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Escrever uma tese é um trabalho extremamente solitário, mas esta escrita é fruto
de muita interlocução, seja com a literatura levantada, seja com as pessoas com
as quais compartilhamos nossas idéias, dúvidas, angústias e descobertas. Por
isso estes agradecimentos:
À Rosane, minha orientadora, amiga e madrinha profissional, com quem tenho
aprendido tanto por meio de um estímulo intelectual que nunca cessa e um
carinho e generosidade sem par.
Ao Hélio, por ter ficado o tempo todo ao meu lado e pelo amor presente em cada
gesto e cada palavra.
À Fê, minha fã incondicional; pelas rezas e mandingas com pitadas de carinho.
À Vera, minha amiga de todas as horas, por ter lido com paciência e feito
sugestões pontuais e fundamentais; pelo seu carinho.
À Graziela, pelo estímulo para eu não desistir, pelas dicas de bibliografia e pelos
bate-papos gostosos tomando nosso chopinho.
À Lucia, Valéria, Dolores e Luiz Moris, que me ajudaram num momento crucial.
Ao João Moris, pela tradução do resumo para o inglês. Você foi muito gentil!
À Teca, que me escutou com tanta paciência.
À Benvinda, Laura (Lali) e Nelson José (por favor!), meus amigos queridos. Vocês
nem sabem a referência que são na minha vida, hein?
À minha grande e querida família que tem me dado tanto.
À Flávia e à Renata, que me deram sugestões preciosas.
Aos homens que participaram desta pesquisa e que compartilharam suas
histórias comigo.
Ao CEPE (Conselho de Ensino e Pesquisa da PUCSP), pelo apoio financeiro.
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Esta pesquisa teve como objetivo descrever e discutir como diferentes
atributos da masculinidade são centrais para definição do eu de homens
específicos e como se trata de um processo negociado em diferentes
momentos do ciclo vital.
Buscou-se compreender esse processo de negociação dos
relacionamentos e sua intersecção com as prerrogativas da masculinidade
hegemônica.
Foram utilizadas histórias de vida de quatro homens entre 35 e 45 anos
pertencentes à camada média ou média-alta urbana de uma população não
clínica.
Dois aportes teóricos teceram a rede conceitual que deu suporte à
investigação: os estudos críticos sobre homens e masculinidades e a perspectiva
de gênero.
Os resultados revelam as vantagens do uso da história de vida como
intermediário para os estudos com homens. A masculinidade (ser homem), longe
de ser algo fixo, é definida e negociada ao longo do tempo, em diferentes arenas
e com diferentes parceiros. A família (especialmente o pai e a mãe) é co-partícipe
na construção da ordem de gênero no nascimento, na infância e na adolescência.
O processo de corporalização da masculinidade hegemônica está associado à
heterossexualidade, à força, resistência, dureza e competência física. É possível
pensar que a hegemonia é fluida, frágil, passível de ameaça e deve ser
continuamente garantida. Os homens se definem em relação aos outros homens,
enquanto as mulheres são coadjuvantes no relato, sendo que, no todo, isso pode
conduzir a vê-las como subordinadas, o que reafirma como o privilégio masculino
é invisível e, portanto, como é difícil dar conta do mesmo.
palavras-chave: psicologia; homens; masculinidade; gênero.
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The present research aims to describe and discuss how different male
attributes are critical for the definition of the self of specific men, and how it
refers to a process that is negotiated at different stages of one’s life cycle.
This study sought to understand this negotiation process from the
perspective of interpersonal relationships and their intersection with the
prerogatives of the hegemonic masculinity. The research included four men aged
35-45, of middle class and high middle class backgrounds, living in cities and
drawn from a non-clinical population.
Two theoretical approaches formed the basis for the conceptual
framework of the investigation: critical studies on men and masculinity and gender
perspective.
The results show the advantages of using these men’s life stories as an
intermediary for male studies. Masculinity (being a male), far from being cast in
concrete, is something that is defined and negotiated over time in different arenas
and with different partners. The family (especially the father and the mother) is co-
participant in the construction of the gender order at birth, during childhood and
adolescence. The process of embodiment of the hegemonic masculinity is often
associated with heterosexuality, strength, endurance, hardness and physical
competence. It is possible to think of male hegemony as fluid, fragile, subject to
being threatened and continually guaranteed. Men define themselves in relation to
other men, while women are seen as playing a supporting role. This may cause
others to perceive them as being subordinate, which expresses the notion of how
invisible male privilege can be, and therefore, how difficult it is to reckon with it.
Key-words: psychology; men; masculinity; gender.
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INTRODUÇÃO 01
Capítulo 1 GÊNERO 09
1.1. O Feminismo e a discussão da subordinação das mulheres: situando
o contexto no qual emergiu o conceito de gênero...................................................... 10
1.2. A Teoria e a Perspectiva de gênero................................................................... 13
1.3. A emergência do gênero na Psicologia ........................................................... 25
1.4. O gênero para o futuro: os estudos críticos sobre os homens...................... 30
Capítulo 2 MASCULINIDADE E GÊNERO 32
2.1. Da masculinidade às masculinidades .............................................................. 33
2.2. As perspectivas essencialistas e funcionalistas e as tentativas de
explicação da masculinidade ........................................................................................ 40
2.3. Robert W. Connell e uma nova proposta para o estudo das
masculinidades .............................................................................................................. 44
2.4. Masculinidade hegemônica e masculinidades subordinadas ....................... 55
2.5. Explicando a construção da masculinidade: algumas contribuições
da Psicologia e para além dela ..................................................................................... 61
Capítulo 3 MÉTODO 71
3.1. Entrevistando homens: tecendo algumas considerações.............................. 76
3.2. Participantes........................................................................................................ 86
3.3. Procedimento....................................................................................................... 87
3.4. Instrumento.......................................................................................................... 89
3.5. Análise dos resultados....................................................................................... 90
Capítulo 4 ANÁLISE E DISCUSSÃO 92
4.1. As biografias ....................................................................................................... 94
4.2. A construção da masculinidade sob a ótica do gênero: uma releitura
do conjunto das histórias de vida .............................................................................. 162
Capítulo 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 168
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 176
ANEXO
Introdução
Simone de Beauvoir afirmou que as mulheres não nascem mulheres,
tornam-se. O mesmo pode ser dito em relação aos homens. Muito além do sexo,
os homens não nascem homens, tornam-se homens.
Embora ao longo da segunda metade do século XX os estudos de gênero
tenham buscado evidenciar a construção da feminilidade, pouco foi investigado
com relação à construção da masculinidade.
Na perspectiva do senso comum, a masculinidade é tida como um
atributo “natural” do homem, frequentemente associada a características como
competição, exibição de agressividade, sexualidade predadora, afastamento dos
afetos, capacidade de domínio, dentre outras.
Esta crença na suposta natureza da masculinidade tem servido de
justificativa para condutas tipicamente machistas que persistem entranhadas na
vida cotidiana e nos relacionamentos de modo geral. No entanto, não deixa de
chamar a atenção o fato de que costumeiramente entre os homens a
masculinidade é conferida por meio de expressões como “seja homem!”, “homem
que é homem não chora!”, “eu sou homem com agá maiúsculo!”. Ora, se a
masculinidade é natural, inata, por que os homens estão todo o tempo cobrando
ou sendo cobrados quanto a serem “homens de verdade”? Então, pertencer ao
sexo masculino não implica necessariamente em ser detentor da masculinidade?
Se o sexo biológico não é garantia para a condição masculina, então no
que consiste a masculinidade e como os homens se tornam masculinos?
Nas últimas duas décadas, tudo o que era tido como óbvio, natural e da
2
essência masculina tem sido duramente questionado e criticado. A recente
emergência da masculinidade como tema de investigação demonstra que a sua
definição a-histórica e essencialista, o seu caráter natural, tem trazido dificuldades
para dar conta dos homens reais com seus sofrimentos e dificuldades.
Pôr em questão a universalidade e a naturalização da masculinidade
implica compartilhar da crença de que o processo de subjetivação não é um
destino inexorável, mas sim pleno de contradições e tensões, no qual os sujeitos
estão constantemente reformulando suas crenças, ações e sentimentos por
intermédio de complexas interações.
Na segunda metade da década de 80, iniciaram-se estudos e pesquisas
centradas no tema-questão dos homens e da masculinidade, tendo como
característica principal a rejeição ao modelo tradicional vigente que interpretava a
experiência masculina como a norma.
É importante sublinhar, conforme Cazés (1998), que já no início do século
XX vários investigadores se ocuparam dos homens, da hombridade, da virilidade
e da masculinidade e que grande parte das feministas, pelo menos desde a obra
“O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir, já se referia a estes temas como
indispensáveis para se empreender as buscas libertárias das mulheres.
O que se apresentou como novidade nos anos 80 foi a intervenção de
homens ligados a intelectuais e ativistas feministas na reflexão e investigação
sobre a condição masculina com a contribuição dos estudos de gênero:
“... os estudos sobre homens ou masculinidade com enfoque de gênero
estão ligados aos estudos feministas e, em grande medida, inspirados por suas
visões críticas e pelas propostas e ações das mulheres que os elaboraram.”
(Cazés, 1998, p. 112)
3
Sob a consideração da maioria destes autores, gênero é entendido não
somente como um sistema de classificação ‘macho-fêmea’ sob o qual as pessoas
são consideradas e socializadas em papéis sociais equivalentes, mas também
expressa a desigualdade universal entre homens e mulheres. Quando falam de
gênero, portanto, estão se referindo à hierarquia, poder e desigualdade, e não
somente a diferenças.
De modo geral, as análises desenvolvidas a partir deste campo de
estudos centram-se nas experiências masculinas como construções sociais,
históricas e culturais específicas. O reconhecimento das variadas influências de
classe, cultura, raça e orientação sexual na construção das experiências
masculinas é o que fundamenta as pesquisas desenvolvidas sob esta proposição.
O objetivo é tornar o gênero evidente nos estudos sobre homens, isto é,
compreender como eles vivem como homens. Neste sentido, o propósito também
é o de trazer o privilégio masculino para a visibilidade, conforme afirmam
Schwalbe & Wolkomir (2003):
“... Na cultura ocidental, homens que desejam reivindicar totais
privilégios da masculinidade devem se distinguir das mulheres pela expressão
de grandes desejos e capacidades de controlar as pessoas e o mundo, pelo
pensamento e ação autônomos, pelo pensamento e ação racionais, pelo risco e
excitação e pelo prazer e façanha (hetero) sexuais. (Ibid.,2003, p. 56)
Ignorar o privilégio masculino, isto é, mantê-lo no plano da invisibilidade, é
impedir a compreensão e a solução de determinados problemas sociais
associados a ele.
Embora tenham sido os sociólogos os principais responsáveis pela
estruturação e desenvolvimento do campo de estudos sobre homens e
4
masculinidades, atualmente ele tem se desenvolvido a partir da contribuição de
várias áreas do conhecimento: sociologia, psicologia, história, estudos sobre
mídia e comunicação, criminologia e justiça criminal, literatura, antropologia,
estudos étnicos, dentre outras.
Como exemplos dos tópicos relevantes das pesquisas desenvolvidas
nesta área, temos os processos e conseqüências da socialização masculina sob a
ótica do gênero, incluindo seus impactos sobre a saúde dos homens, os
relacionamentos interpessoais, o desenvolvimento afetivo, a violência e o bem-
estar psicológico.
Uma das proposições mais proveitosas que emergiu deste campo de
estudos foi a de que se tornar masculino é algo que é negociado ao longo da vida
do indivíduo, em oposição à feminilidade e à homossexualidade e em relação às
outras masculinidades (Connell, 1993 e 1995; Kimmel, 1991).
É inegável que o processo de constituição da masculinidade e da
feminilidade não se faz desatrelado de determinados modelos hegemônicos
sejam masculinos, sejam femininos com suas estratégias que visam moldar e
regular os sujeitos pelo uso do controle dos desejos e das vontades (Matos,
2001).
A apresentação do conceito de masculinidade hegemônica torna explícita
a predominância de determinada configuração de masculinidade e de feminilidade
que busca se impor como referencial fixo, e se sustenta por meio de um
segmento de homens e mulheres que se sentem gratificados e que usufruem e se
beneficiam dos privilégios que essa posição lhes garante.
5
O conceito de masculinidade hegemônica tem suas origens nas
mudanças das pautas feministas e nos desdobramentos dos estudos de gênero
que apontam diferentes modos para se atingir a eqüidade entre homens e
mulheres (Cazés, 1998; Connell, 1995; Hearn, 1993, 2004; Kimmel, 1991, 2004;
Matos, 2001).
Entre as pesquisas desenvolvidas no campo da psicologia clínica, chama
a atenção o impacto ainda pouco expressivo que estas contribuições vindas do
campo de estudos dos homens e das masculinidades tiveram. No nosso
entendimento, os subsídios teóricos que estes estudos têm desenvolvido,
resultantes fundamentalmente da sociologia e da antropologia, propõem desafios
para a compreensão de como e sob que condições os homens constroem e
negociam a própria masculinidade ao longo do ciclo vital, tarefa para a qual a
psicologia tem muito a contribuir. As formulações desenvolvidas lançam grandes
desafios para os modos nos quais as teorias psicológicas abordam o
desenvolvimento humano, especialmente a constituição da feminilidade e da
masculinidade.
O tema sobre o qual se organiza este trabalho construção e
negociação da masculinidade ao longo do ciclo vital emerge deste contexto,
sendo também uma decorrência da trajetória profissional do autor como
pesquisador, professor de psicologia do desenvolvimento e psicólogo.
Nosso interesse está voltado para a compreensão de como os homens
lidam com a própria masculinidade e em que medida isto favorece ou dificulta os
seus relacionamentos interpessoais e a sua auto-satisfação como pessoas. Esta
curiosidade é resultado de nossa experiência no trabalho de mediação de
6
conflitos de casais e grupos de homens durante seis anos numa organização não-
governamental, bem como no trabalho realizado no Escritório Modelo “Dom Paulo
Evaristo Arns” no qual atendíamos até recentemente mulheres e homens que
passavam por diversos tipos de conflitos envolvendo relacionamentos afetivos, a
maternidade e a paternidade, dentre outros.
Esta experiência, aliada aos resultados de nossa pesquisa de mestrado,
na qual investigamos o sentido de intimidade conjugal para os homens (Maciel Jr,
1999) apontam o seguinte: a identificação dos homens com imagens de
produtividade, autonomia, autoconfiança, virilidade, agressividade e contenção
emocional tem tido efeitos deletérios sobre sua saúde física e emocional e sobre
seus relacionamentos interpessoais, seja como namorado, amante, marido,
parceiro, seja como pai, amigo, companheiro de trabalho. Além disso, as
mulheres e crianças que convivem com estes homens também podem ser vítimas
destes efeitos.
Vale salientar, entretanto, que estes atributos não estão atrelados
somente, ou intrinsecamente, aos recursos pessoais que alguns homens têm e
outros não, e sim às demandas e exigências que recaem sobre estes homens
num determinado contexto sócio-cultural, na história de cada um e nos vários
âmbitos nos quais eles estão inseridos e se relacionam. Trata-se de
características que precisam ser continuamente negociadas no processo de
engendramento de suas masculinidades.
Assim, o presente estudo visa, por meio da análise de histórias de vida,
descrever e discutir como diferentes atributos da masculinidade são centrais para
definição do eu de homens específicos e como se trata de um processo
7
negociado em momentos do ciclo vital. Buscou-se compreender esse processo de
negociação dos relacionamentos e sua intersecção com as prerrogativas da
masculinidade hegemônica.
Com este estudo, acreditamos poder contribuir para o entendimento de
um tema que ainda é pouco explorado em termos de pesquisa, mas que, na
prática dos profissionais que lidam com homens, relacionamentos interpessoais,
conjugais e familiares têm demandado a busca de alternativas para o
entendimento da condição e do sofrimento masculinos e da promoção da
qualidade de vida de todos os envolvidos.
Dois contextos teóricos tecem a rede conceitual que dará suporte a esta
investigação: os estudos críticos sobre homens e masculinidades e a perspectiva
de gênero. Estes fundamentos teóricos se articulam ainda a uma escolha
metodológica que tem sido bastante utilizada em estudos sobre masculinidade a
história de vida ou biografia a qual permite identificar como se constroem e se
negociam os significados ao longo do ciclo vital.
No primeiro capítulo, abordaremos como nasce o conceito de gênero,
qual o contexto que favorece a sua emergência e como ele se transforma numa
ferramenta útil (categoria de análise) para o entendimento das relações humanas
(sejam entre homens e mulheres, homens entre si ou mulheres entre si).
No segundo capítulo, apresentaremos um panorama dos estudos críticos
sobre homens e masculinidades, demonstrando a sua trajetória, as principais
críticas que os seus autores fazem às teorias biológicas e funcionalistas que
tentam explicar a masculinidade, bem como apresentando os principais conceitos
e idéias que fundamentarão a nossa análise.
8
No terceiro capítulo, teceremos considerações sobre o método de história
de vida como intermediário para o estudo com homens e situaremos os
procedimentos de nossa pesquisa. Além disso, serão apresentadas algumas
reflexões teóricas sobre a situação na qual homens entrevistam homens.
No quarto capítulo, apresentaremos e analisaremos as histórias de vida à
luz do aporte teórico escolhido.
Finalmente, no quinto e último capítulo, teceremos nossas considerações
finais e apontaremos as principais contribuições decorrentes do presente trabalho.
9
Capítulo 1 Gênero
O interesse desse trabalho é refletir sobre a construção da masculinidade
e de como ela é negociada ao longo do ciclo vital. Esta discussão será feita sob
escrutínio do gênero, uma vez que, no nosso entendimento, é impossível
desvincular as pessoas como seres sexuados do seu contexto histórico, político,
cultural e geográfico.
A discussão sobre as diferenças sexuais é antiga. Ainda assim, o
questionamento a respeito do tema continua fazendo parte do cenário atual.
Querer saber quais as semelhanças existentes entre homens e mulheres, sob que
aspectos eles se diferenciam, se eles se completam ou ocupam lados opostos, é
assunto que até hoje tem propiciado a produção de extensa literatura, tanto a de
ficção quanto a científica.
Mas, enquanto na literatura ficcional as respostas apresentam
argumentos como os de que os homens são de Marte e as mulheres de Vênus, a
literatura científica tem produzido pesquisas e obras extremamente importantes a
partir da recolocação da questão: como e por que as diferenças entre homens e
mulheres têm servido para justificar o privilégio e o domínio daqueles sobre
estas?
De fato, mesmo no campo científico esta preocupação é bem recente e
somente nas três últimas décadas é que os investigadores trouxeram à tona o
questionamento e formularam um conceito para dar conta de desvelar aquilo que
estava sob o tapete: para além das diferenças entre homens e mulheres existem
10
desigualdades e injustiças que marcam e determinam o cotidiano das relações
interpessoais entre as mulheres, entre os homens e entre mulheres e homens.
1.1. O Feminismo e a discussão da subordinação das mulheres: situando
o contexto no qual emergiu o conceito de gênero.
O feminismo pode ser entendido como um movimento pela defesa de
direitos iguais para mulheres e homens, atrelado ao compromisso de melhorar a
posição das mulheres na sociedade. Portanto, ele pressupõe uma condição
básica de desigualdade, seja ela concebida como dominação masculina,
patriarcado, desigualdade de gênero ou os efeitos sociais da diferença sexual
1
.
Num complexo e inconcluso processo iniciado há séculos, as mulheres
têm sido submetidas a condições de dependência, subordinação, exclusão e
discriminação, tanto na vida cotidiana e nas crenças sobre sua “natureza inferior”,
quanto nas leis e na estrutura da organização social (Cazés, 1999)
A tradição mais antiga do feminismo na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos sustentou-se nos ideais democráticos e liberais, e dirigia-se à obtenção de
direitos e oportunidades iguais para as mulheres. O auge da militância por
igualdade de direitos foi a luta violenta das sufragistas pelo direito ao voto no
início do século XX. Isto mostra que nem todas as mulheres permaneceram na
condição de submissão às quais foram confinadas e nas quais se pretende
mantê-las submetidas, distanciadas umas das outras e, inclusive, em mútua
rivalidade. No entanto, somente no contexto dos grandes conflitos bélicos dos
últimos cento e cinqüenta anos é que as mulheres passaram a reconhecer sua
1
Fonte: Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Editado por William
Outhwaite & Tom Bottomore. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1996
11
própria condição histórica. Foi possível, a partir desta constatação, refletir
criticamente sobre as crenças e as formas de vida às quais tinham sido
submetidas e nas quais estavam confinadas.
Na mesma época em que se iniciaram as batalhas das mulheres pelo
direito ao voto também surgiram as primeiras elaborações teóricas propondo o
conceito de “condições históricas referidas a sujeitos sociais” (Cazés, 1999, p. 3)
e, a partir desta formulação, Alejandra Kollontai
2
, primeira mulher a ocupar um
ministério governamental no mundo, investigou a história da condição da mulher e
das situações vitais das mulheres em épocas, sociedades, culturas e classes
sociais distintas (Pérotin-Dumon, 2001).
O fato é que diversos movimentos de mulheres começam a emergir,
especia lmente na Europa e na América do Norte, favorecendo a elaboração das
primeiras leis organizadas em torno do que foi chamado de movimento de
emancipação feminina, voltado para a discussão sobre os direitos específicos das
mulheres como o de igualdade sexual, política, trabalhista, de mobilidade e plenos
direitos civis, incluindo seu direito à maternidade voluntária.
Há que se destacar ainda o trabalho de Eleanor Roosevelt e de algumas
mulheres latino-americanas que na recém constituída Organização das Nações
Unidas (ONU) conseguiram modificar o termo “direitos do homem”, criado na
Revolução Francesa, para “direitos humanos”. Dessa forma, a ONU assinalou a
condição humana às mulheres, que passaram a compartilhar dos mesmos direitos
anteriormente referentes àqueles que podiam ser cidadãos, isto é, os homens
(Cazés, op. cit.).
2
Sobre la liberación de la mujer, Alejandra Kollontai, Seminário de 1921.
12
Poucos anos antes, Simone de Beauvoir havia lançado seu livro pioneiro,
“O segundo sexo”
3
, considerado a primeira obra a apresentar um discurso
filosófico sobre as mulheres e sob a ótica feminina, além de ser apontado como
um dos trabalhos fundamentais do feminismo moderno. A principal contribuição
feita pela filósofa francesa é a análise do que é determinado pela biologia /
natureza e do que é construído na cultura, incluindo o psiquismo feminino. Ao
escrever sua famosa frase: “... não se nasce, mas torna-se mulher”, Beauvoir
deixa claro que esse “tornar-se” segue diferentes trajetórias, envolve muitas
tensões e ambigüidades e pode produzir resultados inusitados (Connell, 2002).
Ela demonstra as falácias do biologismo determinista, que defende que a vida
humana é determinada pela natureza, pelos instintos e pela anatomia. Beauvoir
se confronta com o marxismo classista por ter excluído a mulher como sujeito
histórico e expõe as limitações da psicanálise freudiana baseada na premissa de
que o psiquismo masculino é universal, paradigmático, referente exclusivo do
humano, enquanto o feminino se baseia na simples falta do masculino (Pérotin-
Dumon, 2001; Cazés, 1999). Por tudo isso, Simone de Beauvoir produziu um
suporte teórico sólido e original para interpretar a história das mulheres e sua
condição de protagonista, a partir de uma concepção que é, ao mesmo tempo,
biológica, social, psicológica e cultural, resultante de uma visão histórica que inclui
e engloba a condição feminina.
Simone de Beauvoir é só um exemplo dentre tantas mulheres que
contribuíram para que as sociedades e suas instituições, controladas
eminentemente por homens, começassem a reconhecer a existência das
3
No original, Le deuxièmme sexe, publicado em 1949.
13
mulheres e abrissem espaços nos quais elas pudessem transformar suas
condições e situações de vida.
Portanto, atribuiu-se o nome de feminismo ao conjunto de posições e
movimentos que foram motivados e enriquecidos ao longo de décadas, e que
sintetiza tudo o que na teoria e na prática está destinado a converter as mulheres
em sujeitos da própria história. Conforme define muito propriamente Cazés, “... o
feminismo é uma filosofia, uma concepção da história e das realidades sociais,
bem como uma política de transformação das relações de gênero”. (op. cit., p.5)
Mas ao contrário do que pode parecer, não há o que se pode conceber
como lealdade unitária do feminismo. As discussões e propostas que foram sendo
articuladas ao longo das décadas ensejaram múltiplas correntes e estilos de
feminismo, o que só ajudou a ampliar a discussão e contribuiu para a formulação
de um corpo conceitual bastante complexo, do qual emergiu a formulação do
conceito de gênero.
1.2. A Teoria e a Perspectiva de gênero
Qualquer pessoa que tente se lembrar dos principais candidatos nas
últimas eleições, sejam no âmbito municipal, estadual ou federal, constatará que
em sua maioria arrasadora se constituía de homens. Ao tentar identificar os
principais líderes do poder mundial, os detentores das maiores fortunas do mundo
ou os representantes das mais importantes instituições de justiça do país ou do
mundo, também chegará à mesma constatação.
As mulheres respondem por quase todo o trabalho doméstico na maioria
das sociedades contemporâneas, bem como pelo cuidado das crianças. Elas
14
estão muito menos presentes do que os homens no contexto público e, aquelas
que estão, têm muito menos em termos de recursos. Por exemplo, em quase
todas as partes do mundo é mais provável que os homens tenham um trabalho
remunerado do que as mulheres (Connell, 2002), o que leva à constatação de que
a maioria das políticas trabalhistas atuais foram planejadas para uma sociedade
na qual os homens trabalhavam e as mulheres ficavam em casa (algo tido como
sinônimo de “não- trabalho”).
Estes são alguns de diversos possíveis exemplos que permitem o
reconhecimento de que os fatos sobre política, economia, cultura de massas,
infância, juventude, dentre tantos outros, estão todos conectados. Está dada a
base para o pensamento sobre gênero: todos estes fatos formam um padrão que
é denominado pela literatura de “ordem de gênero” da sociedade contemporânea.
Mas, afinal, o que é gênero?
Conforme exposto anteriormente, o conceito de gênero foi desenvolvido
no âmbito dos estudos feministas e pode ser entendido, para uma primeira
apresentação do conceito, como um modo de olhar para a realidade da vida de
mulheres e homens visando compreender as relações sociais entre eles,
especialmente as relações de poder entre os homens, entre as mulheres e entre
mulheres e homens.
Nesse sentido, é possível apontar uma distinção inicial entre “gênero” e
“sexo”, uma vez que se tornou comum, mesmo na literatura acadêmica, fazer uso
de um termo pelo outro, como se fossem sinônimos: enquanto “gênero” é uma
construção imaginária e simbólica, “sexo” é um conjunto de características
15
genotípicas e fenotípicas presentes nos sistemas, funções e processos dos
corpos humanos.
O conceito surge pela primeira vez no início dos anos 70, na obra da
socióloga inglesa Ann Oakley denominada “Sex, gender and society”, para
distinguir inicialmente o caráter biológico do sexo e o caráter sócio-cultural do
gênero:
“...’sexo’ é um termo da biologia e ‘gênero’ é empregado na psicologia e
com relação a processos culturais. Poder-se-ia pensar que essas palavras são
simplesmente dois modos de se considerar a mesma diferença e que se, por
exemplo, uma pessoa é do sexo feminino, pertence automaticamente ao gênero
correspondente (feminino, neste caso). De fato, não é assim. Ser homem ou
mulher, menino ou menina, é tanto a maneira de se vestir, os gestos, as
atividades, a rede social e a personalidade, como os órgãos genitais que uma
pessoa tem”. (Oakley, 1972, p.158)
Segundo Pérotin-Dumon (2001), a noção de uma relação social entre os
sexos é parte da explicação marxista do mundo desde o final do século XIX. No
entanto, subscreve ao determinismo materialista. Em linhas gerais, a
subordinação feminina tem sua origem na formação da propriedade privada: as
mudanças nas relações entre os sexos ficam apartadas daquelas que
caracterizam as relações entre as classes ao passar de um modo de produção a
outro. O desafio estava em descobrir uma forma de conciliar estas duas visões e
isto fez com que se produzisse uma fecunda reflexão sobre as noções de
produção e reprodução (da espécie humana), patriarcado e relações de classe.
A questão central da discussão passou a ser a de entender como o
marxismo clássico pretendia explicar que o sistema econômico determinava as
relações entre os sexos desconsiderando a esfera da economia doméstica e das
relações individuais, uma vez que a experiência permitia percebê-las como lugar
16
por excelência da relação de subordinação (Samara, 1997; Pérotin-Dumon,
2001).
A explicação mais esclarecedora surge no artigo de Gayle Rubin
denominado “The traffic of women: notes on the political economy of sex”
4
, na
qual a antropóloga defende que não é a propriedade e sim o intercâmbio que
regula as relações sociais entre os sexos. A contribuição que a autora traz para o
debate é a de que o conceito de gênero deve supor os conjuntos de práticas,
símbolos, representações, normas e valores sociais que as sociedades
elaboraram a partir das diferenças sexuais anatômicas.
O que se constata nesta discussão é que se fazia necessário incluir nas
relações de produção as relações entre os sexos, cujo terreno se situava na
esfera doméstica e da família. Era imprescindível, portanto, conforme apontou a
historiadora Joan Kelly-Gadol, precisar a interação entre os dois sistemas de
relação em termos de “superposição”, uma vez que se tornava visível certa
indecisão tanto no modelo materialista quanto no modelo cultural de explicação
(apud Pérotin-Dumon, 2001, p. 4).
É nesse contexto da discussão que é lançado o artigo intitulado Gênero:
uma categoria útil para a análise histórica”
5
, da historiadora Joan Scott. Pela
primeira vez, um artigo tinha como único objeto o gênero no sentido de relação
social e realizava a exploração metódica do seu campo conceitual. Scott faz um
exame minucioso sobre o pensamento elaborado em outras disciplinas por
diversos autores norte-americanos e franceses, detendo-se no que lhe parecia
4
Artigo publicado na obra Toward an anthropology of women, de Rayna R. Reiter, em
1975.
5
No original, Gender: a useful category of historical analysis, publicado em 1986.
17
particularmente útil para ajudar os historiadores a repensar o tema. Segundo
Pérotin-Dumon, “... sob esse título afortunado e estratégico, o artigo de Scott era
a culminação de esforços tenazes exibidos pela historiadora no seio da sua
profissão para instaurar um diálogo sobre o problema do gênero” (op. cit., p. 7).
Além disso, como aponta Soihet (1997), havia no artigo da historiadora o
propósito de ultrapassar os usos descritivos do gênero e formular uma proposta
que permitisse utilizá-lo como categoria de análise, uma vez que este uso
descritivo do conceito não tinha força de análise suficiente para questionar e
reformular os paradigmas históricos existentes.
O artigo de Joan Scott também aprofunda as três posições teóricas
centrais que naquele momento respaldavam os estudos sobre as relações de
gênero: as teorias do patriarcado, as teorias materialistas-históricas e as teorias
psicanalíticas.
Será feita, então, uma breve exposição destas três posições teóricas
centrais que discutem gênero, visando situar o leitor nas principais formulações e
propostas que emergiram delas
6
. As formulações serão acompanhadas das
críticas feitas por Scott a cada uma delas no artigo supracitado.
As teorias do patriarcado tendem a explicar o processo de subordinação
feminina como resultante da necessidade masculina de dominação das mulheres
e compartilham de algumas características comuns: as esferas separadas entre
os sexos, um estado de guerra entre eles e o ressurgimento do “Outro feminino”
(isto é, o outro como o mal e, consequentemente, o um como o bem) no mundo
6
Obviamente admitindo que, por se tratar apenas de um simples resumo, corre-se o
risco de parecer superficial.
18
imaginário dos homens. (Astelarra, 1988
7
) A proposta da existência de um
sistema de dominação sobre as mulheres apontava para a necessidade de se
converter o feminismo num movimento político, mostrava a complexidade e
extensão deste domínio e deixava claro que era necessário atuar nos domínios
público e privado para tentar por fim à desigualdade entre os gêneros. No entanto,
segundo Scott, as teorias do patriarcado não explicam a relação entre a
desigualdade de gênero e outras desigualdades. Além disso, a análise destas
teorias baseia-se na diferença física, o que pressupõe um caráter universal e
imutável e, por conseqüência, a não-historicidade do gênero em si. Portanto,
conclui Scott, “... de um certo ponto de vista, a história se torna um epifenômeno
que oferece variações intermináveis sobre o tema imutável de uma desigualdade
de gênero fixa” (Scott, s/d, p. 6).
Por outro lado, as teorias materialistas-históricas procuram explicar a
subordinação das mulheres especialmente a partir do surgimento da propriedade
privada e da família monogâmica. Baseadas principalmente na obra de Friedrich
Engels, “Origem da família, da propriedade privada e do Estado”, que descreve o
que o filósofo chamou de “a derrota histórica do sexo feminino” como algo
decorrente da emergência da propriedade privada, as análises fornecidas por este
grupo de teorias entendem a submissão das mulheres como decorrente do
processo histórico de desenvolvimento econômico capitalista. Apontam que o
capitalismo tem sido muito hábil, tanto ao tentar atrair as mulheres para o
mercado de trabalho como quando desejam o retorno delas para o mundo
privado, fazendo das mesmas candidatas preferenciais para a composição de um
exército industrial de reserva (Petersen, 1999). Assim, retomando conceitos e
7
apud Petersen, 1999.
19
categorias como “poder”, “opressão”, “exploração”, “trabalho” e “condição social”
para abordar e interpretar a dinâmica histórica da realidade social, as teorias
materialistas-históricas contribuem para uma análise dos antagonismos mais
profundos e substantivos entre as classes sociais. Entretanto, promovem tímidas
incursões sobre os aspectos psicológicos das relações entre homens e mulheres,
como se tudo se resumisse aos determinismos econômicos. Para Scott, nesse
tipo de análise o gênero não tem tido o seu próprio estatuto analítico, sendo
tratado “... como subproduto de estruturas econômicas mutantes” (s/d, p. 7).
Sob a referência teórica psicanalítica, o que se busca decifrar é o
conjunto das relações sociais no qual se desenvolvem as pessoas e suas
implicações psíquicas. A análise das estruturas de poder e afeto nas quais se dão
estas relações é contextualizada no marco em que se compõem os mitos, os ritos
e as regras socioculturais que as conformam. Duas escolas psicanalíticas
desenvolveram contribuições para o debate sobre o gênero: a anglo-americana,
que trabalha com a perspectiva das relações objetais
8
e cujas principais
expoentes foram Nancy Chodorow e Carol Gilligan, e a psicanálise lacaniana, que
é fruto das leituras estruturalistas e pós-estruturalistas da obra de Freud.
Na perspectiva das relações objetais, particularmente da obra da
psicanalista Nancy Chodorow
9
denominada “The reproduction of mothering” e
publicada em 1978, a reprodução do sistema patriarcal estaria relacionada à
8
Embora compartilhe com outras vertentes psicanalíticas da ênfase na importância
básica da sexualidade, concordando que a sexualidade se organiza ao longo dos
primeiros anos de vida, a teoria das relações objetais distingue-se tanto do determinismo
instintual de Freud e Melanie Klein quanto do determinismo ambiental dos psicanalistas
da escola cultural e propõe uma concepção diferente sobre o papel dos impulsos na
formação e expressão da sexualidade.
9
A apresentação sintética da proposição de Chodorow, bem como das críticas que foram
enunciadas à sua teoria, foram aqui formuladas com base em diversas fontes (Scott,
1986; Segato, 1998; Petersen, 1999; Unbehaum, 2000;).
20
exclusividade da mulher no cuidado dos filhos. Para a autora, a estrutura das
relações de gênero pode ser explicada a partir da dinâmica psíquica dos
indivíduos. Em sua análise, a reprodução contemporânea do cuidado materno
seria resultante de processos psicológicos estruturalmente induzidos: enquanto
no homem o processo de identificação secundária, que dá origem à identidade de
gênero, se faria por meio de uma ruptura abrupta e cruel da identificação primária
com a mãe, no caso da mulher não há distinção clara entre esses dois processos,
pois ambos têm um mesmo referente (a mãe). A filha seria percebida como uma
extensão da mãe, o que a impediria de emergir como um ser plenamente
separado, herdando, assim, a desvalorização da mãe (como mulher) e do
trabalho materno. Há que se reconhecer a contribuição vital de Chodorow para os
estudos feministas, no sentido de que sua proposição permite o resgate da
identidade da mulher nestes estudos e uma percepção de que o movimento para
a “androginia” ou “igualdade” seria tão somente uma capitulação à norma
masculina de negar a relevância do sexo e do gênero. No entanto, ela permanece
atrelada à teoria dos papéis sociais com seus argumentos funcionalistas, uma vez
que para a psicanalista as diferenças sexuais são constitutivas das diferenças
sociais nas relações de gênero.
Carol Gilligan
10
realizou exaustivas revisões da bibliografia sobre o
desenvolvimento psicológico do ser humano
11
e constatou que a voz das
mulheres esteve subordinada ao auto-sacrifício e não era ouvida e respeitada.
10
A obra da autora a que se refere esta análise é “In a different voice: psychological theory
and women’s development”, publicada em 1982. As referências serão feitas à tradução
portuguesa publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1997 sob o título de
“Teoria psicológica e desenvolvimento da mulher”. A análise aqui desenvolvida tem por
base os trabalhos de Hime (2004) e Lima (2004).
11
Dentre as principais teorias pesquisadas pela autora se encontra a de Freud, Erik
Erikson, Lawrence Kohlberg e Daniel Levinson.
21
Propôs-se, então, a dar visibilidade à voz feminina visando integrá-la à Psicologia,
uma vez que se apercebeu que a mulher nas sociedades ocidentais toma o feitio
de desvio da norma ou patologia quando é citada nesta literatura. Para a autora, o
que está subjacente nestes estudos é a suposição de que ao se referirem ao
desenvolvimento masculino estarão compreendendo a psicologia do
desenvolvimento humano. Apoiando seus argumentos na formulação de Nancy
Chodorow
12
, considerada por Gilligan positiva, direta e original, e pesquisando os
processos de separação e ligação em meninos e meninas, chega à conclusão de
que as identidades de gênero são constituídas diferencialmente. Segundo Gilligan
(1997), a dificuldade aparente das mulheres de lidarem com a diferenciação,
autonomia e independência é uma distorção das teorias que têm dificuldade para
dar conta do desenvolvimento feminino:
“... para rapazes e homens, separação e individualização estão
profundamente ligadas à identificação sexual, uma vez que a separação da mãe
é essencial para o desenvolvimento da masculinidade. Para raparigas e
mulheres, situações de feminilidade ou identidade feminina não dependem da
realização da separação da mãe ou do progresso da individualização”. (p. 20)
Portanto, enquanto no desenvolvimento masculino a separação e a
individuação são consideradas fatores básicos, os componentes primários do
desenvolvimento feminino são a vinculação, o apego e o cuidado decorrentes do
processo de identificação com a figura materna. Depreende-se, daí, que a
intimidade ameaça a identidade de gênero masculina enquanto a separação
ameaça a identidade de gênero feminina (Gilligan, 1997, p. 20).
As teorias das relações objetais foram extremamente criticada por Scott
(1997). Para a teórica, nenhuma delas se mostra completamente operativa para
12
Embora o trabalho de Gilligan enfoque menos a construção do sujeito do que o
desenvolvimento moral e o comportamento.
22
os historiadores, o que é resultado da sua confiança em estruturas limitadas de
interação que produziriam a identidade de gênero e gerariam mudanças. Segundo
Scott, pelo fato da interpretação limitada dada por estas teorias à família e à
experiência doméstica, sem que estejam relacionadas com outros sistemas
sociais de economia, política ou poder, se estreita o campo para a análise
histórica. Além disso, para ela não há como explicar as contínuas associações da
masculinidade com o poder, com o valor superior concedido aos homens sobre as
mulheres, com a forma pela qual a criança parece aprender estas associações e
avaliações, inclusive quando não vive em família nuclear ou naquela em que as
responsabilidades dos pais são divididas com equanimidade entre homem e
mulher. Há que se perguntar, no entanto, conforme o faz com exatidão Petersen
(1999), “... existem famílias em que as responsabilidades dos pais, de fato,
dividem-se com eqüidade entre marido e mulher?” (p. 35)
Se é verdade que a psicanálise freudiana contribuiu para separação da
sexualidade de sua base exclusivamente biológica, ela não escapou, entretanto,
da crítica feminista quanto ao caráter sexista da formulação que Freud
desenvolveu sobre o Complexo de Édipo feminino e sua conseqüente proposição
do conceito de “inveja do pênis”. Baseada na obra de Jacques Lacan, a
psicanalista inglesa Juliet Mitchell tenta reconciliar o feminismo e a psicanálise em
sua obra “Psicanálise e Feminismo”, publicada originalmente em 1974.
13
A autora
procura recuperar a interpretação lacaniana que estabelece diferença entre o
13
“Psicanálise da sexualidade feminina”, Rio de Janeiro: Campus, 1988. Título original:
Psychoanalysis and Feminism. NewYork: Pantheon Books. Evidentemente trata-se aqui
de um exemplo numa vasta literatura existente sobre gênero na perspectiva lacaniana. O
nosso propósito é tão somente mostrar que as psicanálises tiveram importantes
contribuições para a formulação do campo de estudos sobre gênero. A apresentação e
discussão foram desenvolvidas a partir dos trabalhos de Petersen (1999); Santos &
Nóbrega (2004); Moraes (s/d); Castro (s/d).
23
pênis e o falo, o primeiro entendido como o órgão biológico e o segundo como
uma representação simbólica, ou seja, cultural. Defende que se pênis e falo são
distintos, a luta feminina contra o falocentrismo não seria uma luta contra a
masculinidade ou voltada a acabar com os gêneros, uma vez que não seria
prerrogativa masculina a posse do falo. Também fundamentada numa tradição
marxista, Mitchell considera que as análises das feministas materialistas-
históricas não foram plenamente ambiciosas ao situarem a opressão da mulher
no âmbito das relações de produção. Para ela, o que define o lugar das mulheres
na sociedade de classes é a dialética “produção-reprodução social”: “... a mulher
é explorada no trabalho e confinada ao lar. Sua submissão e seu lugar subalterno
na vida econômica seriam compensados pelo seu poder na família” (Moraes, s/d,
p. 90). A instituição familiar apóia-se nas estruturas de reprodução, de
sexualidade e da socialização das crianças e todas elas têm funcionamento
interdependente e se relacionam com a estrutura produtiva. Os papéis masculinos
com seus estatutos de dominação assumem o controle do conhecimento e
limitam a autonomia e a participação feminina (Santos & Nóbrega, 2004).
A maior contribuição da obra de Mitchell para os estudos de gênero é
que, similarmente à Gayle Rubin, em sua obra gênero é entendido como uma
estrutura internamente complexa, na qual há uma superposição de lógicas
diferentes. Segundo Scott (1997), a formulação lacaniana problematiza as
categorias “homem” e “mulher”, sugerindo que masculino e feminino não são
características inerentes, mas construções subjetivas. Implica, ainda, que o
sujeito se encontra permanentemente em construção, oferecendo um meio
sistemático de interpretar o desejo consciente e inconsciente, referindo-se à
linguagem como um lugar adequado de análise. Por outro lado, segundo a
24
historiadora, o que a incomoda é a fixação exclusiva desta teoria sobre as
questões relativas ao sujeito individual e a sua tendência a reificar o antagonismo
subjetivamente produzido entre homens e mulheres como a dimensão principal do
gênero. Além do mais, afirma Scott, mesmo que fique em aberto ao modo como o
sujeito é construído, a teoria tem uma tendência a universalizar as categorias e a
relação entre homem e mulher:
“... mesmo se esta teoria leva em consideração as relações sociais
articulando a castração com a proibição e a lei, ela não permite a introdução de
uma noção de especificidade e de variabilidade histórica. O falo é o único
significante, o processo de construção do sujeito de gênero é, em última
instância, previsível, já que é sempre o mesmo.” (op. cit, p. 9-10)
O que Scott ressalta no seu artigo é que as análises do gênero no seu
uso descritivo incidem quase sempre sobre tópicos nos quais as relações entre
homens e mulheres são mais óbvias: as mulheres, as crianças, as famílias, etc.
Não se faz referência ou se discute temas como guerra, diplomacia e a alta
política, como se eles não tivessem nada a ver com essas relações. O gênero,
dessa forma, permanece irrelevante para reflexões que se pretenda desenvolver
sobre o poder e a política. Para a autora, o resultado é a adesão a uma visão
funcionalista que se baseia na biologia e na perpetuação da crença dos universos
separados: a política ou a sexualidade, a nação ou a família, as mulheres ou os
homens (Soihet, 1997).
Após a discussão crítica das três principais posições teóricas sobre
gênero, Scott (1997) apresenta a sua proposta, que consta de duas partes: por
um lado, o gênero é uma parte constitutiva de relações sociais baseada nas
diferenças distinguidas entre os sexos, por outro, é um primeiro modo de
significação das relações de poder.
25
No que se refere à primeira parte, a historiadora se propõe a esclarecer e
explicitar a necessidade de refletir sobre o efeito do gênero nas relações sociais e
institucionais, algo que para ela ainda não tinha sido realizado com a
sistematização necessária. É na segunda parte do artigo que, de fato, é
apresentada a sua teorização do gênero, como uma primeira forma de significar
as relações de poder. Embora admita que o gênero não seja a única, Scott
propõe que ele constituiu um meio contumaz e recorrente de tornar convincente o
significado do poder no ocidente. Em síntese, as mudanças na organização das
relações sociais correspondem sempre às mudanças nas relações de poder.
Se o gênero é, acima de tudo, uma relação de poder, isto é legitimado
pela seguinte constatação empírica: estar numa situação de inferioridade é se
calar quando alguém explica que as coisas ocorrem de forma diferente daquela
que é sentida pelo indivíduo, é interiorizar o que se vive quando não existem
palavras para dizê-lo, uma vez que o código vigente não fornece a possibilidade
de fazê-lo.
O fato é que a reflexão sobre o gênero foi elaborada num momento
histórico no qual as humanidades e as ciências sociais tentavam esclarecer o que
podia ser dito sobre o mundo, isto é, reajustar o sentido de seus enunciados e
repensar seus princípios de explicação.
1.3. A emergência do gênero na Psicologia
No âmbito da Psicologia, aos menos nas suas vertentes teóricas mais
influentes, o tema da distinção entre mulheres e homens sempre foi objeto de
interesse. A variável “sexo” é utilizada como justificativa para as significativas
diferenças entre os indivíduos, provavelmente porque a crença na “natureza” do
26
macho e da fêmea da espécie humana ajudava a manter a tradição positivista
desta ciência por meio da defesa de uma “realidade” do homem e da mulher. Daí
decorre todos os demais determinantes da diferenças entre os sexos e se origina
a crença de que há comportamentos inerentes a um e ao outro, isto é, condutas
tipicamente masculinas e femininas. Como resultado, homens e mulheres passam
a ocupar cenários absolutamente distintos em posições irreconciliáveis.
Ao longo de décadas, teoria e pesquisa psicológica se ocuparam das
descrições destas condutas no intuito de se chegar a uma compreensão da
personalidade individual. Tais descrições partiam necessariamente das diferenças
de sexo, através de uma linearidade de raciocínio lógico que, se pautando em
caracteres genéticos incontestáveis, defendiam a tese sobre diferenças
psicológicas inatas. No entanto, a discussão dicotômica do assunto simplificava a
sua complexidade (Macedo, 1998).
Nas décadas de 20 e 30, sob forte influência da Psicanálise freudiana, as
pesquisas tiveram como foco de maior interesse os aspectos emocionais com a
preocupação de tratar as neuroses, tendo em vista as explicações dinâmicas e
profundas sobre as diferentes necessidades afetivas das mulheres e dos homens,
determinadas desde o nascimento pelas relações objetais e, sobretudo, pelo
“Complexo de Édipo”.
Durante a década de 50, os estudos começam a centrar-se na tipificação
sexual, onde as diferenças de condutas femininas e masculinas eram formuladas
a partir de aspectos visíveis da personalidade de mulheres e homens, sendo
importante tentar compreender como as crianças adquiriam tais comportamentos,
o que fez recrudescer o debate sobre hereditariedade-meio, inato-adquirido, na
27
Psicologia. Desse modo, pesquisas partiam do entendimento de que a aquisição
de características masculinas ou femininas também ocorria através da educação,
tanto em função de modelos disponíveis à criança, principalmente a mãe e o pai
(ou seus substitutos), como das expectativas sociais representadas pela escola.
Outro grupo proeminente na teorização psicológica da temática das
diferenças sexuais foi o que propôs a tese da androginia, formulando a idéia de
masculinidade e feminilidade como contrapartes, onde o bem-estar psicológico
dos indivíduos estaria ligado à possibilidade de desenvolvimento das
características femininas pelos homens e masculinas pelas mulheres. Sob este
ponto de vista, homens e mulheres são concebidos como ocupando posição
equivalente e simétrica, o que acaba por obscurecer as diferenças de poder e
valor social que eles detêm. Além disso, o que se observa é que por trás de um
discurso aparentemente inovador, permaneceu a premissa sobre a existência de
características naturalmente masculinas e femininas.
Com o desenvolvimento da teorização psicológica nas três últimas
décadas, esta discussão foi sofrendo transformações, influenciada especialmente
pelas mudanças de ordem sócio-econômica e política ocorridas nas grandes
nações ocidentais.
Somente com a “Segunda Onda” do movimento feminista, nos anos 70, é
que toma corpo uma discussão crítica do discurso das diferenças sexuais. As
críticas feministas buscavam novas formas de entendimento das diferenças entre
os sexos, sobretudo pela denúncia dos preconceitos existentes quanto aos
atributos típicos de homens e mulheres, reforçados e utilizados para fins sociais,
28
como, por exemplo, a exploração das mulheres ou a produção da condição de
inferioridade destas em relação aos homens.
As feministas chamaram a atenção para o uso que se estava fazendo da
teorização psicológica como legitimação do status quo, especialmente da posição
inferior das mulheres.
A partir desta crítica, já no início da década de 70, desenvolve-se o
conceito de gênero, isto é, uma definição de sexo social, não-biológica, cujo
objetivo era permitir o entendimento de uma sociedade sexuada, um mundo
organizado a partir das diferenças sexuais.
Entretanto, cabe discutir as conseqüências que esta forma de
entendimento do gênero pela psicologia ? como um conjunto de características,
condutas, formas de agir e crenças que se organiza a partir das diferenças
sexuais ? tem para o entendimento mais amplo da feminilidade e da
masculinidade.
Conforme observa Kimmel (2004), como distinguir as diferenças reais e
aquelas imaginadas ou produzidas como resultado das pesquisas psicológicas
que tratam do assunto? Os psicólogos do desenvolvimento têm salientado
algumas diferenças significativas entre homens e mulheres que emergem
conforme eles crescem e apontam que há maior variação dentro do grupo de
homens e dentro do grupo de mulheres do que entre homens e mulheres.
Quando as psicólogas Eleanor Maccoby e Carol Jacklin fizeram o
levantamento e examinaram mais de mil e seiscentos estudos empíricos que
29
tratavam destas diferenças
14
, elas identificaram somente quatro áreas com
diferenças sexuais consistentes e significativas: (1) garotas têm relativamente
maior habilidade verbal; (2) garotos têm melhor habilidade visual e espacial; (3)
garotos se saem melhor em testes de matemática; e (4) garotos são
consistentemente mais agressivos do que garotas. O que surpreendeu as
pesquisadoras foi o grau de semelhança na criação de meninos e meninas que
estes estudos destacavam:
“... os dois sexos pareciam ser tratados com a mesma afeição, pelo
menos nos cinco primeiros anos de vida (o período no qual havia maior
informação avaliada). Ambos eram igualmente encorajados a serem autônomos
e igualmente desencorajados quanto a comportamentos dependentes.
Surpreendentemente, não havia ainda evidência quanto à reação distinta dos
pais ao comportamento agressivo nos dois sexos. Havia diferenças, contudo. Os
garotos manuseavam e brincavam de modo mais brusco. Eles também recebiam
mais castigo físico. Em muitos estudos foi constatado que os meninos recebiam
tanto elogios quanto críticas dos seus cuidadores _ a pressão da socialização,
em outras palavras, era um pouco mais intensa para os garotos_ mas a
evidência quanto a isso foi inconsistente. A área de grande diferenciação diz
respeito ao comportamento sexual especialmente tipificado. Pais e mães
demonstravam maior preocupação se o filho se comportava afeminadamente do
que se a filha agia como moleque. Isto é verdadeiro principalmente com relação
ao pai, aquele que assume o comando para desencorajar ativamente qualquer
interesse que o filho possa demonstrar quanto aos brinquedos, jogos ou roupas
femininos”. (apud Kimmel, 2004, p. 85)
Diante disso, Kimmel conclui que a premissa que sustenta e dá
ênfase às diferenças entre os sexos fundamenta-se em fatores sociais,
econômicos e culturais, sendo que, de modo geral, as pessoas compartilham
desta crença e ajudam a mantê-la e perpetuá-la, especialmente quando se
trata de discutir as relações interpessoais entre homens e mulheres.
14
Publicado na forma de livro com o título The Psychology of Sex Differences, em 1974
(obs.: as pesquisadoras trabalharam com as pesquisas publicadas entre os anos de 1966
e 1973).
30
Sustentar as diferenças é um meio de manter a dominação e não de
legitimá-la.
1.4. O gênero para o futuro: os estudos críticos sobre os homens
Quando se substitui, como resultado de uma construção, o mundo
objetivo do sexo pelo mundo subjetivo do gênero, nota-se a existência de uma
epistemologia implícita nesta concepção que difere significativamente daquela
que privilegia uma visão objetiva da realidade, independente do observador.
Esta concepção revolucionária também se coaduna com uma mudança
epistemológica que afirma não ser possível o conhecimento da realidade a não
ser através do olhar do observador, razão pela qual é impossível admitir uma
separação entre o que se observa e quem está observando. Muito a propósito,
Von Foerster (1994) a denomina de “sistema observante”. É uma postura que
defende a construção do mundo através da experiência, pela atribuição de
significado a essa mesma experiência.
Gênero é utilizado em contraste aos termos “sexo” e “diferença sexual”,
com o propósito explícito de criação de um espaço no qual as diferenças
socialmente mediadas entre homens e mulheres possam ser exploradas,
independentemente das diferenças biológicas. (Unger, 1979)
A partir destas considerações desenvolve-se a construção de gênero
como uma significante categoria da realidade social. De acordo com a
epistemologia que subjaz a esta construção, o contexto adquire importância
capital, pois, conforme Bateson (1986), sem contexto não há significado. Os
31
significados emergem de nossas interações com o mundo, com os outros, nas
situações as mais diversas, e nelas vão sendo construídos.
No presente trabalho, nos alinhamos a autores pioneiros no estudo da
masculinidade [Connell (1987; 1993; 1995; 2000; 2002; 2005) e Kimell (1991;
2004)] e, com eles, optamos por compreendê-la como uma construção relativa a
uma ordem de gênero que delimita hierarquias e privilégios. Portanto, quando nos
utilizamos da categoria gênero para falar de masculinidade, das relações entre
homens e destes com as mulheres, como será feito no próximo capítulo, estamos
nos referindo à ampla gama de relacionamentos que implica questões de ordem
social, econômica, política e do reflexo destas questões no âmbito privado,
subjetivo, negociada ao longo do ciclo vital individual e ao longo de gerações.
32
Capítulo 2 Masculinidade e Gênero
Ao longo da segunda metade do Século XX, os estudos de gênero se
voltaram para o conhecimento da condição feminina e da situação das mulheres.
Parece que somente a partir dos anos 80 começou a haver esforços para que
nestes estudos se incluíssem a busca de entendimento sobre a condição
masculina e a situação de vida dos homens. Porém, segundo Cazés, ao se
examinar os estudos fundamentais feitos pelas feministas nas cinco últimas
décadas, constata-se que estas investigações, reflexões e elaborações teóricas
sobre as problemáticas de vida das mulheres se referem aos homens e, mais do
que tudo, às “relações hierarquizadas entre os homens e as mulheres” (Cazés,
1998, p.106). Portanto, a revelação da dinâmica das relações de gênero por
teóricas feministas também tornou o masculino visível
15
e possibilitou o
questionamento da posição dos homens.
A Sociologia foi a disciplina na qual se iniciaram os estudos sobre a
masculinidade segundo a teoria dos papéis sociais, que depois teve enorme
expressividade também no âmbito das pesquisas em Psicologia, especialmente
com a formulação do conceito de papel sexual. Da mesma forma, foi a disciplina
na qual se iniciaram os primeiros estudos e publicações na perspectiva do
gênero, através da análise de temas como a construção cotidiana da
masculinidade, a importância da estrutura econômica e das instituições, o
significado das diferenças entre as masculinidades e a dinâmica contraditória do
caráter do gênero. É principalmente a partir desta área do conhecimento que se
15
Trata-se aqui da visibilidade do privilégio masculino, conforme será discutido
posteriormente.
33
começa a delinear um campo de estudos sobre homens como contraparte do
campo de estudos sobre as mulheres.
Esta nova abordagem da masculinidade já trazia em seu bojo as críticas
que algumas sociólogas feministas faziam à teoria dos papéis, especialmente a
de que a noção de papel sexual se mostrava incoerente, bem como à própria
estrutura da teoria, na qual as questões de poder e de desigualdade material
permaneciam dissimuladas.
É importante situar, ainda, que os estudos emergentes sobre a
masculinidade na perspectiva de gênero não compartilham do entendimento de
que todos os homens são poderosos e todas as mulheres são oprimidas, o que,
para os teóricos destas novas abordagens, seria reproduzir o esquema binário
que vinha organizando o mundo e, consequentemente, o campo do
conhecimento.
Dada a extrema diversidade do campo dos estudos de gênero, da qual foi
fornecida uma pequena amostra no capítulo anterior, é possível destacar um
consenso entre eles: a noção de que as relações de gênero são construídas
socialmente. As propostas que serão apresentadas e discutidas quanto ao fazer e
refazer da masculinidade oferecem elementos para entender a construção e
reconstrução dessas relações de forma concreta e histórica.
2.1. Da masculinidade às masculinidades
É na década de 70 ? com os estudos feministas prosseguindo muito
rapidamente e com o movimento e os estudos gay afirmando que os homens
heterossexuais eram candidatos à liberação ? que a predominância das
34
ideologias binárias e da dominação masculina é contestada. Nas universidades e
outros espaços ligados à classe média e intelectual, grupos de homens se
formaram para refletirem sobre a sua própria condição no patriarcado, a partir das
críticas feministas que ganhavam corpo. Como resultado, houve concordância
com relação a estas críticas, e estes homens reconheceram os hábitos
masculinos de dominação e desvalorização como sendo próprios deles. Porém,
se havia certo compartilhamento de sentimentos de culpa entre eles, também
havia muita divergência e discussões acaloradas, algo ocorrido igualmente nos
meios feministas (Giffin, 2005).
Michael Kaufman organizou a primeira coletânea de artigos escritos por
participantes deste processo de reflexão em 1987 sob o título Beyond Patriarchy:
essays by men on pleasure, power, and change. Nela, tanto homens
heterossexuais quanto homossexuais apontam o poder como a questão central,
embora também enfatizem a constante remodelação dos padrões de dominação,
a interiorização de estruturas sociais de poder e opressão, bem como a
necessidade de compreender a relação dialética entre opressão no nível
individual e nas grandes estruturas baseadas na hierarquia e nos privilégios.
Em seu artigo nesta coletânea, Kaufman (1987) não nega a dominação
dos homens, mas defende que eles estão marcados e brutalizados pelo mesmo
sistema que oferece seus poderes e privilégios: embora desfrutem destas
prerrogativas, este poder social dos homens também é fonte de sua experiência
individual de dor e alienação. A isto o autor chama de “experiência contraditória
do poder masculino”, que, segundo ele, permite entender melhor o processo de
aquisição do gênero para os homens, que requer a supressão de muitas
35
necessidades, sentimentos e formas de expressão. Como resultado, há uma
tensão entre “ser macho” e “ser masculino”, capaz de manter uma insegurança
constante nos homens, impulsionando tanto a autodesvalorização quanto reações
violentas contra mulheres e outros homens
16
.
Em um artigo de revisão de literatura no mesmo livro, Carrigan, Connell &
Lee (1987) apontam que desde os anos 50 os estudos norte-americanos
relacionavam a questão do “pai ausente” com a delinqüência e o fracasso escolar
dos filhos, especialmente em famílias pobres. Também são apontadas pesquisas
sobre os novos conflitos da masculinidade relacionados a novas demandas nas
relações sociais e afetivas, especialmente em homens de classe média. A partir
da década de 70, já é possível encontrar na bibliografia pesquisada referência às
contradições entre a identidade masculina hegemônica e as condições reais de
vida dos homens, o que traz à tona a questão das restrições e desvantagens de
ser homem, a despeito do poder e dos privilégios associados à masculinidade.
A partir deste primeiro enfoque conceitual, os autores defendem que as
relações homem-mulher não são combates entre blocos homogêneos, mas que a
construção da hegemonia faz parte de uma ampla luta social: “... [a hegemonia] é
uma questão de como grupos específicos de homens habitam posições de poder
e riqueza e como eles legitimam e reproduzem as relações sociais que geram sua
dominação” (Ibid., p. 179). Introduzem, portanto, um conceito-chave,
“masculinidade hegemônica”, para dar conta de compreender o patriarcado não
somente como um poder dos homens sobre as mulheres, mas de hierarquias de
16
A tensão entre “ser macho” e “ser masculino” também é brilhantemente discutida pelo
antropólogo Roberto DaMatta (1997), conforme será apresentado posteriormente.
36
poder entre distintos grupos de homens e também entre diferentes
masculinidades
17
.
Em 1991, é publicado outro livro que causa impacto no meio acadêmico:
“Changing Men - New directions in research on men and masculinity”, organizado
pelo sociólogo norte-americano Michael Kimmel. Logo na sua introdução é
apontada a necessidade de um redimensionamento dos estudos sobre a
masculinidade, como conseqüência da mudança pela qual passava a definição do
conceito naquele momento
18
. Mostrava que nas duas décadas anteriores a
pesquisa sobre gênero havia crescido rapidamente, sendo que os estudos sobre
homens tentavam responder aos contextos de mudança social e intelectual
resultantes do corpo de conhecimento então produzido, bem como tratar a
masculinidade não como referência normativa a partir da qual padrões
comportamentais eram avaliados, mas como uma problemática da construção de
gênero.
Reiterando a proposta apresentada por Carrigan, Connell & Lee (1987) de
se investigar as masculinidades, Kimmel ainda chama a atenção para o fato de
que embora elas variem de acordo com diferenciações internas de idade, classe,
etnia ou orientação sexual, todas implicam não ser como as mulheres
19
. Esta
“regra” conduz a condutas exageradamente masculinas e estabelece uma
incerteza crônica sobre a identidade de gênero que precisa ser solucionada
perante outros homens. Como a masculinidade depende da aprovação deles, sua
emoção mais destacada é o medo, o que situa a homofobia como princípio
17
O grifo é nosso.
18
Contexto das críticas à teoria dos papéis sexuais.
19
O grifo é nosso.
37
organizador da virilidade. Nesta dinâmica, o medo leva à vergonha, ao silêncio e
à violenta afirmação da masculinidade (Kimmel, 1997 apud Giffin, 2005).
Seidler (1991) é outro autor que analisa a construção do gênero
masculino a partir da sua identificação com a razão. Segundo ele, a
masculinidade está associada à expressão de independência e auto-suficiência
pelos homens para competirem na esfera pública, o que favorece a negação ou
desvalorização das suas necessidades afetivas. O preço pago para assumirem a
masculinidade é a fragmentação de um ser dividido contra si, uma vez que as
emoções e sentimentos são fontes importantes da dignidade e integridade
humana. O autor afirma ainda que as conseqüências negativas desta ênfase
social no racional é a desvalorização das relações interpessoais, que refletem não
só os limites afetivos do ser fragmentado internamente, mas a organização
concreta da vida em geral a partir das necessidades de produção.
Inicia-se, assim, um novo campo de conhecimentos cujo nome ainda é
alvo de controvérsias, e que será referido no presente trabalho como “estudos
críticos sobre homens” (“Critical Studies on Men”), conforme proposição de Jeff
Hearn (1998). Sob tal denominação, congregam-se os estudos que compartilham
das seguintes características: são estudos críticos; sobre homens; explicitamente
“generificados”
20
; feitos por homens e mulheres, separada ou colaborativamente;
interdisciplinares; e que problematizam não somente o conteúdo substantivo de
estudar homens, mas também o processo e a epistemologia de tal estudo (Hearn,
1998).
20
Termo emprestado de Guacira Lopes Louro em seu livro “Um corpo estranho ensaios
sobre sexualidade e teoria queer”. Belo Horizonte: Autêntica. 2004
A palavra é utilizada para traduzir o termo “engendered”.
38
Uma alternativa para nomear esta área de conhecimentos seria utilizar a
expressão mais conhecida nos meios acadêmicos anglo-saxões: “Men´s Studies”.
No entanto, conforme argumentação tenaz de Hearn (Ibid.), este termo é
impreciso e politicamente perigoso, pois alimenta a idéia de que os “men´s
studies” são equivalentes ou paralelos aos “women´s studies”, o que, segundo
ele, é falso. Além disso, trata-se de um termo ambíguo: são estudos sobre
homens ou de homens? Não necessariamente os estudos que são classificados
sob este termo são críticos, ao contrário, grande parte deles mascara a misoginia
e o heterossexismo
21
. A preocupação de Jeff Hearn se justifica porque visa
estabelecer uma distinção clara entre os teóricos e pesquisadores pró-feministas,
grupo ocupado em problematizar ao mesmo tempo a opressão das mulheres e a
alienação dos homens dominantes, e aqueles que se enquadram na denominada
“nebulosa anti-sexista”, que compreende diversos grupos que buscam reiterar a
“masculinidade tradicional em crise”.
De modo geral, são estudos que partem de um modelo de investigação
que explora o fazer e o refazer das convenções na prática social, isto é, nos
relacionamentos interpessoais cotidianos. No que diz respeito à análise sobre as
construções das diferentes formas de masculinidade, fatores como etnia, classe
social e momentos do ciclo vital passaram a ser levados em consideração.
O Movimento Gay também teve contribuição importante para estes
trabalhos, já que, na luta pelos seus direitos cívicos, nas décadas de 60 / 70, e na
crítica ao modelo familiar, na década de 80, chamou a atenção para o peso da
21
A discriminação e a opressão baseadas em uma distinção feita a propósito da
orientação sexual. É a promoção incessante da superioridade da heterossexualidade e da
subordinação simulada da homossexualidade, da bissexualidade e das sexualidades
transversais (Welzer-Lang, 2001).
39
heterossexualidade na hegemonia masculina (Plummer, 1981; Weeks, 1985,
1989). Segundo Connell (1987), os ativistas gays “geralmente vêem a família
como a fábrica da heterossexualidade, ao encontro da necessidade de provisão
de mão-de-obra pelo capital e de subordinação pelo Estado” (p.36). Além disso, o
ativismo gay trouxe à tona o fato de que o desejo das pessoas pode se organizar
em contraste com as suas determinações biológicas.
Portanto, os estudos críticos sobre homens não propõem modelos de
causa e efeito, ao contrário, examinam os vários projetos da masculinidade e as
condições na quais eles são produzidos sob uma perspectiva da dialética dos
relacionamentos interpessoais. Assim, longe das categorias binárias,
masculinidade e feminilidade se revelam áreas ambivalentes, dinâmicas,
imprevisíveis e em constante estado de mudança (Whitehead, 2002).
Sem dúvida, a maior novidade introduzida nestes trabalhos é o abandono
do homem como a norma humana, isto é, a utilização do termo ‘homem’ para
designar todo e qualquer ser humano. Sob esta nova perspectiva, as variações
entre os homens são vistas como ponto central para a compreensão do cotidiano
masculino. Segundo Fonseca (1999), “... da relação entre a definição normativa
da masculinidade (branco, meia idade, classe média e heterossexual) e as outras
formas de identidade masculina, resulta que a primeira deve ser vista como a
dominante e não como a correta” (p. 45).
O principal objetivo dos estudos críticos sobre homens na atualidade é
entender como as masculinidades são construídas, produzidas e reproduzidas,
assumindo, portanto que são variadas e mutáveis ao longo do tempo (história) e
40
espaço (cultura), dentro de uma mesma sociedade, ao longo do ciclo vital e
biografia individual.
A abordagem teórica mais comum nestes estudos é o construcionismo.
Em sua maioria, os autores discutem a construção social da masculinidade e
mantêm vínculos explícitos com o feminismo. A proposição construcionista surge
na discussão da masculinidade como reação ao essencialismo baseado na
crença de que a sexualidade e / ou o gênero são biologicamente determinados
e, por outro lado, naqueles baseados na teoria dos papéis e na sua concepção
dicotômica da construção dos gêneros.
2.2. As perspectivas essencialistas e funcionalistas e as tentativas de
explicação da masculinidade.
De modo geral, as proposições essencialistas sustentam que os
comportamentos humanos são passíveis de explicação em termos de herança
genética e de funcionamento dos neurônios. O enfoque essencialista teve impacto
nas pesquisas e estudos sobre homens e masculinidades especialmente no início
da década de 70, sendo que os modelos de análise derivados deste enfoque
salientam os modos pelos quais as diferenças biológicas inatas entre homens e
mulheres determinam comportamentos sociais. A argumentação biológica foi
contestada por vários pesquisadores dos mais diferentes campos do
conhecimento. A causalidade implicada entre dois campos observáveis de
diferenças (diferenças biológicas e comportamentos diferentes) é mal conduzida,
uma vez que não há razão lógica para supor que uma produza a outra, ou que a
direção da causalidade ocorra somente do biológico para o social (Carrigan,
41
Connell & Lee, 1987; Connel, 1987, 1993, 1995; Kimmel, 1991; Whitehead, 2002;
Kimmel & Messner, 2004).
A teoria dos papéis surge nos anos 50 como proposta do sociólogo
Talcott Parsons, cujo “funcionalismo” se tornou uma ferramenta-chave na
compreensão de como a rede social sustenta algum senso de ordem, equilíbrio e
consenso, apesar do eterno conflito potencial sobre os recursos materiais.
Parsons colocou grande ênfase no processo de socialização, particularmente em
respeito à família como uma produtora de personalidades adultas estáveis. Os
papéis masculinos e femininos são aspectos centrais da sua teoria,
compreendidos por ele como naturalmente diferentes e complementares. O
argumento de Parsons é o de que a desigualdade de poder entre homens e
mulheres é um fenômeno natural conseqüente da necessária estratificação social.
Embora o funcionalismo não tenha inventado a dicotomia sexual, tentou justificar
e explicar as desigualdades conseqüentes a ela como fenômeno natural e,
portanto, necessário ao aperfeiçoamento do sistema social (Connell, 1995;
Whitehead, 2002).
A literatura aponta uma variação da teoria dos papéis que tenta responder
às críticas da justificação da opressão feminina na teoria parsoniana, propondo
que o processo de socialização atua como um transmissor, reproduzindo modelos
ideais de comportamento e divulgando estereótipos dominantes. Esta proposição
é feita através da aliança com a noção das diferenças biológicas inatas. Emerge
daí uma decorrência da teoria dos papéis: a teoria dos papéis sexuais, que busca
explicar as desigualdades de gênero em termos da elaboração sócio-cultural
sobre as diferenças biológicas entre os sexos. Uma vasta produção de pesquisas
42
tentou dar conta de entender e explicar como estas desigualdades eram
produzidas a partir de um processo de socialização diferencial para meninos e
meninas, propondo meios de favorecer uma educação familiar e social sob
parâmetros mais igualitários para ambos os sexos.
No que diz respeito às críticas mais consistentes à teoria dos papéis
sexuais, se destacam algumas feitas por Carrigan, Connell & Lee (1987), que, por
sua vez, são fruto de considerações tomadas de muitas autoras feministas. São
elas:
a. A própria idéia de um “papel masculino” implica um padrão
reconhecido e aceito, e os teóricos do papel sexual a postulam
quase como uma norma para explicar as diferenças sexuais;
b. A literatura sobre papel sexual não distingue com consistência o que
é esperado das pessoas e aquilo que elas de fato fazem;
c. A estrutura do papel (...), dependendo do uso que se fizer dela, pode
levar a conclusões totalmente opostas sobre a natureza da
masculinidade;
d. Como teoria social, a estrutura do papel sexual é fundamentalmente
estática. Isto não quer dizer que ela não possa reconhecer a
mudança social. Pelo contrário: a mudança tem sido um tema
conduzido nas discussões dos papéis sexuais masculinos. (...) O
problema é que os autores que conduzem estas discussões não
podem compreendê-la como histórica, como influência mútua entre
prática e estrutura;
43
e. A noção da total subordinação das mulheres, institucionalizada na
divisão do trabalho doméstico, mas consistente com uma situação
de poder ocasionalmente invertida nos relacionamentos privados,
não é uma concepção que pode ser formulada na linguagem da
teoria do papel;
f. A literatura do papel sexual evitou sistematicamente os fatos da
resistência dos homens à mudança na divisão do poder, na divisão
sexual do trabalho e na própria masculinidade;
g. O “papel sexual masculino” não existe. É impossível isolar um
“papel” que constrói a masculinidade (ou outro que construa a
feminilidade), porque não há área da vida social que não seja a
arena da diferenciação sexual e das relações de gênero;
h. o papel sexual reduz o gênero a duas categorias homogêneas e
exagera na polarização da percepção das diferenças entre homens
e mulheres. Baseado nesta dicotomia, o papel sexual oculta a
dominação masculina. Como conseqüência, o exercício do poder
nas relações de gênero não é imediatamente evidente nesses
estudos.
Em resumo, o que se defende é que o conceito de papel sexual é
obsoleto, positivista, etnocêntrico e desprovido da perspectiva de poder.
Como contraponto às discussões feitas pelos teóricos do papel sexual, os
estudos críticos sobre homens partem de uma perspectiva relacional de gênero, a
qual entende que a masculinidade e a feminilidade são construídas socialmente,
são históricas, mutáveis e relacionais.
44
Conforme apontado anteriormente, sob este enfoque o que se busca é
romper com a falsa universalidade dos papéis sexuais masculinos e partir para a
compreensão da diversidade de estilos de masculinidade, cada um deles atrelado
às diferentes inserções dos homens nos âmbitos político, econômico, cultural e
interpessoal.
Para os estudiosos que trabalham sob esta perspectiva crítica, é preciso
trazer à tona o privilégio de gênero que está escamoteado nestas teorias. Porque
partem da idéia de neutralidade de gênero, elas reasseguram subliminarmente o
privilégio dos homens e um ideal masculino a ser perseguido (Kimmel, 2004).
Embora se identifique um predomínio de estudos sociológicos, a
tendência da produção acadêmica neste grupo é a incorporação de uma
diversidade de disciplinas como a história, a medicina, a filosofia, a psicologia, as
comunicações, a antropologia, o direito, entre outras.
Dentre os principais autores a discutir a masculinidade sob a perspectiva
relacional do gênero, Robert W. Connell é um dos que mais se destaca e aquele
com o qual houve maior afinidade de nossa parte. Por conta disso, será feita uma
exposição sucinta das suas principais idéias, uma vez que o esquema de análise
deste autor será utilizado no presente trabalho.
2.3. Robert W. Connell e uma nova proposta para o estudo das
masculinidades
Robert Connell é um sociólogo australiano que leciona na Universidade
de Sydney (Austrália) e é autor e co-autor de 18 livros e diversos artigos: “Gender
and power” (1987); “Masculinities” (1995); “The men and the boys” (2000);
45
“Gender” (2002); “Handbook of studies on men and masculinities” (Kimmel, Hearn
& Connell, 2005); e o artigo “Hegemonic masculinity: rethinking the concept”
(2005) são os que mais se destacam.
Ele entende que ao invés de se tentar definir a masculinidade como um
objeto, isto é, como uma espécie de caráter natural, de comportamento médio ou
de norma, é necessário concentrar a atenção nos processos e relacionamentos
através dos quais os homens e as mulheres conduzem suas vidas sob o suporte
do gênero. Para ele, a masculinidade é simultaneamente uma posição nas
relações de gênero, as práticas pelas quais homens e mulheres se colocam nesta
posição e os efeitos destas práticas na experiência corporal, na personalidade e
na cultura (Connell, 1995).
Sendo assim, não existe um padrão fixo de masculinidade em todos os
momentos e lugares. As culturas variam entre si e os padrões de masculinidade
mudam com o tempo. Dentro de uma sociedade específica, ou mesmo de uma
comunidade ou instituição particular, há diferentes padrões de masculinidade,
diferentes modos reconhecíveis de se “tornar homem”. Assim como hoje se
reconhece que existem diversos tipos de família, é possível supor que há
diferentes construções da masculinidade em diferentes contextos de classe
social, diferentes comunidades étnicas e regiões distintas.
No entanto, conforme aponta o sociólogo, as diferentes masculinidades
não se agrupam lado a lado como estilos alternativos de vida que os homens
podem escolher livremente, mas por meio de relações hierárquicas e de exclusão.
Na maioria das comunidades há um padrão específico de masculinidade que é
mais respeitado do que outros, o padrão hegemônico. Ele geralmente está
46
associado às identidades masculinas celebradas nos filmes, programas de
televisão e esportes populares, e é apresentado aos jovens como uma mensagem
de referência. Existem outros padrões de masculinidade, mas que não atraem o
mesmo respeito, ao contrário, costumam ser duramente estigmatizadas.
Nem todos personificam o modelo hegemônico. Na verdade, segundo
Connell, somente uma minoria o faz realmente. Todavia, a hierarquia que se
estabelece em torno deste padrão masculino é uma fonte considerável de
conflitos e violência entre os homens. Por exemplo, desafiar a masculinidade de
um homem é comumente um foco de brigas e ferimentos. A afirmação do domínio
sobre homossexuais ou homens afeminados pode tomar formas violentas,
culminando em surras e até em assassinatos. Esta dominação também pode se
mostrar simbolicamente: os desafios entre os rapazes (“Vem! Prova que você é
homem de verdade! Prova que você é macho!”) que levam às brigas violentas é
um exemplo.
A masculinidade é um nível de padrão da conduta e da vida pessoal, mas
é importante entender que as masculinidades também existem em outros níveis:
de forma impessoal, nas comunidades, na cultura e nas instituições.
Organizações como as Forças Armadas e as corporações embutem padrões de
gênero particulares na sua cultura organizacional, podendo produzi-los
deliberadamente por meio de programas de treinamento. Os meios de
comunicação de massa promovem ícones particulares de masculinidade,
celebram padrões de conduta específicos, ao mesmo tempo em que zombam dos
outros.
47
Uma das aproximações que temos com a proposta de Connell é quanto à
crítica que ele faz ao Construcionismo. Segundo ele, se uma abordagem da
construção social da masculinidade significou um avanço em relação à
abordagem dos papéis sexuais, por outro lado, chegou num impasse: criticando o
reducionismo biológico das concepções essencialistas, acaba resvalando no
reducionismo social. O construcionismo não consegue explicar como se dá o
processo de conformação do indivíduo, algo que Connel procura dar conta.
Segundo ele:
“o enfoque construcionista social do gênero e da sexualidade sustenta-
se em uma perspectiva semiótica do corpo, fornecendo uma antítese quase
completa à sociobiologia.(...) o corpo é uma tela a ser pintada, uma superfície a
ser impressa. (...) Embora tenha sido brilhantemente produtivo, este enfoque
depara-se com dificuldade. Com tanta ênfase no significante, o significado tende
a desaparecer. (...) As discussões sócio-construcionistas têm o estranho efeito
de desincorporar o sexo.” (Connell, 1995, p. 50-51)
O autor defende que para entender como os corpos masculinos estão de
fato envolvidos nas masculinidades é necessário abandonar a dicotomia
convencional de que a cultura muda e os corpos não. Há uma gama de práticas
corporais dirigidas aos corpos que os classificam e os modificam.
A este respeito, é possível estabelecer uma relação com a importância de
certas jogos infantis que envolviam os corpos dos meninos brasileiros das
décadas de 50 e 60, tão bem descrita e discutida por DaMatta (1997). O
antropólogo relata uma brincadeira comum da época que envolvia um garoto que
se encarregava de apalpar o traseiro de um outro, sempre na presença de um
grupo maior de rapazes, seguida da pergunta “tem pente aí?” A reação da
“vítima”, diz DaMatta, era quase sempre a de dar um pulo para frente, proteger as
nádegas com as mãos e reagir violentamente à brincadeira. Mas o autor
48
demonstra como nada disso era tão simples, uma vez que havia toda uma norma
que regulava a expressão destas reações, que nem podiam ser muito violentas e
tampouco demoradas, o que poderia denotar alta sensibilidade numa “parte
sagrada do corpo masculino”. Conforme refere DaMatta (1997):
“... ‘ser homem’ não era apenas ter um corpo de homem, mas mostrar-
se ‘masculino’ e ‘macho’ em todos os momentos. (...) Um dos preços da
masculinidade, portanto, era uma eterna vigilância das emoções, dos gestos e
do próprio corpo” (p. 37)
Assim, é possível concordar com Connell e pensar que, de fato, a
materialidade do corpo nunca é apagada e permanece fundamental para qualquer
entendimento que se procure desenvolver sobre masculinidade ou feminilidade. É
inegável que há corpos grandes e pequenos, velhos e jovens, sadios e doentes.
Além disso, cada um tem a sua própria trajetória através do tempo, fazendo com
que se depare com jogos, acidentes, violência, fome, doença, cirurgia, etc, tendo
que se reorganizar em função disso.
É nesse sentido que ele propõe o entendimento do corpo como agente e,
ao mesmo tempo, objeto da prática social. As práticas nas quais os corpos estão
envolvidos formam estruturas sociais e trajetórias pessoais às quais, por sua vez,
promovem as condições para um novo circuito que interliga os processos
corporais e as estruturas sociais.
É possível complementar esta proposta de Connell afirmando que os
corpos masculinos são lugares sobre os quais as masculinidades estão inscritas,
mas isso não quer dizer que esta inscrição seja feita de modo previsível ou linear,
uma vez que “... não existem corpos fora das condições de sua materialização”
(Whitehead, 2002, p. 194).
49
De qualquer modo, é possível postular que a corporalização da
masculinidade hegemônica está associada à força, resistência, dureza e
competência física: ela sugere um modo de definir e ocupar o espaço, uma
habilidade de exercer controle sobre ele e um preparo para colocar o corpo em
risco visando atingir estas expectativas (Whitehead, Ibid.).
Além disso, cabe pensar nos aspectos atrelados ao corpo sexual na
hegemonia. Bourdieu (2005) defende que a relação sexual se mostra sempre
como uma relação de dominação, isto porque ela é construída por meio do
princípio central de divisão entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo.
Segundo ele, este princípio “... cria, organiza, expressa e dirige o desejo: o desejo
masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino
como desejo da dominação masculina, como subordinação erotizada” (p. 31).
Outro aspecto a ressaltar na postulação de Connell e que também nos
aproxima do modo como concebe a constituição da masculinidade e da
feminilidade é que, para ele, ambas envolvem não somente as relações sociais
como também uma condição de subjetivação
22
, o que o leva a recorrer à
psicologia. Neste caso, Connell baseia-se principalmente na psicanálise de Freud
para demonstrar que a masculinidade também é construída nas relações afetivas.
O autor faz uma análise dinâmica da masculinidade, servindo-se para isso
de subsídios das psicanálises freudiana e adleriana, bem como da sociologia e da
antropologia cultural (Connell,1995; 2000). Visa, com isso, romper com a
pesquisa positivista que busca nos múltiplos casos estudados generalizações
culturais sobre os gêneros (Cecchetto, 2004).
22
O grifo é meu.
50
A partir de nossa identificação com as idéias de Connell, foi realizado um
levantamento da literatura publicada do autor e foram selecionados artigos e livros
que, pela nossa avaliação, são mais representativos das idéias que se pretende
destacar neste trabalho.
Entre as contribuições mais importantes de Connell (1987; 1995; 2000;
2005) para os estudos críticos sobre homens, evidenciam-se as seguintes:
1. Consideração da masculinidade como “configurações de práticas”:
ele investigou como alguns modelos de masculinidade são mais
valorizados e exaltados no universo de modelos disponível,
enquanto outros, num mesmo contexto, são desprezados ou
subordinados. Connell (1987) interessa-se pelo processo de
configuração de práticas como algo dinâmico através do qual se
pode compreender a masculinidade como um “projeto de gênero”;
2. O masculino é inconcebível sem um feminino a respeito do qual se
define: o masculino é autoridade legítima que se exibe ao mesmo
tempo na força física e no poder de dizer como são as coisas, tanto
nas instituições quanto na gama infinita de situações que põe os
seres em relação. Por outro lado, quando se cruza a identidade
masculina com outros fatores (raça, classe) que estruturam a
sociedade nos encontramos na presença de múltiplas
masculinidades que, por sua vez, são relativas a múltiplas
feminilidades;
51
3. Masculinidade hegemônica e masculinidades subordinadas: em seu
sétimo livro
23
(Connell, 1995), o investigador põe ênfase na
necessidade de compreender as diversas masculinidades, cada
uma em relação com as demais. Esta hierarquia de poder que afeta
toda a sociedade ou ordem de gênero se estabelece nas lutas
através das quais se forja a condição masculina. Também se
destaca nesta obra a imposição dos modos de ser homem. Sobre
isso, Connell elabora uma proposição esclarecedora: masculinidade
hegemônica, em oposição às subordinadas ou marginais
24
;
4. Ordem de gênero: baseando-se nas investigações realizadas sobre
o conceito de gênero na sociologia, na psicologia e na história,
Connell (1995) volta-se para a organização social e para as
interações entre instituições e indivíduos ao falar de poder. Estuda
com afinco as circunstâncias individuais recolhidas em histórias de
vida, as que permitem, por exemplo, entrar no que significou a
primeira transa para um indivíduo; examina as instituições como
lugares de onde se exerce e percebe o poder, por exemplo, a
empresa, chegando assim às grandes instituições como o Estado e
sua política trabalhista e de emprego. Percebe-se em tal sentido
uma “ordem de gênero”, tanto em seus estratos como nas
articulações.
5. Estrutura das relações de gênero: trabalho, poder, emoções e
símbolos articulam conjuntamente a estrutura das relações de
gênero. Compõem, assim, um arcabouço conceitual amplo,
23
Escrito na língua inglesa, sem levar em consideração os livros escritos em co-autoria.
24
Tópico que será discutido com mais detalhes logo adiante.
52
necessário para analisar as questões de gênero (Connell, 1987;
1995; 2000). As relações de produção (trabalho) dizem respeito às
divisões de tarefas por gênero, mas, além disso, é necessário dar
atenção às conseqüências econômicas desta divisão, isto é, aos
dividendos resultantes da divisão desigual do trabalho social
acumulados pelos homens. As relações de poder dizem respeito
especificamente à subordinação geral das mulheres e à dominação
dos homens, definindo um problema de legitimidade que tem grande
importância para a política da masculinidade. As relações afetivas
(emoções) se referem às práticas que dão forma e atualizam o
desejo, sendo, portanto, um aspecto da ordem de gênero. Neste
sentido, é possível formular questões políticas sobre, por exemplo,
se estas relações são consensuais ou coercitivas, se o prazer é
igualmente dado e recebido, etc. Em obra mais recente, o autor
acrescentou as relações de simbolização (símbolos): “... a
apresentação simbólica do gênero por meio da roupa, da maquiagem,
da cultura corporal, dos gestos, do tom de voz, etc, é uma parte
importante da experiência cotidiana de gênero” (Connell, 2000, p. 26).
Portanto, falar de mulher ou de homem implica adentrar num
sistema de interpretações, compromissos e insinuações que se
acumularam através de nossa história cultural.
6. Importância de estudar as relações dialéticas de aliança, dominação
e subordinação que constroem as masculinidades: o autor alerta
que o reconhecimento da diversidade no masculino não é suficiente,
pois “ao reconhecer masculinidades múltiplas, especialmente em uma
cultura individualista como a dos Estados Unidos, há o risco de elas
53
serem entendidas como estilos de vida alternativos, uma questão de
escolha do consumidor” (Connell, 1995, p. 76).
7. Dimensão corporal na experiência de ser homem: diz respeito à
reivindicação feita por Connell da volta da dimensão corporal nos
estudos sobre homens, para além de concepções binárias
inadequadas: o corpo como máquina natural ou como superfície
passiva e neutra. Para ele, é importante não esquecer que as
sociedades nas quais a feminilidade e a masculinidade guiam a
organização e a produção de uma forma definida de ser homem ou
mulher, tal masculinidade e feminilidade são “projetos de gênero” e
o conjunto da prática social está encaminhado para a construção
destes projetos. Tal construção se realiza pela modelagem dos
corpos das pessoas, ou seja: as formas corporais e suas envolturas,
os movimentos, as emoções, os sentimentos, os desejos e os
projetos vitais e profissionais serão dirigidos e organizados, porém
não determinados, pela prática social, sem esquecer que esta é
ativa, mutante e, portanto, complexa (Connell, 1995; 2000).
Uma vez que o gênero é compreendido por Connell como uma forma de
estruturação das práticas sociais, a proposta feita é a de interconexão entre
estrutura e prática, destacando o entrelaçamento contínuo entre a vida pessoal e
a estrutura social. As estruturas sociais, portanto, não são engendradas por uma
base biológica, mas por processos históricos.
O que se observa, aqui, é uma abordagem que proclama o
estabelecimento de uma conexão entre os estudos da masculinidade e
estratégias de mudança. Isto é o que mais nos chama a atenção, uma vez que
54
nosso trabalho com situações de violência doméstica nos faz pensar que grande
parte das ações de enfrentamento e combate a esta questão passa por uma
reformulação da política de gênero. Esta só será efetiva se puder contar também
com as contribuições dos estudos críticos sobre homens.
Segundo Connell (2002), é importante insistir que o gênero é mais do que
uma marca individual atrelada a uma diferença corporal, e que se faz necessário
entender que as pessoas enfrentam uma prática social ordenada, muito
categórica e com poder, através da qual a vida cotidiana está organizada em
relação a “arena reprodutiva”
25
.
Sendo assim, a compreensão das masculinidades contemporâneas
envolve o mapeamento das tendências de crise na ordem do gênero. Por
exemplo, um movimento global pela emancipação feminina contribui para o
colapso do patriarcado (relações de poder), o aumento da participação das
mulheres no mercado de trabalho colabora para a redistribuição do dinheiro
(relações de produção) e a estabilização da sexualidade gay e lésbica se
apresentam como alternativas na ordem heterossexual (relações afetivas). Se a
ordem patriarcal proíbe certas formas de emoção, relacionamento e prazer, em
sua (des)construção estão envolvidas relações econômicas, regionais e globais,
bem como relações domésticas e pessoais.
Por isso a importância de se detalhar a formulação de Connell sobre as
dinâmicas relacionais das masculinidades, uma vez que, do nosso ponto de vista,
25
Conceito que compreende a totalidade dos espaços sociais, desde o micro até o macro,
atravessando as relações de poder, econômicas e afetivas. Connell (1995) afirma que a
arena reprodutiva é o espaço da excitação sexual, do relacionamento sexual, da gravidez
e do cuidado da prole, das semelhanças e diferenças sexuais do corpo.
55
ela fornece subsídios para uma apreciação crítica da relação entre diferença e
dominação de gênero. Este é o tema do tópico a seguir.
2.4. Masculinidade Hegemônica e Masculinidades Subordinadas
O conceito de masculinidade hegemônica foi elaborado em substituição
ao de papel masculino, tendo como referência o conceito de hegemonia do
pensador marxista italiano Antonio Gramsci, que o formulou em alusão à tomada
e manutenção de uma posição de liderança de um grupo sobre outros.
Os escritos de Gramsci se centravam na dinâmica da mudança cultural
que envolvia a mobilização e a desmobilização de todas as classes sociais
26
.
Segundo Connell (2005), sem uma atenção muito clara à questão da mudança
histórica a idéia de hegemonia poderia ser reduzida a um simples modelo de
controle cultural, sendo que em grande parte do debate sobre gênero esta
mudança histórica em larga-escala não está em foco.
A hegemonia é uma relação historicamente móvel. Como conceito,
envolve o entendimento de que em determinado momento do tempo uma forma
de masculinidade, mais do que outras, é exaltada:
“masculinidade hegemônica pode ser definida como a configuração de
uma prática de gênero que incorpora a resposta aceita ao problema da
legitimidade do patriarcado, que garante (ou que se ocupa em garantir) a
posição dominante dos homens e a subordinação das mulheres”. (Connell, 1995,
p. 77)
O conceito permite entender a masculinidade não como um papel
estático, mas como sendo sustentada por estruturas e normas sociais, sendo que
o ‘heterossexismo’ é uma das partes essenciais da hegemonia.
26
Fonte: Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Editado por William
Outhwaite & Tom Bottomore. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1996
56
Dessa forma, a masculinidade hegemônica deve ser entendida como uma
dinâmica cultural pela qual um grupo reclama e sustenta uma posição superior na
vida social, sendo que se relaciona com a dominação cultural na sociedade como
um todo. Construída em relação à(s) feminilidade(s) e às outras masculinidades
dos grupos dominados, ela as dissimula e as submete.
Segundo Connell (1995; 2000; 2005), há diferentes masculinidades e
relações sociais definidas entre elas. Mais ainda, há relações hierárquicas, nas
quais algumas masculinidades são dominantes enquanto outras são cúmplices,
subordinadas ou marginalizadas.
É importante entender que a masculinidade hegemônica não corresponde
necessariamente às características dos homens concretamente mais poderosos.
Ela diz respeito àquilo que sustenta o seu poder e àquilo que muitos homens são
motivados a apoiar. Conforme Cecchetto (2004), “... na tentativa de se conferirem
uma masculinidade socialmente valorizada, certos grupos masculinos negam
outras versões de homem, transformando-as em duvidosas e desprezíveis”
(p.66).
Connell refere haver grupos de homens que, mesmo não encarnando o
ideal hegemônico, alcançam alguns dos seus benefícios, como a vantagem sobre
as mulheres, apenas porque mantêm uma relação de cumplicidade com o grupo
hegemônico. Estas “masculinidades cúmplices” se organizam em torno da
aceitação do dividendo patriarcal, embora não exerçam militância em defesa do
mesmo.
57
Também aponta para outras relações internas à dinâmica do gênero,
como a subordinação. A esse respeito, Welzer-Lang (2001) se refere à norma
27
política heterocentrada e homofóbica, produzida sob a definição da superioridade
masculina e daquilo que deve ser a performance sexual masculina, a qual indica o
que é um homem “normal”, “verdadeiro”: viril na aparência e em suas práticas,
não-afeminado, ativo e dominante. Diante disso, todos os homens que se
diferenciarem dessa norma passam a pertencer ao grupo dos “outros”,
dominados, o que inclui as mulheres, as crianças e qualquer outro que não seja
um “homem normal”. Connell (2000) afirma que o exemplo mais notável de
masculinidades subordinadas nas culturas européias e da América do Norte é a
masculinidade gay (p. 30).
Outra forma de masculinidade que co-existe ou é produzida
concomitantemente à masculinidade hegemônica é a masculinidade
marginalizada, produzida nos grupos explorados ou oprimidos tais como os
grupos étnicos minoritários, que podem compartilhar muitas características com a
masculinidade hegemônica, mas que são socialmente desautorizados:
“... A marginalização é sempre relativa à autorização da masculinidade
hegemônica do grupo dominante. Assim, nos Estados Unidos, atletas negros
específicos podem ser exemplos típicos para a masculinidade hegemônica, mas
a fama e o dinheiro destes astros não têm efeito benéfico: eles não produzem
uma autorização social para os homens negros em geral” (Connell, 1995, p. 81).
O autor reconhece que estas definições (subordinação e marginalização,
especialmente) ainda aguardam melhor precisão, uma vez que se trata de uma
27
Não se trata aqui do termo “norma” no sentido estatístico de uma tendência central.
Tampouco do que é “normal” no sentido clínico. Ao invés disso, o termo é utilizado por
Welzer-Lang no seu sentido sociológico, no qual algo é visto como normativo quando a
maioria das pessoas o considera como um valor ou um padrão moral (conforme Oswald,
Blume & Marks, 2005).
58
estrutura de análise em processo de aprimoramento. No caso das masculinidades
marginalizadas, entendemos que a idéia é a de que não importa quanta riqueza
ou poder um homem negro (o mesmo exemplo dado por Connell) possua ou
possa vir a ter, o fato é que ele sempre será desautorizado por ser negro. Além
disso, os privilégios
28
que eles possuem nunca se estenderão para os demais
homens negros, ao contrário do que ocorre com os homens brancos que
desfrutam dos privilégios dos seus “pares”.
A masculinidade hegemônica também inclui a possibilidade de escapar
dela. As masculinidades subordinadas podem protestar contra ela. Grupos
potenciais são os homens negros, os gays, e os anti-sexistas. As normas
hegemônicas são, contudo, uma fronteira para muitos homens. O homem ideal é
forte fisicamente, bem-sucedido na sociedade, estável e capaz de defender a si
próprio e à sua comunidade; além de um excelente amante heterossexual. Os
homens têm de provar sua masculinidade de diferentes modos e falhar nestas
tentativas pode causar-lhes problemas.
Uma das críticas mais contundentes ao conceito de “masculinidade
hegemônica” é a de que existe uma tendência a reificar este termo, fazendo com
que ele se torne um tipo de caráter fixo, algo como a famosa “personalidade do
tipo A”. Dada esta tendência, todas as coisas objetivas que os homens fazem
estupro, agressão, degradação ambiental, as práticas comerciais do tipo “um
querendo comer o outro”, etc podem caber na sacola da “masculinidade
hegemônica” (Connell, 2000; 2005). A esse respeito, cabe retomar Kimmel (1991)
e o próprio Connell (1995) para lembrar que este conceito foi introduzido nas
28
Reiterando que estes privilégios são na maioria das vezes invisíveis para quem goza
deles.
59
discussões da masculinidade para tratar dos assuntos relacionais e, o mais
importante, das conexões entre as diferenças e hierarquias entre os homens, e
das relações entre homens e mulheres.
Outra crítica freqüentemente feita é a de que o conceito de masculinidade
hegemônica embute a ‘heteronormatividade’
29
. Segundo Connell (2005), no
desenvolvimento do conceito as divisões entre homens, especialmente a exclusão
e subordinação dos homossexuais, sempre foram pontos bastante centrais, sendo
que a vigilância da heterossexualidade tem sido um tema de maior interesse nas
discussões da masculinidade hegemônica desde então.
Das críticas recebidas ao conceito, a que Connell concorda como fazendo
sentido é aquela que diz respeito à tendência em dispor em duas categorias as
experiências das mulheres e dos homens, tanto na literatura de pesquisa quanto
na popular. A suposição das ‘esferas separadas’ leva muitos pesquisadores a
procederem como se as mulheres não fossem parte relevante da análise,
discutindo seus trabalhos baseados apenas nos homens e nas relações entre
eles. Porém, afirma ele, isto não é inevitável. A saída está em se apoiar num
enfoque relacional consistente do gênero e não no abandono das concepções de
gênero e masculinidade (op. cit., p. 837). É inegável que as mulheres são centrais
na maioria dos processos de construção das masculinidades, seja como mães,
colegas de escola, amigas, parceiras sexuais e esposas, companheiras de
trabalho e etc.
29
Heteronormatividade se refere a uma ideologia que promove uma perspectiva
convencional das relações de gênero e da heterossexualidade, e uma visão tradicionalista
da família, como a maneira correta das pessoas viverem. (C. Ingraham . The heterosexual
imaginary: feminist sociology and theories of gender. In: S. Seidman (ed). Queer Theory
/ Sociology. Cambridge, MA: BLackwell, p. 168-193, 1996) [apud. Oswald, Blume &
Marks, 2005].
60
Uma última crítica dirigida à Connell e que merece destaque é sobre a
inadequação da leitura do corpo como objeto de construção social. As
contribuições feitas pela “Teoria Queer” aos estudos de gênero apontam para a
necessidade de um tratamento mais sofisticado sobre a corporalização da
masculinidade hegemônica, especialmente quando se pensa nas práticas dos
transgêneros e a sua subversão da ordem de gênero (Heasley, 2005; Reyes,
2004). Neste caso, Connell (op. cit.) reconhece que os corpos estão envolvidos
mais ativa e intrinsecamente com os processos sociais do que a sua teoria
normalmente admitiu.
Faz-se necessário perceber as relações de poder ou prestígio na
constituição das masculinidades: “... na tentativa de se conferirem uma
masculinidade socialmente valorizada, certos grupos negam outras versões de
homem, transformando-as em duvidosas e desprezíveis” (Cecchetto, 2004, p. 66).
Kimmel (1991) já havia chamado atenção para o fato de que são os
homens cujas masculinidades são vistas como desviantes, no caso os homens
negros e os homossexuais, que lançaram o desafio à concepção de hegemonia
masculina. São eles que servem de pano de fundo contra o qual se constrói a
hegemonia em oposição à subalternidade ou à marginalidade. O homem
ocidental, branco e de classe média não interpela a sua masculinidade o tempo
todo, o que permite entender que as estruturas de prestígio lhe conferem o
“privilégio da invisibilidade em relação aos outros grupos” (Cecchetto, op. cit., p.
67).
Finalizando, é importante entender que a masculinidade hegemônica é
um modelo dificilmente alcançado por todos os homens, embora tenha
61
ascendência sobre os demais modelos. Entender as diferentes demandas de
masculinidade implica, portanto, investigar as práticas na qual esta hegemonia é
constituída e contestada.
2.5. Explicando a construção da masculinidade: algumas contribuições da
Psicologia e para além dela.
Algumas expressões utilizadas popularmente demonstram como a tarefa
do menino para se transformar num homem é árdua e fruto de muitas exigências.
Frases e ditados como “endireite-se e fale como homem!”, “mandaram-me um
menino para fazer trabalho de homem” e “enfrente esta situação como homem!”
transmitem significados culturalmente partilhados e que servem a propósitos
específicos (reprodução da ordem de gênero).
Isto é tão evidente, que geralmente não é necessário especificar com
detalhes as condutas e características masculinas que se acham implícitas nestas
afirmações. Trata-se da reprodução de estereótipos que dignificam ou idealizam
um dos gêneros às expensas do outro: agir como homem, por exemplo, significa
não agir como uma menina (“mulherzinha”
30
).
No campo da Psicologia, a discussão sobre a masculinidade e sua
construção a partir das contribuições da teoria do gênero ainda não teve um
impacto capaz de provocar uma produção de conhecimento significativa como no
campo das ciências sociais.
30
É muito comum o uso deste termo para se referir aos homens homossexuais. Os
termos “boneca” e “veado” comportam o mesmo significado de “mulherzinha”, conforme
demonstram Alves (2001) e Parker (1991; 2002).
62
Em nosso trabalho sobre a concepção de intimidade para os homens no
relacionamento conjugal, já havíamos lidado com a dificuldade de levantar
bibliografia específica em psicologia que incorporasse as contribuições dos
estudos de gênero ao entendimento da masculinidade e do seu desenvolvimento
entre os homens (Maciel Jr, 1999).
Na revisão bibliográfica para o presente trabalho, sem dúvida foi
constatado um aumento significativo da literatura e pesquisa sobre homens e
masculinidades, embora muito pouco significativa na área psicológica.
Mesmo as pesquisas em ciências sociais acabam se apoiando nos
trabalhos clássicos da psicanálise (Freud, Erikson, Lacan) quando fazem
referência aos aspectos psicológicos da masculinidade, embora em sua maioria
estabeleçam críticas importantes a estes trabalhos (Kimmel, 1991, 2004; Connell,
1995, 2000, 2002; Whitehead, 2002).
Este estudo se propõe a desenvolver uma compreensão sobre como
diferentes atributos da masculinidade são centrais para definição do eu de
homens específicos, bem como entender de que modo é um processo que eles
negociam em momentos do ciclo vital. A discussão a ser feita leva em
consideração fundamentalmente as contribuições dos estudos da masculinidade
sob a ótica do gênero, o que traz uma dificuldade quando se trata de buscar
aportes teóricos da psicologia que se coadunem com tal empreendimento e, ao
mesmo tempo, dos quais possamos compartilhar.
A partir deste esclarecimento, serão apresentadas algumas reflexões
sobre a construção da masculinidade por meio de autores com os quais há maior
afinidade de nossa parte (seja em função de pressupostos partilhados, seja por
63
conta de explicações que, no nosso entender, lançam luz para refletir este
processo através de uma articulação com as contribuições da perspectiva de
gênero). Outros trabalhos serão discutidos porque tiveram algum impacto nos
seus respectivos países, embora não estejam necessariamente alinhados com
esta perspectiva.
Um dos livros pioneiros a discutir e analisar o que significar ser homem e
as conseqüências disso para os brasileiros foi o de Nolasco (1993), cujo título é
“O mito da masculinidade”. Realizando uma pesquisa com vinte e cinco homens
de classe média, com idade de 35 anos, o autor analisou as formas opressivas
sobre as quais os homens são tradicionalmente socializados. Tentando entender
como eles se relacionavam com o trabalho, consigo próprios, com suas parceiras,
amigos e filhos, Nolasco discutiu os parâmetros sociais a partir dos quais se
define o que um é homem. Ele partiu da consideração de que em diversos países
estava havendo um expressivo aumento no número de homens que buscava
novos caminhos (psicoterapias e grupos de apoio) que lhes permitissem descobrir
outro modelo de subjetividade no qual os afetos não fossem classificados sob
uma ótica sexista. Em sua análise, as principais tensões experimentadas pelos
homens advinham dos esforços que eles desenvolviam para se adaptarem aos
papéis sociais que, na verdade, não correspondiam às suas habilidades e
desejos. Até então, segundo Nolasco, a autopercepção dos homens na definição
da masculinidade tem se baseado em conceitos vagos de autoridade e tradição.
Uma das dificuldades expressadas pelos participantes da pesquisa era como
construir suas auto-imagens de acordo com diferentes aspectos de suas
identidades e não simplesmente com aquilo que era socialmente esperado.
Segundo o autor, o estereótipo de macho exclui estas dinâmicas subjetivas,
64
fazendo com que os indivíduos acreditem que um homem é feito de uma série de
absolutos: nunca chora, tem que ser o melhor, tem que competir sempre, ser
forte, não deve se envolver afetivamente e nunca fugir quando confrontado. Para
Nolasco, este é o modelo que alguns homens se esforçam para superar.
Outro trabalho a que tivemos acesso foi o de Ramírez
31
(1999), que
discute a compreensão da masculinidade entre homens porto-riquenhos. Ele
começa tecendo uma crítica de como o termo “machismo” vem sendo utilizado e
posteriormente faz uma descrição de diversas masculinidades em contextos
etnográficos distintos. Quanto ao machismo, o autor afirma que tratá-lo como uma
ideologia exclusiva dos homens é algo equivocado e perigoso: o machismo está
incorporado tanto à visão de mundo dos homens quanto das mulheres, além de
ser o eixo de uma trama política maior que transcende os indivíduos. Ramírez
também defende que a ideologia dominante da masculinidade é reproduzida entre
homens nos relacionamentos homossexuais e, decorrente disto, conclui o seu
estudo sugerindo a possibilidade de construção de uma nova identidade
masculina, isenta dos jogos de poder e competição presentes no papel masculino
tradicional. Por meio de estudos etnográficos, Ramírez propõe uma interpretação
para o que significa ser homem em Porto Rico, concluindo que neste país “... a
identidade masculina está personificada nos genitais e é articulada com a
sexualidade e o poder” (Ibid., p. 48). Portanto, os relacionamentos entre os
homens se baseiam no poder, na competição e no conflito.
Enquanto o trabalho de Ramírez está claramente associado aos estudos
de gênero, Nolasco procura se distinguir dele (mais especificamente do
31
Rafael Ramírez é professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Porto
Rico.
65
feminismo), argumentando que a organização de grupos de homens não deve ser
caracterizada como movimento político e que cada um destes movimentos tem
características e dinâmicas específicas. Nolasco também critica a associação que
o feminismo inicial estabeleceu entre os homens e o patriarcado, bem como a
representação das mulheres como virtuosas e dos homens como
fundamentalmente maus.
Embora a proposta de Ramírez traga contribuições importantes sobre a
questão do machismo na constituição das masculinidades latinas
32
, bem como
sobre a reprodução da ideologia masculina dominante nos relacionamentos
homossexuais masculinos, causa-nos estranheza quando ele defende a
possibilidade de construção de uma nova identidade masculina desatrelada dos
jogos de poder e competição. Pelo que vem sendo discutido no nosso trabalho, é
pertinente pensar: será que tudo se resume à constituição de um novo modelo de
identidade? Será possível pensar em identidades que estejam apartadas da
ordem hegemônica de gênero?
Um dos principais autores sobre o estudo da masculinidade em psicologia
é o norte-americano Joseph Pleck (1981; 1995). Ele desenvolveu no início dos
anos 80 um modelo para compreensão das dinâmicas da masculinidade. O
modelo, conhecido como “The Gender Role Strain Paradigm
33
”, sofreu diversas
apreciações por parte dos autores ligados aos estudos críticos da masculinidade
na década de 90 (Carrigan, Connell & Lee, 1987; Kimmel, 1991; Connell, 1995),
todas elas associando o modelo de Pleck às teorias dos papéis sexuais.
32
Embora nos pareça que a questão do machismo no Brasil comporte especificidades em
relação aos demais países latinos, que, embora sejam distintos culturalmente, guardam
semelhanças de significados associados à cultura e à língua espanhola (claro que
entrecruzados com as culturas dos povos locais).
33
Modelo de Tensão do Papel de Gênero.
66
Em 1995, o autor responde a este conjunto de críticas, defendendo que o
seu modelo não pode ser associado às teorias clássicas dos papéis sexuais e
que, na verdade, ele foi desenvolvido a partir das novas idéias sobre
masculinidade que começavam a emergir na literatura especializada. A proposta
foi a de formular uma estrutura teórica sistematizada que substituísse o modelo
de identidade sexual masculina que então vigorava.
Pleck desenvolveu uma abordagem crítica dos modelos de identidade
masculina baseados nos papéis sociais (teorias clássicas dos papéis sexuais),
reprovando a noção de que é a conformidade com o papel sexual que promove o
ajustamento psíquico. Sob influência do filósofo Michel Foucault, ele argumenta
que a teoria dos papéis sexuais é uma forma de política de gênero, isto porque as
mudanças históricas nas relações de gênero exigem uma modificação na forma
de controle social sobre homens e mulheres (Fonseca, 2003).
Pleck propõe o constructo “ideologia de gênero” como um conjunto de
crenças (construído social e culturalmente) sobre comportamentos, atitudes e
características que um homem ou uma mulher deve ter. No caso da ideologia
masculina
34
, o modelo propõe que os comportamentos masculinos resultam de
crenças construídas sobre a virilidade e a masculinidade, mais do que pela
biologia do homem. Esta ideologia masculina entende o desejo e o
comportamento homossexual como inaceitáveis. Por sua vez, os homens
homossexuais estão expostos a ideologias idênticas à dos heterossexuais da
mesma sociedade (Pleck, 1995).
34
Pensamos que é possível compreender este constructo de Pleck [“ideologia (de gênero)
masculina”] como sinônimo de “padrão hegemônico de masculinidade” (conforme
Connell, 2000, p. 30)
67
O seu “modelo de tensão do papel de gênero” afirma que os papéis
apropriados aos homens e às mulheres são determinados pela ideologia de
gênero dominante na cultura (ideologia que é um reflexo da dinâmica de poder
subjacente em dada sociedade) e são impostos ao longo do desenvolvimento
infantil através dos pais, dos professores e dos grupos de pares que subscrevem
esta ideologia. Posteriormente, Pleck acrescentou que: os papéis de gênero
contemporâneos são contraditórios e inconsistentes, sendo que a proporção de
pessoas que violam estes papéis é alta; que a violação dos papéis de gênero
produz condenação social e conseqüências psicológicas negativas; que a
transgressão real ou imaginária dos papéis de gênero conduz as pessoas a uma
conformação mais estrita a eles; que a não-observância dos papéis de gênero
tem conseqüências mais severas para os homens do que para as mulheres; que
certas características prescritas pelos papéis de gênero (como a agressão
masculina) são quase sempre disfuncionais; que cada gênero experimenta a
tensão do papel de gênero em seu ambiente de trabalho e no meio familiar; e que
as mudanças históricas provocam tensão no papel de gênero (Ibid., p. 24).
Connell (1995) reconheceu que Pleck foi o único autor fora dos “Gay
Studies” a observar que a dicotomia entre heterossexuais e homossexuais é um
dos focos centrais em todas as categorias de masculinidade. Segundo Pleck, a
maior parte das sociedades ainda identifica a masculinidade à
heterossexualidade. Na medida em que o gênero acaba sendo definido pelo
comportamento sexual e a masculinidade por oposição à feminilidade, a
homofobia desempenha papel importante no sentimento de ser homem. Desse
modo, a homofobia também cumpre uma função social, uma vez que os homens
68
heterossexuais exprimem seu preconceito contra os gays visando, ao mesmo
tempo, obter a aprovação do outros e ganhar mais autoconfiança.
O que emerge deste argumento é o conceito de masculinidade
hegemônica e não de papel sexual masculino. Esta perspectiva, segundo Pleck,
favoreceria um novo modelo para o estudo dos papéis sociais, de acordo com o
que é mais relevante para a sociedade contemporânea.
Pleck reformulou o modelo de tensão de papel de gênero, afirmando que
a sua formulação original estimulou a pesquisa em três variedades, as quais ele
denominou de “tensão discrepante”, “tensão disfuncional” e “tensão traumática”
(Ibid., p. 24).
A tensão discrepante resulta da dificuldade de um homem para viver de
acordo com um ideal de masculinidade, o qual, entre homens adultos
contemporâneos, é frequentemente uma aproximação íntima da ideologia
tradicional de gênero.
A tensão disfuncional se apresenta mesmo quando um homem satisfaz os
requerimentos dos códigos masculinos, porque muitas das características vistas
como desejáveis em homens podem ter efeitos negativos sobre os próprios
homens e para aqueles próximos deles.
A tensão traumática pode resultar de diversas fontes, uma das quais é a
experiência penosa do processo de socialização dos papéis masculinos.
Especificamente, o processo de socialização afetiva do homem é feito no sentido
de suprimir e mudar a afetividade natural do menino numa extensão tal que
provoca as seguintes conseqüências: quando adultos, se tornam menos
69
empáticos afetivamente do que as mulheres; mais propensos para expressar a
raiva agressivamente e para transformar seus “afetos vulneráveis” (sentimentos
que o fazem se sentir vulnerável como tristeza, medo e vergonha) em raiva;
menos habilitados a tolerarem a intimidade afetiva; e mais propensos a preferirem
uma sexualidade não-relacional (Ibid., p. 28-29).
Assim, o que se destaca na formulação do modelo de Pleck é
fundamentalmente o constructo da ideologia de gênero. Ele definiu a ideologia
masculina tradicional como um constructo multidimensional que comporta normas
masculinas de evitação de tudo o que se refere ao feminino; que restringe a vida
afetiva de um homem; que favorece que ele se torne valente e agressivo; que
promove a autoconfiança e a aquisição de status; que apresenta atitudes não-
relacionais acerca da sexualidade; que favorece o medo e a raiva dos
homossexuais. Além disso, também discute variações culturais na ideologia
masculina. Finalmente, Pleck descreve alguns dos mais novos desenvolvimentos
clínicos que emergem desta perspectiva.
Uma psicologia dos homens com ênfase na tensão de papel de gênero
auxilia a compreensão do paradoxo entre o privilégio masculino em relação ao
feminino numa sociedade patriarcal e o fato deles participarem de forma maciça
em muitas estatísticas, como: abuso de substâncias; condição de moradores de
rua; perpetração da violência doméstica e interpessoal; compulsão sexual; abuso
sexual contra mulheres e crianças; vítimas de homicídio, suicídio e acidentes
automobilísticos fatais; e estilo de vida e doenças fatais associados ao stress.
Estas contribuições de Pleck, aliadas às proposições de Connell (1995;
2000) e à nossa experiência no campo da psicologia do desenvolvimento
70
permitem algumas reflexões: as masculinidades adultas são produzidas através
de um processo complexo que envolve uma negociação ativa nos diversos
relacionamentos interpessoais e sociais. Como as crianças são sujeitos
eminentemente ativos no seu processo de desenvolvimento, esta negociação é
um processo dialético de confrontação e negação, no qual as masculinidades são
construídas desde a infância tanto por oposição quanto em conformidade à
pressão institucional. Sendo assim, o resultado na vida adulta é normalmente uma
estrutura complexa de personalidade ? e não uma estrutura homogênea ? na
qual afetos e compromissos contraditórios coexistem. Por exemplo, conforme
apontam Bishop & Robinson (1998) em relação à sexualidade adulta, uma
heterossexualidade predatória pode existir em associação com o desejo de ser
acalentado, um padrão que os autores identificaram entre os homens que se
utilizavam do turismo sexual na Tailândia. Outra forma de ilustrar o que foi dito é
por meio dos casos de heterossexualidades públicas que coexistem com um
desejo homoerótico que nunca é temido ou rejeitado.
71
Capítulo 3 Método
O presente estudo visa, por meio da análise de histórias de vida,
descrever e discutir como diferentes atributos da masculinidade são centrais para
definição do eu de homens específicos e como se trata de um processo
negociado em momentos do ciclo vital.
Trata-se de um trabalho descritivo-qualitativo, no qual o foco de atenção é
a narração que os participantes fizeram de suas vidas: como eles a relataram, o
que eles priorizaram nestes relatos, que considerações fizeram a respeito daquilo
que viveram e de que modo se relacionaram com o entrevistador durante as
entrevistas.
Apesar de se tratar de uma investigação que visou compreender
processos por intermédio de uma população não-clínica (não se trabalhou com
clientes de psicoterapia do pesquisador), este trabalho é caracterizado como uma
pesquisa clínica. Isto é, parafraseando Perron (apud Giami, 1989, p.40), trata-se
de uma pesquisa que consiste em um processo de conhecimento dos significados
que o indivíduo atribui às suas crenças e valores, visando construir em uma
estrutura inteligível os fatos psicológicos dos quais ele é a fonte.
Dessa forma, a investigação clínica que foi realizada é distinta daquela
cujo significado é o de lidar unicamente com procedimentos psicoterápicos ou
situações de consultório, comportando um conjunto específico de técnicas cuja
finalidade é a busca da compreensão de um fenômeno, mais do que sua
explicação.
Sob esta perspectiva, o investigador deve estar envolvido e ao mesmo
72
tempo manter certo distanciamento que lhe permita posteriormente pensar sobre
o que ouviu. Ele exerce um papel como co-participante da realidade observada,
tendo responsabilidade pelo material produzido. Neste caso, como assinalam
Berg & Smith (1988), é de fundamental importância considerar a subjetividade do
pesquisador, bem como sua responsabilidade pelos “dados coletados”. Além
disso, ele deve ter clareza de que estes “dados” irão se constituir a partir dos
contextos específicos de interação ocorrida durante as entrevistas, o que significa
que a forma como estas relações se estabelecem (empatia, confiança) contribui
sobremaneira para a configuração das narrativas desenvolvidas, que comportarão
características bastante peculiares, apesar de tratarem do mesmo tema.
A estratégia metodológica utilizada foi a da história de vida
35
, que oferece
informações e documentação acerca da experiência social, da ideologia e da
subjetividade. A história de vida permite a revelação da estrutura e da dinâmica
presente nas instituições sociais, pois se refere às fases da vida social ao longo
do tempo. Fornece um estudo apropriado do indivíduo e da sociedade, já que há
uma recursividade entre estes dois níveis de experiência. É útil na discussão
sobre as questões de gênero, podendo focar as relações entre os indivíduos e as
instituições num determinado momento histórico (Bruner, 1997; Connell, 1995).
A história de vida permite ainda a apresentação do desenrolar de uma
experiência particular de vida ao longo dos anos e pode ser utilizada para mostrar
como uma pessoa é influenciada por sua época e como colaborou para dar forma
a ela (Levinson, 1978).
35
Neste trabalho, história de vida também é mencionada sob o termo autobiografia e se
diferencia de história oral no sentido de que esta sempre comporta um foco específico
(um evento, um tema, um tempo ou um lugar).
73
Segundo Atkinson (1998), uma vida individual e o papel que ela
desempenha na comunidade mais ampla são mais bem compreendidos por meio
da história de vida. As pessoas se tornam completamente conscientes de suas
próprias vidas mediante o processo de articulá-las no formato de uma narrativa. É
dessa forma que a história é contextualizada e adquire um significado
reconhecido pelo próprio sujeito. Narrar a própria vida permite ao sujeito ser
ouvido, reconhecido e apreciado pelas demais pessoas. A autobiografia favorece
a explicitação daquilo que estava implícito e o esclarecimento do que estava
confuso:
“... A história de vida é o relato que uma pessoa escolhe fazer sobre a
vida que viveu, contada o mais completa e honestamente possível a partir do
que é rememorado e daquilo que o (a) contador (a) quer que os outros saibam
sobre ele (a), normalmente como resultado de uma entrevista conduzida por
outrem” (Atkinson, 1998, p. 5).
A revisão da literatura permite constatar que a história de vida tem sido
utilizada em pesquisas sobre os mais diversos temas, como, por exemplo, o
processo de envelhecimento, problemas de aprendizagem, abuso sexual,
migração, questões de gênero dentre outros (Monteiro, 2003; Plummer, 2001;
Atkinson, 1998).
Em relação ao tema do presente estudo, alguns pesquisadores fizeram
uso da autobiografia para ilustrar e discutir assuntos associados à masculinidade,
como o desenvolvimento de homens de meia-idade (Levinson, 1978) ou as
diferentes possibilidades de mudança na masculinidade (Connell, 1995).
Em seu estudo publicado como The seasons of a man’s life (op. cit.),
Levinson utilizou a entrevista de história de vida como meio para fundamentar a
sua teoria de desenvolvimento adulto (posteriormente ampliada por meio de uma
74
pesquisa com mulheres
36
). Ao realizar este primeiro estudo, ele escolheu a
autobiografia porque constatou que os métodos usuais de pesquisa como
questionários, testes, entrevistas estruturadas, etc, possuíam valor muito limitado
para realização de um empreendimento como o que ele estava se propondo a
desenvolver. Acabou concluindo que a autobiografia lhe permitiria explorar as
vidas individuais dos participantes daquela investigação com maior profundidade.
O uso do método biográfico permite ao pesquisador trabalhar somente
com entrevistas abertas ou, caso avalie ser necessário, dirigi-las para focos
específicos de interesse. Na condução da entrevista, deve-se permitir ao
entrevistado que conte sua história e, simultaneamente, deve-se realizar
intervenções que o auxiliem a manter o rumo do relato, apreendendo situações
particulares, ações e sentimentos.
De acordo com Levinson (1978), a entrevista de história de vida
combina aspectos da entrevista de pesquisa, da entrevista clínica e da conversa
entre amigos:
(1) Como numa entrevista estruturada de pesquisa, deve-se obter
informações sobre alguns tópicos;
(2) Como numa entrevista clínica, o entrevistador é sensível aos
sentimentos expressos e segue a orientação e construção do
entrevistado ao longo do temas;
(3) Como uma conversa entre dois amigos, a relação é igualitária e o
entrevistador está livre para responder em termos de sua própria
experiência.
O que está em questão, portanto, é uma relação que envolve intimidade,
intensidade e duração. É importante que o entrevistador dê atenção ao
36
Publicado em 1996 sob o título The seasons of a woman´s life.
75
desenvolvimento do vínculo na entrevista, à manutenção deste ao longo da
situação e nas próximas entrevistas (caso ocorram), bem como ao seu término.
Em seu livro “Masculinities”, Connell (1995) faz uso do método biográfico
e rejeita a noção de que estudar autobiografias é necessariamente uma
preocupação individualista. Para ele, é exatamente o oposto: a utilização do
método por vários pesquisadores sugere ter sempre havido uma preocupação
com a constituição da vida social ao longo do tempo, o que favorece a conexão
entre o pessoal, o histórico e o cultural. No estudo de Connell, história de vida,
estrutura social, narrativa e teoria estão todas trabalhando juntas. Ele tenta obter
a seqüência do relato dos eventos, uma análise estrutural das relações de gênero
e uma análise sistemática “... traçando a construção e a desconstrução da
masculinidade” (Plummer, 2001, p. 165).
Portanto, a utilização da história de vida no presente estudo se justifica à
medida que ela fornece informações acerca da subjetividade e, ao mesmo tempo,
reflete as transformações sociais, exatamente o que se pretende compreender e
analisar aqui.
Porém, como toda situação que envolve um relacionamento interpessoal,
a entrevista biográfica não está isenta dos vieses de gênero e, por isso, é
importante desenvolver uma reflexão sobre os obstáculos a serem enfrentados
quando se entrevista homens.
76
3.1. Entrevistando homens: tecendo algumas considerações
37
Uma vez que este estudo foi desenvolvido sob a perspectiva de gênero,
fez-se necessário prestar atenção à exibição da masculinidade no processo de
realização das entrevistas de história de vida. O pressuposto aqui adotado é que
a masculinidade interfere no modo como os homens comunicam seus conceitos,
sentimentos e percepções enquanto estão sendo entrevistados.
Sendo assim, conforme Schwalbe & Wolkomir (2003), tais exibições da
masculinidade não são meramente obstáculos para obter as informações de que
o pesquisador precisa, mas podem constituir parte dos dados de que ele
necessita. Nesse sentido, observar como o participante responde às perguntas e
como se comporta na entrevista é algo fundamental para compreensão da sua
expressão masculina.
Somente mais recentemente é que a influência das questões de gênero
no processo de pesquisa tem sido objeto de atenção nos estudos desenvolvidos
com homens, particularmente no que diz respeito à relação entrevistador -
entrevistado. A literatura que trata deste tema é ainda incipiente, sendo
necessário produzir pesquisas que intentem compreender quais os impactos que
a masculinidade (ou sua expressão) exerce no processo da investigação (Addis &
Mahalik, 2003). Para Scott (1984)
38
, a crença do “homem como a norma” levou à
suposição de que conduzir entrevistas com homens é algo que não requer
considerações e questionamentos. Isto favorece uma relativa invisibilidade e
37
A maior parte das considerações realizadas neste tópico é formulada com base no
artigo “Interviewing men”, de Michael L. Schwalbe e Michelle Wolkomir publicado em
2003 (vide referências bibliográficas), uma vez que ainda há poucos estudos publicados
sobre o tema, mesmo considerando a literatura disponível em inglês.
38
Apud Smith & Drummond (2003)
77
desinteresse sobre a masculinidade como um fator que interfere na condução de
tais entrevistas.
Particularmente no que diz respeito à relação pesquisador - participante
nas entrevistas que envolvem questões associadas à masculinidade, há trabalhos
indicando que a relação homem - homem favorece respostas mais limitadas (por
ex., em Padfield & Proctor, 1996) e, portanto, é importante criar condições para
promover uma empatia que permita deixar o entrevistado o mais à vontade
possível. Segundo Smith & Drummond (2003), alguns dos homens entrevistados
por eles mostraram-se inclinados a iniciar uma discussão não relacionada ao
tema tratado, a “jogar conversa fora” antes de dar início à entrevista propriamente
dita. Os autores afirmam que embora estas discussões fossem insignificantes
quanto àquilo que realmente os interessava como pesquisadores, a empatia que
foi estabelecida como resultado desta conversa inicial foi crucial para o sucesso
da entrevista. Logo, parece que dispor um tempo inicial para favorecer uma
relação mais próxima com o participante, contribui para que ele faça o seu relato
imbuído de maior disposição para discutir as suas idéias, seus sentimentos e
opiniões com abertura, algo com o qual Autonen-Vaaraniemi
39
(s/d) concorda,
afirmando que a tarefa central “... na “coleta de dados” é tornar as situações de
entrevista o mais confortável possível, permitindo o estabelecimento da confiança”
(p. 2). Por outro lado, cabe pensar que o estabelecimento da empatia é
fundamental para a condução de toda entrevista que trate de tema que envolva
confidencialidade, seja ela com homens, seja com mulheres.
Outro aspecto destacado como importante para reflexão sobre a
39
Faz referência às entrevistas de história de vida que realizou com homens na
Finlândia.
78
condução de entrevista com homens é o local no qual ela se realiza. De acordo
com Brown (2001), ambientes não-familiares podem ameaçar a masculinidade
dos participantes, que podem se mostrar menos dispostos a conversarem
abertamente quando entrevistados em tais locais. Segundo o pesquisador, deixar
o entrevistado escolher um lugar de sua predileção para realização da entrevista,
desde que seja suficientemente reservado para tal tarefa, facilita a diminuição
desta ameaça.
Em conformidade com aquilo que foi discutido nos capítulos anteriores, o
gênero é construído, em parte, através do trabalho de identidade que os
indivíduos realizam e que os demarca como pertencentes às categorias “homem”
ou “mulher”. Por outro lado, a ordem preponderante do gênero requer a posse de
um self essencialmente conformado a ela, isto é, um self que torne o
pertencimento do indivíduo a uma categoria particular algo certo e apropriado:
“... Para os homens, a tarefa dramatúrgica é expressar a posse de um
self essencialmente masculino, um self com desejos e capacidades que
confirmam sua associação com o grupo dominante. (...) Precisamente, o que
deve ser expresso e como isto deve ser feito vai variar de acordo com a idade, a
etnia, a classe social, a orientação sexual, a cultura local e a circunstância
imediata. Um self masculino é, assim, o produto de uma performance talhada
para a situação e público ao alcance. A despeito das variações nos detalhes da
performance, podemos observar similaridades que se originam de uma noção
cultural imbuída das qualidades e capacidades que os homens devem expressar
para serem inteiramente creditados como homens.” (Schwalbe & Wolkomir, 2003,
p. 56)
De modo geral, na cultura ocidental, os homens que reivindicam os
privilégios da masculinidade têm que se diferenciar das mulheres expressando
intenso desejo e capacidade de controlar as pessoas e o mundo. Para consegui-
lo, devem demonstrar um pensamento e uma ação autônomos e racionais,
engajar-se em situações que envolvam risco e excitação, bem como manifestar
79
prazer e façanha (hetero) sexuais
40
(Vigoya, 2001; Connel, 1995; DaMatta, 1997;
Nolasco, 1993).
Portanto, sustentar um self pautado nestas características é conformar-se
àquilo que é considerado “ser homem”. O problema é que entre a performance e
a realidade existe uma contradição, uma vez que são poucos os homens que têm
controle sobre seus mundos: a maioria está em conformidade com aqueles que
correm poucos riscos significativos de quaisquer tipos e geralmente tem mais
fantasias do que conquistas sexuais (Schwalbe & Wolkomir, 2003). Assim, torna-
se compreensível que os homens possam ser inseguros, ansiosos e medrosos,
mesmo quando se esforçam veementemente para construir um self que é a
antítese destas emoções.
De qualquer modo, algumas situações específicas serão consideradas
mais difíceis, especialmente aquelas que impossibilitam a manutenção do
controle sobre a autonomia, a racionalidade e o desejo sexual. Dentre elas,
encontra-se a situação de entrevista, porque ela é tanto uma oportunidade para
que o homem expresse a sua masculinidade, quanto um encontro peculiar no
qual essa masculinidade pode sofrer uma ameaça.
Como oportunidade, a entrevista propicia ao homem que se represente a
si próprio como alguém capaz de manter o controle, a autonomia e assim por
diante. Como ameaça, ela o coloca sob uma situação na qual é o (a) entrevistador
(a) que controla a interação, formulando perguntas que podem colocar em xeque
estes elementos da auto-representação viril do entrevistado (Schwalbe &
Wolkomir, op. cit.). Cabe acrescentar que isto de fato pode acontecer, mas
40
O que implica, portanto, na necessidade de se diferenciar também dos homens
homossexuais.
80
também é possível pensar que, a depender do modo como o (a) pesquisador (a)
conduz a situação, a entrevista pode colaborar para atestar a exibição da
masculinidade do seu entrevistado
41
.
Schwalbe & Wolkomir (2003) propuseram uma distinção entre o que eles
denominaram de “ameaça de base” e “ameaça adicional” à masculinidade numa
situação de entrevista: a primeira se refere à própria situação da entrevista, que é
geralmente definida como aquela na qual um estranho [o (a) entrevistador (a)]
estabelece a agenda, formula as perguntas, controla o fluxo da conversa e busca
informações sobre aspectos mais ou menos íntimos da vida daquele homem. Ao
concordar em participar de tal situação, por mais amigável ou coloquial que ela
seja, este homem está de algum modo abandonando certo controle e se expondo
de forma patente. Mas exatamente pelo fato do privilégio ser delimitado pela
expressão do self masculino, muitos homens podem temer a situação e agir de
modo a evitar a perda do seu controle, o que acarreta algumas dificuldades para o
pesquisador. Quanto à ameaça adicional, os autores sugerem que ela advém de
duas fontes: uma delas é uma linha de formulação das perguntas que pode expor
o self masculino como ilusório, por exemplo, quando se trata de temas que, de
modo implícito, põem a racionalidade do entrevistado em dúvida. Isto pode ser
experimentado por ele como intimidação à sua masculinidade. Outra fonte da qual
este tipo de ameaça pode se originar é a identidade do (a) entrevistador (a):
provavelmente o homem que estiver sendo entrevistado se sentirá mais ou menos
ameaçado se, por exemplo, o entrevistador for homem ou mulher, tiver orientação
heterossexual ou homossexual, bem como nos casos ligados à sua etnia, classe
41
Basta lembrar o que foi discutido no capítulo 2 sobre as dinâmicas das relações que
definem a masculinidade (subordinação, cumplicidade e marginalização).
81
e idade. Sem dúvida, estes fatores são especialmente importantes de se
considerar, mas aqui também é possível pensar que eles devem valer tanto para
a identidade do entrevistador quanto para a identidade do participante (quer dizer,
se ele for branco ou negro, se for heterossexual ou homossexual, se tiver
instrução básica ou universitária, se for um trabalhador braçal ou um grande
empresário etc.).
No entanto, Schwalbe & Wolkomir (2003) afirmam que a percepção
consciente do entrevistado quanto à ameaça ao seu self é irrelevante, pois o que
importa é o modo pelo qual o pesquisador irá avaliá-la, qual a prontidão com que
ele lidará com os problemas que ela produz e a sua habilidade para responder de
modo a tornar a entrevista bem-sucedida. Para eles, a melhor forma de um
entrevistador lidar com a diversidade entre os homens é também a melhor forma
de descobrir padrões entre eles e que, portanto, “... deve-se evitar supor muita
coisa baseando-se em quaisquer destas categorias [etnia, classe, idade] e contar,
ao invés disso, com a própria entrevista para revelar o indivíduo” (p. 58). Isto não
significa, no entanto, para estes autores, que eles estejam desconsiderando as
especificidades da entrevista com homens, uma vez que propõem que o trabalho
de identidade que os homens desenvolvem nela seja tratado como “dado”: há que
se observar como e quando os homens tentam expressar a masculinidade nesta
situação, visando favorecer o desenvolvimento de análises perspicazes das vidas
dos homens como seres “generificados”.
Nesse sentido, os autores revelam que na sua experiência em entrevistar
homens não foi incomum se deparar com um tipo de controle compensatório por
82
parte dos entrevistados na situação da entrevista. Este controle era manifestado
sob três formas: teste, sexualização e minimização.
A manifestação do controle compensatório na forma de teste envolve todo
tipo de tentativa por parte do entrevistado no sentido de expor a agenda ou a
inferioridade do (a) pesquisador (a), como meio de tentar se apoderar da
compreensão do assunto que está sendo tratado. Trata-se, portanto, de testar
tanto a legitimidade do (a) pesquisador (a) como entrevistador quanto a sua
habilidade de manter o controle da situação: se ele demonstrar perturbação ou
“patinar”, o controle se desloca para o entrevistado. Após tecerem estas
considerações, os autores propõem algumas estratégias para manejá-las no
sentido de evitar que a entrevista seja prejudicada. Uma delas é reconhecer as
expressões simbólicas de controle: por exemplo, quando o participante sugere
que a entrevista seja realizada num local insatisfatório (muito exposto a
interferências de toda espécie), solicitar dele que sugira um outro local mais
privativo ou quieto, demonstrando com isso que ele continua no controle, uma vez
que a decisão está em suas mãos. Uma segunda estratégia é deixar que o
entrevistado faça a primeira pergunta, fornecendo-lhe a oportunidade de testar o
pesquisador e se sentir menos desconfortável por estar desistindo do controle
para um estranho. Desafiar o participante a se assumir como um especialista é
outra estratégia sugerida. Neste caso, a idéia é permitir que o entrevistado se
sinta poderoso e no controle de um modo particular, isto é, fornecendo informação
útil: “... você pode me explicar como...?; Você pode me ajudar a entender
como...?” (Schwalbe & Wolkomir, 2003, p. 60).
83
A sexualização é outro modo que o participante tem de exercer o controle
compensatório na situação da entrevista. Ela envolve a manifestação inadequada
de condutas de caráter sexual por parte de alguns homens quando são
entrevistados por mulheres e é uma tentativa de reassegurar o próprio controle.
Pode tomar a forma de flerte, insinuação sexual, toque e comentários sobre a
aparência da entrevistadora. Os autores afirmam que embora parte destas
condutas possa ser interpretada como inocente e inofensiva, há que se considerar
também que elas estão dirigidas à diminuição do poder e da legitimidade da
mulher como pesquisadora. Outro aspecto a considerar quanto à sexualização é
que se torna difícil interpretá-la como problema à medida que a interação entre
homens e mulheres geralmente comporta certa conotação sexual que é tida como
“normal”.
Quanto à minimização, é uma forma de manifestação do controle
compensatório que se manifesta por meio de respostas evasivas ou que não são
fornecidas com a profundidade que se espera. É um modo de tentar desqualificar
a entrevista que pode levar o (a) entrevistador (a) a considerá-la perdida, mas que
pode ser manejada com algumas estratégias. A primeira é deixar a entrevista
transcorrer livremente, mesmo que o participante persista no fornecimento de
respostas vagas, o que, segundo Schwalbe & Wolkomir (2003), permite que ele
se sinta no controle. Após o término, o (a) pesquisador (a) comenta que o
entrevistado lhe forneceu um quadro geral muito bom, mas que ele (a) ainda tem
algumas dúvidas que gostaria de esclarecer. Seria uma forma de admitir que a
experiência do sujeito é complexa e também um modo de permitir com que ele se
sinta na condução do processo. Outra estratégia é evocar o que outros homens
disseram, fazendo com que o entrevistado menosprezador procure superar outros
84
homens que supostamente falaram mais sobre suas experiências, dado o caráter
competitivo que envolve a construção da masculinidade.
Outro aspecto para o qual se deve atentar numa situação de entrevista
com homens é a reticência emocional, algo que Sattel (1976)
42
qualificou como
“estratégia de controle”. Segundo ele, os homens ocultam suas emoções para
mascarar as suas vulnerabilidades e manter uma negociação vantajosa que
implica numa prontidão para deixar um relacionamento se o (a) parceiro (a) lhe
exigir muito. No entanto, conforme Schwalbe & Wolkomir (2003), a dissimulação
ou revelação limitada das emoções nesta situação também deve ser considerada
um ponto-chave da expressão do self masculino hegemônico. Sendo assim, o
melhor a fazer é não tentar explorar imediatamente tópicos que envolvam uma
carga emocional, principalmente se o entrevistador perceber que o participante
está demonstrando muita hesitação. A proposta, neste caso, é retomar o tópico
posteriormente, quando a confiança entre ambos tiver sido estabelecida. Outras
considerações sobre o manejo da contenção emocional abrangem solicitar do
entrevistador que relate a situação específica, perguntando em seguida como ele
se sentiu; ou ainda evocar o que outros homens disseram em situações
semelhantes; ou perguntar inicialmente sobre pensamentos para só depois
explorar os sentimentos ou emoções associados. Por exemplo: “... o que você
acha de ...?” e, após a exposição do entrevistado, acrescentar: “... parece que....
fez você se sentir um pouco... [triste, zangado, embaraçado, feliz, etc]. Segundo
os autores, uma vez que um homem sente que justificou a si próprio dizendo o
que ele pensa, pode se sentir mais à vontade para falar sobre o que sentiu
(Schwalbe & Wolkomir, op. cit., p. 63).
42
apud Schwalbe & Wolkomir, 2003.
85
No que se refere à contenção emocional, é importante que o pesquisador
preste atenção não só no que os participantes relatam na entrevista, mas no
modo como eles dizem e lidam com o que foi dito:
“... não revelar ou expressar emoção quando se fala de assunto e
experiências intensamente afetados [do ponto de vista emocional] é uma conduta
expressiva de gênero que exige análise.” (op. cit., p. 63)
A racionalidade e autonomia exageradas também são tentativas de
controle compensatório por parte de um homem que está sendo entrevistado
sobre tema que envolve profundidade e precisão dos eventos e experiências da
sua vida. Para obter tal relato sem que estas tentativas de controle dificultem o
trabalho, o pesquisador pode permitir a expressão do self masculino
43
no início da
entrevista, atitude que podem favorecer a “deposição das armas” por parte do
participante que, mais relaxado, pode se mostrar disposto a revelar suas
incertezas, confusões e vulnerabilidades.
Embora não aconteça somente nas situações em que homens são
entrevistados, a tentativa de estabelecer um acordo tácito com o entrevistador
visando evitar certa hesitação na expressão do que desejam ou sentem é
bastante comum na situação em que homens entrevistam homens (Schwalbe &
Wolkomir, 2003). Ela geralmente se apresenta na forma de perguntas como “você
sabe o que eu quero dizer, não é?” e pode fazer com que o pesquisador acabe
respondendo positivamente, porque não o admitir colocaria sua identidade
masculina em jogo. Apesar de expressões como essa não implicarem sempre
numa resposta estratégica, os autores dão algumas indicações do que pode ser
feito para evitar a formação de uma “aliança perversa” com o entrevistado. Uma
43
Isto é, do self masculino conformado à ordem de gênero.
86
delas é a de responder que provavelmente sabe o que ele quis dizer, mas que
seria melhor não presumir nada para preservar o sentido do que está sendo dito.
A outra é procurar articular as informações fornecidas pelo entrevistado e depois
solicitar que ele as corrobore ou corrija, fazendo com que perceba que há
alternativas plausíveis.
De modo geral, as estratégias apresentadas por Schwalbe & Wolkomir
para contornar certas tentativas de controle compensatório por parte de um
homem que está sendo entrevistado servem para deixá-lo o mais confortável
possível e, com isso, se sentir bem o suficiente para expor seus pensamentos e
sentimentos. Isto só é atingido quando ele percebe ter criado uma imagem
relativamente duradoura dele mesmo como homem que não será desacreditada
quando ele se expuser de forma mais aberta.
3.2. Participantes
O critério inicial de inclusão dos participantes deste estudo foi a faixa
etária. Foram selecionados para entrevista homens de idade entre 35 e 45 anos.
Outros critérios como o nível sócio-educacional, a orientação sexual, o estado civil
e a profissão não foram controlados intencionalmente, uma vez que objetivo era
procurar num pequeno universo variado aquilo que poderia ser comum segundo a
ótica do gênero. Quanto à faixa etária definida, a suposição foi a de que os
participantes na faixa dos 35 a 45 anos teriam suficiente experiência de vida e
relacionamentos significativos para relatar. Por outro lado, a heterogeneidade de
nível sócio-educacional, de orientação sexual, estado civil e profissão poderia dar
conta de uma variabilidade devida às diferentes condições e singularidade dos
relatos, e também de uma homogeneidade resultante do pertencimento dos
87
participantes ao mesmo gênero.
Para a presente pesquisa, foram realizadas entrevistas com nove
participantes. Destas entrevistas, foram selecionadas quatro para discussão, uma
vez que avaliamos ser possível, por meio delas, mostrar e discutir como dentro de
extratos de onde possivelmente provêm os homens hegemônicos, essa
hegemonia é constantemente negociada.
A caracterização dos participantes foi feita de modo a impedir a sua
identificação. A exposição da história de vida poderia comprometer também
outras pessoas, acarretando uma preocupação em não oferecer informações que
pudessem favorecer as suas identificações.
Participaram do estudo quatro sujeitos, todos na faixa etária entre 35 e 45
anos
44
. Dois deles estão no segundo relacionamento conjugal, outro está casado
(1ª união) e o quarto é separado. Todos têm filhos, sendo que somente um tem
filho também da primeira união. Um dos entrevistados se declara abertamente
homossexual e os demais se apresentam como heterossexuais. Todos têm
formação universitária, sendo que dois são profissionais liberais, um é executivo
numa grande empresa e o quarto é diretor numa micro-empresa da família. Todos
trabalham em suas respectivas áreas de formação.
3.3. Procedimento
Os entrevistados foram contatados pessoalmente ou por telefone, por
meio da indicação de amigos, colegas de trabalho, familiares ou alunos. Foi
explicitado que esta pesquisa tinha como interesse conhecer a história de vida
44
Os quatro participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (em
anexo) cujo modelo foi aprovado pelo Comitê de Ética da PUCSP.
88
de homens entre 35 e 45 anos, observando-se a disponibilidade de cada
sujeito para participar de um a dois encontros, de duração de cerca de duas
horas. Já nesta ocasião foi solicitada a permissão para gravação das
entrevistas.
A realização das entrevistas ocorreu em locais privados e de
conveniência dos participantes, tomando-se os devidos cuidados para a
manutenção do sigilo. Três deles propuseram que a entrevista fosse realizada
em seu próprio local de trabalho e o quarto preferiu ir ao apartamento do
entrevistador, que ficava próximo do prédio onde ele trabalhava.
Os encontros propriamente ditos foram iniciados com uma retomada dos
objetivos do estudo. Na ocasião, foi reafirmado o sigilo pela preservação de suas
identidades.
O número de encontros foi definido de acordo com o desenrolar da
primeira entrevista e / ou da disponibilidade de tempo do entrevistado para a
realização da mesma. De qualquer modo, cada um foi informado sobre a
possibilidade de se fazer mais uma entrevista além da primeira, obtendo de todos
eles a concordância e disponibilidade para fazê-lo. Dos quatro participantes, três
foram entrevistados duas vezes e o quarto apenas uma.
No início da entrevista, foi novamente solicitada uma permissão do
participante para gravação, explicitando-se que a mesma possibilitaria um
registro mais fiel do seu relato.
Antes do encerramento de cada entrevista, o pesquisador procurou
demonstrar disposição para acolher e dar continência aos sentimentos e idéias
89
presentes, cônscio de que a atividade tinha mobilizado diferentes conteúdos no
entrevistado em questão, desde a ampliação da elaboração de suas vivências até
a mobilização de aspectos doloridos das mesmas.
3.4. Instrumento
O instrumento utilizado foi a entrevista de história de vida (ou biografia).
Conforme Flick (2004), neste tipo de entrevista pede-se ao informante que
apresente, em uma narrativa improvisada, a história de sua vida ou a história de
um tema de interesse do qual ele tenha participado ou vivido. A tarefa do
entrevistador é fazer com que o informante conte esta história de modo
consistente, com todos os eventos relevantes, do início ao fim.
Plummer (2001) afirma que a grande vantagem da entrevista de história
de vida é que ela é um processo, ou seja, nunca está completamente pronta.
Sendo assim, o pesquisador deve estar preparado para retornar e fazer novas
perguntas ou esclarecer pontos vagos ou obscuros.
No caso desta pesquisa, os participantes foram estimulados a relatar suas
histórias de vida da forma que quisessem, sem a preocupação de estabelecer
focos de interesse por parte do entrevistador. Na segunda entrevista, buscou-se a
explicitação de informações sobre as quais ainda permaneciam dúvidas e
também um maior detalhamento de tópicos considerados importantes para o
pesquisador, do ponto-de-vista do objetivo do estudo.
De modo geral, ambos os encontros cobriram o total da experiência dos
indivíduos
45
: identificação das práticas que constituem a experiência nos vários
domínios da vida (o que fizeram e como); como ocorreram as transições de
45
Mesmo no caso do participante com o qual foi realizada uma única entrevista.
90
estágio e institucionais; como foram os relacionamentos nestas instituições
(escola, família, trabalho, casamento). Também se buscou evidências acerca das
estruturas de gênero: poder, trabalho emoções e simbolismo nos diferentes
períodos da vida.
Ao final de cada entrevista foi feito um resumo dos acontecimentos com
as sensações e impressões do entrevistador.
3.5. Análise dos resultados
As entrevistas, gravadas e anotadas, foram transcritas na íntegra, para
que se pudesse ter o material completo de cada encontro.
Foram realizadas diversas leituras e sínteses das narrativas, a fim de se
obter um relato condensado que ao mesmo tempo contivesse as informações
mais significativas, na forma apresentada pelo participante. Estes relatos foram
enriquecidos com as notas realizadas pelo entrevistador durante os encontros,
relativas à forma e conteúdo das falas (estrutura da história, parte esquecidas,
mudanças nos indicadores, pausas) e que também serão apontadas para análise.
As narrações individuais foram codificadas e redigidas no formato de
estudos de caso que foram analisados a partir de três chaves: a) seqüência da
narrativa dos eventos; b) análise dinâmica, identificando o fazer e o refazer da
masculinidade; c) análise estrutural, usando indicadores de gênero (poder,
trabalho, emoções e simbolismo). Após esta etapa, realizou-se uma reelaboração
dos estudos de caso, de modo a retratar o entrevistado e refletir os significados
deste retrato no que se refere à mudança social. Por fim, procedeu-se o reexame
91
dos estudos de caso em grupo: identificação de semelhanças e diferenças na
trajetória; localização enquanto grupo(s) em um movimento social.
Foram então produzidas abstrações que refletem uma percepção de todo
o grupo sob a perspectiva de gênero e, ao mesmo tempo, preservam a
individualidade de cada vida, refletindo os significados no que se refere à
construção pessoal da própria masculinidade.
92
Capítulo 4 Análise e Discussão
A abundância de informações provenientes do uso de histórias de vida
torna a apresentação e análise dos resultados uma questão de escolha e
elaboração, de modo a responder ao problema que se propôs investigar, não
caindo na tentação de análises profundas caso a caso e, ao mesmo tempo,
expressar a individualidade dos mesmos.
Cada história comporta uma riqueza psicodinâmica que, se explorada,
favoreceria muitas outras possíveis interpretações. Como o propósito deste
estudo é compreender a negociação da masculinidade no plano dos
relacionamentos e, a partir disso, ampliar a análise com o intuito de identificar
aquilo que pode ser atribuído às prerrogativas da masculinidade hegemônica, a
discussão terá como foco a intersecção entre os níveis interpessoal e social, não
interessando, portanto, os aspectos intrapsíquicos.
Em vista do exposto, este capítulo foi organizado de modo a,
primeiramente, apresentar uma síntese de cada história de vida, seguida de uma
análise dinâmica que tentará identificar os movimentos de construção da
masculinidade, seu fazer e refazer ao longo do tempo, bem como o projeto de
gênero envolvido. Após esta discussão, será apresentada uma discussão
reflexiva por meio de nova análise das histórias em conjunto, buscando identificar
as semelhanças e diferenças entre as trajetórias e localizá-las enquanto grupo
num movimento social (meta análise sob a ótica do gênero).
Esta forma de apresentação da descrição e análise das biografias leva
em conta o compromisso ético de não expor os participantes que se propuseram
93
a colaborar com o trabalho, bem como as demais pessoas que compartilham
(compartilharam) estas histórias.
De modo geral, os participantes se mostraram disponíveis e solícitos
desde o primeiro momento da proposta para efetuarem um relato das suas
histórias de vida, antecipando seu posicionamento frente à entrevista. Com
exceção de um, que preferiu realizar a entrevista na Universidade, os demais
escolherem os próprios locais de trabalho para esta tarefa. Praticamente todos
perguntaram logo no primeiro contato por telefone sobre a duração da entrevista,
procurando marcar exatamente o tempo que o pesquisador apontou como
necessário (uma hora e meia) e dando a entender que precisavam estabelecê-lo
com antecedência por conta de outros compromissos. E neste momento já era
possível perguntar: tratava-se de uma forma de controle?
94
4.1. As biografias
WILLIAM
William tem 35 anos, é casado (2ª união), tem um filho de 1 ano e meio e
está “grávido” de outro. Tem formação universitária com pós-graduação e MBA no
exterior. Exerce o cargo de gerente executivo de vendas numa grande empresa.
Inicia o seu relato de história de vida se situando dentro da configuração
familiar: é o caçula de cinco filhos e o único homem. Além disso, há diferença de
16 anos com a irmã mais velha e de 8 anos com a mais nova das quatro.
Lembra que sempre chamava o pai quando tinha pesadelos à noite, na
infância, e que era ele que costumava levá-lo junto com as irmãs para passear no
Parque do Ibirapuera, num shopping center e também para o litoral, onde a
família tinha um apartamento. Admite que embora o pai sempre tenha sido
atencioso e cuidadoso com todos os filhos, houve uma diferença clara em relação
a ele por ser o único homem e o filho temporão. Refere-se ao pai como seu
“companheiro” e como um homem pouco rígido, embora faça críticas a ele pelo
fato de não o ter deixado trabalhar antes que terminasse a faculdade: “... meu pai
dizia: ‘meu filho não precisa trabalhar’ e isso era muito cômodo!” (com ar de
sarcasmo).
Ao falar da falta de rigidez do pai, admite que é rígido consigo próprio
desde criança: “... até hoje a maior cobrança que eu tenho é de mim mesmo, não
é dos outros”. Admite identificação com o pai no que se refere à honestidade,
inflexibilidade e impaciência do mesmo. Além disso, admira-o pelo valor que ele
dá à família e pelo “sentimento de família” que ele demonstra ter. Quanto à mãe,
95
William afirma que ela era meio distante, depressiva, e que não ligava para os
filhos, deixando-os “meio largados”. Declara ser parecido com ela quanto à
incapacidade de expressar os sentimentos.
INFÂNCIA E MENINICE
No início da infância teve por companheira nas brincadeiras infantis a filha
da empregada, um ano mais velha. Fez o pré-primário
46
em escola pública, junto
com esta garota. Iniciou o primário
47
numa escola particular próxima a casa dele e
depois foi estudar num conceituado colégio de São Paulo 2ª à 4ª série no qual
já sofreu discriminação dos colegas por não saber jogar futebol. Acontece seu
primeiro “namoro”, coisa de criança, mas que dá a entender se tratar de uma nova
companheira para um menino que foi discriminado pelo grupo masculino devido à
falta de habilidade no jogo.
ADOLESCÊNCIA
Entre os 11 e os 17 anos foi estudar em outro colégio, também
conceituado, que era mais próximo de sua residência. Gostou inicialmente da
mudança e começou a participar de acampamentos com os novos colegas. Logo
surgiu um problema de insuficiência hormonal que provocou significativo atraso
no seu desenvolvimento físico e cujo tratamento persistiu por toda a sua
adolescência. Além disso, teve que usar um colete ortopédico por causa de um
problema de coluna e passou por três cirurgias plásticas. Isto tudo afasta os
colegas dele (sic). Pela diferença de tamanho e aparência mais debilitada é alvo
de preconceito e se retrai. Em plena adolescência afirma ter apagado a sua vida.
Relata estes incidentes de forma comovida, embora contido na sua expressão:
46
Atual ensino básico
47
Atual ensino fundamental
96
seu relato foi entremeado por silêncios nos quais dava a impressão de estar
refletindo sobre tudo o que acontecera.
INICIAÇÃO SEXUAL, NAMOROS, VIAGEM E AVENTURAS COM OS AMIGOS
Sua iniciação sexual aconteceu aos 18 anos com a sua primeira
namorada, que era “gordinha” e discriminada como ele: “... Não foi paixão a
primeira vista. Foi aquela coisa, tipo: ninguém olhava pra você, ninguém dava
bola, e quando você via uma pessoa que começava a olhar um pouco diferente,
você vai um pouco por exclusão..... E com ela acho que também foi a mesma
coisa”. O relacionamento durou cerca de um ano e meio e William chegou a
acreditar que ela era a mulher da vida dele, que eles iriam se casar: “... quando eu
ficava longe dela dava saudade, vontade de ficar junto”. O namoro terminou
devido ao falecimento do pai da namorada, algo que mexeu profundamente com
ela, deixando-a, nas palavras de William, “totalmente pirada”. O rompimento lhe
deixou muito marcado e traumatizado, chegando a pensar em suicídio.
Depois de um tempo, inicia um novo namoro, agora com uma garota
completamente distinta da anterior sob o aspecto estético. Tratava-se de uma
moça “superbonita”, mas que não oferecia mais do que a sua beleza: ... ela era
um vaso de flores”. Resolveu terminar o namoro e ir fazer intercâmbio no exterior.
Durante o relato deste episódio, se dá conta de que a viagem foi uma ótima
desculpa para terminar um namoro que não lhe agradava. A experiência em outro
país foi considerada fundamental: “... consegui ficar longe dos meus pais e tive
que me virar sozinho”.
Logo que retorna ao Brasil, é incentivado pelo pai a sair de carro com os
amigos. William saía à noite, o carro do pai com o tanque de gasolina cheio, e só
97
voltava quando amanhecia e com o tanque praticamente vazio. Ele e os amigos
chegavam a rodar cerca de 30km numa noite. Não era dado a disputar rachas,
ficava passeando na região da Rua Augusta. Afirma que se policiava nestes
passeios e que ele e os amigos eram “uns bobões” para os quais nenhuma garota
dava bola. Eles iam para as boates, assistiam shows de striptease e os amigos
bebiam, mas ele não. O pai dava dinheiro para ele gastar com o que quisesse
porque se preocupava com a personalidade introvertida de William.
ESCOLHA PROFISSIONAL, FACULDADE E TRABALHO
William narra que assim que retornou do intercâmbio iniciou o curso de
Administração de Empresas. Não se detém em detalhar o que o levou a escolher
esta profissão e tampouco sobre a época de faculdade. Apenas comentou que
depois de formado foi trabalhar inicialmente no ramo de consultoria, mas não
gostou nem um pouco. Também se queixou por não ter podido começar a
trabalhar antes de se formar, algo que o pai não permitiu.
OS DOIS CASAMENTOS
Conheceu Beatriz, sua primeira esposa, na mesma época em que iniciou
a faculdade. Embora tenha ficado meio apaixonado no início do relacionamento,
percebeu que havia muitas diferenças entre eles para que o namoro fosse em
frente. No entanto, como o sexo era bom (sic), manteve o relacionamento e
acabou se casando: “... graças a Deus me separei logo. Ficamos mais ou menos
um ano e meio casados. Eu pedi o divórcio”. As diferenças que havia notado no
início do namoro foram se acirrando a tal ponto que ele não agüentou. Depois
disso, teve outras namoradas, mas nenhum relacionamento que ele considere
importante. Até que foi apresentado à prima de um colega, Luisa (atual esposa),
98
com quem iniciou um namoro. Com o tempo, passaram a tecer planos de
casamento e filhos, mas tudo se modificou porque Luisa engravidou. Eles foram
morar juntos e convivem até hoje, aproximadamente dois anos e meio de vida em
comum. Dessa união nasceu Lucas e agora aguardam a chegada de um novo
bebê. William revela estar muito feliz quanto a este relacionamento, embora não
tenha entrado em detalhes sobre o que do relacionamento colabora para a sua
satisfação.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAMÍLIA, A PATERNIDADE E ELE PRÓPRIO
Descreve-se como um homem muito preocupado com a família que
formou, afirmando não viver o presente e ficar com a cabeça no amanhã. Queixa-
se por não conseguir “demonstrar muito” seus sentimentos pela esposa e pelo
filho. Como pai de Lucas, afirma querer evitar os erros que o seu próprio pai
cometeu: “... vou tentar pegar todos os defeitos que meu pai cometeu, e são
muitos, e tentar não passar para os meus filhos”.
Reconhece que tem um defeito com o qual precisa trabalhar muito: “...
sou muito impaciente, principalmente com criança muito nova: enche o saco!”
Afirma que demonstra esta irritação facilmente, que não consegue segurar. Lucas
tem predileção pelo avô (sic) e sobre isso William comenta que costuma dizer
brincando para Luisa: “... o pai e uma mosca na parede é a mesma coisa, ou seja,
os dois não servem pra nada!” No entanto, logo depois ele se lembra de um
episódio com o filho e o relata visivelmente emocionado, quase chorando: “... foi
num sábado. A Luisa tinha saído e o Lucas estava no berço, no quarto ao lado,
enquanto eu estava deitado na minha cama. De repente, eu o ouço chamar pela
mãe. Ele chama, chama algumas vezes e aí começa a chamar por mim
99
(comovido). Eu fui até lá e o peguei no colo.” Depois de um tempo em silêncio,
acrescenta: “... parece que eu sou importante para o meu filho”. Confirma que
somente após este episódio é que se convenceu disso. Passa, então, a relatar
sobre o bebê que vai nascer e que também será um menino: “... isso me deixa
mais preocupado ainda. Se eu sou preocupado com um, imagina com dois! Vou
ter que fazer terapia duas vezes por semana! (rindo) ... Vou precisar de
tranqüilizante! (...) A minha preocupação é do ponto de vista financeiro, porque de
resto eu acho que sou um bom pai. Apesar de tudo, eu consigo ser carinhoso e
tudo mais”.
Reconhece ter mais facilidade de se relacionar com mulheres do que com
homens e atribui isto à convivência com as irmãs. Por outro lado, o
relacionamento com os homens comporta particularidades: “... acho que a gente
acaba vendo os homens sempre como competidores”.
Até hoje mantém algumas amizades do final da adolescência, embora
admita não ter costume de cultivar suas amizades. No trabalho, segundo ele, só é
possível ter colegas. Relaciona-se principalmente com homens no âmbito
profissional e diz que as pessoas gostam de trabalhar com ele. Passa a relatar
um pouco do seu cotidiano de trabalho e diz que a maior parte das tarefas
resume-se à resolução da burocracia interna da empresa e pouco envolve o
trabalho com o cliente, algo que é dito com um tom de insatisfação claramente
visível. Tem sob sua liderança uma grande equipe de profissionais. Segundo ele,
o seu desânimo não diz respeito ao salário, que é considerado bom demais para
as funções que exerce. O que ele sente falta é de desafios (sic).
100
Tece considerações sobre como os homens hoje estão lidando com a
presença cada vez mais maciça das mulheres no mercado de trabalho: “... eu
acho que nem os homens e nem as mulheres sabem lidar com essa nova
realidade. (...) O homem não sabe lidar quando a mulher ganha mais do que ele e
as mulheres não sabem lidar quando elas ganham mais do que os homens”.
Afirma que com Beatriz, a sua primeira esposa, foi isso que ocorreu: “... a mulher
acha que porque ela ganha mais não precisa dar satisfação para o homem”.
Declara conhecer mulheres executivas que são um “fiasco” como mãe e esposa:
“... se você observar as mulheres que são bem sucedidas, alguma coisa tem: não
é casada, é infeliz no relacionamento... não são equilibradas”. Observa que
muitas mulheres na faixa de 35 a 40 anos que estão nesta situação e que são
auto-suficientes acabam causando medo nos homens: “... elas acabam causando
literalmente medo nos homens.... Eu acho que os homens ficam com medo de
uma mulher muito independente, que quer fazer tudo... porque os homens de
alguma maneira gostam que as mulheres vejam neles um porto seguro. Assim:
‘puxa, pelo menos pra isso você depende de mim’. Nem que seja pra trocar o raio
do pneu.... ou abrir uma latinha” (ri). Lembra de uma propaganda na qual a mulher
consegue abrir a lata de palmito, mas que depois ela a fecha novamente e pede
para o marido abrir.
Admite que o homem deve considerar mais o ponto de vista da mulher,
deve ser “mais sensível”, ao mesmo tempo em que a mulher “tem que ser um
pouco mais independente” , mas, por outro lado, afirma que “cada um tem o seu
papel na sociedade”. Reconhece que pode estar sendo machista ao fazer tal
afirmação e tenta exemplificar aquilo que disse com a situação na qual vive uma
das suas irmãs e o cunhado: “... ele cuida da casa e dos filhos enquanto ela
101
trabalha fora. Ela, além de gerar o filho, além de fazer isso, ainda dá o sustento da
casa. É como se ela falasse: ‘olha, eu não preciso de você! Eu poderia muito bem
te substituir por uma babá que daria a mesma coisa’”. Quando é indagado sobre a
situação inversa, que já foi mais comum, da mulher ficar em casa cuidando dos
filhos enquanto o homem era o provedor financeiro da família, William argumenta:
“... é a mais comum porque pra sociedade é aceito você ter a mulher cuidando dos
filhos. É o que é o mais aceito. (...) Eu acho que o que tem que haver é um meio
termo: cuidar dos filhos, cuidar da casa, tem que ter um pouco mais de
responsabilidade do pai também, como o fato de estar trabalhando, ter uma
atividade...”
William Análise do Caso
Iniciou seu relato chamando a atenção para o fato de ser o único homem
entre os filhos e o caçula, com significativa diferença de idade entre ele e a mais
nova das irmãs. Mais adiante na sua narração, afirma ter sido tratado
diferentemente pelo pai por conta disso. Trata-se aqui da anunciação de um
projeto masculino que, já de início, comporta privilégio pela condição de William
como único filho homem da família. Ao mesmo tempo, considerando que a
masculinidade comporta negociações ao longo do tempo, observa-se já de início
que as primeiras negociações empreendidas por William se deram dentro da sua
própria casa, em relação às irmãs e à filha da empregada, sua principal parceira
nas brincadeiras. Embora estes relacionamentos não tenham sido detalhados por
William, é possível depreender da situação que parece que ele viveu uma posição
de destaque enquanto homem no meio dessas mulheres desde muito cedo.
William nasceu para ser o masculino hegemônico.
102
Destaca-se a referência feita por ele à vinculação com o pai, que o
protegia, embora seja possível entender que essa proteção não era
necessariamente positiva, já que como vemos posteriormente ele mesmo
escarnece dessa figura quando refere que “o pai e uma mosca na parede eram a
mesma coisa”.
Outro ponto que emerge da narrativa de William sobre a sua infância, e
que se realça ainda mais na adolescência, são os problemas de saúde
enfrentados no período entre os 11 e os 17 anos. Considerando-se que o corpo
está no cerne da constituição do próprio self e da construção da masculinidade,
sendo que a experiência de ser masculino envolve o reconhecimento de um
senso corporal (Connel, 1995; 2000; Whithead, 2002), os problemas de saúde de
William afetaram diretamente o seu corpo e puseram em suspenso a
possibilidade dele participar dos jogos e brincadeiras com os parceiros da
infância. Isto lhe propiciou a primeira experiência de exclusão de um grupo no
qual teria tido a oportunidade de empreender suas primeiras relações sociais de
competição e cooperação, aspectos fundamentais no processo de constituição de
sua masculinidade. Além disso, ter tido de lidar com um corpo cujo desempenho
ficava aquém das expectativas de força, dureza, resistência e competência física
relacionadas ao masculino numa fase em que o grupo de iguais está em pleno
processo de experimentação destas possibilidades, certamente favoreceu uma
definição de si mesmo como pessoa e como menino / rapaz naquele momento
bastante peculiar: a noção de não poder, de depender, de estar sempre à mercê
do outro, e, consequentemente, de subordinação nas dinâmicas relacionais como
um todo.
103
É de se entender o que William relata sobre ter apagado sua vida neste
período, ao que é possível interpretar como tendo se sentido, de fato, apagado,
sem vida, a partir de um corpo que não serve, mas que é servido. Além disso, é
possível supor que em plena adolescência o seu corpo era a negação do seu
protótipo corporal masculino.
A referência que ele faz à iniciação afetiva e sexual com uma garota
também excluída do grupo chama a atenção. Neste caso, William tenta
inicialmente desqualificar a importância deste relacionamento, afirmando que foi
uma escolha por exclusão de ambos, uma vez que eram igualmente
discriminados pelo grupo de pares. No entanto, logo em seguida admite ter se
apaixonado a ponto de pensar em suicídio após o término do namoro.
Obviamente seria possível tecer considerações sobre os aspectos psicodinâmicos
da personalidade dele nesta situação, mas o foco desta análise é a construção da
masculinidade a partir dos relacionamentos interpessoais do entrevistado. Neste
caso, uma interpretação possível é que o relacionamento com esta garota parece
ter redimido William da marginalidade a que ficou submetido por conta dos seus
problemas de desenvolvimento. Foi a partir daí que seu projeto de gênero
retomou os trilhos para uma condição masculina hegemônica que haviam sido
desviados pelos percalços do seu desenvolvimento físico. Não importa se a
garota era gordinha e tão excluída quanto ele, e sim o fato de ela ter colaborado
para esta “retomada de prumo”.
O episódio com a namorada seguinte, por outro lado, favorece o
entendimento de que ele já tinha validado a própria masculinidade dentro dos
parâmetros idealizados e, portanto, seus relacionamentos afetivos e sexuais
104
passavam a ter outra conotação e comportavam outros tipos de exigência. Assim,
não interessa ficar com uma mulher lindíssima se ela não tem nada a acrescentar
a não ser a sua beleza.
A narração que William faz sobre as aventuras noturnas com os amigos
no carro do pai remete àquilo que Connell (1995) afirma sobre as características
socialmente idealizadas do que seria um homem bem-sucedido. Dentre elas, se
destacam a de estabilidade econômica e excelente amante heterossexual.
Conforme discutido, as dificuldades anteriormente enfrentadas por William
ameaçaram o seu [do pai e da família] ideal hegemônico e, portanto, havia
necessidade de garantir condições para lidar com esta ameaça. Quando o pai lhe
incentiva a sair com os amigos, oferecendo-lhe dinheiro e o carro com o tanque
cheio, é possível pensar que está em jogo a manutenção da sua posição na
ordem de gênero. Dentre as condições necessárias para garanti-la estão a prova
do seu status econômico e da sua condição de amante heterossexual. O pai e os
amigos exercem um papel fundamental na organização destas provas.
A centralidade que a família tem no relato da história de vida dele é
evidente. A família a qual se refere e atribui importância é aquela pautada por
valores tradicionais e que tem sustentado a divisão de poder entre os gêneros, e
assim, a ordem social maior. William deixa claro, por exemplo, o que pensa sobre
mulheres que fogem aos estereótipos tradicionais (“... se você observar as
mulheres que são bem sucedidas, alguma coisa tem: não é casada, é infeliz no
relacionamento... não são equilibradas”), sobre a mulher ter que dar satisfação ao
homem, sobre o homem não saber lidar com a esposa que ganha maior salário,
enfim, homens e mulheres têm o seu papel na sociedade: o homem deve ser
105
mais sensível ao ponto-de-vista da mulher, a mulher deve ser mais independente,
mas, no final das contas, a ordem de gênero deve se manter inalterada.
Ao falar sobre a paternidade, remete-se ao próprio pai, afirmando querer
evitar os erros que ele cometeu em relação aos seus próprios filhos. O modo
como William se refere ao pai comporta ambivalência, uma vez que ele é
apresentado inicialmente como seu companheiro, alguém não-rígido e carinhoso,
e, ao mesmo tempo, como superprotetor e responsável pelo adiamento da sua
iniciação profissional. A característica superprotetora que William atribui ao pai
poderia ser entendida como não-favorecedora do seu desenvolvimento como
indivíduo adulto. No entanto, conforme discutido, parecia estar a serviço de uma
tarefa menos visível, isto é, o favorecimento de uma masculinidade sustentada
por certos privilégios.
Quando relata o episódio no qual seu filho, um bebê, o chama após
algumas solicitações feitas à mãe sem sucesso, reconhecendo, emocionado, que
tem importância para o filho, deixa entrever um conflito ligado às expectativas de
ser um bom pai (= bom provedor) e um pai carinhoso, que se deixa afetar pelo
filho e deseja conseguir expressar o seu carinho por ele. A interpretação de que
se trata de um conflito (prover e dar carinho não são aspectos excludentes) está
baseada numa das crenças que sustentam a masculinidade tradicional, isto é,
que um homem não se deixa tomar pelos afetos, o que implica numa performance
como pai na qual a expressão do carinho e do amor se faz por intermédio da
provisão (Bernard, 1981).
106
EM SÍNTESE
O eixo da entrevista de William está no seu fazer, isto é, ele se ateve
praticamente a relatar o que fez na e da vida. As dificuldades de desenvolvimento
dele também permitem identificar aspectos mais individuais que certamente
favoreceriam uma análise estritamente psicológica sob a ótica psicodinâmica,
que, conforme foi esclarecido no início do capítulo, não é o foco do trabalho..
O discurso dele está permeado pela heteronormatividade, isto é, o seu
projeto masculino tem sido pautado numa perspectiva convencional das relações
de gênero e numa visão tradicionalista da família; na identificação do homem com
aquele que pensa, planeja, compete e ascende no trabalho, provê a casa e o filho
como a maneira correta de viver e, com isso, garante a ordem do mundo.
O seu projeto também esteve permeado pela tarefa de lidar com mulheres
que fugiam do estereótipo feminino, especialmente aquelas com as quais
conviveu mais intimamente (mãe e primeira esposa).
Ele nasce com todas as condições para se tornar legítimo representante
da masculinidade hegemônica. E então, subitamente, esta possibilidade é
ameaçada por um corpo que não corresponde a ela. Quais os mecanismos de
que lança mão para garantir permanecer com o privilégio? O pai dele, por
exemplo, lhe oferece o carro, dá dinheiro para ele gastar com as mulheres,
incentiva-o a fazer aquilo que um homem deve fazer. Com isso, ele se distancia
da condição de uma masculinidade marginalizada (na qual acabou se colocando
por conta dos problemas de saúde que teve).
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Outro aspecto a se destacar na biografia de William é que ela exemplifica
aquilo que Connell (1995; 2005) argumenta sobre a mobilidade das relações
hegemônicas e de como elas se originam em situações particulares dos
relacionamentos do indivíduo. Não havendo posição fixa, há alternância nas
vivências que ele tem ao longo da vida. William demonstra claramente esta
transição entre uma posição hegemônica e posições subordinadas ou
marginalizadas: ora ele se encontra numa posição de poder, status e comando,
ora ele vivencia a marginalidade em relação aos demais.
108
RENATO
Renato iniciou o seu relato se apresentando: tem 41 anos e nasceu no dia
26/03/64, lembrando que isto ocorreu poucos dias antes da “revolução”. É
separado e tem um menino, Igor, hoje com 7 anos. Tem formação universitária e
trabalha com a mãe numa firma de recursos humanos que é de propriedade dela.
Morou com os pais até os 21 anos, quando estes se separaram, e tem
uma irmã que é dois anos mais nova que ele.
SOBRE A FAMÍLIA
Afirma que sua mãe sempre lhe deu condição para fazer o que quisesse.
Seu pai era “chofer de praça” quando ele era pequeno e trabalhou muitos anos
nesta atividade. A mãe trabalhava no ramo de recursos humanos, o mesmo ramo
da empresa que eles têm hoje, como promotora e demonstradora de
supermercado.
Esclarece que sempre teve muito amor e carinho dos pais. Afirma que
sua mãe sempre foi mais “rigidona” e que o pai era “mais na boa”. Sobre a mãe,
diz: “... da casa, ela que proveu tudo ... a gente pensava em alguma coisa, a gente
tinha ... ou batalhava para ter .... quando não tinha, tinha que entender”. Ele
estudou em colégio público do pré-primário até a 8ª série. Era o pai quem
buscava ele e a irmã na escola e fazia o almoço. Afirma que, com ele, aprendeu a
jogar bola, empinar pipa, andar de carro, conversar mais. Diz que o pai era mais
flexível que a mãe: “... era aquele cara que sempre estava ali do lado,
companheirão”. A mãe é apresentada como sendo mais rígida e, ao mesmo
tempo, mais carinhosa e afetiva. Também era a responsável por determinar os
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rumos da família: “... ela é que era a que ... olha ... vamos por aqui, vamos por
aqui...” e, por isso, segundo ele, é muito mais bem sucedida que o pai hoje.
Afirma que a referência em relação à mãe era clara: “... grana era com ela”.
Relata que o início da vida familiar foi muito simples. Todos dormiam no
mesmo quarto. Lembra de uma situação de medo que vivia nessa época, na qual
ficava vendo vulto na janela do quarto onde ele e a família dormiam: “... só
pensava em chamar meu pai.... Eu pensava: meu pai é forte, tal... Meu pai tá aqui.
Eu sei que se acontecer alguma coisa.... Então eu me sentia seguro, ficava
normal”.
Quanto ao relacionamento com a irmã, diz que os dois brigavam muito,
mas que se davam bem. Lembra-se de ter o seu grupo de meninos e ela o de
meninas, sendo que eles não se misturavam.
Faz referência ao modo como era tratado em casa: “... eu em casa, como
eu era mais velho, então.... minha mãe.... eu sempre fui mais privilegiado. Às
vezes é o caçula, mas dessa vez fui eu... E aí ela [Laura, a irmã] sentia isso muito.
Tudo o que acontecia de errado ela ia e me dedurava. Então, tinha essa rixinha,
né”.
INFÂNCIA E ESCOLA
Descreve a infância como um período de muitas brincadeiras e muita
diversão. Lembra de correr na rua com os amigos, andar de bicicleta e jogar bola
no campo próximo à sua casa.
Quanto à escola, diz que suas lembranças são escassas. Afirma que se
lembra de que tinha que cantar o hino e fazer fila para entrar na classe. Relata ter
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lembranças de ter chorado algumas vezes, quando trocou de escola, de ter ficado
mal, mas se lembra de que logo depois já estava brincando com os amigos e
entrava na rotina.
ADOLESCÊNCIA
O que mais consegue lembrar da adolescência é que namorava, surfava
e estudava, sendo que com 18 anos entrou no exército para servir no CPOR
(Centro de Preparação de Oficiais da Reserva).
Um episódio particularmente lembrado por Renato é de uma briga que
teve com Laura, sua irmã, quando tinha 17 anos. Diz que já havia tido outras
brigas feias entre os dois, mas que aquela foi marcante: “... uma vez a gente se
pegou ... de mão, mesmo. E a Laura é grande .... e ela jogava capoeira, namorava
um cara que era capoeirista... e ela veio com aqueles negócios ..... ah, a primeira
vacilada que ela deu, eu dei um murro nela e a joguei na porta da cozinha. Eu virei
as costas, só senti um negócio nas costas. Quando eu fui ver, era uma faca. Ela
me jogou uma faca.... O negócio foi sério.... Daí pra frente foi uma loucura. Ela
teve que correr do apartamento porque eu queria pegar ela de qualquer jeito”. A
seriedade da situação foi tão grande que, segundo ele, a partir dali ambos
passaram a se respeitar e nunca mais brigaram.
SEPARAÇÃO DOS PAIS
Um fato que marcou Renato no início da vida adulta foi a separação dos
seus pais: “... morei com meus pais até os 21 anos, quando eles se separaram.
Isso aí pra mim foi um processo muito doloroso”. Segundo ele, desde que era
criança a família costumava viajar nas férias escolares. Eles pegavam o carro e
111
ficavam um mês viajando e acampando. Conheceram quase todo o país e
também países como Paraguai, Uruguai e Argentina. Porém, aos 16 anos, os pais
quase se separaram e ele ameaçou se suicidar caso eles o fizessem: “... minha
mãe diz que eu tive um chilique. Eu disse: ‘oh, se vocês se separarem eu vou me
matar’.... Eu não conseguia conceber a minha família separada”.
EXÉRCITO
Sobre o que o atraiu para o Exército, afirma que principalmente a
possibilidade de fazer atividades físicas. No início, não gostou nem um pouco de
ter que usar farda, achava uma “encheção de saco”, mas diz que hoje gosta e que
até comprou todo o aparato militar de novo há pouco tempo. Ele é oficial R2 (da
reserva) e mantém vínculo e continua participando dos treinamentos na selva,
além de outras atividades: “... tô voltando a me envolver com isso daí (atividades
do CPOR) .... estive trabalhando com isso ... gosto, é uma coisa que eu realmente
amo pelo que é, entende? Pela ideologia.... não aquela coisa de guerra, não. É o
respeito pelas pessoas, é a educação.... que é o que eu vejo mais diferente da
polícia, você entendeu? A coisa da disciplina .... muita coisa mudou em mim
depois que eu estive lá. (...) Eu passei um período meio revoltado, eu queria
sair.... Minha mãe até arrumou um cara para me tirar, mas eu falei: não, eu vou,
eu quero”.
Embora admita que no início da prestação do serviço militar sofreu um
choque com todas as normas rígidas que recebia, afirma ter se acostumado
posteriormente e reconhecido o significado de pertencer ao CPOR: “... depois que
você se acostuma, você vê o retorno que isso vai te dar. Aí eu falei: pô, legal! Vou
sair um oficial, não vou sair um soldado. Então, é um status ... e CPOR ainda hoje
112
é uma instituição valorizada. Então, tudo isso me ajuda, sempre me abriu portas.
É o que sempre falavam pra mim: isso nunca vai te diminuir, vai te abrir portas.
Então... ótimo .... pra mim só foi uma coisa que sempre acrescentou muito na
minha vida”.
Diz, finalmente, que o exército é uma tradição de família, da parte da mãe
dele, e que por isso tem esse significado especial: “... então, eu queria a minha
espada. Você vê a espada de honra .... tanto é que eu mostrei para o Igor [filho]
esse final de semana e ele ficou maluco”.
NAMOROS
Guarda muitas recordações das suas ex-namoradas. Segundo ele,
sempre se envolveu muito nos relacionamentos, procurava ficar junto, participar.
Sempre foi muito namorador e diz que sua mãe costumava comentar que
ele precisava “tirar o sexo da testa”.
Seu namoro mais rápido durou um ano, enquanto que o mais longo durou
seis. Refere ser um homem que se dedica aos seus relacionamentos. Como
exemplo, cita uma namorada, Adriana, que era bailarina. Afirma ter ido fazer balé
para ficar mais próximo dela, chegando a se apresentar num famoso teatro em
São Paulo e também numa cidade do sul do Brasil, onde ganhou um prêmio.
O balé encenado era “O Guarani”. Ele era o Peri e ela a Ceci. Segundo
Renato, na estréia as duas primeiras fileiras estavam lotadas apenas com os
amigos dele. Sua preocupação era quanto ao que eles poderiam aprontar durante
a apresentação, uma vez que os conhecia bem e sabia que eles iriam “aprontar
alguma”. Na hora, diz ter pensado: “... até que ponto eu cheguei por causa de uma
113
mulher? Eu estou me expondo pra que?” Após curto tempo de reflexão,
respondeu para si mesmo: “... não é só por ela. Eu estou aqui porque estou
curtindo o que eu tô fazendo”. Tece considerações sobre o episódio: “... até que
ponto vai... O que eu sentia era legal para mim, também pra ela. Não deixa de ser
uma prova de amor. Ela sabendo do jeito que eu pensava. Mas eu estava ali,
numa boa”.
Diz que acabou servindo de alavanca para que seus amigos quebrassem
um pouco o preconceito: “... eles passaram a curtir ir a peças de teatro,
espetáculos de dança....”. Afirma ter visto que tudo era realmente preconceito
dele mesmo. Começou a ter mais amigos, a ter maior participação sobre assuntos
e opiniões nas conversas com as mulheres (sic): “... a sensibilidade é de acordo
com a pessoa. Falar para xavecar é fácil, sentir mesmo é difícil”.
O relacionamento durou seis anos, após Adriana ter lhe cobrado uma
decisão sobre o casamento, uma vez que, para ela, só fazia sentido continuar o
relacionamento se fosse para eles se casarem. Ela terminou a relação, após um
tempo ele pediu para reatarem, alegando que queria se casar com ela e logo
depois ele próprio decidiu terminar. Alguns meses após esta separação, Renato
refere ter espreitado Adriana no clube no qual ela fazia treinamento físico após ter
tido notícia de que ela estaria namorando outro rapaz. Comenta ter ficado muito
irado ao saber desse namoro.
Dentre seus relacionamentos mais destacados, recorda-se que em 1995
conheceu uma moça, Glória, no salão de beleza de um amigo dele. Afirma ter se
enrolado com esta mulher, que morava no sul do Brasil. Logo que se
conheceram, ambos se internaram num flat durante uns quinze dias e se
114
esqueceram do mundo. Depois disso, Glória voltou para o sul e, logo depois,
retornou a São Paulo, onde ficou por mais uma quinzena. Renato comenta ter
sumido do trabalho durante esse período, não fazia absolutamente nada a não
ser ficar com a namorada. Até que um dia ela anunciou que estava voltando para
a cidade dela e que não voltaria mais. A resposta dele foi imediata: ... eu vou com
você”. Chegou na empresa da sua mãe e disse: “... Olha, acabou! Eu estou
juntando as minhas coisas e estou indo embora para ... (cidade).
Ficou cerca de um ano e meio sem trabalho. Perdeu o apartamento, duas
motos e um carro. Acabou arrumando uma dívida que levou oito anos para saldar:
“... foi uma coisa louca! Em termos de relacionamento .... ali ... não é que foi
gostar, ali acho que foi aquela coisa de paixão com sexo, aquela mistura
maluca.... Me envolveu de um jeito... acabei virando as costas para minha família,
briguei com a minha mãe, não queria saber de mais nada”.
Afirma ter sido a melhor e mais cara transa da sua vida. Ambos tinham a
mesma idade, porém comenta que Glória era “um mulherão” e aparentava ser
mais velha que ele: “... era como se fosse uma mulher de 30 com um garotão de
19 anos.... Pegou forte a parte do sexo”. Após o término do relacionamento,
demorou muito tempo para reconquistar o respeito da sua família.
Após o término deste relacionamento, ficou mais ou menos um ano se
relacionando, mas sem ter maior envolvimento. Em seu relato, Renato se lembra
de outra namorada, Ana. Tinha ganhado um apartamento da mãe quando a
conheceu. Diz ter começado a curtir a garota. Como o apartamento estava
montado, resolveu convidá-la para ir morar com ele. Diz que a mãe o advertiu
para ter cuidado, calma, e esperar. Ana foi passar umas férias no Sul e ele ficou
115
em São Paulo. Conseguiu quatro dias de folga e ligou para ela dizendo que
estava indo. Ela lhe pediu para não ir. Ele achou estranho e respondeu que não
iria. Alugou um carro e diz ter utilizado técnicas militares para localizá-la. Acabou
encontrando-a nos braços de outro rapaz e acabou dando uma surra nos dois.
Acabou voltando para a cidade na qual estava hospedado. Ana foi atrás dele, pois
sabia onde localizá-lo. O resultado desse encontro foi que ele praticamente a
estuprou (sic): “... tudo o que você pode imaginar que você pode fazer com raiva
de uma mulher eu fiz”. Afirma nunca mais ter tido notícias dela. Naquele dia,
levou-a até a Rodoviária, a colocou no ônibus e disse a ela: “... some da minha
vida”. Ficou sabendo que ela virou hippie, bicho-grilo, que está fazendo bijuteria.
Afirma ter se arrependido um pouco (sic), diz ter se deixado levar pela situação:
“... foram poucas as vezes que eu me vi neste estado alterado, mas também não
gostei do resultado”.
CASAMENTO
Conheceu Clara poucos meses depois de ter retornado do sul, após o
término do relacionamento com Glória. Com três meses de relacionamento, Clara
engravidou. Renato lhe disse que assumiria a criança, alertando-a sobre a sua
condição financeira e o seu relacionamento conturbado com a família (por causa
do relacionamento anterior com Glória). Nasceu o filho, Igor, hoje com 7 anos. Na
época da gravidez, Clara estudava em outro município da Grande São Paulo. Ele
morava na zona sul com a mãe e trabalhava no centro de São Paulo. Comenta
que saía do trabalho, ia com Clara até a faculdade e dormia no carro até o
término da aula, porque não queria que ela corresse o risco de ser assaltada.
Após algum tempo, passou a assistir aula junto com ela. Afirma ter feito isso
durante seis meses. Após o nascimento de Igor, começou a haver muitas brigas
116
ligadas a cobranças feitas por Clara por conta do padrão de vida deles. Acabaram
se separando. Clara pegou as coisas dela e foi embora. Foi ela que resolveu se
separar. Até então, não tinha havido casamento formal. Renato afirma ter ficado
pouco mais de um ano separado. Diz que Clara fez uso do filho para lhe
chantagear e que isto o deixou muito magoado. Teve problema de pressão e um
princípio de infarto com “30 e poucos anos”: “aí eu comecei a ver... vi que estava
sentindo muita falta.... Comecei a me perguntar: ‘será que não é problema meu?’
Todo mundo dizia que eu era muito cabeça dura, tal...”Tentou reformular a vida,
foi atrás de Clara, conseguiu retomar o relacionamento e eles se casaram.
Alugaram um apartamento e viveram bem até março de 2004. Aí, segundo ele,
começaram novamente as cobranças. Diz ter começado a melhorar de vida e que
fazia as coisas para agradar Clara, mas que ela não reconhecia. Afirma que ela
só queria as coisas para si própria e que ele viu que isto não tinha cabimento.
Acabaram se separando em maio de 2005. A decisão foi novamente de Clara.
Dessa vez, segundo ele, foi diferente porque Igor já estava crescido e apegado a
ele.
PATERNIDADE
Comenta que Igor foi fazer acompanhamento psicológico depois da
separação e hoje vê que o filho já a assimilou bem. Segundo ele, a terapeuta do
filho lhe “puxa a orelha” porque ele costuma exagerar com o menino: afirmou que
se ele continuar fazendo o que faz para Igor este acabará virando homossexual,
porque ele é uma mãe para o menino e está invertendo os papéis. Renato
comenta que Clara costuma ser mais dura com Igor. Considera-se um “superpai”:
acabou optando por “fazer o que puder e mostrar o lado bom”: “... ser carinhoso,
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beijar muito, abraçar muito, conversar, dar umas duras...” Afirma que está
exagerando. Curte ficar com o filho, se dedicar a ele, mas revela uma
preocupação de que este “vire homossexual”: “... tenho amigos homossexuais. Se
o Igor quiser ser, que seja, mas desde que eu já tenha mostrado para ele.... Vá
por opção, não por um distúrbio ou um desvio..... Embora eu vá amá-lo do mesmo
jeito; é meu filho, amo de paixão, não tenho nada contra. Mas vou tentar
encaminhar para o jeito que eu acredito ser o certo. Então, eu tô fazendo tudo
certinho: pago terapia, vou junto, batalho, tal...” .
A VIDA DE RENATO HOJE
Diz que hoje está curtindo a vida, sem envolvimentos maiores. Comenta
que ou ele deu uma acalmada sexualmente ou é tudo em função da situação
[separação recente]. Refere que pelo abalo e sofrimento pelo qual passou após a
separação com Clara, agora para ficar com alguém precisará se convencer de
que o relacionamento realmente vale a pena. Segundo ele, atualmente está difícil
se relacionar: “... tem uma transa ou outra, uns beijinhos, mas na verdade acho
que o legal é estar com alguém”, embora afirme que por enquanto ele nem pensa
nisso.
Reflete que sempre se mostrou mais para as mulheres com as quais se
relacionou do que o inverso. Reconhece que sempre foi mais exagerado. Diz que,
com esse seu jeito, elas ficavam, como se pensassem: “... vou ver o que vai rolar”.
Pensa que pelo fato de sempre ter se colocado à disposição das
mulheres com as quais se relacionou, elas acabavam se desinteressando.
Descobriu que algumas delas se envolveram com outros rapazes enquanto
estavam com ele: “... caras que eram mais durões, mais atraentes para elas”.
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Conclui que o seu erro deve ter sido exatamente o de não ter sido durão, mas, ao
contrário, ter exposto o seu romantismo e os seus sentimentos.
Renato Análise do Caso
Percebe-se logo no início do relato que o relacionamento conjugal dos
pais de Renato parece ter seguido uma ordem de gênero invertida: enquanto a
mãe dele era aquela que tinha voz ativa em casa, que cuidava do dinheiro e
tomava as decisões, o pai é apresentado como aquele que cuida, dá afeto e
proteção.
Salienta-se a sua identificação com a mãe, por quem demonstra ter muita
admiração e com quem trabalha hoje. Não há como ignorar o comentário que ele
faz sobre a mãe ser mais bem sucedida que o pai atualmente. Por outro lado, o
pai é aquele que estava mais presente no seu cotidiano infantil. Foi com ele que
Renato aprendeu a jogar bola, empinar pipa, dirigir e conversar mais. Também é
pelo pai que ele expressa mais claramente a sua ligação afetiva, ao narrar o
episódio do medo que sentia à noite, antes de dormir.
É possível pensar que foi a produtividade e não a afetividade que Renato
privilegiou no seu projeto de gênero, uma vez que hoje ele trabalha com a mãe e
tem especialização em RH, que é o ramo da empresa materna, e expressa
grande admiração pelo sucesso profissional dela.
Ele menciona que tinha algumas regalias em casa e as atribui ao fato de
ser o filho mais velho. De fato, pelo relato que faz das situações de disputa e das
rixas havidas entre ele e a irmã, depreende-se que se tratava de regalias dadas
ao filho, ao homem.
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Ele pouco mencionou a infância e a adolescência. Esta última acaba
sendo percebida pela narração que ele faz dos namoros ocorridos. Ao mencionar
que sempre se envolveu muito nos relacionamentos, procurando ficar junto e
participar das coisas junto com as namoradas, fica claro que esse envolvimento
parece ser expressão de uma necessidade que ele tinha de se manter no controle
das situações ou das relações.
Por exemplo, o relacionamento com Adriana, com quem ele acabou se
envolvendo a ponto de ir dançar balé e participar de um espetáculo, permite
facilmente uma interpretação de que se trata de um “homem moderno”, que vence
os preconceitos por amor a uma mulher. No entanto, o que descreve sobre ter ido
espreitá-la após o término do namoro quando soube que ela estava envolvida
com outro, faz pensar mais apropriadamente numa expressão de controle e
possessividade, condutas que ele também acaba demonstrado em relação às
demais namoradas. Aqui se trata da máxima expressão de uma masculinidade
tradicional.
À primeira vista, ao narrar o relacionamento com Glória dá testemunho de
uma completa ausência de controle, visto que ele abriu mão de tudo que tinha
para acompanhá-la: vendeu apartamento, carro e duas motos. A relação durou
cerca de um ano e meio. Quando foi indagado sobre se havia arrumado emprego
no sul, visto que tinha abandonado tudo em São Paulo, Renato respondeu que
não, embora não tenha fornecido detalhes. A impressão causada foi a de que ele
sequer procurou trabalho, uma vez que admite ter arrumado uma dívida que levou
anos para saldar. Dessa forma, cabe a hipótese de que ele mergulhou
profundamente no relacionamento e esqueceu de tudo mais. Por outro lado, o que
120
também se destaca é que Glória parece não ter existência própria, sendo única e
exclusivamente o objeto do desejo dele. Assim, também caberia pensar que este
descontrole completo (que é o extremo oposto daquilo que caracteriza a
“verdadeira masculinidade”, como foi visto) serve, na verdade, a um propósito
maior: controlar completamente o seu ‘objeto de desejo’. Nessa dinâmica
expressada por Renato, também se evidencia que a questão dos bens materiais
perde a importância. O que está em primeiro plano é a garantia da posse e
domínio da parceira. A mesma dinâmica é expressa em relação à Ana: ele fez uso
de técnicas militares para localizá-la, vigiou-a sem que ela soubesse, espancou-a
(e ao rapaz com quem ela estava) e depois a estuprou. Portanto, Ana também
não é reconhecida como alteridade, ela está a serviço do desejo e do controle de
Renato.
As condutas violentas aqui relatadas permitem pensar que a
masculinidade de Renato parece repousar sobre algumas premissas básicas: por
um lado, uma contraposição do masculino e do feminino, segundo a qual eles não
são somente diferentes, mas mutuamente excludentes; por outro, a superioridade
do masculino, que deve estar no controle e ao qual o feminino deve se submeter.
O que se expressa, nestes casos, é um desejo masculino como desejo de posse
(Bourdieu, 2005), como dominação erotizada.
O relacionamento com Clara, sua ex-esposa, obedeceu inicialmente os
mesmos padrões apresentados quanto aos antigos namoros. A diferença é que
Clara é a primeira mulher que é apresentada por ele como detentora de desejos
próprios, tanto que partiu dela a decisão de se separar nas duas vezes. A
resposta de Renato veio na forma de pressão alta e infarto. Conforme discutido
121
no capítulo 2, a força, a dureza, a resistência e a competência física estão
associadas a certas noções dominantes de masculinidade (Whitehead, 2002). A
resposta física de Renato pode ser interpretada como expressão da perda do
domínio e do exercício do controle que até então tentou empreender no
relacionamento com a esposa: o corpo que constrói a masculinidade reage à
perda do controle, da posse.
Em seu relato sobre o exército, a busca pela disciplina, pelo poder,
reconhecimento e status é destacada. O exército pode ser considerado o locus da
masculinidade. Local no qual características como honra, disciplina e respeito, e
de símbolos como a espada e as medalhas, são destacados e valorizados como
atributos que um verdadeiro homem deve possuir.
O que se destaca na parte em que narra a sua relação com Igor é um
medo em relação à manifestação da sua afetividade por ele: expressar muito
afeto pode ‘causar’ a homossexualidade no filho. Aqui, a interpretação feita
anteriormente sobre a afetividade não fazer parte do projeto de masculinidade
dele, ou ao menos não estar no cerne deste projeto, parece ganhar força. Ela
representa uma ameaça a uma masculinidade que parece se conjugar com a
ordem de gênero prevalente. Sob esta ordem, a construção da masculinidade não
trata somente da produção de representações e práticas, mas também de uma
série de pressões e limites sobre certas manifestações da afetividade, como
aquelas relativas ao medo, à tristeza e, mais frequentemente, à ternura (Nolasco,
1993; Pleck, 1995). Isto fica ainda mais evidente quando se refere aos
relacionamentos afetivos que teve, afirmando que o seu erro foi ter exposto o seu
romantismo, os seus sentimentos, ao invés de se mostrar “durão”, isto é, viril.
122
EM SÍNTESE
O relato da história de vida de Renato permite concluir que a
masculinidade que emerge nesse processo tem como eixo o poder, sendo o
controle e a posse nos relacionamentos amorosos suas maiores expressões. A
afetividade parece constituir uma ameaça ao seu projeto masculino, que, no caso,
mostra-se aliado à ordem de gênero predominante.
Para ele, a masculinidade está associada a estar sempre no controle,
dominar, ser racional, estratégico e másculo ao extremo.
123
FÁBIO
Fábio tem 45 anos e nasceu no município de São Paulo. É o filho caçula
numa família de 4 filhos: tem uma irmã e dois irmãos mais velhos. É casado e tem
dois filhos. É analista de sistemas e afirma estar na profissão “por acaso”.
Começou trabalhando num escritório, depois na secretaria do colégio no qual
trabalhava a sua mãe, em um escritório de advocacia, depois com o pai (no ramo
de construção civil) e finalmente acabou indo parar na área de análise de
sistemas. Afirma ter passado muito tempo dando prioridade para outras coisas e
somente em 2004 é que se formou.
INFÂNCIA E MENINICE
Fábio se refere pouco aos pais nesse período, afirmando que eles
trabalhavam fora enquanto ele e os irmãos passavam muito tempo “sozinhos”.
Quando bebê, ficava com uma babá e, mais velho, com uma empregada. Afirma
ter aprendido a andar sozinho, no berço. Já em idade escolar, no período em que
não estava tendo aula, ficava brincando na escola em que a mãe trabalhava
(tratava-se de um colégio particular e era próximo à escola pública na qual ele
estudava) ou, já mais velho, brincava na rua até que os pais retornassem do
trabalho.
Ao relatar o seu relacionamento com os irmãos, afirma que eles não eram
“muito coesos” e que brigavam muito. Embora estivessem mais juntos, pois eram
companheiros de jogos e brincadeiras (especialmente ele e Paulo, o irmão do
meio), Fábio comenta que eles viviam separados e que cada um acabou tomando
o seu rumo, explicitando o distanciamento existente entre eles. Já com a irmã,
apesar deles terem vivido boa parte da infância mais distantes, uma vez que ela
124
estudava em regime de semi-internato e eles só se encontravam nos finais de
semana, contou que ela nutria um carinho especial por ele e que é assim até hoje:
ele a considera a sua “guardiã”.
Refere maior convivência nessa fase da infância com Paulo, seu parceiro
de brincadeiras e de brigas: “... nós brincávamos e brigávamos muito, pois
tínhamos personalidades muito fortes”.
Comenta sobre algumas paqueras da infância. Os colegas lhe arrumaram
um “namorinho” quando ele tinha 7 anos: “era pra fazer bonito, namoradinha, tal!”.
ADOLESCÊNCIA
No início da adolescência, passou por situações que fizeram com que ele
questionasse a sua “normalidade sexual”. Descreve ter sido indagado quanto à
sua masculinidade por seus amigos, especialmente em relação a um com quem
competia como “comedor” dos meninos: “... pô, meu, se você continuar assim
você vai ser veado [rindo], entendeu...” Havia ali a cobrança de um concorrente
que percebia que a sua atração não era exclusivamente sexual. Diz que isto soou
como uma cobrança e reconhece que ficou incomodado: “... eu sabia que eu não
sentia da mesma forma que a maior parte da molecada, entendeu?Comenta que
desde essa época se percebia diferente de seus amigos com relação ao desejo
que sentia por meninos: “... eu falava: ‘pô, então o meu sentimento era uma coisa
anormal?’ ... em relação ao resto... entendeu?”.
Relata que não se percebia como seus amigos quanto à sexualidade na
adolescência. Associa sua forma de encarar a atração que sentia por meninos
com a rigorosidade da educação religiosa que recebeu: “....existe toda aquela
125
criação católica carregada... que aquilo tudo é pecado, aquilo tudo é errado (...) ...
e que se você está fazendo alguma coisa que não é de acordo com a sociedade...
você é marginal”. Afirma que por muito tempo [e de certa forma até hoje] essa
diferença pesou. Não dividia com ninguém e achava errado, apesar de prazeroso,
manter encontros sexuais às escondidas com homens: ...e aí eu carreguei isso
comigo todo esse tempo (rindo)... pô, acho que só eu no mundo me sinto
assim!...”. Acrescenta que se sentia culpado por sua condição homossexual [ou
seu homoerotismo?]: “... mas com uma culpa... enorme! Eu tinha que esconder
tudo aquilo...”.
RELACIONAMENTOS COM MENINAS E MENINOS
Uma atividade bastante lembrada na sua adolescência foi a dos
bailinhos de fundo de quintal (na sua própria casa ou nas casas dos amigos) e
das quermesses. Nessas ocasiões é que surgiam as oportunidades para namorar.
Lembra que sua primeira namorada pertencia a uma turma rival, mas o namoro
durou pouco e terminou sem explicação, como se não houvesse mais interesse:
“....eu acho que foi por consenso, eu não me lembro quem foi que deu o bota-fora,
não”. Quando Fábio se refere aos seus relacionamentos e conquistas neste
período, chama a atenção para uma característica sua qualificada como “terrível”.
Tratava-se da habilidade para fazer a garota tomar a iniciativa de se afastar dele:
“... é que quando eu vejo que a coisa não está boa para o meu lado, eu tento
inverter ou procuro fazer com que a pessoa do outro lado desista, caia fora (...)
Fazia de alguma forma que a pessoa se desapontasse comigo, ou alguma coisa
desse tipo, e rompesse o relacionamento”. Foi o que fez com a sua primeira
namorada.
126
Afirma ter tido várias namoradas ao longo da adolescência, mas nada
sério. Chegou a tomar a namorada de Paulo, seu irmão: “...tomei uma namorada
dele. Mas não era nem uma namorada, ele nem esquentou a cabeça”. Descreve a
situação como se não tivesse importância, como se fosse inconseqüente e de
curta duração: “... Aí, de repente, a gente (ele e a garota) fica um do lado do outro,
não sei o que mais, papo vai, papo vem, daqui a pouco a gente tava nos amassos.
Foi uma coisa breve, de uma semana para outra”.
Fábio deixa claro que tinha dificuldade de manter esses namoros: “... eu
nunca fiquei muito tempo com ninguém”. Justifica sua inconstância: “...eu tenho
meu lado... homossexual... entendeu?, e associa os seus namoros com as
garotas como uma forma de ocultar a sua homossexualidade: “... perante a
sociedade eu não deixava transparecer de jeito nenhum ... de jeito nenhum ... é ...
tinha quem desconfiasse, logicamente .... por conta disso eu tinha lá as
namoradinhas...”. Refere, ainda, que os seus relacionamentos com rapazes
também tinham um caráter transitório, fugaz: “...e tinha também muitos
relacionamentos com uns amigos etc e tal....” e se dá conta de que nessa época
não manteve nenhum relacionamento mais duradouro: ....então, nem de um lado
e nem do outro eu mantinha nenhum relacionamento. As meninas gostavam de
mim, me achavam bonitinho... de vez em quando eu ficava com uma, com outra,
mas não tive nenhum relacionamento .... ‘Fiquei’ muito, mas não acabei com
ninguém, né (rindo).
Quanto aos seus relacionamentos com os rapazes na adolescência, se
lembra de um que o marcou especialmente. Era um amigo com quem sempre
saía, embora nada tivesse acontecido na esfera sexual entre os dois até então.
Quando surgiu uma oportunidade, esse amigo o convidou para fazerem sexo e
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Fábio não aceitou: “... e ele tentou induzir pra que a gente brincasse ali... fizesse
sexo ali, entendeu? Aí eu caí fora... eu falei: ‘não!’... entendeu?....” Porém, já mais
velho, percebeu que essa situação foi especial, isto é, que havia uma vontade de
estar com o amigo, embora não tivesse cedido: “....quer dizer, hoje, olhando isso
tudo, eu falo: ‘não, então tinha alguma coisa que era especial ali’...”
Relata outra situação envolvendo uma amiga por quem se apaixonou.
Estava no segundo grau e cursava escola técnica quando a conheceu. Lembra
que aquilo que o fascinava em relação à garota era o fato dela ser a única mulher
da turma e, apesar disso, se relacionava de igual para igual com ele e os demais
colegas: “... ela não tinha frescuras, não era dondoca, ela se agregava” e refere
que era exatamente esse despojamento que o encantava e que fez com que ele
se apaixonasse por ela. Recorda que se sentia muito à vontade com essa garota,
que eram muito amigos, embora o sentimento amoroso, a paixão, não tenha sido
imediatamente identificada por ele: “... essa foi a primeira paixão. (...) Foi
engraçado, né... Também não veio nada... não bateu nada logo de cara, né... (...)
essa é a mulher da minha vida!’, entendeu... tipo... bateu forte! Afirma que a
atração sexual é diferente de amor e paixão, que se tratam de sentimentos mais
tranqüilos, e que essa moça o atraiu porque o deixava ser como ele de fato era, o
deixava totalmente à vontade: “... o que era atraente pra mim? Era o fato de eu ter
uma pessoa com quem eu me identificasse totalmente! ...” Ele acabou se
declarando, mas ela não lhe correspondeu, justificando que eram amigos demais
para serem namorados, o que o deixou frustrado: “... na época foi frustrante. Eu
tive um trabalho louco pra chegar ... sempre fui muito tímido”. (...) Como eu me
achava incapaz, tinha toda a sombra da homossexualidade. Você fala assim: ‘eu
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vou arriscar, mas, se der certo, eu me firmo’...”. De fato, não deu certo, embora a
amizade e o convívio entre os dois tenha perdurado por um bom tempo.
Concomitantemente a este episódio do envolvimento e paixão por esta
garota, Fábio teve um relacionamento significativo com um amigo do colégio que
também tinha demonstrado interesse pela mesma garota: “... eu gostava do
Vicente, tinha muita afinidade com ele... Mas eu tinha medo, me achava diferente,
era anormal (rindo). (...) Eu freqüentava a casa dele”. Embora não tenha havido
nenhum relacionamento sexual ou amoroso entre os dois, o amigo chegou a
declarar a sua atração por Fábio, mas este não teve coragem de assumir que
também estava envolvido por ele.
O TRABALHO
Começou a trabalhar quando tinha 15 para 16 anos. Primeiro trabalhou
com a mãe e, posteriormente, com o pai, até que surgiu a oportunidade dele atuar
na área de informática, quando pôde então conquistar a sua independência
financeira. Chegou a iniciar alguns cursos universitários, várias vezes, mas os
interrompia por não se identificar com nenhum deles. Após os 20 anos, quando
consegue trabalhar numa área com a qual se identifica e na qual permanece até
hoje, passa a se perceber auto-suficiente e independente. Isto permite que se
sinta mais seguro quanto à sua competência profissional, favorecendo uma
escolha mais amadurecida da profissão que desejava seguir (formou-se
recentemente, em 2004, embora já estivesse trabalhando vários anos na área).
O ADULTO JOVEM
No final da adolescência, Fábio se reaproxima do irmão mais velho,
Marcelo, e também do pai, de quem não era tão próximo. Como Marcelo já dirigia,
129
Fábio passou a pegar carona e a sair junto com ele. Além disso, começou a jogar
futebol com o irmão e os amigos dele. Comenta que de certa forma a bebida
facilitou a sua aproximação com o irmão e o pai, pois era no boteco que eles
costumavam se reunir nos finais de tarde para jogar sinuca e beber: “... tanto eu
quanto o Marcelo passamos a conhecer um pouco mais o meu pai. (...) (o pai) Era
meio austero. A gente tinha pouco convívio com ele porque (...) trabalhava com
construção de casa e passava muito tempo fora. Quando voltava do trabalho ia
para o boteco bater papo com os amigos”.
Recorda que na turma do irmão teve que enfrentar situações singulares
envolvendo mulheres: “... quando eles iam catar putas eu não ia. Eu não gostava,
elas não me atraíam”. Os amigos cobravam a sua não-participação neste
programa: “... De alguma forma cobravam. Em geral, era cobrança velada...” Certa
ocasião, quando os pais e a irmã de Fábio não estavam em casa, Marcelo e um
amigo levaram algumas garotas até lá e cobraram dele a participação na
aventura, mas ele se esquivou: “... pô, meu, é o seguinte... por mim, não precisa
não, cara. Se eu tiver que catar, eu vou catar sozinho’.... Tipo: ‘não leva a mal,
não, mas eu não tô a fim de encarar essa, não’...”
Comenta que os seus relacionamentos com mulheres no início da vida
adulta não aconteceram por sua iniciativa. Tampouco tinha algum interesse: eram
os amigos que os promoviam e, mesmo assim, duravam pouco. Recorda-se de
um deles: “... todas as iniciativas partiram de amigos, né, amigos ou parentes, né,
enfim, é... a Clarissa foi até um lance forçado, né...”. Chegaram a ficar noivos,
mas, segundo ele, não passaram das preliminares no sexo.
130
Lembra ainda de um relacionamento com outra mulher, Roberta, com
quem também teve um envolvimento. Refere que nessa ocasião a sua falta de
interesse e seu pouco empenho para estar com mulheres levantava preocupação
em seus amigos, que, por sua vez, “... traçavam todas que davam mole e
colocavam sua marca de macho”. Fábio não se identificava com eles, se percebia
diferente: “... como eu não era assim, eles ficavam com pé atrás”.
Roberta foi a primeira mulher com quem ele fez sexo: “... até então eu
não tinha tido nenhum relacionamento sexual com uma mulher. Quando a Roberta
apareceu, aconteceu”. O relacionamento teve certa duração e eles chegaram a
morar juntos (na casa dos pais dele e com a filha dela), mas também não deu
certo. Embora ele tivesse desejado que o relacionamento se mantivesse, Roberta
preferiu voltar para a cidade na qual tinha nascido.
Conheceu Sandra, sua atual esposa, também por intermédio de amigos.
Afirma que a atração física não foi o principal fator de admiração. O que
despertou o seu desejo por ela foi o fato dela ser muito inteligente e ter uma
conversa que lhe agradava. Casou-se com trinta anos e tem dois filhos: Matheus,
de quatorze anos, e Daniel, de onze. Hoje, avalia que Sandra se apega muito às
convenções sociais e percebe que o encanto se quebrou: “... depois, perde o elã
da conquista. O cotidiano é cansativo, a gente fica entediado. A minha libido não é
muito alta”. Relata não ter se casado para cumprir um papel social e afirma que
tinha muita vontade de ter filhos. Com um ano e dois meses de convívio estavam
casados e já são dezessete anos de relacionamento.
131
PATERNIDADE
Fábio se refere aos filhos com muita admiração, amizade e carinho.
Percebe-se cúmplice deles: “... como pai eu me sinto bastante feliz. Eu vejo os
meus filhos progredindo, tal, e fico corujão, mesmo”. Enquanto a esposa é mais
firme e cobra mais os filhos, ele é o contraponto. Descreve, orgulhoso, que brinca
com os garotos e procura estar sempre junto com eles. Afirma ser muito feliz
como pai.
Apesar de se perceber desejando evitar que os filhos sofram, além de
querer o melhor para eles, também se dá conta de que cada um tem o seu próprio
caminho a percorrer: “... cada um tem que ver o seu caminho, com seus tombos,
com suas coisas... então eu procuro respeitar isso, né. Eu acho que... eu tive a
missão de orientá-los, entendeu?” Procura não interferir nas escolhas dos filhos e
sim orientá-los, tentando respeitar as decisões que eles tomarem.
RELACIONAMENTO COM HOMEM E COM MULHER
Aos 40 anos descobre a Internet, algo que favorece a conciliação entre a
sua vida social como marido, pai e profissional, e os seus desejos homossexuais:
“... descobri que tinha uma porção de gente igual a mim (isto é, homens casados
que buscavam relacionamentos com homens). (...) Até então eu me considerava
uma pessoa reservada e me entendia como diferente da maioria dos homens”.
Fábio percebe que a cada dez anos houve uma “virada” em sua vida.
Com 20 anos conquistou a sua independência financeira, com 30 anos se casou e
aos 40 descobriu a Internet: “... a descoberta da Internet mudou a minha cabeça e
também a minha orientação de vida. (...) Durante os últimos cinco anos, desde
que descobri a Internet, estou vivendo uma nova fase.
132
Ele faz um extenso relato sobre o significado desta descoberta, afirmando
que por meio dela pôde libertar seu lado adormecido, que ele havia imputado
como “anormal” (seu desejo por homens), e ainda constatar que havia muitos
homens como ele. Com isso, descobre-se “normal” e começa a explorar e dar
vazão ao desejo homoerótico, embora escondido de todos. Comenta que num
primeiro momento a necessidade foi a de satisfazer o desejo sexual e somente
depois de um tempo é que começou a procurar afinidades, filtrar as escolhas com
maior critério. Durante quatro anos teve breves relacionamentos com homens
mantendo o casamento paralelamente, embora admita que antes disso já
convivesse num “clima de irmandade” com a esposa e que é assim até hoje.
Sandra chegou a levantar suspeita quanto à homossexualidade dele, mas
Fábio nunca admitiu e assim convivem até hoje. Ele relata que os dois pensaram
em separação, mas que, por comodidade mútua, não chegaram a uma decisão:
“... a zona de comodidade está imperando. É cômodo pra mim, perante a
sociedade, manter um casamento, ainda que não seja frutífero, e é cômodo pra
ela também se manter no casamento, para não se sentir fracassada”. Fábio afirma
que há ciência e conivência velada por parte de Sandra quanto à sua
homossexualidade e que, se tivesse que romper o relacionamento conjugal, teria
que ser um rompimento impulsivo e estrondoso. Como se trata de algo
inconcebível para ele no presente momento, continua levando uma “vida dupla”.
Expõe minuciosamente seu envolvimento afetivo-sexual com o atual
namorado, Jaques, com quem mantém sua primeira relação homossexual forte,
que contém afinidades de ambas as partes, reciprocidade e envolvimento: “...
hoje eu me preocupo em estar vivendo uma vida dupla porque pela primeira vez
num relacionamento homossexual a gente tem uma ligação forte”. As outras
133
relações que ele teve com homens não chegaram ao ponto que o relacionamento
com Jaques. Afirma vislumbrar um futuro neste relacionamento, embora não
consiga planejar nada, já que permanece casado e ainda não vê nenhuma
possibilidade de falar do seu envolvimento afetivo por Jaques com a esposa e
com os filhos.
Pela primeira vez Fábio vive tem um relacionamento por meio do qual
pode expressar o que é e o que sente. Tece comentários sobre a sua relação com
Jaques: “... a minha vida com o Jacques é real! Aí é que eu acho que está a
grande diferença em relação ao meu relacionamento com a Sandra”. Afirma que
no seu casamento sempre teve que usar uma máscara, sendo que com Jaques
não precisa disso: “... com ele, o principal é que eu estou sendo autêntico! Isso é
um grande alívio. Não preciso estar montando uma personalidade que o agrade.
Ele gosta da minha personalidade como eu sou. Esse é um prazer que eu tenho
hoje. Tenho alguém do meu lado que me conhece por inteiro”.
Por enquanto vive sem planejar muito: “...do jeito que deu, deixa...”,
embora Jaques seja o oposto dele: “...gosta de saber exatamente como vai ser...”.
Por isso, um projeto de vida a dois está difícil. Mesmo que tenham planos de vida
em comum, não há previsão sobre como torná-los viáveis. Refere que a grande
dificuldade é lidar com o seu casamento, sua família: “...num primeiro momento, a
idéia foi essa: olha, eu quero sair fora disso e ficar do lado de lá, mas sair fora
disso... tem dois filhos... todo um... é difícil. Mas eu queria mesmo era mudar”.
Explica que nos momentos em que está longe de Jaques fica tudo “pesado”.
Geralmente passa os finais de semana com a família, cumprindo o seu “papel
social” e durante a semana está mais próximo de Jaques, “vivendo o meu prazer”,
conforme explicitou.
134
Sobre a manutenção de dois relacionamentos ao mesmo tempo, afirma
que “... eu acho que pela primeira vez na vida eu estou fazendo o casamento de
duas coisas que andavam em paralelo... entendeu? Tipo... a sexualidade andava
por um lado e a vida social andava por outro...”. Mais adiante complementa o que
disse, demonstrando ter a fórmula de como obter o que precisa: “.... o
relacionamento de casamento que é puramente social... e o relacionamento com o
Jacques que é um pouco mais completo... eu tenho sexo e tenho o social
também...”. Apesar de saber que não é o ideal, percebe que é o arranjo possível
no momento, já que pela primeira vez se enxerga mais completo: “... mas eu acho
que existe essa coisa que está bem forte... tipo... eu estou me sentindo mais
completo. Eu estou vivendo uma vida mais completa”.
Fábio Análise do Caso
O que se destaca logo no início do relato de Fábio é o fato dele ter vivido
uma infância solitária no que diz respeito ao convívio familiar. Embora refira estar
sempre com alguém em casa (babá, empregada, irmãos), percebe-se uma
convivência menos próxima com os pais, uma vez que ambos trabalhavam
extradomiciliarmente, e mesmo com a irmã e o irmão mais velho. Pelo menos no
que se diz respeito ao seu relacionamento com o pai, esta hipótese ganha força
quando, posteriormente, revela ter se aproximado dele à medida que passou a
freqüentar o boteco, jogar sinuca e beber. Quando relata que aprendeu a andar
sozinho no berço, percebe-se que esse sentimento de estar só é precoce. Mesmo
ao se referir às brincadeiras na infância destaca o irmão, Paulo, como seu mais
assíduo companheiro. Pode-se associar essa vivência com aspectos ulteriores,
como a sua referida efemeridade de relacionamentos na adolescência: “nunca
tive nenhum relacionamento fixo....” , quando admite ter “ficado” com muitas
135
meninas e meninos, embora ninguém que considerasse um relacionamento de
fato.
Já na infância evidencia-se o aspecto competitivo no relacionamento com
os irmãos que, embora comum nesta fase de desenvolvimento, parece se
configurar como um padrão que ele passou a fazer uso nos relacionamentos com
os meninos (infância e puberdade) e com os rapazes (adolescência e início da
vida adulta), sendo também um aspecto central na organização da masculinidade.
O destaque que Fábio dá ao fato de sempre ter precisado esconder e
negar todos os desejos que emergiam em relação aos meninos e rapazes,
afirmando que se sentia anormal por isso, permite pensar na proposição sobre a
heterossexualidade como um regulador da identidade de gênero masculina: ou
seja, normal seria fazer e ser como os outros moleques, que embora
participassem das brincadeiras sexuais tanto no papel de ativo quanto no de
passivo, jamais demonstravam sentir ternura ou carinho pelo companheiro do
jogo sexual. Mais tarde, refere que essa atração e desejo por homens tiveram que
permanecer escondidos durante toda a sua vida, pois, no seu entendimento, era
isso que o mantinha diferente (“anormal”) dos demais homens, ou seja, o deixava
de fora do grupo dos “homens de verdade”. Compreende-se que, sob este ponto
de vista, a pior humilhação para Fábio consistiria em ser transformado em mulher,
isto é, ser chamado de “mulherzinha”. É sabido que a forma mais contundente de
expor um homem ao ridículo, ou colocar em dúvida a sua masculinidade, é
debochar da sua virilidade acusando-o de homossexual ou se referir a ele como
se fosse mulher (Bourdieu, 2005).
136
Fábio adota estratégias que o ajudam a ser visto e a se perceber como
homem: namora as garotas por intermédio dos amigos, passa a jogar futebol e
sinuca, bem como beber no boteco com o pai e o irmão mais velho, além de
competir com Paulo e outros amigos em relação às garotas (namoradas ou
aquelas que eram objeto de interesse deles), ou seja, atua de modo a manter
todas as prerrogativas associadas à masculinidade hegemônica.
Outro aspecto a destacar na descrição feita por Fábio, e que também é
pautado nas prerrogativas da masculinidade hegemônica, diz respeito ao fato de
que existe uma regulamentação sobre a performance masculina que indica não
só o que pode ser feito, mas como, com quem e sob quais condições,
conduzindo-o a se perceber diferente dos outros adolescentes quanto à sua
sexualidade. Daí se compreende todo o seu esforço em disfarçar a
homossexualidade através da demonstração de interesse por garotas,
especialmente na adolescência e no início da vida adulta. Seus namoros serviam
para sustentar a sua masculinidade: como se percebia diferente dos demais
rapazes e também identificava os códigos que regulamentavam a masculinidade
entre eles, adotava atitudes e condutas que favoreciam o distanciamento da
pecha de “veado” que alguns tentavam lhe atribuir. Conforme discutido no
capítulo 2, uma das condições para se tornar um “verdadeiro homem” é receber
da mulher um atestado que comprove essa condição (DaMatta, 1997) e é,
também, ser validado pela confraria dos homens.
Quando se refere aos relacionamentos afetivos inconstantes que manteve
durante a adolescência, destaca-se novamente o que foi comentado logo no início
desta análise sobre as dificuldades concretas de relacionamento que ele
137
apresentava. Esta inconstância revela tanto seu afastamento [dificuldade de troca
afetiva] das mulheres quanto dos homens, já que com nenhum deles relatou ter
tido um relacionamento mais duradouro. É possível supor aqui, conforme já
explicitado, que buscar se relacionar com as mulheres, mesmo não obtendo o
êxito que ensejava, servia ao propósito de se afirmar como homem [tanto para ele
próprio quanto para os outros]. Por outro lado, evitar o relacionamento com os
rapazes, para além de servir ao mesmo propósito, agregava outro componente
importante nesta dinâmica de construção de si como homem: a homofobia
internalizada, que não lhe permitia uma entrega aberta e irrestrita. Isto se
evidencia quando ele se remete ao amigo adolescente que expressou desejo
sexual por ele convidando-o para uma transa. Embora posteriormente tenha
considerado que havia “algo especial” naquele relacionamento, não conseguiu
reconhecer o próprio desejo e se abrir [ou se assumir por meio do] com o amigo.
Ao relatar sobre a sua primeira paixão por uma amiga do colégio, é
possível pensar que ele próprio não conseguia dar vazão aos sentimentos e a
atração que as mulheres exerciam sobre ele. Não fica claro se a paixão que
sentiu pela amiga foi de fato tão intensa ou se ela se tornou marcante pelo fato de
não ter sido correspondida pela garota. Algo que ele comenta ao descrever o
episódio no qual se declara apaixonado acaba desvelando a real intenção que ele
nutria: “...eu vou arriscar, mas se der certo eu me firmo....” Novamente se destaca
aqui o desejo de afirmar a sua masculinidade por meio do relacionamento com
uma mulher, como se isto pudesse afastá-lo da atração que sentia por homens.
Tudo isso faz com que ele se depare envolto por uma tremenda armadilha
na qual não lhe resta outra opção além da solidão: a sua homossexualidade não
138
favorece o seu envolvimento com mulheres e, ao mesmo tempo, a sua
necessidade de afirmação como homem o afasta da possibilidade de se
relacionar com outros rapazes.
Embora o relato de Fábio sobre o engajamento nas atividades de trabalho
e sobre a profissão não tenham tido maior ênfase na narração da sua história de
vida, é possível perceber que ele destaca a auto-suficiência e a independência
financeira como conquistas que lhe favoreceram maior segurança, ou
autoconfiança, outro atributo atrelado à definição de uma masculinidade efetiva.
Conforme apontado em capítulo anterior, o mundo do trabalho extradomiciliar está
associado à masculinidade e à sua reprodução. Apesar de ter sido somente no
terceiro emprego que Fábio teve esta percepção, ou de fato conseguiu condições
de se auto-sustentar, a área de trabalho na qual isto aconteceu é a de informática,
um ramo muito associado com o mundo masculino. Sob o aspecto do gênero, é
possível pensar que foi uma forma dele negociar a própria masculinidade e, de
algum modo, manter aliança com as prerrogativas hegemônicas.
O episódio de reaproximação de Marcelo (irmão mais velho) e do pai,
conforme mencionado no início desta análise, pode ser entendido como mais uma
tentativa na tarefa de tornar-se homem que ele vinha empreendendo: o bar, o
futebol, a sinuca e a bebida são objetos e redutos bastante associados à
masculinidade. Eles envolvem certos rituais e modalidades de relação que
colaboram para a configuração de um modo de ser masculino que, na nossa
cultura, está enormemente vinculado à virilidade (machão / macho). Estes
eventos e situações são representantes do que Connell (1995; 2005) denominou
de arenas de negociação, de afirmação e de reprodução do masculino.
139
A história de vida de Fábio serve para ilustrar a dinâmica da construção
da masculinidade com todos os seus percalços e labirintos, todas as suas tensões
e ambigüidades (Connell, 1995; 2002), favorecendo o entendimento de que se
trata de um projeto complexo e dinâmico.
Como adulto, ele tenta negociar a própria masculinidade buscando
atender àquilo que os amigos e os familiares esperavam dele, envolvendo-se com
mulheres apesar delas não exercerem um poder de atração sexual sobre ele.
Descreve seus relacionamentos favorecidos por intermédio dos amigos como
uma missão a ser cumprida enquanto homem, provavelmente mais para eles do
que para si próprio. Ainda assim, é possível pensar que havia certa frustração por
se perceber com baixa libido e pouco interesse por mulheres. Contudo, é difícil
avaliar se as mulheres da vida dele apenas contribuíram para ele se auto-afirmar
como homem diferenciando-se delas, uma vez que ele expressou admiração por
elas como pessoas inteligentes, amigas, sensíveis e com quem tinha ótimas
conversas. Talvez houvesse também o desejo de ser autorizado como um homem
sensível, que, mesmo assim, continuava a ser homem.
O casamento e a paternidade são aspectos que permitem ampliar a
compreensão do seu projeto masculino. Embora tenha afirmado inicialmente que
não se casou para cumprir um papel social, posteriormente acaba admitindo ser
cômodo para ele manter o casamento. Aqui é possível pensar que o casamento
? e também a paternidade, como será discutido ? cumprem uma função central
na construção da sua masculinidade na vida adulta, uma vez que estar casado
com uma mulher não deixa de ser um atestado da sua inclusão no “mundo dos
verdadeiros homens”.
140
Quanto à paternidade, se ela comporta uma importância central na vida
dele hoje, algo que se destacou bastante nas entrevistas [talvez o tópico sobre o
qual ele falou com mais vigor e compenetração], não deixa de estar associada
aos ideais masculinos atrelados à condição de pai e ao exercício desta
paternidade. De fato, Fábio destacou a leveza e a soltura que a paternidade lhe
proporciona. A preocupação externada com o futuro dos garotos denota o caráter
de cuidado e proteção que esta paternidade tem para ele. No entanto, estes
aspectos devem ser entendidos de um ponto-de-vista mais amplo, uma vez que a
paternidade permite ao homem se perceber como tal e, ao mesmo tempo, afirmar
a masculinidade perante as outras pessoas.
Ao comentar sobre o seu relacionamento com Jaques, em contraposição
ao seu casamento com Sandra, fica patente como guardou [ou ‘bloqueou’, em
suas palavras] em seu passado uma característica que não podia vir à tona, uma
parte importante de si, que não se tratava somente de um impulso sexual por
homens, mas também de um aspecto de sua personalidade que se percebe como
homem inteiro assim, com esse desejo por homens. No entanto, sua vida com
Sandra denota a permanência desses aspectos negados e bloqueados que não
podem ser totalmente revelados, uma vez que as prerrogativas da masculinidade
comportam apenas e exclusivamente o desejo heterossexual.
Fábio experimenta hoje a intensidade de uma experiência amorosa que é
típica da reavaliação do meio da vida (sob a ótica do ciclo vital humano), quando
se permite uma maior aproximação de aspectos centrais do si mesmo. Ele vibra e
quer estar junto de quem gosta, algo que é sentido por ele como recíproco. Do
jeito que descreve a atual situação com Jaques e com Sandra, parece ter
141
encontrado momentaneamente a fórmula para levar uma vida dupla da qual quer
se afastar, embora não saiba ainda como assumir inteiramente seu
relacionamento amoroso com um homem. O que impede esta tomada de decisão
é a provável reação da família (principalmente dos filhos) e das pessoas com as
quais convive e trabalha, embora seja possível pensar que “sair do armário”
significa se haver com tudo aquilo que tem sustentado a crença de que ele é um
“homem normal”, ou seja, um homem de verdade.
Embora não se perceba mais com os conflitos e com a necessidade de se
esconder como antes dos 40 anos, ainda guarda a necessidade de não se revelar
por inteiro e negociar, ou abrir mão, das prerrogativas da masculinidade
hegemônica que, de alguma forma, têm sustentado a sua performance masculina
até agora. Aparentemente o que está hoje segurando sua decisão seria, como
aponta, o lado cômodo de ter o papel social de homem casado, pai de família.
Certamente esse papel social, a família e tudo o que está atrelado a isso
comporta um emaranhado de significados construídos ao longo de sua história de
vida, pois para Fábio é e sempre será uma forma de ser homem, de exercer os
papéis sociais como pai e marido. Por outro lado, o relacionamento com Jaques
favorece a satisfação amorosa e sexual, que não é concretizada na relação
heterossexual com a esposa.
Sendo assim, a vida dupla que Fábio está levando atualmente e que tem
lhe propiciado um sentimento de completude foi a solução encontrada por ele
para exprimir a afetividade e os sentimentos que sempre nutriu por homens e, ao
mesmo tempo, permitir que ele permaneça na condição de homem cuja
142
masculinidade está pautada por normas, valores, atitudes e condutas condizentes
com a heteronormatividade.
A despeito das mudanças no contexto social, no que se refere à aceitação
da homossexualidade, desde que se “fez homem” durante a adolescência, Fábio
opta por uma posição conservadora que se justifica por seu projeto masculino
hegemônico. Talvez, dar conta da duplicidade de vida amorosa-conjugal seja
tarefa a ser negociada ao longo de seu processo de envelhecimento, durante o
qual, presume-se, diminua o impacto das pressões sociais e as urgências de
realização do si-mesmo se tornem mais presentes. De qualquer modo, aspectos
de sua masculinidade permanecem ainda em aberto como tarefa de seu próximo
estágio de desenvolvimento.
EM SÍNTESE:
Contando a sua história de vida, Fábio assinalou como a construção e
negociação da sua masculinidade ao longo do tempo foi regulada
fundamentalmente nos relacionamentos afetivo-sexuais com mulheres e homens,
sob uma dinâmica pautada nas prerrogativas do gênero masculino, em especial
das normas ligadas a uma masculinidade hegemônica. O seu relato é um
exemplo de como a construção da masculinidade se faz como resultado de
relações dialéticas de aliança, dominação e subordinação com outros homens,
bem como da centralidade das mulheres nesse processo (no caso dele, as
mulheres com as quais se relacionou como amigo, namorado, parceiro sexual e
esposo). Permite, ainda, entender a complexidade do processo que forja a
condição masculina, que nunca cessa e exige constantes negociações, provas,
143
subterfúgios e performances, o que só reitera a posição aqui defendida de que
não se nasce homem, mas é algo construído ao longo de toda a vida.
Se Fábio assumisse publicamente a sua atração sexual e afetiva por
homens, certamente estaria abrindo mão das prerrogativas hegemônicas e seus
privilégios. A solução que ele encontra para conciliar o relacionamento conjugal ?
talvez mais especialmente o familiar do que o conjugal ? e o relacionamento com
Jaques pode ser entendida como uma negociação feita dele para consigo próprio
para se manter no privilégio (masculinidade cúmplice).
144
JORGE
Jorge tem 41 anos e nasceu em São Paulo. Teve dois irmãos (o irmão do
meio, Tomás, suicidou-se) e é o filho caçula. A diferença de idade entre ele e
Tomás é de quatro anos. Está no segundo casamento, tem dois filhos: Eduardo,
de 15 anos, do seu primeiro casamento, e Beatriz, de 3 anos, do casamento atual.
Na ocasião da entrevista estava aguardando o nascimento do terceiro filho.
Tem formação universitária e trabalha como profissional liberal na área da
saúde há mais de 15 anos.
INFÂNCIA E MENINICE
Desde a sua infância os pais trabalharam fora de casa: a mãe como
médica e o pai como corretor de imóveis: “... minha mãe trabalhava muito. Ela era
anestesista no Hospital. Dava plantão e tudo mais. Então, a gente era criado por
empregadas, né.... Então, ela não tinha muita noção do que acontecia com a
gente”.
A família morava num bairro da Zona Sul de São Paulo, numa casa.
Descreve-se como um assistente de tudo o que acontecia com os irmãos na
infância porque eles tinham uma vida intensa e não gostavam muito de levá-lo
junto para acompanhá-los. Por conta disso, estava sempre “de penduricalho” na
história por causa da diferença de idade com os irmãos (os irmãos, entre eles,
tinham uma diferença de 1 ano e meio). Com cerca de 4 anos, queria participar de
todas as brincadeiras que os irmãos faziam com os amigos na rua, mas não tinha
condição. Afirma que Fred, o mais velho, teve uma história muito intensa. Fred
sempre foi muito rebelde com relação ao pai. Havia muitos conflitos entre eles. Já
145
mais velho, o irmão participou da luta política do período ditatorial e foi torturado.
Jorge afirma que, por conta disso, Fred sempre foi um herói para ele. Já o pai,
não.
Segundo seu relato, o pai era “muito ausente” e, quando estava presente,
esta presença se fazia “de forma agressiva”, pois o pai era um homem muito
autoritário. A mãe, por outro lado, era quem dava as referências para todas as
situações que aconteciam. Quando ele tinha algum conflito com outra criança na
escola, ou na rua, ou em qualquer outro lugar, sempre vinha o que ele chama de
comentário-chavão: “... não traga seus problemas para dentro de casa. Resolva
lá... resolva do jeito que tem que ser”. Para ele, isso significava ter que “partir para
porrada” sempre, o que o transformou num menino muito rebelde: “... depois de
um tempo, eu saía dando porrada mesmo, né... porque eu não podia chegar em
casa com algum problema não resolvido... e isso não combinava comigo! Era
muito dissociado, né. Não era isso que eu queria”.
Um pouco mais velho, ainda na infância, fez seus próprios amigos e
eventualmente passava horas na casa de um deles, durante o dia, quando os pais
não estavam em casa, ou permanecia todo o final de semana e não queria voltar
para casa.
Teve de mudar de escola algumas vezes por causa dos irmãos: os pais
acabavam não tendo alternativa senão a de transferi-los de colégio porque Fred e
Tomás estavam sempre provocando confusões: “... era problema dos meus
irmãos e que eu ia junto... Meus irmãos sempre tinham problema na escola, ou
repetiam, ou tinham algum problema de relacionamento... e aí, quando eu via, eu
estava indo junto”.
146
Jorge sempre foi um “excelente aluno”, até que a mãe decidiu transferi-lo
para uma conceituada escola de São Paulo que ele odiou. Por conta disso, não ia
para a aula e acabou sendo reprovado por falta: “... eu estava na 8ª série e acabei
repetindo por falta. (...) Meu ódio pela escola foi porque lá eles eram muito
autoritários, o que remetia ao autoritarismo do meu pai que eu também não
suportava”.
ADOLESCÊNCIA, AUTO-ESTIMA, NAMOROS E AMIZADES
Relata que o início da adolescência foi muito sofrido porque ele engordou
e ficou cheio de espinhas, o que mexeu profundamente com a sua auto-estima e
a sua autoconfiança. Convivia com um grupo que freqüentava o mesmo clube e
se lembra de ficar no meio das garotas e dos garotos que namoravam entre si,
enquanto ele morria de vergonha e só o que lhe restava era ficar de platéia: “...
então eu via tudo aquilo, assistia tudo aquilo, mas eu não conseguia participar...
Tinha muita vontade de... de participar, mas aí eu ficava meio isolado”.
Seu primeiro namoro aconteceu quando tinha 13 anos. Refere-se à
primeira namorada como “problemática”. Acabou descobrindo que ela estava
mantendo dois relacionamentos ao mesmo tempo. Isso porque a prima dela
namorava com Tomás, seu irmão do meio: “... e essa que eu me apaixonei um
pouco era prima dessa namorada do meu irmão... Então fui viver a história do
outro, né? Só que ela era muito problemática, então na hora que eu me relacionei
com ela, pumba: ela foi lá e teve um caso com outro. E aí eu chutei o pau da
barraca”. Afirma que não chegou a ficar apaixonado por ela, mas sentiu atração
porque ela estava sempre lhe dando bola: “... era uma atração, né... era uma
coisa fácil... era alguém que estava me dando bola (...) e eu me sentia muito
147
preconceituado (sic) naquele grupo (...) Foi alguém que me trouxe uma luz
naquela história toda”. O término deste namoro coincidiu com o afastamento dele
do grupo de amigos do clube. Comenta que este afastamento permitiu que ele se
libertasse de todas as gozações das quais era alvo. A partir daí [mais para o final
da adolescência], teve vários relacionamentos com garotas.
Chegou a ter envolvimento com drogas entre os 13 e 15 anos. Aos 16
resolveu que iria largar a droga e mudar de vida: “... eu não queria mais aquela
vida que eu estava tendo e fiz uma mudança muito radical. Eu me rebelei contra
mim mesmo e comecei a fazer teatro no clube [do qual ele e a família eram
sócios]. Ali eu comecei a mudar de círculo de amizades. O pessoal com que eu
andava na época que usava droga... começava assim: comprava droga e sempre
enganava o outro na hora de distribuir. Um querendo fazer negócio tendo
vantagem em cima do outro... e eu não tinha esse espírito de negócios e de
vantagens. Eu sempre queria uma coisa mais harmoniosa entre as pessoas. Aí eu
comecei a perceber que aquele não era o meu grupo social. E aí eu parei com as
drogas. E porque eu parei com as drogas, aquele grupo já não queria mais a
minha presença”. Passou a se relacionar com um grupo de amigos com os quais
tinha maior afinidade e cuja amizade ele mantém até hoje.
Os familiares de Jorge tinham o costume de interceptar seus telefonemas
com as namoradas e depois ficar fazendo piada em cima das conversas ouvidas,
o que o deixava indignado pelo desrespeito: “... isso era muito complicado! Tudo
que eu fazia, eles sabiam... e ficavam controlando, né. E isso não é problema
deles, né. Eu não tenho que participar desse tipo de situação!”
148
Também nesse período jogava rúgbi e fazia ioga: “... era muito louco,
porque eu ia jogar rúgbi e durante a semana fazia ioga (gargalhando). Então, era
completamente distinto, né. E sempre gostando de coisas corporais, de atividades
de corpo, tal. Então, eu me matava no final de semana, voltava todo arrebentado...
parecia que eu estava voltando da guerra e, durante a semana, eu ia para as
minhas atividades de ioga, relaxamento, meditação e treino de rúgbi tudo junto,
né”. No último ano de vestibular foi convocado para a seleção brasileira de rúgbi e
acabou aceitando o convite. Porém, no segundo semestre desistiu porque
precisava prestar vestibular. Resolveu fazer a seleção para o curso de Medicina,
reconhecendo que a mãe era uma referência muito forte para ele e que, na
verdade, era ela que simbolizava o masculino dentro de casa, dando ordens e
tomando decisões em nome da família: “... lógico, fui fazer vestibular para
Medicina, né... porque era o meu padrão masculino, né”. Acabou não
conseguindo entrar na Faculdade por dez nomes na lista.
Com 18 anos foi convocado pelo CPOR (Centro de Preparação de
Oficiais da Reserva) e ficou muito feliz. Foi o seu primeiro confronto mais direto
com os pais, que tinham conseguido livrar os dois filhos mais velhos do serviço
militar e não queriam que Jorge servisse: “... achei que aquilo era o máximo do
masculino que eu poderia atingir na época, né, e fui fazer Exército. O CPOR era
um exército diferenciado, eu achava que era legal e isso era uma outra coisa que
eu estava me rebelando, porque eu vi os meus pais livrando os meus irmãos do
Exército, pagando, e eu não admitia isso. (...) Hoje eu me dou conta de quanto eu
tive força pra enfrentar esse tipo de situação”. Admite que prestar serviço militar
comportou vantagens e desvantagens e faz uma comparação entre o
autoritarismo do pai e do exército : “... fiz, foi muito bom pra mim ter feito e foi
149
muito ruim, tá? Porque eu demorei acho que uns quatro, cinco anos de terapia pra
me livrar do ranço autoritário que eu já vinha herdando do meu pai e consolidei no
Exército, né. E esse ranço autoritário que vinha do meu pai era muito claro... como
ele não tinha um projeto masculino, então ele colocava o autoritarismo como uma
maneira de exercer isso, né. Então, ele impunha a vontade dele para que a gente
se permitisse a isso”.
ESTUDOS, VIAGENS E BAR MITZVAH: A TRANSIÇÃO PARA A VIDA ADULTA
No ano seguinte à saída do Exército iniciou o curso de Direito, cuja
escolha foi feita depois de ter recebido uma proposta de um amigo do pai para
trabalhar com ele no Escritório de Advocacia. O curso não o atraía muito, embora
estivesse indo muito bem: “... eu ficava pensando: não é bem isso que eu quero
ser quando eu crescer”. Decidiu trancá-lo e viajar para Israel.
Jorge é de família judaica e considerou que essa viagem seria uma ótima
oportunidade para fazer o seu Bar Mitzvah. Segundo ele, quando mais novo, por
volta dos 13 anos, os pais não o incentivaram a fazer o bar mitzvah, apesar dos
avôs dele terem sido rabinos: “... e minha mãe sempre chantageando, né, aquela
típica mãe judia, né. Por exemplo, um dos rituais que seria importante, que seria o
Bar Mitzvah, de 13 anos, que é um ritual do masculino,... eles me chantagearam
pra que eu não fizesse: ‘não, você... quando você fizer 18 anos você ganha uma
viagem... não precisa fazer’. O meu pai vem de uma história meio comunista
também, tal, e eles não tinham esta questão religiosa, apesar dos meus avôs
serem rabinos e tudo mais. E é um ritual superimportante, né, porque é o ritual de
transformação, de maioridade, do masculino e tal... e aí eu falei: ‘tá bom, então eu
vou viajar!’. Então, quando eu fiz 18 anos, minha mãe não queria dar a viagem
150
porque ela mantinha todo mundo ali, preso à ela. E aí, com o Exército, eu tive
direito a um estágio que remunerava muito bem. Então, com esse dinheiro eu
falei: ‘tô indo...’ (gargalhando) e passei um ano viajando, né”.
Após ter ido para Israel e feito o Bar Mitzvah, Jorge viajou de mochila nas
costas pela Europa durante um ano. Lá, envolveu-se novamente com drogas: “...
foi supergostoso ter viajado. Aí voltei a ter contato com drogas lá na Europa, né,
porque ali todo mundo fumava haxixe e os estrangeiros bebem muito, tal... Mas aí
quando eu voltei para o Brasil eu parei tudo de novo. Eu olhei pra aquilo e falei:
‘não, deixa eu parar com isso de novo!’ E foi aí que eu comecei a fazer terapia,
também”.
Procurou retomar o curso de Direito assim que chegou ao Brasil, mas só
conseguiu suportar por dois meses e resolveu largá-lo de vez. Afirma que os
amigos, suas referências, já não eram mais os mesmos Depois de desistir do
curso de Direito, foi fazer faculdade de Fisioterapia. Relata que a escolha foi
resultado de um conjunto de identificações que havia com coisas relacionadas ao
corpo. Os anos que passara jogando rúgbi e fazendo ioga, além de um período no
qual participou de um curso de teatro [que envolvia dança e coreografia], fez com
que ele percebesse que uma profissão voltada para o corpo lhe agradaria e traria
satisfação.
INÍCIO DA VIDA ADULTA: AMORES E DESAFIOS
Durante o curso de Fisioterapia conheceu sua primeira esposa, Vanessa.
Ela era de outro estado e estava morando sozinha em São Paulo. Eles
começaram a namorar, viajavam juntos. Vanessa também tinha vontade de fazer
faculdade e os interesses dos dois se assemelhavam.
151
No último ano da faculdade, Vanessa engravidou e Jorge descobriu que
tinha um adenoma brônquio (tumor de pulmão). Sofreu cirurgia no final daquele
ano e em janeiro voltou para as aulas no interior, onde estudava. Eles decidiram
que teriam o filho juntos e depois se casariam. Recorda-se da conversa que teve
com Vanessa quando ela lhe revelou que estava grávida: “eu sou um homem. Eu
vou assumir a situação”. Para ele, isto significava ter que se submeter às
transformações que este evento trazia para sua vida, isto é, assumir todas as
responsabilidades decorrentes: “... quando você tem um filho, (...) o mundo te
coloca uma responsabilidade, mas também te dá suporte pra você poder lidar com
isso. Então, teu trabalho aumenta: você tem que fazer compras pra casa, você
tem que cuidar da relação familiar, quer dizer, eu me assumir como um pai de
família, um chefe de família, né”. Eduardo nasceu e Jorge afirma que Vanessa
não estava preparada para ser mãe. Por conta disso, segundo ele, o casamento
se tornou insuportável. Na época, ele vivia com o dinheiro que recebia no estágio
que estava fazendo. Vanessa também trabalhava.
O fato é que o casamento não deu certo e ele decidiu sair de casa. Pela
primeira vez estava se auto-sustentando e morando sozinho [ficou quatro anos
morando só]. Alugou uma casa na qual morava e fazia os seus atendimentos
como fisioterapeuta. Afirma que foi um período muito legal da sua vida. Começou
a fazer faculdade de psicologia e reatou com Vanessa, mas, mais uma vez, não
deu certo.
DO SEGUNDO CASAMENTO AO MOMENTO ATUAL
Acabou conhecendo Mirella, sua atual esposa, alguns anos depois de se
separar definitivamente de Vanessa. Mirella é professora universitária e na
152
ocasião tinha acabado de retornar do exterior, onde tinha ido fazer o doutorado.
Jorge afirma que houve uma identificação imediata e comenta: “... ela gostava do
homem que eu era. Com todos os defeitos e qualidades”. Afirma que ao conhecê-
la estava mais amadurecido e que também pôde percebê-la de forma mais inteira,
com as virtudes e as imperfeições. Comenta que namorou várias vezes com
muitas garotas, mas nada que tivesse tido importância a ponto de pensar num
relacionamento mais sério. Realça que não namorou por namorar, “... não estava
exercendo aquela coisa masculina de vou ficar com quinhentas mil depois da
separação”.
Diz que o relacionamento com Mirella lhe propiciou muita satisfação
desde o início e que eles têm um casamento muito feliz: “... casei com uma
pessoa que me realiza como homem de uma maneira completa”.
PATERNIDADE
Jorge comenta que até saber que seria pai pela primeira vez se
considerava um menino. A decisão de assumir a criança e o relacionamento com
Vanessa provocou grande transformação em sua vida, dizendo que se assumiu
como um homem adulto e responsável. Por outro lado, segundo ele, Vanessa
parece ter se assustado com esta mudança: “... porque até então eu era menino...
pra menino e namorado servia... pra um homem, ela não lidava com isso. (...)
Porque aí ela se transformou... ela se escondeu na maternidade de uma maneira
muito intensa. (...) Cansei de cobrar a volta dela: ‘vamos assumir isso tudo junto!
Não o filho, o projeto de vida!’ O filho é o resultado de um projeto. Então, não
consegui fazer isso junto”.
153
O fato de ser pai de Eduardo pesou muito na decisão de se casar
novamente. Jorge afirma que só foi para um novo casamento quando teve certeza
de que Eduardo e Mirella se davam bem. Segundo ele, até então nenhuma
namorada tinha reunido condições para lidar com o garoto do jeito que ele
desejava: “... eu tive várias namoradas que não tinham a menor condição, né...
Então a hora que isso ficava transparente, eu virava pra elas e falava assim: ‘olha,
tá muito legal, mas tchau!’... Não dá, né? Ele era uma prioridade pra mim...”. Além
do amor que sentia por Mirella, ela apresentava algumas condições que foram
cruciais na hora dele decidir pelo casamento: a mãe tinha falecido quando ela
ainda era criança, o pai havia se casado novamente e ela sabia como era para
uma criança conviver com a nova esposa do pai. Outro ponto favorável é que ela
e Eduardo se deram muito bem desde o início.
Para Jorge, os filhos têm grande importância e, além disso, um significado
particular: “... é a continuidade do meu masculino seguindo o curso da vida”.
PROJETO MASCULINO
Ele também teceu algumas considerações sobre o seu projeto masculino,
uma vez que sabia ser esse o tema do trabalho. Mas havia também outro motivo
para falar sobre isso, uma vez que fez psicoterapia durante alguns anos visando
exatamente ir ao encontro da sua identidade como homem: “... eu estava
buscando um projeto de liberdade da minha mãe (rindo), né... é bem claro isso.
Minha mãe boicotava o masculino de todo mundo. Ela controlava com dinheiro,
com exemplos errados... e ao mesmo tempo em que ela parecia uma mãe
acolhedora, na verdade ela estava ferrando com todo mundo... ela era a única que
podia ter a identidade masculina, né.... (...) Por isso que eu digo: foi muita terapia
154
para poder lidar com todas essas questões, né, poder suportar a solidão de
buscar uma identidade”.
Continua o relato esclarecendo que significado este projeto tinha na vida
dele atualmente: “... eu busco uma objetividade muito grande na minha vida... Eu
busco uma reorganização das minhas coisas... Eu busco uma racionalidade
associada à emotividade de uma maneira muito concreta... e sempre com uma
forma direta de lidar com o pensamento, sem rodeios, tá? Acho que pra mim isso
é ser masculino... é, por exemplo, é constituir uma nova família... é buscar
flexibilidade na solução das coisas... mas buscar praticidade, entendeu? Ter
minha sensibilidade, que isso faz parte da minha vida, mas procurar executar as
coisas que eu tenho que executar, né...”
Afirma não ter uma ambição de riqueza, algo que para ele está associado
com um “masculino exacerbado”, mas sim de realização profissional e intelectual.
Diz lutar contra uma tendência ao comodismo, buscando sempre uma referência
na sua sensibilidade: “... eu não tenho grandes projetos materiais. Tenho...
assim... quero ter o meu lar firmado, solidificado, né... quero ter outras coisas, mas
dentro de uma referência sensível... Eu acho que é isso que eu busco como
referência masculina”.
Também atribui importância nesse processo de tornar-se homem ao que
chamou de “referência feminina”: “... minha referência feminina foi a minha
terapeuta, né? (risos) Eu acho... super-referência nela. Ela me dava muito chão...
até pra eu me separar dessa coisa misturada [a mãe e o pai associados à
masculinidade mais rígida e autoritária] ... e poder ver o que é uma mulher, qual é
o papel de uma mulher (...) o quanto essa coisa de sensibilidade não deve ser
155
controlada, né. (...) Buscar uma mulher sensível que saiba lidar comigo, com os
meus prós e contras, entendeu? (...) Com os meus excessos de agressividade, ou
minha falta de agressividade... e não que acolha meus problemas! Eu não quero
ninguém me acolhendo e me dominando pelo acolhimento”.
Jorge Análise do Caso
O que se destaca inicialmente no relato de Jorge é um começo de
infância privado da possibilidade de brincar com os irmãos pela diferença de
idade entre eles, o que o tornava um observador dos jogos e brincadeiras. Ainda
assim, tinha admiração pelo irmão mais velho, Fred, e já adolescente o adotou
como seu herói, algo que será comentado mais adiante.
Por outro lado, a convivência com os pais é relatada como escassa,
especialmente com a mãe, que era médica anestesista. Ambos, pai e mãe, são
referidos como autoritários e parece que esta característica é um dos
contrapontos a partir do qual Jorge irá forjar a própria masculinidade. Ele narra
que ainda pequeno, já convivendo com seu próprio grupo de amigos, recebia
orientação da mãe para não levar para casa os problemas ou conflitos ocorridos
na rua. A ordem é que resolvesse tudo sozinho, o que era interpretado por ele
como “partir para a porrada”. A regra era seguida e ele próprio admite ter se
transformado num garoto rebelde por causa disso, mas sob muita insatisfação da
sua parte. O comportamento da mãe lhe exigia uma masculinidade tradicional
agressiva, competitiva e independente mas o que parece é que buscava nos
pais [no pai?] outra referência para lidar com os conflitos interpessoais. Mas,
como é a mãe que é apontada como lhe fazendo esta orientação, é possível
pensar que a busca dele era por uma referência do que comumente está
156
associado ao feminino: atenção, sensibilidade, compreensão. Quando comenta
que chegava a passar grande parte do seu dia na casa de um amigo, às vezes o
final de semana, sem querer retornar, dá a entender que ali esta referência era
encontrada, provavelmente na figura da mãe do amigo.
As mudanças de colégios que ocorreram entre a infância e a
adolescência dão a entender que Jorge acabava ficando submetido àquilo que
acontecia com os irmãos. Ele era um aluno excelente, mas isto não era
considerado e, de algum modo, a sua vontade parecia não ter importância. Com
isso, a sua rebeldia se exacerba a ponto de ele ser reprovado na escola. De
algum modo, a sua masculinidade vai sendo forjada com base na agressividade
(“dar porrada”) e na rebeldia (não ir para a aula, ser reprovado), como forma de se
contrapor ao autoritarismo dos pais e do colégio, o que, de fato, significa seguir
seu modelo agressivo e impositivo. Aqui se torna compreensível a sua
identificação com Fred, o irmão mais velho que se rebelou contra o pai e foi
militante político, exemplo típico de uma solução masculina hegemônica quando,
em sua imaturidade e juventude, ainda se posiciona como um masculino
subalterno.
As transformações da puberdade a que ele se refere permitem pensar na
importância do corpo no processo de construção da sua masculinidade o início da
juventude. Enquanto estava gordo e cheio de espinhas não tinha o respeito e a
admiração do grupo de garotos e tampouco das garotas. A primeira namorada
que arrumou neste período foi aquela (única) que lhe deu bola. De qualquer
modo, é a mulher que lhe serve de contraponto (diferenciação) e, ao mesmo
tempo, o autoriza como homem que é capaz de exercer fascínio e atração. Por
157
outro lado, é a mesma mulher que lhe mostra que ele pode ser trocado por outro,
que não é único e nem insubstituível.
A experimentação e o envolvimento com drogas nesta fase, apesar de ser
um fenômeno comum na adolescência, comporta aqui uma especificidade que
merece ser comentada. Ao narrar sobre os motivos que o levaram a abandonar o
uso de drogas naquele momento, Jorge faz referência ao fato de querer sempre
uma harmonia entre as pessoas, algo que não estava mais ocorrendo no grupo. É
possível interpretar que o uso da droga estava a serviço do encontro de uma
harmonia por parte de alguém que agia como rebelde sem querer, que não sabia
como lidar com a própria sensibilidade e que estava praticamente isolado da
possibilidade de experimentar-se como homem através dos relacionamentos
interpessoais de amizade e afetivo-sexuais. Também a experiência de jogador de
rúgbi e como adepto da ioga parece servir de meio para lidar com duas
características tidas como opostas, mas tão presentes na vida dele: a
agressividade e a sensibilidade. Mas, além disso, o esporte também foi um
artifício que serviu para transformar um corpo obeso e sem atrativos num outro
forte e sedutor, mais apropriado a um “homem de verdade”, algo que teve um
custo: “...eu me matava no final de semana, voltava todo arrebentado... parecia
que eu estava voltando da guerra”. Aqui o corpo é instrumento vital na construção
da identidade masculina e, além disso, o espaço do esporte serve de laboratório
para a experimentação das dinâmicas hierárquicas do poder que, para os
homens, estabelece uma ordem humana na hierarquia a qual se submetem e ao
mesmo tempo o validam em sua ascensão. O comentário que ele fez sobre ter
tido vários relacionamentos com garotas na mesma época em que começou a
158
jogar rúgbi e fazer ioga só reitera a interpretação aqui apresentada: a demanda de
afirmar-se masculino.
O episódio da prestação do serviço militar também é bastante significativo
para o entendimento do projeto de gênero empreendido por Jorge. Em primeiro
lugar, ele destaca que se tratava do CPOR, um “exército diferenciado”, e que
achou que “aquilo era o máximo do masculino” que ele poderia atingir na época.
Além disso, foi a primeira situação na qual ele se confrontou diretamente com os
pais, que não queriam vê-lo servindo o exército. Aqui se percebe uma aliança
clara com uma instituição que é uma das expressões máximas da hegemonia e
do privilégio masculinos, e que comporta um forte simbolismo associado à honra,
à disciplina e à força. Não se tratava, portanto, de qualquer masculinidade e sim
daquela associada ao privilégio.
Por outro lado, a relação dele com o CPOR permite entender que o
dinamismo do fazer e refazer da masculinidade comporta armadilhas e
contradições. Embora tenha gostado da vida militar, admite ter achado muito ruim
o autoritarismo com o qual se deparou no exército, que foi comparado ao
autoritarismo paterno. A diferença entre os dois é que enquanto no exército,
apesar do autoritarismo, ele pôde tirar proveito e aprendeu a gozar das
prerrogativas associadas àquela instituição, com o pai as vantagens, se é que
existiam, não estavam claras, pois ao longo de toda a entrevista ele o colocava
como subalterno à mãe no domínio doméstico.
De todo o relato feito por Jorge sobre a sua história de vida, destaca-se
com mais clareza a importância que os atributos simbólicos associados à
masculinidade tiveram na configuração do seu projeto masculino. Talvez o evento
159
que melhor exemplifique esta argumentação é o do bar mitzvah. Jorge acaba
empreendendo um cabo de guerra com os pais para poder realizar o seu bar
mitzvah, algo que consegue quando vai sozinho para Israel. Ele chega a dizer que
foi chantageado pelos pais para que não o fizesse. Sob o aspecto simbólico, este
episódio é muito significativo, uma vez que, como ele próprio explica, trata-se de
um ritual religioso que simboliza a transformação do menino em homem, isto é,
um ritual da masculinidade. Embora Jorge já tivesse 18 anos, a cerimônia
religiosa permite-lhe ao mesmo tempo opor-se aos pais e estabelecer uma
continuidade cultural e religiosa maior, remetendo-o a um eu socialmente
completo.
As considerações feitas por Jorge sobre os seus namoros detiveram-se
nos relacionamentos que teve com Vanessa, sua primeira esposa e com Mirella, a
esposa atual. Quanto ao relacionamento com Vanessa, ele destacou a sua
reação após o nascimento de Eduardo, afirmando que ela não estava preparada
para ser mãe e tampouco soube lidar com o fato de ele ter assumido a
paternidade como parte de um projeto de vida que os envolvia. Este projeto,
conforme ele próprio esclarece, comportava assumir as responsabilidades
decorrentes do fato de se tornar pai, mas ia além delas: ele o transforma num
projeto mais amplo, isto é, num projeto familiar e mantenedor de uma ordenação
social maior: “.... então, teu trabalho aumenta: você tem que fazer compras pra
casa, você tem que cuidar da relação familiar, quer dizer, eu me assumir como um
pai de família, um chefe de família, né”. Considerando o que os estudos têm
apontado desde os anos 70 sobre as vantagens do casamento e da família para
os homens (discutidas por Kimmel, 2004), é possível pensar que este foi o
primeiro evento que se vislumbrou para Jorge como a oportunidade perfeita para
160
engendrar o seu plano de se tornar um homem adulto, uma vez que o casamento
e a família serviriam de respaldo para realização do seu projeto de gênero:
executar as coisas que tem que executar, fazer as coisas que um homem deve
fazer, dar conta do projeto heteronormativo: tornar-se um homem real,
heterossexual, casado com uma mulher real com a qual constrói uma família, e se
realizar profissional e intelectualmente. Cabe lembrar que ele mesmo afirmou que
é preciso ter o seu lar firmado e consolidado. Por outro lado, também chama a
atenção a sua reação a um feminino que não atende às prescrições sociais (a
mulher que não está preparada para ser mãe).
O relacionamento com Mirella parece servir ao mesmo propósito. No
entanto, há outras especificidades que merecem ser destacadas nesta análise:
Jorge comenta que ela gostava do homem que ele era (início do relacionamento),
com todos os defeitos e qualidades. Mais adiante, revela que o relacionamento
com Mirella o realiza totalmente. Se pensarmos em toda a batalha que ele
empreendeu anteriormente para chegar num acordo entre a sua agressividade e
a sua sensibilidade, como se o “tornar-se homem” só comportasse uma delas,
parece que Mirella lhe responde que um homem pode combinar estas
características e, ainda assim, ser atraente a ponto de uma mulher aceitá-lo
totalmente. Aqui se explicita a dinâmica relacional engendrando os gêneros.
Tornar-se pai pela primeira vez ganha um significado muito especial e
profundo, uma vez que ele declara que isto fez com que deixasse de ser menino
para se tornar um homem, tornando-se membro da ordem social. De fato, embora
o status da paternidade seja vez por outra objeto de deboche (é só prestar
atenção nos desenhos animados e seriados de televisão em destaque
161
atualmente), para muitos homens ela é a validação da sua heterossexualidade,
algo central para a construção de uma determinada masculinidade (hegemônica).
Mas, para Jorge, há outro significado ainda mais profundo no fato de ser pai: é
que os filhos representam “a continuidade do masculino seguindo o curso da
vida”, ou seja, a masculinidade garante a ordem social.
EM SÍNTESE:
O relato da história de vida de Jorge apresenta um projeto de gênero
forjado desde cedo em relação a expressões da masculinidade e da feminilidade
não passíveis de distinção clara. O pai e a mãe eram muito parecidos no que dizia
respeito às funções dentro de casa e fora dela. A mãe era aquela que tomava
decisões sobre os rumos da casa e a vida dos filhos. O pai parecia não se opor a
isso, mas, ao contrário, tudo indica que validava a posição da esposa na família
como figura de autoridade e tinha também o seu lugar de comando. Sendo assim,
as relações hierárquicas de poder entre os sexos na família de Jorge não
estavam evidenciadas para ele. Quando a mãe o orientava a resolver sozinho as
brigas / discussões com os amigos na rua, estava transmitindo aquilo que era
considerado como da alçada masculina naquela família, isto é, um homem
resolve sozinho os seus problemas. Mas isso não favorecia a distinção, ao
contrário, só complicava as coisas para ele. Cabe destacar também a dificuldade
que Jorge teve para lidar com um feminino não-estereotipado (a mãe; a primeira
esposa, que “não soube ser mãe”).
Assim, Jorge viveu muito tempo tentando estabelecer uma distinção que
favorecesse o entendimento de como ele deveria ser como homem. Precisou, se
relacionar com mulheres e homens provavelmente mais imersos nas
162
prerrogativas de cada um dos gêneros para, a partir daí, buscar a conciliação
entre duas de suas características mais evidenciadas (agressividade e
sensibilidade) numa configuração do masculino que lhe permitisse compartilhar
dos privilégios a ele associados.
A história dele é ainda ilustrativa dos combates que um indivíduo tem que
travar para encontrar o seu lugar no mundo da masculinidade hegemônica,
especialmente quando imerso numa gama de relacionamentos significativos cujas
pessoas não estão rigidamente “generificadas”.
4.2. A construção da masculinidade sob a ótica do gênero: uma releitura
do conjunto das histórias de vida
O que se observa das análises das quatro biografias é que há muitos
pontos convergentes entre elas, embora cada um desses homens tenha uma
história de vida peculiar. Juntas, as biografias oferecem um quadro que revela os
múltiplos aspectos envolvidos na construção da masculinidade.
Primeiramente, se observa aquilo que a literatura aponta sobre a
complexidade e dinamismo do projeto masculino (Connell, 1995; DaMatta, 1997).
Os quatro entrevistados descreveram processos permeados de percalços e
labirintos, tensões e ambigüidades, denotando que se tornar um homem é algo
que nunca cessa, que exige constantes negociações, provas, subterfúgios e
performances.
A masculinidade não se apresenta como uma identidade definida na
infância ou adolescência, que está coberta por uma armadura a qual não é
163
retirada ou arejada nunca mais. Ao contrário, é algo negociado ao longo do tempo
em diferentes arenas e com diferentes parceiros.
A família, especialmente a mãe e o pai, é co-partícipe na construção da
ordem de gênero no nascimento, na infância e na adolescência. Mesmo não
estando pautada no modelo tradicional que reproduz esta ordem, como nos casos
de Renato e Jorge, ela expressa a sua centralidade enquanto a primeira
instituição a sustentar a divisão de poder entre os gêneros e, portanto, a
ordenação social.
As mães que fogem ao estereótipo feminino são criticadas (William e
Jorge), seja por não serem afetivas e cuidadoras como “deveriam”, seja por
“ocuparem uma posição que não lhes cabe”, como a provisão e a determinação
das decisões dentro da família. Mesmo sendo profissionais bem-sucedidas, o que
reflete um momento histórico característico, há oposição interna quanto a
percebê-las como expressão de uma outra feminilidade, de uma outra forma de
ser mulher. Assim, a mãe pode ser criticada quando é ela que exige do filho
condutas típicas da masculinidade tradicional (Jorge), expressando aquilo que
Ramírez (1999) observou quanto à incorporação de uma ideologia machista por
homens e mulheres, ou ainda o que Pleck (1995) descreve como ideologia de
gênero. Por outro lado, também é possível tirar proveito dos privilégios advindos
da condição da mãe que detém este poder de decisão (Renato), o que reitera os
meandros que envolvem o projeto masculino.
Quanto aos pais, os quatro relatos refletem uma condição histórica em
que eles estão mais presentes nas vidas dos filhos, porém de forma ambígua: ora
são elogiados e considerados pelo fato de terem provido e cuidado, de serem
164
companheiros de jogos, de viagens, de serem os que os protegem dos medos;
ora são autoritários, fracos, distantes e não-facilitadores da afirmação dos
próprios filhos perante a vida.
Diante disso, há muita ambivalência sendo expressa em relação a eles. É
possível pensar naquilo que Kaufman (1987) afirma a respeito da experiência
contraditória do poder masculino: se um pai é aquele que deve prover, controlar e
socializar, ao buscar uma expressão, pela paternidade, de afetos e atitudes de
companheirismo para com os filhos, corre o risco de desaprovação e crítica.
Como foi visto em capítulo anterior, Pleck (1995) afirmou que os papéis de gênero
contemporâneos são contraditórios e inconsistentes, sendo que violá-los costuma
ter um alto custo (tensão do papel de gênero em suas três expressões).
De qualquer modo, parece que todos estes pais, com maior ou menor
explicitação por parte dos relatos, tiveram papel fundamental no projeto de gênero
destes homens: o de William, ao oferecer condições para que ele retomasse a
sua trajetória hegemônica; o de Renato, ofertando-lhe os privilégios desde
pequeno, por ser o único filho homem; o de Fábio, tributando-lhe na juventude a
possibilidade de adentrar na arena masculina e, assim, participar dos rituais e
modalidades de relações que colaboram para a configuração de uma
masculinidade tradicional; e o de Jorge, desafiando-o a expressar a sua
agressividade e sua raiva como forma de se afirmar no mundo.
O corpo e a sexualidade masculinos se apresentam tanto como
instrumentos de afirmação de poder, força, competência física e atestado da
masculinidade, quanto como atributos que podem deixar um homem à margem
dela. Assim, não é qualquer corpo que serve ao processo de moldagem do
165
projeto de gênero masculino. Os entrevistados mostram como, de algum modo, é
possível postular que a corporificação da masculinidade hegemônica está
associada a estes atributos: ela sugere um modo de definir e ocupar o espaço,
uma habilidade de exercer controle sobre ele e um preparo para colocar o corpo
em risco visando atingir estas expectativas (Whitehead, 2002). Isto se explicita
nos casos aqui tratados, sendo significativo também o modo como este corpo
pode reagir quando o indivíduo se depara com a perda do domínio (Renato).
A (hetero) sexualidade, principalmente na sua expressão física (um corpo
sexual e sexuado), também comporta complexidade na medida em que é uma via
fundamental de validação da virilidade (DaMatta, 1997; Bourdieu, 2005), seja por
meio de relacionamentos com as mulheres, seja na relação sexual ocorrida na
meninice com outros garotos, desde que não se misture com afetos e, de
preferência, na qual o garoto em questão tenha sido o parceiro ativo da
brincadeira.
É possível pensar que as práticas coletivas da masculinidade foram
desenvolvidas a partir de performances muito semelhantes: desde o envolvimento
com o esporte (futebol, rúgbi, acampamento na selva), passando pelas farras com
mulheres (William, Renato e Fábio), serviço militar (Jorge e Renato), bares
(William e Fábio) e empresas. Todas estas performances ofereceram campo e
contexto e, ao mesmo tempo, exigiram ou cobraram adequação e subserviência,
indicando que ser hegemônico também comporta uma dimensão de submissão às
normas do projeto masculino, que dão pouca margem a criação e aos lucros de
que o pretenso poder permitiria.
166
Um processo ativo de enfrentar uma situação e construir formas de viver
nela é central no projeto de gênero (Connell, 1995). O caráter político desse
processo emerge como a chave da diferença entre os entrevistados: enquanto
Jorge soube tirar proveito da sua agressividade se dedicando aos esportes e,
assim, moldando o corpo de acordo com os ditames da masculinidade viril,
William se beneficiou das vantagens que seu pai lhe proporcionou para
compensar o fato de não ter um corpo que atestasse a sua masculinidade nestes
moldes. Por outro lado, Fábio encontrou formas de lidar com as expectativas da
ideologia de gênero (Pleck, 1995) evitando reconhecer seus desejos
homoeróticos (ou afirmá-los para si mesmo e para os outros) e aliando-se à
“confraria dos machos” como meio de fugir à subordinação. Renato, por sua vez,
fez das suas conquistas sexuais uma ferramenta para se afirmar como homem.
Por conta da classe social e das práticas semelhantes em relação ao
nível de estudo, estes homens se beneficiaram de grande parte do dividendo
patriarcal (Connel, 1995). Por exemplo, são profissionais bem-sucedidos e
respeitados. No entanto, seus relacionamentos amorosos e a construção de
projetos conjugais e parentais compartilham da complexidade de manutenção das
demandas antagônicas do momento social, que aponta para uma reformulação
nos padrões hegemônicos tradicionais.
Outra instituição que ganha destaque no forjamento da masculinidade de
dois participantes é a das Forças Armadas. É interessante notar a coincidência de
dois participantes terem servido o CPOR e o mencionarem como um “exército
diferenciado”, reconhecendo-o como um locus da masculinidade, no qual
características como honra, disciplina e respeito são realçadas. Mais uma vez se
167
trata da busca de aliança com a posição hegemônica em contraponto às
masculinidades subordinadas (neste caso, o serviço militar comum).
O casamento e a paternidade na vida destes homens se apresentam
como estando a serviço dos seus projetos de gênero: ambos se enquadram num
projeto maior, o da família tradicional, com relações convencionais entre os
gêneros e a heterossexualidade como maneira correta das pessoas viverem
(projeto heteronormativo).
Embora tenha entrevistado homens de uma população pressupostamente
hegemônica (homens brancos, de classe média e alto nível educacional), é
possível perceber como a hegemonia é fluida, frágil, passível de ameaça e deve
ser continuamente garantida.
Os homens se definem em relação aos outros homens, enquanto as
mulheres são coadjuvantes no relato, sendo que, no todo, isso pode conduzir a
-las como subordinadas, o que reafirma como o privilégio masculino é
invisível e, portanto, como é difícil dar conta do mesmo.
168
Capítulo 5 Considerações Finais
O propósito do presente trabalho foi promover uma reflexão sobre o
projeto masculino a partir da análise de quatro entrevistas de história de vida com
homens brancos, que têm um padrão de vida compatível com o nível social médio
/ médio-alto e de nível educacional superior.
Nossa análise permitiu um alinhamento com os autores aqui
apresentados e cujas proposições teóricas serviram de suporte à mesma.
No geral, verificamos os mesmos aspectos já apontados por Connell
(1987; 1995; 2000; 2002; 2005), Kimmell (1991; 2004), Whitehead (2002), dentre
outros, sobre o fato da masculinidade ser um projeto em aberto. Sem dúvida,
trata-se de um desafio para as teorias psicológicas que procuram dar conta do
projeto masculino como uma identidade que se forja definitivamente no final da
adolescência, comportando daí pra frente uma rigidez e imutabilidade.
Ao reconhecermos a existência de enfoques vantajosos sob a ótica do
gênero para o campo da psicologia, isto se alia às reformulações que o conceito
de desenvolvimento humano tem sofrido nos últimos anos, abrindo-se portas para
um vasto corpo de pesquisas. A noção cada vez mais compartilhada entre os
psicólogos do desenvolvimento de que este é um processo que ocorre ao longo
de todo ciclo vital permite concluir que os projetos humanos são refeitos, algo que
também concluímos em relação à construção da masculinidade.
Dentre outros aspectos que o nosso estudo identificou, o processo de se
tornar um homem envolveu (e ainda envolve) negociações constantes ao longo
do ciclo vital para os quatro entrevistados, comportando relações dialéticas de
169
aliança, subordinação e dominação entre eles e outros homens (amigos, pai,
irmãos) e deles com as mulheres (mãe, namoradas, amigas e esposas).
Trabalhar com o conceito de masculinidade hegemônica e confrontá-lo
com as histórias de vida aqui analisadas permitiu refletir se o constructo dá conta
de entender a complexa dinâmica envolvida no projeto de gênero. Conforme
Connell (1995), a hegemonia é uma relação historicamente móvel, sustentada por
estruturas e normas sociais e que não necessariamente corresponde a homens
concretamente mais poderosos. Por outro lado, a principal crítica a este conceito
é a da tendência a reificá-lo, fazendo com que ele se torne um tipo de caráter fixo.
Na presente pesquisa, podemos afirmar a validade do conceito como instrumento
de análise, uma vez que as biografias aqui relatadas e discutidas ilustraram
claramente as batalhas que os homens travam para se manterem na condição de
privilégio e o quanto, ao conseguirem atingi-la, têm que se haver com novas
situações que a colocam em risco. A contraposição da condição hegemônica em
relação às masculinidades subordinadas, bem como as alianças de cumplicidade
que se estabelecem algumas vezes visando o gozo das vantagens sem o perigo
das acusações e críticas de anti-sexismo e homofobia, foram passíveis de
ilustração por estas histórias.
Fica claro que esta negociação para manutenção das prerrogativas
hegemônicas tem alguns custos: o sofrimento por não poder expressar os
próprios afetos, seja pelas esposas e filhos, seja pelos amigos e amantes
desejados; os problemas de saúde, na forma de cardiopatias, sofrimentos
corporais (esportes competitivos); e na angústia e ansiedade experimentados a
170
cada momento na tentativa de não perder uma posição tão arduamente
conquistada e, ao mesmo tempo, tão suscetível.
Havíamos discutido e criticado as posições que naturalizam a
masculinidade e que afirmam se tratar de uma condição resultante de
determinações biológicas e que, por isso mesmo, serve para justificar as
vantagens dos homens sobre as mulheres. Diante disso, o privilégio masculino
fica escamoteado sob uma explicação apoiada numa “causa inquestionável”. No
entanto, nosso trabalho só reafirma as críticas a esta posição, ao identificar
processos muito mais complexos envolvendo o projeto de “tornar-se homem” e,
além disso, favorece, pela sua análise, que se traga à tona a invisibilidade do
privilégio para os próprios homens.
Na introdução deste trabalho, fizemos uma alusão à Simone de Beauvoir
para afirmarmos nossa posição quanto à masculinidade como um processo em
construção. Os resultados da nossa discussão só a reiteram e, mais que isso,
apontam para a necessidade de novas investigações que possibilitem ampliar a
compreensão de tantas nuances envolvidas na complexa tarefa que nós homens
empreendemos para forjarmos a nossa masculinidade.
Ressalta-se, portanto, a importância de se pesquisar temas relacionados
aos homens e à masculinidade, visando contribuir não só para ampliação desta
compreensão como também para que possamos desenvolver estratégias sob a
forma de programas, intervenções, grupos de apoio, etc, elaborados com maior
rigor e que de fato possam atingir concretamente esta população. Ao contrário do
que essa afirmação possa parecer, pensamos em estratégias que lidem com a
visibilidade do privilégio masculino, o que significa poder beneficiar homens e
171
mulheres igualmente.
Finalmente, como apontamos a necessidade de ampliação de pesquisas
com homens, cabe apresentarmos algumas considerações sobre a nossa
experiência de entrevistá-los.
Em primeiro lugar, gostaríamos de ressaltar que a entrevista biográfica
revelou-se um instrumento extremamente proveitoso para compreensão do
projeto de gênero masculino. Um aspecto que não pode deixar de ser
mencionado em nossas considerações é o caráter peculiar da relação
entrevistador-participante: somos homens da mesma faixa etária, pertencentes a
camadas sócio-educacionais e culturais semelhantes e situados no mesmo
momento histórico. Certamente este fato favoreceu a promoção de uma empatia
mútua e uma expressão quase insignificante de respostas limitadas, conforme
observam Schwalbe & Wolkomir (2003) em seu artigo.
Em sua pesquisa com mulheres, Hime (2004) afirma que ao solicitar de
suas entrevistadas que contassem as suas vidas estas disparavam a falar.
Na nossa experiência, os homens variaram na forma de responder a esta
solicitação. Alguns desandaram a falar, enquanto outros expressaram a
expectativa de que lhes disséssemos o que queríamos que eles contassem sobre
as suas vidas ou por onde eles deveriam começar. Neste caso, optávamos por
responder inicialmente que era para eles relatarem a história de vida, escolhendo
começar de onde quisessem. Caso houvesse insistência sobre o começo,
sugeríamos que iniciassem da infância e, quando o fazíamos, eles se engajavam
no relato sem dificuldades. Houve, ainda, situações nas quais o entrevistado
iniciava uma breve discussão para se aquecer e iniciar o relato: falava do tempo,
172
ou do seu trabalho, ou ainda nos perguntava sobre a profissão de psicólogo e
professor. No entanto, a conversa não se estendia por muito tempo e logo eles
começavam a narrar as suas biografias, o que nos remete àquilo que Schwalbe &
Wolkomir (2003) afirmam sobre o quanto a entrevista com homens é favorecida
se o pesquisador se predispuser a gastar um tempo inicial “jogando conversa
fora”. Reconhecemos que isto favorece um relato imbuído de maior disposição e
abertura por parte do entrevistado.
Construir a própria história para poder compartilhar com um ouvinte exige
do contador uma organização das próprias vivências sob determinada ótica. O
interlocutor, que neste caso é o entrevistador, terá a tarefa de decodificá-la
também por meio de referenciais próprios, sejam teóricos, sejam de experiências
de sua vida pessoal. Portanto, conforme dissemos em momento anterior, trata-se
de uma construção conjunta que atrela o narrador ao ouvinte e permite que a este
último sejam atribuídos papéis diversos. Certamente a nossa reação como
interlocutores desta narrativa pode favorecer ou criar dificuldades na condução da
história pelo contador.
No nosso caso, tivemos uma atitude de interesse, envolvimento e respeito
por tudo que estava sendo relatado. Aliado a isso, como observamos
anteriormente, o fato de compartilharmos do mesmo tempo histórico e de
backgrounds semelhantes colaborou visivelmente para o estabelecimento de uma
afinidade, favorecendo para alguns a expressão de sentimentos mais profundos
em relação a uma ou outra situação específica sem que demonstrassem
constrangimento. De qualquer modo, cabe esclarecer que esta não foi a regra
geral. Por mais que tenhamos procurado demonstrar esta atitude e abertura para
173
acolher aqueles homens e suas histórias, a maioria realizou uma narração
centrada no seu fazer, sem ter demonstrado claramente os afetos envolvidos nas
situações mais críticas, a não ser quando se tratava de emoções “socialmente
autorizadas” para o masculino, como a raiva e a revolta.
O local no qual a entrevista é realizada é apontado na literatura como item
importante para a reflexão sobre a condução da mesma (Brown, 2001 apud
Schwalbe & Wolkomir, 2003). A indicação é a de permitir que o entrevistado
escolha um lugar de sua predileção, sugestão a que obedecemos.
A maioria dos entrevistados indicou o próprio local de trabalho para
realização da entrevista e isto sem dúvida provocou reações inusitadas de nossa
parte. Alguns destes locais se localizavam em prédios modernos, envoltos por
tecnologias e cheios de seguranças. Nestes casos, foi notável nosso sentimento
de intimidação ao percorrermos aqueles corredores amplos, cruzarmos com
homens e mulheres elegantes no trajar e adentrarmos em salas bonitas e
confortáveis, tão explicitamente diferente do nosso próprio local de trabalho.
Quanto a isso, cabe analisar o que Schwalbe & Wolkomir (2003) apontam quando
se trata de uma pesquisa envolvendo o gênero: há que se prestar atenção às
exibições de masculinidade presentes no momento da entrevista, uma vez que
elas podem constituir parte dos dados de que o pesquisador necessita. Sem
dúvida, tivemos clareza de que, naqueles casos, estávamos a caminho de
entrevistar um típico representante da masculinidade hegemônica.
Também cabe notar como estas situações de entrevistas nos ambientes
de trabalhos propiciam ao homem que se represente a si próprio como alguém
capaz de manter o controle, a autonomia e a racionalidade. Sem dúvida, foi esta a
174
impressão causada por alguns destes homens. Embora tenham se mostrado
dispostos e terem feito relatos detalhados, deram pouca brecha para falar de
sentimentos em situações que percebíamos terem sido mais delicadas na vida
deles. A dica para que abordássemos primeiro os pensamentos sobre a situação
e somente depois acrescentássemos algo que se referisse aos sentimentos
envolvidos nem sempre surtiram efeito. Aquelas que apresentaram resultados
ocorreram na segunda entrevista, levando-nos a pensar que não se trata de
esconder os sentimentos de outro homem e sim da necessidade de se ter maior
confiança para se assegurar de que haverá ressonância sobre aquilo que se
sente.
A literatura que trata de analisar os aspectos metodológicos envolvidos
nas pesquisas com homens sob a ótica do gênero, especialmente no que diz
respeito à entrevista, apontam que esta pode ser interpretada pelo entrevistado
como uma ameaça-padrão à sua masculinidade, implicando que ele tem que
abandonar certo controle e arriscar a se mostrar como uma pessoa pública
despida. Isto faz com que muitos homens tentem exercer algum controle
compensatório sobre a situação da entrevista, por meio de estratégias que visam
testar os conhecimentos do entrevistador ou menosprezá-lo (ou à temática que
ele investiga). Na nossa experiência não houve situações em que este controle
compensatório tenha ficado explícito.
Finalmente, cabe chamar a atenção para o fato do pesquisador (só o
homem?) ter flexibilidade e paciência, além de conseguir tomar decisões rápidas
e estimar cuidadosamente as situações quando se trata de entrevista com
homens. Tivemos duas situações bastante inusitadas que nos exigiram respostas
175
imediatas e nos fizeram pensar na relação de poder e na questão de quem está
no controle. Numa delas, o participante nos telefonou quinze minutos antes (sem
que tivéssemos combinado anteriormente) para dizer que estava nos esperando
para a entrevista porque estava livre naquele momento. Na outra, o entrevistado
nos telefonou no nosso celular, quando já estávamos na porta do edifício da
empresa em que ele trabalhava, para dizer que estava no aeroporto e que não
poderia fazer a entrevista. Sem dúvida, nestes dois casos, a relação que estava
configurada entre o entrevistador e o entrevistado era a de dominação-
subordinação e nós, na condição de subordinados, nos sentimos bem
pequenininhos.
Concluindo, o fenômeno por nós investigado mostrou-se complexo e
provocante, fazendo com que o nosso interesse por ele permaneça e acreditando
que esse trabalho foi só um começo de outros que certamente iremos
desenvolver no futuro.
A impressão que fica é que ainda havia muito a discutir e refletir se
tivéssemos tido mais tempo, mas nem sempre há congruência entre o nosso
desejo e as limitações impostas pelos prazos e obrigações.
Já disse alguém que não terminamos uma tese, mas que paramos em
determinado momento.
Seguiremos nossa trilha e outros projetos virão.
176
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183
ANEXO
184
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
“Outra gramática? Perspectivas masculinas sobre o amor e os
relacionamentos amorosos”.*
Declaro que os objetivos e detalhes desse estudo foram-me completamente
explicados, conforme seu texto descritivo em anexo. Entendo que não sou obrigado a
participar do estudo e que posso descontinuar minha participação, a qualquer momento,
sem ser em nada prejudicado.
Meu nome não será utilizado nos documentos pertencentes a este estudo e a
confidencialidade dos meus registros será garantida. Desse modo, concordo em
participar do estudo e cooperar com o pesquisador.
Nome do pesquisado:
Nome: ________________________________ RG: _______________________
Data:___/____/20____. Assinatura: __________________________
Testemunha:
Nome: ________________________________ RG: _______________________
Data:___/____/20____. Assinatura: _________________________
Pesquisador:
Nome: ________________________________ RG: _______________________
Data:___/____/20____. Assinatura: _________________________
O nome da tese não é o mesmo do projeto aprovado pelo Comitê de Ética. A modificação do
nome para a tese se deu em função de sugestão dos membros da Banca de Qualificação, que
consideraram que o nome inicial não traduzia de forma clara o tema do trabalho.
Rua Monte Alegre, 984 - São Paulo - SP - CEP: 05014-901 - Tel: (0xx11) 3670-8000
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