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DESEJO DE ALGUMA COISA: DESEJO E OBJETO
A questão, neste capítulo, é fazer uma comparação entre duas formas
de conceber o desejo: a primeira concepção segue a tradição metafísica, é
aquilo que se tornou “natural” e passou a ser aceita como “bons costumes”. O
centro de referência para essa concepção do desejo se encontra no
platonismo
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, que solidificou um modo de viver e de pensar calcado na moral,
na razão e no Estado. Esse modo de vida, ao longo do tempo, sofreu
inovaçõ
es
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de dentro da filosofia, com a teologia e mais modernamente com a
psicanálise. Essas inovações criaram mecanismos de assujeitamento das
paixões, pela desqualificação do desejo. Vejamos essa via que triunfou no
Ocidente judaico-cristão e que se vê pelas lentes do Estado, da razão e da
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Referimo-nos ao dualismo que se reflete em todos os setores da filosofia. Segundo Battista Mondin,
em seu livro Introdução à filosofia.( São Paulo: Edições Paulinas, 1980. p. 163), “na
lógica
, onde segue-
se o procedimento dialético; na
gnosiologia
, que desvaloriza o conhecimento sensitivo, reduzindo-o à
função de reavivar a lembrança das Idéias (teoria da reminiscência); na
psicologia
, com a identificação a
uma só alma, espiritual e imortal, considerando o corpo uma prisão e um obstáculo às atividades da alma;
na
ética
, onde se ordena um rígido controle ou antes a completa supressão dos instintos e das paixões, o
que torna possível a separação da alma da prisão do corpo, é a contemp
lação das Idéias; na
estética
, coma
desvalorização da comédia, da tragédia e das artes figurativas, pois não favorecem a elevação do espírito;
na
polític
a, com a divisão da sociedade em classes e a atribuição do governo ao filósofo-rei”. O Estado
justo deverá ser aquele cujo governo estiver nas mãos do filósofo, daquele que já contemplou o Bem em
si e que não confunde com ele as coisas que dele participam; aquele que, depois de contemplar o Bem,
reconheceu o dever que lhe incumbe de levar os outros a compartilharem a sua visão. Platão resume, na
República
, V. (473): “A menos que os filósofos sejam reis ou que os que hodiernamente se nomeiam reis
e soberanos sejam verdadeira e seriamente filósofos, de sorte que a autoridade política e a filosofia
acopladas se encontrem no mesmo indivíduo, enquanto que se excluam do governo quantos atualmente
aspiram a uma das duas vocações sem a outra, fora disto (...) não há medicina para os males que afligem e
devastam o Estado e o próprio gênero humano, nem jamais surgirá na Terra e virá à luz do sol o Estado
perfeito, cujo o plano projetamos”. Esta nova política e este novo Estado não se baseiam na retórica (tal
como queriam os sofistas), mas tem a filosofia por seu instrumento de acesso aos verdadeiros valores da
Justiça e do Bem. Três são as obras de Platão dedicadas especialmente à política: a República, a Política
e As Leis
, cuja referência se encontra na bibliografia final deste trabalho.
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Se é verdade que Sócrates e Platão questionavam os homens; Aristóteles questionava as coisas. A
preocupação constante de Aristóteles é vencer a abstração da Idéia Platônica, concretizar, individualizar o
conceito, o que dá nova valorização ao sensível, como também confere nova valorização ao pensamento.
Em
Ética à Nicômaco, X 1179b 35, (apud GILES, Thomas Ransom, Introdução à filosofia. São Paulo:
Edusp, 1979. p. 52.), Aristóteles diz que “não basta saber que coisa é a virtude: é mister tornar-nos bons.
Se bastassem os raciocínios, bem deveríamos fazer de tudo para procurarmos muitos. Mas, contudo,
embora servindo para reafirmar no culto do belo e do bom os mais nobres e bem nascidos dentre os
jovens, eles são impotentes no induzir ao bem e à beleza a grande maioria”. Depois, os representantes, do
platonismo e do aristotelismo vão aparecer na Filosofia Medieval. Santo Agostinho vai viver no
maniqueísmo
entre o bem e o mal, a luz e as trevas, Deus e o Diabo, espírito e a matéria. Formas
teológicas da repressão do desejo e da paixão. As Idéias desencarnadas do platonismo se transferem para
Deus que tem em Si os arquétipos de todas as coisas. Conhecer a verdade é o mesmo que conhecer a
Deus. Tomás de Aquino introduz na teologia as idéias de Aristóteles. As provas da existência de Deus se
fundamentam na doutrina do Ser. A primeira prova é uma explicitação do axioma: aquilo que é movido é
movido por um outro. É a cadeia infinita de causas e efeitos: toda causa é causada, mas deve haver uma
causa que causa todas as outras. Essa é a causa primeira que é Deus. (Suma Teológica, parte I questão II,
artigo 3. apud GILES, Thomas Ransom,
Introdução à filosofia
. São Paulo: Edusp, 1979. p. 58.)