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Universidade de Brasília
Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Mestrado em Educação
Área de Concentração: Aprendizagem e Trabalho Pedagógico
ELISSANDRA DE OLIVEIRA DE ALMEIDA
COMO AS CRIANÇAS CONSTROEM PROCEDIMENTOS
MATEMÁTICOS: RECONCEBENDO O FAZER MATEMÁTICA NA
ESCOLA ENTRE MODELOS E ESQUEMAS
Brasília - DF
2006
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ELISSANDRA DE OLIVEIRA DE ALMEIDA
COMO AS CRIANÇAS CONSTROEM PROCEDIMENTOS
MATEMÁTICOS: RECONCEBENDO O FAZER MATEMÁTICA NA
ESCOLA ENTRE MODELOS E ESQUEMAS
Universidade de Brasília
Brasília - DF
2006
Dissertação apresentada à Comissão
Examinadora da Faculdade de
Educação, da Universidade de Brasília,
como exigência parcial para a obtenção
do título de Mestre em Educação, sob a
orientação do Professor Dr. Cristiano
Alberto Muniz.
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DEDICATÓRIA
A, Manoel e Maria (in memoriam),
meus pais, meus mestres e meus orientadores.
AGRADECIMENTOS
A Deus, dono de todo o conhecimento e Mestre dos mestres, de quem dependo.
A Luiz, meu esposo, Rafael e Ana Clara, meus filhos, pela imensa compreensão.
Ao meu orientador, professor Cristiano Muniz, pela humildade em dividir comigo o
seu conhecimento, acrescentando ao meu e pela confiança em mim depositada.
Às minhas irmãs, Tânia e Do Carmo, pela ajuda com Ana Clara quando recém-
nascida, época em que comecei o mestrado.
À Elizângela, irmã, amiga, companheira de estudo e leitora fiel deste trabalho, que
muito me ajudou na redação e discussão do trabalho.
Ao meu irmão, Júnior, pela ajuda com a apresentação do trabalho em power-point.
Às amigas, Aldeci e Keula, grandes incentivadoras de minha participação no
processo seletivo do mestrado.
À minha sogra, Hilda, pelo carinho e pelas incessantes orações em meu favor.
À minha Igreja, Assembléia de Deus Ebenézer, pelo amor fraternal e pelo apoio
espiritual que dela recebi.
Aos professores da Universidade de Brasília, Renato Hilário, Benigna, Maria
Helena e Érika, por trazerem suas contribuições a este trabalho, enriquecendo-o.
À Luciana, diretora da Escola Classe 50 de Ceilândia, que me recebeu como
professora, amiga da escola e pesquisadora junto ao grupo docente.
Às demais colegas e amigas de trabalho da Escola Classe 50 de Ceilândia pela
acolhida, pois foram, mesmo que indiretamente, tocadas por este trabalho.
À Raquel, Gil, Maris, Carla e Valéria pela atenção dispensada quando partilhando
em nossas conversas sobre aprendizagem as descobertas feitas.
À Rose por abrir a sua sala de aula para minha entrada, contribuindo
significativamente na construção desta dissertação, constituindo-se também
pesquisadora.
A todos os alunos pesquisadores da terceira série que me ensinaram um novo
jeito de aprender e fazer matemática.
E aos demais colegas de mestrado que acompanharam o nascer deste projeto,
que contribuíram com suas sugestões e hoje podem vê-lo concretizado.
ELISSANDRA DE OLIVEIRA DE ALMEIDA
COMO AS CRIANÇAS CONSTROEM PROCEDIMENTOS MATEMÁTICOS:
RECONCEBENDO O FAZER MATEMÁTICA NA ESCOLA ENTRE MODELOS E
ESQUEMAS
COMISSÃO EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Dr. Cristiano Alberto Muniz – Orientador
Universidade de Brasília (UnB) – Faculdade de Educação
________________________________________________
Prof. Drª.Maria Helena Fávero – Examinadora Externa
Universidade de Brasília (UnB) – Instituto de Psicologia
________________________________________________
Profª Drª Benigna Maria de Freitas Villas Boas - Membro
Universidade de Brasília (UnB) – Faculdade de Educação
_______________________________________________
Profª Drª Erika Zimmermann - Suplente
Universidade de Brasília (UnB) – Faculdade de Educação
vi
RESUMO
O presente trabalho tem por interesse o acompanhamento do processo de
aprendizagem em matemática, mediante a análise das produções espontâneas de
crianças, a partir da interpretação que os alunos fazem dos algoritmos usados em
sala de aula. A investigação busca compreender como as crianças organizam o
pensamento matemático tomando por base de discussão teórica e epistemológica
a Teoria dos Campos Conceituais de rard Vergnaud. Desenvolvida segundo os
princípios da pesquisa-ação, a investigação contou com a participação e
colaboração dos alunos-pesquisadores e da professora-pesquisadora durante
todo o seu desenvolvimento. Foi realizada em uma escola pública do Distrito
Federal junto às aulas de matemática de uma série do Ensino Fundamental. A
partir do entendimento do processo de construção de conceitos numa classe de
situações (Teoria dos Campos Conceituais) e da concepção de crianças em
“situação de dificuldade”, acompanhamos a produção matemática delas,
reconhecendo o conhecimento construído mediante as diversas formas de
explicação (verbal, com material, por escrito) do sujeito. Este trabalho propõe a
discussão quanto ao papel do professor face às produções inusitadas, ao sentido
da mediação do conhecimento matemático, à avaliação, e, sobretudo, ao processo
de organização do pensamento. Finalmente, apresenta as aprendizagens
decorrentes do processo investigativo, apontando as limitações, os avanços e
sugerindo novas investidas, em termos de pesquisa, na área de ensino e
aprendizagem em matemática.
Palavras-chave: Teoria dos Campos Conceituais. Situação de dificuldade.
Algoritmos matemáticos. Produções espontâneas. Mediação do conhecimento
matemático.
vii
ABSTRACT
The present work has the objective of following the learning process in
mathematics through the analysis of children's spontaneous productions, beginning
from the interpretation students make of the algorithms used in the classroom. The
investigation aims at trying to understand how children organize their mathematical
reasoning, taking as a theoretical and epistemological discussion basis, The
Conceptual Fields Theory by rard Vergnaud. Developed according to the
principles of field research, the investigation had the participation and cooperation
of student researchers and the teacher as a researcher during all its development.
The study was conducted in a public school in the Federal District, in math classes
of a 3rd grade group of Elementary School. From the understanding of how
concepts are constructed in a class situation (The Conceptual Fields Theory) and
the children's concept when caught in a “situation of difficulty”, we followed their
mathematical production, recognizing how knowledge was built through the several
ways of explanation (verbal, written, with material). This work proposes the
discussion of the teacher's role in face to the unusual production, when
mathematical knowledge mediation is made necessary, to its evaluation, and,
above all, the process of reasoning organization. Finally, it presents the outcome
learning as a result of the investigative process, pointing at its limitations,
progresses and suggesting new attempts in terms of research when involving the
teaching and learning of mathematics.
Key-Words: The Conceptual Fields Theory, a situation of difficulty, Mathematical
algorithms, spontaneous production, and mathematical knowledge mediation.
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................... 13
CAPÍTULO I A historicidade da delimitação do objeto de
investigação: como surgiu o interesse pela pesquisa ........................ 15
1.1 Vivências de uma aprendente....................................................... 15
1.2 Percepções de uma educadora ....................................................23
1.3 Pensando sobre as mudanças necessárias .................................31
CAPÍTULO II – Concebendo a estrutura da pesquisa...................... 36
2.1 Considerações gerais sobre ensino e aprendizagem em
matemática......................................................................................... 36
2.2 Questões para investigação ......................................................... 40
2.3 Traçando os objetivos .................................................................. 41
2.3.1 Objetivo Geral ................................................................... 42
2.3.2 Objetivos Específicos ....................................................... 42
2.3.3 Objetivos Específicos de Ação ......................................... 43
CAPÍTULO III Enquadramento teórico: Implicações e contribuições
da Teoria dos campos conceituais de Gerard Vergnaud................... 44
3.1 Aprender matemática: do reproduzir ao construir..........................44
3.2 A matemática dentro e fora da escola...........................................46
3.3 Conhecendo a Teoria dos Campos Conceituais de Gerard
Vergnaud ............................................................................................51
3.4 A complexidade do processo de construção de conceitos............54
CAPÍTULO IV - Dialogando com o problema de pesquisa ............... 59
CAPÍTULO V Proposta Metodológica ................................................70
5.1 Definindo os caminhos: uma pesquisa-ação ................................70
5.2 Quem somos?................................................................................72
5.2.1 A professora pesquisadora ...............................................73
5.2.2 Os alunos pesquisadores .................................................75
5.2.3 A escola ............................................................................80
5.3 A dinâmica da pesquisa .......................................................81
5.3.1 Em sala de aula........................................................ 82
5.3.1.1 A observação participante............................ 83
5.3.1.2 Diário de itinerância: diário de campo.......... 85
5.3.1.3 Escutando, entendendo, dialogando: a
entrevista ............................................................................................ 85
5.3.2 Descobrindo, aprendendo, construindo: a análise dos
protocolos .......................................................................................... 88
ix
5.3.2.1 A seleção dos protocolos .............................91
5.3.2.2. A pré-análise e análise propriamente dita . 93
CAPÍTULO VI – Entre o pensar e o fazer ........................................ 95
6.1 Como Júlia pensa quando está dividindo......................................96
6.2 Júlia multiplicando .......................................................................103
6.3 Que bicho é esse? Suzana vai dividir .........................................112
6.4 Deu 10, sobe e junta. Vale para a adição e também para a
multiplicação .....................................................................................120
6.5 Usando, mas reinterpretando o modelo, Lina vai dividindo
...........................................................................................................128
6.6 Parece, mas não é. O que é então que Joyce está
pensando?.........................................................................................141
6.7 Se a regra é assim, então todos seguem a mesma regra
...........................................................................................................149
6.8 É assim que Rebeca subtrai quando representa no material
dourado .............................................................................................154
6.9 Como fizemos no material?.........................................................159
6.10 Não deu? “Pede emprestado” .................................................. 165
CAPÍTULO VII - O que aprendemos? .............................................180
7.1 A fala da criança .........................................................................180
7.2 O sentido do registro ...................................................................185
7.3 O trabalho interpretativo..............................................................193
7.4 Trabalhando com situações-problema ....................................... 195
7.5 Com ou sem material?................................................................ 200
7.6 Sentidos da mediação e intervenção pedagógicas na construção
de procedimentos pela criança ........................................................ 204
7.7 Como fica a avaliação diante do alto potencial das crianças,
especialmente, as consideradas, em situação de dificuldade?
...........................................................................................................208
7.8 A pesquisa na sala de aula: um espaço de formação continuada
.......................................................................................................... 215
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................218
REFERÊNCIAS ................................................................................222
ANEXO A ..........................................................................................228
ANEXO B ..........................................................................................240
ANEXO C ..........................................................................................246
ANEXO D ..........................................................................................249
x
LISTA DE SIGLAS E FIGURAS
SIGLAS
BIA – Bloco de Inicialização a Alfabetização
CA – Classe de Alfabetização
C.A.A’s – Classes de Aceleração da Aprendizagem
C.B.A – Ciclo Básico de Alfabetização
DF – Distrito Federal
GESTAR – Programa de Gestão e Aprendizagem Escolar
PCN’s – Parâmetros Curriculares Nacionais
PIE Pedagogia para Professores em Exercício no Início de
Escolarização
TCC – Teoria dos Campos Conceituais
T.R’s – Turmas de Reintegração
UnB – Universidade de Brasília
UniCEUB – Centro Universitário de Brasília
ZDP – Zona de Desenvolvimento Proximal
FIGURAS
1.1 Transcrição da professora com observação quanto ao registro/24
1.2 Registro da professora da explicação do procedimento feito por
Letícia/25
4.1 Transcrição da produção da criança feita pelo pesquisador/57
4.2 Interpretação da produção da criança/57
6.1 Resultado da operação encontrado por Júlia/97
6.2 6.2 Registro do procedimento de Júlia e da pesquisadora/98
6.3 Resolução de um problema na mesma prova/100
6.4 Correspondência um-para-muitos/102
6.5 Sentidos de número em situações de co-variação (relação entre
variáveis)/106
6.6 Resolução de Júlia pela multiplicação/107
6.7 Registro escrito do procedimento: frase e operação/109
6.8 Revelação do esquema a partir da explicação da criança/110
6.9 Algoritmo registrado por Suzana para a divisão sugerida/115
xi
6.10 Revelação do esquema de Suzana/117
6.11 Registro feito por Miguel (9 anos) antes de conhecer o algoritmo
convencional/121
6.12 Registro feito no caderno de Suzana e transcrito pela
pesquisadora/122
6.13 Etapas de resolução realizadas por Suzana durante o diálogo
com a pesquisadora/125
6.14 Outras produções de Suzana feitas no mesmo dia/126
6.15 Registro de Lina para a divisão proposta/130
6.16 Registro da pesquisadora: os passos seguidos por Lina/125
6.17 Registro da pesquisadora: o procedimento construído por
Lina/136
6.18 Transcrição da pesquisadora: operação resolvida por Joyce/144
6.19 Registro escrito feito por Joyce: como pensou a resolução da
operação/145
6.20 Ampliação da primeira explicação dada por Joyce/146
6.21 Resolução da divisão seguindo o comando:”Arme e efetue”/150
6.22 Outra operação feita por Tati: conservação de
procedimentos/153
6.23 Produção de Rebeca partilhada pelo grupo/150
6.24 Registro da pesquisadora: o procedimento desenvolvido por
Rebeca no material/157
6.25 Registro feito pelos alunos: trabalhando com material
dourado/161
6.26 Possibilidade de organização do material a partir do registro
escrito dos alunos/162
6.27 Indicação da pesquisadora: início da resolução da esquerda
para a direita/162
6.28 Procedimento realizado, embora não registrado/163
6.29 Registro no papel sem indicar o procedimento de resolução para
30-10+2, mas apenas o resultado/163
6.30 A subtração de uma dezena, indica sua transformação em
unidades/164
6.31 Esquema explicativo elaborado pela pesquisadora a partir da
análise da produção/164
6.32 Joyce aplica a regra do “não deu, pede emprestado”/167
6.33 Transcrição da pesquisadora: o registro pictórico explicando o
procedimento/168
6.34 Apontamentos feitos pela pesquisadora no registro pictórico de
Joyce/168
xii
6.35 Registro pictórico de como Joyce “pede emprestado” com
indicações da pesquisadora/170
6.36 Registro na operação de como Joyce “pede emprestado”/170
6.37 Registro feito pela pesquisadora durante a mediação/173
6.38 Novo registro da operação feito pela pesquisadora/177
6.39 Outra operação feita por Joyce/178
6.40 Registro de Joyce do procedimento feito no material/178
13
INTRODUÇÃO
O movimento constante de ação-reflexão-ação voltado para o estudo
dos fenômenos educacionais não pode ser encarado numa visão simplista que
busque identificar causas quantificáveis para justificar fracassos nesta área.
A complexidade inerente a esses fenômenos não permite que lhes seja
dado um trato isolado, como se suas ocorrências fossem próprias a um contexto
em específico, pois poderíamos acabar em classificações e rotulações
constituintes de alguns mitos que ainda rondam o contexto educacional.
Na tentativa de avançar no estudo dos fenômenos relacionados às
situações de fracasso na aprendizagem em matemática, este trabalho propõe uma
releitura do processo de ensino e de aprendizado (construção) de conceitos
matemáticos pautado na Teoria dos Campos Conceituais de Gérard Vergnaud.
A historicidade da delimitação do objeto de investigação a partir de
minhas experiências como aluna e educadora no que diz respeito à construção do
conhecimento matemático, num conflito entre a reprodução de “modelos’’ e
socialização de esquemas de pensamento, e a perspectiva de mudanças
necessárias estão relatadas no primeiro capítulo.
Partindo dessa percepção de mudanças necessárias quanto ao ensino e
aprendizado em matemática levanto questões de pesquisa e traço os objetivos,
geral, específicos e de ação, que compõem a estrutura do projeto de pesquisa, os
quais apresento no segundo capítulo.
No terceiro capítulo proponho uma reflexão sobre o fazer matemática
(reproduzir ou construir conhecimento) sobre o sentido da matemática dentro e
fora da escola. A partir disso, teço algumas considerações acerca das
contribuições da Teoria dos Campos Conceituais de Gerard Vergnaud e quanto à
complexidade da construção de conceitos, enfocando o processo ensino e
aprendizagem em matemática.
Em seguida, no quarto capítulo, reflito sobre o problema da pesquisa,
destacando aspectos relacionados ao processo ensino e aprendizagem em
14
matemática. Nessa reflexão abordo questões como o ensinar, o aprender, o papel
do aluno, o papel da escola e o papel do professor.
A metodologia adotada, segundo os princípios da pesquisa-ação, é
descrita no quinto capítulo. Nele constam, em linhas gerais, a concepção de
pesquisa-ação adotada neste trabalho, a caracterização da professora
pesquisadora, da turma e da escola. Descreve também os procedimentos
desenvolvidos tendo em vista os objetivos da pesquisa.
A análise dos protocolos de algumas das crianças que participaram da
pesquisa está no sexto capítulo. Neste espaço me dedico a relatar ao leitor o
contexto da produção, a caracterização das crianças em termos de idade e tempo
de escolarização, além da descrição analítica da produção e o trabalho de
mediação/intervenção pedagógicas.
Decorrente de todo este trabalho de interpretação, análise e
entendimento da produção das crianças, apresento no sétimo capítulo as
aprendizagens em função do que as crianças pesquisadoras nos ensinaram: a
mim, ao orientador da pesquisa e à professora pesquisadora.
Nas considerações finais deixo registradas as marcas da pesquisa em
minha tarefa de pesquisadora educadora, de educadora pesquisadora, discutindo
as principais dificuldades encontradas no percurso. Esclareço que muita coisa
ainda precisa ser feita, e por isso, deixo o convite ao leitor que se interessa e ama
a educação para continuar descobrindo e aprendendo com novas investigações.
15
CAPÍTULO I
HISTORICIDADE DA DELIMITAÇÃO DO OBJETO DE
INVESTIGAÇÃO: COMO SURGIU O INTERESSE PELA PESQUISA?
No contexto escolar, nas mais diversas situações de ensino e de
aprendizagem, observa-se o uso de “modelos”, a priori, na condução do processo,
sobretudo com ênfase centrada na aprendizagem. Decorrente desta observação,
os “modelos” podem ser entendidos como sendo a reprodução das
representações do pensamento humano
1
sobre um conhecimento que,
socialmente validadas ao longo do tempo, foram consideradas universais,
imutáveis e, por isso, passíveis de aplicação a uma variedade de situações e
problemas.
Com base nesta proposição e no intuito de chamar a atenção para a
importância dada aos “modelos” no processo de construção do conhecimento,
bem como de implicações no processo de ensino e de aprendizado nas diferentes
áreas de conhecimento, gostaria de refletir aqui sobre minha vivência/experiência
quando aluna e como professora.
1.1 Vivências de uma aprendente
A influência dos “modelos” no ensino de conteúdos específicos
manifestou-se no percurso de minha vida escolar, enquanto aluna, numa oscilação
entre uma educação heteronômica e autonômica.
No decurso dos estudos, acreditava que os “modelos” eram
necessários para garantir o meu sucesso escolar, que as melhores notas
1
O entendimento pessoal que tenho é que tais representações não dizem respeito ao
acompanhamento do processo de construção do conhecimento elaborado pelo ser humano, antes,
porém, apresentam uma única maneira de dar forma a esse conhecimento, não clarificando o
como se chegou a tal formulação.
16
obtinham somente os alunos que conseguissem reproduzir tais “modelos” nos
testes, provas e tarefas didáticas.
Recordo-me das aulas de História em que o professor elaborava um
questionário sobre os conteúdos estudados. Aproximadamente 180 (cento e
oitenta) questões eram respondidas durante as aulas, em forma de estudo
dirigido. Depois, como instrumento avaliativo, uma grande mesa redonda
2
era
montada na sala. Um a um, cada aluno respondia à pergunta feita, atribuindo-se 1
(um) ponto para cada resposta certa.
O “acompanhamento” da aprendizagem consistia em verificar o maior
número possível de respostas dadas pelo aluno condizente com o gabarito do
professor. Aqui, o modelo se caracterizava pela relação: pergunta X resposta X,
até mesmo porque o ensino de História, nessa época início dos anos 90
(noventa) prezava, em demasiado, o conhecimento dos fatos históricos a partir
da memorização de datas e de nomes dos grandes “heróis”. “Conhecer” ou
“saber” História, na prática do ensino tradicional, significava repetir os
conhecimentos transmitidos tal como nos foram apresentados. A aprendizagem
era concebida como capacidade de memorização.
No mesmo sentido das aulas de História, os “modelos” para aprender
regras gramaticais, operações matemáticas, fórmulas para cálculo em física e
química, etc. eram (e talvez ainda sejam) considerados recursos “eficazes” de
ensino e “facilitadores” da aprendizagem. Transformados em “macetes
3
”,
contribuiriam para o alcance de bons resultados em diversas situações escolares,
em especial nas avaliativas, principalmente nas provas de vestibular.
A visão da funcionalidade dos “modelos” no ensino e na aprendizagem,
tão enfaticamente reforçados pelos professores do Ensino Fundamental,
sobretudo nas séries finais, indicou o caminho a prosseguir em meus estudos:
“aprender” e internalizar esses “modelos”. Os “modelos” seriam, neste contexto,
2
O termo mesa redonda caracteriza a disposição das carteiras universitárias em forma de
semicírculo ou círculo, dependendo da quantidade de alunos, o que facilitava a visualização, por
parte do professor, de cada aluno ao responder uma questão.
3
Para algumas pessoas, decorrente de experiências pessoais, o macete é um atalho que alguém
cria para atravessar, por exemplo, um matagal. Em termos de ensino, no caso de matemática, é
uma fórmula “abreviada” do modelo para “facilitar” o alcance da resposta desejada, sem, contudo,
levar em conta, assim como no “modelo”, o modo de pensar do aluno.
17
mecanismos facilitadores na resolução dos problemas que eram propostos pelo
professor.
Percebi a importância dada a essa funcionalidade no momento em que
busquei fazer uma contra-argumentação frente ao “modelo” imposto. Procurando
expressar um jeito próprio de resolver problemas matemáticos, não encontrei
apoio. Isto porque os professores explicavam os conteúdos valendo-se dos
“modelos” como ponto de partida para “direcionar” o raciocínio dos alunos.
Embora timidamente, na sétima série (ano de 1988), tentasse esboçar
no papel alguns traços da maneira como conseguia resolver certas operações,
não posso deixar de mencionar que os “modelos” apresentados pelo professor
haviam sido, de certa forma, por mim, internalizados
4
.
Apesar da apreensão desses “modelos”, por meio da realização de
intermináveis exercícios que os reforçavam, ainda assim tentava criar, a partir
desses “modelos”, uma outra estrutura de resolução, pois, no meu entendimento
não era necessário reproduzi-lo até o fim para se chegar à solução desejada.
Mesmo não incentivada achava que não era tolhida pelo professor.
Este, algumas vezes, apresentava à turma o modo pelo qual algum aluno havia
chegado à mesma resposta. Contudo, seu objetivo era mostrar que mesmo assim
o “modelo” era o melhor caminho. Outras vezes, vinha até a nossa mesa, quando
solicitado, e ouvia a explicação que dávamos, mas não estabelecia um diálogo
visando ao fortalecimento dessa construção.
Este exemplo retrata minha crença de que o importante era assimilar
esses “modelos” para todas as situações escolares propostas. Aprender, no
contexto escolar, significava saber usar “modelos”, tanto para mim, quanto para o
professor. Não importava se utilizaríamos ou não esses “modelos” em situações
diversas e fora do ambiente escolar, nem tampouco se valorizava as construções
espontâneas dos alunos.
Neste contexto de ensino e de aprendizagem estavam bem definidos os
papéis de aluno e de professor. Quem ensina e quem aprende eram posições
4
Vale ressaltar que, a partir do momento que criava, em paralelo aos “modelos apresentados,
uma forma pessoal de resolver as operações, então a internalização não havia sido pura e nem
absoluta.
18
localizadas em dois extremos. A dinâmica da aula se definia por um tipo de
contrato imposto pelo professor que expressava suas concepções do que é
ensinar e aprender.
Neste tipo de escola havia espaço para as chamadas situações
didáticas. E o que são tais situações didáticas? Refiro-me a estas de acordo com
o sentido que lhe é dado no âmbito da Teoria das Situações de Guy Brousseau
5
.
Segundo o didata (apud. MUNIZ, 2001):
uma situação didática é aquela situação onde as ações cognitivas do
aprendiz são guiadas por regras impostas e controladas por um educador, e
nas situações ditas a-didáticas, as ações cognitivas do aprendiz têm como
referência seus próprios valores e seus sistemas de controle interno de
validação (p.16).
Como se vê, no processo de ensino e de aprendizagem, caracterizado
anteriormente, todo o fazer do aluno, voltava-se para a satisfação de outro, no
caso, o professor. Portanto, minha busca consistia em entender o sentido do
aprender para a escola (situação didática) e para mim (situação a-didática). Hoje,
como educadora, consciente da necessidade de ser mediadora e não reprodutora
de conhecimentos, percebo que ao invés de serem o ponto de chegada, naquele
momento, os “modelos” estavam sendo o ponto de partida. E meu comportamento
diante de cada situação, previamente definida pelo professor, revelava, embora
não compreendesse ainda, que a “internalização” dos “modelos” apresentados
não havia sido tal qual o professor esperava.
As experiências escolares descritas traduziram os conflitos que vivi na
diferenciação entre construção e reprodução do conhecimento. Sentia
necessidade de expressar o meu jeito de pensar, de fazer e de aprender, sem, no
entanto, ter oportunidade para tal.
5
Guy Brousseau pesquisador francês das didáticas das matemáticas, professor da Université de
Bourdeaux. Propôs a noção de situações didáticas e a-didáticas como conceito central da Teoria
das Situações.
19
Neste contexto de educação bancária, aprender Matemática não era
tão simples
6
. Desenvolver o raciocínio equivalia ao treino de “modelos” em
situações preestabelecidas, fechadas para a sua aplicação. Entretanto, isso não
significava, como conseqüência imediata, que o aluno expert em resolver
problemas matemáticos, a partir dos “modelos” impostos, o seria também na
resolução de outras situações fora do contexto escolar nas quais não coubesse a
aplicação desses mesmos “modelos”. Portanto, a relação entre ensinar e aprender
seguia a ordem: um ensino didático para uma aprendizagem didática em situações
escolares.
Segundo Muniz (2001), este tipo de ensino
está estruturado a partir da falsa idéia que o conhecimento matemático se
efetiva com a garantia de reprodução de esquemas operatórios universais e
imutáveis, não permitindo ao aluno expressar seus próprios esquemas de
pensamento (p.28).
Dessa forma, o ensino e o aprendizado socialmente prestigiados eram
tão somente aqueles próprios do contexto escolar. s (alunos) íamos à escola
para aprendermos o que o professor tinha para nos ensinar - o que o significa
que tal prática não seja, ainda, corrente. Não havia a preocupação em estabelecer
uma estreita relação entre os conhecimentos prévios dos alunos e os
conhecimentos curriculares. Portanto, reconhecer a criança
7
como ser epistêmico
por natureza não era algo relevante.
Vygotsky (1998) afirma que o aprendizado das crianças se antes da
escola, ou seja, “qualquer situação de aprendizado com a qual a criança se
defronta na escola tem sempre uma história prévia” (p. 110). Entretanto, é,
justamente, essa história prévia que a escola, de um modo geral, não tem por
hábito priorizar.
6
Quando me refiro à aprendizagem em Matemática não ser simples, reporto-me a existência de
uma concepção do senso comum que encara a Matemática como disciplina difícil, acessível
apenas a um pequeno grupo de pessoas privilegiadas intelectualmente, constituindo-se num
instrumento de exclusão social.
7
No contexto deste trabalho, sempre que for cabível, usaremos a palavra “criança” em vez de
aluno, no sentido, de esclarecer, que o sujeito epistêmico não o é apenas na escola, mas,
especialmente fora dela.
20
As experiências individuais de cada aluno com o conhecimento - suas
construções cognitivas e formas de representação -, quando consideradas, são
deixadas para segundo plano. Em primeiro plano está uma prática pedagógica
profundamente enraizada na reprodução de “modelos” no processo de
aprendizagem de conceitos matemáticos.
Tal prática pedagógica, baseada na concepção de que ao professor
cabe ensinar (detentor do conhecimento) e ao aluno cabe aprender (receptor do
conhecimento de outrem), foi marcante em minhas experiências escolares,
especialmente quando estava na 8ª série (1989).
Imponência e superioridade eram características (percepção comum
entre os alunos) da minha professora de matemática. Ela era exatamente aquele
ser com uma alta capacidade intelectual (ao meu olhar de aluna), pertencente a
uma elite portadora do saber. E nós, alunos, nesta condição, sequer podíamos ter
a pretensão de achar que tínhamos algum tipo de saber que nos elevasse à
condição de produtores de conhecimento.
Do início até o fim do período letivo as aulas foram marcadas pelo
silêncio, frieza, solidão e total racionalidade, necessária nesse contexto, para
aprender matemática. Eram aulas sempre expositivas. Não havia oportunidade
mesmo para fazermos perguntas, expormos nossas dúvidas (ou lógicas). Lembro-
me, como se fora ontem, quando certa vez a professora, como de costume, após
fazer uma explicação sobre expressões algébricas (normalmente ficava de costas
até terminar sua exposição) passou um exemplo no quadro. Após resolvê-lo
passo-a-passo, sentou-se em sua cadeira, indicou a página do livro de matemática
que deveríamos abrir e os exercícios a serem feitos.
Antes, porém, de cumprir aquele ritual, ousei dizer à professora que não
havia entendido a explicação, de imediato ela me perguntou: “Onde você não
entendeu?” Então, prontamente respondi: “Eu não entendi tudo”. mesmo de
sua cadeira, simplesmente, falou: “É impossível alguém não ter entendido nada.
Aponte no quadro qual parte você não conseguiu entender”. Fiquei o
amedrontada que indiquei um lugar qualquer que não havia entendido. A
professora levantou-se, foi ao quadro, não apagou o que havia feito e pôs-se a
21
explicar, como da maneira anterior, a partir do lugar indicado, a resolução daquela
expressão. Finda a explicação, voltou-se para o seu “trono” e nem se preocupou
em saber se eu havia entendido ou não a “nova explicação”.
Esse era o clima de ensino e de aprendizado de matemática em nossa
turma. A postura da professora deixava bem claro como deveríamos nos
comportar (sempre ouvintes) e o que tínhamos que “aprender” (reproduzir).
Alcançar um sete nas provas era uma raridade. A maioria dos alunos, e nela, eu,
obtinha no máximo um cinco ou seis. Estudar matemática nunca foi tão penoso.
Fomos submetidos a duvidar de nossa capacidade de aprender. Imperava a
compreensão que a matemática era uma ciência o pura e exata que não
comportava outras formas de construir o conhecimento. Fazer de outro jeito, nem
pensar! Por várias vezes vi meu caderno e provas rabiscados porque o havia
seguido o “modelo” proposto. Paulatinamente aumentava o meu desgosto pelas
aulas de matemática.
“A perda do sentido prático e do prazer pelo objeto, pela construção do
conhecimento” (MUNIZ, 2001, p.33), se porque normalmente os professores
entendem o conhecimento matemático como produto pronto, cabendo aos alunos,
apenas consumi-lo. Conseqüentemente, a didática da matemática é reduzida ao
desenvolvimento de atividades por meio das quais os alunos possam treinar esses
conhecimentos. Ressalte-se que o objetivo, nesta perspectiva, é fazer com que o
aluno chegue a solução desejada, por meio do cálculo padrão transmitido pelo
professor.
Situações deste tipo eram comuns. Certa feita, a mesma professora
pediu que resolvêssemos em casa os exercícios de uma página do livro didático
sobre expressão algébrica. No dia seguinte, quando chamada à sua mesa para
mostrar o caderno, disse-lhe que após inúmeras tentativas, havia uma expressão
que não conseguira resolver. Afirmei que não tinha solução, pois mesmo seguindo
o “modelo” para sua resolução e dele também fugindo para tentar chegar à
resposta conforme o gabarito do livro, eu não conseguia encontrar o resultado
esperado. Então, a professora pediu uma folha de caderno e pôs-se a resolver
aquela expressão. Voltei ao meu lugar e aguardei. Alguns minutos depois, a
22
professora me chama e mostra uma página inteira e meia repleta de “x”, “y”,
números e disse: “Está aí a resposta”. Fiquei tão impressionada ao ver a
expressão resolvida e com a resposta tal qual no livro, que pensei comigo mesma
o quanto ainda faltava para aprender matemática.
Este sentimento que me sobreveio parece ser ainda muito comum em
várias salas de aula nos dias de hoje. Quantas vezes os alunos se acham
incapazes quando não conseguem corresponder às expectativas do professor! Na
tentativa de realizar as atividades propostas seguindo o “modelo” dado, fazem um
esforço enorme, buscando sempre estar de acordo com o que a escola quer e
ensina. Contudo, nem sempre esse esforço é reconhecido. Pelo contrário, as
tentativas dos alunos ao resolverem determinados problemas – expressões de sua
forma de pensar, de construir conhecimento são, na grande maioria das vezes,
desconsideradas pelo professor.
Muniz (2004a), com base na análise de protocolos
8
de crianças
consideradas pela escola com “dificuldades” na aprendizagem, assim se
posiciona:
as estruturas apresentadas via esquemas mentais são qualitativamente mais
ricas e complexas do que aquelas ensinadas e cobradas pela escola, e
mais, de difícil interpretação para o professor. [...] o aluno realiza uma
atividade matemática muito mais complexa do que aquela que esperamos
dela (p. 42).
Considero que a diferença entre as formas de pensar do professor e as
do aluno, sobrepondo-se as primeiras sobre as segundas, reflete as dificuldades
do processo avaliativo conduzido pela escola, ao mesmo tempo, que traduz as
inquietações do aluno em não se sentir respeitado naquilo que sabe fazer.
Inquietações que, às vezes os alunos não sabem como (ou não têm
oportunidade para) expressá-las. Por tais passei quando fui reprovada na série.
Julgada por não “saber calcular” área de figuras geométricas, fui obrigada a
8
Chamo protocolos quaisquer produções/registros feitos pelas crianças envolvendo sejam
estruturas aditivas ou multiplicativas em operações ou problemas e que foram selecionados para
posterior análise. Tais registros podem envolver desenhos, esquemas, textos, palavras, algoritmos
formais etc.
23
concordar com a nota que ganhei pela minha aprendizagem: 4,95. Logo em frente
à nota estava o resultado escrito em tamanho destacado: REPROVADA.
Desta trajetória estudantil restou uma lacuna. “O que é matemática?”
“Como se aprende matemática?” “Que matemática é a certa ou a melhor?” “Como
avaliar a aprendizagem em matemática”? “Avaliar o que o aluno não sabe ou
ainda não aprendeu é mais importante que partir do que ele sabe e como sabe?”
“Como contribuir para seu desenvolvimento cognitivo?”
1.2 Percepções de uma educadora
Terminado o grau, seguindo os conselhos de minha mãe, após um
ano de curso acadêmico, conclui os dois últimos anos do antigo 2º grau, hoje,
Ensino Médio, cursando o magistério numa escola particular em Taguatinga
Distrito Federal.
Concluído o curso de magistério, em 1993, pude, em janeiro de 1994,
prestar o concurso público para professor nível 1
9
da Fundação Educacional
10
do
Distrito Federal, assumindo o cargo no segundo semestre letivo de 1995. Ainda
em 1994, no mês de julho, ingressei na Universidade de Brasília
11
para cursar
Pedagogia com habilitação para o magistério em início de escolarização.
Os primeiros meses de regência numa escola pública do Gama, em
agosto de 1995, foram frustrantes. Como de costume, os mais novos contratados
eram “jogados” nas turmas de alfabetização. Assumi a regência de uma turma de
série, com 37 (trinta e sete) alunos, pela qual quatro professoras tinham
passado. Meu primeiro desafio foi grande. Após aplicar um teste de sondagem,
início do mês de agosto de 1995, descobri que muitos alunos o discriminavam
9
Professor nível 1 era a designação dada na época para os professores que possuíam certificação
apenas em nível de 2º grau.
10
A Fundação Educacional do Distrito Federal foi extinta anos depois e, atualmente, os
professores da rede pública de ensino fazem parte do quadro de funcionários da Secretaria de
Estado de Educação do Distrito Federal.
11
No decorrer do texto, sempre que aparecer a sigla UnB, a mesma estará se referindo à
Universidade de Brasília.
24
letras e números, outros sequer sabiam o pré-nome (o primeiro nome). Além de
tudo, era uma turma com 37 (trinta e sete) alunos. Inexperiente, ainda permaneci
até a primeira quinzena de setembro. Não agüentando aquela situação e sem
saber o que fazer, desesperada, pedi à direção da escola para sair da regência
daquela turma e assumir outra atividade. Passei, então, a dar aulas de
dinamização
12
até o fim do ano.
Em 1996, na mesma escola, fui indicada para a coordenação
pedagógica. Rejeitei o cargo e assumi novamente uma turma de série.
Inicialmente, nem eu mesma havia entendido por que passar pela mesma série.
Contudo, hoje, percebo que a experiência nos anos de 1995 e 1996 nesta série,
despertou em mim um prazer e paixão pela alfabetização que cada dia aumenta
mais.
Simultaneamente ao trabalho, meus estudos no curso de graduação em
Pedagogia pela Universidade de Brasília em muito contribuíram para meu
aperfeiçoamento profissional. Disciplinas como: Psicogênese da Língua Escrita,
Português, Matemática, Ciências, História e Geografia para Séries Iniciais foram
importantes para ampliar meus conhecimentos e melhorar minha prática em sala
de aula. Diferente de 1995, no ano seguinte, os resultados foram outros, e por
sinal, bem melhores.
Em março de 1997, após entrar no concurso de remoção
13
, consegui
minha lotação em Ceilândia Distrito Federal, onde moro desde junho de 1991.
Apesar da proximidade entre a casa e o trabalho, tinha a faculdade. A distância
continuava grande e o cansaço também.
Em exercício na Escola Classe 50 de Ceilândia, onde estive até o dia
13 de março de 2006, assumi uma turma de supletivo em nível de 4ª rie. No
meio do ano, a convite da direção, assumi a coordenação pedagógica. Não foi
uma experiência agradável. Embora admirada e elogiada por alguns, não me
12
A dinamização compreendia aulas de artes, religião e educação física, ministrada por um único
professor em diferentes turmas no dia da coordenação pedagógica do professor regente.
13
É assim chamado porque os professores que trabalham em outras cidades do Distrito Federal e
entorno e têm interesse em lecionar em escolas mais próximas às suas residências passam por
um processo seletivo que tem como principal critério o tempo de serviço. Concurso porque os
professores concorrem a vagas existentes nas escolas de outras cidades. Portanto, os mais
“velhos” de casa ficam na frente.
25
convenci a continuar no cargo no ano seguinte (1998), e retomei as atividades de
professora regente em uma turma de 2ª série.
Na verdade, quando assumi a turma, fui informada de que se tratava de
uma classe de 1ª série. Só por volta do início do 2º bimestre letivo de 1998, devido
à questão da promoção automática
14
, a vice-diretora acompanhando o meu
planejamento, explicou que os alunos estavam, ou ao menos deveriam estar,
cursando a 2ª série.
Como já havia iniciado o trabalho voltado para alunos da 1ª série,
tamanho foi o susto quando fiz o levantamento da situação escolar daquelas
crianças. O que até hoje tomo por lição. O professor deve procurar conhecer quem
são seus alunos, a situação escolar de cada um, e também suas famílias, sua
realidade.
Naquela turma, foram reunidas crianças com o seguinte histórico: umas
haviam cursado o pré-escolar (5 e 6 anos) e, a rie com aprovação. Outras,
mesmo tendo cursado o pré-escolar, ao chegarem na série foram reprovadas.
Outras haviam cursado a série duas vezes. Com a implantação da promoção
automática, os que haviam sido reprovados foram aprovados para a série na
metade do ano. Acrescente-se, ainda, a este quadro os alunos novos que foram
chegando no decorrer do ano letivo. Uma verdadeira confusão!
Trabalhar nestas condições, realmente não foi fácil. Tive que em um
ano alfabetizar e preparar essas crianças para alcançarem a 3ª série. De um total
de 30 (trinta) alunos, 26 (vinte e seis) foram promovidos e 4 (quatro) ficaram
reprovados. Neste momento, minha prática pedagógica não pôde privilegiar a
construção de um ambiente de ensino e de aprendizado pautado no
acompanhamento do raciocínio do aluno, de suas formulações. Não dava tempo!
O contexto era muito complicado. E esta postura ainda é corrente em muitas
escolas, em muitas salas de aula. Uma postura que pode ser modificada.
Foi mais um ano de muito aprendizado, de reconhecimento de minhas
limitações, de avaliação da minha postura. Esse movimento de ação-reflexão-ação
14
De acordo com a Secretaria de Estado de Educação do DF, à época Fundação Educacional, o
aluno da série deveria ser promovido, ao final do período letivo, automaticamente, para a série
seguinte.
26
foi contínuo nos anos de 1999 e 2000 quando assumi a função de coordenadora
pedagógica.
A experiência na coordenação pedagógica, nesse momento, foi de
grande importância para o meu crescimento profissional. Por meio das conversas
com o grupo de professores, pude identificar anseios, angústias, expectativas,
esperanças e vontade de melhorar, de crescer.
No final do ano 2000, tendo em vista a mudança da direção da escola,
o grupo pediu que me candidatasse ao cargo. Inicialmente, relutei. Porém, depois
de muita insistência, me inscrevi para o processo seletivo e, no ano seguinte,
assumi a direção da Escola Classe 50 de Ceilândia.
Minhas preocupações agora, centravam-se no desenvolvimento dos
alunos em nível de escola. Realizamos durante todo ano, a cada bimestre, os
testes de sondagem
15
. A partir destes, identificávamos as mudanças necessárias,
as ações que necessitavam ser implantadas e as que precisavam ser melhoradas,
bem como, as dificuldades que surgiram. Tentamos. Infelizmente, nem tudo foi
possível realizar. Somos imediatistas demais. Queremos tudo para ontem. Por
vezes, não sabemos ouvir, não sabemos esperar. Mas alguns frutos foram
colhidos. Não fomos (nem somos) perfeitos. Precisamos melhorar ainda mais.
Aqueles que querem e acreditam, por mais que as situações sejam adversas,
continuam tentando, crendo, esperando, fazendo e refazendo, recriando.
Nas palavras de Bortoni-Ricardo (2004), empreendemos um esforço no
sentido de desenvolvermos outro tipo de pedagogia.
Uma pedagogia que é culturalmente sensível aos saberes dos educandos
está atenta às diferenças entre a cultura que eles representam e a da
escola, e mostra ao professor como encontrar formas efetivas de
conscientizar o educando sobre essas diferenças (p.38).
15
Estes testes eram aplicados a cada bimestre visando identificar em que nível de psicogênese da
língua escrita os alunos se encontravam, bem como, que habilidades haviam desenvolvido em
Matemática, quanto ao domínio das quatro operações fundamentais. Não eram atribuídas notas
aos testes. Os professores faziam uma análise dos resultados encontrados, reestruturando o
planejamento didático com fins de atender as necessidades das crianças.
27
Embora ainda possa haver uma imagem mais negativa que positiva a
respeito da conduta do professor e do papel que vem sendo desempenhado pela
escola, escolas e profissionais abertos a mudanças, flexíveis às
transformações que estão ocorrendo no contexto educacional. Por isso, não
desvaneço, mas acredito nos esforços concentrados em alcançar, de fato, uma
educação de qualidade.
Numa perspectiva de mudança, de escuta sensível, de postura flexível,
em 2002 retomei minhas atividades docentes numa turma de série. Após um
período de três anos afastada diretamente da sala de aula, mas atuando junto aos
demais colegas, o que me aproximava dos alunos, iniciei o trabalho pedagógico
com uma motivação maior ainda. Revigoravam-me a vontade e o desejo de fazer
e de ser diferente naquele ano.
A experiência de trabalho nesta turma foi a fonte motivadora que me
trouxe até o processo seletivo de mestrado em educação pela primeira vez em
2002. Era uma tentativa de aprender mais sobre o processo de alfabetização. Em
2003, impulsionada por novas experiências de sala de aula percebi que precisava
também aprender mais sobre o processo de construção do conhecimento
matemático. Dentre as muitas inquietações inerentes ao contexto educacional me
chamava bastante a atenção a maneira como os meus alunos resolviam e
tratavam as questões referentes aos conteúdos de matemática. Decidi-me então
por essa linha de pesquisa.
Tradicionalmente, nós, professores, temos por prática, a transmissão
dos conteúdos matemáticos por etapas e compartimentos. Por mais que
aceitemos a possibilidade da interdependência entre um e outro conteúdo, os
tratamos separadamente. Talvez por tornar mais cômodo ou mais prático o
“acompanhamento” do desenvolvimento de nossos alunos. Sendo assim,
achamos que a construção de determinados conceitos deve acompanhar um
plano linear. Por exemplo, uma criança conseguirá compreender o que é uma
dezena, se necessariamente, compreender a quantificação dos numerais até 9
(nove).
28
Comumente ensinamos nossos alunos a resolverem operações aditivas
começando pela unidade para depois somar os valores da dezena. Agimos como
também nos foi ensinado. Talvez porque em nosso processo de formação, não
nos foi dada a oportunidade de enxergar de outra maneira a resolução dessas
operações. Assim, quando a resposta do aluno diverge do “modelo” de resolução,
consideramos que o mesmo está com “dificuldades” de aprendizagem ou não
compreendeu o processo. Não questionamos nosso aluno a respeito de sua forma
de resolução, ao contrário, tornamos a explicar o mesmo “modelo” até que o aluno
consiga reproduzi-lo, pois, de outra forma, não alcançará o “padrão de
aprendizado desejado.
As considerações de Pinto (2000), quanto ao estatuto do erro no
processo educativo podem ser tomadas neste contexto como elemento indicador
das concepções de ensino e aprendizagem em matemática.
Nesse sentido, quando a resposta do aluno em relação à solução
esperada pelo professor é considerada pura e simplesmente como erro, ignora-se
qualquer possibilidade de ser encarada como resultado de um conflito seja ele
cognitivo, didático ou epistemológico. A partir deste entendimento, se manifesta o
tipo de avaliação que deve ser praticado na escola. Segundo Pinto (2000),
numa concepção de matemática excessivamente voltada para a transmissão
de um conhecimento feito e estabelecido, com todo o aparato de rigor e
exatidão de um conhecimento pronto para ser utilizado, o erro constitui algo
que deve ser eliminado e punido: jamais analisado e tratado, pois representa
a falha, o déficit, a negação, a inconsistência, a contradição, o engano, a
dúvida, a incerteza, a incompletude; enfim, tudo o que uma ciência exata e
rigorosa abomina em seu produto final (p. 18).
Portanto, nenhum professor se sentiria mal ou incomodado pelo fato de
não ter observado o erro em uma perspectiva diferente daquela que por muito
tempo foi considerada única.
Não considerando o erro como “déficit”, mas como “incompletude”, pois
acreditava que uma resposta deveria ser considerada correta se reproduzisse tudo
o que foi ensinado na escola, fui inquietada pela forma como uma aluna da minha
turma de1ª série, em 2002, resolvia as operações de adição.
29
Sua resposta não estava errada, em termos de resultado numérico,
mas o procedimento, a meu ver, estava incompleto. Assim, se em algum
momento, o resultado de uma operação divergisse do meu, poderia considerá-la
parcialmente correta, e isso significaria considerar que havia erro em função da
não obediência às regras escolares.
Por isso, o jeito de fazer dessa aluna me despertou o interesse e me fez
sentir a necessidade de parar, ouvir e entender o modo de pensar dos alunos. A
resposta estava correta, mas o jeito de fazer era diferente.
Certa ocasião, após dar aos alunos uma atividade contendo somente
operações de adição (eu pensava que estava ajudando na agilidade do
raciocínio), os chamei um a um em minha mesa para corrigir as operações.
Quando chegou a vez de Letícia
16
, surpreendeu-me tamanha agilidade no
momento da resolução das operações, pois a estive observando, tendo em vista a
situação
17
particular que a levou para minha turma.
Recordo-me que, ao lhe perguntar como havia chegado ao resultado de
uma das operações de adição com reserva
18
(24+19), ela respondeu que havia
feito a soma nos dedos. Até então, tudo bem! Contudo, a aluna não havia
indicado, segundo o “modelo”, o aparecimento de um grupo de dez, bem como
sua transferência para a “casa” da dezena.
Figura 1.1: Transcrição da professora com observação quanto ao registro
16
Nome fictício.
17
Esta aluna foi matriculada no pré-escolar de 6 anos. Porém, a pedido da mãe foi feito um teste
de sondagem, por meio do qual constatamos que a mesma apresentava condições de cursar a
primeira série. Nesse teste, avaliamos somente alguns aspectos das habilidades desenvolvidas
em Português e Matemática. Por isso, mediante um de processo promoção, na época, válido
nesse contexto, a mesma, foi transferida para a minha turma.
18
Operações aditivas com reserva são aquelas em que a soma de valores na unidade formam
uma dezena sendo necessário a transferência desse agrupamento, representado pelo numeral 1,
por haver formado um grupo de dez, para a dezena.
30
A meu ver, era importante que o aluno demonstrasse, por meio do
registro escrito, o processo da resolução. Reproduzir o “modelo” para resolver
“corretamente” (passo-a-passo) aquele tipo de operação, em minha concepção,
era básico. Mas Letícia não seguiu o “modelo”. Ao contrário, fez uma contagem
progressiva partindo de 25 (vinte e cinco) até chegar ao valor final, 43 (quarenta e
três).
Seu raciocínio pode ser expresso conforme esquema abaixo:
Figura 1.2: Registro da professora da explicação do procedimento feito por Letícia
Se logicidade no raciocínio de Letícia? Com toda certeza! Porém, eu
acreditava que seu raciocínio poderia ser validado se estivesse segundo o
“modelo”. A partir desse dia, procurei ser um pouco mais cuidadosa e atenciosa no
sentido de oportunizar aos meus alunos momentos de explicação de seus
procedimentos, mas ainda assim, não sabia como fazer a mediação pedagógica
com a eficiência necessária para a construção e socialização de seus
conhecimentos matemáticos. Infelizmente, acabava, por vezes, inúmeras e
repetidas vezes, levando-os à reprodução dos “modelos”, orientando, conduzindo
e fechando suas maneiras de pensar ao que “deveria” ser ensinado: unidade com
unidade, dezena com dezena, o número maior em cima, o número menor
embaixo, resolve-se da direita para a esquerda etc.
Depois que comecei a observar melhor a produção das crianças,
percebi que nesta caminhada era preciso repensar o ensino, a aprendizagem, a
avaliação, o currículo, meu processo de formação continuada e as finalidades
31
sociais da Matemática. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais
(2001):
A atividade matemática escolar não é olhar para coisas prontas e
definitivas”, mas a construção e a apropriação de um conhecimento pelo
aluno, que se servirá dele para compreender e transformar sua realidade
(vol. 3, p. 19).
Mediante tudo o que foi aqui exposto, é que propus, em meu projeto de
pesquisa para a seleção no mestrado, sugerir a outros colegas a superação de um
dos maiores desafios e entraves que perdura na educação: “Vamos fazer
diferente?”
1.3 Pensando sobre as mudanças necessárias
Refletir sobre a possibilidade de mudar o que está alicerçado em
nossa prática pedagógica e agir implica superar nossos medos, nossas limitações
e redefinirmos nosso papel. A quem pertence a produção do conhecimento?.
Na verdade, sabemos muito pouco em relação ao que podemos
aprender junto com o nosso aluno. Não admitimos que o aluno possa nos ensinar.
Ensinar-nos que existe um vasto campo de conhecimento não limitado ao quadro
de giz, ao livro didático, aos exercícios mimeografados, ao espaço escolar, mas
que surge nas situações diárias de um saber-fazer que faz dessas crianças
verdadeiros seres matemáticos.
O desafio que se nos impõem, refiro-me a todos os educadores, é de
pesquisar, agir-refletir-agir, em relação aos velhos paradigmas, recomeçar e
refazer o ensino e aprendizado de matemática, transformando-os em uma
atividade prazerosa.
Diferente do que acontece na escola, no nosso dia-a-dia, mais do que
aprender matemática, fazemos matemática porque ela faz parte da vida! Em
nossas vivências diárias ela não ocupa, a priori, o status de ciência pura e
32
racional, mas assume formas abertas e flexíveis de tratar diferentes situações de
uma maneira mais criativa, mais desprendida, coletiva e interativa.
Fora dos muros da escola, o conhecimento matemático está em ação
nas mais variadas situações do dia-a-dia com as quais o sujeito lida. Ele não está
segmentado. uma interação com o conhecimento. Esta interação representa
um nível de desempenho diferenciado se comparado ao que acontece no contexto
escolar. Um pedreiro não escolarizado, por exemplo, usa suas habilidades
matemáticas na realização de suas tarefas com grande precisão. Mas, por outro
lado, essas habilidades parecem não validar suas ações em situações escolares.
Toledo (2004) em sua análise sobre habilidades matemáticas dos
adultos, fazendo algumas considerações sobre o numeramento
19
destaca que
a exigência de habilidades de numeramento se dá pelo fato de que o manejo
de uma situação numérica não depende apenas dos conhecimentos técnicos
pertinentes à matemática (regras matemáticas, operações e princípios), mas
também das disposições, crenças, hábitos e sentimentos sobre a situação
que o indivíduo tenha.
O desempenho dos indivíduos nessas situações envolve a confluência de
vários fatores, incluindo o conhecimento de domínios específicos e de
estratégias, as habilidades cognitivas gerais, bem como o conhecimento de
mundo que pode ter sido adquirido dentro ou fora da escola (p. 94).
O que se percebe é que nas situações e atividades do cotidiano, essas
pessoas se vêem diante de contextos e conflitos por meio dos quais desenvolvem
e usam habilidades matemáticas. Tais habilidades são de natureza e níveis
diferentes, de acordo com as particularidades das situações nas quais são
requeridas (em casa, no trabalho, no banco, no supermercado, num jogo etc.).
Este aspecto também é destacado por Pais (2002) ao questionar o
significado educacional de problemas matemáticos que são dados para os alunos.
Analisando um problema matemático retirado de um livro didático que envolvia
valores de apartamentos luxuosos, o autor indaga como um aluno que mora numa
19
Numeramento pode ser definido por “um agregado de habilidades, conhecimentos, crenças e
hábitos da mente, bem como as habilidades gerais de comunicação e resolução de problemas, que
os indivíduos precisam para efetivamente manejar as situações do mundo real ou pra interpretar
elementos matemáticos ou quantificáveis envolvidos em tarefas” (CUMMING, GAL, GINSBURG
apud TOLEDO, 2004, p. 94).
33
favela pode se sentir interessado em saber os preços de residenciais luxuosos,
sem exercitar uma posição crítica.
Nesse sentido, questiona-se a finalidade do saber escolar nas e para as
situações diárias. De que maneira, o saber escolar se relaciona com contextos
cotidianos nos quais as pessoas estão inseridas se, por vezes, o ensino toma por
referenciais sociais aqueles que se destinam a um pequeno grupo?
Pais (2002) propõe uma noção que considera em curso de
formalização, mas com um alto valor para a compreensão do significado do saber
escolar. O autor escreve que
a contextualização do saber é uma das importantes noções pedagógicas
que deve ocupar lugar de destaque na análise da didática contemporânea.
Trata-se de um conceito didático fundamental para a expansão do
significado da educação escolar. O valor educacional de uma disciplina
expande na medida em que o aluno compreende os vínculos do conteúdo
estudado com um contexto compreensível por ele (p. 27).
Por outro lado, isso não quer dizer que o saber cotidiano deve ocupar o
lugar que é devido ao saber escolar. O autor destaca que, quando um
compromisso com o contexto vivenciado pelo aluno, atribuindo significado
autêntico àquilo que estuda, e é por isso que deve estar próximo de sua realidade,
dá-se sentido ao plano existencial do aluno (ibid., p. 28).
Os objetivos do saber escolar e do saber cotidiano são diferentes.
Portanto, o saber escolar deve servir, em seus propósitos, para “modificar o
estatuto dos saberes que o aluno aprendeu nas situações do mundo-da-vida”
(ibid., p. 28).
Entendo que, se o saber escolar não consegue aprimorar o saber
cotidiano, além de propiciar ao aluno a aquisição de novas formas de saber, a
dimensão do valor que lhe cabe pode tornar-se ínfima.
Em uma breve comparação sobre este aspecto, agora pelo prisma da
educação em língua materna, Cox e Assis-Peterson (2001), analisando resultado
de seus estudos sobre a forma como as crianças interagem com a escrita dentro e
fora do contexto do escolar destacam que:
34
enquanto as crianças interagem com a escrita a partir de múltiplos saberes
lingüísticos, formulando hipóteses ora no solo de uma rica competência de
falante de uma modalidade oral do português, ora no solo de um ainda
incipiente saber sobre a escrita, as professoras interagem com a escrita
somente a partir das convenções ortográficas e gramaticais (p. 70).
A colocação das autoras deixa transparecer que o fenômeno do
distanciamento entre o saber escolar e o saber cotidiano se estende também a
outras áreas da aprendizagem. E essa separação traduz a forma como o
conhecimento é abordado no contexto escolar, em termos de ensino, e em como
as pessoas, sejam crianças ou adultos, lidam com ele, em termos práticos.
Retomando o contexto que está sendo analisado, o que se percebe é
que fora da escola os alunos são verdadeiros matemáticos, mas dentro dela
parecem não conhecer sequer os numerais e nem serem capazes de construir as
mais variadas relações entre diferentes conceitos.
Há, portanto, uma visão corrompida acerca do como se faz e como se
aprende matemática. Como destacaram Cox e Assis-Peterson (ibid.), as
professoras investigadas reduziam o trato da escrita ao que estava predito pela
gramática e a regras ortográficas. Quanto ao ensino e aprendizado de
matemática, também são comuns concepções de ensino que avaliam a
aprendizagem com base no que está convencionado e que deve ser repassado
pela escola aos alunos, ignorando desta maneira, o potencial dos alunos como
competentes nesta área de conhecimento.
Carvalho (2004), em suas reflexões sobre alfabetismo, escolarização e
educação matemática, faz um apontamento relevante quanto às questões
apresentadas aos alunos nos problemas matemáticos, indicando um outro nível de
entendimento da relação entre o saber escolar e o saber cotidiano. Assim, a
autora escreve:
As questões apresentadas no problema não podem estar fora do campo de
significação das pessoas, por exemplo, não é suficiente abordar uma
temática relativa ao cotidiano não escolar do aluno e lhe propor questões
artificiais, que não surgem em sua prática social
20
(p. 108).
20
Citação extraída de nota de rodapé.
35
Portanto, vê-se que os conhecimentos prévios dos alunos, a maneira
como interagem com estes conhecimentos (normalmente em situações práticas e
envolvendo outras pessoas), os atalhos criados na resolução de problemas, e as
diferentes soluções obtidas acabam sobrepujados por outra forma de saber e de
fazer. O sujeito passa a obedecer a regras impostas, reproduzindo-as
mecanicamente para situações previamente definidas e restritas ao ambiente
escolar.
Mesmo que a escola ainda permaneça presa a certos “estilos” de
ensino, se esboçam mudanças em termos de proposta curricular, como um
indicativo da importância que o saber cotidiano vem adquirindo no processo
educativo. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (2001):
As necessidades cotidianas fazem com que os alunos desenvolvam uma
inteligência essencialmente prática, que permite reconhecer problemas,
buscar e selecionar informações, tomar decisões e, portanto, desenvolver
uma ampla capacidade para lidar com a atividade matemática. Quando essa
capacidade é potencializada pela escola, a aprendizagem apresenta melhor
resultado (vol. 3, p. 37).
Portanto, o que se propõe e o que se busca é uma articulação
necessária e possível entre o saber escolar e o saber cotidiano. Esta articulação
leva a um processo de reflexão quanto às metodologias de ensino usadas, quanto
à compreensão das habilidades das pessoas nas situações diárias, considerando-
se suas competências para estas situações legítimas, reveladoras de um
verdadeiro potencial de produção de conhecimento que não pode ser desprezada.
A expressão deste potencial deve ser entendida como a manifestação
de múltiplas formas de saber, de fazer e de representar o conhecimento, e que
deve ser levada em conta no processo de ensino e de aprendizagem.
36
CAPÍTULO II
CONCEBENDO A ESTRUTURA DA PESQUISA
2.1 Algumas considerações sobre ensino e aprendizagem em matemática
A relação entre o que o aluno pensa, como pensa, como faz e
representa o conhecimento matemático e o que o professor sabe, pensa e como
representa este conhecimento é aspecto relevante e imprescindível na análise do
processo de ensino e aprendizagem.
Considerando o fenômeno didático neste processo, observa-se a
existência de uma confrontação entre duas variáveis associadas à temporalidade:
o tempo didático e o tempo da aprendizagem (PAIS, 2002).
Em função disto, acredita-se que a aprendizagem deve ocorrer segundo
os parâmetros estabelecidos pelo tempo didático. Como destaca Pais (ibid.), este
tempo se refere àquele “marcado nos programas escolares e nos livros didáticos
em cumprimento a uma exigência legal” (p. 24).
Portanto, os fenômenos cognitivos que se relacionam com a
aprendizagem acabam sendo erroneamente entendidos na mesma linearidade de
apresentação do saber matemático.
Este nível de concepção, porém, não pode ser mais considerado
imutável. Além das contribuições de estudos na área da Psicologia sobre
desenvolvimento e aprendizagem, houve também uma evolução significativa no
campo de estudo sobre o ensino da Matemática e que continua em processo.
Knijnik (2004), em seu trabalho, buscou analisar algumas das
dimensões do alfabetismo matemático e suas implicações curriculares, registrando
um sentimento com relação ao ensino de matemática de profundo significado.
Segundo a autora,
37
Se houve um tempo em que o se questionou a matemática ensinada na
escola como mera transposição do produzido pela matemática ocidental, se
foi tomado como “natural” que os conteúdos a serem transmitidos às novas
gerações estavam de uma vez por todas definidos e fixos, esse foi um tempo
que já não existe mais (p. 222).
Esse posicionamento permite dizer que as mudanças operadas no
plano do ensino da Matemática têm contemplado a dimensão do processo
educativo em termos do desenvolvimento da aprendizagem.
Torna-se evidente que o tempo do aluno é um e o tempo da escola, em
termos de ensino, é outro. O tempo do aluno pode ser entendido como o tempo da
aprendizagem, mencionado anteriormente. A esse respeito, Pais (ibid.) explica:
O tempo da aprendizagem é aquele que está mais vinculado com as
rupturas e conflitos do conhecimento, exigindo uma permanente
reorganização de informações e que caracteriza toda a complexidade do ato
de aprender. É o tempo necessário para o aluno superar os bloqueios e
atingir uma nova posição de equilíbrio. Trata-se de um tempo que não é
seqüencial e nem pode ser linear na medida em que é sempre necessário
retomar concepções precedentes para poder transformá-las e cada sujeito
tem seu próprio ritmo para conseguir fazer isto (p. 25).
Decorrentes deste aspecto merecem ser enfocados outros, a saber, o
processo avaliativo e o de ensinamento dos objetos matemáticos, entendido este
último no plano da transposição didática.
As implicações que se dão no campo da avaliação quanto à
aprendizagem em matemática remetem a uma releitura de concepções rotineiras
que permeiam a prática pedagógica. Pode ser analisado, por exemplo, o
entendimento de quanto mais a aprendizagem corresponda ou se aproxime do
que é ensinado na e pela escola maiores as chances de sucesso, e que, em
contrapartida, quanto mais se diferencia do que a escola ensina e espera maiores
as possibilidades de fracasso escolar.
O trabalho desencadeado pela releitura de concepções como esta
permite que sejam redefinidas o sentido e função da avaliação de um modo geral,
e que se analise como está estruturada no campo do ensino e da aprendizagem
em matemática.
38
Villas Boas (2004) considera que a aprendizagem e a avaliação estão
diretamente ligadas e que, portanto, a avaliação visa sempre ajudar a
aprendizagem. A respeito da finalidade da avaliação a autora escreve
A avaliação existe para que se conheça o que o aluno já aprendeu e o que
ele ainda não aprendeu, para que se providenciem os meios para que ele
aprenda o necessário para a continuidade dos estudos. Cada aluno tem o
direito de aprender e continuar seus estudos. A avaliação é vista, então,
como uma grande aliada do aluno e do professor. Não se avalia pra atribuir
nota, conceito ou menção. Avalia-se para promover a aprendizagem do
aluno
21
(p.29).
Nesta perspectiva, a avaliação envolve também o trabalho pedagógico
não da sala de aula, mas de toda a escola. O nível de entendimento quanto à
finalidade da avaliação passa a ser concebido num contexto maior. Ele
caracterizará os princípios e fins da educação delineados no próprio projeto
político-pedagógico da escola.
Quando se diz que há, no processo educativo, de um modo geral, uma
preocupação em fazer com que o aluno se aproprie do saber escolar mediante a
assimilação dos conteúdos programáticos, percebe-se que tal consideração reflete
como a escola concebe o ensino, a aprendizagem e a avaliação.
Como conseqüência, o que se é a repetição e reprodução do
conhecimento pelos alunos, uma vez que a demanda curricular acaba sendo
priorizada nas práticas pedagógicas, não permitindo ou oportunizando ao aluno
pensar e fazer de outra maneira.
Remetendo esta discussão para o processo de ensino em matemática,
vale destacar, a noção de transposição didática. A partir dela é possível
compreender o processo de transformação pela qual passa o saber a ser
ensinado.
Segundo definição dada por Chevallard (apud PAIS, 2002) a idéia de
transposição didática pode ser compreendida como
21
Grifo meu.
39
Um conteúdo do conhecimento, tendo sido designado como saber a ensinar,
sofre então um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo
apto a tomar lugar entre os objetos de ensino. O trabalho que, de um objeto
de saber a ensinar faz um objeto de ensino é chamado de transposição
didática (p. 19).
Portanto, o saber matemático passa por um processo de
transformações e adaptações a fim de que possa ocupar o lugar de objeto de
ensino. Uma vez assumindo a forma passível de ensinamento é preciso que haja
efetivamente seu ensino.
Vergnaud (1996b) também discute a importância da transposição
didática ao tratar da competência profissional. Segundo ele, a transposição
didática envolve a transformação do conhecimento de referência (savoir reference)
em um conhecimento de ensino (savoir effectivement enseigné). E acrescenta,
Por exemplo, na matemática, Chevallard, que muito trabalhou esse conceito
na França, distingue duas fases importantes. A primeira é a transformação
do saber de referência (savoir savant) do matemático em um conhecimento
para ser ensinado. E depois uma segunda fase muito importante, que é a
transformação do conhecimento a ser ensinado em ensinamento
efetivamente ensinado em sala de aula (p. 68).
A partir desta explicação, o esquema abaixo procura retratar o papel da
pesquisa no sentido de propor uma reflexão quanto a prática de ensino,
considerando este processo de transformação (transposição didática) no espaço
da sala de aula (se ocorre ou não e como acontece).
Reflexão
Savoir a
Enseigner
Pesquisa
Enseignement
Savoir de
Reference
40
É preciso entender este processo como muito mais abrangente do que
simplesmente repassar os conteúdos escolares tal qual estão nos currículos,
programas e livros didáticos. Até mesmo os conteúdos escolares necessitam
passar por outra transformação que corresponde aos ajustes cabíveis para que
sejam considerados como efetivamente ensinados em sala de aula.
O que parece acontecer é que o professor não compreende como
realizar a transposição didática. Tal fato, além de, possivelmente, gerar
dificuldades em termos de aprendizagem para o aluno, pode representar, na
verdade, as limitações do professor quanto ao conhecimento adequado do
conteúdo, a não reflexão sobre as formas de ensino, e o mais importante, a
dificuldade do professor em compreender como a criança está aprendendo.
Portanto, a clareza necessária ao professor sobre a importância da
transposição didática remete a uma preocupação mais geral do processo
educativo no contexto escolar. Mais geral porque vai além do saber ensinar. A
noção de transposição didática envolve também a necessidade de saber como se
aprende um saber.
Como destaca Vergnaud (1996a) quem se preocupa com a dinâmica da
sala de aula, precisa também se interessar pelo conteúdo do conhecimento: o que
é, quais são seus elementos estruturantes, como ensiná-lo e, ainda, deve,
obrigatoriamente, se interessar pela forma como as pessoas aprendem,
especialmente, as crianças.
2.2 Questões para investigação
A partir deste enfoque, concebendo a distância entre o tempo da escola
e o tempo do aprendiz como um dos aspectos que interferem também na
avaliação da aprendizagem, é que emergem alguns questionamentos relativos ao
ensino e aprendizado de matemática, dentre os quais destaco:
41
1. Para o professor, até que ponto, os “modelos” utilizados no ensino e
aprendizado
22
de conceitos matemáticos são importantes para “orientar” o
raciocínio dos alunos ou podem vir a ser obstáculos didáticos para
aprendizagens mais significativas?
2. Se o ensino e aprendizado de conceitos em matemática estão baseados na
utilização dos “modelos” escolares, em que momentos o professor faz o
acompanhamento da gica utilizada pelo aluno para resolver situações-
problema?
3. Que concepções sobre avaliação podem ser percebidas na prática
pedagógica nas séries iniciais a partir do acompanhamento do processo de
ensino e aprendizagem em matemática?
4. Como os alunos organizam seu pensamento a partir da “aprendizagem” de
conceitos matemáticos com base nos “modelos” que lhes são impostos?
2.3 Traçando os objetivos
A partir das questões acima, os objetivos traçados envolvem aspectos
relacionados aos conteúdos de ensino, à mediação pedagógica, considerando-a
no processo avaliativo com base na perspectiva formativa da avaliação, à análise
das concepções do professor e alunos quanto à reprodução de “modelos” X a
produção de algoritmos espontâneos (dos alunos), visando estabelecer a conexão
necessária entre professorconhecimento matemáticoaluno. Assim foram
concebidos os objetivos desta pesquisa:
22
Sempre que no texto aparecerem as expressões “aprendizado de conceitos matemáticos ou
“aprendizagem de conceitos matemáticos”, as mesmas dizem respeito ao processo de construção
de tais conceitos pelo sujeito cognitivamente ativo.
42
2.3.1 Objetivo Geral
Identificar e analisar o raciocínio matemático do aluno, mediante a
análise de seus registros, produzidos a partir das atividades escolares envolvendo
algoritmos convencionais.
2.3.2 Objetivos específicos
Analisar os sentidos atribuídos aos modelos” no processo de
aprendizagem de matemática, identificando-os mediante a interpretação
dos registros produzidos pelos alunos.
Identificar e analisar possíveis implicações dos “modelos” adotados no
processo de ensino e de aprendizagem de matemática.
Compreender a forma de organização do pensamento matemático do aluno
mediante análise e interpretação de seus registros e entendimento de sua
fala.
Analisar os sentidos da mediação/intervenção pedagógicas, no contexto de
ensino pautado no uso de “modelos”, com base na perspectiva formativa da
avaliação.
43
2.3.3 Objetivos específicos de ação
Contribuir para um redimensionamento da prática pedagógica quanto ao
processo de aprendizagem em matemática, analisando conjuntamente com
a professora pesquisadora as produções matemáticas das crianças;
Participar das aulas de matemática, e quando possível, discutir em termos
de planejamento pedagógico, a estruturação de atividades visando valorizar
as produções das crianças;
Propor à professora pesquisadora uma análise do processo avaliativo,
levando em consideração o sentido das produções das crianças;
Realizar a mediação pedagógica como elemento necessário ao processo
de entendimento da organização do pensamento das crianças;
Favorecer a criação de espaços em sala de aula para as crianças
socializarem suas produções, estimulando-as a falar sobre o que fizeram e
pensaram.
44
CAPÍTULO III
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
IMPLICAÇÕES E CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DOS CAMPOS
CONCEITUAIS DE GÉRARD VERGNAUD
3.1 Aprender matemática: do reproduzir ao construir
O contexto de ensino e de aprendizado de matemática ainda tem sido,
nos dias atuais, fortemente marcado por práticas que prezam o raciocínio rápido, a
alta capacidade de memorização e a reprodução de “modelos”.
Isso decorre da ênfase que é dada ao tipo “ideal” de aprendizado nesta
área, pelo qual perpassa a dimensão quantificável do aprendido e não a qualidade
e o processo do aprendido. Conseqüentemente, o ensino caracteriza-se pela
transmissão maciça do conhecimento matemático por meio de aulas,
basicamente, e por vezes, somente expositivas, nas quais efetivamente são
diferenciados os papéis de quem transmite e de quem recebe o conhecimento.
Diante deste quadro, tem sido difícil aceitar e pensar a constituição de
“seres matemáticos”, participantes, ativos no processo de construção do
conhecimento que não reproduzem, meramente, conhecimento matemático, mas
que fazem matemática.
Todavia, em sentido contrário a uma realidade que negligencia essa
possibilidade, um dos trabalhos realizados por Muniz (2004a) revela o potencial de
crianças em “situação de dificuldade
23
no contexto de matemática, promovendo
23
Quando a produção do aluno contradiz as expectativas do professor, uma vez que o aluno
apresenta uma produção muito distante daquilo que na escola se considera como conhecimento
matemático, constituímos o que denominamos de “situação de dificuldade”[...] A negação da
produção acaba por produzir um fenômeno de exclusão epistemológica, criando a situação de
dificuldade uma vez que a perspectiva da produção matemática do aluno não é validada pela
escola (Muniz, 2004a, p. 61).
45
uma profunda reflexão, em relação aos paradigmas impostos sobre o que é
realmente aprender matemática.
Suas contribuições se voltam para a necessidade de uma re-leitura da
postura do professor na condição de mediador do conhecimento. Partindo dessa
premissa, sua pesquisa mostra que é fundamental reconsiderar a formação
docente a fim de que o contexto de ensino e de aprendizado de matemática possa
ser re-significado com base na valoração da produção matemática diferenciada
das crianças. Em outras palavras, leva o professor a aceitar as construções
espontâneas dos alunos, enquanto efetiva produção do conhecimento
matemático, sendo não somente flexível ante essas construções, mas, sobretudo,
consciente do sentido que possuem para o aluno.
Em seus estudos, a análise não apenas cuidadosa, mas carinhosa que
faz das produções das crianças em “situação de dificuldade”, demonstra que
existe uma lógica nessas produções, que é revelada pelos esquemas
desenvolvidos, os quais mesmo fugindo do “modelo” imposto pela escola, não
deixam de ser uma produção matemática. Muniz (2004a) a esse respeito, afirma
que
a análise dos algoritmos produzidos por essas crianças, como
exemplificamos, tem revelado a existência de esquemas mentais complexos
e riquíssimos, indicando que elas possuem grande capacidade de
aprendizagem e demonstram a presença de condutas cognitivas o
condizentes com o conceito de criança em situação de dificuldade na
aprendizagem matemática. Portanto, mesmo as ditas ‘em dificuldade’
apresentam uma produção matemática difícil de contestar, embora divirja da
concepção de ‘fazer matemática’ dos nossos professores (p. 44).
A partir destas considerações, somos submetidos a um processo de
discussão, como colocado pelo autor, de ordem epistemológica sobre o próprio
conceito de matemática.
Tal discussão começa pela aceitação e entendimento dos esquemas
mentais, representados nos algoritmos produzidos pelas crianças, sabendo-se
que resultam de uma ampla teia de relações estabelecidas com o conhecimento
em diferentes situações, a qual não se unicamente na escola. Em
46
contrapartida, o menosprezá-los, reforça o caráter, infelizmente, ainda excludente,
com relação àqueles que não conseguem reproduzir os algoritmos considerados
“corretos”.
Acrescente-se ainda que esta discussão aponta, como mencionado,
para a questão da formação de professores. Como exigir uma mudança de
postura se os professores não dispõem dos conhecimentos necessários para
entender o processo de construção desses esquemas mentais?
O desafio consiste então, não no julgamento dos docentes, que por
vezes se acham enclausurados pelo conteúdo, pela avaliação, ou pelas
exigências não escolares, como também sociais, mas em criar alternativas
viáveis de mudança de ordem estrutural no processo de formação, seja inicial ou
continuada, daqueles que se acham envolvidos nessa trama e, bem como, dos
que almejam a excelência da docência.
Desmistificar a idéia de que a escola, o professor, o ensino estão
fadados ao fracasso, ou como muitos afirmam: estão fracassados, requer o
desprendimento e o envolvimento de todos aqueles que consideram a educação
uma causa nobre a qual tem na escola e no professor os seus porta-vozes.
3.2 A matemática dentro e fora da escola
Dentre os muitos desafios que se colocam para a educação, o de fazer
um ensino prazeroso traduzido em uma aprendizagem significativa pode ser
considerado um dos mais difíceis.
Não foram, e não têm sido, poucos os esforços em termos de política
educacional, na tentativa de minimizar os fatores que interferem no processo
ensino e aprendizagem que trazem conseqüências negativas, sendo possível citar
propostas como Vira Brasília, Escola Candanga, Ciclo sico de Alfabetização
(C.B.A.), Turmas de Reintegração (T.R’s), Jornada Ampliada, Classes de
Aceleração da Aprendizagem (C.A.A’s) e, mais recentemente, o BIA (Bloco de
47
Inicialização a Alfabetização). Porém, permanece a pergunta: por que o índice de
fracasso escolar, por vezes, em anos seguidos, quando não aumenta, continua
inalterado?
Na verdade, a busca por uma proposta de educação que viabilize o
desenvolvimento de uma aprendizagem significativa deve implicar não somente o
aluno como se ele fosse o único responsável pela aprendizagem, mas deve
implicar também o professor, o currículo, a avaliação, a escola, a família, a
sociedade como um todo.
Quando pensamos em uma etapa do processo educativo, por exemplo,
o ensino fundamental, delineamos alguns aspectos que “julgamos” como
pertinentes na análise das possíveis causas do fracasso escolar.
Se a abordagem for mais específica, como em classes de
alfabetização, a enumeração de tais aspectos parece ser idêntica para todas as
escolas, professores, alunos e famílias.
O hiato entre o que se sabe antes da escola e o que nela se aprende, a
maneira como os alunos lidam com o conhecimento dentro e fora da escola, a
avaliação que é feita pelo professor sobre o aprendido ou não pelo aluno revela
que nem sempre o fracasso escolar é decorrente de uma “dificuldade” de
aprendizagem, antes, demonstra que existe, ainda, uma certa estranheza por
parte da escola quanto ao lidar com os diferentes saberes dos alunos e suas
formas de expressão.
Dentro desse contexto, Carraher, Carraher e Schliemann (2001)
destacam que a relação entre a formação do professor e as implicações de sua
intervenção pedagógica, no ensino da matemática, implica, também, acrescentar
ao grupo das visões sobre o fracasso escolar fracasso do indivíduo, da classe
ou do sistema social – a do fracasso da escola, o qual se manifestaria
na incapacidade de aferir a real capacidade da criança, no desconhecimento
dos processos naturais que levam a criança a adquirir o conhecimento e na
incapacidade de estabelecer uma ponte entre o conhecimento formal que se
deseja transmitir e o conhecimento prático do qual a criança, pelo menos em
parte, já dispõe (p. 42).
48
Isso acontece porque a ação docente, na maioria das vezes, entra em
conflito diante das demandas burocráticas no e do contexto escolar. Este conflito
conduz tão somente a um reducionismo da prática pedagógica que não pode
esperar. Uma prática que não compreende e nem interfere devidamente, quanto
ao tempo do aluno, porque o ano letivo, a escola, a sociedade, a política
educacional, mesmo em meio a tantas mudanças ocorridas, ainda vivem
baseados nos índices de aprovação/reprovação. Aprovação ou reprovação de
quê? De quem?
Repensando essa questão em termos de ensino e aprendizado de
matemática, a Teoria dos Campos Conceituais (TCC) de Gérard Vergnaud, base
de apoio para muitas pesquisas e estudos (CARRAHER E SCHLIEMANN, 1998;
FÁVERO, 2005; FRANCHI, 2002; PASSONI e CAMPOS, 2003; MELO, 2003;
MUNIZ, 2004a; 2004b, MOREIRA, 2004; MORO et. al.; 2005), traz contribuição de
suma relevância. A partir de seu conhecimento, é possível analisar com mais
clareza a produção matemática dos alunos, especialmente daqueles que se
encontram em “situação de dificuldade” mediante a compreensão – análise e
interpretação de seus esquemas mentais manifestos verbalmente, por gestos,
condutas, e registros diversos.
Outro aspecto importante a ser considerado nesta área é que a
aprendizagem em matemática não se limita ao saber escolar, isto é, começa e
termina na escola. Fora da escola o aluno lida com situações diversas,
apropriando-se delas, dando-lhes significado e agindo sobre elas, evidenciando
assim, os diferentes modos de expressão desses significados no processo de
construção do conhecimento matemático. Não o conhecimento está em ação,
como o sujeito em situação.
O estar em situação, neste sentido, quer dizer que o aluno está diante
de problemas, tarefas, que o fazem mobilizar seus conhecimentos prévios e
construir outros domínios, não podendo estes, serem desenvolvidos
mecanicamente por meio de “modelos” fechados. O aluno atribui sentido,
significados àquilo que faz.
49
Vergnaud (apud FRANCHI, 2002) falando a respeito da atividade
cognitiva a partir dos procedimentos convencionais diz que:
os procedimentos canônicos ou estandartizados não correspondem
diretamente aos processos cognitivos envolvidos na sua resolução e,
portanto, não podem ser ensinados diretamente (p.189).
Em outras palavras, acredito e assumo como pressuposto que, quando
o ensino de matemática fecha-se na reprodução de “modelos”, se inibe ou não se
aceita a manifestação dos esquemas mentais dos alunos, negando a essência da
produção matemática do ser epistêmico que é cada criança
24
.
Reconhecer o desenvolvimento e o uso do raciocínio matemático nas
estratégias utilizadas pelas crianças no dia-a-dia é um primeiro passo no
sentido de desenvolver atividades de ensino mais adequadas
(SCHLIEMANN, 1998, p. 11-12).
Isto confirma que a maneira como as crianças lidam com situações que
envolvem atividade matemática, fora do contexto escolar, não corresponde,
diretamente, ao mesmo trato que é dado na escola. Significa que suas ações
cognitivas não, necessariamente, levem aos mesmos procedimentos que são
utilizados e repassados pela escola para se chegar ao “modelo”.
Em função desta diferença, é comum, na escola, considerar um aluno
“com dificuldade” de aprendizagem, porque o seu pensar e fazer não assume a
forma canonizada. O aluno que não conseguiu “aprender” (reproduzir) o “modelo”
ensinado pelo professor passa, então, a fazer parte dos índices estatísticos do
fracasso escolar.
Mas este quadro pouco a pouco vem sendo modificado. Muniz (2004a;
2004b), a partir de seus estudos acerca da produção matemática de alunos
considerados “com dificuldade” de aprendizagem pela escola, traz
esclarecimentos importantes para professores, para pesquisadores e outros,
24
A ZDP (Vygotsky, 1998) pertence a cada criança, enquanto ser epistêmico mergulhado numa
situação histórico-cultural e pedagogicamente situada e de acordo com sua capacidade de
produzir aquilo que, para ele, ainda não está pronto.
50
relacionados à área de ensino e aprendizagem de matemática, revelando que o
ser matemático existente em cada aluno transcende os limites impostos pela
aquisição de conceitos matemáticos via “modelos”.
Quanto a este aspecto, podem ser acrescentadas, ainda, as
contribuições do trabalho de Schliemann e Carraher (1998). Segundo estes
pesquisadores, “os algoritmos para a resolução de problemas aritméticos (por
exemplo)
25
ensinados na escola nem sempre ajudam a resolver problemas fora do
contexto escolar” (ibid., p.15).
Outra abordagem que se junta a estas é a de Franchi (2002). A autora
reforça a importância que deve ser dada aos procedimentos próprios do aluno.
É essencial que ele possa utilizar seus próprios procedimentos a partir da
representação que ele se faz da situação. A discussão e a socialização
desses procedimentos em classe são fundamentais para a investigação dos
conhecimentos em ação mobilizados na produção desses procedimentos,
facilitando, no momento oportuno, a percepção pelos alunos das relações
entre os vários procedimentos e a avaliação da maior ou menor eficiência e
economia de cada um deles” (p. 189).
Portanto, se o ensino parte da valorização e compreensão das
produções espontâneas
26
das crianças, entendendo que retratam os
procedimentos pessoais dos alunos, a aprendizagem é muito mais produtiva e
significativa em dois sentidos: primeiro, porque considera o fazer do aluno e,
segundo, porque leva o aluno a compreender a utilização de um ou outro
procedimento, seja o seu ou o que é ensinado pela escola.
25
Acréscimo feito por mim.
26
No contexto desta pesquisa, o sentido da expressão “produções espontâneas” está sendo
concebido com base na interpretação pessoal de cada criança acerca dos “modelos”
convencionais. Portanto, embora as crianças tenham experiências escolares anteriores, o que se
está levando em conta é o fato de que mesmo com a influência dessas experiências sobre o fazer
das crianças, ainda assim, cada uma pensa, interpreta e faz de maneira diversificada. Ou seja,
mesmo com o ensino dos procedimentos subjacentes aos algoritmos convencionais, o sentido
atribuído pelo professor pode não ser o mesmo atribuído pelo aluno e, é nesse enfoque que estão
sendo consideradas as produções das crianças.
51
3.3 Conhecendo a Teoria dos Campos Conceituais de Gérard Vergnaud
A Teoria dos Campos Conceituais (TCC) é segundo Vergnaud (apud
FAVERO, 2005)
uma teoria psicológica do conceito ou, melhor ainda, da conceituação do
real: permite identificar e estudar as filiações e as rupturas entre
conhecimentos do ponto de vista de seu conteúdo conceitual; permite
igualmente analisar a relação entre os conceitos como conhecimentos
explícitos e as invariantes operatórias que estão implícitas nas condutas do
sujeitos em situação, assim como aprofundar a análise das relações entre
significados e significantes (p. 245).
Portanto, além de oferecer uma abordagem à aprendizagem, relaciona-
se também com a didática (FÁVERO, 2005). Posso concluir que justamente por
voltar-se para o funcionamento cognitivo do sujeito em situação, implica
considerar a didática não em nível de formas de ensino, mas num sentido maior,
no qual estejam contempladas relações conceituais, epistemológicas, teóricas e
práticas entre o ato de ensinar e o de aprender.
Considerando o valor desta teoria para os processos de aprendizagem,
em especial, na área de matemática, é importante compreender alguns princípios
que a fundamentam.
A começar pelo sentido do conceito, um dos princípios da TCC,
segundo Vergnaud (apud PAIS, 2002)
Um conceito é uma tríade que envolve um conjunto de situações que dão
sentido ao conceito; um conjunto de invariantes operatórios associados ao
conceito e um conjunto de significantes que podem representar os conceitos
e as situações que permitem aprendê-los (p. 57).
A partir desta definição, “é por meio das situações e dos problemas a
ser resolvidos que um conceito adquire sentido para um sujeito” (FÁVERO, 2005,
p. 245). Em outras palavras, o conceito se manifesta numa classe de situações
52
nas quais se observam os invariantes operatórios (teorema em ato e conceito em
ato), adquirindo significado neste contexto.
Portanto, o processo de construção de conceitos demanda tempo. É
preciso entender a complexidade das ações cognitivas dos sujeitos numa classe
de situações, a fim de que seja possível identificar a formação dos conceitos.
Segundo Vergnaud (apud FÁVERO, 2005)
Podemos distinguir duas classes de situação para as ações. A primeira são
aquelas para as quais o sujeito dispõe no seu repertório das competências
necessárias ao tratamento relativamente imediato de uma situação, a um
momento dado do seu desenvolvimento e sob certas circunstâncias. A
segunda são aquelas para as quais o sujeito o dispõe de todas as
competências necessárias, o que o obriga a um tempo de reflexão, de
hesitações, de tentativas abortadas, e o conduz, eventualmente, tanto ao
sucesso como ao fracasso (p. 246).
Entendendo o funcionamento das ações dos sujeitos em uma ou em
outra situação, será possível identificar o(s) esquema(s) construído(s). E o que
são os esquemas?
“O esquema é a organização invariante da conduta para uma classe de
situações dada” (VERGNAUD apud FÁVERO, 2005). Isso significa que de acordo
com as classes de situações podem ser observados diferentes esquemas.
Como destaca Fávero (ibid.), se analisarmos as ações do sujeito numa
classe de situações para as quais dispõe, dentre as competências necessárias,
aquelas que possibilitem o tratamento relativamente imediato da situação, então,
podem ser observadas “condutas altamente automatizadas, organizadas por um
único esquema” (ibid., p. 246).
Por outro lado, se numa classe de situações o sujeito não dispõe de
todas as competências necessárias, é possível observar a presença de diferentes
esquemas “que podem entrar em competição e, para chegar a solução
pesquisada, devem ser acomodados, descombinados e recombinados, de sorte
que tal processo é acompanhado de descobertas” (ibid., p. 246).
53
“É nos esquemas que se deve procurar os conhecimentos-em-ato, ou
seja, os elementos cognitivos que permitem que a ação do sujeito seja operatória”
(VERGNAUD apud FÁVERO, 2005, p. 247).
Em um esquema estão articulados os seguintes elementos: o objetivo,
as regras de ação, tomada de informação e controle, os invariantes operatórios e
as possibilidades de inferência (FÁVERO, 2005).
Em outros momentos, deste trabalho, alguns desses elementos serão
retomados. Mas numa breve explicação o objetivo indica o que o sujeito
pretende, as regras de ação, tomada de informação e controle se referem ao
que faz, a partir de que e para que; os invariantes operatórios (teorema-em-ato
e conceito-em-ato) dizem respeito, respectivamente, ao julgamento do sujeito
quanto às proposições tidas por verdadeiras e às informações tidas por
pertinentes; por fim, as possibilidades de inferência seriam “hipóteses”
elaboradas pelo sujeito que o permitem adaptar-se às situações.
Portanto, “os esquemas estão no centro do processo de adaptação das
estruturas cognitivas, ou seja, da assimilação e da acomodação (Teoria
Piagetiana)”, conforme destaca Vergnaud (ibid.).
Além disso, na medida em que os esquemas caracterizam as atividades
cognitivas do sujeito num conjunto de situações, é possível entender que se
estabelece uma relação entre esquema e conceito: uma vez que um conceito se
desenvolve ligado a outros conceitos e sempre articulado a um conjunto de
situações.
Desta maneira, a dimensão do sentido do conceito deve ser entendida
enquanto
uma relação do sujeito com as situações e os significantes, ou seja, são os
esquemas, isto é, as condutas e a sua organização evocadas no sujeito
individual por uma situação ou um significante que constitui o sentido dessa
situação ou desse significante para esse sujeito ou aquele (FÁVERO, 2005,
p. 251).
Sucintamente falando, se as situações dão sentido aos conceitos, é
preciso primeiramente, entender como se a relação dos sujeitos nas situações.
54
Relação que é diferenciada de um sujeito para outro. Esta relação evidencia que a
dimensão afetiva intervém na dimensão cognitiva (ibid.). “Ou seja, os processos
cognitivos e as respostas do sujeito são funções das situações com as quais esse
sujeito é confrontado” (ibid., p. 252).
Portanto, compreender a atividade cognitiva de um sujeito significa
compreendê-la a partir de uma classe de situações com as quais o sujeito lida.
Classe de situações que no contexto diário envolve o desenvolvimento de
conceitos matemáticos, mas que precisam ser explorados com mais profundidade
pela escola, nas situações que propõe.
Em linhas gerais, as considerações aqui apresentadas acerca da Teoria
dos Campos Conceituais permitem vislumbrar que existe toda uma complexidade
inerente ao ato de aprender que não pode ser ignorada pela escola, nem
tampouco tratada didaticamente. Acompanhar o processo de aprendizagem
envolve entender o funcionamento das estruturas cognitivas numa área específica
de conhecimento.
3.4 A complexidade do processo de construção de conceitos
Quando um aluno chega à idade escolar, há quem acredite que é neste
momento que ele vai começar a aprender. Para alguns, a escola estará
introduzindo no aluno os saberes necessários para a vida, para o seu
desenvolvimento, para o seu sucesso.
Para quem assim pensa, esta asserção pode ser considerada como
imutável. Mesmo que o aluno possa ter algum tipo de “conhecimento” anterior,
este deve ser moldado pelo saber escolar.
Desta maneira, a concepção de um bom ensino se baseia na eficiência
da transmissão e a de aprendizagem significativa se baseia na capacidade de
reprodução. Mas quando se fala em processo de construção de conhecimento e
não em mera transmissão e reprodução, é preciso considerar a construção de um
55
espaço no qual os alunos possam compartilhar seus saberes, confrontá-los,
discuti-los, enxergá-los no conflito cognitivo gerado pelo processo adaptativo que
o envolve.
Na aprendizagem de conceitos matemáticos, por exemplo, percebe-se
que o processo de aprendizado de conceitos, normalmente, é solitário e
silencioso. A fórmula, a regra, o “modelo” por si são suficientes para justificar
o porquê em aprendê-los como tais. Os “modelos” acabam se constituindo em
instrumentos de silenciamento dos aprendizes.
Assim sendo, reduz-se o desenvolvimento cognitivo à capacidade de
memorização de “modelos” prontos e apropriados para situações pré-
determinadas. Cabe, pois, investigar o que se perde em termos do
desenvolvimento e aprendizagem na educação matemática das crianças neste
contexto.
Sabe-se que, a partir das investigações sobre o processo da formação de
conceitos, um conceito é mais do que a soma de certos nculos
associativos formados pela memória, é mais do que um simples hábito
mental; é um ato real e complexo de pensamento que não podendo ser
aprendido por meio de simples memorização, pode ser realizado quando
o próprio desenvolvimento mental da criança houver atingido o seu nível
mais elevado (VIGOTSKI, 2000, p. 246).
Ou seja, os conceitos não podem ser ensinados diretamente à criança
como se fossem passíveis de serem “apreendidos pela criança em forma pronta
no processo de aprendizagem escolar e assimilados da mesma maneira como se
assimila uma habilidade intelectual qualquer” (ibid., p. 246-247).
E mais,
Não menos que a investigação teórica, a experiência pedagógica nos ensina
que o ensino direto de conceitos sempre se mostra impossível e
pedagogicamente estéril. O professor que envereda por esse caminho
costuma não conseguir senão uma assimilação vazia de palavras, um
verbalismo puro e simples que estimula e imita a existência dos respectivos
conceitos na criança mas, na prática, esconde o vazio. Em tais casos, a
criança não assimila o conceito mais a palavra, capta mais de memória que
de pensamento e sente-se impotente diante de qualquer tentativa de
emprego consistente do conhecimento assimilado (ibid., p. 247).
56
A partir destas considerações, torna-se evidente que o processo
educativo realizado na escola deve propiciar efetivamente o desenvolvimento de
conceitos. Falar de aprendizagem de conceitos implica necessariamente que se
saiba que não existe uma transferência direta e operada exclusivamente pela
escola, como se tal desenvolvimento se desse por mera transmissão. Antes, uma
dimensão desenvolvimentista de aprendizagem, contemplaria que os conceitos
são formados durante um longo e complexo processo de desenvolvimento
cognitivo.
Nesta perspectiva, pesquisas a respeito da aprendizagem em
matemática, com enfoque na Teoria dos Campos Conceituais de rard
Vergnaud, têm fornecido subsídios necessários para repensar o ensino a partir de
um outro olhar sobre o aprender.
Esta teoria, como já mencionado, chama a atenção à noção de situação
e às ações dos sujeitos nestas situações. Segundo Franchi (2002), ”o
conhecimento se constitui e se desenvolve no tempo em interação adaptativa do
indivíduo com as situações que experiência” (p. 157).
Ou seja, estas situações não são, necessariamente, apenas situações
escolares, mas podem ser entendidas como “um dado complexo de objetos,
propriedades e relações num espaço e tempo determinados, envolvendo o sujeito
e suas ações” (ibid., p. 158).
Por sua vez, a escola pode (e deve) criar condições para que os alunos,
valendo-se dos seus conhecimentos prévios, cheguem a novos conhecimentos,
desenvolvendo procedimentos necessários para resolução de situações e
problemas.
É pois, a relação que o sujeito estabelece com e nas situações que
revela e explica as suas concepções e as suas ações. Esta relação refere-se aos
esquemas de pensamento do sujeito em situação, exprimindo o conhecimento-
em-ação.
Os esquemas de pensamento, de maneira sucinta, mais que estruturas
rígidas e rotineiras, dizem respeito “à ‘forma estrutural da atividade’, à organização
invariante da atividade do sujeito sobre uma classe de situações dadas”
57
(FRANCHI, 2002, p. 164). Os esquemas caracterizam e justificam o “modo de
pensar e porque fazer” do sujeito, pois comportam invariantes operatórios
(teoremas em ato e conceitos em ato), antecipações do objetivo a alcançar, regras
de ação e inferências. Como o pensamento, mergulhado em situações é flexível,
os esquemas devem revelar esta flexibilidade, complexidade, assim como o poder
criativo e crítico do seu autor, a criança.
Adentrando o campo da avaliação, é preciso entender que neste
processo, ela deve acompanhar toda a complexidade presente no funcionamento
cognitivo. Segundo Depresbiteris (1991), a avaliação deveria buscar, referindo-se
a uma perspectiva mais ampla da avaliação formativa,
compreender o funcionamento cognitivo do aluno em face da tarefa
proposta. Os dados de interesse prioritário o os que dizem respeito às
representações da tarefa explicitadas pelo aluno e às estratégias ou
processos que ele utiliza para chegar a certos resultados. Os “erros” do
aluno constituem objeto de estudo particular, visto que são reveladores da
natureza das representações ou das estratégias elaboradas por ele (p. 67).
Pensando, pois, no processo de construção de conceitos matemáticos,
é importante diferenciar que, enquanto nos “modelos” os algoritmos são
convencionais, universais e permanentes, os algoritmos presentes nos esquemas,
por sua vez, são restritos, localmente validados, desenvolvidos em um dado
momento pelo sujeito quando confrontado com uma situação ou classe de
situações. Dito de outra maneira, enquanto o “modelo” é um para todos, os
esquemas são diferenciados de um sujeito para outro mesmo que diante de
situações semelhantes. Isto porque, no “modelo” não há a evocação de significado
para o sujeito na situação. o esquema implica a relação do sujeito com a
situação; o sentido para o sujeito está na situação.
O papel da mediação pedagógica dentro de um contexto de construção
de conceitos torna-se vital, pois deve contribuir para que o aluno desenvolva um
amplo e diversificado repertório de esquemas. Isto leva a compreensão de que
“para um mesmo problema, ou uma mesma classe de situações, os alunos
mobilizam diferentes esquemas” (FRANCHI, 2002, p. 169). Conseqüentemente, a
58
ação pedagógica deve possibilitar a socialização desses esquemas; fazendo do
ato de aprender um processo coletivo, de troca, de partilha e de reflexão.
Emerge, portanto, um novo tipo de aprendizagem. A concepção
tradicional do ato de aprender como mera reprodução assume o sentido de
aquisição de conhecimentos, mediante o desenvolvimento de um processo
construtivo no qual a ação do aluno é fundamental. Como destaca Depresbiteris
(1991),
a finalidade verdadeira de uma aprendizagem superior consiste não
simplesmente em produzir um modelo mas em resolver situações e, em
alguns casos, criar, reinventar soluções. Nessa perspectiva, a situação de
aprendizagem aponta na interação entre alunos diferentes, para aumentar a
probabilidade de aferição dos conflitos no âmbito da experiência vivida,
favorecendo sua conscientização. O aluno aprende quando consegue
ultrapassar conflitos, integrar as contradições aparentes num conjunto de
esquemas mais gerais que ele possuía (p. 63).
Buscando alcançar a verdadeira finalidade da aprendizagem, é preciso
desfazer a separação entre o saber dentro e fora da escola, criando meios de
mobilização e discussão das representações próprias dos alunos sobre um
conhecimento.
Viabilizar no contexto escolar a criação de espaços por meio dos quais
as crianças falem das próprias produções ajuda a fortalecer sua auto-estima.
Favorecer a troca de opiniões (concepções sobre fazer e aprender) entre os
alunos e entre estes e o professor, constitui-se em elemento fundamental para
romper com o velho paradigma de que o pensamento do professor é superior e o
único correto.
Num processo de reconstrução da dinâmica em sala de aula é
modificada a concepção de ensino, de aprendizagem e, sobretudo, de avaliação.
O que anteriormente era considerado “dificuldade de aprendizagem”, passa a ser
analisado como processo construtivo de organização do pensamento, mediante
conflitos cognitivos, que assumem formas de representação diferenciadas
(esquemas) para cada sujeito.
59
CAPÍTULO IV
DIALOGANDO COM O PROBLEMA DE PESQUISA
Pensar, falar ou discutir sobre questões inerentes ao contexto
educacional é, por natureza, um processo complexo e peculiar. A complexidade
decorre da necessidade de um olhar meticuloso sobre as questões educacionais,
entendendo-as como um conjunto de outras questões que estão interligadas e, às
vezes, sobrepostas. Discutir, por exemplo, o problema da evasão escolar, implica
também discutir aspectos quanto à avaliação, ao currículo, à garantia de
permanência do aluno na escola, dentre outros.
Quanto à peculiaridade, é importante entender cada uma das questões,
sabendo que o trato a ser-lhes dado não se limita a comprovações meramente
estatísticas. Ao contrário, indica um processo de estudo in loco sobre os porquês,
não visando generalizar as conclusões de tal estudo.
Contudo, é a partir do entendimento dos porquês e dos significados
atribuídos pelo sujeito às situações escolares das quais participa que se abre um
leque analítico maior. Este leque promove um movimento de ação-reflexão-ação e
desencadeia um processo contínuo de pesquisa e de tomada de decisões
necessário para a melhoria do ensino e a garantia de aprendizagens significativas.
Como parte deste movimento, uma re-leitura das práticas no ensino de
Matemática nas séries iniciais do Ensino Fundamental (3ª série), a partir da
análise do uso de “modelos” para a aprendizagem de conceitos matemáticos, vem
contribuir para a desmistificação de que seu real aprendizado se limita à
assimilação de tais “modelos” como necessários à construção do conhecimento
matemático, o que na verdade, além de contraditório, é, segundo o entendimento
defendido nesse trabalho, um grande equívoco.
Esta releitura da prática pedagógica remete, necessariamente, a uma
redefinição de quem é o aluno, qual o seu papel no processo educativo. É preciso
modificar as concepções de ensino para que também se modifiquem as de
aprendizagem.
60
Neste processo, nasce um outro tipo de aluno, um outro tipo de
aprender, um outro tipo de relação entre educador e educando. Freire (1992)
falava deste aspecto.
Minha experiência vinha me ensinando que o educando precisa de se
assumir como tal, mas assumir-se como educando significa reconhecer-se
como sujeito que é capaz de conhecer e que quer conhecer em relação com
outro sujeito igualmente capaz de conhecer, o educador e, entre os dois,
possibilitando a tarefa de ambos, o objeto do conhecimento. Ensinar e
aprender são assim momentos de um processo maior o de conhecer, que
implica re-conhecer. No fundo, o que eu quero dizer é que o educando se
torna realmente educando quando e na medida em que conhece, ou vai
conhecendo os conteúdos, os objetos cognoscíveis, e não na medida em
que o educador vai depositando nele a descrição dos objetos, ou dos
conteúdos (p. 47).
Compreender e olhar o educando nas condições daquele que quer
conhecer, adentrando o campo de ensino e aprendizagem de matemática, deve
produzir um sentimento e prática de valorização e aceitação da produção do
aluno, considerando-a não segundo os pré-julgamentos da escola, em termos do
que é ou não pedagogicamente correto, mas percebendo-a como resultado de um
rico e complexo processo cognitivo.
Alguns estudos nesse sentido (CARRAHER e SCHILIEMANN, 1998;
CARRAHER, CARRAHER e SCHILIEMANN, 2001; KAMII, 1990, 1995; MUNIZ,
2001, 2004a, 2004b etc.) têm mostrado que o potencial de aprendizado
(VYGOTSKY, 1998) da criança está muito além do espaço único da escola. Não
está limitado a quatro paredes e nem estruturado com base na reprodução de
“modelos” convencionais.
Tais constatações revelam ainda que a relação da criança com o
conhecimento matemático não se estabelece somente na escola. Em sua vida
diária lida com esse mesmo conhecimento de um modo muito diferente do que é
exigido no contexto escolar.
61
Lemos
27
, prefaciando Teberosky (2001) a respeito do aprendizado da
língua escrita, faz um apontamento que, por analogia, pode ser aplicado ao campo
da matemática. Diz ela que
a criança dispõe de um saber sobre a escrita ainda antes de entrar para a
escola e de que este saber foi também construído através de sua
participação em práticas sociais em que a escrita ganha sentido” (p. 8)
Da mesma maneira, a criança deve possuir um conhecimento prévio
sobre os conceitos matemáticos. Conceitos que constroe também em práticas
sociais que lhes dão sentido, funcionalidade, que fazem parte do seu dia-a-dia.
Este conhecimento se manifesta em situações práticas e significativas para elas,
que devem ser foco de nossa observação, descrição e análise, como, por
exemplo, fazer uma pipa, jogar bola de gude, comprar doces ou pão, dividir os
brinquedos entre os colegas, comparar quantidades, e em muitas outras tarefas
rotineiras.
Para o ser epistêmico que é a criança, lidar com os mais variados
conceitos matemáticos em situações diárias (jogos, brincadeiras, competições,
etc.) é algo que ocorre naturalmente. Ela age e interage diretamente com o objeto
de conhecimento, expressando sua forma de pensar, fazendo as representações
necessárias e isso sem se preocupar com a adequação desse conhecimento, em
seu nível pragmático, bem como, de sua apresentação segundo um modelo
socialmente validado pela escola.
Muniz (2004a), neste sentido, nos oferece valiosa contribuição em sua
pesquisa
28
a respeito da produção matemática de uma criança com necessidades
especiais (deficiência auditiva), evidenciando claramente que tal produção por não
ser reconhecida institucionalmente, é incompreendida pelo professor e, por isso,
identificada como “problema de aprendizagem”. Vejamos o protocolo analisado:
27
TEBEROSKY. Ana. Psicopedagogia da linguagem escrita. Tradução: Beatriz Cardoso. Prefácio:
Claudia T. G. Lemos. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
28
(Re) Educação Matemática: a mediação do conhecimento matemático. Esta pesquisa foi
realizada em uma escola da Rede Pública do Distrito Federal num trabalho conjunto criança-
professor-pesquisador-estudante através da pesquisa-ação.
62
24 : 3 = 8
Ao lado da divisão aparecia a estrutura abaixo.
9 – 1
9 – 1
3 – 1
7 + 1 = 8
Figura 4.1: Transcrição da produção da criança feita pelo pesquisador
Embora a resposta dada estivesse certa, a maneira como essa criança
chegou a ela, através da estrutura acima, parecia demonstrar não haver nenhuma
lógica. Muniz (ibid.), assim explica:
A produção matemática de Maria
29
tem duas estruturas fundamentais:
primeiro o registro do seu algoritmo espontâneo traduzindo seus esquemas
mentais, e, segundo, o registro exigido pela escola, enquanto produto
cultural (p. 41).
Por meio da análise de vários protocolos dessa criança, foi possível
concluir que seu algoritmo escrito “traduzia fielmente seu pensamento operatório
sobre quantidades numéricas formando agrupamentos” (ibid., p. 41). E assim pôde
ser entendida:
24 = 10 + 10 + 4. Buscando grupos de 3, temos:
10 = 9 + 1 = 3 x 3 + 1
10 = 9 + 1 = 3 x 3 + 1 A soma de 1+1+1, forma o outro grupo de 3
30
4 = 3 + 1 = 1 x 3 + 1.
7 grupos de 3, mas restando 3, mais 1 grupo de 3, total, 8 grupos de
três e resta zero.
Figura 4.2.: Interpretação da produção da criança
29
Nome utilizado na pesquisa para identificar essa criança.
30
Acréscimo feito por mim.
63
Portanto, pensando em entender porque o aprendizado dos mesmos
conceitos matemáticos que a criança conhece fora da escola é, na maioria das
vezes, considerado difícil pelos professores, precisamos acompanhar de perto
como e se ocorre a mediação pedagógica, que princípios norteiam o ensino de
matemática o que é Matemática, como se aprende e como se faz e como se
dá a construção feita pelo aluno sobre o conhecimento matemático.
É, pois, o pensar com, o falar com e o discutir com os principais
personagens do processo educativo professor e alunos que possibilitará
conhecer e entender a dinâmica de aprender e ensinar, de como se faz
matemática, o que se constitui um real desafio neste estudo acerca da
aprendizagem matemática. Esse trabalho coletivo, de implicamento (BARBIER,
2004), contribuirá para que haja uma ruptura em relação à visão tradicional de
ensino que, considerado via de mão única, fundamenta-se no saber do professor.
Este, por sua vez, preenche o vazio representado pelo não-saber do aprendiz. Tal
concepção ignora a capacidade de aprendizado do aluno enquanto ser epistêmico
o que, conseqüentemente, reduz o ato de aprender a tarefas de memorização e
reprodução do saber de outrem.
Dito de outra maneira, a busca de um real entendimento dos porquês
pertinentes ao estudo de temáticas no processo educativo diz respeito à
aproximação aos sujeitos e à participação de quem pesquisa com os mesmos
(LÜDKE e ANDRÉ, 1986). Segundo Barbier (2004), a pesquisa deve propor
mudanças e construir conhecimentos relativos a essas mudanças, e isso, é
possível a partir da compreensão do papel desempenhado pelo pesquisador em
relação à realidade pesquisada.
O pesquisador desempenha, então, seu papel profissional numa dialética
que articula constantemente a implicação e o distanciamento, a afetividade e
a racionalidade, o simbólico e o imaginário, a mediação e o desafio, a
autoformação e a heteroformação, a ciência e a arte (p. 18).
Minha principal proposta, à professora e aos alunos, é romper com os
limites impostos pela transmissão de saberes e a mera reprodução desses
64
saberes pelos alunos, levando o professor a compreender-se no processo como
pesquisador e conduzindo os aprendizes a um movimento de dessilenciamento.
Incentivá-los a externar e explorar suas formas de pensar, de construir
o conhecimento, explicitando pela fala e registros suas construções é um desafio
que este trabalho pretende vencer.
No caminho a ser percorrido, acredito que as crianças estarão
reinventando a matemática. Mas para que esta reinvenção seja percebida pelo
professor é preciso que aceite a existência da construção de conhecimento no
fazer matemática da criança e que esse fazer revela atividade cognitiva.
Como destaca Petraglia (2003), “o pensamento não é estático, indica
movimento: e é este movimento de ir e vir que permite a criação e com ela a
elaboração do conhecimento” (p.69).
Captar tal movimento é objetivo e desafio metodológico desse estudo.
Significa que queremos entender o pensamento da criança, acompanhando a
forma de organização mediante a análise das produções matemáticas,
enxergando o seu funcionamento nesse fazer. Apreender o movimento em
movimento, mantendo-o em movimento.
Decorrente disto, analisar a importância do que é ensinado pela escola
(como, por que e para quê) a partir da significação dada pelo aluno a este ensino
e de sua compreensão quanto à utilidade do aprendido, é uma tarefa emergente.
Esta tarefa nos leva a refletir sobre a maneira como ensinamos, como a
escola encara a aprendizagem. Segundo Kamii (1990):
As escolas ensinam, tradicionalmente, a obediência e as respostas
‘corretas’. Assim, sem perceber (talvez não)
31
, elas evitam o
desenvolvimento da autonomia das crianças reforçando sua heteronomia
(p.34).
Portanto, a condução do processo educativo em sentido contrário ao
que é costumeiramente feito (que está impregnado nas práticas docentes) não
pode ser realizada da noite para o dia. Mudar paradigmas envolve um movimento
31
Acréscimo feito por mim.
65
complexo e difícil. Complexo, porque precisamos conhecer e entender as
concepções de cada um. Difícil, porque precisamos descobrir pontos de consenso,
sem desrespeitar as diferenças.
A necessidade desta mudança não pode fugir, contudo, ao
entendimento de todos os envolvidos no processo educativo. Necessidade que
leve a um contínuo processo de reflexão (e ação) sobre o que a escola ensina.
Como destacam Ceccon, Oliveira e Oliveira (1998):
As crianças simplesmente não entendem a maior parte das coisas que a
escola ensina nem sabem por que devem aprender tais coisas e não outras.
A professora fala, fala, fala e os alunos escutam, cada um sentado no seu
canto, sem saber muito bem por quê. Os exercícios escolares são, quase
sempre, feitos em torno de problemas que não existem na vida real. Quando
a professora faz uma pergunta, ela já sabe a resposta e aceita como
resposta certa isso que ela sabe. A escola não ajuda os alunos a resolver
problemas concretos, problemas que eles realmente entendem e para os
quais estejam interessados em procurar a solução (p. 66).
Sendo assim, no contexto de uma mudança necessária no processo de
ensino em matemática, que toma por base “modelos” para a aprendizagem de
conceitos matemáticos, busca-se entender como a prática pedagógica pautada na
transmissão desses “modelos” pode interferir na construção do conhecimento.
Significa que pretendemos entender como se o processo de
construção do conhecimento pela criança, buscando identificar em que sentido o
ensino de “modelos” a priori se articula a este processo.
Considerando que os “modelos” se constituem em elementos de
validação do saber escolar, percebemos que toda produção matemática que foge
ao “modelo” acaba sendo ignorada.
Moysés (1997), ao apontar a forma como os conteúdos escolares são
trabalhados pela escola, inclusive, os de Matemática, explica:
É como se o processo de escolarização encorajasse a idéia de que no “jogo
da escola” o que conta é aprender vários tipos de regras simbólicas,
aprendizagem essa que deve ser demonstrada no seu próprio interior (p.
59).
66
Ou seja, se os modelos” existem, significa que eles têm um valor. Mas
que valor é este? Será que estas formas de representação do conhecimento
matemático são as únicas que realmente podem ser consideradas como produção
do conhecimento? Se eles o um tipo de regra simbólica apropriada para o “jogo
da escola”, podem porventura fechar a aprendizagem em torno de si mesmos?
Se entendemos a produção do conhecimento como produto de uma
atividade criadora do ser humano, não podemos conceber que os “modelos” sejam
a base deste processo. Neste mesmo entendimento, trabalhos como o de Kamii
(1995, p.55) reprovam o ensino pautado única e exclusivamente em “modelos”
(algoritmos convencionais).
Defendemos a reinvenção da aritmética pelas crianças, porque, primeiro, o
conhecimento lógico-matemático é o tipo de conhecimento que cada um
pode e deve construir por meio de seu próprio raciocínio, e, segundo, as
crianças têm que passar por um processo construtivo semelhante ao de
nossos ancestrais, a fim de compreender os algoritmos usados atualmente.
A terceira razão pela qual acreditamos que as crianças devam inventar
procedimentos próprios é que o ensino dos algoritmos nas 1
as
séries do
primeiro grau é prejudicial pelos motivos que apresentamos a seguir.
1. Os algoritmos forçam o aluno a desistir de seu raciocínio numérico.
2. Eles “desensinam” o valor posicional e obstruem o desenvolvimento do
senso numérico.
3. Tornam a criança dependente do arranjo espacial dos dígitos (ou de
lápis e papel) e de outras pessoas.
Com base nestas considerações, esse estudo busca analisar onde
estes “modelos” se situam no processo de ensino e de aprendizado e que
implicações podem trazer na construção do conhecimento matemático se
ativação ou não de processos internos do desenvolvimento.
De acordo com Vygotsky (1998), mediante o aprendizado, vários
processos internos do desenvolvimento são despertados, operando somente
quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em
cooperação com seus companheiros.
Num contexto de ensino de matemática em que os “modelos” são
usados como meio e fim, estes processos internos do desenvolvimento poderão
ser despertados? Acredito que não, pois os “modelos” podem implicar mera
67
memorização, e não criação, o que ao invés de levar a construção do
conhecimento, pode engessá-lo.
Portanto, tornar não as aulas de matemática prazerosas, mas o ato
de aprender e fazer matemática, desmistificando a idéia de que esta disciplina é
muito difícil, constitui-se um desafio a todo educador e pesquisador.
Desafio que pode ser superado quando se concebe o ato de ensinar
como criador, crítico e não mecânico (FREIRE, 1996). Que contempla o ato
docente pelo discente, compreendendo que ao ensinar se aprende e aprendendo
se ensina (FREIRE, 2003). “A curiosidade do(a) professor(a) e dos alunos, em
ação, se encontra na base do ensinar-aprender” (FREIRE, 1996, p. 81).
Considerar no ato de ensinar a produção dos alunos como forma de
representar os conceitos matemáticos construídos (VERGNAUD apud MELLO
32
,
2003), leva-nos a dar importância à mediação pedagógica como elemento
indispensável no desenvolvimento e formação de um aluno autônomo, produtor e
não reprodutor de conhecimentos.
Se, por outro lado, o ato de ensinar se reduz a mera transmissão de
“modelos”, o ato de aprender torna-se um processo de silenciamento dos saberes
dos alunos, um distanciamento de sua realidade.
Neste contexto, na relação ensino-aprendizado não parceria,
negociação e nem diálogo, pois se fundamentaria numa dimensão (que acredito
não ser real) de construção do conhecimento baseada na assimilação de um
conceito isolado, pronto e acabado, representado pelo “modelo”.
Assim, dessilenciar o aluno é procedimento central do método dessa
investigação. Por isso, adentrar o espaço de sala de aula enquanto pesquisadora
implica uma tomada de consciência acerca de minha atuação e intervenção, numa
perspectiva contributiva, junto ao professor e alunos, especialmente, para aqueles
que se encontram em “situação de dificuldade”, re-olhando o ato de ensinar
mediante o ato de aprender.
32
Nina Cláudia de Assunção Mello. Mestre em Educação pela Universidade de Brasília.
Dissertação de mestrado: “Uma professora-pesquisadora construindo com e para seus alunos
um Ambiente Matematizador, fundamentado na Teoria dos Campos Conceituais de Vergnaud.
2003”.
68
Para tanto, acreditamos que possa ser possível construir coletivamente
(pesquisadora, professora pesquisadora e alunos pesquisadores) um espaço em
sala de aula de interação entre diferentes saberes, de confronto, de superação e
de consolidação. Aproximar o que está distanciado, unir o que está disjunto, reunir
o que está isolado; o que foi destacado por um processo de estancamento.
Ao contrário do que se acredita, as crianças fazem funcionar
espontaneamente suas aptidões sintéticas e analíticas; espontaneamente
elas sentem as ligações e a solidariedade entre as coisas. Nós é que
produzimos modos de separação que fazem constituir, no espírito delas,
entidades separadas. E elas acabam acreditando que a história, a geografia,
a matemática são entidades separadas” (MORIN apud PETRAGLIA, 2003).
Não só esta separação entre as diferentes áreas de conhecimento,
como a própria separação dentro de uma mesma área, separando as partes do
todo e vice-versa, como também, a separação entre o conhecimento e a vida,
ainda são processos vívidos nas práticas escolares.
Segundo Morin (apud PETRAGLIA, 2003), é “impossível conhecer as
partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer
particularmente as partes”.
Em outras palavras, pensar e entender o conhecimento enquanto único,
universal e acabado, implica negar o processo subjetivo de construção deste
conhecimento – a relação individual do sujeito com o objeto de conhecimento.
Um aspecto que acaba também sendo negado, é a teia de relações
existentes entre os aspectos sócio, histórico e cultural que forma e sentido
a este conhecimento.
Por isso, identificar e analisar o sentido dado pela professora e,
principalmente, pelos alunos aos “modelos”, no ensino e aprendizado de conceitos
matemáticos, remete-nos a compreensão dessa teia de relações existentes na
construção do conhecimento matemático.
É um nível de compreensão que enxerga esta teia de relações
perpassando a subjetividade tanto do professor como do aluno em relação ao
conhecimento matemático.
69
Esta subjetividade diz respeito ao valor e á utilidade do ensinado e do
aprendido, sendo possível perceber por meio dela os encontros e desencontros
entre o saber escolar e o conhecimento dos alunos.
70
CAPÍTULO V
PROPOSTA METODOLÓGICA
5.1 Definindo os caminhos: uma pesquisa-ação
Pensar sobre a proposta metodológica implica necessariamente definir
os caminhos a seguir em função do objeto motivo da investigação. Desta maneira,
o sentido da investigação e a natureza da pesquisa devem levar em consideração
as implicações epistemológicas decorrentes do foco de estudo.
Uma vez que o foco desta pesquisa é o processo de aprendizagem de
conceitos matemáticos de crianças em séries iniciais, é preciso entender que a
entrada no campo da pesquisa pressupõe um pleno envolvimento do pesquisador
no contexto escolar.
Assim sendo, acredito que a realização dessa pesquisa, segundo os
princípios da pesquisa-ação (Barbier, 2004), foi fundamental, pois a partir dos
objetivos que foram delineados, pude me identificar com o grupo, participando e
acompanhando o desenvolvimento do processo educativo. Desta maneira, tive
condições de identificar a situação problemática, planejar em função dela, analisar
os resultados, retomar a situação, replanejar, fazendo a articulação teórica,
desencandeando, assim uma proposta em espiral, conforme diagrama abaixo:
71
Por isso, procurando conhecer e participar ativamente no campo da
pesquisa foi muito importante a construção e manutenção de um contexto
interativo entre pesquisadora, professora pesquisadora e alunos pesquisadores
permeado por um processo dialógico.
Segundo González Rey (2002), “toda pesquisa qualitativa deve implicar
o desenvolvimento de um diálogo progressivo e organicamente constituído, como
uma das fontes principais de produção de informação” (p. 56). O entendimento do
autor é que no diálogo se criam uma multiplicidade de climas por meio dos quais
se manifestam diferentes níveis de conceituação das experiências.
São estes níveis diferenciados de conceituação que traduzem aspectos
relevantes no processo de produção do conhecimento, pois a qualidade da troca
de informações entre os participantes de uma pesquisa é diferente, por exemplo,
do contexto diário das pessoas.
Esta constatação torna-se evidente quando o clima de uma pesquisa
define a forma de interação entre os envolvidos. Ainda, segundo González Rey
(ibid.) “o clima da pesquisa é um elemento significativo para a implicação dos
sujeitos nela” (p. 56).
Acredito que, em função disto, os métodos e instrumentos utilizados na
pesquisa puderam assumir um sentido interativo. Quanto a este aspecto,
considero que a entrevista, a semi-estruturada, adequou-se para este fim.
Com base neste propósito, Lüdke e André (1986) defendem a
existência de um caráter interativo na entrevista. Para elas, “a relação que se cria
é de interação, havendo uma atmosfera de influência recíproca entre quem
pergunta e quem responde” (p.33). É no processo interativo que os participantes
da pesquisa se constituirão.
Este aspecto interativo, atrelado ao sentido da entrevista, remete-nos a
uma consideração importante feita por González Rey (ibid.) quanto ao significado
da comunicação no curso da pesquisa. Para ele
A significação que atribuímos à comunicação rompe o esquema estímulo-
resposta, que indiretamente imperou na pesquisa científica, e desloca o
centro de atenção dos pesquisadores dos instrumentos para os processos
72
interativo-construtivos que se constituem dinamicamente no curso da
pesquisa (p. 57).
Considerando, pois, a necessidade deste rompimento, o tipo de
entrevista sugerida pôde imbuir-se de dinamicidade, contribuindo no sentido da
captação das expectativas, ansiedades e impressões dos envolvidos na pesquisa.
Com base na ênfase dada à importância da interação no contexto da
pesquisa, um outro método pertinente foi a observação participante. Segundo os
princípios da pesquisa-ação (BARBIER, 2004), esta deve ser concebida como
uma observação predominantemente existencial, completa.
De acordo com Barbier (ibid.), este tipo de observação caracteriza-se
pelo fato de o pesquisador estar envolvido, implicado, logo de início, pois é
membro do grupo participante da pesquisa, antes mesmo da pesquisa começar.
5.2 Quem somos?
No capítulo primeiro deste trabalho me dediquei ao registro das
vivências e experiências com a matemática no meu percurso estudantil e
profissional. No relato, nestes dois momentos distintos e distantes de minha vida,
mostro como nasceu minha relação com o objeto desta pesquisa.
Agora, abro espaço para o conhecimento dos outros membros
participantes da pesquisa – a professora pesquisadora e os alunos pesquisadores.
Apresentá-los ao leitor se faz necessário, não apenas em função da
necessidade de caracterização dos sujeitos que estão na pesquisa, mas também
no sentido de enfatizar suas relações no processo de ensino e aprendizagem com
a matemática.
Também é caracterizado o núcleo da pesquisa, retomando de certa
forma, o envolvimento da pesquisadora com o grupo maior que dele faz parte,
bem como, retrata sua atuação neste campo.
73
5.2.1 A professora pesquisadora
A professora participante na pesquisa faz parte do quadro da Secretaria
de Estado de Educação do Distrito Federal desde o ano de 2001, e foi designada,
no mesmo ano, para regência na Escola Classe 50 de Ceilândia.
A professora já desempenhou as seguintes funções: professora regente
de uma 3ª série no ano de 2001; no ano de 2002, em turma de 2ª série; no ano de
2003 em turma de série. No ano de 2004 desempenhou a função de
coordenadora pedagógica, voltando a assumir turma, uma série no ano de
2005, na qual foi desenvolvida a pesquisa.
A turma de série em que lecionou tinha aulas pela manhã. Esta
turma tinha uma característica peculiar, em relação às outras. Era uma turma
reduzida em número, chamada de “Integração Inversa
33
porque dela fazia parte
uma aluna portadora de necessidades especiais (deficiência auditiva).
Paralelamente à atividade docente, fazia o curso de Pedagogia, no Centro
Universitário UniCEUB, conhecido como projeto “Professor Nota 10”.
A professora cursava o semestre quando a pesquisa chegou a sua
sala de aula. O projeto “Professor Nota 10” é resultado de uma parceria da
Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal com a instituição
mencionada. Além dele, também foi criado o PIE (Pedagogia para Professores em
Exercício no Início de Escolarização), parceria firmada com a UnB. O objetivo dos
cursos é o de formar em nível superior 5.000 (cinco mil professores) da rede. É um
processo de formação continuada voltado para uma mudança da práxis
pedagógica numa perspectiva de superação de velhos paradigmas.
Este aspecto favoreceu a apreensão pela pesquisadora, nas conversas
durante a aula e em alguns momentos na coordenação pedagógica, das
percepções da professora sobre o processo de ensino e aprendizagem em
33
Segundo documento (Estratégia de Matrícula de 2006) emitido pela Secretaria de Educação do
Distrito Federal, regulamentado pela Portaria nº 314 de 11/10/2005 as turmas de “Integração
Inversa” são classes diferenciadas constituídas por alunos sem necessidades especiais e por até 6
(seis) alunos com necessidades educacionais especiais, com deficiência ainda não identificada
para inclusão conforme modulação para cada área de deficiência.
74
matemática, articulando ao processo de formação continuada pelo qual passava e
ao desenvolvimento da pesquisa, além de expressar suas inquietações.
Numa destas conversas, durante a coordenação pedagógica, a
pesquisadora pediu a professora que falasse de sua prática de ensino em
matemática antes da pesquisa.
Rose - Eu acho que estava deixando muito a desejar, principalmente no ensino de
matemática... Então, o máximo que você coloca é ela pra fazer os pauzinhos, né? Então você não
se preocupa com o registro da criança (ênfase na fala). Você se preocupa com o que ela vai fazer
no caderno ou na prova que você passar como avaliação. Você vai tirar por ali...
No desenvolver da pesquisa, Rose pôde experimentar uma outra
maneira de ver e avaliar a produção matemática de seus alunos. As inquietações
desencadeadas foram muito mais intensas que aquelas relacionadas à sua prática
pedagógica antes da pesquisa.
Mudanças foram operadas neste sentido. Talvez não se deram em
profundidade e nem em curto prazo. Contudo, o simples fato de ver Rose mais
preocupada com o fazer das crianças, buscando oportunizar ao máximo, mesmo
em meio às cobranças curriculares e à pressão do tempo didático, que elas
comunicassem seu pensamento, revestindo a relação professor e aluno por um
novo tipo de contrato didático, já foi uma grande conquista.
Mediante o trabalho realizado na sala de Rose, foram plantadas novas
sementes. Cada criança e a professora da turma se constituíram em uma destas
sementes, e com certeza, elas vão levar consigo as boas lembranças deixadas
pelo maravilhoso trabalhado que foi por nós construído.
Rose – Agora eu estou fazendo diferente... Até eles também mudaram (referindo-se às
crianças). Porque agora eles têm a preocupação de ali anotar o que eles acham... Antes não, você
colocava lá a pergunta do problema e você queria de todo mundo igual.
Como destaca Fávero (2005), quanto à contribuição da teoria piagetiana
ao encarar o sujeito como ser ativo na construção do conhecimento, o homem
75
passou a ser visto como um ser ativo, organizador de ações, elaborador de
operações e, portanto, construtor de conhecimentos” (p. 104).
Neste plano, com certeza Rose pôde encarar os seus alunos de outra
maneira. A mudança de atitude das crianças constitui-se em motivo para que a
professora também mudasse, pensasse e refletisse sobre sua prática pedagógica.
5.2.2 Os alunos pesquisadores
Para participar da pesquisa escolhi uma das quatro turmas de série
da escola. Dois motivos me levaram a escolha desta série e da turma na qual a
pesquisa foi desenvolvida.
Considerando que os primeiros anos de escolarização, referentes à 1ª e
séries do Ensino Fundamental, correspondem à aprendizagem de conceitos
básicos do processo de alfabetização, tanto da língua escrita como de
matemática, optei por direcionar o foco da pesquisa para a 3ª rie por acreditar
que nesta fase o processo de alfabetização esteja mais avançado.
Desta maneira, a relação das crianças com a matemática, nutrida por
suas experiências anteriores nas outras séries, ganha uma outra configuração.
Por estarem na série, acredita-se que essas crianças tenham conhecimento
apropriado dos conceitos básicos de matemática que foram ensinados nas
primeiras séries.
Portanto, ao pretender investigar o processo de aprendizagem de
conceitos matemáticos nesta fase de escolarização, acredito que será possível
perceber como as crianças constroem os conceitos a partir dos “modelos”
escolares, enfocando na interpretação que fazem destes “modelos”.
Quanto à escolha da turma, prevaleceu a interação entre pesquisadora
e professora pesquisadora desde antes da pesquisa. Com base no tecido
relacional construído no ambiente de trabalho, mantínhamos um constante espaço
de discussão e diálogo sobre a dinâmica da sala de aula, sobre a organização do
76
trabalho pedagógico. Além disso, decidi realizar o trabalho na sala de aula de
Rose pensando, também, na conciliação entre o horário da aula e as atividades
acadêmicas das quais tanto a pesquisadora como a professora pesquisadora
desenvolviam.
A turma da professora Rose era composta por 25 (vinte e cinco)
estudantes. Destes, 14 (quatorze) eram meninas e 11 (onze), meninos.A faixa
etária variava entre 9 (nove) e 15 (quinze) anos:
7 (sete) estavam com 9 (nove) anos quando a pesquisa
começou; 2 (dois) completariam até o meio do ano e, 1 (um), no
mês de agosto.
4 (quatro) alunos na turma estavam para completar seus 10
(dez) anos de idade: que 1 (um) faria aniversário em maio e os
outros 3 (três), no segundo semestre letivo.
5 (cinco) crianças tinham 10 (dez) anos completos: uma
criança faria 11 (onze) anos no mês de maio e as outras 4
(quatro) entre os meses de agosto e novembro.
(dois) alunos haviam feito 12 (anos) quando do início da
pesquisa. Os outros 2 (dois) completariam, um no mês de maio e
o outro no mês de outubro.
Um aluno tinha 15 (quinze) anos de idade e um faria no mês de
agosto.
No grupo de alunos que completariam 10 (dez) anos de idade, apenas
1 (um) era repetente. Ele havia sido reprovado no ano de 2004 quando fazia a
3ª série. Portanto, em 2005, voltava a cursar a mesma série pela segunda vez.
Entre os que tinham 10 (dez) anos de idade e iriam completar 11
(onze) anos, 1 (um) aluno foi reprovado na e séries, além de ter passado
pelas duas classes de aceleração da aprendizagem, a de alfabetização e a de
séries iniciais. Outros 4 (quatro) alunos foram reprovados na e 3ª séries, sendo
77
3 (três) e 1 (um), respectivamente. Nenhum destes alunos passou pelas classes
de aceleração da aprendizagem.
A situação estudantil dos alunos que tinham ou fariam 12 (anos) de
idade, era a seguinte:
1 (um) havia feito a série no ano de 2004. Não constava em
seus documentos escolares o que aconteceu nos anos
anteriores de escolarização.
reprovados na 1ª ou na 2ª série, além de terem freqüentado, uma
ou outra, ou ainda, as duas classes de aceleração da
aprendizagem, estavam outros 3 (três) alunos do grupo.
Quanto aos alunos com 15 (quinze) anos de idade, os documentos
escolares informavam que 1 (um) havia sido matriculado aquele ano na 3ª rie.
Não havia outras informações relacionadas ao percurso estudantil do aluno,
porque a família deixou de entregar algum documento no ato da matrícula por
motivo de transferência do aluno para a Escola Classe 50 de Ceilândia.
o outro aluno fez a série no ano de 2000. Foi reprovado. Consta
dos documentos escolares que nos dois anos seguintes esteve matriculado na
classe de aceleração da aprendizagem/alfabetização. No ano de 2003 foi
matriculado na classe de aceleração da aprendizagem/séries iniciais e voltou para
a 3ª série em 2004, sendo reprovado novamente.
De um modo geral, a situação escolar das crianças que tinham um
histórico de reprovação demonstra um início de percurso estudantil traumático.
Como se viu, em alguns casos, além de reprovações seguidas, isto é na mesma
série, ou intercaladas, ou seja, entre uma série e outra, algumas crianças
passaram por uma ou outra classe de aceleração, e em certos casos, pelas duas.
78
Das primeiras conversas com a professora, ficou claro que os casos de
maior “dificuldade” na aprendizagem em matemática, referiam-se exatamente aos
alunos que estavam “atrasados” na série.
As impressões da professora quanto à “dificuldade” destes alunos
expressavam aspectos relacionados ao conceito de número e ao processo de
resolução das operações.
Contudo, a partir das conversas com as crianças, surgia uma outra
impressão quanto ao que estava concebido como “dificuldade” e que apontava em
duas direções: a influência do processo de ensino de anos anteriores e as
concepções das crianças construídas a partir dessa influência, implicando outras
formas de fazer e entender matemática.
Lembro-me, por exemplo, de uma conversa que tive com um aluno,
considerado pela avaliação escolar como “bom” em matemática. Ao lhe perguntar
por que “pedia emprestado” da dezena para a unidade, numa ocasião em que
resolvia uma operação envolvendo subtração com desagrupamento, muito
espontaneamente assim me respondeu: Foi assim que a minha professora da
série me ensinou” (Miguel, 9 anos).
Um outro aluno, numa outra situação, ao me explicar o que
representava o zero na multiplicação, me disse: “Todo número multiplicado por
zero dá zero, porque ele é o elemento neutro” (Kaio, 10 anos).
Ainda uma outra aluna, falando sobre o significado do zero nas
operações, fez uma “generalização” do conceito trabalhado (elemento neutro). Ao
lhe perguntar como havia feito a resolução
34
de 7.650 248, ela aplicou o mesmo
entendimento. Ressalte-se que noutra ocasião havia me dito: “Toda vez que
somar zero com zero vai dar zero” (Suzana, 9 anos). Questionando-lhe porque
fizera 0 – 8 = 8, ela transfere a explicação para o campo da subtração.
34
A pesquisadora realizou a mediação pedagógica. A partir do diálogo travado a respeito da
produção da criança, a mesma foi levada a refletir sobre a natureza da operação, demonstrando
haver entendido o que de fato precisaria acontecer ao proceder a resolução de 0 – 8. Num
determinado momento da conversa falou: “Ih! To ficando doida, não dá. Peço emprestado para a
dezena, 10, tiro 8 e sobra 2” ( transcrição da parte final do diálogo. Foi preciso interromper a
conversa porque a aluna disse que precisava acompanhar a correção da atividade que estava
sendo feita pela professora).
79
Observando o aluno Kaio resolver a seguinte operação, 8.739 + 9.875,
peço-lhe que me explique o que está pensando enquanto resolve. Assim ele
explica:
Kaio - (Indicando com dedo em cima e embaixo). Eu somei 9 + 5 que deu 14, 7 + 3
que deu 10 (não conta com a dezena formada da adição de 9 e 5), 8 + 7 que 16, não, 15 + 1
(refere-se à centena formada da soma de 7 e 3) e deu 16.
Pesquisadora - O que você quer dizer com esse “1”? (Refiro-me ao 1 que o aluno
registra na centena, acima do 7 no numeral 8.739.) De onde ele veio?
Kaio – Veio da dezena.
A resposta do aluno deixa transparecer seu entendimento de que houve
o aparecimento desta centena como resultado da soma na dezena dos valores 7
(sete) e 3 (três). Mas, quando lhe pergunto: “Por que você o colocou aí”? Kaio me
responde: “É porque não pode ficar dois números na dezena”.
Se atentarmos para a explicação que o aluno dá, vemos que na
verdade, se vale de uma “regra” que é comumente ensinada para os alunos
quando se trabalha adição com reserva. Normalmente, o professor diz que toda
vez que na unidade der 10 (dez), deixa o 0 (zero) e sobe o 1 (um), porque não
pode ficar dois números na “casinha” da unidade.
Os exemplos dados acima constituem parte de um conjunto bem mais
amplo que caracteriza o fazer matemático destas crianças, revelando suas
percepções e concepções, e que em muito nos ajudou para entendermos como
estavam organizando seu pensamento mediante a análise de suas produções.
Contudo, as descobertas decorrentes da análise das produções
revelam apenas uma parte de suas estruturas de pensamento. Com certeza,
quanto mais pudermos aprofundar a análise mediante a ampliação dos espaços
de troca entre pesquisadora e aluno, professor e aluno, aluno e aluno, quanto
mais nos detivermos em pesquisar, analisar, interpretar e entender as construções
de cada aluno, bem maior será o leque de conhecimentos a serem construídos.
A criação e manutenção de um espaço de valorização e socialização
das produções espontâneas das crianças representam um ganho de suma
80
relevância ao processo de ensino e de aprendizagem, pois desperta no professor
um espírito investigativo, um contínuo desejo de estudo e de aprendizagem, bem
como, eleva a auto-estima do aluno, favorecendo o seu desenvolvimento cognitivo
e afetivo.
5.2.3 A escola
A sala de aula da 3ª série escolhida para participar na pesquisa é uma
das 20 (vinte) da Escola Classe 50 de Ceilândia. Escola pública do Distrito Federal
localizada no Setor P. Sul, um dos bairros de Ceilândia. Quando do início da
pesquisa, em abril de 2005, constava nos dados da secretaria da escola, o total de
986 (novecentos e oitenta e seis) alunos matriculados.
A escola atende as seguintes modalidades e níveis de ensino:
Educação Infantil (pré-escolar de quatro e cinco anos), Ensino Fundamental
35
(Bloco de Inicialização a Alfabetização – BIA -, 3ª e 4ª séries e Classes de
Aceleração da Aprendizagem
36
) e Ensino Especial (uma turma).
Três foram os motivos que me fizeram trazer a pesquisa para esta
escola. O primeiro, porque pretendo partilhar as contribuições desta pesquisa não
apenas com o grupo dela participante, mas também, porque espero estendê-las
ao corpo docente da Escola e à Diretoria Regional de Ensino de Ceilândia, sendo
esta última, um instrumento de alcance junto a outras escolas, outros professores.
O segundo motivo diz respeito à minha atuação profissional nesta
escola. Como relatado no primeiro capítulo desse trabalho, nas diferentes
funções desempenhadas, no decorrer dos anos em que estive, sempre me vi
cada vez mais interessada em ajudar e ver o crescimento pedagógico da escola,
35
Antes da implantação do Bloco de Inicialização a Alfabetização (BIA) que levou a entrada do
terceiro período do pré-escolar no Ensino Fundamental, a escola atendia, também, à crianças com
6 (seis) anos de idade, que correspondia ao terceiro período da Educação Infantil.
36
Segundo informações obtidas junto à escola, para o ano de 2006, os alunos matriculados nas
Classes de Aceleração da Aprendizagem serão integrados às etapas II e III do BIA e às e
séries. Portanto, a escola não oferecerá as Classes de Aceleração da Aprendizagem.
81
de um modo geral, e contribuir para o bom desempenho dos alunos no processo
de aprendizagem.
Em conseqüência do motivo anterior, o terceiro refere-se justamente ao
conhecimento da comunidade escolar construído durante os 8 (oito) anos em que
trabalhei na escola. Portanto, minha relação com os professores, alunos e pais foi
fortalecida durante este período, o que me segurança em relação à
comunidade escolar, ao passo que deles recebo confiança em virtude do contato
estabelecido.
Desta maneira, acredito que foi possível desde o início do trabalho de
campo trazer junto ao grupo participante da pesquisa seus eixos norteadores,
construindo com ele um plano de ação metodológico que possibilitasse alcançar
os objetivos propostos.
5.3 A dinâmica da pesquisa
Definido o campo da pesquisa, acredito que a melhor maneira de estar
lado-a-lado com professor, e, sobretudo, com os alunos, foi me aproximar e me
envolver no contexto desde os primeiros dias de aula. Somente assim, poderia
fazer anotações iniciais que comporiam meu diário de itinerância (BARBIER,
2004).
A entrada no campo da pesquisa se deu em três etapas. A primeira
etapa foi, mediante o critério de escolha da turma, conversar com a professora
acerca dos propósitos da pesquisa, esclarecendo o papel da pesquisadora,
delineando, nesse primeiro momento, o nosso acordo. Este acordo visava
envolver a professora na pesquisa antes mesmo da entrada da pesquisadora em
sala de aula. Essa primeira etapa foi de fundamental importância no sentido de
despertar na professora o sentimento da pesquisa, sua responsabilidade e sua
constituição como professora pesquisadora.
82
A segunda etapa deu-se logo após a qualificação do projeto de
pesquisa junto à Faculdade de Educação da UnB. Consistiu em socializar junto
aos pais das crianças, de modo sucinto e de cil entendimento, a proposta do
trabalho que seria realizado na turma da série. Considero que este contato foi
importante uma vez que as crianças estariam comentando em casa os
acontecidos durante a aula. Sendo assim, para esclarecer o motivo da minha
presença na turma, mesmo sendo conhecida das famílias das crianças, era
preciso explicar que, naquele momento, eu estava assumindo uma outra função, a
de pesquisadora, e que os beneficiados, em primeiro lugar, seriam os alunos.
Feita a comunicação com os pais, a terceira etapa foi proceder à
reapresentação de Elissandra. Por quê? Porque eu não estaria ali apenas como
uma das professoras da escola, nem como coordenadora pedagógica, nem como
diretora ou vice-diretora, nem ainda como assistente de direção. Todas estas,
funções que desempenhei. Aos alunos me apresentei como alguém que estava
ali para aprender com eles e para descobrir as coisas fantásticas que eles eram
capazes de fazer em matemática. Sendo assim, disse-lhes que estava ali por
causa deles, justamente porque tudo aquilo que fizessem em matemática seria
muito importante para que eu pudesse entender como eles estavam aprendendo
e, também, para poder ajudá-los.
5.3.1 Em sala de aula
A minha chegada, efetivamente, em sala de aula, aconteceu no dia 2
(dois) de maio de 2005. Nas duas primeiras semanas de aula estive presente
durante todo o turno de aula. Embora sendo conhecida da professora e dos
alunos, me detive, durante este período, em observar, de um modo geral, a
dinâmica da sala de aula. Pouco a pouco fui me envolvendo no contexto, me
aproximando também dos alunos novos na escola, me identificando e me fazendo
perceber como membro daquele grupo. Foi ainda, neste período, que propus à
83
professora para que juntamente comigo estivesse participando das aulas de
Educação Matemática I e II na Faculdade de Educação da UnB, o que de fato
aconteceu.
Após as duas primeiras semanas participando de todas as aulas na
turma de Rose, passei a freqüentar somente as aulas de matemática que
aconteciam às segundas, quartas e quintas-feiras. O horário de aula era dividido
em dois turnos: de 7h e 30 às 9h e 30 e de 10h e 30 às 12h e 30. O intervalo de
tempo entre os dois turnos era, normalmente, reservado para o horário do lanche
e recreio das crianças, dependendo do desenvolvimento da aula no primeiro turno.
O tempo da aula estava assim organizado para a professora poder
trabalhar em dias específicos as disciplinas e conteúdos escolares. Entretanto,
esta forma de organização não era rígida. Caso houvesse necessidade, toda uma
manhã de aula poderia ser dedicada exclusivamente para uma disciplina.
As aulas de matemática aconteciam no segundo turno nas segundas e
quartas-feiras, dividindo o tempo com português. Nas quintas-feiras eram dadas
no primeiro turno, dividindo o tempo com ciências.
5.3.1.1 A observação participante
Durante as duas primeiras semanas de observação, embora
objetivando compreender a dinâmica da sala de aula, não me portei passivamente
em relação aos alunos. Cada dia sentei-me em um lugar diferente, desde que não
atrapalhasse os alunos quanto à realização das tarefas que eram passadas no
quadro.
Além disso, conversava com as crianças enquanto faziam as
atividades. Às vezes, algumas delas chegavam até mim para perguntar o que era
para ser feito. Em outros momentos, questionavam-me quanto à correção dos
exercícios.
84
Desta maneira, o tipo de observação foi se configurando como
participante. A meu ver, a observação participante contribuiu significativamente
para o propósito da pesquisa, pois permitiu que o pesquisador desde o começo
estabelecesse um contrato com o grupo.
Neste sentido, mais que participante a observação passou a ser
completa, pois, mediante o estabelecimento de um contrato entre as partes
pesquisadora da UnB e pesquisadores da escola –, o objeto da pesquisa pôde ser
contextualizado e identificado pelo grupo como algo que também lhes dizia
respeito.
Com relação às características do contrato, Morin (apud BARBIER,
2004) destaca que
deve estar aberto em todas as suas dimensões, tanto na problemática, na
análise das necessidades, na definição dos problemas, nos
questionamentos, quanto na metodologia, incluindo a construção de
instrumentos de coleta de dados e a revisão da informação concernentes
aos significados das ações (p. 120).
Portanto, o sentido do contrato, assim concebido, contribuiria para a
constituição do pesquisador coletivo (BARBIER, 2004). Na verdade, este processo
constitutivo deveria ser permeado por uma sensibilidade de postura e escuta,
principalmente da pesquisadora da UnB e da professora pesquisadora. De
postura, pois não poderia existir distanciamento (LÜDKE e ANDRÉ, 1986) entre o
pesquisador (da universidade e professora) e os pesquisadores (alunos). De
escuta, porque o pesquisador (da universidade e professora) precisou estar atento
ao que ouviu, ao que viu e interpretou, não julgando o que seria melhor ou não,
mais conveniente ou não, e sim, desenvolvendo uma escuta sensível (BARBIER,
2004) a escuta interessante. Onde o que poderia parecer menos relevante teve
grande significado.
A pesquisadora esteve participando, exclusivamente, das aulas de
matemática no período de 16 (dezesseis) de maio a 19 (dezenove) de setembro
de 2005, descontado desse período, o referente aos dias de recesso, feriados e
“emendas” de feriado, em que obviamente, não teve aula.
85
5.3.1.2 Diário de itinerância: o diário de campo
O diário de itinerância (BARBIER, 2004) constituiu-se em um
instrumento muito importante no campo da pesquisa. Nele foram registradas as
tarefas propostas e as produções das crianças.
Neste diário, em um caderno dedicado somente às anotações da
pesquisa, a pesquisadora registrou o tipo de tarefa proposta por ela ou pela
professora pesquisadora, contextualizando a produção da criança.
Além disso, transcrevia do caderno das crianças suas produções
(protocolos) ou ainda, pedia que as crianças registrassem neste caderno como
haviam feito. Quando o registro era feito pelas crianças no caderno da
pesquisadora, normalmente, ele derivava da atividade de mediação/intervenção
pedagógicas. Em outros casos, quando da mediação/intervenção pedagógicas, a
pesquisadora fazia as anotações à medida que as crianças iam explicando e
registrando, no material, o procedimento desenvolvido.
Estas anotações foram elementos relevantes na atividade de análise
das produções das crianças que será discutida mais à frente. Também foram
registradas as transcrições das entrevistas feitas com a professora pesquisadora e
com as crianças pesquisadoras durante o diálogo estabelecido entre elas e a
pesquisadora.
5.3.1.3 Escutando, entendendo, dialogando: a entrevista
As entrevistas realizadas com as crianças pesquisadoras, embora
sendo concebidas como semi-estruturada, foram ressignificadas com cada uma
delas, contribuindo para o dessilenciamento dos alunos.
86
Diante das produções das crianças, a pesquisadora passou a fazer uma
investigação do sentido epistemológico e prático que se manifestava em cada
registro, buscando estabelecer as articulações teóricas.
Ao proceder a essa investigação sempre iniciava as conversas com as
crianças dizendo que havia se interessado muito pelo que produziram e que
desejava ouvi-las falar a respeito da produção. Neste momento, a vez e a voz
eram exclusivamente delas.
Não sempre, mas na maioria das vezes, os seguintes questionamentos
eram feitos às crianças: “Como foi que você fez para chegar a essa resposta?” “O
que você estava pensando quando resolveu essa operação?” “Por que você fez
assim?”
Estas questões serviram de motivadores para a continuidade do
diálogo, e assim, as outras questões foram sendo elaboradas a partir do sentido
das ações cognitivas das crianças manifesto na explicação de seu fazer.
Como recurso auxiliar foi feito gravação em áudio. As gravações foram
de grande valia no processo investigativo, pois permitiram que fosse registrada a
fala da criança enquanto reconstruía o procedimento desenvolvido. Entretanto, o
mesmo foi introduzido aos poucos. Por quê? Nas primeiras gravações, algumas
crianças pareciam se sentir inibidas diante do gravador. Paulatinamente, elas
foram se soltando mais nas conversas. Deixou-se claro que seria importante
gravar a conversa para que suas explicações não fossem esquecidas. Acredito
que ao se mostrarem mais relaxadas, esse comportamento revelou o sentimento
de confiança que foi gerado entre elas e a pesquisadora.
Contudo, mesmo com o auxílio do gravador, foram feitas anotações
paralelas no caderno de campo. Anotações que me permitiram, na análise dos
protocolos, registrar comportamentos e gestos (movimento da cabeça, movimento
dos dedos, expressão facial).
Numa proposta de pesquisa-ação tanto a metodologia desenvolvida e
os instrumentos usados devem promover um implicamento dos pesquisadores (a
pesquisadora, a professora pesquisadora e os alunos pesquisadores). Por isso,
enquanto pesquisadora me coloquei no contexto no sentido de contribuir junto à
87
professora pesquisadora num processo de reflexão da prática pedagógica e, em
relação aos alunos pesquisadores, busquei despertar neles um sentimento de
autoconfiança, motivando-os em cada entrevista a acreditar em seu potencial, a
não duvidar do valor de suas produções.
Refletir juntamente com a professora sobre a prática pedagógica no
processo de ensino e aprendizagem em matemática foi um movimento construído
ao longo da pesquisa. Durante as aulas, sempre que a produção de uma criança
me chamava à atenção, embora não procedendo à uma análise detalhada e
profunda naquele momento, mostrava para a professora.
Em outros momentos, trocávamos idéias, discutíamos o planejamento
para as próximas aulas de matemática. Sua participação nas aulas de Educação
Matemática I e II na UnB foram muito importantes no processo de releitura da
prática pedagógica.
Quando participando da coordenação pedagógica, discutimos as
mudanças que estavam ocorrendo, descobrimos as necessidades das crianças,
identificamos as dificuldades.
Gradativamente, a professora pesquisadora passou a oportunizar mais
espaços para os alunos falarem de seus modos de fazer. Recordo-me, quando
Kaio resolvia a operação 432 dividido por 8, sentado ao meu lado, registrava no
material dourado e no seu caderno, a meu pedido, o procedimento desenvolvido.
Tendo terminado, percebeu que, no quadro, a professora pesquisadora havia
registrado a solução conforme o algoritmo convencional. Kaio virou-se para mim e
disse:
Kaio - O meu está diferente!
Pesquisadora E porque está diferente significa que está errado? Nós não fizemos
juntos com o material? Você também chegou à solução da operação!
Kaio levantou-se foi até à professora e lhe mostrou que havia chegado
ao mesmo resultado, mas de outra maneira. Ainda em pé, de frente para o quadro,
a professora respondeu que não havia entendido como ele tinha feito. Kaio
passou, então, a lhe explicar porque o seu registro estava diferente. Na sua
88
explicação ele mostrava a disposição espacial dos valores, indicando o processo
de transformação pelos quais tinham passado quando usando o material dourado.
Percebi que a professora pesquisadora passou a dar mais importância
ao fazer dos alunos, dando-lhes a chance de falar sobre ele. Sua prática revelava
um processo de redefinição de postura quanto ao fazer matemático das crianças.
Certa feita, enquanto um aluno resolvia uma operação no quadro, a
professora pesquisadora lhe perguntou:
Professora pesquisadora – Como é que você chegou a esse resultado?
O aluno olhou para ela e deu sinal de que iria apagar o que havia feito.
Imediatamente, a professora pesquisadora replica:
Professora pesquisadora Eu não disse que está errado! Não é para você apagar. O
que eu quero é saber como foi que você fez!
Estes relatos retratam um começo de mudança de postura. Acredito
que, mesmo com o fechamento da pesquisa na escola, esta necessidade de
oportunizar aos alunos espaços para falarem de suas produções vai continuar
existindo porque as crianças passaram a se expressar mais e, portanto,vão cobrar
este espaço.
5.3.2 Descobrindo, aprendendo, construindo: a análise dos protocolos
Um dos momentos mais ricos desta pesquisa é resultado da articulação
entre a explicação da criança e o trabalho interpretativo feito pela pesquisadora.
Nesta etapa do desenvolvimento da proposta metodológica houve um
imbricamento entre a fala da criança, o sentido do registro e a análise
interpretativa das produções.
89
Cada um destes aspectos, entendidos em suas contribuições e
implicações não para a pesquisa, permitiu identificar um conjunto de
aprendizagens e descobertas em nível epistemológico, teórico e de articulação
com a práxis pedagógica.
Além disso, a partir do momento que as produções requeriam mais que
o trabalho interpretativo do pesquisador, antes, dependiam da presença do aluno,
de sua fala viabilizou-se, completamente, o seu processo de dessilenciamento e a
garantia de validação de sua produção matemática enquanto caracterizadora de
construção do conhecimento.
O diagrama a seguir, ilustra o procedimento metodológico concebido e
desenvolvido no decurso desta pesquisa:
90
PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM EM MATEMÁTICA
CONCEITO
S
MATEMÁTICOS
ALGORITMOS
CONVENCIONAIS
ESQUEMAS DE
PENSAMENTO
MEDIAÇÃO
/INTERVENÇÃ
O PEDAGÓGICA
PROTOCOLOS
ENSINO
AVALIAÇÃO
APRENDIZAGEM
HETERONOMI
A
AUTONOMIA
SILENCIAMENTO
DESSILENCIAMENTO
INTERPRETAÇÃO E
ANÁLISE
PRODUÇÃO DE
CONHECIMENTO
APRENDIZAGEM ENSINO
ENTREVISTA
PROCEDIMENTOS MATEMÁTICOS
REPRODUÇÃO
CONSTRUÇÃO
CON
STRUÇÃO DE SABER
91
5.3.2.1 A seleção dos protocolos
Como mencionado no texto da pesquisa, este trabalho pretendia
enfocar as crianças em “situação de dificuldade”. Contudo, pelo próprio
envolvimento da pesquisadora com as crianças e vice-versa, foi preciso abraçar a
todos. É claro que nem todas as produções puderam ser selecionadas.
Dentre as produções, foram selecionadas as que poderiam ser
separadas em dois grupos:
Produções inusitadas: todo e qualquer tipo de registro incomum,
estranho ao conhecimento da pesquisadora e da professora
pesquisadora. Como possíveis características podem ser observadas a
organização espacial, o registros pictóricos, esquemas, diagramas,
setas/flechas indicando a seqüência do procedimento.
Produções veladas: todo e qualquer tipo de registro produzido que
necessitasse de comunicação pelo aluno do procedimento
desenvolvido. Aqui podem ser identificadas também as produções que
embora tenham um registro familiar ou igual ao modelo”, dependendo
do contexto da produção, requeiram a explicitação oral e/ou material
por parte do aluno quanto ao procedimento desenvolvido.
Quanto ao primeiro grupo, vale destacar, que além das produções de
crianças consideradas, segundo a avaliação escolar, com “dificuldades” de
aprendizagem em matemática, as das consideradas “boas” em matemática,
também foram observadas, inesperadamente, por exigência delas mesmas.
Certo dia, ao realizar o trabalho de mediação pedagógica com uma das
crianças que foram avaliadas com “dificuldades” na aprendizagem, lembro-me que
uma das crianças “boas” em matemática me perguntou: “Você não vai olhar
92
também a minha?” Este desejo me levou a uma descoberta significante: quando
julgamos um aluno “bom” em matemática, dificilmente nos preocupamos com uma
produção sua que divirja daquela que estamos acostumados a ver e esperar.
Portanto, ignoramos e menosprezamos a sua atividade cognitiva. Achamos que
uma ou outra operação “errada” representa, somente, falta de atenção.
Júlia, por exemplo, era considerada “boa” em matemática. Mas ao
selecionar uma de suas produções, na qual constava a divisão de 96 por 5,
descobri que seu “erro” não era meramente uma falta de atenção. Na verdade, o
registro representava a sua forma de organização do pensamento naquela
situação.
Por outro lado, quanto às produções veladas, elas contemplaram as
produções inusitadas porque a pesquisadora não teria condições de realizar um
trabalho interpretativo adequado sem que o aluno falasse, enquanto autor de sua
obra. Mas também, envolveram aquelas produções que não indicavam qualquer
pista do procedimento desenvolvido, sendo necessário o aluno falar e explicar o
que pensou.
É importante destacar que as produções pertencentes ao primeiro
grupo continham, às vezes, algumas pistas (disposição espacial dos valores,
indicações no algoritmo de possíveis transformações ocorridas, registro pictórico
ao lado das produções) do procedimento desenvolvido. Tais pistas eram tomadas
por referência no processo interpretativo pela pesquisadora e pela professora
pesquisadora (quando possível sua participação neste processo). Porém, quando
o trabalho interpretativo não permitia avançar na análise, sempre foi solicitada a
fala da criança.
Ainda, em relação às produções veladas, buscamos analisá-las nos
reportando sempre ao contexto da produção. Isto porque o registro escrito não
expressava a realidade do procedimento desenvolvido, especialmente nas
situações em que as crianças dispunham de material.
Numa atividade proposta pela pesquisadora, pediu-se para que os
alunos trabalhando em grupo registrassem no material disponibilizado o
procedimento desenvolvido. Acreditava-se que com base no material os alunos
93
poderiam construir outros tipos de procedimento. Foi selecionada, então, a
seguinte produção: (63 26 = 37). No registro escrito aparecia a reprodução do
algoritmo convencional. Contudo, ao pedir que a criança falasse sobre como fez,
foi possível perceber, mediante sua fala, que o procedimento desenvolvido foi
completamente diferente em relação ao que havia registrado.
Dentre as muitas produções obtidas procedeu-se à escolha de algumas
para uma posterior análise com mais profundidade. A partir desta primeira
escolha, foi feita uma pré-análise (ora pesquisadora e orientador da pesquisa, ora
pesquisadora e professora pesquisadora) com base na qual foram retiradas ou
acrescentadas produções, sempre reportando-se aos objetivos e questões
propostos na pesquisa.
5.3.2.2 A pré-análise e a análise propriamente dita
Uma vez feita a seleção de algumas produções, procedeu-se a
identificação do autor, data em que ocorreu a produção, contextualização da
produção, descrição da produção levando à revelação do esquema e à articulação
teórica.
Nesta primeira etapa, que se chamada pré-análise, buscou-se
identificar elementos que poderiam ser discutidos com mais profundidade, uma
vez que se manifestassem em diferentes produções.
Para tanto, pesquisadora e orientador de pesquisa formularam um
modelo de “ficha-relatório” (ver Anexos) na qual pudessem ser registradas as
primeiras constatações para aprofundamento na análise.
A partir do conteúdo destas fichas-relatório”, foi feita então uma
descrição minuciosa, inclusive com transcrição das entrevistas realizadas com as
crianças, na qual se detalhou numa abordagem teórico-epistemológica a produção
contextualizada.
94
O resultado deste detalhamento foi um texto descritivo-analítico da
produção, com vistas à revelação dos esquemas de pensamento das crianças,
ocultos em sua produção. As fichas-relatório” continham os protocolos das
crianças, que foram separadas para fins de análise em dois grupos: os das
estruturas multiplicativas e os das estruturas aditivas (Teoria dos Campos
Conceituais de Gérard Vergnaud).
O capítulo seguinte apresenta os resultados do processo de análise das
produções das crianças, seguindo a divisão descrita acima.
95
CAPÍTULO VI
ENTRE O PENSAR E O FAZER
Esse capítulo dedica-se a apresentar a análise
1
dos protocolos de
algumas crianças da turma participante na pesquisa, separando-os por campo
conceitual, seja o das estruturas aditivas e/ou o das multiplicativas (Teoria dos
Campos Conceituais de Gérard Vergnaud), destacando ainda, diferentes
produções de um mesmo sujeito por campo conceitual, quando possível, e o
contexto da produção (prova, atividade de casa, atividade em sala, trabalho em
grupo etc.). Além disso, para a análise, muitas das vezes a fala da criança sobre
sua produção acompanha o protocolo e constitui uma das unidades de análise.
Desta maneira, entender como o sujeito pensou, a partir do seu fazer e
de sua fala em diferentes situações com vistas ao acompanhamento da produção
do conhecimento matemático, permite-nos compreender o valor dos traços
peculiares presentes em cada produção.
Aqui são levantadas questões de ordem conceitual e algumas
implicações pedagógicas decorrentes da análise dos protocolos, uma vez que a
investigação está centrada nas produções espontâneas das crianças construídas
a partir da interpretação pessoal que fizeram dos algoritmos convencionais que
lhes foram apresentados.
Com base na análise, podem ser destacados aspectos relacionados à
visão de ensino da matemática, à avaliação, ao conteúdo, ao papel do professor e
da pesquisadora, bem como, os que dizem respeito ao desenvolvimento cognitivo
das crianças cujas produções foram analisadas.
Não foram descritas minuciosamente todas as produções, mas
conforme o procedimento metodológico explicitado no capítulo anterior foram
1
Para fins de esclarecimento, as informações quanto à faixa etária, tempo de escolarização e
caracterização do percurso estudantil das crianças foram obtidas junto à secretaria da escola,
extraídas da ficha de matrícula de cada uma. Estas informações foram apresentadas no capítulo
anterior quanto à caracterização da turma e serão, quando necessário, aqui retomadas quanto à
caracterização de cada criança.
96
selecionadas aquelas que pudessem apresentar ao leitor elementos
epistemológicos e teóricos no fazer matemática das crianças.
6.1 Como Júlia
2
pensa quando está dividindo?
O protocolo analisado a seguir se relaciona a aspectos de ordem
conceitual. Pode ser caracterizado, primeiramente, no grupo de produções
inusitadas por campo conceitual, sendo este, o que se refere às estruturas
multiplicativas (Teoria dos Campos Conceituais de Gérard Vergnaud) e no grupo
das produções veladas, tendo em vista a necessidade de comunicação pela
criança de sua produção.
De acordo com Vergnaud (apud FRANCHI, 2002) as situações que
envolvem estruturas multiplicativas são aquelas que requerem, para sua
resolução, uma multiplicação, uma divisão ou uma combinação dessas operações.
Podem ser acrescentadas a este grupo as situações que requerem um
pensamento acerca da noção de proporcionalidade.
A produção dessa criança, que aqui será chamada de Júlia 8;11
3
anos, foi registrada numa situação de prova de fim de bimestre. Júlia é uma
criança bastante espontânea e comunicativa. Iniciou sua escolarização aos 5 anos
de idade e não foi reprovada nem na nem na rie do Ensino Fundamental.
De acordo com a professora não apresentava “dificuldades” de aprendizagem em
matemática.
A escolha de seu protocolo deu-se, principalmente, em função de
favorecer uma redefinição em termos de avaliação, quanto à caracterização de
crianças consideradas “com dificuldades”. O que são essas “dificuldades”? Como
admitir que essa ou aquela criança não “aprendeu” um determinado conteúdo
2
Por questões éticas, no decorrer deste capítulo, os nomes das crianças cujos protocolos estão
sendo analisados foram substituídos por nomes fictícios.
3
As idades das crianças, quando couber, serão apresentadas em anos e meses, separando-os por
ponto e vírgula e seguidos da indicação “anos”.
97
matemático? Sendo identificadas e compreendidas que possíveis “dificuldades”
apresenta, como trabalhar com a criança para superá-las?
Além da aplicação da prova, a correção também foi acompanhada pela
pesquisadora que esteve auxiliando, especialmente neste momento, partilhando e
analisando com a professora os algoritmos registrados pelas crianças.
A seguir, está a situação proposta na prova para as crianças: “Resolva
as operações”. Logo abaixo, está o registro da resolução feito por Júlia:
Figura 6.1. Resultado da operação encontrado por Júlia.
Após a devolução da prova corrigida
4
para os alunos, a pesquisadora
tendo previamente escolhido algumas, selecionara este caso, devido apresentar
uma produção inusitada.
Inicialmente, tanto a pesquisadora como a professora, ao analisarem o
registro, pensaram em diversas hipóteses de raciocínio desenvolvidas pela
criança, mas não chegaram a um consenso quanto ao exato procedimento
desenvolvido por Júlia. Entretanto, para proceder à análise, necessitamos pedir à
criança que explicasse como havia chegado ao resultado registrado. Somente
4
A situação apresentada foi copiada da prova original, constando inclusive, a marcação da
professora considerando a resolução da operação errada.
98
depois da explicação dada pela aluna foi possível chegar à revelação de seu
esquema de pensamento.
Antes de dar início a análise, é importante acrescentar ainda, que à
criança foi pedido que fizesse, simultaneamente, o registro do procedimento
desenvolvido. Veja a seguir como Júlia raciocinou, explicou e registrou o seu
modo de pensar e fazer (registro feito no verso da prova).
Figura 6.2. Registro de Júlia e da pesquisadora
Na parte superior, Júlia registrou uma contagem por agrupamento, visto
que interpretou a operação 96:5 a partir da noção de medida. Logo abaixo, no
canto à esquerda, registra por escrito como se daria a solução da operação.
Nesse instante, Júlia percebeu que ao invés de 12 (doze) vezes o 5 (cinco), ela
teria 19 (dezenove) vezes o 5 (cinco).
Júlia - “Ih! o são doze, são dezenove”. (Fala ao fazer a contagem de quantos
grupos de cinco formou.)
Ficando claro o pensamento de Júlia, a pesquisadora passou a fazer
algumas perguntas na tentativa de ajudar a aluna a compreender o procedimento
convencional de resolução das operações envolvendo divisão.
99
Pesquisadora – Quantos grupos de 5 você contou?
Júlia – Dezenove.
Pesquisadora – Onde você vai registrar na divisão que encontrou 19 grupos de 5?
Júlia – Aqui embaixo. (Referindo-se ao quociente.)
Pesquisadora Pois bem! Quando você conta os 19 grupos de 5, qual é quantidade
final a que você chega? (Neste momento, Júlia já havia resolvido novamente a operação.).
Júlia – Noventa e cinco.
Pesquisadora – Então, quando você também escreve 19 embaixo de 96, significa que
você está tirando 19 ou esse 19 é o total de grupos de 5 que você formou?
Júlia (Em silêncio, pensativa). Não. Esse dezenove aqui (refere-se ao que escreveu
em baixo de 96) é o tanto de grupos de 5 que formei.
Pesquisadora Qual é, então, a quantidade total que você contou depois de dividir 96
em 19 grupos de 5.
Júlia – Noventa e cinco.
Pesquisadora – Então, você vai subtrair... (Júlia interfere.)
Júlia – Eu vou tirar 95 de 96 e vai sobrar 1.
Ao lado do registro de Júlia, a pesquisadora fez a resolução da divisão
seguindo o modelo convencional, estabelecendo uma relação entre o que Júlia
pensou, o que descobriu e o registro que é ensinado na escola.
Com base na explicação que a criança deu, conseguimos
(pesquisadora e professora) compreender como pensou para chegar ao primeiro
resultado (ver Figura 6.1). Sua explicação permitiu identificar que conceitos e
teoremas em ato estavam sendo articulados.
Desta maneira, o procedimento desenvolvido por lia pôde ser assim
entendido, a partir de sua fala:
1º. O conceito de divisão a que a criança recorreu foi o de medida,
ou seja, quantos grupos de 5 (cinco) poderia fazer em 96
(noventa e seis);
2º. A divisão envolve uma contagem por agrupamento, isto é,
contagem de grupos de 5 (cinco). Evocam uma relação aditiva
entre os grupos os grupos adicionados repetidas vezes e
100
também multiplicativa número de grupos vezes a quantidade
de elementos em cada grupo;
3º. A quantidade de grupos encontrados correspondeu ao total que
deveria ser subtraído do valor que fora dividido. Assim, Júlia
representou, inicialmente, 96 12 = 83, pois, 12 (doze) foi a
quantidade de grupos de 5 (cinco) contados por ela. Repetindo o
mesmo procedimento, depois de perceber que não seriam 12
(doze) e sim 19 (dezenove) grupos formados, resolve, agora, 96
– 19 = 77.
Decorrente da estrutura de organização do pensamento de Júlia foi
possível identificar os invariantes operatórios (TCC) presentes em seu esquema
nesta situação, os quais caracterizam ações de pensamento que conservam um
padrão de fazer do sujeito numa classe de situações.
A seguir, segue outra produção de Júlia, registrada ao resolver um
problema de matemática envolvendo divisão. Novamente observa-se a estrutura
de pensamento anterior, confirmando a hipótese conceitual de invariantes
operatórios.
Figura 6.3. Resolução de um problema na mesma prova.
101
De acordo com a Teoria dos Campos Conceituais, os invariantes
operatórios envolvem conceitos em ato e teoremas em ato. Vergnaud (1996a)
explica que
A diferença é que um teorema em ato pode ser verdadeiro ou falso,
enquanto que um conceito o é nem verdadeiro nem falso, mas apenas
pertinente. Na vida nós selecionamos uma pequena parte da informação. E
não só na matemática, mas na vida social, ao dirigir um automóvel. E são
justamente esses conceitos em ação que nos permitem selecionar a
informação pertinente. Simplesmente, se um raciocínio não entra em um
teorema em ato, esse raciocínio não permite a resolução (p. 18).
Portanto, o teorema em ato presente na produção de Júlia pode ser
assim representado:
9 6 5
- 1 9 19 dezenove grupos de cinco
Sendo,
a b
- n n quantas vezes o b cabe em a
Ou seja, quando “a” é dividido por “b” encontra-se “n”. Então, “n”
corresponde à quantidade a ser subtraída de “a”. Seguindo esta estrutura
resolutiva, Júlia pôde resolver a divisão com sucesso.
Segundo Bryant e Nunes (1997) este é um tipo de estrutura que
envolve situações de correspondência um-para-muitos. De acordo com os
pesquisadores, nestas situações, são envolvidos dois novos sentidos de número:
a proporção, que é expressada por um par de números que permanece
invariável em uma situação mesmo quando o tamanho do conjunto varia, e o
102
fator escalar, que se refere ao número de replicações
5
aplicadas a ambos os
conjuntos mantendo a proporção constante (p. 144).
A figura abaixo, extraída de Bryant e Nunes (1997), ilustra a concepção
de situações que envolvem correspondência um-para-muitos.
Figura 6.4. Correspondência um-para-muitos
Retomando a análise, se observarmos a Figura 6.3, veremos que, ao
indicar a quantidade de grupos de 5 (cinco) que poderia ter até chegar em 96
(noventa e seis), Júlia percebeu que ao invés de 12 (doze), ela teria 19 (dezenove)
grupos. Porém, o novo registro conservou a mesma estrutura do registro anterior,
5
De acordo com Bryant e Nunes (1997) a replicação não se assemelha a tarefa de unir. Nesta,
uma quantidade qualquer pode ser acrescentada a um conjunto. Na replicação soma-se a cada
conjunto uma unidade correspondente para o conjunto de forma que a correspondência invariável
um-para-muitos seja conservada.
103
conforme expresso no teorema. Somente após a mediação feita pela
pesquisadora, a criança conseguiu compreender a organização espacial dos
valores que aparecem numa divisão de acordo com o modelo convencional.
Conclui-se que Júlia, apesar de não representar a divisão conforme o
algoritmo convencional, sabe perfeitamente o que é dividir. Para tanto, ela se
valeu de seus conhecimentos prévios: para dividir faço uma distribuição por igual
de uma certa quantidade em um determinado número de grupos.
A partir da pertinência dessa informação (conceito em ato), Júlia
desenvolveu seu procedimento tendo claro que, se fizesse a contagem em grupos
de 5 (cinco), chegaria a uma quantidade de grupos que representaria o valor real
ou aproximado daquele que estava sendo dividido. Daí, se ela achasse esse total
de grupos, significaria que essa quantidade deveria ser subtraída do valor inicial a
ser dividido (teorema em ato).
Portanto, o seu modo de pensar e fazer consegue contemplar os
conceitos subjacentes à divisão. O importante, neste contexto, foi deixá-la falar,
explicar o seu raciocínio. Mediante sua fala, a aparente “incompreensão”, do ponto
de vista do professor, quanto ao entendimento de Júlia em relação ao processo
resolutivo da divisão, revelou os conhecimentos articulados e construídos em seu
fazer.
6.2 Júlia
6
multiplicando
Antes de falar como foi realizada a atividade é preciso esclarecer em
que contexto foi originada, para um melhor entendimento da proposta feita às
crianças pela pesquisadora. A definição do contexto de produção constitui outra
unidade de análise neste trabalho.
Logo que iniciei a pesquisa de campo, em 2 de maio de 2005, a partir
de observações iniciais das aulas, propus a professora da turma que participasse
6
Quando da realização da atividade Júlia já estava com 9 anos e 1 mês.
104
das aulas de Educação Matemática I e II ofertadas pela Faculdade de Educação
da UnB sob a regência do Professor Doutor Cristiano Alberto Muniz.
Assistíamos juntas, às aulas nas quartas-feiras, a cada 15 (quinze)
dias. E eu sozinha, intercalando com as quartas-feiras em que a professora não
podia estar, tendo em vista, o horário das aulas na faculdade e o da regência na
3ª série acontecerem no matutino. E também, em respeito às famílias das crianças
que fizeram sua opção de matrícula do filho naquele turno, a fim de evitar
possíveis desentendimentos.
na primeira aula a que assistimos, no dia 12 de maio de 2005, o
professor deixou claro que era necessário montarmos o nosso kit matemático.
Esse kit consistia em uma caixa, a gosto do estudante, contendo “cacarecos”
(palitinhos, bolas de gude, botões, figurinhas, carrinhos e outros brinquedos em
miniatura, além de materiais mais estruturados como ábaco, régua, calculadora,
material dourado, réplica do dinheiro etc.).
A partir daí, a professora sugeriu aos seus alunos que montassem
também sua caixinha matemática composta por diferentes materiais que
auxiliariam na construção dos conceitos matemáticos.
As caixas foram encapadas pelos alunos em sala e identificadas com
seus respectivos nomes. Eram deixadas na sala de aula e os alunos traziam aos
poucos os materiais para serem colocados nelas. De acordo com o planejamento
da aula usavam as caixinhas.
Visto que a proposta deste trabalho envolve o desenvolvimento de uma
metodologia baseada na pesquisa-ação, foi necessário que dispusesse também
de minha caixinha matemática. A partir de então, passei a levar minha caixa
matemática para a sala nos dias em que eram dadas as aulas de matemática,
colocando-a à disposição dos alunos para utilizarem os materiais que continha
até que suas caixinhas estivessem completamente montadas.
Dentre os materiais de que dispunha, logo após a montagem da caixa,
estava a réplica do dinheiro. Os alunos ainda não possuíam o dinheirinho, embora
a professora logo nas primeiras aulas, tivesse me oferecido um outro tipo de
réplica para trabalhar com um dos alunos.
105
Visto o interesse que os alunos haviam demonstrado em adquirir a
réplica do dinheirinho, me propus a comprá-la para os mesmos a um valor de
atacado, fazendo uma relação nominal dos que queriam, colocando uma
quantidade a mais do que a solicitada.
Fiz, pois, a compra e de posse dos pacotes com a réplica do dinheirinho
fui para a sala de aula dia 14 de setembro de 2005. Ao chegar na sala falei que
estava com o dinheirinho para lhes dar. Antes porém, lhes propus a seguinte
situação-problema: Ontem, dia 13, tive que ir ao centro de Ceilândia. Fui
convocada para prestar serviços junto a justiça eleitoral no dia 22 de outubro dia
do referendo. Aproveitei a ida até o cartório eleitoral e de fui para o
Taguacenter
7
. Na loja em que comprei as réplicas do dinheirinho, encontrei o
pacote com 100 (cem) notinhas a um preço de R$ 0,99 (noventa e nove centavos).
Comprei 10 (dez) pacotes. Dei uma nota de R$ 10,00 (dez reais) para pagar pelos
pacotes. Quanto custou a compra?
Em seguida, apresentei a nota fiscal da compra, explicando aos alunos
o que era e o que vinha escrito em uma nota fiscal. Depois, registrei no quadro
negro as seguintes informações, conforme esquema abaixo:
Descrição Quantidade Valor Unitário Total
Dinheirinho c/ 100 mini toys 10 R$ 0,99 ?
Gostaria de abrir um parêntese na descrição da atividade, para
esclarecer que esta situação envolve, segundo Bryant e Nunes (1997), relações
entre variáveis, ou seja, co-variação.
Aqui, o sentido dos números se refere a valores sobre variáveis e não a
conjuntos. Em outras palavras, nessa situação, se discutiu o preço total da compra
7
O Taguacenter é um conjunto comercial em Taguatinga DF, onde concentram-se muitas lojas
que vendem produtos por atacado.
106
que é uma terceira variável, conectando as outras duas: preço por pacote com
réplica de dinheiro e a quantidade de pacotes comprados.
Neste contexto, posso representar a situação acima conforme esquema
proposto por Bryant e Nunes (1997) para representar sentidos de número em
situações que envolvem relações entre variáveis.
Na figura abaixo, transcrevi os dados da situação acima, registrando-os
no esquema para explicar a co-variação no contexto mencionado.
Quantidade de Preço Preço por pacote
pacotes com dinheiro é o mesmo
Fator escalar
Fator Funcional
3 pacotes £ 2,97
7 pacotes £ 6,93
Figura 6.5. Sentidos de número em situações de co-variação (relação entre variáveis)
Continuando a descrição do contexto da produção, distribuí os pacotes
para os alunos e pedi, que usando o material e registrando por escrito como iam
fazendo, resolvessem a operação. Além disso, disponibilizei de meu material a
réplica das moedas para aqueles que quisessem utilizá-las no momento da
resolução.
Vale acrescentar que, em nenhum momento, disse aos alunos como
deveriam resolver. Nem tampouco, pedi que chegassem a uma solução pela
multiplicação ou pela adição. Apenas propus que me explicassem como
representariam o pagamento pelos 10 (dez) pacotes, uma vez que teriam pago
107
com uma nota de R$ 10,00 (dez reais). Ainda lhes orientei, informando que as
demais notas do pacotinho poderiam ser utilizadas para resolverem a operação.
Logo abaixo, Figura 6.6, está o registro da resolução da situação-
problema feito por Júlia.
Figura 6.6. Resolução pela multiplicação
Sem qualquer preocupação em registrar tal qual no modelo
convencional a multiplicação envolvendo inteiros, décimos e centésimos, Júlia
realiza, com sentido, sua operação.
No algoritmo produzido a criança tentou registrar o procedimento
convencional que é ensinado na escola, buscando aplicar os passos que,
normalmente, são seguidos quando se apresenta pela primeira vez o “modelo".
Ela aplicou estes passos da seguinte maneira:
1º. Multiplicou os algarismos do multiplicando, no caso, o 10 (dez)
pelo multiplicador, R$ 0,99 (noventa e nove centavos);
2º. Iniciou a multiplicação da direita para a esquerda;
3º. Fez primeiro a multiplicação pela ordem das unidades do
multiplicando por cada algarismo do multiplicador, ou seja,
multiplicou o 9 (nove) das unidades de 99 (noventa e nove) pelo
108
0 (zero) do 10 (dez) e depois pelo 1 (um) do 10 (dez); registrando
logo abaixo do traço de igualdade ( ____ ) o produto encontrado.
4º. Em seguida, fez a multiplicação pela ordem das dezenas do
multiplicando por cada algarismo do multiplicador, ou seja,
multiplicou o 9 (nove) da ordem das dezenas de 99 (noventa e
nove) pelo 0 (zero) do 10 (dez) e depois pelo 1 (um) do 10 (dez);
registrando logo abaixo do primeiro resultado encontrado, na
ordem das dezenas em diante, o outro valor obtido.
5º. Por fim, adicionou os valores parciais resultantes da
multiplicação entre os algarismos do multiplicando pelos do
multiplicador e depois registrou o produto final.
Júlia teve a liberdade de registrar a sua operação a partir da
interpretação que fez da situação-problema, não manifestando qualquer
dificuldade em operar com valores envolvendo inteiros, décimos e centésimos,
mesmo que seu registro não tenha se ocupado disso.
Vale destacar que nenhuma das crianças presentes neste dia errou a
resolução da situação-problema, tenham feito pela multiplicação ou pela adição,
ou ainda, demonstrando por meio das duas operações como resolveram.
Prosseguindo à análise, no Figura 6.7, logo abaixo, observa-se como
Júlia explica por meio de uma frase seguida de uma operação de multiplicação e
outra de subtração, o procedimento que desenvolveu para chegar ao resultado da
situação-problema, revelando estratégias não manifestas no registro do algoritmo
produzido. A explicação dada serve não apenas como complementação, mas
também como um recurso de validação de seus conhecimentos mobilizados.
109
Figura 6.7. Registro escrito do procedimento: frase e operação
Agora, para entendermos a essência da melodia que se esconde nessa
produção é preciso acompanhar o maestro enquanto rege. Então, vamos dar voz
à criança para que, por meio do seu falar, esse registro se amplie em detalhes, ou
seja, que se manifestem as notas, os sons, os arranjos, tudo o que compõe uma
bela canção, mas que só pode ser compreendida em detalhes quando ouvida com
atenção.
Ao pedir que Júlia me explicasse como procedera, o que foi feito no
mesmo dia, enquanto os outros alunos faziam e partilhavam o material com os
que não tinham e discutiam entre si as possibilidades de resolução, iniciei nossa
conversa com a seguinte pergunta: Como você fez para descobrir o total da
compra, sendo que vo tinha apenas uma nota de R$ 10,00 (dez reais) para
pagá-la?
Júlia Primeiro eu troquei a nota de R$ 10,00 por 10 notinhas de 1 real. (Enquanto
fala, vai representando no material a troca).
Pesquisadora Se você trocou a nota de 10 reais por notinhas de 1 real, você ficou
com quanto?
Júlia – Com 10 reais.
Pesquisadora – E agora, como é que você calculou o valor dos pacotes de dinheirinho
se você tem notas de 1 real? disposição da criança havia uma caixinha com réplicas das
moedinhas em valores de R$ 0,01, R$ 0,05, R$ 0,10, R$ 0,25, R$ 0,50 e R$ 1,00).
Júlia De cada 1 real eu tirei 1 centavo que 99 centavos. (Não usa as moedinhas,
apenas explica oralmente).
Pesquisadora – Então, 99 centavos é o mesmo que 1 real menos 1 centavo?
Júlia – É. Aí eu faço isso por 10 vezes pra ter 99 centavos de cada pacotinho.
110
Pesquisadora E depois que você tem 99 centavos de cada pacotinho, o que você
faz?
Júlia Eu somo as 10 notinhas de um real que 10 reais. Tiro um centavo de cada
uma que dá 10 centavos. Depois tiro 10 centavos de 10 reais e dá 9 e 90.
Com base nesse diálogo, cheguei ao esquema de pensamento
revelado pela explicação dada pela criança, apoiada na manipulação do material
para representar o procedimento. Veja na figura 6.8 como ficou o esquema:
Figura 6.8. Revelação do esquema a partir da explicação da criança
A partir da articulação estabelecida entre o pensar e o fazer, mediada
pela fala da criança, pela ação sobre algum tipo de material e pela ação da
pesquisadora em relação a produção do aluno, é possível concluir que o registro
escrito, convencional ou não, não é suficiente para contemplar a gama de
conceitos e conhecimentos prévios utilizados quando o sujeito está em situação.
E o que significa o sujeito estar em situação? Significa que o mesmo se
vê, se percebe, se apropria da situação que lhe é proposta, encarando-a como um
desafio a ser superado, isto porque se faz presente nela. um problema para
ser resolvido, e isso, difere em muito, em termos de desenvolvimento cognitivo,
se, de outra maneira, à criança é pedido apenas que resolva operações. Um
problema a resolver imprime um sentido ao que a criança terá que fazer.
111
Estando em situação o sujeito mobilizará seus conhecimentos
anteriores para buscar uma solução. A situação provoca uma desestabilização no
sujeito que, posto em conflito, é levado a avançar em suas construções. A
situação dá sentido às ações psicológicas superiores, como nos ensina Júlia.
Moro (2005), em seu estudo sobre as notações
8
das crianças na
iniciação matemática, destaca, com base em Vergnaud, como se a mudança
de concepção das crianças diante de situações novas. Segundo a autora,
Como os alunos terão suas concepções alteradas quando seus
esquemas prévios não se aplicam a novas situações, cabe, ao professor,
não apenas oferecer-lhes situações de ativação de esquemas disponíveis,
mas situações que o levem a transformar esses esquemas, para sua
reconstrução em novas relações diante dos dados novos (p. 44).
Nessa análise, não é o conhecimento de como se resolve no algoritmo
convencional uma multiplicação envolvendo inteiros, décimos e centésimos o mais
importante para Júlia, ela sequer está preocupada com seu registro, mas sim, em
como fará o pagamento da compra a partir do desafio lançado.
Foi utilizando o material que se viu instigada a buscar uma solução para
a situação-problema. O material contribuiu para provocar a ativação de seus
conceitos e das relações a eles vinculados para alcançar um resultado.
A partir daí, seja para o pesquisador ou para o professor, haveria a
possibilidade de enxergar os conhecimentos anteriores dos alunos e o processo
de sua transformação como forma de organizar melhor e mais adequadamente a
ação docente.
8
Teixeira (2005) baseada em Lee e Karmiloff-Smith (1996) explica que “é preciso distinguir
representação de notação. Representação se refere ao que é interno à mente, e notação, ao que é
externo. Representação reflete como o conhecimento é construído na mente e notação estabelece
o suporte das relações entre um referente e um signo. Notações não são meramente cópias
idênticas, nem externalizações ilimitadas de representações internas. Notações têm suas próprias
e singulares propriedades que refletem a relação dinâmica interativa entre notação e
representação”.
112
6.3 Que bicho é esse? Suzana vai dividir.
Suzana estava com 9;4 anos quando foi realizada a atividade. De
acordo com documentos escolares, foi transferida de outra escola pública para a
Escola Classe 50 de Ceilândia quando cursava a série. Não consta dos dados
escolares quando iniciou a escolarização.
Para a professora, é uma aluna que apresenta dificuldades na
resolução e interpretação de problemas matemáticos. A aluna é nova na série
9
.
Fala pouco em sala, mas não parece ser tímida.
A atividade proposta pela pesquisadora foi sugerida pelo orientador da
pesquisa e buscava descobrir como as crianças entendiam a divisão, se pela
noção de partilha ou se pela noção de medida.
A sugestão nasceu de uma discussão sobre como é trabalhado na
escola o conceito de divisão e por que, ao invés de resolver um problema que
envolva uma divisão, normalmente, a criança acaba fazendo uma multiplicação.
Essa discussão aconteceu dia 01/06/05, uma quarta-feira, quando
assistia à aula de Educação Matemática I na Faculdade de Educação da UnB,
ministrada pelo Professor Doutor Cristiano Alberto Muniz.
Desta discussão chegou-se à consideração que a forma como os
problemas são redigidos leva os alunos a trabalharem somente com uma noção
de divisão - ou de partilha ou de quota
10
. Por isso, a criança tende a não efetuar a
divisão conforme o professor espera, porque interpretou o problema de maneira
diversa daquela que o professor achava que entenderia.
Quando um problema matemático envolve uma divisão com base na
noção de partilha, significa que a quantidade no dividendo será distribuída em
9
Quando aparecer no texto o termo “novo” ou “nova na série”, este diz respeito ao fato de o(a)
aluno(a) não ter sido reprovado(a) na série que cursa atualmente.
10
Segundo Bryant e Nunes (1997) a atividade de distribuir se aplica também a um tipo de situação
que envolve raciocínio multiplicativo. A distribuição, neste sentido, leva a estabelecer uma relação
entre dois ou mais conjuntos. De acordo com seus estudos (ibid., p. 148), “as relações parte-todo
estão também envolvidas em distribuição e divisão, mas três elementos a ser considerados: o
tamanho do todo, o número das partes e o tamanho das partes que deve ser o mesmo para todas
as partes. Por exemplo, se 20 doces (o todo) e 4 crianças para partilhá-los (4 partes), 5
doces por criança ( o tamanho da parte ou quota)”.
113
quantidades iguais para tantos quantos forem os grupos dados no divisor. Veja o
exemplo:
a) Raquel tem 6 pirulitos para dividir entre duas amigas. Quantos
pirulitos cada amiga de Raquel vai ganhar?
6 2
- 6 3
0
Sendo que,
pirulitos amigas
pirulitos
Ou seja, na divisão por partilha, “ndividido por “a” é igual a “n”. Neste
problema, o que está sendo dividido é a quantidade pirulitos. Portanto, o resultado
obtido será a quantidade de pirulitos que foi dada para cada amiga de Raquel.
Agora, quando falamos em divisão envolvendo a noção de medida, o
que acontece é que no quociente será registrada a quantidade de vezes que o
dividendo cabe no divisor. Observe o mesmo problema envolvendo a noção de
medida:
b) Raquel quer colocar 6 pirulitos em sacolas separadas. Separando os
pirulitos de 2 em 2, de quantas sacolas Raquel precisará?
6 2
- 6 3
0
Sendo que,
114
pirulitos pirulitos
sacolas
Ou seja, quando dividido “a” por “a”, o resultado será “n”. Isto significa
que ao separar os pirulitos em grupos com 2 pirulitos, o resultado será o número
de grupos com 2 pirulitos (sacolas necessárias) que poderá ser formado com a
quantidade de pirulitos que tinha para dividir.
Foi então, a partir da discussão dessas noções, que propus aos alunos
a seguinte divisão: 41:3. o apresentei a divisão dentro de uma situação-
problema. Inicialmente, busquei ver como os alunos a resolveriam, uma vez que,
fora de um contexto, o resultado seria uma divisão com resto.
Vale acrescentar que a professora ainda não havia trabalhado o
conteúdo de divisão com os alunos na época em que foi realizada a atividade,
08/06/05. Neste dia, os alunos assistiram aula à tarde, porque a professora e a
pesquisadora estiveram assistindo as referidas aulas de Educação Matemática
na Faculdade de Educação na UnB.
Inicialmente, ao chegar na sala disse para os alunos que gostaria que
eles resolvessem uma operação para mim. Perguntei a eles: “Como é que vocês
podem fazer para dividir 41 por 3”?
Logo de cara, ouvi muitos alunos dizerem: “Ih! Eu o sei dividir não!”,
“A professora ainda não ensinou pra gente como é que faz divisão”!, “Ah! É muito
difícil”!
Então, registrei no quadro a operação conforme o modelo convencional
e disse a eles que, de alguma maneira, descobrissem como é que se poderia
fazer aquela divisão.
A reação dos alunos foi imediata. Ao olharem o registro no quadro,
fizeram um alvoroço. Parecia que estavam vendo um bicho-de-sete-cabeças (e
até concordo com eles). Recordo-me quando Júlia se aproximou de mim e disse:
115
- “Nossa! Isso aí é uma divisão? Eu não dou conta de fazer divisão desse jeito não”!
Então, virei para ela e perguntei se tinha irmãos. Ela me respondeu
afirmativamente, indicando nos dedos que tinha mais 2 irmãos. Disse a ela que
pensasse no seguinte problema: Você tem 41 balinhas para dividir entre você e
seus dois irmãos. Quantas balinhas você acha que seus irmãos e você irão
ganhar?
Júlia olha para mim como que mais satisfeita e diz:
- “Ah! Agora dá pra fazer essa divisão”.
Continuando a explicação, aproveitei o exemplo dado a Júlia e partilhei
com toda a turma. Pedi-lhes que buscassem resolver a operação fazendo o
registro por escrito da maneira que achassem melhor.
Alguns alunos desenharam crianças e balas, outros fizeram bolinhas,
outros fizeram círculos com palitinhos e outros usaram somente números para
representarem como fizeram a divisão.
Dentre todos os registros dos alunos, muito me chamou a atenção
como Suzana escrevera a sua divisão. Além de, diferir muito da dos colegas pela
aparência, seu registro não deixava claro o procedimento que desenvolvera,
sendo de difícil entendimento para a pesquisadora e para a professora.
Logo abaixo está a maneira como Suzana registrou a divisão 41 por 3:
Figura 6.9. Algoritmo registrado por Suzana para a divisão sugerida
116
Da maneira como Suzana registrou, deduzi que fizera uma distribuição
para três, devido à indicação dos valores separados por rgula de 21, 10 e 10.
Contudo, não consegui entender de imediato como fez a distribuição para chegar
aos valores indicados.
Solicitei, então, a Suzana, que me explicasse o que pensou e como fez
para chegar ao resultado apresentado. Era preciso que a aluna me ajudasse
naquele momento a compreendê-la no seu fazer matemática.
Quero, antes de continuar, abrir um parêntese para informar que a
maioria das produções dos alunos foi partilhada com a professora. Nestes
momentos, discutia comigo como conseguiria fazer para entender, acompanhar,
avaliar processualmente e, além disso, trabalhar os conteúdos curriculares.
As preocupações de Rose eram passíveis de compreensão, uma vez
que cada produção que analisávamos conjuntamente nos causava tamanha
inquietação, pois cada vez mais ficava claro o quanto os alunos produziam,
conheciam, sabiam fazer, mas que não seria fácil apregoar a aceitação dessas
produções e fazer com que outros colegas acreditassem e valorizassem o que
estava sendo feito por aquelas crianças a medida que avançassem em seus
estudos.
Neste sentido, a pesquisa-ação, com a participação da professora nas
análises, acaba por se constituir numa valorosa oportunidade de formação
continuada na Educação Matemática.
Em outros casos procedi à análise sozinha. Ainda assim, partilhava com
a professora os achados, discutindo em termos de teoria os estudos mais recentes
na área, e em termos de prática pedagógica que posturas o professor deveria
adotar para, de fato, mudar a prática de ensino de matemática para a prática de
educação matemática.
Mas, retomando a análise do protocolo de Suzana, quando lhe pedi que
falasse de sua produção, assim passou a explicar-me:
Suzana - Ah! Eu fui divindo”. ( Aponta com o dedo indicador da mão direita para os
valores registrados.)
Pesquisadora – Como você fez para dividir?
117
Suzana – Eu primeiro tirei 10, depois mais 10 e depois mais 10.
Pesquisadora – E depois?Como você terminou de dividir?
Suzana (Quase que murmurando.) Eu continuei... (Barulhos na sala, a aluna falou
muito baixo sem que pudesse entender o que dissera).
Mesmo tendo insistido para que continuasse me explicando o
procedimento desenvolvido, percebi que Suzana não conseguia me esclarecer o
seu modo de pensar. Desta maneira, o trabalho interpretativo torna-se mais difícil,
pois, não se deve fazer afirmações precipitadas quanto ao processo cognitivo
subjacente à produção.
A partir de um cuidadoso e atencioso trabalho interpretativo com base
nas pistas dadas por Suzana mediante sua fala, na figura 6.10 está o registro da
revelação do esquema feito pela pesquisadora a partir das possíveis articulações
entre o registro e a fala da criança.
Figura 6.10. Revelação do esquema de Suzana
Escondida no algoritmo registrado por Suzana estava a noção de
divisão por partilha. Isto é, cada um dos três valores indicados (21, 10, 10)
conservava uma distribuição por igual de quantidades menores.
A estrutura de construção do esquema pôde ser explicada em duas
fases. A primeira fase será descrita nas etapas a seguir:
Suzana faz uma primeira distribuição para três, iniciando pela
quantidade representada na ordem das dezenas (4);
118
Para cada distribuição que faz, subtrai uma dezena da
quantidade inicial (40 –10 = 30, 30 – 10 = 20, 20 – 10 = 10);
Tendo distribuído três dezenas – 10, 10 ,10 – restou-lhe,
então, uma dezena e uma unidade (11);
A quantidade restante, 11, não pode ser repetida por três
vezes. Daí, Suzana adiciona 11 + 10 (primeira dezena distribuída),
totalizando 21.
Aparentemente, nessa primeira fase não há como identificar que a
divisão por partilha tenha sido feita da maneira correta, uma vez que os valores
registrados não são iguais entre todas as partes, exceto, nas duas últimas, em que
se repete o 10 – dez (ver figura 6.10).
Contudo, se a quantidade 11 (onze) que restara depois que distribuiu as
três primeiras dezenas não poderia ser adicionada de igual modo entre aquelas
dezenas, por que Suzana, então, não fez a partilha um a um, distribuindo assim as
11 (onze) unidades restantes entre as dezenas que já havia distribuído?
Na verdade, quando Suzana adiciona 11 (onze) à primeira dezena,
obtendo 21 (vinte e um), o seu pensamento estava operando uma divisão por
partilha. Vejamos como se deu, pois, a segunda fase de interpretação para
construção do esquema:
A forma de registro da divisão feita por Suzana contempla
sua estrutura de pensamento que retoma a operação inicial, 41
(quarenta e um) dividido para 3 (três);
Cada valor registrado (21, 10 , 10) contém internamente uma
divisão por partilha;
Para cada valor registrado Suzana opera uma nova divisão,
mantendo a distribuição para 3 (três);
119
O resultado da redistribuição para 3 (três) em cada
quantidade registrada (21:3, 10:3 e 10:3) deve ser acompanhado
numa leitura de cima para baixo (ver Figura 6.10. Em cada valor
uma segunda divisão por partilha).
Feita a redistribuição para 3 (três) em cada quantidade
registrada, somam-se os valores obtidos, na horizontal, para
encontrar o valor real da divisão de 41 (quarenta e um) para 3 (três),
isto é, 21 (vinte e um) dividido para 3 (três) é igual a 3 (três)
agrupamentos de 7 (sete). Nas dezenas subseqüentes, cada uma
tem respectivamente, 3 (três) agrupamentos de 3 (três), restando 1
(um).
A partir da soma das seguintes parcelas 7+3+3, 7+3+3 e
7+3+3 (ver Figura 6.10. Fazer a leitura na vertical), obtêm-se o
resultado 13 (treze), restando ainda, 2 (duas) unidades.
Como pôde ser observado, essa estrutura de pensamento foge
completamente do passo-a-passo ensinado no “modelo convencional”. Contudo,
não lhe pode ser retirado o aspecto de fidedignidade ao que fora proposto.
Em outras palavras, Suzana opera seguindo um dos conceitos da
divisão – a partilha. O “problema” passa a ser, para o professor, a forma de
registro apresentada que não nenhuma pista de que este conceito esteja claro
para a criança, segundo avaliação do professor.
Como afirma Muniz (2004a), esse tipo de estrutura, embora complexo,
é de uma riqueza infindável que não pode ser abrangida pelos algoritmos
convencionais, uma vez que, o seu entendimento pelo professor implicará uma
tomada de decisão que o coloque na posição de um constante investigador.
Será a partir da aceitação, análise e socialização de produções dessa
natureza em sala de aula, e no coletivo da escola, que efetivamente o educador-
pesquisador será capaz de enxergar conhecimentos prévios sendo articulados
com novos conhecimentos.
120
Como afirmava Vygotsky (1998), a criança traz consigo
conhecimentos espontâneos que não se descartam ante a aprendizagem de
conhecimentos científicos, mas que a estes se juntam, servindo-lhes de base para
o desenvolvimento de estruturas cognitivas mais complexas.
A isto equivale dizer novamente que a criança não é uma tábua rasa
onde são impressas as marcas de um saber científico, formal, escolar. Pensar
assim significa assumir que a aprendizagem está inevitavelmente atrelada à
institucionalização, não sendo relevante para o desenvolvimento cognitivo
qualquer experiência prévia da criança, aquela que está fora dos espaços
institucionais.
Portanto, onde está a dificuldade de Suzana? Com certeza, os
conhecimentos prévios de que dispunha, embora, o conteúdo ainda o houvesse
sido trabalhado, articulados ao seu fazer, são prova suficiente de que a educação,
a escola, o ensino e o professor, como também, o pesquisador precisam redefinir
suas concepções quanto ao que é efetivamente conhecimento matemático e como
se desenvolve o processo de aprendizagem.
6.4 Deu 10, sobe e junta. Vale para a adição e também para a multiplicação
Um fato interessante observado durante a investigação e que se
manifestou repetidas vezes por diferentes crianças, refere-se a um processo de
“generalização
11
” de regras aplicado às diferentes operações.
Como, tradicionalmente, as operações são trabalhadas em separado,
as crianças tendem, ao aprenderem uma nova operação, a aplicar as regras das
operações anteriores à recentemente aprendida.
Isso não quer dizer que esse processo de “generalização” se faça
meramente por uma incompreensão da criança quanto aos procedimentos
11
Generalização no sentido que a criança transfere um esquema construído em uma dada
situação para outras situações consideradas, a princípio, como similares.
121
subjacentes a cada operação. Antes, expressam como ela interpreta e assimila o
“modelo” ensinado, buscando aplicar regras de resolução, em princípio,
consideradas comuns a uma e a outra operação, mas modificadas no decorrer do
processo em função da própria estrutura resolutiva de cada operação.
Figura 6.11. Registro feito por Miguel (9 anos) antes de conhecer o algoritmo convencional
O que quero dizer com isso é que, mesmo se o ensino está pautado
somente na apresentação de “modelos” canonizados, não necessariamente os
alunos os apreenderam tal qual lhes foram ensinados.
Como destaca Vergnaud (1996a) quando um raciocínio não entra em
um teorema, o sujeito não consegue chegar a solução para o problema. Ou seja,
para que um pensamento sobre determinada situação matemática se torne
operacional, é preciso que encontre um caminho resolutivo, isto é, “se faço isso
chego a isto”.
Em outras palavras, o esquema de pensamento do sujeito obedece a
uma estrutura cognitiva própria de cada indivíduo que orienta as ações mentais,
direcionando-as a um objetivo construir uma solução para certo tipo de situação.
Neste sentido, cabe ao educador e ao pesquisador identificar os esquemas
invariantes de um sujeito para outro.
Desta maneira, chega-se a compreensão da conservação de um
padrão de resolução aplicado pelas crianças a diferentes problemas matemáticos
que ajudam na identificação dos invariantes operatórios (TCC).
122
Numa forma mais simples de dizer, os invariantes operatórios são
caracterizados como sendo aquilo que o sujeito fez de novo do mesmo jeito em
um outro contexto, em outra situação, constituídos pelos conceitos e teoremas em
ação. Corresponderia mais ou menos a dizer “eu já vi isso em um outro lugar”.
No caso das produções das crianças nesse contexto investigativo, os
invariantes operatórios se expressam por meio de estruturas de resolução
conservadas em diferentes operações matemáticas. Por isso, invariantes que
não mudam, e operatórios – provenientes de um saber fazer.
Analisando a produção de Suzana, situada no campo das estruturas
multiplicativas (TCC), observei a partir da aplicação de uma regra usada em
operações de adição com reserva conhecida famosamente pelo “deu 10 (dez)
vai 1 (um)”, como ela registrou diferentes operações de multiplicação, identificando
onde estava esse “vai 1 (um)”.
Inicialmente, Suzana procede ao registro da multiplicação 12 x 5,
armando a operação em seu caderno, indicando acima do um da dezena outro,
dentro de um círculo, resultado da multiplicação de 5 x 2. A figura a seguir, contém
a transcrição da operação pela pesquisadora.
Figura 6.12. Registro feito no caderno de Suzana e transcrito pela pesquisadora
Pelo registro de Suzana não dúvidas quanto à compreensão que
tem acerca do procedimento de resolução com base no nosso sistema de
numeração decimal. Toda vez que formamos dez unidades, elas são agrupadas e
123
mudadas de lugar, seguindo a direção da troca no sentido da direita para a
esquerda.
A troca é trabalhada, normalmente, em sala de aula por meio de
registro indicativo de um novo agrupamento formado na ordem imediatamente
superior. Daí, em muitos registros, via-se o “vai um” dentro de um círculo.
Contudo, este tipo de notação não indica que a criança entendeu
adequadamente o que é a troca, uma vez que, se estiver usando algum tipo de
material, a criança faz o agrupamento. Ao contrário, a troca não está no material,
mas na ação do sujeito ao transferir o agrupamento para a ordem seguinte.
No caso de Suzana uma mistura de procedimentos usados na
adição com os da multiplicação
12
. Para ela, se o novo agrupamento formado na
unidade, quando adicionando, é indicado registrando o numeral 1 (um) na ordem
das dezenas e acima da quantidade que esteja para depois fazer uma nova
adição nesta ordem, então, ela poderia repetir a mesma ação na multiplicação.
Ao repetir esse procedimento na multiplicação, Suzana acaba por
justificar o valor encontrado por ela para a resolução de 12 x 5 como sendo igual a
100 (cem). Tal justificativa se em nível da interpretação que fez do modelo, o
que acaba por validar seu pensamento.
Para chegar ao total 100 (cem), Suzana, após registrar a nova dezena
formada (ver Figura 6.12), procede a uma adição entre o agrupamento formado e
a quantidade de grupos de 10 (dez) indicada na ordem das dezenas, ou seja, um
(novo agrupamento) mais 1 - um (dezena existente, antes do novo
agrupamento). Assim sendo, em seu entendimento, ela teria dois agrupamentos
de 10 (dez), totalizando 20 (vinte), que seriam multiplicados por 5 (cinco). Por isso,
o resultado seria 100 (cem) e não 60 (sessenta).
Esta análise seguiu à explicação dada pela criança:
Suzana - Eu juntei esse 1 (novo agrupamento) com esse (já indicado na dezena), e
deu dois que eu multipliquei por cinco.
12
Não se trata neste caso da compreensão dos conceitos relativos as duas operações, mas da
aplicação de regras de procedimento de uma em outra.
124
Procedendo então, à mediação pedagógica, a pesquisadora pediu que
se sentasse próximo a ela, sugerindo que conversassem sobre o que havia feito.
Assim ocorreu a conversa:
Pesquisadora Suzana! Vamos ver o que é que você fez. Você está fazendo uma
multiplicação. Como é que você está multiplicando?
Suzana – Eu vou multiplicar o 12 pelo 5.
Pesquisadora – O que você quer dizer com multiplicar o 12 pelo 5?
Suzana – É que eu vou ter que fazer o 12 cinco vezes.
Pesquisadora Como é que você vai fazer isso? (Suzana escreve 12 + 12 + 24.
Pára.)
Pesquisadora Por que é que você parou? Você não está escrevendo aqui (aponta
para o registro) o 12 cinco vezes?
Suzana – Estou. Mas acontece que eu não pensei assim.
Pesquisadora – E como é que você pensou?
Suzana Que tem que fazer a operação aqui (aponta para a operação armada no
caderno).
Pesquisadora – Ah! Ta certo. Você prefere fazer direto aqui, na operação. Então, olha
só. Você tem 12 vezes cinco. Como é que você pensou quando fez a sua operação (refiro-me ao
primeiro registro. Figura 6.12)?
Suzana – Eu comecei multiplicando o 2 por 5.
Pesquisadora – Como é que você fez essa multiplicação? ( Suzana arma a operação,
escreve ao lado 2 2 2 2 2, e logo abaixo 10. Registra na operação armada o zero abaixo do
traço da igualdade na direção do 5 e sobe um, colocando-o dentro de um círculo, acima da letra
“d” em maiúsculo, indicando a dezena). Olha só, vamos falar sobre o que você fez? Primeiro você
multiplica o dois pelo cinco e dá dez. Aí, você escreve zero embaixo do cinco e coloca o um do dez
lá na dezena. Por que você fez assim?
Suzana Porque quando eu multipliquei o dois pelo cinco que deu 10, eu tenho que
colocar aqui (aponta na dezena).
Pesquisadora Muito bem! Então, esse 10 foi o que você formou quando fez
2+2+2+2+2, que é duas vezes cinco. E agora, como é que você vai continuar a operação?
Suzana Eu junto esse um (da dezena formada) com esse aqui (o do numeral 12),
somo e multiplico por cinco.
Pesquisadora Entendi. Mas veja só. Esse um aqui de cima não é resultado do duas
vezes 5 (balança a cabeça concordando) ? Então, ele faz parte do dez, do doze, ou ele apareceu
depois que você multiplicou dois por cinco?
Suzana – Ele apareceu depois que eu multipliquei dois pelo (cinco.
125
Pesquisadora Se você tivesse multiplicado aqui (aponto 2 x 5) e não tivesse dado
dez pra você colocar lá na dezena, como é que você faria?
Suzana eu teria que multiplicar esse outro número (aponta o numeral 1 do 12)
por cinco.
Pesquisadora – Muito bem! Então quer dizer que o que você está multiplicando é esse
um aqui (do doze) ou esse um (indico o registrado posteriormente na dezena)?
Suzana – É só esse um (aponta, mostrando o 1 do 12).
Pesquisadora – Quanto é então que vai dar esse um (do doze) por cinco? Quanto ele
vale? Como é que você vai fazer (Suzana escreve logo abaixo da seqüência 2 2 2 2 2, da seguinte
maneira, 10 10 10 10 10)? Quanto é que deu aí?
Suzana – Deu cinco. Cinqüenta.
Pesquisadora E agora? Deu cinqüenta porque você multiplicou o um do doze por 5.
Esse um vale 10. Você formou cinqüenta aqui (aponto 1 do 12 vezes 5). Já esse outro um veio
daqui (mostro registro que fez do 2 x 5). Agora, nós temos que fazer o quê com esses valores?
Suzana – (Meio que em dúvida) Eu vou juntar?
Pesquisadora – É isso ai! Por que é que nós vamos juntar? Porque o primeiro dez que
você formou já foi resultado de uma multiplicação que você fez antes, o duas vezes cinco. Então,
ele o estava aqui, junto com esse outro dez que tinha na dezena. Esse dez aqui da dezena
você também tem que multiplicar por cinco e depois juntar com o outro pra ver quanto que vai dar
ao final. E aí? Quanto deu?
Suzana – (Escreve) Sessenta.
No quadro a seguir está o registro feito por Suzana em uma folha de
rascunho que arrancou do seu caderno.
Figura 6.13. Etapas de resolução realizadas por Suzana durante o diálogo com a pesquisadora
126
Logo após a realização desta operação em conjunto com a
pesquisadora, Suzana procede à resolução de outras semelhantes, fazendo o
registro do procedimento tal qual fizera na situação anterior, após a mediação.
Figura 6.14. Outras produções de Suzana feitas no mesmo dia
As produções acima foram registradas pela criança que as resolveu
sozinha, sentada em sua carteira e sem o acompanhamento da pesquisadora ou
professora. Depois foram apresentadas, a pedido da pesquisadora. Tanto nessa,
como na outra produção, Suzana fez a multiplicação a partir do conceito de adição
de parcelas repetidas, mas fazendo essa adição a partir da decomposição dos
valores da quantidade inicial.
Esses outros registros confirmam o que Suzana havia pedido
anteriormente à pesquisadora resolver direto na operação. Portanto, se ela vai
resolver direto na operação, a multiplicação da quantidade constante no
multiplicando corresponderá à adição de parcelas repetidas, sendo esta, o
somatório dos valores relativos de cada algarismo.
A partir desta análise podem ser entendidos dois fenômenos ligados à
prática educativa. O primeiro refere-se à forma como o professor ensina. O
segundo, em conseqüência do primeiro, diz respeito à forma como o aluno
aprende.
127
Em outras palavras, a forma como o professor ensina interfere na forma
como o aluno aprende. Isso quer dizer que, embora nem sempre reproduzindo tal
qual lhe fora ensinado, o aluno acaba imprimindo no seu jeito de fazer algumas
marcas do jeito de ensinar do professor.
Normalmente, o professor ao introduzir o “conteúdo de multiplicação”, o
faz mediante a apresentação da adição de parcelas repetidas, seguidas da
apresentação do registro no algoritmo convencional, conforme o esquema abaixo:
2 + 2 + 2 + 2 + 2 = 10 5 x 2 = 10
Trabalha inicialmente com valores menores que 10 (dez) no
multiplicando, aumentando-os gradativamente, bem como, em relação à
quantidade de algarismos no multiplicador.
Desta forma, quando Suzana pediu para resolver direto na operação,
expressou essa maneira de ensino. É claro que, aqui, não está sendo discutida a
pertinência ou não dessa prática.
Ao levantar este aspecto proponho uma reflexão sobre concepções de
ensino e metodologias como questões importantes no processo educativo que se
corporificam no fazer em sala de aula.
Portanto, o fazer do aluno representa, de alguma maneira, a forma
interpretativa que concebe em relação ao que lhe foi ensinado, revestindo-se em
compreensão ou não do ato docente.
Como apresentado na análise do registro de Suzana, vimos, também,
uma compreensão parcial do que foi ensinado, uma vez que fez adaptações no
procedimento convencional para dar continuidade ao seu raciocínio.
Na verdade, o fazer do aluno, mesmo que divergindo daquele esperado
pelo professor, na maioria das vezes, toma por base o que lhe foi repassado por
modelo como garantia de que em algum momento o seu pensar/fazer se parece
com o do professor. Pensar e fazer que se faz real na fala: “Meu professor disse
128
que era pra fazer assim”. Isso mostra que as crianças sentem que sua
produção tem valor quando corresponde à do professor. É um processo de
legitimação que conserva a autoridade do professor em relação a um saber e
fazer, exigindo do aluno que a confirme mediante a reprodução mecanizada dos
conteúdos ensinados. Ou ainda, que ignore qualquer informação adicional
traços, rabiscos, desenhos, diagramas, que o sejam, segundo o professor, de
interesse relevante.
Por isso, folhas de rascunhos servem apenas para conter essas
“informações adicionais” de pouco interesse. Nelas estão os borrões, as manchas,
os registros “incompreensíveis” que não despertam a atenção do professor e que
são considerados sem valor, como retrata a fala de uma criança da turma.
Pesquisadora – Por que você apagou as coisas que você tinha feito ao lado da
operação?
Aluna – Porque a professora só quer saber a resposta.
A partir dessa fala, surgem alguns questionamentos - “Como proceder a
uma avaliação que pretende ser processual se ela estiver centrada apenas em
resultados finais e esperados?” “O que vem a ser resposta numa produção
matemática dentro da escola?” “Será somente o resultado numérico?” “E os
procedimentos produzidos não seriam a alma desta resposta?” “O que fazer com
os resultados divergentes?” “Em que momento se faz a mediação pedagógica
quando a avaliação não é processual?” “Como é entendido o desenvolvimento da
aprendizagem?”
6.5 Usando, mas reinterpretando o modelo, Lina vai dividindo
Lina estava com 11;4 anos quando realizou a atividade proposta pela
professora. De acordo com os documentos escolares iniciou sua escolarização
aos 6 (seis) anos de idade no ano de 2000. Cursou a série em 2001.
129
Reprovada, foi matriculada em 2002 na Classe de Aceleração da Aprendizagem
13
(Alfabetização). No mesmo ano foi remanejada para uma turma de série, pois
não contemplava os quesitos necessários para ter sido matriculada naquela
classe, ou seja, não estava com defasagem idade/série em 2 (dois) anos.
Concluída a série foi promovida para a 2ª série no ano de 2003. Reprovada, foi
matriculada no ano de 2004 em uma nova classe de aceleração, agora, a de
Séries Iniciais e, aprovada para cursar a 3ª série no ano de 2005.
Lina era considerada uma criança com “dificuldades” na aprendizagem
em matemática. Mas que “dificuldades” eram essas? Observando, dentre os
protocolos selecionados para análise, percebi que em alguns as crianças
aplicavam regras de resolução de uma determinada operação a partir do “modelo”,
sem, contudo, terem entendido tais regras.
A produção de Lina, por exemplo, retrata bem esse pensamento
matemático dentro do “modelo canônico. Ela aplica as regras de resolução da
divisão para produzir uma resposta que é inicialmente esperada pelo professor,
mas que ao contrário disso, resulta num registro esteticamente estranho e “sem
sentido”. Será esse o motivo da “dificuldade” de aprendizagem de Lina?
A figura 6.15 registra a produção de Lina numa situação de divisão. A
operação foi registrada no quadro pela professora. Os alunos a copiaram em folha
branca do tipo A4, resolveram e depois devolveram para a professora. O comando
13
A título de esclarecimento, aqui no Distrito Federal, as Classes de Aceleração da Aprendizagem
foram criadas com o objetivo de corrigir as distorções causadas pela reprovação das crianças em
uma mesma série por dois anos consecutivos. O projeto das Classes de Aceleração prevê o
atendimento de 25 alunos por classe, com 5 horas/relógio de aula por dia, totalizando 25 horas
semanais. A regência, inicialmente, estava condicionada a dois professores com jornada de
trabalho de 20 horas semanais cada um e um dia para coordenação, sendo que a coordenação
acontecia em dias diferentes para cada professor. Isso acabava por implicar em um trabalho
parcelado, uma vez que os professores não faziam o planejamento conjuntamente. Embora, em
um dia da semana, normalmente nas quartas-feiras, os dois estivessem na sala, ainda assim o
trabalho continuava dividido, pois os professores dividiam aquele dia em dois turnos de aula, um
para cada, além de dividirem as disciplinas entre si. É claro, que a constatação de tal fato não
deve ser considerado em um plano mais geral e sim como um indicativo do que acontecia em
várias escolas. Ressalte-se também que quando a escola não dispunha de dois profissionais com
jornada de trabalho de 20 horas semanais, a classe de aceleração poderia ser assumida por um
profissional com jornada de trabalho de 40 horas semanais, divididas entre 25 horas de regência, o
mesmo quantitativo se dois profissionais, diferenciando apenas quanto as horas de coordenação,
que corresponderiam à 15 horas e 5 horas, respectivamente.
130
da atividade pedia que resolvessem as operações, lembrando dos diferentes
materiais
14
que haviam aprendido a usar.
Figura 6.15. Registro de Lina para a divisão proposta
Pela forma como Lina apresentou o registro da divisão não deu para a
pesquisadora nem para a professora pesquisadora entenderem o que a aluna
havia feito. A única informação que ficou clara nesse registro foi que o valor 432
(valor do dividendo) foi repetido no quociente, mas sem revelar, em princípio,
qualquer articulação com o desenvolvimento do processo resolutivo apresentado.
Um aspecto relevante que necessita ser aqui destacado é que o
trabalho interpretativo do pesquisador-educador ou do educador-pesquisador não
pode se restringir a uma análise exôgena, isto é, com base apenas na análise da
configuração do modo como foi registrada a resolução da operação. Mas a partir
do que foi apresentado em termos de configuração, deve-se procurar as raízes
internas que deram suporte a esse fazer, isto é, que processos cognitivos
envolvidos ajudariam a compreender a gênese do conhecimento que está sendo
construído, pois normalmente, quando a solução em termos de procedimentos é
diferente da conhecida do professor, sobretudo se o resultado final diverge
14
No decorrer da pesquisa os alunos tiveram acesso a materiais como o ábaco, material dourado,
canudinhos e palitinhos, réplica das notas de dinheiro, além de outros materiais que pudessem
utilizar para contagem e resolução das atividades propostas.
131
daquele esperado, a tendência é considerar a produção do aluno como
inadequada.
Portanto, um trabalho investigativo, seja no âmbito de uma pesquisa
com finalidade de produção de um trabalho de caráter científico, seja no contexto
de sala de aula voltado para redefinição da prática pedagógica, requer do
pesquisador-educador e do educador-pesquisador uma postura analítico-reflexiva
que promova um senso crítico-construtivo por meio do qual possam ser
articulados fundamentos teóricos e práticas.
A análise do protocolo de Lina contribuiu significativamente para
repensar posturas. De acordo com o percurso estudantil e considerações da
professora, esta criança apresentava “dificuldades” na aprendizagem, e, em se
tratando da aprendizagem dos conceitos matemáticos parecia não ser diferente.
“Mas onde estava a dificuldade?” “Em Lina ou na pesquisadora e na professora
pesquisadora?” “Quem realmente não estava sendo compreendido?” “Qual era
efetivamente a dificuldade?” “E agora, o que fazer?”
Do ilógico ao lógico, do incompreensível ao compreensível, do estranho
ao conhecido, do grosseiro ao refinado, da “dificuldade” à aprendizagem, é assim
que a produção matemática de Lina pôde ser caracterizada, mostrando-nos que a
forma de olhar, seja do pesquisador ou do professor, precisa ser modificada.
Para proceder à análise de seu protocolo, o trabalho interpretativo foi
realizado em duas etapas complementares entre si. Na primeira, o procedimento
adotado buscou, a partir de uma entrevista com a criança, identificar o
desenvolvimento de seu raciocínio mediante as indicações do processo resolutivo
que aplicou.
Foi com base nestas indicações que se tornou claro como a criança
estava entendendo o modelo de resolução de divisão exata e o que significava a
estrutura registrada. Além disso, foi possível também perceber como a aluna
estava trabalhando com os conceitos matemáticos mobilizados na situação.
na segunda etapa de análise, a pesquisadora realizou um trabalho
mediático voltado para a aplicação dos conceitos matemáticos usados por Lina.
Criando uma situação-problema e disponibilizando material (réplica das notas de
132
dinheiro) pretendi ajudá-la a compreender como se daria a solução mediante o
procedimento de resolução de divisão exata no “modelo” convencional.
Ressalte-se que embora nesse momento estivesse sendo realizada a
mediação pedagógica pela pesquisadora, ela não deixou de ter um caráter
analítico e interpretativo. A partir da articulação entre o entendimento do
procedimento desenvolvido por Lina e a reconstrução pela aluna, valendo-me do
que fizera anteriormente, mas agora, dentro de uma situação-problema e com o
auxílio de material, consegui vislumbrar a necessidade do desenvolvimento de
uma avaliação formativa ante os conhecimentos mobilizados e construídos.
Em termos de análise, o que Lina pensou pode ser descrito a seguir,
com base na entrevista feita pela pesquisadora. A descrição analítica que se
segue refere-se à primeira etapa do trabalho interpretativo.
a) No “modelo” convencional é ensinado que a divisão é realizada
operando-se da esquerda para a direita. Ou seja, são divididas
primeiramente as quantidades que estão nas ordens cujo valor
posicional é maior.
b) Lina aplica a regra. Ela inicialmente pensa em dividir 4
(centenas) para 8 (oito), contudo observa que esse valor não
“permite” o procedimento.
c) No “modelo” convencional é preciso dividir, em princípio
separadamente, os valores constituintes do dividendo pelo
divisor registrando no quociente um valor que multiplicado pelo
divisor seja igual ou se aproxime do dividendo.
d) Lina aplica essa regra. Contudo, se ela não pode dividir 4
(centenas) para 8, por outro lado, poderia dividir 32 por 8, tendo
como total no quociente, 4. Lina não opera a transformação das
dezenas (3) em unidades (30) adicionando-as a quantidade de
unidades disponíveis (2), mas entende que 32 é mais que 4 (sem
atentar para o valor posicional) e que, portanto, dá para dividir.
133
e) No “modelo” convencional é ensinado que o resultado da
multiplicação do valor indicado no quociente pelo valor que está
no divisor deve ser subtraído do dividendo.
f) Lina segue parcialmente essa regra. Mesmo iniciando a divisão
pela quantidade 32, ao encontrar o total 4 no quociente, fazendo
a multiplicação pelo divisor (8), chega ao resultado 31 e não 32.
O total que encontra é subtraído de 432, valor do dividendo,
registrando 401 como o novo valor do dividendo.
g) No “modelo” convencional de divisão exata tem-se a seguinte
estrutura de resolução: dividendo por divisor igual ao quociente
e, quociente vezes divisor igual ao dividendo ou “y”, sendo “y” um
valor aproximado, que subtraído do dividendo sucessivas vezes,
a cada vez que se procede a uma nova divisão, quando
necessário, do dividendo (formado) pelo divisor até chegar a um
valor que não seja possível de dividir;
h) Na resolução de Lina, após ter resolvido a primeira parte de sua
divisão, surge uma dificuldade: o valor que dividira (32) era
possível de resolução, porém ao encontrar num novo valor no
dividendo (401), observa que “não dá” para operar dividindo-o
por 8, pois o seu raciocínio está pensando em valores isolados,
não em valores posicionais. Isso decorre da própria estrutura
resolutiva que é trabalhada pela escola. As operações são
apresentadas de forma estanque e descontextualizadas.
i) No “modelo” convencional quando uma quantidade registrada em
uma determinada ordem não é passível de ser dividida, ela é
transformada em unidades equivalentes a ordem imediatamente
inferior, somando-se, caso necessário, às unidades decorrentes
dessa transformação com as unidades disponíveis nessa
mesma ordem. Em outras palavras, no exemplo dado, o valor
representado nas centenas (4) deveria ter sido transformado em
dezenas para poder continuar a divisão. Isto significa que ao
134
invés de estar operando 432 por 8, a aluna faria uma nova leitura
da divisão, sendo 43 (dezenas) divido por 8, chegando ao valor
no quociente de 5 (dezenas). Multiplicado o resultado do
quociente (5) por 8 totalizaria 40 (dezenas), que subtraídas de
43, tendo por resto 3 (dezenas). Estas, transformadas em
unidades (30), seriam adicionadas as existentes (2), formando
32 unidades que divididas por 8 resultariam em 4 unidades.
Portanto, o valor final no quociente seria de 54.
j) Mediante o impasse interpretativo de Lina quanto ao
procedimento resolutivo dado no modelo, ela opera da seguinte
maneira: uma vez dividido 32 por 8, restando ainda no dividendo
401 para ser dividido e não conseguindo contemplar 40 dezenas
e 1 unidade nesta quantidade, ela passa a dar continuidade
realizando multiplicações entre o quociente e o divisor,
registrando o resultado como minuendo no dividendo. Nesse
procedimento, Lina passa a operar com os valores 3 e 2 do
numeral 432. Multiplicando-os por 8 (ver Figura 6.15), cada um a
seu tempo, obteve como resultados 24 e 16, respectivamente, e
os subtrai do valor registrado no dividendo, no caso 401 24
(3x8) e 400 – 16 (2x8).
k) Tradicionalmente, é ensinado na escola o algoritmo da divisão
para operações cujos valores no resto terminem em zero, ou
seja, a divisão exata. Seguindo os passos: dividir, multiplicar e
subtrair, o aluno faz a operação até zerar o dividendo.
l) Como a professora havia trabalhado recentemente esse tipo de
divisão, Lina busca de alguma maneira, chegar a esse resultado
na operação proposta, reproduzindo o ritual observado. Dentro
de seu raciocínio é preciso construir um procedimento de
resolução que leve ao total zero no dividendo. Embora na
primeira subtração realizada 432-31= 401, sendo 31 resultado da
multiplicação 8 (divisor) vezes 4 (quociente), decorrente da
135
divisão de 32 por 8, Lina não prossegue com esse raciocínio ao
operar 401 24 = 377 e 377 16 = 361. Ao contrário disso, ela
fez 401 24= 400, sendo que o 24 é resultado do seguinte
procedimento: 3 (do dividendo) vezes 8 (do divisor), repetiu o 3
no quociente. Em seguida, operou 2 (do dividendo) multiplicado
pelo divisor (8). Chegou ao total 16 que foi subtraído de 400,
zerando (000) o dividendo e registrando o 2 no quociente (Figura
6.15).
A explicação que acabara de ser dada pode ser apresentada na figura
abaixo que procura ilustrar a revelação do esquema de pensamento de Lina para
esta operação.
Figura 6.16 Registro da pesquisadora: os passos seguidos por Lina
Se, em termos de ensino e aprendizagem, o processo é encerrado aqui,
então, chega-se a uma triste constatação ou os professores não estão sabendo
ensinar eficientemente os conteúdos escolares ou os alunos apresentam sérios
comprometimentos quanto ao desenvolvimento cognitivo.
Contudo, mesmo que haja necessidade de investir na formação dos
professores para um melhor desempenho quanto à sua prática pedagógica, é
136
preciso também investir no aluno quanto à valorização de suas capacidades e
estímulo ao aprimoramento de suas potencialidades. Ou seja, é preciso valorizar o
aluno pelo que sabe e ajudá-lo a transformar o desenvolvimento potencial em
real (VYGOTSKY, 1998).
Assim, foi prosseguindo o trabalho interpretativo mediante a realização
da mediação pedagógica que se manifestaram múltiplos saberes articulados ao
registro da produção de Lina. Saberes que ficariam obscuros caso não lhe tivesse
sido dada a oportunidade de socializar e explicar o seu modo de pensar e de
fazer.
Descobri que, entre o pensar e o fazer, existe um longo caminho
cognitivo percorrido pelo sujeito que pode se tornar conhecido quando ele é
levado a desenvolver sua competência de saber explicitar os objetos e as suas
propriedades tão bem quanto é competente em saber fazer.
Ao propor uma situação-problema para a resolução da divisão, foi dado
um significado ao procedimento. Com a disponibilização de material que servisse
de suporte às ações de Lina, foi possível levá-la ao entendimento do procedimento
convencional, a partir da atribuição de significados às estruturas numéricas.
A seguir é apresentado, na Figura 6.17, o registro feito pela
pesquisadora do procedimento construído por Lina com base no material e a partir
da situação-problema que lhe fora proposta.
Figura 6.17. Registro da pesquisadora: o procedimento construído por Lina
137
O registro da pesquisadora deu-se logo em seguida à explicação que
Lina dera ao primeiro registro feito (ver Figuras 6.15 e 6.16). Ele representa uma
sucessão de passos seguidos por Lina para chegar à solução enquanto manipula
réplicas das notas de dinheiro, fazendo a distribuição para bonequinhos de
brinquedo.
Na situação-problema proposta, Lina deveria fazer o pagamento de oito
pessoas por um serviço prestado, sendo que, o valor total do serviço foi de R$
432,00 (quatrocentos e trinta e dois reais). A partir desta situação foi perguntado
que valor cada pessoa iria receber.
Os trechos que se seguem fazem parte da entrevista realizada pela
pesquisadora enquanto Lina ia registrando no material o que estava pensando em
fazer para dividir R$ 432,00 (quatrocentos e trinta e dois reais) para 8 (oito)
pessoas.
Pesquisadora – Quanto você tem para distribuir?
Lina – Quatrocentos e trinta e dois reais.
Pesquisadora – Então, pegue essa quantidade em dinheiro.
Lina – (Separa quatro notas de R$ 100,00, três notas de R$ 10,00 e duas notas de R$
1,00). Ta aqui os R$ 432,00.
Pesquisadora – Para quantas pessoas você terá que fazer a divisão?
Lina Para oito (Pega de uma caixinha disponível do material da pesquisadora, 8
bonequinhos de brinquedo e os arruma em duas fileiras de quatro, uma em cima e outra logo
abaixo, dando um espaço entre elas.)
Pesquisadora Olhe para as notas que você tem? (Lina separa as notas de cem, das
notas de dez e das notas de um real.) Como é que você vai fazer para dar o mesmo tanto de
dinheiro para cada uma dessas pessoas? Você tem que dividir todo o dinheiro. Tem alguma
quantidade de notas que dê para você dar uma delas a cada uma das pessoas?
Lina – Não. Eu só tenho quatro de cem e não dá porque precisaria de mais quatro. As
de dez e as de um real também não dá, fica faltando.
Pesquisadora – O que você pode fazer então? Preste atenção que você tem notas de
cem, notas de dez e notas de um real. Será que você pode fazer algum tipo de troca com as
notas?
Lina – Posso. Eu posso pegar uma de cem e trocar por notas de dez?
138
Pesquisadora Você acha que pra trocar? (Balança a cabeça afirmativamente e
pega das notas restantes de seu pacotinho dez notas de R$ 10,00, contando com os lábios a
seqüência 10, 20, 30, ... 100.)
Lina – Agora eu tenho essas notas de dez reais e mais essas outras três.
Pesquisadora – E o que você vai fazer com essas notas?
Lina Se eu quiser, eu posso juntar e ficar com treze notas de R$ 10,00 e dar uma
para cada pessoa (vai fazendo a distribuição) e ainda vão sobrar cinco notas de R$ 10,00 (faz a
contagem após ter distribuído oito notas).
Pesquisadora Lina observe o que foi que você fez. medida que explico, vou
refazendo o que a criança fez). Você trocou uma nota de cem por dez notas de R$ 10,00. Depois
você junta com as três notas que você já tinha. Então, com quantas notas de cem você ficou?
Lina – Fiquei com três.
Pesquisadora Onde é que está a nota de cem que você tirou daqui? (Referindo-me
às quatro que tinha anteriormente.)
Lina (Apontando com o dedo indicador). Está aqui nessas notas de dez que eu
peguei. Dez notas de R$ 10,00 é o mesmo que R$ 100,00.
Pesquisadora Certo. você junta com as três que tinha e um total de 13
notas
15
de R$ 10,00. O que foi que você distribuiu para cada pessoa? Qual é o valor que cada
pessoa recebeu?
Lina – Dez reais.
Pesquisadora Então, cada uma dessas notas que você deu representa um grupo de
dez notas de um real, por exemplo? (Balança a cabeça concordando). Vamos então como é
que a gente pode registrar isso que você fez. Você tinha notas de cem reais em quantidade
suficiente que cada pessoa pudesse ter ganhado pelo menos uma nota?
Lina – Não (Registro no quociente a ordem das centenas e deixo em branco.).
Pesquisadora Então, aqui na “casa” da centena você vai registrar alguma
quantidade distribuída, quando você não tinha notas de cem suficientes para dar?
Lina – Não.
Pesquisadora Mas você pegou uma nota de cem das quatro que você tinha. Tirando
essa nota você ficou com três. (Risco o numeral quatro, escrevo logo abaixo três.)
Pesquisadora A nota de cem que você trocou por notas de dez eu vou colocar
onde? Não é mais de uma de cem, são notas de dez.
Lina Coloca aqui. (Indicando na “casa” dezena, logo abaixo do três.) E junta com
essas três que já tem. (Refere-se ao numeral três que já estava na ordem das dezenas.)
15
Os trechos negritados na entrevista referem-se aos momentos que a aluna fala junto com a
pesquisadora.
139
Pesquisadora – Juntando dá treze. você distribui essas notas de dez para as
pessoas que estão aqui. Qual foi a quantidade que cada uma ganhou?
Lina – Cada pessoa ganhou uma nota de dez. (Passa a mão sobre a distribuição feita,
enquanto segura as notas restantes.)
Pesquisadora O que foi que você distribui mesmo? Notas de dez? Onde então eu
posso registrar nesse espaço (referindo-me ao quociente) as notas de dez que você deu?
Lina Agora são dezenas, então tem que colocar o “dê (refere-se à letra D” de
dezena) e escrever o que eu dei.
Pesquisadora – E qual foi a quantidade que você deu?
Lina – Uma nota de dez para cada (Registro no quociente. Ver Figura 6.16.)
Pesquisadora – Ao todo quantas notas você deu?
Lina – Oito.
Pesquisadora – De onde você tirou essas oito notas?
Lina – Dessas treze que eu tinha.
Pesquisadora (Retornando ao registro escrito). Então, Lina vamos registrar aqui logo
abaixo do três (casa das dezenas) essas dez notas que você juntou (faço uma adição) e colocar o
total treze. Depois, vamos tirar as notas que você distribuiu. Não são das treze que você tinha que
você tirou oito? (Olha para mim e diz que sim.) Aí vai ficar treze menos oito e sobra cinco. (Registro
uma subtração.) E agora, Lina o que é que você vai fazer?
Lina (Olha para as notas de cem. Fica quieta, em silêncio. Está pensando.) Eu
posso trocar essas três notas de cem, todas de uma vez, por notas de dez reais?
Pesquisadora – Pode? E quantas notas vão dar?
Lina Se pra primeira nota deu dez, então pra cada uma dessas (mostra as notas de
cem) também vai dar dez (Conta nos dedos a seqüência 10, 20, 30.). Vou pegar trinta notas de dez
reais.
Pesquisadora – E o que você vai fazer com essas notas que você pegou?
Lina Eu posso juntar com essas outras aqui (aponta as cinco notas de dez que
haviam restado da primeira distribuição.).
Pesquisadora Espera aí, deixa eu registrar o que você está fazendo. As notas de
cem viraram notas de dez. Então elas não vão mais estar aqui (aponto para a centena).
Lina – É. Pode riscar o três (centena).
Pesquisadora Elas viraram (refiro-me as notas de cem) trinta notas de dez reais
(registro na ordem das dezenas). a gente junta com essas cinco (registro uma adição) e fica
com trinta e cinco notas de dez. E agora, você tem quantidade de notas suficientes que para
distribuir pelo menos uma pra cada pessoa?
Lina – Dá mais de uma (refere-se a quantidade que pode dar para cada pessoa).
Pesquisadora – E quantas notas você acha que cada uma pode ganhar?
140
Lina – (Como que fazendo uma conta nos dedos.) Eu posso dar quatro notas pra cada
uma e ainda vai sobrar três notas de dez reais.
Pesquisadora – O que é que você ta dando?
Lina – Notas de dez reais.
Pesquisadora Então, aqui (aponto o quociente) eu vou colocar mais essas quatro
notas que você deu. Como você tinha dado uma nota de dez, lembra? Eu vou colocar aqui na
dezena embaixo desse um as outras que você deu agora.
Lina Aí, eu sei que sobrou R$ 32,00 (olha para o dinheiro). Agora é dividir de
novo. Se aqui, quando eu dividi trinta e cinco pra oito e deu quatro (aponta para o quociente) e
multiplicando deu trinta e dois, então vai dar quatro de novo.
Pesquisadora – Vai dar quatro o quê pra cada pessoa?
Lina Vai dar R$ 4,00. Eu podia ter trocado as notas de dez por nota de um, mas eu
já sei que quatro vezes o oito é trinta e dois. É o tanto que eu tenho.
Pesquisadora Depois que você deu então os últimos R$ 32,00 que você tinha com
quanto você ficou?
Lina – Com nada.
Pesquisadora Agora, eu vou escrever aqui (represento com a letra “U” a ordem das
unidades e escrevo quatro) o tanto que você deu para cada uma das oito pessoas e aqui (no
dividendo) o total que você deu ao todo. Presta atenção, porque eu escrevi esse quatro aqui
(apontando no quociente na ordem das unidades)?
Lina É porque eu não estou dando mais notas de dez reais, agora elas valem um
real.
Finda a explicação, concluo o registro mostrando para Lina que as
quantidades registradas na dezena (quociente) são adicionadas, totalizando 5
(cinco) dezenas e 4 (quatro) unidades para cada pessoa (ver Figura 6.16). Depois,
peço para que faça a conferência no material, confirmando se foi exatamente isso
o que cada um recebeu. Por fim, explico as nomenclaturas (dividendo, divisor,
quociente e resto) e o que cada uma significa na operação.
Deste exemplo, a constatação que fiz é que muitas vezes, e quem sabe
na maioria das vezes, as crianças não efetuam a operação como esperado pelo
professor porque não entenderam a organização espacial dos valores, o que não
necessariamente seja condição sine qua non para que a solução seja alcançada.
Além disso, acrescentada à falta de sentido para o aluno quando a
operação é apresentada isoladamente e fora de uma situação-problema, está a
141
indisponibilidade de algum material que possa ajudá-lo a refletir sobre o processo
resolutivo, procurando registrar no material algo que está no plano mental, mesmo
que tal registro no material não expresse diretamente o que será registrado
posteriormente por escrito.
Logo que concluí a reconstrução da produção de Lina, sem desprezar o
que havia feito, mas partindo de sua primeira produção, fizemos uma comparação
entre as produções. Lina observa a primeira, enruga a testa, não diz nada. Olhou
para a outra e sorri, transmitindo um ar de satisfeita, como quem dissesse: “Era só
isso”?
Até mesmo as operações subtrativas apresentadas na primeira
produção, que pareciam confirmar uma falta de compreensão por parte de Lina
em como operá-las, foram redefinidas num novo procedimento que revelou
claramente que a aluna compreende não as idéias subjacentes à subtração
como conceitos relacionados à adição (quando junta as quantidades
transformadas às existentes, fazendo a sobrecontagem
16
), à multiplicação
(quando é capaz de trabalhar com a adição de parcelas repetidas) e à divisão
(quando demonstra compreender a sua operacionalização a partir da noção de
quota/partilha).
6.6 Parece, mas não é. O que é então que Joyce está pensando?
Joyce é considerada uma aluna com muitas “dificuldades” na
aprendizagem em matemática. No mês de maio de 2005 completou 12 (doze)
anos de idade. Entrou para a escola em 1999, cursando o terceiro período do pré-
escolar aos 6 (seis) anos de idade. Fez a primeira série nos anos de 2000 e 2001.
Com defasagem idade/série de 2 (dois) anos, foi matriculada em uma Classe de
Aceleração da Aprendizagem/Alfabetização no ano de 2002. Em 2003 fez a
16
De acordo com Muniz (2004) é a capacidade que a criança tem em fazer uma adição de duas
parcelas, conservando a primeira e continuando a contagem a partir da segunda.
142
série. No ano seguinte foi matriculada na Classe de Aceleração da
Aprendizagem/Séries Iniciais e no ano de 2005, na terceira série.
O caso de Joyce não é único nem na turma e nem no sistema de
ensino local. Muitas outras crianças da rede pública de ensino, aqui no DF,
passam por esse processo de remanejamento entre as turmas regulares e as
classes de aceleração, por causa de sucessivas reprovações. Sem contar que
quando um aluno passa por uma classe de aceleração, seja ela qual for, e não é
acelerado, isto é, não alcança o desempenho considerado para avanço em pelo
menos uma série, ele volta para a série de origem.
Em outras palavras, se a criança foi reprovada dois anos seguidos na
primeira série e no ano seguinte foi matriculada em uma classe de aceleração,
caso não tenha avançado em seu desenvolvimento, ela volta para a primeira série
no outro ano, completando um ciclo de três anos na mesma série.
Todo este contexto só vem reforçar cada vez mais as concepções
esteriotipadas das crianças consideradas “com dificuldades”. As crianças
apresentam diferenças de desenvolvimento e aprendizagem, mas a situação na
qual se encontram (entre reprovações e classes de aceleração, ou seja o nome
que tiver), levam-nas a uma crença de que de fato não conseguem “aprender”.
Conseqüentemente, o professor desacredita de suas possibilidades de progresso,
e o mais grave, as próprias crianças passam a se ver e sentirem-se como
incapazes, “não inteligentes”, entregues a uma realidade (destino) que não pode
ser mudada.
”Será que realmente é assim?” “Será que sucessivas reprovações
podem atestar efetivamente uma deficiência no processo de aprendizagem, a
ponto de que as crianças não consigam aprender?” “O que significa aprender?”
“Como saber se uma criança aprendeu ou não?”
Questões como essas suscitam um acirrado e interminável debate
acerca das finalidades da educação, do papel social da escola, do papel do
professor, dos conteúdos curriculares e de sua adequação à realidade e às
necessidades dos alunos e do processo avaliativo.
143
Se adentrarmos qualquer uma dessas temáticas, com certeza o espaço
para o debate não será suficiente. Por outro lado, ao investirmos em trabalhos
investigativos que não se destinam a apontar culpados, mas em identificar causas
e propor possíveis soluções, teremos avançado em pelo menos um sentido
buscar conhecer elementos prováveis que interferem diretamente no processo
ensino-aprendizagem, remetendo-os a uma análise mais local, isto é, a uma
análise mais centrada na escola, mediante a atuação do professor para uma
posterior investida no plano de políticas públicas de educação.
Quando aqui neste espaço discutimos aspectos relacionados às
produções matemáticas de crianças ditas “com dificuldades” e até mesmo
daquelas que não são assim avaliadas, persegue-se um objetivo fundamental que
é o de compreender a forma como vêem, entendem e fazem matemática.
Segundo Muniz (2004b), toda criança é um ser epistêmico. Isto é, toda
criança ou sujeito tem condições de criação, de produção de algum tipo de
conhecimento.
Sendo assim, é preciso acreditar nesse ser epistêmico em seu fazer
matemática como quesito imprescindível para um trabalho mediático que busque o
entendimento do funcionamento das estruturas cognitivas imbricadas em cada
produção do sujeito.
Nessa busca, a análise do protocolo de Joyce permitiu a identificação
de suas habilidades, de suas potencialidades e de suas necessidades quanto à
aprendizagem de conceitos em matemática. O que antes era definido como
“dificuldade” passou a ser encarado como uma lacuna, em seu processo de
alfabetização matemática, perfeitamente possível de ser preenchida mediante
uma mediação e intervenção pedagógicas voltadas para tal fim.
A produção que se segue decorreu de atividade proposta em sala de
aula pela professora da turma. A atividade pedia que os alunos armassem e
resolvessem as operações. Sendo uma das alunas a que me interessava
acompanhar, visto ser considerada uma criança “com dificuldades” em
matemática, pedi à criança para ver como tinha resolvido as operações.
144
Considerando que o tipo de operação multiplicativa envolve uma
configuração espacial (quando com dois algarismos no multiplicador), quanto ao
registro do algoritmo mais complexa que as operações de adição e subtração, me
interessei em observar como Joyce faria.
Bem, a operação envolvia apenas um algarismo no multiplicador,
mesmo assim, chamou-me a atenção o fato de que a resolução da operação de
Joyce não revelasse que a mesma tivesse tido qualquer problema quanto ao
procedimento resolutivo.
A figura 6.18 registra a produção de Joyce. Esse registro foi transcrito
do caderno da aluna pela pesquisadora que lhe pediu para refazer a operação e
registrar por escrito, usando desenhos ou números ou o que achasse melhor,
como havia chegado ao resultado.
Figura 6.18. Transcrição da pesquisadora: operação resolvida por Joyce
Vale ressaltar no início da pesquisa a aluna mostrava-se muito tímida e
retraída. Não se apresentava para participar da resolução
17
das operações junto à
classe. Falava muito pouco e quando solicitada, pela pesquisadora, a explicar o
que pensara acerca de uma determinada operação, sentia muita dificuldade em se
expressar. Normalmente ficava de cabeça baixa, não olhava para a pesquisadora
e praticamente sussurrava, sendo às vezes, impossível entender o que falava.
17
A professora tinha por hábito fazer a correção coletiva das atividades. Escolhia alguns alunos
para irem ao quadro e resolverem as operações, tanto das atividades passadas para casa como
daquelas realizadas em sala. Fazia um rodízio para que todos os alunos pudessem participar, mas
alguns se recusavam, dentre eles Joyce.
145
Foi preciso construir primeiramente um tecido relacional com Joyce, de
maneira que ela pudesse confiar em mim. Não bastava, apenas, aproximar-me
dela. Era preciso que Joyce se aproximasse de mim, que sentisse segurança em
si mesma, que sentisse estar sendo acreditada e respeitada em seu saber e fazer
matemática.
Ao fazer a transcrição do caderno de Joyce, o constava do mesmo
qualquer registro pictórico ou de outro tipo que pudesse dar pistas que indicassem
como foi encontrado o resultado.
Quanto à organização espacial dos valores, parecia não haver qualquer
incompreensão da criança em termos de operacionalização dessa multiplicação.
Antes, porém, de proceder à mediação pedagógica, acreditei que a aluna tivesse
pensado em uma adição de parcelas repetidas, sendo, 122 + 122 + 122. Essa
constatação inicial deu-se em função de a operação não exigir da aluna o cálculo
com dois algarismos no multiplicador. Portanto, requeria um outro tipo de
organização espacial. Além disso, não havia a necessidade de efetuar uma
multiplicação, seguida de uma adição em decorrência do aparecimento de novos
agrupamentos entre os primeiros valores multiplicados entre si.
Entretanto, entre o que pensei e o que Joyce pensou há, ao mesmo
tempo, uma aproximação e um distanciamento. Aproximação e distanciamento
que considero não como julgamento, em termos de certo ou “errado”, em relação
à produção de Joyce, mas que entendo, no contexto do trabalho interpretativo,
como um aspecto que reforça a necessidade de comunicação da produção pela
criança. Necessidade esta que esclarece onde está o próximo e o distante entre a
análise e o real pensamento da criança.
Figura 6.19. Registro escrito feito por Joyce: como pensou a resolução da operação
146
Observando o registro acima é possível notar que Joyce pensou em
uma adição de parcelas repetidas (aproximação com o pensamento da
pesquisadora – 1ª hipótese de resolução), contudo, essa compreensão não se deu
em termos da quantidade total dada na operação, isto é, repetir o 122 por três
vezes.
Ao registrar essa idéia de adição de parcelas repetidas, Joyce
representou, inicialmente, os valores absolutos do numeral 122, operando-os
separadamente em parcelas repetidas (distanciamento em relação ao pensamento
da pesquisadora hipótese de resolução). Ela fez: 1+1+1; 2+2+2 e 2+2+2. Ou
seja, na estrutura do número, mas não no esquema de Joyce, as quantidades
registradas são, respectivamente, as dadas nas centenas, dezenas e unidades.
Dessa primeira análise depreende-se que aluna possa não ter o
conceito de número, o que interfere diretamente no procedimento de resolução
adotado soma dos valores absolutos em parcelas repetidas. Parece também,
que mesmo fazendo esse tipo de resolução, Joyce realizasse uma decomposição,
não de valores relativos, mas de valores absolutos.
“Mas o que foi que Joyce pensou?” “Que atividade cognitiva está
sustentando a sua produção?” “Se o resultado da operação está correto, por que
ao explicar o que pensou ela fez uma adição de valores absolutos?” “Joyce não
sabe diferenciar valor absoluto de valor relativo?” “Não compreendeu o que
significa o valor posicional no sistema de numeração decimal?”
Logo abaixo, a Figura 6.20 mostra o registro de uma segunda
explicação de Joyce a partir da mediação pedagógica feita pela pesquisadora. A
construção desse registro nasceu de entrevista feita a partir do primeiro registro
explicativo.
Figura 6.20. Ampliação da primeira explicação dada por Joyce
147
Para que a aluna chegasse a essa nova configuração do procedimento
que desenvolveu para resolver a multiplicação, a pesquisadora procedeu a um
diálogo, descrito a seguir.
Pesquisadora Muito bem Joyce, a sua operação está correta. Mas como foi que
você fez pra chegar a esse resultado (366)?
Joyce – Eu somei três vezes cada número.
Pesquisadora – Como você fez essa soma? (Faz o registro de 1+1+1; 2+2+2 e
2+2+2). Tudo bem! Então vamos ver aqui (aponto para a operação) o que é que você teria que
fazer. A operação é 3 vezes 122. Isso significa que você tem que somar o 122 por três vezes?
Joyce – É.
Pesquisadora Vamos ler junto comigo o valor que você tem que multiplicar
(apontando um a um, fazemos a leitura em conjunto). Agora, olha só. Você fez aqui (apontando o
registro da aluna) 1+1+1. O que quer dizer esse 1+1+1, quem é ele aqui nessa operação (indico o
122)?
Joyce – (Aponta para o numeral um que está na posição da centena). É este aqui.
Pesquisadora – Esse um aí vale quanto? Em que “casinha” ele está?
Joyce – Centena.
Pesquisadora Então eu vou escrever em cima dele a letra “C” para indicar que está
na centena. E esse dois (aponto o da ordem das dezenas) é o mesmo dois que está aqui (aponto
para o da ordem das unidades)?
Joyce – Não. Esse primeiro dois (o da dezena) vale vinte.
Pesquisadora – Por que ele vale vinte?
Joyce – Porque está na dezena.
Pesquisadora Agora eu vou escrever aqui em cima desse dois (o da ordem da
dezena) a letrinha “D” para indicar que ele está na dezena. Mas se ele está na dezena isso
significa que eu tenho o que na casa da dezena? Nessa primeira casa (centena) nós colocamos a
letra “C” porque você disse que o “um” está na centena. Quando um número está centena ele vale
quanto?
Joyce – Cem.
Pesquisadora Quer dizer que a quantidade que está escrita na centena significa que
eu tenho grupos de cem (Balança a cabeça afirmativamente)? E aqui na dezena, eu tenho o que?
Joyce – Grupos de dez.
Pesquisadora Então esse dois significa que eu tenho dois grupos de dez e por isso
ele vale vinte?
Joyce – É.
148
Pesquisadora certo. E esse outro dois (o da unidade). Ele ocupa que posição?
Qual é a “casinha” dele?
Joyce – A da unidade.
Pesquisadora Esse dois (o da unidade) vale o mesmo tanto que esse outro aqui (o
da dezena)?
Joyce – Não. Esse aqui (o da dezena) vale vinte e esse aqui (o da unidade) vale dois.
Pesquisadora Então como é que você vai escrever agora a multiplicação do 122 por
3?
Depois dessa entrevista Joyce fez o registro da multiplicação repetindo
o mesmo procedimento (ver Figura 6.20) adotado anteriormente. Primeiro, ela
inicia a multiplicação da esquerda para a direita (no primeiro registro: 1+1+1,
2+2+2 e 2+2+2; no segundo registro: 100+100+100; 20+20+20 e “XX” + “XX”
+XX”). Depois, tanto no primeiro como no segundo registro, ela conserva a adição
em separado dos valores multiplicados, sejam eles absolutos ou relativos.
Essa conservação no padrão de resolução presente no procedimento
de Joyce podemos chamar de invariante operatório na Teoria dos Campos
Conceituais. Em outras palavras, é a conservação de um conjunto de ações
cognitivas que torna o pensamento operatório, daí chega-se a compreensão de
que o conhecimento está em ação.
Nesta situação, mesmo adicionando parcelas repetidas mediante a
decomposição dos valores relativos dos algarismos no numeral dado, não há
porque não validar o conhecimento matemático expresso na produção de Joyce.
Por isso, ao iniciar a análise do protocolo afirmei que o pensamento de
Joyce aproximou-se e distanciou-se do meu, justamente como uma forma
provocativa de levar o leitor a perceber que é necessário que o pesquisador
educador ou educador pesquisador desloque o seu olhar sobre o que considera
padrão, para poder enxergar a criatividade, a dinamicidade e o conhecimento que
estão presentes em cada produção, ou seja, que busque entender o ponto de vista
do outro, colocando-se no seu lugar,assumindo a maneira de ver e entender as
coisas pela ótica do outro – o aluno.
149
Essa mudança de postura no processo de ensino e de aprendizagem
ou no contexto investigativo contribui para que sejam redefinidas concepções e
práticas avaliativas.
Isso equivale dizer que, por exemplo, no âmbito da aprendizagem em
matemática, o processo avaliativo assumiria um caráter mais processual,
formativo e não excludente, como ainda se tem visto.
6.7 Se a regra é assim, então todos seguem a mesma regra.
Tati, como será aqui chamada, é uma menina que tem um percurso
estudantil um tanto quanto tumultuado para a sua pouca idade. Nos documentos
escolares consta que fez a primeira rie em 1998 e a segunda série em 1999, na
época, chamadas de primeira e segunda Classes de Alfabetização (CA),
respectivamente. No ano de 2000 cursou a terceira série, sendo reprovada. Nos
anos seguintes, 2001 e 2002 foi matriculada numa Classe de Aceleração da
Aprendizagem/Alfabetização. Em 2003 foi remanejada para uma Classe de
Aceleração da Aprendizagem, agora, a de Séries Iniciais e em 2004 fez a terceira
série novamente, sendo outra vez reprovada.
Agora, em 2005, continua na terceira série estando com 15 anos de
idade. De acordo com a professora, é uma aluna que apresenta “dificuldades” na
aprendizagem de conceitos matemáticos.
Ao observar os registros da escola, vi que o desenvolvimento estudantil
de Tati foi ocupado por um longo período nas séries destinadas a trabalhar os
conceitos básicos da alfabetização em português e em matemática. Contando o
tempo na e séries mais os anos na Classe de Aceleração da
Aprendizagem/Alfabetização, Tati passou 4 (quatro) anos em turmas de
alfabetização.
150
Essa informação remete-nos a uma análise de como vem sendo tratada
a questão da aprovação e da reprovação dos alunos, sobretudo, nas duas
primeiras séries do Ensino Fundamental.
“Que dificuldades o professor tem enfrentado e estão interferindo
diretamente no desenvolvimento de uma prática pedagógica que dê conta de
atender as necessidades dos alunos?”
Mais do que isso, questiona-se: “Como o trabalho pedagógico está
organizado?” “Quais são os fundamentos do projeto político pedagógico da
escola?” “Que projetos são elaborados, desenvolvidos e implantados ou
reformulados no sentido de sanar as dificuldades encontradas quanto à situação
dos alunos que passam por sucessivas reprovações?”
A produção de Tati, na figura a seguir, serve para mostrar em que
sentido devemos caminhar para responder estas questões. A produção foi
registrada em situação de prova bimestral, o 2º bimestre.
Figura 6.21. Resolução da divisão seguindo o comando: “Arme e efetue”.
A análise do protocolo de Tati revela que a aluna está usando
eficientemente as regras ensinadas na escola para resolver uma divisão. Dentre
elas, a que diz respeito ao registro no quociente de um valor máximo que
multiplicado pelo divisor possa chegar a uma resposta igual ou o mais perto
possível do valor do dividendo.
151
Na verdade, antes de proceder ao ensino do conteúdo de divisão, os
alunos são ensinados a decorar a tabuada de multiplicação. Aqueles livrinhos,
hoje mais “bonitinhos”, antigamente impressos em papel semelhante ao usado em
jornal, apresentam uma sucessão de multiplicações de 1 (um) a 10 (dez),
trabalhadas em separado como tabuada de 2 (dois), de 3 (três), de 4 (quatro) e
assim sucessivamente, com um valor máximo no multiplicador que é 10 (dez). Ou
seja, a seqüência numérica termina sempre com algum algarismo de 1(um) a 10
(dez) - multiplicado por 10 (dez).
Nesta forma de ensino, quando é ensinada uma outra operação
18
,
sobretudo se esta nova operação corresponde à inversa da anterior, é normal que
os alunos façam uma “generalização”, aplicando as regras de uma operação em
outra.
Essa aplicação de regras demonstra que o aluno faz as operações de
forma tão mecanizada que não se preocupa em pensar numa outra forma de
chegar a uma solução. O modelo parece ser o mais eficiente que a criança
acaba ignorando outros registros que porventura venha a fazer enquanto tenta
resolver a operação.
Prova disto foi a reação de uma aluna que, depois de haver feito alguns
rabiscos em seu caderno, bem como, outras operações para chegar a um
resultado, apagou tudo. Ao lhe perguntar por que não havia deixado aquelas
anotações, me disse que não era importante, porque a professora não iria se
preocupar em ver aquilo.
Desta maneira, percebe-se que o aluno é levado a adotar o modelo
canonizado, sem descartar, é claro, a importância também de seu aprendizado,
como o único jeito que dá certo. Daí, se ao tentar aplicar fielmente o modelo, o seu
raciocínio não consegue ressignificá-lo, ele vai, de alguma maneira, construir uma
estratégia a partir do modelo, misturando as regras de resolução das diferentes
operações ou usando as regras cabíveis parcialmente.
18
Ressalte-se que normalmente, as operações são ensinadas separadamente. Primeiro as aditivas
sem agrupamento e depois com agrupamento. Em seguida, são trabalhadas as subtrativas sem
desagrupamento e depois com desagrupamento. Em terceiro, as multiplicativas com um algarismo
no multiplicador, sendo posteriormente, aumentado esse número. E, por fim, as de divisão com um
algarismo no divisor e depois com mais de um.
152
O registro de Tati, por exemplo, ao resolver a operação 96 dividido por
5, revela tal aspecto. A aluna registra no quociente o maior valor trabalhado na
tabuada de multiplicação, colocando o 10 (dez) como a quantidade total que ao
ser multiplicada por 5 (cinco) tem como produto 50 (cinqüenta). Sutraindo, 50
(cinqüenta) de 96 (noventa e seis), fica com um resto de 46 (quarenta e seis).
Porque Tati não continua a divisão? Se ela foi capaz de fazer 10 vezes
5 igual a 50 (cinqüenta), poderia ter feito depois, 9 vezes 5 igual a 45 (quarenta e
cinco) e subtraindo este valor de 46 (quarenta e seis), teria como resto 1 (um)?
Na verdade, a não continuidade é fruto de uma dificuldade de ordem
didática. Muitas vezes, o problema que as crianças enfrentam quando fazem o
registro do algoritmo convencional nasce da forma como o mesmo é trabalhado
em sala de aula. Os valores dos algarismos no dividendo são lidos na divisão
como valores absolutos, assim como Tati fez inicialmente. Isto é, ao ler-se a
divisão, é dito noventa e seis dividido por cinco, mas ao proceder às etapas de
resolução, lê-se nove dividido por cinco, seis dividido por cinco sem tratar do
significado de cada algarismo na estrutura numérica
19
.
Essa prática de ensino termina por gerar um “vício”. Exatamente porque
a criança não é levada a compreender os conceitos associados à estrutura
numérica e relacionados à operação, ela aprende a lidar com as operações
isoladamente e fora de contexto significativo. Daí, acostuma-se a simplesmente
reproduzir procedimentos sem entender sua necessidade ou finalidade.
Acrescente-se a isto, o fato de que, a criança não trabalha com algum
tipo de material ou ainda, não construiu o conceito de número, ignorando, ao
realizar a operação, o valor posicional dos algarismos. Ela se habitua a não refletir
sobre a quantidade que está sendo dividida. Decorrente disto, a organização
espacial dos resultados encontrados no algoritmo convencional causa confusão na
cabeça da criança e ela não sabe onde registrar os valores.
Por isso, Tati não continuidade à sua divisão. Com certeza ela sabia
que multiplicando 9 por 5, obteria como resultado 45 (quarenta e cinco),
19
Isso revela o quanto a noção da estrutura do número do sujeito epistêmico influencia na
determinação dos esquemas operatórios.
153
perfeitamente possível de ser subtraído de 46 (quarenta e seis), sendo este último,
o resultado encontrado depois que subtrai 50 (10x5, sendo respectivamente,
divisor vezes quociente) de 96 (noventa e seis). Mas onde ela colocaria o 9 (nove)
no quociente? Ao lado do 10 (dez), registrando 109 (cento e nove)? Ou embaixo
do 10 (dez), sem, contudo, deduzir que esse valor deveria ser acrescido ao 10
(dez), tendo como resultado no quociente 19 (dezenove)?
Embora não procedendo de nenhuma das maneiras conforme
colocadas nos questionamentos acima, Tati cumpriu com o ritual dividir,
multiplicar e subtrair. Ela realizou aquilo que para ela é “dividir”.
Ainda, na mesma prova, numa outra operação de divisão Tati repete a
mesma estrutura de resolução, o que confirma a conservação do padrão
operatório desenvolvido nas duas situações. Isto é de importância neste estudo,
pois o esquema de pensamento não pode ser considerado isoladamente em uma
única situação (TCC). O esquema diz respeito às ações invariantes presentes em
uma classe de situações.
Portanto, na análise, implica que seja observado se o esquema de
pensamento é aplicado em mais de uma situação. Desta maneira, com base nos
princípios da Teoria dos Campos Conceituais, é possível identificarmos onde está
a articulação entre teoria e prática.
Figura 6.22. Outra operação feita por Tati: conservação de procedimentos
Fazendo a comparação do registro de Tati na primeira situação e agora
nesta, observou-se que a resolução segue a mesma linha de raciocínio. Ou seja,
denuncia a presença de determinados invariantes operacionais.
154
Os invariantes operatórios (TCC), conceito em ato e teorema em ato,
podem ser caracterizados, respectivamente, como entendimento de que é preciso
multiplicar o divisor por um valor ximo para poder chegar o mais perto possível
do valor registrado no dividendo, em seguida, é preciso registrar o valor
encontrado no quociente, multiplicá-lo pelo divisor, subtraí-lo do dividendo,
encerrando a operação.
Bem, se Tati consegue operar corretamente até onde pôde ser
analisado seu registro, por que seu procedimento não é validado pelo professor,
pela escola? Por que a criança o é estimulada a pensar sobre o que está
fazendo? Por que não é instigada a testar e confrontar suas hipóteses?
Infelizmente, não foi feita a mediação pedagógica com esta aluna, mas
com certeza, caso tivesse ocorrido, Tati teria avançado em suas estruturas de
pensamento.
Por fim, ficam para debate essas questões: “O que é que tem sido
considerado como elemento de aprendizagem em matemática?” “Como é tratado
aquilo que o sujeito já conseguiu construir?” “Como o professor deve agir frente às
aprendizagens que o sujeito ainda não alcançou?”
6.8 É assim que Rebeca subtrai quando representa no material dourado
A produção constante no protocolo que está sendo analisado é de
Rebeca 9 anos. A aluna é nova na série. Não foi possível identificar pelos
documentos escolares quando iniciou sua escolarização. Mas pude deduzir que
pela sua data de nascimento não foi reprovada nas séries anteriores. Embora
muito quieta, sempre que solicitada, participou ativamente das aulas.
De acordo com a professora, a aluna apresenta dificuldades em
resolver problemas e operações em matemática. Dessa avaliação, me despertou
uma dúvida quanto ao protocolo ora analisado. Mesmo assim, considerei a
155
produção de autoria de Rebeca depois da explicação que me dera de como
resolvera.
A atividade proposta foi realizada em grupos formados, cada um, por 4
(quatro) alunos, orientados pela pesquisadora e pela professora na realização da
atividade. Ressalte-se que não foi possível observar do início ao fim a resolução
das operações de cada grupo, tendo em vista a necessidade de auxílio em todos
os grupos, até mesmo para explicação de como trabalhar com o material.
20
Aos grupos foram distribuídos diferentes materiais: ábaco, material
dourado, palitos, canudinhos. Pedimos que resolvessem um tipo de operação
usando o material. As operações envolviam adição e subtração.
Além disso, os grupos deveriam registrar no material
21
o procedimento
desenvolvido para resolução da operação, demonstrando como haviam chegado
ao resultado. Também solicitamos que fizessem o registro do grupo em cartaz
para posterior socialização, quando cada grupo explicaria para os demais colegas
como resolveram a operação sugerida.
Apesar da solicitação de que os grupos fizessem o registro direto no
cartaz, alguns alunos resolveram a operação em folhas avulsas, mas
compartilhando o material enquanto resolviam. Nem todos registraram nessas
folhas o procedimento desenvolvido com o material utilizado. Desta maneira,
mesmo que todos no grupo tenham efetuado a operação, em alguns casos, obtive
apenas o registro de um aluno que foi partilhado pelo grupo.
Dentre esses registros, escolhi o de Rebeca. O meu interesse consistiu
na necessidade de saber o procedimento desenvolvido, visto que, apenas havia
feito a representação no algoritmo convencional, mas não revelaram como chegou
ao resultado trabalhando com o material dourado.
Vejamos na Figura 6.23 o registro feito por Rebeca para resolver a
operação envolvendo uma subtração:
20
Nenhum dos alunos conhecia o ábaco, por isso alguns sentiram muita dificuldade em manuseá-
lo.Outros não entendiam como funcionava o material dourado. O trabalho com palitos e
canudinhos foi mais fácil.
21
O material do qual a criança dispõe ou lhe é oferecido para resolver uma determinada operação
também é uma forma de registro, pois caracteriza o que a criança pensou.
156
Figura 6.23. Produção de Rebeca partilhada pelo grupo
O registro da aluna demonstrou as estratégias de resolução ensinadas
na escola. A subtração envolve uma atividade de desagrupamento. Isto é, o valor
total a ser subtraído mesmo menor que o valor inicial, tem uma quantidade a ser
subtraída numa determinada ordem no subtraendo maior que a quantidade na
mesma ordem no minuendo. Portanto, é necessário que da ordem seguinte no
minuendo, seja retirado um agrupamento para que a subtração possa ser
resolvida.
Neste caso, a subtração 63 26 revelou que na primeira ordem
(unidade), a quantidade a ser subtraída, 6 unidades, era maior que a quantidade
disponível nessa mesma ordem, ou seja, 3 (três) unidades. Vendo que não
poderia resolver três menos seis, a aluna recorreu ao desagrupamento de uma
dezena. Fazendo um risco sobre o numeral seis, indica que uma dezena foi
subtraída (desagrupada), restando cinco dezenas (ver Figura 6.23). À dezena
subtraída foram adicionadas as três unidades existentes no valor inicial,
totalizando assim treze unidades. Então, a aluna resolve treze menos seis e chega
a diferença, que é sete.
Em seguida, Rebeca retomou a operação e fez a subtração na segunda
ordem, isto é, nas dezenas. Ela resolveu cinco menos dois, chegando ao total de
três (dezenas). Assim, o resultado final da operação 63 – 26 foi 37 (trinta e sete).
Como destacado em alguns estudos (SCHLIEMANN, 1998; MORO,
2005; MUNIZ, 2004a, 2004b) vemos que o ensino de matemática nas séries
157
iniciais parece estar voltado para a apreensão de regras e procedimentos que
muitas das vezes não levam a criança a uma reflexão sobre os conceitos que
estão sendo trabalhados. Desta maneira, observa-se a reprodução mecânica de
procedimentos que normalmente não traduzem, com precisão, como a criança
chegou ao resultado, tenha ela trabalhado ou não com algum tipo de material.
O exemplo de Rebeca revelou uma possível reprodução mecânica de
procedimentos presentes nos algoritmos convencionais. Tal fato foi constatado
com maior clareza quando pedi à aluna que me explicasse, demonstrando com o
material como fez a operação, uma vez que seu registro não deu qualquer pista de
como resolvera usando o material dourado.
Espontaneamente, Rebeca não iniciou a resolução pela primeira ordem,
ou seja, pela “casa” das unidades, mas sim, pela ordem das dezenas. A figura
6.24 mostra como a pesquisadora registrou o procedimento da criança enquanto a
mesma explicava manipulando o material dourado.
Figura 6.24. Registro da pesquisadora: o procedimento desenvolvido por Rebeca no material
Quando Rebeca representou com o material dourado a quantidade 63,
percebeu que dispunha de seis barras com 10 (dez) unidades (dezenas) e três
cubos soltos (unidades). Então, como não era possível fazer três menos seis, ela,
158
imediatamente, pegou as duas dezenas do 26 (vinte e seis) e retirou de 6 (seis)
dezenas, restando quatro dezenas (40).
Em seguida, das quatro dezenas restantes, tirou uma dezena, sobrando
três dezenas (30). A dezena que foi retirada das quatro dezenas que sobraram da
primeira subtração (60 20) é substituída por 10 (dez) unidades. Sem adicionar
essas 10 (dez) unidades com as 3 (três) que possuía, Rebeca pegou as 6
(seis) unidades do 26 (vinte e seis) e retirou daquelas 10 (dez) unidades, sobrando
4 (quatro). Ao chegar nesta etapa, ela já subtraiu 26 (vinte e seis) de 63 (sessenta
e três).
Para finalizar a resolução da operação, Rebeca juntou as quatro
unidades que restaram da segunda subtração *(10 6) com as unidades que
possuía inicialmente, ou seja, três. Deu o total de 7 (sete) que foi, posteriormente,
adicionado às dezenas que haviam sobrado, quando fez 40 10 = 30. Assim, o
resultado final foi obtido com a adição de 30 + 7 = 37.
A descoberta que fiz a partir dessa análise foi que, quando manipulando
um determinado tipo de material, a criança passa a explorar todas as
possibilidades de resolução que o mesmo possa oferecer, conforme expresso na
figura 6.24.
Porém, quando o material não permite, pelas suas próprias
características, que os procedimentos a serem desenvolvidos sejam compatíveis
com os ensinados na escola, a criança com base em seus conhecimentos prévios,
cria outras estratégias que não poderiam ser exploradas se ficasse limitada a fazer
pelo modelo convencional.
Um outro aspecto que passo a levantar é que esse tipo de operação
subtração com desagrupamento – da forma como é trabalhado na escola – não
para tirar, “pede emprestado” cria obstáculos didáticos quanto à compreensão
por parte da criança de que, na verdade, ela dispõe não de valores isolados, como
por exemplo, no 63 (sessenta e três), ela não tem 6 (seis) e 3 (três), mas sim
sessenta e três unidades das quais é perfeitamente possível retirar vinte e seis
unidades.
159
Essa dificuldade se torna mais perceptível quando na quantidade
representada no minuendo aparece o 0 (zero), por exemplo, 100 28 = ?. A
criança pode raciocinar da seguinte maneira: se o posso fazer zero menos oito
(0 8), faço o contrário, oito menos zero (8 0). Daí, normalmente, se em
operações deste tipo, a criança repetir no resultado, a quantidade que deveria ter
subtraído.
Portanto, o trabalho em sala de aula permeado com situações
significativas, com um material que sirva de auxílio e com uma mediação
competente leva, de fato, a criança a desenvolver suas estruturas cognitivas,
chegando a níveis cada vez mais complexos de pensamento.
Foi a partir do diálogo estabelecido com a criança que pude
efetivamente perceber e entender que a resposta dada nessa operação, embora
não despertasse estranheza nem em mim nem na professora, sequer
representava a riqueza de pensamento presente nas suas construções.
É preciso, portanto, desenvolver essa prática na pesquisa e em sala de
aula como elemento necessário a uma proposta de avaliação processual,
diagnóstica, formativa e a um processo de ensino e aprendizagem de sucesso.
6.9 Como fizemos no material?
Dentre os aspectos que vêm sendo amplamente debatidos nesta
investigação, quero agora destacar dois. O primeiro refere-se à importância de um
processo de ensino em matemática pautado na apresentação de situações-
problema e, o outro diz respeito à investigação/análise dos procedimentos
desenvolvidos pela criança, apoiados em algum tipo de material.
Essa ênfase centra-se basicamente num entendimento inegável,
confirmado até aqui, que quando os conceitos são trabalhados dentro de uma
situação-problema, é requerida do sujeito uma atividade cognitiva que o leve a
estabelecer um conjunto de relações matemáticas, que por sua vez, apelam para
160
a utilização de esquemas validados, bem como, a articulação com outros
conceitos. Além disso, a oferta de uma base material no processo de resolução da
situação-problema evidencia os procedimentos desenvolvidos pelo sujeito,
favorecendo a compreensão da ação mental e sua representação no material,
anteriormente ao registro simbólico.
O protocolo a seguir é fruto de uma atividade proposta pela
pesquisadora e professora com um enfoque voltado para a realização de uma
operação tendo uma base material para registrar o procedimento desenvolvido.
A atividade consistia em um trabalho de grupo em que os alunos
resolvessem uma operação que seria registrada no quadro pela pesquisadora e
discutissem entre si, como resolveriam.
Para tanto, foram oferecidos para cada grupo diferentes materiais
ábaco, material dourado, canudinhos, além de metade de uma folha de papel
pardo
22
e pincel atômico na qual deveriam registrar o modo de resolução da
operação para posterior socialização.
Nesse dia, 11/05/05, estavam presentes 22 (vinte e dois) alunos.
Distribuídos em grupos compostos por 4 (quatro) alunos cada, totalizando 5
(cinco) grupos com 4 (quatro) e 1 (um) grupo com 2 (dois) alunos. Pedro e Tiago
formaram o dueto cujo protocolo foi analisado.
Pedro estava, na época em que a atividade foi realizada, com 9 anos de
idade. De acordo com a professora não apresentava “dificuldades” quanto à
aprendizagem em matemática. Consta dos documentos escolares que não foi
reprovado em nenhum ano, estando em situação regular na série, ou seja,
cursando com a idade base – 9 anos, a terceira série.
Tiago completara 9 anos poucos dias antes da realização da atividade.
Também o era, segundo a professora, um aluno com “dificuldades” em
matemática. Iniciou o período de escolarização aos 6 anos de idade em 2002 e
não foi reprovado em nenhuma série.
22
Este papel é assim chamado em função da cor que normalmente é alaranjada ou em tom
próximo ao marrom. Além disso, de um lado é áspero e do outro liso. Seu tamanho é de
aproximadamente 56 X 96 cm.
161
Logo abaixo, no registro escrito, essas crianças procuraram mostrar
como haviam resolvido com o material a resolução da operação 32 18 = 14.
Acrescente-se que os mesmos receberam o material dourado para trabalharem
conjuntamente.
Figura 6.25 Registro feito pelos alunos: trabalhando com material dourado
Não foi feito um trabalho de mediação pedagógica após a apresentação
pelas crianças de seu registro, até mesmo porque ao iniciarem o procedimento a
pesquisadora os acompanhava, explicando que o deixassem de registrar no
papel tudo o que iam fazendo, cada passo.
A partir do registro escrito feito pelos alunos foi possível observar que o
mesmo expressa, embora não totalmente, um conjunto de ações, em termos de
procedimentos, que, com certeza, não teriam sido explorados se a resolução
estivesse limitada ao algoritmo convencional. Isto porque essas ações manifestam
a exploração das formas possíveis (caminhos) de resolução a partir do material.
Desta maneira, o professor e/ou pesquisador terão a possibilidade de
compreender que esses caminhos não se revelam quando se atenta somente para
a resposta dada no algoritmo convencional. Este aspecto é altamente relevante
frente ao nosso objeto de estudo: compreender como se constrói o conhecimento
matemático mediante a análise das produções das crianças por meio das quais
são revelados seus esquemas de pensamento a partir do uso, sentido e
interpretação que fazem dos “modelos” convencionais ensinados na escola para
resolução de problemas matemáticos.
162
Como Pedro e Tiago usaram o material dourado
23
, vê-se claramente,
pelo registro escrito, que a representação inicial feita no material foi a de separar a
quantidade 32 (trinta e dois) da qual subtraíram 18 (dezoito). Assim sendo, os
alunos pegaram três “barrinhas”, representando as dezenas e dois “cubinhos”
soltos, representando as unidades.
Figura 6.26. Possibilidade de organização do material a partir do registro dos alunos
Ao iniciarem a resolução, os alunos, com base no material, o fizeram
em sentido contrário ao ensinado na escola. Eles registram a resolução da
subtração da esquerda para a direita e não da direita para a esquerda.
Figura 6.27. Indicação da pesquisadora: início da resolução – da esquerda para a direita
Como a operação (32 –18 = 14) requer um desagrupamento, tendo em
vista, o fato de que na ordem das unidades a quantidade existente (2) não permite
que sejam retiradas 8 (oito) unidades; no modelo convencional, obrigatoriamente,
23
A observação da produção matemática revela-nos o quanto a estrutura do material
representacional das quantidades numéricas acaba por influenciar na produção de esquemas
mentais. Isso é importante para o conhecimento do professor, ou seja, indicando também a
necessidade de oferta de material.
163
o aluno deveria proceder ao registro de que tal procedimento não é possível.
Normalmente, os alunos fariam um traço sobre o numeral 2 (dois), e logo acima do
mesmo registrariam a quantidade 12 (doze), indicando que da ordem das dezenas
foi retirada uma dezena e agrupada na unidade, procedendo, em seguida, à
subtração 12 – 8 = 4.
Entretanto, o material é estruturado de forma que a ação sobre ele não
leva os alunos a esse raciocínio. Ao invés disso, eles retiram da ordem das
dezenas uma dezena, operando na verdade 30 10 = 20. Isso significa que do
total 18 (dezoito) eles já tiraram 10 (dez), faltando, ainda, tirar 8 (oito) unidades.
Figura 6.28. Procedimento realizado, embora não registrado
Continuando, os alunos registram a operação 22 8 (ver fragmento do
registro logo abaixo), sem, no entanto, indicarem que o valor 22 (vinte e dois) é
resultado da adição de 20 + 2 (não registrada no papel), e que pode ser
identificado como sendo, respectivamente, derivado da operação 30 10 (ver
Figura 6.28) e o 2 (dois) que é a quantidade de unidades existentes em 32 (trinta e
dois).
Figura 6.29. Registro no papel sem indicar o procedimento de resolução para 30-10+2, mas
apenas o resultado
164
Depois, as crianças escreveram 20 10 + 2. A partir da indicação da
subtração de uma dezena, percebe-se que há pistas da transformação dessa
dezena em 10 (dez) unidades a fim de que pudessem continuar com a resolução.
6.30. A subtração de uma dezena, indica sua transformação em unidades
Em seguida, Pedro e Tiago registraram 12 + 1 + 1 = 14 (ver Figura
6.31). A partir da estrutura do registro, percebe-se que eles adicionaram as duas
unidades que dispunham inicialmente à dezena resultante da subtração 20 10.
Portanto, o resultado parcial é 10 + 2 = 12.
Posteriormente, atentando para o registro 1 + 1, vê-se que os alunos
usaram um outro tipo de notação para indicar onde está o resultado da subtração
10 8, bem como, a transformação da dezena, que fora subtraída de 20 (vinte),
em dez unidades. Assim, a quantidade restante (2) é registrada por meio da
adição de um mais um (1 + 1), diferenciando-se da mesma quantidade constante
no total 32, que é registrada pelo numeral 2.
Figura 6.31. Esquema explicativo elaborado pela pesquisadora a partir da análise da produção
165
As conclusões tiradas a partir desse exemplo indicam que, utilizando o
material, o aluno é levado a desenvolver procedimentos outros não esperados
pelo professor. Assim, a estrutura do material influencia fortemente as ações
cognitivas dos sujeitos que dele se utiliza para resolver determinada situação.
Além disso, o aluno busca representar no material as etapas de
resolução da operação, valendo-se do registro escrito para demonstrar, quando
possível, as transformações ocorridas (mesmo que parcialmente) durante o
processo. Neste caso, a operação (20 10) indica o desagrupamento de uma
dezena e sua transformação em unidades que é expressa no registro 1 + 1. Fica
subtendida a subtração 10 – 8, embora não registrada no papel.
Um outro aspecto importante a ser levantado é o fato de se incentivar e
pedir as crianças que não deixem de registrar o que estão pensando enquanto
resolvem a operação, pois os seus registros constituem fonte importante para o
pesquisador/professor acerca das operações mentais realizadas, favorecendo a
percepção e identificação de seus esquemas de pensamento. Enfim, contribuem
para a compreensão do processo de construção do conhecimento matemático,
revelando as interpretações das crianças diante de uma determinada situação.
6.10 Não deu? “Pede emprestado”.
“Se uma criança apresenta alguma dificuldade na aprendizagem, o que
essa dificuldade quer dizer?” “Onde está a sua origem?“O que ela representa no
processo educativo?”
Tais questionamentos surgiram a partir da análise dos protocolos.
Mediante a interpretação da produção das crianças foram observados aspectos
que nos remetem a uma reflexão mais ampla sobre o processo de ensino e de
aprendizagem. Isso porque ao compreender o sentido cognitivo da produção das
crianças, por vezes, reconheci não apenas suas construções, mas também
identifiquei falhas no processo de alfabetização matemática.
166
Quero dizer com isso que, mesmo que a criança apresentasse alguma
dificuldade, essa não se justificava somente pelo registro feito pelo aluno, mas
apontava para a existência de uma lacuna nas etapas anteriores do processo
educativo realizado pela escola.
É importante ressaltar que, embora a criança avançando nos estudos
com ou sem reprovações, suas “dificuldades” expressavam que determinados
conceitos não foram compreendidos devidamente. Portanto, fica a lacuna. “A
criança não compreendeu porque o ensino não promoveu esse processo?” “Ou a
criança não compreendeu porque o seu processo de aprendizagem não foi levado
em conta?” “Ou ainda, terá sido em função de obstáculos didáticos, ontológicos ou
epistemológicos?”
Desta maneira, infelizmente, o que se pode ver é a perpetuação e
manutenção de um ciclo caracterizado basicamente em um pressuposto, a saber:
o professor ensina, o aluno aprende; o professor não compreende a aprendizagem
do aluno, então o aluno não aprendeu.
O que pode ser observado é que as práticas escolares, em relação ao
ensino e aprendizagem em matemática, revelam uma grande dificuldade por parte
do professor em entender toda a complexidade que envolve o ensinar e o
aprender.
A maioria dos educadores, não das séries iniciais, como também os
de área específica, talvez, estes mais ainda, pouco sabem ou leram, ou ouviram,
ou sequer entendem como acontece o processo de aprendizagem em matemática.
E mais, na maioria das vezes não sabem como trabalhar os conceitos
matemáticos em sala de aula de modo a ajudar os alunos na formação/construção
(e não reprodução mecanizada) dos mesmos. Isso torna o conhecimento de
estudos desta natureza vital para a formação do professor.
Por isso, as crianças passam por incompreendidas, “com dificuldades”
na aprendizagem e o mais grave, não são em sua maioria acompanhadas como
deveriam, pois, infelizmente, no dia-a-dia do ensino não é feito um trabalho de
mediação pedagógica eficiente.
167
O protocolo de Joyce retrata bem esse contexto de crianças
consideradas pela escola “com dificuldade”. Na concepção deste estudo
investigativo não as consideraamos “com”, mas em “situação de dificuldade”.
A produção de Joyce, quando realizou uma subtração envolvendo
desagrupamento, nos mostra que o procedimento desenvolvido deriva de sua
concepção de número. Portanto, o procedimento desenvolvido se articula com
concepções individuais (implicamento do sujeito), com a situação (contexto), com
o material (outra forma de registrar procedimentos) e com as estruturas cognitivas
necessárias que o sujeito dispõe ou o para resolver um problema
(conhecimentos prévios).
Figura 6.32. Joyce aplica a regra do “não deu, pede emprestado”.
Joyce realizava uma atividade em sala com o comando: “Arme e efetue
as operações.
24
”. Ao lado da operação armada estava feito o registro pictórico
(com tracinhos) que explicava como ela achou os valores registrados indicados na
subtração (o resto ou diferença).
A aluna iniciou a resolução da subtração pela ordem das unidades. Ela
operou 7 3 = 4. Ao lado da operação, seguindo a ordem de cima para baixo, foi
24
Atividades do tipo “Arme e efetue” podem ser consideradas sem significado sócio-cultural e prático. Uma
vez que nas atividades do dia-a-dia o sujeito lida com as operações, sua ão mental não se detém em fazer
esse tipo de representação.
168
feito o registro pictórico desse procedimento. Joyce fez 7 (sete) tracinhos e depois
riscou, um a um, 3 (três) tracinhos, conforme figura abaixo.
Figura 6.33. Transcrição da pesquisadora: o registro pictórico explicando o
procedimento
Em seguida, resolveu na ordem das dezenas, 9 (nove) menos 0 (zero).
Observando o registro pictórico, percebe-se que não qualquer indicação ou
marcação da criança referente a esse cálculo. Consta apenas, o resultado, 9
(nove).
Figura 6.34. Apontamentos feito pela pesquisadora no registro pictórico de Joyce
Posteriormente, operando com as quantidades na ordem das centenas,
Joyce se deparou com um obstáculo. Como resolver 4 - 8 =? Para ela não haveria
169
como chegar a uma solução, pois não dava para tirar 8 (oito) quando tinha 4
(quatro).
É aqui que entra a utilização da regra ensinada tradicionalmente na
escola, “não deu, pede emprestado”, e que é tratada de forma mecânica,
desprovida de significado das quantidades numéricas. Joyce revelou mediante seu
registro não ter compreendido o que quer dizer o “pede emprestado”. Para ela não
estava claro a necessidade de realizar um desagrupamento na ordem
imediatamente seguinte (isto é, na ordem das unidades de milhar) à qual estava.
Em outras palavras, a aluna parecia não entender que, naquele
momento, precisaria desagrupar uma unidade de milhar e transformá-la em 10
(dez) grupos de 100 (cem) para, então, juntar com as 4 (quatro) centenas que
tinha, totalizando 14 (quatorze) centenas. Desta maneira, poderia proceder a
resolução de 14 – 8 = 6.
O que Joyce pensou e fez então? De fato, ela “pediu emprestado”,
porém, não desagrupou uma unidade de milhar para transformá-la em centenas,
antes, subtraiu do numeral 7 (sete), na ordem das unidades de milhar, a
quantidade 4 (quatro). Aqui, a aluna estava lidando com os valores absolutos e
não relativos (ver Figura 6.34).
Isto equivale a dizer que Joyce pensou da seguinte maneira: “como não
posso tirar 4 (quatro) de 8 (oito), basta pedir 4 (quatro) emprestado ao 7 (sete)
25
,;
juntar com o 4 (quatro) que tenho; então vai dar 8 (oito). Agora, eu posso
resolver 8 – 8 = 0”.
O registro pictórico de Joyce demonstra claramente a operacionalização
de tal pensamento. Logo após o primeiro registro com tracinhos, a aluna não fez o
registro 4 (quatro) menos 8 (oito). Inicialmente, fez 4 (quatro) tracinhos. Depois,
fez mais abaixo (fazendo a leitura de cima para baixo) um novo registro.
25
Ao pedir 4 (quatro) emprestado, na unidade de milhar, para o 7 (sete), Joyce tem claramente a
noção de que era o que lhe faltava para completar 8 (oito) a fim de que pudesse resolver 8 (oito)
menos 8 (oito).
170
Figura 6.35. Registro pictórico de como Joyce “pede emprestado” com indicações da pesquisadora
O registro pictórico orienta as etapas de resolução que desenvolveu. Na
figura acima fica evidente a subtração feita por Joyce, 7 4 = 3, sendo que a
quantidade subtraída (4) seria adicionada à outra que havia na ordem das
centenas.
Continuando, Joyce fez um traço no numeral 7 (sete), conforme pode
ser visto, logo abaixo, registrando acima do mesmo o numeral 3 (três) como
resultado da subtração ( 7 – 4 = 3 ) que acabara de fazer e escrevendo a
quantidade que subtraiu, isto é, 4 (quatro), logo acima do numeral 4 (quatro)
indicado na ordem das centenas.
Figura 6.36. Registro na operação de como Joyce “pede emprestado”
Para continuar a resolução de onde havia parado (4 8 = ?), Joyce fez
um novo registro pictórico no qual indicou a solução encontrada para essa etapa
171
da subtração. Joyce fez 4 (quatro) traços entre o primeiro e o último registro
pictórico. Em seguida, fez logo abaixo destes mais 4 (quatro) traços. O seu
pensamento estava operando 7 3 = 4 e este resultado mais 4 (quatro) igual a 8
(oito). Logo, seria possível efetuar 8 – 8 = 0. Conforme se vê na Figura 6.35.
As indicações que aparecem ao lado dos registros pictórico e numérico
de Joyce (ver Figura 6.34), foram feitas pela pesquisadora e servem para ilustrar
os momentos em que a aluna fez as subtrações, e no caso desta última, quando
operou 4 + 4 – 8 = 0.
Para finalizar a operação, Joyce resolveu 3 1 = 2. Se tivesse pensado
nos numerais de acordo com o sistema numérico, teria feito 7 1 = 6 (sempre
unidades de milhar). Enfim, chegou ao seguinte resultado: 7.497 1.803 = 2.094.
Ver Figura 6.34.
Isto revela que para Joyce sempre que o subtraendo é menor que o
minuendo, em uma dada ordem, o resultado nesta será sempre 0 (zero), pois
deverá buscar a diferença na ordem seguinte.
O registro pictórico de Joyce evidencia que ela faz a contagem um a um
e não trata do valor decimal dos algarismos na estrutura numérica. Contudo, é
evidente que ela pensa, tem conceitos, age, produz procedimentos.
Para estudiosos sobre o processo de aprendizagem de conceitos em
matemática (BRYANT e NUNES; CARRAHER e SCHILIEMANN, KAMII, MUNIZ,
FERREIRO
26
e outros) está claro que o conhecimento do conceito de número pela
criança interfere diretamente nos procedimentos que desenvolve ao resolver as
operações matemáticas.
Quando a criança tem a estrutura decimal do número bem trabalhada,
ela é capaz de compreender processos de resolução presentes nas operações
tais como agrupar, desagrupar e reagrupar.
26
Vale destacar que a indicação de Emília Ferreiro neste grupo diz respeito à sua preocupação,
embora não a central em seus estudos, quanto à compreensão no processo de alfabetização da
aquisição também simultânea ao sistema de representação da língua escrita, a do sistema de
representação por escrito de quantidades e de operações elementares com tais quantidades,
destacado nesse trabalho as que dizem respeito à soma e a subtração e que nos mostram um
pouco como as crianças observadas lidam com o cálculo em situação escolar e envolvendo
dinheiro. Ver na bibliografia referência completa da obra.
172
Mas para entender como a criança está pensando, o que significam
suas ações, em termos cognitivos, quais são suas concepções e noções é preciso
realizar um trabalho de mediação pedagógica.
Entender o que Joyce fez, por exemplo, implicou a realização da
mediação pedagógica. Para tanto, a pesquisadora buscou um suporte material
que a permitisse acompanhar com entendimento o raciocínio de Joyce. A
pesquisadora utilizou notas de dinheiro. As notas foram cedidas na época,
19/05/05, pela professora. Estas notas não eram réplicas dos originais da nossa
moeda, mas tinham um símbolo que as identificava como dinheiro próprio para
brincar.
Inicialmente, em sua origem, a situação continua sem contexto: trata-se
de “arme e efetue”. Entretanto, a natureza do material proposto para registro das
quantidades numéricas carrega em si uma situação altamente significativa para o
aluno: é munida de valores monetários.
A pesquisadora pediu à criança que representasse com as réplicas do
dinheiro a quantidade que possuía. Para tanto, propôs o seguinte problema
27
:
“Uma pessoa tem depositado no banco a quantia de R$ 7.497, 00 (sete mil,
quatrocentos e noventa e sete reais). Certo dia, essa pessoa estava andando no
centro de Ceilândia, entrou em uma loja de eletrodomésticos e ficou encantada
com uma geladeira. Animada a comprar o eletrodoméstico, realizou a compra que
custou R$ 1.803,00 (mil, oitocentos e três reais). Para fazer o pagamento o
comprador deu um cheque para pagamento à vista
28
. Quanto sobraria depositado
no banco, depois que o cheque fosse descontado”?
Joyce começou a separar o dinheiro. Como não havia notas no valor de
R$ 1.000,00 (mil reais), ela foi pegando notas de 500
29
(quinhentos). Para cada
27
Aqui é apresentado um contexto para a resolução da operação.
28
A criança tinha noção do que era um cheque, enquanto uma forma de pagamento. Além disso,
sabia o que significava pagamento à vista (na hora), diferenciando de pagamento a prazo (para
depois). Vale destacar que os alunos tinham acesso a encartes de supermercados e de outras
lojas nas quais apareciam a indicação de pagamento à vista ou em parcelas com entrada para...
(idéia de pagamento à prazo).
29
Em nosso sistema monetário não existe tais notas. Contudo, no material disponibilizado, e
conforme já mencionado anteriormente sobre suas características, as notas foram usadas pela
criança para registrar a quantidade 1.000 (mil).
173
duas notas de 500 (quinhentos), contava 1.000 (mil) até chegar em 7.000 (sete
mil).
Depois, separou as notas de 100 (cem), totalizando 400 (quatrocentos).
Em seguida, contou 9 (nove) notas de 10 (dez) para representar 90 (noventa) e
por último, contou 7 (sete) notas de um.
Para cada valor que Joyce ia representando nas notas, a pesquisadora
lhe perguntava qual era a quantidade que estava pegando. Então, a pesquisadora
registrou um a um os valores, decompondo-os com base no material que estava
sendo utilizado por Joyce. Assim ficou o registro da pesquisadora:
Figura 6.37. Registro feito pela pesquisadora durante a mediação
Quando Joyce foi questionada sobre qual era a quantidade que tinha
representada nas notas, respondeu atribuindo valores “em dinheiro”. Ou seja, sete
mil, quatrocentos e noventa e sete reais (R$ 7.497,00).
Depois, a pesquisadora perguntou para Joyce quanto ela deveria tirar
daquele valor. Prontamente Joyce respondeu: “mil, oitocentos e três”. Então, a
pesquisadora pergunta como a aluna irá fazer para retirar este valor.
Joyce Eu vou começar pelo sete (aponta na ordem das unidades) e vou tirar três e
vai sobrar quatro (a medida que Joyce fala a pesquisadora vai riscando no registro que fizera, o
procedimento de Joyce).
Pesquisadora Então, você vai começar por aqui (mostra na unidade)? Em seguida,
a pesquisadora mostra no caderno como ficou.
174
Joyce Agora, eu vou fazer nove menos zero. Como eu não preciso tirar nada, vai
continuar nove do mesmo jeito.
Pesquisadora Você quer dizer que eu não preciso fazer nenhum risco nas dezenas
que estão aqui (mostra o caderno)?
Joyce – É.
Pesquisadora – Já que eu não vou mexer nessa quantidade, agora nós vamos para o
valor que tem na centena. Quanto você tem na centena?
Joyce – Quatro.
Pesquisadora – Quatro o quê Joyce?
Joyce – (Olha para o dinheiro) Quatro notas de cem?
Pesquisadora – E quanto é quatro notas de cem?
Joyce (Aponta no material, contando um a um.) Cem, duzentos, trezentos,
quatrocentos.
Pesquisadora – Quanto você tem mesmo?
Joyce – Quatrocentos.
Pesquisadora Ótimo! E agora, quanto é que você tem pra poder tirar esse oito aqui
(mostro na centena a quantidade no subtraendo)? Dá pra você tirar?
Joyce – Fica parada, calada, pensativa. Não responde.
Pesquisadora Olha só! Você não tem aqui (aponto na centena). Você já resolveu na
unidade e na dezena. Agora, se você não tem na centena, onde é que tem uma quantidade de
onde você poderia tirar o tanto que você quer?
Joyce – (Olha o material e aponta com o dedo.) Eu tenho aqui no sete.
Pesquisadora – O que você tem aqui no sete?
Joyce – Notas de mil.
Pesquisadora Muito bem! Você quer pegar aqui no sete para juntar com o quatro e
depois tirar o oito, não é?
Joyce – É.
Pesquisadora Será que você vai precisar pegar todo esse dinheiro que es aqui
(refiro-me a sete mil)?
Joyce – (Olha para o material.) Não.
Pesquisadora Que tanto você vai precisar tirar daí (Pega uma nota de quinhentos)?
Se você juntar essa nota de quinhentos com essas quatro de cem vai dar para tirar oito (Balança a
cabeça afirmativamente)? Mas aqui (mostro os valores de mil em mil, mesmo com duas notas de
quinhentos os representando) você não separou de mil em mil porque não é sete mil?
Joyce – É.
Pesquisadora Então, como é que você vai fazer? Se você tirar uma nota de
quinhentos, sobra outra. Aí não vai mais ser mil. Será que vai ter como ficar seis mil e uma nota de
quinhentos se você separou aqui (aponto no material) de mil em mil?
175
Joyce - Não.
Pesquisadora Se você separou de mil em mil, significa que você conta de um em
um, mas sendo cada um desses que você conta, mil. pode ficar se for mil. Se eu tenho de mil
em mil é porque eu fui contando assim: mil mais mil, mais mil... Então será que eu não posso tirar
um grupo de mil daqui?
Joyce – (Um pouco insegura.) Pode.
Pesquisadora – Pega então aí mil (Joyce pega duas notas de quinhentos e me
mostra). O que você vai fazer com esse mil que você pegou?
Joyce – Vou juntar com quatro para depois tirar oito.
Pesquisadora Se você vai juntar com o quatro, esse mil vem para centena como
mil? Aqui na centena você não separou de cem em cem? Será que você pode trocar esse mil por
notas de cem?
Joyce – (Olha para outras notas a disposição.) Acho que eu posso.
Pesquisadora Se você acha que pode, quantas notas de cem você vai precisar para
ter mil?
Joyce (Faz a contagem cem a cem, mas fala muito baixo) Cem, duzentos,
trezentos...
Pesquisadora – Conta mais alto pra eu poder ouvir que tanto você já contou.
Joyce – (Recomeça) Cem, duzentos, trezentos, quatrocentos, quinhentos...
Pesquisadora – Depois do quinhentos o que vem aí?
Joyce
30
(Vacilante) Sss... Seeiscentos
31
. (Continua sozinha.) Setecentos,
oitocentos, novecentos... (Pára)
Pesquisadora – Você já contou até novecentos. Depois vem o...
Joyce – (Balbucia alguma coisa inaudível).
Pesquisadora (Usando notas de dez e de um). E se agente fizer assim. Novecentos
e (mostro a nota de 10)...
Joyce (Continua.) E dez. (A pesquisadora continua a seqüência de 10 em 10).
Novecentos e vinte, novecentos e trinta, novecentos e quarenta, novecentos e cinqüenta,
novecentos e sessenta, novecentos e setenta, novecentos e oitenta, novecentos e noventa. (Pára.)
Pesquisadora – O que é que vem depois do novecentos e noventa?
Joyce Balança os ombros como quem não sabe o que dizer. (A pesquisadora pega
notas de um.)
30
A fala de Joyce pode ser transcrita da seguinte maneira: “Ssss...”; Ssee...”; “Sseei...”;
“Seiscentos”.
31
O trecho negritado na entrevista se refere ao momento em que a pesquisadora fala junto com a
criança.
176
Pesquisadora Então vamos fazer assim. Você contou até novecentos e noventa.
Se a gente continuar contando daí, colocando agora mais um, depois mais um. Vai ficar
novecentos e noventa e ...
Joyce – Um. Novecentos e noventa e dois
32
... novecentos e noventa e nove. (Pára.)
Pesquisadora Você não sabe o que vem depois do novecentos e noventa e nove?
(Aponto no material, as duas notas de quinhentos que separou e contou como mil.)
Joyce – (Com voz trêmula). Mil.
Pesquisadora Então Joyce o que foi que nós fizemos aqui? Nós pegamos as notas
de quinhentos que você contou como mil e fomos trocando por notas de cem. Mas para você
continuar contando, eu usei notas de dez e de um. Se a gente contar essas notas de dez e de um
quanto será que a gente vai ter?
Joyce – (Conta as notas, movimentando os lábios). Cem.
Pesquisadora Se essas notas de dez e de um deram cem, eu posso trocar por uma
de cem para juntar com essas outras aqui não posso?
Joyce – Acho que pode.
Pesquisadora Porque é que pode Joyce? Porque aqui (na centena) você colocou
notas de cem. E o mil que você tirou lá do sete, você substitui por notas de cem. Conta agora
quantas notas de cem você tem na mão.
Joyce – Dez.
Pesquisadora Ótimo! Agora, você tem dez notas de cem que é o mesmo que mil.
Aqui (na centena) você tem mais essas quatro. Será que vai dar para tirar essas oito aqui do mil
oitocentos e três?
Joyce – Vai.
Pesquisadora Como é que você pode fazer? (Joyce separa as quatro que tinha e
depois retira das dez notas de cem outras quatro. Depois que faz a pesquisadora mostra no
caderno e fala pra Joyce o que ela fez.)
Pesquisadora – Agora que você tirou oito notas de cem, quantas sobraram?
Joyce – (Conta uma a uma.) Seis.
Pesquisadora – O que ficou faltando a gente tirar agora?
Joyce – O um (aponta na unidade de milhar).
Pesquisadora Mas olha só. Quando você tirou aquele mil e colocou na centena,
trocando por notas de cem, o que aconteceu aqui no sete mil? Continua com sete mil?
Joyce – Não.
Pesquisadora – Quanto tem agora nos montinhos de mil?
Joyce – Seis.
32
Continua a contagem até chegar em novecentos e noventa e nove.
177
Pesquisadora Se você vai ter que tirar esse outro um aqui, na operação (mostro a
operação armada), de onde que você vai tirar ele?
Joyce – Do sete.
Pesquisadora – Mas você ainda tem sete?
Joyce – Não.
Pesquisadora – Então na verdade você vai tirar de que quantidade que sobrou?
Joyce – Do seis.
Pesquisadora – Tirando mil de seis mil vai sobrar...
Joyce – Cinco.
Após a mediação e intervenção pedagógicas, a pesquisadora passa
para o registro do procedimento de Joyce na operação, fazendo a leitura da
subtração da direita para a esquerda.
No momento em que fiz a leitura, no sentido da direita para a esquerda,
fui mostrando no meu caderno de campo onde estavam os valores que Joyce
encontrou. Nessa leitura busquei reforçar junta à criança o que, de fato, estava
acontecendo com as quantidades e por que, agora, deu um outro resultado. A
figura abaixo registra um novo registro da mesma operação, agora, com o
resultado segundo os valores relativos.
Figura 6.38. Novo registro da operação feito pela pesquisadora
É necessário ressaltar que não foi fácil o trabalho de mediação. Joyce
se mostrava muito insegura. Tinha medo de responder. Falava tão baixo que, por
vezes, não conseguia ouvir o que dizia.
178
O relato da situação descrita ocorreu logo no início da pesquisa depois
de duas semanas de observação da dinâmica de sala de aula. Portanto, parecia
que Joyce não entendia por que alguém estava interessada pelo que ela fazia.
Além disso, durante as duas primeiras semanas de observação, após
conversa com a professora a respeito da situação de Joyce, ficou muito claro que
sua timidez refletia todo um processo de silenciamento. Joyce não se sentia
capaz, sua auto-estima estava muito baixa.
Durante toda a conversa foi preciso que a pesquisadora insistisse para
que falasse de como estava pensando, sem medo. O papel da pesquisadora era
justamente de entender como eles fizeram, de aprender com eles. Além disso,
expliquei que as perguntas que foram feitas significavam que eu o sabia como
ela havia pensando e feito a operação, por isso, ela precisaria me dizer. ela
(Joyce) poderia fazer, nem mesmo a professora saberia explicar para a
pesquisadora como ela havia chegado à resposta.
Por fim, logo após a realização da mediação, a pesquisadora pediu que
Joyce fizesse uma outra operação, agora sem desagrupamento, mas que
registrasse no material e no caderno como foi que fez.
Figura 6.39. Outra operação feita por Joyce
Figura 6.40 Registro de Joyce do procedimento feito no material
179
Nesta outra situação Joyce faz a representação tal qual a anterior. Ao
proceder a subtração ordem por ordem, indica no registro onde está o resultado,
circulado pela pesquisadora. Ver figura acima.
Enfim, fica para reflexão o fato de que determinadas lacunas durante o
processo ensino-aprendizagem podem ser perfeitamente preenchidas por meio de
uma atitude descentrada do professor que deixa de ver e encarar a aprendizagem
da criança com base naquilo que considera como aprendido ou não.
Até o término da pesquisa em sala de aula, nasceu outra Joyce. Da
timidez, a sorrisos largos e espontâneos. Do silêncio, a uma criança falante,
ousada, corajosa. Do temor, ao risco. Da insegurança, ao desafio.
Por mais que aqui não tenha havido o tempo necessário para preencher
todas as lacunas encontradas no processo educativo pelo qual Joyce passou,
recompensa-me o fato de que Joyce se redescobriu. Do medo gigantesco de se
expor, de falar, de se expressar, de se arriscar, vi Joyce discutir com os colegas
sua forma de pensar, ouvi dizer que tinha que respeitar o jeito que o colega fez, vi
estimular os colegas a irem ao quadro e fazerem como tinham pensado, vi Joyce
mostrar a todos o que fez e como fez.
180
CAPÍTULO VII
O QUE APRENDEMOS?
As considerações que farão parte deste capítulo visam apresentar ao
leitor um conjunto de aprendizagens o importantes quanto as adquiridas pelas
crianças pesquisadoras que, se descobrindo como seres matemáticos autênticos,
nos ensinaram (professor e pesquisadora) uma nova matemática, um outro tipo de
ensino, uma outra forma de avaliar, um outro jeito de aprender.
Cada sessão que compõe este último capítulo visa discutir um aspecto
relacionado ao processo de ensino e de aprendizagem que, destacado durante
toda a pesquisa, será aqui retomado quanto as implicações epistemológicas,
pedagógicas e profissionais em relação à postura do educador pesquisador, mas
sobretudo, do pesquisador educador.
Os temas apresentados não se esgotam nessa discussão nem em si
mesmos, mas seu debate sugere que sejam revisitados em cada nova pesquisa,
em cada sala de aula, em cada escola, em todo o sistema educacional de nosso
país.
“O que aprendemos na pesquisa participativa com a parceria
epistemológica das crianças”? É com esse questionamento que trago ao
conhecimento dos leitores as grandes descobertas alcançadas com a ajuda das
crianças e que constituem cada tópico que será apresentado a seguir.
7.1 A fala da criança
Sem sombra de dúvida, não teria sido possível avançar na análise dos
protocolos que foram apresentados nesta pesquisa sem a efetiva participação do
181
sujeito-autor
33
como um interlocutor fundamental no processo comunicativo que foi
construído entre pesquisadora/professora –aluno – pesquisadora/professora.
A fala da criança pode ser considerada elemento imprescindível num
trabalho interpretativo, segundo a natureza da investigação, e deve ser
considerada na prática pedagógica. No contexto desta pesquisa, foi ponte central
para conduzir o pesquisador e orientador da pesquisa (e em alguns casos o
próprio professor) nas análises, uma vez que revelava e/ou complementava os
registros feitos pelos alunos, bem como, reforçavam o sentido do fazer
matemática de cada um, desembaçando em várias situações a visão, não do
pesquisador, como a do professor face as magníficas construções feitas por essas
crianças.
Este estudo nos faz considerar a fala da criança como objeto de
profunda reflexão na prática pedagógica pela sua implicação em tal. A
necessidade de comunicação da produção mostrou que não se deve julgar o que
a criança aprendeu com base, apenas, naquilo que o professor sabe a respeito de
sua produção escrita e do que espera da criança.
Este aspecto pode ser compreendido sob dois ângulos distintos, mas
complementares entre si. O primeiro diz respeito à ação do professor em relação à
produção do aluno. É preciso admitir que sem ouvir a criança, não há como
efetivamente compreendê-la, entendê-la em suas produções. Não para
simplesmente olhar por cima e de fora algo que está no âmago do eu da criança,
que não se expressa em sua completude e complexidade pelo que está dado no
exterior, mas que se oculta em seu pensamento, por vezes, e porque não dizer
quase sempre, silenciado, negligenciado, ignorado.
Um professor que sabe ouvir constitui-se, por sua vez, em alguém que
sabe dialogar, que sabe entender o outro quando se coloca na posição do outro.
Freire (1996) já falava da importância e necessidade do saber ouvir, mais do que o
falar na prática docente. Assim o autor escreve:
33
O entendimento de sujeito-autor que tenho é aquele que considera o sujeito como epistêmico e
consciente de suas construções, de suas descobertas, de novas aprendizagens adquiridas com
significado.
182
não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos
os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a
escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles (p. 113).
A partir dessa constatação, aprendemos que se não buscássemos
junto ao aluno as explicações que para nós – pesquisadora (e orientador) e
professora estavam obscuras, não conseguiríamos chegar à realidade expressa
nas diferentes produções, correndo o risco de julgarmos precipitadamente o
conhecimento que a criança tem, se o tivéssemos considerado, apenas, em
relação à resposta numérica dada.
Nesse sentido, o segundo aspecto refere-se à necessidade de
oportunizar na práxis à criança espaços para falar, explicar e mostrar como
pensou e como fez; encorajando-a a expressar suas idéias, suas concepções,
seus modos de fazer, seus conhecimentos.
Como destaca Tahan (1998) as propostas de trabalho (em sala
34
)
devem reunir certas condições, dentre as quais propõe:
contemplar diferentes procedimentos; admitir diferentes respostas; fornecer
o debate e a circulação de informação
35
; garantir a integração com a
numeração escrita convencional; propiciar uma crescente autonomia na
busca de informações; aproximar, na medida do possível, o uso escolar do
uso social da notação numérica (p. 31).
O espaço que se abre, seja o de confrontação, o de troca, o de
explicitação ou ainda, o de explicação entre professor e aluno, pesquisador e
aluno, aluno e aluno, aluno e professor, aluno e pesquisador constitui-se em outro
elemento do processo comunicativo que precisa (deve) ocorrer em sala de aula.
Este espaço representa a integração entre diferentes saberes. O saber
da escola, o saber do professor, o saber do pesquisador, o saber do outro aluno e
o meu saber (sujeito-autor). Nele se consolida o sentido e o valor do meu saber
(sujeito-autor) mediante o meu (sujeito-autor) fazer.
34
Acréscimo feito por mim.
35
Grifo meu.
183
Portanto, retomaria-se aqui, com destacada ênfase, um dos grandes
princípios do processo de ensino e de aprendizagem: o favorecimento de uma
aprendizagem significativa. Mas para quem? Para o aluno enquanto sujeito ativo
na construção do conhecimento.
Com base nesta asserção, esta investigação aponta de que maneira
toda criança deve ser acreditada em seu potencial de aprendizagem. Mostra que
ao ouvir a criança, deixá-la falar, contribui para a elevação da auto-estima (da
criança) e serve para (re)orientar a prática pedagógica a fim de que se construa
uma dinâmica em sala que estimule as capacidades cognitivas dos alunos.
Moro et al. (2005), nesse sentido, apresentam uma nova forma de ver e
entender as capacidades das crianças quanto a aprendizagem em matemática e
destacam que
ser bom em matemática’ é algo que não precisa ficar restrito a um pequeno
punhado de crianças talentosas, mas pode ser encontrado em grande
maioria dos alunos de nossas escolas, se lhes for dada a oportunidade
adequada de elaborar os conceitos matemáticos, ao mesmo tempo em que
elaboram coordenadamente, formas de expressá-los verbalmente e registrá-
los por escrito (p. 14).
Mais uma vez é reforçada a importância de favorecer a expressão
verbal e escrita da criança, levando-se em consideração os conceitos matemáticos
que foram elaborados, ajudando-as a chegarem as formas de notação
convencional, sem, contudo, menosprezar os seus registros espontâneos.
Como observado no caso de Júlia, por exemplo, a explicação da
criança permitiu que a professora (e a pesquisadora) compreendesse o porquê do
resultado registrado, embora o mesmo não tenha sido reconsiderado pela
professora em função do procedimento desenvolvido.
Acredito que não houve uma atitude de menosprezo ao feito da criança,
nem tão pouco um comportamento de quem faz “ouvido de mercador” por parte da
professora.
Na verdade, a professora enxergou que conceitos e relações foram
articulados na produção de Júlia, porém, a própria cobrança exercida não pela
184
escola, de um modo geral, mas pela família, pela sociedade, de que a validação
do conhecimento em matemática, decorrente também de um quadro histórico
nesta área marcado pela reprodução tal qual do que foi ensinado, seja conferida
por meio da produção de respostas esperadas, acabam pressionando o professor
a não investir esforços nesse sentido.
Ou seja, há a predominância ainda forte de um processo de ensino e de
aprendizagem em matemática que valoriza, a priori, a apreensão das formas
convencionais de notação das operações matemáticas. Em contrapartida,
também, não avança no desenvolvimento de uma prática pedagógica na qual o
saber da criança seja efetivamente valorizado, assim como não é trabalhada
adequadamente a importância da aprendizagem de formas de notação
convencionais.
De um modo geral, o ensino fica assim limitado à apresentação de
modelos convencionais e, a aprendizagem limitada à reprodução de tais modelos.
Conseqüentemente, a fala do aluno acaba por não ser considerada como
instrumento riquíssimo de afirmação do próprio eu da criança, uma vez que pela
sua explicação, mediante a fala, o sujeito se assume na condição de criador, de
detentor exclusivo de direitos autorais do conhecimento que está sendo
construído.
Não seria necessário explicitar n motivos por meio dos quais seja
importante enfatizar o papel que a fala da criança assume no contexto educativo,
e sua relevância, no espaço de sala de aula enquanto locus privilegiado de troca
de saberes e produção de conhecimento.
Acredito que a discussão resgatada neste espaço serve de indicativo
do quanto ainda para se descobrir, para se fazer, para se repensar,
para se (re)considerar no processo educativo quando se tem em mente que o
papel do professor é ajudar o aluno a alcançar novas aprendizagens, sem,
contudo, negar suas concepções, seus conhecimentos prévios, sem negar o
próprio sujeito, pois, em seu pensar, em seu fazer e em seu falar está manifesto
um pouco de sua essência.
185
Portanto, fica lançado o desafio para os educadores pesquisadores
assumirem como sua a necessidade de dar vez e voz a essas crianças,
constituindo-se em fomentadores de uma prática pedagógica pautada pela
constante necessidade de investigação, enxergando, sobretudo, o espaço de sala
de aula e toda a dinâmica nela presente como um amplo e rico laboratório de
aprendizagens para o professor e para os alunos.
7.2 O sentido do registro
O que se esconde por detrás de um tipo de notação completamente
divergente daquela esperada e conhecida pelo professor? A aparência do registro
por escrito de uma operação ou ainda a resposta numérica pode ser considerada
como testemunho incontestável do nível de aprendizagem
36
de uma criança?
A partir do feito de Júlia, na situação em que resolve o problema
envolvendo dinheiro, observei que a maestria com que uma criança rege seus
conhecimentos não se revela numa apresentação esteriotipada de um saber fazer.
Ela se desnuda quando a criança passa a registrar tal qual numa partitura as
notas em harmonia que produzem uma melodia.
Essas notas representam, na análise de seu protocolo, as explicações
orais e as construções registradas muito bem ordenadas e coordenadas entre si,
que permitem ao professor, ao pesquisador, ao psicólogo e a outros profissionais
compreender como se desenvolve a canção, o ritmo, isto é, o pensamento, os
processos cognitivos.
Mas se para se sentir envolto em uma canção, faz-se necessário
absorvê-la pelo ouvir, percebendo as mais diversas combinações entre notas,
ritmos, instrumentos e sons. Assim também, para conhecer e entender o aluno em
suas produções é preciso ouvi-lo, é preciso -lo, é preciso enxergá-lo em suas
36
Quando falo de qualidade de aprendizagem refiro-me à avaliação que é feita pelo professor face
a produção do aluno e que em muitas situações se define na fala do professor quando este se
contenta em dizer: “Esse aprendeu”; “Esse não aprendeu”. Mas “não” aprendeu o quê e como?
186
construções e desafiá-lo em seus conhecimentos prévios para que desenvolva
competências mais complexas.
Quando pedi aos alunos que não resolvessem, mas que de alguma
forma fizessem o registro por escrito explicando o procedimento desenvolvido,
tornou-se claro, que o pensar matemático do aluno não se reduz a registrar
apenas números, mas em produzir frases, em fazer desenhos, em criar
algoritmos.
Sequerra (1998) reforça a importância do professor em propor às
crianças que registrem a estratégia que utilizaram ao resolver uma operação.
Segundo ela, esse incentivo leva a criança a entender mais claramente o próprio
raciocínio. O registro revela-se como uma legítima situação metacognitiva. Além
disso, contribui para o crescimento da classe como um todo, pois, a partir da
socialização de seus registros
37
, a confrontação e a discussão serão mais
produtivas.
As implicações pedagógicas para a organização do trabalho
pedagógico o claras. Além da importância dada a fala da criança, o registro da
produção e a oportunidade de socialização da mesma indicam que caminhos
estão sendo trilhados pelo professor no processo educativo.
Da metodologia de ensino, mediante a forma de apresentação do
conteúdo (transposição didática), à avaliação fica evidente como o professor
concebe o que é matemática, como se aprende matemática, como se faz
matemática.
A valorização do registro da criança e a discussão do tipo de registro de
cada um em sala de aula revelam as fronteiras entre as produções espontâneas e
os algoritmos convencionais que são ensinados.
Essas fronteiras suscitam questões como; “Qual o valor social dos
algoritmos convencionais”? “Por que devemos ensinar as operações matemáticas
37
Esse processo é denominado segundo Guy Brousseau Teoria das Situações (apud MUNIZ,
2004), de institucionalização. Como destaca Muniz (2004), a institucionalização se refere ao
momento em que o professor, enquanto mediador, observando que a criança mobiliza conceitos ou
propriedades matemáticas sem mostrar estar consciente disso, então, destaca e traz ao
conhecimento da criança, formalizando os conteúdos matemáticos.
187
aos alunos”? “O que representa para a aprendizagem em matemática o
ensinamento dos algoritmos convencionais aos alunos”?
A discussão, embora longa, é profícua. O que aprendemos com a
análise das diferentes formas de registro dos alunos, pictóricas
38
ou não;
numéricas ou não; com desenhos ou não; com frases ou não, é que quando
estimulados a pensar sobre o que fizeram metacognição – os alunos são
capazes de atribuir sentido ao registro por eles produzido.
Os alunos se encontram em seus registros. Se encontram porque,
mesmo em certos casos, quando alguns alunos não conseguem explicar com
clareza o que fizeram, passam a compreender que seu registro tem valor. E mais
do que isso, ele próprio passa a tomar consciência de sua produção matemática.
Os seus registros, apoiados em sua fala, são chaves que abrem portas
para o “desconhecido”, mas não temível. Neles se manifestam, de certa forma, os
“porquês” do saber-fazer de cada criança.
Por outro lado, se não se leva em conta a produção espontânea da
criança, dificilmente, a aprendizagem do algoritmo a priori contribuirá para a busca
da compreensão dos conceitos relacionados a cada algoritmo.
Nesse sentido, resgatamos a discussão acerca de nosso objeto de
estudo que é a relação entre “modelos” (algoritmos convencionais) e esquemas
(produções espontâneas) na produção do conhecimento matemático.
A partir desta breve retomada, somos levados a considerar os
esquemas de pensamento derivados da interpretação que as crianças fazem dos
modelos convencionais e articulados aos conhecimentos prévios de que dispõem,
representando conflitos e processos cognitivos na construção de procedimentos.
Entre os “modelos” e os esquemas manifestaram-se as concepções das
crianças relativas à natureza das operações, bem como, à compreensão de
conceitos que a essas operações se articulam. Na análise de suas produções se
fizeram presentes estruturas de pensamento que caracterizavam o conhecimento
matemático em ação.
38
Chamo de registros pictóricos aqueles nos quais não estejam impressos escritos numéricos nem
explicações por escrito, mas que podem se valer de traços, pontinhos, bolinhas e outros desenhos.
188
Reforçando a discussão entre “modelos” e produções espontâneas,
Deus e Tahan (1998) chamam a atenção quanto ao trabalho com os algoritmos
convencionais, esclarecendo que o mesmo possa ser simultâneo e complementar
com o processo de entendimento de natureza das operações.
Desta maneira, as produções espontâneas das crianças não são
colocadas em segundo plano, pelo contrário, quando a criança compreende a
natureza da operação caminha para uma aproximação entre seu registro e a
notação convencional.
As produções espontâneas contempladas neste estudo expressam, por
exemplo, as estratégias pessoais de cálculo de cada criança. Mais do que um
mero registro diferente do modelo canonizado, as produções espontâneas
revelam, como destaca Vergnaud, a ponta de um iceberg, o que podemos
denominar de “esquema”. Elas podem ser consideradas apenas como um rastro
das operações mentais complexas e peculiares de cada sujeito.
Portanto, enquanto o algoritmo convencional é trabalhado de forma
mecanizada, padronizada, desprovida de significado; a produção espontânea da
criança tem muito a dizer sobre o seu saber e fazer matemática, revelados em
termos de esquemas e revelando invariantes operacionais (Teoria dos Campos
Conceituais) que dão sustentação à atividade cognitiva.
O registro de uma produção espontânea não é, porém, fim em si
mesmo. A partir dele é que se chega a outras descobertas, a outros
entendimentos, a outros pensamentos, a outros esquemas de ação mental.
Bryant e Nunes (1997) ao pesquisarem acerca de como as crianças
pensam sobre problemas matemáticos e qual o significado da matemática para
elas, mostram que existe uma engenhosidade e persistência das crianças em seu
processo de construção do conhecimento matemático.
Segundo estes pesquisadores, mesmo crianças mais novas quando
diante de problemas matemáticos, apresentam soluções que não podem ser
consideradas, em sua totalidade, como descartáveis, mesmo que porventura
estejam erradas. Frente as soluções que as crianças apresentaram, a partir de
dados de seus estudos, concluíram que se faziam presentes elementos de
189
pensamento genuíno e inteligente, e por sua vez, dignos de respeito e
encorajamento.
O sentido do registro da criança não se dá, portanto, pela reprodução
de procedimentos estereotipados que são apresentados e ensinados pelo
professor no “modelo” convencional.
Esse sentido diz respeito, às operações mentais que estão sendo
aplicadas na busca por uma solução, a partir da interpretação que a criança faz do
“modelo” convencional, segundo o contexto em que é dado. Expressa ações
cognitivas (interno) que se articulam a um conjunto de formas de representação
dessas ações no plano material (externo).
O REGISTRO
SENTIDO
PLANO MENTAL
(INTERNO)
PLANO
MATERIAL
(EXTERNO)
NÍVEL DE COMPREENSÃO INTERPRETAÇÃO (SELEÇÃO DE DADOS)
INVARIANTES OPERATÓRIOS
(TEOREMA-EM-ATO E CONCEITO-EM-ATO)
ESTRATÉGIAS DE CÁLCULO
REGISTRO: NO MATERIAL, FRASES,
DESENHOS, NOTAÇÃO CONVENCIONAL ETC.
PISTAS DE RESOLUÇÃO
“HIPÓTESES” DE RESOLUÇÃO
CONTEXTO DA
PRODUÇÃO
DESENVOLVIMENTO DOS
PROCEDIMENTOS
190
Essas operações mentais são desencadeadas a partir do nível de
compreensão da criança sobre o problema a resolver. A partir daí, ela passa a
selecionar dados que possam ser tomados no processo de solução.
Com base nessa seleção, a criança põe em funcionamento, dentre as
competências de que dispõe, aquelas que podem ser aplicadas à situação. Ao
valer-se dessas competências, a criança usa elementos cognitivos que tornem sua
ação operatória (invariantes operacionais). Estes elementos levam a criança a
testar “hipóteses” de resolução.
Nas “hipóteses” de resolução testadas para chegar a uma solução, na
verdade, a criança usa estratégias de cálculo. São estas estratégias que indicam
as pistas de resolução, que podem ser observadas, em alguns casos, nas
produções das crianças.
As estratégias desenvolvidas expressam ainda, os procedimentos
construídos, em termos de ações cognitivas (plano interno) e que podem ser
representados, parcialmente, no plano material (externo). Ou seja, a atividade
cognitiva da criança ganha uma forma de representação externa (procedimentos
registrados por escrito, verbalmente, a partir de uma base material,
pictoricamente), mas que por si só, não dá conta de abranger a complexidade que
lhe é inerente.
O sentido do registro, portanto, é muito mais profundo que a aparência
externa que lhe possa ser dada. Observado no contexto em que foi produzido, o
registro favorece à compreensão das ações das crianças, devendo levar o
professor a analisá-las mais detalhadamente.
Ferreiro (2001), em sua pesquisa sobre como crianças argentinas
chegavam à aquisição da escrita numérica e à compreensão das operações de
somar e subtrair, após observar o abismo que separa o sentido prático das
operações em situações significativas para essas crianças e a forma como são
ensinadas na escola as referidas operações, assim se coloca:
O cálculo com dinheiro é, portanto, correto ou aproximadamente correto. O
cálculo com lápis e papel não apenas é incorreto, mas também,disparatado,
191
porque está fora de todo controle racional; é uma espécie de mecânica cega,
que pode conduzir ao imprevisível (p. 119-120).
E acrescenta, em nota de rodapé:
Mecânica sistematizada, no entanto, para muitas crianças, pois que
construída como aproximação a um mecanismo, o da professora, que
lhe é misterioso
39
(p. 120).
Eis um exemplo das fronteiras entre a produção espontânea e o
sistema de notação escolar que as crianças são obrigadas a copiar, reproduzir
mesmo que não entendam como é o convencional e qual a sua funcionalidade
para suas vidas.
Em um outro trabalho, Ferreiro e Teberosky (1999) destacam a
pertinência da teoria piagetiana para a compreensão dos processos de aquisição
da leitura e da escrita, fazendo uma analogia com os processos de construção do
conhecimento lógico-matemático.
Primeiramente, deixam claro que o método (enquanto ação do meio)
não pode criar aprendizagem. “A obtenção de conhecimento é um resultado da
própria atividade do sujeito” (ibid., p. 31).
Da colocação acima podemos concluir que, em se tratando da
aquisição de conceitos matemáticos, esta não se limita nem gira em torno da
aprendizagem do método escolar para resolver problemas matemáticos como bem
vimos no capítulo precedente .
Em segundo, diferenciam um sujeito intelectualmente ativo de um que
não o seja. Em sua concepção, as autoras caracterizam um sujeito
intelectualmente ativo o pela quantidade de coisas que faz nem porque tem
uma atividade observável. Para elas, o sujeito intelectualmente ativo é aquele que
compara, exclui, ordena, categoriza, reformula, comprova, formula
hipóteses, reorganiza, etc., em ação interiorizada (pensamento) ou em ação
efetiva (segundo seu vel de desenvolvimento). Um sujeito que está
39
Grifo meu.
192
realizando materialmente algo, porém, segundo as instruções ou o modelo
para ser copiado, dado por outro, não é, habitualmente, um sujeito
intelectualmente ativo (ibid., p. 32).
O que por vezes, e rotineiramente, não se percebe, ou se faz não
perceber, é que a aprendizagem é um processo dinâmico, ativo por natureza, pois,
o sujeito da aprendizagem não é uma estátua ou um ser inamovível, alheio ao que
está à sua volta. Assim se revelaram as crianças em nosso estudo!
O processo de aprendizagem, em essência, nos remete ao
entendimento que o educador precisa ter acerca de desenvolvimento cognitivo, de
potencialidades, de limites, de erros, de acertos, de desequilíbrios, de
acomodações, de superação de erros, de avanço de estruturas simples às mais
complexas de pensamento.
Por tudo o que foi discutido até aqui em nossas análises, a
aprendizagem não pode ser concebida como prática reprodutiva de um saber de
outrem, de um fazer de outrem, de um jeito de ver e entender o mundo do jeito
que o outro quer.
Nesse sentido, Ferreiro e Teberosky (1999) destacam a necessidade de
se compreender o sujeito da aprendizagem não como receptor de um
conhecimento que é recebido de fora para dentro, mas como um produtor de
conhecimento.
Se um sujeito aprendeu a tabuada de memória sem compreender as
operações que a formam, ao esquecer de “quanto é” 7 x 8, por exemplo,
somente poderá restituir o conhecimento esquecido dirigindo-se a alguém
que o possua, pedindo-lhe que o restitua. Se pelo contrário, compreendeu o
mecanismo de produção desse conhecimento, poderá restituí-lo por si
mesmo (e não de uma maneira, mas sim de múltiplas maneiras). No
primeiro caso, temos um sujeito continuamente dependente de outros que
possuem conhecimento e que podem outorgá-lo. No segundo caso, temos
um sujeito independente porque compreendeu os mecanismos de produção
desse conhecimento e, por conseguinte, converteu-se em criador do
conhecimento (p. 34).
Por ora, com base nas considerações apresentadas, nada pode ter
mais valor e ser da maior importância do que aquilo que é propriedade exclusiva
193
do sujeito, enquanto, derivada de seu esforço pessoal como nos revelaram Júlia,
Suzana, Tati, Lina, Joyce, Pedro e Tiago, além dos outros. Por isso, será muito
mais produtivo o processo de ensino quando valorizado no processo de
aprendizagem o conhecimento construído por quem aprende.
Em suma, é preciso repensar a prática de ensino de algoritmos
convencionais sob o entendimento de que sua reprodução não significa
efetivamente construção dos conceitos que a eles possam estar relacionados.
Mas quando confrontados com as produções espontâneas das crianças ajudam as
próprias crianças a compreenderem a natureza dos primeiros mediante a
comparação de procedimentos. Como destaca Ferreiro (2001), em seu estudo, a
escola não está acostumada com esse tipo de confrontação (Grifo meu).
Além disso, quando por parte do professor uma efetiva preocupação
em entender o sentido do registro do aluno, sua postura, nesse sentido, revela que
uma concepção diferente da tradicional de como as crianças aprendem
matemática e como significam essa aprendizagem em seu dia-a-dia.
7.3. O trabalho interpretativo
A análise dos protocolos trouxe para discussão dois aspectos
importantes relacionados ao trabalho interpretativo do pesquisador e do professor.
O primeiro diz respeito à necessidade de se compreender a análise enquanto um
momento no qual pesquisador e professor buscam evidências do conhecimento
construído pela criança: aprendizagem e produção do conhecimento se articulam
profundamente. O segundo refere-se ao entendimento de que, em certos casos, o
que o pesquisador e o professor acham a respeito da produção do aluno pode não
ser exatamente o que a criança pensou: compreender implica um necessário
reconhecimento do processo interpretativo e teórico que isso envolve.
Por isso, o trabalho interpretativo do pesquisador e do professor precisa
ser cuidadoso, não pretendendo ser fim em si mesmo no processo de produção de
194
conhecimento, mas em possibilitar que sejam entendidas as ações mentais das
crianças mediante a análise dos protocolos.
Além disso, deve servir para mostrar ao pesquisador e ao professor
suas limitações face as produções espontâneas das crianças que são em sua
essência complexas. Como destaca Muniz (2001), esse tipo de construção não é
de fácil entendimento por parte do professor. E em certos momentos, também não
o foram para o pesquisador.
Assim sendo, não o pesquisador em sua produção acadêmica como
o professor em sua prática pedagógica necessitam assumir uma postura analítico-
reflexiva que leve a um senso crítico-construtivo, como mencionado nesta
pesquisa.
Digo uma postura analítico-reflexiva porque é preciso, a partir da
investigação, estabelecer critérios claros e bem definidos de escolha dos achados
para posterior análise, sendo este processo movido pela constante necessidade
de reflexão sobre o que está posto, sobre as descobertas e o que fazer a partir
delas. Assim, investigação e postura analítico-reflexiva devem ser elementos na
constituição da práxis pedagógica.
Daí chega-se a um senso crítico-construtivo porque as novas
descobertas permitem enfatizar o que foi estudado, revelar novos aspectos que
necessitam ser estudados e aprofundar outros conhecidos, promovendo um
avanço no processo de produção de conhecimento.
Por isso, diante de produções inusitadas como a de Lina, pergunta-se:
Como o pesquisador educador ou o educador pesquisador deve agir? Em que se
baseará o trabalho interpretativo? Como proceder a análise?
Em todo o tempo tem sido destacado neste trabalho o quanto foi
importante dar voz às crianças, dar-lhes a oportunidade de argumentar sobre o
seu pensar e fazer, além de levá-las a uma atividade cognitiva, como destaca
Vergnaud (1996b), que envolve a habilidade de usar a forma predicativa do
conhecimento, isto é, o saber explicitar os objetos e suas propriedades.
195
O que inicialmente parecia incompreensível foi sendo clareado, pouco a
pouco, em cada conversa com as crianças, a partir das interações construídas,
dos elos refeitos, do diálogo amigável e compreensível.
Aquilo que indicava uma possível “dificuldade” passava a ser visto,
acolhido e entendido como um esforço cognitivo de produzir conhecimento
mediante a utilização de conhecimentos prévios (Vygotsky, 1998), o que é parte
essencial do processo denominado aprendizagem.
Desta maneira, quando em algumas situações o pesquisador observou
que o pensamento da criança lhe era familiar por se aproximar do seu, e em
outras não, por ser desconhecido do pesquisador, vem reforçar a necessidade de
se desenvolver no contexto da sala de aula, um constante sentimento de empatia.
Torna-se fundamental acolher cognitivamente o outro (a criança) em seus
múltiplos jeitos de ver, fazer e entender para poder compreendê-lo, aceitá-lo,
respeitá-lo.
7.4. Trabalhando com situações-problema
Existe diferença entre o trabalho pedagógico no contexto de ensino e
de aprendizagem das operações matemáticas envolvendo situações-problema e o
que trata isoladamente cada uma das delas? Qual?
De repente para alguns professores pode não haver nenhuma
diferença, se ele considerar a aprendizagem em matemática como reprodução de
procedimentos que são ensinados a criança.
Por outro lado, se o professor é um ávido defensor de um ensino
melhor e de uma aprendizagem significativa, então, uma diferença abismal
entre um trabalho pautado em situações-problema em relação ao que não é.
A diferença não é quantitativa, mas qualitativa. Qualitativa porque na
situação-problema o professor pode observar como a criança entende o que está
196
sendo proposto, qual é a problemática no processo de elaboração do
procedimento resolutivo.
Desta maneira, a aprendizagem não é encarada como maior número de
respostas “corretas”. Entendendo, nesse contexto, o certo e o errado como juízo
de valor emitido pelo professor sobre o fazer da criança.
A aprendizagem, no processo de ensino e aprendizagem de
matemática, permeada por situações-problema representará as potencialidades
das crianças ao resolverem-nas. Esta é a proposta do GESTAR
40
, na qual nos
embasamos.
E onde está a diferença? A diferença se dá em nível conceitual e
prático em relação ao trabalho pedagógico que se nutre dos problemas
elaborados pelo professor ou copiados dos livros didáticos e aquele que envolve a
resolução de situações-problema.
Numa concepção tradicional do que é aprendizagem em matemática,
os problemas servem para reforçar as operações que foram ensinadas pelo
professor. Normalmente, as operações são trabalhadas antes dos problemas. E
quando o aluno se põe a resolver os problemas, estes não ajudam efetivamente
no processo de mobilização e desenvolvimento das estruturas cognitivas.
A utilização dos problemas serve para garantir que o aluno
compreendeu este ou aquele procedimento relacionado a uma e outra operação,
sem, contudo, implicar a articulação entre diferentes conceitos, pois, fecha a
resolução num único procedimento, e consequëntemente, numa única resposta,
essencialmente, numérica.
Por outro lado, se ao aluno é dada a oportunidade de trabalhar com
diferentes situações-problema antes de ser apresentado um novo conceito
40
Programa de Gestão e Aprendizagem Escolar (GESTAR). É um programa de gestão pedagógica da
escola, orientado para a formação continuada de professores do ensino fundamental, avaliação
diagnóstica e reforço da aprendizagem dos estudantes. Tem como objetivo principal elevar o
desempenho escolar dos alunos nas disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa. Inova as
estratégias de qualificação do professor e o processo de ensino e aprendizagem dos alunos. O
programa utiliza recursos de educação a distância e atende professores de a série de escolas
públicas. A partir de 2004, também passa a atender professores de Matemática e Língua Portuguesa
de 5ª a 8ª série. Fonte: http//www.mec.ogr.br
197
matemático, veremos que se desencadeará um processo de ativação de
estruturas cognitivas. Situação-problema envolve a presença de conflitos
cognitivos que levam o aluno a usar seus conhecimentos prévios numa dinâmica
de confrontação, de argumentação, de variação de procedimentos, de
socialização e de validação de resultados.
No contexto da situação-problema, o problema é de natureza diversa
daquele tradicionalmente trabalhado na escola, que pistas de resolução, não
provoca argumentação, não leva o aluno a testar hipóteses de raciocínio e que
não requer da criança um trabalho interpretativo sobre o desafio que está sendo
lançado.
A natureza do problema presente em uma situação-problema é muito
mais abrangente e não se limita ao contexto escolar, ao espaço da sala de aula,
ao livro didático. Ele envolve aspectos da realidade, não apresenta resultados e
procedimentos previamente passíveis de conhecimento do professor. É um tipo de
problema que põe em funcionamento as estruturas cognitivas das crianças para
novas aprendizagens, não para reprodução de procedimentos presentes no
repertório do aluno.
O verdadeiro problema
41
envolve mais do que saber dizer “é para
juntar”, “é para multiplicar”, “é para subtrair” ou “é para dividir”. Lembrando que,
nos termos tradicionais, nem sempre a criança sabe o que é para ser feito, daí
ouvimos: “É de mais ou de menos”? “Que conta é”?
Além disso, o ensino de matemática pautado em problemas desse tipo
não requer do aluno um necessário trabalho interpretativo, pois, o que se busca é
achar a resposta que o professor espera.
De modo sucinto, o esquema abaixo busca representar a natureza da
resolução de um problema com enfoque na situação-problema. É importante,
ressaltar que nesse sentido, a situação-problema antes de implicar em um desafio
para quem se propõe a resolvê-la, é impulsionadora da aprendizagem.
41
Ver a situação-problema sugerida, neste trabalho, pela pesquisadora às crianças, na situação
em que tinham que resolver o problema do pagamento dos pacotes com réplicas de dinheiro (ver
p. 99).
198
Como enfatizado na proposta do GESTAR, trabalhar com situações-
problema leva à mobilização de diferentes conteúdos matemáticos num mesmo
espaço e de forma articulada.
Ao invés de apresentar isoladamente uma a uma as operações
matemáticas e depois “testar” a aprendizagem ou não das mesmas mediante a
apresentação de problemas que não põem o sujeito em ação reflexiva sobre o
sentido do seu fazer, ganha-se muito mais em termos de argumentação, de
criatividade, de capacidade de interpretação quando se trabalha com situações-
problema.
Segundo Teixeira (2005), as crianças têm suas concepções
modificadas ou menos estereotipadas se lhes for dada a oportunidade de
vivenciarem diferentes situações, envolvendo objetos e relações matemáticas.
Tal afirmação implica que se tenha claro que por vezes as crianças
aplicam seus conhecimentos prévios dentro do modelo canonizado, não
Resolução de Problemas
Contexto relacionado à
realidade
Implica o
envolvimento do
sujeito
Articula
conhecimentos
prévios
Solução
É o(s)
caminho(s)
construído (s)
Procedimentos
diversificados
Não tem solução
pronta
Não é apenas a
resposta
numérica
Confrontação
Socialização Validação
199
importando se a forma de apresentação desses conhecimentos se datal qual o
modelo. E quando são valorizadas as suas produções espontâneas, as crianças
agirão de maneira não mecanizada, mas conseguirão entender os conceitos que
estão sendo trabalhados, sobretudo se têm origem nas situações-problemas como
vimos no caso de Lina ao efetuar a divisão de 432 por 8.
Assim, esperamos que o professor compreenda que na situação-
problema a criança é levada a se envolver, a se implicar na busca pela solução, a
usar com entendimento os conhecimentos de que dispõem. Não estamos falando
de um método, mas de uma concepção renovada de prática de ensino que visa
promover a aprendizagem, valorizando os saberes prévios das crianças.
Em seus estudos, Starepravo e Moro (2005) destacaram que é preciso
levar em conta aquilo que o aluno traz para a sala de aula. Usando os
conhecimentos próprios
42
, a criança é capaz de refletir sobre o que faz, ao invés
de simplesmente, reproduzir sem lógica algoritmos aprendidos mecanicamente.
Entretanto, o que pode ser visto são práticas de ensino em matemática
que apresentam, primeiramente, de um modo geral, os algoritmos convencionais
das operações matemáticas, para depois apresentarem problemas para os
alunos resolverem.
Desta maneira, a criança se obrigada por duas vezes a reproduzir
fielmente os algoritmos convencionais. Primeiro, porque lhes foi ensinado
inicialmente decorar os passos de resolução desses algoritmos. Segundo, porque,
embora apresentando problemas posteriormente, estes por sua vez, apelam para
pistas de resolução que levam necessariamente à aplicação de algum algoritmo
convencional, sem reflexão pela criança sobre o procedimento adotado.
Portanto, como nos mostraram nossos sujeitos neste estudo, é preciso
estimular as crianças em suas produções no contexto de situações-problema,
deixando-as livre para construírem suas hipóteses de resolução e a partir daí o
professor fazer a mediação competente que ajude o aluno construir novos
conhecimentos.
42
A partir disso, fica a questão: Mas quais são os “conhecimentos próprios” destas crianças? São
epistemologicamente iguais ao do professor? Têm a mesma significação e uso que o do
professor?
200
7.5. Com ou sem material?
Até bem pouco tempo a concepção de que era preciso trabalhar com
material concreto em sala de aula foi entendida como panacéia no contexto de
ensino de Matemática. De repente, ouvimos no discurso de professores a ênfase e
exigência de se trabalhar “concretamente”. A preocupação do ensino centrou-se
na necessidade de que a aprendizagem significativa correspondia a
“aprendizagem concreta”.
De acordo com Selva (1998)
A defesa indiscriminada do uso do material concreto no ensino de
matemática baseou-se numa interpretação simplista das características dos
estágios de desenvolvimento da criança propostos por Piaget (p. 95).
Contudo, ainda a autora destaca que o próprio Piaget (1969) e
Ginsrbug (1981)
43
, este último, analisando a contribuição da teoria piagetiana para
a educação, repreendem esse tipo de interpretação.
Fugindo à apreciação do tema em uma discussão mais demorada, ao
apresentarmos esta sessão com a questão: “Com ou sem material?”, não
pretendemos enfocar a aprendizagem nos termos mencionados acima.
A conversa que queremos ter com o leitor tem por assunto o trabalho
em sala de aula com suporte material a fim de que a criança expresse nele suas
ações mentais, refletindo sobre estas.
Quando procedemos à análise dos protocolos das crianças que fazem
parte deste trabalho, destacamos como o material revela estruturas de
pensamento que não se fazem perceptíveis se o aluno opera apenas no algoritmo
convencional.
43
A citação das obras de Piaget (1969) e Ginsburg (1981) foram feitas por Selva (1998) em seu
estudo sobre A influência de diferentes tipos de representação na resolução de problemas de
divisão”. Este estudo fez parte de sua dissertação para obtenção do grau de mestre em Psicologia
pela Universidade Federal de Pernambuco. Suas contribuições compõem o CAPÍTULO V da obra
organizada por Ana Lúcia Schliemann e David Carraher (1998). A referência consta na bibliografia.
201
Não queremos dizer com isso que somente mediante o uso de algum
tipo de material foi possível compreendermos as estruturas de pensamento das
crianças. Na verdade, a oferta de material, do não estruturado ao estruturado
44
,
demonstrou que ao reproduzir mecanicamente o procedimento subjacente às
operações matemáticas tal qual ensinadas na escola, o aluno não reflete sobre o
que está fazendo.
Como ainda destaca Selva (1998)
Muitos professores tratam o material concreto como um fim em si mesmo.
Ou seja, a apresentação do material, por si garantiria a compreensão
do aluno. Entretanto, mais importante do que o tipo de material utilizado
parece ser o modo como se trabalha com o material e a criação de
situações
45
que lhe dão significado e que proporcionam oportunidade para
que relações sejam estabelecidas, percebidas ou analisadas pelos alunos
(p. 97).
Portanto, não é o material pelo material que ajuda a criança a
compreender certos conceitos que estão sendo trabalhados, mas a pertinência do
uso do material em uma situação. A situação
46
realça a importância do material
que está sendo usado.
Além disso, Selva (1998) ainda destaca o fato de que preferências
quanto a certos tipos de material (material dourado, por exemplo) a outros (palitos
de picolé, dedos das mãos) que são muitas vezes usados de forma espontânea
pela criança.
No âmbito desta pesquisa, quando aos alunos foi pedido que
registrassem no material (a esse respeito, ver capítulo V) o que estavam
pensando, e comparando, posteriormente, com o registro escrito (lápis e papel),
44
Chamo material estruturado todo aquele que representa, de alguma maneira, o nosso sistema
numérico: base 10 (material dourado, réplicas de dinheiro). E o não-estruturado é aquele que não
revela as características do sistema de numeração (palitinho, canudinho etc.) e, portanto,
dependendo da situação-problema na qual a criança esteja imersa, seria adequado substituí-lo
pelo material estruturado. Por exemplo, no material estruturado a criança pode facilmente, em
termos práticos, representar o valor mil usando, no caso o material dourado, o bloco maior; com o
dinheiro, pode pegar dez notas de R$ 100,00. no material não-estruturado, teria que fazer a
contagem um a um até obter a quantidade mil.
45
Grifo meu.
46
Este assunto será retomado em sessão específica neste capítulo.
202
foi possível observar que eles conseguiram compreender, em termos de
procedimentos, a lógica subjacente aos algoritmos convencionais, uma vez que o
material ajudou na compreensão dessa lógica na estrutura decimal. O material
aparece como uma possibilidade de registro de esquemas. Ele constituiu-se em
espécie de linguagem pictórica.
Como exemplo claro e evidente dessa compreensão (o que fazer para
resolver uma operação e qual o sentido disso) podemos relembrar o protocolo de
Lina que registra uma situação em que precisava fazer a divisão de 432 por 8.
No primeiro registro, Lina usa mecanicamente os procedimentos
escolares dividir, multiplicar e subtrair, repetindo-os, sem expressar um
entendimento quanto ao porquê fazia daquela maneira. Resultado, Lina chega a
um registro estanho à compreensão do professor e do pesquisador.
Como entender o que Lina fez? Ficar apenas no plano das conjecturas
sem realizar a mediação pedagógica em nada ajudaria. Pensar sobre o que a
criança pensou sem dialogar com o sujeito-autor seria colocar palavras em sua
boca, sem que ela as tenha dito. Portanto, foi necessário realizar a mediação
pedagógica.
A pesquisadora de posse da produção da criança pediu, como
mencionado na análise do protocolo no capítulo anterior, que explicasse como
havia pensado para chegar ao resultado registrado. Com entendimento acerca da
produção de Lina, a pesquisadora propôs uma situação-problema e pediu à
criança para usar a réplica do nosso dinheiro enquanto resolvia a operação.
Observando agora em um contexto significativo e com manipulação do
material, a pesquisadora compreendeu que a criança tinha conceitos, sabia usá-
los, mas não sabia reproduzi-los no modelo convencional. Havia, como destaca
Ferreiro (2001), uma distância entre o procedimento no modelo convencional e o
procedimento em uma situação prática.
Além da situação-problema, o material contribuiu para que Lina
pensasse (e comunicasse) sobre o procedimento desenvolvido na resolução
daquela divisão, o que antes não tinha levado em conta, pois bastava apenas
cumprir o ritual – dividir, multiplicar e subtrair - para alcançar um resultado.
203
Por fim, Lina realiza a operação com êxito. Depois, ao final da tarefa,
comparamos as duas situações, a resposta é imediata, a criança olha a primeira,
olha a segunda e sorri. Isto bastou para que a pesquisadora percebesse como a
aluna se sentiu feliz, pois sabia fazer.
Não no caso de Lina, mas também com Joyce podemos constatar a
relevância do material. Ao resolver a subtração 7.497 1.803, Joyce parecia não
saber como funcionava o procedimento de resolução desta operação, uma vez
que envolve um desagrupamento.
Em sua primeira produção, opera com os valores sem demonstrar
entendê-los na estrutura numérica, isto é, sem compreender os valores
posicionais dos numerais. Isso pode revelar uma determinada concepção de
atividade matemática pela criança: trata-se de um agir, mesmo que não se
compreenda o que se faz. Essa concepção acaba por interferir no procedimento
que desenvolve.
Quando a pesquisadora sugere a resolução usando material, aqui
novamente usava réplica de dinheiro, embora, não o nosso, Joyce atribui os
devidos valores à quantidade registrada.
O que podemos concluir é que o material
47
cumpre uma função no
contexto da aprendizagem de conceitos matemáticos. Ele pode ter um valor social,
como o dinheiro, e mesmo outro tipo de material usado, trabalhado
adequadamente pelo professor junto às crianças traz ganhos consideráveis ao
processo.
Poderíamos rediscutir sua importância, retomando um a um os
protocolos analisados, bem como, apresentar outros obtidos na pesquisa, porém,
achamos essencial destacar que o concreto não é o material em si, o concreto é o
sentido atribuído pela criança ao seu fazer, e nesse âmbito, o material cumpriu
seu papel.
47
O material não precisa ser necessariamente “concreto”, mas representacional como as cédulas.
204
7.6. Sentidos da mediação e intervenção pedagógicas na construção de
procedimentos pela criança
Nossa reflexão sobre o papel da mediação e da intervenção
pedagógicas no processo de ensino e de aprendizagem não pretende colocá-las
em lados opostos, como se uma levasse ao menosprezo da outra.
Entendemos, no contexto desta pesquisa, que o papel da mediação
pedagógica é provocar no aluno o desenvolvimento de suas potencialidades, mais
do que dizer (prescrever receitas metodológicas) o que é para ser feito.
Por outro lado, entendemos também que a intervenção pedagógica
operada como mediação traz benefícios ao processo, pois não pretende induzir e
controlar a ação do aluno em nível de “se você fizer isso, vai chegar àquilo”, “se
não fizer o que eu falo, não vai chegar a lugar algum”.
Quando, porém, a ação pedagógica se reveste de um caráter
puramente interventivo, o professor passa a maior parte do tempo a ditar regras.
Manifesta-se um tipo de contrato didático
48
(Teoria das Situações) no qual todo o
fazer do aluno é direcionado pelo professor, pela escola.
Porém, quando a natureza da intervenção visa à estimulação cognitiva
do sujeito em situações de conflito, e o professor ajuda o aluno a compreender
certas relações que não esteja conseguindo enxergar naquele momento, fez-se a
mediação pedagógica.
Nesse sentido, a concepção de intervenção pedagógica não se adianta
ao processo, pondo em vida o potencial da criança, ou simplesmente ignorando
que o possua. Ela se torna útil se contribui para que o aluno supere conflitos.
48
O entendimento da noção de contrato didático é proposto por Brousseau (apud BRASIL, 2005).
“Esse contrato é constituído por um conjunto de regras implícitas ou explícitas que definem o papel
do aluno como do professor no processo de produção de conhecimento. Assim o contrato didático,
base da situação didática diz respeito a esse conjunto de regras que rege a totalidade do
funcionamento da prática pedagógica. As regras do contrato acabam por definir o que se pode e
não se pode, o que se deve o que não se deve, o que é desejável e não desejável no processo de
construção do saber, acaba por definir as ões realizadas pelos alunos no processo de
aprendizagem”.
205
Na análise do protocolo de Joyce envolvendo uma subtração, pode-se
ver que não houve apenas mediação pedagógica. Em alguns momentos, a
pesquisadora também fez a devida intervenção.
Vale ressaltar que não foi uma intervenção previamente planejada. Em
meio ao processo de mediação, pode acontecer, como foi com Joyce, de o aluno
simplesmente não conseguir avançar em certo momento. A partir da mediação
ficou claro que ela tem conhecimentos, sabe fazer, mas, às vezes, parece não
reagir à ação do professor. É como se existisse um obstáculo imenso que a inibia
de tal maneira, que acaba se retraindo.
É claro (e quando necessário) que se deve fazer a intervenção
pedagógica (ela também faz parte do processo de ensino e aprendizagem),
contudo, ela não pode ser tomada como uma ação de sobreposição do saber e
fazer do professor em relação ao saber e fazer do aluno.
Nesse sentido, a intervenção não contribui para a aprendizagem, pois,
dificilmente, se o professor é apenas interventor, ele não deixa e não estimula o
aluno a pensar.
A forma como a intervenção ocorrerá está determinada, justamente, na
concepção que o professor tem de seu papel em sala de aula mero transmissor
de conhecimentos ou estimulador, produtor, criador, transformador de
conhecimentos.
Se a educação avança, se o ensino avança, o professor deve também
acompanhar esse avanço e avaliar adequadamente como as mudanças afetarão o
processo, pensando sempre no aluno.
Vygotsky (2001) falando sobre um novo tipo de professor destaca:
Assim, a mais importante exigência que se faz a um professor nas novas
condições é a de que ele deixe inteiramente a condição de estojo e
desenvolva todos os aspectos que respiram dinamismo e vida (p. 449).
Por isso, as situações vivenciadas neste estudo revelam que a ação do
professor é mais do que saber para repassar. É mais do que inundar os alunos
com conhecimento como se fosse uma bomba, pois, se esse é o seu limite, então
206
pode ser substituído por um manual, por um dicionário, por um mapa, por uma
excursão (VIGOTSKI, 2000).
O sentido da nova concepção do papel do professor implica que sua
prática não deve ser indiferente às exigências de um aluno que de passivo e mero
ouvinte é contemplado hoje como ativo, responsável também pela produção do
conhecimento. O novo professor é alguém que está sempre aprendendo,
estudando, pesquisando, lendo, conhecendo, observando, aplicando, avaliando,
corrigindo-se.
O professor deve beber em uma fonte abundante. Não basta que ele saiba o
que, segundo as suas exigências, devem saber os seus alunos, e que à
noite ele prepare precipitadamente as respostas para as perguntas que
provavelmente lhes serão feitas na aula do dia seguinte. pode passar
informações em forma interessante aquele que for capaz de dar cem vezes
mais do que efetivamente tem que dar (VIGOTSKI, 2000, p. 451).
As nossas análises acabam por nos revelar que tal “fonte abundante”
pode e deve ser a busca da compreensão das produções matemática de nossas
crianças. Portanto, a ação do professor se reveste de propriedades propulsoras,
impulsionadoras, motivadoras, inquietadoras. Não ao aluno a comida na boca,
mas ensina a trabalhar por ela e aprender a comer.
“Até hoje o aluno tem permanecido nos ombros do professor. Tem visto
tudo com os olhos dele e julgado tudo com a mente dele” (VIGOTSKI, 2001, p.
452). Tal fato é o retrato de um cenário educativo no qual o professor mais
intervém do que media.
Enfatizar o papel vital da mediação pedagógica eficaz, no contexto
escolar, nos remete a um claro entendimento que o educador trabalha no sentido
de ajudar o aluno a caminhar sozinho.
O desafio que se coloca, o para a pesquisa, para o pesquisador,
mas em sala de aula para o professor no processo educativo e em se tratando da
aprendizagem em matemática, é, justamente, “Como fazer a mediação diante de
produções complexas se o mediador não compreende o processo”? “Como ajudar
207
o aluno a caminhar sozinho se o professor o sabe como auxiliá-lo a ficar em
pé”?
Em quantas salas de aula, Brasil a fora, seres matemáticos como
Suzana (uma das crianças pesquisadoras deste trabalho), cujo protocolo faz parte
da análise no capítulo anterior, estão em plena ação. Sabem fazer, mas por vezes,
não conseguem explicar o que fizeram. Além disso, não lhes é dada a
oportunidade de verbalizarem, socializarem suas produções, tendo esses
momentos em sala como um exercício diário.
Vergnaud (1996b) observando diferentes especialistas no exercício de
suas funções esclarece que ao serem solicitados a explicar como
desempenhavam suas tarefas não evidenciavam com clareza os conceitos que
estavam trabalhando, embora tivessem êxito naquilo que faziam. Esses
especialistas mesmo tendo um elevado nível de conhecimento, por vezes, não
sabiam explicitar com propriedade a rede de conceitos que estavam sendo
articulados em seu fazer. Por isso, o autor destaca que
um dos problemas do ensino é desenvolver ao mesmo tempo a forma
operatória do conhecimento, isto é, o saber-fazer, e a forma predicativa do
conhecimento, isto é, saber explicitar os objetos e suas propriedades (p. 13).
Então, se os alunos estão silenciados, amedrontados por serem vítimas
de um processo avaliativo, coercitivo, seletivo e excludente, agravado pela
“dificuldade” em aprenderem uma disciplina que consideram nada fácil, é preciso
dessilenciá-los, levá-los a darem voz ao seu saber, mostrarem suas construções,
suas descobertas.
Quantas Suzanas receberam sua punição porque fazem diferente,
produzem algo, na visão do professor, esteticamente feio, confuso, aparentemente
ininteligível. Para a grande maioria dos professores não como atestar que por
detrás de tal produção exista algum tipo de conhecimento lógico, aplicável, válido.
Em contrapartida, aqui, neste espaço de pesquisa, de estudo e de
aprendizado, abriu-se um espaço para esta Suzana expor de alguma maneira o
seu saber-fazer, mesmo que no começo não tenha ficado muito claro para a
208
pesquisadora e para a professora pesquisadora. Foi a compreensão de sua
produção que nos tornou mais educador, mais educadora e mais humana.
Onde mediação não existe sombra de dependência, de medo, de
cobrança, de sujeição cega. Há em contrapartida, tolerância, respeito mútuo,
empatia, atenção, responsabilidade, esmero.
Vale lembrar que não estamos colocando a mediação pedagógica como
único elemento responsável por um processo de aprendizagem produtivo. Ela é
apenas um. Juntam-se a ela, uma prática de ensino adequada, um processo
avaliativo formativo, uma orientação curricular renovada (preocupada com as
necessidades sócio-culturais), o estabelecimento de um contrato didático
transparente, negociado e não imposto. Tais elementos objetivam ajudar o sujeito
da aprendizagem a ter sucesso, a confiar em si próprio, a continuar na busca pelo
saber, participando ativa e efetivamente de sua construção.
7.7. Como fica a avaliação diante do alto potencial das crianças,
especialmente, as consideradas, em situação de dificuldade?
quem diga que se discutiu, se estudou e se falou muito sobre
avaliação. É verdade. Já se discutiu muito, se estudou muito e se falou muito, mas
não tudo. Por isso, retomar o tema neste capítulo se faz importante por dois
motivos. O primeiro porque é preciso conceber uma nova forma de avaliar o
ensino e a aprendizagem em matemática. O segundo porque precisamos enxergar
melhor o que quer dizer crianças em situação de dificuldade, especialmente,
quando se rotulam crianças com dificuldades aquelas que foram por sucessivas
vezes reprovadas, justificando a reprovação pelas “dificuldades” que
apresentavam.
Quanto ao primeiro motivo, um dos objetivos da pesquisa destinava-se
a investigar crianças em situação de dificuldade. Ou seja, crianças que não
tinham dificuldade, mas que em função da avaliação escolar, em seu sentido
209
tradicional, eram consideradas com dificuldades. Isso implica, no estudo,
deslocar a dificuldade, antes situada no sujeito, para o espaço relacional e
epistemológico aluno-professor. Assim, a dificuldade não é concebida nem em um
nem em outro, mas na natureza epistemológica de tal relação pedagógica.
Para melhor esclarecer o que queremos dizer com crianças em
situação de dificuldade, nos referimos àquelas (e isso não quer dizer que as
crianças que foram reprovadas sucessivas vezes estejam sempre em situação de
dificuldade) que em algum momento no processo de ensino e de aprendizagem
apresentam dificuldades, ou foram socialmente assim concebidas.
Apresentar dificuldades, nesse sentido, significa que podem existir
lacunas, as quais não devem ser identificadas tão somente no processo de
aprendizagem como se a dificuldade fosse do aluno. Antes, porém, o que nos
mostraram os protocolos analisados é que tais lacunas não foram, na verdade,
preenchidas durante o processo de ensino.
Em outras palavras, as crianças em situação de dificuldade no
entendimento desta pesquisa, são aquelas que, em determinados momentos em
contexto de sala de aula, apresentam um nível de compreensão, acerca de um
assunto de estudo, que merece ser melhor e mais profundamente observado.
Se voltarmos à análise dos protocolos apresentada no capítulo anterior,
poderemos observar algumas produções de crianças consideradas pela avaliação
escolar como “boas” em matemática. Contudo, em um momento, observou-se que
suas produções mostravam a existência de uma lacuna. Essa lacuna traduzia
justamente a distância entre o nível de compreensão do aluno sobre um assunto e
o que a escola esperava que o mesmo tivesse compreendido.
Por exemplo, quando Júlia estava realizando a operação de divisão, ela
fez a divisão corretamente, entretanto, não compreendia a organização espacial
dos valores decorrente do procedimento necessário para resolver esse tipo de
operação de acordo com a notação convencional.
Aqui, a lacuna identificada refere-se a aparente incompreensão por
parte da aluna quanto ao processo resolutivo da operação, embora, tal fato não
lhe retire a propriedade de saber e de saber-fazer matemática.
210
Entretanto, o que considero de suma relevância é que se uma criança
considerada “boa” em matemática não é acompanhada em suas produções, o que
não era para ser dificuldade pode vir a ser. Ou seja, se o professor considera um
aluno bom e não busca investigar a natureza cognitiva, em nível de ações mentais
e esquemas de pensamento, de suas produções, nega-lhe o direito de refletir
sobre o seu pensar, e conseqüentemente, furta-se à obrigação de realizar a
mediação pedagógica a fim de que esta criança avance em suas estruturas
cognitivas.
Portanto, considerar uma criança em situação de dificuldade implica, a
meu ver, obrigatoriamente, que o professor, no zelo de sua prática, reconheça
qual a necessidade do sujeito da aprendizagem, vale dizer, sujeito ativo, dinâmico,
um ser epistêmico.
Esta é uma das faces da moeda reveladas nesta investigação. A outra
que nos remete para o segundo motivo diz respeito às crianças repetentes. Como
se sabe, há um consenso, talvez bem mais frágil hoje, que as crianças que
repetem, repetem porque “têm” dificuldades. Então, se “têm” dificuldades é
aceitável que não consigam avançar em seus estudos.
Como forma de denunciar a fragilidade deste consenso, basta
revisitarmos a análise dos protocolos
49
de Lina, de Suzana, de Tati, de Joyce, por
exemplo.
Essas crianças, consideradas com dificuldades na aprendizagem em
matemática e com uma carreira estudantil (inicial ainda) marcada por sucessivas
reprovações, nos mostraram que as dificuldades não são suas, mas são nossas
quando ignoramos o que pensam, o que fazem, o que falam.
Vejo nestes exemplos, assim como Ferreiro (2001); Carraher, Carraher
e Schliemann (2001); Muniz (2004a, 2004b); dentre outros, uma prova
49
Embora, tenha obtido um número considerável de protocolos que poderiam ter sido analisados
em sua totalidade e apresentados nesta pesquisa, me vi obrigada a fazer uma seleção entre eles,
tomando por base que os selecionados pudessem dar conta dos objetivos desta pesquisa. É claro
que não desmerecendo as outras produções, sua não inserção neste trabalho o lhes tira o
prestígio e relevância, mas considero que as que foram apresentadas contribuíram para uma
releitura das práticas de ensino de matemática. Além disso, os protocolos que aqui não
apareceram, poderiam ser inclusos na dissertação até para complementar ou reforçar as
descobertas feitas, porém não tive a pretensão de provocar nenhum tipo de convencimento nos
leitores quanto à discussão que está sendo travada, por repetição.
211
incontestável do potencial cognitivo dessas crianças, do elevado nível de seus
conhecimentos. E isso nos remete a uma discussão epistemológica do sentido de
“dificuldade”.
Ferreiro (2001) em sua análise com um grupo de repetentes nos mostra
que os tipos de erros cometidos pelas crianças observadas estavam relacionados
com a maneira de resolver os problemas matemáticos e não com os erros
construtivos da psicogênese.
Além disso, reforça a grande distância que ainda existe entre o saber-
fazer na e para a escola e o saber-fazer prático. Sendo este último um saber fazer
qualitativamente diferente. Normalmente na escola não se atribui sentido aos
conceitos presentes em cada operação matemática, mas na vida prática as
crianças os validam porque sabem a funcionalidade dos mesmos. Ainda a autora
comenta:
Quando as vemos com o lápis na mão, vemos sujeitos que delegaram sua
inteligência à mecânica de procedimentos cegos, ou que encontram
soluções locais para escapar de uma dificuldade que nem sequer
conseguem avaliar em seus justos termos (p. 128).
Assim sendo, essas crianças com certeza tinham um grande potencial,
eram inteligentes, eram competentes naquilo que faziam, mas se viam inibidas e
coagidas em seu conhecimento, pois precisavam aprender o jeito da escola, o
jeito do professor.
Semelhante a estas crianças, as mencionadas anteriormente podem
ser entendidas da mesma forma. Com exceção de Suzana, que não havia
reprovado em nenhuma rie, mas era considerada com dificuldades na
aprendizagem em matemática, as demais haviam sido reprovadas em séries
anteriores ou na terceira série, além de terem sido remanejadas entre uma e outra
Classe de Aceleração da Aprendizagem
50
.
50
Para fins de esclarecimento junto aos leitores que não conhecem a estrutura das Classes de
Aceleração da Aprendizagem no contexto de ensino do Distrito Federal, vale ressaltar que sua
criação toma por pressuposto o que dispõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em
seu art. 24, inciso V, alínea b: “possibilidade de aceleração dos estudos para alunos com atraso
escolar” (Lei nº 9.394 de 20/12/1996).
212
Essas classes têm por finalidade promover a aceleração das crianças
de acordo com as necessidades de aprendizagem que apresentem, seja na área
de alfabetização ou quanto às habilidades requeridas para as séries iniciais, mas
especificamente, àquelas da 3ª e 4ª séries do Ensino Fundamental
51
.
Desta maneira, poderia cursar a Classe de Aceleração da
Aprendizagem/Alfabetização aquela criança que não teve seu processo de
alfabetização “concluído” e com retenção por dois anos
52
consecutivos na 1ª ou na
séries, períodos escolares em que são, normalmente, trabalhados conceitos
iniciais de letramento em português e em matemática.
Na Classe de Aceleração da Aprendizagem/Séries Iniciais,
correspondente às e séries, deveria ser matriculada a criança que, embora
estando alfabetizada, apresentasse alguma “dificuldade na aprendizagem”,
sobretudo, em Português e Matemática.
A situação de Tati, por exemplo, considerada neste contexto,
representa uma das distorções no sistema de ensino. De acordo com sua idade
deveria estar cursando a primeira série do ensino dio, entretanto, a questão
que se coloca não é “Porque ela não está no ensino médio”? A questão é “Que
mudanças estão sendo operadas no sistema de ensino, nas escolas, nas salas de
aula para evitar que outras crianças cheguem à mesma condição (temporária) em
que essa aluna se encontra”?
Digo condição temporária, pois é inadmissível que um aluno esteja
permanentemente em dificuldades. Se o mesmo encontra-se em processo de
aprendizagem, tais dificuldades são próprias do processo, e assim como, o
processo tende a avançar, tais dificuldades tendem também a ser superadas.
Fica em aberto onde está, pois, a gênese dessas dificuldades que são
atribuídas às crianças. Com certeza, a sucessão de reprovações pode acentuar
possíveis dificuldades que uma criança apresente, retirando dela seu sentimento
51
Vale destacar que estamos nos referindo às Classes de Aceleração no contexto de ensino de
à 4ª séries do Ensino Fundamental. Portanto, não podemos afirmar como tais classes estão
organizadas, além do que diz a lei, nos níveis de escolarização de 5ª série em diante.
52
A retenção por dois anos numa mesma série, configurando atraso idade/série, também é válido
para a Classe de Aceleração da Aprendizagem/Séries Iniciais.
213
de autoconfiança, aumentando sua baixa auto-estima e criando uma auto-imagem
de aluno-problema.
A partir da análise da produção de Tati revela-se um aspecto
fundamental que deve ser considerado no processo avaliativo. Se o aluno tem
dificuldades, então, ele não consegue progredir. Agora, se por um momento ele
apresenta uma dificuldade, significa que ela pode deixar de existir.
Quando Vygotsky (1998) destaca a importância do papel do outro no
desenvolvimento cognitivo de um sujeito, acertadamente nos mostra que o outro
assume um lugar no processo que é vital. O outro serve de impulsionador na
ativação das estruturas mentais mais avançadas.
A isso equivale dizer, que não seu par, mas, sobretudo, o professor,
tem uma importância supra no processo de ensino e de aprendizagem de uma
pessoa. Se eu não estou com meu par (se não se efetiva de fato o acolhimento
cognitivo), sendo estimulado na zona de desenvolvimento proximal, ao professor
caberá a responsabilidade de levar a criança ao aprimoramento de seu
desenvolvimento potencial, transformando-o em real.
Se este estímulo não acontece, a tendência é aceitar que a criança não
consegue avançar na aprendizagem e, por isso, não tem condições de prosseguir
com sucesso nos estudos.
Muniz (2004b), na análise de protocolo de um aluno de terceira série
em uma escola pública do Distrito Federal, nos mais um exemplo, da
concepção que a escola tem de criança com dificuldade. Por outro lado, seu
estudo contribui para confirmar o que estamos propondo em termos de
conceituação do que vem a ser criança em situação de dificuldade.
No caso mencionado acima, a criança faz uma operação de
multiplicação, porém a forma do registro não condiz com a notação convencional.
De imediato, a professora se dirige ao pesquisador e atesta que o porque
promover a criança para a série seguinte quando não sabe multiplicar
53
.
Neste sentido, os resultados da presente pesquisa contribuem para
uma rediscussão das práticas de ensino, especialmente em matemática, com
53
Para maiores detalhes acerca deste exemplo, consultar a bibliografia.
214
ênfase em aspectos relacionados à formação de professores, à avaliação, ao
conteúdo, aos processos cognitivos, ao processo de ensino e de aprendizagem,
de um modo geral. O que não esgota em absoluto as discussões e indica a
necessidade de novas investigações neste campo.
A análise dos protocolos registrada no capítulo anterior revelou que a
aparente dificuldade apresentada pela criança nas situações envolvendo a
aprendizagem de conceitos em matemática, na verdade, não representa um não
saber, no sentido de um o aprender. Antes pelo contrário, as crianças aplicam
seus conhecimentos prévios em tais situações e fazem adaptações que julgam
necessárias, por sua vez desconhecidas do professor em nível de processos
cognitivos e de registro, para realizarem com êxito as atividades propostas.
O que estamos buscando em termos de avaliação é uma concepção e
práticas avaliativas que sejam efetivamente formativas, processuais. Tomamos
por fundamento da prática pedagógica que a finalidade maior do ensino é a
aprendizagem. Portanto, ao se avaliar a aprendizagem, deve-se avaliar o ensino.
Se a aprendizagem avança, é sinal de que o ensino tem melhorado.
Uma revisão da concepção de avaliação da aprendizagem em
matemática pode e deve trazer importantes subsídios para uma revisão da
avaliação em outros campos de conhecimento.
Numa perspectiva de redefinição da avaliação no processo educativo,
Sousa (1991) e Villas Boas (2004), dentre outros autores, nos mostram que não
se avalia apenas o aluno. Na avaliação da aprendizagem do aluno deve se
considerar a organização do trabalho pedagógico. Essa consideração remete a
uma ampliação do conceito de avaliação formativa. Como destaca Villas Boas
(2004, p. 35)
Admitindo-se que a escola realiza trabalho pedagógico e não simplesmente
processo de ensino e aprendizagem, em que apenas o professor ensina e
apenas o aluno aprende, torna-se fácil compreender a necessidade de
ampliação do conceito de avaliação formativa, estendendo-a a todos os
sujeitos envolvidos e a todas as dimensões do trabalho. Segundo essa
perspectiva, abandona-se a avaliação unilateral (pela qual somente o aluno
é avaliado e apenas pelo professor), classificatória, punitiva e excludente,
porque a avaliação pretendida compromete-se com a aprendizagem e o
sucesso de todos os alunos. Para que isso aconteça, é necessário que todos
215
os profissionais da educação que atuam na escola também tenham
oportunidade de se desenvolverem e se atualizarem. O sucesso do seu
trabalho conduz ao sucesso do aluno. Toda a escola participa desse
ambiente de aprendizagem e desenvolvimento. Portanto, todas as
dimensões do trabalho escolar são avaliadas, para que se identifiquem os
aspectos que necessitam de melhoria (id., 2001, p. 185).
Contemplando essa ampliação, posso dizer que muda-se a prática
avaliativa de um professor, do corpo docente, do corpo administrativo, enfim, da
escola de ensino fundamental.
7.8. A pesquisa na sala de aula: um espaço de formação continuada
Sem pretender aprofundar a discussão sobre a relação entre ensino e
pesquisa, o que vem ocorrendo (ANDRÉ, 2001; LÜDKE, 2001; SANTOS, 2001
etc.), não poderia deixar de destacar a importância da pesquisa como um
elemento no processo de formação continuada do professor.
Acredito que esse processo não se restrinja apenas ao que acontece
nos limites de uma instituição, mas compreendo em sua dimensão prática quando
o professor com base em suas experiências diárias se inquietado a buscar
soluções para problemas relacionados ao ensino e à aprendizagem.
Não quero com isso discutir a postura do professor pesquisador à luz
dos dilemas quanto ao seu perfil e natureza de seu trabalho, (SANTOS, 2001).
Quero destacar sim a provocação que a pesquisa dentro da escola traz para a
prática docente.
Talvez haja quem possa discordar e não acreditar na possibilidade que
de fato a pesquisa em sala de aula traga ganhos para o professor, para o ensino,
para a aprendizagem, para a educação. Contudo, se a pesquisa deve contribuir
para que um conhecimento seja construído não por que duvidar da sua
influência, imediata ou não, duradoura ou não em relação à prática pedagógica.
Pensando nessa possibilidade, acredito que a pesquisa realizada
(pesquisa-ação), com a rie participante deste estudo, contribuiu de alguma
216
maneira para a ressignificação da prática pedagógica, não apenas na sala da
professora pesquisadora, mas em nível de escola. Isto porque houve momentos
em que a própria professora pesquisadora (e também a pesquisadora em alguns
casos) socializou com as colegas de trabalho o que estava acontecendo em sua
sala de aula. Portanto, a professora pesquisadora (e até mesmo as outras
colegas) foi provocada em sua prática, uma vez que também refletiu sobre o saber
e o fazer matemática de outros alunos, pois esteve inclusive analisando junto com
colegas de outras séries as produções espontâneas das crianças dessas séries.
Nesse contexto, em que a pesquisa assume um papel enquanto espaço
(provocativo) de formação continuada, faço minhas as palavras de Santos (2001)
O que está sendo enfatizado é a necessidade de se formar um docente
inquiridor, questionador, investigador, reflexivo e crítico. Problematizar
criticamente a realidade com a qual se defronta, adotando uma atitude ativa
no enfrentamento do cotidiano escolar, torna o docente um profissional
competente que, por meio de um trabalho autônomo, criativo e
comprometido com ideais emancipatórios, coloca-o como ator na cena
pedagógica (p. 23).
Não obstante as fronteiras existentes entre ensino, pesquisa e prática
docente (Lüdke, 2001), esta pesquisa se desenvolveu com base na interação
aluno pesquisador professor aluno, dando-lhes o devido status. Não
houve pretensão em assumir uma postura “iluminada” (id., ibid.), pois a razão de
sua realização não estava única e exclusivamente na universidade, mas na sala
de aula.
O que quero dizer é: se nos limitamos a compreender a importância da
pesquisa somente em nível institucional, que ganhos seriam advindos de sua
realização se não puder se vincular ao trabalho que é realizado em sala de aula
pelos professores?
Como mencionado anteriormente, não pretendo retomar discussões
que se instauraram quanto à relevância da pesquisa acadêmica, à inserção da
pesquisa nas escolas, à qualidade das pesquisas realizadas pelos professores e
217
nem ainda, quanto à pertinência ou não do termo professor pesquisador, se este
está em sala de aula ou se está na academia.
Não posso ignorar é claro, como destaca André (2001), que ensino e
pesquisa se articulam em vários sentidos, e em outros, se diferenciam. E ainda,
que para não incorrermos no risco de usarmos a forma professor pesquisador
genericamente, como se essa nova percepção fosse panacéia, precisamos
“passar a tratar das diferentes maneiras de articular ensino e pesquisa na
formação e na prática docente” (id., ibid., p. 61).
Desta maneira, compreendo que esta pesquisa pode, de alguma
maneira, ajudar a esclarecer em que sentido a pesquisa se articula com a prática
docente e a formação de professores. No sentido que a pesquisa é produção de
conhecimento, ao entrar no espaço das escolas, de cada sala de aula, leva o
professor (e o aluno) a se enxergar como produtor de conhecimento, pois a
produção do conhecimento na pesquisa deriva do que é aprendido com cada
professor (com cada aluno).
218
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E isto foi apenas o começo.
Pode parecer contraditório iniciar estas considerações finais com a frase
acima. Contudo, entendo que cada pesquisa “concluída” representa, na verdade,
um fator de motivação para que outras sejam realizadas.
Acredito que esta pesquisa trouxe mais que contribuições acadêmicas.
Assim como outras que se dedicam a estudar aspectos relacionados ao processo
de ensino e de aprendizagem, creio que por meio desta, também, se
descortinaram outras temáticas para investigação.
Nesse sentido, tendo em vista a finalidade desta pesquisa, não foi
possível contemplar, em profundidade, outras temáticas para estudo que dela
decorreram como: a mediação do conhecimento matemático, o processo avaliativo
no contexto de ensino e de aprendizagem de matemática, currículo, formação
continuada do professor de séries iniciais, a importância do material concreto
como elemento que possa facilitar o processo de aprendizagem em matemática, a
relevância do trabalho com situações-problema, a alfabetização matemática etc.
Entretanto, o fato de a realização desta pesquisa poder proporcionar
que outras temáticas possam ser abordadas com mais profundidade, em trabalhos
futuros, já é de grande relevância.
Considero que suas contribuições se dão nesse propósito. Levar os
possíveis leitores deste trabalho (pedagogos, psicólogos, matemáticos,
educadores matemáticos e outros) a refletirem sobre a necessidade de realizar
novas investigações, de descobrir novas temáticas, de pesquisar um assunto não
sobre a educação, mas para a educação.
A realização desta pesquisa, seguindo os princípios da pesquisa-ação,
foi de suma importância. Ao me colocar como pesquisadora, sem, contudo,
esquecer-me de meu papel também de educadora, pude me colocar mais próxima
dos alunos e da professora.
219
Assistir e participar das aulas, ter a liberdade de interromper,
respeitosamente, a professora durante as aulas, conversar com as crianças e
observá-las na realização das tarefas, trabalhar em grupo com elas, trocar e
propor sugestões à professora, registrar as produções das crianças, pedir às
crianças para explicarem suas produções foram momentos preciosíssimos, de
profundo valor, uma rica aprendizagem.
Receber das crianças uma carta dando boas-vindas, ler suas produções
de texto com o tema “Por onde anda a matemática”? e saber que, mesmo na
minha ausência numa ou outra aula, elas se mostravam indagadoras,
investigadoras, ativas e criativas, me a grande satisfação em saber que
nasceram bons frutos.
De repente, me vi sentada ao lado de um aluno que em outra ocasião
sequer me permitia ver o seu caderno. De repente vi Joyce sorridente e falante,
corajosa a mostrar suas produções e não ter mais medo de fazer, embora, noutro
momento, sua produção de texto registrasse que muitas pessoas têm medo da
matemática. Assim como ela tinha.
Saber que quase levei à loucura a professora com os seus muitos “meu
Deus”, me faz sentir tranqüila. Tranqüila porque ela também se constituiu
educadora matemática. Analisou até produção de alunos de outras séries.
Partilhou com os colegas o que estava acontecendo em sua sala.
Fico muito feliz porque esta pesquisa trouxe inquietação ao corpo
docente da Escola Classe 50 de Ceilândia. De alguma maneira, todos foram
contaminados pelos seus efeitos.
Se estas são algumas ilustrações daquilo que foi conquistado com esta
pesquisa, não posso deixar de mencionar o fato de que algumas lacunas vão se
formando.
Tendo em vista que o projeto da pesquisa tinha por objeto analisar os
esquemas das crianças, diante de situações escolares na aprendizagem de
conceitos matemáticos, não foi possível realizar um trabalho de mediação
pedagógica com maior intensidade. O tempo da aula não permitia, era preciso que
220
as crianças, com as quais dialogava a respeito de suas produções,
acompanhassem as atividades planejadas.
Outro aspecto a destacar é que algumas das dificuldades que observei,
quando as crianças realizavam certas atividades, estavam relacionadas à
aprendizagem de conceitos básicos que são normalmente trabalhados nas séries
anteriores, como por exemplo, compreensão do sistema de numeração decimal.
Quanto à avaliação, embora havendo um redimensionamento por parte
da professora pesquisadora na forma de avaliar, em termos, de buscar
compreender como a criança aprende, do que pode significar o “erro” e, da
importância da mediação pedagógica, ainda assim, não foi possível contemplar
esse processo totalmente reformulado, tendo por concepção o sentido formativo
da avaliação. Contudo, a partir do momento que a professora passou a pensar
sobre o desenvolvimento da aprendizagem dos alunos mediante o entendimento
de suas produções, sua atitude dava pistas de uma sensível, mas importante
mudança nesse contexto.
Em termos de currículo as barreiras foram maiores. Não que houvesse
uma pretensão por parte desta pesquisa propor o abandono do currículo para o
desenvolvimento de um novo projeto de ensino, mas que havendo a possibilidade
se tentasse trabalhar os objetos matemáticos com mais sentido para os alunos a
partir das descobertas decorrentes da análise de seus esquemas.
Essa dificuldade não é única e nem exclusiva da professora, mas tantos
outros sentem o mesmo em relação às exigências curriculares, além de outros
fatores que consideram prejudiciais ao processo.
Mais que uma constatação, a transcrição de um trecho da entrevista
realizada pela pesquisadora com a professora é a expressão de um apelo.
Assim, a professora se expressou:
Professora Bom! Na verdade, Elissandra, é complicado [pausa] na sala de aula!
Porque como você sabe, lá não é nada estático, né?. Você está lidando com a criança o tempo
todo E assim... Eu acho que estava deixando muito a desejar, principalmente no ensino de
matemática, porque antes da pesquisa, eu sabia que sempre houve... sempre houve uma
preocupação com o concreto, com o jeito que a criança faz, com a estrutura que ela usa pra
221
aprender, né? Só que você nunca faz um trabalho bem feito quando você tem conteúdo pra
vencer. Você quer vencer o conteúdo, então você acha que a maneira mais fácil da criança
aprender, é ela aprender aquele modelo, e ir lá no livro e que você já está acostumada a ensinar.
O que descobri é que as inquietações da professora remetem ao
enfoque dado por Pais (2002) quanto ao tempo didático e ao tempo da
aprendizagem. Um confronto que ainda permanece.
Se há boa vontade do professor em fazer um bom trabalho (como houve
no caso da professora pesquisadora), em ajudar o aluno no processo de
aprendizagem, em realizar uma avaliação processual e formativa, onde é
necessário operar a mudança para que efetivamente esse bom trabalho, essa
ajuda, essa avaliação aconteçam? Será que o problema é meramente curricular?
Ou será a questão da formação do professor? Ou ainda, quem sabe, pensar em
outras formas avaliativas que o as que existem, como provas, relatórios,
trabalhos etc?
No suscitar dessas questões, tantas outras podem ser enumeradas
e,com certeza, cada uma delas implica uma nova pesquisa, uma nova
investigação, uma nova abordagem.
As situações vividas durante a pesquisa não foram exemplos delatores,
nem este foi o propósito da pesquisa, do que acontece ou não em sala de aula, do
que o professor faz ou deixa de fazer, antes, se constituíram em ricas fontes de
informação sobre a necessidade de novas pesquisas.
Deixo, então, o convite a você, querido leitor que está tendo a
oportunidade de tomar conhecimento de todas as inquietações aqui relatadas. Um
fato é certo, ainda há muito para se descobrir, para aprender, para melhorar. Cada
sala de aula é um apelo veemente para que futuros pesquisadores, e os que
estão neste percurso, não deixem de olhar a causa da educação, não deixem de
amá-la.
222
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conceitos aritméticos – ensino e pesquisa. 2ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1998.
SCHLIEMANN. Ana Lúcia e CARRAHER. Terezinha e David. Na vida dez, na
escola zero. 12ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.
SELVA. Ana Coelho Vieira. Discutindo o uso de materiais concretos na resolução
de problemas de divisão. In: In: SCHLIEMANN. Ana Lúcia e CARRAHER. David
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(orgs.). A compreensão de conceitos aritméticos ensino e pesquisa. 2ª ed. São
Paulo: Papirus, 1998, pp. 95-120.
SEQUERRA. Mirian Louise. Inventando estratégias de lculo. In: Matemática 1.
Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação à Distância., 1998,
pp. 47-54, (Cadernos da TV Escola, PCN na Escola).
SOUSA. Sandra Zákia Lian. Revisando a teoria da avaliação da aprendizagem. In:
SOUSA. Clarilza Prado de (org.). Avaliação do rendimento escolar. 11ª ed.
Campinas, SP: Papirus, 1991, p. 27-50.
TAHAN. Simone Pinocchia. A vida numérica na sala de aula. In: Matemática 1.
Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação à Distância.L
1998, pp. 24-31, (Cadernos da TV Escola, PCN na Escola).
TEBEROSKY. Ana. Psicopedagogia da linguagem escrita. 9ª ed. Petrópolis, RJ:
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TEBEROSKY. Ana e FERREIRO. Emília. Psicogênese da língua escrita. Porto
Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
TEIXEIRA. Leny Rodrigues Martins. As representações da escrita numérica:
questões para pensar o ensino e a aprendizagem. In: MORO. Maria Lúcia e
SOAES. Maria Tereza Carneiro (orgs.). Desenhos, palavras e números: as marcas
da matemática na escola. Curitiba: Editora da UFPR, 2005.
TOLEDO. Maria Elena Roman de Oliveira. Numeramento e escolarização: o papel
da escola no enfrentamento das demandas. In: FONSECA. Maria da Conceição
Ferreira Reis (org.). Letramento no Brasil: Habilidades matemáticas. São Paulo:
Global, 2004.
VERGNAUD. Gerard. A trama dos campos conceituais na construção dos
conhecimentos. In: Revista do GEEMPA. Tempo de romper para fecundar. Porto
Alegre, 1996a, nº 4, julho, pp.9-20.
_________________. A formação de competências profissionais. In: Revista do
GEEMPA. Tempo de romper para fecundar. Porto Alegre, 1996b, nº 4, julho,
pp.63-76.
227
VILLAS BOAS. Benigna Maria de Freitas. Portfólio, avaliação e trabalho
pedagógico. Campinas, SP: Papirus, 2004.
VIGOTSKI. L. S. A formação social da mente. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
_______________. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
_______________. Psicologia Pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
228
ANEXO A: Protocolos analisados pela pesquisadora
Nº: DATA: 11/05/05 SUJEITO: Pedro e Tiago:
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Atividade trabalhada em grupo. A pesquisadora propôs diferentes
operações. Cada grupo recebeu um tipo de material (ábaco, material dourado, canudinho etc.,) para
resolver a operação sugerida. Os alunos desta equipe utilizaram o material dourado. Realizaram a tarefa
juntos e foram registrando simultaneamente as etapas de resolução.
PRODUÇÃO:
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
²
3 2
- 1 8
20 + 2
(10-8) + 10 + 2
1 + 1 + 12 = 14
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE:
Os alunos representam com o material dourado 3 dezenas e 2 unidades. Subtraem: 3d –1d = 2d (20).
Adicionam: 2d + 2 u = 22. Para subtrair as 8 unidades restantes de 22, eles fazem uma troca. Pegam 1
dezena e substituem por 10 unidades, retiram as 8 unidades que faltam ser subtraídas e registram as 2
unidades que sobraram da seguinte maneira: 1 + 1. Antes porém de juntar essas unidades derivadas da
subtração 10 8, os alunos pegam as 2 unidades da quantidade inicial (32) e adicionam à dezena restante
da subtração: 20 –10 = 10, totalizando então, 12. Então, acrescentam a essa soma (10+2=12), as duas
unidades que surgiram da transformação de uma dezena em 10 unidades, das quais foram retiradas 8.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
Em Muniz, encontramos suporte para reforçarmos a importância de favorecer a utilização de materiais que
possibilitem a criança expressar de certa maneira a sua organização de pensamento.
Ao manipular esses materiais a criança descobre as possibilidades e os limites inerentes à própria estrutura
do material. Assim sendo, quando em contato com diferentes materiais em situações semelhantes é capaz
de realizar de desenvolver procedimentos variados e, portanto, chegar a conclusões sobre a adequação ou
não de um determinado material para um determinado tipo de situação-problema, e ainda, compreenderá
que uma mesma operação em situações diferentes pode produzir resultados diversos.
229
Nº: DATA: 11/05/05 SUJEITO: Mateus
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Atividade realizada em grupo. Cada grupo de alunos recebeu
um tipo de material (ábaco, palitinho, material dourado) para realizar a operação. Os grupos
foram orientados pela pesquisadora e pela professora. A operação apresentada foi dada fora
de uma situação-problema. Aos alunos foi pedido que registrassem ou por escrito ou com
desenhos como pensaram para resolver a operação.
PRODUÇÃO:
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
8 2 5 2 4d e 1d+2u
- 3 8 4 (12)
5 2 (4d + 1d) + 2u=52 - 8
4 4
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE
A resposta dada pelo aluno confere exatamente com o modelo escolar de resolução de
subtração envolvendo desagrupamento, mas a partir do registro escrito da explicação de seu
procedimento, vê-se claramente que seu esquema de pensamento é diferente do procedimento
constante no algoritmo escolar.
Contrariamente, ao que é ensinado na escola inicia-se a resolução da subtração da direita
para a esquerda – o aluno parte da esquerda para a direita, pois a quantidade representada na
dezena é suficiente para subtrair três dezenas, restando 5 dezenas.
Compreendendo o processo de desagrupamento, o aluno transforma uma dezena em 10
unidades sem alterar a quantidade restante da primeira subtração (40+10=50), e adicionando à
dezena transformada as duas unidades, subtrai oito, obtendo ao final conforme seu registro
tanto no algoritmo apresentado como na explicação o total de 44.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA: O procedimento desenvolvido pelo sujeito para se chegar a um
resultado não está expresso na resposta alcançada. E mesmo que as etapas desenvolvidas
pelo sujeito na resolução sejam passíveis de conhecimento do educador, é mediante a
explicação pelo sujeito do como foi feito que se manifestam as suas estruturas de pensamento
as quais dão suporte a este fazer, mas que não acompanham o resultado, pois há um maior
interesse na resposta dada que o procedimento desenvolvido para construí-la, sendo este na
verdade um valioso instrumento de conhecimento matemático do sujeito e de novas formas de
avaliação dessas produções.
230
Nº: DATA: 11/05/05 SUJEITO: Rebeca
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Atividade realizada em grupo. Cada grupo de alunos recebeu um tipo de
material (ábaco, palitinho, material dourado) para realizar a operação. Os grupos foram orientados pela
pesquisadora e pela professora. A operação apresentada foi dada fora de uma situação-problema. Aos
alunos foi pedido que registrassem ou por escrito ou com desenhos como pensaram para resolver a
operação.
PRODUÇÃO:
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
3 1
6 (3) 4 3
- 2 6 - 6
4 3 30 +10 +3
30 + (1+1+1+1+1+1+1+1+1+1+) +3
30 + 4 + 3 = 37
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE
A REVELAÇÃO DO ESQUEMA foi possível mediante a explicação pela criança de seu procedimento,
pois ao lado da operação não havia qualquer registro de como fora feito, embora se tivesse pedido para
que os alunos fizessem.
O aluno inicia a subtração pela dezena, pois a quantidade na unidade (3) não é suficiente para realizar a
operação, ou seja, subtrair 6. À quantidade restante na dezena (4 d) a criança adiciona a reserva que tinha
na unidade (3), restando então, 43. Desagrupa uma dezena (40 –10), mas exprime por meio de uma
adição: 30 + 10 + 3, o valor 43. A dezena desagrupada não é adicionada a quantidade constante na
unidade, mas dela subtrai-se a quantidade 6, fazendo posteriormente uma nova adição, que pode ser
assim representada 30 + (10 – 6) + 3 30+4+3=37.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
Subjacente ao modelo convencional para resolução de uma subtração envolvendo desagrupamento,
percebe-se que a criança cria estratégias diferenciadas na busca por uma solução. Esta por sua vez,
decorre de um esforço para realizar os ajustes necessários para produzi-la.
Além disso, segundo Vergnaud, o sujeito trabalha o apenas com um conceito, mas com uma classe de
conceitos quando em situação. Neste caso, o sujeito parte do conceito principal de subtração, mas por
meio de sucessivas adições em paralelo com outras subtrações, chega ao resultado.
231
Nº: DATA: 11/05/05 SUJEITO: Joyce
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Atividade passada pela professora no quadro. O exercício pedia
que os alunos resolvessem as operações. A atividade realizada pela aluna foi acompanhada pela
pesquisadora e depois transcrita de seu caderno para o caderno da pesquisadora. A aluna,
segundo avaliação da professora, tem muita dificuldade em matemática.
PRODUÇÃO:
¹ ²
3 4
- 1 7
2 4
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
1º) 3 - 1 = 2
2º) ¹ registro da primeira subtração
3º) ² registro do resultado da subtração 3-1
4º) 4 – 7 = [ ? ], então, 4-7 = 4
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE
A aluna inicia a resolução da direita para a esquerda. Através de seu registro é possível identificar
o procedimento utilizado para realizar a subtração. Representando com traços a quantidade 7
unidades, a aluna primeiramente conta um a um até totalizar 7, depois risca um a um, três
tracinhos, obtendo 4 como resultado. Ao subtrair 9-0 não faz registro com traços, pois, a
quantidade a ser subtraída não altera o valor inicial, ou seja, 9. Ao chegar em 4-8 (centenas),
registra primeiramente 4 tracinhos, logo embaixo faz mais 4 e depois risca um a um os oito
tracinhos, restando zero. Os quatro últimos traços adicionados aos primeiros foram obtidos da
quantidade representada na unidade dos milhares (7). A aluna registra 7 traçinhos, risca um a um 4
tracinhos que o adicionados a quantidade constante na centena (4) para poder obter 8, e então,
realizar a subtração 8-8=0. Da quantidade restante na classe dos milhares (7-4=3) torna a subtrair,
retirando 1 de 3, restando 2, ficando o resultado da operação 7.497-1.803 = 2.094.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
Estudos na área (Kamii, Muniz) revelam que o conhecimento do conceito de mero pela criança é
fundamental para aprendizagem em matemática. Uma vez que a criança tem a estrutura do
número bem trabalhada, ela é capaz de compreender processos de resolução presentes nas
operações tais como agrupar, desagrupar e reagrupar.
A dificuldade que muitas vezes o professor acredita que um aluno tenha em sua aprendizagem tem
seu nascedouro na má formação de conceitos básicos que fundamentam estruturas mais
complexas, por conseguinte, será comum nas produções das crianças a aplicação de regras de
resolução sem entendimento real do que significam, levando a criança a fazer ajustes,
considerados “absurdos” pelo professor e que na verdade, expressam uma não compreensão do
como se faz no algoritmo convencional.
É, pois, de suma importância trabalhar os conceitos, apresentando às crianças diferentes
situações-problema, além do uso de materiais variados que ajudam na construção de formas
diversas de procedimento.
232
Nº: DATA: 19/05/05 SUJEITO: Joyce:
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Correção de atividade de casa no quadro. A professora escolhe aleatoriamente
alunos para resolverem as operações, faz a correção e os alunos acompanham. As operações não foram dadas
em contexto de situação-problema. A produção da criança foi transcrita de seu caderno para o caderno da
pesquisadora.
PRODUÇÃO:
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
7. 4 9 7
- 1. 8 0 3
1º) 7 = 1 + 1+ 1 + 1 +1 +1 +1 7-3= 4
2º) 9 = 9 –0 9
3º) 4 = 1 + 1 + 1 + 1 e 1 + 1 + 1 + 1 8 –8 =0
4º) 7 = 1 + 1+ 1 + 1 +1 +1 +1 7-4=3 e 3 – 1 = 2
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE
A aluna inicia a resolução da direita para a esquerda. Através de seu registro é possível identificar o
procedimento utilizado para realizar a subtração. Representando com traços a quantidade 7 unidades, a aluna
primeiramente conta um a um até totalizar 7, depois risca um a um, três tracinhos, obtendo 4 como resultado. Ao
subtrair 9-0 não faz registro com traços, pois, a quantidade a ser subtraída não altera o valor inicial, ou seja, 9. Ao
chegar em 4-8 (centenas), registra primeiramente 4 tracinhos, logo embaixo faz mais 4 e depois risca um a um os
oito tracinhos, restando zero. Os quatro últimos traços adicionados aos primeiros foram obtidos da quantidade
representada na unidade dos milhares (7). A aluna registra 7 traçinhos, risca um a um 4 tracinhos que são
adicionados a quantidade constante na centena (4) para poder obter 8, e então, realizar a subtração 8-8=0. Da
quantidade restante na classe dos milhares (7-4=3) torna a subtrair, retirando 1 de 3, restando 2, ficando o
resultado da operação 7.497-1.803 = 2.094.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
Estudos na área (Kamii, Muniz) revelam que o conhecimento do conceito de número pela criança é fundamental
para aprendizagem em matemática. Uma vez que a criança tem a estrutura do número bem trabalhada, ela é
capaz de compreender processos de resolução presentes nas operações tais como agrupar, desagrupar e
reagrupar.
A dificuldade que muitas vezes o professor acredita que um aluno tenha em sua aprendizagem tem seu
nascedouro na formação de conceitos básicos que fundamentam estruturas mais complexas, por
conseguinte, será comum nas produções das crianças a aplicação de regras de resolução sem entendimento real
do que significam, levando a criança a fazer ajustes, considerados “absurdos” pelo professor e que na verdade,
expressam uma não compreensão do como se faz no algoritmo convencional.
É, pois, de suma importância trabalhar os conceitos, apresentando às crianças diferentes situações-problema,
além do uso de materiais variados que ajudam na construção de formas diversas de procedimento.
233
Nº: DATA: 02/06/05 SUJEITO: Joyce
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Atividade de arme e efetue passada em sala pela professora. Os alunos
resolviam as operações e a correção era feita no quadro. A professora escolhia alguns alunos para
resolverem as operações enquanto os outros acompanhavam a resolução e faziam as correções
necessárias.
PRODUÇÃO:
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE
Analisando a resposta dada pela criança em paralelo com a primeira explicação registrada pela mesma
logo ao lado de sua produção, parece haver uma não compreensão do valor posicional dos números.
Como há uma adição do valor absoluto dos numerais (1+1+1, 2+2+2 e 2+2+2), aparentemente, a aluna não
demonstra compreender a adição do 122 três vezes. Juntamente com a pesquisadora a criança faz uma
análise de sua produção chegando ao algoritmo 100+100+100, 20+20+20 e xx + xx + xx.
Observe que além da compreensão do valor 122 que aparece decomposto, a criança explica para a
pesquisadora que o 20 equivale a duas dezenas. Além disso, a diferenciação entre 2 dezenas e 2 unidades
se faz mais nítida ainda, em relação a primeira produção, quando a criança registra as unidades usando a
letra “x”.
Note-se ainda, que tanto a primeira produção como a segunda conservam a mesma ordem de resolução
da esquerda para a direita.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
Para a resolução de uma operação a criança não recorre apenas ao que é dado, mas trabalha com outros
conceitos. Mesmo que a resposta dada, neste caso, expresse um saber fazer envolvendo apenas a
multiplicação, tanto na primeira produção quanto em sua análise, resultando no segundo algoritmo,
observa-se que a criança conserva um padrão de resolução, o que Vergnaud chama de invariantes
operatórios, neste caso, a adição em separado dos valores sejam eles o 1+1+1, 2+2+2 e 2+2+2 ou o
100+100+100, 20+20+20 e xx + xx + xx revelando o processo de decomposição da quantidade a ser
multiplicada e a indicação clara de ordem de resolução da esquerda para a direita.
234
Nº: DATA: 11/05/05 SUJEITO: Jeane
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Apresentação do algoritmo da divisão pela pesquisadora. O conteúdo de
divisão ainda o havia sido trabalhado pela professora. A pesquisadora registrou no quadro negro a
divisão 41 por 3 e pediu aos alunos que cada um resolvesse a seu modo, fazendo a representação de
como chegaram ao resultado. A divisão sugerida foi apresentada fora de uma situação-problema.
PRODUÇÃO:
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
41 3
41 –1 = 40 40-1 = 39 39 –1=38
38 –1 = 37 37-1 = 36 36 –1=35
35 –1 = 34 34-1 = 33 33 –1=32
32 –1 = 31 31-1 = 30 30 –1=29
29 –1 = 28 28-1 = 27 27 –1=26
26 –1 = 25 25-1 = 24 24 –1=23
23 –1 = 22 22-1 = 21 21 –1=20
20 –1 = 19 19-1 = 18 18 –1=17
17 –1 = 16 16-1 = 15 15 –1=14
14 –1 = 13 13-1 = 12 12 –1=11
11 –1 = 10 10-1 = 9 9 - 1= 8
8 –1 = 7 7-1 = 6 6 - 1= 5
5 –1 = 4 4 -1 = 3 3 - 1= 2
(13) (13) (13)
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE
Embora o registro escrito e o desenho da aluna o revele a totalidade do procedimento desenvolvido,
percebe-se que a divisão por partilha foi realizada corretamente. Na verdade, a criança não começa
fazendo a distribuição com base na quantidade máxima que pode ser colocada em cada linha (ver o
desenho), ou seja, 13 para cada, mas através de subtrações sucessivas vai distribuindo uma a uma as 41
bolinhas, indicando por meio da elaboração de um algoritmo a quantidade restante (2), o total distribuído
(13), além da indicação da quantidade 00” como reforço da quantidade máxima que foi dada, servindo
como esclarecimento da não possibilidade de realizar mais nenhuma distribuição para três e, portanto,
encerrando a divisão.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
Como expresso na produção da aluna o que vemos é um conjunto de conceitos matemáticos sendo
trabalhados simultaneamente para produção de uma solução. É a articulação entre diferentes conceitos o
fundamento da teoria dos “Campos Conceituais” de Gerard Vergnaud.
A resposta obtida é apenas a expressão final de um complexo processo de elaboração desenvolvido pelo
sujeito e que não pode ser tomada como referência padrão da aprendizagem ou não de determinados
conceitos.
De acordo com Muniz, cada sujeito desenvolve procedimentos que lhes são peculiares, pois representam a
forma de pensar pessoal de cada um. Acrescenta ainda, que quando utilizando diferentes materiais o
sujeito também desenvolve diferentes procedimentos, pois busca no material a possibilidade de
representação de seu esquema de pensamento.
235
Nº: DATA: 14/09/05 SUJEITO: Cassiane:
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Atividade passada em sala pela professora com o seguinte comando:
Resolva as operações abaixo. Lembre-se dos diferentes materiais que você aprendeu a usar.
Posteriormente, a atividade foi recolhida pela professora. A criança não usava neste momento nenhum
material para resolução da operação.
PRODUÇÃO:
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
1+1+1+1+1+1+1+1+1+1+1...=41
13 13 13
13 + 13+ 13 = 39 + 1 + 1 41
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE:
Antes de iniciar a divisão a aluna registra a quantidade a ser dividida (41) com tracinhos. Na verdade cada
tracinho é contado numa adição repetida (1+1+1...) até chegar ao total final (41). Depois, tendo em vista,
ser uma divisão para três, representa com “círculos” três grupos. Para realizar a divisão, a cada tracinho
registrado nos conjuntos, outro é riscado na representação do total de tracinhos que serão distribuídos. A
aluna repete esta ação até distribuir de modo igual entre os conjuntos 13 tracinhos. Então, através de uma
adição, confirma a quantidade de tracinhos distribuídos (13+13+13), totalizando 39. Esta conferência,
entretanto, acontece primeiramente, quando vai riscando um a um os tracinhos registrados em cada
conjunto, encerrando o procedimento riscando os dois últimos tracinhos representados na sucessão
(1+1+1...) os quais adicionados ao total distribuído (39), totalizam 41.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
Embora sendo uma operação de dividir, percebe-se claramente que a aluna mesmo não tendo ainda, o
conhecimento do algoritmo convencional, realiza a operação com base na noção de partilha, ou seja, dar o
“mesmo tanto” para outros. Isso reforça o que Muniz destaca ao enfatizar que a criança lida com o
conhecimento matemático em seu cotidiano e que cria estratégias diferentes para resolver uma operação
diferentemente de como faria na escola. Dividir de forma igual é uma ação corriqueira que se manifesta nas
brincadeiras e jogos rotineiros que acontecem fora e dentro da escola.
O registro da operação no algoritmo dado tem pouca importância, pois a operacionalidade do pensamento
não está nele, mas sim nos contructos pelo sujeito desenvolvidos para se chegar a ele.
A validade do pensamento não está na resposta final que venha a ser dada, mas em caminhos traçados
pelo sujeito para expressar com fidedignidade suas concepções.
1... 1... 1....
236
º: DATA: 08/06/05 SUJEITO: Suzana :
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Apresentação do algoritmo da divisão pela pesquisadora. O
conteúdo de divisão ainda não havia sido trabalhado pela professora. A pesquisadora registrou no
quadro negro a divisão 41 por 3 e pediu aos alunos que cada um resolvesse a seu modo, fazendo
a representação de como chegaram ao resultado. A divisão sugerida foi apresentada fora de uma
situação-problema.
PRODUÇÃO:
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
21 10 10
7 + 3 + 3 = 13
7 + 3 + 3 = 13
7 + 3 + 3 = 13
1 + 1 = 2
41
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE
Mesmo não explicitando com total clareza o como fez, pela fala da aluna combinada ao seu
registro, é possível enxergar o que não se manifesta no algoritmo padrão, uma vez que a divisão
foi efetuada com sucesso sem a preocupação quanto a representação espacial da divisão como
trabalhada pela escola.
Ao ser questionada sobre como chegou ao resultado, a aluna respondeu que havia feito a
distribuição para três. De sua explicação depreende-se que os valores apresentados no algoritmo
por ela construído (21/10/10) revelam a compreensão da divisão de 41 por três. Embutido em cada
valor existe um processo de divisão por partilha, mesmo que nesse contexto apareça um valor que
não possa ser dividido, no caso, o resto (2).
Além disso, a compreensão do conceito de partilha não aparece numa estrutura conhecida pelo
professor, antes está expressa no esquema 7/7/7, 3/3/3 + 1 e 3/3/3 + 1, o que não desqualifica o
processo construído pela criança, mas revela a riqueza de pensamento no seu fazer matemático.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
Com base em teóricos como Muniz e Vergnaud destacam-se dois aspectos importantes presentes
nessa construção. O primeiro, de acordo com Muniz (2004), diz respeito às estruturas de
pensamento como construções complexas e ricas que requerem do professor um olhar mais
acurado para uma mediação eficiente. O segundo, como destacado por Vergnaud (1996), refere-se
ao fato de que nem sempre a criança/sujeito consegue explicar com clareza o procedimento
realizado. É um saber fazer com propriedade, contudo nem sempre fácil de se explicar como foi
feito.
237
Nº: DATA: 06/07/05 SUJEITO: Júlia
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Aplicação de prova pela professora referente ao 2º bimestre. A
pesquisadora não acompanhou a aplicação da prova como também auxiliou na correção. Os protocolos
selecionados foram apreciados em conjunto pela professora e pesquisadora quanto a análise do algoritmo
registrado pela criança. Ressalte-se que a revelação do esquema deu-se quando da entrega da prova aos
alunos, momento em que a pesquisadora chamou algumas crianças para que lhes falassem de suas
produções.
PRODUÇÃO:
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
9 x 5 5 – 10 – 15 – 20 – 25 – 30 – 35 – 40 - 45
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE:
Após a criança ter recebido a prova, fato que não se deu no mesmo dia, a pesquisadora pede que a mesma
explique o que pensou no momento em que resolveu a operação. Antes da explicitação pela criança havia uma
interpretação por parte da pesquisadora, a qual foi compartilhada com a professora, de que a criança pudesse ter
registrado o numeral 12 no quociente como representando a quantidade de grupos com 5 contados pela criança, sem
contudo, ter ficado claro porque também aparecia em 96 – 12. A explicação dada pela criança confirma a análise inicial.
No verso da prova ela registra, fazendo sucessivas adições, o que representa uma contagem por agrupamento de 5 em
5, a quantidade de vezes que contou o numeral 5 até chegar em 95. No momento em que chega ao total 19 e não 12,
diz que contou errado. Embora, durante a prova, a professora tivesse dado papéis para rascunho, a criança diz ter feito
a conta “na cabeça”. Então, peço que faça o registro da operação com o total que de grupos formados. A criança torna
a repetir a mesma estrutura constante na prova. Contudo, deixa claro que tanto o 19 que aparece no quociente e é
repetido na resolução da subtração: 96 - 19, representa a quantidade de grupos que ela encontrou e que, portanto, são
esses grupos que deverão ser subtraídos de 96. Observe que acontece o mesmo no registro da operação na prova
quando o quociente 12 também se repete em 96 12. Então, a pesquisadora questiona se o valor que ela encontrou
após a contagem de 5 em 5 é 19 ou 95. A criança responde que é 95. Daí, a pesquisadora pergunta à criança: “Se
você pegou o 95 e dividiu em grupos de 5, descobrindo que pode formar 19 grupos, então você vai subtrair de 95 a
quantidade de grupos ou o total a que você chegou contando 19 vezes o 5?” A criança olha para a operação e
responde que vai retirar o total a que chegou (95). Então, a pesquisadora torna a registra novamente a divisão (96: 5) e
explica para a criança a disposição espacial dos valores encontrados. Desta, maneira, a criança descobriu que o
resultado final dessa divisão foi 1 e não 83. A pesquisadora ainda pergunta para a criança: “Será que 19 vezes o 5, que
foi a quantidade de vezes que você contou o 5, vai dar de fato 95? De que outra maneira você poderia fazer?” A
criança arma uma multiplicação (19x5). Resolve 9x5, usando os dedos. Para cada dedo adiciona 5
(5,10,15,20,25,30,35,40,45); registra as 5 unidades, eleva as 4 dezenas, multiplica 5 x 1, sabendo que este um vale 10
e adiciona as 4 dezenas que resultaram da multiplicação de 9x 5, confirmando o total de 95.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
A explicação dada pela criança revela alguns princípios da Teoria dos Campos Conceituais de Vergnaud como: a
manifestação de mais de um conceito e os invariantes operatórios.
Além disso, vale destacar que é importante dar voz à criança para que ela possa esclarecer o que está obscuro aos
olhos seja do pesquisador, seja do professor. Tal aspecto é considerado por Muniz de grande importância, visto que
considera a criança como um ser epistêmico e matemático, e, portanto, produtor de conhecimento.
Vale enfatizar também a importância do outro seja seu par ou um adulto na construção do conhecimento. Vigostki traz
relevantes contribuições nesse sentido, ao destacar a importância da presença do outro e o papel da mediação,
sobretudo, o papel do professor como mediador.
238
Nº: DATA: 14/09/05 SUJEITO: Júlia
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: A situação-problema foi proposta pela pesquisadora. O contexto de criação
da situação-problema foi a compra pela pesquisadora de pacotes com a réplica do dinheiro para alguns
alunos. A pesquisadora mostra a nota fiscal aos alunos, transcreve as informações constantes na nota para
o quadro, exceto o valor total, e pede para que os alunos digam o valor pago pela compra, sendo que o
valor de cada pacote é de R$ 0,99 e foram comprados 10 pacotes.
PRODUÇÃO:
REVELAÇÃO DO ESQUEMA
10 x (R$ 1,00 – R$ 0,01) 10,00 – 0,10 = 9,90
(R$ 1,00 – R$ 0,01)
(R$ 1,00 – R$ 0,01)
(R$ 1,00 – R$ 0,01)
+ . .
. .
. .
(R$ 1,00 – R$ 0,01)
(R$ 10,00 – R$ 0,10) = R$ 9,90
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE:
A aluna resolve primeiramente pelo algoritmo padrão de multiplicação: 10 pacotes vezes o valor unitário R$
0,99. Contudo, no algoritmo não tem qualquer preocupação em indicar a quantidade multiplicada como
valor em moeda. Visto que foi pedido que usando o dinheiro os alunos simulassem o pagamento da
compra, a aluna registra por escrito que utilizou 10 notas no valor de R$ 1,00. Como não dispunha de
moedinhas para fazer a representação do valor unitário (R$ 0,99), opera da seguinte maneira: R$ 1,00
R$ 0,01 R$0,99. Desta maneira, sabe que obtém o valor unitário, mesmo sem representá-lo. Daí,
repete essa estrutura de pensamento por 10 vezes (quantidade de pacotes comprados), fazendo
simultaneamente uma adição, chegando a: R$ 10,00 – R$ 0,10 = R$ 9,90.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
De acordo com estudos na área da didática da matemática, desenvolvimento cognitivo e aprendizagem em
matemática entendemos que a operacionalização do pensamento não está no algoritmo registrado. Antes,
por sua vez, se manifesta nos procedimentos desenvolvidos, os quais revelam esquemas de pensamento.
Contudo, é preciso que haja por parte do professor um incentivo para que o aluno explicite sua forma de
pensar, de fazer por meio de algum tipo de registro (números, desenhos, frases etc.,) a fim de que se torne
conhecido pelo professor tais estruturas que não se expressam numa resposta por si só.
Além disso, o contexto de situação-problema com o auxílio de algum material, leva o aluno a um empenho
muito maior, pois se sente envolvido pela situação. Manipulando o material, descobre a necessidade de
explorar todas as possibilidades de representação por meio do material.
Desta maneira, é necessário repensar, sobretudo, currículo, avaliação e formação de professor na busca
por um real entendimento do que é matemática, de como se faz, o que significam as produções de cada
aluno: o conhecimento matemático que dispõem e que não é, na maioria das vezes, respeitado.
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Nº: DATA: 14/09/05 SUJEITO: Lina
CONTEXTO DA PRODUÇÃO: Atividade passada em sala pela professora com o seguinte comando:
Resolva as operações abaixo. Lembre-se dos diferentes materiais que você aprendeu a usar.
Posteriormente, a atividade foi recolhida pela professora. A criança não usava neste momento nenhum
material para resolução da operação. Recriação do esquema através da mediação da pesquisadora,
trabalhando a operação em uma situação-problema e utilizando material (réplica do dinheiro e bonecos).
PRODUÇÃO:
RECRIAÇÃO DO ESQUEMA
INTERPRETAÇÃO/ANÁLISE:
Como me chamou atenção a maneira pela qual a aluna havia chegado a construção do algoritmo da
divisão, após sua primeira explicação (vide protocolo de ) do procedimento desenvolvido, entendi que
havia um conhecimento claro quanto ao conceito de divisão. Contudo, havia uma confusão em relação ao
modelo escolar de como dividir. Criando uma situação-problema e de posse da réplica do dinheiro (material
da caixa matemática da aluna), pedi que representasse com as notas o valor que seria dividido.
Acrescentando ao contexto os bonecos, através de questionamentos, lhe perguntei como faria a
distribuição. Atenta aos valores que possuía (centena, dezena e unidade), disse que trocaria uma nota de
100 por 10 notas de 10, deixando as outras três notas reservadas. Observando o material, junta 3d+10d=
13d e distribui 1d para cada um dos bonecos. Da sua explicação e do seu fazer, faço o registro das
dezenas distribuídas e subtrai-o valor total dado, ou seja, 8, restando 3 notas de 100, 5 notas de 10 e 2
notas de um. Partindo do que havia feito anteriormente, a aluna me pergunta se pode trocar as 3 notas de
100 de uma vez por notas de 10. Lhe pergunto quantas notas terá; ela adiciona nos dedos
10+10+10=30. Então, juntando com as 5 notas de 10 tem no total 35 notas que distribui para os 8 bonecos.
Lhe pergunto ainda, se a quantidade de notas é suficiente para ela dar mais de uma nota para cada
boneco, ela responde afirmativamente. Então lhe pergunto, se você der uma nota para cada boneco,
quantas notas você vai ter dado? Ela responde: 8. Obervando o material na mão, vai fazendo
multiplicações sucessivas (8x1;8x2;8x3;8x4), e diz: Posso dar 4 notas de 10 para cada um dos bonecos e
vão sobrar três. Após o registro de sua explicação, volto a lhe perguntar o que pode fazer com as notas (de
10 e de um) que tem. Novamente, me diz que pode trocar as notas de 10 por notas de um, ficando com
30u+2u=32u. Prontamente, fala que pode dar mais de uma nota para cada boneco e repetindo as
multiplicações possíveis, distribui 4 notas de um para cada, não restando nenhuma nota.
ARTICULAÇÃO TEÓRICA:
Em Muniz, vemos que é importante o trabalho envolvendo situações-problema como meio de garantir uma
apropriação pela criança da situação. Reforça ainda que é preciso a manipulação pela criança de materiais
diversos, pois, estes, além de envolverem diferentes procedimentos, permitem à criança fazer diversas
articulações, concluindo que uma mesma operação quando numa situação-problema pode ter diferentes
respostas. Outro aspecto relevante a ser considerado é que com a manipulação do material fica mais clara
a organização do pensamento da criança.
Usando o material a criança expressa entender o que é transformar centena em dezenas, dezenas em
unidades, não tendo nenhum problema quanto ao conceito de número, mas na verdade, o es
familiarizada com o algoritmo convencional, pois não lhe atribuí significado.
240
ANEXO B: Outras produções
1. Situação de divisão proposta pela pesquisadora: 41/3
Produção de Fábio
Produção de Vítor
Produção de Tati
241
Produção de Lina
Produção de Lúcio
Produção de Valquíria
242
Produção de Miguel
Produção de Joyce
243
2. Registros de procedimentos para a situação-problema proposta pela
pesquisadora referente à compra e pagamento dos pacotes de dinheirinho
Produção de Cassiane
Produção de Tati
244
Produção de Jeane
Produção de Marcelo. O registro sem e com mediação da pesquisadora,
respectivamente, o de cima e o de baixo
245
Anotações da pesquisadora enquanto Marcelo explica o procedimento
Produção de Miguel
Nota fiscal apresentada pela pesquisadora
246
ANEXO C: Carta coletiva de boas-vindas para a pesquisadora e
produções de texto com o tema sugerido pela pesquisadora: “Por
onde anda a matemática”?
247
Produção de texto de Tiago
Produção de texto de Josiane
248
Produção de texto de Joyce
Produção de texto de Kátia
249
ANEXO D : Réplicas das notas de dinheirinho usadas pela
pesquisadora durante a mediação pedagógica
1. Réplicas usadas com Lina
250
2. Réplicas usadas com Joyce
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