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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
ANA LUISA KLEIN FAISTEL
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NOS DISCURSOS
DE PROFESSORAS
Ijuí (RS)
2006
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ANA LUISA KLEIN FAISTEL
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NOS DISCURSOS
DE PROFESSORAS
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Educação
nas Ciências, Departamento de Pedagogia (DePe),
da Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), requisito parcial
para obtenção do Grau de Mestre em Educação.
Orientadora: Dra Elza Maria Falkembach
Ijuí (RS)
2006
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2
A Banca Examinadora abaixo-assinada aprova a Dissertação:
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NOS DISCURSOS
DE PROFESSORAS
elaborada por
ANA LUISA KLEIN FAISTEL
como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação.
Ijuí (RS), 10 de julho de 2006.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Prof
a
Dr
a
Elza Maria Falkembach
Orientadora
_______________________________________
Prof
a
Dr
a
Anna Rosa Santiago
Membro da Banca
_______________________________________
Prof
a
Dra Noeli Weschenfelder
Membro da Banca
_______________________________________
Prof
a
Dr
a
Valesca Fortes de Oliveira
Membro da Banca
3
AGRADECIMENTOS
Depois de uma longa caminhada de pesquisa, apresento aqui o resultado de um
trabalho reflexivo, mas também partilhado. E por ser resultado de estudos pessoais, diálogo
com escritos de outros pesquisadores, troca de idéias e experiências, agradeço a algumas das
pessoas que estiveram a meu lado e contribuíram para que meus objetivos fossem alcançados.
Ao meu marido, Ivan, e aos filhos Paola e Tiago – e também ao novo membro da
família, que me enche de alegria antes mesmo de ter nascido. A eles recorri quando afetada
pelo cansaço e com eles partilhei diálogos e afetos.
Aos meus pais, Odete e Odilon, que sempre me incentivaram – a mim e a meus
irmãos – a dedicar-me aos estudos.
Às minhas colegas professoras, com quem partilhei experiências e observações.
E, finalmente, expresso minha gratidão pelo acompanhamento e dedicação de minha
Orientadora, Elza Falkembach.
Como esta dissertação é apenas uma parte de minha trajetória, espero também contar
com ambos citados para desafios futuros.
Obrigada!
4
Tocando em Frente
Ando devagar porque já tive pressa
e levo esse sorriso, porque já chorei demais.
Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe
eu só levo a certeza de que muito pouco eu sei, eu nada sei.
Conhecer as manhas e as manhãs,
o sabor das massas e das maçãs,
é preciso amor pra poder pulsar,
é preciso paz pra poder sorrir,
é preciso a chuva para florir.
Penso que cumprir a vida seja simplesmente
compreender a marcha, e ir tocando em frente
como um velho boiadeiro levando a boiada,
eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou,
da estrada eu sou.
Todo mundo ama um dia, todo mundo chora,
Um dia a gente chega, no outro vai embora.
Cada um de nós compõe a sua história,
e cada ser em si, carrega o dom de ser capaz,
e ser feliz.
Almir Sater e Renato Teixeira
5
RESUMO
Este trabalho dissertativo tem como intenção contribuir para uma reflexão sobre a formação
docente a partir da análise da construção de sua identidade na história. Para tanto, utilizam-se
como referenciais as teorias que versam sobre as representações docentes e que permitem
compreender a constituição identitária destas profissionais. Nas discussões consideram-se os
dizeres das professoras e suas concepções a respeito da docência, saber, fazer e da sua própria
formação profissional. A partir da análise de fragmentos retirados das atas de Formação
Continuada, o estudo aponta questões relativas à identidade e às técnicas de si que se realizam
nesta prática. Com isto, busca-se discutir a formação e a construção de identidades docentes a
partir de mecanismos de controle e regulação que homogeneízam identidades, negando ou
minimizando a possibilidade de singularidade do sujeito. A importância do discurso e dos
enunciados a eles ligados não está somente na sua expressão, mas nas posições e nos locais de
onde se fala, de onde se enunciam, bem como da materialidade desta enunciação. O sujeito
educador se constitui, então, por uma multiplicidade de dizeres que se repetem, se redizem.
Neste processo, o sujeito constitui a si próprio utilizando-se de modelos da representação que
variam entre o que é conhecido e o que precisa ser repetido. A “estética da existência” nas
características assinaladas por Foucault comporta uma capacidade de percepção e abertura
para a experiência pela qual o sujeito torna-se capaz de perceber a si próprio como sujeito
construtor de si e de sua história.
Palavras-chave: Identidade. Subjetividade. Sujeito. Formação continuada. Técnicas de si.
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ABSTRACT
This work dissertation has as intention to contribute for a reflection about the educational
formation starting from the analysis of the construction of his/her identity in the history. For
so much, they are used as referenciais the theories that turn about the educational
representations and that you/they allow to understand these professionals' constitution
identitária. In the discussions they are considered the teachers' sayings and their conceptions
regarding the teaching, to know, to do and of his/her own professional formation. Starting
from the analysis of solitary fragments of the minutes of Continuous Formation, the study
points relative subjects to the identity and the techniques of itself that you/they take place in
this practice. With this, it is looked for to discuss the formation and the construction of
educational identities starting from control mechanisms and regulation that homogenized
identities, denying or minimizing the possibility of singularity of the subject. The importance
of the speech and of the statements to them linked it is not only in his/her expression, but in
the positions and in the places from where is spoken, from where are enunciated, as well as of
the materiality of this enunciation. The educating subject is constituted, then, for a
multiplicity of sayings that you/they repeat, if redizem. In this process, the subject constitutes
itself own being used of models of the representation that vary among what is known and the
one that needs be repeated. The “aesthetics of the existence” in the characteristics marked by
Foucault holds a perception capacity and opening for the experience for the which the subject
becomes capable to notice itself own as building subject of itself and of his/her history.
Key words: Identity. Subjectivity. Subject. Continuous formation. Techniques of itself.
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SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES
INICIAIS ..................................................................................................8
1 PRÁTICAS DISCURSIVAS E A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EDUCADORA....17
1.1 Representação e Educação..................................................................................................17
1.2 Magistério: vocação e profissão.........................................................................................33
2 A INCLUSÃO DA MULHER NO MUNDO DO TRABALHO E O SUPORTE
DISCURSIVO..........................................................................................................................43
2.1 Trabalho e Magistério no Universo Feminino....................................................................43
2.2 As Convenções Sociais na Formação do Gênero...............................................................52
2.3 Disciplina e Normalização na Formação das Professoras..................................................58
3 A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DAS PROFESSORAS................................................78
3.1 As Relações de Poder na Construção Docente...................................................................78
3.2 As Práticas e os Saberes Docentes .....................................................................................90
3.3 As Técnicas de Si e a Formação Continuada .....................................................................99
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................109
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................115
8
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Promover uma reflexão sobre A construção da identidade nos discursos de
professoras é, ao mesmo tempo, buscar compreender a minha própria identificação enquanto
educadora e perceber as estratégias mobilizadas pelo aparato discursivo maior no qual essa
identificação encontra respaldo. O estudo que ora se apresenta foi se configurando em minha
própria construção como profissional da área educacional – especificamente das séries iniciais
do Ensino Fundamental – e na multiplicidade de experiências de educadoras com as quais
convivi e convivo na atuação como professora. Assim, o tempo de trabalho com alunos e as
experiências com as colegas me levaram a alguns questionamentos a respeito de nossa
construção identitária.
Em reuniões de Formação Continuada, promovidas pela Coordenadoria Regional de
Educação, era praxe que nós professores fizéssemos pequenos relatos tendo como base alguns
textos estudados. Uma destas ocasiões de produção textual representou um despertar para o
estudo que aqui se apresenta. Uma colega apresentou um texto que principiava com uma
pequena narrativa envolvendo profissionais de áreas distintas e o processo de evolução da
sociedade. Em síntese, a narrativa tratava de um cientista que tinha congelado, para fins de
pesquisa, um médico, um arquiteto e um professor. Decorridos 100 anos (que era o tempo
previsto para o estudo), outros cientistas descongelaram as três pessoas e as reintegraram à
vida social, em especial, ao desenvolvimento das atividades próprias de cada profissão. Após
9
o descongelamento, o médico entrou no hospital e não pôde trabalhar, pois tudo estava
mudado, a medicina havia entrado na era tecnológica e doenças que antes matavam agora
eram tratadas sem maiores problemas, porém outras tinham surgido e o médico não sabia
como agir, sua atuação estava comprometida. Da mesma forma, o arquiteto não conseguiu
elaborar seus projetos com os novos instrumentos de cálculos e técnicas de trabalho, tornara-
se obsoleto para um mundo com tantas novidades e parafernálias tecnológicas. O professor,
no entanto, ao chegar à escola logo começou a trabalhar, sentia-se em casa, nada havia
mudado, sua adaptação foi perfeita e instantânea; nem ele, nem ninguém que o rodeava no
ambiente profissional percebera que um século havia se passado desde a última aula dada. O
texto prosseguia relacionando a narrativa ficcional (mas verossímil) aos tópicos estudados nos
textos teóricos oferecidos pelo coordenador da reunião.
Diante da apresentação da narrativa de minha colega fiquei inquieta e pensativa: será
que a escola de hoje é de fato igual à de cem anos atrás, ou seríamos nós, enquanto
professores, que continuamos agindo de forma tão igual?
Analisando a realidade, de fato verifica-se a existência de escolas com prédios
centenários, mas, certamente, não foi a estrutura física que fez o professor da narrativa se
sentir tão à vontade. Passei, então, a refletir e observar o dia-a-dia escolar, as falas e as formas
de trabalho. Chamaram-me a atenção, então, os nossos dizeres a respeito do aluno, da escola e
de nós mesmos. Dizeres circulares, autocompletivos e que parecem uníssonos.
Senti necessidade de compreender como foram produzidas estas formas de trabalho,
como se firmaram esses elementos identitários em cada uma de nós e como estes elementos
mostraram-se capazes de produzir singularidades e, ao mesmo tempo, impressões de
homogeneidade. Essas manifestações objetivas e subjetivas, associadas à elaboração do
10
processo identitário, me fizeram pensar que, de certa forma, todos nós estamos submetidos a
processos discursivos que podem determinar nossas identidades.
Foi assim que me propus a desenvolver este trabalho dissertativo, com o objetivo de
analisar a construção da identidade da professora em diferentes momentos da história. Assim,
procurei abordar a forma sujeito implícita na identidade e revelada em depoimentos de um
grupo de educadoras de séries iniciais com as quais compartilhei práticas pedagógicas em
escolas públicas do município de Ijuí, cidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
Para efeito de estudo foi preciso me colocar em uma posição de questionamento das
formas de identificação, no entanto isso não significou estabelecer imagens como positivas ou
negativas. Ou seja, não foi minha pretensão determinar a representação da professora como
correta ou errada, boa ou não, mas compreender como a identidade docente se construiu
discursivamente.
O corpus da pesquisa foi constituído por dizeres de sete professoras
1
do Currículo por
Atividades de escolas da rede pública estadual de Ijuí. A seleção do grupo de professoras
obedeceu ao critério de tempo de serviço no magistério, sobre o qual foi criado o seguinte
quadro: uma professora iniciante (menos de três anos de profissão), duas professoras com
mais de cinco anos de experiência profissional, duas professoras com mais de dez anos de
experiência profissional e outras duas com mais de vinte anos de experiência profissional. As
professoras apresentam depoimentos escritos dos quais foram selecionados alguns fragmentos
para compor os textos deste trabalho dissertativo. Todas as professoras participantes da
pesquisa tiveram como formação inicial o Curso Normal e trabalharam no início de carreira
com turmas de alfabetização (1ª série). Como formação superior todas as professoras têm o
1
No corpo do trabalho as professoras são identificadas por pseudônimos: Laura, Carla, Elvira, Ivete, Íris,
Mônica e Renata.
11
curso de Pedagogia com habilitação em Séries Iniciais ou Supervisão Escolar. Além desta
formação, duas professoras são também formadas em Direito.
Tomando por base que toda a instituição configura um conjunto de práticas sociais e
que estas se encontram vinculadas a um aparato discursivo pelo qual se define o lugar
ocupado por seus atores, no caso as professoras, propus observar registros da Formação
Continuada da escola a que pertencem as professoras participantes da pesquisa. Pelo estudo,
percebe-se esta atividade como uma prática que, ao ser produzida, aciona saberes e
mecanismos que tanto a legitimam como fornecem elementos para a constituição subjetiva
das docentes.
A pesquisa de cunho empírico, envolvendo os depoimentos das professoras e alguns
recortes de reuniões de Formação Continuada, favoreceu a análise qualitativa que, de acordo
com Minayo (1996, p. 21), preocupa-se com um nível de realidade que não pode ser
quantificado. Este tipo de análise trabalha com o universo de significados, motivos,
aspirações, crenças, valores e atitudes correspondentes ao espaço de relações sociais e que não
podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. Minayo (1996, p. 22), explicando a
diferença entre qualitativo-quantitativo, afirma que a abordagem na pesquisa qualitativa
aprofunda o significado das ações e relações humanas, considerando aspectos que não são
perceptíveis em um nível superficial, pois se baseia na exploração de significados e na
subjetividade.
Neste sentido, o material de análise foi colhido a partir da solicitação feita às
professoras participantes da pesquisa de escrita de um texto sobre suas vidas como
educadoras, considerando os aspectos: o que é ser professora/educadora; o que as levou à
escolha desta profissão; formação profissional inicial e continuada; relatos de vivências do
12
dia-a-dia; situações conflituosas ou problemas da prática pedagógica; motivações e
desmotivações; expectativas e projetos para o futuro.
Ao recuperar momentos das histórias de vida pessoal das professoras intencionei
investigar como estas mulheres se posicionam e constroem o discurso pedagógico e como
promovem a relação entre suas posições de fala e a constituição de suas subjetividades. Tomei
como base o pensamento de Michel Foucault, segundo o qual a construção social do discurso
e do sujeito acontece mediante circunstâncias histórico-sociais em que os participantes se
encontram posicionadas em relações de poder. Assim, procurei analisar as enunciações das
professoras como construções histórico-sociais e tomei como hipótese a idéia de que a
representação constitui-se como uma das estratégias de constituição destes discursos sobre a
mulher e a docência.
Ao trabalhar com a pesquisa empírica (falas decorrentes das histórias de vida e
pressupostos da formação continuada), observei a “absorção” pelas mulheres professoras dos
elementos representativos, veiculados pelo discurso socialmente construído e representado
pela escola. Dos textos produzidos pelas professoras e das atas de reunião de formação
continuada, foram recortadas situações de fala que privilegiam o discurso da identidade, com
a finalidade de verificar se o sujeito docente se constitui mediante uma fala homogênea ou
não. Este estudo enfatiza as noções de gênero, sujeito/subjetividade, representação e
identidade.
Vale lembrar que o conceito de gênero adquiriu papel central na teoria feminista
contemporânea – em oposição à dimensão simplesmente biológica do processo de
diferenciação social – ao referir-se a aspectos culturais e sociais das relações entre os sexos.
Scott (1995, p. 16), ao reforçar a necessidade de se ultrapassar o emprego descritivo do
13
gênero, salienta a necessidade da utilização de uma epistemologia mais radical, encontrada no
âmbito do pós-estruturalismo, particularmente em certas abordagens associadas a Michel
Foucault e Jacques Derrida. Estas abordagens são, para a autora, capazes de fornecer ao
feminismo uma perspectiva analítica poderosa. Neste sentido, considera que os estudos sobre
gênero devem apontar para a rejeição do caráter fixo e permanentemente atribuído à oposição
binária “masculino versus feminino”. Estes elementos precisam passar por uma historicização
e “desconstrução”, nos termos de Jacques Derrida, para que assim haja uma reversão e um
deslocamento da construção hierárquica, em vez de uma aceitação desta como óbvia ou
pertencente à natureza das coisas.
Foucault, com sua crítica pós-estruturalista, considera o sujeito como um efeito do
discurso e de relações de poder e de técnicas de si. Ao considerar o sujeito na perspectiva
educacional, percebe-se que este “sujeito” é centrado, racional e autônomo e está no núcleo
tanto das pedagogias tradicionais, como a educação humanista, quanto das pedagogias
críticas, como da educação libertadora (SILVA, 2000, p. 102).
Foucault considera que os sujeitos constituem-se situados num determinado espaço e
tempo histórico-social. A partir da observação de práticas discursivas e não discursivas,
Foucault desenvolve sua tese sobre a relação saber-poder e cria a denominação “microfísica
do poder” – correspondente aos “pequenos poderes” (formados a partir de um saber) que dão
conta de uma verdade e constroem um certo tipo de poder, que influencia a constituição dos
sujeitos. Para Foucault, tanto a prática discursiva como a não discursiva positivam, constituem
o sujeito.
De acordo com a temática proposta para este trabalho, serão analisadas as práticas
discursivas em relação ao feminino, em especial no que diz respeito à posição de mulher e
14
professora, procurando observar as categorias centrais que funcionam nas práticas discursivas
como normas que se identificam com a positividade do discurso. Em seguida à demarcação
destas categorias procura-se identificar os deslocamentos históricos (tanto a arqueologia de
Foucault como a genealogia, embora se afastem da epistemologia, elas mantêm-se
conceituais) que se apresentam pelas práticas discursivas em questão. É importante salientar
também que neste trabalho não se analisam as regras de formação, mas a prática do discurso.
Por necessidade metodológica, o campo discursivo tomado para estudo é o discurso
escolar e suas formas de subjetivar as professoras. Considera-se discurso da mesma forma
que Foucault (2002) o considera, ou seja, como uma dispersão, isto é, o discurso é sempre
formado por elementos que nem sempre estão ligados a regras de funcionamento comum.
Nesta perspectiva, um discurso é um conjunto de enunciados que tem seus princípios de
regularidade em uma mesma formação discursiva.
Ao se considerar o discurso escolar como objeto de estudo é imprescindível a
compreensão de que tal discurso possui um número determinado de enunciados que, ao se
repetirem e se renovarem, produzem sujeitos educadores. Foucault (2000, p. 44-45) pondera
que o sistema de ensino é uma ritualização da palavra, uma qualificação dos papéis para os
sujeitos que falam, uma distribuição e apropriação do discurso que envolve poderes e saberes.
Este estudo específico procura determinar as formas pelas quais os recursos retóricos e
expressivos do discurso são utilizados para a obtenção de certos efeitos sociais, isto é, como
acontecem as conexões entre discurso e poder. “No contexto da crítica pós-estruturalista, o
termo [discurso] é utilizado para enfatizar o caráter lingüístico do processo de construção do
mundo social.” Para Foucault, “o discurso não descreve simplesmente objetos que lhe são
exteriores: o discurso ‘fabrica’ objetos sobre os quais fala.” (SILVA, 2000, p. 43).
15
O discurso é uma prática discursiva da sociedade (é histórico e cultural) e incide sobre
a mulher professora. Ou seja, a escola enquanto instituição social referenda o discurso e o
reafirma pelo uso de práticas de si – dispositivos usados para formar e transformar os sujeitos
docentes. Assim, definem-se relações de poder sobre as mulheres/professoras, pois a escola
absorve e reforça o discurso, ainda que este seja formado para além dela, em planos mais
amplos, no social. Em função disso, a escola adquire técnicas de controle que se realizam na
articulação de práticas discursivas e não discursivas por meio do controle sobre os horários,
da ocupação do espaço e tempo de todos, e também determinando sobre a formação
continuada dos docentes.
No momento em que as mulheres se reconhecem no discurso que é feito sobre a
mulher e a professora encontram identificações que são constitutivas de sua identidade. A
identidade é da ordem da representação e da recognição, já a identificação sinaliza como vou
ser igual a. Nesse sentido, a identidade é, já a diferença deve. A diferença firma-se a partir de
identificações, é uma multiplicidade de elementos que produzem subjetivação – identidades
múltiplas – decorrentes de subjetividades em transformação..
Nesta pesquisa considera-se a representação como um complexo de “formas textuais e
visuais através das quais se descrevem os diferentes grupos culturais e suas características”.
São exploradas as ligações existentes “entre identidade cultural e representação, com base no
pressuposto de que não existe identidade fora da representação.” (SILVA, 2000, p. 97).
A fim de atender às expectativas deste estudo, o trabalho está organizado em três
capítulos. O primeiro deles procura mostrar como ocorre a formação dos discursos referentes
às mulheres e que conferem identidade às educadoras. Discute a gênese dos padrões
discursivos moduladores da imagem das educadoras, com o intuito de verificar os efeitos de
16
verdade instituídos pelas redes de poder que os legitimam. Ainda na perspectiva da
representação são analisados os mecanismos de poder que conduzem à profissionalização da
mulher, os processos responsáveis pela feminilização da atividade educativa, e as formas de
representar a mulher educadora. Também são apresentadas algumas falas das professoras nas
quais estas questões são abordadas.
Por sua vez, o segundo capítulo enfoca as lutas promovidas pelas mulheres na tentativa
de obter reconhecimento como sujeitos sociais. São apresentadas questões relativas ao
movimento feminista – que arquitetou a inclusão da mulher no universo do trabalho – e ao
magistério, enfocando a construção social do gênero. Faz-se um percurso sobre como se
constrói a relação mulher/magistério a partir de convenções sociais limitadoras dos papéis que
podem ser exercidos por homens e mulheres na sociedade. Também se observa a existência de
um “controle”, realizado com o objetivo de criar uma disciplina sobre os corpos femininos,
tanto no curso normal como na Formação Continuada. Sobre tal disciplinamento, verifica-se
que as formações inicial e continuada preparam e qualificam as mulheres, usando conteúdos
baseados nas formas subjetivas de ser e agir no campo profissional e social.
Finalmente, o terceiro capítulo busca, por meio da análise dos fragmentos das falas das
professoras, visualizar as relações de poder e saber existentes no transcurso da carreira
profissional das educadoras. São observadas as regularidades, semelhanças, descontinuidades
e as perspectivas nas falas das educadoras. Há também uma observação sobre a percepção que
cada professora tem de seu universo profissional e da formação continuada dos docentes.
17
1 PRÁTICAS DISCURSIVAS E A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EDUCADORA
Neste capítulo serão trabalhadas as representações a respeito da mulher educadora e
suas formas de se constituir como sujeito. Parte-se da idéia que a representação
simultaneamente esconde e revela as características das educadoras para assim verificar o que
a representação produz e que passa a cruzar e interpelar a vida das mulheres, determinando
quem são as professoras como sujeitos, demarcando as suas possibilidades de existência e
legitimando um discurso que demarca suas identidades.
1.1 Representação e Educação
Ao pensar as questões ligadas à educação são inevitáveis as lembranças relativas ao
papel exercido pelas professoras e as implicações históricas, políticas e sociais de sua atuação
no processo educacional. Esse conjunto de elementos permite considerar as educadoras como
pessoas inseridas numa construção discursiva envolta em relações de poder e saber,
2
as quais
as constituem como sujeito e conferem determinadas significações às suas práticas.
À primeira vista, parece tarefa fácil definir o que é ser uma professora, quais são suas
atribuições e a importância de seu papel para o desenvolvimento das relações sociais.
2
Segundo Foucault (2003b, p. 55), os discursos não podem ser tratados somente como “conjunto de significantes
que remetem a conteúdos ou a representações, mas como práticas que remetem sistematicamente os objetos de
que falam.”
18
Contudo, quando são feitos questionamentos que exigem uma resposta conceitual sobre como
mulheres se tornam professoras e como passam a desempenhar o papel de educadoras,
verifica-se que, na compreensão corrente destes sujeitos, há uma produção e reprodução de
significados,
3
que impossibilitam a definição de um “perfil” único e exato do que é “ser
educadora”.
A representação docente é construção social e carrega as marcas do que as educadoras
desejam ser e do que a sociedade espera que elas estejam aptas a realizar. Os modelos sociais
determinam os sistemas educativos, postulam e conservam uma identidade entre os sujeitos e
sua função. Existe uma “convenção” estipulando como a pessoa deve ser e agir para
desempenhar um dado papel. Assim, para executar todas as atividades, as professoras devem
possuir características muito específicas. Na representação profissional, tais especificidades
permitem a construção de uma imagem da profissão: “aquela mulher é educadora”, “esta é
especialista”, “estas são trabalhadoras”. A imagem profissional associada aos indivíduos é
sempre o produto de um lugar e de um tempo determinado e inclui características universais
que caracterizam a representatividade dos sujeitos. Segundo Orlandi (2000, p. 105),
O sujeito de nossa formação social está, de certo modo, “amarrado” à
individualidade. Ou seja, ele não é a simples expressão de sua liberdade mas,
até certo ponto, é uma injunção: injunção esta que, nos procedimentos
pedagógicos aparece como a compulsão à ‘originalidade’ ou obsessão da
‘criatividade’ obrigatória. Essa exigência mostra, na realidade, a necessidade
que temos de um sujeito individualizado, visível, calculável, logo
identificável e, portanto passível de controle. Um sujeito que se apresente
com coerência, com certa permanência (duração), certa especificidade, e do
qual se pode dizer algo, podendo-se, consequentemente, ter dele um certo
domínio.
Assim, compreende-se identidade como um processo contínuo e coerente de produção
dos sujeitos. Como a identidade de cada ser é produzida a partir de práticas normativas, ocorre
3
Os significados são, para Silva (2002, p. 200), produzidos e postos em circulação através das relações de poder.
Os significados carregam a marca do poder que os produziu. Esses significados, organizados em sistemas de
representação, atuam para tornar o mundo social conhecível, pensável, e, portanto, administrável, governável.
19
uma padronização do comportamento humano que cria a idéia de igualdade. Embora,
conforme Silva (2002, p. 201), se constate que “os significados expressos na representação
não são fixos e estáveis, mas flutuantes e indeterminados”, discursos e práticas sociais
escondem, de forma sutil, o que não pertence à representação hegemônica de sujeito, moldam
as concepções de sexualidade, feminilidade e masculinidade, e formam uma rede de verdades
que passa a ser legitimada e aceita por todos. Ocorre, então, a produção identitária como um
fenômeno impulsionado pela dinâmica externa – não sendo possível ao sujeito refazer-se a si
próprio. Silva (2002, p. 201) alerta, contudo, que é pelo processo de contestação “que as
identidades hegemônicas constituídas pelos regimes atuais podem ser desestabilizadas e
implodidas.” Nesse movimento vale lembrar Larrosa (2001, p. 41), para quem “o homem se
faz ao se desfazer”, num processo em que é sempre possível recomeçar:
O homem se diz ao se desdizer: no gesto de apagar o que acaba de ser dito,
para que a página continue em branco. Frente à autoconsciência como
repouso, como verdade, como instalação definitiva na certeza de si, prende a
atenção ao que inquieta, recorda que a verdade costuma ser uma arma dos
poderosos e pensa que a certeza impede a transformação. Perde-te na
biblioteca. Exercita-te no escutar. Aprende a ler e a escrever de novo. Conta-
te a ti mesmo a tua própria história. E queima logo que a tenhas escrito. Não
sejas nunca de tal forma que não possa ser de outra maneira.
A identidade não se reduz ao processo de individuação/identificação. No entanto,
Foucault (2003a, p. 244) assinala que a modernidade produz processos nos quais práticas
disciplinares e procedimentos de vigilância e controle individualizam o homem, tornando-o
sujeito: “a modelagem do corpo dá lugar a um conhecimento do indivíduo, o aprendizado de
técnicas induz a modos de comportamento e a aquisição de aptidões se mistura com a fixação
de relações de poder.” Em meio a estas relações o educador se constitui como o profissional
que acredita na educação, podendo criar e recriar as circunstâncias que caracterizam a sua
prática.
20
Vale ressaltar que a existência do sujeito depende das possibilidades oferecidas pelas
práticas sociais e pelos acontecimentos históricos que se realizam em cada cultura.
4
Em todas
as práticas há um “poder” que subjuga e submete, mas que, no entanto, não tem um caráter
universalizante, pois só existe enquanto é exercido por uns sobre os outros.
5
Nessa linha,
Larossa (2001, p. 9) salienta que:
Não há um eu real e escondido a ser descoberto. Atrás de um véu, há sempre
outro véu; atrás de uma máscara, outra máscara, atrás de uma pele, outra
pele. O eu que importa é aquele que existe sempre mais além daquele que se
toma habitualmente pelo próprio eu: não está para ser descoberto, mas para
ser inventado; não está para ser realizado; mas para ser conquistado; não está
para ser explorado, mas para ser criado.
Foucault (1995, p. 234-235), por sua vez, destaca que na sociedade ocidental se
desenvolveram oposições como a do “poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os
filhos”, transformadas em lutas que questionam o estatuto do indivíduo, pois:
por um lado afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo que
torna os indivíduos verdadeiramente individuais. Por outro lado, atacam tudo
aquilo que separa o indivíduo, que quebra a sua relação com os outros,
fragmenta a vida comunitária, força o indivíduo a se voltar para si mesmo e
o liga a sua própria identidade de um modo coercitivo.
Entende-se que o fato de o homem culturalmente ser considerado como o único
detentor da razão, das leis e das riquezas, e ocupar o núcleo central de referência identitária,
faz com que tudo o que não pertença a essa ordem representativa só exista pela diferença.
4
Foucault trabalha com três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos: “o primeiro é
o modo da investigação, que tenta atingir o estatuto de ciência [...]. Ou, ainda, a objetivação do sujeito produtivo,
do sujeito que trabalha, na análise das riquezas e na economia. Ou um terceiro exemplo, a objetivação do simples
fato de estar vivo na história natural ou na biologia. Na segunda parte do meu trabalho, estudei a objetivação do
sujeito naquilo que eu chamarei de ‘práticas divisoras’. O sujeito é dividido no seu interior e em relação aos
outros. Esse processo o objetiva. Exemplos: o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os bons
‘meninos’. Finalmente, tentei estudar – trabalho atual – o modelo pelo qual um ser humano torna-se um sujeito.
Por exemplo, eu escolhi o domínio da sexualidade – como os homens aprenderam a se reconhecer como sujeitos
de sexualidade.” (FOUCAULT, 1995, p. 231-232).
5
Para Foucault (1995, p. 243), uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e imediatamente
sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais ou atuais,
presentes ou futuras. Uma relação de poder [...] se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por
ser exatamente uma relação de poder: que, “o outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente
reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação; e que se abra diante da relação de poder, todo um campo
de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.
21
Assim, a mulher permanece às margens, pois a sua representação a desapropria dos atributos
considerados masculinos. Ou seja, a mulher representa a alteridade, a diferença e, nas relações
de poder da sociedade, é percebida como um sujeito estranho, como a negatividade do ser
masculino. Neste sentido, a sua diferença é tomada como desqualificação, pois “a diferença
não é uma característica natural: ela é discursivamente produzida. A diferença é sempre uma
relação: não se pode ser diferente de forma absoluta; se é diferente relativamente a alguma
outra coisa, considerada principalmente como ‘não diferente’” (SILVA, 1999, p. 87).
Da forma como está se entendendo o processo discursivo e de construção de
identidades tem-se que as relações de saber e poder estão presentes nos discursos que movem
o cotidiano e que (re)criam as representações que acabam por produzir verdades. A
interpretação e a assimilação de um modelo representativo do sujeito produzem outros
discursos e práticas sociais. No jogo da subjetivação, Foucault (2001, p. 13) assinala a
importância de o sujeito pensar “diferentemente” em vez de legitimar o que já sabe, e coloca
em questionamento a vontade de saber: “de que valeria a obstinação do saber se ele
assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não de certa maneira, e tanto possível, o
descaminho daquele que conhece?”
Para Silva (1999, p. 33), as representações e as identidades sociais são efeitos, produto
e resultado de relações de poder, bem como seus determinantes. Nesse sentido, o autor
compreende que a “política de identidade” se constitui em duas dimensões: representação
como delegação e representação como descrição:
No primeiro caso, trata-se da pergunta sobre quem tem o direito de
representar quem, em instâncias nas quais se considera necessário delegar a
um número reduzido de representantes a voz e o poder de decisão de um
grupo inteiro. Essa idéia de representação constitui justamente a base dos
regimes políticos caracterizados como “democracia representativa”. No
segundo caso, pergunta-se sobre como os diferentes grupos culturais e
sociais são apresentados nas diferentes formas de inscrição cultural: nos
discursos e nas imagens pelos quais a cultura representa o mundo social. As
duas dimensões da representação estão, é claro, indissoluvelmente ligadas.
22
Dessa forma, considera-se que a prática docente possui um corpo de idéias organizado
e elaborado que a explica, justifica e orienta, possui, portanto, o sentido de delegação. Os
modelos de delegação se estabelecem, sobretudo, a partir de regras e normas a serem seguidas
por todos, e não constituem um sistema autoritário, que poderia gerar resistência de uns. A
delegação é a “imposição livremente aceita”, constituindo-se, assim, como a chave dos
sistemas democráticos. Como sempre alguns sujeitos ou grupos organizados desenvolvem
melhores condições de participação, estes adquirem o controle sobre os processos de
organização e decisão dentro do coletivo. Como exemplo desta atuação, num momento da
história do país alguns professores participaram da elaboração dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), uma produção-discurso que embasa e caracteriza a educação no Brasil e a
ação de todos os professores. Outro exemplo de atuação da denegação encontra-se no âmbito
sindical em que alguns professores participam ativamente do movimento e, autorizados por
convenções em assembléias, recebem e assumem a delegação para falar e decidir pela
totalidade de professores. As decisões da assembléia sindical são soberanas e os professores,
mesmo os que não se envolvem no movimento, devem se assujeitar às decisões e
conseqüentes discursos do grupo ao qual delegaram poderes.
Quando consideradas pelo enfoque da representação, todas as questões relativas à
educação, como a escolha profissional, a formação e as metodologias de trabalho, são vistas
como naturais, ou seja, não se discute o porquê de se pensar ou fazer o que se faz ou diz. A
representação configura-se como um guia de ação, pois remete a práticas que se transmite de
professor para professor nas relações de trabalho dentro da escola e nas práticas sociais às
quais estão inseridos. O sujeito professor aparece, assim, como uma dimensão tanto da
delegação como da descrição, e as formas de representação se processam em sua
individualidade, de maneira que sua existência torna-se clara e real.
23
A imagem da professora associada a uma representação é tomada como evidência. É
“evidente” que a professora goste de crianças, que tenha dedicação pelo seu trabalho e trate
com amor seus alunos. Os processos de identificação da professora com a profissão são
evidências assimiladas a partir das produções discursivas aceitas por todos, pois “as
evidências são o que todo mundo vê, o que é indubitável para o olhar, o que tem que se aceitar
apenas pela autoridade de seu próprio aparecer.” (LARROSA, 2001, p. 83).
Se as práticas docentes são evidentes, como é que um sujeito ousaria não repeti-las em
seus dizeres? É neste sentido que as professoras geralmente compreendem sua profissão como
fruto da “vocação”, como uma “missão” que lhes foi conferida e que deve ser preservada
como qualquer elemento tradicional. É a partir da fixação dessas evidências e da assimilação
das práticas discursivas e sociais impostas como evidências que os modelos representativos se
perpetuam de um grupo para outro, de uma geração de professores para outra, tornando a
identidade invisível.
Conforme Louro (2000, p. 100), “a norma não precisa dizer de si, ela é a identidade
suposta, presumida; e isso a torna, de algum modo praticamente invisível.” Ou seja, o grupo
social postula a identidade como necessária, ou como natural, questiona quem não se encaixa
numa forma tida como “padrão”, ou quando os dizeres de outrem não são simétricos ao
discurso de sua representação. Tudo isso faz com que a professora procure se modelar a uma
identidade que na sua essência postula que a mulher educadora é aquela que gosta de criança,
é carinhosa, tem paciência e torna o seu fazer em realização. De certa forma esta é uma
identidade imposta para as professoras e aquele que não se assujeita a essa identidade só pode
existir pela diferença, inevitavelmente vista como negativa, pois foge aos padrões
homogeneizadores.
24
As dificuldades da instituição escolar em lidar com as diferenças são perceptíveis nos
dispositivos criados para conter, neutralizar ou impedir que a própria diferença e as suas
possibilidades “contagiem” outras pessoas na instituição. Para tanto, são utilizados
mecanismos de controle e vigilância, como se percebe neste trecho extraído da fala de uma
professora participante desta pesquisa:
Tentando mudar a situação lançamos uma chapa à eleição. Nosso grupo
perdeu a eleição e fomos ‘convidadas’ a nos retirarmos da escola. Como
não aceitamos o convite, a diretora mudou o turno de trabalho e isso sim fez
com que fôssemos para outras escolas. (Elvira).
6
A identidade docente “padrão”, que se mantém “invisível”, constitui-se daquilo que é
esperado das professoras, ou seja: que sejam e representem o ideal a ser alcançado. Por
conseqüência, as formas identitárias que se desviam do padrão “normal” são tidas como
identidades “marcadas”, pois são representadas “não apenas por comparação à identidade
hegemônica, mas a partir do olhar hegemônico, daí que, muitas vezes, a identidade marcada
não pode falar por si mesma.” (LOURO, 2000, p. 101).
Nesse caso, a diferença não é vista como uma forma de singularidade, como outra
possibilidade de ser professora, e sim como uma forma de ‘governo da individualização’ que,
segundo Foucault (1995, p. 235), se produz a partir de “efeitos de poder relacionados ao
saber, à competência e à qualificação”, e promovem lutas contra a “oposição ao segredo, à
deformação e às representações mistificadoras impostas às pessoas.” As resistências estão
sempre presentes, porém o sistema educativo continua reproduzindo professores com imagens
invisíveis porque, entre outros aspectos, a estrutura física e administrativa da escola
permanece “padronizada” há séculos, com discursos que se deslocam, se repetem e se
reatualizam, conservando suas verdades.
6
Professora da rede pública estadual, no momento da pesquisa com cinco anos de experiência no magistério.
Trabalha com a 3ª série do ensino fundamental.
25
A representação da figura da mulher, com suas expressões afetivas, envolvendo o
sentido de abnegação, serviram para a construção de um sujeito social dependente e também
para a criação de um modelo de formação da “professora”. Conforme Louro (2000, p. 28), os
discursos dotados de concessões para a mulher atuar como professora destacam que “as
mulheres têm ‘por natureza’ uma inclinação para o trato com as crianças, que elas são as
primeiras e naturais educadoras.” Esta visão sobre a forma de representação padroniza o
modo de ser da mulher e da professora, ao mesmo tempo em que promove a negação da
pluralidade que um movimento mais autônomo em torno da constituição da identidade da
mulher requer. Os sentidos representativos que o gênero feminino adquiriu socialmente
fizeram com que a imagem “idealizada” da mulher também fosse absorvida como identitária
de todas as professoras.
Nesse sentido, a “abertura” do campo profissional propiciou que a profissão
“professora” fosse praticamente a única a oferecer à mulher um trabalho “digno” e a desejada
inclusão nos espaços públicos. A participação feminina na educação foi fundamentada em
discursos que criaram e reforçaram um sistema de referências, no qual o mundo instituído da
profissão foi elaborado historicamente. Na consolidada visão da mulher feita para o
magistério tende-se a esquecer que os corpos docentes também estão submetidos a processos
“de disciplinamento, domesticação e sujeição. A separação entre mente e corpo – central ao
processo educacional e ao currículo – implica uma negação, um ocultamento do corpo
docente, um processo de descorporificação e descarnamento.” (SILVA, 2002, p. 203-204).
No final do século XIX, as mulheres que passaram a exercer o magistério ocuparam
posições que ainda pertenciam nesse espaço/tempo ao mundo masculino. A representação de
professora se difundiu pela imagem da mulher solteirona. Sobre ela referenciaram-se os
atributos de abnegação, vocação e a maternidade “espiritual”, haja vista que seus alunos
26
seriam os filhos que não teve. Por este discurso, os alunos constituiriam a sua família e a
escola seria o seu lar. No entanto, essas mulheres necessitavam carregar consigo algumas
representações da masculinidade docente:
7
“figura severa, de poucos sorrisos, cuja afetividade
estava de algum modo escondida.” (LOURO, 1997, p. 467).
A severidade era recomendada para romper discursos que então concebiam a
representação de mulher como frágil e propensa a sentimentos, portanto incapaz de “educar”.
Dessa forma, foram tecidas redes discursivas que visavam prover a mulher professora de
alguns recursos que lhe permitissem controlar seus sentimentos e exercer a autoridade em sala
de aula. Para disciplinar seus alunos e alunas, ela precisava primeiro disciplinar a si mesma.
Sendo assim, “seus gestos deveriam ser contidos, seu olhar precisaria impor autoridade. Ela
precisaria ter controle da classe, considerado um indicador de eficiência ou de sucesso na
função docente até nossos dias.” (LOURO, 1997, p. 467). Tal discurso disciplinador foi capaz
de homogeneizar a conduta docente ao mesmo tempo em que promoveu processos de
identificação para o magistério feminino.
No final do século XIX e início do século XX, a preferência para o exercício do
magistério era dada a mulheres viúvas ou casadas, em detrimento das jovens e solteiras. O
propósito de homogeneizar a conduta docente também se pautava nas questões referentes à
sexualidade. De acordo com Louro (1997, p. 468), havia certas exigências para as mulheres
atuarem como professoras, exemplo disso é a norma: “para as aulas do sexo masculino
poderão ser nomeadas as mulheres que houverem atingido os 23 anos, acrescentando que
7
Neste período da história (final do século XIX e inicio do século XX), os homens professores impunham a
ordem e a disciplina através de métodos e posturas rígidas. Conservavam para si as virtudes de comandar,
administrar, organizar e deter poder sobre os outros. Santiago (1995, p. 102) coloca que após o feminismo “o
homem está onde nunca esteve. Passa por uma séria crise de identidade. O novo lugar que ocupa, aparentemente
secundário, medíocre e desvantajoso, retira-o da condição de único provedor e, por isso mesmo, único mártir, e
leva-o a dialogar com as forças plurais que o cercam e o questionam, conduzindo-o a uma atitude que longe de
negar a sua busca de identidade, procura construí-la sem detrimento das identidades dos outros grupos em nome
dos quais egoística e autoritariamente falava.”
27
essas só recebam meninos até 10 anos.” Com isso, a vida particular das mulheres, sua conduta
e honra, passava a ser vigiada pela sociedade como um todo. Por estas práticas de
disciplinamento, o corpo da mulher se tornou “assexuado” e definidor do padrão hegemônico
de mestra. Tal forma de representar se mantém no tempo, conforme se pode visualizar nos
dizeres da professora Ivete:
8
As professoras do curso também precisavam demonstrar em sua forma de
vestir o modelo de professora que passavam para as alunas. Parecia não
haver muita diferença quanto ao modo de se vestir e se portar das
normalistas para as professoras. Se preservava o mesmo estilo, seriedade e
“decência”. Havia elegância, mas as roupas eram mais alongadas, sem
degótes, cabelos presos ou soltos, mas sempre bem arrumados.
Segundo Foucault (2003b, p. 244), é através das relações de poder que o corpo passa
a ser percebido pelo que se denomina “dispositivo de sexualidade”
9
que abarca práticas
sociais capazes de tornarem o sexo em motor da vida individual e social, a partir de “um
conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas.” Neste sentido, o corpo se transforma numa
forma de controle e dominação das subjetividades docentes.
Os investimentos realizados sobre os sujeitos a partir de aparelhos prescritivos
diversos como a família, instituições educativas e igreja constroem as subjetividades docentes
a partir de assujeitamentos, obediência a normas, valores e verdades da sociedade em sua
temporalidade. Tais investimentos funcionam como elementos que permitem “justificar e
mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta
prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade” (FOUCAULT, 2003b, p. 244).
8
Professora da rede pública estadual de educação com mais de 20 anos de experiência profissional no
magistério. Trabalha como supervisora escolar.
9
Para Foucault (2003b, p. 246), o dispositivo “está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no
entanto, ligado a uma configuração de poder”. São também para o autor “estratégias de relações de força
sustentando tipos de saber, e sendo sustentado por eles.”
28
Embora muitas características se mantenham no decorrer do tempo, verificam-se
algumas transformações ou reformulações nos discursos sobre as mulheres professoras. Louro
(1997, p. 469) afirma que a partir da década de 1930 do século XX surgiram novas
representações sociais e novos discursos sobre a representação docente: “as mulheres
professoras teriam de fazer-se agora, de modos diferentes, incorporando em suas
subjetividades e em suas práticas as mudanças sociais.” Nesse período, são as normalistas ou
“professorinhas” que passam a ganhar destaque nos setores sociais e educacionais.
Freqüentar o magistério e ser normalista era garantia de status social e de estar
preparada para o casamento. Esse modelo representativo da “professorinha” conserva a escola
como extensão do lar. Dessa forma, o currículo, além de suprir a parte didático-pedagógica
deveria proporcionar a preparação para a administração do lar: caso a mulher não fosse
exercer o magistério, o curso não representaria um desperdício, e estaria assegurando a
representatividade feminina. Em sala de aula, a professora deveria demonstrar afetividade,
dedicação e amor pela profissão. Em ambos os casos, a representação da postura feminina
corresponde a um “preenchimento estratégico do dispositivo”, discurso que veicula a
professorinha e a prática presente no magistério, pelo qual se torna possível interiorizar
papéis, valores e normas permitidos para as mulheres da época.
Em meados do século XX, as mulheres, principalmente da classe média, passaram a
freqüentar o curso normal e a lecionar no magistério, rompendo com inúmeras barreiras
criadas pela estrutura social. Talvez para muitas a profissão não tenha sido a pretendida ou
sonhada, mas a única permitida por uma sociedade fortemente marcada pela cultura ocidental,
na qual se traça o destino feminino, incumbindo às mulheres a responsabilidade sobre o
matrimônio, a educação dos filhos e os cuidados domésticos. Nos espaços sociais, as
limitações para a atuação das mulheres fizeram com que a vontade e a necessidade de
trabalhar se concretizassem somente no exercício do magistério.
29
A profissão professora é vista como um dever sagrado, um sacerdócio, uma vocação
para a qual a mulher, por excelência, está preparada. Neste caso, o que se encontra em
primeiro plano não é a capacidade intelectual da mulher para a profissão, mas o dom natural
conferido a ela (mãe por natureza) para educar as crianças. Uma produção discursiva que
demonstra que os gêneros masculino e feminino são construções sociais para as quais, “as
nossas escolhas, a nossa sexualidade, a nossa vida familiar, são informadas pelo social, tem
sentido político e exercem efeitos que transcendem o âmbito privado.” (LOURO, 2000, p.
19).
Nas décadas de 1960/70 substitui-se a representação da professora como mãe
“espiritual” por uma nova figura: a profissional de ensino. A expressão passa a ser empregada
nas mensagens governamentais, nas orientações administrativas que regulam o sistema
educacional, na mídia e até entre os docentes. Para Louro (1997, p. 473), “é possível admitir
que esse novo discurso representava um contra argumento em relação à concepção do
magistério como extensão das atividades maternais, de cuidado, apoio emocional.” Os
professores passaram a dar maior ênfase à técnica, burocratizando e intensificando o seu
trabalho em sala de aula, de forma que pudessem, a partir da utilização de métodos
tecnicistas, obter resultados que garantissem a qualidade de seu trabalho.
Segundo Louro (2000, p. 36), houve uma grande adesão dos docentes a este discurso,
principalmente pelas mulheres, para quem ele constituía uma oportunidade de “reivindicar o
reconhecimento profissional e ajudava-lhes a lutar por salários iguais aos dos homens, ao
mesmo tempo em que lhes oferecia novos argumentos para reivindicar melhores condições de
trabalho.” A formação universitária e o domínio metodológico da ação pedagógica
representaram uma tentativa de ruptura, por parte das mulheres, com relação à identidade
vocacional reconhecida e propagada como única e verdadeira.
30
Na segunda metade do século XX, outra forma de representação se constituiu a partir
da resistência e luta que os professores travaram na busca de reconhecimento e melhores
salários: “criam-se centros de professores e sindicatos que expressam suas reivindicações
através de greves e manifestações públicas de maior visibilidade e impacto social.” (LOURO,
1997, p. 474). Os educadores, a partir desse discurso, passaram à denominação de
trabalhadoras e trabalhadores da educação, principalmente em nível sindical.
Comparada à imagem da professorinha do início do século, há um notório contraste
com a representação de trabalhadoras/trabalhadores. São adotados outros gestos, atitudes,
outros comportamentos. As trabalhadoras em educação representam a mulher militante,
“disposta a ir às ruas [...] ela deve ser capaz de parar suas aulas, gritar palavras de ordem em
frente a palácios e sedes de governo, expor publicamente sua condição de assalariada (não
mais de mãe, tia ou religiosa).” (LOURO, 2000, p. 36). Com esse discurso sindical surge uma
nova representação na qual a escola é uma outra esfera de socialização, que pode até seguir o
trabalho do lar, porém, aos profissionais que estão no espaço da escola é conclamada uma
atitude profissional. O movimento sindical produz outras representações e propõe um novo
ethos para o fazer educação, pois exige profissionalização: um fazer condizente com o que os
currículos propõem.
O discurso de trabalhadoras/trabalhadores, contudo, passa a ser publicizado através de
uma luta que se caracterizou por uma predominância corporativa. A questão salarial é visada
como principal elemento de mobilização, porém, como nem sempre ocorrem ganhos, a luta se
tornou frágil. O discurso sindical falava da prática pedagógica, mas não tinha força suficiente
para produzir rupturas nos sistemas escolares, porque, no fundo, o foco que sempre uniu os
professores é o salarial. A partir daí, a professora passou a viver dois papéis: o de sindicalista
e o de educadora.
31
A educadora, nova elaboração da representação docente, apresenta um modelo em que
há uma tentativa de enfatizar o caráter amplo de sua atividade: “a missão de educadora é
fornecer apoio afetivo, emocional e intelectual à criança, de modo que suas potencialidades se
tornem presentes. Além de instruir, ou mais importante do que instruir, sua tarefa consiste em
educar.” (LOURO, 1997, p. 472). Esse discurso retoma e amplia o universo de atuação da
professora, sem, contudo provocar maiores rupturas na imagem docente, pois não foram
desfeitos os elementos vocação e missão que cada professora carrega consigo e transmite aos
outros. Exemplo disto está nos dizeres de Elvira, em que os deslocamentos representativos a
colocam num duelo entre a professora que possui um saber e ensina e também precisa cuidar
da relação afetiva presente no processo de ensino-aprendizagem:
Entendo que a relação afetiva é indispensável ao trabalho docente, mas que
não há de se separar do conhecimento científico necessário à prática do
magistério, nem se confundir com a displicência ou com a licenciosidade.
Ensino e aprendo com afeto, carinho, atenção, mas também com
responsabilidade e autoridade sobre o que faço e com quem estabeleço a
relação pedagógica.
A identificação docente não é homogênea, definitiva e estanque no seu agir temporal e
espacial, ela se transforma ou se altera, em função de circunstâncias que combinam a tradição
do ser professora, com as exigências de mudanças elaboradas pela sociedade e que são
depositadas no trabalho de cada sujeito educador.
Os diversos discursos construídos nos seus espaços/tempos foram compondo e
marcando a identidade dos educadores, uma vez que a identidade não se encontra pronta e
acabada, mas em permanente construção; nela, o novo e o velho agregam valores, de forma
que o que identifica o professor hoje também pertence ao seu passado. “O saber-fazer, as artes
dos mestres da educação do passado deixaram as suas marcas na prática dos educadores e
educadoras de nossos dias. Esse saber-fazer e suas dimensões ou traços mais permanentes
sobrevivem em nós.” (ARROYO, 2000, p. 18).
32
A memória, revelada em fotografias ou escritos, deixa à mostra o quanto cada
professor ainda guarda em si relativo a hábitos e traços, saberes e fazeres dos antigos mestres.
Segundo Arroyo (2000, p. 17), “guardamos em nós o mestre que tantos foram. Podemos
modernizá-lo, mas nunca deixamos de sê-lo.” Mesmo que em muitos casos os professores
procurem se manter em contínuo aperfeiçoamento teórico, na prática escolar percebe-se que o
trabalho e as posturas continuam muito parecidos com aqueles dos educadores de tempos
atrás.
O ser professora se estabelece pela representação construída a respeito da escola e da
docência, de forma que se torna um produto da própria experiência individual, estabelecido a
partir das práticas sociais em que cada sujeito se constituiu. O sujeito se significa em relação a
alguma coisa e o significado, tão indispensável ao homem, não se faz no vazio. Hall (2003, p.
40) destaca que “eu sei quem ‘eu’ sou em relação com ‘o outro' que eu não posso ser.” Neste
sentido, pode-se dizer que o ser homem ou ser mulher é determinado através de redes
discursivas provenientes da cultura sobre gênero, raça, corpo. Da mesma forma, o ser
professora se institui nos discursos acadêmicos, sociais, escolares, históricos.
Cada representação serve de molde, guia de comportamento adaptado à
individualidade do sujeito, e é validada na própria ação pedagógica. Sendo assim,
desconstruir
10
os estereótipos sobre a natureza da mulher e da professora é também uma
forma de problematizar as mudanças e os contextos históricos nos quais as mulheres
aparecem como sujeitos. As diferenças nas formas de representar as professoras
gradativamente deslocam alguns dos significados das relações de poder e saber que envolvem
o processo educativo, pois o fazer pedagógico se constituiu historicamente nestas relações.
10
Desconstruir não significa pois negar, anular ou subestimar os valores dados como universais pelo século XIX,
valores que visavam colocar o homem, racional ou utopicamente, face a face com seu presente, com o intuito de
aperfeiçoar a ambos, o mundo e o homem, pelo conhecimento da história daquele neste. Trata-se antes de abalar,
num primeiro gesto, o alicerce em que se assenta o já pensado pelo homem, tal qual esse já-pensado foi posto em
prática e se tornou dominante (SANTIAGO, 1995).
33
Nesse processo de compreensão identitária a questão da vocação se apresenta como
uma forma dos sujeitos se perceberem “livres” quanto a sua escolha profissional, já que a
representação conserva alguns elementos que a constituem, abandona outros e inclui novos.
Contudo, em grande parte dos casos, o sujeito que se diz vocacionado para a sua profissão, ao
mesmo tempo em que resume a sua questão de ser, fecha o campo de possibilidades para um
vir a ser. Essa questão será abordada a seguir.
1.2 Magistério: vocação e profissão
O feminino na constituição do quadro do magistério se apresenta e se estrutura não
somente apoiado nos discursos governamentais, mas, sobretudo, nos discursos sociais em que
as “falas que separam masculino-feminino” reiteram o sentido vocacional concebido ao afazer
das professoras. Esta é uma delegação “surda”, pois a mulher/professora consente com esses
discursos. Ou seja, as próprias mulheres ao se referirem à escolha profissional assimilam e
manifestam aquilo que é permitido dizer pelo discurso pedagógico e pelas práticas sociais.
Em seus dizeres geralmente colocam em primeiro plano o gosto pelas crianças – o que é, de
certa forma, uma questão subjetiva, pois nem todos que gostam de crianças sabem trabalhar
com as aprendizagens que estas necessitam.
Socialmente, a representação das professoras ocupa os mesmos padrões do “ser
mulher”, tal projeção do “ser” acrescenta e preserva alguns elementos de forma que ocorra um
movimento constante em que questões representativas como vocação e doação passam a
constituir as práticas docentes e as próprias professoras. Trata-se de um discurso que também
se torna conveniente para as mulheres, já nas primeiras décadas do século XX, ao
incorporarem a linguagem da “vocação” em seu exercício docente, constroem estratégias para
ingressar no espaço público onde predominavam os homens.
34
Essa aceitação e resistência contribuíram para romper com a dificuldade feminina de
acesso ao mundo privado, mas foi de tal forma assimilada que passou a ser uma verdade na
qual a maioria das mulheres se reconhece. O discurso da vocação, apresentado para justificar
a entrada e permanência no magistério, se transforma num discurso insistente que, quanto
mais repetido, mais revela o ser feminino condicionado a estereótipos sociais, produzido por
discursos e práticas que são (re)interpretados e assumidos pelas mulheres em suas histórias de
vida.
Nesta linha, considera-se que o contexto histórico também determina as formas de ser
e agir no mundo, por isso é lícito afirmar que o contexto fornece elementos para a produção
das subjetividades. Para ilustrar essa assertiva pode-se recorrer às produções escritas pelas
professoras participantes da pesquisa em que é possível perceber momentos de demonstração
da influência e condicionamento imposto pelas práticas sociais:
Não havia muitas oportunidades, morava no interior, meu pai até admitia
que as filhas pudessem estudar desde que fossem professoras. (Íris).
11
Outra professora considera a escolha profissional definitiva:
Nunca pensei em ter outra profissão. Escolhi ser professora porque
realmente eu gosto e sempre sonhei ser. Posso dizer que sou realizada nesta
profissão, sempre achei que esta é uma profissão muito importante, e
sempre achei que era uma grande coisa ser professora. (Ivete).
Em outro momento, revela que “poderia me dar bem em outras atividades, porque
gosto de fazer pães, bolos, cozinhar e organizar tudo em casa”. Os dizeres da professora
Laura
12
denotam que o sujeito vai se subjetivando a partir das condições socioeconômicas:
11
Professora da rede pública estadual de educação com mais de 20 anos de experiência profissional no
magistério Atualmente trabalha com a 3ª série dos anos iniciais no ensino fundamental.
12
Professora da rede pública estadual de educação com três anos de experiência no magistério. Atualmente
trabalha com a 1ª série dos anos iniciais do ensino fundamental.
35
gostaria de fazer a faculdade de bioquímica, no entanto, como não havia o
curso em minha cidade, comecei a cursar pedagogia. Como sempre gostei
de crianças, acabei aceitando a nova opção de formação.
Com os recortes acima percebe-se que as determinações sociais estão tão impregnadas
nos sujeitos que acabam por naturalizar os dizeres, tornando possível elaborar expressões do
tipo: “sempre sonhei com isso” ou “sempre desejei ser isso”. A escolha profissional da
mulher se projeta sob o liame da representação feminina configurada como a ideal.
A sutileza da incorporação das marcas representacionais de gêneros por homens e
mulheres faz com que o sujeito não perceba o quanto as suas escolhas estão vinculadas às
determinações sociais. Os moldes e padrões de representação determinam os lugares que cada
sujeito pode ocupar dentro da sociedade, obedecendo a um vínculo com os discursos que lhe
conferem significação e verdades. De acordo com Larrosa (2002, p. 43), não existe um
realismo ou essencialismo do “eu” ou do sujeito, mas a experiência de si como resultado “de
um complexo processo histórico de fabricação, no qual se cruzam os discursos que definem a
verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade
nas quais se constitui sua própria interioridade.” Alguns elementos discursivos, como o
vocacional, ao mesmo tempo em que compõem o universo profissional, também produzem e
reproduzem significados sociais, com os quais se torna possível compreender as interações
entre o sujeito e a sua profissionalização.
As marcas da “vocação” e da “missão” podem facilmente ser identificadas em trechos
de dizeres das professoras participantes da pesquisa. Alguns destes trechos elucidam como a
representação do ser mulher interfere em sua constituição enquanto sujeito e educadora. Nos
dizeres da professora Mônica percebe-se a permanência do discurso da vocação pela presença
da palavra missão:
36
Vejo o magistério como uma missão linda, uma profissão desgastante e
árdua. As dificuldades aumentam ao passar do tempo. Temos que nos
aperfeiçoar e atualizar para podermos acompanhar esta nova geração.
13
O enunciado da professora refere-se à sua profissão como uma “missão linda” e, num
trecho adiante, alia tal missão ao compromisso “com a construção de saberes e formação de
valores nos indivíduos”. O termo “missão” refere-se ao exercício de uma prática ascética,
que, segundo Foucault (2003c, p. 72), corresponde ao exercício daquilo para o que é preciso
se preparar, sem que haja especificidade em relação ao objetivo a atingir, uma vez que é por
meio da preparação que se cria o hábito da conduta a se manter. Ao mesmo tempo em que se
posiciona numa representação humanística de espírito de colaboração, persistência, força de
vontade, esforço, elabora também uma representação intelectual na qual percebe o seu papel
profissional de condutora da nova geração e vê a necessidade de aperfeiçoar-se.
Tomando como base a representação profissional, espera-se que o sujeito, no âmbito
social, esteja apto a desenvolver suas capacidades de inteligência, estudo e adaptação à
mudança. Embora as enunciantes falem em missão e vocação, existem elementos reflexivos
em suas falas que são visíveis quando reportam ao seu papel na “formação de valores nos
indivíduos”. Tais elementos tornam perceptível a alusão ao conhecimento como passível de
mudanças e flutuações. Para Foucault (2003c, p. 71), o papel do intelectual
não é mais o de se colocar, um pouco à frente ou um pouco de lado para
dizer a muda verdade de todos, é antes o de lutar contra as formas de poder
exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem
do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso. (2003b, p. 71).
14
É interessante observar o relato da professora Laura, referindo-se ao momento
posterior à formatura: “confirmo minha vocação para a arte de educar, de tornar possível o
13
Professora estadual com mais de 10 anos de experiência no magistério. No momento da pesquisa atua com a
segunda série dos anos inicias do ensino fundamental.
14
Foucault (2003b, p. 10-14) distingue o intelectual “universal” do intelectual “específico”. A representação de
professor e suas diferentes nuances históricas se mantêm mais próximas à idéia de intelectual universal do autor,
ou seja, aquele que para Foucault transmite aos educandos uma visão universal de mundo.
37
sonho de muitas crianças.” Vale lembrar que os elementos “missão” e “vocação” são
propulsores de uma construção identitária elaborada e vinculada aos papéis sociais de gênero,
mas ao mesmo tempo abrem a essa o acesso ao espaço público. Os homens não necessitam
utilizar a linguagem vocacional para ter acesso aos espaços públicos e dominá-los, porém as
mulheres, como as professoras participantes da pesquisa, elaboram um discurso que justifica
sua escolha profissional e seu trabalho fora do lar. Para as professoras Mônica e Laura, por
exemplo, a vocação ao magistério revela “o prazer e a dedicação” em atuar com os alunos e
elas assumem a condição feminina de educar e preparar as novas gerações. Essas questões
demonstram o posicionamento da mulher diante de um processo de subjetivação que as leva a
concordar com as idéias de dedicação e aceitação.
Montagner (2000, p. 201) aborda o magistério feminino e a sua relação ao discurso da
vocação, considerando que:
historicamente, o conceito de vocação foi aceito e expresso pelos próprios
educadores e educadoras, que argumentavam que, como a escolha da
carreira devia ser adequada à natureza feminina, atividades requerendo
sentimento, dedicação, minúcia e paciência deveriam ser preferidas. Ligado
à idéia de que as pessoas têm aptidões e tendências inatas para certas
ocupações, o conceito de vocação foi um dos mecanismos mais eficientes,
para induzir as mulheres a escolher as profissões menos valorizadas
socialmente.
Pode-se constatar que atribuir o sentido de “vocação” ao exercício do magistério
feminino é justificá-lo “por uma lógica que se apóia na compreensão social do magistério
como formação adequada para mulheres e na aproximação dessa função à maternidade.”
(LOURO, 1997, p. 465). Ou seja, socialmente se cria certa conveniência que leva as mulheres
a incorporar, em seu exercício docente, a linguagem da “vocação” que, por um lado, justifica
a persistência em trabalhar numa profissão de representação feminina, e por outro constitui,
principalmente em municípios de pequeno porte, uma forma eficiente de ingressar no mundo
do trabalho e garantir certa estabilidade profissional.
38
Dessa forma, pode-se afirmar que são os dizeres estereotipados sobre o sujeito e a
prescrição de seu desempenho profissional que vão configurando uma identidade
essencialista, homogênea, fixa e acabada. As formas estabelecidas para a relação do sujeito
consigo mesmo são construídas de forma descritiva e normativa, pois, na medida em que se
estabelece o que é ser professor e seu modo de ser, todas as circunstâncias que o determinam
enquanto sujeito assumem uma dimensão normativa. Ou seja, é a partir de estereótipos que a
vocação se constitui como forma de representar o sujeito docente sob um viés feminino, pois
a vocação inscreve o magistério como troca afetiva, pela qual se identifica a relação
mulher/mãe.
Nessa perspectiva de enfoque, é por meio dos estereótipos que são produzidas as
evidências sobre a identidade, de forma que estas se tornam convincentes, óbvias e
incontestáveis. Para Larrosa (2002, p. 83), “os estereótipos são os lugares comuns do
discurso, o que todo mundo diz, o que todo mundo sabe. Algo é um estereótipo quando
convoca mecanicamente o assentimento, quando é imediatamente compreendido, quando
quase não há o que se dizer.” Em síntese, o sujeito é levado a dizer algo de si mesmo com
base naquilo que é considerado o ideal para dizer-se de si – dessa forma é que a identificação
do magistério com o feminino perpetua o discurso que faz com que as professoras vinculem
sua profissão a uma vocação. Ressalte-se ainda que os elementos presentes no discurso e que
o tornam permitido também atribuem a ele o papel de identificar, marcar e definir posições.
Em conseqüência disso, a própria mulher acaba se percebendo e se definindo a partir do olhar
do outro, e determinando suas formas e padrões a partir das representações que limitam um
determinado modo de ser.
Na história da docência, “as representações tiveram um papel ativo na construção da
professora, elas fabricaram professoras, elas deram sentido e significado ao que era e é ser
39
professora.” (LOURO, 1997, p. 464). A mulher passou a perceber em si mesma atributos
compatíveis à função de professora: a mãe zelosa, afetiva, dedicada, sensível, e que também é
capaz de incorporar os saberes, habilidades e comportamentos exigidos pelo magistério.
Inseridos nesse discurso os programas de formação inicial e continuada, submetem as
professoras a um processo de normalização, no qual se “entrecruzam os discursos que
definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam esse comportamento e as formas de
subjetividade nas quais se constitui sua própria interioridade”, configurando-se em um
dispositivo no qual “os indivíduos podem se tornar sujeitos de um modo particular”
(LARROSA, 2002, p. 43).
De modo geral, as professoras participantes da pesquisa atribuem sua identificação
com a profissão às vivências da infância, laços familiares e sentimentos vocacionais. Há uma
regularidade nos dizeres quanto aos elementos que produzem as representações. Assim,
algumas características comuns quanto à escolha profissional aparecem em mais de um
enunciado, como:
o magistério foi despertando em mim o lado amoroso, caridoso, humano
para com as crianças, e isso foi aumentando a vontade de contribuir,
interagir na aprendizagem de cada criança. (Carla).
15
Também apresentam as lembranças da infância enunciando que
o sonho de ser professora, já vem da infância, quando brincava de dar aulas
para as minhas bonecas e às vezes para minhas amigas. (Laura).
Há expressões sobre o gosto pelo que faz e influência familiar:
havia muitas professoras na família, mãe, tias... acho que as pessoas sempre
procuram trabalhar naquilo de que gostam, eu sempre me identifiquei com
elas,“as crianças”. (Renata
16
).
15
Professora da rede pública estadual com cinco anos de experiência profissional. Trabalha com a pré-escola.
16
Professora da rede pública estadual com cinco anos de experiência profissional. Trabalha com primeira série
do ensino fundamental.
40
Nestes pontos comuns (vivências da infância, laços familiares e sentimentos
vocacionais) notam-se reflexos das práticas sociais, determinando o que cada sujeito deve ser
e qual deve ser a sua forma de comportamento no mundo. As falas das professoras revelam
tanto os discursos socialmente constituídos, como a própria história das mulheres – de forma
que a mulher encontra dificuldades para produzir rupturas em tais discursos, considerando-se
que nas práticas sociais, todos os sujeitos devem agir sem contradizer os discursos que os
individualizam – criando assim um sistema de representação, um regime de verdade. Para
Silva (2001, p. 48), “identidade funcionando como norma aparece como padrão”.
Pela compreensão da identidade e do processo de profissionalização pela lógica da
vocação tem-se a existência de discursos que consideram que as mulheres já nascem pré-
destinadas a serem professoras, ou que há uma essência interior determinante do ser
professora. Com isso, são desconsideradas as relações de poder, as práticas discursivas e
sociais e seus determinantes na elaboração dos processos identitários dos sujeitos. Silva
(2001) destaca que as identidades são constituídas no interior de processos de representação,
equivalem a um posicionamento, decorrem de um processo de construção que é histórico, não
é natural. É notável que as identidades estão sempre em constituição e esse movimento
permite que seja colocada em questão toda forma de representação cristalizada.
A vocação determina a aceitação profissional de tal forma que, muitas vezes, se
produz um impedimento para buscar melhorias nas condições de trabalho. Assim, justificado
pelo prazer em trabalhar na profissão, o gosto pode fazer com que as professoras deixem de
questionar as próprias dificuldades no cotidiano do trabalho. Por gostar de crianças e de seus
alunos, as professoras chegam a inibir-se a participar de mobilizações ou greves, pois isso
significaria deixá-las longe de seus alunos e sem aula, como se observa no enunciado:
41
Hoje a gente vê muitos profissionais só preocupados com o salário. É
importante lutar, mas não pode misturar isso na sua prática, porque as
crianças não têm nada a ver com isso. (Ivete).
A possibilidade de suas lutas reverterem em acréscimo para a educação e gerarem
benefícios para os alunos, sob esta ótica, não é vislumbrada. O modo de sujeição das
mulheres também pode ser entendido no sentido de esta considerar a si como sujeito moral da
sua conduta e estabelecer com as regras uma relação de identificação que implica obrigação
incondicional de cumprimento.
É possível dizer que o espaço educacional se transformou, ao longo da história do
magistério, em um refúgio da competição com o masculino, mas que submeteu a mulher a um
estatuto social inferior. Diante disto, percebe-se que algumas mulheres buscam uma
constituição identitária que as distanciem da tradicional representação de professora e
constroem uma identificação com outras áreas de trabalho, como no caso de Elvira: “Mais
tarde busquei outra alternativa fazendo o curso de direito, no entanto, continuo sendo
professora”. Ao terminar a frase dizendo “continuo sendo professora” a professora constitui
uma identificação não com o ideal aceito e previsto nos discursos da/sobre a educação. Ou
seja, com tal enunciado nota-se a emergência de outros ditos que ficam embaçados pelo
silêncio do “não dizer”, é dele o papel de negar uma possível crise identitária com a profissão.
Para Foucault (2002, p. 127-128), o não dito é compreendido
como uma ausência, que, ao invés de ser interior, seria correlativa a esse
campo e teria um papel na determinação de sua própria existência. Pode
haver – e sempre sem dúvida, sempre há – nas condições de emergência dos
enunciados, exclusões, limites ou lacunas que delineiam seu referencial,
validam uma única série de modalidades, cercam e englobam grupos de
coexistência, impedem certas formas de utilização.
Logo, pode-se afirmar que, mesmo com o ingresso em outros campos de
profissionalização, as professoras não confirmam seu desencanto com a profissão, bem como
42
não apontam as resistências impostas socialmente para todas as mulheres que escolhem uma
profissão distinta e que, originalmente, pertence à ordem masculina.
O enunciado da professora Renata apresenta a mesma regularidade evidenciada no
discurso anterior, porém nele há também mais visibilidade e a enunciadora revela o seu
desencanto com o magistério em função da questão salarial:
Várias vezes desejei fazer outra coisa para sobreviver do meu trabalho. Fiz
um curso de Direito e faço vários concursos por ano. Já passei em alguns, e
agora aguardo que me chamem em algum deles. Então, adeus Magistério!
(Renata).
Quando a professora enuncia “adeus magistério”, se propõe a encontrar uma nova
realização profissional, revelando uma contradição, pois busca construir outras identificações,
mesmo que considere estar trabalhando naquilo que gosta.
Nos recortes em questão, observa-se a constituição da alteridade: o eu que encontra
identificação no outro. Ao elevar o curso de Direito em detrimento do Magistério, a
enunciadora relativisa sua formação de professora. Uma vez que a área distinta, no caso o
curso de Direito, pode garantir uma suposta melhoria de vida, identifica a educação como área
inferior, temporária, passageira, ou que se faz por falta de opção.
43
2 A INCLUSÃO DA MULHER NO MUNDO DO TRABALHO E O SUPORTE
DISCURSIVO
Neste capítulo serão abordadas questões relativas aos movimentos de inclusão e
exclusão da mulher nos espaços públicos. Busca-se compreender a entrada da mulher no
mundo do trabalho e como se produzem rupturas na construção e entendimento do termo
gênero, passando este a ser compreendido dentro da dimensão sócio cultural. Igualmente,
procura-se compreender como os processos de normalização interferem na formação inicial e
continuada dos docentes.
2.1 Trabalho e Magistério no Universo Feminino
As grandes mudanças ocorridas na sociedade a partir do século XIX ocasionaram
alterações no próprio conceito de identidade. Ao discutir a pós-modernidade, Hall (2003, p. 9)
postula que o sujeito não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente. Dessa forma, o
mesmo ser é capaz de assumir identidades distintas em diferentes momentos e estas
identidades não são unificáveis ao redor de um “eu” coerente.
As mudanças no pensamento moderno contribuíram para o chamado descentramento
ou deslocamento do sujeito. Se na modernidade o sujeito era pensado como tendo uma
identidade estável, unificada e essencial, a partir das mudanças ocorridas neste período ele
44
passa a ser visto como fragmentado, múltiplo, composto não de uma, mas de várias
identidades, sem que haja necessariamente um elo de coerência entre elas. A identidade do
homem na pós-modernidade entra em crise quando há a relativização dos sistemas de
“referências que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.” (HALL,
2003, p. 7). Durante a primeira metade do século XX, começaram a aparecer os sinais de
“descentramento do sujeito moderno”. De acordo com o autor, um dos descentramentos trata
do impacto do feminismo no pensamento ocidental moderno.
O feminismo abriu um campo de possibilidades para as mulheres, de forma que
mesmo as que não se consideram feministas podem se perceber enquanto sujeito de direito. A
grande luta do movimento feminista se elaborou na construção da singularidade e
especificidade feminina e isto se realizou, de acordo com Foucault (2003b, p. 234), com o
intuito de criar o “próprio tipo de existência, política, econômica, cultural [...]. Sempre o
mesmo movimento: partir desta sexualidade na qual se procura colonizá-las e atravessá-las
para ir em direção a outras afirmações.”
Em diferentes países
17
a mulher lutou para conquistar o status de sujeito e dessa luta
resultou o direito à educação, ao trabalho e ao voto. Contudo, no trabalho, a mulher recebeu –
e ainda recebe – menor salário para exercer funções iguais as do homem. Outra contradição se
revela no percentual populacional, pois mesmo sendo a maioria, poucas mulheres buscam a
vida política para tornarem-se elegíveis para o executivo ou legislativo.
O universo feminino é cercado por uma produção de discursos que se estabelecem a
partir de relações de poder. No caso da educação, o discurso, antes usado para situar a mulher
17
Segundo Almeida (1998, p. 38, 39), a conquista do voto, luta que mobilizou as mulheres e que representou sua
inserção no espaço público e nas estruturas de poder, veio na esteira da guerra em alguns países. Na Suécia, em
1862; na Noruega, em 1913; na Dinamarca, em 1915; na Alemanha, em 1918; Estados Unidos 1924 e no Brasil,
em 1932.
45
num plano inferior ao mundo masculino, ganhou contornos positivos e, com isso, a mulher
ocupou o espaço profissional que a “libertaria” do cotidiano doméstico. Ser professora se
tornou espaço de luta feminina contra uma forma de assujeitamento da mulher no mundo
social. Essa conquista veio primeiramente ao encontro de uma necessidade da elite feminina
letrada que buscava outras formas de vida, para além daquelas impostas pelos discursos
sociais.
Pode-se dizer que a existência dos sujeitos se concretiza a partir de sua capacidade e
das possibilidades que lhes são oferecidas para agir no mundo social. Assim, enquanto a
mulher estava ocupada unicamente com as tarefas domésticas “só havia” a representação da
mulher como criatura presa aos deveres do lar, não havia uma preocupação com a sua
existência social e política. O discurso que funda a mulher enquanto categoria implica de
forma mais densa nas relações de poder, pois ela passa a ter uma nova condição de existência,
mesmo que ainda inferior à do homem. Para as mulheres, a educação se apresenta como
forma de objetivação: elas passam a dispor de uma tecnologia política sobre o corpo. Essa
tecnologia torna a mulher seu próprio ponto de aplicação: ela se torna o meio para a prática
disciplinar que produzirá o sujeito útil.
Socialmente, a profissão docente ganhou prestígio por transparecer o símbolo de
feminilidade, sem apontar para as relações de poder que são visualizadas no âmbito da
formação e do exercício profissional. Dessa forma, no início do século XX, o magistério
conseguiu atrair muitas jovens que perceberam neste exercício a possibilidade de aliar a
função profissional ao trabalho doméstico e à maternidade.
Almeida (1998, p. 28) salienta que os discursos sobre a docência fizeram com que ela
fosse percebida como uma profissão revestida de “dignidade e prestígio social” e isso “fez
46
que ‘ser professora’ se tornasse extremamente popular entre as jovens.” Esta forma de
perceber a mulher alterou os discursos e “se a princípio, temia-se a mulher instruída, agora tal
instrução passava a ser desejável, desde que normatizada e dirigida para não oferecer riscos
sociais.”
Com a profissionalização, as mulheres entraram em contraposição a um regime de
verdade, regulamentador dos discursos da época, e aos efeitos de poder por ele induzido,
como a determinação de que as mulheres seriam “sujeitos” apenas no âmbito privado. No
entanto, os efeitos de poder continuaram a estabelecer e reproduzir verdades, construindo a
identidade feminina a partir da fixação das mulheres em determinados espaços sociais.
O discurso da inferioridade feminina estava tão arraigado na estrutura da
vida das mulheres e dos homens que poucos o questionaram. A maioria das
mulheres acomodava-se na instituição familiar dominada pelos homens, que
lhe garantia subsistência, lhe oferecia um companheiro para toda a vida e
fornecia um sentimento de proteção frente ao cotidiano da vida. Vivendo
para seus maridos, esquecidas, esqueciam de pensar sobre si mesmas.
(COLLING, 2000, p. 8).
Para que não houvesse atrito entre o que a sociedade esperava das mulheres e a
abertura para o espaço social da profissão, definiram-se posicionamentos e formas de
controlar e enquadrar as mulheres para que a ocupação social e potica não destruísse o
modelo de representação estabelecido como ideal e verdadeiro.
Dessa forma, criou-se a “necessidade da mulher” face a sua tarefa e o lugar de sua
existência no mundo do trabalho. Esses elementos transformam a negatividade,
18
incutida na
imagem feminina, em positividade. Ou seja, a mulher antes discriminada por “incapacidade
18
Um discurso negativo apresenta as mulheres como criaturas irracionais e ilógicas, desprovidas de espírito
crítico, curiosas, indiscretas, incapazes de guardar segredo, pouco criativas, em especial nas atividades do tipo
intelectual ou estético, temerosas e covardes, escravas de seu corpo e de seus sentimentos, pouco aptas para
dominar e controlar suas paixões, inconseqüentes, histéricas, vaidosas, traidoras, invejosas, incapazes de serem
amigas entre elas, indisciplinadas, desobedientes, impudicas, perversas etc. São as Evas, as Dalilas e outras
tantas figuras míticas criadas para reforçar estes estereótipos (COLLING, 2000, p. 7).
47
intelectual” e repelida por suas inclinações ao pecado, torna-se referência para o ensino e
transmissão de valores culturais. A partir deste momento, mulheres brancas instruídas e
dóceis são chamadas para atuar na formação das crianças.
19
Paralelamente, a renovação no mundo do trabalho revelou as contradições mediante a
profissionalização das mulheres. A partir de certas ordens discursivas, a sociedade que
requisitava a mulher como propulsora das aprendizagens dos novos cidadãos, também
conservava relações de poder no exercício da docência, reduzindo o sentido profissional do
ato de educar e ensinar para um ato de saber/fazer. Em conseqüência foi-se processando a
constituição subjetiva das mulheres que, para exercerem o papel de modelo às crianças,
“viram-se obrigadas a um forte controle sobre os seus desejos, as suas falas, os seus gestos e
atitudes, encontrando na comunidade um fiscal e um censor das suas ações.” (LOURO, 2000,
p. 28). Como se observa no enunciado: “Os professores eram preparados para serem
especiais, e isso eu acho importante, você ser especial, espelho, modelo para a criança.”
(Ivete).
O trabalho como dimensão da vida foi, por muito tempo, negado ao gênero feminino,
e mesmo quando conquistado não representou uma ruptura nas relações de gênero. Em
decorrência disso, no âmbito familiar não houve grandes mudanças e a mulher se manteve
como a maior responsável pela criação dos filhos e organização da casa – por isto que é
“normal” a mulher abandonar sua profissão para cuidar dos filhos, mesmo que estabelecendo
certa resistência.
19
Mantida dentro dos limites, a instrução feminina não ameaçaria os lares, a família e o homem. Essa educação
que, a princípio e de acordo com a tradição portuguesa, fora negada sob o pretexto de que conhecimento e
sabedoria eram desnecessários e prejudiciais à sua frágil constituição física e intelectual, acabou por revelar-se
desejável a partir do momento em que a mulher passou a ser vista, na sociedade da época, como a principal
mantenedora da família e da pátria, conforme pregava o discurso congênito e positivista. Neste contexto, o
magistério de crianças configurou-se bastante adequado ao papel da mulher como regeneradora da sociedade e
salvadora da pátria e tornou-se aceitável, em termos sociais, familiares e pessoais, que ela trabalhasse como
professora (ALMEIDA, 1998, p. 33).
48
Segundo Louro (1997, p. 454), “a incompatibilidade do casamento e da maternidade
com a vida profissional feminina foi (e continua sendo!) uma das construções sociais mais
persistentes.” Na presente pesquisa, a professora Carla revelou, em seu enunciado, uma crise
identitária a partir do momento que teve que escolher entre a sua profissão e o cuidado dos
filhos.
Depois de muito pensar, interrompi minha carreira no magistério, através
da licença interesse, para me dedicar aos meus filhos. Sabia que eles
precisavam da minha presença. Algumas vezes entrava em crise comigo
mesma, afinal, eu sempre trabalhei fora. Agora, em casa, procurava fazer
jogos, dar catequese, fazer com meus filhos a ocupação de todo esse vazio
que começou a crescer e a mexer comigo.
Em outro enunciado, a professora Carla considera que os homens estão mais
participativos quanto à educação dos filhos e que também optam pelo magistério como
profissão.
Este papel aos poucos está sendo desmistificado, porque hoje muitos homens
estão optando pelo magistério como profissão. Somos conseqüência da
realidade em que só a mulher exercia a função de trabalhar com as
crianças, porque era só compromisso da mulher a educação dos filhos. Hoje
o homem vem assumindo junto a educação dos filhos, e contribuindo mais
com a mulher, dividindo tarefas domésticas.
Embora os homens tenham passado a realizar tarefas no âmbito doméstico, a situação
de desprendimento, freqüente quando é preciso largar a profissão para cuidar dos filhos, na
maioria dos casos, é vivida pelas mulheres. O homem se mantém “protegido” desta situação,
pois a representação do papel feminino naturaliza a mulher como a responsável pela criação
dos filhos. Se a própria mãe, por algum motivo, não puder exercer este cuidado, é a avó ou a
babá que cumprem a tarefa, mantendo a representação da mulher como responsável por cuidar
e educar. Tal situação é tomada como natural na sociedade e, em muitos casos, o salário da
mulher interfere em menor proporção no orçamento doméstico, o que acaba se tornando uma
justificativa para ela deixar o trabalho.
49
Percebe-se que, simbolicamente, o trabalho da mulher sempre esteve relacionado ao
cuidado dos outros. No lar ou na sociedade, o exercício profissional da mulher se constrói e é
compreendido dentro das dimensões afetivas. Segundo Almeida (1998, p. 32), no início do
século XX, “era aceitável que as mulheres desempenhassem um trabalho, desde que este
significasse cuidar de alguém.” Isto ocorreu porque para “cuidar de” não há a necessidade de
uma remuneração adequada – fazendo aqui uma analogia à percepção da representação do
papel natural.
Neste sentido, a mulher enquanto educadora é vista como vivenciando numa situação
de desprendimento, dando continuidade ao trabalho de educação das crianças já exercido em
casa. Dessa forma, o cuidado do outro vem imbricado de relações de poder e, ao mesmo
tempo em que exige um saber sobre o outro, desqualifica este saber que é tomado como algo
inato à natureza: a mulher sabe como cuidar crianças. É assim que, para Almeida (1998, p.
51), a fixação da mulher no espaço privado foi motivado por instâncias de poder que a
excluíram da história da educação:
O mundo privado e sua rotina do lavar, passar e cuidar das crianças não
exige conhecimentos especializados e, muito menos, instrução. Porém, o
mundo público, que necessita de saberes políticos e econômicos para o
gerenciamento de recursos, exige conhecimentos e instrução que são
oferecidos, preferencialmente, para seus principais atores, os homens. Estes,
por sua vez, tradicionalmente transmissores da cultura e do registro
histórico, sempre veicularam seus valores e suas concepções, e destes, o
sexo feminino, sistematicamente, tem sido excluído.
No início do século XX, as diferenciações entre os gêneros foram reforçadas a partir
de mecanismos de poder pelos quais se passou a exercer um controle psico-social e
econômico, com o intuito de manter o sexo feminino em posições subordinadas ao sexo
masculino. No primeiro caso, há uma concepção de que as mulheres levam desvantagem no
ajuste ao sistema profissional competitivo, pois são consideradas frágeis e afetivas, sem
grandes capacidades cognitivas para o trabalho. No segundo caso, não é da responsabilidade
50
da mulher o sustento da família, por conseguinte, o seu trabalho não necessita ser bem
remunerado, porque este apenas contribui para o orçamento doméstico.
É importante evidenciar que o padrão de divisão do trabalho entre os gêneros envolveu
as relações de trabalho e sua representação estereotipada da vocação, reproduzindo os
discursos sociais. O magistério apareceu como alternativa mais indicada quando a mulher foi
convocada a desempenhar, para além de seu papel “natural” de esposa e mãe, um papel
profissional.
A concepção de trabalho sempre foi tida como algo natural para os homens e
excepcional para as mulheres. Quando se buscam registros históricos, encontra-se que durante
as duas Grandes Guerras Mundiais, com os homens envolvidos nas batalhas, as mulheres
foram convocadas para o trabalho. De acordo com Thébaud (1991, p. 49), para as mulheres a
guerra constituiu uma experiência de liberdade e de responsabilidades sem precedentes. Neste
período, houve a valorização do trabalho feminino a serviço da pátria e a abertura de novas
oportunidades profissionais, na qual as mulheres descobriram o manuseio de utensílios e
técnicas que desconheciam. No pós-guerra, para as mulheres, a quem os aduladores
ocasionais ou os partidários da emancipação tinham prometido um futuro grandioso com
palavras pomposas, ou pelo menos uma indispensável participação no esforço de
reconstrução, chegou o momento de ceder o lugar. Rotuladas de oportunistas e muitas vezes
de incapazes, foram “convidadas” a regressar ao lar e às tarefas femininas, em nome dos
antigos combatentes, da reconstrução nacional e da defesa da raça.
Retornando à questão da relativização do exercício profissional em função do fator
profissional, vale lembrar que a relação entre o fator econômico e a identidade docente
evidenciou o sentido vocacional, dissimulando o profissionalismo. Assim, as questões da
51
sobrevivência e a ascensão social foram encobertas por questões subjetivas como a
“realização enquanto pessoa” e a “ajuda ao próximo”. Por razões como estas, o magistério foi
percebido a partir do caráter sacerdotal e a representação profissional se apresentou numa
situação contraditória em que o ser professora, ao mesmo tempo em que historicamente foi
uma necessidade da sociedade, e por isso adquiriu um sentido de valor, perdeu o potencial de
ganhos salariais e valorização profissional, já que executado por pessoas vocacionadas.
Quanto à presença dos homens no magistério das séries iniciais, percebe-se que um
número bastante reduzido exerce a profissão nesta área. Segundo pesquisa da Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), apresentada por Vieira (2003), 83% dos
docentes pertencem ao sexo feminino e os índices mais elevados estão na educação infantil e
nas séries iniciais do ensino fundamental, diminuindo gradativamente nas séries finais desse
nível, na educação média e superior. Evidencia-se, assim, que as relações de poder que
circulam na sociedade são reproduzidas na educação, limitando os lugares do homem e da
mulher, definindo e atribuindo suas funções, bem como as características para cada um dos
gêneros.
O enunciado da professora Renata confirma uma forma de discurso que circula no
meio social e que determina os espaços de atuação para as mulheres:
Quando era jovem eu sempre ouvia dizer: magistério é uma profissão boa
para mulher, pois pode trabalhar meio dia, cuidar da casa, dos filhos, do
marido e dificilmente vai assediar ou sofrer assédios, pois as colegas são
mulheres. (Renata).
Por estes dizeres percebe-se a existência de redes discursivas, que foram elaboradas e
distribuídas a partir da escola, da igreja e da imprensa e que constituem os sujeitos e os
posicionam em seus devidos lugares. Para Louro (2000, p. 28), “o magistério precisava ser
compreendido como uma atividade de amor, de entrega e doação, para a qual acorreria quem
52
tivesse vocação.” Com isso são legitimados os critérios que definem quem pode e quem não
pode ser professor. Isso faz com que o magistério nas séries iniciais seja marcado pela divisão
sexual do trabalho, não somente pelo contingente majoritário de mulheres que o compõe,
mas, principalmente, pelo peso que a questão do gênero assume no processo de
institucionalização da profissão, com uma visão de verdade carregada de atributos femininos.
2.2 As Convenções Sociais na Formação do Gênero
A trajetória da mulher na educação segue os moldes traçados nos discursos de fundo
humanista-cristão
20
que são normalizadores, articulados em jogos de poder/saber. Tais jogos,
criados principalmente no início do século XX, conferiram ao sexo feminino os predicados de
“pureza, doçura, moralidade cristã, maternidade, generosidade, espiritualidade e patriotismo,
que colocavam as mulheres como responsáveis por toda a beleza e bondade que deveriam
impregnar a vida social.” (ALMEIDA, 1998, p. 17).
A busca de igualdade, tanto no espaço público como no privado, deu origem a novas
formas de organização feminina, com as quais foi possível lutar por transformações nas
relações de gênero. De acordo com os estudos de Scott (1995, p. 85), o termo gênero
enquanto categoria analítica só emergiu no final do século XX. Para ela, “o termo gênero faz
parte da tentativa empreendida pelas feministas para reivindicar um certo terreno de definição,
para sublinhar a incapacidade das teorias existentes para explicar as persistentes
desigualdades entre mulheres e homens.” A autora propõe ainda que os estudos sobre gênero
20
Ainda que a República formalizasse a separação da Igreja Católica, permanecia como dominante a moral
religiosa, que apontava para as mulheres a dicotomia entre Eva e Maria. A escolha entre estes dois modelos
representava, na verdade, uma não escolha, pois se esperava que as meninas e jovens construíssem suas vidas
pela pureza da Virgem. Através do símbolo mariano se apelava tanto para a sagrada missão da maternidade
quanto para a manutenção da pureza feminina. Esse ideal feminino implicava o recato e o pudor, a busca
constante de uma perfeição moral, a aceitação de sacrifícios, a ação educadora dos filhos e filhas (LOURO,
2000, p. 447).
53
desconstruam a polaridade rígida entre masculino e feminino e que se faça uma análise sobre
a construção social vinculada à raça, classe social e sexualidade. Afirma ainda que, se a
posição entre homens e mulheres é tratada como problemática e não como conhecida, como
algo que é contextualmente definido, repetidamente construído, “então devemos
constantemente perguntar não apenas o que está em jogo em proclamações ou debates que
invocam o gênero para explicar ou justificar suas posições, mas também como compreensões
implícitas de gênero estão sendo invocadas ou reinscritas.” (SCOTT, 1995, p. 93).
A construção do gênero se ampara nas convenções sociais criadas pela sociedade para
definir comportamentos e atitudes esperados como “normais” para o gênero masculino e
feminino. Uma dessas convenções propõe que certas brincadeiras sejam para meninos e outras
para meninas: a menina deve brincar de boneca e casinha, pois, assim, já vai desenvolvendo o
seu “instinto maternal”, e o menino, de comando e ação. Esses são modos de experiência
social e tratam de discursos que vão constituindo as identidades e as vinculando aos papéis a
serem exercidos por diferentes gêneros.
Nos dizeres de Silva (1999, p. 93), depende de onde o sujeito está socialmente situado
para conhecer certas coisas e não outras; “não se trata simplesmente de uma questão de
acesso, mas de perspectiva.” A escola também reforça o que é ser mulher, apresentando as
tarefas, as profissões mais adequadas, os dons naturalizados, a bondade e generosidade
feminina, e as características “inatas” ao gênero.
A escola, em seus dispositivos institucionais de poderes e saberes, se
configura como espaço de composição das identidades sexuais e de gênero.
Espaço de poder regula, normaliza e modela corpos para assumir modelos de
feminilidade e masculinidade e da sexualidade heterossexual. Espaço onde
se processa a inscrição dos gêneros e da sexualidade nos corpos, onde eles
ganham sentido socialmente. (LOURO, 2000, p. 11).
54
O processo de construção da subjetividade profissional das professoras se revelou
numa representação do gênero feminino (identificação com as crianças), a qual se vinculou ao
seu trabalho profissional. Ao longo da história, essa identificação da mulher tornou-se um
estatuto cultural - naturalizado: ser mulher, mãe e professora passou a constituir atributos
femininos inquestionáveis.
Dessa forma, torna-se evidente o discurso de que educar crianças é uma função
prioritária das mulheres, pois são elas que, por sua capacidade afetiva, podem realizar com
maior êxito os ensinamentos às crianças e contribuir para a sua boa formação moral e pessoal.
É de ressaltar a idéia segundo a qual a estrutura social – por apresentar lugares diferentes para
os diferentes gêneros – incita as mulheres a assumirem “seus papéis sociais” e a aceitarem
como natural o desenvolvimento de características ditas “inatas”, bem como habilidades e
saberes diferentes dos homens.
O uso do discurso para salientar a afetividade e a emoção como qualidades femininas
exclui sutilmente a razão e a capacidade intelectual das mulheres. Foucault (2001, p. 77-78)
reflete sobre a forma pela qual Aristóteles descreve a virtude nos homens e nas mulheres: “as
virtudes que ele reconhece nas mulheres se definem em referência a uma virtude essencial e
que encontra a sua forma plena e acabada no homem. E ele vê a razão disso no fato da relação
entre homem e mulher ser ‘política’: é a relação entre um governo e um governado.” Nesta
relação, o autor afirma que a mulher virtuosa só existe em relação ao homem, este serve como
o modelo ideal e completo que deve ser seguido e obedecido. “São virtudes de subordinação”,
onde as virtudes do homem partem do princípio do ‘domínio de si’ como uma “maneira de ser
homem em relação a si próprio, isto é, comandar o que deve ser comandado, obrigar à
obediência o que não é capaz de se dirigir por si só.”
55
A representação docente como profissão feminina cria os padrões que definem o ser
mulher e isso também está vinculado à sexualidade. Para Foucault (2003b, p. 234), “durante
muito tempo se tentou fixar às mulheres a sua sexualidade. ‘Vocês são o seu sexo’. [...] E este
sexo, acrescentaram os médicos, é frágil, quase sempre doente e indutor a doença. ‘Vocês são
a doença do homem.” No processo de interação social, a mulher só foi pensada e nomeada a
partir de categorias nas quais era possível reconhecer e classificar determinadas formas de
existência, opostas ao gênero masculino.
Nesta linha de raciocínio, os discursos da representação têm vínculo com a
constituição da identidade da mulher a partir de uma existência cuja característica única é ser
oposta à existência do homem. A mulher tida como o “outro” em relação às representações
masculinas de sujeito não se limita à questão de denominação-descrição da alteridade. Esse
processo ocorre a partir de “uma regulação e controle do olhar que define quem são e como
são os outros.” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 122). Assim, tem-se que o olhar
masculino é um olhar autorizado por práticas sociais e discursivas, a ver e representar o que é
ser mulher e ocorre por meio de estratégias de regulação e controle da alteridade, que buscam
no outro a
sua transformação em sujeito ausente, quer dizer, ausência das diferenças ao
pensar a cultura, a delimitação e limitação de suas fronteiras; sua invenção,
para que dependa das traduções oficiais, [...] sua oposição a totalidade de
normalidades através de uma lógica binária, sua imersão e sujeição aos
estereótipos, sua fabricação e utilização, para assegurar e garantir as
identidades fixas, centradas, homogêneas, estáveis etc. (DUSCHATZKY;
SKLIAR, 2001, p. 121).
As mulheres que ocupam o lugar do “outro” existem a partir dos discursos masculinos
e são tomadas como sujeitos passivos, diante dos atributos de masculinidade, elaborados pelos
discursos sociais e educacionais que determinam as concepções do que é ser mulher. Ocorreu
um processo de territorialização que serviu para “codificar, submetendo [a mulher] a regras e
56
controles, setores ou elementos da vida social, por exemplo, a família, o trabalho, o corpo.”
(SILVA, 2000, p. 38). Essa territorialização delimita a possibilidade de eqüidade entre os
sujeitos. O autor segue afirmando é necessário promover uma ruptura nos moldes
representativos, pois é a partir da representação que é produzida a noção de diferença. A
identidade da mulher também foi recalcada, pois a delegação de um indivíduo para falar e agir
em nome de “outro” faz com que o processo de apresentação e descrição desse elemento seja
dirigido por quem possui esta delegação, pois “quem fala pelo outro controla as formas de
falar do outro.” (SILVA, 1999, p. 33-34).
Neste sentido, é lícito dizer que o gênero, composto e definido por relações sociais,
opera na dimensão construtiva da identidade dos sujeitos em que se revelam as diferenciações
entre os seres. Trata-se, assim, de uma construção social em que há referência a “aquilo que se
diz ou se pensa sobre tais diferenças, no âmbito de uma sociedade, num determinado grupo,
em determinado contexto.” (LOURO, 2000, p. 26).
Os saberes e fazeres de homens e mulheres estão associados à sua identidade sexual e
são produzidos a partir de certas determinações sociais. Tal fato não impede o indivíduo de
contestar as identidades centradas e fechadas, porém, como os saberes atuam sem que o
sujeito perceba, as determinações acabam por ser compreendidas apenas como “diferença”.
Essa problemática pode ser verificada no enunciado da professora Íris:
Posso dizer que quando criança gostava de brincar de escolinha, mas o que
pesou bastante é que desejava ter uma profissão, mas para minha família,
eu só poderia ser professora e, ainda assim, de determinados cursos. Assim,
fiz o Magistério e depois cursei a faculdade de Técnicas Domésticas.
Em função da determinação histórica, a concessão dada pela família para a jovem
estudar vinha precedida da delimitação sobre os cursos que poderia freqüentar: Magistério e
Técnicas Domésticas estão relacionados às representações de mulher aceitas socialmente.
57
As representações femininas, criadas como “as mais adequadas” para quem pretende
exercer o magistério primário, comportam as modalidades doméstica e profissional, nas quais
há uma relação assimétrica entre os sexos masculino e feminino. Por muito tempo os
discursos que vinculavam a questão salarial à feminilização da profissão foram utilizados
como os responsáveis pela má remuneração profissional das professoras.
21
Esses discursos
circulam pelo corpo social, sendo comum ouvir entre as educadoras situações como a
mencionada pela professora Renata:
Eu ouvi uma frase sobre a mulher e o magistério – foi a partir da entrada da
mulher no magistério que a profissão passou a se desvalorizar. As pessoas
transferem para a mulher a culpa de sua própria má remuneração, mas isso
só é verdade para desvalorizar ainda mais o trabalho da mulher em casa e
fora de casa
É importante salientar que a questão salarial não deve ser compreendida apenas do
ponto de vista da relação do gênero do indivíduo e seu trabalho, mas principalmente pela
significação que o próprio trabalho adquire a partir de sua ligação com o sujeito que o exerce.
Para Graupe (2004, p. 90), os professores brasileiros, desde a primeira lei que rege a
educação, nunca foram bem remunerados e menciona que “apesar disso é possível observar
que aconteceu um desprestígio social da categoria docente, que desfrutava de reconhecimento
social, até aproximadamente o início do século XX.” Percebe-se que, a medida em que a
economia de mercado se impõe, as relações e as pessoas tendem a ser tratadas e reguladas
pelo mercado. O reconhecimento social, que ocorria até as primeiras décadas do século XX,
vai se deteriorando na medida em que lhe é exigido um comportamento cujo padrão é dado
pela economia de mercado.
21
Graupe (2004, p. 90), em seus estudos, mostra que a remuneração da categoria docente é, historicamente, a
grande questão da política educacional, de Dom Pedro I a Luis Inácio da Silva. O imperador, ao outorgar a Lei
de 15 de outubro de 1827, não se descuidou, pelo menos, formalmente, dos salários dos professores. No artigo
da lei imperial, Dom Pedro determinou que os ordenados dos professores ficariam entre 200$000
a 500$000 reis
anuais, com atenção às circunstâncias e carestia dos lugares. Antônio Luis Monteiro Coelho da Costa,
economista e especialista em cotação de moedas fez a conversão dos réis, de 1827, para reais de 2001. Segundo
ele, “200$000 equivaliam a aproximadamente R$ 8.8000,00/ano (isso é, a um salário mensal de R$ 680,00
considerado o 13º) e 500$000 a aproximadamente R$ 22.000,00/ano (1.700, por mês).”
58
O reconhecimento social na origem da profissão se torna contraditório frente às
questões salariais, pois os profissionais da educação, mesmo aqueles com graduação superior,
não detêm o mesmo prestígio financeiro de outras profissões. Nesse movimento, ainda que os
professores demonstrem insatisfação em relação à remuneração, são raros os momentos em
que conseguem transformar a insatisfação em formas de resistência e atuação organizada para
conquistar melhores salários. Ainda quando esta mobilização ocorre, os professores
continuam sendo pouco ouvidos e acabam tendo que fazer uso do artifício da greve para
conseguir a interlocução com o estado e demais empregadores.
Outro ponto a ser destacado diz respeito ao fato de que o magistério, transformado em
espaço profissional, não revela interdições explícitas para a mulher. Isso fortalece as
construções discursivas que naturalizam “o ser e o fazer” feminino, reduzindo a resistência do
sujeito para cumprir a função docente. A construção dos dizeres sobre a natureza e a essência
feminina forja modos de existência, modela maneiras de ser e de pensar, possibilitando a
incorporação da idéia de indivíduo enquanto produto pronto, acabado, sem possibilidades de
se reinventar. Em muitos casos percebe-se que as professoras imprimem em suas experiências
a conformação e acabam agindo pela apropriação de um modelo que as faz incorporar regras
sociais e normas condizentes ao ser mulher.
2.3 Disciplina e Normalização na Formação das Professoras
É interessante observar o funcionamento dos discursos que versam sobre educação no
início do século XX: de um lado tem-se o enaltecimento da mulher educadora, e de outro há
presença de índices de ordem e vigilância. Observa-se que, neste contexto, a entrada feminina
no magistério teve um significado imediato de libertação (principalmente para as mulheres da
classe média-alta) que, sob um olhar mais acurado mostra um paradoxo – é uma “libertação
59
vigiada”. Neste sentido, Almeida (1998, p. 32) considera que a suposta libertação serviu para
manter as mulheres sob uma vigilância, na qual “as expectativas sobre a conduta feminina, as
doutrinas religiosas da Igreja Católica, as implicações na sexualidade, o controle da
feminilidade e as normatizações sociais, significavam uma exacerbada vigilância do corpo e
da alma das mulheres.”
Em conformidade com a análise deste período histórico, é possível afirmar que a
disciplina exercida sobre as mulheres educadoras funciona sob a forma de controle que
equivale a uma vigilância contínua, permanente e sem limites, que se expande para todos os
outros espaços sociais ocupados pelas mulheres. Isto, contudo, não é transparente ou acessível
às mulheres, ao contrário, para que a vigilância seja exercida é preciso que o poder que a
institui fundamente-se como “instrumento para uma vigilância permanente, exaustiva,
onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a condição de tornar ela mesmo invisível.”
(FOUCAULT, 2003a, p. 176). Na sociedade existe um espaço útil que vigia, acompanha,
impõe reparações que ganham visibilidade a partir do estabelecimento da diferença ou, como
diz Foucault (2003a), vigia-se para transformar os sujeitos em corpos dóceis e disciplinados.
A esta coerção invisível, mas sempre presente, o autor chamou de “poder disciplinar” ou
apenas “disciplina”, que se constitui como uma tecnologia de controle que incide sobre os
próprios corpos dos sujeitos. Conforme Foucault (2003a, p. 119):
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”.
A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de
utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de
obediência). Em uma palavra ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um
lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar e inverte
por outro lado à energia, a potencia que poderia resultar disso, e faz dela
uma relação de sujeição estrita.
Considerando-se a questão da vigilância e do disciplinamento e relacionando-a ao
processo de formação inicial e continuada das educadoras, temos que tal processo constitui-se
60
como dispositivo de normalização, pelo qual o sujeito aprende como e o que deve ser
observado, descrito, narrado, e julgado.
22
Ou seja, o discurso que representa a mulher
educadora vem do social e chega à escola sob a forma de controle regulamentar. Pode-se
considerar que os regulamentos determinam a vida das educadoras de tal forma que estas
passam a ser disciplinadas também em outras esferas da sociedade e mantenham
comportamentos semelhantes na escola e em outros ambientes.
O poder da disciplina é tão grande que se confunde com a própria história do
magistério e é perceptível no enunciado da professora Ivete, que apresenta a lembrança do
curso normal como aquele capaz de ensinar a disciplinar – característica indispensável ao
“bom” professor: “as normas de comportamento eram ressaltadas e cobradas, pois éramos
preparadas para sermos ótimas professoras”.
A cultura disciplinar, predominante nas instituições educadoras, se estabelece a partir
do conhecimento que o sujeito constrói sobre o que necessita obedecer, as atitudes e posturas
tidas como certas ou erradas e que precisa assumir em função de diretrizes postuladas
convencionalmente pela sociedade. Essas prerrogativas exercem influência tanto na formação
quanto na atuação profissional dos sujeitos envolvidos com o processo formal de educação.
Em se tratando de disciplina, vale lembrar Foucault (2003a, p. 119) quando observa
que com a disciplina “nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento
de suas habilidades, nem tampouco aprofundar a sua sujeição, mas a formação de uma relação
que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente.” O
22
Larrosa, citado por Silva (2002, p. 61), se refere às dimensões fundamentais que constituem os dispositivos
pedagógicos de produção e mediação da experiência de si. Ele se refere à função das máquinas óticas:
determinar, em um mesmo movimento, o que é visível e qual o olho que vê, o sujeito e o objeto do olhar. Tanto
o sujeito quanto o objeto são variáveis dos regimes de visibilidade e dependem de suas condições. Um regime de
visibilidade é composto por um conjunto específico de máquinas óticas, abre o objeto ao olhar, e abre, ao mesmo
tempo, o olho que observa. Determina aquilo que se vê ou se faz ver, e o alguém que vê ou que faz ver. Por isso
o sujeito é uma função da visibilidade, dos dispositivos que o fazem ver e orientam seu olhar. Esses são
históricos e contingentes.
61
poder disciplinar é exercido na individualidade, e os indivíduos sobre os quais ele se exerce
devem se submeter a uma visibilidade, pois através deste “o indivíduo é levado a reconhecer-
se e a identificar-se em imagens dispostas para isso.” (LARROSA, 2002, p. 63). Dessa forma,
reconhecer-se como professor é perceber e manifestar-se nos dizeres que instituem a
profissão.
Quando se fala em disciplinamento é importante salientar que a tecnologia empregada
na sociedade disciplinar não é uma tecnologia do direito ou da repressão de um dominador
sobre um dominado, ou algo que diz não, que impõe e que castiga. Pela disciplina a
subjetividade se constitui, ou seja, os sujeitos são moldados por forças que se revelam no
campo social e por positividades que buscam a modelagem e homogeneização do indivíduo.
As questões referentes à conduta profissional das mulheres constituem as subjetividades de
forma muito concreta, pois tomam corpo nos gestos, na postura, no olhar, nos discursos,
determinando comportamentos. Isso faz com que as funções e capacidades possam tanto ser
utilizadas como docilizadas, transformando “corpos de mulheres” em “corpos de
professoras”.
As questões sexuais e sociais presentes nos discursos escolares que versam sobre
regras, comportamentos e postura das professoras, procuram estabelecer os corpos das
mulheres professoras como apolíticos e assexuados. Por esses padrões, ser professora é
descobrir como existir sem seu corpo, ou como torná-lo invisível na escola, na sala de aula e
nos espaços sociais, escondendo aspirações políticas, religiosas, esportivas e sexuais.
Foucault (2003a, p. 25) compreende que o corpo não existe apenas enquanto base
biológica de funcionamento, mas é, principalmente, o produto de uma “tecnologia sobre o
corpo”, de forma que a sua constituição realize-se nos eixos social e político. Assim, segundo
62
o autor, “O corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de
poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, sujeitam-no a
trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais.”
Neste sentido, vale considerar que os corpos são assujeitados a um investimento
político e se tornam objetos de saber e controle de forma que, em função da tecnologia
empregada sobre o corpo, este se torna útil, produtivo e rentável para o poder. Do ponto de
vista de Foucault (2003a, p. 27), tal assujeitamento se dá a partir de um conhecimento que
intervém sobre os corpos por meio de processos de individualização sempre mais sofisticados
e penetrantes. Estes processos atuam como o “conjunto dos elementos materiais e das técnicas
que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as
relações de poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles
objetos de saber.”
Assim, entende-se que o corpo, enquanto objeto de saber, se constitui a partir da
disciplina, que exige a disposição dos indivíduos num espaço delimitado (colégios, quartéis,
hospitais), quadriculado (cada indivíduo no seu lugar e, em cada lugar, um indivíduo),
hierarquizado, distribuído e dividido com rigor para que se possa isolar e localizar os sujeitos.
Para Foucault (2003a, p. 127), “a primeira das grandes operações da disciplina é então a
constituição de ‘quadros vivos’ que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas
em multiplicidades organizadas.”
Como o poder é exercido a partir de ações em que o indivíduo se constitui como
sujeito e é assujeitado, a construção da identidade da educadora ocorre num processo de
individualização que lhe foi conferido como autêntico. De acordo com Foucault (1995, p.
237), são os mecanismos de poder que enquadraram a existência dos indivíduos como uma
63
estrutura muito sofisticada, “na qual os indivíduos podem ser integrados sob uma condição:
que a esta individualidade se atribuísse uma nova forma, submetendo-a a um conjunto de
modelos muito específicos.” Isso significa uma adaptação e a harmonia dos instrumentos
encarregados de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade e
individualidade.
A estrutura disciplinar ocorre de modo descontínuo, em regime de longa duração, ao
passo que o controle é contínuo, ilimitado. Contudo, na prática não se distingue a técnica
disciplinar e o controle, pois estes atuam juntos. No espaço escolar ao mesmo tempo em que
se exige que os educadores assumam responsabilidades, como o cumprimento de horários,
também se exige dos sujeitos a doação de seu tempo em atividades extracurriculares. Se há
elementos “invisíveis” atuando sob a forma de controle do corpo, mente e sentimentos,
também é possível verificar a existência de elementos externos mais visíveis – que o próprio
sujeito refere quando descreve seu agir.
A partir dos dados obtidos nesta pesquisa percebe-se que os sujeitos educadores
reconhecem que seu agir está vinculado ao exercício de condutas corretas e controladas.
Como ilustração, tome-se o enunciado da professora Ivete:
Eu tenho a minha postura, porque sei que sou observada, mas as atitudes
devem ser cobradas de nós mesmos. A minha postura e a minha atitude vão
educar algo nessa criança, porque nós não só ensinamos, também
educamos, deixamos a nossa marca como pessoa humana.
A postura profissional se define como o conjunto de prescrições que determinam o
comportamento apropriado do sujeito para que este ocupe uma posição nas práticas sociais.
É fato que as prescrições e as normas de comportamento são visualizadas tanto na
escola como na comunidade escolar e que todo comportamento decorre das normas e
64
exigências que a sociedade solidificou como ideais. É neste sentido que as professoras
acentuam o caráter de cobrança sobre o exercício profissional nos espaços interno e externo
da escola:
Sempre fui respeitada pelo meu trabalho, posso dizer que fui construindo
uma forma de agir, uma postura frente a minha profissão. Quando todos
sabem que você é professora, você sabe que tem que agir de determinada
maneira. (Renata).
As regras de conduta, como diz a professora, são cobradas por todos os segmentos que
envolvem a comunidade escolar:
Quando se está inserido numa escola, muitas cobranças são feitas, por parte
da direção, colegas, CRE (Coordenadoria Regional de Educação), pais e
até mesmo dos alunos sobre a postura do educador e de como podemos
contribuir para melhorar a realidade que se apresenta. (Carla.)
Os dizeres das professoras Renata e Carla revelam questões nas quais o sujeito é
colocado em uma situação de reflexão sobre a sua atividade e conduta, ao passo que também é
observado. As professoras revelam uma regularidade caracterizada pela unicidade nos dizeres
que configura o universo profissional, no qual o individuo deve assumir para si modos de
comportamentos já previstos e institucionalizados, sem esquecer que sempre é observado
pelos outros. Por essa proposição, se revela um sujeito que deve cuidar-se muito mais em
relação aos outros do que a si próprio. Foucault (2001, p. 15), analisando as experiências dos
gregos, diz que, para eles diferentemente do que é constatado, havia
práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente
fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-
se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de
certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.
O sujeito preso a uma condição identitária modela seu comportamento de forma a
atender regras exteriores, pois se percebe como essencialmente ligado aos ideais de conduta
moral, e se relaciona em função das regras que se vê obrigado a cumprir de determinada
65
forma, reconhecendo estar determinado por esta obrigação. O sujeito sabe que o não
cumprimento das regras e normas estabelecidas socialmente configura um processo de
exclusão, no qual o indivíduo desajustado, ou o sujeito diferente, não encontra espaços de
afirmação. Segundo Foucault (2003a, p. 153), “compreende-se que o poder da norma
funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma
homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma
medida, toda a gradação das diferenças individuais.”
Pode-se inferir que a preocupação das professoras em responder aos critérios e regras
impostos para a profissão acaba por homogeneizar as condutas, formalizando o jeito de ser e
impondo restrições para o ser diferente.
Neste sentido, a fala da professora Mônica referenda a temática da postura docente e
revela preocupação com a forma de agir relacionada com as cobranças sociais que o professor
sofre. O cuidado de si, diferente do proposto por Foucault (2003c), está condicionado a regras
exteriores, que determinam as condutas e as formas de agir, conforme se visualiza no
enunciado da professora Mônica:
Aprendi a olhar a escola de fora para dentro, das necessidades e cobranças
que sofremos pela comunidade escolar. E esta cobrança é quanto ao lugar
do professor, como sujeito de relações, de aprendizado, de postura como
educador.
Analisando o enunciado acima, é possível dizer que professora Mônica revela ter
construído uma aprendizagem que lhe possibilitou “olhar a escola de fora para dentro”. Ao
mesmo tempo em que ela percebe as cobranças como naturais e necessárias, reforça seu
pensamento dizendo “esta cobrança é quanto ao lugar do professor”. Ela segue a observação
pontuando: “nossa visão não pode se restringir tão somente no trabalho em sala de aula, mas
deve estar relacionado à vida dos cidadãos alunos.” Fica evidente no enunciado anterior que
66
a professora é um sujeito de relações, de aprendizado e de postura. É nessa postura que se
revela o ser educador enquanto um sujeito de quem são esperadas certas atitudes,
comportamentos e compromissos, ações incorporadas à sua constituição subjetiva.
Quanto ao que vem sendo exposto, pode-se dizer que a prática de si, conforme
Foucault (2003c) apresenta, pode ser utilizada para se compreender o trabalho de formação de
educadores, uma vez que esta experiência de si se baseia nos discursos que os sujeitos
produzem quando se decifram, se julgam, se narram. Ou seja, são práticas que as pessoas
fazem consigo para ver e dizer a si mesmos. A experiência de si, no contexto escolar, se
estabelece a partir de regras de conduta e formas de subjetivação, nas quais o sujeito educador
constrói a sua formação, revela, portanto uma relação moral do sujeito consigo mesmo. Essa
experiência de si, ainda que construída no convívio entre educadores e alunos, é pautada por
elementos externos que determinam a conduta e a forma de agir.
Percebe-se que quando as professoras são levadas a dizer sobre si mesmas, interagem
com as formas discursivas elaboradas a seu respeito e também experimentam uma forma de
sujeição e de subjetivação que as faz construir sua auto-imagem a partir da assimilação dos
discursos que materializam subjetividades ao realizar-se em uma determinada cultura.
É em função desta problemática que, ao exercerem o magistério, as professoras
necessitam adotar certas formas, jeitos e maneiras de ser. Aos educadores é preciso mais que
revelar o desejo de vivenciar certas práticas pedagógicas: é necessário incorporar os requisitos
e as características exigidas para o que é indicado na prática pedagógica. Conforme Foucault
(2001, p. 27), além das regras de conduta, todo sujeito deve descobrir “a maneira pela qual é
possível ‘conduzir-se’ – isto é, a maneira pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito
moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o código.”
67
A partir da formação inicial se constrói todo um cuidado com a formação das jovens
normalistas de maneira que estas tenham um corpo disciplinado, saibam usar o tom de voz
adequado, mantenham uma boa postura frente ao quadro negro, tenham cuidados ao sentar e
caminhar, estejam com ouvidos aguçados, olhos atentos, que tudo vêem em sala de aula e,
principalmente, saibam ser sempre a mesma pessoa, centrada, indivisa, cumpridora de uma
missão praticamente divina.
A escola normal, espaço no qual as professoras das séries iniciais do ensino
fundamental iniciam a sua formação, serviu e serve como um espaço privilegiado para a
produção de subjetividades docentes. A subjetividade é a relação consigo, que se estabelece
através de “uma série de procedimentos que são propostos e prescritos aos indivíduos, em
todas as civilizações, para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de um
certo número de fins.” (EIZIRIK, 1997, p. 47).
Nesse processo, o currículo funciona como uma “maquinaria” que vai constituindo os
sujeitos de maneira que estes possam atender positivamente aos propósitos a que são
destinados. Bem mais que organizar conteúdos, o currículo funciona como um instrumento de
produção de sujeitos. Para Silva (2002, p. 203) o currículo não está apenas ligado aos aspectos
cognitivos da aprendizagem, nele existem preocupações com o disciplinamento do corpo. O
autor destaca ainda que é através do currículo que nossos corpos “são moldados aos papéis de
gênero, raça, classe. [...] O currículo nos ensina posições, formas de se dirigir às outras
pessoas [...] movimentos, que nos fixam como indivíduos pertencentes a grupos sociais
específicos.”
A fala da professora Laura revela suas percepções a respeito não só de seus alunos,
mas do gênero masculino: “iniciei o ano com nove alunos. Destes oito eram meninos. Super-
68
ativos, inquietos e hiperativos.” Percebe-se que as concepções de gênero preenchem as
práticas docentes e, dessa forma, são validadas representações que compõem a formação, pois
“as idéias que as professoras têm de gênero, sua condição de classe social, idade não são
apenas o modo como expressam os significados atribuídos, mas as formas de produzir a
docência.” (WESCHENFELDER, 2000, p. 192). Assim, pode-se dizer que é com base no
modelo de formação docente, que unifica representações de gênero, que se firmam dizeres
como: “meninas se adaptam melhor ao sistema escolar”, “meninos são agitados,
desorganizados e sem capricho”, meninas são esforçadas e dedicadas” e “meninos se
empenham pouco, mas são inteligentes.”
A organização curricular da escola normal trabalha com o conhecimento,
corporificando formas particulares de ser, pensar e agir. “Tínhamos que estudar muito se
quiséssemos ser melhores que nossos mestres” (Laura), demonstrando sua preocupação com a
disciplina para um tipo de saber. Essa ação disciplinadora homogeneíza a identidade docente
definida para o magistério feminino. Tal processo se inicia durante a formação escolar,
proporcionada pelos cursos das escolas normais,
23
e pelo exercício da função.
Fui preparada para trabalhar em escolas de nível social médio. Ao
trabalhar em uma comunidade pobre, percebi que aprendemos muito no dia-
a-dia. Nosso aprendizado ocorre também pela experiência e não apenas por
aquilo que lemos. (Carla).
Em livros como Introdução à Prática de Ensino (REIS, 1968, p. 25) se verifica a
preocupação em traçar o perfil desejado das educadoras. Neste texto aparecem
recomendações como: “um bom professor precisa, não só conhecer o que dele se espera no
desempenho de sua missão, mas também a maneira pela qual poderá exercer da melhor forma,
23
Como já se mencionou, todas as professoras participantes da pesquisa tiveram como formação inicial o curso
normal. Seis fizeram o curso em escolas particulares e uma em escola pública. Segundo Romanelli (2003, p.
163), as escolas normais existem no Brasil desde 1830. A primeira delas, criada em Niterói, foi pioneira na
América Latina e, de caráter público a primeira de todo o continente, já que nos Estados Unidos as que então
existiam eram escolas particulares. Contudo as escolas públicas se centralizavam nas capitais, no interior
estavam sob a ordem e domínio das congregações religiosas.
69
de acordo com as condições do ambiente em que atua.” O texto segue elencando as
qualidades essenciais que cabem ao professor para que este se afirme como um exemplo
marcante e positivo na vida da criança. Descreve também algumas características que são
reproduzidas pela aparência: asseio, sobriedade; boa postura; condições físicas: saúde e
vitalidade, voz modulada e agradável; equilíbrio emocional: serenidade; segurança;
capacidade de julgamento; coerência de atitudes a situações diversas; capacidade de aceitar
críticas ou oposição.
Observando estas proposições tem-se a seguinte leitura possível: se o sujeito educador
deve ser um exemplo positivo e marcante, insinua-se com isso que alguns sujeitos não
possuem, ou não possam possuir as características necessárias para serem professores. Um
segundo julgamento ocorre no que se refere à criança, um ser que precisa ser formado e,
portanto, necessita de alguém capaz de marcá-la positivamente, que lhe tire da “ignorância”,
do “mau caminho”.
Quanto à base curricular do ensino normal, percebe-se que esta articula o processo de
normalização das mulheres, legitimando um modo de ser que é “próprio” para professoras e
também para as mães. Quanto a isto, o enunciado de Ivete é ilustrativo:
Na didática da Linguagem, se fizéssemos bons desenhos, grandes e
coloridos, tirávamos nota dez, porque era um sinal de que seríamos
criativos, que faríamos bonitos cartazes de porta, de aniversário, todos
prontos, lindos, feitos por nós. Tivemos também puericultura (como cuidar
dos bebês), acho que se preocupavam em nos ensinar como ser mães,
porque isso nunca me serviu como professora, porque até hoje não troquei
fralda de nenhum aluno.
Percebe-se que, uma vez decodificados os gestos, falas e atitudes das mulheres no
curso normal, basta seguir a “formação disciplinar” e o “controle” no espaço escolar, que
passa a ser utilizado também para transformar e controlar o sujeito e sua identidade. Além
70
disso, continuam surgindo novos mecanismos de controle nos mais variados âmbitos da
educação. Tais mecanismos são elaborados e/ou utilizados pelo MEC, pelas universidades,
secretarias de educação e pelas próprias escolas que, em função disso, definem investimentos,
conteúdos e referenciais teóricos considerados necessários para melhorar a prática dos
docentes. Além do caráter de exterioridade destes mecanismos, os discursos neles visíveis são
marcados pela consideração de que os docentes, enquanto profissionais, precisam ser
transformados, modernizados para que assim possam também renovar e modernizar suas
práticas.
Há que se considerar ainda que a mudança das práticas seguiu atrelada à adequação de
professores e alunos a currículos e conteúdos que pretendem atender às exigências impostas
pelo mercado de trabalho cada vez mais competitivo. Arroyo (1999, p. 151), diante dos
programas de formação, assinala o quanto é curioso constatar que eles são mais numerosos
justamente “no campo da formação de profissionais da educação básica onde mais se
abundam leis e os pareceres de conselhos, os palpites fáceis de cada novo governante, das
equipes técnicas e até de agencias de financiamento, nacionais e internacionais.” Assim,
percebe-se que, sutilmente, o que se busca através destes mecanismos é a reorganização de
práticas, refazendo a formação, controlando o exercício docente e homogeneizando práticas
na diversidade de sujeitos e contextos.
Nas escolas, espaço menos oneroso para a formação continuada, a preocupação dos
organizadores não se limita a preparar novas metodologias ou didáticas. Considera-se que é
preciso transformar os professores, construir novas subjetividades para que estes sejam
capazes de se adaptar as mudanças, desenvolver o espírito de colaboração, a criatividade e a
capacidade de emitir opinião frente a diversas situações, mesmo que sem uma reflexão
elaborada. Assim, entre os propósitos da formação continuada se situam aqueles que
71
concebem a imagem do professor como sujeito reflexivo, firmando experiências de si no que
se refere à subjetividade docente.
Neste contexto, pode-se afirmar que as práticas de formação docente instauram-se no
próprio local de trabalho, construindo-se na perspectiva da formação continuada uma nova
visão de profissionalismo, tomado como um dispositivo que faz circular os saberes docentes e
as formas de pensar o professor. Os encontros de formação apontam para a experiência
reflexiva como forma de re-examinar as decisões cotidianas, as práticas pedagógicas e a
problematização das situações de aprendizagem elencadas pelas professoras.
A construção deste sujeito educador pode acontecer, como mostra a ata de Formação
Continuada,
24
ao final de um ano letivo, servindo como referência para a projeção de
desempenho no ano seguinte:
registre os desafios encontrados e como os enfrentou, os apoios recebidos ou
dados, o que te fez feliz, os momentos em que te sentiste uma profissional
bem sucedida, satisfeita; as aprendizagens que conseguiste com o grupo da
escola, com teus estudos e com os alunos; o envolvimento nos projetos
pedagógicos; as tuas projeções para o ano seguinte e o tema gerador que
possa impulsionar e entusiasmar com paixão o próximo ano letivo.
Vale resgatar o objetivo da Formação Continuada oferecida na escola à qual
pertencem as professoras desta pesquisa e que é assim apresentado: a Formação Continuada
oferecida pela escola procura assegurar aos professores do Ensino Fundamental as condições
para a reflexão sobre a prática pedagógica que possibilite a melhoria da qualidade da
educação. As metodologias utilizadas devem privilegiar o trabalho em grupo e o
aprofundamento teórico a partir das reflexões sobre o fazer pedagógico, tendo como
24
Ata de formação continuada: reunião realizada com o propósito de avaliar o ano letivo que se encerra e
projetar o início do próximo ano. A partir do fragmento “Proposta para a ação crítica”, de Juan Manuel Alvarez,
solicita-se que as professoras descrevam suas vivências durante o ano que se encerra e que sugiram situações
novas para o ano seguinte.
72
instrumentos leituras diversas, seminários e palestras, bem como a observação e o registro
cotidiano dos professores.
Reafirme-se que as reuniões de Formação Continuada geralmente são utilizadas como
espaços para evidenciar as produções subjetivas de identidades. Este espaço é ocupado por
grupos de professores para compartilhar/trocar experiências, pois nele se realizam as
narrativas sobre os alunos e sobre as práticas profissionais. Esse espaço se torna, segundo
Larrosa (2002, p. 72), um mecanismo pelo qual o sujeito se constitui nas próprias regras do
discurso, o qual lhe dá uma identidade profissional, impõe uma direção e o submete ao
princípio de totalização e unificação. Tal mecanismo também oferece elementos para que o
professor faça o mesmo com o aluno. Garcia (2001, p. 34) assinala que, no contexto escolar, a
experiência que os indivíduos passam a ter de si, dos outros e do mundo está associada à
participação que a educação e a Pedagogia fornecem a partir dos processos de subjetivação e
seus efeitos disciplinares com os quais os indivíduos vêem a si próprios, e sobre os modos
como agem sobre si mesmos.
Na escolha das temáticas abordadas na Formação Continuada, e que fazem parte desta
pesquisa, verifica-se o vínculo que elas possuem em relação à constituição das subjetividades
docentes. Tais temáticas procuram mobilizar as professoras por meio de estudos a refletirem
sobre “ser docente, relação professor/aluno, formação, processos de avaliação, mudanças
sociais e culturais e suas influencias nas práticas pedagógicas.” As professoras são
convidadas a refletir sobre a própria representação docente, uma vez que a partir das temáticas
são produzidas indagações sobre a validade dos saberes que referendam a conduta
profissional, a autoridade docente e o significado coletivo de suas ações.
Por essas razões, as reuniões de Formação Continuada constituem uma prática de si
pelas quais as professoras são levadas a uma auto-reflexão para observar a si próprias em seu
73
trabalho e, em muitos casos, realizar o registro de suas observações. Nos fragmentos da ata de
Formação Continuada,
25
a partir da leitura do texto “Avaliação em uma prática crítica”,
sugere-se que as professoras se pronunciem de forma oral e escrita sobre as seguintes
questões: “Que satisfação tiveste com teus alunos?” “Que desafios conseguiste propor no teu
planejamento?” “Que experiência fizeste de registro de aprendizagem?”
Ao falar sobre suas práticas enquanto desejo e desafio as professoras se encontram
numa posição de sujeito que, ao aparecer, se confessa e produz a verdade a respeito de si. A
confissão, de acordo com Foucault (2003c, p. 61), atua como um mecanismo no qual o sujeito
se torna visível e dizível a si mesmo, mas que “se desenrola numa relação de poder, pois não
se confessa sem a presença virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas
a instância que requer a confissão, impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar,
reconciliar.” Segundo o autor, a confissão também se configura em uma técnica que
pressiona, questiona, faz revelar para si e os outros os limites em que o sujeito se encontra
para realizar-se. Pode servir, então, como “exame de consciência”, “um ritual onde a
enunciação em si, independente de suas conseqüências externas, produz em quem articula
modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas falas, libera-os,
promete a salvação.”
A Formação Continuada pode levar o professor a uma solidariedade de senso comum,
ou a auto-superação em busca de uma atitude investigativa capaz de romper paradigmas, pois
o professor investiga, problematiza e muda a prática, fazendo de sua vivência algo refletido.
Sem o sentido de reflexão, o professor apenas se livra, perante o grupo, de algo que lhe
incomoda, sendo assim apenas confessa a vivência, sem procurar modificá-la. Segundo
25
Reunião de Formação Continuada: reflexão proposta a partir do texto “Avaliação em uma prática crítica”.
Leitura do texto e avaliação individual de cada professora em relação ao seu desempenho profissional.
Exposição através de relato oral onde cada professora revela seus posicionamentos a partir das questões
sugeridas.
74
Garcia (2001, p. 35), sendo o sujeito uma função do discurso, será através da linguagem e
pelo discurso da pedagogia que as experiências culturais, sociais, emocionais, políticas serão
nomeadas, fixadas, mesmo que de modo instável e provisório.
É possível que, pela Formação Continuada, se validem saberes e se identifiquem
maneiras de exercer a prática pedagógica. Contudo, de acordo com Garcia (2001, p. 35), não
há um código de conduta que obrigue o sujeito a ser de determinada maneira, pois a
subjetivação ocorre a partir do conjunto de regras facultativas que “são oferecidas como
modelos, por um conjunto de práticas, técnicas e exercícios nos quais o sujeito oferece a si
próprio como objeto de conhecimento e cuidado, a fim de transformar o seu modo de ser e
conduzir-se para tornar-se crítico.” Nesse processo, pode ocorrer a produção de estratégias,
uma vez que por meio da exposição das práticas docentes, podem surgir efeitos que
contrariam a expressão “professor reflexivo” – experiência de si livre e autônoma – tornando-
se então um mecanismo capaz de “camuflar” condutas, para que estas, em seus dizeres,
possam livrar o sujeito daquilo que não consegue dar conta, dos problemas que não consegue
administrar ou dos encaminhamentos que deixa de tomar. A confissão produzida no exercício
da narrativa pode, então, justificar tanto quem é o sujeito, como também o libertar daquilo
para o qual não pode ser, ou não gostaria de ser.
Para Larrosa (2002, p. 44), estas são práticas pedagógicas nas quais “se estabelecem,
se regulam e se modificam as relações do sujeito consigo mesmo e nas quais se constitui a
experiência de si.” O autor destaca que a experiência de si acontece na correlação entre
domínios de saber, tipos de normatividade e formas de subjetivação. A partir dos propósitos
elaborados para as professoras se encontram domínios de saber: que recursos podemos
utilizar para... Tipos de normatividade: como podemos proceder para avaliar, realizar... For-
mas de subjetivação: que posturas podemos adotar... Ressalte-se que as posturas que podem
adotar não vêm de uma experiência, mas de exigências externas, políticas, culturais e sociais.
75
Ao conceber a Formação Continuada enquanto dispositivo que insere modos de
subjetivação, compreende-se que esta produz nos sujeitos novas experiências, novas relações
consigo mesmo e que se traduzem em práticas pedagógicas. Por intermédio dos estudos, as
professoras se percebem como sujeitos dotados de capacidades para produzir seu trabalho,
tomando por base a organização coletiva da docência. Neste sentido, a ação de “diagnosticar”
e desvelar os “problemas da escola” já não fica a cargo de “especialistas” externos à realidade
escolar, mas a própria escola torna-se um espaço em que o professor se constitui como
produtor de conhecimentos e responsável pela inserção social do aluno. Observe-se o discurso
manifesto no fragmento extraído de uma ata de reunião de Formação Continuada que veicula
algumas proposições prescritas aos professores: “é preciso se desacomodar, importar-se,
envolver-se para que a educação dos alunos se efetive, preparando-os para viver nesta
sociedade em constante mudança.”
26
Por essas práticas, os sujeitos são, de acordo com Garcia
(2001, p. 39), incitados a se reconhecerem de tal maneira, e a falarem sobre si próprios
segundo categorias definidas exteriormente, tomando a responsabilidade para si, de forma que
a subjetividade resultante torna-se alvo ou a norma a ser alcançada.
Os programas de formação procuram qualificar os professores como “um
profissional”, buscam transformar o docente como um investigador de si mesmo, com
autonomia para transformar sua prática cotidiana. A reflexão é tida como condição para
transformar a prática pedagógica das professoras e prepará-las para atender às exigências que
se colocam frente ao seu fazer, e também como uma forma de assegurar que cada docente seja
capaz de modificar a própria imagem de si mesmo. Nos dizeres de Larrosa (2002, p. 49),
compreende-se que “o que se pretende formar e transformar não é apenas o que o professor
faz ou o que sabe, mas fundamentalmente, sua própria maneira de ser em relação ao seu
26
Ata elaborada a partir dos estudos de Formação Continuada na escola da qual fazem parte os professores
participantes dessa pesquisa. A ata considera a partir do texto “meus amigos” questões relativas à violência
social e convoca os professores a contribuir com a formação e inserção social de seus alunos.
76
trabalho.” Apesar disto, na prática ela pode tanto ser pura confissão ou pode de fato alicerçar
uma mudança.
Quando a formação de professores está vinculada a uma formação reflexiva sobre a
profissão, há possibilidade de deslocamento de significados. Ou seja, a reflexão atualiza o
discurso representacional do ser professora e este discurso inova, pois determina a
constituição subjetiva do sujeito educador, atualizando assim o papel da professora. Contudo,
tal fato não significa ruptura em relação ao discurso que representa a mulher e a professora,
pois o deslocamento mantém a representação suscetível a um discurso representacional que
continua por naturalizar ou essencializar a profissão. A mulher afável e mãe querida se
compara à professora que desempenha uma relação afetiva com os alunos. A mulher
solteirona, e sua representação de severidade ou até de amargura, pode ser comparada à
professora que coloca limites, impõe reparações e avalia. Nas práticas pedagógicas, as
mulheres educadoras podem assimilar as duas formas de representação docente.
Em encontros de Formação Continuada, a partir do estudo de textos, as professoras
que participam da pesquisa demonstram um deslocamento das significações a respeito da
profissão docente. Com base no estudo do livro “A auto-estima se constrói passo a passo”,
foram enfocadas questões afetivas que contribuem para o sucesso do aluno na escola. No final
do encontro as professoras deveriam descrever o papel do professor e da escola para auxiliar o
aluno a desenvolver seus talentos. Em outro encontro, o estudo enfocou as formas de avaliar
os alunos, desafiando as professoras a avançarem no entendimento do tema: “Que
instrumentos podemos utilizar para acompanhar as aprendizagens dos alunos?” “Que
situações você considera favoráveis para a avaliação do aluno?”
77
Nesse sentido, as propostas de formação sugerem o redimensionamento dos enfoques
constitutivos da profissão. Na fala da professora Mônica: “descobri que se ensina e se educa
com amor, entusiasmo, valorizando a auto-estima, apostando nos sujeitos alunos,
valorizando seus saberes e suas potencialidades.” A Formação Continuada, compreendida
enquanto dispositivo que tem a capacidade de modificar e instaurar outras formas da relação
da professora consigo mesmo, ocorre como forma de “autoconhecimento” da professora e
uma imagem exterior a si mesma. A professora necessita manter-se ativa para que possa ver-
se a si própria e também aprender a falar sobre si. Como assinala Garcia (2001, p. 40), a
“subjetividade é uma interiorização do lado de fora, é uma ‘dobra’, e a subjetivação é a força
que, ao invés de se exercer sobre outras forças, coloca-se em relação a si mesma, volta-se
sobre si mesma, coloca-se em relação a si mesma, afeta-se a si mesma.” As práticas
pedagógicas são práticas discursivas funcionando como espelho que permite nomear, falar e
ver o que se reflete na sua imagem. São essas imagens que ensinam os professores a
reconhecer em suas posturas, comportamentos e atitudes correspondentes às representações
docentes de sujeito crítico, comprometido, progressista e emancipado.
Weschensfelder (2000, p. 181) assinala que é preciso tomar os cursos de formação
“como lugares de vivência e apropriação de todas as formas de expressão e representação.”
Mais do que se dizer ou comparar-se é importante que, pela formação, as professoras possam
perceber-se como sujeitos que participam de sua formação, que constroem suas histórias,
gerando, segundo Oliveira (2000, p. 17), um processo de auto-formação no qual as condições
em que produzem a sua subjetividade revelam a singularidade de sua história, seu modo de
agir, reagir e interagir em diferentes contextos.
78
3 A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DAS PROFESSORAS
Este capítulo aborda a construção identitária dos docentes a partir das relações de
poder e saber estabelecidas durante a carreira profissional. Procura verificar como discursos
sociais e pedagógicos contribuem para a produção dos enunciados das professoras e que
relações são estabelecidas na formação continuada das docentes.
3.1 As Relações de Poder na Construção Docente
O ser professor passa a se constituir pelas relações de poder e saber que são
estabelecidas nas diferentes formas de atuação. Por sua vez, práticas discursivas funcionam no
sistema educacional como “uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos
discursos, com os saberes e poderes que eles trazem consigo.” (FOUCAULT, 2000, p. 44).
Para Foucault (2000), o discurso compreende relações históricas e práticas sociais.
Assim, compreender a participação da mulher na docência exige a retomada dos diversos
discursos que compuseram essa prática, na medida em que eles são uma produção histórica,
política e suas palavras são construções em que a linguagem atua como constitutiva das
práticas.
79
[...] gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de
contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento
entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de
exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se
desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e
destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. [...] não
mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes
que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que
formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos
são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para
designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da
fala. É esse "mais" que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever.
(FOUCAULT, 2001, p. 56).
O discurso existe para além do emprego das letras, palavras e frases, não pode ser
entendido apenas como a expressão do acontecimento, pois o discurso apresenta regularidades
através das quais é possível definir sua rede conceitual. A construção das identificações
docentes acontece por intermédio de discursos elaborados para manter ou alterar as
significações a respeito da profissão. Para Foucault (2001), é prática que se apresenta imersa
em relações de poder e saber, que se implicam mutuamente, falar e ver constituem práticas
sociais que se amarram em relações de poder, que as supõem e as atualizam.
Afirma o mesmo autor que “o poder não é nem uma instituição nem uma estrutura,
não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação
estratégica complexa numa situação determinada.” (FOUCAULT, 2003c, p. 89). No campo
educacional, as estratégias de poder ocorrem de forma sutil, por vezes sem serem percebidas
pelos sujeitos, uma vez que há certa naturalização das normas de relações e na inserção das
professoras no exercício do magistério. Os professores com maior tempo de serviço na escola
exercem um domínio maior sobre as práticas, podendo interferir junto às situações que
possam representar mudanças. Ao mesmo tempo, as professoras iniciantes precisam
demonstrar em suas práticas que são detentoras das “competências” julgadas como
necessárias ao exercício profissional.
80
A professora Ivete, que começou a trabalhar numa escola do centro da cidade, mostra
em seu enunciado ter se sentido feliz e valorizada por iniciar seu trabalho em uma escola que
primava pela competência de seus professores.
A primeira nomeação que recebi do Estado para trabalhar numa escola de
‘primeira entrância’, onde lecionavam pessoas com reconhecida
competência e anos de trabalho no interior, por onde todas as professoras
iniciavam seu trabalho. (Ivete).
A escola, que já possui toda uma estrutura construída, coloca as novas professoras sob
dispositivos de poder. Com isso, a professora será controlada a partir dos padrões
institucionalizados que definem as competências que deve ter a professora e que estão
relacionadas ao projeto de ensino-aprendizagem que a escola propõe desenvolver. Dessa
forma, as relações pessoais no espaço da comunidade escolar funcionam como padrão de
conduta e de relações para as novas professoras, normatizando de forma sutil o modo de ser
de cada educadora.
Em casos como este, a constituição subjetiva da professora realiza-se através do
exercício das competências ditadas pela instituição – que põe à prova a capacidade de
adequação e produção da professora. Na fala da professora, quando relata a “competência”
identifica-se em relação à configuração de uma subjetividade. Neste sentido, a docente se
encontra imbricada em relações de poder que conferem um tipo particular de relações entre os
indivíduos, pelas quais “o corpo, do qual se requer que seja dócil até em suas mínimas
operações, opõe e mostra condições de funcionamento próprio a um organismo.”
(
FOUCAULT, 2003a, p. 141). Um processo de objetivação em que as práticas de normalização
procuram tornar o sujeito competente, conforme as práticas e estratégias das instituições,
sendo portanto, capaz de exercer o que lhe é exigido. Criam-se assim, formas de subjetivação,
e na medida em que buscam determinar quem é o sujeito, reforçam identidades pelas quais é
possível dizê-lo: professora socioconstrutivista, construtivista, libertadora, tradicional...
81
Muitos professores reproduzem o discurso docente instituído, e acabam, assim,
assimilando ou se identificando com estes dizeres sem realizar a própria reflexão sobre como
subjetivamente se constituem enquanto professores no decorrer da carreira profissional.
Segundo Foucault (2000, p. 36-37), “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer
a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.” As regras que governam
os discursos delimitam os lugares que o sujeito irá ocupar. Em seus estudos, o autor salienta
que na análise dos enunciados existe um traço característico na forma da exterioridade,
compreendida como o conjunto das coisas ditas, as relações, as regularidades e as
transformações, “o domínio do qual certas figuras e certos entrecruzamentos indicam o lugar
singular de um sujeito falante e podem receber o nome de um autor. ‘Não importa quem fala’
mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar.” (FOUCAULT, 2002, p. 141). Observe-se a
fala da professora Laura:
A primeira série exige muito do professor, ele não pode brincar com a
aprendizagem da criança, uma falha no inicio do processo e a mesma
prosseguirá por todas as outras séries, talvez se agravando mais ainda.
A instituição escolar confere às professoras o poder de falar e de determinar espaços
de ação. Contudo, isso não significa que o discurso produzido seja uma prática livre e
autônoma. Trata-se de um discurso elaborado a partir de regras, de um processo de
inclusão/exclusão, que produz o que é preciso e possível dizer. Os discursos pedagógicos que
circulam no cotidiano escolar e embasam os dizeres das professoras constituem-se no interior
de uma formação discursiva que é “ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que tem por objetivo censurar seus poderes,
seus perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar seu peso e sua terrível
materialidade.” (FOUCAULT, 2000, p. 8).
82
O efeito de homogeneidade nos discursos (presente nas filosofias, princípios e
objetivos da escola) não permite que se descubram outros discursos, ou seja, o não dizer
ocorre porque a heterogeneidade não pode aparecer. Neste sentido, pode-se dizer que todo
discurso é ou faz parte de um conjunto de regras estabelecidas socialmente e que determinam
o que se pode (ou se deve) dizer em certas circunstâncias. Para Foucault (2003c, p. 95), não se
deve “imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso
excluído, ou entre o discurso dominante e dominado; mas, ao contrário, como uma
multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes.”
É neste sentido que se pode dizer que os discursos pedagógicos das escolas se
apresentam sob a forma política e pedagógica. O discurso é político porque pressupõe um
compromisso com a formação e inserção do cidadão na sociedade e é pedagógico porque a
partir de seu projeto definem-se as ações educativas e as características da escola para cumprir
com seus propósitos na formação do cidadão participativo, responsável, crítico, consciente,
compromissado e criativo.
Os discursos como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas
ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável
em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder,
e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma
estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas também
o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o
segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas também afrouxam
seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras.
(FOUCAULT, 2003c, p. 96).
Em função das relações a que o sujeito se submete em determinada situação discursiva
que surgem as funções que o indivíduo assume (processo de assujeitamento). Neste sentido, é
válido considerar que todos os enunciados argumentam tanto na direção do político como do
pedagógico, dando ao discurso um efeito de homogeneidade que oculta a heterogeneidade
necessária e constitutiva de todo enunciado. Em nenhuma prática docente, o saber está acima,
83
ou fora das relações de poder, mas está atravessado por estas relações e por processos de
regulação e controle. O discurso pedagógico baseado nas relações de homogeneidade oculta a
própria heterogeneidade, que pode se constituir através do controle da criança por parte das
professoras, estabelecendo hierarquia e regras a serem cumpridas; definição de espaço/tempo:
horários de trabalho e lazer; a sala de aula como lugar de trabalho, e o pátio como lugar para
brincar; ênfase na transmissão dos conteúdos, controle dos aspectos culturais e avaliações
sempre uniformes.
No ambiente escolar o planejamento dos horários para que o espaço e o tempo sejam
totalmente utilizados funciona como um dispositivo da disciplina e hierarquia que envolve
direção, professores e alunos. A direção, ostentando a sua responsabilidade de controle,
observa se os professores utilizam o tempo de maneira proveitosa, e estes fiscalizam e vigiam
os alunos para cumprirem suas tarefas. Um olhar disciplinador e consistente, pois não basta
apenas o cumprimento do horário por parte dos professores e alunos, pois neste espaço é
preciso “garantir a qualidade do tempo empregado: controle ininterrupto, pressão dos fiscais,
anulação de tudo que possa perturbar distrair; trata-se de constituir um tempo integralmente
útil.” (FOUCAULT, 2003a, p. 128).
Muitas práticas pedagógicas ainda se embasam numa função pastoral-disciplinar, nas
quais se reproduzem formas de ser e de pensar que conferem certas subjetividades aos
sujeitos. Um poder pastoral que advém da burocracia do estado que fornece treinamentos às
direções, introduz formas de administrar, sugerindo o controle dos sujeitos e suas práticas.
Neste contexto, os docentes sofrem e desenvolvem poder. Uma rede que, se utilizando de
técnicas sutis, governa os indivíduos de maneira contínua e permanente. A isto Foucault
denomina técnicas de pastoreio: um pastor cuida e dirige seu rebanho, dá atenção a cada um e
a todos. Essas ações se caracterizam pela capacidade de abnegação do pastor em busca de um
84
dever glorioso: cuida e dirige seu rebanho. As sociedades ocidentais desenvolveram uma
“estranha tecnologia de poder, cujo objeto era a imensa maioria dos homens agrupados em um
rebanho com um punhado de pastores. Assim elas estabeleceram entre os homens uma série
de relações complexas, contínuas e paradoxais.” O pastoreio como tecnologia de poder tem
cristalizado quatro aspectos relevantes (FOUCAULT, 2003d, p. 366, 370), a saber:
1. a relação de poder: o pastor assume o destino de seu rebanho;
2. a relação com a obediência: a relação entre pastor e ovelha é uma dependência total e
completa. O rebanho existe pela presença imediata e pela ação direta do pastor;
3. o pastoreio supõe uma forma particular de conhecimento entre pastor e cada ovelha. O
pastor deve saber a situação e as necessidades de cada um, para que todas as ovelhas, sem
exceção, sejam saciadas e salvas;
4. o exercício do poder é um dever: a benevolência pastoral é próxima ao devotamento. Tudo
o que ele faz é pelo bem de seu rebanho. É a sua preocupação constante. Enquanto dorme,
ele vigia.
Neste sentido, pode-se afirmar que a vigilância e o controle se efetivam na escola com
a presença do diretor, dos vice-diretores, da supervisão pedagógica, da orientação
educacional, dos professores e, finalmente, dos alunos. De acordo com Garcia (2001, p. 34),
são sujeitos que assinalam múltiplos lugares e posições que concorrem e lutam pela imposição
de significados acerca da escola, que produzem e reproduzem os discursos pedagógicos. Tais
discursos, para a autora, são baseados em relações de poder e saber que têm efeitos produtivos
e práticos sobre os sujeitos e os objetos de que tratam, produzindo assim, formas de
subjetividade, diferenças, presenças, exclusões, saberes e verdades sobre o pensar e agir dos
sujeitos.
85
Na fala da professora Carla percebe-se a diluição do poder em função do
desdobramento de papéis.
Meu primeiro trabalho foi no meio rural, pobre e multiseriado. Lá, eu tinha
que atender 20 crianças numa mesma sala de aula, com quatro séries
diferentes. Meu papel era: professora, diretora, merendeira e faxineira.
(Carla).
A enunciadora não confere importância à função de diretora porque paralelamente
tinha de desempenhar as funções de merendeira e faxineira. Isso não acumula forças e acaba
atenuando e fazendo com que as relações de poder sejam mais democráticas pela difusão do
status.
Já no início do enunciado em questão percebe-se o tom de desalento que a professora
confere à sua atuação em função da dificuldade em trabalhar em um meio pobre e com classe
multiseriada. Ressalta-se também a ânsia em se mostrar indivisa, una, centrada, mesmo ciente
da existência de múltiplas atuações inerentes aos diferentes posições que ocupa. Ela
singulariza as atribuições e concentra-as em torno de um único si, dizendo: “Meu papel era:
professora, diretora, merendeira e faxineira”. Percebe-se, através da ordem em que as
funções são colocadas, o valor conferido pela professora às diversas profissões e verifica-se
que o intuito dela era lecionar e era isso que tinha importância, sendo o resto um acréscimo,
pois ao mesmo tempo em que dirigia a escola, cozinhava e limpava.
As relações de poder presentes nas instituições de ensino fazem com que as
professoras iniciantes não possam escolher a escola e a série que desejam trabalhar. De certa
forma, isso coloca o sujeito frente ao novo, ao imprevisto, e pode desafiar e instigar a busca
pela superação de desafios. A professora Elvira enfrenta diferentes situações num curto
espaço de tempo da carreira profissional. De um contexto a outro de trabalho, sua fala revela
certas regularidades nas quais vai construindo a sua identidade.
86
Fui chamada para assumir nomeação no magistério municipal e fui
designada para uma escola estadual no interior do município. Lecionava
para as quatro primeiras séries do ensino fundamental. Na escola eu era
professora, cozinheira e faxineira, mas era tudo uma grande festa. Fiquei
três meses nesta escola, fui nomeada no estado e tive que alterar minha
designação para a cidade. Fui para uma escola de periferia. Apesar de ser
uma escola com poucos recursos e que trabalhava com crianças
extremamente carentes, o grupo era muito unido e as crianças manifestavam
uma alegria em estar ali que em nada se comparava com o meio em que
viviam ou sobreviviam. (Elvira).
Percebe-se no discurso a presença da regularidade na manifestação de acontecimentos.
Parece necessário reafirmar e repetir incansavelmente que o ambiente no qual ela trabalhava
era bom e que tudo era alegre e todos eram felizes, como em um mundo idealizado. Tal
necessidade de reafirmação do lado aparentemente “agradável” pode mascarar o contexto ou
cotidiano das crianças e comunidade escolar, que ela qualifica sempre como externa: dura,
difícil, triste. É como se a enunciadora quisesse convencer, principalmente a si mesma, que,
apesar de tudo, a escolha dela foi acertada e ela sente-se realizada com a profissão.
Observa-se no enunciado da professora Laura, que ela percebe a si mesma como
detentora de um saber que ela pode reproduzir. Dessa forma, a sua afirmação: “tendo um bom
material para me auxiliar”, ressalta o seu eu, pois em primeiro lugar está o seu programa de
trabalho, deixando de lado as questões relativas aos alunos e ao ambiente escolar. Seu
enunciado lembra objetos que vai usar “para poder abordá-los, nomeá-los, analisá-los,
classificá-los, explicá-los.” (FOUCAULT, 2002, p. 52). As normas educacionais passam a ser
consideradas verdadeiras a partir da ação da professora, e mesmo que na prática esta sequer
tenha refletido sobre a qualidade e validade das técnicas e conteúdos vinculados a
determinados métodos, a sua ação avaliza essas práticas e discursos, bem como constitui sua
própria identidade. Com isso, o trabalho do professor corre o risco de se reduzir a proclamar
doutrinas. E uma doutrina sempre vincula o indivíduo a determinados discursos, da mesma
forma que proíbe a existência e manifestação de outros. O saber/fazer de cada educadora
87
passa a ocorrer sem uma reflexão mais profunda ou elaborada e a prática torna-se uma
limitação das próprias possibilidades de ação. Para Foucault (2000, p. 43), a doutrina
questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam, na medida em que a
doutrina vale sempre como sinal, a manifestação e o instrumento de uma
pertença prévia – pertença de classe, de status social ou de raça, de
nacionalidade ou de interesse, de luta, de revolta, de resistência ou de
aceitação. A doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes
proíbe, conseqüentemente todos os outros; mas ela se serve, em
contrapartida, de certos tipos de enunciação para ligar os indivíduos entre si
e diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros. A doutrina realiza uma
dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao
grupo, ao menos virtual, dos indivíduos que falam.
Também há uma certa regularidade nos dizeres de outras professoras quando estas se
deparam com a realidade e com a sensação de não dar conta do processo de ensino
aprendizagem, ou das demais delegações que lhes forem feitas. Essas questões se apresentam
nas falas:
Quando iniciei minha profissão, não me sentia totalmente preparada para
assumir uma turma de 20/30 educandos e dar conta de tudo o que era
exigido na primeira série. Tive que me esforçar bastante, buscar ajuda e
trocar idéias com colegas mais experientes. (Íris).
Assumi o serviço de supervisão escolar numa escola da periferia da cidade.
Fui designada para trabalhar com o currículo por área de estudo (5ª a 8ª
séries) sem nenhuma experiência e com certa dificuldade para entrosar-me
na organização e funcionamento dessa modalidade de ensino. A expectativa
com a minha chegada na escola como “a salvadora da pátria”, me causou
alguns problemas, agravados por minha insegurança e forte sentimento de
incompetência para realizar meu trabalho, uma vez que eu nem sabia o que
era para ser feito. Solicitei meu afastamento da escola e dessa função.
(Ivete).
Junto com a normalização permanece o discurso que cria o profissional ideal. A
permanência desse discurso gera medo e produz a fuga por falta de outros elementos de
identificação capazes de relativizar o professor ideal. O discurso do professor ideal tem tanta
força que acaba impedindo os docentes de criarem um modo de vida que lhes dê identidade
própria, por meio de suas experiências (professor com os alunos, com seus pares,
comunidade). Diante da norma e do modelo introjetado de professor ideal os professores se
88
ressentem de elementos de identificação que possam flexibilizar o “ser professor” e que
oportunizem ao sujeito espaço para produzir sua identidade a partir de seu modo de vida.
A escola, sendo um espaço de relações de poder, naturaliza algumas práticas, e associa
os sujeitos a determinados espaços. As práticas pedagógicas atuam a partir do poder da norma
e de técnicas (dispositivos de um modo geral), e isso faz com que qualquer modo diferenciado
de ser, tanto nas dimensões normativas como estéticas, cause um estranhamento.
Os educadores que historicamente se constituíram por práticas discursivas
normatizadoras percebem a necessidade de produzir novas subjetividades que venham
contrapor os modelos e representações que difundiram e estabilizaram a profissão:
Logo, à medida que vou me entendendo como educadora, que tem uma
função pedagógica, humana, social, que realizo leituras e busco grupos de
discussão, começo a me entender como profissional reflexiva, analisando
minha prática de forma crítica, destacando pontos, revendo conceitos,
modificando atitudes, buscando sempre embasamento teórico para firmar ou
refutar tais posições. (Elvira).
Ao se decifrar como uma “profissional crítica”, o ser e o agir da professora precisam
atender certa moralidade de conduta crítica sobre si mesma. Segundo Garcia (2001, p. 36), a
experiência de uma docência crítica pode ser considerada a partir dos “saberes que a ela se
referem, do sistema de poder e de normas (leis, regulamentos) que regulam sua prática, e dos
modos pelos quais os indivíduos se reconhecem a si mesmos como sujeitos educados críticos
ou educadores críticos.” De acordo com a autora, quando os professores falam de suas
práticas posicionam-se a partir de discursos e saberes, significando a si próprios e a suas
práticas por meio de uma gramática anteriormente determinada pela pedagogia e por outros
saberes. Com isso, segundo a autora, outras gramáticas, categorizações e princípios de
organização foram preteridos, excluídos, negados ou simplesmente desvalorizados.
89
Romper com as estruturas e condições que impossibilitam pensar e exercer práticas
menos disciplinadoras e controladoras dos sujeitos e dos saberes produzidos na relação
educativa significa negar heranças; constitui ainda um desafio na experiência profissional dos
educadores, mesmo que já verbalizados como as questões relativas à liberdade e à cidadania.
Com base nos enunciados, verifica-se que uma das funções da escola e do professor é de
propiciar espaços para a socialização dos conhecimentos de forma que se possa pensar o
sujeito enquanto totalidade, com capacidades e competências a serem desenvolvidas. Pelos
discursos das professoras verifica-se a repetição de alguns sentidos estereotipados como:
contribuir para a formação de cidadãos conscientes, críticos e participativos. E, neste
sentido, as definições que mais aparecem nos relatos afirmam que a escola tem como função:
formar cidadão consciente, crítico que seja capaz de conquistar um espaço na sociedade.”
(Carla). Ou “desenvolver as habilidades necessárias para preparar o aluno para que seja um
cidadão crítico e participativo para o mundo em constante transformação.” (Ivete).
A uniformidade dos discursos busca procedimentos adequados para garantir o sucesso
da instituição escolar, em nome da libertação, cidadania e progresso da humanidade. Pelos
dizeres das professoras é função delas e da escola:
Ajudar a formar cidadãos críticos e conscientes de sua função no mundo,
não como seres que apenas habitam o mundo, mas que lutam para mudar a
realidade em que vivem, libertando-se das amarras que lhes prendem os pés,
mãos e também o coração. (Laura).
E também ativar a capacidade criadora do sujeito ao desenvolver a ação educativa:
Formamos, informamos, vivenciamos valores, conhecimentos e preparamos
sujeitos para a vida, na formação de seu caráter, na preparação para
enfrentarem os desafios do dia-a-dia e acompanharem as mudanças
repentinas que sofre o mundo hoje. (Mônica).
90
Questões como a liberdade e a cidadania permeiam o universo profissional dos
educadores e, por vezes, geram questionamentos quanto às identificações e identidades em
construção no exercício docente. Contudo, na maioria das vezes, a implementação desse
discurso se transforma em um obstáculo na prática profissional, tornando-se difícil
implementar e manter propostas que o sustentem, pois a formação para a cidadania exige
reformulações nas práticas pedagógicas. Em muitas propostas educacionais se manifestam os
dizeres que versam sobre a “formação do cidadão”, e isso é reafirmado nos dizeres das
professoras, mas na prática geralmente se torna um discurso frágil e vazio de significados,
pois muitas vezes as próprias professoras não se reconhecem como cidadãs.
A falta de entendimento, ou de comprometimento, pode gerar por parte das pessoas
envolvidas no processo educativo a adoção de métodos e diretrizes de trabalho onde o aluno
se mantém na condição de sujeito passivo. Em seus dizeres os docentes se constituem,
produzem modelos de professor, aluno e ensino. Modelos envolvidos em relações de poder
em que a negação da herança (professor tradicional) não chega a acontecer e os projetos de
libertação e construção da cidadania assumem apenas o caráter de clichê nos discursos das
professoras – não contraria o já dito, não rompe com a herança do ser professor e não provoca
situação de desconforto, pois estabiliza a prática sob o invólucro do discurso do novo, do
moderno.
3.2 As Práticas e os Saberes Docentes
Na modernidade, a educação se padronizou e se transformou em uma das condições
necessárias para o desenvolvimento e organização estrutural da própria sociedade,
constituindo-se como um complexo estabelecimento de relações de poder e de preocupação
com a formação do outro. A escola concebida como instituição disciplinar, torna-se um meio
91
de corrigir e moldar os comportamentos para formar bons cidadãos, conscientes de seu espaço
e das normas que regem a sociedade na qual vivem. Nesta perspectiva, há uma substituição do
caráter informal e espontâneo do ato educativo, que se torna uma forma de controle e de
reforço das normas sociais.
A história da educação institucionalizada também demarca a fronteira entre o saber e o
não saber. Neste binômio figuram as representações de professor e de aluno, sendo o primeiro
o que sabe e ensina e o segundo aquele que não sabe, mas precisa aprender. Em sala de aula a
professora busca constituir em sua forma de atuar os saberes que são estabelecidos nesta
premissa. A prática educativa não ocorre de forma sempre estável, pois está sujeita às relações
e interações que constituem tanto os sujeitos como os saberes.
A minha vida profissional proporcionou-me experiências diversas no campo
do saber pedagógico. Pelas minhas vivencias, diferentes oportunidades e
situações fizeram me desafiar constantemente, ultrapassando, muitas vezes,
meus limites. (Mônica).
Ressaltam-se também nos dizeres da professora Mônica, as percepções de um sujeito
que sempre se refaz: “percebo que muitos dos meus saberes são resultado de um constante
desafio, de novas situações e de oportunidades que surgiram”. O movimento sob o qual a
professora coloca sua atuação está vinculado às diferentes práticas e saberes construídos em
sua carreira profissional, sendo assim destaca que sua atuação profissional está vinculada aos
espaços ocupados, a disponibilidade, o querer mudar, pelos erros e acertos
questionados e refletidos, pela superação, pela criatividade, pela alegria, e
pelas muitas conquistas que contribuíram para meu crescimento pessoal,
intelectual e profissional. (Mônica).
Com o decorrer da carreira profissional, os professores produzem identificações
através da relação que constroem entre os diferentes saberes que constituem suas práticas. O
saber do professor é plural e se constitui pelos saberes da formação – compostos de acordo
92
com Tardif (1996) por saberes profissionais, disciplinares, curriculares que são construídos
durante os cursos de graduação, e por saberes da experiência que são saberes adquiridos na
prática cotidiana dos professores.
Na escola, e especialmente na sala de aula, espaço de produção do currículo, os
professores utilizam-se de certa autonomia conferida pela profissão para validar certos
conhecimentos e procedimentos em detrimento de outros. Nessa prática, é comum vincularem
o seu fazer aos saberes da experiência e, de certa forma, conforme demonstram as falas,
ignorando os saberes obtidos ou desenvolvidos na formação ou encontrado em referências
teóricas.
Quando comecei a trabalhar percebi que a distância entre a teoria e a
prática era um abismo. (Carla).
No inicio parecia que nada do que tinha estudado servia para aplicar em
sala de aula e obter resultado com os alunos. (Mônica).
O que se visualiza é que, na constituição identitária das professoras, ocorre certo
estranhamento frente à relação estabelecida entre os saberes teóricos e as possibilidades de
aplicação prática. Segundo Rufino (2001, p. 127), as professoras “trazem a experiência como
elemento que avaliza o dizer, ou seja, a experiência traz condições para dizer de algo que de
alguma forma se faz regular, e que permite ao professor falar, a partir desta, do lugar de
aprendente de alguma coisa.”
Em um primeiro momento as professoras enfrentam dificuldades para compreender e
estabelecer relações frente à pluralidade de seus saberes. Por outro lado, a prática, tida aqui
como saberes da experiência, exige das professoras posturas e atitudes constantes. Neste
sentido, o desenrolar de acontecimentos alegres, tristes, motivadores ou preocupantes, faz
com que as professoras visualizem suas práticas a partir daquilo que fazem, rejeitando em
93
seus dizeres qualquer ligação entre o que sabem e fazem e a sua formação anterior. Ou seja, as
professoras identificam-se na certeza de que o sucesso só depende de seu fazer, negando
então, qualquer saber externo ao da prática ou que não esteja de alguma maneira vinculado a
si própria.
Nos fragmentos que serão apresentados a seguir, observa-se que as professoras ao
descreverem sobre a relação teoria/prática, o fazem a partir de uma interação entre o que
compreendem como teoria – saberes da formação, e suas práticas – saberes de suas
experiências. Enfim, elas significam a experiência, em conformidade com as constatações de
Rufino (2001, p. 127), apresentando-a como “filtro no próprio processo de buscar
regularidade nas situações complexas que vive o professor.” Assim, em seus dizeres, as
professoras constroem diferentes posições, como pode ser percebido no enunciado da
professora Ivete, com mais de vinte anos de atuação no magistério: “a teoria ilumina a
prática. Tem coisas que se faz por mil anos achando que é por ali.” (Ivete). Já a professora
Carla, com cinco anos de magistério salienta que “Estudar e trabalhar ajudou muito a ter a
teoria para refletir sobre minha prática e vice-versa.” (Carla). A professora Mônica, com dez
anos de magistério, reflete: “Vejo que a prática deve estar relacionada com um conceito
teórico, ou deve-se construir a teoria pela prática que se vivencia.” Para Elvira, com cinco
anos de magistério, teoria e prática estão interligadas, mas percebe que a sua ação enquanto
professora também pode produzir teorias: “Entendo-me como aprendiz, mas que também
produz teoria no trabalho diário, e que esta precisa ser validada através de registros,
análises, discussões e leituras.” Com tudo isto, percebe-se que os saberes da experiência,
enquanto prática educativa, são saberes situados e que possuem um certo um certo grau de
reflexibilidade sistemática.
94
Segundo Weschenfelder (2000, p. 179), “a escola e a universidade são lugares de
formação e como instituições sociais têm significações distintas para os grupos que nelas
vivem.” São, portanto, locais de saberes diferenciados. A escola, enquanto espaço das práticas
docentes, produz um saber específico e próprio – diferente, portanto, do saber acadêmico que
compõe a formação dos professores. Na escola, além dos saberes da experiência, são
veiculados saberes da formação, pois cada vez mais os professores são chamados a participar
de grupos de formação continuada e convocados a ler e refletir sobre quem são e o que fazem.
É em função de exigências que são traçadas sobre os responsáveis pela formação de
professores que constantemente surgem questionamentos do tipo: Como são formados os
professores? Que saberes são produzidos e qual a relação destes com a constituição da
identidade docente?
Por estes questionamentos serem cada vez mais freqüentes e incisivos a universidade
tem se constituído como espaço de discussão tanto dos saberes da formação e da pesquisa,
como dos saberes que compõem a vida profissional dos educadores nos espaços escolares.
Nas escolas também se faz necessário repensar as posturas de professores que valorizam
apenas o saber prático, advindo das experiências em sala de aula e de suas problemáticas
peculiares. Apesar dos encontros de Formação Continuada enfatizarem cada vez mais a escola
como referência, o que vem contribuindo para a validação dos saberes das práticas realizadas
pelos professores, muitos ainda se percebem como transmissores e não como produtores do
saber, permitindo a “outros” o poder de definir o quê e o como ensinar.
O trabalho pedagógico se efetiva com mais freqüência como produção de práticas, mas
este em sua execução já se constitui em uma teoria, mesmo quando as professoras não
percebem o seu saber/fazer diretamente associado a uma teoria. Em muitos casos, as
95
professoras dissociam a teoria da prática, tomando-as como componentes isolados ou opostos,
nos quais cabe “aos teóricos pensar, elaborar, refletir, planejar e, aos práticos, executar, agir,
fazer [...] cada pólo com sua lógica própria.” (CANDAU, 1988, p. 53).
Na busca de sua identidade profissional, os educadores estabelecem uma relação com
o saber, mesmo que este saber esteja apenas imediatamente relacionado às suas necessidades
pedagógicas. Movidos pela busca deste saber, cuja resposta é traduzida na dimensão dos
resultados obtidos pelo seu trabalho, as professoras tentam encontrar uma teoria que possa
guiar a prática educativa durante a sua história profissional. De acordo com Foucault (2003c,
p. 71), não há como desvincular a teoria da prática, pois “a teoria não expressará, não
traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática.” Contudo, dificilmente as professoras
chegam a teorizar sobre suas práticas, em geral manifestam dúvidas quanto ao seu fazer
pedagógico. Em muitos casos, a formação se limita a apresentar-se como possibilidade de
respostas a estas dúvidas.
As falas das professoras entrevistadas a respeito de sua profissionalização são
construídas por suas vivências. Observe-se o enunciado da professora Carla “fui aprendendo a
ser professora através dos estudos e do trabalho que realizava em cada escola” e, na mesma
linha o dizer da professora Mônica:
Tudo era muito improvisado, me guiava pela minha intuição e pela reflexão
do meu fazer pedagógico. Importava-me muito em procurar descobrir
formas mais eficazes de aprendizagem. Pela minha vivência e pelo desejo de
descoberta fui me aperfeiçoando no saber pedagógico.
Há de considerar que, longe de se constituírem como profissionais neutras e apolíticas,
as professoras produzem conhecimentos e discursos que medeiam e legitimam práticas sociais
nas escolas e na sala de aula. As práticas docentes possuem significação social e veiculam
96
relações de poder que exigem dos educadores a tomada de decisão, porque o fazer docente
produz o professor, as suas identidades e a de seus alunos.
Cada professor busca em sua prática um rumo, um caminho, uma direção, e se esta se
estabelece no compromisso com as diversidades culturais, sociais, religiosas dos alunos, não
poderá ser qualquer caminho. Será preciso construir rumos capazes de alterar as próprias
concepções e dizeres homogeneizadores sobre a formação docente.
Neste sentido, pode-se inferir que as professoras pensam em se tornar diferentes, mas
não rompem com a estrutura representacional que as mantém. Dessa forma, a
individualização não promove a singularização dos sujeitos, uma vez que “o processo de
individualização a que estão submetidos os sujeitos, os submetem a uma totalização, pois é
preciso que a essa individualidade, se atribua uma nova forma, submetendo-a a um conjunto
de modelos muito específicos.” (FOUCAULT, 1995, p. 235).
A própria individualidade das professoras se encontra alicerçada no modelo que as
determinou, e estas enquanto sujeitos individuais passam a formar uma categoria com saberes
e poderes:
Não percebia no aluno a capacidade de produzir conhecimentos, então
ensinava tudo. Hoje vejo que é diferente, o professor é um orientador das
aprendizagens de seus alunos. (Ivete).
Nos fragmentos a seguir se percebe que a representação de professora se produz de
forma estereotipada com os sentidos de: “orientadora das aprendizagens”, “incentivadora”,
“condutora dos alunos”, “organizadora de informações”.
O professor é um orientador do processo de ensino aprendizagem, seu
trabalho é incentivar e conduzir os alunos a obterem a aprendizagem.
(Laura).
97
Considero o papel do professor importante, mesmo nos tempos atuais, pois é
de sua competência organizar informações, sistematizar o conhecimento,
ajudar o aluno a organizar as idéias. (Renata).
As falas apresentam regularidades nas formas de identificar as professoras. Esses
aspectos cristalizam idéias que passam a ser admitidas como naturais, como óbvias e
inquestionáveis. Ser professora se constituí por uma carga de significados que não “podem”
ser pensada diferentemente. O significado cultural que a inscrição professor carrega se produz
em suas variantes: tradicional, criativo, sensível, amigo, professora ou professor, aquele que
se diferencia do homem, mulher, tia,...
Em seus dizeres, as professoras garantem suas posições e assumem o papel de
referência, carregando, com isso, as marcas da representação na qual se originou a profissão –
durante muito tempo magistério e sacerdócio se confundiram. Tomando as falas das
professoras como um campo de regularidades, faz-se referência ao entendimento de Foucault
(2002, p. 62), de que o discurso “não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um
sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é ao contrário um conjunto em que podem ser
determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si próprio.”
O mesmo discurso educacional, que produz identificações da mulher com a
professora, produz determinadas formas de subjetivação, cria uma individualização e mantém
um desejo de originalidade, uma vez que é comum cada professora considerar sua prática
como diferenciada.
A identidade se alicerça dentro de um sistema de lugares. No momento em que o
sujeito enuncia se constitui em sujeito de seu discurso, porém essa posição ocupada não
equivale a um lugar de autonomia, autoria, originalidade, mas de assujeitamento, visto que é
preciso ocupar um lugar determinado para poder enunciar do interior dele. Nos fragmentos a
98
seguir aparecem regularidades quanto às práticas docentes nas quais as professoras se
colocam como testemunhas de seu trabalho:
Meu trabalho começa por ai, a partir do momento em que descubro valor no
meu aluno e acredito nele, ele cresce e afasta de si a imagem negativa. De
modo que os alunos construam o conhecimento, entendendo seus valores, os
quais estão fundamentados num projeto de pessoa, entendida no seu todo e
não em parte. (Laura).
Meu trabalho enquanto professora não se limita a só ensinar os conteúdos, é
preciso perceber o aluno como um todo. Educar uma criança é também
compreendê-la em suas dimensões afetivas e sociais. (Mônica).
A realidade de nossas crianças hoje é muitas vezes triste, dolorosa e cruel.
Saber que posso contribuir para melhorar, deixar um pouco mais
suportável, sinto que já valeu. (Íris).
Se o lado externo da escola é triste, doloroso e cruel, por que as professora acreditam
que um bom desempenho pode melhorar a vida de seus alunos? Quando as professoras
relacionam seu trabalho ao campo da afetividade, e percebem que os alunos podem ter
alcançado poucos conhecimentos, mas se tornaram um pouco mais felizes, isso se torna
suficiente para sentirem-se realizadas. Muitas vezes, sem poder interferir no contexto e
enfrentando situações de difícil aprendizagem dos alunos, as professoras jogam o seu papel
para o campo das relações afetivas e isso acaba servindo como uma âncora da identidade,
fazendo que se sintam úteis e produtivas.
O desdobramento em diversos “eus” como materno, amigo, profissional, animador,
exige dos professores esforço e dedicação fazendo esquecer o cansaço, os medos e
inseguranças próprias dos seres humanos. O trabalho profissional dos professores se confunde
com o voluntarismo, reatualizando assim as questões vocacionais pelas quais o sujeito
educador traça a sua vida a partir dos desígnios que lhe são conferidos.
Outras inscrições ao mesmo tempo em que preservam os elementos “incentivador” e
“amplitude” no sentido de “magnitude do sujeito”, “aquele que exerce a sua missão”,
99
conforme se referia a enunciante Mônica em fragmentos anteriores, apontam para um sujeito
educador que se encontra no movimento da ação pedagógica. O sujeito educador aparece
como aquele que também questiona, pesquisa, realiza a sua prática a partir da troca de saberes
e percebe a escola como espaço de relações sociais na qual os professores se comprometem
com as questões da educação e com vivências cotidianas da comunidade escolar.
Ser professor é ser educador em toda a amplitude que a palavra merece. Ser
professor é acima de tudo questionar, sonhar e estar aberto para a vida,
principalmente para quem fica fora dos muros da escola. (Mônica).
O professor é um educador, incentivador, que juntamente com o educando
busca no espaço da sala de aula um lugar de pesquisa, de troca de saberes,
de aprendizagens e muitas vezes de dúvidas e indagações. (Carla).
A teorização de Foucault permite uma nova leitura sobre o papel da escola que, por
sempre ser vinculada a projetos redentores, precisa ser reproblematizada. Nessa perspectiva, é
necessário repensar a questão da liberdade e dos sujeitos envolvidos no processo educativo.
De acordo com Foucault (2003c), é preciso tematizar o sujeito a partir das práticas de si, que o
constituem com autocontrole e temperança. Esse sujeito, como se verá a seguir, tem
capacidade para cuidar do corpo, da alma, da moral e buscar uma estética da vida.
3.3 As Técnicas de Si e a Formação Continuada
A perspectiva estética presente nas análises foucaultianas sugere que continuamente se
revisem os modelos e padrões estabelecidos na constituição do sujeito para que se possa
constantemente tomar uma atitude em relação a si próprio com o intento maior de medir o que
é capaz de realizar, ou verificar as suas faltas em relação às regras. A relação consigo deve
oportunizar uma “forma de filtragem permanente das representações: examiná-las, controlá-
las e triá-las.” (FOUCAULT, 2003b, p. 67-68). Para o autor, esse processo não deve ser
realizado com o objetivo de “tentar decifrar um sentido oculto sob a representação aparente; é
100
aferir a relação entre si mesmo e o que é representado, a fim de só aceitar na relação consigo
aquilo que pode depender da escolha livre e razoável do sujeito.”
De acordo com Louro (1997, p. 470), “as representações de professora carregam,
através dos anos, algumas continuidades, mas também se transformam historicamente.” As
enunciantes da pesquisa variam em idade e tempo de serviço, no entanto, seus dizeres revelam
que as posições que ocupam remontam a um discurso anterior a sua formação como
professora. Assim, percebe-se que elementos da representação docente são preservados,
provocando uma continuidade na forma de representarem-se. Tomando como princípio que
uma identidade se define em relação à outra, compreende-se que nessa relação a afirmação
identitária também inscreve a diferença. Dessa forma, algumas identidades “ocupam
culturalmente uma posição central e servem de referência a todas as demais. Estas identidades
são representadas como normais, básicas e hegemônicas. É por contraponto ou comparação a
elas que as outras são qualificadas como diferentes.” (LOURO, 2000, p. 98).
No momento em que as professoras assumem uma postura reflexiva diante de sua
profissionalização, constroem a idéia de um sujeito capaz de problematizar o que é o mundo
em que vivem. A ausência do processo reflexivo pode fortalecer uma determinada
representação já estabelecida como uma “identidade natural” do “ser” educador. É na escola,
a partir das práticas cotidianas, que se constroem os espaços mais significativos em termos de
expressão da subjetividade das professoras. Para Garcia (2001, p. 39), o sujeito deriva dos
processos de subjetivação que não permitem que ele se estabilize ou se aprisione em alguma
forma ou esquema definitivo, pois esse processo representaria a produção de novas
possibilidades de existência e de certos estilos de vida, sendo, portanto, instável e múltiplo.
101
Em seus últimos trabalhos, Foucault (2003c) “pensa” um tipo de relação do indivíduo
consigo mesmo que possa livrá-lo do pensamento universalizante de sujeito, das relações de
poder que cristalizam formas de ser e estados de dominação. Ele considera que o sujeito possa
se constituir sem recorrer a uma verdade interior, uma essência. Para tal, o sujeito precisa
liberar-se dos atributos fornecidos pelo saber moderno, disciplinar e nomalizador. É um
movimento de fuga que Larrosa (2002) determina como “captura social da subjetividade”, que
obriga o sujeito a ser de maneira fixa, adequado a um padrão estável. Escapar a essa captura
significa lançar-se na contradição do existir, e, assim, buscar estar firmemente enraizado,
perder o pé, se perder e encontrar o movimento.
Procurando eliminar o que é estranho ao eu, encontrará a estranheza mais
radical. Buscando a permanência no tempo, a continuidade e a estabilidade
no tempo, encontrará no próprio tempo o elemento da dessemelhança, da
distância e da diferença. Buscando uma identidade substancial, estável e sem
falha, encontrará uma identidade narrativa, aberta e desestabilizadora,
(LARROSA, 2002, p. 40).
O indivíduo construtor de si fortalece a sua singularidade e pode se afastar da
identidade que lhe foi fixada e conferida como própria e individual. Foucault (2001, p. 15)
considera que na cultura grega e grega-latina, havia práticas refletidas e voluntárias, através
das quais os homens não somente fixaram regras de conduta, como também procuraram se
transformar, modificar em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra portadora de certos
valores estéticos e adequados a certos critérios de estilo. Essas “artes de existência”, essas
“técnicas de si”, perderam sem dúvida, uma certa parte de sua importância e de sua autonomia
quando, com o Cristianismo, foram integradas no exercício de um poder pastoral e, mais
tarde, em práticas de tipo educativo, médico ou psicológico.
Em seus estudos, Foucault (1994, p. 2) demonstra preocupação em trabalhar questões
relacionadas às técnicas de poder e às técnicas de si, buscando fazer a história da organização
do saber no que refere ao domínio de si pelo sujeito. Dessa forma, o pensador define as
102
técnicas de poder, como “as que determinam as condutas dos indivíduos, submetendo-os a
certos fins ou à dominação, objetivando o sujeito.” Para o autor, as técnicas de si são
denominadas como aquelas que permitem aos indivíduos realizarem, sozinhos ou com a ajuda
de outros, “um certo número de operações sobre seus corpos e suas almas, seus pensamentos,
suas condutas, seus modos de ser, de transformarem-se a fim de atender um certo estado de
felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade.” O autor ressalta quanto
à técnica que:
Ela acentua igualmente a importância em desenvolver todas as práticas e
todos os exercícios pelos quais pode-se manter o controle sobre si, e chegar
no final das contas a um puro gozo de si. Não é a acentuação das formas de
interdição que está na origem dessas modificações na moral sexual, é o
desenvolvimento de uma arte da existência que gravita em torno da questão
de si mesmo, de sua própria dependência e independência, de sua forma
universal e do vinculo que se pode e deve estabelecer com outros, dos
procedimentos pelos quais se exerce seu controle sobre si próprio e da
maneira pela qual se pode estabelecer a plena soberania sobre si.
(FOUCAULT, 2003b p. 234).
As práticas de si se constituem como uma forma de relação do sujeito consigo mesmo,
capaz de resistir à norma e ao discurso, pois a partir delas pode-se implementar a
singularidade e revelar no sujeito a sua capacidade de autoconstrução subjetiva. Dessa forma,
o sujeito se constitui como potência capaz de alterar as relações de poder-saber e estabelecer
possibilidades de novas práticas sociais e políticas. Essas práticas não podem ser entendidas
como práticas de libertação, no sentido de rompimento de todas as amarras que prendem o
sujeito, e sim como reconhecimento ético das escolhas e o reconhecimento de si num
exercício sobre si mesmo pelo qual é possível elaborar um modo de ser.
Assim, a prática de si se configura como uma relação autônoma do sujeito frente a sua
condição identitária, pois pode produzir novas formas de relação consigo mesmo, novas
formas de subjetividade, enfim, novos sujeitos.
103
Ora através dessas modificações de temas preexistentes pode-se reconhecer
o desenvolvimento de uma arte da existência dominada pelo cuidado de si.
Essa arte de si mesmo já não insiste tanto sobre os excessos sobre os quais é
possível entregar-se, e que conviria dominar para exercer sua dominação
sobre os outros, ela sublinha cada vez mais a fragilidade do indivíduo em
relação aos diversos males que a atividade sexual pode suscitar. Ela também
sublinha a necessidade de submeter esta última a uma forma universal pela
qual está ligado e que para todos os humanos, se fundamenta ao mesmo
tempo em natureza e em razão. (FOUCAULT, 2003b, p. 234).
Como a própria identidade não é capaz de estabelecer referências totalizantes para a
produção subjetiva dos sujeitos, existe sempre a possibilidade de o sujeito construir
resistência frente aos discursos absolutos das relações de poder e saber que pretendem
conferir verdades sobre o ser de cada um. Por essa via, a concepção subjetiva da identidade
abre a possibilidade de pensar a singularidade dos sujeitos, pela qual a questão da diferença
consegue colocar o sujeito em relação a si próprio, e se apresentar como alternativa,
resistência e mudança. Larrosa (2001, p. 180) aponta o riso como possibilidade de
afrouxar os laços que amarram uma subjetividade demasiadamente
solidificada, uma subjetividade dotada de uma identidade demasiadamente
compacta, uma subjetividade, digamos, demasiadamente idêntica a si
mesma. A distância que o riso estabelece é, agora, entre o sujeito e si
mesmo. É, portanto uma distância reflexiva em cujo vazio instala-se o poder
subversivo do riso. O riso quando é entendido como auto-ironia, como um
componente irônico da própria consciência, supõe sempre um olhar cético
sobre si mesmo. E funciona assim, como um tipo de corretivo frente a uma
consciência que tende a fixação, à limitação, a sentir-se demasiadamente
crente de si mesma. A auto-ironia é um movimento de renovação da
identidade a consciência que ri anula-se a si mesma, se contradiz a si mesma,
está sempre por cima de si mesma a fim de evitar a sua fixação.
Esse movimento de criação da subjetividade e da prática de si abala o sentido e a
representação que determina o sujeito. Tal processo de instabilidade, em que o sujeito põe-se
à prova, encontra nas práticas de si as possibilidades de criação da própria subjetividade.
Sendo assim, as construções identitárias do sujeito enquanto possibilidade criativa deixam de
ser consideradas únicas, universais ou naturais. Essa questão não se apresenta livre da
disciplina pois, “paradoxalmente, quanto mais (auto) disciplinados somos, quanto mais
104
cuidamos do nosso eu, mais livres seremos e melhor governaremos os outros, quanto menos
disciplinados somos, menos livres seremos e pior governaremos os outros.” (DEACON;
PARKER, 2002, p. 108).
Nos dizeres da professora Elvira se observa a percepção de mudança na representação
docente:
Acredito que o educador tem modificado seu pensamento e sua postura, não
se vendo tanto como um ser pronto que freqüentou a universidade uma vez
na vida e está formado, mas que precisa constantemente de estudos e
reflexões a cerca de seu oficio.
A importância da Formação Continuada está na possibilidade de os professores
repensarem de forma crítica suas posturas e os padrões que determinaram os processos de
subjetivação. Assim, é a partir de suas próprias ões transformadas em atitude e reflexão que
os educadores encontram a possibilidade de constituição de diferentes subjetividades. De
acordo com Larrosa (2002), o sujeito precisa colocar-se em movimento no sentido de sair
sempre para além de si mesmo, questionando-se constantemente acerca do que é. A reflexão,
enquanto prática de si, possibilita formas mais flexíveis para trabalhar com os alunos e com o
conhecimento. É nesse sentido que não se pode tomar a educação como um simples espaço
para desenvolver ou aprimorar o autoconhecimento, a autonomia, autoconfiança, mas como
um espaço capaz de produzir “formas de experiência de si nas quais os indivíduos podem se
tornar sujeitos de um modo particular.” (LARROSA, 2002, p. 57). O processo reflexivo leva
os professores a examinar e reexaminar, regular e modificar tanto suas práticas como a si
mesmos. Perceber-se, de acordo com Oliveira (2000, p. 21), que o professor, enquanto sujeito
de sua história e de sua profissão reconstrói a si mesmo e aos repertórios da profissão,
definindo seu lugar social e suas relações com os outros.
105
A formação detendo-se apenas nos aspectos práticos que abordam metodologias de
trabalho e sua aplicação imediata, pode simplesmente construir práticas continuadas que não
promovem rupturas no saber/fazer de cada professora. O abandono, o descaso, por elementos
teóricos que possam auxiliar a prática docente, não significa a ausência total do processo
reflexivo. A formação não é um processo linear cumulativo, toda a ação do professor exige de
si escolhas e renúncias e, ao fazê-las, o educador constitui a si e a sua prática. Nesse
movimento de renovação do sujeito para si mesmo são identificadas, conforme Oliveira
(2000, p. 18), “as rupturas e as continuidades, as coincidências no tempo e no espaço, as
‘transferências’ de preocupações e de interesses, os quadros de referência presentes nos vários
espaços do quotidiano.”
As falas produzidas pelas professoras revelam tanto realidades como as formas de
atuação construídas no confronto com a realidade e é assim que se constrói a preocupação das
professoras com a própria prática, o que pode resultar em uma determinada postura ao
conduzir e produzir a prática educativa. Esta postura construída a partir de processos
identitários, embora sempre sujeita a novas subjetivações, pode preservar determinados
elementos associados a uma herança representacional, dependendo da forma como cada uma
foi capaz de organizar e conduzir a reflexão sobre o seu saber-fazer.
A melhor maneira de avançar e nos atualizar enquanto educadores ainda
são os estudos realizados pela Formação Continuada que a escola oferece.
Tenho muito a ler, muitas teorias e práticas que ainda são desconhecidas.
Nestes encontros de estudo é de suma importância a reflexão de nossa
prática e ações a serem estabelecidas para melhoria da prática pedagógica.
(Mônica).
Cabe salientar que o ensinar não ocorre da mesma maneira, é uma prática
dialética constante, que se transforma a cada leitura nova, a cada olhar
sobre a realidade, adaptando, modificando ou firmando-se, porém esse
transformar-se não significa ir atrás de modismos, de tendências
pedagógicas sem muito critério, porque entendo que preciso estar firme,
acreditando no que estou fazendo para que o processo seja bom e produza
resultados interessantes. (Elvira).
106
Percebe-se que as professoras entram num movimento em busca da realização
profissional, mas em muitos casos não conseguem compreender a dimensão do processo de
reflexão sobre suas práticas, pois esse processo encontra maior significação quando são
capazes de compartilhar em grupo suas experiências, saberes, valores e interesses. Segundo
Larrosa (2001, p. 53), a formação é como uma viagem aberta que não pode estar antecipada,
pois é uma viagem interior, pensada a partir das formas de sensibilidade e construída como
experiência estética:
Uma viagem na qual alguém se deixa influenciar a si próprio, se deixa
seduzir e solicitar por quem vai ao seu encontro, e na qual a questão é esse
próprio alguém, a constituição desse próprio alguém, e a prova e a
desestabilização e eventual transformação desse próprio alguém. Por isso, a
experiência formativa, da mesma maneira que a experiência estética, é uma
chamada que não é transitiva. E justamente por isso, não suporta o
imperativo, não pode nunca intimidar, não pode pretender dominar aquele
que aprende, captura-lo, apoderar-se dele. O que essa relação produz não
pode nunca estar previsto.
A escola como espaço de relações também opera a partir de conflitos. São sujeitos
diferenciados que compõem este espaço, produzindo encontros e desencontros de idéias e
saberes. Nos dizeres das professoras, percebem-se posições que enfocam a múltiplas relações
pessoais:
Gosto de ajudar a todos e contribuir com quem me solicita. Não tenho medo
de novas experiências, sempre estou tentando melhorar minha prática.
Respeito à opinião dos outros e mudo muitas vezes minha própria opinião,
quando percebo que estou errada. (Mônica).
Por vezes me sinto cansada do magistério, principalmente quando as
colegas não compreendem o seu trabalho e te desvalorizam falando coisas
que não estudaram e você sim. Existem muitas pessoas com a mente
fechada, mas no magistério é assim. Você é obrigada a conviver com todos.
(Renata).
Também em seus últimos trabalhos, Foucault enfoca a questão da amizade. Para ele, a
amizade representa uma relação com o outro que não tem forma, nem de unanimidade
consensual, nem de violência direta. “Trata-se de uma relação agonística, oposta em um
107
antagonismo essencial, uma relação que é ao mesmo tempo imitação recíproca e luta,
tratando-se não tanto de uma oposição frente a frente quanto de uma provocação
permanente.” (ORTEGA, 2000, p. 248). Quando a professora Renata faz referência ao seu
saber em detrimento dos outros saberes desqualifica as colegas por elas não serem iguais a si
mesma e, portanto, de difícil convivência, com constantes conflitos e divergências de idéias e
opiniões. A estilística da amizade expressa por Foucault não é uma realidade perceptível na
educação de hoje em dia, mas constitui uma possibilidade a ser construída no convívio, na
escola, visto que mesmo diante do conflito, as pessoas poderiam pensar e argumentar, de
formas diferenciadas.
A amizade se estabelece numa relação de provocação
27
ao outro como forma de
promover o crescimento intelectual, social e vivencial, pois a aprendizagem acontece através
do acréscimo da diferença e não da manutenção de verdades e certezas do sujeito
individualizado: “sou humilde e vejo que falta muitas vezes humildade as pessoas, deixando
de contribuir e aprender por sentirem-se superiores. Aprendemos através da convivência”
(Mônica). As relações de amizade propostas não se equivalem ao discurso da “igualdade dos
sujeitos” pois “no amigo, não devemos reconhecer-nos para fortalecer nossa identidade. A
relação de amizade poderia desenvolver uma sensibilidade para as diferenças de opinião e
gosto.” (ORTEGA, 2000, p. 259).
Oliveira (2001, p. 17) compreende os sujeitos com identidade própria, e considera um
avanço “não medir os outros por nossos próprios parâmetros, não desqualificá-lo porque
pensa e age diferentemente do que entendemos por certo e por errado. Afinal triste e
monótono seria o mundo em que o outro fosse tão somente o espelho que somos.” As práticas
27
Segundo Ortega (2000, p. 259), uma nova noção de amizade iria contra o ideal clássico (aristotélico-
cicerónico) da amizade, entendida como “igualdade e concordância”, pois no amigo, não devemos procurar uma
adesão incondicional, mas uma incitação, um desafio para nos transformarmos. Tratar-se-ia de sermos capazes
de viver uma amizade cheia de contradições e tensões, que permitisse um determinado antagonismo e que não
pretendesse anular as diferenças.
108
pedagógicas se empobrecem se pensadas como uma maneira de controlar os questionamentos
e as dúvidas que envolvem o processo educacional. Freqüentemente, os recursos pedagógicos
são utilizados como forma de encontrar respostas ou soluções para o processo de ensino-
aprendizagem. Dessa forma, limita-se a possibilidade de as professoras pensarem as
dimensões subjetivas no seu modo de atuar.
O processo de pensar a si mesmo remete os educadores a uma busca constante, uma
construção que não se acaba, pois este é um movimento que se refaz a cada dia, ancorado na
própria interrogação dos significados, limites e ambigüidades da prática educativa. A
singularização, assim, se distancia da individualidade que isola e desvincula o sujeito do
grupo, pois ela é acima de tudo um processo em que o sujeito percebe a sua responsabilidade
frente ao coletivo. A prática de si, transformada em atitude constante do sujeito frente às suas
ações, possibilita que se construam novas formas de subjetividade e singularidades no sujeito.
109
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo se desenvolveu a partir do pressuposto de que a formação de professores
deve ser reconhecida como um espaço discursivo, em que a identidade docente se constrói e
reconstrói de maneira histórica e cultural.
Ao se pensar como são formados os professores deve-se lembrar que estes sujeitos são
homens e mulheres que no trabalho, no dia-a-dia, no contexto escolar se relacionam com os
alunos e com colegas de profissão. São sujeitos que participam intensamente da vida dentro e
fora da escola e, nessa dinâmica, elaboram práticas e saberes que os constituem como
professores.
O eu do sujeito educador se configura nas experiências e representações sociais,
culturais e históricas influenciando, assim, sua forma de ser, pensar e agir. Tomando o sujeito
educador como um sujeito que se constrói num espaço/tempo histórico, percebe-se que este
ao narrar suas práticas pode, a partir da análise e da reflexão, re-significar seus saberes e
fazeres e, por conseguinte, sua própria subjetivação enquanto professor.
A Formação Continuada pode se constituir uma possibilidade para os professores
reelaborarem os processos de subjetivação que ancoram suas práticas. Contudo, é preciso
observar que algumas iniciativas de formação tomam as narrativas dos professores como
110
mecanismos que afirmam determinadas subjetividades aceitas para constituir as identidades
docentes: técnicos, construtivistas, reflexivos ou intelectuais. Surgem também adjetivos para
visualizá-lo num processo representativo: amigo, carinhoso, afetivo, auxiliar.
O sujeito educador se constitui, então, por uma multiplicidade de dizeres que se
repetem, se redizem. Neste processo, o sujeito constitui a si próprio, utilizando-se de modelos
da representação que variam entre o que é conhecido e o que precisa ser repetido. Assim, os
dizeres que configuram o ser professora são constantemente reiterados, mantendo sob
resguardo os efeitos de verdade que determinam os sujeitos e a profissão.
Assumindo a identidade docente, os próprios educadores – sujeitos sociais e culturais
– assimilam os discursos produtores da identidade docente e constroem uma auto-imagem
baseada no professor ideal. Para isso, colaboram os discursos da mídia, dos governos e da
sociedade. Essa construção de identidade ocorre paralelamente no campo da atuação
pedagógica e na luta pela valorização e reconhecimento profissional.
A importância do discurso e dos enunciados a eles ligados não está somente na sua
expressão, mas nas posições e nos locais de onde se fala, de onde se enunciam, bem como da
materialidade desta enunciação. As falas apresentadas na pesquisa explicitam regularidades
que tornam semelhantes e conhecidas as representações de professor. Percebe-se que há uma
tendência em manifestar-se de acordo com um discurso já instituído. O rompimento é
provisório, sem força de sustentação. Nesse sentido, tanto a manifestação da escolha da
profissão, como os dizeres que referendam o ser professor obedecem a critérios semelhantes.
A vocação, a vontade de trabalhar com crianças, o professor que conduz, motiva, auxilia e
orienta, se constituem formas estereotipadas de perceber e dizer quem é o sujeito educador.
Por esses dizeres, ao mesmo tempo em que se individualiza o sujeito, também se abrem
111
espaços para que cada professor ou professora se perceba como “verdadeiro educador”.
Assim, ao mesmo tempo em que se mantém um sistema de representação, cria-se no sujeito
educador a ilusão de singularidade.
A estrutura escolar aceita comportamentos diferentes, desde que sempre seja possível
reequilibrar a ordem e manter o estilo de ensino padronizado. Neste contexto, a identidade das
professoras é, por vezes, imersa na cultura padrão do ser educador que a diferença não deixa
aparecer ou que, ao aparecer, passa a ser naturalizada pelas redes discursivas que reatualizam
antigos enunciados.
A identidade do professor advém da significação social da profissão, da cultura, das
tradições, das práticas discursivas, do paralelo entre práticas consagradas com as novas
práticas, do conflito entre teoria e prática, da construção de novas teorias. As professoras
vivenciam a profissão entre o sucesso, frustração, medos e expectativas e, na maioria das
vezes, aceitam os ditos a respeito de sua constituição identitária esquecendo, talvez, que é
possível criar possibilidades de subjetivar-se mediante a outros discursos.
O professor, de uma forma geral, necessita se inserir num projeto de construção e
reconstrução de sua identidade docente. Este projeto surge a partir do caráter questionador,
crítico e reflexivo que cada docente pode assumir. Toda reconstrução identitária passa por
deslocamentos e nestes o próprio sujeito é levado a perceber diferentes formas de subjetivação
em que seu eu pode ser vivido e experimentado. Nesse processo, o professor reflexivo, crítico
e investigativo, questiona, reflete e analisa constantemente as diversas representações que
compõem sua identidade. É preciso problematizar as questões raciais, sexuais, sociais que
estão presentes nos discursos escolares sobre regras, comportamentos e postura e que acabam
configurando os professores como sujeitos apolíticos, assexuados, não corpóreos.
112
A forma como a identidade docente tem sido apresentada interpela as próprias
professoras a participar de um jogo em que resistir ou acolher significa constituir-se dentro de
um sistema de representação. Nesse jogo é preciso seguir as regras e estas, em muitos casos,
atendem a quem tem o poder de narrar, descrever, dizer como são os sujeitos. Por essas razões
se faz necessário repensar constantemente como está sendo narrado, subjetivado e
identificado o sujeito educador.
Em diversos momentos da história, questões como o fracasso escolar, níveis de
repetência e baixa qualidade de ensino foram observados a partir do preparo e formação dos
professores. Por esse ponto de vista, a Formação Continuada de professores – que não
estariam preparados para ensinar – se configura como a solução para as constantes crises
enfrentadas pela escola e seu sistema de ensino. Apontar a incompetência do professor como
principal causa dos fracassos da escola é simplesmente perceber na formação inicial e
continuada dos educadores a única causa e conseqüência dos resultados de um amplo
processo como a educação. Por esse enfoque, o discurso da competência e incompetência é
percebido pelas ações dos professores frente às situações do cotidiano, sem se perceber a
totalidade da escola enquanto instituição.
Sob uma perspectiva mais ampla da questão, se percebe que questões como as
condições em que os professores realizam suas práticas interferem nos próprios sentidos que
os educadores constroem para o seu fazer. Os professores, constituídos em sua forma de ser
por instituições formadoras e pelas regulamentações governamentais, para que possam vir a
ser diferentes de tudo o que foi pensado e planejado, precisam renunciar às representações
únicas e fechadas pelas quais são vistos, descritos e narrados.
113
Ao analisar as experiências de Formação Continuada a que os professores estão
sujeitos, pode-se levantar alguns questionamentos sobre as concepções que vêm orientando
esses programas, baseados, ainda, em uma experiência cumulativa, em que seminários,
palestras e cursos são oferecidos de forma homogênea a uma totalidade de professores, sem
respeitar os diferentes momentos de história profissional e as necessidades específicas de cada
educador. As reuniões de Formação Continuada são pensadas a partir de um modelo único de
formação e consideram que os professores precisam ajustar-se para atender a um perfil
determinado de educador e educação.
Para alterar esse processo, se faz necessário que o professor assuma a discussão, nas
reuniões pedagógicas e nos cursos de formação, sobre o sentido político que orientará as suas
práticas escolares. Nesses espaços o docente poderá refletir sobre o sentido de suas práticas e
sobre a necessidade de construir diferentes posturas profissionais capazes de adaptar as
diferentes situações desencadeadas no cotidiano escolar.
A “estética da existência” nas características assinaladas por Foucault comporta uma
capacidade de percepção e abertura para a experiência de si, pela qual o sujeito torna-se capaz
de perceber a si próprio como sujeito construtor de si e de sua história. Uma capacidade de
reflexão que não consiste numa simples relação consigo mesmo, mas como decorrência da
comunicação e enfrentamento consigo e com os outros.
Ao repensar os aspectos formais da educação certamente o papel do professor
necessita ser visto sob outra perspectiva, em especial nas suas possibilidades de constituição
identitária, pois as identidades sejam elas sexuais, de gênero, raça, religião, etnia etc., não são
um produto acabado, e sim um processo contínuo que nunca se completa, subjetivando-se em
seu espaço e tempo. Esse movimento se insere na trajetória de construção da identidade
114
profissional da professora, que é um processo complexo no qual cada sujeito se apropria de
sua história pessoal e profissional.
Assim, como o estudo não se esgota, as professoras que participaram desse grupo
também continuam em processo de autoconstrução de suas identidades, pois são
constantemente provocadas pelos novos desafios que surgem com as transformações
socioculturais de seu tempo e com a reincidência do discurso naturalizado. Pode-se concluir
esta etapa do estudo lembrando que “A identidade não é um dado adquirido, não é uma
propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um espaço de
construção de maneiras de ser.” (NÓVOA, 1995, p. 16).
115
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