livre e aí
parecia que tudo estava bem, mas Deleuze e Guattari foram mais fundo ao
considerarem o funcionamento das máq
uinas desejantes.
No
Anti
-
Édipo
toda máquina estabelece um sistema de cortes, toda
máquina estaria relacionada a um fluxo material contínuo que ela emite e outra
corta. Se pensarmos o funcionamento da máquina-intestino que se conecta à
máquina
-ânus, máquina-estômago que se conecta à máquina-boca, a boca do
neném que se conecta à máquina-peito, seguindo essa série até ao campo
social, não podemos esquecer que os modos de funcionamento são os
mesmos. Tudo é máquina e tudo é produção de produção. As máquinas
desejantes não visam a uma produção final como as máquinas técnicas, mas
sim à produção como processo de produção. Toda máquina desejante
comporta uma espécie de código de funcionamento que está estocado nela.
Um mesmo órgão pode ser desvirtuado em relação às conexões e aos fluxos
por ele estabelecidas. A boca é para comer, é fluxo de saciação por ingestão
de alimentos, mas a boca anoréxica é para vomitar. “A boca do anoréxico
hesita entre uma máquina para comer, uma máquina anal, uma máquina para
89
falar, uma máquina para respirar (...). Somos todos
bricoleurs
312
, com nossas
pequenas máquinas. Sexo oral, sexo anal, as máquinas não se mantêm
sempre com os mesmos códigos. Assim como nas máquinas sociais, por
serem também atravessadas por fluxos, podem ter seu fun
cionamento
atrapalhado pelo desejo. A máquina policial, às vezes, pode funcionar como
máquina bandida. uma subversão permanente dos fluxos, a tranqüilidade
pela via dos fluxos do desejo é uma ilusão. Além da descodificação e da
desterritorialização, ain
da se tem a subversão das “especificidades” dos fluxos.
O erro da psicanálise foi se considerar capaz de passar da lei que proíbe
ou reprime o desejo ao próprio desejo. Assim, a crítica que o desejo pode fazer
ao poder não é à proibição ou à repressão, não é que lhe impeça de existir ou
freie seu curso, mas muito mais o que lhe faça existir e lhe obrigue a circular
em certos caminhos ou sob certa imagem.
O que se procura fazer, na linha do
Anti
-
Édipo
, é se distanciar da posição
psicanalítica e, também das ingênuas críticas que se faz à repressão do
desejo. A crítica do
Anti
-
Édipo
vai mais além, atinge as formas de repressão
que recalcaram o sexo e a enunciação, fazendo tudo circular na representação
e na interpretação, afastando o desejo do campo da produção e aprisionando
tudo no eu e na família.
312
Id., p. 15.
90
CAPÍTULO V - O
ANTI
-
ÉDIPO
: O DESEJO COMO POSSIBILIDADE DE
MODOS DE VIDA
Agora, estamos em condições de compreender o porquê de o
Anti
-
Édipo
ser tomado como um livro de Ética ou, como sugeriu Foucault, uma
introdução à vida não fascista”
313
. Na introdução da edição americana, ele
adverte para um desejo fascista sutil, não o fascismo da Itália de Mussolini,
muito menos o da Alemanha de Hitler. A advertência cabe ao fascismo de
todos nós, aquele que nos é familiar, que jaz no interior de cada um de nós.
Como criar um modo de vida não-
fascista?
Para Deleuze e Guattari, o livro
não foi escrito para especialistas, mas para qualquer um que queira se
apropriar dele como um instante de possibilidades mutantes. A maneira para
“abordá
-lo” é aquela que prevê a apreciação ou a contemplação de uma obra
de “arte”. É um livro de conceitos que se aplicam ou não à vida, são como
313
FOUCAULT, M. In:
ESCOBAR, C. H, de. (org.)
Dossier
Anti
-
Édipo: uma introdução à vida não
fascista
. Rio de Janeiro, Ed. Hólon, 1991, p. 82. Tr. de Wanderson Flor do Nascimento
91
intensidades que convém ou não, que atravessam os sujeitos que desejam ser
af
etados, muito mais do que conhecer, que se conectam com alguma
estratégia, interesse ou paixão. Assim, cabe-nos fazer as seguintes perguntas:
a leitura desse livro nos afeta? Aumenta a nossa potência de agir e de resistir?
O livro nos leva a viver na prática de uma ética não-fascista? Extraímos dele
uma potência para tentar outros modos de nos conduzirmos no mundo?
O Anti-
Édipo
se firma como uma máquina de guerra não de luta
armada, mas de combate. Isso porque na altura daqueles acontecimentos algo
se desfigurava diante de todos, era preciso que se denunciasse. Algo da
ordem do desejo se voltou contra as idéias dos revolucionários. O fascismo do
desejo, ou melhor, a cara fascista dele. As velhas ferramentas teóricas não
eram suficientes para explicar os acontecimentos de “maio de 68”. O Anti-
Édipo
significa uma radicalização contra uma dupla vertente: Os deploráveis
técnicos do desejo os psicanalistas que registram cada signo e cada
sintoma, e que querem reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária
da estrutura e da fala”
314
. Para Deleuze, o problema é o poder nas mãos do
psicanalista que se instala no “cruzamento entre um fluxo libidinal,
indecomponível e mutante, e um fluxo segmentarizável que será trocado em
seu lugar”
315
. Não seria sempre essa a questão do poder, impossibilitar a ação
do desejo e barrar a formação de enunciados? O poder não quer sempre falar
em nome de alguém? O médico em nome do paciente, o psicanalista em nome
do cliente, o político em nome do povo e os sacerdotes em nome de Deus às
suas “ovelhas”? E para agravar essa situação, tudo acontece com o
consentimento dos homens.
E, em segundo momento, o ataque ao maior inimigo: “o fascismo, e não
apenas o fascismo histórico, mas também o fascismo que está em todos nós
(...), o que
quer o poder, esta coisa que nos domina e nos explora?”
316
.
Para compreender os acontecimentos de Maio de 68, os autores do
Anti
-
Édipo
propõem uma separação da associação Marx
-
Freud
317
, dizem:
314
Id.
315
DELEUZE, G. “Quatro proposições a respeito da psicanálise”. In: Psicanálise; poder e desejo. São
Paulo: Ibrapsi, 1979, p. 71.
316
Id. Ibid.
317
Daí a expressão,
Freudo
-
Marxista
, relacionado ao movimento que fazia oposição à psicanálise, mas
que utilizava elementos desta e do marxismo para dar uma interpretação da realidade. Esse era o palco
que serviu ao nascimento das idéias para uma teoria esquizoanalitica.
92
é preciso, em primeiro lugar, desfazermo-nos de uma
hierarquia estereotipada entre uma infra-
estrutura
opaca e superestruturas sociais e ideológicas
concebidas de tal modo que recalcam as questões do
sexo e da enunciação para o lado da representação,
o mais afastado possível da produção
318
.
Assim, poderá ser possível “compreender” as interpretações dos
acontecimentos do
socius
sob a ótica do “vagão freudiano e do comboio do
marxismo
-leninismo” de então. “As relações de produção e as relações de
reprodução participam no mesmo par das forças produtivas e das estruturas
an
ti
-
produtivas”
319
. Não seria o caso de se considerar o desejo fazendo parte
tanto da produção, quanto da anti-produção? O desejo ao lado da infra-
estrutura, a serviço da produção, “enquanto se fará passar a família, o eu e a
pessoa para o lado da anti-
produç
ão. É o único meio de evitar que o sexual
fique definitivamente separado do econômico”
320
.
Para os autores do
Anti
-
Édipo
, antes de haver qualquer formação social,
seja ela familiar ou econômica, atualização de divisão cultural da família, dos
sexos e das pessoas, ou ainda, a divisão das tarefas econômicas, existem
produções do desejo. “É a mesma energia desejante que encontramos na face
revolucionária da história (...) e que encontramos na face das relações de
exploração e do poder de Estado, enquanto ambas pressupõem uma
participação inconsciente dos oprimidos”
321
.
Como explicar “uma revolução traída” pelas massas que têm interesses
diferentes dos de uma suposta classe dominante? Para dar conta dessa
questão,
O Anti-
Édipo
leva em conta o desejo investindo o campo social, pois
o desejo não cessa de trabalhar a história. A resposta não poderia vir da
junção Freud-marxismo. Baudrillard, ao se referir à crise da psicanálise e do
marxismo, declara: “o marxismo e a psicanálise estão em crise. É preciso
forçar e precipitar sua crise respectiva, muito mais do que escorá-los um por
318
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. In: CARRILHO, Manuel, M. (org.) “Entrevista I: uma Anti-
Sociologia”
. Capitalismo e Esquizofrenia: dossier Anti-
Édipo
. Trad. José Afonso Furtado Lisboa:
Assírio & Alvim, 1976, p. 58.
319
Id. Ibid
320
Id. Ibid., p. 58.
321
Id. Ibid., p. 59.
93
meio do outro. Eles ainda podem se fazer reciprocamente muito mal”
322
. Fazer
irromper a derrota do tipo de interpretação conjunta. O problema não estava
numa interpretação dos textos marxistas e, também, a culpa não foi do
programa da revolução. A verdade é que a revolução socialista estava ao
alcance da mão e escapou. Faltava manter o desejo o mais perto possível das
considerações teóricas dos acontecimentos daqueles tempos. Não se trata
mais de olhar para as massas sofridas, com olhar paternalista. Esse
comportamento carrega a descrença na capacidade dessas supostas classes
dominadas de discernir o que seria bom para si próprias. Não saberiam essas
classes dominadas discernir seus próprio
s interesses diante dos dominadores?
No entanto, quando se pensa que o desejo determina inclusive os interesses,
o trabalho passa a ser o de descobrir como ele pode funcionar para levar
pessoas a agirem de maneira, aparentemente, contrária a seus interesse
s.
Como compreender a história sem considerar os conceitos correlatos ao
desejo: agenciamentos, multiplicidades, fluxos, acoplamentos, entre outros?
Ficou visto que não se desmascara o fascismo sem a análise da relação do
desejo com a realidade e com a máquina capitalista que pode responder a
questões que surgem menos do porquê das coisas do que do seu como. Os
revolucionários esqueceram que o desejo se encontra presente no discurso,
no pensamento e na ação. Contudo, não nenhuma garantia do
funcionamento
do desejo revolucionário até a concretização dos ideais da
revolução. Se os dirigentes traem, pode-se entender. No entanto, por que uma
certa parcela dos dirigidos continuam a segui-los? “Não será conseqüência de
uma cumplicidade inconsciente
323
, de uma interiorização da repressão,
operando em níveis sucessíveis, do Poder aos burocratas, dos burocratas aos
militantes e dos militantes às próprias massas?”
324
.
Por isso o combate e não a guerra, porque esta ofusca o maior inimigo
que vem antes e atravessa qualquer teoria: o desejo fascista. “Enfim, o inimigo
322
BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. Trad. Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara
Sobral. São Paulo: Edições Loyola, 1976, p. 29
5.
323
Aqui, é claro, estamos nos referindo ao inconsciente psicológico que esconde ou não o desejo fascista
e tirano. Daí, a questão não ser a de substituir um inconsciente por outro, mas a de trabalhar com cada um
em planos distintos.
324
CARRILHO, Manuel, M
.
Op.cit
.,
p. 57.
94
maior, o adversário estratégico
325
: o fascismo que existe no interior de cada
um de nós, “que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o
fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos
explora”
326
. Então, O
Anti
-
Édipo
insurge em meio à ressaca de um clima de
decepção e desilusão como um livro de reflexão ética, e não como uma teoria
globalizante. É um estilo de vida, modo de pensá-la com seus acontecimentos,
a partir de dentro do tecido social. Daí a questão maior: como fazer para não
se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um
militante revolucionário?”
327
.
Como fazer para não se apaixonar pelo poder? Como não permitir viver
um minuto sequer sem um desejo fascista? Foucault resumiu essa
possibilidade de fazer do
Anti
-
Édipo
“um guia da vida cotidiana”: Afastar-
se
das formas paranóicas e unitárias que pretendem totalizar as ações políticas;
investir em ações nas quais o desejo possa escorregar por “pr
oliferação,
justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização
piramidal”
328
. Liberar-se das velhas formas de definição do desejo: carência,
falta, lacuna intransponível, lei, castração, entre outros. Reverter para a
afirmação, para o positivo e o múltiplo; optar pela diferença em contraposição
ao uniforme; preferir os fluxos em detrimento das unidades identitárias ; “os
agenciamentos móveis aos sistemas”
329
, os elementos nômades e não os
sedentários. Badiou lembra dos “autômatos purificados” que Deleuze
menciona em Cinema 2 A imagem tempo: “esse ‘autômato purificado’ está
certamente muito mais próximo da norma deleuzeana que os barbudos de 68,
que exibiam seu gordo desejo a tiracolo”
330
. Como dissemos no início, a forma
como concebemos o desejo determina um modo de viver, “pois trata-se, como
acabamos de ver, das condições do pensamento”
331
. Estamos no âmago do
sentido daquilo que tentamos desenvolver até aqui.
325
FOUCAULT, M.
Anti
-
Édipo
: uma introdução à vida não fascista
.
In:
ESCOBAR, C. H, de. (org.)
Dossier Deleuze
. Trad. Wanderson Flor do Nascimento. Rio de Janeiro: Ed. Hólon, 1991, p. 82.
326
Id.
, p. 83.
327
Id. Ibid.
328
Id.
329
Id. Ibid.
330
BADIO
U, A.
Deleuze: o clamor do ser
. Trad. Lucy Magalhães Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1997,
p. 20.
331
Id.
95
Construções e desconstruções, agenciamentos de enunciações que se
produzem coletivamente. Ligar o desejo à realidade para escapar da fuga das
representações, que não possui o vigor e alegria revolucionária. Não fazer do
pensamento uma doutrina de verdade para sustentar uma prática política;
“nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse
apenas pura especulação”
332
. A prática, segundo Foucault, deveria estar a
serviço da intensificação “do pensamento, e a análise como um multiplicador
das formas e dos domínios de intervenção da ação política”
333
. Não se iludir, “o
indi
víduo é o produto do poder”. É a entrada na vida que se faz via
assujeitamento, é o pai, a família. Deleuze adverte: “(...) qualquer entrada é
boa, a partir do momento em que as saídas são múltiplas”
334
. Deve-se insistir
com os deslocamentos, a “desindividualização pela multiplicação, o
deslocamento e os diversos agenciamentos” de maneira a impedir que o grupo
se torne “o laço orgânico” de indivíduos hierarquizados. Não cair de amores
pelo poder, mas se apaixonar e cair na diferença. Longe de buscar um
consen
so crítico totalizante, a questão deve ser cultivar o dissenso e a
produção singular da existência.
Ao se referir às experiências de 68, Deleuze adverte ”que as pessoas
falem em seu próprio nome. E isso vale também para o intelectual”
335
. Se essa
prática for abrangente, como é de se esperar, num estilo de vida-não fascista,
os médicos, os psicanalistas, os psiquiatras, etc., perderão o direito de falar
em nome de seus pacientes, “mas terão o dever de falar, como médicos, sobre
problemas políticos”
336
.
É imperativo buscar viver essas práticas no seio da vida cotidiana
individual, doméstica, conjugal, de vizinhança, uma ética pessoal. A partir
daqueles dias, não é mais possível aceitar a promoção, seja qual for, de super
instâncias unificadoras, modeladoras, estados maiores estratégicos,
programas e teorias tendo a vocação de responder pelo conjunto das
situações e pela multiplicidade dos pontos de vista. Guattari fala de uma
332
FOUCAULT, M.
Anti
-
Édipo
: uma introdução à vida não fascista. In: ESCOBAR, C. H, de. (org.)
Dossier Deleuze
. Trad. Wanderson Flor do Nascimento. Rio d
e Janeiro: Ed. Hólon, 1991, p 84.
333
Id.
334
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro São Paulo: Ed. Escuta, 1998, p.
119.
335
DELEUZE, G.
Conversações
. Trad. Peter Pál Pelbart São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 110.
336
Id.
96
recomposição da centralidade organizacional, que deve ser repensada sob o
novo paradigma: sobre esse ponto. Diz o autor: “multiplicidade,
heterocentralidade (...), será tanto mais compreendida e assumida quanto mais
se basear unicamente em agenciamentos contingentes de luta, preservando a
autonomia, a heterogeneidade de seus componentes”
337
.
Des
centralizar o poder para “neutralizar os efeitos ligados a seu próprio
discurso”. Trata-se antes de devires, de rizoma, das horizontalidades, das
cartografias, alguma coisa de essencial que se passa
entre
e essa coisa é da
maior seriedade. Esses são os pontos da “perseguição a todas as formas de
fascismo, desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até
aquelas formas pequenas que fazem a amena tirania de nossas vidas
cotidianas”
338
. Dentro de casa, na tirania dos pais um sobre o outro sobre
os
filhos, a força do irmão mais poderoso. O poder no sistema educacional a
tirania dos que têm poder para avaliar e disciplinar - professores sobre alunos.
Em nossos dias, volta-se a enfatizar o ensino religioso nas escolas: o estímulo
ao temor a Deus na
escola; o esforço dessa em fazer com que a família "fale a
mesma língua"; o estímulo ao amar com severidade. A necessidade que a
escola em fazer com que as crianças passem por frustrações para que se
tornem "adultos mais preparados para a vida"
.
Na medicina, isso pode ser visto no poder do diagnóstico dos médicos,
incluindo a psiquiatria com o poder sobre a “loucura” ou sobre qualquer
comportamento desviante que se pareça com anormalidade. O poder dos
psicanalistas que “sabem” como interpretar cada enun
ciado dentro do triângulo
edipiano impedindo os agenciamentos do desejo no campo social. Por isso, é
necessário “des-individualizar” por meio de multiplicidades de combinações.
Em qualquer dos exemplos acima citados, será necessário novas práticas de
subje
tivação que rompam com o indivíduo gestado pelo poder. Fazer surgir
linhas de fuga, que possibilitem movimentos de desestratificação e de
desterritorialização: um duplo sentido de conexão e heterogeneidade, segundo
o qual se pode e, até mesmo, deve-se conectar qualquer ponto de um rizoma
a qualquer outro. Esses pontos são constituídos por natureza diversa, é a
337
GUATTARI, F.
Revolução
Molecular: pulsações políticas do desejo Trad. Suely Rolnik. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 73.
338
FOUCAULT, M.
Anti
-
Édipo
: uma introdução à vida não fascista. In: ESCOBAR, C. H, de. (org.)
Dossier Deleuze
. Trad. Wanderson Flor do Nascimento. Rio de Jane
iro: Ed. Hólon, 1991, p 84.
97
heterogeneidade. Pode-se perceber essa realidade no
Anti
-
Édipo
no qual os
conceitos se misturam ou se bifurcam com diversos pontos (lingüística,
biol
ogia, política, economia, botânica, psicanálise, física, etc.).
O agenciamento se constitui sob o princípio de multiplicidade, suas
determinações se referem a “grandezas, dimensões, que não podem crescer
sem que ela mude de natureza”
339
. São arranjos que envolvem coisas,
pessoas, animais, plantas, entre outros. É a soma do crescimento das
dimensões numa multiplicidade que, forçosamente, muda de natureza à
medida que aumenta suas conexões. Essa cartografia crescimento de
dimensões
por aumento de conexões é exatamente o que define um
agenciamento, que é formado pelas linhas de fuga de um rizoma. O desejo
rizomático é o desejo revolucionário, não por se unificar a uma causa, idéia ou
bandeira, mas porque constitui movimentos, horizontalidades, velocidade de
deslocamento dos elementos que se desterritorializam: máquina desejante,
conjunto de pontas que se inserem, que se agenciam em múltiplas
desterritorializações, ou seja, “variações e mutações”
340
. Guattari, vinte anos
depois do
Anti
-
Édipo,
lembra, em
Paixões
das máquinas: “Esta ‘máquina’ é
aberta para o exterior, para o seu ambiente maquínico e entretém todo tipo de
relações com os componentes sociais e as subjetividades individuais
341
. O
sentido das máquinas se encontra na elasticidade que permite expandir “o
conceito de máquina tecnológica ao de agenciamentos maquínicos, categoria
que engloba tudo o que se desenvolve como máquinas de diferentes registros
e suportes ontológicos”
342
. O desejo funciona em bases de agenciamentos
com as potências afetivas, e ele próprio emerge no meio, é um elemento
relacional, uma liga de fluxos. Se o desejo tem objetos, este é o próprio fluxo.
É nessa potência para agenciar, para desterritorializar e para se efetuar, que
se caracteriza a liberdade. A liberdade está longe dos ideais da democracia,
uma noção abstrata como a da Revolução Francesa do final do século XVIII.
Tais ideais, disfarçadamente, são mecanismos de dominação e captura do
desejo e das diferenças. São formas de submeter o desejo e as potências
339
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia
.
v
.
1 Trad. Aurélio Guerra
Neto
.
São Paulo:
Ed.
34, 2004,
p. 15.
340
Id. p. 146.
341
GUATTARI, F. A paixão das máquinas. Trad. Jayme Aranha Filho. São Paulo: HUCITE
C
- PUC,
2003, p. 42. (Cadernos de subjetividade).
342
Id.
98
individuais a uma vontade geral. A liberdade não é conquistada com a
ascensão dos indivíduos ao poder. Os homens não se tornam mais fortes e
admiráveis quando são considerados iguais, mas, quando suas diferenças são
afirmadas. As diferenças aparecem na produção do pensamento, na
criação
de maneiras de viver individualmente, na arte e na cultura dos povos. Essas
diferenças o forças primeiras e livres, estão em nosso próprio corpo. Para
essas potências não existem modelos, nenhuma Idéia ou modelo genérico.
São qualidades microfísicas e não metafísicas. Portanto, não uma moral do
dever, mas uma ética de afirmação de forças. Não há um modelo para o corpo,
ele se define por encontros e afecções, que podem ou não aumentar a sua
capacidade de agir e pensar: uma ética do desejo.
É deste modo que as questões relevantes podem (re)aparecer: Como
ser um homem livre? Como estar à altura do que nos acontece? Como fazer
da vida uma força de experimentação, não de demolição? Como substituir a
necessidade de ser amado pela potência de amar? Como devolver ao desejo
sua força de conexão e de subversão? Como dar ao pensamento velocidade
absoluta e fazer dele uma máquina de guerra apta a combater os aparelhos de
captura, chamem-se Família, Igreja, Estado, capital-dinheiro, Édipo, Mídia?
343
Trata
-se de deixar os pontos centrados, intempestivamente, irromper, emergir,
fazer aparecer a vida enfim. Criação ou re-invenção de modos de vida.
Maquinismo, rizoma, agenciamentos, conexões e disjunções. Não o todos
esses elementos linhas para uma cartografia que se faz e se desfaz? Esses
movimentos e operações têm o mesmo sentido em que o termo “máquina” foi
tomado em Maturama e Varela,
344
que “oferecem” ao
Anti
-
Édipo
, uma
definição que se aproxima muito das “máquinas abstratas”, “essas são
descritas como
autopoiét
icas
, autoprodutora dela mesma e reproduzindo
permanentemente os seus componentes qual um sistema sem
input
nem
output”
345
. Ao voltar a produção para a própria máquina, acaba-se com
343
Cf.DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed. Escuta,
1998.
344
Umberto Maturama e Francisco Varela “definem a máquina como o conjunto de inter-relações dos
seus componentes, independentemente dos próprios componentes. Procuram estabelecer uma ligação
entre as máquinas alo e autopoiéticas. As máquinas alopoiéticas encontram-se sempre na adjacência das
máquinas autopoiéticas e é preciso assim levar em consideração os agenciamentos que as fazem viver
juntas.” GUATTARI, F.
A paixão das máquinas
. Trad. Jayme Aranha Filho São Paulo: HUCITEC
-
PUC,
2003, p. 43. (Cadernos de subjetividade).
345
Id.
99
qualquer forma modeladora da vida, finda-se a maldição dos modelos da vida,
máquinas de morte.
Para Deleuze e Guattari, os indivíduos ou grupos são atravessados por
verdadeiras linhas, fusos e meridianos distintos. Nossa existência é uma
espécie de geografia. Somos corpos cartográficos. Assim como os mapas
geográficos delimitam e registram territórios políticos, econômicos e culturais,
os indivíduos também são registrados e cruzados por linhas. Algumas dessas
são traçadas do exterior e não se cruzam, ao contrário, separam-se e
demarcam os seus próprios territórios. Outras são produtos do acaso; mas
outras que devemos inventá
-
las, traçá
-
las efetivamente na vida. Devemos criar
nossas próprias linhas de fuga. Mesmo que para alguns indivíduos ou grupos
nunca seja possível construí-las. Outros as perderam. As linhas de fuga são
"
uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso
mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra.
Rizoma
"
346
. O desejo escorre para agenciamentos e não agenciamentos
solitários. “Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto,
conjunto de uma saia, de um raio de sol (...)”
347
. Desejar é desterritorializar
para construir sempre outras paisagens. Guattari declara que “torna-
se
imperativo refundar os eixos de valores, as finalidades fundamentais humanas
e das atividades produtivas”
348
. É a possibilidade de um engajamento ético,
estético e analítico. Para Guattari, uma ecosofia “consistirá, portanto, em
desenvolver práticas específicas que tendam a modificar e reinventar maneiras
de ser no seio do casal, da família, d
o contexto urbano, do trabalho”
349
.
Em
Micropolítica
Cartografias do Desejo, Guattari apresenta o conceito
de micropolítica como sendo uma questão de “analítica das formações do
desejo no campo social”
350
. Guattari faz uso desse conceito para mostrar como
se cruzam o nível das diferenças sociais mais amplas (molar), com as mais
346
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Mil platôs
: capitalismo e esquizofrenia
.
Vol
. 3 Trad. Aurélio Guerra
Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Ed.34, 1996, p. 75
-
76.
347
Aula de Deleuze, disponível no site http://www.imaginet.fr./deleuze/.
348
GUATTARI, F.
Caosmose:
um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláuda
Leão São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 116.
349
Id.
As três ecologias. Trad. Maria Cristina Bittencourt. São Paulo:
Papirus, 2003, p. 15
16.
350
GUATTARI, F. e ROLNIK, S.
Micropolítica
: cartografias do desejo. Petrópolis: Ed. V
ozes, 1986, p.
127.
100
específicas (moleculares)
351
. A proposta de uma micropolítica do desejo o
consiste em estabelecer uma ponte entre a psicanálise e marxismo, como
teorias constituídas. Ele não acredita que um sistema de conceitos possa
funcionar, convenientemente, fora de seu meio de origem, fora dos
agenciamentos coletivos de enunciação que o produzem. A psicanálise cuida
do que passa na escala da família e da pessoa, enquanto que a política se
preo
cupa com os grandes conjuntos sociais. No entanto, Guattari procura
mostrar que uma política que se dirige tanto ao desejo do indivíduo quanto
ao que se manifesta no campo social mais abrangente. E isso se sob duas
formas:
seja uma micropolítica que vise tanto aos problemas
individuais quanto aos problemas sociais, seja uma
macropolítica que vise aos mesmos campos
(indivíduo, família, problemas de partido, de Estado,
etc.). O despotismo que, freqüentemente, reina nas
relações conjugais ou familiares, provém do mesmo
tipo de agenciamento libidinal daquele existente no
campo social. Inversamente, não é absurdo abordar
um certo número de problemas sociais em grande
escala, por exemplo os do burocratismo e do
fascismo, à luz de uma micropolítica do desej
o
352
.
Para Guattari, a questão não é construir ligações entre campos
constituídos e separados uns dos outros, mas o problema passa pela criação
de novas máquinas teóricas e práticas, capazes de varrer as estratificações e
estabelecer condições para um novo exercício do desejo. Ele defende que a
expressão do homem no mundo se a partir do momento em que ele se
singulariza. Nesse processo de singularização, não uma hierarquização
de sociedade e indivíduo, mas sim a forma e o sentido que este a tudo o
que lhe rodeia. A expressão do sentido, que o homem aos acontecimentos
e aos códigos, deve ser, permanentemente, construída. Sendo assim, as
351
Segundo o próprio Guattari, esses termos foram ele extraídos de seus estudos de farmácia,
provavelmente de bioquímica: os estratos sociais, com suas diferenças mais amplas, ele chama de nível
molar. E, para as ações de singularização, que rompem com processos de subjetivação capitalista,
Guattari reservou o termo molecular. um belo exemplo citado em Mil Platôs, v. 4. p. 12. Baseado no
filme de Daniel Mann, “Willard”, Deleuze e Guattari, apresentam as imagens que se intercalam: devir-
molecular e devir
-
molar.
352
GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Trad. Suely Rolnik. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 184.
101
construções e desconstruções são agenciamentos de enunciação que se
realizam na coletividade, pois o processo de singularização precisa de
interventores. O agenciamento coletivo de enunciação é
o conjunto das condições que torna possível que
instâncias individuais e/ou coletivas estejam em
posição de emergir como território existencial auto-
referencial, em adjacência ou em relação de
delimitação como uma alteridade e/ou mesma
subjetiva”
353
.
Os agenciamentos coletivos de enunciação produzem seus próprios
meios de expressão. Eles trabalham os fluxos do desejo, materiais, sociais,
semióticos, entre outros, da mes
ma forma. Para Guattari, “não mais se tem (...)
um sujeito e um objeto e, em terceira posição um meio de expressão (...). O
que se tem é um agenciamento coletivo que é, ao mesmo tempo, sujeito,
objeto e expressão”
354
. Uma outra possibilidade de fazer política, no seio das
organizações e das instituições. Guattari não acredita que esses movimentos
“revolucionários” partam das instituições, mas defende que é do interior das
organizações que podem surgir os movimentos moleculares. Uma igreja não
tem interesse em revolução, mas dentro dela podem se iniciar produções de
enunciados que não tenham relação com a identidade teológica. E
xperimentar
novas sensibilidades, tudo que é do domínio da ruptura, da surpresa e da
angústia, mas também do desejo, da vontade de amar e criar. Escapar dos
registros de referência dominantes. Ser vigilante aos arranjos que tentam
prever tudo o que possa ser de natureza de uma dissidência do pensamento e
do desejo.
Deleuze e Guattari deixam essa outra possibilidade, uma outra maneira
de pensar que permitiria ao pensamento se livrar da experiência da
representação e da interpretação, fora da analítica da finitude e da falta. O que
buscamos? Libertar o desejo e o pensamento da condenação moral,
experimentar os devires: devir como construtor
de diferenças; ancorado não na
história, mas na cartografia; não na natureza, mas nos blocos de devires
353
Id.
Caosmose:
um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São
Paulo:
Ed. 34, 1983, p. 19.
354
Id. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Trad. Suely Belinha Rolnik São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 178.
102
móveis, nômades, portanto, rizoma e não árvore; “cair na diferença”, ou cair na
paixão pela diferença para não cair de paixão pelo poder; ter a coragem
de
experimentar a vida com a própria vida em incessante estado de intensidade-
embriaguez
355
. Aprender a extrair da vida os elementos da embriaguez, como
Henry Miller, citado por Deleuze, em Diálogos: abster-se do álcool, da droga,
da loucura, é isso o devir, o devir-sóbrio, para uma vida cada vez mais rica.
356
Construir um corpo sem órgãos com toda a prudência necessária.
EXPERIMENTAÇÕES COM A PRÓPRIA VIDA
Resta dizer alguma coisa a respeito da construção de uma vida não-
fascista”. Seguindo o método de Deleuze e Guattari, “como produzir rizomas”:
“reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de
fuga”
357
. Talvez seja esta a questão: como criar para si um corpo sem
órgãos?” Vem de Castañeda, intercessor menor, um eco familiar sobre o
conceito de rizoma. Ele toca a questão misteriosa do “subtrair o único da
multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser
chamado de rizoma”
358
. Não é a mesma questão de Artaud, que busca o seu
corpo sem órgãos? Incluiria as crianças que tecem linhas de fuga com seus
brinquedos e seus animais: elas deliram com amigos invisíveis.
Castañeda, à maneira indígena, toma o juízo de Deus por Tonal, “uma
ilha”. Sobre a mesa de um bar, o Tonal é como se fosse o tampo da mesa com
tudo
que sobre ela: “uma ilha. E nesta ilha temos tudo. Esta ilha, de fato, é
o mundo”
359
. Tudo o que sabemos está na mesa, os pensamentos estão sobre
a mesa, são os talheres”, Deus está sobre a mesa. “Deus é apenas tudo em
355
Cf. BAUDELAIRE, C.
Pequenos poemas em prosa
. 4ª ed Trad. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980. p. 91. Em certo momento de sua obra, Deleuze, ativando a
prudência
implicada na experimentação e criação de um corpo sem órgãos, optará e
mbriagar
-se com
água pura, nos fluxos perceptivos ativados no embalo das leituras agora da literatura norte-americana, de
Keroauc e Henri Miller, entre outros. “É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos
do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes
melhor.”
356
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro São Paulo: Ed. Escuta, 1998, p.
67.
357
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia
.
Vol. I. Trad. Aurélio Guerra
Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 33.
358
Id., p
. 15.
359
CASTAÑEDA, C. Porta para o infinito. Trad. Luzia Machado da Costa. São Paulo: Ed. Nova Era,
1998, p. 113.
103
que você pode pensar, e portanto, é apenas mais um artigo na ilha”
360
. Deus é
como se fosse a toalha da mesa, Ele sozinho nunca foi o juízo, o juízo é a ilha
inteira, aquela mesa de bar com todos os seus objetos. Deleuze e Guattari
dizem isso de outra maneira: “Os estratos eram o juízo de Deus, a
estratificação geral era todo o sistema do juízo de Deus”
361
, mas o corpo pleno
sempre se desterritorializa e faz fugir os estratos.
Não se encontra o
tonal
como se encontraria qualquer coisa, ele está
em toda parte, é visto sem ser percebido, está nas coisas, é o próprio rosto do
mundo.
“Em outras palavras, o
tonal
faz as regras pelas quais apreende o
mundo. Assim, de certo modo, cria o mundo”
362
. Não é Deus que encerra tudo
como poderíamos ter pensado um dia. Tanto esse pensamento quanto o
próprio Deus são objetos da ilha. Desde que entramos na ilha ou ela em nós,
que é a mesma coisa, começamos a fazer pares”
363
. Passamos a ter dois
lados: “alma e corpo. Ou o espírito e a matéria. Ou o bem e o mal. Deus e
Satanás”
364
. Segundo o autor, desde que nos tornamos inteiramente
tonais
“(...) não fazemos outra coisa senão incrementar aquele antigo sentimento de
deficiência que nos acompanha (...) e que nos diz incessantemente que
uma outra parte para completar-
nos”
365
. Uma fantástica colonização,
socialização, aculturação, seja que nome se vai conferir. Fazer a roupa, um
rosto, edipianizar, dar funções-nomes aos pais. No entanto, um outro lado
que não se encontra na ilha, sentimo-nos ao nosso lado, “ilhas desertas”.
Porém, quando somos afetados por esse outro lado deserto, “o
tonal
apodera-
se da batuta e, como maestro, é muito mesquinho e zeloso. Ofusca-nos com
sua esperteza e nos obriga a obliterar o mais leve vislumbre da outra parte do
verdadeiro par, o
nagual
366
. O
tonal
fez o homem acreditar. Fé estranha que o
faz pensar estar sendo guiado por forças de bem ou de mal. Para Castañeda,
a vida tem o seu verdadeiro movimento entre o “negativo e o positivo”. Não
nenhum valor de bem ou de mal, apenas forças. O corpo sem órgão reage:
“fizeram
-me um organismo! Dobra
ram
-me indevidamente! Roubaram meu
360
Id., p. 115.
361
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op. Cit.,
p. 54.
362
CASTAÑEDA, C.
Op.cit.,
p.113
.
363
Id. p., 116.
364
Id. Ibid.
365
Id. Ibid.
366
Id. I
bid., p. 117.
104
corpo! O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um
organismo, uma significação, um sujeito. É ele o estratificado”
367
. É assim que
se fabrica um sujeito, estratificando-o, esmagando o seu “corpo” debaixo d
os
estratos, ilhando-o até o limite do intolerável. Contudo, segundo Deleuze e
Guattari, seguindo Castañeda, “existe no ser humano um outro plano, obscuro
e informe, onde a consciência não entrou, mas que a cerca de uma espécie de
prolongamento sombrio”
368
.
Esse é o plano que, constantemente, ameaça a
consciência com as “sensações aventurosas”, sem controle algum. O que para
Artaud, “são os fantasmas desavergonhados que afetam a consciência
doentia”
369
. E conclui Artaud: “eu também tive sensações falsas, percep
ções
falsas e nelas acreditei”
370
. O Fora da consciência não seria uma outra
consciência, nem uma espécie de contra-consciência. Não é concebível
pensar esse outro plano como um lugar de nossa psique. O
nagual
é
comparado ao “mundo das anarquias coroadas”, mundo cintilante onde o eu
se desfaz na multiplicidade, lugar do corpo sem órgãos, plano de imanência do
desejo. Feliz coincidência, em Nietzsche,
371
o mundo não é apenas uma
vontade, o mundo é uma pluralidade de forças em luta: “(...) qualquer ser vivo
quer
expandir a sua força a própria vida é vontade de poder”
372
. Em
Castañeda, a noção de força, semelhantemente a de Nietzsche, também
guarda o sentido de poder preservando o sentido desse conceito em
Nietzsche. O
nagual
, diferentemente do
tonal
, não é experiência, nem
consciência. O
tonal
se firma na mesma proporção do Eu empírico, que pensa
pensar e revelar a realidade, nasce com o homem e morre quando da sua
367
DELEUZE, G. GUATTARI, F.
Op.cit.,
p. 21.
368
Id., p. 23.
369
Id.
Ibid.
370
Id. Ibid.
371
Acreditamos que Espinosa tenha sido apropriado por Nietzsche, pelo menos em sua noção de
conatus
com seu sentido de força de auto-preservação: “o movimento interno do corpo é o nexo interno das idéias
na alma constituem a essência do homem essa essência se denomina
conatus
, esforço para preservar na
existência, poder para vencer os obstáculos exteriores a esta existência, poder para expandir-
se
plenamente. Ora, cada
conatus
está perpetuamente relacionado com outros e cada um pode realizar uma
verdadeira guerra contra os demais para poder preservar-se, e o mundo exterior surge como conjunto de
causas que podem aumentar ou diminuir o poder do
conatus
de cada um. A ação consiste em apropriar-
se
de todas as coisas exteriores que aumentam o poder do
conatus
”. (ESPINOSA, B. As Paixões e o Desejo.
São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1979. p. XX. (Os Pensadores)
372
NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Lisboa: Ed.
Guimarães, 1987, p. 262.
105
morte. Contudo, o
nagual
não tem limites”
373
. Ele é poder de afetar. “Pode-
se
dizer que o
nagual
explica a criatividade (...). O
nagual
é a única parte de nós
que consegue criar”
374
. A questão é como enfrentar as dificuldades para atingir
este mundo “da Anarquia coroada, se se fica nos órgãos”
375
. Se o os órgãos
que nos fixam nesse mundo, como operar esse
movimento entre forças que se
opõem? Como criar um modo de vida entre tensões? São elementos que se
detestam, não podem coexistir sem que haja tremores e erupções. E de onde
veio a idéia de que o homem pode viver seguro quando esse combate tiver
findo?
Não vem das antigas idéias de bem e de mal que fazem o julgamento
da vida? Diz Dom Juan:
(...) tudo nelas é triste, as roupas, o cheiro, a atitude.
Por que você acha que é assim?
-
Talvez tenham nascido assim
respondi.
-
Ninguém nasce assim. Nós nos torn
amos assim
376
.
Para quem se acostumou a viver
tonal
, como andar em terras onde não
existem deuses para julgar? Para quem se inicia com papai e mamãe, como
viver órfão? Para aqueles que esperam uma terra prometida, como pisar numa
terra sempre nova que escapa? Rapidamente, percebemos que o combate
não vem do bem e do mal e do certo e do errado. Também não é combate
entre sexos, mas entre forças. Como disse Castañeda, forças negativas e
forças positivas. E o combate entre forças que permite os re-
começos.
Num
texto de 1950, Deleuze se refere às ilhas desertas como o princípio de re-
começos.
Primeiramente, é verdade que não se opera a própria
criação a partir da ilha deserta, mas a re-criação, não
o começo, mas o re-começo. Ela é a origem, mas
origem segun
da. A partir dela tudo recomeça. A ilha é
o mínimo necessário para esse recomeço, o material
sobrevivente da primeira origem, o núcleo ou o ovo
irradiante que deve bastar para re-produzir tudo. (...)
373
CASTAÑEDA, C. Porta para o infinito. Trad. Luzia Machado da Costa. São Paulo: Ed. Nova Era,
1998, p. 127.
374
Id.
375
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia
.
Trad. Aurélio G.
Neto, Ana
Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik.
Vol
.
3. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 20
-
21.
376
CASTAÑEDA, C. Porta para o infinito. Trad. Luzia Machado da Costa São Paulo: Ed. Nova Era,
1998, p. 122.
106
A idéia de uma segunda origem todo seu sentido
à ilha deserta, sobrevivência da ilha santa num
mundo que tarda para recomeçar. No ideal do
recomeço algo que precede o próprio começo,
que o retoma para aprofundá-lo e recuá-lo no tempo.
A ilha deserta é a matéria desse inmemorial ou desse
mais profundo
377
.
Não parece haver contradição entre o
tonal
do índio de Castañeda e as
“ilhas” a serem criadas no texto de Deleuze: é verdade que entramos no
mundo numa ilha, mas esta já se encontra povoada, começamos como
tonais
,
mas os re-começos também partem de uma ilha, que deserta. Em 1980,
com Guattari, em Mil Platôs, Deleuze faz uso da noção de platôs de Gregory
Batenson para propor os passos de um protocolo. São necessários mil
agenciamentos para fabricar, com sabedoria, pequenos platôs. “Um platô é um
pedaço
de imanência. Cada CsO é feito de platôs. Cada CsO é ele mesmo um
platô, que comunica com outros platôs sobre o plano de consistência. É um
componente de passagens”
378
.
Esse protocolo deve obedecer a certos critérios
procedimentais: doses de prudência, “substituir a anamnese pelo
esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem
órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de
velhice, de tristeza e de alegria”
379
. Tudo deve ser feito com cuidado para não
inco
rrer nas mesmas falhas dos drogaditos ou dos masoquistas. Artaud
declara guerra aos órgãos: para acabar com o juízo de Deus
380
. Entretanto,
não se trata de estilhaçar o corpo com as dores das perfurações e
dilacerações. De uma maneira específica, Artaud se preocupa com essas
experimentações que põem a consciência sob riscos: ela (...) sabe o que é
bom para ela e o que de nada lhe vale; e, portanto, os pensamentos e
sentimentos que ela pode acolher sem perigo e com vantagem, assim como
aqueles que são nefas
tos ao exercício de sua liberdade”
381
.
Como diz Laing, em
Política da Experiência,
377
DELEUZE, G. A ilha deserta e outros
textos
. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. Iluminuras,
2004, p. 10
11. (versão eletrônica).
378
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Aurélio G. Neto, Ana
Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik.
Vol
.
3. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 20
-
21..
379
Id., p. 11.
380
Id., Ibid. p. 10.
381
Id., Ibid.
p. 23.
107
o ego é o instrumento para se viver neste mundo. Se
ele se romper, ou for destruído, então a pessoa
talvez fique exposta a outros mundos, “reais” de
diferentes maneiras, da esfera mais familiar dos
sonhos, da imaginação, da percepção ou da
fantasia
382
.
O inimigo a ser atacado é o organismo que funda o juízo de Deus. A sua
maneira, Castañeda diz do organizador do mundo que é o mesmo que o juízo
de Deus. É preciso não destruir o corpo, “o organismo não é o corpo”
383
. O
organismo é o verdadeiro inimigo do corpo sem órgãos: O juízo de Deus, o
sistema de juízo de Deus, o sistema teológico, é precisamente a Operação
daquele que faz um organismo, uma organização de órgãos que se cham
a
organismo porque Ele não pode suportar o CsO, porque Ele o persegue”
384
.
Sob esses estratos e sedimentações a vida geme no CsO. “(...) um fenômeno
de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas,
funções, ligações, organizações dominante
s e hierarquizadas, transcendências
organizadas para extrair um trabalho útil”
385
. São essas as formações que
arrancam o corpo de sua imanência e o faz um sujeito. Caminha-se oscilando
entre esses dois pontos de tensão: “de um lado, as superfícies de
estrati
ficação (...) e, por outro lado, o plano de consistência no qual ele se
desenrola e se abre à experimentação”
386
.
O Dom Juan de Castañeda, tão preocupado quanto Artaud, Deleuze e
Guattari, faz do experimento um protocolo: “se quisermos ter êxito em alguma
co
isa, o sucesso deve chegar devagar, com muito esforço mas sem tensões
nem obsessão”
387
. As “injeções de prudência” têm como objetivo guardar o
suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora”
388
.
Sensibilidade clínica, que cuida para que não haja parada definitiva no
processo, nem uma ida ao infinito, que seria a mesma coisa. Não pode haver
382
LAING, R. D. A política da experiência e a ave do paraíso
.
Trad. Áurea B. Weissenberg. Rio de
Janeiro: Ed.Vozes, 1978, p. 104.
383
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op. cit.,
p. 21.
384
Id.
385
Id. Ibid.
386
Id. Ibid.
387
CASTAÑEDA, C. Porta para o infinito. Trad. Luzia Machado da Costa. São Paulo: Ed. Nova Era,
1998, p. 19.
388
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op.cit.,
p.21
108
movimentos, demasiadamente, violentos para não espantar os devires. “Não
se atinge o CsO e seu plano de consistência desestratificando
grosseiramente”
389
. um estado pior do que permanecer estratificado dentro
do sistema de juízo de Deus. “Precipitar os estratos numa queda suicida ou
demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca”
390
. Na
visão de Dom Juan, um homem comum pode morrer se entrar em contato
físico direto com o
nagual
391
. Quais as medidas que se deve tomar para ter
sucesso? É uma experiência esquizofrênica que impõe um limite às
interpretações, na qual “só cores e sons, devires e intensidades”
392
. Trata-
se de um estado de embriaguês e humor: embriaguês sem os elementos do
alcóol que é beatitude.
Castañeda segue a trilha de Dom Juan: primeiro é preciso buscar um
“lugar” que favoreça os passos a seguir. Criar um estrato e instalar-se nele.
“Experimentar as oportunidades que ele nos of
erece”
393
. Não deixar escapar
uma única oportunidade sequer de “eventuais movimentos de
desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali
conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de
intensidades,
ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra”
394
.
Deleuze e Guattari, provavelmente, inspirados no protocolo de
Castañeda, advertem para cada passo desse aprendizado. Depois de criarmos
pequenos estratos, manter com eles “uma relação meticulosa”. São os
pequenos acontecimentos, e não importa se são apenas de superfície,
contanto que sejam novos acontecimentos que desterritorializem velhos
territórios. “Passar e fazer os fluxos conjugados, desprender intensidades
contínuas para um CsO. (...) Todo um ‘diagrama’ contra os programas ainda
significantes e subjetivos”
395
. Passar dos experimentos de superfície para
tentativas mais profundas, “fazer com que o agenciamento oscile
delicadamente, fazê-lo passar do lado do plano de consistência”
396
.
389
Id., p. 23.
390
Id. Ibid., p. 23
24.
391
CASTAÑEDA, C.
Op.cit.
p. 166.
392
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia
.
Trad. Aurélio G. Neto, Ana
Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik.
Vol
.
3. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 25.
393
Id., p. 24.
394
Id. Ibid.
395
Id. Ibid.
396
Id. Ibi
d.
109
Somente por experimenta
ções que o CsO pode se revelar por conexões
de fluxos de desejo, “conjunção de fluxos
continuum
de intensidades”
397
. O
Lugar do guerreiro, essa nova terra desterritorilizada, as ilhas desertas dos
nômades, é o corpo sem órgãos.
O que Deleuze e Guattari propõem, nesse agenciamento com Artaud e
Castaneda, é um estilo de vida filosófica. Os procedimentos para a construção
de um corpo sem órgãos seguem critérios éticos que podem ser comparados
ao modo de fazer filosofia: a criação de conceitos se remete a um plano de
consistência que é o plano da vida. O corpo sem órgãos é o plano de
consistência do desejo. Não há imagem, nem para o desejo, nem para o
pensamento. Portanto, não existe uma orientação de fora para a criação de
conceitos. Ou, cheiro de argumentação teológica sobre uma pureza do desejo,
do pensamento e da vida. O plano de imanência do desejo – corpo sem
órgãos
-
é povoado de intensidade e, o mesmo sucede com o plano da criação
de conceitos. Dizem Deleuze e Guattari: “o plano é como um deserto que os
co
nceitos povoam sem partilhar. São os conceitos mesmos que são as únicas
regiões do plano, mas é o plano que é o único suporte dos conceitos”
398
.
Assim entendemos que, para diminuir os riscos do desejo fascista do
qual nos advertiu Foucault, precisaríamos considerar essa trama da criação
sempre a partir de um plano de imanência que, segundo Deleuze, seria “UMA
VIDA, e nada mais”, na qual não subsiste sujeito nem indivíduo. “A vida do
indivíduo é substituída por uma vida impessoal, embora singular, que produz
um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior e exterior”
399
. Aqui,
despedimo
-
nos da fé cega. Não para nos tornarmos céticos, elevando a dúvida
a valor máximo, mas sim para podermos caminhar sem os pressupostos
rígidos da identidade e das convicções cegas que impedem as
experimentações das novidades que elas produzem. Como diz Foucault: “Lá
onde a alma pretende se unificar, onde o Eu inventa para si uma identidade
ou uma coerência (...)”
400
. Ir para “fuçar”, desfazer identidades, “dissociar o
397
Id. Ibid.
398
Id. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 2004, p.
52.
399
VASCONCELLOS, J. e FRAGOSO, E. Gilles Deleuze: imagem de um filósofo da imanência.
Londrina
Paraná, Ed. UEL, 1997, p. 17.
400
FOUCAULT, M.
Nietzsche
:
a genealogia e a história”
.
In:
---
.
Microfísica do Poder. Rio de Janeiro:
Ed. Graal, 1979, p. 20.
110
Eu e fazer pulular nos lugares e recantos de sua síntese vazia mil
acontecimentos agora perdidos”
401
. Não mais raiz, nem árvore, ou qualquer
imagem de pensamento. Eis a reversão: “vida de pura imanência, neutra, além
do bem e do mal (...) Essência singular, uma vida...”
402
. A “saída sutil” que
Deleuze propõe: “Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos
completamente o mundo, nos desapossaram dele”
403
. Diminuir o fardo que
julga a vida para inscrever a experimentação num espaço vital que se
caracteri
zaria, entre outras coisas, por uma obstinada resistência, uma cólera
a qualquer tipo de tirania e violência. “A única oportunidade dos homens está
no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao
intolerável”
404
.
CONCLUSÃO
A sensação real que experimentamos neste instante é aquela de
estarmos no ponto de começarmos o que supostamente estamos para concluir.
É como se a pesquisa tivesse em si um paradoxo: ela nos ensina a escrever,
mas tardiamente aprendemos que o domínio do aprendizado escapa para mais
adiante, fuga das já envelhecidas certezas.
Na tentativa de reconstituir este tema, procuramos e acreditamos não ter
contado uma história do desejo, maneira superada por Deleuze e Guattari
em um
modo
de fazer filosofia. Cabe aqui uma ligeira provocação: por que
Deleuze, desde Diferença e Repetição (1968) e Lógica do Sentido (1969),
leitor de Espinosa, Nietzsche, e Artaud, críticos, juntamente com ele, da
negação e das filosofias da representação, não teria levantado a noç
ão sobre o
401
Id.
402
VASCONCELLOS, J. e FRAGOSO, E.
Op.cit
., p. 19.
403
DELEUZE, G.
Conversações
. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p
. 205.
404
Id., p. 211.
111
desejo que ora apresentamos? Poderemos achar que o encontro de Deleuze
com Guattari possa ter afetado o percurso do filósofo, porém de maneira
menos filosófica do que o desejado pelos filósofos: um agenciamento menos
nobre, carregado de afecções militantes, influência
menor
para a pureza
filosófica. Um psicanalista dissidente afetado de tantas maneiras, povoado de
tantos bandos. Eu, não sendo nem psicanalista, nem filósofo, mas garimpando
nesse entre, com minha ingênua visão devo dizer: Guattari com seu
“inconsciente maquínico”, de uma certa maneira, irrompe um devir com
Deleuze: núpcias entre dois reinos. Deleuze traz o que de mais filosófico na
psicanálise. Guattari apresenta o que na psicanálise que possa ser pensado
na filosofia. O resultado se encontra no
Anti
-Édipo e
em
Mil Platôs. Eles
abandonaram as noções fixas, desejo-falta, castração, lei, entre outras, e
optaram pelas noções de rizoma Isso significa mais do que alteração
terminológica, as operações de funcionamento desse outro sistema não
depende de nenhum
eu
. A partir desse encontro, a produção
entre
os dois
ganha sentido para se fazer presente na sociedade atual. Guattari,
declarando
guerra ao inconsciente dos psicanalistas, afirma:
Os antigos territórios do Ego, da família, da
profissão,
da religião, da etnia etc., desfazem-se uns após os
outros. Não existe mais nada evidente no registro do
desejo. É porque o inconsciente moderno é
constantemente manipulado pelos meios de
comunicação, pelos Equipamentos Coletivos, pelos
especial
istas de todo tipo, que não podemos nos
contentar hoje em defini-lo simplesmente em termos
de entidade intrapsíquica como fazia Freud na época
em que elaborou suas diversas tópicas
405
.
O inconsciente “é um nó de interações maquínicas através do qual
somos articulados a todos os sistemas de potência e a todas as formações de
poder que nos cercam”
406
. O inconsciente maquínico é muito diversificado,
muito criativo, é contrário ao “bom” funcionamento das relações de produção,
esta baseada na exploração e segregação social. As técnicas de
“recentralização” do inconsciente são para impedir que o inconsciente se
405
GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo Trad. Suely Rolnik. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 167.
406
Id., p. 171.
112
expanda “no mundo das realidades presentes e das transformações
possíveis”
407
. Essas técnicas ocupam atualmente “uma posição privilegiada
dentro da gigantesca indústria da normalização, de adaptação e de
esquadrinhamento do
socius
na qual se apóiam as sociedades capitalistas”
408
.
A opção do
Anti
-
Édipo
pelo inconsciente maquínico significa a
possibilidade de trocar a neurose e a família, para adotar os processos
esq
uizofrênicos das quinas desejantes. “A análise do inconsciente deveria
ser uma geografia mais do que uma história”
409
. Privilegiar os estudos sobre a
esquizofrenia pode significar que nossa época tem se caracterizado por uma
tendência constante a descodificação de qualquer código. Não estamos
querendo dizer que a nossa sociedade é composta por loucos, posto que não
se trata de um modo de vida, mas sim de um modo de produção. Não é essa a
tendência mais essencial do capitalismo, a descodificação dos fluxos e a
desterritorialização do
socius
?
410
. Se o inconsciente é máquina desejante, é
necessário desfazer o mapa das antigas noções de desejo. Nesse caso, não
resta espaço para as noções de um sujeito do desejo.
411
“Ele em vez de
faltar, virtude que dá”
412
. Relacio
nar o desejo à falta e à “lei” seria o mesmo que
guardar uma nostalgia da moral, “a palavra (lei) tem um gostinho moral?”
413
.
Para Guattari, essa forma de entender passa por uma questão de produção de
subjetividade. Não contraposição entre as relações de produção econômica
e as relações de produção de subjetidade, pois essa constitui matéria-prima de
toda e qualquer produção. Afirma Guattari: “todas as questões da economia
coletiva do desejo deixam de parecer utópicas a partir do momento em que não
mais consideramos a produção de subjetividade como sendo apenas um caso
de superestrutura”
414
. sempre uma operação se desenvolvendo no interior
das conjugalidades. No momento, há sempre a produção de um valor sendo
407
Id. Ibid.
408
Id. Ibid.
409
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed. Escuta, 1998, p.
119.
410
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-
Édipo
: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Georges
Lamaziere. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 52.
411
Cf. DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed.
Escuta,
1998, p. 94.
412
Id., p. 107.
413
Id. Ibid., p. 111.
414
GUATTARI, F. e ROLNIK, S.
Micropolítica:
cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,
1985, p. 26.
113
passado de cima para baixo e de um lado para o outro. Os mecanismos de
subjetivação não cessam de operar significações: um novo signo atravessa o
discurso da família, seja ela a idealista-burguesa ou a que se encontra em
desordem. A problemática da micropolítica se situa no nível da produção de
subjeti
vidade. No capitalismo, a produção de subjetividade é serializada,
normalizada, centralizada por uma imagem de uma lei transcendental (capital,
trabalho, assalariamento, cultura, informação, bem estar, etc). A mídia
consegue sobrecodificar um consenso subjetivo em torno dessa imagem
referida. Os consumidores se reduzem a engrenagens cujo valor de seus atos
é avaliado pela resposta do mercado. A tendência geral é igualar tudo através
de categorias unificadoras e redutoras, que impedem os processos de
singula
rização. Criar sonhos que possibilitem, em forma de trocas simbólicas, a
realização do desejo: estar na moda passa a ser o que importa, saber as
coisas que todos sabem, saber, ler, ver e sentir as mesmas coisas que todo
mundo sente. O capitalismo é o grande Em outras palavras, esse lugar
identificatório no qual todo sujeito se vê, ainda que iludido, mas se sente como
“irmão”, fazendo parte dos mesmos sonhos fugazes. Se a sociedade primitiva
era cruel e a despótica perversa, a atual sociedade é cínica.
A subjetivação capitalista, segundo Guattari, segue três princípios
relevantes. O primeiro se parece muito com uma categoria do ideal judaico-
cristão. A mesma matriz do castigo e recompensa que opera a culpa como
forma de impedir as singularizações. São os antigos tijolos da
civilização
selvagem
, sob os escombros do
socius
do déspota. A raiz dessa culpabilização
consiste em propor uma imagem de referência. Essa tecnologia capitalista
permite se reinventar as velhas e batidas indagações: “quem é você?”, “você,
qu
e ousa ter uma opinião, fala em nome de quê ou de quem?”, “qual é o seu
valor nas escalas de valores reconhecidos pela maioria?” Guattari adverte para
isso: “é como se nosso próprio direito de existência desabasse”
415
. Os
indivíduos se “convencem” de que a melhor maneira de ter uma trégua é o
assujeitamento, “a melhor coisa que se tem a fazer é calar e interiorizar esses
valores”
416
. Nessa altura, não é mais necessário que a família, a igreja ou a
escola repita essas frases, algo de dentro dos indivíduos ressoa os ecos da
415
Id., p. 40
41.
416
Id. Ibid.
114
infância: “você não pode isso”, “você não pode aquilo”, “fale baixo com o seu
pai”, “cuidado com o que você diz...”, “olhe bem para os meus olhos quando eu
falo com você”. Diz Guattari: “(...) algo de nós mesmos, em nós mesmos e que
nós mesmos reproduzimos. Instâncias de superego e instâncias de inibição”
417
.
Em segundo lugar, diretamente ligado à culpabilização se acha a segregação.
Como ambas pressupõem quadros de referências imaginárias, o que
pressupõe toda espécie de manipulação, que possibilita às elites ganharem
uma “consistência subjetiva” do lugar que ocupa. Trata-se de dividir a
sociedade em blocos, cada bloco acredita fazer parte de seu grupo, são formas
de produção de classes. É como se o lugar que se ocupa na sociedade
transcendess
e as individualidades, está quando nascemos e vai continuar
quando não estivermos nela. Esse princípio confere à sociedade capitalista
“o direito” de hierarquizar indivíduos e valores. Isso inclui um modo de segregar
o desejo.
E por fim, o Estado capitalista tem a função de infantilizar as pessoas.
Isso significa dizer que pensam por nós, organizam a nossa vida, interferem na
produção social. Tudo o que se faz e se pensa, deve-se fazer e pensar pela
mediação do Estado. Encontramos esse funcionamento quando entramos no
mundo. Achamos que esse é o modo de funcionamento dele, o que parece ser
de “bom senso” deixar que as coisas continuem assim para não comprometer a
vida.
A natureza industriosa do desejo deve ser fabricada, modelada e recebida
como uma dádiva das instituições já prontas. Tudo que é do domínio da
ruptura, da surpresa, da angústia e do desejo que irrompe a vida, deve se
encaixar nos registros de referências dominantes. arranjos que prevêem
qualquer escapada dissidente do pensamento e do desejo. Tudo que possa
surpreender deve ser amarrado num sistema de classificação, em alguma zona
de enquadramento. As pessoas devem ficar em suas zonas pré-
estruturadas,
em seus campos.
Nessa ordem, cabe um inconsciente silencioso, fabricado, fechado no
repique do desejo impossível. Desejo esse que recalcitra da falta aos objetos
sempre provisórios. Mal-estar moderno que se agrava por aquilo que o funda e
o define como tal. Realizações parciais de desejo, armadilha da mídia para os
417
Id. Ibid.
115
sujeitos, ditos pós-modernos. Porém, o capitalismo precisa prometer a
satisfação integral dos desejos; sem essa ilusão não mercado capitalista.
Torna
-se necessário re-fundar as noções de inconsciente e de desejo. Com o
conceito de “inconsciente maquínico”, Guattari introduz a noção de revoluções
moleculares. Segundo ele, os componentes individuais e coletivos são regidos
por múltiplos fatores. Alguns são de origem racional e outros, pelo contrário,
parecem depender de uma ordem passional contrária à ordem da racionalidade
huma
na. Pode-se negar essa “qualidade” quando se encara como um
problema, um “avesso” da racionalidade, para levá-lo a uma redução da lógica
habitual, ou seja, da normalidade e da boa adaptação. Dessa forma, cria
-
se um
sistema “educacional”, “jurídico”, “policial”, “religioso”, “psiquiátrico”, etc., para
corrigir falhas no sistema e garantir um bom retorno às normas dominantes.
Quando, ainda assim, essas ferramentas falharem, pode-se considerar que
esses comportamentos dependem de uma lógica diferente, que deve ser
estruturada com outros fins. Em vez de abandoná-los em sua “irracionalidade”,
segundo Guattari, “serão tratados como uma espécie de matéria-prima, como
uma espécie de mineral de que se podem extrair elementos essenciais à vida
da humanidade, especialmente a sua vida de desejo e as suas potencialidades
criativas”
418
.
Os novos revolucionários devem fazer suas estratégias funcionarem à
maneira do processo
esquizo
. O esquizofrênico é aquele que, por uma razão
qualquer, entrou em conexão com um fluxo desejante que ameaça a ordem
social. A luta revolucionária deve se ocupar desta dicotomia entre a produção
social e a produção do desejo, e onde houver exercício da norma repressiva,
contra a mulher, a criança, os drogados, os alcoólicos, os homossexuais; as
confi
ssões dos pecados já não funcionarão como antes.
Guattari propôs a “revolução molecular” como fator de resistência à
tentativa de controle social pela via da produção de subjetividade. Tal
revolução compreende processos de diferenciação permanente. Não ser
ia
apenas uma resistência contra as forças hegemônicas, mas diz respeito a tudo
que atente contra os devires: infrapessoais (que joga com os sonhos, com a
criação, etc.); pessoais (as relações de auto-dominação como um Superego);
418
GUATTARI, F. Revolução molecular:
pulsações
políticas do desejo. Trad. Suely Rolnik. São Paulo,
Brasiliense, 1985, p. 165.
116
Interpessoais (que considere a invenção de novas formas de sociabilidade na
vida doméstica, amorosa, profissional, na relação com a vizinhança, com a
escola, etc.). Deve-se considerar a revolução molecular como as condições
possíveis de reprodução, não de uma vida coletiva, mas também da
emancipação da vida pessoal e individual, tanto material quanto subjetiva.
É preciso se posicionar singularmente no lugar ocupado: no trabalho, na
escola, na igreja, na família, no partido político. É preciso que se faça viver aí
mesmo onde nos encontramos. Articular com a vizinhança processos de
singularização, mas que resistam a todos os empreendimentos de nivelação
da subjetividade. Se possível, oferecer a indignação e a cólera a tudo que
lamina as diferenças. Não podemos esquecer que esses processos são
responsáveis pelo fato de o imperialismo se firmar hoje, através da
manipulação da subjetividade coletiva. Em qualquer escala que essas lutas se
expressem ou se agenciem, elas podem ter um alcance político, pois tendem a
provocar rupturas e criar novas linhas de fuga. Deleuze faz um convite:
“suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou
engendrar novos espaços-tempo, mesmo de superfície ou
volume
reduzidos"
419
. Suscitar “devires singulares”, criar novas e autênticas formas d
e
viver, podem significar rupturas nas muralhas de subjetivação capitalista. Ora
os devires são absorvidos por esse muro, ora sofrem verdadeiros fenômenos
de implosão”
420
. Cabe aqui uma advertência aos nossos anseios, não criarmos
situações de riscos a novos idealismos. Não se poderia supor uma sociedade
sem repressão. Como foi dito, somos sujeitos do poder. O que nos convida
a pensar que tal sociedade, onde “os fluxos do desejo” deslizassem livremente
e onde “processos primários” se investissem sem interdito, não seria possível.
Não existe realidade do inconsciente
des
-
reprimido
. É interessante pensar que
a nossa entrada no mundo tenha sido dessa maneira - na problemática do
idealismo burguês - mas, também é interessante criar novas saídas de
caminhar no mundo. Não sejamos ingênuos nessa nova forma de combater,
caso contrário, corremos o risco de cair num fascismo total.
Não basta ser criativo, é preciso buscar, produzir e experimentar
permanentemente, outras sensibilidades. O desejo, mais do que a razão,
419
DELEUZE, G.
Conversações
. Trad. Peter Pál Pelbart São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 218.
420
GUATTARI, F. e ROLNIK, S.
Op.cit.,
p. 50.
117
acompanha esse processo, pois ele é extraterritorial, desliza e desterritorializa.
Além de ser criativo, o homem tem de ser ético. Essa advertência vem do
próprio Guattari:
O novo paradigma estético tem implicações ético-
políticas porque quem fala em criação, fala em
responsabilidade da instância criadora em relação a
coisa criada(...). Essa escolha ética não mais emana
de uma enunciação transcendente (...)
421
,
mas da própria experimentação de modos singulares de viver. Então, não é
mais imperioso falar a partir de uma determinada escola para ser ouvido. O
exercício do pensamento não precisa estar conformado com os objetivos do
juízo de Deus ou mesmo com as significações dominantes da ordem do
Estado. Esmagar e denunciar como nocivo à vida tudo o que pertence ao
pensamento com imagem. Libertar o desejo das imagens, instaurar os
conceitos que não pretendem aprisionar a vida e o desejo: “o nomadismo, a
máquina de guerra, os devires, as núpcias, as capturas, os roubos, os entre-
dois
-reinos, etc”
422
. Corpo sem órgãos, que é o mesmo que corpo sem
imagens. Não um “espaço-dentro”, como os “padres” pensaram a partir de
uma interioridade secreta e promíscua, ele é o plano de imanência, “o de Fora
de onde vem todo o desejo”
423
. Inocência filosófica!
421
GUATTARI, F.
Caosmose:
um novo paradigma estét
ico
. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia
Leão São Paulo: Ed. 34, 1983, p. 137.
422
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. Heloísa Araújo Ribeiro São Paulo: Ed. Escuta, 1998, p.
21
22.
423
Id., p. 113.
118
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Mil Platôs:
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Mil Platôs
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A Interpretação dos Sonhos. Vols. IV e V. Trad. Waldecredo Ismael de
Oliveira. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996.
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Três ensaios sobre sexualidade. Vol. VII. Trad. Vera Ribeiro.Rio de
Janeiro: E
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A relação dos chistes com os sonhos e o inconsciente. Vol. VII.. Trad.
Vera Ribeiro..Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996.
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Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. Vol. X . Trad. José
Octavio de Aguiar Abreu. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1996.
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Totem e Tabu
. Vol. XIII. Trad. Órizon Carneiro Muniz.Rio de Janeiro: Ed.
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Sobre o narcisismo: uma introdução. Vol. XIV. Trad. Themira de Oliveira
Brito et alii. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996.
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O inconsciente. Vol. XIV, ESB. Trad.Themira de Oliveira Brito et alii. Rio
de Janeiro: Imago Editora, 1996.
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Recordar
,
repetir
e elaborar (novas recomendações sobre técnica da
psicanálise II). Vol. XVII. Trad. José Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro:
Ed. Imago, 1969.
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Além do princípio do prazer. Vol. XVIII. Trad. Christiano Monteiro
Oiticica.Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996.
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O ego e o Id. Vol. XIX. Trad. José Octavio de Aguiar Abreu.. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1996.
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O mal estar da civilização. Vol. XXI. Trad. JoOctavio de Aguiar.
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ANEXO: GLOSSÁRIO DOS CONCEITOS UTILIZADOS NESTE TRABALHO
Segundo Deleuze, “os conceitos têm uma história, isto é, carregam em si
partes de conceitos que resolviam outros problemas
e habitavam outros
planos, mas também m um devir responsável pelas conjunções entre partes
conceituais em um mesmo plano”
424
. São formados por partes conceituais que
podem ser tomadas como conceitos. Assim, uma extensão ao infinito é
provocada, por exemplo, como mostra Deleuze, o conceito de
eu,
em
Descartes, é formado por três componentes: duvidar, pensar e existir. Cada
um desses, por sua vez, é um conceito que tem seus componentes
conceituais
425
. O que é um conceito? Define-se o conceito, principalmente, por
424
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a Filosof
ia?
Trad. Alberto Alonso Munõz. São Paulo: Ed.
34, 1992, p. 27.
425
Cf. DELEUZE, G. Lógica do Sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva.
1994.
125
sua auto
-
referência
426
, ou seja, ele não é uma função por não se referir a nada
exterior a ele próprio; o conceito não busca a referência em um estado de
coisas (fatos), mas sim nos acontecimentos (consistência). Ele é sua própria
referência "põe-se a si mesmo e põe seu objeto". Com essa postura, percebe-
se que Deleuze e Guattari direcionam o pensamento conceitual a uma
produção de diferença e de sentido, ou seja, acreditam que o importante é
produzir sentido, não se interessando mais com uma correspondência
representativa, mas com a própria coerência interna dos pensamentos e da
produção de sentido. A auto-referencialidade provoca o monólogo do conceito,
visto não se referir a nada exterior a ele próprio e assim, por conseguinte, se
fechar nas ligações dos conceitos com seus componentes.
O que está em jogo na questão do pensamento é a criação. Tanto a
filosofia como a ciência e a arte a fazem, nenhuma ocupa hierarquia em
relação à outra, uma vez que essas três manifestações do conhecimento se
ocupam da criação. que a criação de conceitos é uma prerrogativa da
filosofia.
ACONTECIMENTO
Para entender esse conceito, Deleuze nos leva às noções estóicas de
corpo e de incorporal. O corporal está relacionado a tudo que é substantivo e
tudo que é adjetivo. O que existe no mundo são os corpos. os
incorporais
são os efeitos dos encontros dos corpos. Esses se comportam sempre como
causas dos incorporais. Dos encontros deles emergem efeitos incorpóreos que
são os acontecimentos. Esses, por não serem corpóreos, não existem. Os
corpos habitam o plano físico e os acontecimentos o extra-físico. Os corpos
existem e os acontecimentos insistem. Os estóicos desenvolveram, com essa
noção, uma ética muito peculiar. Eles não poderiam se basear,
exclusivamente, nem na física dos corpos, nem na lógica dos acontecim
entos,
mas numa articulação da física com a lógica. Para compreender essa
articulação, é preciso entender o modo como eles compreenderam o tempo.
Para os estóicos, o tempo pode ser pensado de duas maneiras:
-
cronos
e
aion
- a partir dos corpos e a partir dos acontecimentos. A física dos corpos
426
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Op.cit., p. 27.
126
estaria submetida a
cronos
, o tempo cronológico que mede o intervalo do
movimento da ação de tudo que existe, portanto, corpos. O tempo dos corpos
é sempre presente. E o presente existe. "Em todo acontecimento, há de
fato o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se
encarna em um estado de coisas (...)
427
.
A partir dos acontecimentos o tempo
não existe, mas insiste. Os acontecimentos estariam imersos no
aion
, o tempo
ilimitado no qual o
passado
e o futuro insistem. Nesse tempo, todo
acontecimento é, foi e será. “Tudo estava no lugar nos acontecimentos de
minha vida, antes que eu os fizesse meus”
428
. Presente, passado e futuro
acontecem ao mesmo tempo. “Minha ferida existia antes de mim, nasci para
encarná
-
la”
429
. Todo acontecimento que insiste tem a forma do passado e do
futuro, no momento em que acontece.
Não é um tempo de idade eterna, é a própria eternidade. É o
encontro entre
cronos
e
aion
que transformam “banalidades” em grandes
acontecimentos
e lança qualquer acontecimento na eternidade de uma vida,
porque é vivido num tempo ilimitado.
Os acontecimentos não são causas, são efeitos. Por não serem causas,
não são ativos nem passivos, são impassíveis. O efeito não age nem padece.
Portanto, ele é neutro. “(...) eis o que torna nossas chagas repugnantes, o
ressentimento contra o acontecimento. Não outra vontade má”
430
.
Compreender a neutralidade do efeito é fundamental para entender a ética dos
estóicos. Podemos atribuir juízos morais aos corpos ativos e passivos, mas
nunca aos acontecimentos. Nada mais imoral do que estabelecer juízos morais
acerca de acontecimentos neutros. Nada é mais imoral para um homem do
que não ser digno do que lhe acontece. “Torna-te o homem de tuas
infelicidades, aprende a encarnar a tua perfeição e teu brilho”
431
. Querer
alguma coisa no que acontece é querer, a partir da finitude do presente que
existe, o ilimitado do passado e do futuro que insiste. É querer retirar do
427
ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze. Trad André Telles. Rio de Janeiro: Ed. Relume
Dumará, 2004, p. 15
-
19.
428
DELEUZE, G. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas.São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003, p.
151.
429
Id.
430
Id. Ibid., p. 152.
431
Id. Ibid.
127
presente finito, o ilimitado da eternidade.
Deleuze fa
la de uma “apreensão pura
do acontecimento”:
(...) uma espécie de salto no próprio lugar de todo o
corpo que troca sua vontade orgânica por uma
vontade espiritual, que quer agora não exatamente o
que
acontece, mas alguma coisa no que acontece,
alguma coisa a vir de conformidade ao que acontece,
segundo as leis de uma obscura conformidade
humorística: o Acontecimento. É neste sentido que o
amor fati não faz se não um com o combate dos
homens livres
432
.
Esse movimento de passar do instante para o acontecimento como
ilimitado, os estóicos chamaram de contra-efetuação. Contra-efetuar é entrar no
interior do acontecimento na medida em que ele estiver se efetuando. É captar
do acontecimento a sua parte incorpórea: o passado e o futuro. Não seria esse,
também, o instante do devir? Castañeda fala disso de outra maneira: “sabe que
nesse momento você está cercado pela eternidade? E sabe que pode usar essa
eternidade, se o desejar”?
433
Em outro momento, ele diz: “sabe que um
momento pode ser a eternidade? Isso não é uma charada; é um fato, mas
somente se você agarrar esse momento, utilizando-o para levar a totalidade de
você em qualquer direção, para sempre”
434
. É a saída possível dos limites de
uma consciência confinada num Eu. Estamos confinados ali, com nossos
pensamentos e sentimentos, e, esse aprisionamento nos faz temer o
acontecimento que se encarna na vida.
Para Deleuze, o Acontecimento é uma singularidade. Tais
singularidades não se confundem, entretanto, nem com a personalidade
daquele que se exprime num discurso, nem com a individualidade de um
estado de coisas designados por uma proposição. A singularidade faz parte de
uma outra dimensão, diferente das dimensões da designação, da
manifestação ou da significação. É, essencialmente, pré-individual, não
pessoal, a-conceitual. Ela é completamente indiferente ao individual e ao
coletivo, ao pessoal e ao impessoal, ao particular e ao geral e às suas
432
Id. Ibid.
433
CASTAÑEDA, C. Porta para o
infinito.
Trad. Luzia Machado da Costa. .Rio de Janeiro: Ed. Nova
Era. 1998., p. 16.
434
Id.
128
oposições. Ela é neutra. "Então não se perguntará qual o sentido de um
acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido"
435
.
O acontecimento o é o que acontece o que acontece é acidente -
,
o acontecimento está “acima” desse, não se confunde com as ocorrências. Ele
se situa num campo transcendental impessoal e pré-
in
dividual, que não tem
nada a ver com o campo empírico.
AGENCIAMENTO
Um agenciamento é uma Força capaz de articular um fenômeno ou um
processo, implica territórios e desterritorialização. Significa lidar com um
sistema vivo/instável com imensa capacidade de circulação e mobilidade. Para
Guattari, o termo agenciamento se presta para fazer oposição aos termos
psicanalíticos,
sujeito de enunciação
,
sujeito de enunciado
436
, ou às instâncias
psíquicas. Ele prefere falar de agenciamentos coletivos de enunciação”.
437
Nesse caso, o agenciamento não corresponderia a nenhuma entidade
individuada. Os agenciamentos se dão por processos de subjetivação e
semiotização: a produção de sentidos não está centrada exclusivamente em
indivíduos ou em agentes individuais, mas em blocos de expressão
indefinidos. “São processos duplamente descentrados”
438
. “Os agenciamentos
são processos maquínicos que se estendem a níveis de natureza extra-
pessoal, extra-individual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais,
tecnológicos, (...)”
439
. Esses sistemas de agenciamentos estão presentes e
agindo, a todo o tempo, na sociedade em forma de elementos indefinidos. São
os indefinidos que apavoram a psicanálise, as quantidades que precisam ser
capturadas pela interpretação. Os investimentos do inconsciente transbordam
as fronteiras da família. “O próprio da libido é impregnar a história e a
geografia, organizar formações de mundos e constelações de universos,
435
ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Ed. Relume
Dumará, 2004, p. 15
-
19.
436
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia
.
Vol. 2. Trad. Ana Lúcia de
Oliveira e Lúcia Cláudia.São Paulo: Ed. 34, 1995, p. 18.
437
GUATTARI, F. e HOLNIK, S.
Micropolitica:
cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,
1986, p. 30.
438
Id., p. 31.
439
Id. Ibid.
129
derivar os continentes, povoá-los com raças, tribos e nações
440
. Os
indefinidos, segundo Deleuze, pertencem aos agenciamentos do desejo “são
povoados de devires e de intensidades, de circulações intensivas, de
multiplicidades quaisquer (matilhas, massas, espécies, raças, populações,
tribos, etc.)”
441
.
Para Deleuze, o agenciamento é a unidade real mínima e não a palavra, a
idéia ou o conceito; nem o significante, mas o agenciamento. É sempre um
agenciamento que produz os enunciados. Os enunciados não têm, por causa,
um sujeito que agiria como sujeito da enunciação, principalmente porque eles
não se referem aos sujeitos como aos do enunciado. Esse é o produto de um
agenciamento, sempre coletivo, que põe em jogo, em nós e fora de nós, as
populações, as multiplicidades, os territórios, os devires, os afetos, os
acontecimentos. O nome próprio não designa um sujeito, mas qualquer coisa
que se passa, pelo menos entre dois termos que não são sujeitos, mas
agentes, elementos. Os nomes próprios não são nomes de pessoas, mas de
povos e tribos, de faunas e de floras, de operações militares e tufões, de
coletivos, de sociedades anônimas e de escritórios de produção. O autor é um
sujeito da enunciação, mas não o escritor, que não é um autor. Aquele inventa
os agenciamentos a partir de agenciamentos que outros inventaram, ele faz
passar uma multiplicidade na outra. O difícil é fazer conspirar todos os
elementos de um conjunto não homogêneo, fazê-los funcionarem juntos. As
estruturas estão ligadas às condições de homogeneidade, mas não os
agenciamentos. O agenciamento é o co-funcionamento, é a "simpatia", a
simbiose
442
.
A
FECTO
Esse conceito “provavelmente” é tomado de Espinosa para quem as
afecções são tudo aquilo que afeta o homem. Derivam da forma como o
homem ocupa o mundo. Há uma relação entre o afeto que aumenta a potência
de agir do homem e que a diminui. O afeto que aumenta a potência de agir
440
DELEUZE, G.
C
rítica e Clínica
.
Trad. Peter Pál Pealbart. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 74.
441
Id. Ibid.
442
Cf. DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
Trad. Eloísa Araújo Ribeiro.
São Paulo:
Ed. Escuta, 1998,
p. 65
90.
130
chama
-se ação (
actio
) e o que diminui a potência de agir do homem sobre as
coisas é chamado de paixão (
passio
). Uma “afecção do corpo, pela qual a
potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou
entravada,
assim como as idéias dessas afecções (...). Por afeto entendo uma
ação; nos outros casos, uma paixão”.
443
É o que Deleuze e Guattari chamam de descarga rápida da emoção, é o
revide, ao passo que o sentimento é a emoção sempre deslocada, retardada,
resistent
e. Os afetos são projéteis, tanto quanto as armas, ao passo que os
sentimentos são introspectivos como as ferramentas. Portanto, duas pessoas
podem, ao mesmo tempo, serem diversamente afetadas, e, por conseqüência,
podem ser diversamente afetadas por um mesmo objeto. Além disso, o
corpo humano pode ser afetado, ora de uma maneira, ora de outra, e,
conseqüentemente, pode ser atingido por um e mesmo objeto em tempos
diferentes. Os afetos são devires: ora eles nos enfraquecem, quando
diminuem nossa potência de agir e decompõem nossas relações (tristeza), ora
nos tornamos mais fortes, quando aumentam nossa potência e nos fazem
entrar em um indivíduo mais vasto ou superior (alegria)
444
.
Durante a vida humana, esses blocos de afetos se
hibridam na medida em que os sujeitos vão
convivendo com os campos estratificados e
diagramáticos, os quais operam na constituição da
subjetividade. Como humanos, somos um sistema
tensionado, metaestável: a metaestabilidade é um
estado de equilíbrio que se produz num sistema de
forças onde múltiplos vetores de forças e fluxos se
cruzam; esses cruzamentos constituem territórios, os
quais estão em constantes processos de
desterritorializações e re-territorialização dos
universos
ou seja, essas multiplicidades de
afetos/sensações/
fluxos arranjam e desarranjam a
subjetividade que tem um feitio rizomático
445
.
ÁRVORE
443
ESPINOSA, B.
Ética
, III. Definições III. Da Origem e da Natureza das Afecções. Trad. Joaquim de
Carvalho. São Paulo: Ed. Abril, 1973. (Coleção “Os pensadores”).
444
Id.
445
DELEUZE, G. e PARNET, C. O abcedário de Gilles Deleuze disponível em
http://www.ufrgs/faced/tomaz/abc3.htm
.
131
Segundo Deleuze, as árvores “são uma imagem de pensamento”, é um
modo de fazer o pensamento funcionar de forma a produzir idéias justas. A
árvore é um centro, um germe, um ponto de origem. E não se pode dizer que
um sistema derivado de uma árvore não seja uma máquina, é máquina binária,
princípio de dicotomia. Deleuze afirma: “(...) ela é estrutura, sistema de pontos
de posições que enquadram todo possível, de comandos, com
instância
central e memória recapituladora; tem um futuro e um passado, raízes e um
cume, toda uma história, uma evolução, um desenvolvimento (...)”.
446
O
sistema de pensamento da arborescência não resiste à força do pensamento;
é necessário um outro termo para representar o dinamismo dessa força. A
imagem da árvore pode ser pensada como um traço no meio de um infinito
plano branco. A árvore se apresenta como se o único possível fosse o traço. A
imagem do pensamento faz pensar que todo o resto é vazio, entretanto, é o
vazio que precede toda criação do novo e da diferença. O temível é a
imensidão branca em torno da linha que perpassa o plano, é o imprevisível, o
inonimável, o indecifrável, o devir, o mais temível e, também, ansiado.
Para
dar conta dessa imensidão que ameaça, a todo o tempo, a identidade do
“traço” que divide o mundo em dois - bem e mal - são necessários outros
termos: o rizoma e a grama, por exemplo, termos que podem oferecer os
movimentos necessários aos agenciamentos. Segundo Deleuze, “nos plantam
árvores na cabeça: a árvore da vida, a árvore do saber, etc.”
447
.
CORPO SEM ÓRGÃOS
O corpo sem órgãos possibilita uma ruptura em relação aos estratos que
ordenam as multiplicidades, como os do organismo e da subjetivação. Ele
combate e se opõe ao org
anismo como fruto do sistema do juízo distributivo de
Deus, que ordena os órgãos segundo funções e finalidades, constituindo um
organismo através da estratificação do corpo. “O CsO grita: fizeram-me um
organismo! Dobraram-me indevidamente! Roubaram meu corpo! O juízo de
Deus arranca
-
o de sua imanência, e lhe constrói um organismo porque Ele não
446
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed. Escuta, 1998, p.
35
-
6.
447
Id.
1
32
pode suportar o CsO”.
448
A constituição de um corpo sem órgãos deve ser feita
com prudência para não haver o risco de esvaziá-lo. “O CsO é bloco de
infância, devir, o contrário da recordação de infância, ele não é criança “antes”
do adulto, nem “mãe” “antes” da criança: ele é a estrita contemporaneidade do
adulto, da criança e do adulto, seu mapa de densidades e intensidades
comparadas, e todas as variações sobre este m
apa”.
449
“É um corpo intenso,
intensivo. É percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares
segundo as variações de sua amplitude. O corpo não tem, portanto, órgãos,
mas limiares ou níveis”
450
.
Com esse conceito, Deleuze e Guattari vão criticar a organização da
subjetividade na qual haja imposição de funções dominantes e formas
hierarquizadas, ou organizadas de tal modo que atenda a determinados fins. O
corpo sem órgãos não é um lugar ou mesmo suporte de algo, é matéria
intensiva não estratificada, campo de imanência do desejo. Do corpo sem
órgãos advém nossas escolhas e práticas, segundo a máquina abstrata que as
traça, dando-nos significação e subjetivação, de forma que se pode ter um ou
vários. O corpo sem órgãos é constituído por platôs, por múl
tiplos
agenciamentos, segundo uma política abstraída de diversos procedimentos e
formações que nos atravessam. É sobre ele que o eu se assenta
451
. A
inspiração, para esse conceito, também deriva de Espinosa: “os atributos o
os tipos ou gêneros de CsO, substâncias, potências, intensidades Zero como
matrizes produtivas. Os modos são tudo o que se passa: as ondas e as
vibrações, as migrações limiares e gradientes (...)”
452
. As intensidades
produzidas sob tal ou qual tipo substancial a partir de tal matriz, que s
e
denomina corpo sem órgãos. Todos os corpos sem órgãos se fazem Um no
grau Zero que não é ausência de potência, nem pulsão de morte. “O problema
de uma mesma substância para todas as substâncias, de uma substância
única para todos os atributos”
453
. “Neste território, limite imanente, despovoado
448
DELEUZE, G e GUATTARI, F.
Mil Platôs
: capitalismo e esquizofrenia
.
Vol. 3. Trad. Aurélio Guerra
Neto. São Paulo: Ed.
34, 1999, p. 20.
449
Id., p. 27
-
8.
450
ZOURABICHVILI, F. O Vovabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Ed. Relume
Dumará, 2004, p. 30.
451
Cf. DELEUZE, G. e PARNET, C. O abcedário de Gilles Deleuze. Disponível:
http://www.ufrgs/faced/tomaz/abc3.htm
452
DELEUZE, G e GUATTARI, F.
Op.cit.,
p. 14.
453
Id.
133
se encontram todos os CsO. “Os drogados, os masoquistas, os equizofrênicos,
os amantes, todos os CsO prestam homenagem a Espinosa”
454
. O problema
dos drogados e dos masoquistas, no entender de Deleuze e Guattari, é o
esvaziamento que esses processam na operação de um corpo sem órgãos. É
preciso doses de prudência para fazer um corpo sem órgãos, experimentações
leves e progressivas.
A questão não é mais absolutamente a dos órgãos e
das funções, e de um Plano transcendente que não
poderia presidir à sua organização senão sob
relações analógicas e tipos de desenvolvimento
divergentes. A questão não é a da organização, mas
da composição; não do desenvolvimento ou da
diferenciação, mas do movimento e do repouso, da
velocida
de e da lentidão
455
.
O aparato psíquico da psicanálise significaria um organismo que se
assenta sobre a superfície inorgânica do corpo sem órgãos.
Quando Deleuze e
Guattari apresentam a idéia de corpo sem órgãos, fazem com a intenção de
criticar a teoria do complexo de Édipo. Para eles, não é possível se conformar
com a mesmice do triângulo pai-
mãe
-filho, pois este conduz ao "incurável
familiarismo", enquadra a produção desejante num “harmonioso” organismo. O
corpo sem órgãos é o próprio
Anti
-
Édipo
, assim como Artaud o incorpora ao
declarar guerra aos órgãos:
Não estou querendo encontrar nada, mas sim:
1º evadir
-
me do ser;
2º continuar minha marcha fora dele;
3º marcha que não tem como objetivo o infinito
mas escava o infinito
indefinidamente.
456
CORTE
-
FLUXO
quinas fonte e quinas órgão. Uma quina fonte gera um fluxo
energético e uma máquina órgão o corta e o modula. As máquinas se conectam
assim em todas as dirões e é esse processo que gera a produção de tudo
454
Id. Ibid., p. 15.
455
Id.
Mil Platôs
: capitalismo e esquizofrenia
.
Vol. 4. Trad. Suely Holnik. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 41.
456
DANIEL, L. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgão. Rio de Janeiro: Ed. Relume Duramá,
1999, p. 58.
134
quanto existe. Essas máquinas o infinitamente pequenas, por isso, o termo
cunhado por Guattari, “moleculares”. E elas funcionam no seio das entidades
macro, que se chamam “molares”. Esses conceitos estão sempre interligados:
máquinas desejantes, corpo sem órgãos, fluxos, superfície de produção, entre
outros. Um fluxo é uma corrente que atravessa o corpo, cada fluxo nasce de uma
quina fonte que emite um fluxo que se conecta a outra quina que corta. É
nesse sentido que se fala que toda máquina é máquina de máquina. Uma
quina faz escorrer um fluxo para ser cortado por outra; são
funções
complementares constitutivas de
um
acoplamento, diferentes do que Melanie
Klein chamou de “objetos parciais”, relativos a um corpo despedaçado. As
conexões entre máquinas com seus fluxos fazem um acoplamento. Um
acoplamento como fonte ou emissor de fluxo, o outro como órgão receptor.
“O motivo é que o objeto não emite um fluxo senão para o objeto capaz de
cortá
-lo, daí o caso embletico da máquina seio-boca, ao longo de todo o
Anti-Édipo
457
.
A noção de fluxos se mistura com o conceito de desejo, os
fluxos são fluxos do desejo.
DESTERRITORIALIZAÇÃO E TERRITÓRIO
Devemos inventar nossas próprias linhas de fuga. Mesmo que para
alguns indivíduos (ou grupos) nunca seja possível construí-las. Outros as
perderam. As linhas de fuga são uma questão de cartografia. Elas nos
compõem, assim como constituem nosso mapa. Essas linhas significam
possibilidades de territorialidades, desterritorialidades e reterritorialidades.
Desterritorializar é abandonar, é desfazer, adentrar em áreas despovoadas
para povoá-las sem se fixar por muito tempo. O movimento de
desterritorialização se faz no mesmo sentido do rizoma: o rizoma é
desterritorializado e desterritorializante. Não se pode confundir com mudar de
um lugar para outro, mas evadir-se sem precisar ir para um outro território.
Não é fugir da terra para a nova terra do além mundo, é construir mundos
próprios no mundo, ilhas no continente, um devir no interior do mundo. Esse
termo só pode ser entendido quando referindo aos seus correlatos: terra,
território e reterritorialização. Pode-se falar de uma reterritorialização relativa
457
ZOURABICHVILI, F vocabulaire de Deleuze. Ellipses: Paris, 2003, p.17 19. (Ed. Br. pp. 33 -
36
).
135
“que consiste em se reterritorializar de outra forma, em mudar de território e
uma desterritorialização absoluta, que equivale a viver sobre uma linha
abstrata ou de fuga”
458
. No
Anti
-
Édipo
, “desteritorializar” é sinônimo de
“descodificação”. Entretanto, se coloca o problema da "reterritorialização",
que leva ao tema polêmico da "nova terra", sempre por vir e a ser construída,
contra toda terra prometida ou
ancestral
, reterritorializão arcaica de tipo
fascista
459
.
DEVIR
“Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo,
seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao
qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos
intercambiantes”
460
.
Abordar o desejo na filosofia de Deleuze e Guattari implica falar também
de devir, pois, se por um lado, é sempre por rizoma que o desejo se move e
produz; por outro, o devir é o processo do desejo
461
. O conceito de devir é
essencial nas inquietudes filosóficas de Deleuze e está vinculado com seu
propósito de imaginar a atividade do pensamento como um modo diferente de
se manifestar. A noção de devir de Deleuze é uma adaptação tomada de
Nietzsche e, portanto, é profundamente anti
-
hegeliana. “Devir é a afirmação do
caráter positivo da diferença, entendida como processo múltiplo e constante de
transformação. É a renúncia das identidades fixas em favor de um fluir de
devires m
últiplos”
462
. Diz Deleuze:
no devir não passado, nem futuro, e sequer
presente; não história. Trata-se, antes, no devir,
de involuir: não é nem regredir, nem progredir. Devir
é tornar-se cada vez mais sóbrio, cada vez mais
458
Id. Ibid., p
.27
-
29.
459
Id.
460
Id. p. 48.
O texto também se encontra em
Dialogues
, com Clairet Parnet, Paris, Flamarion, 1997.
461
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
Mil platôs
: capitalismo e esquizofrenia.
Vol. 4. Trd. Suely Rolnik.
São Paulo: Ed. 34, 2005.
462
Cf.l MARTON Scarlett (org.)
Gilles Deleuze
:
pensamento nômade
.
In: (autor) (se for Scarlett, coloque
três tracinhos, se for outro, coloque o último nome em caixa alta e prossiga coma forma de refernciação.
Nietzsche hoje
? Trad. Paulo César. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 56
-
67.
136
simples, tornar-se cada vez mais deserto e, assim,
mais povoado (...)
463
.
ESQUIZOFRENIA
Para Deleuze e Guattari a esquizofrenia é o modelo para a produção de
um ser humano capaz de expressar desejo produtivo, mas é uma
esquizofrenia ativa e não à qual eles recorrem para explicar o estado de
desligamento da realidade. O termo esquizofrenia em Deleuze e Guattari difere
da esquizofrenia psiquiátrica, aquela dos muros hospitalares em que os
sujeitos se encontram numa situação dita de
zumbis
.
O
esquizo
do
Anti
-
Édipo
é o nômade inteligente que não se deixa capturar pelos espaços de captura
das máquinas abstratas (semiotizadores: padres, pastores, psicanalistas, etc.).
Esquizofrenia como processo não pára de buscar novas experimentações,
novas possibilidades de vida, não se permite ficar paralisado no tedioso
esquema familiar, papai
-
mamãe
-
eu, não se identifica com o poder. É, portanto,
diferente da esquizofrenia como entidade paralisante da psiquiatria, que
funciona como fim, como linha dura de abolição, que leva o sujeito a sua
própria destruição. Esquizofrenia, como processo, faz agenciamentos com as
máquinas desejantes com suficiente prudência para não ser capturado,
reprimido ou marginalizado pelas instituições de controle: família, escola,
igreja, quartel, Estado. Não moral, não modelos transcendentais que
sirvam à esquizofrenia. Há revoluções moleculares no interior de qualquer
instituição.
LINHA DE FUGA
Os autores do
Anti
-
Édipo
falam das tentativas frustradas do pequeno
Hans em criar para si linhas de fuga, o que “o levou” a criar uma linha dura em
forma de sintoma, qual seja, a fobia a cavalos. Hans tem medo de todo animal
de grande porte. “Você deve ter ficado com medo do grande pipi dos
463
DELEUZE, G. e PARNET, C. O abcedário de Gilles Deleuze. Disponível no site:
http://www.ufrgs/faced/tomaz/abc3.htm
137
animais”
(38)
. Do ponto de vista clínico, “ele era degenerado”
464
. Mas como bom
pesquisador,
Freud desconfia das observações do pai: “e sua atenção teve de
ser voltada para a direção da qual seu pai estava esperando que surgisse
algo”, portanto, contaminadas por ‘n’ motivos, o que compromete as
observações
465
. Não fica difícil perceber como a psicanálise fica à espreita, o
tempo todo, impedindo a formação de enunciados, sufocando todo
agenciamento do desejo. “O que o pequeno Hans reivindica é sair do
apartamento familiar para passar a noite na vizinhança e regressar na manhã
seguinte, (...) sair do imóvel para ir ao restaurante encontrar a menininha rica,
passando pelo entreposto de cavalos a rua como meio”
466
. A psicanálise,
estranhamente, se acha no direito de reduzir tudo à interpretação do imóvel:
Hans deseja dormir com a mãe, porque deseja trepar com a mãe. É como se
os pais tivessem lugares ou funções primeiras, independentes dos meios. Mas
um meio é feito de qualidades, substâncias, potências e acontecimentos: por
exemplo, a rua e suas matérias, como os paralelepípedos (...)”
467
. Mas a
psicanális
e, insistentemente, fixa-se de forma estranha, e converge tudo para
as interpretações do triângulo familiar: o desejo pela mãe, a culpa pelo desejo
de assassinar o pai, o medo da castração. O cavalo e a rua, a vizinhança com
as meninas, os carros, os bares e restaurantes, tudo passa pelo reducionismo
das interpretações edípicas. Para Deleuze,
quando as crianças de Melanie Klein dizem ‘um
ventre’, ‘como as pessoas crescem’, Melanie Klein
ouve ‘o ventre de minha mãe’, ‘será que serei
grande como meu pai?’. Quando dizem ‘um Hitler’,
‘um Churchill’, Melanie Klein nisso o possessivo
da mãe ruim ou do bom pai
468
.
De acordo com Deleuze, as linhas de fuga surgem a partir das afecções
com as linhas molares linhas objetivas que atravessam a sociedade e,
entã
o, passam a produzir recodificações e invenções de modo de vida, pode
-
se
464
FREUD, S. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. Vol. X.
Trad.
José Octávio de Aguiar
Abreu. Rio de Janeiro:
Ed.
Imago, 1996, p. 95.
465
Id.
466
DELEUZE, G.
Crítica e Clínica
. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 73.
467
Id.
468
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. Eloísa de Araújo Ribeiro.São Paulo: Ed. Escuta, 1998,
p. 95.
138
dizer que elas remetem a re-territorializações. O prazer é um meio através do
qual uma pessoa ou um sujeito pode recuperar-se dos processos que lhe
desterritorializam. As linhas de fuga são linhas de resistências
469
.Partir, evadir-
se, é traçar uma linha. O objeto mais elevado da literatura, segundo Lawrence:
"Partir, partir, se evadir... atravessar o horizonte, penetrar em outra vida... É
assim que Melville se encontra no meio do oceano Pacífico, ele passou,
realmente, a linha do horizonte"
470
. Não é o caso de abandono das metas ou de
renúncia das ações, uma linha de fuga é uma forma de viabilização das
atividades. Não se parece em nada com a fuga imaginativa. Diz Deleuze: “é
também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa
fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano”
471
. Deleuze elege a
literatura anglo-americana como exemplo de rupturas: “fugir é traçar uma linha,
linhas, toda uma cartografia. se descobre mundos através de uma longa
fuga quebrada”.
472
“A linha de fuga é uma desterritorialização (...). Fugir não é
absolutamente renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. fazer fugir
algo (...) fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia”
473
.
M
ÁQUINAS
Uma máquina é qualquer ponto no qual um fluxo de algum tipo - físico,
intelectual, emocional, etc. - conecta-se a algum ponto, de qualquer lugar do
corpo. A boca de um bebê ao peito de sua mãe é uma máquina de boca que
reconhece uma máquina de peito. fluxos entre essas duas máquinas. O
termo máquina foi criado para abranger uma multiplicidade de conceitos, ou
seja, é possível acoplar às máquinas a uma série de outros termos que, para
funcionarem, dependem de um pólo que funcione como máquina geradora das
ligadas à fonte mãe. Por exemplo: desejo é uma máquina que movimenta
469
Id.
470
ZOURABICHVILI, F
vocabulaire de Deleuze.
Paris
:
Ellipses,
2003, p. 40.
471
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Op.cit.,
p.49
-
65.
472
Id. (Isso pode ser tão verdadeiro na literatura, quanto no cinema de alguns cineastas: Hitchcock sabia
disso e adorava os fugitivos,ou seja, todos os seus personagens, os quais precisavam escapar à narrativa
que algum Outro estava sempre a colocar para eles.... havíamos escrito aqui (acerca de Fernando
Pessoa, o fugitivo par excellence, no sentido específico com que empregamos o termo) que, segundo
Dele
uze, "nada mais ativo do que uma fuga". Traçar uma linha de fuga da armadilha do Outro... Uma
linha? Não: "linhas, toda uma cartografia!").
473
ZOURABICHVILI, F. O Vocabulário Deleuze. Trad. André Telles. .Rio de Janeiro: Ed. Relume
Dumará, 2004, p. 56, 57.
139
agenciamentos, mas que deriva do inconsciente maquínico e assim por diante.
No entanto, é preciso fazer uma diferença fundamental entre máquinas. “Em
outras palavras, máquinas territorializadas (em metal, em eletricidade, etc.),
assim como também máquinas desterritorializadas que funcionam num nível
de semiotização completamente outro”
474
.
Máquina ou maquinismo é um modelo que procede por eixos afetivos, por
afetos, em vez de um pensamento que pretende fornecer descrições
totalizantes, ela faz parte de agenciamentos maquínicos. É assim que eles
iniciam o primeiro capítulo do
Anti
-
Édipo
. “Isto funciona em toda parte, às
vezes sem parar, às vezes descontínuo. Isto respira, isto esquenta, isto come.
Isto caga, isto fode. Que erro ter dito
o
isto”.
475
. As quinas operam sempre
por acoplamentos e conexões. Esse modelo de funcionamento abrange toda
forma de vida. “Uma máquina-órgão é ligada em uma máquina fonte: uma
emite um fluxo que a outra corta. O seio é uma máquina que produz leite, e a
boca, uma máquina acoplada nela”
476
. O movimento dessas máquinas é
animado pelas forças definidas por Nietzsche: “qualquer força está em relação
com outras, seja para obedecer, seja para ordenar. O que define um corpo é
esta relação entre forças dominantes e forças dominadas. Qualquer relação de
forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político”
477
. As máquinas
se movem impulsionadas por essas forças ativas e passivas. As ativas agem e
as passivas reagem, uma emite um fluxo que faz uma máquina agir de uma
certa maneira, enquanto outra impulsiona uma máquina que interrompe esse
ou aquele fluxo, por exemplo, a boca que interrompe o fluxo do leite.
Máquinas de máquinas com suas engrenagens e
caixas de câmbio. Uma máquina orgânica ligada a
uma máquina central: a corrente que esta produz é
interrompida por aquela. O seio é uma máquina para
a produção de leite e nele se encaixa a máquina-
boca. A boca faz da falta de apetite o fio da balança
en
tre uma máquina alimentar, uma máquina anal,
474
GUATTARI, F. e ROLNIK, S.
Micropolítica
:
cartografias do desejo
. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1986,
p. 239.
475
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-
Édipo
:
capitalismo e esquizofrenia. Trad. Georges
Lamaziere. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976, p. 15. (Tradução d
o
Es
freudiano equivalente ao id das
traduções das edições em português.
476
Id.
477
DELEUZE, G.
Nietzsche e a Filosofia.
Trad. Antônia M. Magalhães. Porto: Rés
-
Editora, 2001, p. 62.
140
uma máquina de linguagem, uma máquina respirante
(ataque de asma)
478
.
A essência da máquina parece estar relacionada aos procedimentos que
desterritorializam seus elementos, seu funcionamento, sua relações de
al
teridade.
A idéia de máquina atribuída ao inconsciente passa por uma tentativa de
evitar cair nas tradicionais reduções impostas ao inconsciente. O que também,
soa mais apropriado para fundar a possibilidade de uma psiquiatria
materialista, do ponto do
Ant
i-
Édipo
. Com a introdução do conceito de
“inconsciente maquínico”, Guattari pretende sair do teatro familiar para o teatro
das fábricas. Desvincular o desejo da falta e da lei para conectá-lo às
produções desejantes. Máquina desejante e as três máquinas sociais:
territorial, despótica e capitalista
479
.
Deleuze e Guattari dão ao termo máquina sua maior extensão: em relação
a fluxos, eles definem a máquina como qualquer sistema que corta e emite os
fluxos. No
Anti
-
Édipo
, eles falam de máquinas no sentido mais ordinário da
palavra, de máquinas sociais; outras vezes, de máquinas desejantes. Para
eles, a máquina não está em conflito de qualquer forma com o homem ou com
a natureza. Por outro lado, a máquina do
Anti
-
Édipo
não pode ser reduzida ao
modelo das formas mecânicas. As que se referem ao protocolo de algumas
máquinas técnicas, ou então, à organização particular de um organismo. O
que aproxima o sentido é o maquinismo que designa todo sistema que corta
fluxos que vão além de ambas as mecânicas de tecnologia e a
organização do
organismo. A intenção é de se descartar do organicismo da tradição e do
paradigma científico, que se fundam na lógica e na razão
480
.
478
DELEUZE, G.
Op.cit
., p. 15.
479
Cf. Id., p. 15
70.
480
Aristóteles fixa a eficácia do discurso nas ligações com o orgânico: “Por exemplo, no ritmo, na
métrica, essa reiteração acompanha certos ritmos orgânicos.” (...) são os modelos que vão afastando o
pensamento do campo sensível para o campo inteligível. “No discurso lógico, você tem um módulo
repetível: premissa maior, premissa menor, conseqüência. Esta vira de novo uma premissa maior, que se
junta a uma outra premissa menor e gera outra conseqüência. Então, você tem um passo ternário que não
deixa de ser uma espécie de métrica.
– (CARVALHO, Olavo de. História essencial da filosofia:
Aristóteles
. Realizações: São Paulo, 2003, p 8 – 9) - Esse modelo vem compor o organismo que aprisiona
o maquinismo das máquinas desejantes de Deleuze e Guattari. Aristóteles pode ser considerado o
autor
desse senso que germinou uma “unidade orgânica” para o pensamento o que ignora por completo a noção
de um CsO.
141
MÁQUINAS DESEJANTES
481
Esse conceito se refere ao inconsciente, mas não é possível se tratar do
mesmo inconsciente da psicanálise, estruturado ou simbólico. Em
Conversações, lembra Deleuze: “Félix me falou do que na época ele
chamava de máquinas desejantes: toda uma concepção teórica e prática do
inconsciente
-máquina, do inconsciente esquizofrênico”
482
. “Nas máqu
inas
desejantes tudo funciona ao mesmo tempo, nos hiatos e nas rupturas, nas
panes e nas falhas, nas intermitências e nos curtos-circuitos, nas distâncias e
nos despedaçamentos, numa soma que nunca reúne suas partes em um
todo”
483
. “As máquinas desejantes constituem a vida não edipiana do
inconsciente”
484
. “As máquinas desejantes não se deixam reduzir nem à
adaptação de máquinas reais, ou de fragmentos de máquinas reais a um
funcionamento simbólico, nem ao sonho de máquinas fantásticas com
funcionamento imaginá
rio”
485
.
Produção e desejo não podem ser termos separados, não aparecem
separados no
Anti
-
Édipo
. São termos equivalentes, a produção deriva do
desejo. “Máquina desejante” pode ser o termo unificador: é a idéia de que ele
corresponderia a um certo tipo de pro
dução e que não é absolutamente algo de
indiferenciado. O desejo não é nem uma pulsão orgânica, nem algo que estaria
sendo trabalhado, por exemplo, pelo segundo princípio da termodinâmica
486
,
sendo arrastado de maneira inexorável por uma espécie de pulsão de morte.
“O desejo, ao contrário, teria infinitas possibilidades de montagens”
487
. As
máquinas desejantes são produção de produção: uma máquina que produz
fluxos e uma outra a ela conectada processando um corte, uma interrupção dos
fluxos. Seio e boca são máquinas que funcionam em relação à outra que
481
As máquinas desejantes são a origem de tudo. São as pulsões, os objetos parciais, o corpo em
funcionamento, múltiplos e dispersos funcion
amentos que se comunicam e remetem, uns aos outros.
482
DELEUZE, G.
Conversações.
Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 23.
483
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-
Édipo
:
capitalismo e esquizofrenia. Trad. Georges
Lamaziere. Rio de Janeiro: Ed. I
mago,
1976, p. 50.
484
Id., p. 468.
485
Id. Ibid., p. 487.
486
Alusão ao “Princípio do Prazer”, inicialmente fundado em bases da física: o que causa desprazer é uma
Quantidade de força que constrange o aparelho psíquico. Quanto maior a Quantidade acumulada; maio
r
será o desprazer. O Princípio do Prazer se compõe de dois princípios da física: Princípio da Inércia e
Princípio da Constância. Uma força inercial tende a fluir livremente, enquanto uma barreira de contenção
neuronal assegura uma economia de força consta
nte.
487
GUATTARI, F. e HOLNIK, S.
Micropolíca
:
cartografias
do
Desejo
. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1986,
p. 240.
142
também produz um corte. O desejo não faz apenas um acoplamento: o desejo
como essência do homem e da natureza não cessa de operar acoplamentos.
Os fluxos se conectam, todo o tempo, a objetos parciais.
488
Esses se de
finem
pela escolha de peças trabalhadoras dispersas: “(...) não cessa de remeter
uma peça de uma máquina totalmente diferente, como o trevo vermelho e o
zangão, a vespa e a flor de orquídea (...)”
489
. Toda essa dispersão do modo de
funcionamento das máquinas desejantes está em oposição ao modo estrutural
da psicanálise. Elas escapam a qualquer forma estrutural ou representativa, de
funcionamento. São “ponto de fuga ativo onde a máquina revolucionária, a
máquina artística, a máquina científica, a máquina (esqu
izo)
– analítica se
tornam peças e pedaços umas das outras”
490
. São máquinas órgãos que se
conectam às máquinas fontes, são as sínteses conectivas. As sínteses são
combinações e arranjos, neste caso, (conexão) acontecem quando objetos
parciais se conectam e
extraem fluxos de outros objetos, quando cortam fluxos.
As sínteses são, portanto, combinações e arranjos. A máquina fonte que emite
o fluxo de leite para a máquina órgão (seio) se chama máquina miraculante
.
Seu funcionamento é a produção de produção: a boa produção é a dita
esquizofrênica, aquela que se remete ao inorgânico, ao incriado corpo sem
órgãos, portanto, imanente. A conexão é sempre aquela conexão que se
reporta às formas identitárias das marcas dos códigos: juízo de Deus e seus
estratos, Édip
o, sociedade, Estado, entre outros.
MULTIPLICIDADE
Deleuze e Guattari desenvolveram o termo multiplicidade derivado de
uma leitura de Bergson
491
. O sentido de multiplicidade se ajusta aos termos que
convergem ao movimento criativo: nômade, rizoma, grama, devir, desejo
maquínico, máquina, etc. Sempre se tratando de abolir as noções unificadoras e
488
“Objetos parciais” são elementos últimos do inconsciente e, em sua dispersão, não remetem a um
todo, não se trata de um “organismo despedaçado”, como na psicanálise (O Anti-
Édipo
, p. 410, 411).
Mas, para Deleuze e Guattari, “os objetos parciais” ainda preservam muito de orgânico. Os fluxos do
desejo são “um puro fluido em estado de liberdade e sem corte, deslizando sobre um corpo pleno” (
O
Anti
dipo
, p. 22).
489
DELEUZE, G. e GUATTARI, F.
O Anti
-
Édipo
:
capitalismo e esquizofrenia.
Trad.Georges Lamaziere.
Rio de Janeiro: Ed. Imago
, 1976, p. 409.
490
Id. Ibid., p. 408.
491
DELEUZE, G.
Bergsonismo
. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 1991, p. 27
38.
143
centradas em algum núcleo. Multiplicidade não guarda nenhum ponto
privilegiado, é uma sucessão de dobras, uma co-existência simultânea de forças
que agem contra o imperativo de modelos monocentrados: representação e
recognição. Multiplicidade mina o sistema binário e todos os que se escondem
num casulo conceitual. Está, constantemente, metamorfoseando-se, ligando-
se
a qualquer coisa que advém. É ambos, ' ' e 'não-lá ', como uma fatia de uma
metáfora ou metonímia, portanto, incapaz de qualquer representação. Não é
não
-
representacional, mas também anti
-
representacional.
RIZOMA
“Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Tal
sistema poderia ser chamado rizoma”. Não tem começo nem fim, mas sempre
um meio, pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades”.
492
Não existe nenhum centro nem centros, é como um corpo sem órgãos, nada
está pré-definido, as ligações se fazem através de linhas que podem interligar
qualquer ponto com qualquer outro ponto, não respeitando nenhuma
hierarquia. No rizoma, não há uma unidade central, um eixo que conduza o
crescimento de uma forma dicotômica ou genealógica. As suas linhas não são
ramificaçõ
es de uma árvore, são apenas linhas que, a qualquer momento,
podem deixar de existir e dar lugar a outras de natureza diferente. “O rizoma
não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo... ele não é feito de
unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças”
493
.O que
encontramos no rizoma são multiplicidades sem sujeito nem objeto.
Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o
rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto
qualquer, e cada um de seus traços não remete
necessariamente a traços de mesma natureza, ele
põe em jogo regimes de signos muito diferentes,
inclusive estados de não
-
signos
494
.
492
ZOURABICHVILI, F. O Vocabulário de Deleuze. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Ed. Relume
Dumará, 2004, p. 97. Este conceito se encontra também em
Mil
Platôs
. Vol, 5.
493
Id.
494
Id. Ibid.
144
No rizoma, circulam apenas estados momentâneos sem qualquer
controle ou codificação centrada. Os pontos não são fixos, existem sem
princípio e sem fim, apenas no meio. Estes "meios" são, para Deleuze e
Guattari, "
Plateaux
". O conceito de Platô, inspirado em Gregory Bateson,
495
traduz o "meio", onde toda a multiplicidade é conectável por outros caules
subterrâneos que formam e desenvolvem o rizoma.
Em sua definição botânica, um rizoma é um tubérculo subterrâneo que
se ramifica, diversifica e produz brotos novos. Deleuze e Guattari opõem isto
ao que eles chamam sistemas arbóricos de conhecimento, baseado no modelo
de uma árvore que solidifica em formas visíveis e imóveis. O rizoma é uma
cadeia de conexões pela qual as coisas fluem e se dispersam. Nessa visão, o
rizoma é uma cartografia, um entre, uma formação sem história. O rizoma
oscila entre as linhas estabelecidas pelos sistemas arbóricos, e como tal é
produtor de devir. O rizoma é uma raiz que difere do sistema de raiz da árvore.
Não tem, aparentemente, começo ou fim. Ao invés disso, começos múltiplos e
começos que entrelaçam e se conectam um ao outro. É um lote inteiro de
falsos começos. uma estranha beleza no fato de que nada sempre começa
e nada sempre termina - continua crescendo. Os rizomas se ramificam e se
articulam, num intenso processo de desterritorialização e reterritorialização das
relações sociais. O termo rizoma é empregado, metafori
camente, por Guattari e
Deleuze, para explicar a dinâmica das linhas que compõem uma vida, latitudes
e longitudes.
Objetivando ampliar a discussão da relação existente entre o que vem a
ser um rizoma e sua relação com a existência humana, buscamos
compreen
der melhor a origem dessa palavra, que vem da botânica e de certa
forma foi aplicada para explicar o devir da vida, agenciamentos, construções e
desconstruções. No Dicionário Universal da Língua Portuguesa, o vocábulo
rizoma
vem do grego,
rhízoma
, raiz,
s.
m., “caule subterrâneo horizontal”. No
dicionário Michaelis, a definição do termo se amplia: ri.zo.ma s.m. Bot.
(
rizo+oma
): “caule subterrâneo, no todo ou em parte, de crescimento
horizontal”. Em ambas, é possível perceber o princípio de que o rizoma é um
a
raiz e está em constante crescimento horizontal, passando por diferentes
495
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs
: capitalismo e esq
uizofrenia
.
Vol. l. Trad. Aurélio Guerra
Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 33.
145
pontos subterrâneos. O rizoma é um tipo de raiz de gengibre, com inúmeros
pontos, núcleos que se desdobram em sistemas de raízes independentes.
Rede de conexões através da qual coi
sas fluem e se dispersam. Neste sentido,
é um mapeamento, um entre, um devir. Qualquer ponto pode ser conectado a
qualquer outro. Não existe hierarquia, começo ou fim. O rizoma tem múltiplas
entradas e saídas. Encontra-se sempre no meio, entre as coisas. E
lementos
inter
-relacionados, sem hierarquia e fundações sólidas. Estrutura toda
movente. Qualquer movimento interfere com maior ou menor intensidade em
toda a rede. Estruturas abertas de infinita capacidade de expansão.
As
conexões dos rizomas modificam as suas estruturas, caracterizando-se como
sistemas complexos e auto-
organizantes. Como explicam Deleuze e Guattari, a
árvore impõe o verbo
ser
, mas o rizoma tem como tecido a conjunção
e...e...e...
. permitindo cadeias infinitas de novos agenciamentos
496
. Diz-
nos
Deleuze: “devir-mulher que não é nem homem nem mulher, devir-animal que
não é nem bicho nem homem”
497
. O rizoma possibilita a fuga da posição
binária, ele vai para qualquer parte, é devir. não se pensa mais por uma
linha definidora do certo e do errado, mas por agenciamentos de linhas que se
conectam e se dispersam. “Evoluções não paralelas que não procedem por
diferenciação, mas saltam de uma linha a outra, entre seres totalmente
heterogêneos (...). Tudo isso é o rizoma. Pensar, nas coisas, entre as coisas é
justamente criar rizomas e não raízes”
498
. No rizoma, não pode haver um
centro que sirva de fundamento, não se fala a partir de tal e tal lugar, como no
sistema de raízes ou árvores: “É uma cartografia que se opõe a uma história,
são traçados, sempre na horizontalidade que avança sobre uma superfície
desértica”.
499
O rizoma é desterritorializante e, ao mesmo tempo, territorializante, mas
sempre com caráter provisório. Isso possibilita os aspectos positivos do
desenvolvimento dos conceitos. O rizoma nunca pode ser um ponto final, nem
um ponto de partida, mas sempre um entre coisas,
intermezzo
. O rizoma é
como o desejo, ele sempre se dirige para um agenciamento de onde se vão
496
Cf. Id. p., 11
-
37.
497
DELEUZE, G. e PARNET, C.
Diálogos
. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro . São Paulo: Ed. Escuta, 1998, p.
36.
498
Id.
499
Id. Ibid.
146
abrir múltiplas saídas. Os pontos agenciados são platôs que se abrem para
outros
que não se relacionam nem a um sujeito nem a um objeto.
147
148
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