Download PDF
ads:
MARIA ANTONIA RIBEIRO PINTO PIZARRO
AIDS, RESILIÊNCIA E ESCOLA
Santo Ângelo, RS
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
MARIA ANTONIA RIBEIRO PINTO PIZARRO
AIDS, RESILIÊNCIA E ESCOLA
Dissertação de Conclusão de Mestrado do Curso de
Pós-Graduação em Educação nas Ciências,
Universidade Regional de Ijuí – UNIJUÍ, sob a
orientação da Profª Dra. Ana Maria Colling e co-
orientação da Profª Dra. Maria Cristina Pansera
Araújo.
Santo Ângelo, RS
2006
ads:
3
MARIA ANTONIA RIBEIRO PINTO PIZARRO
AIDS, RESILIÊNCIA E ESCOLA
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
PROFª DRA. ANA MARIA COLLING
________________________________________________
PROFª DRA. MARIA CRISTINA PANSERA ARAÚJO
_____________________________________
PROFª DRA. SILVIA NABINGER
________________________________________
PROFª DRA ANNA ROSA SANTIAGO
Santo Ângelo, RS
2006
4
DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho a todas as crianças que
cruzaram meu caminho me ensinando a tecer
malhas com fios-de-amor.
À minha mãe, Júlia, que me ensinou a fiar os
mais belos fios-de-amor com os quais me
sustento no labirinto da vida.
5
AGRADECIMENTOS
À minha família, em especial às minhas filhas e
meu companheiro-de-caminhada, pelo incentivo
sem o qual não teria chegado aqui.
À Elisete, “nossa babá”, pelo apoio em todos os
momentos dessa caminhada.
Às minhas orientadora Ana Colling e co-
orientadora Maria Cristina Araújo, Mestras por
excelência, pela generosidade em dividir seus
saberes e seu amor, sem os quais não chegaria
aqui.
Aos mestres-amigos pelos ensinamentos e
estímulo para concluir esse trabalho.
Àqueles que acreditaram e participaram da
pesquisa, permitindo que este projeto
acontecesse.
6
RESUMO
A aids é uma epidemia grave, cuja incidência vem aumentando, com uma significativa
inversão epidemiológica, sendo a transmissão vertical (transplacentária) a principal causa de
transmissão em crianças menores de 13 anos. Com a utilização da medicação retroviral, essas
crianças evoluem satisfatoriamente, estando aptas a freqüentar todos os ambientes e participar
das mais diversas atividades. Compreender os mecanismos que diferenciam o processo de
aprendizagem e adaptação às situações adversas da vida, nos leva à discussão da resiliência
como a capacidade limite de suportar uma pressão (trauma, doença crônica), transformando-
se positivamente, ascendendo a uma vida produtiva. Entre os fatores protetores que
alavancam essa superação encontramos a escola, o local de excelência para todas as crianças,
servindo de fonte de apoio e estímulo ao seu desenvolvimento e integração. A partir de
pesquisa quali-quantiativa, realizada com crianças portadoras de HIV, seus pais e professores
de creches e escolas da rede pública e privada, de município da região noroeste do Rio
Grande do Sul, esse trabalho discute a importância da escola como promotora de resiliência
em criança portadoras de HIV, a partir da análise dos discursos que constroem o “sujeito-
criança-aidético”, tendo como referencial a obra de Michel Foucault. A partir do debate sobre
os discursos que nutrem o preconceito e levam à discriminação, alimentando a necessidade do
segredo como estratégia de sobrevivência no ambiente social, chegamos ao programa
Nacional de Direitos Humanos – PNDH, como alternativa na construção de um currículo
transversal que oportunize o aprendizado das relações heterogêneas, estimulando a
diversidade e a multiplicidade e o aprendizado de uma solidariedade entre os seres vivos.
Palavras-chave: aids, resiliência, discurso.
7
ABSTRACT
Aids is a serious epidemic, whose incidence has increased in a signigficant epidemiological
inversion being the vertical transmission (transplacental) the main cause of transmission in
children under 13 years old. With the use of retroviral medication these children evolved in a
satisfactory way, being apt to attend any context and participate in a lot of different activities.
The understanding of the mechanisms wich differ the learning process and the capacity of
child’s adaptation to hostile situations of pressure (trauma, chronical disease) transforming
himself in a positive way, ascending to a productive life. Among the proctetive factors wich
stimulate this overcoming, we find the school, the place of excellence for every child,
working as a source of supporting and stimulus to his development and integration. Based on
qualitative-quantitative research, conducted with HIV affected children, their parents, day
care teachers and public and private teachers as well, in a city in the northwest part of Rio
Grande do Sul/Brasil, this study discusses the importance of the school as a promoter of
resilience in HIV affected children, based on the speeches that construct the “aidetic-child-
subject” having as referential Michel Foucault’s studies. Based the discussions about the
speeches that reinforce the prejudice and take to discrimination, feeding the need of secrecy as
a survival strategy in a social context, we found the Programa Nacional de Direitos Humanos
– PNDH, as an alternative in the development of a transversal curriculum whose purpose is
the learning of heterogeneous relations, stimulating the diversity and the multiplicity and the
learning of solidarity among the human beings.
Key-words: aids, resilience, speech.
8
LISTA DE QUADROS E GRÁFICOS
Quadro 1– Síntese dos conceitos de resiliência – Kotliarenco e cols., 1996.........................39
Gráfico 1 – Professores X instituições participante...............................................................31
Gráfico 2 – Informação das mães sobre o conhecimento da doença por parte dos seus
Filhos .................................................................................................................66
Gráfico 3 - Como as mães vêem a escola com relação ao seu filho......................................78
Gráfico 4 - Identidade de gênero dos professores.................................................................88
Gráfico 5 - Motivo da matricula segundo as crianças entrevistadas.....................................89
Gráfico 6 - Formação dos professores X instituição a que pertence.....................................91
Gráfico 7 - Tempo de atuação dos professores entrevistados ...............................................92
Gráfico 8 - Informação sobre a doença na matrícula das crianças........................................93
Gráfico 9 – Percepção do professor com relação à criança com HIV na instituição -
Professor com informação da doença.................................................................94
Gráfico 10 - Percepção do professor com relação à criança com HIV na instituição –
Professor sem informação da doença .................................................................95
Gráfico 11 - Professores X acolhimento da criança com HIV..............................................98
Gráfico 12 - Professores X instituição como instrumento de inclusão de crianças
com HIV.........................................................................................................104
Gráfico 13- Participação do professor X evolução da doença............................................108
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................10
CAPÍTULO I - O PERCURSO NO LABIRINTO.........................................................21
1.1 Preparando a Jornada ..........................................................................................25
1.2 Iniciando a Jornada – da Coleta de Dados.........................................................28
CAPÍTULO II - A RESILIÊNCIA, A CRIANÇA E A AIDS .......................................33
CAPÍTULO III - A INFÂNCIA DO SEGREDO - da existência à sobrevivência......50
CAPÍTULO IV - AIDS NA ESCOLA - do preconceito à inclusão...............................84
REFLEXÕES FINAIS .................................................................................................... 117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 123
ANEXOS............................................................................................................................133
10
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo analisar a importância da escola na promoção da
resiliência em crianças portadoras da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, Sida ou aids
1
,
por transmissão vertical.
Por ser médica pediatra há mais de 20 anos, acompanho crianças das mais diversas
idades e origens, sendo algumas delas portadoras de HIV. Ouvindo-as, e às suas famílias,
pude perceber as angústias e preocupações que permeavam seus relacionamentos. Angústias
com relação à realidade de conviver com uma doença de caráter crônico, para a qual ainda
não possuímos tratamento definitivo. Preocupações, principalmente por parte dos familiares,
com relação à garantia de suporte e acompanhamento para seus filhos, uma vez que os pais,
também se encontram infectados. Além destas, a pior e mais cruel de todas as dores, a certeza
da exclusão a que seriam submetidos ao tornar-se pública sua condição de infectado:
AIDÉTICO.
Maria Cecília Minayo afirma que “a escolha de um tema não emerge
espontaneamente, da mesma forma que o conhecimento não é espontâneo. Surge de interesses
e circunstâncias socialmente condicionadas, frutos de determinada inserção no real, nele
encontrando suas razões e seus objetivos” (1993, p.90).
1
Utilizaremos a sigla aids representando a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, visto que é a denominação
utilizada no Brasil.
11
A escolha desse tema não foi inocente nem acidental. Nenhuma escolha é inocente ou
casual, o que me mobilizou foi o sentimento de total ausência de apoios que essas famílias
expressam. Pensando em apoios, cheguei à resiliência, que se constrói nas malhas da tecitura
das relações. Perguntando-me que instituições poderiam compor esse tecido, cheguei à escola,
local, onde passamos grande parte de nossas vidas, onde, ainda hoje, as crianças passam a
maior parte de seus dias.
Ao iniciar essa pesquisa, encontrei-me num emaranhado de questões como se estivesse
entrando num labirinto de idéias, e receei não retornar. Lembrei-me, então, da mitologia grega
que conta a história do Labirinto de Creta, onde estava preso um perigoso monstro, o
Minotauro. Havia um rapaz, Teseu, que era filho do Rei Egeu e foi enviado por sua mãe a
Atenas, a fim de herdar seu reinado. No caminho realizou diversas proezas, conquistando a
simpatia do povo ateniense. Após ser reconhecido como filho por seu pai, foi enviado à ilha
de Creta para matar o Minotauro. Lá chegando, conheceu Ariadne, filha do Rei Minos, e
apaixonaram-se. Ariadne, temendo pela sorte de Teseu, procurou Dédalo, o arquiteto do
labirinto, e perguntou-lhe o segredo para sair do labirinto. Com esta informação, buscou um
novelo bem longo de linha e o entregou a Teseu para que o fosse desenrolando, à medida que
entrasse no labirinto, com a condição de que se casassem depois. Assim, Teseu matou o
Minotauro e retornou dos confusos caminhos do labirinto.
Esta lenda inspirou-me no sentido de buscar novelos de linha resistente que servissem
de guia para o retorno da longa jornada que tinha pela frente. Em minhas orientadoras,
encontrei a figura de Ariadne, emprestando-me os fios de ‘seus saberes’ e, em muitos
‘amigos-mestres de caminhada’, encontrei fios de amor e conhecimento. Com todos esses
fios, procurei trançar uma corda resistente com a qual entrei no labirinto em busca de
encontrar o minotauro.
12
Para muitas crianças, nascer, pertencer a uma sociedade pode ser uma experiência rica
de possibilidades prazerosas. Para algumas, porém, a vida é um verdadeiro labirinto. Labirinto
de dúvidas, de abandonos, de dores, que as fazem buscar novos caminhos em busca de sair do
labirinto de suas vidas. Os fios que essas crianças buscarão, estarão nas mãos de seus pais,
familiares, cuidadores e, também, de seus professores.
A aids vem sendo registrada, pelo Center for Disease Control (CDC), desde junho de
1981, sendo os primeiros casos descritos referentes a homossexuais masculinos,
aparentemente sadios até então, que passavam a apresentar infecções oportunistas graves.
Apesar do maior número de casos inicialmente ter sido de homossexuais masculinos, outros
grupos foram sendo incluídos, como usuários de drogas endovenosas, os politransfundidos e
crianças.
A Organização Mundial da Saúde - OMS, através do Programa Conjunto das Nações
Unidas sobre o HIV/SIDA (ONUSIDA), em sua publicação Aids epidemic update: December
2004
2
, estima que cerca de 39,4 milhões de pessoas estão vivendo com o vírus HIV, em 2004,
levando a óbito cerca de 3,1 milhões de pessoas no ano de 2003.
Hoje, cerca da metade das pessoas infectadas, no mundo, são mulheres. Na África
subsaariana, 76% dos jovens infectados, com idade entre 15 a 24 anos, são do sexo feminino.
No Brasil, a incidência anual de aids também vem aumentando com a mesma preocupante
inversão nos índices epidemiológicos. Enquanto em 1984 a relação homem:mulher era de
18.7/1, em 1994 foi de 3.2/1, chegando, em 2004, a 1.5 homens/1 mulher
3
.
2
Para maiores informações: ONUSIDA, (2004). Situacion de la epidemia de SIDA. Endereço:
http://www.unaids.org/wad2004/EPIupdate2004_html_sp/epi04_00_sp.htm
.
3
Dados extraídos do Boletim Epidemiológico – AIDST. Ano I, nº1, p.28, janeiro a junho/2004. Ministério da
Saúde – Secretaria de Vigilância em Saúde – Programa Nacional de DST e Aids.
13
Essa feminização da pandemia é construída e mantida pela pobreza e desigualdade de
gênero. Mais uma vez, a história das mulheres é construída pelos homens; “o mundo das
mulheres faz parte do mundo dos homens, [...] ele é criado nesse e por esse mundo
masculino” (SCOTT, 1995, p.75). Mesmo com a existência de documentos internacionais
4
que garantem às mulheres esta tão necessária igualdade, o acesso deficiente a educação,
serviços de saúde, trabalho digno e remuneração adequada são evidências da discriminação
enfrentada por meninas e mulheres, “precisamos admitir que, até agora, a diferença entre os
sexos, sempre e em toda parte, adquiriu o sentido de uma hierarquia: o masculino é sempre
superior ao feminino” (grifo do autor) (AGACINSKI, 1998, p.20).
A cultura de paternalismo e de silêncio sobre sexo mantém a polaridade das relações.
Michel Foucault alerta para a forma como esta polaridade é construída e mantida a partir de
discursos que estabelecem relações de poder entre os gêneros, criando redes que interagem e
localizam cada indivíduo, dizendo:
Não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso
admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; [...]
Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todos ao
poder, nem expostos a ele. [...] O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas
também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo (1987, p. 96).
A maior vulnerabilidade da mulher à infecção pelo HIV, do ponto de vista biológico,
está relacionada “às regras de pareamento entre os gêneros de óbvia determinação sócio-
econômica e cultural”, produzindo uma “assimetria de pareamento que determina epidemias
mais extensas e mais dilatadas no tempo”, mantendo a desigualdade de possibilidades e
direitos das mulheres (BASTOS & SWARCWALD, 2000, p. 66-75).
4
Declaração de Pequim adotada pela quarta Conferência Mundial sobre as mulheres: Ação para igualdade,
desenvolvimento e paz – 1995. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/pequim95htm.
Acessado em 08/3/2005.
14
No Brasil, aliados à feminização da epidemia, Parker & Camargo Jr. (2000) sinalizam
como agravantes, a pauperização, a interiorização, a baixa incorporação de valores da
cidadania e a falta de um sistema de bem-estar social inclusivo.
Essa preocupante inversão epidemiológica aumenta o risco da transmissão do HIV da
mãe para o filho, com taxas de transmissão de 25 a 45%, principalmente em países onde não
há profilaxia. Dessas infecções, cerca de dois terços delas ocorrem durante a gestação, o
trabalho de parto ou no momento dele, sendo as demais transmitidas pela amamentação.
O relatório Situação Mundial da Infância 2005 alerta que “todos os dias, cerca de
1.700 crianças são infectadas com o HIV. No mundo todo, há aproximadamente 2,1 milhões
de crianças menores de 15 anos vivendo com HIV. Em 2003, cerca de 630 mil crianças
menores de 15 anos foram infectadas” (capítulo 4 – destaque 3). Entre estas, muitas foram
infetadas por via transplacentária, já nascendo sob o estigma da aids.
No Brasil, a aids pediátrica foi relatada pela primeira vez em 1984 e, em 1987, já havia
se tornado a nona causa de morte em crianças entre 1 a 4 anos de idade (Manual para o
acompanhamento da criança infectada pelo HIV, 1996). A análise dos dados epidemiológicos
do Brasil mostram que a transmissão vertical é a principal causa de infecção por HIV nos
primeiros 13 anos de vida, com 83,6% dos casos em 2004
5
. Além da transmissão vertical, a
aids já deixou 15 milhões de crianças órfãs, registrando a ONU 4,3 milhões de crianças órfãs
no Brasil (ZERO HORA, 2004).
A compreensão sobre a dinâmica viral e celular na infecção pelo HIV, ao lado do
desenvolvimento de novas classes de drogas, propiciou a reformulação da terapêutica anti-
retroviral, resultando na alteração do curso natural da doença, proporcionando menor morbi-
5
Dados extraídos do Boletim Epidemiológico – AIDST. Ano I, nº1, p..31, janeiro a junho/2004. Ministério da
Saúde – Secretaria de Vigilância em Saúde – Programa Nacional de DST e Aids.
15
mortalidade. Com isso ofereceu aos pacientes a possibilidade de sobreviver e até de soro-
negativar seus exames.
Os medicamentos anti-retrovirais agem bloqueando a reprodução e a ação do vírus
HIV no organismo, transformando a aids em doença crônica, diminuindo as infecções
oportunistas, agregando saúde e melhorando a qualidade de vida dos portadores de HIV. Esta
possibilidade de conviver com o HIV, mantendo um bom estado de saúde, auxilia no combate
ao estigma e à discriminação, possibilitando a participação efetiva na sociedade.
No Brasil, a Lei 3316, de 1996, assegurou a oferta gratuita de medicamentos às
pessoas portadoras de HIV pelo Sistema Único de Saúde, SUS, através da produção de
medicamentos genéricos associada a uma abordagem multidisciplinar da doença,
reconhecendo-a como prioridade em saúde pública. Essa postura tornou o Brasil referência
mundial na abordagem da aids, ampliando, de forma admirável, o tempo de sobrevivência dos
seus pacientes. Apesar disto, ainda somos o país que “alberga más de um tercio de todas las
personas con el VIH em América Latina”
6
.
Estas crianças, como quaisquer outras, brincam, riem, choram, desenvolvem suas
capacidades e habilidades sem diferenças com relação às crianças não infectadas, logo, suas
oportunidades educacionais merecem ser as mesmas das outras crianças, não devendo ser
excluídas da escola nem isoladas nas suas instalações, uma vez que a freqüência a ela
oportuniza a socialização.
Por requerer e depender de outros para sobreviver, o ser humano é um ser dialógico
por excelência, surgindo na construção dessas relações, toda uma família que vem a constituir
o primeiro grupo social ao qual irá pertencer. Transformando e sendo transformado por seus
6
Para maiores informações ver Situacion de la epidemia de SIDA: Diciembre de 2004, América Latina 9.
Endereço: http://www.unaids.org/wad2004/EPIpdate2004-htlm-sp/epi04-08-sp.htm.
16
parceiros de interação, constrói seu mundo social e a sociedade em que vive (BOWLBY,
1981).
O impacto das situações adversas na formação de personalidade e no desenvolvimento
de características que fazem menos vulneráveis os seres humanos, vem sendo cada vez mais
estudado e valorizado. Entre essas características está a resiliência, cujo conceito foi
introduzido por Thomas Young, analisando a aplicação de variadas tensões sobre barras,
buscando a relação entre a força que era aplicada num corpo e a deformação que essa força
produzia (TAVARES, 2001).
A partir de sua aplicação à Medicina e à Psicologia, o conceito foi-se definindo como
a capacidade limite de suportar uma pressão (trauma, doença crônica) sem sofrer deformações
permanentes (seqüelas). Essa capacidade é o resultado da interação entre os atributos
individuais, o contexto social, a quantidade e a qualidade dos acontecimentos no decorrer da
vida e os chamados fatores de proteção (apoios) encontrados na família e no meio social. É,
pois, na relação com os seus e o ambiente em que se desenvolve que o indivíduo se constrói
(RUTTER, 1987; GROTBERG, 1995; KOTLIARENCO & COLS, 1996; LINDSTRÖM,
2001).
A resiliência se apresenta, assim, como uma habilidade, como uma característica que
orienta na superação de uma situação traumática que pode clivar, fraturar a personalidade.
Para Boris Cyrulnik, “uma dor nunca é maravilhosa. É uma lama gelada, um barro negro, um
escarro de dor que nos obriga a fazer uma escolha: nos submetemos ou superamos. A
resiliência define a saída para aqueles que tendo recebido o golpe, o superam” (tradução livre)
(1999, p.24)
7
.
7
“Un malheur n’est jamais merveilleux. C’est une fange glacée, une boue noire, une escarre de douler qui nous
oblige à faire une choix: nous soumettre ou le surmonter.La résilience définit lê ressort de ceux qui, ayant reçu
lê coup, ont pu lê dépasser” (CYRULNIK, 1999, p.24).
17
No sentido de compreender a resiliência, Mellilo & Ojeda, afirmam como ponto-chave
deste processo que,
A resiliência se produz em função de processos sociais e intrapsíquicos. Não
se nasce resiliente, nem se adquire a resiliência ‘naturalmente’ no desenvolvimento:
depende de certas qualidades do processo interativo do sujeito com outros seres
humanos, responsável pela construção do sistema psíquico humano [...] ou seja, a
existência ou não da resiliência nos sujeitos depende da interação da pessoa com
seu entorno humano (2005, p. 61-62).
A maneira como sentimos e compreendemos o mundo é resultado da construção que
fazemos sobre este mundo, da representação social que criamos. O modo como uma criança
reage à forma como é nomeada no meio em que vive é reflexo do significado que esta
nomeação carrega consigo, a verdade que determina.
Nessa construção, Michel Foucault nos leva a compreender de que forma se deu a
escolha da Verdade
8
ao longo da história; verdade que estabelece a passagem do espaço de
configuração da doença para o espaço real, corpóreo, localizando-a como desvio verdadeiro
da vida, levando a uma ‘patologização’ de toda forma diferente de ser. A maneira como as
pessoas agem e reagem está diretamente relacionada à maneira como pensam. Esta maneira
de pensar, claro, se constrói a partir de discursos
9
que são transmitidos pela tradição e
educação (ibid, 1993).
Esses ‘modos-de-ser’, que são muitos, mas não são quaisquer uns, vão se produzindo
numa delicada cadeia de discursos e práticas que se constituem nas interações de forma
singular ou múltipla, criando representações
10
que descrevem e, nas quais se inscrevem os
8
Ver Foucault, M. Verdade e subjetividade. Revista de comunicação e linguagem, nº 19, p. 203 – 223. Lisboa:
Editora Cosmos, 1993a.
9
Entendemos discurso como um conjunto de enunciados de um determinado saber que é construído e articulado
historicamente, que é determinado e determina regimes de poder (FOUCAULT, 1987).
10
Ver Chartier, R. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, vol. 7, nº 13, p. 97 – 113.
Rio de Janeiro, 1994.
18
diferentes grupos que se situam num campo estratégico de poder em que, este, mais do que os
fatos, torna as coisas verdadeiras.
Aceitar a idéia de que o mundo é construído por sociedades pluriculturais onde a
diferença é a base na construção das relações interpessoais, nos leva a compreender que é
dessa diversidade de ‘modos-de-ser’ que vem a riqueza da construção de cada um de nós.
Tratar a diferença com igualdade deveria ser, assim, a base de toda uma ética dos
relacionamentos, numa construção permanente, numa transformação contínua, num
movimento contínuo de fluxos, composições e recomposições.
Propor igualdade entre os homens, refere-se à igualdade de oportunidades, de direitos,
igualdade de escolha de um modo-de-ser que o realize e que lhe proporcione uma vida com
dignidade. Dignidade de existir numa sociedade onde as relações pressuponham uma
comunicação em duas vias de fluxo, permitindo a troca de ‘modos-de-ser’ e ‘de-viver’ onde
haverá produção de significados de ambos os lados, garantindo que a cultura de cada grupo
social estará presente igualmente.
As adversidades que as crianças portadoras de HIV terão que enfrentar podem ser re-
codificadas, re-significadas, de tal forma e a tal ponto, que possam vir a se constituir uma
força motriz da própria existência. Como nos afirma Nicholas Rose, “aquilo que os humanos
estão capacitados a fazer não é intrínseco à carne, ao corpo, à psique, à mente ou à alma: está
constantemente deslocando-se e mudando de lugar, de época para época, com a ligação dos
humanos a aparatos de pensamento e ação” (2001, p.166-167). Neste contexto, encontramos a
escola como local onde as crianças trocam as mais diversas experiências, onde se ligam aos
mais diversos aparatos de pensamento e ação.
Buscando compreender se, e de que forma, a escola pode ser promotora de resiliência
em crianças portadoras de HIV, foram realizadas entrevistas com algumas destas crianças,
19
seus cuidadores e professores de creches e escolas da rede pública e privada de município da
região noroeste do Rio Grande do Sul, valorizando seu discurso, a forma como lidam com o
segredo e a realidade da exclusão que a denominação ‘aidético’ promove.
Este trabalho está estruturado em quatro capítulos. Inspiro-me em Michel Foucault e o
considero a coluna vertebral que dará sustentação ao ‘corpo’ que pretendo construir, servindo
de eixo de articulação para os demais autores.
No primeiro capítulo, descrevo o processo metodológico da elaboração e coleta dos
dados referentes à pesquisa, orientando-me a partir de Laurence Bardin e Maria Cecília
Minayo, discutindo o referencial bioético e apresentando o perfil da população entrevistada.
No segundo capítulo, discuto a importância da resiliência e da sua promoção para as
crianças portadoras de HIV, como instrumento na construção de laços afetivos e de confiança
que proporcionem uma base segura para o desencadear positivo de sua auto-estima,
aprendizagem e inclusão na sociedade. Partindo da importância dos vínculos que
desenvolvemos ao longo da vida na construção da auto-estima com John Bowlby, busco fazer
uma construção genealógica de Thomas Young a Boris Cyrulnik, passando por Michael
Rutter, Maria Angélica Kotliarenco, Stefan Vanistendael e Aldo Melillo & Elbio Suárez
Ojeda, entendendo a escola como local de coletividade.
No terceiro capítulo, discuto o processo de construção do sujeito-criança-aidético, sua
relação com o segredo, a discriminação e o preconceito que existe com relação a aids. Aqui,
trago a análise dos discursos das crianças e de suas cuidadoras, buscando em suas falas as
relações de segredo e preconceito, de seus medos e angústias. Utilizo-me dos conhecimentos
de Phillip Ariès, Elisabeth Badinter, Uta Ranke-Heinemann e dos estudiosos da infância que
utilizam Michael Foucault como o ‘fio-de-sustentação’ no labirinto de seus estudos,
20
buscando, ainda, o papel da escola na vida das crianças portadoras de HIV, a partir do olhar
dos autores de Estudos Culturais.
No quarto capítulo, abordo o olhar dos professores, como vêem a realidade das
crianças portadoras de HIV no ambiente escolar, como percebem sua participação nas vidas
destas crianças e como caracterizam a escola na vida de seus alunos como promotora de
resiliência. Faço, também, uma reflexão sobre a questão da significativa presença feminina na
escola, utilizando os referenciais de Joan Scott a Guacira Louro.
Por último, trago minhas reflexões sobre este tema tão dolorido, mas tão presente na
nossa realidade. Nessa finalização, pretendo ter conhecido e compreendido a dinâmica do
minotauro, sem a pretensão de aniquilá-lo. Apresento, então, como anexos, os documentos de
autorização para pesquisa e a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.
Diferente de Teseu, busquei voltar do labirinto, trazendo comigo o fios que levei
acrescidos de outras fibras que conheci ao longo da jornada, no sentido de fortalecer minhas
cordas iniciais e de utilizá-las em novas jornadas, compreendendo melhor esta questão e
ampliando minha perspectiva de análise, a fim de garantir dizeres e fazeres mais bem
estruturados quanto à resiliência identificada, reconhecida e partilhada.
21
CAPÍTULO I - O PERCURSO NO LABIRINTO
Caso 5 :
- Esse é o meu irmão ‘...’ (nome do irmão não infectado), ele é legal, vai no colégio...brinca comigo, me
cuida...No colégio dele dão doce no Natal!
- E esse aqui, no meio?
- Essa é a mãe, é braba, não deixa eu brincar...o pai não está, está trabalhando.
- E este aqui, do ladinho?
- Essa sou eu, sou pequena, isso é o meu dodói (apontando para a cabeça colorida). Ainda mamo na
mãe...esse é o peito dela (apontando para a curva abaixo da imagem da mãe)...eu gosto de mamar...eu
gosto de ser bebê, a mãe me chama de bebê, ela diz que é prá eu não crescer, prá não sofrer...
- E o que é isso aqui?
- É a minha casa... grande.
- E você vai no colégio?
- Não...eu queria ir no colégio com o ‘X’ (nome do irmão)...prá brincar...
22
Frente às complexas questões que desejava responder, conduzi-me pelo labirinto,
utilizando-me dos fios da pesquisa quali-quantitativa, numa análise do conteúdo aliado à
análise de discurso, baseando-me nas ‘falas’ recolhidas nas entrevistas de campo.
Essa abordagem compreende a extensividade e a intensidade dos processos sociais
uma vez que a quantidade é uma das dimensões da qualidade do social e dos sujeitos sociais,
apreendendo seus significados, privilegiando os sujeitos sociais, sem desprezar informações
ímpares, apreendendo semelhanças e diferenças (MINAYO, 1993).
Utilizo a análise do conteúdo como um “conjunto de técnicas de análise das
comunicações”, por considerar os significados e os significantes, uma vez que
o que se procura estabelecer quando se realiza uma análise conscientemente ou não,
é uma correspondência entre as estruturas semânticas ou lingüísticas e as estruturas
psicológicas ou sociológicas [...] dos enunciados [...] buscando atingir através de
significantes ou de significados (manipulado), outros “significados” de natureza
psicológica, sociológica, política, histórica, etc. (grifos do autor) (BARDIN, 1977,
p.31-41).
Escolhi como centro da pesquisa compreender o papel da creche-escola como
promotora de resiliência na vida das crianças que nasceram sob o estigma de ‘ser aidética’.
Para tanto, foi necessário ouvi-las, assim como seus pais-cuidadores e a escola, na pessoa de
seus professores.
Ouvir a criança é fundamental, uma vez que “[...] uma criança, de qualquer grupo
social, após breves espaços de tempo, já construiu algum tipo de identidade, tem uma
memória construída” (DEMARTINI, 2002, p.7). Ouvi-la naquilo que construiu vivendo e
convivendo com o grupo a que pertence, valorizando suas marcas, sua forma de ver o mundo,
seu olhar, suas verdades como sujeito-de-si.
23
Sabemos que algumas crianças falam e expõem suas idéias com facilidade, mas há,
também, as que não falam, porque foram, ou são, orientadas a não falar de si, de suas dores,
de suas idéias. Mas todas expressam seus pensamentos, suas idéias, suas alegrias e suas dores,
se, como pesquisadores, nos dispomos a estar com elas, ouvi-las, “colhendo delas apenas
aquilo que é o reflexo conjunto dos seus próprios preconceitos e representações”
(QUINTEIRO, 2002, p.28).
Para alcançar esta façanha, lancei mão do fio do desenho. Ariadne emprestou-me um
belíssimo novelo que possibilitou um imenso aprendizado com as crianças. Observa-las
desenhando, expressando-se através de seus traços, criando suas formas, e ouvindo-as contar
sobre seus desenhos, trouxe-me a certeza do valor da participação da criança, mesmo
pequena, como sujeito construtor e portador de sua história. Ela cria sempre, nos ofertando
sempre um novo olhar da realidade que ultrapassa o sentido único fixado pela cultura do
grupo a que pertence e nos revela novas verdades.
Apóio-me em Gobbi (2002) quando afirma que “os desenhos infantis em conjugação à
oralidade como formas privilegiadas de expressão da criança” (p.72), podem ser utilizados
como documentos históricos, revelando a forma como aquelas crianças, daquele grupo social,
entendem e constroem seu universo de existência. Utilizei-me, nessa pesquisa, do desenho
aliado à entrevista semi-estruturada. Optei por esse tipo de entrevista por ser um instrumento
que orienta a conversa, servindo de roteiro básico para questões que se abrem à medida que
ela avança.
Ao iniciar cada entrevista com as crianças, informei-as do seu objetivo e perguntei
sobre o interesse e consentimento delas em participar. Em nenhum momento foi falado em
doença, sendo que, quando essas questões foram trazidas pelas próprias crianças, questionou-
24
se sobre o que há de bom ou ruim em estar doente na creche-escola. Somente para a criança
que têm informação do seu diagnóstico, foi questionado o que é aids para ela.
O objetivo de entrevistar pais-cuidadores e professores vem da realidade da criança ser
dependente deles durante os primeiros anos de vida, mesmo que isso se dê, em grande parte,
em caráter social.
Logo, ouvir também esses pais-cuidadores, suas angústias frente à realidade da doença
e da impossibilidade de alcançar sua cura, seus anseios com o futuro e destino de seus filhos,
a forma como lidam com a ‘verdade’ da doença na creche-escola, as expectativas que criam
com relação à participação da creche-escola nas suas vidas e na vida de seus filhos, foi
importante para o desenvolvimento dessa pesquisa.
Ouvir os professores foi essencial, uma vez que são eles que convivem com as
crianças por períodos de até 12 horas diárias. Para muitas delas, a creche/escola é o local
seguro de suas vidas. Portanto, a contribuição deles tornou-se aspecto fundamental na busca
de compreender o que a aids representa na escola, e como, se sentem esses profissionais
diante dessa realidade. Terão eles a certeza de suas informações? Como se sentem frente aos
pais das crianças não infectadas? Como estão lidando com seus preconceitos e medos? Qual o
acolhimento da escola?
Sabemos que, na escola, ainda “prepondera a importância dos conhecimentos prontos
científicos de forma distanciada da vida da comunidade” (LEITE, 1997, p.90), porém, o
professor é agente direto e próximo das famílias e crianças que freqüentam a creche-escola.
Com pais-cuidadores e professores utilizei a entrevista semi-estruturada, oportunizando,
assim, a co-construção do material que seria utilizado.
25
Dessa forma, trancei esses tênues fios e construm mais resistente que, como o fio de
Ariadne, acompanhou-me nesse labirinto de questões e serviu de guia para que pudesse
chegar a esse momento: compilar o material recolhido e iniciar a verdadeira luta contra o
minotauro.
1.1 Preparando a Jornada
Preparando-me para a jornada, visitei o Coordenador Regional do controle de DST-
Aids, a Coordenadora Regional de Educação, a Secretária Municipal de Educação e os
diretores das creches e escolas privadas, apresentando o projeto de pesquisa e solicitando
autorização para iniciar a pesquisa em suas instituições. (Anexo 1)
Gratificada pelo interesse por ela despertado e pelo apoio que me ofereceram, dei
inicio à elaboração dos documentos e do processo de seleção dos sujeitos que participariam
do trabalho.
Ao pensar na pesquisa que desejava desenvolver, voltei-me aos preceitos éticos da
minha profissão, a Medicina. Determina a Bioética, que toda pesquisa envolvendo seres
humanos seja antecedida do consentimento informado do sujeito a ser pesquisado (CLOTET,
2000).
A autorização da própria pessoa no que se refere à utilização de seu corpo, suas idéias
ou opiniões em pesquisa não é apenas doutrina legal, é um direito moral que, a meu ver, deve
ser respeitado. Para que uma pessoa esteja apta a consentir, é fundamental que tenha recebido,
de forma adequada, todas as informações necessárias sobre a investigação de que tomará
parte. Esse consentimento não está relacionado somente à capacidade legal de decisão,
compreende, também, o direito de decisão de uma criança, uma vez que, nesse trabalho, é
considerada sujeito de direito, capaz de decidir sobre sua participação.
26
Baseando-me nos princípios éticos gerais, procurei elaborar a pesquisa de forma a agir
com respeito, beneficência e justiça em relação a essa pessoa, objeto da pesquisa. A fim de
definir princípios, afirmamos que o respeito pela pessoa refere-se ao respeito por sua
autonomia, reconhecendo-lhe a capacidade de deliberar e atuar conforme suas escolhas
pessoais. O princípio da beneficência refere-se à obrigação ética de ter sempre em mente a
supremacia do interesse do paciente. O princípio da justiça refere-se à equanimidade dos
riscos e dos benefícios de uma pesquisa (PESSINI, 2000).
No presente trabalho, pesquisa envolvendo seres humanos, será entendida como
qualquer atividade investigatória, individual ou coletiva, que envolva o ser humano, direta ou
indiretamente, incluindo o manejo de informações ou materiais.
No Brasil, a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde (Anexo 2), é o
instrumento de referência na elaboração de investigações com seres humanos, pois seu texto
contempla os referenciais básicos da bioética, assegurando o direito à privacidade, à
confidencialidade, ao sigilo, à não-estigmatização, à proteção à liberdade de escolha e
determinação.
Preconiza a resolução que, em toda a pesquisa envolvendo seres humanos, o
investigador deve obter o consentimento pós-informação dos prováveis participantes,
assegurando ao sujeito da pesquisa o direito de obter cópia do “termo de consentimento livre e
esclarecido”, uma vez que o consentimento informado deriva do princípio de autonomia da
vontade após receber todas as informações que julgue necessárias (GOLDIN, 2002).
A Resolução 196/96 foi a referência para elaboração do documento que utilizei, uma
vez que valoriza a autonomia dos participantes. Assim sendo, pus-me à disposição para
27
esclarecer suas dúvidas sobre a pesquisa, buscando construir um vínculo de confiança e
respeito recíprocos.
Construí três documentos: um, destinado à pesquisa com os pais e-ou cuidadores,
outro a ser utilizado na entrevista com as crianças, um terceiro para a entrevista com os
professores (Anexos 3). Nos três documentos, privilegiei a importância da escola na vida das
crianças portadoras de HIV, buscando desvendar os diversos olhares sobre esta questão.
Mas, quem são os sujeitos dessa pesquisa? Foram determinados sujeitos da pesquisa as
crianças portadoras de HIV por transmissão vertical (transplacentária), seus pais e-ou
cuidadores, os professores de creches e de escolas da rede pública e privada.
O grupo de crianças foi selecionado entre aquelas portadoras de HIV por transmissão
vertical (transplacentária), cadastradas junto à Coordenadoria Regional de controle de DST-
Aids, da região pesquisada, até dezembro de 2004. Havia, no cadastro, 25 crianças portadoras
de HIV, de 0 a 12 anos, tendo sido selecionadas 16 delas de 02 a 12 anos, com diagnóstico já
confirmado.
O critério de inclusão utilizado determinou que a idade fosse superior a 02 anos, uma
vez que, com a terapêutica anti-retroviral, a partir do nascimento, a possibilidade de
soroconversão negativa é da ordem de até 67,5% dos casos até 02 anos de idade (BRASIL,
2004; 2004a). A idade de 12 anos foi utilizada como limite por ser a maior entre as crianças
cadastradas.
A partir da seleção, as crianças, seus pais e/ou cuidadores foram automaticamente
considerados sujeitos para a pesquisa. Uma vez que as crianças portadoras de HIV, por
transmissão vertical, têm aumentado sua sobrevida após a introdução da terapêutica anti-
retroviral, e conseguindo hoje a possibilidade de concluir o ensino fundamental completo, foi
28
feito um levantamento na cidade pesquisada, para que fosse estabelecido o número de
instituições a serem entrevistadas.
Entre as creches, haviam quatro da rede privada e dezenove da rede municipal; entre
as escolas com ensino fundamental completo, constavam quatro escolas da rede privada,
dezesseis da rede municipal e trinta e quatro da rede estadual. Foi, então, escolhido como
referencial, o número de quatro elementos para cada modalidade de instituição e para o
número de professores participantes em cada creche/escola.
As quatro instituições da rede privada foram automaticamente selecionadas, enquanto
as escolas da rede pública foram indicadas por sua coordenadoria regional ou secretaria
municipal entre as que ofereciam o curso fundamental completo. É importante salientar que a
escolha não teve relação com a matrícula de crianças portadoras ou não de HIV, nas referidas
instituições.
A partir da seleção das creches e escolas, foi feito contato com as respectivas direções,
sendo, então apresentado o projeto de pesquisa. Foi solicitado também, que a direção
convidasse os professores, encaminhando quatro que desejassem participar do trabalho. Foi
garantido às direções das instituições selecionadas e aos professores participantes, o sigilo em
relação à sua presença no projeto.
Reuniu-se, assim, um corpus para a investigação que constava de dezesseis
professores de cada modalidade de instituição, num total de vinte instituições e oitenta
professores participantes.
1.2 Iniciando a Jornada – da Coleta de Dados
Após a seleção, foi encaminhada a carta-convite aos pais e/ou cuidadores,
esclarecendo a intenção da pesquisa e a forma de contato para os interessados em participar.
29
Nessa carta, a pesquisadora já informava que, por questões éticas, se responsabilizaria pelo
custo do transporte até o local da entrevista, não havendo assim ônus para as famílias.
Procuraram a pesquisadora sete mães e uma avó, buscando informações sobre o
projeto. Nesse momento, foi entregue a cada uma delas um resumo do projeto de pesquisa a
ser desenvolvido, que esclarecia os objetivos e garantia-lhes o total sigilo com relação à sua
identidade e a de seus filhos/neto.
A escolha do local da entrevista ficou a critério das mães/avó, sendo que três
solicitaram que a pesquisa fosse realizada em suas residências e cinco optaram por
comparecer ao consultório da pesquisadora.
As entrevistas seguiram um roteiro semi-estruturado, buscando estabelecer um
diálogo solto, aberto, que oferecesse a essa cuidadora a possibilidade de se expressar com
liberdade. Ao longo delas, diversos outros tópicos foram trazidos, como questões pessoais e
familiares, que só enriqueceram esta experiência. Com o conteúdo das entrevistas transcrito,
as mães/avó assinaram o termo de consentimento para sua utilização.
As crianças foram trazidas pelas suas mães ao consultório, num segundo momento.
Foi solicitado a elas que aguardassem na sala de espera enquanto a pesquisadora realizava a
entrevista com a criança.
Antes de iniciar, foi-lhe esclarecido que essa entrevista fazia parte de uma pesquisa
cujo objetivo era analisar a importância da creche-escola em suas vidas. Ofereceu-se à criança
uma folha de papel cançon, tamanho A4 e uma caixa com gizes de cera de diversas cores, e
solicitou-se que desenhasse sua creche-escola, do que gostava nela ou não. Na medida em que
a criança realizava seu desenho, ia ‘relatando-contando’ os significados de seus traços. Nesse
momento eram introduzidas as questões previamente elaboradas.
30
Após transcritas as ‘falas’ das crianças, estas foram apresentadas às mães num
terceiro momento quando, então, assinaram um segundo termo de consentimento para a
utilização do material coletado. Nas entrevistas domiciliares, os procedimentos foram
semelhantes, porém, simultâneos. Tanto as mães/avó como as crianças foram identificadas
como “Caso”, seguido de número de “1 a 8”, respectivamente, salvaguardando sua identidade
e confidencialidade.
As entrevistas com os professores, foram iniciadas pelas creches privadas em
dezembro de 2004, uma vez que há, após esse período, uma redução no número de crianças
matriculadas, tendo em vista as férias escolares; por outro lado, eles estão mais disponíveis
para participar da pesquisa. Nas creches municipais, os contatos começaram a partir da
metade do mês de janeiro, devido à troca do governo municipal em janeiro de 2005 e natural
remanejamento nas coordenações das instituições indicadas. Nas escolas particulares e
públicas, tiveram início em fevereiro de 2005, no início do ano letivo. As instituições foram
denominadas pelas letras “A a H”, para as oito creches, e “I a U” para as onze escolas,
respectivamente.
A participação dos professores foi integral nas oito creches, demonstrando interesse e
desejo de dividir suas angústias, dúvidas, relatos ricos de experiências que só enriqueceram as
entrevistas.
Já a participação nas escolas trouxe muito o que pensar. Tanto nas municipais quanto
nas estaduais houve uma disponibilidade efetiva, observando-se interesse, angústia e
preocupação com relação ao tema da pesquisa.
As escolas particulares participaram parcialmente. Em duas delas isso deu-se
integralmente, com grande interesse e preocupação com o tema por parte dos professores. Em
uma terceira, somente um professor compareceu à entrevista, na data e horário combinados,
31
demonstrando profunda preocupação com o tema e com a ausência dos colegas. Nessa escola,
foi informado à pesquisadora, que os outros professores estariam impossibilitados de
comparecer naquela data. Ela, então, disponibilizou-se a retornar em qualquer dia ou horário
que atendesse às necessidades deles. Num segundo contato, para agendar a nova data, foi-lhe
informado que os professores haviam desistido de participar por “não terem interesse no
assunto”.
No caso da escola que não participou, foram feitos quatro contatos telefônicos após a
apresentação pessoal do projeto, no período de janeiro a abril de 2005, tendo sido reforçado o
convite e buscado o agendamento de uma data para a entrevista, entretanto sem sucesso.
Constatou-se que a realidade da aids ainda é tratada com reserva e muita resistência
por parte das escolas particulares, como se essa possibilidade não existisse no mundo em que
vivem. Essa negação à discussão, ao debate, reflete o preconceito existente na sociedade em
geral, silencioso, insidioso, que mina relacionamentos e alimenta representações.
Assim, participaram trinta e dois professores das creches, quarenta e um professores
das escolas, sendo trinta e dois das instituições públicas e nove das instituições privadas, num
total de setenta e três professores.
Gráfico 1 – Professores X Instituições Participantes
0
10
20
30
40
50
60
70
80
Total geral
cr. Particulares
cr. Municipais
esc. Municipal
esc. Estadual
esc. Particular
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M.A., 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
32
A jornada estava iniciada e muitas descobertas estavam por vir. Para chegar ao fim
dessa jornada, busquei fortalecer os fios que me apoiariam nessa caminhada até o minotauro.
Caso 8 :
- Esse sou eu...eu sou pequeno...essa é a mãe, ela é bem grande...esse é o meu dodói, na barriga....bem
aqui onde está o ‘bigo’(apontando para o seu umbigo).
- E o que é isso aqui?
- É a creche...
- E por que tu vais na creche?
- Vou prá brincar.
- E das coisas que tu fazes lá, o que mais gostas?
- De brincar, de ouvir estória...da comida...
- E do que tu não gostas?
- De tomar o remédio...dói a barriga...bem aqui onde está o meu dodói...aqui é o remédio...na creche...
- E com a prof., como é, podes conversar com ela?
- A tia é querida...faz ‘massage’... dou risada lá, porque a ‘tia’ faz palhaçada, ela é bem querida”.
33
CAPÍTULO II - A RESILIÊNCIA, A CRIANÇA E A AIDS
Caso 2 :
- Esta é a creche!
- O que é isso?
- A creche é que nem o mar do Nemo, todos os peixinhos vão prá brincar, e eu também...
- E por que tu vais na creche?
- Prá brincar e prá comer. Lá as tias me cuidam prá mãe trabalhar.
- Das coisas que tu fazes lá, o que tu mais gostas?
- De brincar e de filminho. A gente viu o filme do ‘Nemo’...ele não tem mãe e eu não tenho pai.....lá é
bom porque tem muita comida.
- E o que tem lá, que tu não gostas?
- De tomar o remédio, me dói a barriga e daí eu tenho que deitar.
- E por que tomas remédio?
- Eu tenho problema no coração...não sei o que é..mas dói a barriga quando tomo o remédio.
- E qual destes aqui é você?
- Eu sou essa aqui...sou diferente porque sou preta e doente!
- E tu conversas com a prof. sobre tudo que queres?
- Ela é bem querida, me ensina as coisas, cata o piolho, me dá doce fora de hora...só não quer que eu
corra pra não cair senão eu me machuco...
- E o que isso representa prá ti?
- É bom eu sei que a tia gosta de mim! Eu queria ser o ‘Nemo’ pra poder encontrar o pai...eu perdi o
pai, ele a mãe...mas a mãe dele foi o tubarão que comeu...o meu pai foi de doença...que nem vai ser
com a mãe e comigo..isso é ruim...não fica bom...
34
Somos seres de relação e nascemos para nos relacionar. Entre todos mamíferos, os
seres humanos são os que necessitam maiores cuidados para sua sobrevivência e pelo maior
tempo. Nascemos aptos e dispostos à interação, nos construindo a partir da relação com o
outro em nossas vidas.
Essas relações se dão em variadas e complexas ‘redes’, ‘teias’, em que se articulam
significações de várias origens. Relação e significação: uma constante na construção de
vínculos que possibilitam ao ser humano perceber-se e ser percebido pelo grupo a que
pertence. Saber-se percebido e aceito é a base para a construção de um sentimento de mais-
valia, de um pertencimento que é fundante na construção de uma personalidade resiliente.
Charles Darwin, em sua obra A expressão das emoções no homem e nos animais,
alertava para a importância da relação mãe-bebê, afirmando que
Os movimentos expressivos do rosto e do corpo, qualquer que seja sua
origem, são por si mesmos muito importantes para o nosso bem-estar. Eles são o
primeiro meio de comunicação entre a mãe e seu bebê; sorrindo, ela encoraja seu
filho quando está no bom caminho; senão, ela franze o semblante em sinal de
desaprovação (2000, p.339-340).
Enfatiza que as emoções são universais, assim como estão presentes em outros
animais, salientando o quanto a convivência social influi e gera regras de exposição e
sentimento, criando sintonia nas relações que estabelecem respostas do outro, despertando
emoções.
Nós facilmente percebemos simpatia nos outros por sua expressão; nossos
sofrimentos são assim mitigados e os prazeres aumentados, o que reforça um
sentimento mútuo positivo. Os movimentos expressivos conferem vivacidade e
energia às nossas palavras (ibid,, p.340).
Em 1950, a pedido da Organização Mundial da Saúde – OMS, o psiquiatra John
Bolwby, promoveu um amplo estudo sobre as necessidades das crianças vítimas da orfandade
35
gerada pela II Grande Guerra que resultou em sua brilhante obra Cuidados maternos e saúde
mental. Nela, concluiu que possuímos a disposão inata para a vinculação, e que esta
acontece a partir das primeiras interações, das primeiras relações que estabelecemos com
nossos cuidadores e com o meio em que vivemos e acredita ser essencial à saúde mental “que
o bebê e a criança pequena tenham a vivência de uma relação calorosa, íntima e contínua com
a mãe [...] ou substituta permanente [...] na qual ambos encontrem satisfação e prazer (1981,
p.13).
Esses vínculos, esses laços, são designados de apego. A maneira como nos apegamos,
como lidamos com a separação e a perda nos levará à construção de um apego seguro,
organizado, conferindo ao bebê a certeza de que pode confiar nos seus cuidadores; ou,
inseguro, desorganizado, quando este apego é fruto de relações primárias não duradouras,
inseguras, com cuidadores instáveis emocionalmente. Refere-se ao conceito de resiliência do
ego como a capacidade de uma pessoa de modificar seu nível de controle de acordo com as
circunstâncias, apresentando facilidade em adaptar-se às situações que se modificam
(BOWLBY, 1990; 1998).
As relações da infância preparam o caminho para o desenvolvimento emocional
posterior. As experiências emocionais, positivas ou negativas, não marcam fisicamente o
indivíduo,
Mas pode-se dizer que uma agressão provoca uma alteração em acordo com
o sentido na qual ela é considerada no nosso passado e no nosso meio. Cada um de
nós, tendo uma história e um contexto familiar e social diferente, face a uma mesma
agressão, tem reações emocionais diferentes. [...] A clivagem da personalidade é em
grande parte atribuída às reações do meio. (tradução livre) (CYRULNIK, 1999,
p.127)
11
.
11
“Mais on peut dire qu’une aggression provoque une altéracion selon le sens qu’elle prend dans notre passé et
notre alentour. Chacun d’entre nous, ayant une histoire et un contexte familial et social different, face á une
même aggression éprouve un sentiment different. […] Le clivage de la personnalité est en grande partie
attribuale aux réactions de l’entourage” (CYRULNIK, 1999, p.127).
36
Estudando a importância do papel dos pais no desenvolvimento do bebê, Brazelton
acredita que a essência desse papel repousa no intercâmbio, “[...] no feedback intensamente
gratificante que se pode estabelecer entre o bebê e si mesmo”, sendo o bebê um indivíduo
surpreendentemente bem organizado quando do nascimento, que já se comunica, antes mesmo
de nascer, possuindo a capacidade de discernir entre diferentes sons, pronto para enviar sinais
a seus ambientes quando as coisas estão bem, ou não (1988, p.13).
Essa relação de apego, que se forma a partir das primeiras relações, é a base da
construção de mecanismos de proteção – resiliência – que, numa trajetória de risco, acabam
por mudar o curso de vida da pessoa para um final feliz. O desenvolvimento destas
capacidades passa através da mobilização e da ativação das suas capacidades de ser/ estar, de
ter e poder (GROTBERG, 1995), constituindo-se o sujeito numa relação que envolve o social
e o individual, estabelecendo-se, assim, a distinção entre o eu e o outro progressivamente,
através das interações sociais. Dessa forma, as características de um determinado ambiente
evocam reações, emoções nas pessoas que nele interagem, e suas reações produzem
modificações nesse meio, a partir de seus interesses e objetivos, num dado momento da
história.
Para Dolle e Bellano,
a adaptação exprime a vida, ela própria interação ativa e permanente entre sujeito e
o seu meio, ao qual se adapta, [...] não tendo o sujeito a opção de escolha do seu
meio nem das condições de sua vida mas, podendo ele decidir ente agir ou não,[...]
o que significa que não é o meio que o molda, mas ele próprio se constrói através
da sua atividade, num meio que é o seu (1990, p.16).
Isso nos remete à necessidade de compreender os mecanismos através do quais uma criança
pode aprender e construir seu sujeito, apesar da violência a que seja exposta ao longo de sua
vida.
37
O desenvolvimento de uma capacidade de confiar, de acreditar em é fundamental no
processo de construção da resiliência. Winnicott nos afirma que,
atos de confiabilidade humana estabelecem uma comunicação muito antes que o
discurso signifique algo – o modo como a mãe olha quando se dirige à criança, o
tom e o som de sua voz, tudo isso é comunicado muito antes que se compreenda o
discurso (1982, p.115).
Essa confiança e percepção de mais-valia para o grupo a que pertence é chamada de
auto-estima. Nos últimos anos, houve um aumento no reconhecimento da importância que o
papel da auto-estima desempenha no desenvolvimento da criança. A motivação e o
desempenho na escola, a qualidade dos vínculos e das relações estabelecidas no grupo a que
pertence, a capacidade de resistir e superar as adversidades e os fracassos são influenciados
pelo modo como a criança se sente e pensa acerca dela mesma e como ela encara suas
competências.
Utilizando a definição desenvolvida pela California Task Force to Promove Self-
esteem and personal and social responsability
12
, auto-estima refere-se a “[...] ter o caráter de
poder contar comigo mesmo e de ter responsabilidade para com os outros”, logo,
compreendemos a importância de oportunizarmos às crianças, desde a mais tenra idade,
experiências de relacionamento positivos, amorosos, incluindo como ingrediente básico para a
auto-estima o respeito e o cuidado que demonstramos com os outros.
Buscando compreender o termo resiliência, verificamos que ele deriva do latim
resilire, “saltar para trás, retornar”, “soltar-se, escapulir”, sendo resiliência a “[...] propriedade
pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão
causadora duma deformação elástica” (FERREIRA, 1986, p.1493).
12
California State Department of Education: Toward a state of esteem: The final report of task force to promote
self-esteem and personal and social responsibility. Sacramento, State Departament of Education, 1990.
38
A utilização desse conceito é prática regular na Física e na Engenharia, sendo Thomas
Young, em 1806, seu introdutor através do conceito de módulo de elasticidade longitudinal,
analisando a aplicação de variadas tensões sobre barras, buscando a relação entre a força que
era aplicada num corpo e a deformação que essa força produzia. A partir destas pesquisas, o
conceito foi-se definindo como a capacidade limite de suportar uma pressão (trauma) sem
sofrer deformações permanentes, a forma como um corpo pode armazenar, absorver energia
sem sofrer deformação plástica ou permanente (YUNES e SZYMANSKI, 2001).
As primeiras pesquisas desenvolvidas buscaram compreender que fatores diferenciam
a resposta das adversidades que influenciam no processo de adaptação das crianças ao meio
em que vivem.
Um dos primeiros e mais importantes trabalhos foi desenvolvido na ilha de Kauai
(Havaí), onde essa pesquisa acompanhou e analisou, por trinta e dois anos, um grupo de
quinhentas e cinco pessoas que viviam em condições de vida desfavoráveis, expostas a
diversas situações de risco. Emmy Werner e Ruth Smith (1982) assinalaram a presença de
apoio irrestrito de algum adulto significativo, familiar ou não às crianças, ao qual atribuíram a
responsabilidade pela evolução exitosa no processo de desenvolvimento da auto-estima e da
autonomia desses indivíduos.
Michel Rutter, um dos pioneiros desse estudo no campo da Psicologia, define a
resiliência como um conjunto de processos sociais e pessoais, numa variação individual, que
possibilitam ter uma vida sadia em resposta ao risco de viver em um ambiente insano, estando
em jogo os mecanismos de proteção, não como atributos com que as crianças nascem ou
adquirem, mas como aquela dinâmica que se desenvolve ao longo da vida e que permite ao
indivíduo sair fortalecido da adversidade (1992).
39
Preocupados em adequar o conceito de resiliência como um operador para trabalhar
preventivamente sobre os efeitos deterioradores da pobreza, Kotliarenco e seus colaboradores,
em brilhante trabalho realizado no Chile, utilizam o conceito de resiliência como uma
habilidade para suportar a adversidade, adaptar-se, recuperar-se e ascender a uma vida
produtiva (1996).
Diversos conceitos de resiliência foram, e estão sendo desenvolvidos. Kotliarenco e
colaboradores do CEANIM
13
, no Chile, realizaram importante revisão daqueles elaborados
por diversos grupos de pesquisadores, sintetizando-os como a seguir:
Quadro 1 – Síntese dos conceitos de resiliência – segundo Kotliarenco e cols., 1996.
ICCB/B
ICE, 1994;
Habilidade para sair da adversidade, adaptar-se, recuperar-se e
ascender a uma vida significativa e produtiva.
Luthar e Zingler, 1991; Masten
e Gamerzy, 1985; Werner e
Smith, 1982; 1992;
História pessoal de adaptações exitosas quando exposto a fatores
b
iológicos de risco ou eventos estressantes na vida, relacionada à
expectativa de continuar com uma baixa susceptibilidade a futuros
estressores.
Lösel Blieneser e Köferl, em
Brambing e cols., 1989;
Enfrentamento efetivo diante de situações severamente estressantes e
acumulativos.
Grotberg, 1995 Capacidade humana universal para fazer frente às adversidades da
vida, supera-las ou ser transformado por ela, como parte do processo
evolutivo que deve ser promovido desde a infância.
Vanistendael, 1994 A resiliência distingue dois componentes: a capacidade de proteger a
integridade de pessoas sob pressão e a capacidade de construir um
estilo positivo de vida, que confira à pessoa ou à comunidade uma
maneira de enfrentar as dificuldades de forma adequada e socialmente
aceita.
Rutter, 1992 A resiliência se caracteriza por um conjunto de processos sociais e
intrapsíquicos que possibilitam ter uma vida sadia, mesmo vivendo em
meio insano, que se constroem ao longo do tempo, não podendo ser
pensado como um atributo inato nem que seja adquirido durante o
processo de desenvolvimento, mas, sim que se trata de um processo
interativo entre a criança e o seu meio.
Osborn, 1993 Conceito genérico que se refere a uma ampla gama de fatores de risco
e os resultados de competência, como conjunção de fatores ambientais,
e um tipo de habilidade cognitiva que têm as crianças quando são
pequenas.
Milgram e Palti, 1993 Característica das crianças que se enfrentam de forma positiva (cope
well) apesar dos estressores ambientais a que são submetidos nos
primeiros anos de vida.
13
Material extraído de Estado del arte en resiliência, julho, 1996. Kotliarenco, M.A.; Cáceres, I.; Fontecilla, M.
CEANIM – Centro de Estudios y Atención del Niño y la Mujer. (tradução livre).
40
Apesar das diversas definições, alguns conceitos que foram relacionados à resiliência,
como seus precursores, ainda são utilizados de forma errônea. A idéia da criança ‘forte,
robusta’ ou ‘invulnerável’ é errada, pois, como afirma Rutter (1992), não há resistência
absoluta, nem estável no tempo, variando de acordo com as diversas etapas do
desenvolvimento da criança e com as variações na qualidade do estímulo recebido.
Diversos conceitos foram relacionados ao de resiliência no sentido de ampliar sua
utilização, tais como: risco, vulnerabilidade e invulnerabilidade, estresse, coping, competência
e proteção.
1 - Risco - relaciona-se à alta probabilidade de prejuízo em função de um
determinado evento na vida do indivíduo, não como uma variável em si, mas que atua como
processo (Yunes e cols., 2001). Por ser um conceito de grande plasticidade, Rutter nos alerta
que a resiliência é o processo final de processos de proteção que encorajam o indivíduo a se
engajar na situação de risco efetivamente (1992).
2 - Vulnerabilidade X invulnerabilidade – ser vulnerável diz respeito a uma
predisposição individual para o desenvolvimento de psicopatologias ou de comportamentos
ineficazes em situação de crise. Rutter afirma que o conceito de invulnerabilidade, associado
àquelas crianças que parecem “fortes”, que não cedem às pressões do estresse, é equivocado,
pois não há resistência absoluta ao estresse. Logo, ela é relativa, variando no tempo de acordo
com as diversas etapas infantis do desenvolvimento à qualidade dos estímulos recebidos
(ibid).
3 - Estresse – é utilizado para definir situões de tensão na vida do indivíduo, de
caráter agudo ou crônico, que induzem a uma alteração do estado de equilíbrio
biopsicossocial. Selye, o introdutor desse termo o define como “uma resposta específica do
corpo a uma exigência feita a ele” (1982, p.7-20).
41
4 - Coping – refere-se a um conjunto de esforços cognitivos e comportamentais,
utilizados com o objetivo de lidar com demandas específicas, internas ou externas, que
surgem em situações de estresse, “direcionados ao presente com uma função de
reinterpretação do mal acontecido ou mesmo tolerância à situação” (Pereira, 2001, p.80).
Refere-se, assim, à capacidade de utilizar estratégias de adaptação, voltadas para o futuro
“onde assumir riscos sugere a confiança de obter êxito” (ibid, ibiddem, p.85).
5 - Competência – a utilização desse conceito relaciona-se às habilidades mínimas que
necessita uma criança para se desenvolver harmoniosamente no ambiente em que vive.
Kotliarenco afirma que este modelo de análise individual permite identificar “[...] múltiplos
domínios de funcionamento competente em “ [...] cada uno de los niños [within individual
children]” (grifos da autora) (1996, p.9). Ressalva importante deve ser feita, uma vez que as
exigências de um determinado grupo social podem, através dos seus discursos, reforçar
normas de conduta pré-determinadas, devendo-se ter o cuidado de não patologizar aqueles
que não se conformam a elas.
6 - Fatores de proteção – são aqueles que influenciam positivamente, melhorando a
resposta a uma situação de estresse. Estes atuam através de três mecanismos básicos: o
compensatório (fatores estressantes se somam a características individuais, promovendo uma
resposta satisfatória); o de desafio (quando o estresse atua como um estímulo à competência)
e de imunidade (quando há uma relação condicional que modula o impacto do estresse na
qualidade da adaptação) (WERNER & SMITH, 1982). Para Rutter, os fatores de proteção
estão diretamente relacionados aos processos de interação, mesmo na emergência de traços
geneticamente influenciados, pois é na relação com os seus e o ambiente em que se
desenvolve que o indivíduo se constrói. Estes fatores podem ser classificados em proximais e
distais, compreendendo-os como extremos de uma cadeia de fatores que podem intervir na
dinâmica da construção da resiliência (1992).
42
Yunes & Symanski chamam a atenção para a interrelação dos conceitos anteriores na
construção da resiliência , alertando para o risco de supor que
o indivíduo deva possuir ‘algo interno’ para ser considerado resiliente, e caso não o
tenha poderá ser categorizado como ‘não-resiliente’, o que possivelmente viria a ser
determinante na construção de sua identidade [...] Essa visão pode contribuir apenas
para manter o desequilíbrio social vigente e ‘culpar a vítima’ (2001, p.41-42).
Os atributos considerados como fontes de resiliência e utilizados como base para o
Projeto Internacional de resiliência (PIR) são determinados, por Edith Grotberg (1995), como:
a) “eu tenho” – meus apoios, pessoas em quem confio e que não me abandonam, que
me orientam e estimulam a confiar em mim, que me cuidam quando estou doente e
me protegem do perigo; meu suporte social;
b) “eu sou/estou” – uma pessoa valorosa para aqueles com quem convivo, sou capaz
de participar de minha comunidade, ser respeitada e valorizada pelo que faço;
seguro da proteção que meu grupo me proporciona, confiante no apoio que
receberei se estiver triste ou em situação de risco; possuo esta força interior;
c)
“eu posso” – confiar e contar aos outros sobre a minha vida e fatos que me
angustiam ou causam dúvidas, construir alternativas que me ofereçam soluções
para meus problemas e dificuldades; possuo as habilidades necessárias.
Wolin & Wolin (1993) apresentam, no conceito de “Mandala da resiliência”, as
características pessoais que atuam como facilitadores na construção da resiliência:
a) introspecção – arte de questionar-se e responder com honestidade às suas próprias
questões;
b) independência – capacidade de estabelecer limites entre si e o meio/grupos adversos;
refere-se à capacidade de estabelecer uma distância física e emocional, mínima
necessária, sem colocar-se em situação de isolamento;
43
c) capacidade de relacionar-se - habilidade de estabelecer laços de vinculação e
intimidade com novas pessoas, buscando equilibrar sua própria necessidade de afeto e
simpatia, a partir da atitude de relacionar-se;
d) iniciativa – prazer de pôr-se à prova e exigir-se resultados positivos, desenvolvendo
controle progressivo sobre eles;
e) humor e criatividade – capacidade de encontrar o cômico na tragédia dos fatos
vividos; Vanistendael (2000) assinala a importância do humor como uma habilidade
para resistir a situações adversas, brincando com a dor e buscando com criatividade
caminhos que possibilitem saídas originais que sustentem a subjetividade, o laço
social e a identidade coletiva (MELLILO & OJEDA, 2005), utilizando a fantasia
como instrumento para reverter a solidão, o medo, a raiva e a desesperança;
f) moralidade – desejo de uma vida pessoal satisfatória, de bem-estar consigo e com o
grupo a que pertence, comprometendo-se com os valores daquele grupo.
Introspecção Independência
Moralidade Iniciativa
EU
Humor Criatividade
Capacidade de relacionar-se
Observando crianças e buscando compreender “onde nos surpreendemos de encontrar
crianças que triunfam de suas dores, suas infelicidades”, Boris Cyrulnik (1999) refere-se à dor
44
no sentido de merveilleux malheur , aquela dor que alavanca respostas pessoais que levam o
indivíduo a superar o momento doloroso e ser transformado positivamente por ele. “Lê prix
de la résilience, c’est bien l’oxymoron” (O preço da resiliência, é o oxímoro – tradução livre)
(p.21).
A utilização da figura retórica do ‘oxímoro’ representa a possibilidade de relação
positiva entre sentimentos ou situações antagônicas, paradoxais, sendo a pedra-chave na
construção da resiliência.
O oxímoro descreve uma patologia do corte do vínculo que deverá ser
refeito, uma vez que a ambivalência designa uma patologia de construção do
vínculo; [...] a resiliência define a saída para aqueles que, tendo recebido o golpe, o
superam. O oxímoro descreve o mundo íntimo desses vencedores feridos (tradução
livre) (CYRULNIK, 1999, p.23-24)
14
.
Em situações de risco ou extremas, a ambivalência dos sentimentos é presente. A
experiência da aids pode ser entendida como uma dessas situações limite pela representação
construída pela sociedade, pois a aids é a primeira grande epidemia que ocorre na era dos
direitos humanos.
Para Pessini e Barchifontaine (1997), a aids transformou-se na síndrome do medo do
outro, do medo do castigo, da marginalização e da exclusão a que serão submetidos, uma vez
infectados. A extraordinária divulgação das campanhas de prevenção, se por um lado é
instrumento de conscientização, por outro cria um ambiente estigmatizante ainda mais
preocupante, pois condenam milhares à morte e tornam a síndrome do preconceito mais grave
de ser superada que a própria aids.
Esta identidade ‘aidética’ localiza, adjetiva, condena, levando muitos pacientes à
utilização do segredo como estratégia de vida.
14
“L’oxymoron décrit une pathologie de la coupure du lien qu’il faudra renouer alors que l’ambivalence désigne
une pathologie du tissage du lien; […] La résilience définit le ressort de ceux qui, ayant reçu le coup, ont pu le
dépasser. L’oymoron décrit le monde intime de ces vainquers blessés” (CYRUNI1K, 1999, p.23-24).
45
Porém, para Cyrulnik,
esta identidade é uma identidade secreta, marginal, indizível que provoca a
clivagem da personalidade: uma parte transparente social e, freqüentemente, uma
alegria que esconde uma parte negra, secreta e vergonhosa (tradução livre)
(CYRULNIK, 1999, p.131-132)
15
.
O tangenciamento de suas vidas pela realidade da infecção e da morte se articula na
sociedade com a crença da necessidade do afastamento e, até da exclusão social, criando uma
representação de si que atravessa a história do sujeito, levando a uma auto-exclusão, negando
suas verdades pelo medo da rejeição e do abandono.
Essa dor, essa fatalidade pode representar a alavanca para o despertar de forças
comunitárias de solidariedade capazes de promover e renovar pré-conceitos, re-construindo
novos ‘modos-de-ver-e-de-ser’ no grupo social. Os laços afetivos de sociabilidade criam a
possibilidade de enfrentamento desta fragilidade da vida, tornando-os fortes para enfrentá-la.
Bowlby considera que as pessoas podem ser muito mais generosas e fortes quando
encontram-se apoiadas por seus pares. Afirma que esses apoios produzem em cada um de nós
efeitos extremamente positivos, alavancando capacidades que não supomos possuir (1998).
Entendendo a escola como local de coletividade, de convivência, de conversas, de
aprendizado de uma ética de solidariedade, compreensão e respeito, Melillo e Ojeda (2005)
partem da aplicação dos pilares da resiliência individual para um conceito de resiliência
coletiva e estabelecem quatro pilares fundamentais nessa construção. São eles:
a) auto-estima coletiva – que seria uma atitude ou sentimento de valor ou orgulho
pelo lugar em que se vive, com o reconhecimento e a valorização de suas
qualidades;
15
“[...] cette identité secrète, maginale, indicible qui provoque le clivage de la personnalitè: une partie
transpaterte sociale e souvnt gaie masque une partie moire, secrète et honteuse.” (CYRUNLIK, 1999, p.131-
132).
46
b) identidade cultural – entendida como a persistência do ser social em sua unidade
e identidade nas mudanças e circunstâncias diversas, com a incorporação de
hábitos, costumes que o caracterizam como pertencendo àquele grupo social;
c) humor social – a capacidade que um povo tem de rir de sua tragédia, de elaborar
críticas bem-humoradas a situações, hábitos ou práticas negativas.
d) honestidade coletiva ou estatal – a existência de uma consciência coletiva que
rejeita e condena a desonestidade, a corrupção, valorizando a postura ética e
honesta por parte dos dirigentes nos diversos níveis.
Referem, ainda, os autores que diversos fatores atuam dificultando, senão impedindo,
o desenvolvimento desses pilares considerados fundamentais. Entre esses ‘anti-pilares’ citam:
a) malinchismo – a presença de uma admiração excessiva por tudo que é estrangeiro,
numa atitude de negação dos valores que constroem a identidade cultural;
b) fatalismo – postura passiva frente às adversidades como fruto da desesperança ou
de crenças fundamentalistas que desestimulam a busca de soluções;
c) autoritarismo – centralização das decisões que anula a capacidade participativa das
comunidades;
d) corrupção – desvio de recursos e atenção aos interesses coletivos para interesses
privados dos governantes e funcionários públicos, comprometendo as
possibilidades de ‘acreditar em’, levando à desesperança e à passividade.
Pertencer a uma escola que se valoriza e valoriza a presença e participação de suas
crianças, é uma possibilidade de promoção da resiliência nessas crianças, no sentido de
enfrentarem as adversidades buscando ir em frente, seguir na vida apesar da dor. A vida em
comunidade é um campo privilegiado para a construção da resilência coletiva se for
47
concebida como maneira de promover a solidariedade, sendo solidariedade entendida como
“o processo sempre inacabado, de capacitação para a reciprocidade através da construção de
sujeitos que a exercitem”, possibilitando “construir o outro numa rede intersubjectiva de
reciprocidades” (SANTOS, 1991, p.30-37).
Essa possibilidade de se refazer, de reproduzir e evoluir no sentido de buscar novos
‘modos-de-ser’ que permitam a adaptação como processo contínuo de autocriação,
compensam as perturbações e as deformações, sem perder suas características, e definem um
padrão autopoiético de interações (MATURANA e VARELA, 1997).
Mesmo não havendo pesquisado sobre as interações sociais humanas, Maturana e
Varela revitalizam conceitos como a emoção, que funda o social, e nos afirmam que o que
torna a convivência possível é o amor. Definem a possibilidade de relação na capacidade de
conversar, na experiência de ampliar nossa capacidade de ver o outro como igual e aceitá-lo
com suas diferenças junto a nós como “o fundamento biológico do fenômeno social” (2004,
p.269).
Na busca de desenvolvermos essas relações, é fundamental entender que somos seres
relacionais e a emoção é algo inerente a nós. Torna-se necessário combater o “analfabetismo
emocional”, considerando que, se não intervirmos no momento adequado, deixando ao acaso
a aprendizagem de lições emocionais, perdemos a oportunidade de proporcionar às crianças o
cultivo de um repertório emocional saudável (GOLEMAN, 1995).
O enfoque da resiliência apresenta-se como a possibilidade para uma mudança de
paradigmas, “reafirmando o humano como aquele capaz de superar adversidades e situações
potencialmente traumáticas” (JUNQUEIRA e DESLANDES, 2003, p.233), a partir do
48
estabelecimento de vínculos de confiança, que o tornem flexíveis sem perder sua forma,
resistentes sem endurecer na Verdade, resilientes.
Passar do modelo médico-educacional tradicional, em que a doença, a fraqueza, é
irreversível, a outro, em que a participação de todos do grupo, é essencial, relativizando
aprendizados, conhecimentos e possibilitando a experiência de um ‘aprendizado-de-viver’.
Como diz Canguilhem, “A vida de qualquer ser vivo, mesmo que seja uma ameba, não
reconhece as categorias de saúde e doença, a não ser no plano da experiência, que é, em
primeiro lugar, provação no sentido afetivo do termo e não no plano da ciência” (2002,
p.160), afirmando a vida, na presença ou ausência de doença, como possibilidade de saúde;
saúde como “uma maneira de abordar a existência com uma sensação não apenas de
possuidor ou portador, mas também, se necessário, de criador de valor, instaurador de normas
vitais” (ibid, p.163), utilizando a dor como adubo, metamorfoseando o sofrimento em obra de
arte, na vida.
Arte de recusar o que fizeram de nós, num exercício de re-construir uma nova relação,
uma nova ‘re-presentação’ do prazer da vida e do viver, modificando a moral instituída,
criando sua estética de existência (FOUCAULT, 2002), criando ‘linhas de fuga’ que
permitam escapar do controle social, que instituam novas possibilidades, criando, explorando,
experimentando um novo modo-de-ser-e-de-existir, escapando, opondo resistência contra uma
situação de apagamento da possibilidade de ser-eu, resistindo aos discursos hegemônicos e à
exclusão que a aids determina a seus portadores. Esta possibilidade de emergir da dor por
linhas de fuga, vínculos acessórios que possibilitam refazer o vínculo que foi rompido,
transforma a escola num local de resistência, de luta pela liberdade de ser, um local de
excelência na promoção da resiliência.
49
Caso 3 :
- Esse é o ‘ X’ (nome do irmão não infectado), meu irmão bonito...e esse é o carro de bombeiro que eu
brinco...ele deixa... Este é o colégio... tem brinquedinhos, carrinho, bebezinho, que eu gosto mais de
brincar...
- E de que tu brincas no colégio?
- De médico, digo que é prá tomar os remédios pra ficar forte...que nem a ‘Y’ (irmã não infectada)...
- E para que tu vais no colégio?
- Prá brincar, prá mãe trabalhar...
- E das coisas que tu fazes lá, o que tu mais gostas?
- Da comida, é bom... as crianças prá brincar, a estória que a prof. conta...
- E do que tu não gostas?
- De tomar o remédio, eu fico enjoada...a cabeça dói e daí, não posso brincar, tenho que deitar...Essa é a
bolsa dos remédios...eu tomo assim (mostrando a mão direita aberta)
- E com a prof., tu podes conversar o que queres?
- A tia diz ‘Oi’...e conta estória, eu gosto de estória...
- E o que isso representa para ti?
- É bom, ela cuida de mim prá mãe trabalhar, me ensina as coisas...escovar os dentes, rezar, as
letras...ela é bem querida.
50
CAPÍTULO III - A INFÂNCIA DO SEGREDO - da existência à sobrevivência
Caso 7 :
- Esta é a quadra onde jogamos bola, eu sou este sentado...isso é o meu boné...
- E tu achas maneiro, usar boné?
- É prá não tomar sol na cabeça...a mãe é que manda...
- E por que tu vais na escola?
- Vou prá brincar e prá mãe trabalhar.
- E estes aqui?
- São os meus colegas que vão jogar bola.
- E tu não vais jogar?
- Não posso jogar prá não me machucar...não posso correr.
- E por que não podes correr?
- A mãe disse que não posso correr porque tenho problema no sangue, daí se eu me cortar, vai dar
confusão...eu nem sei, mas ela não quer que eu fale prá ninguém...
- E como fica isso para ti?
- É ruim porque o que eu gosto mesmo é de correr e jogar bola com os outros meninos, mas não posso...
- E com a prof. podes conversar com ela sobre as tuas coisas?
- A prof. é legal, ela fala bastante com a gente, cuida, explica...
- E o que isso representa para ti?
- Eu queria que ela me explicasse o que eu tenho...mas a mãe não deixa falar...é ruim!
51
Pensar na infância nos parece algo corriqueiro e familiar. As questões relacionadas à
infância são alvo de debates e lutas por garantias que, ao longo do tempo, transformaram a
criança em prioridade. Prioridade de atenção, prioridade de direitos, prioridade de existência.
Mas não foi sempre assim.
Por muito tempo, a criança foi vista como algo passageiro, como um ser em
construção, logo, inacabado. Inacabado, por isso, in-fans, isento de voz, de desejo, de palavra.
Por não ter a possibilidade de decidir sobre seu destino, a criança foi transformada em objeto
a ser construído por aqueles que, pretensamente, teriam a responsabilidade, o dever e o direito
de decidir sobre sua vida – os adultos.
Sarmento e Pinto afirmam que
crianças existiram sempre, desde o primeiro ser humano, e a infância como
construção social existe desde os séculos XVII e XVIII – a propósito da qual se
construiu um conjunto de representações sociais e de crenças para a qual se
estruturaram dispositivos de socialização e controlo que a instituíram como
categoria social própria - existe desde os séculos XVII e XVIII. (1997, p. 11)
Mas o que é ser criança? Se buscarmos a definição da palavra criança, veremos que
Ferreira a define como “ser humano de pouca idade, menino ou menina; párvulo; pessoa
ingênua, infantil” (1986, p.498). Se continuarmos nossa busca, párvulo significa “pequenino;
limitado; parvo, tolo, idiota” (ibid, p. 1275). A partir destas definições, é fácil compreender a
origem da palavra infantil que deriva de infância e significa
o período de crescimento no ser humano, que vai do nascimento até a puberdade
[...]extremamente dinâmico e rico, no qual o crescimento se faz,
concomitantemente, em todos os domínios, e que, segundo os caracteres
anatômicos, fisiológicos e psíquicos, se divide em três estágios: primeira infância,
de zero a três anos, segunda infância, de três a sete anos; e terceira infância, de sete
anos até a puberdade (ibid, p. 942) .
52
Ora, ser criança é ser pequeno, limitado, tolo, ingênuo, incapaz de ser o dono de sua
voz, in-fantil. Por ser incapaz de responsabilizar-se por sua voz, muitos outros o fazem, como
a pediatria, a pedagogia, todas as áreas do conhecimento que inspiram modelos de ‘ser-
criança’, moldes de ‘ser-adulto’. O bebê humano é, na natureza, aquele que nasce com um dos
maiores graus de dependência de cuidados, em face da sua imaturidade e imperícia no
processo de adaptação à vida.
Em pesquisa realizada no Children’s Hospital Medical Center – Boston, Brazelton e
seus colaboradores observaram que
o bebê é um indivíduo surpreendentemente bem organizado quando do nascimento,
pronto para enviar sinais a seu ambiente, quando as coisas estão indo bem e quando
não. À medida que são cuidados e recebem respostas de quem os cuida, os bebês
obtém um controle de suas reações, que lhes falta, dando-lhes uma base, a partir da
qual eles, por sua vez, podem participar e responder aos eventos importantes em
seu ambiente (1988, p.13).
Logo, as relações, as práticas sociais e o desenvolvimento humano só podem ser
pensados como sendo construídos na interrelação da biologia e da cultura, conferindo a cada
criança um senso de competência e pertencimento à espécie e a este grupo social. Na
construção dessas relações, nasce um pai, uma mãe, enfim, toda uma família que constitui o
primeiro grupo social a que essa criança irá pertencer e onde, dialogicamente, irá atuar,
transformando seus parceiros e por eles sendo transformada (BRAZELTON,1994).
Nessa relação dialógica, ele transforma e é transformado por seus parceiros. Estas
transformações são diretamente influenciadas por saberes e verdades que controlam e
contornam os indivíduos de um determinado grupo social; verdades como “o conjunto de
procedimentos regulado para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento
dos enunciados” (FOUCAULT, 2004, p.14), numa microfísica do poder que atua no coletivo
53
a partir do individual, que inventa infâncias “ao mesmo tempo em que subjetiva os infantis”
(COSTA, 2004, p.3), a partir de diversos discursos que foram sendo construídos ao longo da
história. A maneira como as pessoas agem está diretamente relacionada à maneira como
pensam. Essa maneira de pensar, claro, é construída a partir de verdades que são transmitidas
através da tradição e educação.
Na construção desse sujeito-criança, diversos discursos foram sendo propostos ao
longo da história, transformando a criança. Esta sempre existiu, isso nós sabemos, não há
como se chegar a um ser humano adulto, sem ser criança. Mas compreender se e quando a
infância foi instituída nos reporta a diversos autores que, há muito, procuram compreender
como e o que esses discursos sobre a infância produzem em termos de mecanismos de poder,
vontade de saber e variadas formas de subjetivação.
Na Antigüidade, o regime patriarcal era o domínio. O pai tinha poder absoluto,
cabendo a ele julgar, punir e, inclusive, matar. Na Grécia, era natural que se eliminassem as
crianças nascidas com algumas deformidades físicas. A constituição espartana, elaborada por
Licurgo, determinava que a mãe espartana não só abandonasse seu bebê de baixo peso, ou
considerado fraco pelos anciãos, como o lançasse ao precipício de Taygetos (THOMSON,
2002). Em Roma, a Lei das XII Tábuas autorizava a morte de infantes nascidos disformes.
Para Seutônio, historiador romano, abandonar os filhos era uma questão de opção dos pais
(RANKE-HEINEMANN, 1996).
Mas nem todos pensavam assim. Ranke-Heinemann chama a atenção para a
divergência de pensamento na época, referindo-se às opiniões de Tácito e Fílon de
Alexandria. Tácito se opunha ao judaísmo pelo fato de que os judeus não eliminavam seus
recém-nascidos, que eram por demais numerosos. Por mais aterrador que nos pareça a
54
naturalidade com que ele considere o assassinato de bebês indesejáveis, não podemos deixar
de nos deter repentinamente ante a sua avaliação do fato dos judeus não terem nada contra a
morte nos campos de batalha, mas de se oporem vigorosamente à limitação do número de
filhos (ibid, p.78).
Com o reconhecimento do cristianismo como uma religião privilegiada, o infanticídio
foi considerado legalmente um crime a partir do ano 318 d.C. quando o Imperador
Constantino emitiu uma ordem proibindo os pais de matarem seus filhos, equiparando o
infanticídio a assassinato somente no ano de 374 d.C.
Na Idade Média, passando pelo período entre os séculos IV – XIII, as crianças ainda
eram consideradas cheias de maldades e mantidas em uma situação de “grave abandono
afetivo emocional” por parte dos seus pais. A infância ainda não existia como concepção ou
sentimento. A vida era vista como algo contínuo, não dividido em fases, determinada pela
Natureza. As crianças viviam misturadas aos adultos e desenvolviam suas habilidades a partir
de suas capacidades físicas e corporais, aprendendo e trabalhando com seus pais e/ou adultos
com quem conviviam. Nesse período, “o sentimento da linhagem era o único sentimento de
caráter familiar conhecido, [...] estende-se aos laços de sangue, sem levar em conta os valores
nascidos da coabitação e da intimidade” (ARIÈS, 1981, p.145).
Com o Imperador Justiniano (482-565 d.C.), a morte de um neonato passou a ser
severamente punida. Quando praticada pelos pais, era equiparada ao parricídio, mas, quando
cometida por outra pessoa, era considerada homicídio. Na Arábia, também Maomé (570-632
d.C.) “protestou violentamente contra o costume árabe do infanticídio feminino”
(THOMSON, 2002, p.273).
55
Observa-se que, ao longo da história, as crianças viviam à margem da sociedade,
apesar de participarem ativamente dela. Sua passagem pela família e pela sociedade era muito
breve. Em muitos casos, as taxas de mortalidade infantil muito altas aliadas às altas taxas de
natalidade faziam da criança um ser de pouca valia, sendo preservados apenas aqueles que
pudessem aprender a partir do convívio com os adultos, sobrevivendo numa sociedade
silenciosa onde o controle populacional ocorria mais por conta do extermínio das vidas
infantis do que por métodos de controle de natalidade eficazes.
Estudando cuidadosamente a iconografia relacionada à infância, assim como a
pedagogia e os jogos infantis, Ariès (1981) demonstra que foi necessária uma longa evolução
para que o sentimento da infância se arraigasse às mentalidades. Foi nos séculos XVI – XVII
que emergiu o sentimento de família, surgindo com ele o sentimento da infância. Estudando o
traje das crianças, observou que eram vestidas como adultos, depois que deixavam os cueiros.
Somente em fins do século XVI, é que a criança possui um traje diferenciado do adulto,
afirmando o autor que,
a adoção de um traje peculiar à infância, que se tornou geral nas classes altas a
partir do fim do século XVI, marca uma data muito importante na formação do
sentimento da infância, esse sentimento que constitui as crianças numa sociedade
separada da dos adultos (ibid, p.38).
No século XVII, o sentimento de família, embora já diferente da família medieval,
ainda não é o que se poderia chamar de ‘família moderna’, caracterizada pela ternura e pela
intimidade que liga os pais aos filhos. A natureza infantil começa a ser alvo de atenção,
surgindo a necessidade de se proteger essa criança, desviando-a do mal e buscando-se
descobrir suas verdadeiras necessidades naturais.
Elisabeth Badinter (1985) afirma que “ainda em pleno século XVII a filosofia e a
teologia manifestam verdadeiro medo da infância” (p. 54) e que “a imagem dramática da
56
infância”, elaborada por Santo Agostinho, onde a criança nasce portadora do “mesmo pecado
que seu pai” (p.55), constituiu um referencial de julgamento e condenação, devendo a criança
ser ‘re-formada’ aos moldes daquilo que os adultos consideravam adequado à sociedade da
época. Assim, preconiza-se o isolamento da criança pequena e “que se desconfie de sua
espontaneidade” (p.61).
Com o advento da filosofia cartesiana, há uma mudança com relação ao discurso da
infância. Referindo-se a Descartes, diz a autora,
A infância é antes de mais nada fraqueza do espírito, período da vida em que
a faculdade de conhecer, o entendimento está sob total dependência do corpo. A
criança não tem outros pensamentos senão as impressões suscitadas pelo corpo. O
feto já pensa, mas esse pensamento não passa de um magma de idéias confusas.
Desprovida de discernimento e de crítica, a alma infantil se deixa guiar pelas
sensações de prazer e de dor: está condenada ao erro perpétuo (ibid, p.61-62)
‘Criança-erro’, ‘criança-pecado’, ‘criança-impecilho-para-a-glória-do-homem’. Com
essa idéia, inicia-se uma época em que, nas famílias abastadas, os cuidados com a criança
eram objeto de prejuízo do lazer, descanso e prazer de seus pais. Mães entregavam seus bebês
às amas-de-leite, porém para cada criança amamentada por uma ama-de-leite, outra era
deixada de lado, entregue aos cuidados de familiares ou estranhos. Em muitos casos, as
crianças eram encaminhadas às casas das amas, afastando-se de suas famílias de origem,
disseminando-se essa prática por toda a Europa e por várias classes sociais. Nos
reformatórios, uma forma de infanticídio institucionalizado acontecia aos olhos de todos. Os
alunos eram classificados em pequenos, médios e grandes, apesar das limitações que estes
termos apresentavam. Havia uma preocupação com o disciplinamento, “constante e
orgânico”, que buscava um aperfeiçoamento moral e espiritual, transformando-se a
escolaridade numa questão das crianças e jovens, sendo a criança a matriz do adulto (ARIÈS,
1981).
57
Com esse pensamento, estabelece-se a idéia de livrar o homem da infância para,
enfim, chegar à idade adulta quando então o homem poderá ser digno. Digno por ser útil à
sociedade a que pertence. Utilidade que será determinada a partir de referenciais fixos e pré-
determinados. O ideal: uma infância desejada, para despertar um adulto-desejado, para uma
sociedade desejada. A criança surge como base, como razão necessária para a construção do
aluno. Criança muda, que não pode falar, silenciosa que tem tudo a aprender. Já não é das
crianças que se fala e, sim, da infância; infância ‘criada’ na modernidade como produto
histórico que se constitui objeto de ação e proteção. Essas mudanças no modo de pensar criam
também mudanças nos modos de agir.
Michel Foucault mostra que o interesse pela criança, sua segurança, sua proteção, sua
orientação e educação não surgiu a partir de uma verdadeira preocupação com o seu bem-
estar mas, sim, como resultado de toda uma técnica de controle que visava controlar a família
através da criança. Esclarece o autor que “é só a partir dos anos de 1850 que a sexualidade,
em sua forma geral, vai ser interrogada médica e disciplinarmente”, culpabilizando a criança,
responsabilizando-a por ser a herdeira do “corpo-desejo”, “corpo-de-prazer” que deve ser
reprimido e corrigido para não evoluírem para uma “vida adulta tolhida pelas doenças”,
patologizando toda forma-de-ser-diferente. Alerta o autor, “A infância é acusada de
responsabilidade patológica, o que o século XIX não esquecerá” (2001, p.293-334).
Assim, a vida familiar vai se transformando numa vida de vigilância contínua da vida
e das atividades da criança, esta deve ser o principal objeto da atenção do adulto, consituindo-
se a nova família numa “espécie de núcleo restrito, duro, substancial, maciço, corporal,
afetivo da família: a família-célula no lugar da família relacional, a família –célula com seu
espaço corporal, com seu espaço afetivo, seu espaço sexual, que é inteiramente saturado pelas
relações diretas pais-filhos” (ibid, p.314), tão próximos e íntimos que os pais atuem como
58
agentes de saúde, higienizando, numa relação de cumplicidade e responsabilização mútuas.
Com isso, “investe-se essa família, em nome da doença, de uma racionalidade que a liga a
uma tecnologia, a um poder e um saber médicos externos. A nova família, a família
substancial, a família afetiva e sexual, é ao mesmo tempo uma família medicalizada (ibid,
p.317).
Com a modernidade, o reconhecimento da necessidade da intervenção dos adultos na
formação da criança, vai transformando a prática pedagógica. Neste processo de subjetivação
e construção do sujeito-criança, a escola torna-se instrumento central onde as práticas
discursivas serão utilizadas de forma ampla e contínua numa pedagogização da infância,
governando-a desde a mais tenra idade, disciplinando, criando corpos dóceis e úteis, atuando
no eixo político da individualização que se torna descendente, normalizando formas-de-ser
(FOUCAULT, 2003; NARADOWSKY, 2001).
Estas práticas normativas vão dividindo o sujeito no seu interior e em relação aos
outros, subdividindo e esquadrinhando os corpos para conhece-los e escolariza-los,
adestrando, produzindo modos de ser e estar, posturas adequadas, civilizados, dóceis,
disciplinados, numa ortopedia discursiva, falando o corpo da retidão da alma (FOUCAULT,
2003).
Norma que se fixa na Natureza, numa matriz biológica única, original, imutável que
determina e caracteriza o ser-humano. Ser saudável, dócil, capaz de aprender o que lhe é
ensinado e determinado como bom, como certo. Trata-se de estabelecer, fixar, definir para
controlar. A norma articula os mecanismos disciplinares, que atuam sobre o corpo, com os
mecanismos regulamentadores, que atuam sobre a população, instaurando “um princípio de
qualificação e um princípio de correção [...] ligada a uma técnica positiva de intervenção e de
transformação, a uma espécie de poder normativo” (FOUCAULT, 2001, p.40-65).
59
E para garantir que o aprendizado destas ‘formas-de-ser’, desses comportamentos,
desenvolve-se
todo um conjunto de comunicações reguladas (lições, questões e respostas, ordens,
exortações, signos codificados de obediência, marcas diferenciais do ‘valor’ de cada
um e dos níveis de saber) e através de toda uma série de procedimentos de poder
(enclausuramento, vigilância, recompensa e punição, hierarquia piramidal) [...]
estruturar o eventual campo de ação dos outros (FOUCAULT, 1995, p.231-249).
Mas compreender como a infância foi e é instituída nos reporta à necessidade de
compreender como, e o que, esses “mecanismos discursivos acerca da infantilização
[...] produzem em termos de mecanismos de poder, vontade de saber e formas de
subjetivação, que inflexionam, fortalecem e azeitam a maquinaria da infantilidade”
(CORAZZA, 2002, p.80), estabelecendo a norma, numa patologização de toda ‘forma-de-ser-
diferente’, localizando a diferença e transformando-a em doença (FOUCAULT, 1977).
Somos parte de uma história, não existimos de forma isolada, somos o somatório das
experiências da humanidade, de seus erros e acertos, na busca de liberdade de ser. Entender
que os seres humanos são o produto histórico dos mecanismos de poder, nos leva a
compreender que toda ação social é cultural, logo, todas as práticas sociais expressam ou
comunicam um significado. Os significados que damos às coisas podem ser muitos, mas não
são quaisquer uns.
Pensar no que é ser eu e o que é ser o outro nos reporta à discussão dos mecanismos de
construção da identidade e da construção do sujeito. Definir identidade é definir aquelas
características que tornam o ser único, não-igual, característico, aquilo que ele é. Identificar,
localizar, caracterizar para determinar o único. Como atribuição cultural, a identidade varia
dentro do contexto da cultura em que é nomeada, representada e identificada. Identidade
como aquilo que permite o pertencimento a um grupo ou espécie, a partir de traços,
características próprias.
60
Este pensamento leva à diferença necessária para o caráter único de cada existência.
Ambos os conceitos relacionam-se, significam e conferem significado um ao outro.
Identidade e diferença são inseparáveis, não sendo possível determinar a origem de uma e de
outra, “na medida em que são definidas, em parte, por meio da linguagem, identidade e
diferença não podem deixar de ser marcadas, também, pela indeterminação e pela
instabilidade” (SILVA, 2000b, p.80).
Analisando Arendt, Assy afirma que
O pensamento dialógico é um exercício permanente de nos colocarmos no
lugar do outro, de salientarmos o valor do ponto de vista alheio na conformação de
nossa singularidade, [...] sendo que “ser e aparecer coincidem”, tendo em vista que
não apenas estamos-no-mundo, mas somos-do-mundo, necessariamente vendo e
sendo vistos pelos outros (grifos do autor) (2003, p.43-45).
Pensar no processo de construção da identidade nos reporta à história do homem e de
seu processo de lutas e conquistas, determinando as diferenças que caracterizam os
vencedores, aqueles mais fortes, capazes, inteligentes, os bons; e os perdedores, os fracos,
incapazes, limitados intelectualmente, os ruins. Estas construções sociais e culturais, que se
deram ao longo do processo de civilização, refletiram e refletem as relações de poder
envolvidas na construção da diferença. Como afirma Louro “algumas identidades são tão
“normais” que não precisam dizer de si; enquanto outras se tornam “marcadas” e, geralmente,
não podem falar por si (grifos do autor) (2000, p.67).
A idéia de um Eu indivisível, estável e estático, construído a partir da herança familiar,
marcada, pré-determinada em cada um de nós como uma matriz genética, imutável, fundante
e constituidora, foi transformada a partir dos estudos da pós-modernidade.
61
Utilizando o conceito de identidade de Stuart Hall,
algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo
inato, existente na consciência no momento do nascimento [...] que permanece
sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”,[...] como
um processo em andamento[...]que surge, não tanto da plenitude de identidade que
já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é
“preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós
imaginamos ser vistos pelos outros. (grifos do autor) (2003, p. 38-39),
nos afastamos da perspectiva essencialista da identidade cultural, entendendo que nenhuma
identidade é capaz de reunir, alinhar, todos os componentes que caracterizam o indivíduo.
Identidade pode, então, ser compreendida como a capacidade de elaboração de
significados pessoais a partir de vivências, de um movimento pessoal de interiorização de
valores coletivos, relacionais, dos e com os outros que não somos nós.
Para Foucault, a construção das identidades é processo altamente politizado, como
efeito do que chama de poder-saber, caracterizado por discursos e práticas de
governamentabilidade, produzindo, moldando, dirigindo, normalizando a forma-de-ser das
pessoas no sentido de se tornarem ‘os sujeitos que a sociedade deseja’, promovendo a justa
distribuição do que deve ser governado (2003a).
Nessa construção do sujeito, Michael Foucault nos leva a compreender de que forma se
deu a escolha da Verdade ao longo da história, Verdade que estabelece a separação entre a
razão e a loucura, Verdade construída a partir de uma análise racional, fundamentada em
provas que, abandonando o senso comum, estabelecem a passagem do espaço de configuração
da doença para o espaço real, corpóreo, localizando-a como desvio verdadeiro da vida (1993).
62
Afirma o autor que
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e
nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de
verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, tipos de discurso que ela acolhe e
faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e
outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro (2004, p.12).
Esclarece de que forma o sujeito pode ser o sujeito do discurso, como nos tornamos o
que somos, como sujeitos de conhecimento e assujeitados a este conhecimento. Alerta,
também, para a necessidade de se considerar um novo olhar sobre a formação dessa palavra,
desses saberes, dessas verdades, afirmando que “o novo não está no que é dito, mas no
acontecimento de sua volta” (2003, p.26).
No uso da palavra, que constitui o discurso, Foucault deixa claro que as palavras e as
coisas iriam se separar a partir do deslocamento do homem como sujeito do conhecimento,
utilizando o signo como uma representação, ligando-o àquilo que significa, àquilo que dá
sentido ao sujeito e à sua vida. Mostra como, aliando-se os discursos às práticas, estes nos
fazem sujeitos pela necessidade de pertencer, sendo a palavra instrumento de construção do
sujeito e do vínculo de pertencimento àquele grupo, família ou sociedade. Valorizando a
palavra como constituidora do sujeito afirma que,
O modo de ser da vida [...] me são dados por meu corpo; o modo de ser da
produção [...] me são dados pelo meu desejo e o modo de se da linguagem, todo o
rastro da história que as palavras fazem luzir no instante que são pronunciadas e,
talvez, até num tempo mais imperceptível ainda, só me são dados ao longo da tênue
cadeia de meu pensamento falante (2002a, p.434).
Nesta cadeia de produções, cada um é construído de forma heterogênea, transformado
pelas conexões e ligações estabelecidas em momentos e espaços específicos, particulares,
práticas de subjetivação,
63
operações pelas quais somos reunidos, em uma montagem,[...] produzindo certas
formas de ser-humano, territorializando, estratificando, fixando, organizando e
tornando duráveis as relações particulares que os humanos podem honestamente
estabelecer consigo mesmos (ROSE, 2001, p.176).
Ao pensar em relações que podemos estabelecer conosco e com aqueles em quem
confiamos, pensa-se em relações nas quais pode-se ‘ser-o-que-se-é’, sem a necessidade de
esconder segredos. Segredos secretos, mistérios. Alguns segredos referem-se a pessoas, fatos,
família, relacionamentos; alguns são agradáveis de serem lembrados, outros trazem dor,
revolta e tristeza.
A realidade de conviver com um segredo cria a necessidade da construção de uma
‘outra-face-de-si’, a necessidade de manter um segundo mundo, no sentido de proteger o
segredo e, conseqüentemente, o indivíduo. O mundo secreto é a alternativa para se tornar
alguém diferente do que se é, para ser alguém aceito, que pode transitar livre do perigo da
exclusão. O grande perigo é essa realidade fictícia tomar conta do espaço real na vida do
indivíduo, transformando o que foi sua realidade secreta em sua irrealidade secreta (MANEM,
1996).
A palavra segredo “deriva do latim secretu, separado, afastado; aquilo que não pode
ser revelado, que se oculta à vista, aquilo que há de mais recôndito na pessoa humana”
(FERREIRA, 1986, p.1562), logo, viver num regime de segredo é viver numa condição de
estar separado daquilo que não sou capaz de aceitar como parte de mim, calado, fechado, é
negar aquilo que fere, ou, de alguma forma, macula o ideal de ser. Como observa Manen
(1996), “alguns segredos na vida não são apenas obstáculos à nossa frente; antes se debatem
em nós como mistérios que tocam nosso ser” (p.238). Mistérios, segredos que nos levam a
omitir, a esconder, quando não a mentir, mentiras como anulação da verdade. Os adultos
guardam muitos segredos, segredos que, de alguma forma, os preservam ou aquelas fantasias
64
que foram construídas como ‘modo-ideal-de-ser’, mas manter um segredo é diferente de
manter uma mentira.
Com relação à aids, as marcas preconceituosas que foram inscritas no início da
epidemia estabeleceram a diferença, diferença que exclui por que transforma o ‘outro’ em
‘outro-aidético’ e, assim, ‘não-humano-como-eu-não-aidético’, diferença que cria um ‘sujeito-
aidético’. Através dos meios de comunicação, foram e são veiculadas as mais diversas formas
de mensagens que influenciam na vida cotidiana das pessoas, criando, no imaginário coletivo,
representações que identificam, diminuindo ou acentuando preconceitos especialmente com
relação à aids, e disseminam discursos dúbios. Determinados grupos afirmam a necessidade de
se extinguir toda e qualquer denominação que identifique o paciente portador de HIV para
evitar a discriminação e conseqüente exclusão, outros, porém, criam mecanismos de
identificação no intuito de se protegerem de qualquer contato.
A aids surgiu há mais de 20 anos e, apesar de todos os debates e informações sobre
sua transmissão e tratamento, muito pouco mudou com relação ao pré-conceito que rege a
sociedade. Por ter sido conhecida, quando surgiu, como a “peste gay” ou a “peste rosa”, ainda
hoje se associa aids à homossexualidade, promiscuidade, drogadição, numa atitude excludente
que relaciona aids a um comportamento irresponsável, delinqüente ou de opção sexual
divergente ou pervertida.
Essa associação da aids com condutas desviantes, de pecado, de erro, cria matrizes de
representações que associam a doença a um ‘castigo’, a uma punição. Por mais que haja
críticas ao uso do termo “aidético”, por ser profundamente preconceituoso e discriminatório,
associando à vítima a responsabilidade pela sua condição de infectado, é desta forma, ainda,
que a população leiga refere-se às pessoas que são “portadoras de HIV” ou que “convivem
com HIV”, reforçando a “história da aceitação ou rejeição pelos dominados dos princípios
65
inculcados, das identidades impostas que visam a assegurar e perpetuar sua dominação”
(CHARTIER, 1994, p.108).
A pessoa portadora de HIV não é apenas uma doente, ela é a portadora de um “estado
clínico que tem como conseqüência todo um espectro de doenças” que “requer a presença de
outras doenças, as chamadas infecções e malignidades oportunistas” para sua caracterização
(SONTAG, 1989, p.21). Estas representações relacionam a aids com práticas marginais,
proibidas, gerando a idéia de uma praga estrangeira, algo que mata, que não pode ser desejado
e que deve ser punido e excluído pela lei.
Para Foucault,
nessa região onde a representação fica em suspenso, à margem dela mesma, aberta,
de certo modo ao fechamento da finitude, desenham-se as três figuras pelas quais a
vida, com suas funções e suas normas, vem fundar-se na repetição muda da Morte,
os conflitos e as regras, na abertura desnudada do Desejo, as significações e os
sistemas numa linguagem que é ao mesmo tempo Lei (2002a, p.519).
Essa representação, que cria o ‘sujeito-aidético’, o define, o classifica, o separa do
‘sujeito-não-aidético-como-eu’, possibilitando à sociedade excluí-lo e excluir-se da
responsabilidade de participar. Manter o ‘outro’ distante oportuniza a prática de uma falsa
caridade, uma falsa piedade, proporcionando a convivência pacífica e serena com a Morte,
porque eu o assassino antes mesmo de conhecê-lo; com o Desejo, porque uma vez morto, não
necessito pensá-lo, senti-lo, sequer amá-lo; com a Lei, porque, se este sujeito não mais existe
para mim e para a sociedade, não há que fazê-lo falar nem sobre ele nos pronunciarmos.
O conceito de subjetividade é indissociável da idéia de produção, não existe em
nenhum lugar, não é um dado, uma informação, nem possui um início, uma origem. O campo
da subjetividade é a condição própria de sua constituição, composto de todos os saberes, de
todas as coisas que o circundam, que o transformam e por ele são transformadas (GUATTARI
e ROLNIK,1986).
66
Françoise Weil-Halpern e Claude Griscelli (1993) analisam que a transmissão
materno-fetal da aids trouxe consigo, pela primeira vez, a dura realidade do conhecimento dos
sintomas que anunciam o prognóstico e o destino letal que a doença determina para mãe e
filho/a. Destino que estabelece para essas famílias o silencio, o segredo, o isolamento, a
exclusão de uma vida livre de culpa e de vergonha.
A possibilidade de ver seus filhos serem identificados e excluídos leva muitos pais ao
estabelecimento do segredo com relação à real patologia, criando para a criança uma
identidade patológica diversa, porém, não excludente.
Ao serem questionadas se seus filhos têm consciência da sua doença, todas as
entrevistadas (08) informaram que as crianças sabem-se doentes. Destas, somente uma sabe
que é portadora de aids, “porque é importante saber”; para três crianças as mães informam
que é “doente do coração”, por “medo da rejeição” e uma, também, porque “tem vergonha da
doença”. Uma das mães diz para sua criança que “é leucemia”, por “vergonha e medo da
rejeição”. No caso das outras três crianças, suas mães informam que elas “não sabem que
doença têm”, que não contaram “por medo da rejeição e vergonha da doença”..
Gráfico 2 – Informação das mães sobre o conhecimento da doença por parte dos seus
filhos
0
1
2
3
importante saber medo da rejeição vergonha da doença
aids
não sabe que
doença tem
coração
Leucemia
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A., 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
67
“Não quero que saibam na escola [...]disse que ele tem problema no
coração[...]daí ele não corre e não se machuca[...]e ninguém descobre[...]daí, não
dá confusão!” (mãe, caso 1/2005).
“Não contei na creche porque quero que gostem dela [...] ela não é um E.T!
Digo que os remédios são para o coração. Quando o pai dela morreu de aids nem a
minha família me aceitou [...] eu sei o que é sofrer isso, além da doença, a dor de
tratarem a gente como um E.T.” (mãe, caso 2/2005).
“Ela sabe que é doente, mas não sabe do que [...] digo que o remédio é
para coração [...] não quero que saibam ainda, para que gostem dela [...] tenho
medo quando souberem” (mãe, caso 3/2005).
“Ela sabe que é doente, mas não digo do que [...]o silêncio é importante
para ela não ser excluída [...]os avós paternos, que sabem, limpam e fervem tudo
onde ela senta [..] eles fazem diferença” (mãe caso 4/2005).
“Ele sempre soube, desde que a mãe dele morreu e nós ficamos sabendo do
diagnóstico [...] A informação sobre a doença acaba com o preconceito, daí ele é
igual a qualquer outra criança [...] Por mais que a verdade seja doída, e ela sabe ser
doída, ela tem que ser dita” (avó, caso 6/2005).
“Digo prá ele que tem problema no sangue, daí ele toma os remédios sem
problema; [...] sei que na escola ele se comporta porque não quero que ele se
machuque [...] ele sabe que isso é importante [...] só é ruim porque ele não pode
correr com os outros guris, mas tenho medo por ele[...] não quero que ele sinta o que
eu senti (chorando)” (mãe caso 7/2005).
“Ele sabe que não pode se machucar para não dar problema [...]quero que
ele cresça se sabendo igual aos outros [...]sei que ele é doente e ele também sabe, só
não disse o nome da doença [...] mas sempre digo que ele é igual aos outros” (mãe,
caso 8/2005).
Fica claro, a partir da análise das falas das mães, os efeitos dos sentidos que foram
atribuídos à aids, as representações criadas pelos diversos discursos que prescrevem e mantém
a diferença que humilha, que exclui.
Sabendo que o processo de socialização das crianças “consiste na forma como elas
apreendem, elaboram e assumem normas e valores da sociedade em que vivem” (PINTO,
1997, p.45), por ser o humano um ser essencialmente dialógico, e tendo nas relações com seu
pares o elemento primordial para a construção da sua identidade, se a criança vive dentro de
uma realidade fictícia, constrói uma percepção de si não verdadeira. Esta mentira piedosa, que
visa proteger a criança, na verdade, reforça a postura discriminatória, que pode levar a uma
auto-exclusão quando não se enfrenta a realidade discursiva que rege a sociedade.
68
Afirma Mansour que a questão do segredo tem-se apresentado central na discussões
sobre os aspectos psicológicos da aids na criança e na vida familiar, salientando a
necessidade de se auxiliar as famílias a modular suas atitudes frente à decisão de revelar o
diagnóstico, uma vez que a necessidade de guardar o segredo constitui-se “ um fardo muito
grande” para a criança, e também para seus irmãos e demais familiares (1993, p.97-148).
Para uma das mães a possibilidade de enfrentamento dessa realidade é nula, mantendo
a criança isolada do convívio social pelo medo da descoberta do segredo, “Ela nem vai na
creche porque eu tenho vergonha. Eu escondo porque não quero que ela saiba. Eu mesma
não falo pra ninguém, nem prá minha família” (mãe, caso 5/2005).
Frente a essa realidade, em sério e grave alerta, Weil-Halpern afirma que “O choque
afetivo provocado pela revelação do diagnóstico leva os pais ao isolamento. [...] A
impossibilidade de confiar nos que o cercam reforça mais sua solidão e os deixa presos com
seus fantasmas, seus sentimentos de desespero e raiva (tradução livre) (1991, p.105)
16
.
Se não há uma relação de confiança entre a família e os profissionais que com ela se
relacionam, o muro de silêncio que se contrapõem e contra o qual ela colide, nutrirá sua
mágoa e sua raiva, podendo ela responsabilizar esses profissionais por terem produzido nela
tais sentimentos.
Nas entrevistas/desenhos com as crianças, observamos a realidade do segredo
construída a partir da representação e da significação que foi-lhes transmitida pela família,
quando se referiram à realidade de serem portadores de ‘um dodói’, ou ‘uma doença’ que de
alguma forma as impedia de brincar.
16
“[...] le choc affetif provoqué par la revélation du diagnostic a contraint ces parents à l’isolement [...].
L’impossibilité de se confier à dês proches a encore renforcé leur solitude et lês a laissés aux prises avec leurs
fantasmes et leurs sentiments de désespoir et de haine” (WEIL-HALPERN,1991, p.105).
69
Encontramos, também, a realidade da auto-exclusão que se faz necessária à
manutenção do segredo que garante a inclusão no ambiente escolar. Com exceção da criança
que conhece seu diagnóstico e que tem a ‘permissão para falar de sua doença’, todas as outras
crianças desenharam-se de cor diferente da cor do grupo de amiguinhos ou em posição
destacada, afastada, excluída da atividade lúdica que o grupo representava participar. Em
alguns desenhos observamos a localização da doença, referindo-se a criança à “dor na barriga
ou no umbigo” decorrente da ingesta da medicação necessária. É indiscutível a marca que
já está gravada, subjetivada.
Caso 1/2005:
“Esse sou eu [...] estou aqui porque sou diferente
[...] estou separado porque não posso correr, prá não
machucar, a mãe é que mandou [...] Sou diferente porque
tenho um dodói. Não posso falar da doença, a mãe não
quer que eu fale para os outros não saberem [...] eu não sei
o que é, acho que é coração. Não posso correr, só brincar
sentado, de desenhar, de joguinho”. .
Caso 2/2005:
E
u sou essa aqui [...] sou diferente porque sou
preta e doente! [...] Eu queria ser o ‘Nemo’ pra poder
encontrar o pai [...] eu perdi o pai, ele a mãe [...] o meu pai
foi de doença [...] que nem vai ser com a mãe e comigo[...]
isso é ruim[...]não fica bom”.
70
Caso 3/2005:
“Eu queria ser como meu irmão, ele é bonito e
não toma remédio [...] eu tomo pro coração, prá ficar forte
e poder correr e brincar [...] só eu tomo isso de remédio
(mostrando com a mão os cinco dedos estentidos) [...]
quero ficar boa como ele”.
Caso 4/2005:
“[...] este é o sujo do meu dodói[...]não gosto de
tomar os remédios [...] eu quero crescer e ficar grande como
a mana prá não ter que tomar os remédios [...] eu vejo a
mãe chorar por causa do remédio dela [...] só que
escondido”.
Caso 5/2005:
“Essa sou eu, ainda sou pequena, ainda mamo na
mãe [...] eu gosto de mamar, de ser bebê [...] a mãe diz que
não é prá eu crescer, pra eu não sofrer [...] eu queria ir no
colégio prá brincar”.
71
Caso 7/2005
“Não posso jogar pra não me machucar...não
posso correr [...] A mãe disse que não posso correr porque
tenho problema no sangue, daí se eu me cortar vai dar
confusão [...] eu nem sei porquê, mas ela não quer que eu
fale prá ninguém [...] eu gosto mesmo é de correr e jogar
bola com os outros meninos, mas não posso”.
Caso 8/2005
“[..] esse é o meu dodói, na barriga...bem
aqui onde está o ‘bigo’[...] isso são os
remédios”.
Mas cuidado, “A inimiga da verdade não é a mentira, é o mito! Nós desconfiamos da
mentira e buscamos repara-la, uma vez que nós adoramos os mitos e nos submetemos a eles”
(tradução livre) (CYRULNIK, 1999, p.156)
17
.
A possibilidade de ser rebaixado a uma condição sub ou até não humana é uma das
piores situações a que podemos ser submetidos. Essas ‘mentiras-piedosas’ usadas pelas mães
com o intuito de proteger a seus filhos, e também a si, do estigma da aids e do fantasma da
exclusão, reforçam o mito, fruto da ignorância, que alimenta o preconceito, reforçando a
17
“ [...] l’ennemi de la vérité, c’est n pas le mensonge, c’est le mythe! Nous nous méfions dees mensonges et
cherchons à les repérer, alors que nous adornos les mythes et demandons à nous y soumettre” (CYULNIK,
1999, p.156).
72
postura discriminatória, que pode levar a uma auto-exclusão quando não se enfrenta a
realidade discursiva que rege a sociedade.
Os sentidos desses discursos não são quaisquer uns. Eles vão se produzindo numa
tênue cadeia de articulações e práticas que se constituem nas interações, de forma singular ou
múltipla, simultaneamente “um modo de sujeição na forma da obediência a uma lei geral”
(FOUCAULT, 2002a, p.235). Estes sentidos são estabelecidos através de discursos que criam
representações, formas textuais e visuais que descrevem e em que se inscrevem os diferentes
grupos. Representações que se situam num campo estratégico de poder em que é o poder que
torna as coisas verdadeiras, só adquirindo sentido e valor por estar inserida numa cadeia
diferencial de significantes (HALL, 2003).
Para Foucault, os processos de subjetivação são os procedimentos “[...] pressupostos
ou transcritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função
de determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si ou de conhecimento de si
(1997, p.109). Logo, é sobre o corpo que são construídas as linhas de subjetivação, moldando,
num conjunto de técnicas de si, que requerem “uma certa exteriorização e objetivação da
própria imagem, um algo exterior, convertido em objeto, no qual a pessoa possa ver a si
mesma” (LAROSSA, 1995, p.59).
Analisando a importância das histórias pessoais, o autor (1998) afirma que essas nos
constituem, são produzidas e mediadas no interior de determinadas práticas sociais
institucionalizadas, entendendo que é necessário que se reveja a importância da linguagem na
“questão do sujeito”. Para tal, faz três análises, que compreendem o giro hermenêutico, o giro
semilógico e o giro pragmático.
73
A primeira análise, refere-se ao giro hermenêutico e nos leva a compreender que o ser
é impensável fora da interpretação, fora da linguagem, afirmando que o ser humano é um ser
que se interpreta, numa narrativa de vida que é própria e única, temporal, como
vivência da vida no tempo e vivência do tempo da vida [..] vida como caminho, e
nós mesmos como caminhantes [...] O tempo de nossas vidas é, então, tempo
narrado; é o tempo articulado em uma história; é a história de nós mesmos tal como
somos capazes de imaginá-la, de interpretá-la, de contá-la e de nos contá-la
(tradução livre) (p.465)
18
.
A segunda análise, refere-se ao giro semiológico, onde a auto-intepretação não existe
fora de suas relações, sendo a realidade construída por categorias ordenadoras da linguagem,
que interpretam acontecimentos da vida de uma nova forma, construindo uma história própria
a partir das transformações que essa viagem lhe proporcionou, sendo que “Toda viagem
verdadeira é viagem interior e toda experiência verdadeira é experiência de si mesmo. E nas
viagens interiores, nas viagens que fazemos a experiência de nós mesmos no que nos passa,
um pode modificar-se” (tradução livre) (p.469)
19
.
Na terceira, o giro pragmático, analisa como o sujeito esnum mundo em que o
discurso funciona socialmente, num conjunto de práticas discursivas, onde o poder que o
atravessa, atravessa, também, a auto-interpretação, a construção da identidade e da auto-
identidade.
Assim, a história da vida é a história dos modos como os seres humanos tem
construído narrativamente suas vidas. E a história da história de nossas vidas é a
história das narrações que temos ouvido e lido e que, de algum modo, temo posto
em relação conosco mesmos (tradução livre) (p.493)
20
.
18
“[...]vivencia de la vida en el tiempo y vivencia del tiempo de la vida[...] vida como camino, y nosotros mismos
como viajeros[...] El tiempo de nuestras vidas es, entonces, tiempo narrado; es el tiempo articulado en una historia;
es la historia de nosotros mismos tal como somos capaces de imaginarla, de interpretala, de contarla y de
contar(nos)la” (LAROSSA, 1998, p.465).
19
“Todo viaje verdadero es viaje interior y toda experiencia verdadera es experiencia de uno mismo. Y en los viajes
interiores, en los viajes en los que hacemos la experiencia de nosotros mismos en lo que nos pasa, uno pode
modificarse” (LAROSSA, 1998, p.469).
20
“Así, la historia de la historia de la vida es la historia de los modos en que los seres humanos han construído
narrativamente sus vidas.Y la historia de la historia de nuestras vidas es la historia de las narraciones que hemos
ouído y leído y que de algún modo, hemos puesto en relación con nosotros mismos” (LAROSSA, 1998, p.473).
74
Esse discurso expressivo é construído a partir de signos preconizados pelo meio social,
sendo fundamental observar que a subjetividade é o significado do discurso, algo que seria
origem e referência do próprio discurso.
Esta referência leva os seres humanos a contar suas histórias de vida de determinada
forma, com determinadas finalidades, não havendo assim, narrações autônomas, livres.
Quando essas referências se transformam em pré-conceitos, em normas, regras de um ‘modo-
de-ser’ que crias limites, as barreiras para aceitação daqueles que nela não se encontram estão
erguidas. Somos as fronteiras de nosso preconceito, e “os preconceitos são os tópicos da
moral, o que todo mundo valoriza igualmente, as formas do dever que se impõem como
óbvias e indubitáveis” (LAROSSA, 2002, p.84).
Para Chauí, o termo pré-conceito traz em si, sua definição, um trabalho de construção
de significados determinado por uma idéia anterior à própria significação. Caracteriza-se por
exigir uma familiaridade permanente e constante, não aceitando a diferença ou a singularidade
das coisas. A autora afirma:
O preconceito é pois, uma das armas mais potentes para o exercício da
dominação, pois o dominado a deseja interiormente e não sabe viver sem ela porque
se tornou a forma de segurança num mundo, enfim, transparente Tudo em seu
devido lugar, com o devido respeito (1997, p.119-120).
O preconceito cria estereótipos por meio dos quais julga tudo que seja novo,
estimulando uma postura de medo e insegurança frente ao novo, ao desconhecido; é o
ambíguo na medida em que deseja o novo, mas não se separa do velho, buscando reduzir o
novo, o desconhecido ao já conhecido, engessando o processo de mudanças e transformação
que a chegada do novo exige. Estereótipo como uma forma de representação onde
o outro é representado por meio de uma forma especial de condensação em que
entram processos de simplificação, de generalização, de homogeneização [...]
estando sua força no fato de que ele lida com um núcleo que nós podemos
75
reconhecer como “real” e que é, então, submetido a uma série de transformações
que amplificam seu efeito de realidade [...] está centrada nos aspectos de construção
e de produção das práticas de significação [...] a representação é a realidade. (Isto
é: a realidade que importa) (grifo meu) (SILVA, 2003, p.31-69).
O preconceito leva a posturas de discriminação que expulsam o novo, o diferente, o
outro do grupo social. Esse pré-conceito, que identifica, julga e exclui, é construído em
momentos diferentes da história, mas se refere sempre ao mesmo tema : o desvio, a escolha
diversa da norma, o pecado.
Para Arendt
A segregação é a discriminação imposta pela lei, e a dessegregação não pode
fazer mais do que abolir as leis que impõem a discriminação; não pode abolir a
discriminação e forçar a igualdade sobre a sociedade, mas pode e na verdade deve
impor a igualdade dentro do corpo político. Pois a igualdade não só tem a sua
origem no corpo político; a sua validade é claramente restrita à esfera política.
Apenas nesse âmbito somos todos iguais (2003, p.272).
A associação da aids com práticas sexuais diversas, recentrou o “pecado da carne no
corpo”, aprisionando a carne no corpo, “é o corpo e todos os efeitos do prazer que nele tem
sua morada”, levando a um deslocamento da preocupação com o desejo e o prazer,
transformando a confissão em algo público e essencial, julgando “não apenas os atos, mas
também os pensamentos”, caracterizando o “problema da intenção e da realização”
(FOUCAULT, 2001, p.239).
Ao longo da caminhada dos portadores de HIV e/ou das organizações que os auxiliam
na busca da garantia de seus direitos constituicionais
21
, constatamos que a luta pelo fim do
preconceito e da discriminação perdurará mais do que imaginamos.
21
Para maiores informações: “Legislação sobre DST e Aids no Brasil”. Disponível em:
http://www.aids.gov.br/legilacao/vol3_68.htm. Acesso em 30/10/2005.
76
Encontramos, na ordem do discurso jurídico, essa associação cristalizada. Entre os
projetos de lei nacionais que visam garantir o debate sobre aids nas escolas, necessário e
fundamental, ainda encontramos associação da aids com os chamados comportamentos de
risco, como o uso de entorpecentes, drogas e outros
22
. Esta associação do sadio com o puro e
do doente, contaminado com o impuro, cria verdades como ficção, mantendo a desigualdade
de direitos. Essas desigualdades “só poderão ser percebidas – e desestabilizadas e subvertidas
– na medida em que estivermos atentas/os para as suas formas de produção e reprodução”
(LOURO, 1997, p.121).
A associação da aids com a sexualidade cria representações que condenam todo e
qualquer portador do vírus, até mesmo as crianças que já nascem sob o estigma dos ‘herdeiros
da aids’, herdeiros do pecado de seus pais. A culpa é atribuída à criança e a todos que
pertencem ao seu grupo familiar. “A culpa, ao contrário da responsabilidade, é estritamente
pessoal. Refere-se a um ato, não a intenções ou potencialidades” (ARENDT, 2003, p.214).
Compreendendo a construção do termo aidético, observamos que, na Medicina, ao
referirmo-nos a patologias inflamatórias agudas, súbitas utiliza-se o sufixo grego ite e às
patologias crônicas, mórbidas o sufixo ose (PINTO, 1949). Já o termo ético, refere-se ao
“estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do
ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo
absoluto” (FERREIRA, 1986, p.733).
Pergunto, por que não aidoso? Sendo uma doença de evolução crônica, por quê não se
utilizar o sufixo que, assim, designaria o portador de uma doença crônica, ainda sem
terapêutica que possa garantir a cura, como para o tuberculoso ou canceroso?
22
Para maiores informações acessar: “Direitos Humanos – Projetos de lei - Educação”. Disponível em:
http://www.aids.gov.br/final/dh/educa.htm. Acesso em 24/06/2005.
77
O reconhecimento do diferente como portadores de doenças ou de grupos de risco, de
monstros “exige um repensar radical da fronteira e da normalidade” (COHEN, 2000, p.31). O
monstro é aquele que revela o fracasso do ‘modo-de-ser pré-determinado’, aquele que habita a
fresta que se cria entre o “normal” e o que resiste na sua diferença, é o que não se rotula, pois,
uma vez diferente, não se identifica dentro dos padrões de uma sociedade hierarquizada, “é o
que se situa no limiar do tornar-se” (FOUCAULT, 2001, p.54). O monstro surge no “campo
de um domínio jurídico-biológico”, combinando o “impossível com o interdito”, revelando
um descompasso ente o “natural e a natureza”, dando origem à noção de indivíduo
“perigoso”. Esse “indivíduo a corrigir” é o que será separado, afastado, excluído, para não
“contaminar a sociedade” (ibid, ibiddem, p.413-417).
Em nossa sociedade, uma criança portadora de HIV não é apenas uma criança
portadora de uma doença crônica, para a qual ainda não se tem uma cura estabelecida, ela é
uma CRIANÇA-AIDÉTICA. Para Donna Haraway, “A consciência da exclusão que é
produzida por meio do ato de nomeação é aguda” (2000, p.52), criando identidades parciais,
que se reconhecem na sua condição “aidética” por serem desacreditadas e descaracterizadas de
sua condição humana. Ser criança-aidética é ser privada, já na tenra idade, de uma vida de
relação livre, é impedir esta criança de uma possibilidade de se construir humana.
Esta designação estabelece para uma criança-aidética a impossibilidade de pertencer
com seus semelhantes, crianças. Ser aidético é estigmatizante, classificador, excludente,
porque transforma esta criaa em algo monstruoso, que determina, naqueles que com ela
convivem, duas reações principais: a piedade, uma vez que é criança “inocente”, livre do
pecado da escolha que a aids ainda caracteriza, a escolha de uma vida sexual divergente e
pervertida, promíscua, irresponsável; e o medo, medo de ser contaminado e condenado a uma
vida discriminada e ao convívio com a realidade da morte. Essa “impressão passada” pelos
discursos excluem, reforçam e dão vida à representação, lembrando essa “semelhança”,
78
alimentando a fantasia, perpetuando “o murmúrio insistente da semelhança; é preciso que
haja, na representação, o recôndito sempre possível da imaginação” (FOUCAULT, 2002a,
p.95). Para o autor,
pelo poder que tem de se reduplicar [...] a cadeia das representações pode
reencontrar, por sob a desordem da terra, a superfície sem ruptura dos seres; a
memória, [...] fixa-se pouco a pouco, num quadro geral de tudo que existe; o
homem pode então fazer entrar o mundo na soberania de um discurso que tem o
poder de representar sua representação. (ibid, p.426).
Nas entrevistas realizadas com as mães/cuidadoras, ao serem perguntadas sobre como
vêem a creche-escola com relação à doença do seu filho, observamos uma semelhança nas
respostas entre as que informaram (03) e não-informaram (04) à creche/escola da realidade da
infecção de seu filho, ressaltando a importância da freqüência às instituições para a
socialização das crianças (08) e a adesão ao tratamento (08). No caso da criança que não
freqüenta creche/escola, sua mãe não acredita que ela possa ser aceita, mesmo reconhecendo a
importância dessa experiência para sua filha.
Gráfico 3 - Como as mães vêem a escola com relação ao seu filho.
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A., 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÌ/RS.
0
1
2
3
4
informaram não informaram não vai
cuidam bem
o os remédios
importante para a
socialização
é importante para
quando souber
aceitou porque
conhece a nossa
história
não acredita que
aceitem
79
Observamos que duas mães afirmaram que pertencer à creche/escola “é importante
para quando souber”, utilizando o segredo como uma estratégia no sentido de fortalecer a
criança para o enfrentamento que virá ao receber “a notícia”. Vemos, assim, a realidade do
medo da discriminação e da exclusão que assombra essas famílias. Por terem suas histórias de
vida “contaminadas por este bicho horrível”, excluem-se. Duas dessas mães/cuidadoras
referiram que a instituição aceitou seus filho/a “porque conhece a nossa historia”, fazendo
uma alusão a uma história de vida que foi contaminada sem sua concordância.
“Dizem que aceitam uma criança com HIV, mas eu não acredito. Quando tiver
outra criança lá, do jeito que tratarem, pode ser que eu conte, tenho vergonha” (mãe,
caso 1/2005)
“Acho que tem que avisar, mas fiquei com medo [...] preciso que ela vá para eu
poder trabalhar” (mãe, caso 2/2005).
“Houve aceitação, eu tinha medo, mas conhecem a nossa história, minha e do pai
dela, acho que isso ajudou, foi importante. Eles sabem que, se eu soubesse, jamais
teria engravidado” (mãe, caso 4/2005).
“Seria bom se eu pudesse contar, mas não vou sujar o nosso nome com essa
doença” (mãe, caso 5/2005).
“No início havia diferença, mas agora elas adoram o “X”, e ele adora o
colégio”.(avó, caso 6/2005)
“São bons para ele, tratam igual, não rejeitam ele [...] eles sabem que me separei
quando aconteceu” (mãe, caso 7/2005).
“Não sei o que vai ser quando souberem, eu não posso pensar [...] eles sabem que
ele é doente [...] tenho vergonha e medo dele ser expulso[...]espero que alguém de lá
possa me ajudar, amo ele e não quero que ele sofra como eu, eu não tive culpa” (caso
8, mãe/2005).
Esses relatos demonstram a importância das narrativas de vida e a importância de uma
postura de aceitação por parte das diversas instituições, principalmente a creche/escola, que é
parte fundamental da vida de toda as crianças.
A forma como as pessoas reagem à aids, à qualquer doença incurável, determina
maneiras diferentes de lidar com a sua vulnerabilidade e a realidade do seu próprio fim: a
80
morte. Elisabeth Kübler-Ross (1998) define cinco estágios básicos no processo e aceitação
necessário para o enfrentamento de uma moléstia fatal. São eles:
1- a negação ou isolamento – momento que, muitas vezes, funciona como
amortecedor que alivia o choque da notícia. Negando a doença o paciente retarda
a necessidade de discutir e de se comprometer com seu diagnóstico (p.47);
2- a raiva – quando surgem “sentimentos de raiva, revolta, inveja e ressentimento”,
que são projetados, mobilizam reações diversas entre os familiares e aqueles que
com eles convivem (p.55);
3- a barganha – momento em que o paciente se entrega a promessas e ‘negocia’ sua
cura, “é uma tentativa de adiamento”; nessa fase intensificam-se os sentimentos
de culpa na medida em que a solução do problema não se efetiva (p.89);
4- a depressão – caracteriza-se por um sentimento de perda: perda da saúde, perda
da confiança, perda da capacidade de lutar, “o paciente está prestes a perder tudo
e todos que ama”; se o paciente recebe apoio para superar esta fase, ela serve de
preparação para a próxima (p.93);
5- a aceitação – nessa fase, os familiares necessitam de mais auxílio que o paciente.
Esse não é um período de felicidade, “é quase uma fuga de sentimentos”;
caracteriza-se por um período de repouso (p.118).
Para a mãe portadora de HIV, o período de negação da doença é um momento muito
importante que oportuniza a elaboração da raiva e da culpa pela contaminação de seu filho.
Para muitas mães, partilhar o segredo significa assumir a responsabilidade pela condenação de
seu filho à morte e ao estigma que a aids determina, mesmo que tenhamos observado em seus
relatos o desejo implícito de partilhá-lo.
81
Para as crianças, a possibilidade de partilhar um segredo é a possibilidade de se re-
apresentar, de ser conhecida por aqueles com quem convive como se vê, criança, como
qualquer outra, sem a necessidade de esconder “algo” de si que a ponha em risco e a exclua da
possibilidade de ser humana.
Quando questionadas sobre se têm liberdade para conversar com a tia/professora sobre
o que querem, constatamos que para algumas crianças a proibição é ordem, o segredo é
barreira, é impedimento de “ser-como-quero”,
“Não falando da doença, eu falo tudo. Ela bem legal” (caso 1/2005)
“a tia é querida [...] eu nem sei, mas ela (a mãe) não quer que eu fale pra ninguém
[...] queria que ela (a professora) me explicasse o que tenho, mas a mãe não deixa
falar [...] é ruim!” (caso 7/2005).
O segredo auxilia a sociedade que se vê poupada das mudanças necessárias no
processo de inclusão de todo e qualquer diferente. Para o paciente, portador de HIV ou de
outra patologia, o segredo só alimenta o preconceito pois reforça a alienação e a ignorância
sobre a doença.
Para qualquer criança,
falar as coisas é experimentar, ainda uma vez mais, mas de uma outra maneira. É
retomar uma emoção atribuída ao acontecimento, mas não é mais aquela ressentida
no momento em que ela se produziu, porque é preciso provocar e remanejar para
endereçar a alguém, dividir com um ouvinte ou um leitor. A confidencia tece um
laço afetivo que explica a intensidade do vínculo que se segue. (tradução livre)
(CYRULNIK, 1999, p.132-133)
23
.
23
“Dire les choses, c’est les éprouver encore une fois, mais d’une autre maniere. C’est faire revenir une émotion
buée á l’événement, mais ce nest déjà plus celle ressentie au moment où il s’ést produit puisq’il faut évoquer et
la remanier pour l’adresses á quelqu’un, la partager avec um auditeur ou um lecteur. L confidence tisse un lien
affectif qui explique l’intensité de l’attachement qui s’ensuit” (CYRULNIK, 1999, p. 132-133).
82
Constatamos no desenho/entrevista com a criança que tem conhecimento do seu
diagnóstico, a realidade da importância desse conhecimento no processo de inclusão na escola
pela possibilidade de dividir sua história, sua dor, sem medo ou vergonha. Construindo, com
sua família e seus parceiros na escola, um modo de lidar com a realidade de sua doença, um
modo que o habilite a enfrentar a dura realidade da ignorância e do preconceito.
“Eu acho a aids uma coisa ruim, que matou a minha mãe. Eu espero ter a
cura para não morrer disso. Agora não me acho diferente, quando entrei na 1ª na
escola, não queriam me aceitar, me senti sujo, parecia que eu é que bebia e tinha
ficado doente, só que eu não tenho nada disso [...] eu não entendia, agora eu
entendo, e acho que é importante não esconder, senão criam o bicho. Não escondo
de ninguém, até porque não adianta, é pior. As pessoas ficam imaginando coisas e a
burrice atrapalha. Burrice porque não sabem o que é aids e acham que pega de
olhar! [...] Para mim está tranqüilo, tomo os remédios, o coquetel e há um tempão
não tenho sintomas. Daqui eu sei que não tem saída, mas acho que vou me curar!
Poder falar com alguém é legal, para saber o que está acontecendo” (caso 6/2005).
Laços, fios, cordas, tecidos, malhas tecidas com os fios de cada um de nós. Fios que se
trançam e nos amarram se nos conformarmos com os discursos que regem a sociedade; fios
que nos sustentam se resistirmos e enfrentarmos estes discursos. Enfrentamento como
reflexão, como negação à localização da diferença.
Foucault nos fala de “práticas de liberdade” e a liberdade é condição essencial para as
relações de poder. Se não houver um foco de resistência, algum tipo de liberdade, trata-se de
uma relação de dominação (2002). Resistir a esta localização, a esta identificação AIDÉTICA,
é necessário e fundamental, “mesmo que não possamos desinventar a nós mesmos” (ROSE,
2001, p.198), no sentido de conferir a essas crianças algo que é seu por direito, o direito de
existir e a possibilidade de se re-construir, através das práticas de si, na fissura entre o “modo-
de-ser-humano” e o “modo-de-ser-aidético”, constituindo uma zona viável onde seja possível
alojar-se, resistir, existir, a partir de suas descobertas, buscando novas formas de ver e ouvir.
83
Caso 4 :
- Esta é a creche...a TV...gosto de desenho...
- E por que você vai na creche?
- Vou na creche porque já sou grande, que nem a mana.
- Das coisas que tu fazes lá, o que mais gostas?
- Dos coleguinhas prá brincar, prá joga bola...eu gosto de jogar bola, mas não pode machucar....
- E do que tu não gostas?
- De ter que tomar os remédios...daí dói a barriga e a cabeça...este aqui é o sujo do meu dodói...
- E por que tens que tomar os remédios?
- Prá ficar boa, que nem a mana...
- E como é com a prof, podes fala com ela do que quiseres?
- Sim, a tia é querida...me cuida, dá os remédios...diz que é pra eu ficar forte...me dá comida escondida
(bolo), pra eu ficar forte...
- E o que isso representa para ti?
- È bom...a tia me ensina as letras...eu já sei o ‘C’ do meu nome, ensina a rezar, a cantar
musiquinha...eu quero crescer e ficar grande como a mana prá não ter que tomar o remédio...eu vejo a
mãe chorar por causa do remédio dela...só que escondido...
84
CAPÍTULO IV - AIDS NA ESCOLA - do preconceito à inclusão
Caso 1 :
- A escola é o melhor lugar, onde eu posso brincar..mas só sentado...lá tem bastante comida!
- E por que tu vais na escola?
- Prá aprender as coisas, prá mãe poder trabalhar. Eu gosto de ir porque a comida é boa e bastante.
- E qual destas é você?
- Essa sou eu...estou aqui porque sou diferente (cochichando)...estou separada porque não posso correr,prá
não machucar, a mãe é que mandou...
- Em que és diferente (cochichando)?
- Sou diferente porque tenho um dodói...
- E por que estás falando assim, baixinho?
- Falo baixo porque a mãe disse que não é pra falar...
- E como estás falando para mim?
- Falo prá você porque você é médica, e na médica a mãe também fala...
- E como se chama o teu dodói?
- Eu não sei o nome, mas tomo um montão assim de remédio (abrindo os braços)...
- E das coisas que tu fazes lá, o que mais gostas?
- De brincar, gosto quando posso brincar, mas não posso correr prá não machucar...
- E do que não gostas?
- De não poder correr. Não posso falar da doença porque a mãe não quer que eu fale prá os outros não
saberem...
- E tu sabes o que é?
- Eu não sei o que é, acho que é coração. Não posso correr, só brincar sentado...de desenhar...de estória...de
joguinho...mas eu gosto é de correr!
- E tu podes conversar com a prof., sobre o que quiseres?
- Não falando da doença eu falo tudo, ela é bem legal...ela é linda...tem brinco...pulseira, ela sempre tá de
pulseira...é muito boa...ela conta estória, sentado....
- E o que representa para ti, poder falar com a prof.?
- É bom, a prof. é bem querida, me ensina as coisas, cata o piolho, me cuida pra mãe poder trabalhar...
85
Ao longo da história da educação, a discriminação esteve presente em todas as suas
épocas. Manacorda (1989) nos mostra que já no Egito a separação entre trabalho, para muitos,
e instrução, para poucos, era prática comum. O processo de educação se dava através da
“inculturação” dos indivíduos das classes dominadas, mantendo o saber da arte da palavra
associado ao poder da arte das armas, nas mãos dos “escolhidos”.
Foucault mostra como a escola transformou-se em instrumento de controle e formação
de sujeitos, não só adestrados, mas também esquadrinhados, moldados e construídos por
saberes que contornam e controlam os indivíduos.
No momento em que todos têm seu direito à educação garantidos na Constituição,
ainda encontramos muitos que efetivamente não tem acesso a esta mesma educação. O artigo
5º da Constituição da República, afirma “que todos são iguais perante a lei”, um princípio
baseado na dignidade humana, referendado em tratados e convenções internacionais (da
Organização das Nações Unidas – ONU; Organização Mundial da Saúde – OMS;
Organização Internacional do Trabalho – OIT; Organização dos Estados Americanos – OEA e
outros) que servem de guia buscando implementar políticas públicas que promovam a
educação, ampliando a compreensão dos princípios de igualdade de oportunidades e
tratamento, que conduzam a sociedade à superação de seus problemas. Essas diferentes
educações refletem as diferentes relações de poder que se estabelecem no meio social,
reproduzindo nesse microuniverso as formas e modos de se relacionar que refletem as práticas
do macrouniverso.
Para Hall (1997), só podemos afirmar que duas pessoas pertencem a uma mesma
cultura quando elas interpretam e expressam suas idéias e sentimentos, quando agem e
reagem de forma semelhante aos diversos estímulos, por serem elas que conferem significado
e sentido aos objetos, pessoas e experiências de sua vida.
86
Logo, mesmo que valores como igualdade, solidariedade, respeito estejam presentes
no discurso da escola, percebemos que discursos de preconceito, discriminação e exclusão
também estão presentes, fruto das contradições e dos conflitos que existem no macro-contexto
social.
Se a escola, imagem da sociedade a que pertence, constrói um universo monocultural,
necessariamente manterá a prática da discriminação. Discriminar é salientar, ressaltar a
diferença, diferença entendida como a incapacidade de alcançar o sucesso preconizado pela
sociedade.
Com relação à produção e manutenção da discriminação, o currículo tem papel
importante no processo de sedimentação e naturalização dos conhecimentos que caracterizam
e determinam a inclusão universal. Veiga-Neto esclarece que o termo currículo vem sendo
utilizado desde o final do século XVI, designando
todo o conjunto estruturado de conhecimentos que são trazidos ordenada e
seqüencialmente para dentro da escola, com o objetivo declarado de tornar tais
conhecimentos acessíveis ao maior número possível de pessoas. A ordem instituía a
seqüência: a disciplina instituía a estrutura. Ambas, ordem e disciplina, constituíam
o currículo (2000, p.209).
Esses currículos criam representações, ficções, fantasias que perpetuam os discursos
universais de igualdade e exclusão. Pensar a inclusão é pensar a diferença, e pensar a
diferença é pensar a necessidade de se considerar a diversidade de crenças, valores, histórias
de vida, que põem em risco o saber constituído, que encontra reflexos nos currículos e nos
discursos dos professores.
Guacira Louro alerta para a realidade de que “a identidade é uma atribuição cultural;
que ela sempre é dita e nomeada no contexto de uma cultura”, não sendo possível ignorar os
87
jogos de poder que estão presentes no processo de significação, adjetivação e valoração de
determinadas características a outras. “A norma não precisa dizer de si, ela é a identidade
suposta, presumida; e isso a torna de algum modo, praticamente invisível. Será, pois, a
identidade que foge à norma que se diferencia do padrão, que se torna marcada (grifo do
autor) (2000, p.62; 68).
Corazza e Silva (2003, p.53) deixam claro que “o currículo é isso: organizar a
experiência de forma a transmitir, além do conhecimento, um conjunto bem definido de
valores. [...] é um empreendimento moral”. Mas que valores? Valores que atendam ao
interesse de quem? E para quem?
Respondem os autores que estes valores têm sido, tradicionalmente, selecionados a
partir de três eixos principais: a absolutização (submissão a um deus, pátria, ‘a’ família), a
naturalização (submissão ao ‘código da natureza’) e a universalização (que servem e valem
para todos). Afirmam que,
Um currículo é sempre uma imposição de sentidos, de valores, de saberes, de
subjetividades particulares. É sempre uma escolha forçada de um oxímoro.[...] Um
currículo não é apenas um local onde se desdobram relações de poder: um currículo
encarna relações de poder”(grifos dos autores) (ibid, ibiddem, p.55)
Essas relações de poder se articulam sobre dois elementos: que o outro, objeto da ação
do poder, “seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como sujeito da ação”, e que
haja um espaço para o exercício de uma ‘liberdade’ que possibilite uma reação, um
deslocamento, numa relação agônica “que é, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de
luta; [...] de uma provocação permanente” (FOUCAULT, 1995, p.231-249). Esse
conhecimento de si é construído com o entrelaçamento de técnicas de si e um código moral,
criando um dispositivo que afirmará, ou não, uma “moralidade de seus comportamentos”
(ibid, 2002, p.63).
88
A aids, hoje, está no currículo. Mas como e onde? A partir de que discursos, de que
representações? Que representações os professores construíram, e constroem, com relação à
aids e à criança portadora de HIV?
Na busca dessas respostas foram entrevistados setenta e três professores, sendo
sessenta e nove do gênero feminino e somente quatro do masculino. Observou-se que nas
creches, houve prevalência total do gênero feminino, com trinta e duas professoras. Nas
escolas, dois professores estão em cargos de direção e coordenação pedagógica,
respectivamente, e dois são professores regulares.
Gráfico 4 - Identidade de gênero dos professores
0
2
4
6
8
10
12
14
16
cr. Part. cr. Mun. esc. Part. esc. Mun esc. Est.
masculino
feminino
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A, 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
Observamos, pelos dados encontrados, que a escola é feminina. É a mulher que educa,
que ensina, que cuida. A professora, ‘tia’, é também o modelo para meninas e meninos, “mães
espirituais”, reproduzindo ali os discursos que atravessam a sociedade, “formas adequadas de
fazer, de meninos e meninas, homens e mulheres ajustados aos padrões das comunidades”
(LOURO, 1997, p.106).
Nos afirma a autora que, “a ênfase na função apoiadora e na criação de um bom
ambiente para a aprendizagem, [...] apontou de modo mais claro para a adequação das
mulheres ao magistério infantil”, esclarecendo que essa escolha é determinada pela
89
necessidade de se atuar desde a mais tenra idade nas crianças pequenas, investindo no
processo de formação delas através da ‘segunda-mãe’ (ibid, ibiddem, p.107).
Analisando as entrevistas das mães, ao perguntarmos o motivo pelo qual seus filhos
freqüentam a creche, três referiram a matricula “prá que eu possa trabalhar, lá eles cuidam” e
duas “para aprender”. Com relação às crianças que freqüentam a escola, duas mães
responderam que “as crianças vão à escola para aprender”. Observamos, no gráfico abaixo,
que há consonância entre os motivos alegados pelas mães e a referência das crianças,
constatando que as que já freqüentam a escola, referem que “ir para estudar” é a razão de sua
matrícula; já as pequenas referem os mesmos discursos de suas mães.
Gráfico 5 - Motivo da matrícula segundo as crianças entrevistadas
0
1
2
3
creche escola
para a mãe
trabalhar
para aprender
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A , 2006. .Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
“Vou prá aprender coisas e prá mãe poder trabalhar; eu gosto porque a
comida é boa e bastante” (Caso 1/2005).
“Vou prá brincar e prá comer; lá as tias me cuidam prá mãe trabalhar” (Caso
2/2005).
“Prá brincar[...] prá mãe trabalhar” (Caso 3 e 7/2005).
“Vou prá brincar [...] lá a tia me cuida” (caso 4/2005).
“Vou prá aprender, prá ter trabalho depois” (caso 6/2005).
“Vou porque a gente tem que estudar prá aprender as coisas” (caso8/2005).
90
As respostas demonstram que a creche ainda é um local de cuidados, mais do que
aprendizado. Cuidados regulados, ritmados que seqüestram e segregam a população infantil,
criando uma dependência com relação ao adulto que manterá a linha divisória entre o
‘mundo-dos-que-tudo-sabem’ e ‘o mundo-dos-que-tem-tudo-a-aprender’ (NARADOWSKI,
2001).
A proposta de colocar-se as crianças em “espaços educativos fechados, mas ao
mesmo tempo específicos”, visa a oferecer e garantir cuidados e proteção às crianças e suas
famílias, porém, “os discursos [...] e a ação governamental se conjugam para [...] obter, pela
via do controle educacional, a potencialização de utilidade, o aumento das habilidades
cognitivas e a reforma moral das populações” (BUJES, 2003, p.135).
Para Barbosa (2000), os diversos métodos de educação, as rotinas às quais as crianças
são submetidas, “por amor ou por força”, vão moldando, subjetivando e adjetivando as
crianças, mesmo as mais pequenas. Afirma a autora que as rotinas servem como parâmetros
para o controle social, tendo servido de instrumento na avaliação e classificação das crianças
na educação infantil. Deixa claro que para inserir-se na complexa aliança família-escola, é
necessário que não se tenha a ilusão de que tudo seja feito por amor.
Buscando averiguar quem são os professores que participaram da pesquisa,
observamos que há uma grande variação com relação à sua formação e ao tipo de instituição a
que pertencem, creche ou escola. Observamos que a maioria deles tem formação de nível
superior (35), seguida do nível de pós-graduação (29), nível secundário (07), mestrado (02) e
fundamental (01).
Constatamos que nas creches encontramos profissionais de nível fundamental (01) e
secundário (05), havendo um predomínio da formação de nível superior (incompleta (11) e
91
completa (11)) e apenas quatro professores com pós-graduação. Nas escolas, encontramos
uma significativa inversão, com predomínio da formação de nível de pós-graduação (25),
treze com nível superior, um com mestrado e apenas dois professores com nível secundário.
Gráfico 6 - Formação dos professores X Instituição a que pertencem
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A. 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
Aprofundando essa questão, buscamos na análise do tempo de atuação na educação
mais referenciais e observamos uma variação interessante: dos setenta e três professores que
participaram, dezoito estão atuando em creches/escolas há menos de cinco anos, encontrando-
se a maioria deles em creches (14 professores); quatorze professores atuam entre cinco a dez
anos, estando oito em escolas e seis em creches; quinze professores, atuam entre dez e quinze
anos, estando doze deles em escolas e somente três em creches; dez professores, entre quinze
a vinte anos, estando sete em escolas e três em creches; onze professores, entre vinte e vinte e
cinco anos, estando sete em escolas e quatro em creches; apenas um deles, atua em escolas
entre vinte e cinco e trinta anos e dois há mais de trinta anos.
0
5
10
15
20
25
creches escolas
fundamental
dio inc.
dio comp.
superior inc.
superior comp.
pós-grad.
mestrado
92
Gráfico 7 - Tempo de atuação dos professores entrevistados
0
1
2
3
4
5
6
7
Creches
particulares
Creches
municipais
Escolas
particulares
Escolas
Municipais
Escolas Estaduais
até 5 anos
5-10 anos
10-15 anos
15-20 anos
20-25 anos
25-30 anos
+ 30 anos
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A., 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
Esses dados deixam claro que as exigências para a atuação nas creches ainda são
inferiores às do nível fundamental, reafirmando a creche como um local de passagem, um
local de aprendizado quando se é jovem e inexperiente, para uma atuação futura, capturando
não só a criança pequena, mas também a professora jovem. Local em que a Educação é
compreendida apenas no sentido de incluir a criança na sociedade em que ela se encontra, e
não como instrumento de preparação para as mudanças que se fazem necessárias para
conhecer o novo.
Continuando minha caminhada pelo labirinto, apoiada nos fios do novelo que levava,
surgiu-me a seguinte questão: como os professores vêem-se nessa relação com crianças
portadoras de HIV?
Ao serem questionados sobre seu conhecimento sobre a existência de crianças
portadoras de HIV em sua instituição, treze responderam que sim e sessenta que não.
Observamos que a maior freqüência de informação se deu nas instituições da rede municipal,
93
sendo as creches as mais informadas. Entendemos que as creches recebem maiores
informações sobre as patologias das crianças ali matriculadas em função do tempo que elas
permanecem ali, em média 10 a 12 horas diárias, necessitando as professoras de maiores
informações sobre a criança, seus hábitos e necessidades.
Gráfico 8 - Informação sobre a doença na matrícula das crianças
0
2
4
6
8
10
12
14
16
cr. Part. cr. Mun. esc. Part. esc. Mun. esc. Est.
sim
não
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A., 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
E o professor, qual é o seu modo de ver essa questão? Quando perguntados sobre
como vêem a presença dessas crianças na instituição, as respostas obtidas foram analisadas
em dois grupos: os que têm a informação (13) e os que não têm (60). Para os professores que
têm a informação, “a falta de conhecimentos sobre a doença” (08) e o “medo do contágio
(06) foram as preocupações mais presentes, seguidas pela “dificuldade em lidar com o
preconceito dos outros pais” (05), do “medo da responsabilidade” (04) e da “dificuldade em
lidar com o segredo” (02).
94
Gráfico 9 – Percepção do professor com relação à criança com HIV na instituição -
Professor com informação da doença
0
1
2
3
4
5
6
7
8
falta de informações
medo do contágio
dificuldade para lidar
com o preconceito
medo da
responsabilidade
dificuldade para lidar
com o segredo
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A., 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
“Quando soube, tive receio por falta de conhecimento maior, mas acolhi
como os outros”(Creche A/2005).
“Recebemos a informação pela Secretaria [...] a mãe pediu segredo com os
outros pais e nós não falamos para ninguém. Ela tinha vergonha, só falava comigo
[...] o preconceito dela é maior que o meu” (Creche B/ 2005).
“Fico com medo, é a primeira vez que eu sei. Tenho medo por não saber
lidar com ela, medo do contágio, não sei se ela precisa de cuidados especiais;
tenho medo pela responsabilidade com ela e com os outros” (Creche G/ 2005).
“Para mim o preocupante foi a criança e os pais, a agonia, a angústia de
ver o inocente sofrer [...] o mais difícil é com os pais, pela ignorância. Não tendo
conhecimento, eles criam o ‘bicho’, o medo, o medo do contágio. Não contando,
fica pior, só fica o medo” (Creche D/2005).
Temos que ter cuidado. Me preocupa mais os que nós não sabemos e não
podemos atender direito. Acho que não informam por vergonha, por medo da
discriminação (Escola N/2005).
“Não há problema no tratar como ‘prof.’. Além de ensinar, procuro a auto-
estima. Na escola atrapalha o preconceito dos próprios professores, todos fazem
de conta que não sabem” (Escola N/2005)
Entre os professores que não têm conhecimento de haverem crianças portadoras de
HIV nas suas instituições, “a dificuldade em lidar com o preconceito” (55) foi o maior
95
problema apontado, referindo-se ao “preconceito dos outros pais” (26), entre “os professores
(16) e entre os “coleguinhas” (13). Entre os maiores obstáculos à aceitação, referiram a “falta
de maiores informações sobre a doença” (26), a “falta de material e condições físicas para o
atendimento” dessas crianças (14) e o “medo do contágio” (11).
Gráfico 10 - Percepção do professor com relação à criança com HIV na instituição –
Professor sem informação da doença
0
10
20
30
40
50
60
dificuldade para lidar com o
preconceito
preconceito dos outros pais
preconceito doe professores
preconceito dos coleguinhas
falta de informações sobre a
doença
falta de material e condições
físicas
medo do contágio
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A., 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
“Vejo bem, só me sinto insegura porque não sei como trabalhar com os pais
e com o psicológico da criança [...] muitas vezes elas nem sabem, e se sabem não é
prá contar” (Creche A/2005).
“Haveria um contratempo, a criança é diferente, haveria um impacto[...]eu
teria medo por não sabe direito o que é a doença, os cuidados” (Creche E/2005).
“Seria complicado, em sala de aula já surgiu preconceito contra aidéticos.
Há tabu em falar sobre aids” (Escola U/2005.)
“Com a criança não haveria problema. O problema é com o segredo e o
preconceito. O que não pode ser falado é que mostra o quanto há de preconceito
(Escola Q/2005).
“Não sei como seria, mas não sei como venceríamos o preconceito com os
outros pais, seria uma debandada só!”(Escola L/2005).
96
Constatamos que, sabendo ou não da informação, o preconceito é considerado o maior
obstáculo encontrado, ressaltando a representação de ‘doença maldita’. Aqui fica claro o
papel da representação e da forma discriminatória como as informações sobre a patologia são
construídas e difundidas na sociedade. Enfrentar seus preconceitos e assumir uma postura de
enfrentamento ainda é assustador.
O medo do desconhecido leva as pessoas a criar representações porque o novo ameaça
a ‘ordem’ estabelecida e sua sensação de controle, de poder sobre o mundo. Os sentimentos
de impotência que a aids gera, evocam padrões de defesa que a associam com ‘a praga, a
peste’, transformando-a em algo ameaçador.
Nomear o responsável pelo mal facilita o distanciamento da situação ameaçadora.
Delumeau (1989) demonstra que, ao longo da história, três modelos de explicações eram
comumente formuladas para explicar a origem das pestes: a primeira, dos eruditos,
relacionava a doença à “corrupção do ar”; a segunda, do povo, responsabilizava os
“semeadores do contágio”; e a terceira, “assegurava a Deus” a decisão de vingar-se dos
pecados cometidos por aquela população.
Mesmo com todo o conhecimento que hoje a ciência nos oferece, percebemos
claramente que essas representações ainda se fazem presentes. No início do século XX, a
sífilis caracterizava depravação moral e sua transmissão era referida às prostitutas e mulheres
negras e/ou pobres. Nada mudou. Hoje, a aids, outra das ‘doenças sexualmente
transmissíveis’, ainda representa a contaminação semeada e disseminada pelos pecadores.
Afirmam John Cook e Damien Rwegera que “a crença em uma prática particular que
possa conduzir à sida (ou proteger contra a sida) não é isolada mas constitui uma parte de um
tecido complexo de atitudes, de crenças e de práticas que se experimenta dentro de um
97
contexto econômico e social” (tradução livre) (1993, p. 174)
24
. Essa fantasia de que há uma
proteção especial, divina para os bons, para os que cumprem a ‘norma’ ainda existe nos dias
atuais. Observamos nos comentários dos professores essa crença e essa preocupação, quando
se referem à falta de um conhecimento prévio, um saber que os protegeria de forma especial e
definitiva.
“Eu não saberia cuidar, não sei se precisa separar os talheres, a roupa, se
precisa isolamento com o banheiro, como fazer [...] eu teria medo de me contagiar
e da responsabilidade com as outras crianças [...] os pais me responsabilizariam
pelo contágio dos outros [...] o contágio cria o medo [...] prá ser sincera, seria
muito difícil” (Creche E/2005)
“Não me sinto preparada, a aids assusta porque não tem cura. Fui falar
com um médico amigo meu e ele me assustou. Precisamos de mais informação,
nem na faculdade há essa informação” (Creche G/2005).
“Para mim seria difícil porque nunca recebemos essas informações, essas
orientações dos cuidados que tem que ter, o que fazer numa hora dessas. Tenho
muito medo da contaminação, não sei. Num curso de extensão que fiz eles nem
falaram das doenças contagiosas [...] acho que ali eles também foram excluídos”
(Escola I/2005).
Isolar, separar, segregar para melhor cuidar, para proteger a sociedade. Higienizar a
sociedade, regenerar física, moral e intelectualmente, intervindo nos corpos e nas mentes das
crianças, disciplinando para corrigir. A partir do desconhecimento com relação à aids,
constatamos, nos relatos dos professores, o quanto a idéia de exclusão está embutida nos
diversos discursos que constroem a escola. Discursos que não são exclusivos à Aids, mas que
re-apresentam o preconceito embutido nas representações das diversas patologias quando
associadas ao modo de vida sexual, conjugal (COSTA, 1989).
24
“ Une croyance ou une pratique partculière qui pourrait conduire au Sida (ou proteger contre le Sida) n’est pás
isolée mais constitue une partie d’um tissu complexe d’atitudes, de croyances t pratiques qui s’experiment
dans um contexte économique et social” (COOK & RWEGERA, 1993, p.174).
98
Complementando a questão anterior, os setenta e três professores foram questionados
quanto a se sentirem preparados para acolher uma criança com essa patologia. Para ampliar a
compreensão, dividimos as respostas em dois grupos: um, que se refere aos professores que
se sentem em condições de acolher uma criança portadora de HIV (37); e outro, dos que não
se sentem preparados (36). Os dados encontrados são surpreendentes no que tange às
representações que convivem no ambiente escolar.
Para trinta e dois professores, a maior dificuldade é “a falta de maiores informações
sobre a doença e a falta de treinamento” (12/20). Observamos entre as respostas uma grande
preocupação frente ao desconhecimento e à falta de orientação e apoio por parte dos órgãos
público de referência (Secretarias de Saúde e Educação).
Gráfico 11 - Professores X acolhimento da criança com HIV
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO,M.A., 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
“Faltam informações de como agir, como cuidar, como lidar com o coletivo.
Nunca fomos treinados. Eu não espero nunca receber uma criança assim, não sei
como vai ser“ (Creche E/2005).
“Falta esclarecimento, não sabemos os cuidados necessários para as
situações do dia-a-dia; [...] falta suporte, estrutura física e pessoal” (Creche
G/2005).
0
5
10
15
20
25
30
35
40
sim o
total
falta
treinamento/informaçã
o
associaram à
deficiência
não sabe como agir
com as crianças
infectadas
não sabe lidar com o
segredo
99
“Falta o conhecimento dos cuidados com a criança. Me formei agora e não
tivemos este conteúdo. Fiz um curso de extensão em Educação Especial e não
trataram das doenças infecto-contagiosas. Fez falta!”(Escola I/2005).
“Tentaria dar o exemplo, mas ainda falta informação. Nos treinamentos
falam de Aids em segundo plano” (Escola S/2005).
Para nossa surpresa, encontramos a aids associada à deficiência/excepcionalidade em
trinta e duas entrevistas, sendo essa associação mais freqüente entre os professores que não
têm conhecimento da informação na creche/escola (4/28).
“Vejo a aids como o excepcional. Tem que estimular porque eles podem
render, tem que conviver como se fosse um normal” (Creche C/2005).
“É como os que têm deficiência,que são especiais; temos que tratar os
diferentes como se fossem normais. Aqui temos uma surda-muda e é tranqüilo”
(Escola P/2005) .
Esses comentários mostram claramente o quanto a aids ainda é relacionada a um
estado excepcional, especial, de doença mórbida, em que os pacientes, quando
diagnosticados, já se encontravam debilitados, incapazes de conviver e participar ativamente
da sociedade, ao anormal, ao deficiente, ao monstro, àquele que transgride a lei. Mas atenção:
“Só há monstruosidade onde a desordem da lei natural vem tocar, abalar, inquietar o direito
civil e religioso”, uma figura que nasce contaminada e que pode contaminar; e contaminando,
reativa o medo do contágio e com ele a segregação, a separação, marginalizando todo
portador de HIV, criança ou não, expulsando para “purificar a comunidade”(FOUCAULT,
2001, p.39-65).
Apesar de todas as informações que são veiculadas pela mídia referentes à excelente
resposta que a utilização dos medicamentos retrovirais (“coquetel”) oferecem, com uma
100
sobrevida de qualidade e de plena possibilidade de participação, o mito da “doença terminal”
ainda existe e três professores sugeriram a criação de creches/escolas especiais.
“Acho tudo isso muito difícil, eles são muito fraquinhos. Penso que seria
melhor uma creche especial para eles serem melhor tratados, até para as mães,
poderiam ficar amigas”(Creche A/2005).
“O que atrapalha é o medo do contágio [...] não sei se não era de ter uma
escola especial, com mais recursos para atende-los melhor” (Escola L/ 2005).
“Tentaria dar o exemplo, mas ainda falta informação. Nos treinamentos
falam de Aids em segundo plano. Era melhor uma escola só para eles” (Escola
S/2005).
Pergunto: como chamaríamos essas creches/escolas? Aidiários? Seria essa a atitude
ideal no sentido de proporcionar às crianças portadoras de HIV assistência adequada? Ou
seria essa a solução ‘ótima’ para aqueles que não querem enfrentar seus preconceitos e a
realidade da diferença da qual somos todos constituídos?
Sob a máscara de uma melhor atenção, melhores cuidados, ou a possibilidade de
convívio para “essas mães”, infectadas, anormais, vemos claramente o modelo da peste, do
século XVIII, se renovando nos discursos dos professores. Para Foucault, territorializar os
infectados, organizando-os em grupos, creches especiais, escolas especiais, fixando-os,
atribuindo-lhes “o” lugar, separando os sadios dos doentes, numa reação positiva, “é uma
reação de inclusão, de observação, de formação de saber, de multiplicação dos efeitos de
poder a partir do acúmulo da observação e do saber” (FOUCAULT, 2001, p.59-60),
aumentando assim o controle, individualizando, normalizando. Rejeitar para incluir, para
manter excluído.
Encontramos no Chile este sistema oficializado. A rejeição, e a conseqüente exclusão
que esta determina, está de tal forma constituída, que o MOVILH - Movimento Chileno de
101
Integração e Libertação Homossexual
25
encontrou como alternativa para as minorias que
representa, criar a Primeira Escola para Homossexuais e Pessoas vivendo com HIV da
América Latina, graduando sua primeira turma em setembro de 2005. Acredito que o
movimento tenha a melhor das intenções e que, certamente não tenha encontrado outra forma
de garantir a esses alunos a oportunidade de se re-construir, cidadãos. Mas, será esse o
caminho? Não estaríamos mantendo o sistema que Foucault já havia denunciado?
Concordo com Stéphane Tessier quando afirma que as crianças portadoras de HIV
devem desenvolver-se em seu ambiente natural, não necessitando de isolamento particular.
Reafirma que “os’sidatoriuns’ são, de fato, unanimamente condenados na literatura, tanto por
seu aspecto desumano e eticamente injustificável como por sua ineficácia epidemiológica”
(grifo do autor) (tradução livre) (1993, p.221)
26
.
Torna-se difícil mudar os paradigmas, as verdades que estão cristalizadas na sociedade
quando não nos abrimos à experiência com o novo. Mas o que é novo?
Novo é abrir-se à discussão de uma realidade que põe em cheque os velhos esquemas
de ‘normalidade’, de inclusão. A associação da aids com a deficiência e/ou excepcionalidade
nos mostra o quanto a lei de inclusão de portadores de necessidades especiais está sendo
percebida e recebida como uma imposição, como uma obrigação para a qual os professores
ainda não se sentem devidamente preparados. Mesmo para os professores que referem
aceitação, esta associação mostra o quanto não se sabe, ou não se que saber sobre a aids, o
quanto os velhos esquemas se mantém.
25
Encontrado em: http://www.movilh.org/modules.php?name=News&file=print&sid=238, acessado em
21/1/2006.
26
“Les ‘sidatoriuns’ sont em effet presque unanmement condamnés dans littérature, tant pour leur aspect
inhumain et éthiquement injustifiable que pour leur inefficacité épidémiologique” (TESSIER, 1993, p. 221)
102
“Para mim a inclusão é complicada porque nós trabalhamos com o corpo
Não há infraestrutura nenhuma, não temos material para atender as crianças. Com
certeza eu procuro incluir todo mundo no grupo, mas a realidade é essa, se algum
colega sabe, qualquer coisa, está marcado de vez. Falta a inclusão da família, o
tabu é enorme, esse eu acho o maior problema, eles estão soltos, a família não está
nem aí.” (Escola S/2005).
Micheline D’Agostino, em documento publicado pelo Centre Internacional de
l’Enfance, chama a atenção para o fato que
a criança soropositiva ou aidética, por viver normalmente, deve compartilhar das
atividades de outras crianças, ter interações sociais com crianças e com adultos, [...]
a mais normal possível. Nada deve distingui-los. [...] A infecção por HIV é uma
doença transmissível e não uma doença contagiosa permitindo a inserção em
coletividade qualquer que seja a creche ou a escola (tradução e grifos meus) (1993,
p. .247 e 249)
27
.
Em artigo publicado pela Academia Americana de Pediatria, a Comissão para Aids em
idade pediátrica também emitiu uma série de recomendações que foram difundidas no Brasil e
em outros países. Entre elas, recomenda que as crianças portadoras de HIV não devem ser
excluídas da escola, uma vez que a “difusão da infecção em ambiente escolar não se encontra
documentada e o medo da sua contagiosidade deve ser afastado através da educação
apropriada de todo pessoal da escola”.
28
Encontramos, também, referência àdificuldade em lidar com o segredo” (3/19). Aqui
ficou claro que a dificuldade de conviver com a criança e não poder conversar com liberdade,
estabelece um regime de segredo que aparece como doloroso tanto para a criança como para a
professora. Nos depoimentos, também encontramos referência ao regime de segredo que se
estabelece entre a mãe e a instituição, revelando para nós o quanto o professor também sofre
por estar submetido a este regime.
27
“L’enfant séropisitif ou sidéen pour vivre normalement doit partager lês activités dês autres enfants, avoir des
interactions sociales avec dês enfants et dês adultes [...] la plus normale possible. Rien ne doit lê distinguer dês
autres.[...] L’infection pour VIH est une maladie transmissible et non une maladie contaieuse permettant l’insertion
en collectivité quelle qu’elle soit compris la creche et l’école” (d’AGOSTINO, 1993, p. 247 e 249).
28
Ver: “Educação de crianças infectadas com vírus da Imunodeficiência Humana”. Academia Americana de Pediatria
– Comissão para a Aids em idade pediátrica. Pediatrics, outubro/2000, vol. 4, nº9, p.559-562.
103
“Acho que o professor deveria saber e poder falar com a criança. Saber
como a criança vê a doença, como vê a morte, a vida, se ele pensa nisso ou não.
Temos que saber direto, não pelas entrelinhas, eu não teria coragem de tocar no
assunto, para não ferir, mas gostaria de saber para poder ajudar” (Escola N/2005).
“É ruim não poder falar. Como ele é pequeno, não tem noção, mas a mãe
não tocou no assunto comigo. A informação veio da secretaria, e eu não toquei no
assunto, acho que a mãe ficaria constrangida. Ela sabe que eu sei porque me dá o
remédio, mas nem sei o nome dela. Isso é ruim, eu queria poder falar com ela, ajudar,
ouvir, mas não posso falar” (Creche H/2005).
As representações que a sociedade utiliza para designar uma criança portadora de HIV
são responsáveis pelo destino das emoções dessa criança. Se a sociedade a representa como
um ser monstruoso, que põe em risco todos os coleguinhas, é dentro deste enfoque que todo o
sistema de educação irá se organizar, e a criança irá se “adaptar, se enquadrar”. Mas, “se o
educador compreende que esta criança não teve a oportunidade de aprender a gerar as
emoções em seu meio, então ele oferecerá o lugar onde se possa metamorfosear o horror”
(tradução livre) (CYRULNIK, 1999, p.72)
29
.
Para o autor, a escola pode ter “o significado de um paraíso num cotidiano de inferno”,
possibilitando a construção e desenvolvimento de diversos mecanismos de defesa, que
permitirão “o enriquecimento afetivo, a valorização de si mesmo, a idealização (projeção), a
intelectualização, o trabalho, a esperança de um retorno material, ganhar dinheiro ao invés de
miséria, dar uma coragem mórbida para a obtenção de um diploma que venha a ser o bálsamo
que cura tudo” (tradução livre) (ibiddem, p. 96)
30
. Cura que re-habilita a um convívio
saudável, responsável por si e por aqueles que o cercam.
29
“[...] si l’educateur comprend qu’um tel enfant n’a pás eu l’occasion d’apprendre à gérer lês émotions qui lê
débordent, alors il lui offrira dês lieux ou l’on peut métamorphoser l’horreur” (CYRULNIK, 1999, p.72).
30
“[...] la signification d’un moment de paradis dans un quotidien d’enfer, [...] le réchauffement affectif, la
revalorisation de soi, l’idéalisatiion, l’ intellectualisation, l’activism, l’espoir d’une revanche matérialiste, gagner de
l’argent contre la misère, donnent un courage morbide à ces enfants pour qui l’obtention d’n diplome devient lê
baume qui guérit tout” (CYRULNIK, 1999, p.96).
104
Ao questionar os professores quanto ao papel da creche/escola como instrumento de
inclusão das crianças portadoras de HIV na sociedade, todos responderam afirmativamente,
salientando a importância do convívio, tanto nas creches como nas escolas, relacionando-o ao
aumento da auto-estima” (23/16), à “diminuição da rejeição e do preconceito (13/26). Para
sessenta e quatro professores, a possibilidade de “brincar e ter momentos de alegria aumenta
a auto-confiança e melhora a evolução da doença” (30/34).
Gráfico 12 - Professores X instituição como instrumento de inclusão de crianças com HIV
0
5
10
15
20
25
30
35
creches escolas
convívio aumenta auto-
estima
convívio diminui
rejeição e preconceito
brincar e ter momentos
de alegria aumenta a
auto-confiança e
melhora a evolução da
doença
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A., 2006. Mestrado em Educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
Acho importante o convívio, para ter ânimo de viver, pela amizade dos
colegas, pela alegria. O vínculo com a escola aumenta a auto-estima e ajuda a vencer
a barreira do preconceito. A escola pode ser possibilidade de abrir outras portas
para o convívio” (Escola N/2005).
Para ambos os grupos, a valorização do ‘brincar’ na vida das crianças é de
fundamental importância. Muitas vezes é no brincar que as diferenças se dissolvem,
brincando elas sentem-se semelhantes, sem as diferenças que a sociedade lhes imputa.
Alegria de viver, alegria de brincar, que “permite nos diferenciar da dor, incluir um
limite, uma fronteira entre o sentimento que nos embarga e nós mesmos, e somente a partir
105
daí pode tornar-se pensável a dor. Sem alegria, a dor torna-se impensável porque não se
diferencia da pessoa” (FERNANDEZ, 2001, p.122).
Constatamos a importância da possibilidade de brincar nas falas das crianças ao se
referirem ao que mais gostavam na creche/escola
“De brincar, gosto quando posso brincar, mas não posso correr para não
me machucar” (caso 1/2005).
“Gosto da comida, [...] das crianças para brincar, [...] eu gosto de estória”
(caso 3/2005).
“De TV, de desenho, dos coleguinhas para brincar. Eu gosto de jogar bola”
(caso 4/2005).
“Gosto de Educação Física e de Desenho O recreio é legal porque jogamos
futebol e a ‘dire’ deixa. O que eu mais gosto é de jogar futebol e jogar bulita com
os guris na escola” (Caso 6/2005).
“Gosto é de jogar bola, mas não posso jogar para não me machucar” (Caso
7/2005)
Observamos que, mesmo proibidos de brincar com liberdade de escolha, mesmo
comprometidos com “o segredo”, pertencer a um grupo torna-se a possibilidade de criar um
espaço de transferência onde possa dividir sua experiência e re-construir com o outro,
autorizando-se a pertencer e participar.
Brincar, ‘fazer-de-conta’, é produzir em si um estado de alegria e prazer que a vida
com aids não proporciona. ‘Fazer-de-conta que sou normal’, que ‘não sou doente’, tem sido
para muitas crianças o único momento de vida sem dor. Projetando no personagem a sua dor,
a criança transforma o ‘modo-de-ser-com-dor’, aceitando e superando os limites que esta
realidade impõe.
106
“Gosto de brincar e de ver filminho. A gente viu o filme do ‘Nemo”, [...] ele
não tem mãe e eu não tenho pai [...] a mãe dele foi o tubarão que comeu; o meu pai
foi de doença(caso 2/2005) .
Fernández nos alerta quanto à necessidade da alegria no processo da aprendizagem,
alegria como oxigênio da autoria, oxigênio que o professor necessita ter primeiro para depois
poder oferecer a seus alunos, num processo de produzir em nós o que queremos produzir no
outro, ensinante/aprendente, olhando cada aluno como único no desafio do encontro com o
novo, entendendo que aprender é construir-se simultaneamente e que "[...] entre ensinar e
aprender abre-se um espaço. Um campo de autorias, de diferenças. Aprender é a-prender, ou
seja, não-prender. Des-prender e desprender-se" (2001, p.34).
Eu gosto de brincar, lá tem brinquedos e criança. Eu dou risada lá porque a
‘tia’ faz palhaçada, ela é bem querida” (Caso 8/2005).
Somos seres de relação, e nas interações sociais, a pessoa constrói sua concepção do
mundo e de si própria, significando e sendo significada através de diversas situações que
possibilitam experiências de inclusão/exclusão. Enquanto perdurar a “lógica bipolar dentro da
qual todo o outro, todos os outros são forçados a existirem e subsistirem”, toda alteridade
continuará a ser reduzida a uma “alteridade próxima”, conhecida, parecida, um “simulacro de
uma não menos identidade normal” (SKLIAR, 2005, p.56-57).
Diminuir a rejeição e o preconceito baseia-se no exercício de aceitação. Aceitar as
diferenças não é tolerá-las. Aceitar não é consentir que a diferença se manifeste; aceitar é
reverter o que está pré-determinado, o pré-conceito. “Ao entender a tolerância como uma
virtude natural ou como uma utopia incontestável, se ignora a relação de poder que lhe dá
razão e sustento” (tradução livre) (SKLIAR, 2002, p.104)
31
.
31
“[...] al entender la tolerancia como una virtud natural o como una utopia incontestable se ignora la relación de
poder que le da razón y sustento” (SKLIAR, 2002, p.105).
107
Louro alerta para a necessidade de uma “atenção crítica que desconfia da inocência
das palavras”, ao referir-se aos apelos no sentido de uma “tolerância e respeito aos diferentes”
encontrados no discursos oficiais, questionando a propagada “neutralidade dos discursos” que
transferem para o pessoal uma mudança que deve ser fruto de ação política coletiva (2005,
p.48).
Para Larossa
As diferenças deveriam ser o lugar para a compreensão, [...] para o exercício
de um tipo de diálogo e de relação com o outro que asseguraria a emergência de
uma comunidade mais plural, a que pertenceriam pessoas com uma identidade
cultural mais complexa, com uma mente mais ampla, com formas de vida mais
flexíveis e ricas, com um pensamento mais aberto e com um tônus emocional mais
receptivo e tolerante (tradução livre) (2002, p.73).
32
Formas de vida flexíveis, capazes de se deslocar sem fraturar, resilientes. De forma
brilhante o autor nos mostra que é na diferença e através dela que nos tornamos resilientes,
capazes de suportar as situações de dor e desprazer resistindo. Resistindo, mas permitindo a
troca necessária, permitindo que o novo me toque e me transforme, provocando em mim os
deslocamentos, os movimentos necessários à maior flexibilidade. Ser flexível, ir e vir. Devir.
Experimentar um novo modo de ser que se constitua na possibilidade de metamorfosear a dor,
escapando numa linha de fuga que permita escapar do controle e da exclusão que a sociedade
impõe aos portadores de aids e de toda diferença.
Ser criança, vínculos a se construir, corpos a crescer e se transformar continuamente, o
novo a cada instante, aprendendo a caminhar, descobrindo o fazer. O modo como se é
preenchido pelo outro determina este ou aquele caminho a seguir. E nestes caminhos, o mapa
32
“Las diferencias deberían ser el lugar para la comprensión, es decir, para el ejercicio de un tipo de diálogo y de
relacion con el [ ...] otro que aseguraría la emergencia de una comunidad más plural a la que pertencerían
personas con una identidad cultural más compleja, con una mente más amplia, con unas formas de vida más
flexibles y ricas, con un pensamiento más abierto y con un tono emocional más receptivo tolerante”
(LAROSSA, 2002, p.73).
108
será instrumento para guiar e trilhar o labirinto de sua dor. Encontros, trocas que serão fios,
apoios, fontes de amizade e confiança: o professor.
E como os professores avaliam seu papel junto à criança com HIV?
Perguntamos se acreditam que sua presença e participação são importantes no
processo de evolução da doença. Todos responderam positivamente, tendo cinqüenta e seis
professores afirmado que “aceitar sem discriminar é importante para a aprendizagem”, por
serem “modelo de referência” para as crianças (37) e por “saber ouvir” (32). Em quarenta e
duas entrevistas, os professores afirmaram sua importância por serem “fonte de apoio e
carinho”.
Gráfico 13 - Participação do professor X Evolução da doença
0
10
20
30
40
50
60
70
80
total
sim
aceitar sem discriminar
é importante para a
aprendizagem
modelo - referência
por saber ouvir
ser fonte de apoio e
carinho
Fonte: Pesquisa de campo: PIZARRO, M. A., 2006. Mestrado em educação nas Ciências, UNIJUÍ/RS.
Aceitar sem discriminar, ser professor livre da pedagogia da diminuição, livre da
desigualdade, da criação de diferenças de valor. Trata-se aqui de uma escolha: ou se é o
professor que instrui ou o que forma. Instrução tem a ver com o que se sabe; formação, com o
que se é. Logo, tanto uma escolha quanto a outra determinam uma educação baseada na
diferença e na desigualdade. Formar o aluno para ser o que está pré-determinado, pré-
conceituado na escola e na sociedade, é alinhar-se a esta ordem pedagógica que funda e
109
fundamenta a desigualdade, fomentando a discriminação, que impede a aventura intelectual e
moral da igualdade. Igualdade como “potência da comum humanidade que radica na
capacidade comum da palavra, no reconhecimento, em cada homem da dignidade comum da
palavra” (LAROSSA, 2004, p.283).
Igualdade que assume o reconhecimento do direito a ser humano, igualdade com o
reconhecimento do direito à diferença, igualdade que reverta o apartheid a que estão
condenados todos aqueles considerados diferentes, garantindo a qualquer um “o direito de ser
iguais quando a diferença nos inferioriza e ser diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza” (SANTOS, 2003, p.61-64)
A produção de uma subjetividade coletiva, massificada é responsável por indivíduos
normatizados, robotizados, articulados entre si e aos sistemas de valores aos quais se
submetem, entendendo que a possibilidade de uma revolução refere-se à possibilidade de
produzir-se uma singularização existencial, ou seja, “uma singularidade na própria
existência das coisas, dos pensamentos das possibilidades. É um processo que acarreta
mutações no campo social inconsciente para além ou aquém do discurso” (grifos do autor)
(GUATTARI & ROLNIK, 1986, p.185).
Espera-se que a Educação seja um instrumento, uma ferramenta para ajudar a
construção de um processo de formação que contribua para a transformação da sociedade.
Essa concepção exige um olhar de maior integração e ação conjugada das diferentes áreas
temáticas e propicia processos permanentes de apoio entre as instituições formadoras, sendo
um desafio permanente à construção de processos de educação continuada, integrado e
sustentável.
A educação continuada parte do pressuposto da aprendizagem significativa e propõe
que a transformação das práticas discursivas esteja baseada na reflexão crítica. O
110
conhecimento não pode ser separado de sua existência como signo, logo o currículo
representa o universo de forças e ‘verdades’ que regem a sociedade. A lógica da educação
permanente é descentralizadora, ascendente e trans/ interdisciplinar. Essa abordagem pode
propiciar a democratização da instituição, o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem,
da capacidade de docência, bem como a constituição de práticas técnicas críticas, éticas e
humanísticas.
Existe, na educação em saúde, uma correlação entre o grau de conhecimento sobre as
doenças, seus fatores de risco, formas de prevenção e tratamento e a adoção de hábitos
saudáveis pelo indivíduo e pela comunidade. É amplamente aceita a noção de que indivíduos
mais bem informados sobre saúde e formas de transmissão e prevenção de doença estão mais
atentos a comportamentos preventivos e têm melhores condições de reagir às doenças.
Entretanto, a tarefa torna-se especialmente instigante porque estamos falando de uma
doença que até hoje traz um estigma muito grande, expondo seus portadores aos olhares
moralistas e discriminadores da sociedade, associando a condição de portador do HIV às suas
possíveis práticas sexuais e/ou uso de drogas e álcool.
Observamos, também, que o preconceito e a discriminação estão presentes e são
localizados nas falas de todos: crianças, pais e professores. Essa discriminação é mais fácil de
ser localizada no outro do que em si, deixando claro que essa naturalização foi, e é, construída
nas rotinas, nos discursos, nos currículos, nas relações sociais, constituindo práticas sociais
inseridas no nosso modus vivendi.
Refletir sobre esse modo de viver e conviver, nos reporta à idéia da Educação em
Direitos Humanos. A partir de 1988, com a aprovação da nova Constituição Brasileira, e, em
1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, educar para a cidadania
tornou-se o objetivo central das políticas públicas. Com a instituição da Rede Brasileira de
111
Educação em Direitos, em 1995, estabeleceu-se uma permanente discussão entre as
organizações e instituições que desenvolvem trabalhos na área de educação em direitos
humanos no Brasil.
Como resultado dessas discussões, chegamos ao Programa Nacional de Direitos
Humanos - PNDH, em 1996, que foi atualizado em 2002, tendo como eixo central garantir o
direito à educação e à saúde, assim como desenvolver propostas dirigidas à consolidação de
uma cultura de respeito aos direitos humanos.
Essa atualização se deu em consonância ao compromisso assumido, em 2001, na
Conferência Mundial contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância
correlata (ONU, 2001) onde, em seu artigo 75, a ONU declara sua preocupação:
Observamos com profunda preocupação o fato de que, em muitos países,
pessoas afetadas ou infectadas por HIV/Aids, assim como aquelas que estão
presumivelmente infectadas, pertencem a grupos vulneráveis ao racismo, à
discriminação racial, à xenofobia e à intolerância correlata, o que lhes acarreta
um impacto negativo e impede seu acesso aos serviços de saúde e à medicação,
referendando o PNDH, em seu artigo 95, como proposta de medidas de prevenção, educação e
proteção, o reconhecimento de que,
a educação em todos os níveis e em todas as idades, inclusive dentro da família, em
particular a educação em direitos humanos, é a chave para a mudança de atitudes e
comportamentos baseados em racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância
correlata e para a promoção da tolerância e do respeito à diversidade nas
sociedades; afirmamos ainda que tal tipo de educação é um fator determinante na
promoção, disseminação e proteção dos valores democráticos da justiça e da
igualdade, essenciais para prevenir e combater a difusão do racismo, da
discriminação racial, da xenofobia e de intolerância correlata.
Mudar modos de ver é possível numa sociedade que aceita, e aceitar não é tolerar.
Aceitar é estar aberto a aprender permanentemente, aprender para além de qualquer controle.
112
Logo, se é na fresta entre as diferenças que se dá a aprendizagem, resistir é sempre
uma possibilidade na busca de sair do labirinto das convenções pré-estabelecidas. A
possibilidade da escola ser um local de resistência está diretamente ligada à maneira como o
currículo é construído e utilizado. Um currículo transversal, que oportunize o aprendizado das
relações heterogêneas por si, que não busque a regulação das diferenças, que estimule a
diversidade e a multiplicidade, cria a possibilidade de maior aceitação entre os indivíduos e
oportuniza a experiência de “uma solidariedade mundial que não seja simplesmente uma
solidariedade entre cidadãos, mas que poderia ser também uma solidariedade dos seres vivos”
(NASCIMENTO, 2001).
Como disse a irmã, de uma das crianças entrevistadas:
“Acho a escola super importante para todos,[...] a forma como a escola
aceita, como se põem na frente dos pais é que acaba com o preconceito. O que
falta é informação [...], no fundo as pessoas não procuram saber sobre a aids,
como se isso não fosse acontecer com elas, ou com os vizinhos, ou com os colegas,
como se vivessem numa bolha, protegidos, daí quando a coisa acontece, aparece
na frente delas, saem correndo. É assim com tudo, com aids, com gravidez, com
drogas. Preferem viver como na TV!” (irmã, caso 6/ 2005).
O processo de aprendizagem não pode ser entendido como um processo maquínico,
artificial. Ensinar não se resume a aplicar conteúdos, treinar seus alunos, é algo mais, “o
produto da aprendizagem não é uma reprodução mecânica, repetição mesmo, mas uma
atividade criadora, que elimina o suposto determinismo do objeto e do ambiente, atividade
sempre e, devir” (KASTRUP, 1999, p.150). Educação como algo que nunca termina,
continuidade, fluxo, “como poesis, como um tempo de criatividade e criação que não pode
orientar-se até o mesmo, até a mesmidade” (tradução livre) (SKLIAR, 2002, p.117)
33
.
33
“[...]como poesis, [...] como um tiempo de creatividad y de creación que no puede ni quiere orientarse hacia lo
mismo, hacia l mismidad” (SKLIAR, 2002, p.117).
113
Ao desenvolverem o conceito de autopoiese, Maturana e Varela demonstraram que o
processo de conhecer é muito mais amplo que a concepção de pensar, envolvendo além da
percepção, emoção, ação, também a linguagem e o pensamento conceitual. Afirmam, eles,
que o mundo em que vivemos é configurado por nós, que cada um de nós gera o mundo em
que vive, sendo nossa a responsabilidade de estabilizar as relações humanas, dizendo que as
pessoas são de uma determinada maneira e negando-lhes, ou não, a possibilidade de mudança
(1997).
A possibilidade de se relacionar apóia-se na liberdade de conversar, na experiência de
ampliar nossa capacidade de ver o outro como um igual e aceitá-lo com suas diferenças junto
a nós, num aprendizado-de-ser-aluno/professor. Pensar a infância como um outro que traz o
novo, um outro que inquieta a "segurança de nossos saberes", nos coloca como instrumento
de mudança, abertos à experiência de ser também re-formado pelo outro, vivenciando a
realidade que não conhecemos.
Para Larossa,
talvez tenhamos que aprender a nos apresentar na sala de aula com uma cara
humana, isto é, palpitante, expressiva, que não se endureça na autoridade. Talvez
tenhamos que aprender a pronunciar na sala de aula uma palavra humana, isto é,
insegura e balbuciante, que não se solidifique na verdade. Talvez tenhamos que
redescobrir o segredo de uma relação pedagógica humana, isto é, frágil e atenta,
que não passe pela propriedade (2000, p.165).
Essa ‘cara mais humana’, de alguém que se emociona, de alguém que, na posição de
professor, re-age aos estímulos, ao sorriso e às lágrimas de uma criança, alguém que se trans-
forma ao ser per-passado, atravessado pelo outro, numa biologia de intimidade, numa relação
de amor, de aceitação, de alegria. Muitas crianças têm no seu professor favorito um modelo
de identificação e fazem de sua creche/escola seu lugar de referência, seu lar, aquele lugar
114
onde ‘sabem’ que possuem fontes de apoio e compreensão, aquele lugar onde o riso e a
alegria podem estar presentes, aquele lugar seguro.
Para trinta e sete professores ser modelo de referencia qualifica sua participação na
vida de seus alunos, ouvindo-os e sendo fonte de apoio e carinho, ser amigo, companheiro de
caminhada, se aproximando das experiências deles e permitindo que eles se aproximem de
suas experiências, sendo e fornecendo fios com os quais cada criança, à sua maneira, irá tecer
suas cordas; cordas com as quais irá atravessar o labirinto de suas vidas, promovendo a
resiliência.
“O professor é o apoio, o porto seguro. As crianças têm no professor o que
não tem em casa, o vínculo para dividirem seus segredos O professor tem tempo
para escutar, a criança não rejeita”. (Creche A/2005)
“O professor representa aceitação, aconchego, segurança, tranqüilidade.
Acho que, para as nossas crianças, aceitar é mais importante que ensinar”.
(Creche B/2005)
“Este acolhimento determina o acolhimento dos outros. A disposição, o
desejo de estar aceitando o desafio, saber ouvir. Onde o professor rejeita todos
rejeitam. Não tem receita tem que se envolver”. (Escola J/2005)
“O professor traz de maneira lúdica a criança para o mundo, sem sentir,
através da brincadeira. Trazer a criança para a realidade, de um jeito mais suave,
dividindo sua história, ouvindo, rindo, chorando, sei lá, acho que se envolvendo
com a criança. Eles não põem barreiras para a felicidade. Nós é que
pomos!”.(Creche H/2005)
Permitir à criança descobrir (se), construir (se), aceitando-a e sendo fonte de apoio às
suas descobertas, confirmamo-la na aceitação de si, na descoberta de si e de um auto-respeito
que possibilitará uma convivência segura e flexível com seus parceiros. É na ética de uma
relação amorosa que possibilitamos à criança desenvolver habilidades que a tornem mais
capacitada a trans-formar-se a cada desafio, a cada nova experiência, resiliente.
115
É na sala de aula, nas relações do cotidiano que essa relação amorosa se constrói, se
trança em cordas que servem de apoio, numa atuação menor, segmentada, diversa, criança.
Criança porque está sempre em construção, porque não estaciona, porque quer o novo, a
alegria, porque questiona as Verdades instituídas, porque resiste ao poder instituído.
Pode-se observar, na entrevista/desenho a seguir, a importância da escola como
promotora de resiliência. Essa criança deixa claro, em sua entrevista, a importância da escola
em sua vida, promovendo resiliência, estimulando sua auto-estima, mediando e
incrementando sua capacidade de relação com a comunidade a que pertence, acreditando em
sua capacidade de contribuir de forma significativa no desenvolvimento de sua comunidade.
Caso 6:
- Esta é a minha escola, é bem grandona...
- E por quê tu vais na escola?
- Vou prá aprender, prá ter trabalho depois.
- Das coisas que tu vivencias lá, o que tu mais gostas?
- Gosto da Educação Física e do Desenho. O recreio é bem legal porque jogamos futebol e a ‘Dire’
deixa. O que eu gosto é de futebol e de jogar bulita.
- E do que tu não gostas?
- Das brigas entre os colegas.
116
- Tens liberdade de conversar com a professora sobre o que queres?
- A mais legal é a de Geografia e Matemática, sou bom nisso. Eles me ajudam a aprender, eu quero ser
arquiteto, prá construir casas bonitas. Essa é a ajuda que preciso, me deixarem estudar. Quando eu
entrei no colégio, na primeira, não queriam me aceitar por causa da doença, me senti sujo, parecia que
eu é que bebia e tinha ficado doente... Só que eu não tenho nada com isso!
- E o que é a doença para ti?
- É uma coisa ruim que matou a minha mãe. Eu espero ter a cura pra não morrer disso. Eu era pequeno
mas me lembro de como a mãe ficou triste, só chorava e bebia...e se foi indo...
- E o que representa para ti, poder conversar, falar sobre isso?
- Eu prefiro esquecer o que eu tenho mas não escondo de ninguém, até porque não adianta, é pior. As
pessoas ficam imaginando coisas e a burrice atrapalha porque não sabem o que é aids e acham que
pega de olhar! Prá mim é tranqüilo, tomo o coquetel e, há um tempão, não tenho sintomas...tomo 7
remédios. Daqui eu sei que não tem saída, mas acho que vou me curar! Faz 3 anos que o bicho não
cresce! Poder falar com alguém é bom prá saber o que está acontecendo...
Não há fórmula, ou método, ou qualquer tipo de prescrição pré-determinada. A escola
pode e é instrumento de promoção de resiliência, como apoio social, estabelecendo vínculos,
laços de solidariedade e apoio mútuos, fortalecendo a capacidade de experienciar um senso de
pertencimento ao seu grupo social, aumentando a autoconfiança, a capacidade de
enfrentamento de seus problemas, suas dores, atuando como agente das mudanças em suas
vidas e nas suas comunidades.
117
REFLEXÕES FINAIS
Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode
pensar diferentemente do que se pensa, e perceber
diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a
olhar ou a refletir.
Michel Foucault
34
Concluir é dar por encerrada uma discussão. Não é esta a intenção desse trabalho, uma
vez que o tema não se esgotou. Pensar e discutir sobre os mecanismos que nos constroem é
por demais interessante para encerrarmos assim esse debate.
Diversos tópicos ficam claros ao longo deste trabalho, na busca de pensarmos a escola
como promotora de resiliência em crianças portadoras de HIV. O preconceito, a
discriminação, os estereótipos que são criados e mantidos por um currículo disciplinador,
regulador que ainda rege as escolas; a precariedade dos programas de formação e informação
dos professores com relação a diversas patologias, em especial a aids; a prática de exclusão
social permanente determinada pelos discursos que nutrem o medo e a necessidade da prática
do segredo.
34
Foucault, Michel, (2001a). História da sexualidade 2 – o uso dos prazeres. 9ª edição, p. 13. Rio de Janeiro:
Graal.
118
Sabemos que somos um e muitos em variados momentos. Para Foucault, a identidade
só faz sentido dentro da teia discursiva das diferenças. Para ele, essa teia discursiva só tem
sentido inserida numa cadeia de práticas sociais que criam representações, localizam e
adjetivam o sujeito. Representações que criam verdades (2002a).
A constituição da identidade das crianças, como sujeitos do currículo, se dá no
entrecruzamento de diversas linhas de poder, redes variadas, que capturam e subjetivam, na e
fora da escola. Sabemos que, apesar de estarmos, todos, envolvidos nessas tramas, há frestas
pelas quais podemos escapar, deslizar. Porém, é difícil escapar das práticas culturais que
buscam encaixar o sujeito num ethos, num modo de ser e de viver que é forjado a partir da
obediência, da renúncia e da submissão (VEIGA-NETO, 2000).
Esse processo de construção de identidades localiza, determinando o que é e o que não
é. Stuart Hall argumenta que “embora tenha condições determinadas de existência, [...] a
identificação é, ao fim e ao cabo, condicional; ela está, ao fim e ao cabo, alojada na
contingência” (2000, p.106). Logo, tanto as identidades quanto as diferenças só podem ser
compreendidas nos sistemas de significação que estabelecem seus sentidos. Essa luta por
imposição de sentidos é “um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no
campo da identidade e da diferença” (SILVA, 2000, p.83).
Ser aidético, portador de HIV, estar convivendo com HIV, todas essas denominações
visam localizar, identificar aquele que está fora do padrão que rege a sociedade. Padrão
estabelecido por uma política de identidade hipócrita e excludente, discriminatória, que se
apodera do direito de representar a ‘sociedade’. E retorna-se à velha questão: Quem tem o
direito de representar quem? Quem fala para quem? E, por quem? Quem fala para, e por
alguém, controla as formas de falar desse alguém, desse outro, determinando, assim, os
119
valores e as regras que serviram de elementos na determinação da identidade, que é sempre
diferença.
Observamos, ao longo desse trabalho, nas falas das crianças, das mães, das (os)
professores, o quanto as ‘verdades’ sobre a aids contaminam sua formas de ver e sentir. Digo
contaminam porque não percebo como algo positivo entender que uma pessoa, por ser
portadora de uma patologia, é diferente, é ‘outra coisa’ que devo afastar da minha
convivência. Os estereótipos criados pelo pré-conceito, fruto de muita ignorância e falsos
moralismos, estabelecem identidades perversas, que induzem a sociedade a criar ‘soluções’
para as representações que ela própria criou.
A quem, então, estão atendendo essas soluções? Leis e normas que visam ‘garantir
direitos de pacientes portadores de HIV’? Mas se são cidadãos, porque não cumprir o que
determina a Carta Magna de nosso país: a Constituição? Criar leis não leva a mudanças nas
formas de pensar. Mudar o olhar, a forma de pensar é a possibilidade de nos aceitar como
somos e aceitar o outro como ele é, conscientes de que nenhum olhar é inocente, pois estamos
todos, e sempre, imersos nos sistemas de representação.
Promover resiliência não nos exime da responsabilidade e compromisso de lutar por
formas políticas de efetivo combate à desigualdade social. Como membro de uma espécie, a
humana, “a existência deve ser pensada num plano de coexistência. O direito só existe no
plano das relações humanas, devendo então ser pensado não como instrumento que opõem um
homem contra o outro, mas como um instrumento que harmoniza a convivência de ambos”
(OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p.107), harmonia entendida como fruto de uma aceitação que
não é tolerância.
Essa intensificação nos debates, com relação à responsabilidade de cada um de nós, só
pode ser feita a partir de uma sociedade educada. Educada no sentido de ter informação
120
suficiente, objetiva e ampla que lhe confira capacidade de reflexão, consciência e ética para
também intervir na busca de soluções. Só uma sociedade minimamente educada, consciente
de seus problemas poderá responsabilizar-se, contribuindo para o seu desenvolvimento e bem-
estar. Responsabilidade que é construída a partir da possibilidade de tomar decisões que nos
permitam conviver conosco mesmos, como nos diz Hanna Arendt,
disposição para viver explicitamente consigo mesmo, se relacionar consigo mesmo,
isto é, estar envolvido naquele diálogo silencioso entre mim e mim mesma que,
desde Sócrates e Platão, chamamos geralmente de pensar [...] a linha divisória entre
aqueles que querem pensar, e portanto julgar por si mesmos, e aqueles que não
querem pensar atinge todas as diferenças sociais, culturais ou educacionais (2003,
p.107).
Mas que direitos tem uma criança portadora de HIV? O artigo 227 da Constituição de
1988 trouxe, para dentro do direito brasileiro, o sentido do Projeto da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança, que vinha sendo discutido pela comunidade
internacional no âmbito das Nações Unidas. Desse movimento, originou-se a lei 8.069/90, de
14 de julho de 1990, que funda o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e “se assenta
no princípio de que todas as crianças e adolescentes, sem distinção, desfrutam dos mesmos
direitos e sujeitam-se a obrigações compatíveis com a peculiar condição de desenvolvimento
que desfrutam” (SARAIVA, 2003, p.61). Conceber a criança, como sujeito de direitos
exigíveis com base na lei, é a pedra angular da construção de um novo direito, que reconhece
a criança como ser humano completo e seu valor como o portador do futuro da própria
humanidade.
No Brasil, em 1989, foi aprovada a Declaração dos direitos fundamentais da pessoa
portadora de HIV
35
, que garante livre acesso a qualquer estabelecimento e referenda apoio à
implantação dos direitos constitucionais. Em 2002, o PNDH II, reconhecendo a inexistência
35
Declaração dos direitos fundamentais da pessoa portadora de HIV. Disponível em:
http://www.aids.gov.br/data/Pages. Acessado em 21/112005.
121
de igualdade, garante em diversos artigos a ampliação de acesso aos discriminados, aos
excluídos, buscando avançar nas práticas anti-discriminatórias no país.
Essas ações afirmativas, deixam claro, a discriminação, e conseqüente exclusão,
vigente. Mas, até quando necessitaremos de medidas legais que garantam, a qualquer cidadão,
ser considerado sujeito-de-direito? Constatamos que a publicação de normas e decretos de
nada adiantam se não houver uma mudança radical das variáveis sociais, econômicas e
culturais que atravessam as diversas culturas.
Promover a resiliência é garantir à criança, portadora ou não de qualquer patologia, as
condições necessárias ao seu desenvolvimento, promovendo ambientes facilitadores que
oportunizem a implantação dos direitos já garantidos.
A creche/escola é uma dessas possibilidades. Como local de convivência, de
aprendizado de partilha, de re-conhecimento, é um local de libertação possível, estimulando a
capacidade de seus alunos reagirem e resistirem à tutela de autoridade, à nomeação pré-
determinada, promovendo as condições e os apoios necessários a essa conquista. Apoios que
estão, também nas mãos de seus professores, fios de apoio tecidos coletivamente, fios que
garantem o percurso ao longo do labirinto de suas vidas, de suas dores, fios de confiança em
sua capacidade de se re-fazer, numa autopoiese permanente, fios de certeza de sua
contribuição para a sociedade a que pertencem, transformando positivamente a dor,
utilizando-a como adubo, enriquecendo o solo da vida.
Percorrer esse labirinto requer coragem e determinação. Coragem para questionar os
pré-conceitos; determinação na busca de um liberdade de ser que possibilite as mudanças
necessárias na construção de uma ética de direito à vida.
122
Para uma criança portadora de HIV, condenada à mesma morte que atingirá a cada um
de nós, ser resiliente pode ser entendido como ter a ‘liberdade-possível’, pois sabemos que
não há liberdade absoluta, sendo ativo, não-domesticado; abdicar da tutela de autoridade,
que o nomeia e o exclui, afirmando o direito à diferença; superar a individualidade pela
prática livre de novas formas de vinculação, elaborando espaços de libertação possível;
exercitar a ‘atitude-limite’e emergir através de processos de interação social de que participa,
gerando novas formas de ser e de viver.
Sair do discurso é uma utopia, fomos e somos formatados por ele, porém podemos e
devemos resistir no sentido de não nos acomodar, de re-formar, buscar novas saídas desse
imenso labirinto que são as nossas vidas.
Como Teseu buscou encontrar o minotauro para possibilitar uma mudança, acredito
que as reflexões feitas nesse trabalho podem contribuir, senão para mudar, ao menos para
compreender a importância da escola na vida de cada um de nós, em especial na vida das
crianças que, ao nascerem condenadas pela sociedade a um identidade aidética, têm na escola,
o local que possibilita a resistência necessária para que ocorra a transformação da sociedade e
dos preconceitos que ainda a regem; em seus professores, as “Ariadnes”, oferecendo novelos
diversos de fios com os quais atravessarão os labirintos de suas vidas, transformando-se,
fortalecendo-se, amando-se, tendo a possibilidade de escolher e recusar-se a ser identificado, a
ser localizado pelo poder.
123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACADEMIA AMERICANA DE PEDIATRIA, Comissão para Aids na infância, (2002).
Educação de crianças infectadas com vírus da imunodeficiência humana. Pediatrics, v. 4, nº
9, p.559-562.
AGACINSKI, Sylviane, (1998). Política dos sexos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
ARENDT, Hanna, (2003). Responsabilidade e julgamento.São Paulo: Companhia das Letras.
ARIÈS, Phillipe, (1981). História social da criança e da família. Rio de Janeiro:LTC Editora.
ASSY, Bethânia, (2003). Introdução à edição brasileira.In: Arendt, H. Responsabilidade e
julgamento. São Paulo: Companhia das Letras.
BADINTER, Elisabeth, (1985). Um amor conquistado – o mito do amor materno. 6ª edição.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
BARBOSA, Carmem, (2000). Por amor & por força – rotinas na educação infantil. Tese de
doutoramento. Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas.
BARDIN, Laurence, (1997). Análise do conteúdo. Lisboa: Edições 70 – Persona.
BASTOS, Francisco; SWARCWALD, Célia, (2000). Aids e pauperização: principais
conceitos e evidências. Cadernos de Saúde Pública, v.16, suplemento 1, p. 65-76.
BOWLBY, John, (1981). Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes.
_____________, (1990). Apego. São Paulo: Martins Fontes.
_____________, (1998). Separação. São Paulo: Martins Fontes.
BRASIL, (2004). Guia de tratamento clínico da infecção pelo HIV em crianças. Secretaria de
Vigilância em Saúde/ Programa de DST/AIDS. Brasília: Ministério da Saúde.
__________, (2004a). Recomendações para profilaxia da transmissão vertical do HIV e
terapia anti-retroviral em gestantes. Secretaria de Vigilância em Saúde/Programa de
DST/AIDS. Brasília: Ministério da Saúde.
124
BRAZELTON, Berry, (1988). O desenvolvimento do apego – uma família em formação.
Porto Alegre: Artes Médicas.
___________, (1994). Momentos decisivos do desenvolvimento infantil. São Paulo: Martins
Fontes.
BUJES, Maria Isabel, (2003). Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A Editora.
CALIFORNIA STATE DEPARTMENT OF EDUCATION: Toward a state of steem: The
final report of task force to promote self-steem and personal and social responsabulity, (1990).
Sacramento: Department of Education.
CANGUILHEN, George., (2002). O normal e o patológico. 5ª edição. Rio de Janeiro:
Forense Universitária.
CHARTIER, Roger, (1994). A história hoje: dúvidas, desafios e propostas. Estudos
históricos, vol. 7, nº 13, pág. 97-113. Rio de Janeiro.
CHAUÍ, Marilena, (1997). Senso comum e transparência. In: O preconceito. São Paulo:
IMESP.
CLOTET, Joaquim, (2000). O consentimento informado: uma questão do interesse de todos.
Medicina. Ano XV, nºs 122-123, outubro/novembro 2000, Pág. 8-9.Brasília: Conselho
Federal de Medicina.
COHEN, Jeffrey, (2000). A cultura dos monstros. In: Silva, Tomás (org. e Trad.). A
pedagogia dos monstros – os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte:
Autêntica.
CNDST/AIDS (Coordenação Nacional de DST e AIDS), (2004). Boletim epidemiológico
AIDST, Ano I, nº 1. Brasília: Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde –
Programa Nacional de DST e Aids.
COOK, John; RWEGERA, Damien, (1993). Approche anthropologique de l’etude du Sida.
In: Chevallier, É. (coord.). SIDA, enfant, famille – les implications de l’infection à VIH pour
l’enfant et la famille, p. 149-188. Paris: Centre International de l’Enfance.
CORAZZA, Sandra, (2002). Infância e educação – era uma vez...Quer que conte outra vez?
Petrópolis: Vozes.
CORAZZA, Sandra; SILVA, Tomas T. (2003). Composições. Belo Horizonte: Autêntica.
COSTA, Jurandir, (1989). Ordem médica e norma familiar. 3ª edição. Rio de Janeiro.
_______, Marisa V., (2004). Currículo – pensar, sentir e diferir. VI Colóquio sobre questões
curriculares/II. Colóquio luso-brasileiro sobre questões curriculares. Rio de Janeiro.
CYRULNIK, Boris, (1999). Un merveilleux malheur. Paris: Editions Odile Jacob.
125
D’ AGOSTINO, Micheline, (1993). L’efant séropositif et lê système éducatif. In: Chevallier,
E. (coord.). SIDA, enfant, famille – les implications de l’infection à HIV pour l’enfant et la
famille, p.243-270. Paris: Centre International de l’enfance.
DARWIN, Charles, (2000). A expressão das emoções no homem e nos animais. 3ª edição. São
Paulo: Companhia das Letras.
DECLARAÇÃO DE PEQUIM, (1995). Adotada pela quarta Conferência Mundial sobre as
mulheres: Ação para igualdade, desenvolvimento e paz – 1995. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/pequim95htm. Acessado em 08/3/2005.
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA PORTADORA DE
HIV, (1989). Encontro nacional de ONG que trabalham com aids. Porto Alegre. Disponível
em: http://www.aids.gov.br/data/Pages. Acessado em 02/11/2005.
DELEMAU, Jean, (1989). História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada.São
Paulo: Companhia das Letras.
DEMARTINI, Zeila, (2002). Infância, pesquisa e relatos orais. In: Faria, A.L.; & cols. Por
uma cultura da infância – metodologias de pesquisa com crianças. Campinas, SP: Autores
Associados.
DIREITOS HUMANOS – PROJETOS DE LEI - EDUCAÇÃO. Disponível em:
http://www.aids.gov.br/final/dh/educa.htm. Acessado em 24/06/2005.
DOLE, Jean-Marie; BELLANO, Denis, (1990). As crianças que não aprendem – diagnóstico
e remediação. Lisboa: Instituto Piaget.
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, (1990). Ministério da Ação Social –
Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência. Porto Alegre: Escola de Artes Gráficas do
Centro Social Pe. João Calábria.
FERNÁNDEZ, Alicia, (2001). O saber em jogo – a psicopedagogia propiciando autorias de
pensamento. Porto Alegre: Artmed.
FERREIRA, A., (1986). Novo Dicionário da língua portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
FOUCAULT, Michel, (1977). O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
____________, (1987). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
____________, (1990). Tecnologias Del yo y otros textos afines. Barcelona: Paidos.
____________, (1993). História da Loucura. São Paulo: Perspectiva.
____________, (1993a). Verdade e subjetividade. Revista de comunicação e linguagem, nº
19, p. 203-223. Lisboa: Editora Cosmos.
126
____________, (1995). O sujeito e o poder. In: Dreyfus, H; Rabinow, P. et als. Michael
Foucautl, uma trajetória filosófica – para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
Janeiro: Forense Universitária.
____________, (1996). A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola.
____________, (1997). Subjetividade e verdade. In: Foucault, M. Resumo dos cursos do
College de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar.
____________, (2001). Os anormais. São Paulo: Martins Fontes.
____________, (2001a). História da sexualidade 2 – o uso dos prazeres. 9ª edição. Rio de
Janeiro: Graal.
____________, (2002). História da sexualidade 3 – o cuidado de si. 7ª edição. Rio de Janeiro:
Graal.
____________, (2002a). As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes.
____________, (2003). Vigiar e Punir – nascimento da prisão. 27ª edição. Petrópolis: Vozes.
____________, (2003a). História da sexualidade1 – a vontade de saber. 15ª edição. Rio de
Janeiro: Graal.
____________, (2004). Microfísica do poder. 20ª edição. Rio de Janeiro: Graal.
FREYRE, Gilberto, (1943). Casa-grande e senzala – formação da família brasileira sob o
regime de economia patriarcal.Vol I e II. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio.
GOBBI, Márcia, (2002). Desenho infantil e oralidade: instrumentos para pesquisa com
crianças pequenas. In: Faria, A.L.; & cols. Por uma cultura da infância – metodologias de
pesquisa com crianças. Campinas, SP: Autores Associados.
GOLDIN, José R., (2002). O consentimento informado numa perspectiva além da autonomia.
Revista AMIRGS, v.46 nº 3,4, p.109-116. Porto Alegre: AMIRGS.
GOLEMAN, Daniel, (1995). Inteligência emocional. 84ª edição. Rio de Janeiro: Objetiva.
GROTBERG, Edith, (1995). The International resilience research project: promoting
resilience in children. Washington D.C., Civitan Internacional Research Center. University of
Alabama at Birmingham: Eric Reports.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely, (1986). Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.
HALL, Stuart, (1997). A centralidade da cultura: notas sobre revoluções culturais do nosso
tempo. Educação e Realidade, v.2, nº22, p. 16-46.
___________, (2000). Quem precisa da identidade? In: Silva, Tomaz (Org.). Identidade e
diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes.
127
___________, (2003). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A
Editora.
HARAWAY, Donna, (2000). Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialismo
no final do século XX. In: Silva Tomás. (org.) . Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte:
Autêntica.
ICCB/BICE, (1994). Elements for a talk on resilience: grow in the muddle of life. In: Una
propuesta de acción educativa. Derecho a la infancia, 3º bimestre. Santiago, Chile.
JUNQUEIRA, Maria de F.; DESLANDES, Sueli, (2003). Resiliência e maus-tratos à
criança. Cadernos de Saúde Pública, v.19, suplemento 1, p.227-235. Rio de Janeiro:Escola
Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz.
KASTRUP, Virgínia, (1999). A invenção de si e do mundo – uma introdução do tempo e do
coletivo no estudo da cognição. Campinas, SP: Papirus.
KOTLIARENCO, Maria Angelica; CÁCERES, I.; FONTECILLA, M., (1996). Estado del
arte en resiliencia.Washington, DC: Organización Panamericana de la Salud.
KRAMER, Sonia, (1997). Pesquisando infância e Educação: um encontro com Walter
Benjamin. In: Kramer, S.; Leite, M. I.(orgs.). Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas,
SP: Papirus.
___________, (2002). Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças.
Cadernos de Pesquisa, nº116, p.41-59. São Paulo: Fundação Carlos Chagas.
KÜBLER-ROSS, Elisabeth, (2000). Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes
LAROSSA, Jorge, (1998). La experiência de la lectura – estudios sobre literatura e
formacion. Barcelona: Laertes.
___________, (2000). Pedagogia Profana – danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte:
Autêntica.
___________, (2002). Tecnologias do Eu e educação. In: Silva, T. (org.). O sujeito da
educação: estudos foucaultianos. 5ª edição. Petrópolis: Vozes.
___________, (2002a). Para qué nos sierven los extranjeros?. In: Educação & Sociedade:
revista quadrimestral de Ciência da Educação/Centro de Estudos Educação e Sociedade
(CEDES), v. XXIII, nº 79, p.67-84. Campinas: CEDES.
___________, (2004). Linguagem e Educação depois de Babel.Belo Horizonte: Autêntica.
LEBOVICI, Serge; MAZET, Philippe; VISIER, Jean-Pierre, (1989). L’évaluation dês
interacions precoces entre lês bébé et sés partenaires. Paris: Editions Eshel.
LEGISLAÇÃO SOBRE DST e AIDS no BRASIL. Disponível em:
http://www.aids.gov.br/legislação/vol3 68.htm. Acessado em 30/10/2005.
128
LEITE, Maria Isabel, (1997). O que falam de escola e saber as crianças da área rural?
Umdesafio da pesquisa no campo. In: Kramer, S.; Leite, M. I. (orgs.) Infância: fios e desafios
da pesquisa. Campinas, SP: Papirus.
LOURO, Guacira, (1997). Gênero, sexualidade e educação – uma perspectiva pós-
estruturalista. 3ª edição. Petrópolis: Vozes.
____________, (2005). Currículo, gênero e sexualidade. In: Louro, G.; Felipe, J.; Goellner,
S. (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade- um debate contemporâneo na educação. 2ª edição.
Petrópolis: Vozes.
MANACORDA, Mario, (1984). História da Educação. 9ª edição. São Paulo: Cortez Editora.
MANEM, Max Van; LEVERING, Bas, (1996). O segredo na infância – intimidade,
privacidade e o self reconsiderado. Lisboa: Instituto Piaget.
MANSOUR, S., (1993). Lês retentissements psychologiques de l’infection à VIH sur l’enfant
et sa famille. In: Chevallier, E. (coord.). SIDA, enfant, famille – l’implications de l’infection à
VIH pour l’enfant et la famille, p.97-148. Paris, France: Centre Internacional de l’enfance.
MATOS, Maria Izilda de, (2000). Por uma história de mulher.Bauru, SP: EDUSC.
MATURANA, Humberto; REZEPKA, Sima, (2003). Formação humana e capacitação.
edição. Petrópolis: Vozes.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco, (1997). De máquinas a seres vivos –
autopoiese: a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas.
____________, (2004). A árvore do conhecimento – as bases biológicas da compreensão
humana. São Paulo: Palas Athena.
MELLILO, Aldo; OJEDA, Elbio & cols., (2005). Resiliência: descobrindo as próprias
fortalezas. Porto Alegre: Artmed.
MINAYO, Maria Cecília, (1993). O desafio do conhecimento – pesquisa qualitativa em
saúde. São Paulo/Rio de Janeiro: HUCITEC-ABRASCO.
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, (2002). Programa Nacional de Direitos Humanos II. Brasília.
MINISTERIO DA SAÚDE,(2004). Boletim Epidemiológico – AIDST. Ano I, nº1, p.28,
janeiro a junho/2004. Secretaria de Vigilância em Saúde Nacional de DST e AIDS.
MOVILH – 80 alumnos se graduaron de la Primera Escuela para Homosexuales y Personas
Viviendo com Vih/SIDA de América Latina. Endereço: http://
www.movilh.org/modules.php?name=New&file-print&sid=238. Acessado em 21/12006.
NARADOWSKI, Mariano, (2001). Infância e poder: conformação da Pedagogia moderna.
Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco.
129
NASCIMENTO, Evandro, (2001). A solidariedade dos seres vivos – entrevista com Jacques
Derrida. Disponível em: http://www.rubedo.psc.br/Entrevis/solivivo.htm. Acessado em
13/10/2004.
OLIVEIRA JR, José A., (2000). Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Editora
Lúmen Júris.
ONU, (2001). Declaração final. Conferência Mundial contra o racismo, discriminação racial,
xenofobia e intolerância correlata. Durban, África do Sul.
ONUSIDA, (2004). Situacion de la epidemia de SIDA. Disponível em:
http://www.unaids.org/wad2004/EPIupdate2004_html_sp/epi04_00_sp.htm. Acessado em
30/10/2004.
PARKER, Richard; CAMARGO JR, Kenneth, (2000). Pobreza e HIV/AIDS: aspectos
antropológicos e sociológicos. Cadernos de Saúde Pública, v.16, suplemento 1, p. 89-102.
Rio de janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz.
PEREIRA, Anabela, (2001). Resiliência, personalidade, stress e estratégias de coping. In:
Tavares, J. (org.). Resiliência e Educação. São Paulo: Cortez Editora.
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian, (2000). Problemas de Bioética.
edição.São Paulo: Edições Loyola.
PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene, (1998). A arte de governar crianças - História das
políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro:
Cespi/USU.
PINTO, Manuel, (1997). A infância como construção social. In: Pinto, M.; Sarmento, J . As
crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. Minho: Universidade do
Minho – Centro de estudos da criança.
PINTO, Pedro, (1949). Dicionário de termos médicos. Rio de Janeiro: Editora Científica.
QUINTEIRO, Jucirema, (2002). Infância e Educação no Brasil: um campo de estudos em
construção. In: Faria,A.L.; & cols. Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa
com crianças. Campinas, SP: Autores Associados.
RANKE-HEINEMANN, Uta, (1996). Eunucos para o reino de Deus – mulheres, sexualidade
e Igreja católica.. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.
RELATÓRIO AZUL, 2002/2003 . Garantias e violações dos direitos humanos. Porto Alegre:
Assembléia Legislativa.
ROSE, Nicholas, (2001). Inventando nossos eus. In: Silva, T. (org.). Nunca fomos humanos –
nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica.
RUTTER, Michael, (1985). Resilience in the face of adversity: protective factors and
resistance to psychiatric disorder. British Journal of Psychiatric, v.22, nº3, p. 323-356.
130
______________, (1987). Psychosocial resilience and protective mechanisms. American
Journal of Orthopsychiatric, 57: 316-331.
____________, (1993). Resilience: some conceptual considerations. Journal of Adolescent
Health, vol. 14, nº 8, p.626-631.
RUTTER, Michael; RUTTER, Marjorie, (1992). Developing minds:challenge and continuity
across the life span. Gran Bretaña: Pegin Books.
SARAIVA, José, (2003). Adolescente em conflito com a lei – da indiferença à proteção
integral. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora.
SANTOS, Boaventura S., (1991). Ciência. In: Carvalho. M (org.). Dicionário do pensamento
contemporâneo. Lisboa: Dom Quixote.
____________, (2003). Direitos e diversidade. Coleção Fórum Social Mundial, v.1 –
Conferências, p.61-63.
SARMENTO, Manuel J.; PINTO, Manuel, (1997). As crianças e a infância: definindo
conceitos, delimitando o campo.In: Pinto, M; Sarmento, J . As crianças, contextos e
identidades. Minho: Universidade do Minho – Centro de estudos da criança.
SCOTT, Joan, (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação &
Realidade, v.1, nº 1, p. 71-99. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Faculdade de Educação.
SELYE, Hans, (1982). History and present of the stress concept. In: Goldberg, L. & cols.
Handbook of stress, p.7-20. New York: Macmillan.
SKLIAR, Carlos, (2002). Alteridades y pedagogías: ¿Y si el outro no estuviera ahi?. In:
Educação & Sociedade: revista quadrimestral de Ciência da Educação/Centro de Estudos
Educação e Sociedade (CEDES), v.XXIII, nº 79, p.85-123. Campinas:CEDES.
____________, (2005). A questão e a obsessão pelo outro em educação. In: Garcia, R.;
Zaccur, E; Giambiagi, I. (orgs.). Cotidiano diálogos sobre diálogos. Rio de Janeiro: DP&A
Editora.
SILVA, Tomáz T., (2000). Antropologia do ciborgue – as vertigens do pós-humano. Belo
Horizonte: Autêntica.
______________, (2000a). A produção social da identidade e da diferença. In: Identidade e
diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes.
______________, (2000b). Pedagogia como diferença. In: identidade e diferença: a
perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes.
______________, (2003). O currículo como fetiche – a poética e a política do texto
curricular. 2ª edição. Belo Horizonte: Autêntica.
131
SITUACIÓN DE LA EPIDEMIA DE SIDA: Diciembre de 2004. América Latina 9.
Disponível em: http://www.unaids.org/wad2004/EPIpdate2004-htlm-sp/epi04-08-sp.htm.
Acessado em 15/01/2005.
SONTAG, Solange, (1989). A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal.
SOUZA, Regina M.; GALLO, Silvio, (2002). Por que matamos o barbeiro? Reflexões
preliminares sobre a paradoxal exclusão do outro. In: Educação & Sociedade: revista
quadrimestral de Ciência da Educação/Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES),
v.XXIII, nº 79, p.39-63. Campinas: CEDES.
SOUZA, Solange, (1997). Re-significando a psicologia do desenvolvimento: uma
contribuição crítica à pesquisa da infância. In: Kramer, S.; Leite, M. I. Fios e desafios da
pesquisa. Campinas, SP: Papirus.
____________, (2003). Infância e linguagem – Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. 7ª edição. São
Paulo: Papirus.
TAVARES, José, (2001). Resiliência e Educação.São Paulo: Cortez Editora.
TESSIER, Stéphane, (1993). L’impact de l’epidémie de SIDA sur les structures sociales et
sanitaires. In: Chevallier, É. (coord.). SIDA, enfant, famille – les implications de l’infection à
VIH pour l’enfant et la famille, p.189-242. Paris: Centre International de l’enfance
THOMSON, Oliver, (2002). A assustadora história da maldade. São Paulo: Ediouro.
UNICEF – Relatório da Situação Mundial da Infância 2005. Disponível em:
http://www.unicef.org/brazil/sowc05. Acessado em 23/12/2004.
VANISTENDAEL, Stefan, (2000). Le bonheur est toufours possible. Construire la resilience.
Paris: Bayard Editions.
VEIGA-NETO, Alfredo, (2000). Educação e governamentalidade neoliberal: novos
dispositivos, novas subjetividades. In: Portocarrero, Vera; Castelo Branco, Guilherme (Orgs.).
Retratos de Foucault. Rio de janeiro: Nau.
VENÂNCIO, Renato, (2005). Mensagens de abandono. In: Revista de História da Biblioteca
Nacional, ano 1, nº4, p.30-35. Rio de janeiro: Ministério da Cultura.
WEIL-HALPERN, Françoise, (1991). Oubliés des fées. Paris: Calmann-Lévy.
WEIL-HALPERN, Françoise; GRISCELLI,Claude, (1993). Le Sida et les trés jeune enfant:
généalogie de l’avenir. In: Gauthier, Y.; Lebovici, S.; Mazet, P.; Visier, J. Tragédies à l’aube
de la vie. Paris: Bayard Éditions.
WERNER, Emmy; SMITH, Ruth, (1982). Vulnerable but invincible: a longitudinal study of
resilient children and youth. New York: McGraw-Hill Book.
WINNICOTT, Donald, (1992). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
132
WOLIN, Steven; WOLIN, Sybil, (1993). The resilient self: how survivors of troubled families
rise above adversity. New York: Villard Books.
YUNES, Maria Ângela; SZYMANSKI, Heloísa, (2001). Resiliência: noção, conceitos afins e
considerações críticas. In: Tavares, J. Resiliência e Educação. São Paulo: Cortez Editora.
ZERO HORA, (2004). Aids aumenta número de órfãos. Publicado em 14/07/2004, p. 33.
___________ , (2004a). Mundo. Publicado em 12/09/2004, p. 32.
133
ANEXOS
134
ANEXO 1
135
136
137
138
ANEXO 2
139
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE
Resolução n.º 196, de 10 de outubro de 1996
O Plenário do Conselho Nacional de Saúde em sua Qüinquagésima Nona Reunião Ordinária, realizada nos dias 9
e 10 de outubro de 1996, no uso de suas competências regimentais e atribuições conferidas pela Lei n.° 8.080, de
19 de setembro de 1990, e pela Lei n.° 8.142, de 28 de dezembro de 1990, Resolve:
Aprovar as seguintes diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos:
I Preâmbulo
A presente Resolução fundamenta-se nos principais documentos internacionais que emanaram declarações e
diretrizes sobre pesquisas que envolvem seres humanos: o Código de Nuremberg (1947), a Declaração dos
Direitos do Homem (1948), a Declaração de Helsinque (1964 e suas versões posteriores de 1975, 1983 e 1989),
o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966, aprovado pelo Congresso Nacional
Brasileiro em 1992), as Propostas de Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas
Envolvendo Seres Humanos (CIOMS/OMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisão Ética de
Estudos Epidemiológicos (CIOMS, 1991).
Cumpre as disposições da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e da legislação brasileira
correlata: Código de Direitos do Consumidor, Código Civil e Código Penal, Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei Orgânica da Saúde 8.080, de 19/9/90 (dispõe sobre as condições de atenção à saúde, a
organização e o funcionamento dos serviços correspondentes), Lei n.° 8.142, de 28/12/90 (participação da
comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde), Decreto 99.438, de 7/8/90 (organização e atribuições do
Conselho Nacional de Saúde), Decreto 98.830, de 15/1/90 (coleta por estrangeiros de dados e materiais
científicos no Brasil), Lei 8.489, de 18/11/92, e Decreto 879, de 22/7/93 (dispõem sobre retirada de tecidos,
órgãos e outras partes do corpo humano com fins humanitários e científicos), Lei n.° 8.501, de 30/11/92
(utilização de cadáver), Lei n.° 8.974, de 5/1/95 (uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio
ambiente de organismos geneticamente modificados), Lei n.° 9.279, de 14/5/96 (regula direitos e obrigações
relativos à propriedade industrial), e outras.
Esta Resolução incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, os quatro referenciais básicos da bioética:
autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, e visa a assegurar os direitos e deveres que
dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado.
O caráter contextual das considerações aqui desenvolvidas implica em revisões periódicas desta Resolução,
conforme necessidades nas áreas tecnocientífica e ética.
Ressalta-se, ainda, que cada área temática de investigação e cada modalidade de pesquisa, além de respeitar os
princípios emanados deste texto, deve cumprir com as exigências setoriais e regulamentações específicas.
II - Termos e Definições
A presente Resolução, adota no seu âmbito as seguintes definições:
II.1- Pesquisa – classe de atividades cujo objetivo é desenvolver ou contribuir para o conhecimento
generalizável. O conhecimento generalizável consiste em teorias, relações ou princípios ou no acúmulo de
informações sobre as quais estão baseados, que possam ser corroborados por métodos científicos aceitos de
observação e inferência.
II.2- Pesquisa - envolvendo seres humanos – pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano,
de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou
materiais.
II.3- Protocolo de Pesquisa – Documento contemplando a descrição da pesquisa em seus aspectos
fundamentais, informações relativas ao sujeito da pesquisa, à qualificação dos pesquisadores e à todas as
instâncias responsáveis.
II.4- Pesquisador responsável – pessoa responsável pela coordenação e realização da pesquisa e pela
integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa.
140
II.5- Instituição de pesquisa – organização, pública ou privada, legitimamente constituída e habilitada na qual
são realizadas investigações científicas.
II.6- Promotor – indivíduo ou instituição, responsável pela promoção da pesquisa.
II.7- Patrocinadorpessoa física ou jurídica que apóia financeiramente a pesquisa.
II.8- Risco da pesquisa – possibilidade de danos à dimensão física, psíquica, moral, intelectual, social, cultural
ou espiritual do ser humano, em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente.
II.9- Dano associado ou decorrente da pesquisa – agravo imediato ou tardio, ao indivíduo ou à coletividade,
com nexo causal comprovado, direto ou indireto, decorrente do estudo científico.
II.10- Sujeito da pesquisa – é o(a) participante pesquisado(a), individual ou coletivamente, de caráter
voluntário, vedada qualquer forma de remuneração.
II.11- Consentimento livre e esclarecido – anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu representante legal,
livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após explicação
completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais
riscos e o incômodo que esta possa acarretar, formulada em um termo de consentimento, autorizando sua
participação voluntária na pesquisa.
II.12- Indenização – cobertura material, em reparação a dano imediato ou tardio, causado pela pesquisa ao ser
humano a ela submetida.
II.13- Ressarcimento – cobertura, em compensação, exclusiva de despesas decorrentes da participação do
sujeito na pesquisa.
II.14- Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) – colegiados interdisciplinares e independentes, com “munus
público”, de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses dos sujeitos da
pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões
éticos.
II.15- Vulnerabilidade – refere-se a estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham
a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido.
II.16- Incapacidade – Refere-se ao possível sujeito da pesquisa que não tenha capacidade civil para dar o seu
consentimento livre e esclarecido, devendo ser assistido ou representado, de acordo com a legislação brasileira
vigente.
III Aspectos Éticos da Pesquisa Envolvendo Seres Humanos
As pesquisas envolvendo seres humanos devem atender às exigências éticas e científicas fundamentais.
III.1- A eticidade da pesquisa implica em:
a) consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente
incapazes (autonomia). Neste sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-los em sua
dignidade, respeitá-los em sua autonomia e defendê-los em sua vulnerabilidade;
b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficência),
comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos;
c) garantia de que danos previsíveis serão evitados (não maleficência);
III Aspectos Éticos da Pesquisa Envolvendo Seres Humanos
As pesquisas envolvendo seres humanos devem atender às exigências éticas e científicas fundamentais.
141
III.1- A eticidade da pesquisa implica em:
a) consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente
incapazes (autonomia).
Neste sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-los em sua dignidade, respeitá-los em
sua autonomia e defendê-los em sua vulnerabilidade;
b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficência),
comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos;
c) garantia de que danos previsíveis serão evitados (não maleficência);
pesquisa quando a informação desejada possa ser obtida através de sujeitos com plena autonomia, a menos que a
investigação possa trazer benefícios diretos aos vulneráveis. Nestes casos, o direito dos indivíduos ou grupos que
queiram participar da pesquisa deve ser assegurado, desde que seja garantida a proteção à sua vulnerabilidade e
incapacidade legalmente definida;
d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefícios esperados sobre os riscos previsíveis;
e) obedecer a metodologia adequada. Se houver necessidade de distribuição aleatória dos sujeitos da pesquisa
em grupos experimentais e de controle, assegurar que, a priori, não seja possível estabelecer as vantagens de em
procedimento sobre outro através de revisão de literatura, métodos observacionais ou métodos que não envolvam
seres humanos;
f) ter plenamente justificada, quando for o caso, a utilização de placebo, em termos de não maleficência e de
necessidade metodológica;
g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa e/ou seu representante legal;
h) contar com os recursos humanos e materiais necessários que garantam o bem-estar do sujeito da pesquisa,
devendo ainda haver adequação entre a competência do pesquisador e o projeto proposto;
i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não
estigmatização, garantindo a não utilização das informações em prejuízo das pessoas e/ou das comunidades,
inclusive em termos de autoestima, de prestígio e/ou econômico-financeiro;
j) ser desenvolvida preferencialmente em indivíduos com autonomia plena. Indivíduos ou grupos vulneráveis
não devem ser sujeitos de pesquisa quando a informação desejada possa ser obtida através de sujeitos com plena
autonomia, a menos que a investigação possa trazer benefícios diretos aos vulneráveis. Nestes casos, o direito
dos indivíduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado, desde que seja garantida a
proteção à sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida;
l) respeitar sempre os valores culturais, sociais, morais, religiosos e éticos, bem como os hábitos e costumes,
quando as pesquisas envolverem comunidades;
m) garantir que as pesquisas em comunidades, sempre que possível, traduzir-se-ão em benefícios cujos efeitos
continuem a se fazer sentir após sua conclusão. O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros
da comunidade e analisar as diferenças presentes entre eles, explicitando como será assegurado o respeito às
mesmas;
n) garantir o retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as
mesmas forem realizadas. Quando, no interesse da comunidade, houver benefício real em incentivar ou estimular
mudanças de costumes ou comportamentos, o protocolo de pesquisa deve incluir, sempre que possível,
disposições para comunicar tal benefício às pessoas e/ou comunidades;
o) comunicar às autoridades sanitárias os resultados da pesquisa, sempre que os mesmos puderem contribuir para
a melhoria das condições de saúde da coletividade, preservando, porém, a imagem e assegurando que os sujeitos
da pesquisa não sejam estigmatizados ou percam a auto-estima;
p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social,
acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa;
142
q) assegurar aos sujeitos da pesquisa as condições de acompanhamento, tratamento ou de orientação, conforme o
caso, nas pesquisas de rastreamento; demonstrar a preponderância de benefícios sobre riscos e custos;
r) assegurar a inexistência de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador
do projeto;
s) comprovar, nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperação estrangeira, os compromissos e as
vantagens, para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil, decorrentes de sua realização. Nestes casos deve ser
identificado o pesquisador e a instituição nacionais co-responsáveis pela pesquisa. O protocolo deverá observar
as exigências da Declaração de Helsinque e incluir documento de aprovação, no país de origem, entre os
apresentados para avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição brasileira, que exigirá o cumprimento
de seus próprios referenciais éticos. Os estudos patrocinados do exterior também devem responder às
necessidades de treinamento de pessoal no Brasil, para que o país possa desenvolver projetos similares de forma
independente;
t) utilizar o material biológico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu
protocolo;
u) levar em conta, nas pesquisas realizadas em mulheres em idade fértil ou em mulheres grávidas, a avaliação de
riscos e benefícios e as eventuais interferências sobre a fertilidade, a gravidez, o embrião ou o feto, o trabalho de
parto, o puerpério, a lactação e o recém-nascido;
v) considerar que as pesquisas em mulheres grávidas devem ser precedidas de pesquisas em mulheres fora do
período gestacional, exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da pesquisa;
x) propiciar, nos estudos multicêntricos, a participação dos pesquisadores que desenvolverão a pesquisa na
elaboração do delineamento geral do projeto; e
z) descontinuar o estudo somente após análise das razões da descontinuidade pelo CEP que a aprovou.
IV- Consentimento Livre e Esclarecido
O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe após consentimento livre e
esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que por si e/ou por seus representantes legais manifestem a sua
anuência à participação na pesquisa.
IV.1- Exige-se que o esclarecimento dos sujeitos se faça em linguagem acessível e que inclua necessariamente
os seguintes aspectos:
a) a justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa;
b) os desconfortos e riscos possíveis e os benefícios esperados;
c) os métodos alternativos existentes;
d) a forma de acompanhamento e assistência, assim como seus responsáveis;
e) a garantia de esclarecimentos, antes e durante o curso da pesquisa, sobre a metodologia, informando a
possibilidade de inclusão em grupo controle ou placebo;
f) a liberdade do sujeito se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem
penalização alguma e sem prejuízo ao seu cuidado;
g) a garantia do sigilo que assegure a privacidade dos sujeitos quanto aos dados confidenciais envolvidos na
pesquisa;
h) as formas de ressarcimento das despesas decorrentes da participação na pesquisa; e
i) as formas de indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa.
143
IV.2- O termo de consentimento livre e esclarecido obedecerá aos seguintes requisitos:
a) ser elaborado pelo pesquisador responsável, expressando o cumprimento de cada uma das exigências acima;
b) ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa que referenda a investigação;
c) ser assinado ou identificado por impressão dactiloscópica, por todos e cada um dos sujeitos da pesquisa ou por
seus representantes legais; e
d) ser elaborado em duas vias, sendo uma retida pelo sujeito da pesquisa ou por seu representante legal e uma
arquivada pelo pesquisador.
IV.3- Nos casos em que haja qualquer restrição à liberdade ou ao esclarecimento necessários para o adequado
consentimento, deve-se ainda observar:
a) em pesquisas envolvendo crianças e adolescentes, portadores de perturbação ou doença mental e sujeitos em
situação de substancial diminuição em suas capacidades de consentimento, deverá haver justificação clara da
escolha dos sujeitos da pesquisa, especificada no protocolo, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, e
cumprir as exigências do consentimento livre e esclarecido, através dos representantes legais dos referidos
sujeitos, sem suspensão do direito de informação do indivíduo, no limite de sua capacidade;
b) a liberdade do consentimento deverá ser particularmente garantida para aqueles sujeitos que, embora adultos e
capazes, estejam expostos a condicionamentos específicos ou à influência de autoridade, especialmente
estudantes, militares, empregados, presidiários, internos em centros de readaptação, casas-abrigo, asilos,
associações religiosas e semelhantes, assegurando-lhes a inteira liberdade de participar ou não da pesquisa, sem
quaisquer represálias;
c) nos casos em que seja impossível registrar o consentimento livre e esclarecido, tal fato deve ser devidamente
documentado, com explicação das causas da impossibilidade, e parecer do Comitê de Ética em Pesquisa;
d) as pesquisas em pessoas com o diagnóstico de morte encefálica só podem ser realizadas desde que estejam
preenchidas as seguintes condições:
• documento comprobatório da morte encefálica (atestado de óbito);
• consentimento explícito dos familiares e/ou do responsável legal, ou manifestação prévia da vontade da pessoa;
• respeito total à dignidade do ser humano sem mutilação ou violação do corpo;
• sem ônus econômico-financeiro adicional à família;
• sem prejuízo para outros pacientes aguardando internação ou tratamento;
• possibilidade de obter conhecimento científico relevante, novo e que não possa ser obtido de outra maneira;
e) em comunidades culturalmente diferenciadas, inclusive indígenas, deve-se contar com a anuência antecipada
da comunidade através dos seus próprios líderes, não se dispensando, porém, esforços no sentido de obtenção do
consentimento individual;
f) quando o mérito da pesquisa depender de alguma restrição de informações aos sujeitos, tal fato deve ser
devidamente explicitado e justificado pelo pesquisador e submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa. Os dados
obtidos a partir dos sujeitos da pesquisa não poderão ser usados para outros fins que os não previstos no
protocolo e/ou no consentimento.
V- Riscos e Benefícios
Considera-se que toda pesquisa envolvendo seres humanos envolve risco. O dano eventual poderá ser imediato
ou tardio, comprometendo o indivíduo ou a coletividade.
V.1- Não obstante os riscos potenciais, as pesquisas envolvendo seres humanos serão admissíveis quando:
a) oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender, prevenir ou aliviar um problema que
afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indivíduos;
b) o risco se justifique pela importância do benefício esperado;
144
c) o benefício seja maior, ou no mínimo igual, a outras alternativas já estabelecidas para a prevenção, o
diagnóstico e o tratamento.
V.2- As pesquisas sem benefício direto ao indivíduo, devem prever condições de serem bem suportadas pelos
sujeitos da pesquisa, considerando sua situação física, psicológica, social e educacional.
V.3- O pesquisador responsável é obrigado a suspender a pesquisa imediatamente ao perceber algum risco ou
dano à saúde do sujeito participante da pesquisa, conseqüente à mesma, não previsto no termo de consentimento.
Do mesmo modo, tão logo constatada a superioridade de um método em estudo sobre outro, o projeto deverá ser
suspenso, oferecendo-se a todos os sujeitos os benefícios do melhor regime.
V.4- O Comitê de Ética em Pesquisa da instituição deverá ser informado de todos os efeitos adversos ou fatos
relevantes que alterem o curso normal do estudo.
V.5- O pesquisador, o patrocinador e a instituição devem assumir a responsabilidade de dar assistência integral
às complicações e danos decorrentes dos riscos previstos.
V.6- Os sujeitos da pesquisa que vierem a sofrer qualquer tipo de dano previsto ou não no termo de
consentimento e resultante de sua participação, além do direito à assistência integral, têm direito à indenização.
V.7- Jamais poderá ser exigido do sujeito da pesquisa, sob qualquer argumento, renúncia ao direito à indenização
por dano. O formulário do consentimento livre e esclarecido não deve conter nenhuma ressalva que afaste essa
responsabilidade ou que implique ao sujeito da pesquisa abrir mão de seus direitos legais, incluindo o direito de
procurar obter indenização por danos eventuais.
VI- Protocolo de Pesquisa
O protocolo a ser submetido à revisão ética somente poderá ser apreciado se estiver instruído com os seguintes
documentos, em português:
VI.1- folha de rosto: título do projeto, nome, número da carteira de identidade, CPF, telefone e endereço para
correspondência do pesquisador responsável e do patrocinador, nome e assinaturas dos dirigentes da instituição
e/ou organização;
VI.2- descrição da pesquisa, compreendendo os seguintes itens:
a) descrição dos propósitos e das hipóteses a serem testadas;
b) antecedentes científicos e dados que justifiquem a pesquisa. Se o propósito for testar um novo produto ou
dispositivo para a saúde, de procedência estrangeira ou não, deverá ser indicada a situação atual de registro junto
a agências regulatórias do país de origem;
c) descrição detalhada e ordenada do projeto de pesquisa (material e métodos, casuística, resultados esperados e
bibliografia);
d) análise crítica de riscos e benefícios;
e) duração total da pesquisa, a partir da aprovação;
f) explicitação das responsabilidades do pesquisador, da instituição, do promotor e do patrocinador;
g) explicitação de critérios para suspender ou encerrar a pesquisa;
h) local da pesquisa: detalhar as instalações dos serviços, centros, comunidades e instituições nas quais se
processarão as várias etapas da pesquisa;
i) demonstrativo da existência de infra-estrutura necesria ao desenvolvimento da pesquisa e para atender
eventuais problemas dela resultantes, com a concordância documentada da instituição;
VI.4- qualificação dos pesquisadores: Curriculum vitae do pesquisador responsável e dos demais participantes.
145
VI.5- termo de compromisso do pesquisador responsável e da instituição de cumprir os termos desta Resolução.
VII- Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
Toda pesquisa envolvendo seres humanos deverá ser submetida à apreciação de um Comitê de Ética em
Pesquisa.
VII.1- As instituições nas quais se realizem pesquisas envolvendo seres humanos deverão constituir um ou mais
de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), conforme suas necessidades.
VII.2- Na impossibilidade de se constituir CEP, a instituição ou o pesquisador responsável deverá submeter o
projeto à apreciação do CEP de outra instituição, preferencialmente dentre os indicados pela Comissão Nacional
de Ética em Pesquisa (CONEP/MS).
VII.3- OrganizaçãoA organização e criação do CEP será da competência da instituição, respeitadas as
normas desta Resolução, assim como o provimento de condições adequadas para o seu funcionamento.
VII.4- Composição – O CEP deverá ser constituído por colegiado com número não inferior a 7 (sete) membros.
Sua constituição deverá incluir a participação de profissionais da área de saúde, das ciências exatas, sociais e
humanas, incluindo, por exemplo, juristas, teólogos, sociólogos, filósofos, bioeticistas e, pelo menos, um
membro da sociedade representando os usuários da instituição. Poderá variar na sua composição, dependendo
das especificidades da instituição e das linhas de pesquisa a serem analisadas.
VII.5- Terá sempre caráter multi e transdisciplinar, não devendo haver mais que metade de seus membros
pertencentes à mesma categoria profissional, participando pessoas dos dois sexos. Poderá ainda contar com
consultores ad hoc, pessoas pertencentes ou não à instituição, com a finalidade de fornecer subsídios técnicos.
VII.6- No caso de pesquisas em grupos vulneráveis, comunidades e coletividades, deverá ser convidado um
representante, como membro ad hoc do CEP, para participar da análise do projeto específico.
VII.7- Nas pesquisas em população indígena deverá participar um consultor familiarizado com os costumes e
tradições da comunidade.
VII.8- Os membros do CEP deverão se isentar de tomada de decisão, quando diretamente envolvidos na
pesquisa em análise.
VII.9- Mandato e escolha dos membros – A composição de cada CEP deverá ser definida a critério da
instituição, sendo pelo menos metade dos membros com experiência em pesquisa, eleitos pelos seus pares.
A escolha da coordenação de cada Comitê deverá ser feita pelos membros que compõem o colegiado, durante a
primeira reunião de trabalho. Será de três anos a duração do mandato, sendo permitida recondução.
VII.10- Remuneração – Os membros do CEP não poderão ser remunerados no desempenho desta tarefa, sendo
recomendável, porém, que sejam dispensados nos horários de trabalho do Comitê, das outras obrigações nas
instituições às quais prestam serviço, podendo receber ressarcimento de despesas efetuadas com transporte,
hospedagem e alimentação.
VII.11- Arquivo – O CEP deverá manter em arquivo o projeto, o protocolo e os relatórios correspondentes, por
5 (cinco) anos após o encerramento do estudo.
VII.12- Liberdade de trabalho – Os membros dos CEPs deverão ter total independência na tomada das
decisões no exercício das suas funções, mantendo sob caráter confidencial as informações recebidas. Deste
modo, não podem sofrer qualquer tipo de pressão por parte de superiores hierárquicos ou pelos interessados em
determinada pesquisa, devem isentar-se de envolvimento financeiro e não devem estar submetidos a conflito de
interesse.
VII.13- Atribuições do CEP:
a) revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos, inclusive os multicêntricos, cabendo-lhe a
responsabilidade primária pelas decisões sobre a ética da pesquisa a ser desenvolvida na instituição, de modo a
garantir e resguardar a integridade e os direitos dos voluntários participantes nas referidas pesquisas;
146
b) emitir parecer consubstanciado por escrito, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, identificando com clareza o
ensaio, documentos estudados e data de revisão. A revisão de cada protocolo culminará com seu enquadramento
em uma das seguintes categorias:
• aprovado;
• com pendência: quando o Comitê considera o protocolo como aceitável, porém identifica determinados
problemas no protocolo, no formulário do consentimento ou em ambos, e recomenda uma revisão específica ou
solicita uma modificação ou informação relevante, que deverá ser atendida em 60 (sessenta) dias pelos
pesquisadores;
• retirado: quando, transcorrido o prazo, o protocolo permanece pendente;
• não aprovado; e
• aprovado e encaminhado, com o devido parecer, para apreciação pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
(CONEP/MS), nos casos previstos no capítulo VIII, item 4.c.
c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execução de sua tarefa e arquivamento do
protocolo completo, que ficará à disposição das autoridades sanitárias;
d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos através de relatórios anuais dos pesquisadores;
e) desempenhar papel consultivo e educativo, fomentando a reflexão em torno da ética na ciência;
f) receber dos sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte denúncias de abusos ou notificação sobre fatos
adversos que possam alterar o curso normal do estudo, decidindo pela continuidade, modificação ou suspensão
da pesquisa, devendo, se necessário, adequar o termo de consentimento. Considera-se como antiética a pesquisa
descontinuada sem justificativa aceita pelo CEP que a aprovou;
g) requerer instauração de sindicância à direção da instituição em caso de denúncias de irregularidades de
natureza ética nas pesquisas e, em havendo comprovação, comunicar à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
(CONEP/MS) e, no que couber, a outras instâncias; e
h) manter comunicação regular e permanente com a CONEP/MS.
VII.14- Atuação do CEP:
a) A revisão ética de toda e qualquer proposta de pesquisa envolvendo seres humanos não poderá ser dissociada
da sua análise científica. Pesquisa que não se faça acompanhar do respectivo protocolo não deve ser analisada
pelo Comitê.
b) Cada CEP deverá elaborar suas normas de funcionamento, contendo metodologia de trabalho, a exemplo de:
elaboração das atas; planejamento anual de suas atividades; periodicidade de reuniões; número mínimo de
presentes para início das reuniões; prazos para emissão de pareceres; critérios para solicitação de consultas de
experts na área em que se desejam informações técnicas; modelo de tomada de decisão, etc.
VIII Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS)
A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS) é uma instância colegiada, de natureza consultiva,
deliberativa, normativa, educativa, independente, vinculada ao Conselho Nacional de Saúde. O Ministério da
Saúde adotará as medidas necessárias para o funcionamento pleno da Comissão e de sua Secretaria Executiva.
VIII.1- Composição: A CONEP terá composição multi e transdiciplinar, com pessoas de ambos os sexos e
deverá ser composta por 13 (treze) membros titulares e seus respectivos suplentes, sendo 5 (cinco) deles
personalidades destacadas no campo da ética na pesquisa e na saúde e 8 (oito) personalidades com destacada
atuação nos campos teológico, jurídico e outros, assegurando-se que pelo menos um seja da área de gestão da
saúde. Os membros serão selecionados, a partir de listas indicativas elaboradas pelas instituições que possuem
CEP registrados na CONEP, sendo que 7 (sete) serão escolhidos pelo Conselho Nacional de Saúde e 6 (seis)
serão definidos por sorteio. Poderá contar também com consultores e membros ad hoc, assegurada a
representação dos usuários.
VIII.2- Cada CEP poderá indicar duas personalidades.
147
VIII.3 - O mandato dos membros da CONEP será de quatro anos com renovação alternada a cada dois anos, de
sete ou seis de seus membros.
VIII.4- Atribuições da CONEP – Compete à CONEP o exame dos aspectos éticos da pesquisa envolvendo
seres humanos, bem como a adequação e atualização das normas atinentes. A CONEP consultará a sociedade
sempre que julgar necessário, cabendo-lhe, entre outras, as seguintes atribuições:
a) estimular a criação de CEPs institucionais e de outras instâncias;
b) registrar os CEPs institucionais e de outras instâncias;
c) aprovar, no prazo de 60 dias, e acompanhar os protocolos de pesquisa em áreas temáticas especiais tais como:
• genética humana;
• reprodução humana;
• farmácos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos novos (fases I, II e III) ou não registrados no país (ainda
que fase IV), ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades, indicações, doses ou vias de
administração diferentes daquelas estabelecidas, incluindo seu emprego em combinações;
• equipamentos, insumos e dispositivos para a saúde novos ou não registrados no país;
• novos procedimentos ainda não consagrados na literatura;
• populações indígenas;
• projetos que envolvam aspectos de biossegurança;
• pesquisas coordenadas do exterior ou com participação estrangeira e pesquisas que envolvam remessa de
material biológico para o exterior; e
• projetos que, a critério do CEP, devidamente justificados, sejam julgados merecedores de análise pela CONEP;
d) prover normas específicas no campo da ética em pesquisa, inclusive nas áreas temáticas especiais, bem como
recomendações para aplicação das mesmas;
e) funcionar como instância final de recursos, a partir de informações fornecidas sistematicamente, em caráter
ex-ofício ou a partir de denúncias ou de solicitação de partes interessadas, devendo manifestar-se em um prazo
não superior a 60 (sessenta) dias;
f) rever responsabilidades, proibir ou interromper pesquisas, definitiva ou temporariamente, podendo requisitar
protocolos para revisão ética inclusive, os já aprovados pelo CEP;
g) constituir um sistema de informação e acompanhamento dos aspectos éticos das pesquisas envolvendo seres
humanos em todo o território nacional, mantendo atualizados os bancos de dados;
h) informar e assessorar o MS, o CNS e outras instâncias do SUS, bem como do governo e da sociedade, sobre
questões éticas relativas à pesquisa em seres humanos;
i) divulgar esta e outras normas relativas à ética em pesquisa envolvendo seres humanos;
j) a CONEP juntamente com outros setores do Ministério da Saúde, estabelecerá normas e critérios para o
credenciamento de Centros de Pesquisa. Este credenciamento deverá ser proposto pelos setores do Ministério da
Saúde, de acordo com suas necessidades, e aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde; e
l) estabelecer suas próprias normas de funcionamento.
VIII.5 - A CONEP submeterá ao CNS para sua deliberação:
a) propostas de normas gerais a serem aplicadas às pesquisas envolvendo seres humanos, inclusive modificações
desta norma;
b) plano de trabalho anual;
c) relatório anual de suas atividades, incluindo sumário dos CEP estabelecidos e dos projetos analisados.
148
IX- Operacionalização
IX.1- Todo e qualquer projeto de pesquisa envolvendo seres humanos deverá obedecer às recomendações desta
Resolução e dos documentos endossados em seu preâmbulo. A responsabilidade do pesquisador é indelegável,
indeclinável e compreende os aspectos éticos e legais.
IX.2- Ao pesquisador cabe:
a) apresentar o protocolo, devidamente instruido ao CEP, aguardando o pronunciamento deste, antes de iniciar a
pesquisa;
b) desenvolver o projeto conforme delineado;
c) elaborar e apresentar os relatórios parciais e final;
d) apresentar dados solicitados pelo CEP, a qualquer momento;
e) manter em arquivo, sob sua guarda, por 5 anos, os dados da pesquisa, contendo fichas individuais e todos os
demais documentos recomendados pelo CEP;
f) encaminhar os resultados para publicação, com os devidos créditos aos pesquisadores associados e ao pessoal
técnico participante do projeto;
g) justificar, perante o CEP, interrupção do projeto ou a não publicação dos resultados.
IX.3- O Comitê de Ética em Pesquisa institucional deverá estar registrado junto à CONEP/MS.
IX.4- Uma vez aprovado o projeto, o CEP passa a ser co-responsável no que se refere aos aspectos éticos da
pesquisa.
IX.5- Consideram-se autorizados para execução, os projetos aprovados pelo CEP, exceto os que se enquadrarem
nas áreas temáticas especiais, os quais, após aprovação pelo CEP institucional, deverão
ser enviados à CONEP/MS, que dará o devido encaminhamento.
IX.6- Pesquisas com novos medicamentos, vacinas, testes diagnósticos, equipamentos e dispositivos para a
saúde deverão ser encaminhados do CEP à CONEP/MS e desta, após parecer, à Secretaria de Vigilância
Sanitária.
IX.7- As agências de fomento à pesquisa e o corpo editorial das revistas científicas deverão exigir
documentação comprobatória de aprovação do projeto pelo CEP e/ou CONEP, quando for o caso.
IX.8- Os CEPs institucionais deverão encaminhar trimestralmente à CONEP/MS a relação dos projetos de
pesquisa analisados, aprovados e concluídos, bem como dos projetos em andamento e, imediatamente, aqueles
suspensos.
X- Disposições Transitórias
X.1- O Grupo Executivo de Trabalho (GET), constituido através da Resolução CNS 170/95, assumirá as
atribuições da CONEP até a sua constituição, responsabilizando-se por:
a) tomar as medidas necessárias ao processo de criação da CONEP/MS;
b) estabelecer normas para registro dos CEPs institucionais;
X.2- O GET terá 180 dias para finalizar as suas tarefas.
X.3- Os CEPs das instituições devem proceder, no prazo de 90 (noventa) dias, ao levantamento e análise, se for o
caso, dos projetos de pesquisa em seres humanos já em andamento, devendo encaminhar à CONEP/MS, a
relação dos mesmos.
149
X.4- Fica revogada a Resolução 01/88.
Adib D. Jatene
Presidente do Conselho Nacional de Saúde
Homologo a Resolução CNS n.º 196, de 10 de outubro de 1996, nos
termos do Decreto de Delegação de Competência, de 12 de novembro de
1991.
Adib D. Jatene
Ministro de Estado da Saúde
150
ANEXO 3
151
Protocolo de autorização para participação na pesquisa de campo referente ao projeto
“Aids, resiliência e escola”
Instituição: UNUJUÍ
Curso de Pós-graduação em Educação nas Ciências
Aluna: Maria Antonia Pizarro (CREMERS – 15142), médica pediatra e professora de
\medicina Legal no IESA.
Eu, ____________________________________, autorizo de forma
voluntária e informada, a utilização do conteúdo das respostas obtidas nessa pesquisa,
salvaguardando minha identidade, de acordo com o Código de Ética médica e de Pesquisa
envolvendo seres humanos (Resolução 196/96, Decreto nº 93953 do Conselho Nacional de
Saúde).
Santo Ângelo, ___, _________ de 2005.
_________________________________
152
Entrevista pais/cuidadores nº .....
Questões:
1- O seu filho sabe do diagnóstico de sua doença?
2- Seu filho vai à creche/escola?
3- Por que motivo ele vai à creche/escola?
4- Informastes na creche/escola acerca da doença de seu filho?
5- Se sim, o que te levou a fornecer essa informação?
6- Se não, o que te levou a omitir essa informação?
7- Como vês a creche/escola com relação à doença do seu filho?
8- Acreditas que a creche/escola pode ser importante como instrumento no
processo de melhora física/emocional do sue filho?
9- Se sim, o que acreditas ser mais importante para o seu filho, na
creche/escola?
10- Se não, o que acreditas que é mais difícil para seu filho, na creche/escola?
153
Protocolo de autorização para participação na pesquisa de campo referente ao projeto
“Aids, resiliência e escola”
Instituição: UNUJUÍ
Curso de Pós-graduação em Educação nas Ciências
Aluna: Maria Antonia Pizarro (CREMERS – 15142), médica pediatra e professora de
\medicina Legal no IESA.
Eu, ____________________________________, responsável legal
pala (o) menor ________________________________________, autorizo de forma
voluntária e informada, a utilização do conteúdo das respostas obtidas nessa pesquisa,
salvaguardando minha identidade, de acordo com o Código de Ética médica e de Pesquisa
envolvendo seres humanos (Resolução 196/96, Decreto nº 93953 do Conselho Nacional de
Saúde).
Santo Ângelo, ___, _________ de 2005.
_________________________________
154
Entrevista nº.....
Questões:
1- Por quê tu vais na creche/escola?
2- Das coisas que tu vivencias lá, o que tu mais gostas?
3- E o que tu não gostas?
4- Tens liberdade de conversar com a prof. sobre o que queres?
5- E o que isso representa para ti?
Para as crianças que conhecem o diagnóstico:
6- O que é aids para ti?
7- Tu achas que a prof./escola pode te ajudar com relação à sua doença?
Como?
155
Entrevista – professores
Cadastro:
1- Creche/escola (iniciais):_________
2- Nome (iniciais):_______________ Gênero: _______
3- Nível de formação: Fundamental ( ) Médio ( ) Superior Incompleto ( )
Superior Completo ( ) Mestrado ( ) Doutorado ( )
4- Há quanto tempo atuas em creche/escola?
5- Tu tens informação de haverem crianças portadoras de HIV na creche/escola?
6- Se sim, como vês a presença dessas crianças na creche/escola?
7- Se não, como tu verias a presença dessas crianças na creche/escola?
8- Tu te sentes devidamente preparada para acolher uma criança portadora de HIV, na
tua creche/escola?
9- Acreditas que a creche/escola pode ser importante no processo de inclusão essas
crianças?
10- Acreditas que a creche/escola pode ser importante na evolução da doença, nessas
crianças?
11- Acreditas que o professor pode ser importante na evolução da doença, nessas crianças?
156
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo