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modelo médico de intervenção, segundo Camargo Jr (2003, p81), tem sua base nesta
montagem teórica onde a “identificação produzida entre doença e lesão permite reduzir ao
biológico todo o processos do adoecimento, excluindo componentes outros (“psicológicos”,
“sociais”) que possam estar envolvidos nesta determinação.”
Na verdade, compreender como ocorre a construção dos saberes médicos implica
considerar o que Camargo Jr. (2003) denominou ‘racionalidade biomédica’
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que sustenta a
prática e a formação profissional em saúde. A partir de Flexner
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, a educação médica passou a
ser entendida como um processo de iniciação a uma ciência: a medicina. Assim, o saber
médico encontra-se construído a partir da racionalidade científica, onde a prática médica
consiste na aplicação e no produto desta ciência. Na prática médica o cientificismo
desqualificou as ferramentas consideradas não científicas, em prol das ditas científicas. Desta
forma, houve uma inversão de prioridades na prática médica que, ao reduzir o homem à sua
doença e a doença ao seu substrato anátomo-fisiopatológico, passou a tratar a doença e não
mais o doente. O indivíduo passa a ser fragmentado e reduzido a um somatório de órgãos e
sistemas, tornando-se objeto das disciplinas científicas que o estudarão. O paciente é visto de
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O termo reflete a vinculação entre a racionalidade médica e o conhecimento produzido por disciplinas
científicas do campo da biologia. Um maior aprofundamento sobre este tema pode ser obtido nos capítulos 6 e 7
do original do autor. (CAMARGO JR, 2003)
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Tendo como objeto a avaliação do ensino médico nos Estados Unidos e Canadá, o Relatório Flexner,
publicado em 1910 pela Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, ultrapassou seus objetivos -
políticos, institucionais, sociais e geográficos - e aportou em todos os países da região latino-americana,
notadamente após a 2
a
Guerra. Sem sombra de dúvida, seus princípios e parâmetros - aparentemente voltados
para a formação do médico - inspiram as diretrizes que até hoje costuram as relações entre ensino e serviços de
saúde, orientam as políticas e a operação desses setores de produção social e, afinal, conformam, orientam ou
constrangem as próprias demandas sociais. Seus principais elementos estruturais são: mecanicismo (introduz a
analogia do corpo humano com a máquina, importante para o modo de produção dominante); biologismo
(reconhece exclusivamente a natureza biológica das doenças e de suas causas e conseqüências); individualismo
(a medicina elege o indivíduo como seu objeto e aliena de sua vida os aspectos sociais); especialização
(aprofundamento do conhecimento específico e atenuação do conhecimento holístico, além da dimensão
econômica da necessidade de fragmentação do processo de produção); exclusão das práticas alternativas
(consideradas “ineficazes”); tecnificação do ato médico (o parâmetro de qualidade passou a ser o grau de
densidade tecnológica presente na prática, em detrimento da capacidade de promover ou restaurar a saúde);
ênfase na medicina curativa, pois este é o setor mais suscetível de incorporar tecnologias e também porque
prestigiar diagnóstico e terapêutica significa valorizar o processo fisiopatológico, em detrimento da causa);
gestão tecnocrática (de natureza racionalizadora). Com isso, Flexner passou a ser associado a um rígido modelo
de ensino médico, que privilegia a formação científica de alto nível, o estudo do corpo humano segundo órgãos e
sistemas (com o estímulo à especialização profissional), acreditando ser possível o entendimento do homem pelo
estudo das partes.” (MENDES, 1984; SANTANA & CHRISTÓFARO, 2002).