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MARGARET DE OLIVEIRA GUIMARÃES
O COTIDIANO E A CULTURA
MEDIAÇÕES EM QUE SE TECE O SENTIDO
Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes
Departamento de Comunicações e Artes
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Departamento de Comunicações e Artes
São Paulo, 2006
MARGARET DE OLIVEIRA GUIMARÃES
O COTIDIANO E A CULTURA:
MEDIAÇÕES EM QUE SE TECE O SENTIDO
Tese apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, como
requisito parcial para obtenção do
título de Doutora em
Comunicação.
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ORIENTADORA: PROFA. DRA. MARIA APARECIDA BACCEGA
São Paulo, 2006
_____________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
_____________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
_____________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
_____________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
_____________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
_____________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
Sumário
Resumo I
Abstract III
Agradecimentos IV
Introdução V
I- Justificativa do trabalho IX
II - Objeto de estudo e hipóteses XIV
III- Procedimentos metodológicos XVIII
Primeira parte 1
I - Condições materiais da produção do discurso científico 2
1.1 Ribeirão Preto: os primórdios 2
1.2 Os trabalhadores do campo 2
1.3 A cana-de-açúcar: articuladora de nova camada social 3
II - Condições materiais das práticas discursivas dos jovens
entrevistados 7
2.1 Os jovens entrevistados: marcas e diferenças
2.2 Escola particular e escola pública: capitais culturais distintos 11
Segunda parte 14
Capítulo I – Globalização: encontros e paradoxos 15
1.1 Globalização e a (des)ordem social 22
1.2 A concepção de cultura no cenário global 30
1.3 Como pensar a comunicação no mundo globalizado 50
1.4 O homem ordinário na produção da cultura 60
Capítulo II – Estudos culturais: tradições e contemporaneidade 63
2.1 A classe trabalhadora como sujeito na produção da cultura 69
2.2 Cultura e práticas cotidianas 80
2.2.1 Uma cultura chamada ordinária 94
2.2.2 O materialismo cultural 98
2.2.3 Cultura ordinária e valores sociais 99
2.3 A cultura mediática e as práticas discursivas 110
2.4 Cultura, história e sociedade 113
2.5 Estudos culturais: uma abordagem latino-americana 119
Capítulo III – As novas práticas sociais interpelam novos sujeitos 127
3.1 O sujeito receptor no processo de comunicação social 128
3.2 Identidade cultural: debate aberto na organização da sociedade
latino-americana 139
3.3 A dialética da identidade 144
3.3.1 A constituição do sujeito pós-moderno 148
3.3.2 A identidade cultural na contemporaneidade 150
3.3.3 Identidades híbridas: nova configuração dos sujeitos no
processo de globalização 152
3.4 O indivíduo da cultura latino-americana: sujeito híbrido 156
3.5 O realismo representacional da televisão e a construção da
identidade 167
Capítulo IV – A cultura e o cotidiano: instâncias de mediação na
construção de sentido 173
4.1 Refletindo sobre os conceitos de mediação 173
4.1.1 Os lugares de mediação 177
4.1.2 As lógicas da produção e da recepção 182
4.2 Cultura e mediação 188
4.3 Cultura: definições e interpretações 198
4.4 O cotidiano: espaço da lógica na produção do sentido 202
Considerações finais 209
Referências bibliográficas 212
I
Resumo
Os estudos de recepção, na América Latina, dão-se no início dos
anos 80, no interior de um movimento que procurava fazer uma reflexão sobre
a comunicação e a cultura de massa.
Assim, é dentro da temática das culturas populares que uma
teoria complexa da recepção, entendida como espaço de produção de sentido,
começa a ser desenvolvida, passando a ser tema de muitas pesquisas
acadêmicas, cujos eixos se deslocam dos meios para as mediações.
O presente trabalho, seguindo as tendências das recentes
investigações, propõe, assim, por um lado, analisar a forma como a
comunicação, constituindo-se como prática social e como processo, participa
da construção da identidade; por outro, comprovar, a partir de dados
levantados em pesquisas empíricas, a tese de que a cultura e o cotidiano
constituem-se como instâncias de mediações em que se produz o sentido.
As mediações decorrem tanto de um complexo processo de
trocas de capital cultural como do espaço da cotidianidade, assim, nas práticas
cotidianas – em que se reflete o capital cultural do sujeito – encontramos
verdadeiras táticas de consumo a partir das quais o sujeito-receptor resiste ao
discurso hegemônico, colocando em funcionamento todos os seus sentidos,
suas habilidades e sua ideologia.
Este trabalho, colocando-se na perspectiva da enunciação, por
um lado, atualiza o paradigma fundado pelos estudos culturais ingleses, ao
comprovar, a partir das pesquisas empíricas, a consciência crítica das classes
trabalhadoras; por outro, revela a mídia como instrumento que modela
comportamentos e modelos, viabilizando a integração das mais diferentes
camadas sociais.
II
Palavras-chave: comunicação, mediação, cultura, cotidiano, discurso,
identidade, recepção, sentido, estudos culturais.
III
Abstract
The reception studies in Latin America begins in the eighties
inside of a movement that looked for doing a reflection about
communication and the mass culture.
This way, inside of popular theme of culture that the complex
reception culture is understanding as a space of sense production: begins to
be developed passing to be a Theme of many academic researches, whose
hubs dislocate from the mid to the mediation.
This work, follows the recent investigation tendencies,
proposes, so, on the one hand, to analyze the way of communication,
constituting as a social practice and as a process, takes part in the
construction of identity; On the other hand, to prove , through information
data obtained in empirical research, the thesis that culture and quotidian
constitute as a moment of mediations that produces a meaning.
The mediations retreat as from a complex change capital
cultural process as the space of quotidian, thus in the daily practice- that
reflects the capital cultural of the individual-we find real tactics of
consume from receive individual resist to hegemony speech , putting in
action all his senses, abilities and his ideology.
This work puts in a perspective of enunciation, on the one
hand, update the paragon founded by English cultural studies proving up to
empirical researches, the critical conscience of the working classes; on the
other hand reveals the media system as an instrument that models
behaviors and patterns, making feasible an interaction of the many
different social classes.
Key words: communication, mediation, culture, quotidian, speech, identity,
reception, sense, cultural studies.
IV
Agradecimentos
À professora doutora Maria Aparecida Baccega, orientadora e amiga,
pela oportunidade concedida.
Ao amigo Eduardo Antônio dos Santos a quem devo o auxílio à
organização dos dados quantitativos e o estímulo para dar continuidade a
este trabalho.
A Pedro Augusto Landi Júnior, pelas orientações recebidas.
Aos colegas de trabalho, professores e funcionários, de quem recebi,
ao longo destes anos, apoio e compreensão.
Ao professor Fernando Antônio Gelfuso, pela disponibilidade em
narrar-me a história de minha terra.
À família do doutor Ruben Cione que, gentilmente, abriu seus
arquivos para minha pesquisa.
À professora Marluce Clemente Câmara a quem devo o auxílio nas
traduções e versões de língua inglesa.
A meus filhos e meu marido que respeitaram minhas escolhas.
À Florianete Guimarães, mãe e exemplo, presente em cada nova
conquista.
V
Introdução
Numa reflexão anterior
1
pudemos registrar e mesmo quantificar o
hiato que ainda existe entre as duas práticas sociais: a comunicação e a
educação. Constatamos que essas práticas constituem-se categorias binárias
que deveriam ser dialetizadas, para que , entre elas, seja possível criar pontos
de interseção.
Ainda que esta investigação não constitua continuidade de nossa
dissertação de mestrado, organizamos nossa pesquisa empírica servindo-nos,
ainda, da escola por entendermos que ela representa o espaço identitário dos
jovens, um lugar em que eles se tornam sujeitos sociais completos, uma
comunidade em que se formam cadeias de discussão; o locus em que se criam
padrões e códigos de interpretação para as informações recebidas da mídia.
Como afirma White,
“comunidades interpretativas compartilham modos de
interpretação similares, códigos comuns ou acordos
intersubjetivos, os quais são traduzidos em atitudes comuns de
seleção, decodificação e aplicação ao conteúdo da mídia”.
2
Assim, as conversas nas salas de aula, a música que escutam
nos intervalos de trabalho, as rodas que promovem pelos cantos do corredor
da escola foram um dos cenários onde recolhemos, durante cinco meses, entre
jovens, suas idéias, seus conflitos. Nesse período de experiências novas
vivenciadas nas duas escolas que escolhemos – uma pública e outra particular
1
GUIMARÃES , M. Ponto de interseção entre os campos de comunicação e educação. Dissertação de
mestrado apresentada no Departamento de Comunicação e Artes da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, em setembro de 2002.
2
WHITE, R. Tendências dos estudos de recepção. Comunicação & Educação. São Paulo:
ECA/USP/Moderna, no. 13, set./dez., 1998, p. 44.
VI
- pudemos analisar a forma como garotos e garotas compactuam com o grupo
opiniões e sentimentos, como criam e compartilham seus mitos e seus heróis.
Paralelamente a esse território, também, a cotidianidade - espaço
singular de produção de sentido – “lugar do corpo, lugar de vida”
3
serviu-nos
como palco de entrevistas, de proximidade, de intimidade. Conviver com os
jovens dentro de seu habitat, poder entrar no seu mundo mais íntimo – o
quarto – representou um contrato de cumplicidade. Partilhar a casa, os cantos
onde as garotas guardam os seus segredos, a sala que se reserva à televisão -
onde a família se reúne para assistir às novelas – significou um compromisso
tácito, entre nós e os jovens, de afetividade. Ao nos receberem, as famílias
dividiram conosco um pouco de sua vida, um pouco de seus sonhos.
Quarto de E.C.M., em sua casa, Quarto de F.M., em sua casa,
no Parque Ribeirão. na região sul da cidade.
3
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 205.
VII
Nossa tarefa, portanto, foi lançarmo-nos a uma investigação da
produção desses sujeitos-receptores, dedicando-nos à análise de suas práticas,
de suas maneiras de inventar e reinventar o que vêem e lêem na mídia.
Trabalhamos com o objetivo de tirar esses sujeitos de sua clandestinidade,
ouvindo os discursos que eles recitam, ao lado dos discursos recitados pela
mídia.
Nesses dois universos discursivos – escola e cotidiano-
organizamos questões que nos motivaram a desenvolver este trabalho: como
as pessoas entendem as mensagens mediáticas? Como as mensagens, elas
mesmas, orientam e conduzem as práticas sociais de seus consumidores?
A resposta a essas questões – e a outras que foram se
construindo no decorrer de nossas experiências teórica e empírica vividas –
foram organizadas em quatro capítulos. No primeiro, propusemos um debate
sobre a cultura e a política do mundo contemporâneo, visando ao
entendimento dos conflitos gerados pela globalização, como palco de
circulação e consumo de bens culturais dos sujeitos sociais que
entrevistávamos. Investigamos, sob a ordem contemporânea global, a lógica
de consumo dos atores sociais que protagonizam uma realidade marcada pela
alteridade. Assim, neste primeiro capítulo, registramos a forma como cada
classe social, à sua maneira, conta sua história na sociedade contemporânea.
No capítulo II, propusemos um debate sobre os Estudos
Culturais britânicos, com o objetivo de provarmos a atualidade de sua tese:
apresentar a cultura como campo que contempla tanto as práticas como as
mudanças sociais. A idéia preconizada por esses estudos de que a classe
operária era capaz de ler as mensagens mediáticas sem submissão possibilitou
a inversão da concepção que se tinha da comunicação como processo de
VIII
dominação. Dessa forma, este capítulo historia a internacionalização dos
Estudos Culturais e destaca-os como fundador das idéias dos Estudos de
Recepção fundados, nos anos 80, na América Latina.
Discutido o cenário global da sociedade contemporânea,
revistos os novos paradigmas das pesquisas em comunicação, que passam a
entender a recepção como espaço de construção de sentido, dedicamos o
terceiro capítulo ao estudo das formas como essas novas práticas interpelam
os atores sociais. Analisamos, assim, o sujeito-receptor no processo de
comunicação social, considerando, sobretudo, a organização híbrida da
sociedade latino-americana.
Finalmente, no capítulo IV, dedicamo-nos à conceituação do
termo mediação, à análise das teorias que investigam os lugares que se devem
considerar mediadores na construção de sentido e, fechando a hipótese que se
propõe já no título do presente trabalho, propusemos a comprovação – a partir
dos dados qualitativos e quantitativos – de que a cultura e o cotidiano
constituem-se como instâncias de mediação em que os atores sociais tecem o
sentido ao mundo que os rodeia.
Importante acrescentar ainda que, sendo a comunicação
“produção social de sentido”
4
– produção essa que só se manifesta nas práticas
discursivas - o estudo da linguagem permeou a análise dos depoimentos mais
expressivos que se registraram ao longo dos capítulos, pois reconhecemos que
é nos discursos que se materializam as transformações e os conflitos sociais.
4
BACCEGA, M. A . Recepção: nova perspectiva nos estudos de comunicação . Comunicação & Educação.
São Paulo: ECA/USP/Moderna, n.12, maio a agosto, 1998, p. 9.
IX
I. Justificativa do estudo quanto à relevância e originalidade
De acordo com o que registramos anteriormente, os anos 80
assistiram ao desenvolvimento dos Estudos de Recepção nas pesquisas de
comunicação. Esse fato deveu-se não só à crise dos paradigmas que norteavam
as investigações desse campo, mas também à consciência que se passou a ter
do papel significativo do receptor. Trata-se de uma linha de investigação que
ganhou relevância, já que as pesquisas antes desenvolvidas apontavam o
momento da recepção como o mais importante momento do processo de
comunicação, isso porque os receptores são capazes de construir leituras
diferenciadas das mensagens a que estão expostos.
As pesquisas dessa corrente de investigação, segundo Robert
White
5
, fundamentam-se na negociação que produtores e receptores
estabelecem na busca de respostas que satisfaçam a necessidade e a
expectativa de ambos. Os produtores das mensagens trabalham para buscar
identidades com sua audiência, no sentido de alcançar, cada vez de forma mais
eficaz, penetração na cultura contemporânea.
“Mais especificamente, essa perspectiva de pesquisa parte da
pressuposição de que os meios de comunicação são uma fonte
de informação, de situações e de estratégias para formar
identidades”.
6
Os trabalhos desenvolvidos nessa área têm mostrado que as
discussões sobre os programas entre os grupos de amigos, os grupos de
5
WHITE, R. Tendências do estudo de recepção . Comunicação & Educação, n.13. São Paulo: ECA/USP/
Moderna, setembro a dezembro de 1998, p. 41 a 66.
6
WHITE, R. Tendências do estudo de recepção. Comunicação &.. Op. cit. , p.42.
X
trabalho ou entre os familiares são meios de as pessoas buscarem se conhecer
a si mesmas e ao mundo a que pertencem. Nessa perspectiva, nosso interesse
nos Estudos de Recepção está na preocupação que devemos ter em reconhecer
as tendências culturais de nossos dias e, a partir delas, entendermos a leitura
que os receptores fazem das mensagens mediáticas.
Assim se considera a contribuição de Martín-Barbero
7
, para
quem os Estudos de Recepção devem partir dos espaços em que se produz a
interação emissão/recepção. Trata-se dos processos de mediações: espaços em
que se constroem significados. Essa construção de sentidos está vinculada à
lógica cultural do receptor e aos interesses que o motivam para a recepção de
uma mensagem. A lógica da indústria cultural articula-se a partir das práticas
significativas que fazem parte das práticas dos receptores.
Como os meios de comunicação propagam o saber sobre o
cotidiano dos receptores?
A linguagem dos meios produz um discurso que não só fala dos
conflitos universais, de dramas que transcendem classes sociais, mas também
expressa, em tom coloquial, as indagações que perpassam grupos multi-
étnicos porque constroem o homem que está em busca do ser completo.
O discurso mediático antecipa discussões de caráter
aparentemente individual, transformando-as em sociais, coletivas. São
questões que permeiam as relações sociais atuais que passam a ser discutidas
no cotidiano do receptor e é nesse cotidiano
“que se jogam as modificações ou manutenção da ideologia
construída. É no cotidiano, onde as atitudes, os fazeres se dão
num clima de relaxamento maior, que se torna mais fácil o jogo
de influências (...). Por isso, as manifestações mais adequadas
7
BARBERO, J. M. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p.292.
XI
de poder que mais atingem as pessoas são aquelas que regem as
atividades cotidianas”.
8
Consideradas essas premissas que justificam esta investigação
quanto à sua relevância, importa, agora, revelar que o que empresta
originalidade ao presente estudo é o enfoque que se pretende dar a ele.
Pretendemos demonstrar que, quando se estudam as instâncias
de recepção, o que vale reconhecer é como
se dá o processo crítico de
recepção ativa. Saber em que medida podemos identificar o que é
efetivamente esse processo e em que momento se dá a adesão do receptor à
mensagem recebida.
Essa operação – chamada “fabricação” por Certeau - tem,
entretanto, características muito próprias que, ao longo do trabalho, devem ser
consideradas.
“A ‘fabricação’ que se quer detectar é uma produção, uma
poética
9
- mas escondida, porque ela se dissemina nas regiões
definidas e ocupadas pelos sistemas da ‘produção’ (...) e porque
a extensão sempre mais totalitária desses sistemas não deixa aos
‘consumidores’ um lugar onde possam marcar o que fazem
(grifo do autor) com os produtos”.
10
Isso posto, reportamo-nos, em um primeiro momento, a Martín-
Barbero
11
, que defende igualmente a idéia de que nem toda forma de consumo
é interiorização dos valores hegemônicos e, em seguida, a Nestor García
Canclini
12
, que defende igualmente a tese de que o consumo, em suas várias
formas, não é, necessariamente, interiorização dos valores de classes alheias.
8
BACCEGA, M. A. Ressignificação da escola: a circulação da ideologia. Comunicação & Educação. São
Paulo: ECA/USP/Moderna, n.16, set./dez., 1999, p. 7.
9
Nota do autor: Do grego poiein: “criar, inventar, gerar”.
10
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p.39.
11
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit.
12
GARCÍA CANCLINI, N. Culturas híbridas, poderes oblíquos. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp,
XII
Embora as circunstâncias de ordem econômica e ideológica
ditem as regras ou, para dizer de outra forma, ainda que as formações
ideológicas determinem as formações discursivas
13
– sejam elas da ordem que
forem -, as táticas de leitura (entendidas como maneiras de ler, falar, habitar,
produzir, caminhar) dessas formações não obedecem cegamente às leis do
lugar em que elas se instauram. Por isso podem ser chamadas de “táticas
desviacionistas”.
14
Os contextos de uso, ou seja, as condições materiais ou culturais
da produção dos discursos determinam, igualmente, as formas como as
práticas discursivas – verbais ou não verbais, de natureza do dizer ou do fazer
– manifestam-se.
Não estamos, com essas observações, pretendendo contrariar o
poder de coerção dos discursos hegemônicos da mídia, mas há de se apontar –
e esse é o objeto de nossa reflexão – a existência de “combates ou jogos entre
o forte e o fraco, e das ‘ações’ que o fraco pode empreender”.
15
Certeau
16
confirma ser a tática a arte do fraco. A tática é
movimento dentro do campo inimigo, em que se deve agir com astúcia que só
é possível igualmente ao fraco, à medida que é ele que se introduz, silenciosa
e audaciosamente, em uma ordem dada; uma tática que luta contra a vontade
da verdade alheia para criar ou fazer sobreviver a sua verdade.
A idéia de que a lógica do produtor leva-o a supor que não
exista criatividade no consumidor deve ser, portanto, rediscutida. O texto,
como apregoa Umberto Eco, se constrói no seu leitor:
13
Trata-se de expressões utilizadas por Pêcheux, em PECHEUX, M. Semântica e Discurso. Uma crítica à
afirmação do óbvio. Campinas: UNICAMP, 1997, de que trataremos ao longo do trabalho.
14
CERTEAU, M. A invenção do ... op. cit., p. 93.
15
CERTEAU, M. A invenção do ... op. cit., p. 97.
16
CERTEAU, M. A invenção do ... op. cit., p. 101.
XIII
“Assim é possível falar da intenção do texto apenas em
decorrência de uma leitura por parte do leitor (...) o texto é um
objeto que a interpretação constrói”.
17
Essa mesma idéia sustenta-se na afirmação de Certeau:
“Quer se trate do jornal ou de Proust, o texto só tem sentido
graças a seus leitores; muda com eles; ordena-se conforme
códigos de percepção que lhe escapam (...)”.
18
A esse leitor Certeau chama de “homem ordinário”, “herói
comum”, a quem dedica a sua obra.
“Este herói anônimo vem de muito longe. É o murmúrio das
sociedades. De todo o tempo, anterior aos textos. Nem os
espera. Zomba deles.”
19
Consideradas essas noções, reportamo-nos a Foucault
20
para
quem não é unicamente importante resolver quem tem o poder e quem busca
o poder, mas também o é estudar os lugares onde se produzem seus efeitos
concretos. E esse lugar é o cotidiano do homem ordinário. Os jogos
complexos de repressão e persuasão preenchem a história da vida cotidiana.
Os discursos institucionais invadem os lares das famílias, pretendendo
determinar e controlar as suas formas e hábitos de vida, a sua forma de
alimentar-se, de relacionar-se, de ocupar espaços; esses discursos organizam-
se de maneira a reprimir alguns desejos, de criar novas necessidades.
Nossa tarefa, se pretendemos conhecer o lugar de produção de
sentido dos discursos recitados, é lançarmo-nos a uma operação a que já nos
referimos: uma caça à produção dos consumidores, dedicando-nos à
17
ECO, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 75.
18
CERTEAU, M. A invenção do ...op. cit., p. 266.
19
CERTEAU, M. A invenção do ...op. cit., p. 57.
20
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2004.
XIV
construção de uma lógica das formas como eles tecem o sentido dado ao
mundo a que eles se expõem, debruçando-nos na análise das formas como eles
criam e recriam sua cultura, seus valores, suas crenças, seus mitos ...
II- Objeto de estudo e hipóteses
Entender a comunicação como produção social implica
reconhecê-la como processo. Essa constatação pode explicar os novos rumos
que as pesquisas em comunicação tomaram: estamos partindo da idéia de que
passou-se a considerar a comunicação mais do que uma transmissão de
informações entre emissor e receptor; ela se opera na interação entre sujeitos
envolvidos no processo de construção de sentido.
Assim, ao se falar em recepção, passa-se a tratar, também, do
outro pólo: o da emissão, considerando, igualmente que “só o encontro dos
dois constitui a comunicação”.
21
Nesse sentido, podemos reconhecer que os
Estudos de Recepção não são um lado novo da comunicação; esses estudos
constituem, sim, uma nova perspectiva dessas investigações.
Como, então, entender esse movimento pendular que oscila
entre a manipulação própria do discurso da emissão e a concepção do caráter
ativo da recepção?
A partir dos anos 80, a pesquisa de recepção vem se
desenvolvendo significativamente nos países da América Latina. Trata-se de
um trabalho que, em primeira instância, pretende superar os limites
epistemológicos dos modelos tais como os da Pesquisa de Efeitos, o modelo
da Pesquisa de Audiências, Pesquisa de Usos e Gratificações, o modelo dos
Estudos Culturais.
21
BACCEGA, M. A. Recepção: nova perspectiva nos estudos de comunicação. Comunicação ...Op. cit., p. 7.
XV
“A problemática da recepção, nesta orientação, busca uma
(re)formulação teórico-metodológica que propõe organizar
tentativas interdisciplinares e multi-métodos numa malha
teórica compreensiva, respondendo às demandas de
complexidade e de crítica, tendo em vista a atual conjuntura da
pesquisa internacional nesta área de conhecimento”.
22
Observa Lopes
23
a necessidade de, no Brasil, desenvolver-se
uma experimentação metodológica de multimétodos que possibilitem avanços
teóricos capazes de viabilizar uma interpretação crítica, cultural e política dos
processos de recepção da comunicação.
A construção teórico-metodológica desse estudo, como
apontado anteriormente, apoiou-se nas perspectivas do cotidiano e da cultura,
entendidos como fontes expressivas de mediação, concebida, neste contexto,
como processo que configura tanto a interação dos membros da audiência com
os meios, quanto a criação do sentido que essa audiência é capaz de
desenvolver.
A relação dos receptores com os meios será sempre
mediatizada; ela não se define como uma relação unilateral, isto é, ela se
realiza a partir de diversas mediações e é nesse sentido que se pode conceber a
recepção como um processo, pois “ela antecede o ato de usar o Meio e
prossegue a ele”.
24
Dentro dessas novas perspectivas de estudos, começa a
desenvolver-se uma análise mais abrangente que pretende alcançar maior
22
LOPES, M. Immacolata V. Pesquisas de recepção e educação para os meios. Comunicação & Educação.
São Paulo: ECA/USP/Moderna, n.6, maio/agosto, 1996,p.41
23
LOPES, M. Immacolata V. Pesquisas de recepção e educação para os meios. Comunicação ...Op. cit.,
p.43.
24
LOPES, M. Immacolata V. Pesquisas de recepção e educação para os meios. Comunicação ...Op. cit., p.
44.
XVI
clareza nas formas como se constroem os discursos comunicativos, de maneira
que se possa ir além do reconhecimento dos mecanismos de sedução que
unem emissores e receptores.
Nessa busca, em que se exclui a idéia de que a comunicação é
mero espaço em que transitam dominantes e dominados, consideram-se as
práticas cotidianas. O cotidiano – e a cultura subsumida nele – nasce como
dimensão capaz de conferir novos sentidos às mensagens recebidas.
“Os diferentes modos de ler estão ligados às tradições,
preocupações e expectativas da vida prática, incorporando-se,
muitas vezes, a ela nas discussões familiares, alterando valores
e comportamentos”.
25
Essas idéias autorizam os teóricos a afirmarem que o consumo
deve ser considerado como um conjunto de práticas que não assimilam
passivamente a cultura hegemônica, mas elas – essas práticas – extrapolam os
limites da produção e criam, à revelia da lógica da indústria cultural, sua
própria leitura.
Para orientação deste trabalho, partimos de uma hipótese central
que deveria estabelecer a conexão entre teoria e prática – esta última
construída a partir dos resultados das pesquisas empíricas: o consumo dos
bens simbólicos oferecidos pela mídia é uma prática expressiva: uma tática
que se esconde nos processos de utilização desses bens e na construção de um
sentido próprio, mediado pelo cotidiano e pela cultura do receptor.
Constatamos, pelas pesquisas empíricas realizadas,
comprovando nossa hipótese, que essas “maneiras de fazer”
26
ou esses modos
25
LOPES, M. Immacolata V. Pesquisas de recepção e educação para os meios. Comunicação ...Op. cit., p.
44.
26
CERTEAU, M. A invenção do ... Op. cit., p. 41
XVII
de ler traduziram as formas como os receptores se reapropriam do espaço
organizado pelas técnicas da produção sociocultural.
Testemunhamos a lógica dessas operações de construção de
sentido bem como as formas como o receptor se utiliza dos discursos da
mídia; compreendemos as regras, ditadas pelo capital cultural de cada sujeito,
dessas operações multiformes que escondiam, atrás de seus valores
enraizados no seu cotidiano familiar, “combinatórias de operações”
27
na
construção de sentido.
Como desdobramento dessa hipótese, uma outra se avizinhou,
quando iniciamos nossa investigação: a ficção fala em nome dos fatos, recorta
e representa o real obedecendo a uma lógica do produtor. Feitas nossas
entrevistas, concluídos os dados qualitativos obtidos nelas, pelo viés da
Análise do Discurso - tanto dos procedimentos discursivos da ordem do
produtor como os da ordem do receptor – pudemos entender os
procedimentos discursivos sobre os quais a mídia representa a realidade, cria
mitos, apresenta valores, na tentativa de dominar o espaço do sentido.
III- Procedimentos metodológicos
Para uma abordagem multidisciplinar que uma pesquisa de
recepção exige, utilizamos, na organização metodológica deste trabalho, uma
estratégia multimetodológica de forma a explorar cada uma das instâncias de
mediações – a cultura e o cotidiano –.
Desenvolvemos nossas investigações em duas instituições de
ensino – uma pública e outra privada – de uma cidade do interior de São Paulo
27
CERTEAU, M. A invenção do ... Op. cit., p. 38.
XVIII
– Ribeirão Preto -, cujas peculiaridades descreveremos adiante, elegendo
estudantes de sexo masculino e feminino, de sétimas séries, com idade entre
12 e 13 anos.
Por meio de entrevistas individuais e de grupos, nas histórias de
vida que pudemos obter no encontro com as famílias de algumas jovens, a
partir dos questionários, organizamos, metodologicamente, táticas que
entendemos como pertinentes a uma pesquisa de recepção.
O questionário
Foi aplicado um questionário
28
em todos os alunos de sétima
série, de ambas as escolas, que quiseram participar de nosso trabalho.
Previamente autorizados pelos pais, notamos a resistência de
alguns jovens da escola pública, sobretudo entre os meninos, que se recusaram
a aderir à nossa proposta por “não ganharem nada com isso”
29
.
Traduzidos quantitativamente em gráficos, os dados obtidos
demonstraram o espaço habitado pelos respondentes, seus hábitos cotidianos,
suas preferências e desenharam um mapa de seu consumo cultural. Esses
dados nos foram servindo para, ao longo do trabalho, lermos as questões
teóricas levantadas, assim como nos auxiliaram a traçar os caminhos que nos
conduziriam às entrevistas que programamos realizar.
Algumas incoerências nas respostas se deveram ao fato de os
jovens partilharem as escolhas que dariam a determinadas respostas, numa
atitude de cumplicidade com o grupo. Questões que pretendiam investigar
suas preferências – nas músicas, nos programas de televisão, por exemplo –
eram respondidas a partir de um “consenso” entre os amigos e amigas mais
28
Esse material, junto aos resultados obtidos, está registrado no anexo 1 que acompanha o presente trabalho.
29
Essa referência está registrada na “Coleta de dados” , publicada no anexo 1.
XIX
próximas. Nesses momentos, entendemos que não podíamos interferir numa
atitude que caracteriza a comunidade interpretativa em que os jovens dessa
faixa etária precisam se apoiar.
As entrevistas coletivas
As primeiras entrevistas foram coletivas e se organizaram
sempre a partir de um tema disparador – comum aos dois grupos de
entrevistados: uma música, um filme, um clipe publicitário, uma festa.Tratou-
se de entrevistas semiestruturadas previamente, ou seja, organizávamos as
temáticas, escolhidas a partir dos dados lidos nas respostas aos questionários;
assim, não engessávamos as questões que iríamos levantar, já que
entendemos, desde o início, que nosso trabalho seria desenvolvido junto a
realidades distintas não só no seu aspecto socioeconômico, mas também no
seu aspecto humano. As facilidades encontradas junto aos alunos da escola
particular – instituição dirigida pela pesquisadora – contrapuseram-se ao
repúdio que inicialmente nossa presença representou no espaço que pertencia
ao bairro que “as pessoas do outro lado” não deviam visitar: o bairro
periférico, Parque Ribeirão.
Os corpus que se prestaram como temas para essas entrevistas
individuais foram gravados e levados aos grupos para a discussão; as festas de
que participamos e a sessão de cinema que pudemos promover para as jovens
da escola “Glete de Alcântara”, da periferia, constituíram-se momentos de
ricas experiências, pois se criou uma situação de interação em que entraram
em jogo características de personalidade de todos os garotos e garotas
envolvidos no processo.
XX
As entrevistas individuais
O tempo de permanência no campo deve ser suficiente para que
se alcance o grau necessário de proximidade e distanciamento que um trabalho
científico exige. Assim, os cinco meses, com um, às vezes, dois encontros
semanais permitiram-nos uma relação em que os comportamentos se
tornassem espontâneos e recíprocos.
A resistência
30
que sentimos no grupo de alunos da escola
pública foi sendo substituída, gradativamente, por uma atitude afetiva que os
alunos mostravam em cada visita nossa. Se, inicialmente, tocar, num gesto
maternal, as garotas ou garotos, era motivo de repulsa, por parte deles, com o
passar das semanas e com a persistência que deve caracterizar esse tipo de
trabalho, a pesquisadora passou a ser recebida com entusiasmo e com uma
alegria brindada com beijos e abraços. Na escola particular, embora as
facilidades tenham sido maiores, conquistar a confiança dos jovens,
quebrando as barreiras que o cargo que a pesquisadora exerce junto a eles
impõe, representaram também uma conquista.
Estabelecida essa proximidade, fui recebida em casa de algumas
jovens. As relações que promovemos nesse espaço cotidiano variaram: nas
famílias de classe popular, a integração foi intensa. As famílias sentiam-se
prestigiadas com a presença “da professora”; nas casa das famílias de classe
média, sentimos uma defesa velada de sua privacidade.
A história de vida
A história de vida das jovens que mais se aproximaram da
pesquisadora, permitindo uma relação a partir da qual poderíamos aprofundar
nossa investigação, foi construída junto a seus pais. Em visitas feitas às
30
Fizemos detalhadas referências dessas atitudes na “coleta de dados”, publicada em volume anexo.
XXI
famílias, conseguimos conhecer o ambiente em que as garotas foram criadas,
entender a escala de valores que a família preserva, descobrir a jovem
adolescente interagindo no mundo do adulto, ou fugindo dele, nos cantos que
ela constrói para estar sozinha. Esses encontros nos possibilitaram
particularizar as trajetórias de cada jovem que acompanhamos, reconhecendo
seus marcos e suas marcas.
A combinação de técnicas no trabalho empírico
Lembramos que o desenho multimetodológico desse tipo de
pesquisa tem por base uma estratégia de integração e combinação nos níveis
epistemológico-teórico, até o nível técnico-empírico. Por essa razão,
organizamos nosso trabalho a partir de uma estratégia em que esses níveis
pudessem “dialogar”, ou seja, a teoria e a prática se construíram ao longo de
nossa vivência, complementando-se e até anunciando descobertas que podem
sugerir outras investigações.
Transcrição dos dados
Os dados quantitativos, obtidos nas respostas dadas às questões
constantes do mapa de consumo cultural, foram organizados em gráficos.
Ainda que nem todos os resultados tenham sido utilizados ao longo das
abordagens teóricas, a íntegra desses resultados está apresentada em material
de publicação anexa.
Para não perder a especificidade do material conseguido nas
entrevistas, ainda que elas tivessem sido feitas unicamente pela pesquisadora,
realizamos a transcrição, na íntegra, de todas as manifestações que foram
gravadas. Assim, preservamos as peculiaridades de cada fala, reveladoras do
caráter e da personalidade de cada sujeito entrevistado. Fotografias – quando
XXII
permitidas – acompanharam esses momentos, pois pretendemos, com elas,
dividir com os leitores dessa pesquisa a vivacidade e as emoções que
partilhamos durante essa trajetória.
1
Primeira parte
2
I. Condições materiais da produção do discurso científico
1.1 Ribeirão Preto: os primórdios
No final do século XIX, o município de Ribeirão Preto tornou-se um dos
maiores celeiros produtores de café do Estado de São Paulo, pela sua fertilidade do solo
“roxo”; passou, por isso, a ser conhecido como “Eldorado do Café”.
Em 1878, o governo da província ainda relutava em autorizar o
município a dedicar-se exclusivamente ao cultivo do “ouro verde”; mas, no final desse
mesmo ano, fica autorizada a monocultura e, para esta região, passa a migrar mão-de-
obra de todo o país. Nasce, assim, a política cafeeira de Ribeirão Preto.
As lavouras foram se estendendo, a produção aumentando e Ribeirão
Preto, com a chegada dos trilhos da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, em
1883, passa a contar com imigrantes europeus que, junto aos negros ainda escravos,
enriquecem famílias e a região.
Ao lado do café, a cidade também crescia: escolas, cinemas, teatros,
cabarés, além de “barões” e “baronesas”. Ribeirão Preto ficou conhecida em toda
Europa como “Eldorado Paulista”.
1.2 Os trabalhadores do campo
A vida, no final do século XIX e início do XX, girava em torno das
fazendas. Muitos eram os homens ricos e muitos eram os que serviam a seus senhores:
escravos, migrantes e os europeus - italianos - em sua maioria.
Com a decadência do café, na crise de 29, as indústrias chegam à região,
empregando, sobretudo, os imigrantes europeus que, vindo do campo, instalaram-se nos
bairros periféricos; lá, viviam sua rotina simples e saudável, ritmada pelos apitos das
poucas fábricas que começavam a se instalar na cidade.
Ainda que pobres, os trabalhadores viviam em suas em casas humildes,
mas dignas: água, luz, esgoto. No quintal das moradias, a pequena horta e o galinheiro
forneciam um complemento à alimentação dos adultos e das crianças: a galinha caipira,
os ovos frescos, as verduras colhidas à hora das refeições; assim, as famílias que
procuraram a região, fugindo da escassez do trabalho do campo, sobreviviam por terem
sido acolhidas pelas indústrias e pelo comércio que floresciam na próspera Ribeirão.
3
1.3 A cana-de-açúcar: articuladora de nova camada social
Os anos 40 assistiram ao início de uma outra monocultura: a da cana-de-
açúcar. Nos anos 60 e 70, com o programa “Proálcool”, alavancou-se, em Ribeirão
Preto e região, a economia açucareira. A pujança agrícola, entretanto, pauperiza a
cidade. Do Nordeste, das regiões interioranas do Estado de Minas Gerais e de Goiás
migra a mão de obra “volante”, temporária. Nasce um outro segmento da camada
social: os “bóias-frias” e, para servir-lhes de intermediário, os “gatos”, homens
responsáveis pela contratação dessa mão-de-obra bruta. Ribeirão Preto começa a ter,
cravadas em sua paisagem, as primeiras favelas.
Muitas dessas favelas, habitadas por famílias que viviam de trabalhos
temporários, foram, ao longo destes últimos anos, transformadas em “Conjuntos
Habitacionais”; um desses bairros foi o cenário que escolhemos para nossa pesquisa.
Ali encontramos famílias que, mesmo vivendo em estado precário, ainda vêem, nesta
cidade, uma promessa de vida mais próspera...
4
Ribeirão Preto, um centro regional de 560 mil habitantes, apresenta, como toda
grande cidade, seus grandes contrastes. No lado sul, famílias de alto poder aquisitivo,
muitas delas de tradição agrícola, separam-se, geograficamente, do Parque Ribeirão
Preto, bairro que acolhe migrantes, oriundos de Minas Gerais, que vieram em busca de
trabalho nos campos de cana-de-açúcar.
5
L
i
c
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A
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b
e
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t
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PARQUE
RIBEIRÃO PRETO
PARQUE
PARQUE
RIBEIRÃO PRETO
RIBEIRÃO PRETO
ZONA SUL
ZONA SUL
ZONA SUL
A
v
.
C
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ram
u
r
u
6
Avenida Caramuru (conforme indicação no mapa da página anterior), que
separa a zona sul – área nobre da cidade - do Parque Ribeirão Preto.
Parque Ribeirão Preto
Zona Sul
7
II. Condições materiais das práticas discursivas dos jovens entrevistados
2.1 O cotidiano: lugar em que se constrói o capital cultural dos jovens entrevistados
No intuito de desenharmos o contexto socioeconômico dos jovens
participantes do presente trabalho, registramos abaixo os dados obtidos nos
questionários aplicados ao público das escolas pública e privada. Por esses dados
quantitativos, conhecemos, nos primeiros resultados, as discrepâncias materiais dos
jovens: renda familiar, dimensões da moradia, aparelhos eletrônicos disponíveis.
2.2 A escola particular e a escola pública: capitais culturais distintos
Nos resultados seguintes, constamos, em função das condições materiais dos
grupos entrevistados, as discrepâncias culturais que os caracterizam: os jovens menos
favorecidos não têm acesso à tecnologia, não freqüentam cinemas e shoppings, não têm
boas escolas, não conquistam um vocabulário que possa fazê-los falar e entender o
mundo que o rodeia...
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
até 500,00 de 500,00 a
1.500,00
de 1.500,00 a
3.000,00
acima de 3.000,00 não informou
RENDA FA
MILIAR
PART PUBL
8
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
Analfabeto 1a. à 4a. 5a. à 8a. Ensino M io Universitário Pós-graduado Falecido Sem resposta
ESCOLAR ADE DO PAIID
éd
PART PUBL
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
Analfabeta 1a. à 4a. 5a. à 8a. Ens
ino Médio Universitária Pós-graduada Não respondeu
ESCOLARID DE DA MÃEA
PART
PUBL
9
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
1234567891011121314
PROFISSÃO DO PAI
1. PEDREIRO
2. INDUSTRIÁRIO
3. CAMINHONEIRO
4. JARDINEIRO
5. TAPECEIRO
6. FAXINEIRO
7. AUXILIAR DE COZINHA
8. ENGENHEIRO
9. ADVOGADO
10. ADM. DE EMPRESAS
11. MÉDICO
12. DENTISTA
13. EMPRESÁRIO
14. NÃO RESPONDEU
PART
PUBL
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 1011121314151617
PROFISSÃO DA MÃE
PART PUBL
1. DIARISTA / FAXINEIRA
2. DOMÉSTICA
3. GOVERNANTA DE HOTEL
4. VENDEDORA
5. AUX. DE ENFERMAGEM
6. DONA DE CASA
7. FONOAUDIÓLOGA
8. FARMACÊUTICA
9. ENGENHEIRA
10. SECRETÁRIA
11. DENTISTA
12. EMPRESÁRIA
13. ADVOGADA
14. VETERINÁRIA
15. PROFESSORA
16. ADM. DE EMPRESAS
17. NÃO RESPONDEU
10
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
nenhum um dois mais de dois
NÚMERO DE CA
RROS DA FAMÍLIA
P TAR
PUBL
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
nenhum um dois mais de dois
RELHOS DE TVNÚMERO DE APA
PART PUBL
11
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
nenhum um dois mais de dois
NÚMERO DE AP
ARELHOS DE DVD
PART
PUBL
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
nenhum um dois mais de dois
NÚMERO DE COMPUTADORES
PART PUBL
12
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
nenhum um dois mais de dois
NÚMERO DE QUARTOS
NA RESIDENCIA
PART PUBL
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
nenhum um dois mais de dois
NÚMERO DE BANHEIR
OS NA RESIDÊNCIA
PART PUBL
13
14
Segunda parte
15
I – Globalização: encontros e paradoxos
Néstor García Canclini, em uma de suas obras
1
, abre o debate
sobre cultura e política no mundo contemporâneo, indagando-se sobre a
precisão do termo globalização. Para o autor, é curioso que este cenário de
disputas econômicas, em que fábricas vão se fechando, desempregos vão se
acentuando, onde as migrações massivas e os conflitos interétnicos vão
aumentando, possa ser chamado de mundo globalizado. Ele ainda chama à
atenção o fato de empresários e políticos interpretarem a globalização como
convergência da humanidade em direção a um futuro solidário.
Renato Ortiz, ao referir-se aos homens de governo,
administradores ou produtores de best-sellers que escrevem sobre a
globalização, ironiza a visão otimista de um futuro próximo que eles
anunciam:
“Eles anunciam a boa-vida de uma sociedade feliz, marcada pela
exuberância da técnica, e a comunhão dos homens numa
consciência planetária. Literatura futurista, imaginativa e falsa
(...)”.
2
1
GARCIA CANCLINI, Nestor. La globalización imaginada. Buenos Aires: Piados, 2000.
As traduções do espanhol são de minha autoria.
2
ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 13.
16
Foto 2
Comércio – Lanchonete – frente
Foto 1
à escola
Escola Estadual “Glete de
Alcântara”
Foto 3 Foto 4
Liceu “Albert Sabin” Comércio –loja de presentes- frente à
escola
Consideradas essas reflexões e confrontadas as realidades acima
registradas, que desafiam as críticas mais otimistas sobre como definir o termo
globalização, é fácil entender a complexidade que se enfrenta quando o
objetivo é investigar a sociedade do mundo globalizado.
17
A análise da sociedade global encerra muitos dilemas e, para que
ela seja fiel ao cenário de nosso país, é preciso que a façamos sob os dois
pontos de vistas, que elegemos como objeto de nossa investigação: as classes
economicamente mais abastadas, as classes oprimidas. Como afirma Ortiz, “à
sua maneira, cada uma delas nos conta a história do mundo”
3
Para compreender essa complexidade, inscrita nos dilemas
próprios das diferenças de classes, investigamos a circulação e o consumo
culturais dos atores sociais, preocupando-nos com os movimentos
socioeconômicos que regem não só as regras dos mercados, mas – e sobretudo
– a vida cotidiana desses atores.
“A mundialização da cultura se revela através do cotidiano”.
4
Uma investigação capaz de desvelar uma lógica desse consumo
que se mostra nas diferenças de classe que articulam as outras diferenças: o
bairro, a casa, a família.
“A leitura da topografia possibilita o estabelecimento de uma
topologia simbólica configurada pelos usos de classe.”
5
3
ORTIZ, R. Mundialização e ... Op. cit., p. 8.
4
ORTIZ, R. Mundialização e ... Op. cit., p. 8.
5
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1997, p. 300.
18
Gráfico 1 – Cotidiano – Questão 9:
O que você faz nos finais de semana?
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
Visitar amigos Leitura Clube Shopping TV Internet Outros
PART PUBL
O gráfico 1 configura essa topologia simbólica que se constrói a
partir dos dados que demonstram o uso que os jovens entrevistados fazem de
seus momentos de lazer. Pelos resultados, vemos as condições
socioeconômicas que regem a vida cotidiana dos jovens: para os pobres, o
convívio com os amigos do bairro e a televisão são as formas de lazer; para
os ricos, o shopping e a internet.
Essa lógica não se estabelece somente a partir das diferenças de
classe; ela se inscreve na “competência cultural dos diversos grupos que
atravessa (grifos do autor) as classes (...)”.
6
Para as classes economicamente desfavorecidas, o único
instrumento de desenvolvimento dessa competência de que necessita um
6
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 301.
19
indivíduo para conquistar uma situação econômica e culturalmente melhor é a
Escola, já que a família, como veremos ao longo do trabalho, tem condições
mínimas de fazê-lo. As ilustrações que seguem, entretanto, mostram como a
escola pública está longe de cumprir essa tarefa.
Foto 5 Foto 6
“Glete de Alcântara” “Glete de Alcântara”
Sala de informática
7
Entrada da sala de informática
- Por que vocês estão na escola?
- (K.M.C.) Eu estou aqui porque eu quero ser veterinária.
- E você estuda bastante para conseguir se preparar para entrar na
faculdade.
-(K.M.C.) Às vezes.
-(E.M.) Nós não estudamos porque a escola não está ensinando
nada.
8
7
Segundo a professora responsável (a entrevista vem registrada no anexo), só alguns alunos da 5ª. série estão
sendo capacitados para usarem o computador. Duas vezes por semana, esse grupo eleito volta à escola para
digitar seus textos. Trata-se, na verdade, de um trabalho complementar de Língua Portuguesa, cujo objetivo é
fazer o aluno “ melhorar a ortografia” , segundo a professora. A escola não disponibiliza a internet às crianças
porque o acesso é por linha telefônica e a escola não poderia prescindir da única linha. Dessa forma, a sala
permanece, na maior parte do tempo, trancada, assim como se mostra na foto 6.
8
Parte da entrevista realizada no “Glete de Alcântara”, em 15
de setembro de 2005.
20
Foto 7 Foto 8
“Albert Sabin” “Albert Sabin”
Sala de informática Sala de informática
As fotos 5 e 6 ilustram e confirmam a afirmativa que E.M. faz ao
referir-se à sua escola “Glete de Alcântara” : “a escola não está ensinando
nada”. Computadores em salas fechadas, sem ligação à internet, professores
que desconsideram o seu papel.
Ao analisar, então, a instituição onde estudam, os jovens do
“Glete de Alcântara” não escondem seu descontamento.
9
- Os professores não são bons?
- (E.L.) Alguns são. Mas a professora de matemática, por
exemplo, ensina uma coisa e nem pergunta se a gente entendeu.
Já passa pra outro ponto.
- (F.A.) É mesmo, eu, por exemplo, não aprendi nada de
porcentagem, eu não consegui entender a explicação e ficou
por isso mesmo.
- E você não pediu que ela explicasse de novo?
- (F.A.) Não adianta. Os professores falam que a gente não
entende porque a sala tá bagunçada e ferra a gente.
.
9
Depoimento tomado em 15 de setembro de 2005.
21
A esse propósito, vale fazer referência à contribuição de
Bourdieu
10
que, ao analisar o gosto de consumidores de classes socioculturais
distintas e suas formas de apropriação de bens culturais, mostra uma posição
que ratifica a idéia de que a Escola poderia ser o agente capaz de oferecer
ascensão intelectual das classes subalternas.
Para o autor, os bens culturais são produto da educação; todas
as práticas culturais (freqüência aos museus, concertos, preferências musicais
ou literárias) estão estreitamente ligadas ao nível de instrução, medida, em
primeiro lugar, pelo nível de instrução escolar e, secundariamente, pela
origem social desse consumidor. Bourdieu reconhece, entretanto, que o peso
relativo da educação familiar e a educação propriamente escolar, cuja eficácia
depende estreitamente da origem social, varia de acordo com o grau das
diferentes práticas culturais para o qual o sistema escolar está capacitado. A
escola deficiente – como denunciaram as jovens E.M. e F. A – não supre,
evidentemente, a educação familiar também deficiente.
À guisa de exemplo, Bourdieu argumenta que a leitura de uma
obra de arte só é possível àquele que domina o código com o qual a obra de
arte foi construída. Para o autor:
“O espectador desprovido do código específico sente-se
submerso, perdido, diante daquilo que lhe aparece como um
caos (...)”
11
.
12
Para arrematar essa idéia, o autor define:
“O ‘olho’ é um produto da história reproduzido pela
educação”.
13
10
BOURDIEU, P. La distinction. Critique sociale du jugement. Paris: Les Editions de Minuit, 1979.
11
BOURDIEU, P. La distinction. Critique sociale du … Op. cit., p. II.
12
As traduções dos textos editados em francês foram feitas, livremente, por mim.
13
BOURDIEU, P. La distinction. Critique sociale du … Op. cit., p. II (Tradução feita livremente).
22
Ao final dessas primeiras reflexões da introdução da obra
citada, Bourdieu afirma que o consumo dos bens culturais, quer queiramos ou
não, tem a função de legitimação das diferenças sociais.
Ao longo de nosso trabalho, vamos constatar que, limitadas as
condições da família e da escola freqüentada pelos jovens da classe menos
favorecida, caberá aos meios de comunicação – sobretudo à televisão, meio de
mais fácil acesso a todas as classes – esse papel educativo. Resta só
questionarmos as formas como se constrói esse processo educativo e as
ideologias com que elas se comprometem.
1.1 Globalização e (des)ordem social
Sem pretendermos estender o debate sobre a capacidade de o
processo de globalização organizar ou desconstruir a ordem social, guardamos
a importância da idéia sobre os novos fluxos comunicacionais que
engendraram processos globais capazes de facilitar imaginários multiculturais
e, como vimos, capazes de cumprir a tarefa que caberia à escola e à família.
Otávio Ianni já previa:
“Em decorrência das tecnologias oriundas da eletrônica e da
informática, os meios de comunicação adquirem maiores
recursos, mais dinamismos, alcances muito mais distantes. Os
meios de comunicação de massa, potenciados por essas
tecnologias, rompem ou ultrapassam fronteiras, culturas,
idiomas, religiões, regimes políticos, diversidade e
desigualdades sócio-econômicas [sic] e hierarquias raciais, de
sexo e idade. Em poucos anos, na segunda metade do século
23
XX, a indústria cultural revoluciona o mundo da cultura,
transforma radicalmente o imaginário de todo o mundo”.
14
A convivência com os jovens de classes economicamente
menos favorecidas mostrou-nos, entretanto, que, se a indústria cultural é
capaz de transformar o imaginário de todo o mundo, se ela possibilita
uma democratização que se dá com o acesso que se tem à informação,
essa indústria, por outro lado, acentua a consciência desses jovens sobre
um outro mundo que estará muito além de seu alcance. Se os processos
de globalização, alimentados pelos meios de comunicação, encurtam
distâncias e rompem fronteiras, eles, ao mesmo tempo, escancaram as
desigualdades sociais.
Referindo-se à sociedade de consumo do mundo globalizado,
Bauman ratifica a idéia anterior:
“... o crescimento leva a uma exibição ainda mais frenética de
maravilhas de consumo e assim prenuncia um abismo ainda
maior entre o desejado e o real”.
15
14
IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, pp. 119 e 120.
15
BAUMAN, Z. Globalização. As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1999, p.104.
24
Gráfico 2 - Consumo de produtos – Questão 5:
Qual o último produto você comprou?
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
40,0
NÃO SEI ROUPAS ACESSÓRIOS CALÇADOS PR. BELEZA COMIDA MP3 ELETRÔNICOS
PART. PUBL.
Gráfico 3 - Consumo de produtos - Questão 7:
Qual o produto você está querendo comprar?
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
ROUPAS ELETRÔNICOS CALÇADOS MOTO PERFUME
PART PUBL
25
Os gráficos 2 e 3 respondem, respectivamente, às seguintes
questões:
Qual foi o último produto que você comprou? Qual o produto
que você está querendo comprar?
Pelos resultados demonstrados no gráfico 2, podemos verificar
a discrepância da natureza dos produtos consumidos: enquanto os jovens da
escola particular consomem roupas, acessórios e aparelhos eletrônicos, os
jovens da escola pública compram gêneros alimentícios.
O gráfico 3, por outro lado, mostra-nos “o abismo entre o
desejado e o real”, assim como Bauman (ver nota 9) anunciou: o real, para os
jovens da escola pública, é o produto de subsistência; o desejado: aparelhos
eletrônicos, acessórios (brincos, perfumes), calçados (tênis, especificamente,
de acordo com as respostas), jogos eletrônicos e DVDs. Os meios de
comunicação, na sociedade global, escancaram, como vimos, as desigualdades
sociais, anunciando um mundo ao qual nem todos podem ter acesso.
Assim, ainda que a globalização seja imaginada como um
processo de interação de todos os povos ou, no limite, de todos os
consumidores, o acesso a bens e a mensagens mantém-se diversificado e
desigual, deixando marginalizados alguns grupos sociais; em outras palavras,
ao mesmo tempo em que ela produz um intercâmbio transnacional, diante de
tantos paradoxos, ela deixa cambaleante a certeza de se pertencer a uma nação
dirigida por ideais comuns.
Quais são as implicações desse processo na cultura?
A globalização, que favorece a expansão de indústrias culturais
ao mesmo tempo em que debilita os produtores pouco eficientes, impele,
muitas vezes, as culturas periféricas a encolherem-se nos seus territórios, já
que muitas marcas das diferenças sociais – de natureza econômica que
26
terminam por influir as diferenças culturais – não se apagam com acordos de
integração.
“O imaginário de um futuro econômico (grifo do autor) próspero
que podem suscitar os processos de globalização e integração
regional é demasiado frágil se não leva em conta a unidade ou
diversidade de línguas, comportamentos e bens culturais que dão
significado à continuidade das relações sociais”.
16
Isso se confirma na fala de José Humberto, pai de K.M.C.,
durante entrevista realizada em sua casa, como parte de H.V. dessa jovem que
acompanhamos durante nossa pesquisa empírica:
- Eu gosto de morar aqui. As pessoas são da paz. Pelo
menos no meu pedaço de rua. Ninguém mexe com ninguém. O
lado de lá
17
não sei. Eles têm a vida deles, não me interessa nem
saber. Acho que é gente diferente da gente. Levo minha vida,
não gosto de sair, nem vou pros bares. Minha mulher vai.Eu
sou sossegado.
18
García Canclini denuncia, ainda, a complexidade criada pela
globalização instaurada, também, nas relações que os sujeitos do mundo
global mantêm: além das relações primárias – em que se estabelecem vínculos
diretos entre pessoas - e as relações secundárias – que ocorrem entre funções
ou papéis sociais desempenhados na vida social, surgem outras - notadamente
entre os atores sociais de classes economicamente privilegiadas - que
acentuam ainda mais as distâncias que os indivíduos mantêm uns dos outros:
as terciárias, mediadas por tecnologias (quantas vezes nossos interlocutores,
em chamadas telefônicas, são secretárias eletrônicas digitais!) e grandes
16
GARCIA CANCLINI, Nestor. La globalización ... Op. Cit., p. 26.
17
É comum o uso da expressão “os do lado de lá” tanto pelos jovens e familiares da escola pública como
pelos da escola privada, ao se referirem aos moradores do outro bairro.
18
Fala do senhor A . de C., pai de K.M.C., aluna do “Glete de Alcântara”, durante entrevista realizada em sua
residência, no dia 1º. de setembro de 2005
27
organizações. Paralelamente às terciárias, também o contato humano se faz
pelas relações quaternárias: somos destinatários de mensagens que descrevem
nossos hábitos e nossa rotina sem que nos seja dada a oportunidade de
conhecer o seu emissor. Os dados que se acumulam cada vez que usamos, por
exemplo, nosso cartão de crédito, constituem, segundo Garcia Canclini, um
superpanóptico que converte os atores sociais do mundo global em objetos
complacentes da vigilância.
Dentro dessa lógica, faz sentido a referência da jovem E.M
19
.
- (A.C.R.P.) Pobreza, Margaret.
- Pobreza?
- (D.C.) É. Casa de Cohab
20
. Pouco dinheiro.
- Eu gosto de ser pobre, eu não queria ser rica. (E. M.)
- Por que não?
- Porque o pobre é mais livre, pode fazer mais coisa.(E.M.)
- Como assim?
- Sei lá. Já vi em novela, gente rica é diferente. Minha mãe também
trabalhou pra uma família rica. A gente sabe. Eles têm medo de tudo. Eu
quero continuar a ser pobre, porque eu posso fazer o que eu quero da minha
vida.. (E.M.)
Fazendo referência a essas mesmas relações, Giddens
21
define-as
como “compromissos com rosto”, caracterizando as conexões sociais
estabelecidas em circunstâncias de co-presença, e as que ocorrem a partir dos
“compromissos sem rosto”, que ocorrem sem que ao menos conheçamos o
nosso interlocutor.
19
Parte da entrevista feita em 15 de setembro de 2005, na escola Glete de Alcântara. A totalidade da
entrevista virá registrada no anexo que acompanha o presente trabalho.
20
Companhia Habitacional (Órgão da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto), competente para a construção
de casas populares, muitas delas edificadas em bairros que sediavam favelas.
21
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 84.
28
O que fazer, então, com este mundo em que poucos observam
muitos?
É possível organizar de outro modo os vínculos entre os
indivíduos da sociedade global, personalizá-los ou mesmo encontrarmos
formas de diminuir a exclusão ou a segregação?
Para García Canclini, os estudos mais esclarecedores do processo
globalizador não são os que conduzem a revisar questões identitárias isoladas,
mas aqueles que procuram entender as oportunidades de saber o que podemos
fazer e ser com os outros, como encarar a heterogeneidade, a diferença e a
desigualdade. Para isso, arremata o autor, seria necessário, em tempo de
globalização, que se investigassem o imaginário que permeia a vida dos
indivíduos da sociedade atual e a cultura que ela é capaz de mobilizar.
Quando falamos de imaginário, estamos nos referindo ao fato de
que as sociedades se abrem para os bens materiais e simbólicos que transitam
de um país a outro, perdendo-se as rígidas marcas de suas origens.
Ao nos relacionarmos com múltiplas culturas e sociedades,
podendo, assim, situar nossa fantasia em múltiplos cenários, o imaginário
“pode ser o campo do ilusório”.
22
Um ilusório alimentado pela mídia que democratiza o acesso a
informações, multiplicando diálogos, encurtando distâncias, destruindo
emblemas que marcavam épocas ou países, ao mesmo tempo em que se
constitui como poderosa técnica de criar entretenimento. Segundo Otávio
Ianni, aí está o problema. Atrás da mistura de informação com entretenimento
reside uma pseudodemocratização. A verdadeira democratização que a mídia
promoveria nas sociedades globalizadas corresponderia ao acesso maior de
22
GARCÍA CANCLINI, N. La globalización ... Op. Cit., p. 33.
29
verdadeira informação que possibilitaria aos indivíduos, de toda e qualquer
camada social, saber o que realmente acontece no cenário de que ele é parte:
“Uma escassa informação e bastante entretenimento (...) isso é
grave porque implica deformar profundamente aquilo que é o
fato, o acontecido, os elementos que são indispensáveis para
que elas [as pessoas] possam se situar no mundo”.
23
O único espaço de resistência a que o autor se refere, capaz de
construir pensamentos autônomos, críticos, frente a esse poder de hegemonia
das idéias produzidas pelo discurso mediático, é o compromisso que o
indivíduo tem com a vida, com o trabalho, com o cotidiano
:
“Os monopólios, as técnicas sociais não conseguem eliminar
uma coisa que é essencial, que é fundamental, que é o seguinte:
cada um, por mais indefeso que seja, o ouvinte, o espectador, a
audiência, cada um está ligado na vida, no trabalho, no dia-a-dia
em diferentes atividades, e no limite desse compromisso com a
vida, com o trabalho, com a sociabilidade, enfim, esta expressão
inegável da práxis humana que é física, espiritual e cultural,
funciona sempre como um complemento dos meios de
informação, como um elemento corretor, de verificação”.
24
Tomada em qualquer de suas dimensões, o fato é que a
globalização é tema hegemônico nos estudos atuais no campo da comunicação
e algumas reflexões que decorrem desses estudos sinalizam a centralidade da
comunicação nas formas de organização da sociedade contemporânea e,
sobretudo, na forma como se passou a conceber a cultura.
No Brasil, o sistema de telecomunicação, desde os anos 60,
favorece a integração do mercado e da consciência nacional. As telenovelas,
de narrativas para o entretenimento, transformam-se em símbolos nacionais,
23
IANNI, O. Comunicação e globalização. Novos olhares, n. 4, São Paulo: ECA|USP, 1999, p. 27.
24
IANNI, O. Comunicação e globalização. Novos ... Op. cit., p. 27.
30
levando ao público, como afirma Ortiz
25
, uma auto-imagem, moldada,
naturalmente, pelas grandes redes de televisão.
Em síntese, as inovações tecnológicas dos meios de comunicação
são responsáveis por uma nova concepção – e novas articulações – da cultura.
1.2 A concepção de cultura no cenário global
Entre os anos sessenta e oitenta do século XX, a cultura era
entendida como processo de produção, circulação e consumo da significação
na vida social. É nos anos noventa que se começa a falar em
interculturalidade; as diferenças e as comparações eram dimensões que
passaram a fazer parte da discussão sobre o tema. Fala-se, nesse sentido, em
cultura como meios de relações entre grupos.
Para García Canclini
26
os processos globais – e as imagens que
os representam – referem-se à circulação de capitais, bens e mensagens, que
devem, segundo o autor, incluir os sujeitos que circulam entre culturas:
indivíduos que mantêm vínculo com as sociedades de que se originam, mas
têm acesso – ainda que imaginados ou ilusórios – a outras culturas.
“Na medida em que encontramos atores que elegem, tomam
decisões e provocam efeitos (...), a globalização deixa de ser um
jogo anônimo de forças de mercado regidas somente pela
exigência de se atingir o tempo todo um maior lucro (...)”.
27
25
ORTIZ, R. Mundialização e ... Op. cit., p. 57.
26
GARCÍA CANCLINI, N. La globalización ... Op. Cit., p. 63
27
GARCÍA CANCLINI, N. La globalización ... Op. Cit., p. 64.
31
Segundo o autor, os consumidores devem, dessa forma,
expandir o lado ativo de seus comportamentos até chegar a reinventar uma
maneira de ser cidadão neste cenário global.
E como as diferentes camadas sociais reinventariam isso?
Gráfico 4 - Consumo de produtos – Questão 1
Como você se informa sobre os produtos que quer comprar?
0,0 5,0 10,0 15,0 20,0 25,0 30,0
TV
Rádio
Jorna
l Impresso
Revistas
Internet
Out door
Conver r amigos
Vejo loja
Telefone
sa
PART PUBL
O gráfico 4, que responde à questão “Como você se informa
sobre os produtos que você quer comprar?”, demonstra que os fluxos
comunicacionais – que se dão entre os amigos – representa significativo meio
de influência sobre a escolha do que consumir, quer sejam bens materiais,
quer sejam bens simbólicos. O que se deve notar, entretanto, pelos dados
quantitativos representados, é o papel dos meios – notadamente a televisão e o
rádio – influenciando a escolha dos jovens da escola pública mais do que a dos
jovens da instituição privada.
32
Esses dados nos sugerem uma resposta à idéia de García
Canclini sobre a forma como se deve reinventar uma maneira de ser cidadão
no mundo global. Diminuir as discrepâncias culturais para que os jovens de
qualquer camada social estejam capacitados, nos seus fluxos comunicacionais,
a privilegiar as influências humanas em detrimento das influências
tecnológicas.
Apesar das diferenças apresentadas pelo gráfico quanto à
importância que a opinião dos amigos tem para conduzir a escolha dos jovens
das diferentes camadas sociais, vamos notando, ao longo de nossas
entrevistas, que a lógica do consumo dos jovens constrói-se a partir de suas
comunidades, as comunidades a que Robert White chama de “interpretativas”.
“(...) comunidades interpretativas compartilham modos de
interpretações similares, códigos comuns ou acordos
intersubjetivos, os quais são traduzidos em atitudes comuns de
seleção, decodificação e aplicação ao conteúdo da mídia.”
28
Para White
29
, há uma crescente evidência de que os indivíduos
percebem, usufruem e interpretam a mídia em relação direta com outros ou
influenciados por comunidades interpretativas e por uma cultura que fornece
critérios compartilhados, regras e códigos de interpretação. Assim, segundo o
autor, quanto mais os indivíduos estiverem integrados a um grupo e quanto
mais solidário esse grupo puder ser, mais os seus membros apresentarão
interpretações similares dos discursos da mídia a que estão expostos.
A esse propósito, vale referirmo-nos à hipótese do “espiral do
silêncio”, discutida por Barros
30
, segundo a qual o receio que os agentes
28
WHITE, R. Tendências dos estudos de recepção. Comunicação & Educação. São Paulo:
ECA/USP/Moderna, n.13, set./dez., 1998, p.44
29
WHITE, R. Tendências dos estudos de recepção. Comunicação & ... Op. Cit., p.44
30
BARROS FILHO, Clóvis de. Ética na comunicação. Da informação ao receptor. São Paulo: Moderna,
1995.
33
sociais têm de se encontrarem isolados em seus comportamentos, atitudes e
opiniões faz com que eles evitem expressar opiniões que não coincidam com a
opinião dominante. Segundo Barros:
“A idéia de espiral visa explicitar a dimensão cíclica e
progressiva dessa tendência ao silêncio. Quanto mais uma
opinião for dominada dentro de um universo social dado, maior
será a tendência a que ela não seja manifestada”.
31
Comprovamos a posição de Robert White
32
com os dados que
obtivemos nas respostas às questões sobre violência presente na mídia, dadas
pelos alunos da escola pública e da escola particular. Após terem assistido ao
vídeo
33
sobre atos violentos de adultos contra criança, os jovens do “Glete de
Alcântara” assim se posicionaram
34
:
- O que é que vimos aqui?
- (F.G.S) É uma propaganda
- (D.C.M.C.) É engraçada.
- (E.C.) Não, no final não é engraçada.
Pediram-me que mostrasse mais uma vez o filme publicitário.
- E agora, o que acharam?
- (K.M.C.) A criança não pode nem se divertir.
- (E.P.M.) O pai não entende a criança.
- (D.S.) É propaganda para parar com a agressão.
Os semblantes dos alunos começam a tomar ares de seriedade.
- (F.R.M.A.) É contra a violência infantil.
- Isso é fato real?
- (Todos) É.
31
BARROS FILHO, Clóvis de. Ética na comunicação. Da informação ... Op. cit., p. 207.
32
WHITE, R. “Tendências dos estudos de recepção” em Comunicação & ... Op. cit.
33
Esse material será apresentado junto ao presente trabalho, em CD que acompanhará os registros da íntegra
dos depoimentos gravados, durante nossa pesquisa empírica.
34
Encontros realizados, nesta ordem em que aparecem, no “Glete de Alcântara, em 1
o
. de setembro de 2005 e
no “Liceu Albert Sabin, em 21 de outubro do mesmo ano.
34
- Por quê?
- (D.C.M.C.) Porque isso acontece todo dia: espancamento de
criança.
- E você, C? O que você acha do filme, você não falou nada até
agora.
- (C.E.G.)É chocante
- Eu mostrei isso para alguns professores e eles choraram, o que
vocês acham?
- (C.E.G.) Eles tinham filhos?
- Tinham, quer dizer, acho que sim.
- (D.S.) Bom, talvez eles batam assim nos filhos e ficam com
remorso.
- O que faz esse filme ser chocante e triste?
- (D.C.M.C.) Porque primeiro é desenho e a gente vê que é um
menino de verdade e aí a gente fica chocado. Enquanto é
brinquedo, tudo bem. Mas, com gente é diferente.
- (E.C.) Na hora do cigarro a gente começa a ficar assustado.
- (F.R.M.A.) A segunda vez que a gente viu dá pra ficar
assustada.
- Os programas de televisão influenciam as pessoas a ficarem
assim?
- (E.C.) Não, as pessoas bebem e já ficam violentas.Se bem que
vendo na televisão, ajuda bastante.
- (D.S.) Ajuda, sim. As pessoas vêem e ficam ainda mais
nervosas, mais violentas.
- (R.D.B.) Eu concordo, a televisão dá mais idéia.
No Liceu Albert Sabin, depois de terem acompanhado o mesmo
filme, registramos as seguintes posições:
- (L.S.) O assunto do filme é muito forte, ele fala de abuso das
crianças, violências, essas coisas. No começo, parece ter um
teor muito engraçado, porque as pessoas não sabem do que se
trata, mas, no final, dá um choque muito grande porque você
vê que é um pai que fuma, que bebe e que bate na criança. Ele
faz uma comparação com uma criança de desenho animado,
em seguida ela mostra uma criança de verdade e aí você
entende que uma criança de verdade, quando sofre esse tipo
de abuso – uma surra, ou um abuso sexual – ela não se
35
recupera, por isso é uma propaganda muito pesada pra fazer
a gente refletir.
- (F.R.) No começo, com as figuras do desenho animado, ela
acaba ficando engraçada, depois ela mostra o drama: isso
não acontece só em desenho animado, isso acontece na vida
real, também.
- (T.K.) O L. falou tudo: violência, abuso. Mas vou ser bem
analítico (?), no começo a gente acaba até rindo. Depois, com
a frase final, você que “as crianças não voltam”. Nós estamos
julgando, aqui, esse tipo de atitude, só que a gente deve
pensar em como vamos ser quando nós ficarmos maiores,
mais adultos...
As crianças pedem que eu coloque de novo o vídeo.
Ao término do clipe, L. retoma, rápido:
- (L.S.) É uma antítese a propaganda: ao mesmo tempo em
que está parecendo ser cômica, ela mostra um drama que é
muito triste e dá um impacto na gente muito forte.
- (C. F.) Em muitas famílias isso acontece, nem sempre isso é
levado a pessoas que possam tratar e muitas crianças que
sofreram esse abuso, quando mais novas, são complexadas
e, quando mais velhas, podem voltar a fazer isso com o
filho, sabe?
- (E.P.K.) Acho que isso mostra a realidade de algumas
pessoas, que não têm nada a ver com a gente, por exemplo,
pode ser o caso de um pai que chega do trabalho e não
conseguiu alguma coisa e vai descontar no filho que não
tem nada a ver com o que aconteceu antes.
As crianças pedem, meio fascinadas, que eu passe ainda mais
uma vez o vídeo.
- (E.P.K) Depois que eu vi de novo, eu percebi que o pai, ele
está, sim , estressado com alguma coisa, mas parece que ele
está perseguindo a criança, ele chega na casa e já reclama de
tudo, o pai vai procurar o filho onde ele está: no quarto,
brincando, isso acontece...
36
- (C.G.) Isso é muita falta de responsabilidade dos pais, porque
isso não tem mais volta, a criança pode ter até morrido, ou
ficado traumatizada.
- A mídia induz à violência?
- (L.S.) Não. Há uma predisposição para isso na própria
pessoa. Não é a mídia que é a responsável.
- (F.M.) Essa propaganda mostra a realidade de algumas
pessoas. Acho que algumas pessoas não agüentam ver a
felicidade de outras. Esse pai até revela um pouco disso
porque o menino está lá quieto, vendo tevê e o pai já chega
batendo nele. É a realidade de algumas pessoas, não tem
nada a ver com a mídia.
- Que pessoas?
- (F.M.) Acho que mais, não sei... , (F. titubeia, medo de fazer
“acusações injustas”?), acho que as pessoas com menos
possibilidade de trabalho, esse pai deve ser o tipo de pai que
está com dificuldade de conseguir emprego e acaba
descontando toda a raiva dele no filho
- (F.R.) Eu ach, que, no começo, por causa da música de fundo,
a propaganda induz, assim, nós achamos, no começo, que é
um desenho animado; depois de uns quatro quadros, a gente
vê que é a história de crianças que os pais não têm muitas
condições..., algo sobre o trabalho, sobre problemas. É uma
propaganda muito certa.
- (L.S.) Eu acho que o F.M. atentou para um fato interessante.
Eu penso que para um pai fazer uma coisa dessas, ele não
pode ser uma pessoa normal, ele tem que ter uma raiva dentro
dele, um trauma; e, muitas vezes eu acho que o problema vem
bem “mais embaixo”: a criação desse pai, da bebida, algum
vício, várias coisas que propiciam uma atitude dessas que, na
minha opinião, é injustificável. A mídia, como eu disse, não
pode ser responsabilizada.
- (T.K..) Quero só dar mais uma contribuição, falando duas
coisas: primeiramente, isso é uma contradição: essas coisas
acontecem em periferia, com famílias com menos condições
de vida. Mas também pode acontecer em todos os lugares.
Também, o legal dessa propaganda é que ela alerta para
outras coisas: a bebida, o fumo. É um alera, ela mostra que a
bebida ajuda na violência. Está aí uma boa coisa da mídia.
37
- (F.M.) Eu quero dizer que essa violência não é necessária, e
é uma pena porque realmente acontece e é uma questão de
raiva, uma mágoa e o pai acaba descontando no filho e eu
concordo com o L. Isso depende da criação, talvez, na
infância dele ele não tenha tido um pai muito presente, ou um
pai que não dava muita atenção ou o que era violento com
eles e isso ele acaba passando pro filho.
Para os jovens da classe economicamente mais favorecida, a
violência não é estranha e a mídia induz a ela. Ainda que de forma lúcida a
jovem E.C., moradora do Parque Ribeirão, arrisque uma opinião diferente, o
grupo “fala mais alto”: para a comunidade de E.C. a mídia induz, sim, as
pessoas à violência, posição que ela acaba por acatar.
Os jovens da classe sociocultural mais favorecida mostram,
em sua leitura de mundo, compartilhar modos de interpretação similares,
códigos comuns ou, como afirmaria White, “acordos intersubjetivos”.
35
Feitas essas constatações, resta ainda indagar:
Como imaginar que a globalização possa minimizar todas
essas discrepâncias, já descritas, tornando semelhantes os autores que as
protagonizam?
Como sociedades com diferenças tão acentuadas podem estar
em acordo para compartilhar relações sociais e estabelecer formas consensuais
de cidadania?
Ainda que a industrialização da cultura contribua para
homogeneizá-la, ainda que a difusão massiva dos meios ordene os campos de
bens simbólicos e materiais, editando o mundo e controlando gostos, a
inclusão de determinadas camadas sociais ao mercado de algumas produções
35
WHITE, R. Tendências dos estudos de recepção. Comunicação & ... Op. cit., p. 44.
38
culturais – os livros, o teatro, os grandes espetáculos, o cinema – é ainda
utopia.
Gráfico 5 - Cinema – Questão 4:
Com que freqüência vai ao cinema?
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
40,0
45,0
50,0
1x sem 2x sem 1x mês 2/3 x mês Menos 1x mês Raramente Nunca Fui
PART PUBL
O gráfico 5 nos indica a distância que ainda resta vencer para
que todas as camadas sociais possam ter acesso às mais diversas formas de
bens culturais. A ida ao cinema, enquanto é prática semanal para os jovens da
escola privada, para os rapazes e garotas da escola pública trata-se de um bem
de consumo inviável:
- (E.M.S.) Ih, professora, ir no cinema é caro, só no cine
Cauim
36
, que é R$1,00 (um real). Mas tem o ônibus, às vezes
não dá.
37
36
Espaço mantido por proprietários de usinas de cana-de-açúcar, em Ribeirão Preto, reservado à exibição de
filmes com o custo reduzido, a fim de que as camadas populares possam ter acesso a eles. Mesmo assim,
como comprova a fala do jovem, a despesa com o ônibus que eles devem ter, já que a sala de exibição se
encontra na centro da cidade, muitas vezes, inviabiliza o programa.
37
Conversa com alunos do “Glete de Alcântara”, quando falávamos sobre os lugares onde eles se
encontravam com os amigos.
39
A recente matéria trazida pela imprensa escrita
38
ratifica a
exclusão das camadas sociais menos favorecidas do mercado editorial.
Segundo a pesquisa mostrada, os compradores mais efetivos dos livros estão
entre os 10% da população mais rica do Brasil, esses, entretanto, também
passaram a consumir menos, pois trocaram a compra dos livros por outras
necessidades: celulares cada vez mais sofisticados e computadores; itens com
os quais esses consumidores, de acordo com a Folha, têm um gasto de quatro a
seis vezes maior do que com bens editoriais.
38
Matéria editada pela Folha de S.Paulo – Ilustrada, p. E4 -, em 17 de setembro de 2005.
40
Para os economistas responsáveis pelo levantamento
demonstrado nos dados da pesquisa anteriormente apresentada, o grande
empecilho que as massas enfrentam para o consumo ao livro é o alto preço
com que ele se oferece ao mercado. Defendem a idéia de que para que os
livros pudessem caber no bolso dos brasileiros, eles teriam que custar menos
de um terço do que custam hoje.
Às camadas sociais economicamente desfavorecidas reservam-
se, então, as informações e o entretenimento que circulam nos canais gratuitos
de televisão e nas emissoras de rádio, conforme comprova o gráfico de
número 6, mostrado a seguir.
41
Gráfico 6 – Televisão – Questão 6 :
A que canal (canais) assiste com mais freqüência?
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
Globo SBT Band TV Gazeta TV a Cabo MTV
PART PUBL
Esse gráfico demonstra os resultados obtidos a partir da
solicitação que fizemos aos jovens para que indicassem os canais a que mais
habitualmente assistiam. Como fica demonstrado, os jovens da escola pública
só têm acesso à tevê aberta.
É importante registrar que o baixo percentual (10%) de alunos
da escola pública que acessam a MTV podem fazê-lo já que se trata de um
canal que, em alguns bairros da cidade, vão ao ar independentemente da
assinatura.
A globalização, assim descrita, será imaginada como um
processo segmentado e desigual. Para Bauman,
“Ser local num mundo globalizado é sinal de privação e
degradação social (...). Uma parte integrante dos processos de
globalização é a progressiva segregação espacial, a progressiva
separação e exclusão”.
39
39
BAUMAN, Z. Globalização. As conseqüências ... Op. cit.., pp. 8 e 9.
42
O gráfico 7 ilustra a discrepância quanto ao consumo de bens
culturais. Enquanto 100% dos alunos da escola particular assinam um
periódico, nenhum jovem da escola pública tem acesso a essas assinaturas.
Gráfico 7 – Revistas – Questão 2
Quais revistas assina?
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
40,0
45,0
4 rodas Caras Época Isto é Super
Interessante
Veja
PART PUBL
Como vivem esse processo globalizador, no seu cotidiano, os
jovens das classes mais favorecidas, aqueles cujo acesso ao consumo dos bens
anunciados pelos meios é possível, é real?
Trata-se de uma geração que atravessa fronteiras, que está em
permanente movimento porque a eles é dada a oportunidade de conquistas
novas. Presos em suas poltrona, viajam a velocidade superior a supersônicos –
43
sem ficar em lugar algum - pelos espetáculos televisivos ou pelas redes das
Webs. Para eles, o espaço deixou de ser obstáculo, bastam segundos para
conquistá-los.
Foto 9
Alunos do Liceu Albert Sabin viajando pela internet
Entretanto, restam a essa geração privilegiada de bens materiais
outros limites, determinados pelas diferenças sociais. A eles é imposta a
clausura. A rotina, o convívio com o outro estão limitados a um espaço cada
vez mais restrito. A rua, só a dos condomínios; a praça e os parques, só
aqueles que se escondem atrás dos altos muros dos residenciais fechados ou
aqueles restritos aos moradores dos prédios de apartamentos. Ao saírem dessa
clausura, é permitida uma outra: os shoppings. Um “não-lugar”
40
, um espaço
não para “estar com”, mas um território “onde o indivíduo se experimenta
40
Termo cunhado por Michel de Certeau e empregado por Marc Auge em AUGÉ, M. Não–lugares.
Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.
44
como expectador, sem que a natureza do espetáculo importe realmente”
41
.
Território circunscrito entre vidros e câmeras de vigilância, capazes de
assegurar que o “estranho” não consiga invadi-lo.
Questionada sobre como é o cotidiano em condomínios
fechados, F. L. R. M. confessa:
- Eu nem vejo a cara de meus vizinhos, fico dentro de casa.
Antes tinha medo de sair porque eu morava num apartamento,
na cidade, e minha mãe não me deixava sair por causa da
violência. Hoje não tem mais perigo, porque é tudo fechado,
eu moro num condomínio, mas eu continuo a ficar dentro de
casa. No computador, na tevê. Mas, às vezes, sinto falta de
ver as pessoas de perto.
42
João Cabral de Melo Neto desenha, na sua poesia, essa
arquitetura do homem global:
Fábula de um arquiteto
A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e tecto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
41
AUGÉ, M. Não–lugares. Introdução a uma antropologia da ... Op. cit., p. 80.
42
Referência feita por F.R.L.M. , durante conversa do grupo de alunos do Liceu Albert Sabin, no dia 21 de
setembro de 2005, sobre um verso da música “Estudo Errado” , de Gabriel, o Pensador: “ A rua é perigosa,
então eu vejo televisão”.
45
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até fechar o homem: na capela útero, com confortos
de
[ matriz, outra vez feto.
MELO NETO, J.C. de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.345 e 346.
Foto 10
Condomínio onde residem alguns dos alunos pesquisados do Liceu Albert Sabin
O gráfico 8 comprova a clausura dos jovens da escola privada.
Tiradas as festas – maior espaço de convívio social de ambas as classes -, a
internet, o footing nos shoppings, os cinemas
43
representam esse território em
que se “fecham” os garotos e garotas da escola particular.
43
Os jovens da escola particular onde fizemos nossa pesquisa não freqüentam salas de cinemas – as poucas
que restaram – do centro da cidade. Só as de shoppings lhes é permitido pelos pais, que temem pela segurança
dos filhos, já que a cidade é palco de maior incidência de assaltos e “freqüentado por camponeses”. A
expressão “camponeses” é própria da linguagem dos jovens e se referem a moradores, não do campo, como
seria lógico supor, mas moradores da periferia, ou apontam para pessoas de classes sociais economicamente
inferiores à classe desses jovens que empregam o termo.
46
Gráfico 8 – Cotidiano – Questão 10:
Qual sua forma preferida de lazer?
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
40,0
Leitura TV Shopping Cinema Festas Internet Outros
PART PUBL
Guy Debord fala que o homem moderno, ao procurar os
condomínios para habitar, busca “isolar-se em conjunto”
44
, cria os seus
espaços sociais que não se definem nem como relacionais nem como
identitários. Essa idéia ratifica a hipótese de Marc Augé:
“... a supermodernidade é produtora de não-lugares (...). Um
mundo onde se nasce numa clínica e se morre num hospital,
onde se multiplicam, em modalidades luxuosas ou desumanas,
os pontos de trânsito e as ocupações provisórias (as cadeias de
hotéis e os terrenos invadidos, os clubes de férias, os
acampamentos de refugiados, as favelas destinadas aos
44
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 114.
47
desempregados ou à perenidade que apodrece), onde se
desenvolve uma rede cerrada de meios de transporte que são
também espaços habitados, (...) o freqüentador de grandes
superfícies, das máquinas automáticas e dos cartões de crédito
(...), um mundo assim prometido à individualidade solitária, à
passagem, ao provisório e ao efêmero (...).”
45
Essas discussões sobre a polarização instaurada pelos processos
globais nas diferentes camadas sociais não devem ser vinculadas a uma
posição que conserva o debate sobre lutas de classes em velhos moldes nem
mesmo deve reduzir nosso enfoque à dicotomia cultura hegemônica e cultura
subalterna, que pode não dar conta da contemporaneidade. Essa discussão
estende-se, na verdade, aos limites de novas concepções epistemológicas que
invadiram os limites das Ciências Sociais, provocando, a partir dos meados do
século XX, uma nova percepção do espaço e do tempo que obrigou essa
disciplina a incluir outros objetos de investigação em seu campo de estudo.
Objetos esses que se definem de modo muito particular:
“... sociólogos e antropólogos perceberam obscuramente o
estalido das fronteiras de seus campos de estudo provocado pela
configuração de objetos móveis, nômades, de contornos difusos,
impossíveis de encerrar nas malhas de um saber positivo e
rigidamente parcelado”.
46
Dito de outro modo, as Ciências Sociais não podem ignorar que
os novos modos de construções simbólicas nas relações sociais se encontram
cada vez mais entrelaçados com as redes comunicacionais.
45
AUGE, Marc. Não-lugares... Op.cit., p. 74.
46
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Descronstrucción de la crítica: nuevos intinerarios de la investigación. in
LOPES, M. I. V. de e NAVARRO, R. F. Comunicación. . Guadalajara: Universidad de Guadalajara, 2001,
pp. 15 e 16.
48
“A explosão das fronteiras espaciais e temporais que eles [as
redes comunicacionais e os fluxos informacionais] introduzem
no campo cultural des-localiza os saberes e des-legitima suas
fronteiras entre razão e imaginação, saber e informação, instinto
e artifício, ciência e arte, saber experto e experiência profana.
Isso modifica tanto o estatuto epistemológico como o
institucional das condições de saber e das figuras da razão:
essas que constituem os desenhos das mudanças de época, em
sua conexão com as novas formas de sentir e as novas figuras
da socialidade.”
47
Sobre o espaço urbano arquitetonicamente planejado, impôs-se,
com o advento da rede mundial de informática, o espaço cibernético,
desprovido de dimensões espaciais concretas, mas inscritos na temporalidade
de difusão, cuja dimensão escapa da compreensão comum. E, como observa
Bauman, em vez de homogeneizar a condição humana, a anulação tecnológica
das distâncias temporais/espaciais tende a polarizá-la.
“Alguns podem agora mover-se para fora da localidade –
qualquer localidade – quando quiserem. Outros observam,
impotentes, a única localidade que habitam movendo-se sob
seus pés”.
48
Essa citação está expressa, considerando-a sob o ponto de vista
quantitativo, no gráfico 9, registrado a seguir: alguns poucos jovens – alunos
da escola privada, mais favorecidos cultural e economicamente – ganham,
pela internet, qualquer localidade, qualquer território; outros – jovens de
classes de poucos privilégios culturais e econômicos – observam as “viagens”
alheias.
47
MARTÍN-BARBERO, Jesús. “Descronstrucción de la crítica: nuevos intinerarios de la investigación ...
LOPES, M. I. V. de e NAVARRO, R. F. Comunicación…. Op. cit., p. 16.
48
BAUMAN, Z. Globalização. As conseqüências ... Op. cit., p. 25.
49
Gráfico 9 – Internet – Questões 1 e 2
Tem acesso à Internet? Se sim, onde?
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
Sim Não Em casa Na escola Casa Amigos /
Cyber
Curso / Serviço
PART PUBL
Assim, importa-nos, na verdade, refletir sobre o processo
globalizador e as transformações que ele provocou nas dimensões espaço-
temporais e nas relações humanas, se considerarmos, de forma particular, o
papel dos meios de comunicação, entendidos não como tecnologia ou como
veículos de informação, mas como uma prática conjugada entre emissores e
receptores, inseridos, ambos, numa ampla esfera de produção de bens
simbólicos e de produção de sentido.
- Vocês têm acesso à intenet aqui na escola?
50
- (D.A .R.) Ih professora, eu nem sei como é esse negócio...
49
1.3 Como pensar a comunicação no mundo globalizado
Quais os novos instrumentos conceituais que essa nova
dimensão trouxe aos cientistas sociais?
Por todos esses aspectos considerados, é possível afirmar que
investigar o mundo global é desafio cada vez maior, tanto para se encontrarem
as fronteiras da identidade do homem atual como para entender a circulação
e o consumo de bens culturais para esses mesmos indivíduos da
contemporaneidade.
A incerteza minou a estabilidade de muitos atores sociais,
mesmo aqueles que não se interessavam pela cultura. Depois da euforia dos
primeiros anos da instauração dos mercados globais – anos oitenta – esses
mesmos atores perguntam-se como e onde se estão estruturando as novas
formas de poder. Empresários desconcertam-se, invocando a necessidade de
se criar uma nova cultura de trabalho, de consumo. Pensa-se, enfim, numa
nova gestão dos meios comunicacionais que possa ser capaz, talvez, de
reordenar magicamente uma realidade que escapa de competências técnicas.
Vive-se quase a sensação de que a máquina pode escapar ao controle do seu
criador.
Diante dessa complexidade descrita, cabe, portanto, às Ciências
Sociais promover discussões que fujam do maniqueísmo que procura adjetivar
as condutas do homem contemporâneo, buscando um caminho eficiente para o
qual possam ser conduzidas as investigações de suas disciplinas.
49
Referência de aluna do “Glete de Alcântara”, ao ser questionada, em entrevista realizada em 15 de setembro
de 2005, sobre as atividades na sala de informática da escola.
51
As Ciências Sociais devem, assim, indagar-se sobre as
influências desses processos na cultura; devem considerar que a integração de
sistemas econômicos, por exemplo, não implica a integração social; devem
conceber que as diferenças culturais não se dissolvem, como já vimos, nos
acordos econômicos.
Diante de poderes anônimos, dispersos, permanecem algumas
perguntas:
Quem são os sujeitos da produção e do consumo? Em que
tempo e espaço se produzem as regras de convívio social? Como devem ser
olhados os modos de agir, de morar, de fazer e de ser do homem da
contemporaneidade? Há alguma disciplina capaz de compreender esse novo
modo com o qual se orquestram as instituições modernas?
Marc Augé
50
propõe que a contemporaneidade, com todas as
suas formas institucionais – o trabalho, a família, a mídia - seja o novo objeto
da Antropologia, alegando ser ela a única capaz de fazer entender as
transformações aceleradas do mundo global
A nostalgia, criada pela memória do que foi o passado, cedeu
lugar à idéia de que o homem faz a história, embora não tenha tempo de saber
que a faz; a sua aceleração corresponde à “superabundância factual”
51
de que
todos os indivíduos, querendo ou não, tomam consciência pela mídia.
A essa superabundância segue a necessidade de atribuição de
sentido a uma sociedade que se nos escapa: num piscar de olhos, deflagram-se
guerras e conflitos étnicos, derrubam-se regimes, transformam-se estilos, bem
como sistemas econômicos.
Mais uma expressiva característica própria do mundo
50
AUGE, M. Não-lugares. Introdução a ... Op. cit.
51
AUGE, M. Não-lugares. Introdução a ... Op. cit., p. 31.
52
contemporâneo, globalizado, supermoderno, é uma outra figura do excesso, o
excesso de um espaço que, paradoxalmente, nasce do encolhimento das
fronteiras do planeta que habitamos.
Ao mesmo tempo em que as distâncias diminuem, o mundo, por
satélites, abre-se para nós. Os meios de comunicação, como citamos
anteriormente, considerando as idéias de Otávio Ianni, trazem as imagens da
informação, da publicidade, da ficção como realidade feita espetáculo.
“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas
condições de produção se apresenta como uma imensa
acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente
tornou-se uma representação”.
52
A contemporaneidade mostra-se, então, marcada por
deslocamentos, por realinhamentos de fronteiras, pela busca de novas formas
de morar.
Em linhas gerais, ainda podemos afirmar que as mudanças
instauradas pela globalização abalaram os indivíduos e criaram inseguranças;
é por essa instabilidade que eles buscam orientação e informação assim como
entretenimento e recreação. A nova ordem global anulou a época em que o
indivíduo sabia pertencer a um território, com suas fronteiras e seus pontos
geográficos mais avançados. Essa noção dava a eles a substância de sua
identidade: nasciam num território, comungavam ideais com outros que
nasceram no mesmo espaço, compartilhavam a mesma cultura. Moravam num
bairro, em que podiam “ver o tempo que passava ser contado pelo apito da
fábrica, pelos sinos das igrejas”.
53
52
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 13.
53
BACCEGA, M. A. “Novas tecnologias, novas sensibilidades”. Comunicação & Educação, São Paulo:
ECA/USP/Segmento, n. 18, maio/agosto, 2000, p. 7.
53
Um tempo em que não era incomum, ao cair da tarde, os adultos
saírem às calçadas, com cadeiras de varanda para “tomarem a fresca” e
conversarem sobre o bairro, o trabalho, os problemas domésticos. Era a
maneira mais simples e mais verdadeira de estar junto, de ser solidário, de
compartilhar sonhos e ideais.
Na tentativa de reestabelecer essa noção de pertencimento e de
compreender os seus papéis sociais numa nova sociedade que se construiu
nesta contemporaneidade, o indivíduo busca a mídia com a qual ele pretende
reconquistar o autocontrole. As rodas da calçada foram trocadas pela devoção
à televisão, já que ela é capaz de retratar um mundo que se tornou muito
complexo para que se possa compreendê-lo nas conversas de rua, de bares e
de cafés.
Confrontamos essas afirmativas com os depoimentos ouvidos
das alunas F.M. e C.F., tomados em 27 de outubro de 2005, em casa de F.:
- (F.M. ) Eu gosto muito de assistir novela. Eu assisto Alma
gêmea
54
e América
55
. Normalmente elas mostram muitas
verdades
- (C.F.) Principalmente América.
- (F.M.) É, tem várias pessoas. Tem a Aidê
56
, que é
cleptomania, ela até procurou um psicólogo. Ela tinha prazer
em viver a sensação em roubar, ela até tinha dinheiro, mas o
prazer dela era esse. Isso me impressionou muito. Na
verdade, eu fiquei muito perturbada (...). Uma outra coisa que
me impressiona é a Raíssa
57
. Ela tem tudo o que quer, mas ela
tem uma família desmembrada. Eu fico impressionada porque
o pai que sempre ligou muito pros negócios e uma mãe que é
desequilibrada. Eu lembro de uma coisa que ela falou: “Se eu
54
Novela transmitida pela Rede Globo, a partir de 20 de junho de 2005.
55
Novela levada ao ar pela Rede Globo, no período de 14 de março a 14 de novembro de 2005.
56
A jovem se refere à personagem representada por Cristiane Torloni..
57
Trata-se de uma das personagens também da novela América – da rede Globo, levada ao ar em 2005,
vivida por Mariana Ximenes.
54
pudesse falar: eu não tenho uma relação boa com meu pai,
até que seria compreensível, mas eu NÃO TENHO
NENHUMA RELAÇÃO COM ELES”. Então, NÃO TEM,
relação, não HÁ. Então, eu acho que ela é muito sozinha. Mas
o que ela dizia é que na casa dela tudo era como uma
fotografia, tudo certinho, mas era só aparência, aí ela se
rebelou. Ela foi pra um baile funk, com a amiga da Rose, que
trabalha na venda, na periferia.
A mesma comprovação tivemos com a posição mostrada por
esses mesmos estudantes do “Liceu Albert Sabin”, ouvidos em 29 de
novembro de 2005, em debate sobre os tabus que as telenovelas quebram:
- (G.M..) Sabe, eu acho que foi bom a novela das oito mostrar
esse problema de homossexualidade. A gente tem que ir se
acostumando a aceitar o que os outros querem fazer, sem dar
palpite. A vida é assim. A novela ajuda a gente a respeitar.
- (F.M.) Não sei se meu comentário é pertinente, mas se você é
homem e todo mundo aceita isso, por que você não pode
aceitar em quem é homossexual? Eles são pessoas também,
iguais à gente, só que têm o modo de vida deles.
Mais conflitante e acalorada foi a discussão entre os mesmos
jovens a respeito do beijo que os rapazes Júnior e Zeca
58
da novela América
que deveria ser encenado no último capítulo da novela América:
- (T.K.) Ó, peraí, eu não vi o último capítulo. Eles iam mostrar
um beijo dos gays? Quem ia dar?
- (L.M.) O Júnior e o Zeca.Os dois, ora.
- (T.K.) Nossa!
- (F.M.) Deixa eu falar. Eu estava lendo numa revista que o
Bruno Gagliasso, o que faz o Júnior, ele disse que o fato de
não ter tido o beijo tirou um pouco a glória da história, da
novela. E ouvi dizer que saiu em várias revistas, eu não sei se
é verdade, que pra fazer essa cena, eles tiveram que se beijar
58
Personagens vividos por Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro, respectivamente.
55
em várias cenas, daí que eu penso que foi mal não ter tido a
cena.
- (R. H.) Eu li uma entrevista dele
59
e ele falou que teve que
ensaiar muito e se tivesse a cena ela ia ser bem-vinda.
- (G.B.) Pra gravação do beijo, eles fizeram uma preparação
psicológica, eles tiveram toda uma ajuda por trás. E se o
beijo aparecesse realmente na tevê, cada um ia ganhar uma
boa grana.
Cleptomania, homossexualismo, desagregação e conflitos
familiares, eis as complexidades da sociedade contemporânea a que os jovens
estão, em função das narrativas mostradas pela mídia, expostos.
A televisão vista como instrumento de apreensão e experiência
da vida aparece, também, nessas outras referências.
60
- Vamos voltar à letra da música, pessoal. Tem uma parte aqui
que acho interessante:
“A rua é perigosa então eu vejo televisão. (Tá lá mais um
corpo estendido no chão).
- (E. M. S.) É isso aí.
- Vocês concordam?
- (E. C.) Lógico. Não dá pra sair sempre.
(...)
-( G. V. S.) Lá em casa não tem televisão.
Vaias. Risadas.
- Não?
- (E. M. ) Ela é evangélica, professora.
(...)
-(E.C.) O que você faz em casa sem televisão?
- (G. V. S.) Ouço rádio.
59
O aluno se refere ao ator Bruno Gagliasso.
60
Entrevista com os jovens da escola Glete de Alcântara, em 15 de setembro de 2005. A conversa deu-se a
partir da discussão que o RAP “Escola errada”, deGabriel, o Pensador promoveu. A íntegra do diálogo está
registrada no anexo que acompanha o trabalho.
56
- (D. S.) Rádio pode ter?
- (G.V.S.) Pode.
- Que programa vocês ouvem?
- (G.V.S.) Só a palavra do senhor e música da igreja.
Risadas.
-(E. M.) Eu gosto de novela.
Risadas.
- (E. M.) Que que é, gente. Todo mundo assiste!
As garotas concordam. Os meninos vaiam.
- A que novela vocês estão assistindo?
A maioria grita:
- América.
- Ela é boa?
- (Q.C.C.N.) É muito boa!
- O que você aprende com ela?
- (F. A.)Que a gente não pode tentar ir pros Estados Unidos
pela fronteira do México!
Gargalhadas.
- (F. S.) Não é só isso, a gente aprende como é a vida. As
pessoas que só fazem o mal, por exemplo, se dão mal no fim.
Isso mostra como a gente tem que ser na vida. A novela dá
exemplo.
Os meios de comunicação, dessa forma, acabam por constituir-
se o grande protagonista da contemporaneidade: um príncipe, não o de
Maquiavel – arquétipo da teoria e da história -, nem o de Gramsci – o
moderno príncipe – representado pelo partido político revolucionário -,
condutor e intérprete de indivíduos e classes sociais da sociedade do século
XX, “único sujeito capaz de criar ex novo uma vontade coletiva como
protagonista de um efetivo drama histórico”
61
– mas o príncipe que figura
como protagonista de uma democracia eletrônica, o príncipe eletrônico, como
o denomina Otávio Ianni.
62
61
COUTINHO, C.N. (org.) Gramsci e a América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 49.
62
IANNI, Otávio. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 145.
57
“O príncipe eletrônico é uma entidade nebulosa e ativa,
presente e invisível, predominante e ubíqua, permeando
continuamente todos os níveis da sociedade, em âmbito local,
nacional, regional e mundial”.
63
E continua o autor:
“Assim se instaura a imensa agora eletrônica (grifo do autor),
na qual muitos navegam, naufragam ou flutuam, buscando
salvar-se”.
64
Sob um outro prisma, García Canclini defende a hipótese de
que os pares de oposição convencionais (subalterno/hegemônico,
tradicional/moderno) dialetizaram-se e abriram espaço a outros instrumentos
conceituais exigidos pelas novas modalidades de organização cultural, o que
ele chama de “hibridação das tradições de classes, etnias e nações”.
65
Ainda que necessitemos de novos instrumentos conceituais para
redimensionarmos as manifestações culturais e para analisarmos as novas
formas de conhecimento dos indivíduos, é importante registrarmos a
concepção das diferenças de classes que os jovens têm.
Em discussão promovida na análise do rap de Gabriel, o
pensador, conseguimos distinguir claramente essas diferentes concepções dos
jovens sobre a classe social a que pertencem.
Entre os alunos do “Glete de Alcântara”, acompanhamos a
seguinte opinião
66
:
63
IANNI, Otávio. Enigmas da ... Op. cit., p.148.
64
IANNI, Otávio. Enigmas da ... Op. cit.,, p. 166.
65
GARCÍA CANCLINI, N. Culturas híbridas, poderes oblíquos. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998,
p. 283.
66
Entrevistas dirigidas feitas na biblioteca da escola Glete de Alcântara, em 15 de setembro de 2005. O
elemento disparador para a conversa foi a música RAP “Estudo errado”, de Gabriel, o Pensador, cuja letra
estará reproduzida no anexo.
58
- (E.M.) Eu gosto de música RAP. Ela fala só verdade, mas é
coisa da periferia.
-E o que é periferia?
- (E. C.) É nós![sic].
- (D.A. R.) É lugar de crime, de bandido, de droga. Mas é o
nosso lugar, eu gosto daqui. Eu não queria ser rica.
- Por que não?
- (E.M.) Porque não. Em festa de rico ninguém se diverte, tem
umas músicas antigas, sei lá. Eu acho que morar aqui é bom,
ser pobre também. É tudo natural.
No “Liceu Albert Sabin”outras referências foram registradas
67
:
- (L.S.) Não é minha música favorita. Ela é mais tocada e
apreciada pelas pessoas de classes mais baixas. Mas ela é
interessante porque ela é uma forma de consciência social. A
gente precisa saber o que representa problema para a vida de
outras pessoas, mesmo que elas não pertençam à mesma
classe que a gente.
- E como você vê essas diferenças de classe?
- (L.S.) Existem classes mais baixas – as pessoas que não
ganham bem, têm dificuldades de ter um conforto e as classes
mais altas. São pessoas que podem ter tudo, ou quase tudo
porque ganham mais dinheiro. Lógico que elas se prepararam
para isso.
- A que classe vocês pertencem?
- (L.S.) Classe média alta.
- Como você definiria isso?
-(L.S.) Somos jovens que estudam numa boa escola: para
estudar no Sabin você precisa ter recursos, moramos bem,
temos o que comer, todos os dias, e nossos pais compram
aquilo que queremos, ou melhor, o que precisamos.
Sob o impacto dos meios massivos e o cenário de grandes
transformações culturais, os estudos da comunicação consolidaram-se como
um campo de interseção de saberes, cuja característica mais marcante tem
67
Referências de L.S.,quando da análise do RAP de Gabriel, o Pensador – “Estudo Errado” -, desenvolvida
em encontro no Liceu “Albert Sabin” , em 21 de setembro de 2005. A íntegra do diálogo está registrada no
anexo que acompanha o trabalho.
59
sido, não necessariamente sua definição teórica como campo, mas a forte
atração que penetra os mais diferentes âmbitos sociais. Os mais diversos
grupos de estudiosos interessam-se pelo papel dos meios de comunicação e
pelo efeito que eles exercem sobre o indivíduo e sobre a sociedade como um
todo. Isso justifica a razão pela qual o estudo da comunicação deve ser
inserido, como
propõe Jesús Martín-Barbero
68
, no âmbito das ciências da
linguagem como parte das Ciências Sociais, já que a linguagem “é constitutiva
da experiência humana e, portanto, da riqueza e complexidade das relações
sociais”
69
. .
Jesús Martín-Barbero
70
, em análise dos novos itinerários que a
investigação dos estudos de comunicação devem circunscrever na sociedade
contemporânea global, vê a tecnologia como instrumento que reconfigura o
mundo global e rearticula, também, as relações entre comunicação e cultura;
ao expor uma cultura às outras, os processos e meios de comunicação atuais
aceleram e intensificam a interação e o intercâmbio cultural; entretanto, para o
autor, a cultura reconfigura seu laço orgânico com o território e com a língua.
Todavia, parece-nos necessário considerar, desse debate, o
deslocamento do eixo da cultura já que ele problematiza, como defende
Martín-Barbero, as formas conservadoras de construção de conhecimento.
O saber social deixa de ser exclusivo aos intelectuais e passa a
ser acessível ao homem comum. Superada, então, a figura do intelectual como
único ator autorizado a analisar e muitas vezes a conduzir os problemas
68
MARTÍN-BARBERO, J. Prefácio. BACCEGA, M. A. Comunicação e linguagem. Discursos e ciência.
São Paulo: Moderna, 1998.
69
MARTÍN-BARBERO, J. Prefácio. BACCEGA, M. A. Comunicação e ... Op. cit., p. 4.
70
MARTÍN-BARBERO, J. Descronstrucción de la crítica: nuevos intinerarios de la investigación in LOPES,
M. I. V. de e NAVARRO, R. F. Comunicación. Campo y ... Op. cit. p. 18.
60
sociais, emerge, hoje, a figura do “mediador simbólico, identificador de
problemas, portador de inovações e construtor de consensos”.
71
Essa substituição de papéis importa à medida que ela marca o
momento em que o conhecimento deixa de ser o domínio exclusivo dos
homens eruditos e de seus herdeiros, para converter-se em um meio comum, a
partir do qual as sociedades se organizam. Essa nova condição de formação da
consciência e de participação sociais representa, a nosso ver, a verdadeira
democratização cultural inaugurada pelos meios de comunicação. Esses meios
possibilitam uma ruptura definitiva nos paradigmas que cultuavam a
polarização entre cultura erudita e cultura popular.
A perspectiva de fundo, segundo Martín-Barbero, desse novo
mapa que os processos de comunicação nos trazem está povoada de novos
atores sociais, os quais, embora limitados a seus territórios, são capazes de se
organizar para articular as reivindicações, através de movimentos sociais
urbanos, com que possam afirmar sua identidade sociocultural. Trata-se, não
mais de atores que protagonizam grandes fatos históricos, mas de heróis que
figuram nas histórias ordinárias, heróis comuns, vivendo as grandes aventuras
do seu cotidiano.
1.4 O homem ordinário na produção da cultura
Se entendemos que os processos culturais estão intimamente
vinculados às relações sociais, especialmente com as relações de classe,
deduzimos que a cultura não é um campo autônomo, mas um espaço em que
se inscrevem as diferenças e conflitos sociais.
71
MARTÍN-BARBERO, J. Descronstrucción de la crítica: nuevos intinerarios de la investigación in LOPES,
M. I. V. de e NAVARRO, R. F. Comunicación. Campo y ... Op. cit. p. 18.
61
“A cultura está em constante processo de reelaboração. Os
grupos sociais transformam e reformulam constantemente os
códigos culturais, adaptando o seu acervo tradicional às novas
condições históricas. O processo de reelaboração é marcado
pelas relações entre as classes sociais. É, sem dúvida, um
processo de luta por hegemonia, de mudanças e
permanências”.
72
Essa transformação dos códigos culturais de que fala Paulino
73
se esclarece a partir do advento dos meios de comunicação. Eles nos
trouxeram a consciência de que todas as práticas sociais podem ser analisadas
do ponto de vista cultural. Isso vale para o trabalho das fábricas, das oficinas,
para a vida nas comunidades de bairro, para a vida cotidiana e para todos os
modos de consumo dos sujeitos sociais.
A fim de conhecermos o lugar de produção de sentido dos
discursos recitados pela mídia, é preciso, portanto, lançarmo-nos a uma
operação de caça a essa produção dos consumidores, dedicando-nos à
construção de uma lógica das formas como eles tecem o sentido das
mensagens que chegam até eles, debruçando-nos na análise das formas com
que eles criam e recriam sua cultura, seus valores, seus mitos.
Inseridos num contexto social em que crimes, violência, drogas,
prostituição são acontecimentos comuns, é no cotidiano que os jovens,
moradores da periferia, que acompanhamos em nosso trabalho, encontram
força para resistirem; para lutarem contra a desordem e o caos sociais que
ditam as regras das ruas.
72
PAULINO, R. A. Estudo de recepção: o mundo do trabalho como mediação da comunicação. Tese de
doutorado apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, em 1999.
73
PAULINO, R. A. Estudo de recepção: o mundo do trabalho como ... Op. cit.
62
No primeiro dia de visita à escola Glete de Alcântara, a
professora Leiva Carvalho de Oliveira Faria, que nos apresentou e fez conosco
a primeira visita à instituição e aos alunos, fez uma referência que vale
registrar:
- Esses meninos são os verdadeiros heróis da resistência. Todos
eles têm um parente na prisão: irmão, tio, pai ou mãe... Eles
não têm nada, mas resistem ao convite para o mau caminho.
Não sei até quando. Por isso os professores aqui lutam para
eles, pelo menos, não irem para a rua.
Onde buscar esse homem ordinário inserido no processo de
comunicação social contemporâneo? De onde se pode melhor visualizá-lo? De
que espaço ele tece o sentido dos discursos recebidos?
“A vida cotidiana é a vida do homem inteiro (grifo da
autora)”
74
, por isso aí vamos buscar a verdadeira produção de sentido. O
cotidiano, sobretudo aquele que se inscreve nos seus espaços privados, lugar
protegido dos olhares alheios, lugar da memória, lugar do corpo e lugar de
vida.
“Aqui os corpos se lavam, se embelezam, se perfumam, têm
tempo para viver e sonhar. Aqui as pessoas se estreitam, se
abraçam e depois se separam (…) Aqui as famílias se reúnem
para celebrar os ritmos do tempo, confrontar a experiência das
gerações, acolher nascimentos, solenizar as alianças, superar as
provas, todo aquele logo trabalho de alegria e de luto que só se
cumpre em ‘casa’(…).”
75
74
HELLER, A. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 17
75
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 205.
63
É nesse contexto, onde cabe o homem ordinário como
protagonista na produção de sentido que se pode entender uma nova
arquitetura social e política que rompe com velhas tradições consolidadas na
concepção da alta e da baixa cultura. Trata-se de uma nova acepção de cultura:
cultura como modo de vida.
63
II - Estudos culturais: tradições e contemporaneidade
Falar da revolução cultural incitada pela mídia, desenhar os
contornos da agora que acolhe o protagonista eletrônico do mundo global, tão
expressivamente apontado por Ianni
1
, implica analisar os aspectos sócio-
históricos que antecedem esse cenário discutido anteriormente. Dito de outro
modo, um debate cultural contemporâneo exige um olhar dirigido ao momento
em que a cultura começa a ser discutida sob novos ângulos, ou seja, o
momento em que se a compreende como campo que abraça tanto as práticas
quanto as mudanças sociais.
As primeiras manifestações críticas que questionam o
estabelecimento de hierarquias entre formas e práticas culturais têm origem na
Inglaterra, nos anos 50, em função, sobretudo, do trabalho de Richard
Hoggart, Raymond Williams e Edward Thompson, cujos textos – The uses of
literacy, Culture and society e The making of english working-class,
respectivamente - identificam-se como base de um novo campo de estudos: os
Estudos Culturais.
Esse campo surge, em 1964, de forma organizada, na
Universidade de Birmingham, com a fundação de um centro dirigido por
Richard Hoggart: o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS). Os
trabalhos nele desenvolvidos, com a proposta de valorizar as tradições da
classe operária da Inglaterra do pós-guerra, tinham como eixo as pesquisas
voltadas para as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade.
O foco de atenção de Hoggart recaía sobre as produções culturais
da cultura popular e dos meios de comunicação de massa. Pesquisas realizadas
pelo autor, junto à classe trabalhadora, fundam a idéia que vai ser recuperada,
1
IANNI, Otávio. Enigmas da ... Op. cit., p. 146.
64
anos mais tarde, pelos Estudos de Recepção dos meios de comunicação de
massas: no meio popular não há só submissão, há, também, resistência.
Essa tese temos comprovado como atual à medida que
avançamos em nossa pesquisa, realizada, também, em bairro urbano
periférico; assim se apresentam as manifestações:
- Gervina, seu marido acaba de me falar que esses jovens de hoje
estão com a cabeça virada por causa das coisas da televisão. Você
concorda?
- Não, não. O mundo tá assim mesmo porque as coisas têm que
mudar. No meu tempo, eu vivia na roça, só fui namorar com 21
anos. Não conhecia nada da vida. Só conheci televisão quando
casei, com 25. Na televisão tem coisa boa e tem coisa ruim. As
pessoas que tomam o rumo ruim da vida, ou essas moças que
vivem quase peladas, fazem isso porque a família não cuida. A
violência, o roubo. Isso aqui não tem. Minhas filhas têm juízo
porque nós pegamos firmes. Tem exemplo ruim até na escola,
mas é a educação que nós demos. Por exemplo, um dia a E. falou
que quem rouba pra matar a fome estava certo. Eu ensinei que
não, que nós já tínhamos passado fome e eu não roubei. Pedi eu
pedi sim, isso não é pecado, mas roubar nunca. Na televisão, tem
uma mulher rica na novela que rouba, mas minhas filhas não vão
roubar só por causa disso
2
.
2
Depoimento dos pais de E.C.M., tomado na casa da jovem, durante refeição e reunião da família, no Parque
Ribeirão, no dia 20 de outubro de 2005, como parte da H.V. (história de vida) da jovem que temos
acompanhado.
65
Foto 11
Hermínio e a esposa Gervina, em sua casa, na sala.
Vale lembrar as referências de Kellner
3
quanto às tendências de
os Estudos Culturais louvarem a resistência dos receptores aos discursos
mediáticos, sem fazerem distinção entre tipos e formas de resistência. Nesse
sentido, entendemos que não se deve valorizar incondicionalmente a
resistência do público aos significados das produções discursivas dos meios,
ela passará, também, pelas mediações a que estão expostos os diferentes
sujeitos. Nas falas de Gervina, insere-se uma condição de luta na preservação
dos valores com que ela foi criada. O valor que ela preserva na sua relação
familiar, a batalha que empreendeu durante toda sua vida para não perder a
dignidade, apesar de muita pobreza, conferem-lhe força para preservar o seu
cotidiano como espaço de valores inabaláveis.
- E as despesas da casa, Gervina?
3
KELLNER, D. A cultura da mídia. Estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-
moderno. Bauru: EDUSC, 2001.
66
-Bom, o Hermínio conseguiu a aposentadoria, por causa da
diabete, e ele faz um biquinho aqui e ali, quando tá bom de
saúde. Eu tomo conta dos meninos dos outros, ganho um
dinheirinho. Faço tapete de retalho pra fora, as meninas ajudam,
e assim vai... Deus ajuda.
O depoimento de vida manifestado por Gervina ilustra a
referência que Borelli faz, ao analisar as personagens de Érico Veríssimo:
“São mulheres que lutam, cotidianamente, em outras guerras e
em trincheiras que lhes são próprias”.
4
A sua razão firme, diante da realidade que o seu cotidiano lhe
oferece, a consciência clara de suas poucas possibilidades de melhores
condições econômicas para sua família não impedem um espaço para o mundo
que corre nas telas, um intervalo para o sonho...
- (...) eu adoro os noticiários. Por mim, via todos, mas tenho
minhas meninas, as coisas, a roupa pra lavar, tudo isso. E as
novelas? Ai que beleza! Tanta coisa certa, né? Que acontece
mesmo. Nossa, dá vontade de chorar. Tudo lindo! É a vida
mesmo, né? Você vê, aqueles homens que querem ter a vida de
mulher
5
, sabe como é? Isso existe, a gente vê por aí. Mas aqui
em casa não, graças a Deus, e a gente faz tudo certo, né? Dá
educação pras meninas.
6
Gervina mostra-se capaz de produzir seus próprios significados e
reconhecer seus prazeres frente aos programas que escolhe acompanhar pela
televisão.
4
BORELLI, S.H.S. Gêneros ficcionais, produção e cotidiano na cultura popular de massa. Intercom,
CNPQ, FINEP, abril de 1994, p. 139.
5
Gervina refere-se ao personagem que desempenha o papel de homossexual, vivido pelo ator Bruno
Gagliasso, da novela América, levada ao ar pela Rede Globo de 14 de março a 4 de novembro de 2005.
6
Depoimento tomado em casa de E.C.M., em 20 de outubro de 2005.
67
Hermínio, por sua vez, relativiza, como nos propõe Kellner
7
, a
condição de resistência quanto à manipulação do discurso da mídia.
-Que nada, antigamente, sem a televisão, a gente era temente a
Deus e aos pais. Aquela época era mais fácil porque era só nós
acreditando nas coisas dos mais velhos”.
8
Hoje,tá tudo errado
nesta juventude por causa da televisão.Essas meninas às vezes
querem fazer igual, porque vêem as mulheres da televisão
fazer, roupa com as coisas tudo de fora! Onde já se viu? Eu
acho que o mundo tá nada bom. Os moços não respeitam a
gente. Eu tomava bênção do meu pai, toda manhã. Quando
saía, quando voltava. Hoje, essas meninas nem falam bom dia.
Antes eu ficava bravo, hoje, larguei mão, não adianta. Estou
falando sozinho.
9
O poder persuasivo das práticas discursivas dos meios de
comunicação, para esse homem, representa uma força maior do que os valores
que herdou de seus pais. O sujeito da enunciação – o eu na sua época da
infância – “Eu tomava bênção do meu pai” ocupa o lugar da memória
enunciva, ela é, como acredita Orlandi, o interdiscurso, “aquilo que fala antes,
em outro lugar”
10
. Esse lugar é ocupado, na instância do enunciado, pelo
sujeito, cuja formação ideológica não lhe permite resistir às formações
discursivas que invadem o seu espaço cotidiano. Assim, a figura paterna de
sua memória – a quem ele e os outros filhos pediam a bênção – é substituída
pela figura do sujeito do enunciado: um pai de autoridade fragilizada, que
sucumbiu aos hábitos da geração contemporânea. Diante do poder dos
modelos que a mídia oferece, o pai recua, desautoriza-se, desiste...
7
KELLNER, D. A cultura da ... Op. cit.
8
Referência feita pela mãe de de E.C.M., tomado na casa da jovem, durante refeição e reunião da família, no
Parque Ribeirão, no dia 20 de outubro de 2005, como parte da H.V. (história de vida) da jovem que temos
acompanhado.
9
Depoimento tomado em casa de E.C.M., em 20 de outubro de 2005.
10
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: Princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999, p. 31.
68
Vemos aí uma interessante representação de papéis sociais e
familiares: enquanto o homem adoece, capitula; a mulher avança, persiste,
invencível em suas convicções de que a família é o bem maior...
E essa idéia se atualiza em Drummond:
Família
Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.
A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda noite
e a mulher que trata de tudo.
O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade.
11
11
DRUMMOND DE ANDRADE, C.. Obra completa. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1967.
69
Foto 12
Gervina, as filhas, a neta (no colo de E.) e os garotos de quem ela cuida, frente à sua
casa, no Parque Ribeirão.
2.1 A classe trabalhadora como sujeito na produção da cultura
Hoggart
12
defende a consciência crítica das classes
trabalhadoras, seu bom senso, sua forma de se sentirem, cada vez menos,
inferiores às outras classes. Concepção essa que nos remete aos depoimentos
tomados das garotas e garotos da escola Glete de Alcântara
13
:
- Pessoal, há um outro verso aqui que eu quero rever com vocês
e fazer uma última pergunta (...). Olhem lá.
12
HOGGART, R. As utilizações da cultura. Lisboa: Editorial Presença, 1973.
13
Depoimentos tomados na escola pública, no dia 8 de setembro de 2005. a partir da música “Estudo errado”,
de Gabriel, o Pensador.
70
“Hoje eu tô feliz”
- E vocês, como estão?
- (K.M.C) Eu sou feliz porque eu tenho tudo! Meus amigos,
minha família. Tudo..
- (D.C) Eu sou feliz porque eu tenho mais coisas hoje; meus pais
viveram na roça, em Minas. Não tinha água encanada. Agora
eu tenho tudo, melhor que eles. Hoje eu sou uma pessoa
urbana.
14
Como se constrói, entretanto, hoje, essa crítica social das classes
trabalhadoras de que fala Hoggart?
Se, para analisarmos uma prática discursiva dada, é preciso
conhecer as condições materiais de produção em que esses discursos se
produziram, vale considerar a contribuição de Maingueneau.
15
Para esse autor, a noção de condições de produção designa o
contexto social que envolve um conjunto desconexo de fatores. O autor
recorre à filosofia marxista da linguagem, lembrando-nos de que, como
apregoa Bakhtin
16
, a situação extraverbal nunca é apenas causa exterior do
enunciado. Por essa razão, Maingueneau afirma ser preciso reconhecer que a
concepção da expressão corrente usada – condições de produção – revela-se
insuficiente. Em crítica a outras teorias da análise de discurso
17
, Maingueneau
afirma que, de maneira genérica, essas teorias, ao associarem “um conjunto de
textos a uma região definida da sociedade, pensada em termos de classes e
subclasses sociais
18
apagam o contexto, a “comunidade” em que se produzem
os discursos e que os faz circular.
14
Depoimento tomado no Parque Ribeirão, no “Glete de Alcântara”, em 15 de setembro de 2005.
15
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1997.
16
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.
17
Entendemos, por essa referência, uma crítica dirigida ao modelo de análise de discurso proposta por
Pêcheux, teorizada em PECHÊUX, M. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:
Ed. Unicamp, 1997.
18
MAINGUENEAU, D. Novas tendências ... Op. cit., p. 54
71
Na verdade, o que está em discussão aí é o problema dos
mediadores, a noção de intermediários, como chama o autor, entre um grupo
social e um discurso que é muito mais complexa do que parece a muitos
teóricos.
“No que tange à pergunta ‘em que condições uma formação
discursiva é possível?’não é suficiente lembrar a existência de
um conflito social, de uma língua, de ritos e de lugares
institucionais de enunciação, é preciso ainda pensar que o
próprio espaço de enunciação, longe de ser um simples suporte
contingente, um ‘quadro’exterior ao discurso, supõe a presença
de um grupo específico (grifo do autor) sociologicamente
caracterizável, o qual não é um agrupamento fortuito de ‘porta-
vozes’.”
19
Assim, Maingueneau, ao não admitir uma relação de
exterioridade entre o funcionamento do grupo e de seu discurso, estabelece
entre eles uma relação intrínseca:
“ ... é preciso articular as coerções que possibilitam a formação
discursiva com as que possibilitam o grupo, já que estas duas
instâncias são conduzidas pela mesma lógica”
20
Nesse sentido, Maingueneau conclui que o discurso, ou, para usar
a expressão de que ele faz uso, a “instituição discursiva”
21
possui duas faces: a
primeira diz respeito à social; a segunda, à linguagem. Assim, no lugar de
formação discursiva para designar essas duas faces, Maingueneau propõe a
expressão prática discursiva, pois acredita que nela se possam amalgamar o
19
MAINGUENEAU, D. Novas tendências ... Op. cit., p. 54
20
MAINGUENEAU, D. Novas tendências ... Op. cit., p. 55.
21
MAINGUENEAU, D. Novas tendências ... Op. cit., p. 54
72
social e o textual do discurso. Dessa forma, o autor reformula a expressão
cunhada por Foucault.
22
“A noção de ‘prática discursiva’ integra, pois, estes dois
elementos: por um lado, a formação discursiva, por outro, o que
chamaremos de comunidade discursiva (grifo do autor)”.
23
Considerando a óptica proposta por Maingueneau, na fala de
D.C. “Agora eu tenho tudo (...). Hoje sou uma pessoa urbana”, como
localizar a remissão às duas ordens: comunidade e discurso?
Do ponto de vista da linguagem, podemos dizer que o
enunciado 1 [Agora eu tenho tudo] está ligado (ainda que a conjunção esteja
implícita) ao enunciado 2 [ Agora eu sou uma pessoa urbana] por meio de uma
noção de causalidade positiva. No que diz respeito ao aspecto social desse
enunciado, o espaço urbano, para essa camada da população, é o lugar da
civilização, do progresso [... eu tenho mais coisas; na roça, não tinha água
encanada; eu tenho tudo, melhor que eles], ainda que as condições sejam
quase de miséria.
22
FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 23.
23
MAINGUENEAU, D. Novas tendências ... Op. cit., p. 56.
73
Foto 13
Padrão das residências do Parque Ribeirão
Para D.C., ser feliz é ter saído do campo e ter água encanada, é
ter uma vida melhor do que foi a de seus pais: ocupar o espaço urbano é, em
qualquer hipótese, ascender socialmente, considerando-se as condições
anteriores a que seus pais deviam submeter-se.
Condicionar o estado de realização pessoal, ou de felicidade, aos
bens materiais é característica que aparece nas referências dos jovens da
escola particular, ainda que o nível de exigência seja outro:
- (C.G.) Eu acho que o dinheiro não compra a felicidade (...),
agora, também tem outro lado, né? Você saber que vai chegar
em casa, vai passar fome, aquela miséria, deve ser muito
triste, eu acho.
-(G.B.D.) Eu acho que eu sou feliz com que eu tenho, eu acho
que eu tenho tudo o que preciso, principalmente minha
família, se eu tivesse bem menos do que eu tenho hoje, não sei
se seria feliz igual.
74
Enquanto para a jovem que habita, em condições precárias, o
bairro periférico da cidade, a água que chega encanada à sua casa é causa de
sua felicidade, o discurso dos jovens da classe economicamente mais
favorecida assim se organiza:
[... dinheiro não compra felicidade] agora [a miséria é triste].
Do ponto de vista lingüístico, [agora] substitui a conjunção
“mas”, cujo valor semântico, neste enunciado, é de refutação: ter dinheiro não
é ser feliz, mas não ter também não o é ; e de argumentação: não ter dinheiro é
ser miserável, é passar fome. Assim: dinheiro é felicidade.
A posição de G.B.D. “... e se eu tivesse bem menos do que
tenho hoje, não sei se seria feliz igual” nos permite afirmar que essas práticas
discursivas apontam por meio de seus aspectos lingüísticos para uma
comunidade discursiva de valores que apontam para os bens materiais.
Retomando a idéia de Hoggart quanto ao sentimento das classes
trabalhadoras frente às desigualdades sociais, podemos perceber, nos
depoimentos dos jovens alunos do “Glete de Alcântara” já registrados em
capítulo anterior:“Eu gosto de ser pobre (...) o pobre é mais livre (...) eles [os
ricos] têm medo de tudo” as relações entre as categorias pobreza/riqueza que
se enfatizam nessa abordagem: a pobreza está para a liberdade assim como a
riqueza está para a restrição.
Entretanto, apesar da crítica à condição “dos ricos”, não há
indiferença a esse mundo de restrições, quando ele é apresentado pela mídia,
nos depoimentos
24
de alunos do “Glete de Alcântara”:
24
Depoimentos gravados em 10 de outubro de 2005, no Parque Ribeirão, em casa de Q.C.C.N., durante
reunião de amigas.
75
- (E.C.M.) A televisão mostra muito o mundo dos ricos.
- (Q.C.C.N.) É, uma colega estava falando isso. Nós estávamos
vendo uma propaganda de bolacha e de Danone e aí ela
disse: “Nossa gente, uma criança vendo isso e não podendo
comprar, que judiação”. É triste mesmo, mas e daí, que é que
a gente pode fazer...
- (K.M.C.) Ah, eu fico triste de ver coisa que eu não posso ter.
- (Q.C.C.N.) Isso mexe comigo também, quando eu vejo aquelas
mulheres magrinhas, aquelas modelos e eu olho pra mim, esse
barrigão...
- (E.C.M.) Ah, se meu pai tivesse um fusquinha, com 8 dentro e
estacionasse aquele carrão que a gente vê na televisão, eu
teria vergonha.
- (K.M.C.) Ah, eu prefiro andar a pé.
- (R.D.N.C.) Isso humilha.
Nascido em classe proletária inglesa, mais do que defender a
classe dos trabalhadores, Hoggart, em sua obra, incita os estudiosos a ver essa
classe não como:
“ ...uma grande massa de rostos, hábitos e acções [sic], onde a
maior parte não tem, no entanto, nenhum sentido. (...), mas o
certo é que devemos tentar ver, para além dos hábitos, aquilo que
os hábitos representam, ver através das declarações e respostas o
que estas realmente significam (...).”
25
Na observação que faz nas classes proletárias em suas pesquisas,
Hoggart
26
leva em conta as atitudes das pessoas “antigas” e das pessoas
“novas”. Para ele, a geração mais velha cresceu num ambiente urbano, mas
não sofreu, quando jovem, a pressão dos meios de comunicação: o rádio, a
televisão, o cinema, até mesmo os cinemas de bairro. Por isso, ele se propôs –
25
HOGGART, R. As utilizações da ... Op. cit., p. 20.
26
HOGGART, R. As utilizações da ... Op. cit., p. 28.
76
assim como nós o temos feito - a examinar até que ponto essa geração mais
velha continua a ser o “pano de fundo” da vida da gente mais nova.
Nos depoimentos registrados acima dos pais de E.C.M., Gervina
e Hermínio, as idéias de Hoggart se confirmam. A geração anterior –
sobretudo aquela de tradições camponesas – é referência para a massa que
migrou para a cidade. Entretanto, esse “pano de fundo”, sem a interferência da
mídia, para Gervina “era bom”, com o advento dos meios de comunicação,
“o mundo agora está melhor”. Hermínio contraria a posição da esposa:
“Antigamente, sem a televisão, a gente era temente a Deus e aos pais”.
“Aquela época era mais fácil porque éramos só nós acreditando nas coisas
dos mais velhos”.
27
Assim, Raymond Williams propõe:
“A minha tese não é a de que existia em Inglaterra, na geração
anterior, uma cultura urbana que era ainda muito ‘do povo’, e de
que agora há apenas uma cultura urbana de massas. É antes a de
que a influência das publicações de massa se tornou hoje em dia,
por muitíssimas razões, muito mais insistente e activa [sic]; que
essas publicações adquiriram uma extensão até agora
desconhecida; que nos estamos a dirigir no sentido da criação de
uma cultura de massas; que as reminiscências da antiga cultura
urbana ‘do povo’ estão a ser destruídas; e que, nalguns aspectos
importantes, a nova cultura de massas é menos saudável do que a
cultura, muitas vezes tosca, que está substituindo”.
28
No depoimento de Hermínio, pai de E.C.M., há eco das
concepções de Hoggart; entretanto, na posição de Gervina, os valores
herdados da mãe – a mulher tem que cuidar da família - estão enraizados e
27
Referência feita pela mãe de de E.C.M., tomado na casa da jovem, durante refeição e reunião da família, no
Parque Ribeirão, no dia 20 de outubro de 2005, como parte da H.V. (história de vida) da jovem que temos
acompanhado.
28
HOGGART, R. As utilizações da ... Op. cit., p. 29..
77
permanecem arraigados às suas formas de ser, de se conduzir e de ler a cultura
da mídia à sua volta.
Nesta mesma obra, As utilizações da cultura
29
, Hoggart conclui
que os novos meios de comunicação que chegavam às classes trabalhadoras –
a que ele chama de baixa classe média – apesar de fragilizarem a cultura
popular, encontravam resistência no apego que essa camada da população
tinha a seus hábitos, a seu cotidiano, uma vez que os membros dessa classe
continuavam a se inspirar, para manter sua rotina, numa tradição oral e local:
“As referências às ‘vastas massas anónimas [sic] e suas
reacções [sic] amortecidas’ são talvez proféticas, e mais nada.
Pois até hoje as classes proletárias não foram de modo algum
tão gravemente afectadas [sic], uma vez que nem sequer
prestam grande atenção a esses meios de comunicação; vivem
de outra forma, intuitivamente, verbalmente, de acordo com
antigos hábitos, inspirando-se no mito, no aforismo e no
ritual.”
30
Entretanto, o autor reconhece que, apesar da resistência, uma
mudança se instalava na Inglaterra: nascia uma sociedade culturalmente “sem
classes”.
31
Ao referir-se a essas mudanças, Hoggart observa a valorização da
casa, do cotidiano das famílias da baixa classe-média, como forma de lutarem
para preservar as suas tradições:
“À medida que o mundo vai se tornando cada vez mais fluido, a
família e o bairro passam a constituir, ainda mais do que
antigamente, o mundo real e cognoscível. Neste aspecto, a
centralização da vida moderna tem contribuído para valorizar a
família e o bairro, menos, porém do que a sensação do
29
HOGGART, R. As utilizações da ... Op. cit.
30
HOGGART, R. As utilizações da ... Op. cit., p. 41.
31
HOGGART, R. As utilizações da ... Op. cit., p. 16.
78
anonimato, que atinge hoje em dia a maioria dos indivíduos. A
casa existe, não pertence à esfera das abstracções [sic]; dentro da
casa, o indivíduo pode ignorar essas forças exteriores.”
32
Para ratificar essa concepção, reportamo-nos a Martín-Barbero:
“O espaço da reflexão sobre o consumo é o espaço das práticas
cotidianas enquanto lugar de interiorização muda da
desigualdade social (grifo do autor) desde a relação com o
próprio corpo até o uso do tempo, o habitat e a consciência do
possível para cada vida, do alcançável e do inatingível”.
33
Respeitadas as distâncias espaciais e temporais, encontramos
confirmadas as referências de Hoggart nos depoimentos que pudemos registrar
em entrevistas com jovens de classe socioeconômica mais favorecida.
Questionados sobre um trecho específico da música Estudo errado, que
havíamos elegido como instrumento disparador de nossa conversa, os jovens
estudantes da escola privada confessam que a casa não só abriga, mas protege.
- Há um trecho aqui que eu queria apontar e ouvir vocês sobre o
que ele diz: “A rua está perigosa, então eu vejo televisão”.
- (A.M.) Eu concordo com isso. Hoje em dia é perigoso brincar
na rua, aí a gente fica em casa, é mais seguro.
- (R.M.) A rua está muito perigosa, por isso a gente fica muito
mais tempo na tevê e no computador. Eu moro em prédio e eu
nem saio na rua. Mas eu sei que quem mora em casa nem
pode sair porque tem gente que rouba bicicleta, tênis.
-(C. F.) Na rua tem gente que rouba. Meus pais me falam que
antigamente eles brincavam na rua. Hoje eu sei que a gente
corre muito risco, muito.
- (F.L.R Hoje eu moro num condomínio e o perigo é menor.
Quando eu não morava, eu nem saía. Eu tinha medo de sair.
32
HOGGART, R. As utilizações da ... Op. cit., p. 126.
33
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às … Op.cit., p. 290.
79
Agora que eu moro no condomínio, é mais seguro, mas
também não saio..
- (F.C.) Na televisão você conhece a violência.
- (M. P.) Por isso as pessoas ficam em casa.
- (L. C.) Ficam escondidas.
- (G.B.D) As pessoas ficam escondidas com medo do mundo lá
fora.
Posição semelhante adotam os jovens da escola pública, em
manifestação já registrada anteriormente:
- Vamos voltar à letra da música, pessoal. Tem uma parte aqui
que eu acho interessante:
A rua é perigosa então eu vejo televisão. (Tá lá mais
um corpo estendido no chão)”.
- (E. M. S.) É isso aí.
- Vocês concordam?
- (E. C.) Lógico. Não dá pra sair sempre.
- Por que é perigoso?
- (E.C.) Não, é porque não tem dinheiro.
- (F. S.) Mas é perigoso também.
Ainda uma observação sobre a importância do bairro na vida dos
jovens da escola pública, vale registrar a referência do professor que nos
recebeu no dia 18 de agosto, primeiro dia de visita à Escola Estadual “ Glete
de Alcântara”:
- O bairro é o mundo deles. Raramente freqüentam os
shoppings. O bairro é uma coisa muito forte na vida deles.
Ribeirão Preto é o Parque Ribeirão. Eles pensam: nossa
cultura é essa, não interessa o que acontece com os outros e
eles não querem que os outros se interessem por eles.
O gráfico abaixo demonstra, igualmente, que a casa de amigos e
parentes representa a forma de lazer para os jovens de classe menos
80
favorecida. Expulsos da rua, os jovens estreitam seus laços com sua família ou
com vizinhos e amigos. Diferentemente do jovem de classe social mais
favorecida: impossibilitados de usufruir o que o bairro poderia oferecer,
isolam-se no quarto, frente à televisão ou ao computador, ou usufruem o lazer
que a sua condição socioeconômica permite.
Gráfico 10 - Cotidiano – Questão 8:
O que faz depois da escola ?
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
30,0
35,0
40,0
45,0
Visitar amigos Leitura Clube Shopping TV Internet Outros
PART PUBL
2.2 Cultura e práticas cotidianas
A contribuição de Williams aos Estudos Culturais estava,
inicialmente, no debate que ele promoveu com sua obra sobre o impacto
cultural dos meios massivos. Para Williams e para Thompson
34
, cultura é uma
rede vivida de práticas e relações que constituem a vida cotidiana. Assim, a
34
THOMPSON, E.P. The making of the english working class. London: Penguin, 1991.
81
concepção de cultura não pode ser apartada da concepção que se tem de
organização ou sistema social, por isso a sua observação voltada para as
modificações culturais partia da investigação do estilo de vida das classes
trabalhadoras: sua linguagem, sua vestimenta, sua alimentação, enfim, seu
cotidiano.
Na concepção de Williams, a cultura é experiência ordinária e
está dada no modo de vida de cada grupo social. A idéia revolucionária do
autor reside, em primeira instância, no seu ponto de vista: a cultura é de todos.
Uma concepção revolucionária para a classe britânica a qual conservava uma
visão da cultura como algo extraordinário.
Analisando a obra de Raymond Williams, Cevasco esclarece a
posição do autor quanto à forma como ele define cultura:
“(...) a definição mais prosaica de cultura, como modo de vida,
e a mais elevada, de cultura como os produtos artísticos, não
representam alternativas excludentes (...). Essa integração é
uma seleção e uma resposta ao modo de vida coletivo sem o
qual a arte não pode ser compreendida e nem mesmo chegar a
existir, uma vez que seu material e seu significado vêm deste
coletivo.”
35
Em sua obra Culture is ordinary
36
, Williams afirma que a
formação de uma sociedade está na descoberta de significados, cujo
desenvolvimento se dá num debate vivo próprio da experiência humana;
assim, para esse autor, o sistema social se constrói e se reconstrói no modo de
cada indivíduo pensar. Essas formas de pensamento e de construção de
35
CEVASCO, M. E. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 48.
36
Trata-se de um ensaio publicado em WILLIAMS, R. Resources of hope. London: Ed. Robin Gable, 1989,
p. 13 a 18.
82
sentido da realidade é que se materializam nas instituições, nas artes e no
conhecimento.
A revolução instaurada por Williams está, na verdade, nas
raízes dos Estudos Culturais que surgiram com este projeto intelectual: incluir
o estudo da cultura popular e dos fenômenos da vida no espaço que fora
sempre reservado à “alta” cultura.
Falar em sistema social implica incluir, necessariamente, como
parte essencial de sua prática, seus sistemas de significações, e é nesse sentido
que podemos estender o conceito de cultura para o de mediação. São as
práticas culturais de determinada organização social que constituem as
mediações que interferem em todo o processo comunicacional dessa
determinada organização. A mediação é, como discutiremos à frente, o lugar
onde se outorga sentido ao processo de comunicação; a cultura é a grande
mediadora de todo esse processo comunicacional.
Como representação dessas concepções, sobretudo para
confirmarmos que a formação de uma sociedade está na experiência humana,
registramos as diferentes formas de leitura da música Estudo errado,
apresentada tanto para o grupo de jovens da escola privada como para os
jovens da escola pública.
Na escola pública, pudemos ouvir:
- (Todos) Que música é essa?
- É um RAP, vocês gostam?
-(Todos) Gostamos!
- O que é mais legal no RAP: a melodia ou a letra?
- (D.S) A melodia.
- (E.M.) Não, eu acho a letra.
A maioria apóia a opinião da colega:
- (Todos) A letra é muito mais legal.
- Por quê?
83
- (E.M.) Porque fala da periferia.
- E o que é periferia?
- (E.C.) É nós [sic].
- Como assim?
- (B. A.) Nós, professora, aqui, os pobres.
-(D.S.) Periferia é o que fala nos RAP: é crime, é droga, é
ladrão. Isso tudo tem aqui.
-Que tipo de música é essa, pessoal?
-(L.S.) Rap.
-O que é um Rap?
- (F.N.M) É uma letra mais falada do que cantada. É sobre um
problema do país, algum problema existente.
- A escola é um problema do país?
- (O. B.) Mais ou menos. É que ela é chata.
- Chata?
- (O. B.) É, um pouco chata.
- (M.S.M.) Eu acho que essa música fala do problema da escola
pública, onde os professores não ensinam nada. Aí ele vai
ficando de saco cheio e nem quer ir à escola.
- E vocês, meninas, o que vocês acham do RAP?
- (T.F.B.L.) Eu não entendo nada de Rap.
(…)
- Vocês ouvem esse tipo de música, entre vocês?
-(M.B.V) Entre a gente não.
- Quem ouve, então?
- (M.B.V.) Quem sofre esses problemas.
- (R.S.) A gente não sofre, são as pessoas da escola pública (...).
- Onde fica a escola pública?
- (L.M.) Nos lugares mais pobres.
(...)
-(R.H.) Essa música fala é da periferia, mas é como o pagode.
Antigamente tinha muito preconceito, hoje em dia está todo
mundo gostando de tudo. Essa música, por exemplo, do
Gabriel, o Pensador, é uma música para todas as classes.
Lógico que a gente tem preconceito...
-(T.M.M.) A música conta como a pessoa da periferia vive.
- O que é viver na periferia?
-(T.M.M.) Deve ser muito ruim, tem muito bandido.
84
-(F.B.) Na periferia não tem roubo porque o bandido vai querer
poupar as famílias que moram lá, eles vêm roubar aqui.
- Quem pode me dizer por onde transita o Rap?
- (M.C.) Na favela, nas escolas públicas, na periferia.
- O que é periferia?
- (G.B.) É a vida que eles tiveram. Aprenderam assim. Lá, onde
eles nasceram eles aprenderam do jeito deles. Lá na favela,
quer dizer, na periferia, não é igual a gente.
(...)
- (F.R.) As pessoas da periferia nem sempre são infelizes. Eles
sabem viver daquele jeito, é o que elas têm. É a escolha de
vida que elas fizeram.
-(L.S.) Não, não é por uma opção de vida. Ela já nasceu ali. De
modo algum eles são infelizes, só têm outro tipo de vida, todo
mundo se diverte, todo mundo é feliz, mas do jeito de cada
um. Às vezes as pessoas da periferia precisam de menos
coisas para serem felizes, enquanto as pessoas que têm mais
luxo acabam dando valor para aquilo que têm e depois que
conhecem outra realidade, elas vêem a diferença social que
tem entre as pessoas.
Considerados esses depoimentos, poderíamos analisar,
comparativamente, os dois grupos (para facilitar o processo, trataremos de
GA os jovens do “Glete de Alcântara” e AS os jovens do “Albert Sabin”), a
fim de entendermos como as formas de mediação cultural condicionam a
leitura de mundo de cada grupo.
Formas identitárias de GA
- (E.C.) Periferia é nós.
- ( D.S) Periferia é crime, é droga, é ladrão.
Formas identitárias de AS
- (A.M.) [Pertencemos à] classe média.
- (A.F.F.) Porque temos o que comer, pagamos uma boa escola.
85
- (R.H.) Classe média alta, porque a gente tem muito mais do que aquilo que
a gente precisa para viver.
Ainda que GA censure, em alguns momentos, “o mundo do
rico”: “... pobre é mais livre, pode fazer mais coisa”, há evidências de seus
sentimentos de inferioridade, quando se referem a si próprios:
Periferia = “É nós”
Se periferia = “crime, droga, ladrão”.
Nós = “crime, droga, ladrão”.
AS, por outro lado, relaciona a posição de classe aos bens
materiais que possuem. Implicitamente, percebemos um ethos
37
de
superioridade nas referências desses garotos:.
- (G.O) A periferia (...) seria um local excluído da cidade, do centro, as
pessoas da classe baixa ficam lá.
- (F.R.) É a escolha de vida que eles fizeram.
- (L.S.) Não, não é por uma opção de vida. Ela já nasceu ali. De modo algum
eles são infelizes, só têm outro tipo de vida, todo mundo se diverte, todo
mundo é feliz, mas do jeito de cada um. Às vezes as pessoas da periferia
precisam de menos coisas para ser felizes(...).
- (M.A.S.) Eu acho que essas pessoas da periferia não são felizes porque elas
não conhecem esse tipo de vida que a gente vive; elas nunca viveram isso, elas
não sabem como é, elas nunca tiveram oportunidade de vir aqui, se elas
tivessem oportunidade, elas iriam sentir falta de não poder ter essas coisas
(...).
- (T.K.) Essas coisas [violência] acontecem em periferia (...).
Para GA, AS não é livre; se tem bens materiais, não tem como
gratificar-se com eles. Para AS, GA é feliz porque é conformado com o que
tem. É clara, na referência de AS, a existência de duas realidades, dois
37
Termos empregado por Maingueneau, em MAINGUENEAU, D. Novas tendências em ... Op. cit., p. 45.
Para o autor: “O discurso é inseparável de uma ‘voz’. Esta era, aliás, uma dimensão bem conhecida da
retórica antiga que entendia por éthé as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, através de
sua maneira de dizer: não o que diziam a propósito deles mesmos, mas o que revelavam pelo próprio modo de
se expressarem (grifo do autor)”.
86
territórios que não se mesclam. Os dêiticos empregados na construção
discursiva de AS denunciam essas idéias:
Os dêiticos espaciais definem os limites das diferentes classes:
- (G.O.) As pessoas da classe baixa ficam lá.
-(L.S.) Ele já nasceu ali.
Lá, ali = espaço social a que pertence GA;
-(M.A.S.) Elas nunca tiveram oportunidade de viver aqui.
Aqui = território de que se exclui a classe que habita o não-aqui, a periferia.
-(M.A.S.) Elas não conhecem esse tipo de vida (...) elas nunca viveram isso
(...), elas iriam sentir falta de não poder ter essas coisas (...)
Esse, isso, essas = vida privilegiada de AS (Os demonstrativos esse, isso,
essas, empregados de forma inadequada, fazem alusão a fatos ligados ao
sujeito do enunciado, por isso deveriam ser empregadas as formas: este, isto,
estas; o demonstrativo do enunciado de T.K., por sua vez, está adequadamente
usado):
-(T.K) Essas coisas acontecem na periferia (...)
Essas = Dêitico que aponta o distanciamento entre as duas realidades: a
violência é “coisa” que habita o mundo da periferia (por isso o emprego de
“essas” que marca a distância que a referência tem do sujeito do enunciado).
Esses recortes feitos em alguns dos depoimentos explicam-se,
ainda mais, nas palavras de Baccega:
“A língua não é só instrumento com a finalidade de transmitir
informações. É um todo dinâmico que abarca o movimento da
sociedade: por isso é lugar de conflitos. Neles, as realizações
lingüísticas trazem inscritas as direções diversas para o mesmo
processo histórico”.
38
O conflito mais acentuado, podemos dizer, materializa-se no
embate dos dêiticos espaciais: os territórios ocupados pelas diferentes classes
estão nitidamente demarcados na contraposição do signos lingüísticos
ali/aqui: Em “Ele já nasceu ali
; não tiveram oportunidade de vir aqui, temos
38
BACCEGA, M. A. Palavra e discurso. História e literatura. São Paulo: Ática, 1995, p.48.
87
a articulação e a manifestação do sistema de valores, da ideologia, por assim
dizer, da classe dominante, neste contexto, representada pelos jovens alunos
do Liceu Albert Sabin: as classes sociais não se devem mesclar; cada qual
deve ocupar o território para o qual foi destinado.
Ainda nas palavras de Baccega:
“Numa sociedade de classes, as práticas lingüísticas estão
plenas das relações de classe”.
39
Nessas práticas discursivas analisadas, estão, a partir da óptica
de Maingueneau
40
, o texto e o social, ou, em outras palavras, o enunciado e a
enunciação: lugar onde nasce o discurso, lugar das formações ideológicas que
se refletem na dinâmica das classes sociais.
Dando continuidade à análise de mais alguns recortes dos
muitos discursos produzidos pelos jovens entrevistados, ainda podemos
apontar o que a escola representa para ambos os grupos.
Para os alunos da escola pública (GA), ela assim se configura:
- (K.M.C) Eu estou aqui porque eu quero ser veterinária.
- (L.M.) Eu gostaria de fazer psicologia.
- (E.M.) Quero ser professora de Educação Física.
- (...) pra vocês a escola é importante pro futuro?
- Ééééé ...
- (A.C.R.P) Mas só se ela for boa.
- (E.M.) Essa escola aqui é horrível, tem muita gente na sala. Na nossa, tem 46
alunos. Eles não querem saber de nada. Querem bagunçar, tem até
maconheiro.
-(Todos) É isso mesmo.
-(A.C.R.P.)A comida também é horrível. Tem cada pelota preta no feijão que
ninguém merece.
- (F. A.) É, até cabelo eu já encontrei na comida.
39
BACCEGA, M. A. Palavra e ... Op. cit., p.49.
40
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em ... Op. cit., p. 56.
88
- Eu também!
- O que falta pra escola ser boa?
-(D. A.R) Tudo. Professor que dá aula boa. Uma quadra. Tá tudo quebrado.
Os alunos não respeitam.
Para os alunos da instituição privada (AS), a escola tem um
papel bastante semelhante:
-(F.L.R.M) Tem a ver com nosso futuro. Se a criança só decora sem aprender,
ela não vai passar em nenhuma faculdade, não vai ter futuro.
- A escola é um problema do país?
- (O. B.) Mais ou menos. É que ela é chata.
- E pra você, a escola serve?
- (L.S.) Serve e não serve.
- Explique melhor isso.
- (L.S.) Tem coisa que não serve pra nada. Geometria, por exemplo.
- (M.S.M.) Eu explico! Tem profissão que não exige, por exemplo, a
Geometria. Tem matéria que você nem vai usar no futuro.
- O mundo hoje está violento, vocês pensam que, no futuro, ele será melhor?
- (M.S.M.) A escola é chata, o mundo está violento, mas a gente vai ter que
enfrentar alguma coisa pra ter um futuro, por isso a gente tem que tirar boas
notas pra ter um futuro melhor.
Ainda que para ambos os grupos a escola seja instrumento que
possibilitará um futuro mais promissor; GA tem consciência de que a única
forma de ascensão social seria alcançar um status profissional. Mesmo
reconhecendo as carências da educação pública, os jovens têm sonhos:
- (K.M.C.) Quero ser veterinária.
- (E.M.) Quero ser professora de Educação Física.
- (L.M.) Eu gostaria de fazer psicologia.
Para AS, a escola “tem a ver com o futuro”, como disse
F.R.L.M., entretanto, para esses jovens, ascender socialmente não é
preocupação; o futuro já lhes está garantido:
89
- (F.R.L.M.) Meu pai é fazendeiro e ele quer que eu cuide das
fazendas”
- (T.F.B.L.) Vou ser uma grande amazona e todos vão torcer por
mim.
Reportando-nos à citação de Baccega, podemos perceber, ainda
em referência que ambos os grupos fizeram ao futuro, os diferentes interesses
e as direções diversas que esses jovens mostram, ainda que atores do mesmo
processo histórico. Nas formações discursivas abaixo registradas, a dimensão
ideológica é evidente: para AS, a vida é para ser vivida, a realidade se inscreve
no imediatismo; para GA, há uma luta a ser vencida, se se quer sobreviver:
No “Liceu Albert Sabin”, pudemos registrar:
- (C.F.) A gente não sabe se a gente vai estar vivo daqui um ano, cinco ou
dez. Não dá pra gente pensar no futuro.
No “Glete de Alcântara”:
-(L.M.) (...) A gente nasceu pobre, mas, nem por isso a gente tem que morrer
pobre, entendeu? A gente tem que estar sempre tentando crescer mais. A
vida está aí pra isso. A gente tem que ir à luta..
Considerando-se que é a partir da materialidade discursiva que
se constitui a subjetividade do indivíduo que se apropria do discurso,
propomos outros recortes em alguns dos depoimentos dos jovens
entrevistados, com vistas a desvelarmos os resultados do percurso histórico do
grupo social a que esses jovens pertencem.
Por que GA se sente feliz:
-( K.M.C.) Eu sou feliz porque eu tenho tudo! Meus amigos, minha família.
Tudo.
- (D.C.) Eu sou feliz porque eu tenho mais coisas hoje; meus pais viveram na
roça, em Minas. Não tinha água encanada. Agora eu tenho tudo, melhor que
eles. Hoje eu sou uma pessoa urbana..
90
-(Q.C.C.N.) Vocês esqueceram uma coisa: Deus. Deus é tudo, depois tem que
vir a família e depois os amigos. Sem Deus no coração a gente não pode ter
tudo.
Por que AS se sente feliz.
-(M.S.M.) Eu sou feliz porque não acontece nada de ruim para mim (...). A
gente volta pra casa, tem comida na mesa, tem alguém pra conversar, ficar
junto (...).
-(L.S.) Eu sou feliz porque tenho uma boa família (...). Tenho uma porção de
coisa que muita gente queria ter e não pode ter. Enquanto eu estou comendo,
tem muita gente passando fome.
-(G.B.D.) Eu acho que eu sou feliz com que eu tenho, eu acho que eu tenho
tudo o que preciso, principalmente minha família, se eu tivesse bem menos do
que eu tenho hoje, não sei se seria feliz igual.
Os jovens de classe social menos favorecida reconhecem-se
felizes porque têm tudo; o grupo da escola privada sente-se igualmente
realizado.
O paradoxo, o estranhamento dessas referências está no que
pudemos, gradativamente, perceber: ao longo do nosso trabalho, nas
entrevistas realizadas posteriormente, pudemos notar a ilusão referencial
41
no
discurso de GA. Os jovens estudantes da escola pública reconhecem-se
frustrados e humilhados por não conseguirem alcançar os bens materiais
desejados:
- (K.M.C) (…) Isso revolta porque eu nunca vou conseguir ter essas coisas
42
- (E.M.C.) (...) Tem gente lá no topo que é mais rico; agora, tem gente que
não tem nada para comer (...). Nossa Senhora, é duro!
41
Expressão empregada por Orlandi, em ORLANDI, E. P. Análise de ... Op. cit., p. 35. “Ao falarmos, o
fazemos de uma maneira e não de outra, e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que
indicam que o dizer sempre podia ser outro. (...). Esse ‘esquecimento’ produz em nós a impressão da
realidade do pensamento. Essa impressão, que é denominada ilusão referencial, nos faz acreditar que há uma
relaçÃo ‘natural’entre palavra e coisa”.
42
K.M.C. refere-se a bens materiais mostrados, na mídia, pelos discursos publicitários: roupas, carros,
comidas.
91
Entendemos a manifestação de GA – “Sou feliz porque tenho
tudo” como mero recurso retórico, pois sua verdade não se sustenta ao ser
confrontada com outras realidades sociais. Trata-se de um momento da
enunciação materializado no enunciado “Eu tenho tudo” que os sujeitos
produzem, considerando o seu universo social, apartado de outros. A
materialidade lexical (pronome indefinido com função predicativa) torna-se
opaca frente à força de sentido que se guarda no advérbio de tempo: “Eu
nunca
vou conseguir ter essas coisas”.
Assim pode se explicar o conceito de assujeitamento
43
, ou seja,
a instância da subjetividade submete o enunciador. Isso equivale a dizer que
“é a partir [da] materialidade discursiva que se constitui [a] subjetividade”.
44
Dessa forma podemos entender a instância da subjetividade
enunciativa: ao mesmo tempo em que ela constitui o sujeito em sujeito de seu
discurso : “Sou feliz porque tenho tudo”, ela o assujeita, submetendo-o às
condições e às referências do restrito espaço socioecômico do sujeito
enunciador.
Ao manifestar sua revolta: “Eu nunca vou poder ter essas
coisas”, GA denuncia, nessa formação discursiva, um sujeito que se
reconhece em posição social inferior, pois seu grupo de referência é outro, é
aquele que “pode ter as coisas”.
A segunda manifestação: “Eu não vou poder ter essas coisas”
assujeita o indivíduo de GA, interpelando-o como um outro sujeito, pois o
inscreve em outras forças materiais, ou melhor, em outra formação ideológica:
não é possível ser feliz quando não se alcançam bens materiais.
43
Termo empregado por Orlandi em ORLANDI, E. P. Análise de discurso. Princípios e procedimentos.
Campinas: Pontes, 1999, p. 50 e seguintes.
44
BACCEGA, M. A. Palavra e ... Op. cit., p. 22.
92
Podemos dizer que a instância mediadora dessa passagem – ser
feliz versus ser infeliz – reside, justamente, na consciência das diferenças de
classes que a mídia promove, aproximando, em um só discurso, as diferenças
sociais e confrontando interesses e desejos.
Nas práticas discursivas de GA, vemos, na sua dimensão
textual, o conflito entre o ter e o não-ter e, no aspecto social, vislumbramos as
posições ideológicas que estão em jogo no conflito de uma sociedade de
classes. Essa idéia está clara na referência de Pêcheux:
“Diremos que as contradições ideológicas que se desenvolvem
através da unidade da língua são constituídas pelas relações
contraditórias que mantêm, necessariamente, entre si os
‘processos discursivos’, na medida em que se inscrevem em
relações ideológicas de classes”.
45
Considerando as manifestações dos jovens alunos do “Liceu Albert
Sabin”, vale, ainda, registrar:
- (L.S.) Não, não é por uma opção de vida. Ela já nasceu ali. De modo algum
eles são infelizes, só têm outro tipo de vida, todo mundo se diverte, todo
mundo é feliz, mas do jeito de cada um. Às vezes as pessoas da periferia
precisam de menos coisas para serem felizes (...).
O tom de seu discurso difere do dos outros jovens por razões
que valem ser apontadas:
L.S. legitima sua fala porque fala não do lugar de aluno que, na
sua grande maioria projeta o eu enunciativo ancorado no verbo “achar”, (Eu
acho que), ou numa expressão que demonstra insegurança ou incerteza na sua
forma de se posicionar diante de uma realidade como ela se apresenta (Sei lá).
L.S., ao empregar as negativas – “não, não, de modo algum”, opondo-se à
45
PÊCHEUX, M. Semântica e ... Op. cit., p. 93.
93
forma de expressão dos colegas, instaura um novo contrato de fala com seu
locutor (no caso, o pesquisador) e com o objeto (os jovens que habitam a
periferia). Esse novo contrato está no fato de que, no discurso, L.S. se
representa como um sujeito institucional – um eu social, porta-voz da classe
dominante - com uma autoridade que lhe permite analisar seu objeto,
igualmente social: a classe dominada. Essa autoridade aparece na escolha e
combinação do léxico e no tom com que ele o emprega:
- (L.S.) De modo algum eles são infelizes, só têm outro tipo de vida, todo
mundo se diverte, todo mundo é feliz, mas do jeito de cada um.
As suposições – característica das formações discursivas dos
outros sujeitos – cedem lugar às definições: “de modo algum”, “todo mundo
se diverte”, “todo mundo é feliz”, assim L.S. legitima sua fala.
Retomando os aspectos históricos dos Estudos Culturais,
entendemos que a produção de Williams
46
evidenciava que novos tempos
exigiam novas formas de pensar. A população urbana, dividida, de forma cada
vez mais marcante, em classes proprietárias e classes produtivas, organizava
seu tempo e seu espaço em função das exigências da produção industrial
moderna. Os avanços tecnológicos exigiam mudanças na capacitação dos
trabalhadores; os meios de comunicação de massa anunciavam a possibilidade
de um outro status social à classe menos favorecida e a possibilidade de
alcançarem outros segmentos sociais. Todas essas transformações exigiram
que se pensasse na cultura como forma participativa, diferentemente de uma
cultura de elite; em outras palavras, era preciso que se pensasse em uma
cultura em comum.
46
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
94
Ao defender o desenvolvimento dessa cultura comum,
Williams
47
referia-se à possibilidade de difusão e extensão dos valores de um
grupo a todos os outros; todos deveriam ser não só consumidores da versão
produzida por uma minoria, mas também produtores de cultura. Raymond
Williams, nesse sentido, lutava por uma mudança estrutural da velha
organização social e a revolução que ele organizava tinha como arma a
cultura.
Essas idéias, que marcaram a década de 50, ajudaram a criar
uma consciência na sociedade dos anos 60: não é simplesmente a propriedade
e o poder que mantêm as estruturas da sociedade capitalista. Essa consciência,
na verdade, incorpora-se na Inglaterra - e na América Latina, como veremos à
frente -, graças à influência do conceito de hegemonia herdado de Antônio
Gramsci
48
, que empresta ao termo uma concepção importante: hegemonia,
segundo este autor, significa a capacidade que as classes dominantes possuem
de dirigir, por meio do consenso - e não do uso da coerção e da força – a vida
intelectual, cultural e social de uma determinada sociedade.
2.2.1 Uma cultura chamada ordinária
Em seu texto Culture is ordinary
49
, Williams defende a idéia de
que a definição de cultura está na inter-relação entre a noção mais prosaica da
cultura, entendida como forma de vida, e a mais elevada: a cultura como
produção artística. Para o autor, fazem parte da sociedade o sistema de
comunicação, de aprendizagem, de geração, de criação assim como a análise
47
WILLIAMS, R. Resources … Op. cit, p. 13 a 18.
48
COUTINHO, C. N. e NOGUEIRA, M. A . (org.). Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1993.
49
WILLIAMS, R. Resources … Op. cit. p. 13 a 18.
95
da obra de arte que, vista como atividade social e material, não tem sentido
ser dissociada da sociedade. Entretanto, entender a arte como ordinária
significa entrar em conflito com toda a tradição britânica.
Williams responde a esse conflito com a ajuda da biologia,
segundo a qual não existe uma forma “natural” de se ver o mundo; a
percepção tem que ser aprendida, em outras palavras, só vemos a realidade
quando aprendemos a descrevê-la. Assim, o trabalho do artista, segundo o
autor, é um trabalho de transmissão. A criatividade é, portanto, também
ordinária.
Tomada a criatividade nesse sentido, pode-se entender a
concepção de cultura como inter-relação entre valores e significados dados
pelas artes e significados e valores inscritos na estrutura social. Essa visão, na
verdade, constituiu o avanço do projeto intelectual de Raymond Williams,
pois leva em conta a existência de uma expansão, de uma mudança cultural e
determina a necessidade de se buscarem novas formas de dizer, capazes de
discutir a cultura e a sociedade.
Em Culture is ordinary
50
, Williams descreve duas versões de
cultura que se podem ilustrar com a realidade que recortamos para apoio
empírico de nosso trabalho. À primeira versão o autor dá o nome de “casa de
chá”: uma cultura aristocratizante na sua forma de comportar-se, de falar, uma
cultura de pessoas distintas; a segunda versão – uma reação à primeira –
designa as pessoas que se colocam contrárias ao pedantismo, indivíduos
críticos às artes e ao aprendizado delas como expressão de minorias. Essas
50
WILLIAMS, R. Resources of … Op. cit., p. 13 a 18.
96
versões estão inscritas na forma como pessoas de classes distintas se
qualificam
51
:
No Parque Ribeirão, colhemos os seguintes depoimentos:
- (Q.C.C.N.). A gente já participou de uma festa de boy
52
.Nada a
ver. Olhe como eles ficam:
Foto 14
Tirada em casa de Q., por ocasião de reunião com amigas
- (Q.C.C.N.) Nós nos comportamos de outro jeito, ficamos mais
soltos, dançamos, mexemos o corpo inteiro. Rico não, parece
que tem medo de desmanchar a roupa.
.
51
As referências registradas foram gravadas em reunião de amigas em casa de Q.C.C.N. acontecida no dia 10
de outubro de 2005, da qual pudemos participar.
52
Q. refere-se, com essa expressão, aos garotos de classe economicamente mais favorecida.
97
Foto 15
Tirada em casa de Q., por ocasião de reunião com amigas
Dos jovens da escola particular, registramos:
- (M.A.S) Eu acho que essas pessoas da periferia não são
felizes porque elas não conhecem esse tipo de vida que a gente
vive(...)
- (I.F.) Cada classe social tem diferenças, cada um tem o seu
jeito de ser feliz.
Esses registros mostram-nos a atualidade das idéias defendidas
por Williams, já há décadas, de tomar a cultura como uma teoria das relações
entre os elementos de todo um modo de vida. Para o autor, a verdade social
reside nas relações – extremamente complexas – entre os indivíduos, e a teoria
da cultura deve corresponder, portanto, ao estudo delas.
Assim, com a concepção de cultura, tomada como todo um
modo de vida que envolve processos e não apenas produtos culturais, nascem
os Cultural Studies.
98
Os Estudos Culturais – expressão que reúne, na verdade, todo o
projeto de Raymond Williams e de outros intelectuais do cenário inglês -
marcam investigações, cujo objeto era entender a sociedade contemporânea e
atuar nela. Essa posição está clara em Marxismo e literatura
53
- contribuição
do autor para uma teoria marxista da cultura – em que se define o conceito de
materialismo cultural.
2.2.2 O materialismo cultural
O marxismo, na Inglaterra, não representava uma influência
significativa até os anos 30. A ascensão do fascismo na Europa, porém, passa
a atrair a atenção dos intelectuais. Williams, que se alia politicamente ao
partido comunista, registra em Culture is ordinary
54
que, dos marxistas, retém
a proposição clássica: a cultura deve ser interpretada em relação ao modo de
produção.
Essa concepção, entretanto, vai sendo refeita ao longo da
trajetória intelectual de Williams, à medida que ele vai tomando conhecimento
de outras tradições de esquerda e apresentando sua própria contribuição à
teoria marxista da cultura. O trabalho de Gramsci, de forma especial, foi
decisivo para uma nova consciência: o materialismo histórico também está
sujeito a um desenvolvimento.
Na discussão a respeito da teoria cultural marxista, em que
Williams aponta a “determinação” como um problema altamente complexo, o
autor discorda da posição de outros marxistas ortodoxos que defendem a idéia
de que nenhuma atividade cultural tem realidade e significação em si mesma,
53
WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1979.
54
WILLIAMS, R. Resources of … Op. cit.
99
mas é sempre reduzida a uma expressão direta ou indireta de um fator
econômico que a precede e controla. Para Williams – e aí está a razão pela
qual passa-se a falar em uma New left que caracterizaria a posição do autor – a
sociedade,
“... não é nunca [...] uma ‘casca morta’que limita a realização
social e individual. É sempre também um processo constitutivo
com pressões muito poderosas que se expressam em formações
políticas, econômicas e culturais e são internalizadas e se
tornam ‘vontades individuais’, já que tem também um peso de
‘constitutivas’. Esse tipo de determinação – um processo
complexo e inter-relacionado de limites e pressões – está na
totalidade do processo social, e em nenhum outro lugar: não
num ‘modo de produção’ abstrato, nem numa ‘psicologia’
abstrata”.
55
Assim, muito da obra de Williams está voltada para esclarecer e
modificar as concepções das relações existentes entre cultura, infra-estrutura
determinante e superestrutura determinada. Para ele:
“ ‘A base’ não são as relações reais de produção que
correspondem a uma fase do desenvolvimento das forças
produtivas materiais. ‘A base’ é um modo de produção numa
fase particular de seu desenvolvimento”.
56
2.2.3 Cultura ordinária e valores sociais
Ainda que Williams reconheça a exclusão da classe
trabalhadora em usufruir a educação e as artes, ele defende a idéia de que a
55
WILLIAMS, R. Marxismo e ... Op. cit., p.91.
56
WILLIAMS, R. Marxismo e ... Op. cit., p. 85.
100
cultura da classe trabalhadora encontra expressão no seu modo de vida regido
pela solidariedade.
Interessante notar, mais uma vez, a atualidade das idéias de
Raymond Williams no depoimento de Gervina
57
, mãe de E.C.M., sobre a
solidariedade, representando o alicerce nas relações humanas que se
desenvolvem nos bairros populares:
- Quando eu cheguei aqui nós não tínhamos nada. Só a
roupa do corpo, não tinha trem nenhum. Alugava um cômodo
nos fundos de uma casa. Aí compramos o terreno da
prefeitura. Pagando um tiquinho de nada por mês e fomos
construindo. Mutirão, sabe? Mesmo assim eu só tinha a roupa
do corpo. As pessoas me davam as coisas. Meus vizinhos
ajudavam. Às vezes até mistura, porque nós tínhamos só um
pouco de arroz. Passamos até fome. Se não fossem os
vizinhos, eu não sei o que seria de nós. Hoje tenho minha
casinha. Tá vendo, não tenho nada, mas tenho meu teto, sou
gente como as outras gentes!.
Na citação, Cevasco ratifica as idéias de Williams:
“Trata-se de uma idéia radicalmente distinta da natureza das
relações sociais. Nesse sentido, a produção cultural da classe
trabalhadora, sua contribuição específica para a herança
comum, mais do que obras individuais, são as instituições onde
se praticam idéias coletivas de desenvolvimento social”.
58
Em Richard Hoggart também encontramos a referência enfática
das relações pautadas na solidariedade de classes:
57
Depoimento gravado em casa dos pais de E.C.M., no dia 20 de outubro de 2005.
58
CEVASCO, M. E. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 63.
101
“Quando se analisam as atitudes das classes proletárias, é
costume falar do sentido de grupo, que consiste na convicção,
partilhada pelos membros dessas classes, de que cada um deles
não é um indivíduo isolado, mas sim um membro de um grupo
constituído por indivíduos bastante semelhantes e pouco
sujeitos a diferenciações futuras”.
59
Essa contribuição para a herança comum foi comprovada,
também, junto às ONGs mantidas por entidades religiosas e voluntários do
próprio bairro que mantêm núcleos de convivência de jovens, seja “para salvá-
los dos riscos que correm estando junto às próprias famílias”
60
, seja para
capacitá-los e encaminhá-los para trabalhos técnicos.
Foto 16 Foto 17
59
HOGGART, R. As utilizações da ... Op. cit., p. 97.
60
Essa referência foi feita pela coordenadora do Núcleo São Francisco e pelo funcionário do CESOMAR
(Centro Social Marista) que nos receberam durantes as visitas que pudemos fazer. Por uma questão de
segurança, sobretudo na segunda instituição, houve restrições às gravações e às fotos em que os jovens
pudessem ser identificados.
102
Foto 18 Foto 19
Jovens trabalhando com artesanato, capacitados por adultos voluntários.
Considerar como cultura unicamente os produtos artísticos das
classes altas e conceber os que não a praticam como aqueles que pertencem
às “massas” representa uma visão a que Williams vai se opor. Para ele, não há
massas. Em lugar de uma cultura de massas, ele propõe a cultura ordinária –
problema central para a sociedade inglesa da segunda metade do século XX.
Contribuir para a construção dessa cultura é fundamento do projeto intelectual
de Raymond Williams, cuja meta estava em abolir as barreiras de classe para
a consolidação desse tipo de cultura. Nesse sentido é que vemos o
redimensionamento da concepção ortodoxa e vulgarizada do marxismo que
posiciona a infra-estrutura como determinante e a superestrutura, determinada.
A realidade que temos experimentado com nossas pesquisas
empíricas leva-nos a crer na construção dessa cultura ordinária, entendida
como práticas sociais. Percebemos isso no depoimento dos alunos do “Liceu
103
Albert Sabin”
61
, tomado por ocasião de um encontro em que discutimos as
temáticas propostas pela novela América
62
:
-(F.M.) Por isso que a gente pode chamar esse horário de
nobre.Todo mundo está ligado porque os temas das novelas
desse horário servem para isso. Como eles sabem disso, eles
abordam esses temas para melhorar a sociedade. Aí todo
mundo – rico, pobre, preto, branco, homossexual - assiste e
pode ficar por dentro do que está acontecendo.
Os resultados do questionário sobre o consumo cultural
respondido pelos jovens da escola pública e da particular, no que diz respeito
aos meios de acesso gratuito – rádio e televisão – também mostram
preferência comum, o que ilustra a referência de Hoggart sobre as mudanças
na sociedade inglesa, nos anos 50 e 60: nascimento de uma sociedade
culturalmente sem classes.
61
Depoimentos gravados no Liceu Albert Sabin, em 29 de novembro de 2005.
62
Novela levada ao ar pela rede Globo, entre 14 de março a 4 de novembro de 2005.
104
Gráfico 11 - Televisão – Questão 7:
A que tipo de programa costuma assistir?
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
Jornal Esportivo Novelas Filmes Progr
Auditório
Progr
Educativos
Clips Desenho
Animado
Programas
Espec.
Seriados
PUBL PART
Gráficos 12 - Rádio – Questão 6:
Qual (quais) o(s) programa(s) preferido(s)?
ESCOLA PÚBLICA
Top 10
6,7
Hist Amor
10,0
Na balada
13,3
Paulo J asca
3,
tros
No Brake
13,3
al
3
ou
13,3
A
s 7 melhores
13,3
Panico
26,7
ESCOLA PARTICULAR
Top 10
6,9
Panico
26,5
As 7 melhores
13,9
Na balada
2,8
J
Toca Toca
2,8
Paulo Jalasca
5,6
outros
11,0
No Brake
8,3
Seq Max
13,9
Planeta D
8,4
105
Para especificar a idéia de preferência comum, que marca o
grupo de jovens entrevistados de ambas as camadas sociais, descrevemos as
características dos programas de rádio citados e suas respectivas emissoras:
Emissoras/Programações Descrição
Jovem Pan FM, difusão nacional, início da manhã.
Paulo Jalasca
Músicas, piadas. O locutor – Paulo Jalasca –
não economiza crítica e zombaria aos
homossexuais, aos atores mais velhos, aos
obesos etc.
Jovem Pan FM, difusão nacional, início da tarde
Pânico
Entrevistas com figuras famosas da televisão,
comentário de vida dos artistas e cantores,
piadas.Os comentários incluem sátiras e
críticas, feitas com palavrões.
Jovem Pan FM, difusão nacional, final da tarde, noite
No brake, Na balada,
Planeta DJ, As 7
melhores,Seqüência
máxima
Músicas mais tocadas durante o dia, em sua
maioria americanas, que se ouvem em
discotecas.
Difusora FM, difusão nacional, início da tarde.
Toca- toca
Ouvinte pede e oferece músicas, maioria
americanas, aos ouvintes, parentes, amigos.
Difusora FM, difusão nacional, noite
Top10
As dez músicas mais tocadas durante o dia, em
sua maioria americanas.
106
Band
FM, difusão regional, período da tarde
História de amor
Gênero folhetim (ouvintes mandam cartas,
contando sua história de amor, que passam a ser
narradas, em capítulos, com duração de dois ou
três dias, aos ouvintes).
Continuando nossa análise e considerando o ponto de vista da
linguagem – arena
63
em que se inscrevem todas as mudanças e conflitos
sociais - vale registrar a fala do jovem
64
que, a nosso ver, anuncia também a
cultura comum pretendida por Raymond Williams:
- (M.S.M.) (...) Aí tem a escola, Mesmo a gente não gostando de
estudar e ela sendo chata, a gente vem pra cá e é legal. Muitas
vezes minha mãe tá chapada comigo e aí eu venho para cá e
não tem ninguém pra ficar brigando.
- O que é “chapada”?
(Gargalhada do grupo).
- (M.S.M.) Humm ... nervosa. .
- Engraçado, essa gíria parece-me ter ouvido na escola pública...
É um mundo que vocês não conhecem, mas, às vezes, a maneira
de vocês falarem é muito semelhante.
-.(M.S.M.) Ah, mesmo essas pessoas morando no subúrbio ou
não e a gente sendo diferente deles, todo mundo é jovem, então,
todo mundo tem um mesmo palavreado.
- A que você atribui essa homogeneidade de “palavreado”, como
você fala.
(...)
-É na televisão (grito de alguns).
-.(M.S.M.) Não sei se é só na televisão, sei lá. Quer ver? Na
minha opinião, tem hora que a televisão também tem uma
linguagem mais culta e a gente aprende palavras mais cultas,
63
Servimo-nos, aqui, da expressão proposta por Bakhtin: “O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta
de classes” em BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981, p. 46.
64
Trata-se, como o registro anterior, de depoimentos obtidos em 21 de setembro de 2005, no Liceu Al bert
Sabin.
107
mas tem a linguagem da periferia. Mas é mais na música que
aprendo linguagem desse tipo, quem faz esse tipo de música é
a maioria que nasceu na periferia. Como eu não gosto de usar
uma linguagem muito “coisada”...
Risos do grupo.
-(M.S.M.) É, gente, mais formal, eu gosto de um jeito mais
relaxado de falar. .
Tanto os depoimentos como os gráficos registrados ilustram, na
nossa opinião, a definição de cultura como modo de vida e demonstram a
influência interclasses criadas pelos meios de comunicação – notadamente a
televisão e o rádio, meios através dos quais os jovens têm acesso à música.
A música norte-americana, como vimos anteriormente, também
apreciada pelos jovens da escola pública, chegam a eles, sobretudo, pelas
estações de rádio (gráfico 12). Esses dados confirmam-se a partir das
referências abaixo
65
:
-Que música vocês estão ouvindo?
- .(D.C.) Ah, não sei falar o nome
- É brasileira?
- .(G.V.S.) É cantada em inglês
- Vocês entendem a letra?
- .(G.V.S.) Não. Mas é muito legal
- Onde vocês costumam ouvir esse tipo de música”?
-(D.C.) Em rádio, ué.
65
Entrevistas semiabertas no pátio do Glete de Alcântara, em horário de intervalos das aulas, realizadas no
dia 7 de outubro de 2005.
108
Foto 20
Garotas da escola “Glete de Alcântara”, ouvindo seu walkman, em horário
de intervalo
Foto 21
Garotas e garoto no pátio do “Glete de Alcântara”
Desfrutando o horário de intervalo, ao som da música que as amigas cantarolam.
109
As palavras de Cevasco ilustram os dados anteriormente
registrados:
“Os meios de comunicação de massas são a condição técnica
necessária para a criação de uma cultura comum”.
66
Em linhas gerais, a obra de Williams denuncia alguns
“desejos”, como define Cevasco
67
. O mais abrangente deles virá a constituir
a base do paradigma das pesquisas em comunicação desenvolvido na América
Latina, os Estudos de Recepção. Esse “desejo” revela-se como:
“... a mudança do caráter da sociedade capitalista e sua lógica
cultural, a comunicação de massas (...): a audiência de ‘massa’
deve ter seu acesso à produção facilitado, de forma a
transformá-la em produtores ao invés de simples
consumidores do que os outros acham que vão gostar”.
68
Vale registrar, em última análise, que a televisão, para
Raymond Williams:
“... foi um foco de interesse constante (...). Ao contrário de
muitos intelectuais de esquerda que se ‘juntam à burguesia na
teorização de sua própria crise’ e denunciam esse meio como
mais outro índice de decadência cultural (...) Williams se
propõe a explorar, ainda que de olhos bem abertos, suas
possibilidades de prover acesso universal à comunicação e à
cultura”.
69
66
CEVASCO, M. E. Para ler ... Op. cit., p. 73.
67
CEVASCO, M. E. Para ler ... Op. cit., p. 73
68
CEVASCO, M. E. Para ler ... Op. cit., p. 74.
69
CEVASCO, M. E. Para ler ... Op. cit., p. 224.
110
2.3 A cultura mediática e as práticas discursivas
A participação na formação dos Estudos Culturais de Stuart Hall
- sucessor de Hoggart na direção do CCCS - foi bastante expressiva já que se
atribui a ele o incentivo ao desenvolvimento da investigação de práticas de
resistência de subculturas e de análises dos meios massivos.
Na verdade, é possível identificar, assim como afirma
Escosteguy
70
, alguns momentos bastante diferenciados no campo desses
estudos. No início dos anos 70, pode-se apontar a emergência de várias
subculturas que pareciam resistir a alguns aspectos da estrutura dominante de
poder e, a partir da segunda metade dessa década, cresce a importância dos
meios de comunicação de massa, vistos “não somente como entretenimento
mas como aparelhos ideológicos do Estado”.
71
A temática da recepção começa a chamar a atenção dos
intelectuais do Center for Contemporary Cultural Studies, sobretudo a partir
do texto de Stuart Hall Encoding and deconding in the television discourse
72
em que o autor, em linhas gerais, critica a análise linear que as pesquisas dos
meios de comunicação desenvolviam. Em lugar de pensar os meios a partir do
modelo emissor/mensagem/receptor, Hall propõe, em seu texto, pensar nesse
processo em termos de uma estrutura produzida a partir de momentos
distintos: produção, circulação, distribuição/consumo e reprodução. Para Hall,
70
ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos estudos culturais. Uma versão latino-americana. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001, p. 30 e seguintes.
71
ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos ... Op. cit., p. 30.
72
Esse texto tem diversas versões. A primeira dela aparece no CCCS, em 1973. Nossa leitura dele foi feita
em: HALL, S. “Encoding/decoding” em HALL, S. et alii.Culture, media, language. London: Routledge,
1980, p. 128.
111
era preciso considerar essas etapas do processo de comunicação como uma
complexa estrutura, sustentada pela articulação e prática de cada um desses
momentos os quais mantêm, entretanto, suas especificidades. Só dessa forma
seria possível entender esse processo como um circuito contínuo, cuja
produção discursiva distinguia-se de toda e qualquer outra produção social.
Stuart Hall considera que o objeto dessas práticas são os sentidos
e as mensagens especialmente organizadas como nenhuma outra forma de
comunicação ou linguagem. Tratava-se, portanto, da idéia de que nessas
formas discursivas é que a circulação de um determinado produto tinha lugar.
Entretanto, para o autor, esse processo requeria combinações e práticas para
que a distribuição dos produtos fosse adequada a diferentes audiências:
“Se não há sentido, não há consumo. Se o sentido não se articula,
não há efeito”.
73
Assim, como vimos, para Stuart Hall, as formas discursivas das
mensagens mediáticas têm uma posição privilegiada no processo de
comunicação e, segundo o próprio autor:
“... os momentos do encoding e decoding devem ser pensados,
em relação ao processo comunicativo, unicamente como
relativamente autônomos, pois eles se constituem como um dos
momentos desse processo.”.
74
Depois de um período de preocupação com análises textuais dos
meios massivos, estudos voltados para as formas de recepção dessas
mensagens começam a ser desenvolvidos com a preocupação de se analisarem
73
HALL, S. et alii.Culture, media, … Op. cit. , p. 128. A tradução das citações deste texto, feitas por mim,
de forma livre e não literal.
74
HALL, S. et alii.Culture, media, … Op. cit. , p. 129.
112
as diversas leituras ideológicas assumidas pelo receptor. Assim, na segunda
metade dos anos 80, já não mais limitadas ao CCCS, essas investigações
deslocam seu interesse das telas, ou seja, do texto mediático para a audiência.
Dá-se, também, neste momento, uma descentralização do projeto
dos Estudos Culturais. O CCCS, pólo de difusão dessa proposta, cede sua
primazia a uma expansão desses estudos para além da Grã-Bretanha,
sofrendo, naturalmente, as interferências das identidades sociais dos territórios
que aderiam a eles.
Segundo o próprio Hall, o foco do projeto dos Estudos Culturais
passa a ser a reflexão sobre as novas condições das identidades sociais e sua
recomposição numa época em que as estruturas tradicionais estavam
debilitadas. O trabalho de Hall, ainda que voltado para o modelo de análise
circunscrita à ideologia da mensagem televisiva, rompe com a concepção
passiva da recepção. Hall, assim, inaugura um novo momento dos Estudos
Culturais: a combinação da análise de textos mediáticos com a pesquisa de
audiência.
Vale acrescentar, entretanto, a observação de Escosteguy:
“Embora seja plausível a consideração de que a audiência
estabelece uma ativa negociação com os textos mediáticos e com
as tecnologias no contexto da vida cotidiana, esse posicionamento
pode tornar-se tão otimista que perde de vista a marginalidade do
poder dos receptores diante dos meios. A euforia com a vitalidade
da audiência e por sua vez com a cultura popular fez com que
esta fosse entendida como um espaço autônomo e resistente ao
campo hegemônico. Algo que aconteceu com várias das
pesquisas da época”.
75
75
ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos ... Op. cit., p. 37.
113
O que é preciso, então, considerar são as forças hegemônicas
dentro do popular, ou seja, as relações de poder inscritas no interior das
práticas de recepção. É preciso, em última análise, “alcançar um sentido
concreto das forças hegemônicas que regem o mundo atual”.
76
Considerando um último momento do projeto dos Estudos
Culturais, ainda que seu objeto de estudo se diversifique e se fragmente, os
anos 90 procuram investigar, de forma mais enfática, a experiência dos
diversos grupos sociais, considerando, sob diversos ângulos, as formas de
recepção do discurso mediático.
Assim, no encontro entre comunicação e Estudos Culturais
identifica-se, segundo Escosteguy,
“... uma forte inclinação entre refletir sobre o papel dos meios
de comunicação na constituição de identidades, sendo esta
última a principal questão deste campo de estudos na
atualidade.”
77
2.4 Cultura, história e sociedade
Escosteguy
78
sugere, analisando as perspectivas históricas dos
Estudos Culturais, que se considere o contexto em que se desenvolveu esse
campo de estudos sob dois aspectos: o impacto da organização capitalista nas
formas culturais e o colapso do império britânico. Esse impacto, de que fala a
autora, diz respeito à ruptura das culturas tradicionais em conseqüência do
alastramento dos meios de comunicação; o segundo aspecto contempla as
76
ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos ... Op. cit., p. 37.
77
ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos ... Op. cit., p. 24.
78
ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos ... Op. cit., p. 21 e seguintes.
114
características de uma Inglaterra de pós-guerra que vivia uma expressiva crise
de identidade.
Ainda que pesem esses fatores históricos, é importante ressaltar,
segundo a mesma autora, que os intelectuais citados como fundadores desse
campo de estudos – Hoggart, Williams e Thompson - revelam uma concepção
comum de investigação: as relações entre cultura, história e sociedade. É nesse
sentido que o que se considera, na arte, na música ou na literatura, “alta
cultura”, passa a ser visto como mais uma das expressões culturais. Essa
concepção inovadora alarga o conceito de cultura, incluindo nele - como
vimos na idéias perseguidas por seus fundadores - práticas e sentidos do
cotidiano e ainda promove uma segunda mudança importante:
“Todas as expressões culturais devem ser vistas em relação ao
contexto social das instituições, das relações de poder e da
história”.
79
Os Estudos Culturais, em última análise, inauguram um novo
olhar para os meios de comunicação de massa: compreender a importância da
cultura mediática como responsável por processos de dominação, mas também
de resistência. Aí está a razão pela qual esse debate é importante para nosso
trabalho. Os Estudos Culturais entenderam a relação estreita entre o campo da
comunicação e o campo da cultura; nos meios de comunicação inserem-se
práticas sociais, relações de poder, conflitos e contradições que permitem a
visão da natureza dialética que permeia todas as práticas humanas.
Stuart Hall trabalha com a hipótese de que os meios de
comunicação funcionam no domínio das práticas discursivas e no campo das
relações de poder; em outras palavras, Hall defende a tese de que os meios de
79
ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos ... Op. cit, p.26.
115
comunicação e ideologia andam juntos. Essa aproximação possibilitou a
inversão da idéia que se tinha – sobretudo nos anos 70 – da comunicação
como processo de dominação. Para os pesquisadores latino-americanos, entre
eles Jesús Martín-Barbero, a análise dos processos comunicativos implicava
investigar não só o produtor como também o receptor dos discursos
mediáticos, isso porque a comunicação é tida como processo vivido por
sujeitos sociais, quaisquer que sejam os lugares de produção discursiva que
eles ocupem.
Essas concepções marcam o início dos anos 80, quando se
assiste à internacionalização dos Estudos Culturais, a partir das influências de
intelectuais entre os quais destacaremos: Michel de Certeau, Michel Foucault,
Pierre Bourdieu. Nesse processo, a América Latina - lugar de destaque em
função das pesquisas sobre culturas populares e das contribuições de Jesús
Martín-Barbero, Renato Ortiz, Nestor García Canclini – inaugura um novo
paradigma dos estudos de comunicação: os Estudos de Recepção. O receptor,
a partir desses novos debates, deixa de ser considerado decodificador passivo
das mensagens mediáticas e passa a ser visto como produtor de novos
significados.
Entre esses intelectuais que inauguram, na América Latina, a
discussão sobre essa temática, figuram outros teóricos entre os quais
destacamos Mauro Wílton de Sousa, responsável pela organização de
trabalhos
80
de expressiva importância na contribuição aos estudos de
re
Para o autor, um contexto social marcado por mudanças sociais
e tecnológicas tão acentuadas requer a ampliação dos trabalhos que envolvam
a interação entre comunicação e recepção. O início dos anos 80, no que diz
cepção.
80
SOUSA, M. W. (org.) Sujeito: o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 2002.
116
respeito às investigações em comunicação, caracterizou-se pela busca de uma
nova forma de se compreender o sujeito. Ultrapassa-se, no estudo dos
processos comunicativos, o determinismo da relação linear entre emissor e
receptor para se alcançar a figura de um sujeito-receptor como espaço de
rodução cultural.
aí surgindo novas chances para o encontro do
81
dos Culturais em refletir na constituição de identidades em
Sousa se confirma:
nos novos
83
unicação social como processo que participa
da construção da subjetividade:
r ângulo da questão, a própria
84
p
“Esse receptor é melhor percebido no mundo da cultura em
produção, mais popular, em que a própria comunicação se
ncontra, de
sujeito”.
A referência de Escosteguy
82
sobre ser forte a inclinação entre
comunicação e Estu
“A percepção da pluralidade dos atores sociais possibilita outras
costuras explicativas na identificação do lugar da comunicação,
em como na ruptura de fronteiras disciplinares eb
indicadores sobre o significado do tempo social”.
E é a própria com
“Daí porque a relação entre subjetividade e mundo simbólico
az uma ponto para out of
construção do imaginário”.
81
SOUSA, M. W. Recepção e comunicação: a busca do sujeito in SOUSA, M. W. (org.) Sujeito: o lado ...
Op. cit., p. 27.
82
ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos ... Op. cit, p.26.
83
SOUSA, M. W. Recepção e comunicação: a busca do sujeito in SOUSA, M. W. (org.) Sujeito: o lado ...
Op. cit., p. 28.
84
SOUSA, M. W. Recepção e comunicação: a busca do sujeito in SOUSA, M. W. (org.) Sujeito: o lado ...
Op. cit., p. 34.
117
O real nos é dado pelo simbólico ao qual só podemos ter acesso
através do imaginário e são os meios o lugar de simbolização de uma
sociedade e, assim, o lugar para a coletividade construir sua imagem.
Os meios de comunicação, segundo Mauro Wílton de Sousa,
representam o espaço de construção de valores; um espaço não só de
negociações, mas de debates já que na recepção habita um sujeito produtor de
ções da comunicação devem
unicação incorpora as
discutirmos a “violência” pudemos comprovar
sentido. Essa produção de sentido perpassada por instâncias de mediações,
notadamente a cultura. Eis aí mais uma vez imbricadas as duas práticas
sociais: comunicação e cultura.
Esse espaço concedido ao sujeito receptor, que marca as
tradições dos estudos latino-americanos, aponta para a idéia de que a
construção de sentido é feita a partir de um processo produtor de significações
de natureza dialógica. A comunicação, entendida como prática social,
incorpora as experiências dos sujeitos envolvidos nessa prática. Nessa
concepção é que Martín-Barbero apóia sua tese registrada em uma de suas
obras mais representativas – Dos meios às mediações. Comunicação, cultura
e hegemonia.
85
Para o autor, as investiga
deslocar-se dos domínios dos meios para o território das mediações; em outras
palavras, os processos significativos devem centrar-se no espaço da
experiência dos sujeitos, no espaço da cultura.
Ratificando a idéia de que a com
experiências dos sujeitos, ao
85
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1997.
118
c a - discutido a partir de um vídeo aomo esse tem ssistido pelos jovens
86
– é
criança] acontece
todo dia..
de convergência entre o pensamento de origem
presente trabalho considerar as formas como a América Latina , marcada por
parte do mundo dos alunos do “Glete de Alcântara”:
- (D.C.M.C.) Isso [espancamento de uma
Para os alunos do “Albert Sabin”,
- (E.P.K.) (…) isso mostra a realidade de algumas pessoas que
não têm nada a ver com a gente (...).
- (T.K.) essas coisas acontecem na periferia.
Os depoimentos selecionados ajudam-nos a entender como os
processos significativos centram-se no espaço da experiência dos sujeitos, no
espaço de sua cultura. A violência para as famílias da periferia é parte de seu
cotidiano; para os jovens de classe economicamente favorecida ela é
representação de um mundo que lhes é estranho.
Mais um ponto
dos estudos britânicos com a tradição dos estudos latino-americanos:
Raymond Williams e Martín-Barbero associam a noção de cultura à noção de
experiência, a experiência cultural vivida pelos sujeitos. A cultura, nesse
sentido, para Martín-Barbero, é a maior instância mediadora a partir da qual se
dá a construção de sentido.
87
Assim, apontados os pontos de interseção dos debates sobre
cultura e comunicação desenvolvidos nos dois continentes, importa ao
88
86
Vídeo de um clipe publicitário a ser apresentado como material no anexo 2 sobre a violência contra a
escola pública e em 21 de outubro
(org.). Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 29 – referimo-
criança. As entrevistas foram registradas em 1
o
. de setembro de 2005, na
do mesmo ano na escola particular.
87
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 282 e seguintes.
88
A leitura que propomos fazer não pode pretender-se completa, já que, quando falamos em América Latina,
como nos sugere Aricó - ARICÓ, J. Geografia de Gramsci na América Latina in COUTINHO, C.N. e
NOGUEIRA, M.A
119
especificidades tão distintas daquelas que se podem observar no continente
europeu - apropriou-se dos Estudos Culturais britânicos. Nossa leitura,
ortanto, deve apoiar-se nas bases teóricas desenvolvidas na Inglaterra dos
território latino-
mericano – com especial destaque ao Brasil – vistas a partir de um contexto
da. Assim,
omeça-se a
; a luta contra a
scriminaçã
p
anos 50, mas considerarão as expressões culturais do
a
social específico à nossa história.
2.5 Estudos culturais: uma abordagem latino-americana
Na América Latina, em meados da década de 80, as pesquisas
em comunicação revelam sinais de mudança, abrindo-se para um movimento
das Ciências Sociais como um todo. Contemporaneidade, globalização eram
horizontes que exigiam repensar as teorias vigentes. A teoria que se restringia
à análise da comunicação como informação estava ultrapassa
c pensar que falar em comunicação era falar em processos sociais.
Dessa forma, a análise dos meios, a partir dessa concepção, na América
Latina, vincula-se à cultura e aos processos políticos, ou, como propõe
Escosteguy, vincula-se à “problemática do poder e hegemonia”.
89
A repressão dos governos militares, seguida pela organização da
sociedade civil em movimentos de combate ao autoritarismo
di o, nascida nos setores populares da sociedade; a criação de
associações comunitárias, de sindicatos, enfim, a luta por uma participação
igualitária e a efervescência do meio social latino-americano permitiram que
atores das camadas sociais até então oprimidas tivessem voz.
nos a uma realidade de construção incompleta, referimo-nos a um projeto a se realizar, isto é, um projeto que
se está realizando.
89
ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos ... Op. cit, p. 43.
120
Em outras palavras, os modos de apropriação das mensagens
mediáticas – consideradas hegemônicas -, as práticas do cotidiano dos
onsumidore
s diante das
popular que emerge no cenário social a partir do
touro das in
culturais, mes
sociais – o deb
de modo espe
marxismo dete
ilização dessa lógica permitiu o
re cultura e classe social. O
redefinido é tanto o sentido de cultura quanto o de política,
c s dessas mensagens, os usos que os mais diversos grupos sociais
faziam dos meios e dos produtos massivos passam a ser o interesse maior das
investigações do campo da comunicação. Esse interesse explica-se pela
consolidação do mercado dos bens simbólicos, ou seja, dá-se, no cenário
cultural latino-americano, uma verdadeira explosão da indústria cultural que,
por sua vez, alimenta o processo de globalização.
Assim, aos moldes do que ocorrera na Inglaterra nos anos 50, a
América Latina assiste, três décadas depois, a novas crítica
configurações da cultura
es dústrias culturais: consideram-se legítimas todas as formas
mo as ordinárias. Atribuem-se essas mudanças aos movimentos
ate sobre globalização e a construção da pós-modernidade - e,
cial, à passagem de um contexto histórico marcado por um
rminista para um marxismo de corte gramsciano.
“No primeiro, era imperativo explicar e analisar os conflitos
através de uma única contradição: a diferença de classe. Isso
impedia de pensar a pluralidade de matrizes culturais, a
diversidade cultural. A flexib
redesenho das relações ent
permitindo (re)descobrir as culturas populares e a constituição
de identidades”.
90
90
ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos ... Op. cit, p.44.
121
Segundo Aricó
91
, as idéias de Gramsci permitiram aos
marxistas latino-americanos penetrar nas grandes questões da história
nacional. Se o marxismo, considera Aricó,
“(...) era uma v
ser mais do que
erdade universal - o mundo concreto não podia
um epifenômeno”
92
.
N
históricas de
denuncia Aric
m a existir realidades nacionais, torna-se
P
esse sentido, pensar a política não era pensar as complexidades
uma formação social; entre historiografia e política, como
ó, existia um hiato que os escritos de Gramsci permitiram, por
assim dizer, vislumbrar. Passa
possível “descobrir” a nação.
“Gramsci nos permitiu fixar duas orientações (...): a) a busca do
contexto “nacional” a partir do qual pensar o problema da
transformação e do socialismo; b) a plena adesão à perspectiva
socialista, entendida como um processo que se desenvolve a
partir da sociedade, das massas, de suas instituições e
organismos.”
93
ara Portantiero
94
, a grande contribuição do pensamento
gramsciano à América Latina está na proposta de se constituir, no partido
comunista, um nexo entre intelectuais e massa, entre cultura laica, moderna e
científica e uma cultura popular, com suas especificidades: desorganizada e
91
ARICÓ, J. Geografia de Gramsci na América Latina in COUTINHO, C.N. e NOGUEIRA, M.A (org.).
Gramsci e a ... Op. cit., p.43
92
ARICÓ, J. Geografia de Gramsci na América Latina in COUTINHO, C.N. e NOGUEIRA, M.A (org.).
Gramsci e a ... Op. cit., p. 43.
93
ARICÓ, J. Geografia de Gramsci na América Latina in COUTINHO, C.N. e NOGUEIRA, M.A (org.).
Gramsci e a ... Op. cit., pp. 45 e 46.
94
PORTANTIERO, J. C. Gramsci em chave latino-americana in COUTINHO, C.N. e NOGUEIRA, M.A
(org.). Gramsci e a ... Op. cit., p.47.
122
contraditória, já que, como assinala Portantiero, “nela se aglomeram
fragmentos de diferentes concepções do mundo.”
95
Como estariam, hoje, atualizadas essas diferentes concepções
e mundo? P
mais dispersas: os problemas ecológicos os
reocupam mais do que a fome; a violência não lhes causa maior
reocupação; a educação e o amor ao próximo aproximam-se das
reocupações que esses jovens têm com as questões ecológicas; ajudar o
róximo, entretanto, seria a forma que eles escolheriam para melhorar o
enário à sua volta. Essa escolha mostra que a concepção de mundo desses
arotos e garotas inclui outra realidade que não seja unicamente aquela de que
les são os protagonistas.
d oderíamos medir, a partir de nossas sondagens empíricas as
especificidades da cultura das classes trabalhadoras, comparando-a com a
cultura das classes dominantes? Há contradição e desorganização nas formas
como a massa se ordena no mundo contemporâneo?
Para responder a essas questões, apontamos os resultados
quantitativos obtidos nos questionários a que os jovens responderam, no início
de nosso trabalho.
Os gráficos 13 e 14 mostram a leitura de mundo de cada grupo
e a conclusão a que podemos chegar ratifica a importância que o conceito de
mediação representa no presente estudo: os jovens da escola pública, a partir
das experiências que vivenciam no seu cotidiano, em que drogas e violência se
fazem presentes, vêem no combate a elas a forma de contribuir para um
mundo melhor. Esse mundo, naturalmente, é aquele que essa camada da
população consegue vislumbrar. Os jovens da escola particular, por outro
lado, mostram escolhas
p
p
p
p
c
g
e
PORTANTIERO, J. C. Gramsci em chave América Latina in COUTINHO, C.N. e NOGUEIRA, M.A
rg.). Gramsci e a . ... Op. cit., p. 48.
95
(o
123
ESCOLA PÚBLICA
0,0 5,0 10,0 15,0 20,0 25,0 30,0 35,0 40,0
Educação
Não respondeu
Acabar com violência
omida a quem tem fome
Respeito
Amor
Acabar discriminação
líticos pararem roubar
Acabar greves
Mais emprego
Gráfico 13 - Outros – Questão 5:
Que atitudes você considera que ajudam a fazer um mundo melhor?
Gráfico 14 - Outros – Questão 5:
Que atitudes você considera que ajudam a fazer um mundo melhor?
Po
Acabar prostituição
Acabar drogas
Ajudar ao próximo
C
124
ESCOLA PARTICULAR
Educação
Não respondeu
Acabar com violência
Comida a quem tem fome
Respeito
Ajudar ao próximo
Preocupação ecológica
Consideradas essas discussões, entendemos que o pensamento
de Gramsci, na opinião da maioria dos teór
0,0 5,0 10,0 15,0 20,0 0
grande importância, já que contribuiu para que o papel da cultura fosse
reconhecido a partir não só da análise econômica, mas também da análise
política. Distante da ortodoxia marxista-leninista, segundo Aricó
25,
Compreensão / Amor
icos das ciências sociais, foi de
utor, têm eco num cenário que vivenciava profundas alterações de
atureza social, política e econômica: a articulação da sociedade civil para
mbater o a
contra a discri
que lutavam p
N
referindo-se à
estado, até h
96
, Gramsci
foi a bandeira da renovação ideológica e política. Suas idéias, para esse
mesmo a
n
co utoritarismo dos governos militares, os movimentos sociais
minação e as mobilizações dos setores populares da sociedade
elas suas necessidades sociais.
uma crítica bastante particular, Nestor García Canclini
97
,
cultura popular, questiona as razões de essas culturas terem
á poucos anos, ausentes nas investigações sobre mudanças
96
ARICÓ, J. Geografia de Gramsci na América Latina in COUTINHO, C.N. e NOGUEIRA, M.A (org.).
Gramsci e a ... Op. cit., p. 27.
97
GARCÍA CANCLINI, N. Gramsci e as culturas populares na América Latina in COUTINHO, C.N. e
NOGUEIRA, M.A (org.). Gramsci e a ... Op. cit., p. 61.
125
sociais, num t
autor,
ltura (...) se
ressos onde
as especificidades de cada grupo, acentuando a
tendência em m
erritório em que as massas foram decisivas nas revoluções. Para
o
“... foram necessários os recentes ‘triunfos’ da repressão e o
monetarismo para que reconhecêssemos a crise de todas as
estratégias de modernização ou mudança social: os
desenvolvimentos, os populismos, os marxismos. A partir de
então, alguns Estados e as esquerdas (...) estão tentando
conhecer os processos culturais. Surgem novas condições de
produção de conhecimento: pela primeira vez, a cu
torna tema central das ciências sociais, de cong
organismos nacionais analisam a relação dela com o
desenvolvimento e com o poder”.
98
García Canclini denuncia o fato de que muitos trabalhos sobre
cultura popular atentam para
arcar a diferença
, sem explicar a desigualdade que os vincula a
, sem considerar as relações que lhes dão sentido na lógica
ponto de vista, segundo o autor, a cultura popular surge como
, ainda em contraste co
outros setores
social. Desse
“outra” cultura m o saber culto dominante.
Os depoimentos abaixo, tomados em 29 de novembro de 2005,
junto aos alunos do “Liceu Albert Sabin”, que tecem comentários críticos
98
GARCÍA CANCLINI, N. Gramsci e as culturas populares na América Latina in COUTINHO, C.N. e
NOGUEIRA, M.A (org.). Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988,... Op. cit., p. 63.
Embora reconheça que as idéias de Gramsci serviram para que se escapasse das “simplificações
economicistas”
98
e aplauda a ressignificação que ele empresta ao termo hegemonia, Nestor García Canclini
denuncia a ausência, significativa, segundo ele, de Gramsci na maioria das investigações sobre culturas
populares. Para o autor, a “ressonância de Gramsci não fez mais do que acentuar uma tendência maniqueísta
de grande parte dos estudos sobre culturas populares e sobre a relação entre cultura e poder” GARCÍA
CANCLINI, N. Gramsci e as culturas populares na América Latina in COUTINHO, C.N. e NOGUEIRA,
M.A (org.). Gramsci e a ... Op. cit., p. 65. Para o autor, quando a relação complexa entre hegemonia e
subalternidade reduz-se a um jogo bipolar, minimiza-se a distinção pretendida pelo pensamento gramsciano
entre dominação e hegemonia, descuida-se das trocas, empréstimos, intercâmbios entre as diferentes classes
sociais.
126
sobre o último capítulo sobre a novela América, falam dessas desigualdades a
que García Caclini se refere:
- (F.M.) Eu acho que o problema não são só as pessoas. O
problema maior é a cultura. Os brancos não conhecem a
cultura negra e os negros têm uma idéia totalmente errada dos
brancos. Não dá pra entender. A gente não aceita que todo
mundo é igual como a música fala: “Todo mundo é igual, todo
mundo é pessoa”.
Há de se considerar, aqui, que os Estudos Culturais situaram a
cultura num contexto sócio-histórico, subvertendo a distinção entre cultura
superior e inferior. Nesse sentido, entendemos esses estudos como um
dispositivo heurístico que tornou inteligível a vida social e as formas como os
sujeitos se inserem nelas, criando suas identidades.
Vale acrescentar, ainda, que os Estudos Culturais propõem, em
uas investigações, um olhar multidisciplinar, capaz de entender os processos
culturais como um fenômeno interdependente de outras disciplinas, por isso
esses estudos foram capazes de perceber a interseção entre estruturas sociais e
práticas sociais. Ainda que Estudos Culturais não seja a denominação adotada
pelos teóricos da comunicação, a partir da concepção de cultura como
território em que se desenvolvem as práticas dos sujeitos sociais é que nasce
um novo objeto das pesquisas em comunicação: o receptor, investido de seu
papel de sujeito. Funda-se, assim, na América Latina, um novo paradigma
para as investigações em comunicação: os Estudos de Recepção.
s
127
III- As novas práticas sociais interpelam novos sujeitos
Os processos políticos e sociais vividos na América Latina, nos
anos 70 e 80, assim como vimos, foram decisivos na construção de outras
maneiras de se analisar a forma como os sujeitos sociais ocupam seu espaço
no mundo.
1
O acesso à modernidade no território latino-americano foi
marcado por movimentos complexos no modo como as classes populares se
incorporaram ao sistema político, à construção de um estado nacional e,
finalmente, ao papel político que os meios de comunicação desempenharam
na integração das massas, ou seja, na formação e difusão da identidade
nacional. Os meios de comunicação, nesse sentido, interpelam os sujeitos em
suas práticas sociais.
Entretanto, vale ressaltar que, quando se procura o sujeito no
contexto mais amplo do processo de comunicação, introduz-se, com essa
busca, uma postura epistemológica, isto é, um modo de entender “como o
conhecimento humano se torna possível com base no sujeito e no objeto desse
próprio conhecimento”.
2
Na concepção de Mattelart e Mattelart esse sujeito consumidor
nos processos comunicacionais é “terra incógnita”
3
, investido dos papéis de
objeto e sujeito das pesquisas. Ainda que não se dê a conhecer, esse sujeito
deixa de ser visto como consumidor de supérfluos culturais porque consome
1
A América Latina, segundo Mattelart e Mattelart, aparece na vanguarda nesse gênero de pesquisa porque,
neste território, o desenvolvimento da mídia é então mais significativo do que em outras regiões do Terceiro
Mundo. A América Latina “produz iniciativas que rompem com o modo vertical de transmissão de ideais de
desenvolvimento. Um exemplo disso é a obra de Paulo Freire que exerceu profunda influência na orientação
de estratégias de comunicação popular e alcançou difusão mundial”. MATTELART, A . e MATTELART,
M.. História das ... Op. cit., p. 119.
2
SOUSA, M. W. de. Recepção e comunicação: a busca do sujeito in SOUSA, M. W. (org.) Sujeito o lado ...
Op. cit., p. 15
3
MATTELART, A. & MATTELART M. História da teorias da ... Op. cit., p. 154.
128
produtos massificados; resgata-se nele “um espaço de produção cultural”
4
. Por
isso mesmo, a comunicação, cada vez mais, busca na cultura uma forma
definitiva de compreendê-lo como sujeito.
3.1 O sujeito receptor no processo de comunicação social
Sousa
5
também concorda com a idéia de que o sujeito receptor
do processo comunicacional ainda não esteja configurado; para o autor, ele
ocupa um espaço contraditório, um espaço de negociações e de produções de
sentido:
“Esse receptor é melhor percebido no mundo da cultura em
produção, mais popular, em que a própria comunicação se
encontra, daí surgindo novas chances para o encontro do
sujeito”.
6
Quais foram, então, os caminhos percorridos nessa busca pelo
indivíduo/sujeito no amplo contexto dos processos comunicacionais? Como
preencher o hiato que se impõe nessa investigação entre o homem empírico e
o homem em sua configuração teórica?
Falando-se em América Latina – com destaque para o Brasil –
os anos 50 assistiram ao início dos debates sobre o sujeito. As Ciências
Sociais introduzem essas discussões que tiveram continuidade com as
pesquisas em comunicação que começavam a se desenvolver nos meios
acadêmicos.
4
SOUSA, M. W. de. Recepção e comunicação: a busca do sujeito in SOUSA, M. W. (org.). Sujeito o lado ...
Op. cit., p. 26.
5
SOUSA, M. W. de. Recepção e comunicação: a busca do sujeito in SOUSA, M. W. (org.). Sujeito o lado
... Op. cit., p. 26.
6
SOUSA, Mauro Wílton de. Recepção e comunicação: a busca do sujeito in SOUSA, M. W. (org.). Sujeito,
o lado ... Op. cit., p. 27.
129
O modelo norte-americano, entretanto, o da análise
funcionalista
7
, em função da expansão das agências de publicidade no Brasil é
que serviam de parâmetro para os estudos brasileiros na área. A teoria
funcionalista ocupava-se com a definição da problemática dos meios de
comunicação de massa a partir do ponto de vista do funcionamento do sistema
social e sua dinâmica. Privilegiava-se o ângulo psicossocial no estudo do
comportamento dos sujeitos. Para se conseguir um controle social sobre a
massa, trabalhava-se com os indivíduos, investigando-lhes desejos, carências,
necessidades. O “uso instrumental do indivíduo”
8
preservaria o sistema de
produção. Assim, o sujeito da comunicação, nesse período, era, não um
sujeito empírico, mas peça de um sistema.
Os anos 60 trouxeram, nos países desenvolvidos, a preocupação
dos pesquisadores em explicitar as relações mantidas com os países
subdesenvolvidos. Partia-se do princípio de que essas relações não se
limitavam a questões econômicas, mas se estendiam à tecnologia, à
linguagem, a estilos de vida, enfim, à cultura. E os meios de comunicação
eram vistos como agentes desse processo...
“... não só pelo capital que os criava e mantinha, ou pela
tecnologia de que se serviam, ou mesmo pelos produtos que
veiculavam, mas pela lógica de concepção de vida que
alimentavam e pelo lugar cultural que passavam a ocupar na
vida cotidiana de pessoas e grupos sociais”.
9
7
Estamos nos referindo aqui ao paradigma que marcou as primeiras décadas das pesquisas em comunicação
desenvolvidas nos Estados Unidos, segundo referências de WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa:
Editorial Presença, 1985, p. 55.
8
SOUSA, Mauro Wílton de. Recepção e comunicação: a busca do sujeito in SOUSA, M. W. (org.) . Sujeito,
o lado oculto do ... Op. cit., p. 17.
9
SOUSA, Mauro Wílton de. Recepção e comunicação: a busca do sujeito in SOUSA, M. W. (org.). Sujeito,
o lado oculto do ... Op. cit., p. 19.
130
A essa mesma realidade, que se descreve nos idos anos 60, pode-
se assistir hoje. Os meios de comunicação, ao veicularem bens materiais e
simbólicos de outras culturas – quer de outras nações, quer de outras
realidades - passam a ocupar o imaginário das classes desfavorecidas - do
ponto de vista econômico e cultural, alimentando nelas um sonho que a
estrutura social talvez não permita realizar:
Após termos assistido ao último capítulo da novela América
10
,
as alunas L.M e S.A.N., da escola Glete de Alcântara, ao se manifestarem
11
,
atualizam a referência anterior, a propósito do papel dos meios:
- Voltando à novela, eu gostaria de saber como vocês vêem as
duas realidades que ela traz: o mundo do rico, o mundo do
pobre. É frustrante ver as coisas que a gente não tem? As
pessoas se frustram ou ficam angustiadas em ver tantas
diferenças?
- ( L.M.) Bom, eu penso assim: a gente nasceu pobre, mas, nem
por isso, a gente tem que morrer pobre,entendeu? A gente tem
que estar sempre tentando crescer mais. A vida está aí pra
isso. A gente tem que ir à luta.
- (S.A.N.) É, mas o pobre acaba sendo mais desfavorecido. E
- E a televisão faz mal, mostrando essas diferenças?
- (S.A.N.) Ah, faz! Esses cantores que ganham muito dinheiro,
os atores. A gente sabe que eles ganham muito dinheiro, por
que eles precisam mostrar. Eles filmam aquelas casas
enormes, cheias de luxo. Pra quê? Não precisa disso! Não
precisa mostrar.
- Vocês conhecem a Revista Caras?
- (L.M.) Conheço.
- E aí, o que você acha dela?
- (L.M.) É uma revista que só mostra luxo, riqueza. Ela não
mostra a realidade.
- E qual é a realidade?
10
Telenovela levada ao ar pela Rede Globo, no período de 14 de março de 2005 a 4 de novembro do mesmo
ano.
11
Depoimento tomado em 24 de novembro de 2005.
131
- (L.M.) A realidade são as pessoas morrendo de fome, as
pessoas se matam porque devem alguma coisa, são doentes,
precisam de uma ajuda. Isso não mostra na Caras. Eles só
mostram um mundo que tem “glamour”. Ah, eu não vou falar,
se eu falar, eu vou ficar nervosa.
Junto aos jovens do Liceu Albert Sabin
12
, as manifestações,
diferentemente daquelas ouvida no grupo anteriormente analisado, são de
natureza crítica quanto ao papel que os meios exercem nas pessoas
desfavorecidas, econômica e culturalmente falando:
- (C.V.) Eu acho que a novela cria uma ilusão nas pessoas, a
Sol
13
consegue passar, da primeira vez, depois ela se envolve
com pessoas que usam droga, ou traficam droga, mas depois
ela volta de novo por causa do filho. Enfim, sei lá, acho que
ela cria uma ilusão na cabeça das pessoas de que tudo pode
dar certo. As coisas reais não são tão simples assim.As
pessoas podem ser presas lá e nunca mais poderão voltar.
- (T.K.) Ah, eu quero falar sobre isso. Nós estávamos até
conversando na aula do Marcelo de Ciências. Antes pra ir
pro México nem era preciso apresentar passaporte, mas
agora, com essa gente toda querendo fazer de lá uma
passagem para os Estados Unidos, eles estão exigindo. A
novela, então, estimula porque a gente começa a mostrar
esses casos e as pessoas confundem com a realidade.
- Então a mídia cria ilusões?
- (C.V.) Eu acho que cria. Antes a gente não tinha idéia dessas
coisas, de repente começa a ver uma pessoa, jovem, lutando
assim, passando por tudo, sem dinheiro, pra ajudar o pai dela
e conseguindo vencer vários obstáculos. Vendo isso, as
pessoas pensam: Puxa, se ela pode eu também posso. Eu
conheço um monte de gente, mais velha de que nós, mas que
querem ir trabalhar um tempo lá nos Estados Unidos pra
juntar dinheiro, como a Sol fez.
12
Depoimentos tomados em 29 de novembro de 2004.
13
Protagonista da novela América, interpretada por Débora Secco.
132
Os jovens do Liceu “Albert Sabin”, mostram senso crítico
mais apurado quanto ao poder de persuasão do discursos mediático.
Voltando ao percurso que pretendemos delinear, destacamos,
ainda na década de 60, o regime militar que se instalou no Brasil – 1964 – que
consolida essa teoria da dependência. O centro da dominação, entretanto, não
era mais o capital estrangeiro, mas o Estado militar. O sujeito – concebido
como agente transformador dessa realidade – não era o sujeito/indivíduo, mas
o sujeito/história, capaz de eliminar o sujeito/mercadoria.
Reportando-nos à realidade européia, constatamos que essa
concepção sujeito/mercadoria marca igualmente o modelo frankfurtiano, cujas
concepções teóricas defendiam a relação de domínio entre as sociedades
desenvolvidas e as subdesenvolvidas como parte intrínseca do próprio
processo capitalista. Comunicação, cultura e poder constituíam uma expressão
social única e faziam do receptor o sujeito/mercadoria.
Assim, entre 1960 a 1980, o modelo frankfurtiano, na figura de
Adorno e Horkheimer, - pais do conceito de indústria cultural – defendia a
produção dos bens culturais como movimento de produção da cultura vista
como produtora de objetos de compra e venda. Nesse sentido, a indústria
cultural, fornecendo bens padronizados para satisfazer a todas as demandas,
cria o receptor que ganha o status de sujeito/mercadoria/instrumento.
A França é o palco em que se desenvolve, nessa mesma época,
um centro de estudos voltados para a pesquisa em comunicação. Influenciados
pela teoria do signo – fundada pela lingüística– intelectuais franceses viram,
na estrutura da língua e na análise de suas invariantes, base para o estudo do
discurso da mídia.
133
O chamado estruturalismo – teoria lingüística que estende suas
hipóteses a outras disciplinas das ciências humanas – reduzia o funcionamento
da sociedade a um sistema mecânico: um “teatro que aparecia sem sujeitos”
14
.
Entretanto, embora as críticas a esse paradigma tenham sido abundantes, a
análise do sistema social, a partir do apagamento do seu sujeito em detrimento
da reificação da estrutura, privilegiou a concepção de um sujeito entendido
como estrutura estruturante, cujo funcionamento, tanto no que dizia respeito à
sua linguagem como a seus códigos, era urgente conhecer.
Desse campo teórico emerge a figura do sujeito investigado não
só pelos pesquisadores da comunicação ou pelos sociólogos. Tratava-se de
um sujeito que se daria a conhecer pelas Ciências Sociais, a partir da estrutura
social que o interpelava, considerando-se, sobretudo, as suas práticas
discursivas.
Finalmente, a partir dos anos 80, o sujeito passa a ser resgatado
como espaço de produção cultural. A comunicação busca na cultura as formas
de recuperar a noção de sujeito, compreendendo-o teórica e empiricamente. É
nessa época que se funda um novo paradigma que ancora as pesquisas em
comunicação: os estudos de recepção.
Com essa síntese, vemos como a comunicação, constituindo-se
como prática social e como processo, participa diretamente da construção da
identidade. A esse propósito, vale lembrar a posição de García Canclini
15
sobre o papel da televisão junto às classes populares. Para o autor, a cultura de
massa oferece a essas classes a informação necessária para entender as novas
regras sociais. É a televisão que lhes confere a condição de sair do isolamento;
14
MATTELART, A. e MATTELART, M. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 1999,
p. 101.
15
GARCIA CANCLINI, N. Gramsci e as culturas populares na América Latina in COUTINHO, C. N.
Gramsci e a ... Op. cit.
134
ela seria o que García Canclini chama de “manual de urbanidade”
16
que ensina
as classes populares como se vestir, como expressar os sentimentos, como
pertencer à cidade. Para o autor, a comunicação de massa constrói o vínculo
entre as classes, numa aliança de prestações recíprocas; essa aliança seria, no
nosso entender, o que Raymond Williams chamou de “cultura comum”.
No depoimento do pai de K.M.C
17
., sobre as dificuldades de se
criarem os filhos, o senhor Humberto assim se manifesta, legitimando a idéia
de García Canclini sobre ser a televisão um “manual de urbanidade”:
-Como é criar filhos, hoje em dia, José Humberto?
-Até os 10 anos é fácil, depois é difícil.
-Por quê?
- Principalmente filha mulher. Você cria filha com todo
carinho, aí vem um malandro aí e quer ficar, ficar. Eu sou dos
antigos.
- Você quer dizer que os rapazes querem só ficar e não querem
compromisso, é isso?
- É isso mesmo.
- Por que acontece isso hoje?
- A televisão influenciou. Os adolescentes, se não tiverem
cabeça, copiam o que ela passa. Elas querem fazer igual: o
jeito de vestir, de calçar, até de comer.Elas não comem
aquela abobrinha batidinha, um torresminho lá de casa da
avó, de Minas. Elas querem coisa que passa na propaganda.
As coisas que já são congeladas. Até os grandes também
querem copiar. Influencia sim.
Em discussão com o grupo de jovens do Liceu Albert Sabin
18
,
sobre a telenovela América, os depoimentos abaixo apontam como a
16
GARCIA CANCLINI, N. Gramsci e as culturas populares na América Latina in COUTINHO, C. N.
Gramsci e a ... Op. cit., p. 69.
17
Entrevista realizada em 24 de novembro de 2005, como parte da história de vida de K.M.C., uma das
jovens que acompanhamos durante nossa pesquisa empírica.
18
Entrevista realizada em 29 de novembro de 2005 cujo objetivo era colher dados sobre a telenovela América,
levada ao ar pela rede Globo em 2005.
135
comunicação de massa pode realmente construir o vínculo entre as diferentes
classes sociais:
- Pessoal, e a música sertaneja da novela que foi o tempo todo
tão valorizada, o que é que vocês me dizem?
- (G.B.) Bom, antes esse tipo de música era “a música caipira”,
agora é música sertaneja, “country”.
- (G.B.) Então, o fato de ter tocado na novela fez todo mundo
começar a gostar. Quando, antes, começava a tocar, todo
mundo reclamava, agora, não, a gente até canta junto. Curte.
O funk também, eu curto até. Todo mundo quer ir num baile
funk, ouvir rap...
Feitas essas considerações sobre os protagonistas das diferentes
camadas sociais, reportamo-nos a Martín-Barbero, segundo o qual, para se
reconhecerem os sujeitos, em se tratando de América Latina, é preciso que se
considere uma lógica social e cultural distintas, lógica essa que temos
demonstrado nas pesquisas empíricas que registramos no presente trabalho.
Trata-se de reconhecer neles uma história que não se passou, mas uma
realidade que os constitui: os atores sociais que
“tenham passado de objeto e tema a sujeito e fala: um modo
próprio de perceber e narrar, contar e dar conta.”
19
A família de E.C.M. mostra a forma como esse sujeito conta e
dá conta de sua nova história
20
, ao migrar de Minas Gerais – a roça, como eles
a nominam, para a cidade. O processo de urbanização, a transformação do
camponês para o homem massa traduz-se nas palavras de Gervina e Hermínio.
19
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios à ... Op. cit., p. 259.
20
Entrevista realizada em 20 de outubro, em casa de E.C.M.., no Parque Ribeirão, como parte da H.V.
(História de vida) da jovem que acompanhamos em nosso trabalho de campo.
136
- (G.C.M.) (...). As coisas têm que mudar. Você vê, antes nós
não tínhamos nada. Eu tinha que fazer de um tudo: pegar
água no poço com lata na cabeça e era longe de casa.
Lavava roupa no rio, ajudava meus pais na roça. E não
conhecia nada da vida. Agora essas meninas têm outra vida.
Sabem de tudo e assim é melhor. Nem estudar eu pude.
Agora eu vou na escola, aprender a ler. A gente tem que
mudar. O mundo lá de Minas não é mais nosso, quer dizer, é
..., mas ficou pra trás.
- E você está indo bem na escola?
- (G.C. M.) Ah, tô milhorzinha este ano. Mas eu repeti. Sabe, eu
embaraço um pouco as letras. Mas já tô dando conta de
assinar meu nome. A professora é muito pacienciosa,
coitada, nem ganha nada. Quer dizer, ela trabalha, mas o
salário está atrasado. Mas o Hermínio tá melhor que eu. Ele
já é mais esperto.
- Ah, Hermínio, você também está estudando?
- (H.N.M.) Uai, precisa, né. Lá em Minas eu comecei a
trabalhar cedo, não deu. Quer dizer, eu já conhecia as letras,
mas pra combinar elas era que era o Diabo. Agora tô melhor.
- A escola ajuda a entender melhor as coisas?
-(G.C.M.) Ah, ajuda sim (...) a escola ajuda a abrir a cabeça,
né?
- (H.N.M.) É, não é só os estudos, não. As pessoas também, a
gente vai conversando com os outros e a gente vai tendo
outras idéias na cabeça, vai abrindo mais as idéias,
entendeu?
- (G.C.M.) .Tá vendo, Hermínio. É isso, por isso que eu falo que
o mundo hoje tá diferente e melhor, tudo mais fácil.
Isso significa dizer que os estudos de comunicação no território
latino-americano devem ser entendidos como um espaço em que se avaliam as
contradições, os conflitos, os movimentos sociais e, sobretudo, um território
em que se considere a pluralidade cultural.
137
A produção cultural dos meios, ao criarem a cultura comum, ou
ainda, ao proporem um “manual de urbanidade” a todas as camadas sociais,
podem estar negando a mestiçagem do sujeito receptor.
A maneira como as jovens do bairro da periferia se vestem, os
cabelos esticados por ferros quentes – conforme determina a moda – assim
como outros hábitos que se incorporam na forma até mesmo de se
expressarem são nítidas cópias dos modelos ditados pelas heróis e heroínas
das novelas da época e representam, em última análise, a homogeneização
dos hábitos e comportamentos de classes.
Foto 22
As jovens estudantes da escola Glete de Alcântara, cuidadosamente
vestidas, com modelos que um passeio ao Shopping, na concepção delas,
exige, tirada em 3 de novembro de 2005.
Entre os modelos, que a mídia dita e o consumo a que os jovens
se obrigam, abriga-se a contradição entre a
138
“a ideologia da sociedade de consumo, que quer nos convencer
a todos de que no mundo dons bens de consumo somos todos
iguais, e a realidade dos marginalizados para quem o modelo
dominante branco é impossível”
21
Drummond materializa, em palavras, a condição do fetiche do
consumo que trabalha em favor da cultura comum:
Eu, etiqueta
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório
um nome... estranho
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca do cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minha meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
(....................................................)
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça aos bicos dos meus sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
(...................................)
21
WILLIS, S. Cotidiano: para começo de ... Op. cit., p. 136.
139
e fazem de mim homem-anúncio itinerante
escravo da matéria anunciada.
(...................................)
seja negar minha identidade,
Com que inocência demito-me de ser
eu que era antes e me sabia tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
(...................................)
Agora sou anúncio,
Hoje sou costurado, sou tecido,
(...................................)
Já não me convém o título de homem,
meu novo nome é Coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.
DRUMMOND DE ANDRADE, C. O Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1994.
Assim, considerando-se os autores que defendem o estudo do
sujeito a partir de uma lógica social e cultural distintas, entendemos que as
pesquisas em comunicação devam considerar a recepção como lugar de
produção de sentido e a mídia como fio que tece a cultura, colaborando para a
formação de identidades.
3.2 Identidade cultural: debate aberto na organização da sociedade
latino-americana
Na tentativa de encontrar resposta a essa questão, buscamos as
reflexões de outros autores que se preocuparam com o tema. Para Ortiz, a
140
identidade cultural só pode existir “enquanto prática que se manifesta no
cotidiano das pessoas e na sua historicidade”
22
.
Para Martín-Barbero, o debate sobre o tema continua aberto já
que se alimenta uma razão dualista com que se costumam pensar os processos
sociais. De um lado, a obsessão da busca às raízes, uma identidade perdida
que precisa ser encontrada; de outro, um conservadorismo que insiste em ver,
no povo, a indolência do índio; no negro, a superstição; no crioulo, a impureza
como obstáculos para o desenvolvimento.
Considerado esse ponto de vista,
“...o eixo do debate deve se deslocar dos meios para as
mediações, isto é, para as articulações entre práticas de
comunicação e movimentos sociais, para as diferentes
temporalidades e para a pluralidade de matrizes culturais”.
23
Analisando a cultura popular dos países latino-americanos,
Nestor García Canclini
24
defende a idéia de que não há sentido em estudar as
culturas populares urbanas, ou as mudanças ocasionadas pelas migrações, nem
mesmo as classes marginalizadas pelo desemprego. Para o autor, como já
registramos anteriormente, as categorias convencionais
subalterno/hegemônico, tradicional/moderno para conceituar esses grupos
sociais devem ser substituídas por outros instrumentos conceituais e, por isso,
ele levanta a questão:
“Como analisar as manifestações que não cabem no culto ou no
popular, que brotam de seus cruzamentos ou em suas
margens?”.
25
22
ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 93.
23
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às ... Op. cit., p. 258.
24
GARCÍA CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 1998.
25
GARCÍA CANCLINI, Nestor. Culturas ... Op. cit., p. 283.
141
A essas manifestações que se inserem nas margens do culto e
do popular o autor atribui o nome de “hibridação cultural”
26
que tem, como
maior causa, a expansão urbana. A América Latina, nas primeiras décadas do
século XX, foi cenário em que milhares de comunidades rurais, com raízes
culturais fortes, passaram a integrar um espaço urbano que já dispõe de uma
rede nacional e transnacional de comunicação com uma rica e heterogênea
oferta simbólica.
A urbanização das sociedades contemporâneas deu-se, portanto,
de forma bastante peculiar. O que vemos hoje é que, com a impossibilidade de
ganhar o espaço urbano – em função de suas dimensões, de sua violência –,
os grupos populares procuram a intimidade doméstica, saindo pouco de
espaços periféricos; as classes média e alta, por sua vez, confinam-se em
condomínios fechados ou erguem muros e travam janelas, limitando suas
formas de socialização. Para todos, os meios de comunicação trazem, em
domicílio, informação e entretenimento.
Martín-Barbero ratifica essa idéia, quando afirma que os meios
têm se convertido em parte constitutiva do tecido urbano. Para ele, a atração
exercida pela televisão está, sobretudo, no fato de que as pessoas procuram
segurança no seu espaço privado.
“Se a televisão atrai, isso é em boa parte porque a rua
expulsa”.
27
Isso implica dizer que “a subjetividade recolhe-se ao espaço
privado”
28
, isto é, as identidades coletivas deixam lugar para um intercâmbio
26
GARCÍA CANCLINI, Nestor. Culturas ... Op. cit., p. 284.
27
MARTÍN-BARBERO, J. Comunicação e cidade: entre meios e medos. Novos olhares. São Paulo:
ECA/USP, nº 1, 1
o
. semestre de 1998, p.5.
28
GARCÍA CANCLINI, N. Culturas ... Op. cit., p. 288.
142
que acontece no lar, com amigos mais próximos, em outras palavras, a
sociabilidade concentra-se no cotidiano.
Referindo-se a seus sentimentos de bem-estar e felicidade, os
jovens entrevistados em nossa pesquisa empírica – notadamente os da escola
particular – confirmam essa forma de sociabilidade, dizendo que se sentem
mais felizes quando estão em casa.
-(E.A.P.)... quando está todo mundo reunido. A gente tá
protegido com a família.
29
.
Essa tendência de se recolher ao lar também está presente no
cotidiano da vida dos indivíduos das classes populares. Para o senhor J.H.C.,
pai de K.M.C., morador há 14 anos no Parque Ribeirão, a violência das ruas
expulsou as famílias das rodas de conversa que mantinham nas calçadas, ao
final de uma jornada de trabalho:
- ( J.H.C.) As vizinhas faziam café e levavam pra porta e a
gente sentava fora, na calçada, de noite, tomava café e
conversava. Hoje ninguém faz mais isso. Também não tem
condição, né? Ficar na porta de casa com o mundo violento
de hoje, quem pode? É só deixar o portão aberto e as pessoas
estão entrando pra roubar
30
29
Depoimento tomado em 21 de setembro de 2005, no Liceu Albert Sabin.
30
Depoimento tomado em casa de K.M.C. – parte de H.V. da aluna -, com seu pai, em 24 de novembro de
2005.
143
Foto 23
Foto de K., em sua casa, na sala, com seu pai, J.H.C..
Como entender, então, esses sujeitos que se colocam no espaço
social atrás dos meios por causa dos medos? Como entender as formas como
esses receptores das mensagens mediáticas produzem sentido? Como eles
inventam e reinventam seu cotidiano a partir do espaço que eles ocupam?
Como estudar cultura de um sujeito de tão diferentes matrizes culturais? Em
outras palavras,
“quem é, afinal, o homem no processo de comunicação social
contemporâneo?”
31
Antes de estendermos essa discussão, é preciso levar em conta
que a referência à contemporaneidade implica considerar um contexto mais
31
SOUSA, Mauro Wílton de. Recepção e comunicação: a busca do sujeito in SOUSA, M. W. (org.). Sujeito,
o lado ... Op. cit., p. 15.
144
geral que descrevemos anteriormente
32
- a globalização: cenário em que as
identidades estão permanentemente se reconstruindo. A esse propósito, vale
registrar a concepção de Escosteguy:
“... a identidade é uma busca permanente, está em constante
construção, trava relações com o presente e com o passado, tem
história e, por isso mesmo, não pode ser fixa, determinada num
ponto para sempre ...”.
33
Antes de desenvolvermos o debate que trata da posição dos
sujeitos da cultura global, recuperaremos, assim como nos sugere
Escosteguy
34
, as reflexões de Stuart Hall sobre o tema. Embora esse autor
pense essa questão a partir de um lugar determinado – a Inglaterra - , a
contribuição de suas idéias para a teoria social são relevantes. Para Hall, a
experiência da diáspora – além do seu sentido estrito
35
– sintetiza a
configuração das identidades culturais do mundo contemporâneo.
3.3 A dialética da identidade
Inicialmente, Stuart Hall
36
reconhece ser extremamente
complexo tentar mapear a história da noção do sujeito moderno. Para o autor,
a idéia de que as identidades eram unificadas e se tornaram descentradas ou
fragmentadas é altamente simplista. Entretanto, é essa noção reducionista,
como reconhece Hall, que viabiliza a organização de um quadro que
32
Referimo-nos ao capítulo I, em que se discutiu a importância da globalização como cenário da comunicação
social.
33
ESCOSTEGUY, A.C.Cartografia dos ... Op. cit., p.142.
34
ESCOSTEGUY, A.C.Cartografia dos ... Op. cit., p.143..
35
Esse termo, em Houaiss (HOUAISS, a. Dicionário Houaiss da lígua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 1033) refere-se à dispersão de um povo, em conseqüência de um preconceito ou
perseguição política, religiosa ou étnica.
36
HALL, Stuart. “Nascimento e morte do sujeito” em A identidade cultural na ... Op. cit., p. 23.
145
demonstre a forma como a conceitualização do sujeito transformou-se,
construindo uma história.
As transformações trazidas pela modernidade libertaram o indivíduo de
suas amarras nas tradições. Nas sociedades tradicionais, a identidade
apresentava-se fixa, sólida e estável. Era função de um sistema de mitos e de
sanções religiosas definir o lugar de cada um no mundo e de circunscrever,
rigorosamente, o campo de comportamento. O indivíduo nascia e morria como
membro de um mesmo grupo, de uma mesma tribo.
Assim, na sociedade pré-moderna, a identidade não estava
sujeita à reflexão. A ordem divina impedia qualquer idéia ou sentimento de
que o indivíduo pudesse ser soberano.
O nascimento do indivíduo, que se pensou soberano, representou
uma importante ruptura com o passado que se deu, na verdade, graças a
movimentos que contribuíram para a emergência dessa nova concepção do
indivíduo.
A Reforma e o Protestantismo libertaram a consciência individual
das instituições religiosas; o Humanismo admitiu o homem no centro do
universo; a Ciência conferiu ao homem a capacidade de inquirir e investigar; o
Iluminismo libertou o indivíduo dos dogmas e gerou a razão. O indivíduo que
existe porque pensa – o sujeito cartesiano – passa a ser reconhecido como
entidade maior.
À medida que as sociedades modernas se tornavam mais
complexas, o sujeito da razão iluminista dá lugar ao sujeito social.
Na
modernidade,
o homem vivia o processo ligado ao capitalismo industrial e
as leis clássicas da economia, da propriedade, da troca entre as grandes
146
formações de classe do capitalismo moderno vêem nascer essa nova forma de
identidade:
O cidadão individual tornou-se enredado nas maquinarias
burocráticas e administrativas do estado moderno. Emergiu,
então, uma concepção mais social (grifo do autor) do sujeito.”
37
Esse era o sujeito sociológico que refletia não só a
complexidade do mundo moderno, mas também a consciência de que o
indivíduo não era dotado de autonomia; ele era formado na relação com o
“outro”:
“Sua essência interior é formada e modificada num diálogo
contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades
que esses mundos oferecem”.
38
Para Hall, essa concepção une o interior e o exterior, ou, como
diz o autor, “o mundo pessoal e o mundo público”
39
. Kellner
40
pensa esse
sujeito da modernidade - embora dotado de identidade móvel, reflexiva,
sujeita a mudanças e inovações – como um indivíduo cujas formas de
identificações ainda seriam relativamente fixas, suas origens estariam
circunscritas em papéis e normas sociais ainda bem definidos.
Mas foi também na modernidade que se tornou possível refletir
continuamente sobre esses papéis e as possibilidades sociais de se criarem e
recriarem novas identidades, à medida que essas possibilidades aumentam e se
transformam. O sujeito moderno é, nesse sentido, o indivíduo da
transitoriedade.
37
HALL, S. A identidade cultural na ... Op. cit., p. 30.
38
HALL, Stuart. A identidade cultural na... Op. cit., p. 11.
39
HALL, Stuart. A identidade cultural na ... Op. cit., p. 11
40
KELLNER, D. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001, p. 64 e seguintes.
147
Stuart Hall defende a idéia de que as mudanças sociais e
culturais da modernidade contribuíram, assim, para as mudanças individuais:
a identidade forma-se e transforma-se a partir das formas como os indivíduos
são representados ou interpelados nos sistemas culturais que os rodeiam; a
identidade se define, por essa razão, historicamente:
“Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão
sendo continuamente deslocadas”.
41
A propósito da relação entre história e construção de identidade,
vale registrar a referência de Heller que ratifica as referências de Hall:
“A história é substância (grifo da autora) da sociedade. A
sociedade não dispõe de nenhuma substância além do homem,
pois os homens são portadores da objetividade social, cabendo-
lhes exclusivamente a construção e transmissão de cada
estrutura social (...). Veremos que a essência humana é também
ela histórica; a história é, entre outras coisas, história da
explicitação da essência humana (...)”.
42
O modelo sociológico a que Hall se refere, com a reciprocidade
entre o interior e o exterior, é produto das primeiras décadas do século XX,
quando as Ciências Sociais assumem a forma disciplinar atual. Neste mesmo
período, outro quadro, segundo Hall, mais “pertubador”
43
surge: uma nova
identidade começa a emergir dos movimentos estéticos e intelectuais
associados ao Modernismo. Esses movimentos nos trazem
41
HALL, Stuart. A identidade cultural na ... Op. cit. , p. 12
42
HELLER, A. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
43
HALL, Stuart. A identidade cultural na ... Op. cit. , p. 32
148
“... a figura do indivíduo isolado, exilado ou alienado, colocado
contra o pano de fundo na multidão ou da metrópole, anônima e
impessoal.”.
44
3.3.1 A constituição do sujeito pós-moderno
Os grandes avanços na teoria social e nas ciências humanas da
segunda metade do século XX têm seu maior efeito no descentramento final
do sujeito cartesiano.
Para Stuart Hall, o primeiro descentramento importante refere-
se ao pensamento marxista. Ainda que os escritos de Marx pertençam ao
século XIX, a redescoberta e a releitura de seu trabalho, na década de 60,
trouxe uma nova concepção do papel do homem. A concepção determinista do
marxismo, a partir da qual o homem faz sua história apenas sob as condições
materiais que lhe são dadas, criou a convicção de que os indivíduos não
poderiam ser agentes da história, já que eles podiam agir unicamente com base
nas condições históricas que herdaram de gerações anteriores.
A descoberta do inconsciente por Freud representou, para Stuart
Hall, a segunda razão do descentramento do sujeito cartesiano. A teoria de
Freud de que nossa identidade é formada com base em processos psíquicos e
simbólicos do inconsciente funciona, portanto, de acordo com uma lógica que
contesta e arrasa, como afirma Hall, com a conceito do sujeito cognoscente,
dotado de uma identidade fixa, unificada.
O grande impacto que esse aspecto do trabalho de Freud causa
sobre o pensamento moderno está, sobretudo, no fato de que se passou a crer
que a identidade é algo formado ao longo do tempo do desenvolvimento do
44
HALL, Stuart. A identidade cultural na ... Op. cit. , p. 32
149
indivíduo, por meio de processos inconscientes; recusa-se, assim, a partir de
Freud, a idéia de que a identidade possa ser inata.
Para Stuart Hall,
“… em vez de falar da identidade como coisa acabada,
deveríamos falar de identificação, e vê-la como processo em
andamento.”
45
O terceiro descentramento é associado por Hall aos trabalhos do
lingüista estrutural Ferdinand Saussure para o qual o indivíduo não era, em
nenhum sentido, autor das afirmações que fazia, já que a língua constituía um
sistema social que preexiste ao homem. Ao homem só é dada a possibilidade
de produzir significados na sua expressão que estejam previstas pelas regras
de sua língua e de seu sistema cultural.
O quarto motivo que provocou o descentramento da identidade
e do sujeito vem do trabalho de Foucault. Para ele, um novo tipo de poder, a
que ele chama de disciplinar, organizado em instituições coletivas – escolas,
hospitais, clínicas –, cujo objetivo seria o de manter o trabalho, a vida, as
infelicidades e as felicidades dos indivíduos, é responsável pelo isolamento e a
individualização do sujeito.
Stuart Hall sugere, na seqüência de sua análise, que o
feminismo constituiria outra razão de o sujeito racional ter se descentrado.
Esse movimento social emergiu durante os anos 60, como “grande marco da
modernidade tardia”
46
, juntamente com outros movimentos – revoltas
estudantis, as rebeliões contraculturais e antibélicas, os movimentos pela paz,
as lutas raciais e homossexuais. A esse respeito, é importante considerar a
45
HALL, Stuart. A identidade cultural na ... Op. cit. , p. 32
46
HALL, Stuart. A identidade cultural na ... Op. cit. , p. 44.
150
posição de Hall, para o qual todos esses movimentos seriam palco para o
nascimento histórico que veio a ser conhecido como a política da identidade.
Enfatiza ainda o autor que o feminismo teve uma relação direta
com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano porque o que começou
como um movimento de contestação da posição social das mulheres,
expandiu-se para o início da formação das identidades de gênero. A idéia de
que homem e mulher faziam parte da mesma identidade é substituída, a partir
de então, pela questão da diferença sexual.
3.3.2 A identidade cultural na contemporaneidade
Como esse sujeito fragmentado pelas mudanças anteriormente
descritas pode ser entendido em termos de sua identidade cultural?
Especificamente, pergunta Hall, como as identidades culturais estão sendo
afetadas pelo processo de globalização?
A principal fonte de identidade cultural, afirma o mesmo autor,
é a cultura nacional. Ao se definir, o indivíduo o faz pela sua nacionalidade,
pois ela é considerada como parte de sua essência. Para alguns teóricos, sem a
identificação nacional, o sujeito experimentaria um profundo sentimento de
perda. E, para Hall, as identidades nacionais são formadas e transformadas no
interior da representação: a nação, assim, não seria só uma entidade política,
mas ...
“... algo que produz sentido – um sistema de representação
cultural (grifo do autor). As pessoas não são apenas cidadãos/ãs
legais de uma nação; elas participam da idéia da nação tal como
representada em sua cultura nacional”.
47
47
HALL, Stuart. A identidade cultural na ... Op. cit. , p. 49.
151
A identificação e até mesmo o sentimento de lealdade que eram
dados às tribos, às religiões foram transferidos à nação, na era moderna. Isso
possibilitou a formação de uma cultura nacional. Entretanto, se, por um lado, a
unificação caracteriza as culturas nacionais, há ambigüidades que impedirão
que se fale em homogeneidade.
As culturas nacionais, como vimos, são símbolos e
representações, além de instituições. Como define Hall, uma cultura nacional
é, na verdade, um discurso:
“... um modo de construir sentidos que influencia e organiza
tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós
mesmos. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a
‘nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar (grifo
do autor), constroem identidades”.
48
Esses sentidos estão contidos nas histórias contadas sobre a
nação, na memória que costura fatos presentes aos fatos passados e nas
imagens que dessas histórias se constroem. Por isso a identidade nacional é
chamada de “imaginada”.
Para Stuart Hall, as formas cristalizadas a partir das quais as
narrativas de uma cultura nacional são contadas – os mitos, as tradições, o
folclore – provam que esse discurso constrói identidades que são colocadas, de
modo bastante ambíguo, entre o passado e o futuro.
O que faz o princípio de unidade de uma nação é não só a posse
de memórias comuns, mas também o desejo de se perpetuar a herança que se
recebeu e, sobretudo, a necessária condição do pertencimento.
48
HALL, Stuart. A identidade cultural na ... Op. cit. , pp. 50 e 51.
152
A par essa idéia, é importante que se considere que uma cultura
nacional não é só uma questão de identificação simbólica, ela é, também, uma
estrutura de poder cultural. Isso porque a maioria das nações se formam não só
por diferentes classes sociais, diferentes grupos étnicos e de gênero como
também se constituem por culturas diversas que se unificaram por um
processo de conquistas violentas, em que se forçou a supressão das diferenças
por meio da coerção e da imposição de uma mesma língua, uma mesma
religião ou, até mesmo, de mesmos costumes.
Assim, em vez de se pensar em unificação, as culturas nacionais
devem ser pensadas como culturas de profundas diferenças internas que se
unem apenas nas diferentes formas de poder cultural. Em lugar de unificação,
devemos falar em hibridação.
Ainda que o lugar de produção de seu discurso estivesse
distante da realidade latino-americana, Hall responde, de certa forma, às
questões sobre a construção da identidade numa cultura plural, ao afirmar que
as identidades nacionais não anulam as diferenças, as contradições internas, o
jogo de poder. Assim, segundo o mesmo autor, para se discutirem as
identidades nacionais num contexto mais amplo – o global -, é preciso que se
considerem as formas como as culturas nacionais fazem para que essas
diferenças se constituam como uma mesma identidade.
3.3.3 Identidades híbridas: nova configuração dos sujeitos no processo
de globalização
É fato notório que o ritmo da integração global acelerou os laços
entre as nações, mas, é preciso acrescentar a isso as conseqüências desse fato.
153
Dentre todas as que se apontam pela crítica social, enfatizaremos aquelas
sugeridas pelos estudos de Stuart Hall: a desintegração das identidades
nacionais, ao lado da unificação dessas identidades promovida pela tentativa
de resistência à globalização e o declínio delas em detrimento de novas
identidades que tomam seu lugar: as identidades híbridas.
Uma das principais marcas da globalização é a diferente noção
que esse processo empresta aos aspectos espaço-temporais. O mundo parece
menor, as distâncias se encurtam e as fronteiras dispersam-se. O que importa
registrar é que, sendo o espaço e o tempo coordenadas sicas para os
sistemas de representação, se a identidade está envolvida no processo de
representação, assim, essas novas configurações do espaço e do tempo têm
efeitos profundos sobre a forma como as identidades são redefinidas. Segundo
Hall, assim como Picasso registra seus personagens cubistas – com rostos
fragmentados e partidos - todas as identidades estão localizados em tempo e
espaço simbólicos.
154
Mulher sentada (Óleo sobre tela)
49
Pablo Picasso (1941)
Esse é um cenário do colapso das identidades culturais? A
exposição das culturas nacionais a influências externas, a infiltração nelas de
outras culturas tornam-nas mais enfraquecidas?
Sem dúvida, como afirma Hall, quanto mais a vida social se torna
mediada pelo mercado global, pelos sistemas de comunicação, mais as
identidades se tornam desvinculadas de tempos, de lugares e de tradições que
as constituíram. Nasce, com a difusão do consumismo global, o fenômeno da
homogeneização cultural, ou, como o chamou Raymond Williams, a cultura
ordinária, a cultura comum.
49
Mestres da pintura, São Paulo: Abril Cultural, 1977, p. 28.
155
Mas, as identidades nacionais estão, realmente, sendo
homogeneizadas? Ao lado da tendência de se pensarem as identidades
homogeneizadas, há também o espaço para as diferenças. O impacto do global
faz pensar, de forma distinta, no local. Isso não significa considerar
substituições, mas pensar numa nova articulação entre o local e o global. Um
“local” não mais entendido como espaço bem definido; trata-se, sim, de tomá-
lo como local circunscrito a partir de uma lógica global. Os processos de
globalização, nesse sentido, criam novas identificações. O senso de
pertencimento e identidade está, cada vez menos, organizado pelas
comunidades locais ou nacionais. Os referenciais passaram a ser, cada vez
mais, as comunidades transnacionais e desterritorializadas.
Apesar de a globalização ser responsável pelo efeito de deslocar e
pluralizar identidades, é preciso considerá-la como um processo que cria um
novo conceito a que os teóricos chamam de tradução: formações de
identidade que atravessam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que
saem definitivamente de sua terra natal, mas retêm fortes vínculos com suas
origens. Embora carreguem traços de suas culturas, essas pessoas devem
negociar com a cultura do lugar em que vivem. Produto, portanto, de várias
histórias, essa identidade híbrida caracteriza as pessoas “irrevogavelmente
traduzidas.
50
Indivíduos transportados entre fronteiras são, para Stuart Hall:
“... o produto das novas diásporas (grifo do autor) criadas pelas
migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a habitar, no
mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a
traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem
um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos
produzidos na era da modernidade tardia”.
51
50
HALL, Stuart. A identidade cultural na ... Op. cit, 89.
51
HALL, Stuart. A identidade cultural na ... Op. cit., 89.
156
Na fala de Gervina, que reproduzimos anteriormente
52
, vemos,
com clareza o produto das novas diásporas de que fala Stuart Hall:
- A gente tem que mudar. O mundo lá de Minas não é
mais nosso, quer dizer, é ..., mas ficou pra trás.
53
3.4 O indivíduo da cultura latino-americana: sujeito híbrido.
De volta à realidade latino-americana, é preciso que se levem
em conta as suas especificidades, registradas nos fatos a partir dos quais se
constroem as identidades contemporâneas.
Se percorrermos a obra de Jesús Martín-Barbero
54
– autor que
propõe o estudo da comunicação a partir das experiências sociais dos sujeitos-,
podemos resgatar essa análise cultural da comunicação, tendo, como eixo, a
reflexão sobre o tema da identidade. Nesse sentido, propomos, neste
momento, descrever alguns pontos da obra de Martín-Barbero para chegarmos
a compreender os processos de descentramento cultural vivido pelo latino-
americano que o autor propõe.
Os processos políticos e sociais vividos na América Latina,
entre os anos 70 e 80, fizeram emergir a verdade cultural desse território: a
mestiçagem. Mestiçagem não só como fenômeno racial, mas como trama de
formações sociais, de imaginários, de memórias e tradições.
O primeiro esforço de se construir a modernidade na América
Latina esteve ligado com a idéia de Nação e os meios – como descrito acima –
52
A íntegra desse registro está na página 10, deste mesmo capítulo.
53
Parte do depoimento da mãe de E.C.M., em entrevista feita em 20 de outubro de 2005.
54
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit.
157
foram decisivos na difusão – bem como na formação - da identidade nacional.
Ao contrário do que ocorrera nas outras culturas cujo eixo era o livro, aqui, o
rádio, o cinema, a televisão constituíam seu suporte. Entretanto, é importante
registrar que, se, num primeiro momento, as indústrias culturais
desempenharam esse papel de integração na constituição da identidade
nacional, hoje, ainda que continuem a interpelar o sujeito, essas indústrias
atuam diferentemente: elas desorganizam e reorganizam a experiência social.
Isso significa que os meios de comunicação de massa assumem
uma posição mediadora na construção de outras identidades, ou seja, na
criação de um multiculturalismo, eles procuram fazer o indivíduo romper com
as referências pertencentes às tradições.
Nessa situação, o modelo de modernidade anteriormente
descrito entra em crise: a esfera pública, incluindo-se a política, como
dimensão essencial da vida social, torna-se refém dos meios de comunicação.
Assim, a contemporaneidade latino-americana, com a
globalização em curso, passa a ser marcada pela desintegração social e
também pela crescente desigualdade social que, segundo Martín-Barbero,
encerram a maior forma de violência.
158
Foto 24 Foto 25
Espaço que mostram as condições materiais em que vivem os jovens do
Liceu Albert Sabin (Foto 24) e os do Glete de Alcântara (Foto 25).
Em última visita à casa de E.M.C., Gervina aponta para uma
pequena carroça, feita de forma improvisada pelo marido Hermínio:
- A senhora viu, professora, o que o Hermínio construiu?
- Ué, Gervina, condução nova?
- Ah, professora, o Hermínio vai ver se junta um dinheirinho
catando papelão na rua. Quero ver se vou com meu velho
visitar minha mãe em Minas, é pro dinheiro das passagens.
Os indivíduos das diferentes classes, como vimos
anteriormente, podem assimilar as novas imagens da sociedade
contemporânea, editadas pela mídia, mas, muito penosamente, podem
reorganizar seus sistemas de valores.
Ilustramos essa afirmativa com depoimento
55
dos jovens da
escola Glete de Alcântara, sobre a novela América
56
, com destaque às
questões do preconceito de raça e gênero:
55
Entrevista feita em 24 de novembro de 2005, na escola Glete de Alcântara.
159
- Vocês estavam dizendo que os meios de comunicação abrem a
cabeça das pessoas... Eu gostaria de saber um pouco mais
disso. Os meios, na opinião de vocês, quebram preconceitos?
- (L.M). Eu não acho que quebra tanto não. Por exemplo, o
homossexual, mesmo com as novelas que falam disso,
algumas pessoas vão sempre pensar diferente, não vão
aceitar.
- (S.A.N.). Eu não acho que quebra totalmente. Eu lembro de
uma reportagem que a professora de Educação Física deu,
eles falavam de um preconceito, o racismo. Foi o caso do
jogador de futebol que, só porque era preto, ele foi chamado
de macaco. Apesar de outro time ter tido uma punição, devia
ter tido mais coisa, não só isso.
- O preconceito racial no nosso país é maior do que o do
homossexualismo?
- ( L.M. ) Eu acho igual.
- (S.A.N.) É igual, sim.
- (L.M.)Tem uma lei, que isso crime. Sobre o gay também.
Todo mundo é igual.Eles têm o mesmo direito que a gente.
- Você aceita o homossexual, então? Ter um irmão assim, um
filho?
- (L.M.)) Ah, aí eu não sei!
- (S. A.N.)) Ah,, eu aceito, eu não sou contra nada. Mas eu falei
outro dia com a minha mãe: Mãe, se tivesse alguém na
família, você aceitaria?Ela disse que sim, desde que eu não
fosse a primeira da família.
A posição de alguns dos jovens estudantes do Liceu Albert
Sabin não é menos conservadora
57
:
- (T.K.) Ô Margaret, olha, não pode falar que essa novela com
esse negócio de homossexual melhorou o Brasil. Tem muita
gente que tem preconceito e se essa novela prega isso, já
pensou o que vai ser? A gente andando na rua e ver dois
homens se agarrando?
56
Telenovela levada ao ar pela Rede Globo, entre março de 2005 a novembro do mesmo ano.
57
Depoimento tomado em 29 de novembro de 2005.
160
Os meios de comunicação, vistos sob esse prisma, não
constituem unicamente um fenômeno comercial ou um fenômeno de
persuasão; os meios, na realidade, são um referencial a partir do qual os
indivíduos constroem sua identidade, ora conscientes da ilusão que os meios
promovem, ora mergulhados nos sonhos que possam conferir sentido para a
sua vida.
O sonho pode estar mais próximo das jovens de condição
socioeconômica mais favorecida:
- (...) Onde vocês “acham” os ídolos de vocês?
- (F.M.) Eu me interesso MUITO por isso que você falou! Eu
admiro os atores, eles vivem mesmo o papel que eles fazem,
por isso é que eu gosto MUITO de novela (esconde um certo
constrangimento atrás de um riso). Por isso, meus ídolos são
mais esses atores. Os cantores, também, quando eu escuto o
rádio, eu acho magnífico! Eu falo, quando escuto músicas, eu
falo pra minha mãe: “Mãe, como pode? Olha que voz!”. Mas
os atores da novela, ah, eu admiro (...) . Ah, sabe, eu gostaria
de ser atriz (...), mas eu tenho vergonha de confessar. Sabe,
falar “eu quero ser uma atriz da Globo”, todo mundo ia rir
de mim. Aí eu perco a esperança, mas às vezes eu acho que
pode até acontecer, sei lá.
58
A racionalidade de outras jovens, expressa na fala de E.C.M.,
conscientes da classe a que pertencem, apresenta-se de forma mais
contundente:
- (Q.C.C.N.) Depois, é uma coisa que pode acontecer conosco.
Nós podemos cantar, também, mostrar nosso talento. Eu e
minha irmã cantamos na igreja, isso pode acontecer com a
gente. Pode acontecer na vida de todo mundo.
- (K.M.C.) É, mas a gente tem que lutar como eles.
58
F.M., aluna do Albert Sabin, em entrevista em sua casa, em 27 de outubro de 2005.
161
- (Q.C.C.N.) É, essa história foi um exemplo de vida. A gente vê
os que eles passaram pra chegar lá, onde chegaram. A gente
vê o sacrifício deles, e não vê o dos outros, mas é bom que a
gente começa a imaginar uma pessoa rica, por exemplo, e
começa a pensar que eles devem ter lutado muito também pra
chegar onde chegaram
- (E.C.M.) É gente, mas isso é exceção, é bom a gente pôr os
pés no chão, isso não vai acontecendo assim tão fácil...
59
Para Martín-Barbero
60
, a idéia de identidade cultural deve servir
para o debate sobre as transformações dos valores sociais e para explorar os
tecidos culturais que a compõem. Para ele, a mestiçagem que compõe a
cultura latino-americana em que as diferenças interagem, cria uma cultura
comum. Nesse sentido, ainda que defendamos a idéia de que, nessa cultura
comum, não esteja bem representada a realidade das classes sociais menos
favorecidas, é preciso reconhecer que a presença de atrizes e atores negros ou
mestiços nas telenovelas, assim como a das músicas de origem afro (Rap
61
)
representam um “abrandamento potencial da hegemonia cultural branca”.
62
- (G.B.) Então, o fato de ter tocado na novela fez todo mundo
começar a gostar. Quando, antes, começava a tocar, todo
mundo reclamava, agora, não, a gente até canta junto. Curte.
59
Depoimentos das jovens da escola Glete de Alcântara, tomados no Ribeirão Shopping, após a sessão a que
assistimos, em 3 de novembro de 2005, do filmo “Os dois filhos de Francisco”.
60
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit.
Voltaremos a esse termo para maior explicitação do conceito que ele sugere.
61
Os negros americanos têm, tradicionalmente, usado a música como forma privilegiada de resistência à
oprressão. Durante a década de 50, gravadoras ajudaram a pôr a música negra em posição ainda mais central
na mídia para defender a liberdade civil dos negros e “para mostras aos brancos que preto é ‘legal’, [e que
eles] são seres humanos, merecedores de todas as liberdades civis existentes”. KELLNER, D. A cultura da ...
Op. cit., p. 228. Assim, parte dessas manifestações, tais como as experiências e as condições de vida dos
negros que viviam em guetos violentos, o Rap transmitia, transformando-se num poderoso veículo de
expressão política, que traduzia a raiva do negro diante de sua condição de inferioridade frente às
oportunidades não só de progresso, mas de sobrevivência. Reforçando as circunstâncias que se observam no
Brasil, a respeito da aceitação do Rap, podemos ler em Kellner: “O curioso em relação ao rap negro é que
justamente as produções mais radicais parecem ser as mais vendidas, embora se calcule que mais da metade
seja comprada por adolescentes brancos (...)”. Kellner, D. A cultura da ... Op. Cit., p. 248.
62
WILLIS, S. cotidiano: para começo de ... Op. cit., p. 134.
162
O funk também, eu curto até. Todo mundo quer ir num baile
funk, ouvir rap...
- (C.F.) Eu fui pra Belo Horizonte visitar meus primos, neste
final de semana, e bem no dia ia ter um show da Tati Quebra
Barraco, eu fiquei alucinada pra ir. Mas pros mais velhos,
assim, meu pai, minha mãe, eles acham que o rap é uma falta
de cultura pra música brasileira, sabe.Eles acham que
estraga a música brasileira. Eles acham que é uma influência
ruim pra gente. Mas a gente gosta e eles tinham que respeitar,
né?
- (F. M.) Outro dia eu estava vendo num programa na tevê.
Antes o funk era coisa de periferia, de gente pobre. Hoje não,
hoje é coisa pra classe média, gente rica. Muita gente gosta.
- Então a televisão está trazendo coisas que eram só da periferia
pra vida de vocês?
- (F.M.) Cada vez vai entrando mais e mais...
- (R.H.) É isso mesmo. Quem, daqui, há quatro anos atrás, ia
num show de pagode? Hoje em dia isso virou moda.(...) Funk,
por exemplo, também virou moda. Explosão total! Apesar das
letras serem machistas, eu gosto de funk. Sertanejo, nossa,
todo mês tem muito show em São Paulo.
- (C.F.) É, no rap eles falam do preconceito, falam dos negros,
mas o caso é que todo mundo canta...
- (O grupo de jovens, entusiasmado, canta o refrão da música
“Som de preto”
63
, de Tati Quebra Barraco).
É som de preto
De favelado
Mas quando toca
Ninguém fica parado
Do ponto de vista de Susan Willis, a hegemonia cultural branca
persiste porque a identidade étnica trazida pela mídia e aplaudida pelas mais
diversas camadas sociais é caracterizada, ainda, como exótica, já que é
representada por tão poucos atores sociais mestiços ou negros.
63
Reproduziremos, mais à frente, no anexo 1, a íntegra da música “Som de preto”.
163
Podemos estender de maneira genérica aos meios de
comunicação de massa a análise que a autora faz do mundo norte-americano
da moda e da publicidade :
“Os trabalhadores que fabricam roupas de grife são,
predominantemente, chineses, filipinos e mexicanos, ou em
latitudes mais próximas, hispânicos e norte-americanos de
origem asiática, mas as grandes empresas são tão brancas
quanto os interesses e a cultura da classe dominante que elas
representam”.
64
Para entender o papel dos meios no processo de construção de
identidades, numa abordagem que permite avanços na compreensão de toda
essa complexidade que permeia a discussão sobre identidade, Martín-Barbero
propõe o conceito de mediações
65
. Por esse conceito deve-se entender que o
sentido dos textos – ainda que o próprio texto delimite seus contornos - está na
leitura que se faz dele, embora esse sentido dependa das identidades dos
diferentes grupos que deles se apropriam. Para o autor, os processos de
comunicação devem ser abordados a partir da base dos movimentos sociais e
não dos pressupostos que pregam o poder dos meios.
Martín-Barbero identifica, nas sociedades latino-americanas
atuais, novas dinâmicas culturais, responsáveis pela hibridação das massas e
também pelas divisões sociais, pelo processo de conscientização da exclusão
que vem das estruturas sociais peculiares do território latino-americano e que
se legitimam na cultura.
Nestor García Canclini
66
concebe a América Latina como
território em que se articulam tradições e modernidades que coexistem de
64
WILLIS, S. Cotidiano: para começo de ... Op. cit., p. 134.
65
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 258.
66
GARCÍA CANCLINI, N. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:
Edusp, 1998.
164
forma desigual e complexa. A partir dessa concepção, o autor entende a
expressão “hibridimo cultural” como modelo explicativo de identidade que se
configura, para ele, na cultura visual, ou seja, nos diversos sistemas de
imagens presentes na organização simbólica de cada grupo social (arte,
artesanato, arquitetura, meios massivos, etc).
O interesse de García Canclini
67
, ao refletir sobre a
heterogeneidade cultural latino-americana na sociedade pós-moderna, volta-se
para os processos de consumo cultural, na tentativa de estabelecer uma lógica
que explique como as mudanças na maneira de consumir foram alterando as
formas de construção de identidade.
As indústrias culturais proporcionam às artes plásticas, à
literatura e à música uma repercussão mais extensa que a
alcançada pelas mais bem-sucedidas campanhas de divulgação
popular originadas pela boa vontade dos artistas. A
multiplicação dos concertos nos círculos folclóricos e atos
políticos alcança um público mínimo em comparação ao que
oferecem aos mesmos músicos os discos, as fitas e a televisão.
Os fascículos culturais e as revistas de moda ou decoração
vendidas em bancas de jornais e supermercados levam as
inovações literárias, plásticas e arquitetônicas aos que nunca
visitam as livrarias nem os museus.
Junto com essa transformação nas relações da ‘alta’cultura com
o consumo maciço, modifica-se o acesso das diversas classes às
inovações das metrópoles. (...). renovam-se os mecanismos
diferenciais quando diversos sujeitos se apropriam das
novidades.”
68
Se o rádio, o cinema, a televisão contribuíram para a
organização da identidade do povo latino-americano e para uma visão
67
GARCÍA CANCLINI, N. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2006.
68
GARCÍA CANCLINI, N. Culturas híbridas. Op. cit., pp. 88 e 89.
165
nacional, segundo o autor, é preciso pensar, hoje, que os meios de
comunicação enfraquecem as tradições como referentes identitários. A mescla
de várias culturas e as diversas formas de apropriação delas, incluindo-se as
culturas nacionais ou regionais, alimentam, segundo García Canclini, a
necessidade de se indagar, permanentemente, como se reconstroem as
identidades nesses processos híbridos.
Ilustramos essa afirmativa com uma ocorrência, registrada na
imprensa escrita e nos canais de televisão, que materializou a inter-relação de
classes e culturas, esgarçando, ainda mais, os limites que se impunham entre a
cultura erudita e a cultura popular.
Abaixo, a notícia no Estado de S. Paulo, Caderno Cultura, do
dia 21 de janeiro de 2006:
Foto 26 Foto 27
Mestre Paulinho, da Beija-Flor Maestro Isaac Karabitchevsky
166
Foto 28
Orquestra Petrobrás Pró-Música
Mozart encontra o samba na Tijuca
Tijuca homenageia Mozart, que completa 250 anos em 2006.
Será que é possível fazer um samba mozartiano? Fazer Mozart cair
na batucada? Juntas, orquestra e bateria mostram que a
genialidade de Mozart permanece em ritmo de samba.
Nesta sexta-feira, dia 27, são comemorados os 250 anos de
nascimento de um dos maiores mestres da música clássica de todos
os tempos. Wolfgang Amadeus Mozart. No Rio de Janeiro, a
repórter Sandra Moreyra encontrou músicos que nunca tinham
interpretado antes uma composição de Mozart.
Depois de 250 anos do nascimento do compositor, Mozart baixa no carnaval
do Rio. Vai reger o desfile da Unidos da Tijuca na Marquês de Sapucaí.
“Mozart vai dar samba”, fala o carnavalesco Paulo Barros.
Será que é possível fazer um samba Mozartiano? Fazer Mozart cair na
batucada? Juntas, orquestra e bateria mostram que a genialidade de Mozart
permanece em ritmo de samba.
167
Essa ocorrência ilustra a afirmativa de García Canclini para o
qual identidade deve ser entendida como uma narrativa que se constrói a partir
das diferentes experiências culturais vivenciadas pelos atores sociais.
3.5 O realismo representacional da televisão e a construção da
identidade
Kellner
69
, em crítica às teorias sobre a pós-modernidade,
condena a posição de teóricos que afirmam que, na cultura pós-moderna, o
sujeito se desintegrou num fluxo de euforia intensa, fragmentada e desconexa
e que já não possui a profundidade do eu moderno. Critica a idéia de que os
sujeitos implodiram, formando massas; posiciona-se contra os teóricos que
defendem a superficialidade do eu pós-moderno; rejeita, finalmente, a
argumentação de que a cultura da mídia é o lugar de implosão da identidade e
da fragmentação do sujeito.
Para o autor, poucos dos principais teóricos pós-modernos
fizeram um estudo substancial dos textos e das práticas reais da cultura
popular veiculada pela mídia; poucas foram as análises sobre o que esses
textos, sobretudo os veiculados pela televisão – meio a que a população tem
acesso mais facilmente – dizem sobre a identidade nas sociedades
contemporâneas.
A palavra-chave “narrativa”, que permeia a história da
televisão, é substituída, na visão pós-modernista, pela expressão “difusão de
“imagem” o que desmerece a importância da narração e explica a idéia de
69
KELLNER, D. Televisão, propaganda e construção da identidade pós-moderna. A cultura da ... Op. cit., p.
295 e seguintes.
168
superficialidade que os pós-modernos defendem como característica própria
do texto visual televisivo. Justamente contra essa concepção Kellner se
posiciona, defendendo um exame que contemple a imagem e o significado, a
superfície e a profundidade das produções culturais. Para o autor, os
fragmentos e as narrativas da cultura da mídia estão saturados de ideologia e
de significados polissêmicos. A televisão – considerada por muitos teóricos da
pós-modernidade como puro ruído e êxtase, sem nenhuma função significativa
– para Kellner é modeladora de comportamentos, estilos e atitudes. Mesmo
reconhecendo que públicos diferentes assistem à televisão de diferentes
maneiras – alguns atendo-se unicamente à superfície dos textos; outros
“zapeando” para acompanhar o fluxo das imagens; outros acompanhando
fielmente programas inteiros – esse meio desempenha papel fundamental na
reestruturação e na conformação de comportamentos dos indivíduos das
sociedades contemporâneas.
“... a televisão hoje em dia assume algumas das funções
tradicionalmente atribuídas ao mito e ao ritual (ou seja, integrar
os indivíduos numa ordem social, celebrando valores
dominantes, oferecendo modelos de pensamento,
comportamento e sexo para imitar).”
70
Um produto como a telenovela, por exemplo, oferece um texto
capaz de penetrar nas mais variadas camadas sociais e, por isso, a partir dele
as identidades são construídas por meio de diferentes posições de sujeito que
põem à disposição do receptor imagens e figuras com as quais seu público
possa identificar-se, imitando-as. As novelas
71
trouxeram ao público
70
KELLNER, D. Televisão, propaganda e construção da identidade pós-moderna in A cultura da ... Op. cit.,
p. 304.
71
Referimo-nos às novelas da Rede Globo cuja audiência é maior, segundo comprovam os resultados
quantitativos mostrados no gráfico de número 15.
169
0,0
1 ,0
20
3 ,0
4
5 ,0
6 ,0
7 ,0
8 ,0
0
,0
0
0,0
0
0
0
0
Sim Não América Alma Gêmea Laços Família Malhação
PUBL PART
4
), na novela
mérica.
Você está assistindo a alguma telenovela? Qual?
diferentes personagens que se tornaram ícones da moda (Jade, da novela “O
clone”
72
), dos hábitos e dos gostos (os boiadeiros, as músicas sertanejas da
novela “América”
73
), o mito feminino da perseverança e luta, de
independência e coragem, (representada também por Sol
7
A
Gráfico 15 – Televisão – Questão 9:
72
Jade foi protagonista da novela O Clone, levada ao ar pela Globo, entre 1
o
. de outubro de 2001 a 14 de
junho de 2002.
73
Telenovela levada ao ar pela rede Globo, de março de 2005 a novembro do mesmo ano.
74
Protagonista da novela América, vivida por Débora Secco.
170
A matéria trazida pela Folha de S. Paulo
75
, em 18 de dezembro
de 2005, com referência à nova telenovela da rede Globo - Belíssima
76
e
outras de sucesso desse mesmo gênero atualiza essa afirmação:
A novela que virou moda
75
Folha ilustrada, Caderno E, em Folha de S.Paulo, 18 de dezembro de 2005, p. 1
76
Telenovela que teve seu início logo após o término de América, em novembro de 2005.
171
Reconhece Jesús Martín-Barbero
77
que nenhum outro gênero
conseguiu tanta aceitação na América Latina quanto o melodrama. Para o
autor, “é como se estivesse nele o modo de expressão mais aberto ao modo de
viver e sentir da nossa gente”
78
, por isso esse gênero – atualizado nas
telenovelas – constitui-se como terreno fértil para o estudo da identidade do
indivíduo latino-americano:
“Como nas praças de mercado, no melodrama está tudo
misturado, as estruturas sociais com as do sentimento, muito do
que somos – machistas, fatalistas, supersticiosos – e do que
sonhamos ser, o roubo da identidade, a nostalgia e a raiva”.
79
O que está em jogo, no melodrama, como afirma Martín-
Barbero é o “drama do reconhecimento”
80
. O que move o enredo das
telenovelas é a luta para se fazer reconhecer, o que representa, de certa forma,
a história do povo deste território.
Para Borelli,
“...os gêneros ficcionais se revelam como elementos de
constituição do imaginário contemporâneo e de construção da
mitologia moderna: reposição arquetípica, aclimatação do
padrão originário a uma nova ordem e instrumento de mediação
das projeções e identificações em relação com o público
receptor”.
81
77
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 304.
78
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 304.
79
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 304
80
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 305.
81
BORELLI, S.H.S. Ação, suspense, emoção. Literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo: Educ:
Estação Liberdade, 1996, p. 180.
172
Não só se reportando às telenovelas, mas considerando os
gêneros ficcionais como um todo – filmes, músicas de gênero country,
publicidade, etc -, pensa-se neles como o “reconhecimento cultural dos
grupos”
82
, ou ainda:
“Os gêneros ficcionais, matrizes culturais universais, são os
possíveis portadores de referencial comum de mediação entre
produtores culturais/autores, produtos e receptores, e base de
sustenteção de um campo literário ou cultural de característica
múltipla, vasta, diversa”.
83
As considerações feitas mostram como os meios induzem os
indivíduos a identificar-se com as representações dominantes. Os recursos de
que dispõem seduzem o público e levam-no a identificar-se com os heróis que
a cultura da mídia fabrica, ajustando seus valores e comportamentos aos
interesses da sociedade capitalista à qual os meios servem. Entretanto, esse
público cria, também, sua própria leitura e seu próprio modo de apropriar-se
da cultura de massa. Esse público receptor das mensagens mediáticas usa a
sua cultura como recurso para fortalecer-se nas suas formas de vida, e na
formação de sua identidade.
82
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p.301.
83
BORELLI, S.H.S. Ação, suspense, emoção. Literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo: Educ:
Estação Liberdade, 1996, p. 181.
173
IV- O cotidiano e a cultura: instâncias de mediação onde se tece o sentido
A discussão que se proporá neste capítulo requer, em primeiro
lugar, uma palavra voltada para o termo mediação. Segundo Signates
1
, a
enorme recorrência com que o termo aparece nos textos que tratam dos
estudos de recepção já seria suficiente para demonstrar a importância desse
conceito nos estudos contemporâneos da comunicação.
Entretanto, acusa o autor, essa abundância não serviu para
esclarecer o conceito nem mostrou haver consenso entre os diversos autores
que o utilizaram. Para Signates, “... Martín-Barbero, em sua obra principal, De
los médios a las mediaciones, apesar de utilizá-lo no próprio título, não o
define claramente nem o historia”.
2
Seguindo a abordagem de Signates, de Orozco Gomes, de
Martín-Barbero e de Raymond Williams – autores que se dedicaram ao tema -,
propomos uma reflexão que possa esclarecer essa categoria reconhecidamente
complexa, a fim de delimitarmos seus contornos e limites pertinentes ao
presente trabalho.
4.1 Refletindo sobre conceitos de mediação
Para historiar o conceito, Signates aponta duas vertentes
filosóficas de onde ele procede: a vertente idealista, de origem cristã, e a
tradição marxista. A primeira liga-se à herança teológica (Cristo mediando
Deus e os homens); a segunda, como assinala o autor, preocupa-se em explicar
os vínculos dialéticos de categorias distintas.
1
SIGNATES, L. Estudo sobre o conceito de mediação. Novos olhares, n. 2, São Paulo: ECA/USP, 2o.
semestre de 1998, p. 37.
1
SIGNATES, L. Estudo sobre o conceito de mediação. Novos ... Op. cit., p. 37.
174
Na herança marxista, lembra Signates, Benjamin retoma a
relação existente entre transformação nas condições de produção com as
mudanças no espaço da cultura, preconizada por Marx e Engel, no Manifesto
do Partido Comunista:
“A burguesia não pode existir sem revolucionar
permanentemente os instrumentos de produção – por
conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as
relações sociais”.
3
Entretanto, a preocupação mais presente nos teóricos marxistas
dizia respeito à relação entre infra-estrutura e superestrutura. Desse embate
surge a teoria do “reflexo, noção que, para Raymond Williams, antecede a de
mediação”
“A conseqüência habitual da fórmula infra-estrutura –
superestrutura, com suas interpretações especializadas e
limitadas das forças produtivas e do processo de determinação, é
uma descrição – por vezes, uma teoria – da arte e do pensamento
como ‘reflexo’.”
4
.
Isso significava dizer que a arte refletia o real, ou seja, a arte
seria um reflexo do mundo como é visto pelo artista. Pela própria sofisticação
e complexidade desse tipo de argumento, muitas dúvidas passam a surgir:
Como refletir de forma material algo que não o fosse – a ideologia, a
metafísica - ? Se a arte refletia a realidade, se não o fizesse, ela seria falsa? O
que era, na verdade, a realidade?
Tornou-se necessária, portanto, uma outra teoria, também
3
MARX, k. ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Cortez, 1998, p. 8.
4
SIGNATES, L. Estudo sobre o conceito de mediação. Novos ... Op. cit, .p.37.
175
materialista, pois em situações complexas a teoria do reflexo não era
suficiente para uma interpretação plausível: “Foi a essa altura que a idéia do
reflexo foi desafiada pela idéia da ‘mediação’.”
5
A importância do conceito parece estar, sobretudo, na noção de
que o termo descreve um “processo ativo”, uma ação de “reconciliação entre
opostos”.
6
Essas características bastam para explicar a razão pela qual o termo
mediação adequava-se para descrever a relação entre infra-estrutura e
superestrutura.
Importante, a partir do que se apontou, retomar a idéia de que o
princípio de mediação estava ligado à hipótese de modificação –
diferentemente do que se pretendia com a teoria do reflexo. Essa modificação
explicava-se, na verdade, pelo conceito de “ideologia”, entendida como
deformação. Por isso, denuncia Williams:
“Em nossa própria época, esse sentido de mediação foi
especialmente aplicado aos ‘meios’ que, supõe-se, deformam e
apresentam a ‘realidade’ de formas ideológicas”.
7
Ainda para Raymond Williams, esse sentido negativo de
mediação que se aproxima de um sentido igualmente negativo de ideologia
coexiste com uma concepção oposta – positiva, portanto – de contribuição da
Escola de Frankfurt, em que mediação não seria, necessariamente, deformação
porque todas as relações que se estabelecem no mundo social são mediadas.
Nas palavras do autor, essa idéia assim se traduz:
5
WILLIAMS, R.Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 99.
6
WILLIAMS, R. Marxismo e ... Op. cit., p. 101.
7
WILLIAMS, R. Marxismo e ... Op. cit., p. 101.
176
“Todas as relações ativas entre diferentes tipos de ser e
consciência são antes inevitavelmente mediadas, e esse processo
não é uma agência separável – um ‘meio’- mas intrínseco às
propriedades dos tipos correlatos.”
8
Essa afirmativa pode explicar a posição que Signates adota, ao
descrever seu mapa conceitual do termo. O autor, ao registrar aquilo que
mediação não é, afirma:
“Mediação não é intermediação (...) [porque] a idéia de
intermediação é diretamente dependente de um modo positivista
de ver a realidade que separa as suas categorias em partes tidas
por preexistentes e independentes entre si (...). Mediação não é
tampouco filtro”.
9
Fica claro, portanto, que, ao concebermos o conceito como
algo intrínseco às propriedades dos pontos que se pretendem corresponder,
toda e qualquer definição que contrarie esse princípio pode ser equivocado.
A esse propósito, Williams concede o arremate:
“Assim, a mediação é um processo positivo na realidade social,
e não um processo a ela acrescentado como projeção, disfarce
ou interpretação.”
10
Importante, até aqui, é admitir a existência de um consenso de
que a construção de sentido das mensagens mediáticas dá-se a partir de uma
negociação de muitos atores – que manifestam, por essas mesmas mensagens,
a lógica de todos os movimentos sociais que eles protagonizam. Nessa
consideração é que se pode inscrever o trabalho de Jesús Martín-Barbero, o
8
WILLIAMS, R. Marxismo e … Op. cit., p. 101.
9
SIGNATES, L. Estudo sobre o conceito de mediação. Novos ... Op. cit., p. 40.
10
WILLIAMS, R. Marxismo e ... Op. cit., p. 102.
177
qual defende a tese de que os estudos da mídia devem enfocar o lugar em que
se dá a interação entre a lógica da produção e a lógica da recepção. Trata-se,
pois, dos processos de luta, resistência, transformação e interação que reúnem
diferentes lógicas culturais.
4.1.1 Os lugares de mediação
Martín-Barbero, em seus estudos sobre a televisão
11
, considera
que, embora esse meio venha sofrendo transformações, a mediação a partir da
qual ele opera não está passando por modificações sociais e culturais
expressivas. Por isso, a proposta do autor é que as pesquisas sobre os meios
sejam feitas a partir
“dos lugares dos quais provêm as construções que delimitam e
configuram a materialidade social e a expressividade cultural da
televisão”.
12
Assim, o autor propõe três lugares de mediação: a cotidianidade
familiar, a temporalidade e a competência cultural. Sobre a cotidianidade
familiar, é possível dizer que a família é a “unidade básica de audiência”, já
que ela representa “a situação primordial de reconhecimento.”
13
“Rompendo com as ultrapassadas considerações moralistas – a
televisão corruptora das tradições familiares – e com a filosofia
que atribui à televisão uma função puramente reflexa, começa a
se estabelecer uma concepção que vê na família um dos espaços
11
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 291 e seguintes.
12
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 293.
13
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 291 .
178
fundamentais de leitura e codificação da televisão”.
14
As referências que F.M.
15
fez - com um entusiasmo vivo – à
telenovela revelam essa concepção de que Martín-Barbero fala:
- Eu gosto MUITO de assistir novela [sic]. (...). Normalmente
elas mostram muitas verdades (...).Eu fiquei muito
perturbada, no começo da novela eu não entendia isso
16
, mas
eu perguntei pra minha mãe – porque a gente vê novela junto,
assim eu posso conversar sobre todas as coisas da vida e ela
vai me explicando tudo (...).
Para Martín-Barbero, a família, por representar um espaço
inscrito pela proximidade, pelas relações estreitas e íntimas – o lugar “do
homem inteiro”
17
– possibilita à televisão mecanismos a partir dos quais a
mediação inscreve suas marcas no discurso televisivo. A esses mecanismos
esse autor chama de simulação do contato e retórica do direto.
18
A simulação do contato diz respeito ao mecanismo a partir do
14
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 293.
15
Depoimento tomado em 27 de ouburo de 2005, em casa de F.M., em encontro com amigas.
16
F. Refere-se à personagem Aidê, cleptomaníaca, representada, na novela América (Globo, levada ao ar de
março a novembro de 2005) por Cristiane Torloni.
17
HELLER, A. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 17)
18
Referências que se podem ler em MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 293.
19Cada vez mais esse eixo, que se apóia na função fática da linguagem, tem sido explorado na organização
das práticas discursivas da televisão. O exemplo mais expressivo, na nossa opinião, é o Big Brother (levado
ao ar de segunda a sexta pela rede Globo de televisão) já que se trata de um modelo de programa que interpela
o receptor, fazendo-o não só participar da cotidianidade dos atores mas também decidir o seu destino, “quem
vai para o paredão”, ou seja, quem vai ser eliminado do grupo participante. Dessa forma, esse modelo de
gênero televisivo simula esse contato a partir de “uma irrupção do mundo da ficção e do espetáculo no
espaço da cotidianidade e da rotina”. MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 294. O espectador,
com o poder de participar tão ativamente dos acontecimentos, confunde-os com a vida. Essa estrutura aberta,
essa lógica que é alimentada pela retórica do direto explicam o fascínio que o programa tem exercido sobre as
pessoas de qualquer camada social, de qualquer posição intelectual. Médicos, professores, cabeleireiros,
operários, todos discutem o destino dos personagens como se fossem pessoas familiares. A retórica do direto
elimina a fronteira entre narrativa e vida.
18
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 294.
179
qual a televisão organiza seu modo de comunicação: a manutenção do contato,
por assim dizer, a função fática da linguagem
19
; a retórica do direto explica o
eixo no qual o discurso televisivo se apóia: a “proximidade e a magia de
ver”
20
:
“Na televisão, nada de rostos misteriosos ou encantadores
demais; os rostos da televisão serão próximos, amigáveis, nem
fascinantes nem vulgares. Proximidade dos personagens e dos
acontecimentos: um discurso que familiariza (grifo do autor)
tudo, torna ‘próximo’ até o que houver de mais remoto (...)”.
21
Os depoimentos das jovens do “Liceu Albert Sabin” confirmam
essa tese:
- Voltando à televisão, falando um pouco do cinema, do rádio.,
me digam em que espaço vocês conseguem ver pessoas com
quem vocês se identificam? Quero dizer, onde vocês “acham”
os ídolos de vocês?
- (F.M.) Eu me interesso MUITO por isso que você falou! Eu
admiro os atores, eles vivem mesmo o papel que eles fazem,
por isso é que eu gosto MUITO de novela. Por isso, meus
ídolos são mais esses atores.
(...)
- (C.F.) Eu admiro os atores de Hollywood, mas os atores de
novela são O MÁXIMO!
A temporalidade social é considerada por Martín-Barbero outro
lugar de mediação para a leitura das práticas discursivas dos meios, já que a
matriz cultural do tempo organizado pela televisão, diferentemente daquele
que é valorizado pelo capital – o tempo produtivo -, é o da fragmentação e da
20
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 294.
21
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 295.
180
repetição. Segundo o autor, ao historiar as origens e as características do
folhetim, no século XIX, a fragmentação da temporalidade representa um
dispositivo de sedução, pois, através dela, a narrativa – contada em episódios
– opera com os registros de duração e do suspense, predispondo o receptor a
penetrar na narração, confundindo-a com a vida.
Em visita à casa de F.R.M.A., pudemos ouvir de Rita, a avó da
garota, o seguinte depoimento:
- O que é que você está vendo?
- Laços de família.
22
- Vocêacha boa essa novela.
- Ah é, já vi antes, estou vendo de novo, quando tenho uma
folguinha, sabe como é...
- Que cena é essa?
- Ah, é a menina que está doente. A gente torce por ela. Parece
a vida real.Dá até vontade de chorar...
No que diz respeito à temporalidade, vale registrar ainda a
posição de Willis
23
para quem o aspecto formal de maior relevância nas
telenovelas é a espera. A narrativa, fragmentando-se em episódios que trazem
desafios e obstáculos cada vez mais complexos, faz da espera pela narrativa
que ritmará os acontecimentos do cotidiano do espectador um fim em si
mesmo. Segundo a autora, a espera é comparável à experiência vivida pela
dona de casa que, em suas tarefas cotidianas – repetitivas e intermináveis – faz
desse gênero narrativo um espelho para a sua vida. Assim, a telenovela
“estetiza a espera”
24
, transformando-a em prazer.
O terceiro lugar de mediação, proposto por Martín-Barbero, é a
competência cultural. Para o autor, é na televisão, mais do que em qualquer
22
Telenovela que foi ao ar no primeiro semestre de 2000.
23
WILLIS, S. Cotidiano: para começo de ... Op. cit., p. 16.
24
WILLIS, S. Cotidiano: para começo de ... Op. cit., p. 16.
181
outro meio, que o significado do termo massivo se faz mais explícito: a
desativação de diferenças sociais – que temos comprovado nos testemunhos
que vimos registrando – e a presença de uma matriz cultural. A própria noção
de cultura e a sua significação social estão sendo transformados por aquilo que
a televisão produz. Através de uma cultura textualizada – “o sentido de um
texto remete sempre a outros textos”
25
, a dinâmica da televisão atua pelos seus
gêneros.
“Os gêneros, que articulam narrativamente as serialidades,
constituem uma mediação fundamental entre as lógicas do
sistema produtivo e as do sistema de consumo, entre a do
formato e a dos modos de ler, dos usos.”
26
.
Para Borelli,
“... os gêneros ficcionais – matrizes culturais universais
recicladas e transformadas na cultura de massa – aparecem
como elementos de constituição do imaginário contemporâneo e
de construção de uma mitologia moderna: reposição arquetípica,
aclimatação do padrão originário a uma nova ordem e
instrumento de mediação de projeções e identificações na
relação com o público receptor.”
27
Ainda segundo a autora:
“Os gêneros – com suas tramas, personagens e temática,
familiares e reconhecidas pelo público receptor – entram como
alternativas exemplares na constituição dos mitos, verdadeiros
modelos de cultura”.
28
25
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 298.
26
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 298.
27
BORELLI, S.H.S. Gêneros ficcionais ... Op. cit., p. 132.
28
BORELLI, S.H.S. Gêneros ficcionais ... Op. cit., p. 132.
182
Os gêneros, nesse sentido, conseguem amalgamar, de acordo
com Borelli, em uma única matriz cultural, referenciais comuns a emissores e
receptores, isso porque a partir deles é possível resgatar-se tanto a memória
individual quanto a memória coletiva.
Isso nos ratifica a idéia de que a construção de significado pelo
receptor é:
“... o resultado da confrontação e da negociação (grifos do
autor) de muitos atores diferentes, manifestando a lógica dos
movimentos sociais, além de muitas outras lógicas.”
29
4.1.2 As lógicas da produção e da recepção
Martín-Barbero defende a idéia de que os estudos da mídia
deveriam enfocar e compreender a lógica da produção e da recepção, nessa
interação estariam os procedimentos que viabilizam as negociações entre
diferentes lógicas culturais.
A título de exemplo, podemos pensar nos viodeoclipes
transmitidos pela televisão a que os jovens das duas realidades investigadas
assistem diariamente (conferir Gráfico 11 – Televisão – Questão 7, registrado
na página 90) não só para apreciar os programas, mas também para construir o
significado de sua identidade cultural junto aos amigos; ao mesmo tempo em
que a lógica da indústria da música impõe-se nesse contexto, divulgando
símbolos estereotipados, criando modelos, redimensionando valores.
E como os jovens constroem o significado para essas músicas,
para essas bandas? Qual a lógica das diferentes classes sociais na leitura das
29
WHITE, R. Tendendência dos estudos de recepção. Comunicação & Educação. São Paulo:
ECA/USP/Moderna, n. 13, setembro a dezembro, 1998, p. 54.
183
letras dessas composições? Em outras palavras, mediados por diferentes
cotidianos, como os jovens atribuem significado a essas mensagens?
Os depoimentos abaixo encaminham as respostas:
Entre os jovens alunos do “Glete de Alcântara”, colhemos as
seguintes opiniões sobre as músicas mais tocadas na festa do bairro
30
, cujas
letras vêm a seguir:
- Que músicas são essas?
- (F.A.) Rap, ué.
- Vocês gostam?
- (K.M.C.) É muito dez!
- (E.A.C.N.) É meio bobagenta.
- (F.R.M.A.) É MUITO bobagenta.
- (K.M.C.) Mas é muito boa, não dá pra ficar parado. Todo
mundo dança.
- A música fala de quê?
- (E.A.C.N.) De sexo.
- (K.M.C.) Ah, não é só isso.
- (E.A.C.N.) É sim. Eles não falam na cara mas querem dizer.
“Tô atoladinha”, o que é que você acha que é isso? “Eu vou
de quatro”. É muito, né? Tem coisa melhor, tem música rap
que fala coisa mais real.
- (V.S.) Mas é gostoso, meu, música tem que ser isso aí. Ó o
povo doidão.
Dos garotos e garotas do “Liceu Albert Sabin”, em festa a que
estivemos presentes, em 8 de dezembro de 2005, pudemos ouvir:
- Que músicas são essas?
- (G.B.) É Tati Quebra Barraco. Maior sucesso!
30
Trata-se de uma festa funk a que fomos, com alguns dos alunos do “Glete de Alcântara”, realizada no
domingo, dia 25 de outubro de 2005. Trata-se de um evento comum nos finais de semana, que acontece
depois do jogo de futebol. Terminada a partida, como nos explicaram as garotas, no próprio campo, ou nas
ruas, quando o dia está chuvoso, monta-se, com a adesão de toda a comunidade – que paga aos dj’s e a
eletricidade das casas onde se fazem as ligações – a estrutura dessa “festa”, único divertimento no bairro que
não conta sequer com cinemas ou salões de festas. A esse campo chamam “Marmita”. Nome cuja
procedência nem os moradores mais jovens conhecem.
184
- Vocês gostam da letra?
- (R.H.) É demais!
- (I.M.) Muito doida, muito boa. Contamina!
- (T.C.) Toca lá dentro, a gente ouve e não consegue ficar
parado.
- (R.D.) Desopila, descarrega, se realiza.
- As letras não são meio pesadas?
- (R.H.) Ah, mas é isso aí mesmo. Normal.
Atoladinha
Tati Quebra Barraco
Composição: Indisponível
Alô!
Oi pulguenta.
Quem tá falando?
Sou eu bola de fogo
E ai tá de bobeira hoje?
Vamo dá um rolê na praia? Mó solzão, praia da Barra...
Então vô aí te buscá viw?
Então fui!
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim
Sou eu Bola de Fogo
E o calor tá de matar
Vai ser na praia da Barra
Que uma moda eu vou lançar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar
Tô ficando atoladinha
Tô ficando atoladinha
Tô ficando atoladinha
calma calma foguetinha
Piririm, piririm, piririm
185
Alguém ligou pra mim
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim
Sou eu Bola de Fogo
E o calor tá de matar
Vai ser na praia da Barra
Que uma moda eu vou lançar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar
Tô ficando atoladinha
Tô ficando atoladinha
Tô ficando atoladinha
calma calma foguetinha
Paga Spring Love
Tati Quebra Barraco
Composição: Indisponível
Eu faço amor todo dia,
Estou sempre preparada,
Se tu quer fazer comigo,
Então fique do meu lado.
Eu vou de lado, vou de quatro,
A posição vocês escolhem,
Sou tati mc
31
gosto de pago spring love
Vai, pago spring love,
Vai, pago spring love,
Pago spring love,
Gosto de pago spring love.
Eu faço amor todo dia,
Estou sempre preparada,
Se tu quer fazer comigo,
Então fique do meu lado.
Eu vou de lado, vou de quatro,
31
Mc, expressão em inglês que significa o rapper, isto é, o vocalista.
186
A posição
vocês escolhem,
Sou tati mc gosto de pago spring love
Pago spring love...
Fogão Daku
Tati Quebra Barraco
Composição: Indisponível
Entrei numa loja tava em liquidação
Queima de estoque fogão na promoção
Escolhi da marca Daku porque daku é bom daku é bom
Daku é bom ...
Calma minha gente é só marca do fogão
É bom daku é bom
Diferentes culturas medeiam a leitura a que os jovens de
diferentes classes socioeconômicas fazem: aqueles que habitam um espaço,
cuja realidade é narrada na música – o espaço da periferia, o espaço da
linguagem não convencional - , olham-na com censura. E.A.C.N., ao tecer sua
crítica à letra e referindo-se àquelas cujas abordagens seriam “mais reais”
32
,
aponta para as origens do rap – música-protesto, música-crítica social.
Para os jovens de classe econômica mais favorecida, a música é
o êxtase, é o momento que têm para soltarem as amarras do socialmente
correto...
32
Entendemos que a referência da jovem faz alusão às origens do rap, tão bem descrito por Kellner em
KELLNER, D. A cultura da ... Op. Cit., p. 230 e seguintes.
187
Foto 26
Festa funck no Parque Ribeirão Preto.
No confronto entre a lógica do produtor e a lógica do jovem
consumidor, há o esforço dos adultos que resistem – e interferem para os
filhos resistirem – a esses modelos oferecidos pela mídia:
- (C.F.) Minha mãe falou que me deserda se eu for a uma festa
funk.
Enquanto os jovens reúnem peças de simbolismo para definir
sua identidade, os pais julgam esses símbolos imorais e prejudiciais, às vezes,
doentios...
188
4.2 Cultura e mediação
É possível perceber que em sua obra Martín-Barbero defende a
cultura como a maior mediadora de todo processo de produção dos meios de
comunicação. O bairro, o trabalho, a cotidianidade constituem, segundo o
autor, alguns desses espaços onde é produzido o sentido que os sujeitos
atribuem às mensagens dos meios – ou a qualquer outra forma de práticas
comunicativas.
A definição que Martín-Barbero
33
confere à formação das
mediações lembra a concepção gramsciana de hegemonia. Para Gramsci
34
, a
hegemonia não está assegurada por uma classe dominante; ela é um campo de
conflito entre muitos atores. Assim, o poder não é exercido pela força, mas por
estratégias capazes de definir símbolos culturais na sociedade. As alianças
hegemônicas na indústria cultural permitem incorporar aparentes rebeliões
culturais populares que viabilizam a elas encontrarem sua identidade cultural.
Desse modo:
“... as mediações decorrem de um complexo processo de
trocas negociadas de capital cultural, que garantem a todas as
culturas o reconhecimento de uma quantidade suficiente de sua
identidade na cultura dominante, para que possam ao menos
tolerar a base hegemônica.”
35
Essa citação ilustra as referências dos alunos do “Glete de
Alcântara” que se reconhecem no filme “Os dois filhos de Francisco” a que
assistimos, juntos, na escola, no dia 24 de novembro de 2005.
33
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 291 e seguintes.
34
MACCIOCHI, M. A. A favor de Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 148 e seguintes.
35
WHITE, R. Tendências dos estudos de recepção. Comunicação & ... Op. cit., p. 56.
189
- Valeu a pena ter visto o filme?
(...)
- (A.C.R.P.) Foi uma lição de vida. A gente sai daqui refletindo.
Pensar que a gente pode alcançar nosso sonho.
- (S.A.N.) Mesmo porque nós também temos uma condição de
vida melhor que a deles. A gente não mora no fim do mundo,
acho que a gente pode sonhar até mais.
Ratificando as idéias de Martín-Barbero que postula ser a
mediação lugar em que se dá a interação entre a lógica da produção e a lógica
da recepção, retomamos, aqui, a contribuição de Hall
36
sobre o processo de
produção de uma mensagem mediática
37
. Para o autor:
“... circulação e recepção são, de fato, ‘momentos’ do processo
de produção na televisão e reincorporados via um certo número
de feedbacks indiretos e estruturados no próprio processo de
produção. O consumo ou a recepção da mensagem da televisão
é, assim, também ela mesma um ‘momento’ do processo de
produção no sentido mais amplo, embora este último seja o
‘predominante’porque é o ‘ponto de partida para a
concretização’da mensagem. Produção e recepção da mensagem
televisiva não são, portanto, idênticas, mas estão relacionadas:
são momentos diferenciados dentro da totalidade formada pelas
relações sociais do processo comunicativo como um todo”.
38
Ainda de acordo com Hall, antes que a mensagem mediática
tenha um “efeito”, ela deve ser apropriada como um discurso significativo,
isto é, um discurso decodificado. Para o autor, é esse conjunto de significados
que
“entretém, instrui ou persuade, com conseqüências perceptivas,
36
HALL, Stuart. Codificação/decodificação in SOVIK, Liv (org.) Da diáspora.Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2003.
37
Ainda que Stuart Hall tenha refira-se, nesse contexto, à produção das mensagens da televisão, julgamos
que sua abordagem se aplique aos discurso mediáticos em geral.
38
HALL, Stuart. Codificação/decodificação in SOVIK, Liv (org.) Da diáspora. Op. cit.
190
cognitivas, emocionais, ideológicas ou comportamentais muito
complexas.”
39
Se voltarmos nossa análise para as formações ideológicas da
produção das mensagens inscritas nas músicas que os jovens entrevistados
revelaram apreciar, observamos a ênfase que se dá a uma temática que se
reconhece como socialmente aceita tanto pelos rapazes e moças oriundos das
classes socioeconômicas privilegiadas como por aqueles que habitam a
periferia: o erotismo, referido nas suas formas mais explícitas – “Eu vou de
lado, vou de quatro, a posição vocês escolhem”. Sexualizar a mercadoria –
seja ela a roupa, o cigarro, a cerveja, ou a música – é garantir o consumo.
Nesse sentido, podemos entender o Rap como música que divulga modos
irreverentes de agir, pensar, de se rebelar contra as tradições, capaz de
produzir novas formas de identidade para todas as classes sociais.
Willis, ao analisar o discurso publicitário, explica essa estratégia
do produtor:
“Ao evitar a fragmentação da grande massa de consumidores em
unidades distintas, a publicidade pós-moderna pressupõe um
sujeito consumidor passível de ser interpelado de vários ângulos
ao mesmo tempo”.
40
Num jogo de palavras, a música “Fogão Daku” não só faz
referência à temática anteriormente discutida, como também sugere e ironiza o
termo “Daslu”: nome dado a um shopping de produtos destinados a pessoas de
alto poder aquisitivo, cuja inauguração e funcionamento causou polêmica pela
sua sofisticação. O rap é cantado por essa mesma classe social que consome o
39
HALL, Stuart. Codificação/decodificação in SOVIK, Liv (org.) Da diáspora. Op. cit.
40
WILLIS, S. Cotidiano: para começo ... Op. Cit., p. 13.
191
produto Daslu com o mesmo entusiasmo com que é acompanhado pela
população da periferia que se sente aviltada frente a tanto luxo e poder, mais
uma prova de que o sujeito consumidor é interpelado de vários ângulos ao
mesmo tempo.
Considerando ainda a lógica do produtor, devemos lembrar que
as telenovelas têm se comprometido, obedecendo aos interesses ideológicos da
classe dominante, com causas sociais: clonagem, desaparecimento de crianças,
droga na vida dos adolescentes. Na telenovela América, a preocupação
exagerada com os deficientes visuais – a que Martín-Barbero chama de
“insuportável didatismo”
41
– provoca reações distintas.
Entre os alunos do “Glete de Alcântara”
42
, percebemos
indiferença frente a essa temática:
-O que vocês acham da questão dos cegos que a telenovela
América trouxe para a história?
- (K.M.C.) Ah, é o Marcos Frota que faz papel de cego!
- Sim, mas há vários outros atores e atrizes.E aí, o que acham?
-(K.M.C.) Ah, normal!
Os alunos do “Liceu Albert Sabin” para quem a “ajuda ao
próximo é a atitude que eles tomariam para fazer um mundo melhor”,
demonstram-se sensíveis a essa questão
43
,:
- (C.F) O que me impressionou muito também é o caso dos
cegos. Acho que a televisão, quer dizer, as novelas, ensinam
muito as pessoas, por exemplo, nesse caso, a aceitarem as
diferenças, pelo menos respeitar.
41
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. Cit., p. 297.
42
Depoimento tomado em 24 de novembro de 2005, no “Glete de Alcântara”, ao comentarmos os últimos
capítulos da novela América.
192
No cerne das mediações, também para Robert White
44
, está a
capacidade de as indústrias culturais construírem um texto que atraia – ou
fascine – o receptor-alvo, capacitando-o a descobrir nele a sua identidade.
White, para exemplificar sua afirmativa, aponta igualmente a telenovela que
representa um dos mais destacados pólos de atração de todas as classes
sociais, todas as idades e todas as culturas.Trata-se de um gênero que cresce à
medida que fornece símbolos de identificação, que articulam sentimentos dos
mais variados atores sociais.
Para White, as telenovelas diárias representam gêneros – “locus
mais preciso do conflito entre identidades sentidas e identidades oferecidas”
45
- em que se inscrevem sentimentos e prazeres:
“(…) as pessoas habitam (grifo do autor) gêneros como
extensões de sua própria vida”.
46
As amigas C.F. e F.M. falam
47
da personagem Raíssa da novela
América como se estivessem falando delas mesmas, ou daquilo que realmente
queriam ser:
- (F.M.) É, a Raíssa fez piercing, pintou o quarto de preto.(...).
Quando ela conversou com o pai, ela disse que estava feliz
daquele jeito, em ser o que ela queria ser e não ser só uma
personagem de uma fotografia. O pai está separado da mãe,
é como aqui em casa. A gente se vê na novela. Eu invejo a
liberdade da Raíssa.
- (C.F.) É, a Raíssa sempre foi uma bonequinha dentro de casa.
Ela nunca foi o que ela queria ser. Isso ficou sendo guardado
dentro dela e um dia ela explodiu. Na minha casa não é igual.
43
Depoimento tomado em 27 de outubro de 2005, em casa de F.M..
44
WHITE, R. Tendências dos estudos de recepção. Comunicação & ... Op. Cit., p. 56.
45
WHITE, R.. Tendências dos estudos de recepção. Comunicação & ... Op. Cit., p. 60.
46
WHITE, R. Tendências dos estudos de recepção. Comunicação & ... Op. Cit., p. 62.
47
Depoimento tomado em 27 de outubro de 2005, em casa de F.M..
193
Meus pais não são separados, mas eu acho a Raíssa o
máximo. Eu queria poder freqüentar festas funk como ela.
- (F.M.) É, ela começou a ser do jeito que ela queria e não do
jeito que a sociedade queria.
Quando Martín-Barbero afirma que “entre a lógica do sistema
produtivo e as lógicas dos usos, medeiam os gêneros”
48
, é preciso entender
que, pelos gêneros, tanto os receptores terão a noção de que podem ter, nos
meios, aquilo que desejarem como os produtores acreditarão articular, na
fabricação de seus arquétipos, o processo de identificação de seus receptores,
processo esse que se forma nos espaços de mediações: uma densa estrutura
discursiva a partir da qual se negociam as identidades dos sujeitos. Essas
noções confirmam outra visão que se atribui à recepção: nossa identidade se
forma nas relações dialéticas.
Outro investigador que merece destaque por trabalhar, com
cuidado, essa temática deixa a sua contribuição: Guilhermo Orozco Gomez
desenvolve a perspectiva da “mediação múltipla”
49
, cujo objetivo é o de levar
a teorização sobre o tema ao nível empírico para possibilitar investigações e
entender a relação entre recepção e meios.
Nessa mediação múltipla inserem-se, segundo o autor, as
mediações individuais, as institucionais, as medições massmediáticas, as
situacionais e as mediações de referência. Sem pretendermos uma definição
completa, mesmo porque concordamos com Martín-Barbero para o qual na
cultura encontramos todas as formas de mediação – por isso ela ser
considerada como uma forma nuclear na construção de sentido -,
registraremos, sempre seguindo o quadro conceitual de Orozco Gomez, as
48
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. Cit., p. 301
49
OROZCO GOMEZ, G. La investigación en comunicación desde la perspectiva cualitativa. Guadalajara:
Indec, 1997.
194
peculiaridades que ele lhes atribui.
As mediações individuais dizem respeito aos esquemas mentais,
ao repertório de cada indivíduo a partir dos quais ele outorga sentido a uma
informação; as institucionais dão-se na escola, na família, no trabalho, em
síntese, nas instituições; as mediações massmediáticas dizem respeito à
tecnologia que – com linguagens distintas – influenciam o processo de
percepção e interação com as novas informações; as situacionais ligam-se à
situação da recepção: o sentido se constrói dependendo do lugar em que se dá
a recepção, para Orozco Gomez, entre outros casos citados, ver televisão, por
exemplo, quando se está só não é a mesma coisa que assistir a ela quando se
está acompanhado; as mediações de referência incluem as questões
relacionadas a características específicas do receptor: idade, gênero, classe
social etc.
Essas diferentes formas de mediação, segundo o autor,
operacionalizam-se em “comunidades de interpretação”
50
definidas por ele
como um grupo de sujeitos sociais unidos por determinadas práticas.
Retomamos, neste momento, Signates, cuja referência deixa
clara a idéia de que a precisão teórica do conceito de mediação parece ainda
distante:
“Parece claro que a necessidade de uma discussão teórica mais
profunda ainda é presente (...). É que o campo de indefinições
extrapola a simples reflexão conceitual. O próprio interesse pelo
uso da noção de mediação sugere isso. A comunicação é uma
área de estudos demasiadamente imprecisa, a ponto de ser difícil
afirmarmos com segurança a natureza específica de seu objeto
teórico. Estudar comunicação é como fazer retrato do
movimento: o que resulta é sempre uma figura estática cuja
imagem em si já começa negando o que se propôs retratar (...)
50
OROZCO-GOMEZ, G. La investigación en ... Op. cit., p. 118.
195
(grifo meu)”.
51
Vale acrescentar a essas reflexões a contribuição de Santos e
Nascimento para as quais o modelo das mediações – ainda que se considere o
seu modelo múltiplo – não se constitui um padrão de que os pesquisadores se
apropriem para explicar a construção de sentido de uma determinada
audiência; a mediação deve ser analisada como algo que se constrói em cada
situação. Segundo as autoras:
“(...) são as circunstâncias do objeto que sinalizam as mediações
que o pesquisador deve considerar para explicar um determinado
fenômeno que norteia o objeto que ele pretende construir e
explicar”
52
.
Ilustrando a idéia de que a mediação deve ser analisada como
algo que se constrói em cada situação, registramos as diferentes respostas
dadas à proposta de n. 4 (Marque um x (...) nos itens extremamente
necessários à sua vida ..), do item “Outros”, do mapa de consumo cultural
organizado no questionário aplicado junto aos alunos das escolas “Glete de
Alcântara” e “Albert Sabin”.
As respostas às questões desse mapa foram dadas no espaço
escolar, em situações durante as quais era impossível evitar a comunicação
entre os jovens respondentes. Isso significa que, para optarem pelas respostas
que deveriam atribuir a cada questão, os garotos e garotas confirmavam, entre
eles, aquelas que pudessem ser “autorizadas” pelo grupo, em outras palavras,
pela sua comunidade interpretativa. A partir dessas circunstâncias é que
51
SIGNATES, L. Estudo sobre o conceito de mediação. Novos olhares, n.2. São Paulo: ECA/USP, 2º.
semestre de 1998, p. 46.
52
SANTOS, M.S.T. e NASCIMENTO, M. R. Desvendando o mapa noturno: análise da perspectiva das
mediações nos estudos de recepção. Novos olhares, n. 5, São Paulo: ECA/USP, 1
o
. de setembro de 2000, p.
10.
196
obtivemos os resultados das questões propostas.
Nas entrevistas feitas individualmente, a escolha dos itens
oferecidos pela questão não se confirmou com a que fora feita enquanto os
jovens estavam no grupo. Essa ocorrência se deu, particularmente, entre os
alunos da escola pública. Enquanto a tabela - que registraremos em seguida –
demonstra que para os jovens do Parque Ribeirão são extremamente
necessários: viagens, cinema, curso de idiomas, a resposta a essa mesma
questão feita pessoalmente, em espaço privado, foi outra:
- (E.C.M.) O que é mais importante mesmo são as roupas
53
.
- (Q.C.C.N.) Eu queria ter as roupas e os brincos das
mulheres das novelas
54
.
Interessa acrescentar, com a leitura desta tabela que os itens que
podem ficar para depois entre os alunos da escola particular não são
considerados como extremamente necessários à medida que esses jovens têm
consciência de que esses itens lhes serão garantidos. Eis, mais uma vez,
comprovada a diversidade sociocultural de ambas as camadas sociais.
53
Depoimento tomado em casa de E.C.M., no dia 20 de outubro de 2005, em conversa em seu quarto sobre o
que seria importante conseguir para a vida dela ser melhor.
197
Tabela – Outros – Questão 4 :
Marque com um X na primeira coluna os itens extremamente necessários à sua
vida, sem os quais, na sua opinião, não se pode viver bem; marque com X na segunda
coluna os itens que, embora necessários e/ou agradáveis, podem ficar para depois:
COINCIDÊNCIAS:
Itens que podem ficar para depois Itens extremamente necessários
Academia
Carro zero
Jogos de loteria
Jogos de futebol
Mc Donald’s
Revistas
Salão de beleza
Teatro
Filmes
Celular
Computador
Livros
Shows
TV
DISCREPÂNCIAS:
Itens Escola Pública Escola Particular
Cinema
Extremamente
necessário
Pode ficar para depois
Curso de idiomas
Extremamente
necessário
Pode ficar para depois
Doação para entidades Pode ficar para depois
Extremamente
necessário
Viagens
Extremamente
necessário
Pode ficar para depois
54
Depoimento tomado em casa de K.M.C., no dia 24 de novembro, sobre o que seria importante conseguir
198
À guisa de conclusão das considerações de Santos e
Nascimento, ratificamos que só consideraremos a cultura e o cotidiano como
mediações por entendermos que neles se inserem todas as outras formas que
medeiam o processo de construção de sentido dos receptores frente às práticas
comunicacionais.
4.3 Cultura: definições e interpretações
Depois dessas abordagens de nível conceitual, ou melhor, depois
de investigarmos as hipóteses sobre o que é mediação, devemos concentrar
nossa análise nos tipos de mediações que passaremos a considerar como
espaço de produção de sentido. Dissemos anteriormente que para Martín-
Barbero as práticas culturais são as mais importantes delas e é a partir desse
ponto que conduziremos esta reflexão.
Em Comunicação a partir da cultura
55
, subtítulo de um dos
capítulos que compõem a obra Dos meios às mediações, Martín-Barbero tece
considerações importantes para a discussão a que nos propomos. Afirma o
autor que a verdade cultural dos países latino-americanos foi, durante muito
tempo, extremamente irrelevante aos estudos de comunicação; no lugar dela,
importavam mais as contribuições teóricas.
E como se delineavam, então, os parâmetros dos estudos de
comunicação na América Latina?
Duas etapas distintas, segundo o autor, marcaram essas
investigações. A primeira, em final dos anos 60, a que se atribuiu o nome de
ideologista porque trazia como objetivo a descoberta – e a denúncia – das
estratégias pelas quais a ideologia penetrava o processo de comunicação,
para a vida dela ser melhor.
55
MARTÍN-BARBERO, J. Comunicação a partir da cultura. Dos meios às ... Op. cit., p. 277.
199
provocando determinados efeitos.
“O resultado do amálgama de comunicacionismo e denúncia foi
a esquizofrenia traduzida numa concepção instrumentalista dos
meios de comunicação, concepção esta que os privou da
densidade cultural e materialidade institucional, convertendo-os
em meras ferramentas de ação ideológica”.
56
Nessa concepção, só importava a análise dos objetivos
econômicos e ideológicos dos meios para se chegar a entender o consumo; o
que é importante ressaltar, com isso, é que:
“Entre emissores-dominantes e receptores-dominados, nenhuma
sedução, nem resistência, só a passividade do consumo e a
alienação decifrada na imanência de uma mensagem-texto nunca
atravessada por conflitos e contradições, muito menos por
lutas”.
57
A partir de meados dos anos 70, outro quadro se anuncia no
cenário latino-americano ocupado, cada vez mais, pelos processos
comunicacionais. O modelo informacional começa a tomar lugar do
paradigma anterior. Segundo o autor, trata-se de um modelo que considera não
só a questão do sentido como também a do poder.
“Ao deixar de fora da análise as condições sociais de produção
de sentido, o modelo informacional elimina a análise das lutas
pela hegemonia, isto é, pelo discurso que ‘articula’ o sentido de
uma sociedade”.
58
Não só a limitação dos modelos provocou mudança dos
56
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 279.
57
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 279.
58
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 280.
200
paradigmas; os processos sociais por que passava a América Latina levou os
investigadores a outros objetos de estudo. A transnacionalização, cujo reflexo
incide, sobretudo, no campo das tecnologias da comunicação, alterou o
quadro das relações entre as classes e o das relações entre as etnias que fazem
da Nação um cenário de conflitos.
Esses conflitos ultrapassavam os limites das lutas entre classes
cujas diferenças, com o desenvolvimento, acentuavam-se. Trata-se, como
aponta Martín-Barbero, do problema da identidade que se inscreve no cenário
político do território latino-americano e fundamenta uma luta pela
democratização que se traduz, sobretudo, em um “projeto estreitamente
relacionado com a descoberta do popular” (grifo do autor)
59
.
Isso significou, na América Latina, uma valorização da cultura,
em outras palavras, assiste-se à formação de novos sujeitos - religiosos,
regionais, sexuais - novos conflitos, novas formas de resistência.
“(...) na redefinição da cultura, é fundamental a compreensão de
sua natureza comunicativa (grifo do autor). Isto é, seu caráter de
processo produtor de significações e não de mera circulação de
informações, no qual o receptor, portanto, não é simples
decodificador daquilo que o emissor depositou na mensagem,
mas também um produtor”.
60
É a partir dessas novas perspectivas que a cultura passa a ser o
espaço a partir do qual o sujeito produz o seu sentido.
Quais seriam as razões que teriam levado os estudiosos a
considerarem a cultura como instância mediadora na produção de sentido?
A hipótese que defendemos aqui está nas investigações que se
fizeram sobre as formas como as culturas populares passaram de
59
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 284.
60
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 287.
201
destinatários, de “espectadores obrigados a reproduzir o ciclo do capital e a
ideologia dos dominadores”
61
a produtores de bens culturais que conquistam
seu lugar na cena da sociedade moderna.
Não consideraremos as diferenças apontadas por García
Canclini nos usos do popular. Para esse autor, o termo traz acepções diferentes
de acordo com aquele que o define: o folclorista, os meios de comunicação, os
políticos. O que nos interessa relevar é que o espaço aberto para as
manifestações advindas de todas as classes sociais como formas legítimas de
cultura abre caminho para o reconhecimento de uma nova identidade para o
povo latino-americano. Essa constatação requer, dos estudos das ciências
sociais, novos instrumentos conceituais a partir dos quais poderia ser analisada
uma cultura reconhecidamente híbrida.
A noção de mediação cultural, portanto, sustenta-se no
obsoletismo escondido na tese da manipulação onipotente dos discursos das
classes dominantes; os paradigmas clássicos não bastam para explicar o
entrelaçamento das formas de poder que constroem a trama social.
“O incremento de processos de hibridação torna evidente que
captamos muito pouco do poder se só registramos os confrontos
e as ações verticais. O poder não funcionaria se fosse exercido
unicamente por burgueses sobre proletários, por brancos sobre
indígenas, por pais sobre filhos, pela mídia sobre os receptores.
Porque todas essas relações se entrelaçam (grifo do autor) umas
com as outras, cada uma consegue uma eficácia que sozinha
nunca alcançaria (...). O que lhes dá eficácia é a obliqüidade que
se estabelece na trama”.
62
61
GARCÍA CANCLINI, N. A encenação do popular. Culturas ... Op. cit., p.205.
62
GARCÍA CANCLINI, N. A encenação do popular. Culturas ... Op. cit., p.346.
202
4.4 O cotidiano: espaço da lógica na produção do sentido
Jesús Martín-Barbero, continuando sua reflexão sobre instâncias
mediadoras na produção de sentido, contrariando a posição de teóricos da
crítica socia, alerta sobre a importância do espaço doméstico como lugar de
“liberdade e iniciativa”
63
.
Esse mesmo tema é abordado por Bakhtin
64
que defende a idéia
de que é o meio social mais imediato determina a estrutura da enunciação.
Segundo o autor, a totalidade de toda atividade mental que se centra no meio
social mais imediato – o cotidiano – e a expressão que a esse meio se liga
devem ser chamadas de “ideologia do cotidiano”:
“A ideologia do cotidiano constitui o domínio da palavra interior
e exterior desordenada e não fixada num sistema, que
acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos
nossos estados de consciência”.
65
Nesse sentido, a cotidianidade – território em que se conhecem
as realidades sociais - passa a constituir-se como outra instância de mediação,
pois ela permitirá que se compreendam os diferentes modos como os sujeitos,
no seu espaço familiar, se apropriam ou não dos bens culturais trazidos, para o
interior de sua casa, pelos meios de comunicação de massa.
- (A.C.R.P.) Eu gosto mais da Xica da Silva.
66
- É sobre o quê?
Precipitação geral:
- É sobre antigamente.
- (F.S.) Os negros, Margaret. É novela de negro e branco.
63
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às ... Op. cit., p. 289.
64
BAKHTIN, M. A interação verbal. Marxismo e filosofia ... Op. cit., p.110.
65
BAKHTIN, M. A interação verbal. Marxismo e filosofia ... Op. cit., p.118.
66
Telenovela transmitida pela STB, a partir do dia 28 de março de 2005.
203
(...)
- (E.M.) Eu não acho nada boa essa novela Xica da Silva! Lá em
casa nós paramos de ver. Não presta pra nada.
- Por quê?
- (E. M.) Professora, só tem relação sexual.
- (A.C.R.P.) Aparece tudo. Homem pelado de costa, esfregando
na mulher. Pouca vergonha. Eu não gosto. Não traz nada de
bom. Minha família também é contra. Pra que isso? Pra que
mostrar assim descarado no meio da gente? Puxa, dá até pra
ficar sem graça.
- (E.M.)Traz experiência.
Gargalhadas.
- (E.M.) Traz a bunda dos homens pra fora, os peitos de mulher.
Pra que isso?
- (D.C.) A América ensina muita coisa e não precisa ficar mostrando
homem e mulher tendo relação sexual. Acho que isso não é bom.
Como mostram os depoimentos acima
67
, os jovens, no seu
espaço doméstico, com a mediação da família, que faz a leitura dos discursos
mediáticos com eles, atualizam a referência de García Canclini sobre o
poder.Ainda que na lógica do produtor da indústria cultural a erotização que
se impregna nas narrativas televisivas seja a forma a partir da qual se
consegue maior consumo de seus produtos, o sujeito-receptor, no seu espaço
doméstico, lê esse discurso com a censura que os valores morais familiares
ainda conseguem preservar.
Michel de Certeau – autor que se dedicou ao tema - aponta a
importância de se considerarem as práticas cotidianas dos sujeitos sociais para
se chegar à compreensão de suas “táticas de consumo”.
68
Segundo Certeau, essa nova investigação surge, exatamente, dos
trabalhos sobre cultura popular que passam a considerar, como já constatamos
anteriormente, a necessidade de localizar e legitimar as mais diferentes
67
Depoimentos tomados no “Glete de Alcântara”, em 15 de setembro de 2005.
68
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 1. Artes de ... Op. cit., p. 45.
204
expressões culturais que compõem o tecido social. Para ele, algumas
determinações possibilitaram a articulação dessas novas condutas teóricas.
A primeira determinação diz respeito ao uso – ou consumo – que
os grupos sociais fazem dos produtos divulgados pelos meios. Certeau fala,
aqui, da necessidade de se interrogar sobre uma forma especial de produção:
“(...) esta é astuciosa`, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se
insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se
faz notar com produtos próprios mas nas maneiras de empregar
(grifo do autor) os produtos impostos por uma ordem econômica
dominante”.
69
A segunda determinação a que se refere o autor diz respeito aos
modos de proceder da criatividade cotidiana, isto é, ele defende a idéia de que
é preciso que se descubra como os procedimentos populares se insubordinam
contra uma ordem social vigente, em outras palavras, é preciso que se
analisem as formas como, a partir do cotidiano, os grupos sociais consideram
as formas disciplinares não para se subordinarem a ela, mas para alterá-las.
Segundo Certeau, “esses modos de proceder e essas astúcias de consumidores
compõem, no limite, a rede de uma antidicisplina”.
70
A formalidade das práticas – terceira determinação que
viabilizou as investigações a partir do conceito de mediações
71
- propõe a
investigação de uma suposta lógica existente nas práticas cotidianas de
consumo. Nessa lógica, para Certeau, devem estar inseridas – e por isso
necessariamente investigadas – variantes bem distintas: prática de leitura,
69
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 1. Artes de ... Op. cit., p. 39.
70
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 1. Artes de ... Op. cit., p. 42.
71
Importante esclarecer que Michel de Certeau não emprega esse termo que vimos adotando da tradição dos
estudos de Martín-Barbero e de outros teóricos que se utilizam do mesmo conceito.
205
prática de espaços urbanos, rituais cotidianos etc
72
.
Segundo Michel de Certeau, só essas três determinações
possibilitam uma investigação legítima do campo cultural da marginalidade,
entendida, hoje, não como um pequeno grupo mas uma marginalidade de
massa que se tornou maioria, segundo o autor, “silenciosa” mas produtora de
uma cultura anônima embora expressiva.
Entendemos que essa massa silenciosa seja capaz de representar
uma cultura expressiva porque, como já citamos anteriormente, “a vida
cotidiana é a vida do homem inteiro (grifo da autora).
73
Para Agnes Heller, na sua cotidianidade, o homem coloca em
funcionamento todos os seus sentidos, suas habilidades, suas ideologias.
Entretanto, de acordo com a autora - que contraria a posição de outros teóricos
como Michel de Certeau, por exemplo - embora ativo e receptor, ativo e
fruidor, o homem, no cotidiano, não pode aguçar esses sentidos porque a vida
é heterogênea e hierárquica. Hierárquica porque ela se reparte na organização
do trabalho e da vida privada, os lazeres, o ócio, a vida social. A significação e
o conteúdo da cotidianidade, para Heller, é também hierárquica e ela se
transforma em função das diferentes estruturas econômico-sociais.
Henri Lefebvre, por sua vez, pensa na vida cotidiana – “vida
impossível de ser apreendida em sua finitude e sua infinidade”
74
– pela via
literária e pela filosófica. Na literária, o cotidiano entra em cena pelas
máscaras, pelos cenários, pelos estereótipos representados por atores. Todos
os recursos das mais variadas linguagens exprimirão suas misérias e suas
72
Tentamos nos servir, como mostrarão os gráficos registrados no anexo que acompanha este trabalho, de
dados que pudessem medir os hábitos de consumo dos respondentes e não unicamente as preferências
pontuais dos entrevistados, como costuma acontecer, segundo García Canclini (em GARCÍA CANCLINI, N.
La globalización imaginada. Buenos Aires: Piados, 2000, p. 28) na maior parte das pesquisas de recepção.
73
HELLER, ª O cotidiano e a ... Op. cit., p. 17.
74
LEFEBVRE, H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991, p .6.
206
riquezas, como afirma o autor.
Pelo caminho da filosofia, entender o cotidiano é reconhecer que
“o conceito de cotidianidade (grifo do autor) provém da filosofia e não pode
ser compreendido sem ela”
75
, embora, como Lefebvre mesmo determina, a
vida cotidiana se apresente como não-filosófica, pois, enquanto a filosofia
pretende-se completa, total, racional, o cotidiano revela-se trivial, banal.
Entretanto, é no cotidiano que achamos as necessidades mais completas e mais
verdadeiras do homem; sua produção, seus sonhos, sua passividade e sua
criatividade, suas paixões, características essas que só podem ser ditas pela
linguagem filosófica.
Esse sonho, essa criatividade vêm inscritos, em nossa opinião,
da situação que presenciamos, na última visita à casa de E.C.M., em 20 de
dezembro de 2005.
Em casa de Gervina, a emoção maior: no quintal, uma carroça
construída de forma improvisada. Era o veículo que estava servindo a
Hermínio para pegar papelão na rua e vender nas fábricas de papel reciclado.
Em tom humilde, mas com olhos de vivo entusiasmo, a jovem senhora
valoriza o esforço do marido:
-Coitado, doente, sem emprego, só fazendo um bico. Que é que
tem, né?
Em linhas gerais, Lefebvre declara que a vida cotidiana constitui
objeto não tradicional da filosofia, precisamente porque ela é não-filosófica,
porque ela desafia a filosofia, pois o cotidiano “oculta o misterioso e o
admirável que escapam aos sistemas elaborados”.
76
75
LEFEBVRE, H. A vida cotidiana no ... Op. cit., p. 19.
76
LEFEBVRE, H. A vida cotidiana no.... São Paulo: p. 23.
207
Indo além, Henri Lefebvre, analisando o que chama de
“sociedade terrorista”
77
afirma serem as sociedades de classe uma sociedade
repressiva que se manteve sempre pela persuasão e pela opressão. Para o
autor, o jogo complexo de opressões e resistências é que “preenche a história
da vida cotidiana”
78
.
Portanto é inexato e falso limitar a crítica da repressão seja às
condições econômicas (é um dos erros do economismo), seja à
análise das instituições ou das ideologias. Esses preconceitos
mascaram o estudo da cotidianidade, isto é, das pressões e
repressões que se exercem em todos os níveis, a todos os
instantes, sobre todos os planos, até mesmo a vida sexual e
afetiva, a vida privada e familiar, a infância, a adolescência, a
juventude, em resumo, o que aparentemente escapa à repressão
social, porque está próximo da espontaneidade e da natureza”.
79
Em considerações que apontaremos como conclusivas nesta
apresentação, registramos a posição que Lefebvre adota para caracterizar o
papel da cotidianidade na sociedade moderna: um sistema perfeito, o
principal produto da sociedade que se pretende organizada, isso porque se
trata de um sistema que auto-regula, um sistema em que o indivíduo, segundo
o autor, ao delinear suas necessidades, consegue contê-las, encurralando seus
desejos de acordo com suas possibilidades.
Essa referência está ilustrada na fala de Gervina
80
, mãe de
E.C.M., já registrada anteriormente:
- Antes nós não tínhamos nada (...) Agora eu vou na escola,
aprender a ler.
77
LEFEBVRE, H. A vida cotidiana no ... p. 154.
78
LEFEBVRE, H. A vida cotidiana no ... p. 156.
79
LEFEBVRE, H. A vida cotidiana no.... p. 156/157.
80
Depoimento de Gervina, gravado em sua casa, em 20 de outubro de 2005.
208
Ainda para ratificar a importância que se deve atribuir à
cotidianidade como instância de mediação na construção de sentido, voltamos
a Certeau que se refere ao espaço cotidiano como o espaço do indispensável, o
espaço reservado para o indivíduo cuidar de si, um “lugar do corpo e lugar de
vida”
81
.
O cotidiano é o espaço da memória, das chegadas e partidas, do
encontro com o eu; um espaço habitado por “heróis obscuros de que somos
devedores e aos quais nos assemelhamos.”
82
81
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 205.
82
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 2. Morar ... Op. cit., p. 32
209
Considerações finais
Sem pretendermos dar às considerações que aqui registramos
um caráter conclusivo – mesmo porque a complexidade e a atualidade do tema
não o permitiriam – retomamos, a seguir, alguns pontos de nosso trabalho que
refletem as idéias que fundamentaram nosso objeto de estudo.
Da análise feita sobre a sociedade global, destacamos os meios
de comunicação como instrumentos responsáveis por escancarar as
desigualdades sociais, anunciando, para as classes economicamente
desfavorecidas, um mundo ao qual elas não têm acesso; assim, ao mesmo
tempo em que a organização global promove um intercâmbio transnacional,
ela deixa cambaleante a certeza de se pertencer a uma nação de ideais comuns.
Nesse sentido, nas sociedades contemporâneas, a indústria
cultural é capaz de colaborar para a constituição do imaginário de todas as
classes sociais. Se, por um lado, ela democratiza o acesso que se tem à
informação, essa indústria, por outro lado, cria e acentua o saber que os jovens
das camadas periféricas têm sobre um outro mundo, um mundo que está muito
além de seu alcance.
Se os processos de globalização, então, encurtam distâncias e
rompem fronteiras, alimentados pelos meios de comunicação de massa, eles
acentuam as diferenças sociais.
Para compreender a complexidade inscrita nos dilemas próprios
das diferenças de classes, bastou que investigássemos a circulação e o
consumo culturais, pois entendemos - e nossas investigações de campo
permitiram confirmar - que o consumo dos bens culturais e simbólicos tem a
função de legitimar as diversidades. Se, de um lado, entretanto, a
democratização ao acesso da informação promove e acentua essas distinções,
210
por outro, ela funda uma sociedade com padrões de comportamento, com
gostos e hábitos significativamente homogêneos. Essa idéia, herdada dos
Estudos Culturais ingleses, que se atualizou claramente em nosso trabalho de
campo, corresponde à segunda constatação que aqui registramos: os meios de
comunicações constituem-se como instrumentos de relações interclasses.
A cultura de massa aproxima as classes dominantes das
expressões culturais próprias às classes populares e estas, por sua vez, obtêm,
a partir dessa mesma cultura de massa, informação necessária para entender
as novas regras sociais. A televisão, por exemplo, ao mesmo tempo em que
alimenta o discurso das classes hegemônicas, confere às classes pobres a
condição de sair do anonimato, do isolamento, ao promover sua música, seus
hábitos, suas danças, enfim, ao colocar na moda as culturas consideradas
subalternas.
Ao longo do presente trabalho, pudemos atualizar a concepção
que os Estudos Culturais conferem à cultura: trata-se de uma experiência
ordinária e está dada no modo de vida de cada grupo social; a cultura, enfim, é
de todos.
É nesse contexto, onde cabe o homem ordinário também como
protagonista na produção cultural, que pudemos entender e comprovar, por
meio de nossas pesquisas empíricas, uma nova arquitetura social e política que
rompe com velhas tradições consolidadas na concepção da alta e da baixa
cultura; trata-se da cultura entendida como modo de vida.
Uma terceira constatação, conquistada a partir de nossas
investigações, responde às questões e confirma as hipóteses com as quais
nasceu o presente trabalho: como se dá o processo crítico de recepção ativa?
Como as mensagens orientam e conduzem as práticas sociais de seus
receptores? A partir de que instâncias mediadoras os consumidores tecem um
211
sentido às mensagens da mídia?
As investigações mostraram que nem toda forma de consumo é
interiorização dos valores hegemônicos; as leituras dos bens simbólicos
oferecidos pela mídia chegam ao leitor a partir de duas instâncias de
mediação: o cotidiano e a cultura.
Mediados por seu contexto familiar e cultural, os jovens lêem o
mundo a partir de valores que essas instâncias defendem como legítimos.
Assim, pelas mediações, instauradas tanto no complexo
processo de trocas de capital cultural como no espaço da cotidianidade,
acontecem as táticas de consumo: o sujeito receptor resiste ou adere às
práticas discursivas promovidas pela mídia, colocando em funcionamento os
seus sentidos, os seus valores e os valores de seu grupo.
Conviver com os jovens alunos da escola pública e da escola
particular, com um capital cultural tão distinto, ensinou-nos a entender a
maneira como eles lêem e traduzem o espaço organizado pelas técnicas da
produção sociocultural, reapropriando-se dele, e mostrou-nos, também, as
formas como cada um conta a sua própria história, a partir de valores
enraizados pelas tradições familiares.
212
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1
COLETA DE DADOS
Ribeirão Preto, 11 de agosto de 2005.
(Um cheiro de nostalgia no ar):
Há exatos 27 anos, neste mesmo dia em que me preparo para dar corpo
a meu trabalho de doutorado, preparava-me, também, para o nascimento de
meu primeiro filho. As sensações são diversas, a emoção não é, com certeza a
mesma, mas uma razão oculta e íntima deve explicar por que, ao sentar-me
diante desta tela, eu tenha voltado a um período que marcava definitivamente
novos rumos na minha vida ...
Olhando, agora, para o desafio que me espera...
Nove horas, pontualmente, encontro-me com a colega de trabalho,
professora Leiva.Carvalho de Oliveira Faria, que prometera acompanhar-me à
escola em que desenvolveria minha pesquisa empírica.
Cabe explicar, antes de avançarmos no relatório desta primeira visita, a
razão pela qual escolhi esta escola:
Investiguei, junto a colegas de trabalho e amigos que ministram aulas
em Escolas Públicas, o perfil das escolas que eles conheceram, na sua
trajetória profissional, ou onde exerciam suas atividades docentes. A descrição
da professora Leiva encantou-me!
Ela começa seu testemunho dizendo-me que ela indicaria uma escola
que eu “deveria realmente escolher para minha pesquisa”. Com entusiasmo,
relatou-me que se tratava de uma escola em que ela realizara, há dois anos, um
trabalho que fora interrompido em função de remanejamento anual rotineiro
na vida de professores não efetivos na rede pública de ensino. Entretanto, ela
enfatizava, na sua explanação, o encantamento que a escola, o grupo de alunos
e de professores exerceram em sua carreira e em seus ideais. Uma escola,
segundo ela, onde “realmente as transformações ocorriam”, pois “em função
do empenho da direção da escola, Prof. Antônio Correa Lajes, os alunos já não
eram os mesmos, comparados à forma como mostravam ser ao ingressarem na
instituição”.
Contagiada pelo entusiasmo de Leiva, marcamos a primeira visita.
O bairro: Parque Ribeirão. Trata-se temido pelos moradores de Ribeirão
Preto, sobretudo os que residem nos condomínios de classe média e média
alta, localizados na zona sul da cidade, já que esse bairro avizinha-se a eles e
nele está o que todos conhecem como uma das maiores penitenciárias da
região: o que popularmente chamamos na cidade de “cadeião”.
O cenário com que deparei não me era estranho. Embora há tempos,
2
dediquei alguns – poucos – é certo, anos de minha vida profissional ao
trabalho em instituições públicas de ensino, além de ter desenvolvido, em
escolas estaduais, em fins de 2002, minha pesquisa de campo que compunha
minha dissertação de mestrado. Entretanto, avançando pela porta de entrada,
um misto de angústia, acanhamento, pena, vergonha se apossava de mim.
Um outro mundo, pelo qual sou responsável, para o qual nada faço...
Escola Estadual Profa. Glete de Alcântara.
A coordenadora pedagógica, Rita de Cássia Braz, recebeu-nos, a mim e
à Leiva, por estar ocupada, sugeriu-nos uma visita para que eu conhecesse o
local.
Em dois passos atravessamos a sala dos professores e ganhamos o pátio;
ali se um grupo de jovens – alunos de ensino fundamental e ensino médio – se
amontoavam em uma fila para serem servidos. A coordenadora havia nos
avisado de que eles estavam em festa: era dia do “cachorro quente”.
A presença de Leiva bastou para que uma nuvem de adolescentes,
meninas e alguns meninos, voassem para abraçá-la. Eles os faziam, ao mesmo
tempo que imploravam para que ela voltasse a lecionar naquela escola. Os
abraços, os beijos, os sorrisos largos e sinceros daqueles jovens fizeram-me
entender por que Leiva indicara-me aquela escola...
Ao afastarmo-nos do grupo para avançarmos em nossa incursão pela
escola, Leiva me alerta: “Esta escola, Margaret, é o último vagão, sobrou
muito pouco para ela”.
Ao mostrar-me as acomodações de uma das salas, Leiva justificou a
falta de vidros nos basculantes: “Os alunos do noturno quebram todos”. Diante
de sua disposição, relata-me ela, de comprar “de seu próprio bolso”, cortinas
para evitar o sol matutino no rosto dos alunos, alguns jovens aconselharam-na:
“Não faz isso, professora, os outros põem fogo”.
Leiva explica que a clientela do período noturno é outra. São jovens que
traficam drogas e fazem da escola o seu ponto de contato e de vendas. Não
pude evitar a emoção em ouvir Leiva, como olhos brilhantes, dizer:
- Margaret, esses meninos são os verdadeiros heróis da resistência.
Todos eles têm um parente na prisão: irmão, tio, pai ou mãe... Eles não têm
nada, mas resistem ao convite para o mau caminho. Não sei até quando. Por
isso os professores aqui lutam. Para eles, pelo menos, não irem para a rua.
Essa tarefa foi confirmada no relato da coordenadora Rita. A escola
trabalha com uma pedagogia de projetos. Trocaram os livros didáticos por um
modelo pedagógico em que caiba desenvolver aquilo de que a comunidade
escolar mais precisa. A idéia é que eles aprendam a sobreviver, de forma mais
humana, no cenário de que fazem parte. Um cenário inóspito e carente.
Depois de lamentar que alguns dos projetos, como o de montar uma
3
estação de rádio na escola não puderam ser concretizados em função da falta
de recursos financeiros, Rita levantou-se para as despedidas – o trabalho
exigia sua presença – ela confessa:
Aqui nós tiramos leite das pedras, mas nós temos o mais importante: o
aluno!
Sua voz era puro afeto...
Glete de Alcântara
18 de agosto de 2005
Às 9h30 fui recebida por professora Rita de Cássia. Estava de volta à
escola, desta vez, para o primeiro contato com os alunos. A intenção era
explicar meu trabalho, solicitar adesão deles e entregar-lhes a autorização que
deveriam obter dos pais a fim de que eu pudesse oferecer a eles, num segundo
momento, o questionário sobre consumo cultural já preparado.
Antes de dirigir-me à sala, Rita de Cássia apresentou-me Luís Kleber,
professor que desenvolveu o projeto sobre o Rádio (VER NOME DO
PROJETO). Por se tratar de uma investigação que vem ao encontro de nosso
campo de trabalho, julguei fundamental conhecer detalhes do trabalho de Luís
Kleber; com a autorização do professor, gravei sua explanação que me
esclareceu não só o desenvolvimento de seu projeto, mas ofereceu-me dados
que me esboçaram o que estava me esperando do outro lado do pátio, atrás das
portas das salas.
Entrevista com Luís Kleber
- Você pode se apresentar, falar um pouco deste projeto?
- Meu nome é Luís Kleber, sou professor da área de História, sou
formado pela Unesp de Franca e estou aqui nesta escola, neste bairro, há um
ano, mas não moro aqui.
- Você é efetivo?
- Sim.
- Fale-me de seu projeto. Por que um professor de História propõe-se a
trabalhar com rádio na escola?
- Bom, esse projeto, é sobre comunicação. Eu trabalhei em rádio
durante muito tempo, durante 10 anos. Aí eu resolvi trazer esse projeto pra cá.
Trabalhei com alunos das sétimas e oitavas e também com os alunos do
primeiro ano. Bom, primeiro eu trabalhei a história do rádio, a história do
rádio desde quando ele foi introduzido no Brasil até o início do rádio em
Ribeirão.
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- Esse projeto você desenvolveu em horário extracurricular ou você o
incorporou a seu currículo?
- A matéria que eu tinha que dar corria junto com o projeto. O programa
continua o mesmo.
- O projeto, então, não atrapalhou, vamos dizer, o conteúdo que você
havia programado?
- Não, até ajudou.
- Perfeito.
- Bom, eu, na verdade, dediquei-me mais à história do rádio de Ribeirão
Preto, isso eu incorporei ao programa de história do Brasil. Eu trabalhei,
inicialmente, com uma reportagem que havia saído no Jornal A Cidade
sobre rádios que trabalhavam com recursos via-satélite para desenvolverem
uma programação local. Nessa reportagem eles questionam o fato de as rádios
serem concessões públicas. A partir desse texto, eu fiz um trabalho de
pesquisa com eles, no próprio bairro, para descobrirmos o que está faltando na
programação de rádio em Ribeirão Preto.
- E como você distribuiu este trabalho?
- Cada aluno tinha que entrevistar pelo menos uma pessoa da família,
do bairro, vizinhos. E eles tinham que levantar os seguintes dados: Qual rádio
você ouve? Qual programação te atrai mais ? Qual programação está faltando
em Ribeirão Preto?
- E o que vocês conseguiram com isso?
- Bom, a primeira coisa é que deu para as crianças, os jovens verem a
importância do rádio, sobretudo eles aprenderam isso com os dados que os
avós deles passaram..
- Como foi a adesão dos meninos ao projeto?
- Total. Inclusive tenho os dados e o quadro de resultados.. Eles se
motivaram muito. Eu senti muito nesta pesquisa que realmente eles gostariam
de que as rádios atendessem a necessidade do bairro. Eles sentem falta de uma
programação local. As rádios piratas do bairro são evangélicas.
- A partir de sua vivência, o que você pôde depreender deste bairro?
Quais são as características do bairro?
- O bairro é o mundo deles. Raramente freqüentam os shoppings. O
bairro é uma coisa muito forte na vida deles. Ribeirão Preto é o Parque
Ribeirão. Eles pensam: ‘Nossa cultura é essa, não interessa o que acontece
com os outros e eles não querem que os outros se interessem por eles.Quando
vim trabalhar aqui, senti muita dificuldade em entrar e ser aceito pelos grupos.
Com o tempo, passei a conhecê-los melhor e aprendi a respeitá-los e a
entendê-los. Aqui, festa no final de semana, igreja, é tudo no bairro. Eles
criam o mundo deles, a cultura deles. A rádio Mega, pro exemplo, a mais
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ouvida aqui no bairro? Tem um programa Hip Hop que os jovens adoram.
- Com o você vê esse movimento Hip Hop?
- Bom, pra mim, o Hip Hop é um movimento cultural, não é só uma
música. Tem o puxador, o grafiteiro, o MP – que é o canto – e o DJ. O Hip
Hop eu considero um movimento que se estrutura em uma comunidade. Há
pessoas com seus papéis definidos.
- Kleber, vou entrar nas salas de aula, que conselhos você me dá?
- Eles são pessoas armadas psicologicamente. Não espere uma boa
recepção, inicialmente.
- Você acha os alunos violentos?
- Nós conseguimos muitas mudanças aqui dentro. Nós temos um grupo
envolvido. Os professores que propõem aulas diferentes conseguem algo.
Com meu projeto do rádio, por exemplo, eles se aproximaram de mim.
- Como é o nível socioeconômico dos alunos?
- Há muitos alunos que vêm aqui só para se alimentar, muitos!
E as famílias?
- As famílias são completamente desestruturadas, por isso a gente não
pode ser só professor, a gente tem que ser amigo. Há poucas semanas, tivemos
um caso de um aluno que foi preso por um tempo porque a polícia o pegou
com cocaína. Fui saber depois que a mãe dele é prostituta e o pai está preso.
Qual o futuro desse menino? Quando ele voltou pra escola, fui conversar com
ele e ele me disse que estava revoltado. Ele perguntou se eu achava que se
fosse um menino rico que tivesse sido pego cheirando coca, se ele também iria
pra Febem ou se ia desaparecer um tempo porque a família ia dar um jeito.
- A escola representa o que para esses meninos?
- Um ponto de apoio, aqui eles têm os amigos.
O término do intervalo foi anunciado com uma sirene que,
magicamente, silenciou o pátio que tínhamos do outro lado da sala da direção,
onde desenvolvera a conversa com Luís Kleber.
Acompanhada pelo diretor da escola – Professor Antônio Correa Lajes
-, dirigi-me à primeira sala com quem teria o meu primeiro contato: sétima
série B
Nessa sala estão inscritos 47 alunos, nesta manhã, entretanto,
apresentaram-se para a aula. Entrei na sala, acompanhada pela professora de
Ciências.
A comunicação com a classe só se tornou mais fácil já que ali se
encontravam algumas das garotas que me foram apresentadas pela ex-
professora delas: Leiva, com quem fiz minha primeira visita à escola (em
11/08). Explicada minha presença ali entre eles, passei a distribuir as
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autorizações que eles deveriam levar à casa para os devidos preenchimento e
assinatura.
Frustração... A adesão dos garotos foi mínima! Recusaram a sua
contribuição ao trabalho sob um olhar de displicência e desconfiança. As
palavras de Luís Kleber se fizeram coerentes.
Um pouco mais calorosa, alertou-me professora Noêmia, seria minha
recepção na sétima série A.
Realmente. Na sala ambiente – onde se dão as aulas de Ciências – os 43
alunos – do total de 47 – olharam-me mais curiosos do que desconfiados. Um
novo entusiasmo tomou o lugar da frustração. Os alunos que se recusaram a
aceitar a autorização foram poucos. Sei, entretanto, que o número de alunos
participantes só vou conhecer no dia em que voltar às classes.
Terminado o trabalho do período da manhã, despeço-me, solicitando
autorização para voltar no período da tarde para o mesmo trabalho com as
outras classes de sétima série. Ganho a rua, o portão se fecha atrás de mim. Lá
dentro jovens para os quais nada do que estou idealizando tem importância.
Além do bairro deles, da escola deles, a realidade deles, nada tem
importância... Nada existe ....
A recepção dos alunos do período da tarde não foi menos difícil.
Percorri três salas – sétimas C, D e E - , acompanhada por Rosângela: uma
forte e alta senhora.
Propositadamente escolhidas entre moradoras da comunidade, as
inspetoras de classe podiam, assim, conquistar – ou impor – respeito entre os
jovens alunos. Essa familiaridade permitia-lhe, como testemunhei, tratar, ora
afetuosa ora energicamente, os alunos por nome. Conhecendo-lhes a origem –
e os problemas, como ela mesma disse – era possível ajudar na organização da
escola com pulso firme e garganta afiada!
Salas mais vazias, mas não mais atenciosas. Embora todos tenham
aceitado receber o papel da autorização – talvez porque eu tenha,
intencionalmente, solicitado que um dos alunos o fizesse – roubar-lhes
minutos de atenção exigiu paciência e perseverança de minha parte.
Em meio a um barulho infernal, provocado pelos alunos que estavam
em aula de educação física, dada na quadra que se avizinhava à sala, ouvi de
uma das alunas, depois de minha explanação sobre o objetivo de minha
pesquisa:
- Que é que nós vamos ganhar com isso?
Como explicar que há, atrás dessa investigação, o ideal de uma escola
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melhor?
Embora tivesse tentado, a resposta da garota veio rápida:
- Não vale a pena ter uma escola melhor, os alunos não prestam... Não
ponha a mão no fogo não, professora.
Certeau traduz essa consciência:
“Partilho a convicção daqueles que consideram o descrédito da autoridade um
dos problemas essenciais postos por uma atmosfera social que se tornou
progressivamente irrespirável. Essa circulação anêmica, esse ar viciado,
muitos observadores os diagnosticaram na nossa situação.”
Entre as duas formas de inconsciência, como as qualifica Certeau: a que se
recusa encarar a falência social ou a que renuncia a buscar soluções, busco o
lado avesso: perceber as enfermidades e executar o trabalho.
Para essa garota, a confiança soçobrou, resta-nos tentar reinventar para
ela o possível, o crível.
Glete de Alcântara
25 de agosto de 2005
Chego à escola pontualmente: 8h50, como havia combinado com os
alunos.
Uma recepção fria. Os alunos mostraram-se indiferentes com minha
presença. Só se dispuseram a “reconhecer-me” quando os convidei a ir para a
biblioteca, para respondermos ao questionário.
Certa de que o que os seduziu foi “o diferente”, ou a possibilidade de
ficarem livres do mesmismo da rotina, alguns – um número bem menor do que
aquele que se havia apresentado à aula - acompanhou-me.
(Uma experiência que me chocou: ao acompanhar os alunos até a biblioteca,
toquei, amigavelmente, o ombro de uma das alunas. Ela, agressivamente,
repudiou meu gesto):
- Ô meu, que é que cê quer, meu?
Ao relatar, mais tarde, à vice-diretora – Rita de Cássia -ela riu e alertou-
me:
- Não toque nunca nos alunos, eles não admitem!
Distribuídos os questionários, dadas as explicações necessárias, o
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trabalho transcorreu com uma seriedade que eu mesma não esperava. Todos
respondiam com cuidado e com capricho.
Terminado o trabalho, marcamos encontro para a próxima quinta, para
uma “roda de literatura”. Iríamos falar e ler histórias.
Pressenti um clima de mais cortesia no ar...
Convidaram-me, até, a visitar, no período da tarde a visitar o “núcleo”.
Saí curiosa, comprometendo-me a estar na porta da escola às 2h30, em
ponto, para acompanhar as meninas ao núcleo. Os meninos continuavam
arredios.
Saí da escola deixando para trás um barulho ensurdecedor: alguém
adiantou:
Tá o maior rolo lá do outro lado do pátio, vai ter briga hoje.
O tom dado ao comentário era de anúncio de algo que fazia parte do
cenário de todos.
No período da tarde, a recepção foi mais fria, mas o grupo foi maior.
Um grande grupo de alunos dispôs-se a responder ao questionário: tudo era
melhor do que ficar em sala de aula, “copiando matéria”.
Glete de Alcântara
1o. de setembro de 2005
Cheguei pontualmente à escola, obedecendo ao compromisso com os
alunos, estabelecido na semana anterior.
Fui recebida com euforia por Rosana– inspetora de alunos – que me
brindou com a notícia de que as meninas haviam perguntado por mim.
A leitura do conto prometida para esta quinta foi substituída, por opção
dos alunos, por um vídeo de publicidades premiadas – que eu havia deixado
na “manga do colete”, caso a leitura não fosse lá muito sedutora. Apresentado
o vídeo sobre Violência (Gravar em DVD), conseguimos passar algum tempo
em sintonia.
Senti que os alunos me levavam a sério. Alguns me chamaram pelo
nome.
Apresentado o vídeo, conversamos:
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- O que é que vimos aqui?
- (F.G.S) É uma propaganda
- (D.C.M.C.) É engraçada.
- (E.C.) Não, no final não é engraçada.
Pediram-me que mostrasse mais uma vez o filme publicitário.
- E agora, o que acharam?
- (K.M.C.) A criança não pode nem se divertir.
- (E.P.M.) O pai não entende a criança.
-(D.S.) É propaganda para parar com a agressão.
Os semblantes dos alunos começam a tomar ares de seriedade.
- (F.R.M.A.) É contra a violência infantil.
- Isso é fato real?
- (Todos) É.
-Por quê?
- (D.C.M.C.) Porque isso acontece todo dia. Espancamento de criança.
- E você, C. O que você acha do filme, você não falou nada até agora.
- (C.E.G.) É chocante
- Eu mostrei isso para alguns professores e eles choraram, o que vocês acham?
- (C.E.G.) Eles tinham filhos?
- Tinham, quer dizer, acho que sim.
- (D.S.) Bom, talvez eles batam assim nos filhos e ficam com remorso.
- O que faz esse filme ser chocante e triste?
- (D.C.M.C.) Porque primeiro é desenho e a gente vê que é um menino de
verdade e aí a gente fica chocado. Enquanto é brinquedo, tudo bem. Mas, com
gente é diferente.
- (E.C.) Na hora do cigarro a gente começa a ficar assustado.
- (F.R.M.A.) A segunda vez que a gente viu dá pra ficar assustada.
- Os programas de televisão influenciam as pessoas a ficarem assim?
- (E.C.) Não, as pessoas bebem e já ficam violentas.Se bem que vendo na
televisão, ajuda bastante.
- (D.S.) Ajuda, sim. As pessoas vêem e ficam ainda mais nervosas, mais
violentas.
- (R.D.B.) Eu concordo, a televisão dá mais idéia.
- Qual a propaganda que vocês viram ultimamente?
- (D.S. ) De cartão de crédito.
- (R.R.B.) Do Boticário.
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- (Outros se calaram ou disseram que não se lembravam).
- Qual delas é a melhor?
- (C.E.G.) A da violênica.
Ao terminar o trabalho, alvoroço na entrada:
Policiais, jornalistas.
Suspeitava-se de que um aluno do período noturno havia sido baleado
na escola.
Havia um clima tenso entre os alunos e entre os professores...
O período da tarde foi dedicado a visitas:
Enquanto as garotas enfeitavam-se para sairmos, um “dedo de prosa”
com Rita, avó de Franciele.
A avó estava na sala de visitas, televisão ligada: Laços de família (Vale
a pena ver de novo). Meio da tarde.
- Rita, posso sentar-me um pouco com você, enquanto espero as
meninas?
- Pode, estou vendo novela.
- O que é que você está vendo?
- Laços de família.
- Você acha boa essa novela.
- Ah é, já vi antes, estou vendo de novo, quando tenho uma folguinha,
sabe como é...
- Que cena é essa?
- Ah, é a menina que está doente.
- A gente torce por ela. Parece a vida real.Dá até vontade de chorar...
Durante os anúncios publicitários, Rita fala da família:
- São cinco netos. Ela (refere-se à Franciele) dá mais trabalho.
Você acha que é a televisão que dá mau exemplo?
- Não, é ela mesma. É a temperatura
dela mesma.
- Os pais dela moram com você?
- Não. O pai é viciado em droga. Ele vem aqui de vez em quando. Mas
não pode ajudar, coitado. Mas as crianças têm verdadeira adoração pelo pai.
E a mãe? É a mãe que é sua filha?
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- É. Mas ela também não tem cabeça, não tem juízo.
- A despesa da casa fica por sua conta?
- Não, eu não posso trabalhar. Cuido deles e ainda cuido desse aí
(referindo-se a um bebê no carrinho, dormindo, ao canto da sala).
- É seu neto também?
- Não, é filho da vizinha. Ela trabalha fora e eu ajudo a olhar o filho.
Uma mão lava a outra, né?
- Seu marido trabalha?
- Não, ele é doente. É diabético. Quem trabalha é minha filha mais
velha. Se não, não dá, né? Eu sou aposentada Trabalhava na casa de um
médico.
Meninas prontas, saímos, com a autorização da avó preocupada.
Responsabilizei-me em trazê-la de volta.
A caminha da casa de Karina Marques de Castro, para pedir autorização
do pai a fim de irmos ao núcleo de convivência das meninas, Karina, ao
entrar no carro, na frente, para ser notada pelos vizinhos, manifesta-se:
- (K.M.C.) Eu queria ter um carro desse. É caro, né?
- É, mas você não acha que pode conseguir ter um desse?
- (K.M.C.) Acho, se eu trabalhar bastante eu posso.
Na casa de K., com o recebimento mais reservado, a conversa durou
enquanto as meninas se punham arrumadas para a ocasião.
Sr.José Umberto, vim pedir autorização para que K. me acompanhe a
algumas visitas no Núcleo de convivência.
- Tudo bem, ela volta com a senhora?
- Sim, pode ficar tranqüilo. A gente não pode facilitar com as filhas, não
é, José Umberto – vou tratá-lo por você - ?
- É filha-mulher é perigoso.
- Faz tempo que vocês moram aqui?
- Quase quatorze anos.
- Você gosta deste bairro?
- Eu gosto de morar aqui. As pessoas são da paz. Pelo menos no meu
pedaço de rua. Ninguém mexe comigo. O lado de lá não sei. Eles têm a vida
deles, não me interessa nem saber. Acho que é gente diferente da gente. Levo
minha vida, não gosto de sair, nem vou pros bares. Minha mulher vai. Eu sou
sossegado.
A primeira parada foi no núcleo “São Francisco de Assis”, órgão
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mantido pela Igreja católica e dirigida por religiosos.
Segundo a coordenadora Priscila, que nos recebeu e nos mostrou as
instalações do local, os meninos e meninas que lá estão eram selecionados de
acordo com a necessidade, ou seja, levavam-se em conta a precariedade das
condições socioeconômicas ou os perigos que corriam em função do
envolvimento dos pais com gangues, com drogas ou com violência.
- O que eles fazem aquí?
- Aprendem artesanato, brincam, convivem de forma saudável com os
amigos. E não têm preocupação.
Muito tímidos, os jovens e crianças evitaram o diálogo. Mergulhados
em seus afazeres, nem os flashes máquina os distraíam.
No Cesomar – centro de convívio mantido também por religiosos
- Irmãos Maristas – fotos dos jovens não são permitidas. De acordo com
Tadeu, jovem seminarista que nos acompanhou durante visita às instalações,
“há pais jurados de morte” e as crianças ali deveriam ficar resguardadas e
longe dos olhares mais curiosos.
- Tadeu, as crianças gostam daqui?
- É aqui que eles se sentem felizes. Na rotina deles: jogando capoeira,
brincando, fazendo ginástica, ouvindo músicas, mas também aprendendo um
ofício. É o trabalho deles, é o lugar que dá sentido pra vida desses meninos e
meninas. Com os amigos, aqui, eles não precisam pensar na miséria lá fora.
Parque Ribeirão Preto – Visita aos núcleos de convivência
08 de setembro de 2005.
Apesar de ter combinado com os alunos uma trégua para nosso trabalho
(comprometi-me com o coordenador geral da Cesomar uma segunda visita
para uma entrevista – que não aconteceu, pois ele não compareceu), resolvi
passar pela escola para ver os alunos e marcar minha presença. Temi que uma
semana sem vê-los poderia “esfriar” nosso relacionamento que começava a se
estreitar.
Passeie pelo pátio e ouvi, com muita alegria – e surpresa, confesso – as
meninas notarem minha presença:
- Olha a Margaret!
Assisti a uma partida de vôlei das garotas da sétima (ao final vieram me
cumprimentar – para o meu espanto – com beijinhos e abraços calorosos!),
passei pelas classes, tomei café com professores que, entre desconfiados e
solidários, cumprimentavam-me com um meio sorriso, conversei com Rosana
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que me alertou, quando externei minha euforia diante de uma recepção tão
calorosa:
- Cuidado, elas são cheias de segundas intenções...!
É preciso levar a sério Rosângela!
Mais do que todos, ela é respeitada pelos alunos.
Entre séria, ríspida, grosseira, amiga e mãe, leva a escola nas costas.
Seu andar gordo e rápido, consegue levá-la a todos os cantos – até mesmo ao
banheiro dos homens – tomando conta dos garotos e garotas.
Vale a pena vê-la!
- Você é a pessoa que eles mais respeitam aqui, não é Rô? (O apelido
foi permitido depois da minha segunda visita).
-É, mas eu tenho medo disso. O dia que eu não agüentar, o que vai ser
desses meninos? A outra funcionária se mandou.
- Agora só tem você?
- Trabalhar aqui é um ato de caridade: ganho um salário pra tocar isso,
mas se não sou eu, como vai ser? Sou sozinha, não tenho esposo. Tenho 4
filhos. A mais velha tem 19, já é mamãe, mas mora comigo. O segundo, com
18 tem um leve atraso. O quinto eu adotei, tem HIV. Ele é adotivo mas é meu.
Sai daqui e vou guardar carro na 9 de julho.Tenho que sustentar meus filhos.
Envergonho-me de achar a vida dura!
Ganhando a rua, ouço a professora apelando para Rosângela:
- Rosângela, que é que eu faço com esse aluno malcriado?
- Me manda por sedex pra minha casa. Lá sempre cabe mais um.
Boa mulher. Mundo injusto!
Glete de Alcântara
15 de setembro de 2005
Chego à escola com a parafernália preparada na véspera: retroprojetor,
aparelho de som, cd, transparências, gravador, máquina fotográfica. Os alunos
correm pra me receber. Curiosos. Mexem em tudo, sem cerimônia. Pode ser
sinal de familiaridade.
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Trata-se de um RAP “Estudo Errado”, de Gabriel, o Pensador (letra a
seguir): pré-texto pretexto para desencadear uma conversa.
Estudo Errado
Gabriel, o Pensador
Eu tô aqui pra quê?
Será que é pra aprender?
Ou ser
que é pra aceitar, me acomodar e obedecer?
Tô tentando passar de ano pro meu pai não me bater
Sem recreio de saco cheio porque eu não fiz o dever
A professora já tá de marcação porque sempre me pega
Disfar
ando espiando colando toda prova dos colegas
E ela esfrega na minha cara um zero bem redondo
E quando chega o boletim lá em casa eu me escondo
Eu quero jogar botão, vídeo-game, bola de gude
Mas meus pais só querem que eu "vá pra aula!" e "estude!"
Então dessa vez eu vou estudar até decorar cumpádi
Pra me dar bem e minha mãe deixar ficar acordado até mais tarde
Ou quem sabe aumentar minha mesada
Pra eu comprar mais revistinha (do Cascão?)
Não. De mulher pelada
A diversão é limitada e o meu pai não tem tempo pra nada
E a entrada no cinema é censurada (vai pra casa pirralhada!)
A rua
perigosa então eu vejo televisão (Tá lá mais um corpo estendido no chão)
Na hora do jornal eu desligo porque eu nem sei nem o que é inflação
Ué não te ensinaram? - Não.
A maioria das matérias que eles dão eu acho inútil
Em vão, pouco interessantes, eu fico pu..
Tô cansado de estudar, de madrugar, que sacrilégio (Vai pro colégio!!) Então
eu fui relendo tudo até a prova começar
Voltei louco pra contar: Manhê! Tirei um dez na prova
Me dei bem tirei um cem e eu quero ver quem me reprova
Decorei toda lição
Não errei nenhuma questão
Não aprendi nada de bom
Mas tirei dez (boa filhão!)
Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci
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Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi
Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci
Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi
Decoreba: esse é o método de ensino
Eles me tratam como ameba e assim eu num raciocino
Não aprendo as causas e conseqüências só decoro os fatos
Desse jeito até história fica chato
Mas os velhos me disseram que o "porque" é o segredo
Então quando eu num entendo nada, eu levanto o dedo
Porque eu quero usar a mente pra ficar inteligente
Eu sei que ainda num sou gente grande, mas eu já sou gente
E sei que o estudo é uma coisa boa
O problema é que sem motivação a gente enjoa
O sistema bota um monte de abobrinha no programa
Mas pra aprender a ser um ingonorante (...)
Ah, um ignorante, por mim eu nem saía da minha cama (Ah, deixa eu dormir)
Eu gosto dos professores e eu preciso de um mestre
Mas eu prefiro que eles me ensinem alguma coisa que preste
O que
corrupção?
Pra que serve um deputado?
Não me diga que o Brasil foi descoberto por acaso!
Ou que a minhoca é hermafrodita
Ou sobre a tênia solitária
Não me faça decorar as capitanias hereditárias!! (...)
Vamos fugir dessa jaula!
"Hoje eu tô feliz" (matou o presidente?)
Não. A aula Matei a aula porque num dava
Eu não agüentava mais
E fui escutar o Pensador escondido dos meus pais
Mas se eles fossem da minha idade eles entenderiam (Esse num é o valor que
um aluno merecia!)
Iiih... Sujô (Hein?) O inspetor! (Acabou a farra, já pra sala do coordenador!)
Achei que ia ser suspenso mas era só pra conversar
E me disseram que a escola era meu segundo lar
E é verdade, eu aprendo muita coisa realmente
Faço amigos, conheço gente, mas não quero estudar pra sempre!
Então eu vou passar de ano
Não tenho outra saída
Mas o ideal é que a escola me prepare pra vida
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Discutindo e ensinando os problemas atuais
E não me dando as mesmas aulas que eles deram pros meus pais
Com matérias das quais eles não lembram mais nada
E quando eu tiro dez é sempre a mesma palhaçada
Encarem as crianças com mais seriedade
Pois na escola é onde formamos nossa personalidade
Vocês tratam a educação como um negócio onde a ganância a exploração e a
indiferença são sócios
Quem devia lucrar só é prejudicado
Assim cês vão criar uma geração de revoltados
Tá tudo errado e eu já tou de saco cheio
Agora me dá minha bola e deixa eu ir embora pro recreio...."
Na biblioteca, as mesas retangulares juntas serviram para a nossa “mesa
redonda”.
- Que música é essa, Margaret?
- É um RAP, vocês gostam?
- (Todos) Gostamos!
- O que é mais legal no RAP: a melodia ou a letra?
-(D.S.) A melodia.
-(E.M.) Não, eu acho a letra.
A maioria apóia a opinião da colega:
-(Todos) A letra é muito mais legal.
- Por quê?
- (E.M.) Porque fala da periferia.
- E o que é periferia?
- (E.C.) É nós [sic].
- Como assim?
- (B. A.) Nós, professora, aqui, os pobres.
- (D.S.) Periferia é o que fala nos RAP: é crime, é droga, é ladrão. Isso
tudo tem aqui.
- (A.C.R.P.) Pobreza, Margaret.
- Pobreza?
- (D.C.) É. Casa de Cohab
- Pouco dinheiro.
- (E. M.) Eu gosto de ser pobre, eu não queria ser rica.
- Por que não?
- (E.M.) Porque o pobre é mais livre, pode fazer mais coisa.
- Como assim?
- (E.M.) Sei lá. Já vi em novela, gente rica é diferente. Minha mãe
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também trabalhou pra uma família rica. A gente sabe. Eles têm medo de tudo.
E quero continuar a ser pobre, porque eu posso fazer o que eu quero da minha
vida.
- Fazer de tudo como?
- Eu posso ir no Marmita.
Todos gargalham e gritam:
- ( E.M) É isso aí.
- O que é o Marmita?
-(E. M.) Eu vou falar, gente! É assim, Margaret: é um campo de futebol
e depois que tem jogo, eles põem diversos pontos de música. Pagode, RAP.
- E aí, o que vocês fazem lá?
- (E.M.) A gente dança. Se diverte. Paquera.
Gargalhadas.
-(E.M.) Fuma maconha, né?
Vaia.
- Tem droga lá?
- (D. A . R.)Tem de tudo. De vez em quando sai briga.
- (F.S.) Porque o povo bebe e perde a cabeça.
- (A.C. R. P.) Por isso que meu pai não me deixa ir lá.
- (F. S.) Minha mãe vai comigo, sozinha ela não deixa.
- Eles vendem bebida alcoólica lá?
-(Todos) Lógico!
- Mas vocês são menores!
- (E. M. S.) Ninguém tá nem aí! Do lado tem uma casa e a mulher abre
a garagem e vende bebida lá.
- (E. M. ) Às vezes baixa polícia, mas não tem problema não. Comigo
nunca aconteceu nada.
- Só no Marmita tem esse tipo de festa?
- (E.C.)Aqui na escola também teve.
- Aqui!?
- (E.C.) É. A gente pagava pra entrar. Tinha bebida pra vender.
- (F. S.) Bebida e outras coisas mais...
Gargalhadas.
-Mas ... na escola!?
-(G.V.S) Ele disseram que era pra fazer a quadra.
Risadas.
- (G.V.S.- Irônica) Tá vendo a quadra bonita que eles fizeram?
Gargalhadas.
- Vamos lá, pessoal. Que tal ouvirmos a música?
A música ouvida, retomamos a conversa.
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-Olhem os primeiros versos da música, pessoal.
“Eu tô aqui pra quê?
Será que é pra aprender?
Ou será que é pra aceitar, me acomodar e obedecer?”
- Por que vocês estão na escola?
- (K.M.C) Eu estou aqui porque eu quero ser veterinária.
- E você estuda bastante para conseguir se preparar para entrar na
faculdade.
- (K.M.C.) Às vezes.
Gargalhadas.
- (E.M.) Nós não estudamos porque a escola não está ensinando nada.
- Como assim?
- (E.M.) Essa escola aqui é horrível, tem muita gente na sala. Na nossa,
tem 46 alunos. Eles não querem saber de nada. Querem bagunçar, tem até
maconheiro.
- (Todos) É isso mesmo.
- Vocês têm acesso à internet, aqui na escola?
- (D.A.R.) Ih, professora, eu nem sei como é esse negócio ...
- (A.C.R.P.)A comida também é horrível. Tem cada pelota preta no
feijão que ninguém merece.
- (F. A.) É, até cabelo eu já encontrei na comida.
Concordância do grupo:
- (K.M.C.) Eu também!
- O que falta pra escola ser boa?
-(D.A.R)Tudo. Professor que dá aula boa. Uma quadra. Tá tudo
quebrado. Os alunos não respeitam.
- Os professores não são bons?
-(E.L.) Alguns são. Mas a professora de matemática, por exemplo,
ensina uma coisa e nem pergunta se a gente entendeu. Já passa pra outro
ponto.
- (F.A.) É mesmo, eu, por exemplo, não aprendi nada de porcentagem,
eu não consegui entender a explicação e ficou por isso mesmo.
- E você não pediu que ela explicasse de novo?
- (F.A.) Não adianta. Os professores falam que a gente não entende
porque a sala tá bagunçada e ferra a gente..
- Porcentagem não é uma coisa que vocês precisam saber?
- (E.C) Lógico, isso é pra toda vida!
- (F.A.) Sei lá, é importante pra nós. .
19
- E os outros que não falaram, pra vocês a escola é importante pro
futuro?
A resposta veio em uníssono:
- Éééé ...
- (A C.R.P) Mas só se ela for boa.
- E que planos vocês têm pro futuro?
- Essa pergunta os embaraça. Algumas meninas manifestaram-se:
- (K.M.C.) Eu quero ser jogadora de vôlei , se eu não conseguir ser
veterinária.
- (E.M). Eu também.
Gargalhadas.
- (E.M.S.) Que mané jogadora de vôlei, você é baixinha.
-(E.M.) Então eu quero ser professora de Educação Física .
- (B.A.) Eu também.
Melhorar de vida, ganhar seu próprio dinheiro, poder “ter as coisas”
foram as respostas dos outros jovens.
- Vamos voltar à letra da música, pessoal. Tem uma parte aqui que acho
interessante:
“A rua é perigosa então eu vejo televisão.
(Tá lá mais um corpo estendido no chão)”.
-(E. M. S.) É isso aí.
- Vocês concordam?
- (E. C.) Lógico. Não dá pra sair sempre.
- Porque é perigoso?
- (E.C.) Não, é porque não tem dinheiro.
- (F. S.) Mas é perigoso também.
- ( G.V.S.) Lá em casa não tem televisão.
Vaias. Risadas.
- Não?
- (E. M.) Ela é evangélica, professora.
-(Q.C. C. N.) Lá em casa a gente também é.. Minha família é
evangélica, mas meu pai deixa ver televisão.
- (E.C.) O que você faz em casa sem televisão?
- (G. V. S.) Ouço rádio.
- (D. S.) Rádio pode ter?
- (G.V.S.) Pode.
20
- Que programa vocês ouvem?
- (G.V.S) Só a palavra do senhor e música da igreja.
Risadas.
-(E. M.) Eu gosto de novela.
Risadas.
- (E. M.) Que que é, gente. Todo mundo assiste!
As garotas concordam. Os meninos vaiam.
- A que novela vocês estão assistindo?
A maioria grita:
- América.
- Ela é boa?
- (Q.C.C.N.) É muito boa!
- O que você aprende com ela?
- (F.A.) Que a gente não pode tentar ir pros Estados Unidos pela
fronteira do México!
Gargalhadas.
- (F.S.) Não é só isso, a gente aprende como é a vida. As pessoas que só
fazem o mal, por exemplo, se dão mal no fim. Isso mostra como a gente tem
que ser na vida. A novela dá exemplo.
- (A.C.R.P.) Eu gosto mais da Xica da Silva.
- É sobre o quê?
Precipitação geral:
- É sobre antigamente.
-(F.S.) Os negros, Margaret. É novela de negro e branco.
- (Q.C.C.N.) É quando eles brigavam.
- É uma história real?
Alguns adiantaram-se
- Nãããão.
- (A.C.R.P.) Lógico que é, gente. É sobre a escravidão. Já aconteceu
aqui no Brasil.
- Puxa, então é uma verdadeira aula de História!
A resposta veio rápida do garoto mais quieto, para nosso espanto:
(E. M. S.) Tem nada a ver, professora.
- (E.M.) Eu não acho nada boa essa novela Xica da Silva! Lá em casa
nós paramos de ver. Não presta pra nada.
- Por quê?
- (E. M.) Professora, só tem relação sexual.
- (A.C.R.P.) Aparece tudo. Homem pelado de costa, esfregando na
mulher. Pouca vergonha. Eu não gosto. Não traz nada de bom. Minha família
também é contra. Pra que isso? Pra que mostrar assim descarado no meio da
21
gente? Puxa, dá até pra ficar sem graça.
- (E.M.)Traz experiência.
Gargalhadas.
-(E.M.) Traz a bunda dos homens pra fora, os peitos de mulher. Pra
que isso?
-(D.C.) A América ensina muita coisa e não precisa ficar mostrando
homem e mulher tendo relação sexual. Acho que isso não é bom.
A maioria acaba concordando.
- Pessoal, há um outro verso aqui que eu quero rever com vocês e fazer
uma última pergunta, nossa hora já está esgotando, vocês precisam voltar pra
aula.
Reclamação geral.
- Olhem lá.
“Hoje eu tô feliz”
- E vocês, como estão?
Muitos dos alunos concordaram com a resposta de K.M.C.
- Eu sou feliz porque eu tenho tudo! Meus amigos, minha família. Tudo.
- (D.C).Eu sou feliz porque eu tenho mais coisas hoje; meus pais
viveram na roça, em Minas. Não tinha água encanada. Agora eu tenho tudo,
melhor que eles. Hoje eu sou uma pessoa urbana.
Q.C.C.N. arrematou:
- Vocês esqueceram uma coisa: Deus. Deus é tudo, depois tem que vir a
família e depois os amigos. Sem Deus no coração a gente não pode ter tudo.
Todos aplaudiram.
Quando me levantei para as despedidas, D. S. , afetuosa, indaga:
- E você, professora, você é feliz?
Senti sinceridade na pergunta, senti que terminara aquela manhã,
conquistando um pouco mais a confiança daqueles jovens.
Liceu Albert Sabin
21 de setembro de 2005.
Na biblioteca, toda a mesma parafernália já organizada.
A proposta: “Estudo errado”- Gabriel, o Pensador.
22
7a. B – Uma classe bastante tímida. As meninas, quase mudas. Dos
meninos foi possível “tirar” algo, embora o constrangimento em falar, para
mim, da escola foi, inicialmente grande.
-Pessoal, tenho aqui uma música e gostaria de que nós a ouvíssemos
juntos. Em seguida, vou pedir a vocês que observem, comigo, alguns trechos
que me parecem interessantes. Vamos lá?
Ouvimos o RAP – o mesmo que analisamos no Glete – e, a partir daí, as
questões:
- E aí, pessoal. O que é que vocês acharam?
- (L.S.) Música engraçada. Fala que não aprende nada, que ele decorou.
Que a escola não serve pra nada.
- E pra você, a escola serve?
(L.S.) Serve e não serve.
Explique melhor isso.
- (L.S.) Tem coisa que não serve pra nada. Geometria, por exemplo.
- (M.S.M.) Eu explico! Tem profissão que não exige, por exemplo, a
Geometria. Tem matéria que você nem vai usar no futuro.
- Como é que você vai saber o que vai fazer no futuro? E se você
escolher uma profissão que exija de você o conhecimento de geometria, por
exemplo?
Silêncio.
- (M.S.M.) É .... .
- Que tipo de música é essa, pessoal?
- (L.S.) RAP.
- O que é um RAP?
- (M.S.M.) É uma letra mais falada do que cantada. É sobre um
problema do país, algum problema existente.
A escola é um problema do país?
(O. B.) Mais ou menos. É que ela é chata.
- Chata?
- (O. B.) É, um pouco chata.
- (M.S.M.) Eu acho que essa música fala do problema da escola pública,
onde os professores não ensinam nada. Aí ele vai ficando de saco cheio e nem
quer ir à escola.
- E vocês, meninas, o que vocês acham do RAP?
- (T.F.B.L.) Eu não entendo nada de RAP.
- (T. L.C.) Nem eu.
23
- Quem poderia falar mais um pouco desse tipo de música para as
garotas conheceram-na melhor?
- (P.M.L.) É uma música que fala dos problemas de uma sociedade na
qual as pessoas vivem.
- Vocês ouvem esse tipo de música, entre vocês?
- (M.B.V.) Entre a gente não.
- Quem ouve, então?
- (M.B.V.) Quem sofre esses problemas.
- (R.S.) A gente não sofre, são as pessoas da escola pública porque eles
não gostam de ir à escola e a mãe obriga.
- Onde fica a escola pública?
- (E.A.P.) Nos lugares onde há menos condição.
- (L.M.) Nos lugares mais pobres.
- Vocês já visitaram alguma escola pública?
- (Todos) Não.
- Quer dizer que os problemas desse RAP não atingem vocês?
- (T.F.B.L) Atingem. Eu não gosto de estudar e eu decoro tudo pra
passar de ano.
- Bom, pessoal. Eu gostaria de concentrar nossa atenção no trecho que
está aqui. Olhem bem: “A rua é perigosa, então eu vejo televisão”. Quem quer
falar um pouco sobre isso?
- (N.S.) Acho que ele fala que a rua tem muita violência e ele prefere
ficam em casa, porque é mais seguro.
- (F.M.) Acho que esse negócio de violência não atinge só quem é da
favela, esse povo mais pobre. Atinge todo mundo. Até, tipo assim, quem está
lá, vem aqui pra roubar, pra assaltar. Hoje em dia tem até seqüestro. As
pessoas ficam em casa de medo de ser assaltadas.
- (L.H.) A gente vê mais televisão pra fugir da rua.
- (O.B.) As tragédias, a violência, todo esse tipo de coisa a gente vê na
televisão. É que nem está falando aí em seguida, na música: “Um corpo
estendido no chão”. Tudo o que a gente está podendo ver na rua passa na
televisão. Isso é mais um motivo pra pessoa não sair e ficar exposto.
- O mundo hoje está violento, vocês pensam que, no futuro, ele será
melhor?
- (M.S.M.) A escola é chata, o mundo está violento, mas a gente vai ter
que enfrentar alguma coisa pra ter um futuro, por isso a gente tem que tirar
boas notas pra ter um futuro melhor.
- Vocês têm planos para o futuro?
Silêncio.
- Ninguém?
24
- (M.S.M.) Vou fazer alguma coisa que eu possa fazer de melhor. Mas
eu não sei ainda.
- (R.S.) Eu não sei.
- Vocês acreditam num futuro melhor?
- (L.H.) Eu acredito que eu possa melhorar, que o mundo possa
melhorar.
- O que você faria pra melhorar o mundo?
- (L.H.) Ajudar o próximo. Não fazer mal, não roubar.
- Na letra da música, há um momento em que o “cara” se diz feliz.
- Vocês são felizes?
- (R.S) Eu sou feliz.
- Por que, Rodrigo.
- (R.S) Porque sim.
- (M.B.V.) Eu sou feliz porque tenho uma boa família, uma boa escola,
uma boa educação.
- (E.A.P.) Eu sou feliz mesmo não gostando muito da escola, eu gosto
de poder freqüentar uma escola boa. Lá em casa também acontecem coisas
boas.
- Por exemplo....
- (E.A.P.) Não sei ... tudo.... sei lá. Ah, quando está todo mundo
reunido. A gente tá protegido com a família.
- (P.M.L.) Eu sou feliz porque não tenho nenhum problema. Tenho uma
boa família, sem problema. Tudo o que eu quero eu faço certo. Isso basta para
eu ser feliz.
- (L.S.) Lógico, ele só tira nota boa!
- (P.M.L.) Não é só isso.
- (L.S.) Você só tira dez e nem valoriza isso.
- (P.M.L.) Valorizo sim.
- (L.S.) Nossa, quando eu consigo tirar um seis, eu dou pulos de alegria.
- Que tipo de problema pode ter um jovem na idade de vocês?
- (P.M.L.) Depende de onde ele mora, ele pode ter problema com
violência, com droga.
- Isso está muito longe de vocês?
- (Muitos) Nãããão.
- (P.M.L.) Não, não está muito longe de nós, mas está mais perto de
outros.
- (M.S.M.) Eu sou feliz porque não acontece nada de ruim pra mim. Eu
nasci num lugar diferente de muitas pessoas. A gente volta pra casa, tem
comida na mesa, tem alguém pra gente conversar, ficar junto. Aí tem a escola.
Mesmo a gente não gostando de estudar e ela sendo chata, a gente vem pra cá
25
e é legal. Muitas vezes minha mãe está chapada comigo e aí eu venho pra cá e
não tem ninguém pra ficar brigando.
- O que é “chapada”?
Risadas.
- (M.S.M.) Ah... nervosa!
Engraçado, essa gíria parece-me que ouvi na escola pública. É um
mundo que vocês não conhecem, mas, às vezes, a maneira de vocês falarem é
muito semelhante.
- (M.S.M.) Ah, mesmo essas pessoas morando no subúrbio ou não e a
gente sendo diferente deles, todo mundo é jovem, então, todo mundo tem um
mesmo palavreado.
- A que você atribui essa homogeneidade de “palavreado”?
- (M.S.M.) Defina “homogeneidade”.
- Igualdade.
- (M.S.M.) Ah, tá. Bom, não sei.
- (Grito de alguns dos jovens). É a televisão.
- (M.S.M). Não sei, não é só na televisão. Quer ver? Na minha opinião,
tem hora que a televisão também tem uma linguagem mais culta e a gente
também aprende as palavras mais cultas, mas tem a linguagem da periferia. A
música tem essa linguagem da periferia, é mais na música que eu aprendo a
linguagem desse tipo. Quem faz essa música é a maioria que nasceu na
periferia. Como eu não gosto de usar uma linguagem mais coisada...
Gargalhadas.
- (M.S.M.) ... é , mais formal, eu gosto desse jeito mais relaxado de
falar.
- (L.S.) Bom, eu sou feliz porque tenho uma boa família, comida. Tenho
uma porção de coisa que muita gente queria ter e não pode ter, enquanto eu
estou comendo, tem muita gente passando fome. Tenho um pai bom, uma
irmã boa...
- (O . B.) E sua mãe?
Risos de todos.
(L.S.) Ah... boa, também.
Risos.
(L.S.) Bom, não é tão boa. Mãe é bem mais chata. Bom, estudo numa
escola boa com bons professores entre aspas.
Risos de alguns colegas.
Por que entre aspas?
(L.S.) Porque não são todos bons.
(O .B.) Sou feliz porque tenho comida em casa. Eu sei que tem pai que
se mata de trabalhar o dia inteiro e não tem dinheiro nem pra comprar pão. É
26
verdade! Tenho condição de pagar uma escola decente, boa, com bons
professores...
- Entre aspas, ou sem aspas?
Gargalhadas.
- (O. B.) Não, sem aspas. Tem algumas exceções, mas na maioria eles
são bons. É isso.
- (L.H.) Eu sou feliz porque eu tenho um lar, uma família feliz. Tenho
bons amigos.
- Os amigos são importantes pra sua felicidade?
- (L.H.).Um pouco.
- (F. M.) Eu tenho uma família boa, uma escola boa, amigos, tenho
comida em casa todo dia e tem muita gente que não tem.
- Você acha o mundo violento?
- (F.M.) Muito!
- O que você faria pra melhorar o mundo?
- (F.M.) Se cada um fizer um pouquinho, já vai mudar muita coisa.
Cada um deve fazer a sua parte.
- (N.S.) Eu sou feliz. Nunca me faltou nada. Tenho muitos amigos, uma
boa família. Nunca me faltou comida.
- Vocês têm idéia do que é não ter comida em casa, isto é, vocês sabem
o que é passar fome?
- (Todos) Não.
- (M.S.M.) Vi reportagens.
- O que é mais importante pra vocês se sentirem um ser completo?
- (N.S.) Ter uma boa família.
- Mesmo sem bens materiais, ter sua família bastaria pra fazer você
feliz?
- (N.S.) Acho que sim.
- (L.M.) Minha família é unida, sempre me ajudou e me apóia. Tenho
amigos e uma boa escola, e isso basta.
- (L.H.) Sou feliz porque não tenho nenhuma deficiência física.
- Também não me falta nada. Tenho amigos que me ajudam e uma
família que me apóia.
- (T.F.B.L.) Sou feliz porque minha família é boa. Meu pai trabalha e dá
pra gente tudo o que eu gosto. Acho bom não ter uma deficiência física, assim
eu posso fazer aquilo que eu mais gosto.
- Do que é que você tanto gosta?
- (T.F.B.L.) Hipismo. Vou ser uma grande amazona e todos vão torcer
por mim.
Risos e aplausos.
27
Complemento da 7a. B – S. D. (A aluna chegou ao final do encontro,
mas fez questão de dar a sua contribuição).
- O Rap fala um pouco da realidade, mas é muito violento. Eu não
costumo escutar esse tipo de música, só nos lugares mais pobres da cidade é
que eles costumam escutar. Ela fala da escola, mas a escola onde essas
pessoas estudam é completamente diferente da nossa: aqui eu tenho matéria,
os professores explicam bem, eu aprendo coisas pra vida. Eu gostaria de ser
empresária ou presidente da República e a escola vai me ajudar, eu estou
estudando pra isso. E eu sou feliz porque tenho família, amigos e tenho uma
escola boa. Pra mim, a família é mais importante porque sem a família eu não
sou ninguém.
- Na música, há um trecho que diz: “A rua está violenta, então eu vejo
televisão”. Você concorda com isso?
- Não sei, acho que não, bom, pensando bem, é sim, eu não posso sair
muito. A rua é perigosa, sim. Eu fico em casa, no computador, na televisão, eu
nado. Assim eu passo meu tempo.
- Essa é uma forma de você se divertir e como vocês jovens, de maneira
geral se divertem?
- Vamos a festas. Festas de aniversários. Nós dançamos e nos
divertimos.
7a. C – Um grupo mais participativo, embora também, no início, bastante
retraído.
Ouvida a música Estudo errado – algumas perguntas:
- O que é que vocês acharam?
- (R. H.) A música é um Hip hop. Eu gostei, gostei mais do refrão.
- Por quê?
- (R.H.) Porque ele fala que decorou tudo e já esqueceu, depois da
prova.
- (C.F.) Eu concordo com o R. Fala sobre a escola. Fala que o menino
só quer passar de ano e, se ele não passar de ano, vai apanhar, essas coisas ...
- (F.B.) A música fala de um cara que estuda só para passar de ano, no
futuro ele nem vai saber por que ele aprendeu aquilo.
- (A.C.K) Eu acho que é uma música que retrata a realidade de uma
criança que quer passar de ano logo para parar de estudar.
- Não é a realidade de vocês?
- (A.C.K.) Eu acho que é a realidade de todos nós.
28
- (R.H.) Essa música é uma sátira.
- Vocês curtem essas músicas que as pessoas consideram um RAP?
- (R.M.) Eu gosto porque essas músicas falam da realidade da vida, por
isso eu gosto.
- De que parte você mais gostou nessa música?
- (R.M.) A parte que ele fala que ele estuda pra tirar nota não pra
entender a matéria.
- Por que você gostou dessa parte?
- (R.M.) Porque eu estudo pra tirar nota também, não para entender a
matéria.
- Isso é falha da escola ou falha do aluno?
- (L.C.) Meio a meio. A escola tem que incentivar, mas o aluno precisa
buscar motivação para fazer sua parte, os seus deveres.
- (C. F.) Tipo... é do aluno, da escola e da família. A família tem que
estimular.
- (R.H.) Depende do pai. Eles só vêem nota. Lá em casa é assim. Só
nota.
- Há mais algum trecho que seja significativo pra vocês? A música só
fala da escola?
- (F.L.R.M) Tem a ver com nosso futuro. Se a criança só decora sem
aprender, ela não vai passar em nenhuma faculdade, não vai ter futuro.
- Que futuro é esse?
- (F.L.R.M.) Bom, eu tenho planos pro futuro. Meu pai é fazendeiro e
ele quer que eu cuide das fazendas, mas não é bem o que eu quero. Isso
interfere. O pai tem um plano e a gente se sente obrigada a fazer o que ele
quer.
- (C.F.) A música mostra um desinteresse muito grande do jovem. Ele
tem que pensar no futuro.
- (M.K.) Os dias que nós vivemos eu acho que a escola tem que ensinar
sobre inflação, corrupção do que a matéria real. Tudo bem que a matéria vai
ajudar no futuro, só que hoje a gente tem que se preocupar com o dia de
amanhã, não com o nosso futuro.
- (C. F.) É isso aí, é o que ela falou. A gente não sabe se a gente vai
estar vivo daqui um ano, cinco ou dez. Não dá pra gente pensar no futuro sem
saber o que está acontecendo com nosso país.
- (A.C. F.G.) A música mostra como o aluno fica preocupado em tirar
nota para dar uma satisfação aos pais. Está errado isso. O pai não tem que
bater ou pôr o filho de castigo, ele tem que incentivar.
- (F.L.R.M.) A relação que a família tem como o filho tem a ver. Quem
não tem uma relação aberta sofre com isso. O importante é ter uma relação
29
aberta, de intimidade para você falar com o pai o que está acontecendo.
- (R.M.) Os pais só ligam pra isto: nota.
- O relacionamento de você hoje não é mais próximo?
- (C.F.) Hoje em dia, o relacionamento com a família é muito legal. É
muito fácil discutir com os pais hoje.
- (F.L.R.M.) Os pais, às vezes, são muito ocupados e nem sempre ele
têm tempo para os filhos. É o meu caso, eu vejo pouco meu pai e quando eu
vejo, nós brigamos. Minha mãe, agora que se separou do meu pai, ela está
trabalhando e aí nós não temos muito tempo, tenho liberdade com ela, mas
falta tempo.
- (G.M.) Minha relação com meus pais é ótima. Basicamente é isso.
Depois do almoço nós nos deitamos todos juntos na cama deles e conversamos
sobre estudo, sobre meu esporte – o hipismo – sobre a situação do país. Eu
vejo tevê e, às vezes, não entendo e aí eles, os meus pais, me explicam.
Há um trecho aqui que eu queria apontar e ouvir vocês sobre o que ele diz: “A
rua está perigosa, então eu vejo televisão”.
- (A.M.) Eu concordo com isso. Hoje em dia é perigoso brincar na rua,
aí a gente fica em casa, é mais seguro.
- E isso faz vocês verem televisão ou ficarem mais no computador?
- (A.M.) De certa forma, sim. Tem gente que também consegue fazer
amigos na rua.
- (R.M.) A rua está muito perigosa, por isso a gente fica muito mais
tempo na tevê e no computador. Eu moro em prédio e eu nem saio na rua. Mas
eu sei que quem mora em casa nem pode sair porque tem gente que rouba
bicicleta, tênis.
- (C.F.) Na rua tem gente que rouba. Meus pais me falam que
antigamente eles brincavam na rua. Hoje eu sei que a gente corre muito risco,
muito.
- (F.L.R.M.) Eu nem vejo a cara de meus vizinhos, fico dentro de casa.
Antes tinha medo de sair porque eu morava num apartamento, na cidade, e
minha mãe não me deixava sair por causa da violência. Hoje não tem mais
perigo, porque é tudo fechado, eu moro num condomínio e o perigo é menor.
Quando eu não morava, eu nem saía. Eu tinha medo de sair. Agora que eu
moro no condomínio, mas eu continuo a ficar dentro de casa. No computador,
na tevê. Mas, às vezes, sinto falta de ver as pessoas de perto..
- O RAP é uma música da periferia?
- (A.C.K.) Acho que sim, porque na periferia eles têm mais dificuldade
e eles sabem expressar isso. Mas o RAP não é só da periferia. Muitas pessoas
daqui também têm problemas.
- (R.H.) Essa música fala é da periferia, mas é como o pagode.
30
Antigamente tinha muito preconceito, hoje em dia está todo mundo gostando
de tudo. Essa música, por exemplo, do Gabriel, o Pensador, é uma música para
todas as classes. Lógico que a gente tem preconceito...
- (T.M.M.) A música conta como a pessoa da periferia vive.
- O que é viver na periferia?
- (T.M.M.) Deve ser muito ruim, tem muito bandido.
- (F.B.) Na periferia não tem roubo porque o bandido vai querer poupar
as famílias que moram lá, eles vêm roubar aqui.
- (T.M.M.) Eu não acho, eu acho que um quer ser melhor que o outro.
- (F.L.R.M.) A concentração do roubo está na periferia, mas não é só
nela. A música nasce na periferia, mas ela está sendo valorizada em todo
lugar. Eu gosto do RAP. Essas músicas estão em todas as classes. E a questão
do roubo, as pessoas ricas também roubam, é o caso que a novela mostra. A
pessoa rica rouba porque sente prazer nisso. A pessoa de classe alta também
pode roubar.
- (R.H.) Essa questão de roubo a gente tem que ver. Não é só porque a
pessoa está na favela que ela rouba, é ladrão. No nosso bairro também pode
ser que tenha ladrão. Às vezes, a pessoa pode roubar para dar de comer para
um filho. A gente tem que ver isso também.
- (F.B.) É, não é só na periferia. Veja os políticos, eles roubam porque
querem cada vez mais dinheiro.
- (G.M.) A gente pensa em bandido na periferia, mas se esquece de ver
o governo e as pessoas da classe alta. Esses roubam sabendo o que estão
fazendo; os da favela não têm estudo e roubam, às vezes, por necessidade.
- (C.F.) A gente tem que pensar em droga, também. Na favela e nas
classes altas.
- (E.K.) Às vezes há pessoas que têm dinheiro e roubam porque o pai
não quis dar aquilo pra ela.
- (M.K.) Hoje em dia, os músicos que cantam e fazem RAP, eles não
são pobres, eles não moram na favela, mas eles têm uma história de vida meio
parecida e aí eles fazem a música. É engraçado porque, mesmo sendo rico
você pode ter tido uma história de vida como a dos pobres. São coisas que
você viveu e, como você não pode falar, você só pode expressar isso através
da música.
- Vocês falaram em classes sociais. A que classe social vocês
pertencem?
- (A M.) Classe média.
- Por quê?
- (A.F.F.) Porque temos o que comer, pagamos uma boa escola.
- (R.H.) Classe média alta, porque a gente tem muito mais do que aquilo
31
que a gente precisa para viver.
- (E.K.) Nem todos, você tem, mas a maioria é classe média.
- E vocês são felizes com o que têm?
- (H.F.F.) Eu sou, tenho minha família que me dá amor, tenho amigos.
- (F.L.R.M.) Ninguém aqui pode reclamar.
7a. A – Estudo errado – Classe bem mais numerosa, mais falante. Os meninos
sempre mais participantes do que as meninas, bem ao contrário do que
pudemos notar na outra escola, em que os meninos permaneceram quase
totalmente ausentes, ou, unicamente ouvintes...
- Pessoal a proposta é ouvirmos a música de Gabriel, o Pensador –
Estudo errado – e fazermos uma análise do que ela propõe.
- Podemos começar?
- (Todos) Podemos.
- Primeiro, com a turma é grande, eu gostaria de ouvir um pouco de
todos... Como se chama a música?
- (Alguns). Estudo errado.
- Batam os olhos na letra, pensem no que vocês viram e me digam: que
tipo de música é essa? O que chamou mais a atenção de vocês?
- (C.G.) Essa música está tentando criticar que as pessoas só estudam na
véspera e depois esqueceu de tudo, né?
- Você concorda com isso?
- (C.G.) Não, eu não acho que isso seja certo.
- Quem mais quer falar?
- (L.S.) A música, ela é mais um RAP de conscientização.
- O que é um RAP de conscientização?
- (L.S)Tentando passar uma mensagem, ou seja, ele está questionando a
escola e faz crítica ao governo brasileiro, e fala ... faz uma crítica aos alunos,
mas, ao mesmo tempo, faz uma crítica às escolas também.
- O RAP é uma música que fala da nossa realidade, ou, da realidade de
vocês, jovens?
- (F.R) Eu acho que ele fala sim uma verdade porque os alunos estudam
não por querer estudar, mas para passar de ano. É para os pais deixarem sair e
para divertir depois.
- Vocês costumam ouvir RAP, quer dizer, é uma música que transita
entre vocês?
- .(Algumas meninas) Não.
- (F.R.) Depende do RAP, não são todos os RAPs que a gente ouve.
32
- Esse, por exemplo, é a vida de um garoto. Ele vive a vida dele
buscando uma meta do que ele tem que fazer, estudar, jogar bola ... fazer as
coisas que ele quer fazer.
- (L.S) É, mesmo que o RAP não transite entre a gente, ele está nas
rádios e aí uma hora a gente acaba ouvindo e acaba entrando na nossa cabeça.
- O RAP, então, não transita entre vocês. Ele transita onde? Quais são
os consumidores do RAP?
- (G.B.D) Eu queria falar sobre a outra pergunta.
- Fale, sem problemas.
- (G.B.D.) Eu acho assim, não é mérito a pessoa que não aprende.
Assim, copiar, decora e depois esquecer. Ela às vezes quer levar alguma coisa
para a vida dela, mas às vezes ela esquece, acaba esquecendo com o tempo.
Os adultos não lembram nada que estudaram.
- Legal, G. Agora, quem pode me dizer por onde transita o RAP?
- (M.C.) Na favela, nas escolas públicas, na periferia.
- O que é periferia?
- (G.O.) A periferia, assim, seria um local excluído da cidade, do centro
que as pessoas da classe média ficam lá.
- É uma realidade que vocês conhecem?
- (Alguns garotos e garotas se manifestam) Não!
- (I.R.C.F.) Não, não é uma realidade que a gente conheça, a gente vive
mais... eu não sei muito o que dizer; parece ..., então, a realidade lá é outra,
parece que é pior, aqui a gente tem mais luxo ...
- (G.B.D.) É a vida que eles tiveram. Aprenderam assim. Lá, onde eles
nasceram eles aprenderam do jeito deles. Lá na favela, quer dizer, na periferia,
não é igual a gente.
- Favela e periferia são sinônimos?
- (G.B.D.) Não, não são sinônimos e às vezes o jeito deles de aprender
não é o jeito que eles querem, mas por causa da falta de dinheiro eles acabam
se envolvendo em um mundo diferente.
- (F.C.) Na verdade, as pessoas são diferentes. Cada família de acordo
com sua informação cria seus filhos de um jeito.
- As pessoas da periferia são mais infelizes, são mais felizes...?
- (F.R.) As pessoas da periferia nem sempre são infelizes. Eles sabem
viver daquele jeito, é o que elas têm. É a escolha de vida que elas fizeram.
- (L.S.) Não, não é por uma opção de vida. Ela já nasceu ali. De modo
algum eles são infelizes, só tem outro tipo de vida, todo mundo se diverte,
todo mundo é feliz, mas do jeito de cada um. Às vezes as pessoas da periferia
precisam de menos coisas para serem felizes, enquanto as pessoas que têm
mais luxo acabam dando valor para aquilo que têm e depois que conhecem
33
outra realidade, elas vêem a diferença social que tem entre as pessoas.
- (T.J.) Eu acho mais ou menos isso que o L. falou agora, só por nós
termos muitas coisas, a gente olha para essas pessoas que não tiveram tanta
oportunidade, ou melhor, já nasceram desse modo, assim, a gente fala, a gente
pensa: “Nossa, coitados, eles são infelizes, mas, por exemplo, para eles quer
dizer eles pensam de nós: “Nossa, eles não fazem nada, têm medo de ser
assaltados”.
DEPOIMENTO: MENINAS NA PRIMEIRA ENTREVISTA DO GLETE:
- (G.B.) Nem sempre eles são infelizes, porque se você olhar dos dois
lados, a nossa classe tem muita coisa, muito brinquedo, muitas coisas que a
gente gostava quando era criança, e a gente pode acabar ficando infeliz. De
tantas coisas que você tem, você acaba esquecendo delas. E lá, eles nem
sempre são infelizes, eles dão mais valor às coisas porque elas são limitadas.
Uma boneca de pano para uma menina pode ser um coisa muito, muito feliz
para ela...
- (I.F.) Eu acho que toda comparação a gente tem que tomar um pouco
de cuidado para fazer porque cada pessoa tem um jeito de ser, independente da
classe social; cada classe social tem diferenças mas não muda a felicidade de
cada um.
- (M.A.S.) Eu acho que essas pessoas da periferia não são felizes porque
elas não conhecem esse tipo de vida que a gente vive; elas nunca viveram isso,
elas não sabem como é, elas nunca tiveram oportunidade de vir aqui, se elas
tivessem oportunidade, elas iriam sentir falta de não poder ter essas coisas,
mas elas estão acostumadas como a vida delas assim como nós estamos
acostumados com a nossa.
- (C.G.) Eu acho que o dinheiro não compra a felicidade, o amor; então,
elas são felizes; agora, também tem outro lado,né? Você saber que vai chegar
em casa, vai passar fome, aquela miséria, deve ser muito triste, eu acho.
M.A. falou uma coisa e eu gostaria de retomar isso. Ele disse que essas
pessoas não conhecem a outra realidade e por isso acabam se satisfazendo
com a vida que têm. Há um trecho da música em que se fala sobre a televisão:
“A rua é perigosa então eu vejo televisão”. Será que a televisão não seria um
meio para as pessoas conhecerem a realidade?
- (F.C.) Na televisão você conhece a violência.
- (M. P.) Por isso as pessoas ficam em casa.
- (L. C.) Ficam escondidas.
- (G.B.D) As pessoas ficam escondidas com medo do mundo lá fora.
34
- (F.C.) A televisão mostra a realidade, mas de modo muito exagerado.
- Ela não mostra o lado bom da rua.
- (A.S.) Não, a televisão mostra a violência, mas é bem pior do que eles
passam. Eles não mostram a parte boa. mas, voltando ao que o M.A . falou, eu
gostaria de saber o seguinte: nós não conhecemos a periferia pela televisão, a
violência pela televisão, como vocês disseram? Será que as pessoas dessa
outra classe social não conhece também outra realidade?
- (T.J.) Eu acho que eles até conhecem, mas você vê a gente, por
exemplo, vê a classe social deles pela televisão, mas a diferença é muito
grande entre você estar vendo isso e pensando: “Nossa, como será a vida
deles” e estar vivendo. A diferença é muito grande.
- (T.K.) Estão, a gente vê a periferia na televisão só que a gente só vê o
lado ruim, por exemplo, na televisão eles não querem mostrar isso: “Olha que
bom, que coisa bonita, eles mostram uns 10% da periferia que não é tão bom,
são pessoas que matam, assaltam.
- (L.S.) Eu acho que, como já se falou, a gente tem que tomar muito
cuidado para estabelecer aquela relação de felicidade, a gente também tem que
ter muito cuidado para falar da realidade de vários lugares porque a televisão é
um meio..., a mídia é um meio de comunicação e informação bem grande, só
que em vez da gente estar lá, como o M. A. disse, estar vendo é muito
diferente. A gente não pode fazer um tipo de pré- conceito da realidade, só
vendo a televisão. A gente fica refém da informação que a televisão quer
passar ou fazer a gente acreditar. A gente tem que ter uma opinião própria.
- (C.G.) Eu acho que a gente tem que ter uma consciência pra analisar a
televisão. A gente tem que distinguir o que é certo e o errado porque tem
muitas coisas exageradas.
- (F.R.) Eu acho que a televisão mostra tudo realmente, sim.
- (G.B.) Nem tudo o que a gente vê e o que eles fala pra gente é tudo
verdade. A gente não pode só ficar olhando tevê, a gente precisa conhecer
mesmo, não é sempre, por exemplo: “Ah, coitadinhos, eles estão passando
fome”, talvez eles nem estejam passando fome, às vezes tem coisas muito
boas.
- Vocês falaram daquilo que vocês têm, do tipo de vida que tem
oportunidade de ter, eu gostaria de perguntar: vocês são felizes com o que
têm?
- (G.C.) Eu sou feliz com o que eu tenho, mas se fosse diferente eu
saberia aproveitar o que pudesse ter.
- (L.C.) Sou. Porque ... porque eu tenho uma família boa, tenho amor.
- (T.C.) Eu sou feliz porque sei aproveitar o que tenho.
- (J.R.) Eu também sou feliz porque sei aproveitar o que eu tenho e eu
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acho que eu então... tipo ..., eu tenho uma família boa que me dá o que eu
preciso, bens materiais, assim, mas também amor e carinho, que são coisas
mais importantes para você ser feliz.
- (M.P.) Eu acho que eu sou feliz com que eu tenho, tenho uma família
que me dá carinho, amor, tudo o que eu preciso, também bens materiais que
eu preciso também.
- (G.O.) Eu sou feliz com eu tenho porque, assim..., eu sou uma
pequena parte da população que tem direito à escola, à alimentação, tenho
minha família também.
- (L.F.) Eu acho que sou feliz porque eu sei aproveitar o que eu tenho e
eu acho que minha família me dá tudo o que eu preciso.
(M.F.M) Eu acho que sou feliz com o que eu tenho, mas eu acho que
muitas pessoas que pertencem a minha classe e que podem ter muitas coisas,
elas querem ter sempre mais; se elas conhecessem a realidade dos mais
pobres, elas saberiam dar mais valor às coisas.
- (B.V.) Eu acho que sou feliz, eu tenho uma família boa, eu acho que
eu aproveito as coisas que eu tenho, mas eu acho que eu poderia aproveitar
mais.
- (M.C.) Eu sou feliz porque eu tenho o que comer e tenho onde dormir
toda noite. Uma família boa, só.
- (G.B.D) Eu acho que eu sou feliz com que eu tenho, eu acho que eu
tenho tudo o que preciso, principalmente minha família, se eu tivesse bem
menos do que eu tenho hoje, não sei se seria feliz igual.
- (F.C.) Eu sou feliz, tenho família, comida, amigos, uma escola.
- (C.G.) Eu sou feliz porque eu acho que tenho a melhor família do
mundo, eles estão sempre à disposição. Dão carinho, amor.
- (L.S.) Sou muito feliz, acho que todo mundo aqui é feliz. É como a C.
falou, todo mundo vai achar que a família é sempre a melhor porque é a que a
gente tem. Todo mundo que falou aqui eu sei que tem uma família que dá
carinho, que ajuda. Eu acho que o conceito de felicidade é bem relativo. Cada
um tem a realidade baseada na sua realidade.Todo mundo precisa de pouca
coisa pra atingir a felicidade, carinho, amor.
- (T.J.) Eu sou feliz porque eu tenho tudo o que eu preciso. Quando eu
chego em casa, eu vou à cozinha, abro a geladeira, vou comer o que eu quero,
o que eu tenho vontade. Eu tenho uma família que me apóia em todos os
sentidos. E é isso.
- (I.F.) Eu sou muito feliz porque eu aproveito muito bem minhas
coisas, tenho condições, família, amigos, todas as coisas que eu preciso para
ser feliz.
- (G.B.D.) Eu tenho a melhor família do mundo, tenho tudo o que eu
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preciso, eu tento aproveitar tudo o que eu tenho ao máximo pra me satisfazer.
- (M.A.S.) Eu acho que eu sou feliz porque eu tenho uma família, eu
sei que eu vou chegar em casa e vou ter o que comer, mas isso não importa
porque muita gente na periferia não tem comida e é feliz. Tenho meus amigos
e acho que isso que é preciso.
Parque Ribeirão Preto
25 de outubro de 2005
No domingo chuvoso cumpri o combinado: fui ao encontro das garotas
para irmos à festa funk.
A poucas quadras da escola – lugar que já me era muito familiar – um
outro mundo. Carros estacionados, vidros pretos, capôs levantados com o som
no último volume. A cada 10 metros, um carro. As músicas eram quase as
mesmas.
Atravessamos a rua. Andamos algumas quadras, neste cenário de filme.
Ao chegarmos a um campo de futebol, assistimos à montagem da aparelhagem
de som. A festa estava pra começar. Debaixo de uma lona sustentada por
quatro estacas de bambu, uma aparelhagem de som capaz de produzir um som
que poderia invadir qualquer grande estádio de futebol. Ao iniciarem o som,
os carros emudeceram suas músicas e as pessoas – muitas pessoas –
apareciam, de todos os lados. Dançando, freneticamente. Bebendo, fumando.
Era tudo puro êxtase – quase contagiante se não fosse o medo!
As músicas praticamente se repetiam durante todo o tempo que lá
ficamos:
Atoladinha
Tati Quebra Barraco
Alô!
Oi pulguenta.
Quem t
falando?
Sou eu bola de fogo
E ai t
de bobeira hoje?
Vamo da um rolé na praia? Mó solzão, praia da Barra...
Então vo ai te busca vlw?
Então fui!
Piririm, piririm, piririm
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Alguém ligou pra mim
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim
Sou eu Bola de Fogo
E o calor tá de matar
Vai ser na praia da Barra
Que uma moda eu vou lançar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar
Tô ficando atoladinha
Tô ficando atoladinha
Tô ficando atoladinha
calma calma foguetinha[3x]
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim
Sou eu Bola de Fogo
E o calor tá de matar
Vai ser na praia da Barra
Que uma moda eu vou lançar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar[2x]
To ficando atoladinha
To ficando atoladinha
To ficando atoladinha
calma calma foguetinha
Fama de Putona
Tati Quebra Barraco
Nao adianta de qualquer forma eu esculaxo
Fama de putona so porque como seu macho
Nao adianta de qualquer forma eu esculaxo
Fama de putona so porque como seu macho
Nao adianta de qualquer forma eu esculaxo
Fama de putona so porque como seu macho
Se prepara mona que a gente ta na pista
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Sem neurose
Se prepara mona que a gente ta na pista
Sem neurose
Seu pittbull é Lassie, tu é rosa ou margarida?
Seu pittbull é Lassie, tu é rosa ou margarida?
Tu tem marra de Sansão mas tu é Dalila.
Paga Spring Love
Tati Quebra Barraco
Composição: Indisponível
Eu faço amor todo dia,
Estou sempre preparada,
Se tu quer fazer comigo,
Então fique do meu lado.
Eu vou de lado, vou de quatro,
A posi
o vocês escolhem,
Sou tati mc gosto de pago spring love
Vai, pago spring love,
Vai, pago spring love,
Pago spring love,
Gosto de pago spring love.
Eu faço amor todo dia,
Estou sempre preparada,
Se tu quer fazer comigo,
Então fique do meu lado.
Eu vou de lado, vou de quatro,
A posi
o vocês escolhem,
Sou tati mc gosto de pago spring love
Pago spring love...
- Que músicas são essas que os Dj’s estão tocando?
- (F.A.) Rap, ué.
- Vocês gostam?
- (K.M.C.) É muito dez!
- (E.A.C.N.) É meio bobagenta.
- (F.R.M.A.) É MUITO bobagenta.
- (K.M.C.) Mas é muito boa, não dá pra ficar parado. Todo mundo
dança.
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- A música fala de quê?
- (E.A.C.N.) De sexo.
- (K.M.C.) Ah, não é só isso.
- (E.A.C.N.) É sim. Eles não falam na cara mas querem dizer. “To
atoladinha”, o que é que você acha que é isso? “Eu vou de quatro”. É muito,
né? Tem coisa melhor, tem música rap que fala coisa mais real.
- (V.S.) Mas é gostoso, meu, música tem que ser isso aí. Ó o
povo doidão.
Glete de Alcântara
6 de outubro de 2005.
Hora do intervalo, 9 da manhã. Ganho o pátio da escola e aproximo-me
do grupo da sétima série. Duas das meninas, fone de ouvido no ouvido,
repartem o prazer da música. Aproximo-me, a receptividade não foi boa,
assim mesmo, arrisco uma conversa:
- Olá, meninas. Como está a música aí?
- (E.C M.) Legal.
- O que é que vocês estão ouvindo?
- (E. C. M.) Música, não sei o nome. É em inglês.
- Como é que vocês escolhem a música de vocês, pelo ritmo, pela letra?
- (E.C.M.) Pela letra.
- Vocês entendem a letra, quando ela é em inglês?
- (E.C. M.) Não.Eu não entendo, mas eu acho mais bonito, eles
cantarem assim, chama mais atenção.
- Vocês costumam comprar os Cds das músicas de que vocês gostam?
- (E.C.M.) Às vezes, compro nas lojas ou minha irmã compra no
Ribeirãoshopping.
K.M.C se aproxima.
- Estamos falando de música, K. Onde tocam suas músicas prediletas,
K?
- (K.M.C) No rádio.
- Qual?
- (K.M.C) Na Mega.
.
Suas amigas preferem as músicas cantadas em inglês, e você?
(K.M.C) Eu gosto das duas. Se eu não entendo, eu fico dançando. .
40
- A.C.R.P. aproxima-se do grupo e integra-se na conversa:
- (A.C.R.P.) Eu não tenho preferência de ritmo, eu só não gosto de rock.
Aproximo-me de outro grupo, a conversa era outra:
- ( D.S.) Falta amigo verdadeiro; amigo falso tem demais, gente honesta
tem de menos.
- Que é que está acontecendo aí, pessoal?
- (D.A.R.) Nada, estamos falando de coisa que está faltando pra gente.
- E o que é que está faltando ou sobrando, vamos lá, é um jogo.
- (B.A.) Não sei explicar.
- (D.A.R.) Eu sei, vamos jogar. Eu tenho mais obrigação e menos tempo
pra não fazer nada.
Gargalhadas.
- (J.L.) Eu não tenho menos liberdade e mais obrigações.
- Que liberdade você gostaria de ter?
- (J.L.) Ah, eu queria poder ir na casa das minhas amigas, mas minha
mãe não deixa, não sei por quê.
- (K.M.C.) Eu tenho mais lazer do que obrigação.
Gargalhadas.
- O que é que vocês gostam de fazer e não podem?
- (D.S.) Namorar.
- Por que não podem namorar?
- (A.C.R.P.) Porque minha mãe não deixa. Ela vê essas menininhas por
aí que engravidam e acho que ela tem medo de eu engravidar também, se eu
começar a namorar.
- E você não tem medo de engravidar?
- (A.C.R.P.) Imagina, pelo amor de Deus, eu não, Nossa Senhora.Tem
mãe que toda liberal, elas nem ligam pra o que a filha faz, minha mãe não, ela
é mais fechada.
- E você, E., o único rapaz aqui tem que ter chance de falar, né? Que é
que falta na sua vida?
- (E.C.) Mais alegria.
- O que é alegria, pra você?
- (E.C.) Amizades.
- (Q.C.C.N.) Na minha vida tem demais perturbação. De menos:
liberdade.
- (Q.C.C.N.) O que é liberdade pra você?
- Sair mais, se divertir mais, mas meu pai nunca vai deixar.
- Por quê?
41
- (Q.C.C.N.) Porque ele é doido, sei lá. Ele se preocupa demais, isso faz
ele ficar neurótico!
- (G.V.S )Pra mim amigo falso tem demais; verdadeiro tem de menos.
Bate o sinal ensurdecedor, sobram alguns minutos para as fotos.
Alvoroço de todos por um pedacinho de espaço na câmara digital.
Liceu Albert Sabin
6 de outubro de 2005.
Aproximo-me de um grupo, na hora do intervalo. Peço licença e
começo a escutar – e gravar – a conversa. (Elas falam do referendo que será
votado em alguns dias):
- (M.F.M) Eu votaria ‘não” porque os bandidos vão continuar
ilegalmente com as armas.
- ( L.M.V.C.) E vai aumentar o contrabando, do mesmo jeito.
- (G.O.) Eu também votaria não. A gente precisa de arma pra nossa
defesa pessoal.
- (G. M.) Eu também porque eu acho que isso só vai fortalecer mais os
bandidos.
- (G.P.H.) Os próprios bandidos não entregariam suas armas. Por que
nós temos. Isso iria só piorar. Bem que podia melhorar, mas isso não iria
resolver. Por exemplo, nós estávamos comentando no nosso condomínio, tem
segurança lá, mas se ele não tiver arma, o que é que adianta?
- (I.M.) Eu concordo com todo mundo. Antes eu achava que não,
porque eu achava que isso ia acabar com tudo. Mas aí eu comecei a ver que
não, que o referendo não ia acabar com nada, que o contrabando ia aumentar,
os ladrões continuam com as armas, por isso, isso não ia resolver em nada.
- (C.G.) Eu votaria não, porque a população ficaria desarmada e os
bandidos não. Conclusão: muito mais assalto.
Quando senti que a conversa “esfriava”, provoquei o mesmo assunto
discutido horas antes no Glete. A adesão foi pequena, mas consegui algumas
contribuições antes de o sinal levar o grupo de volta às salas:
- Já que o papo de vocês aqui no intervalo é tão sério, vou perguntar
uma coisa séria: o que é que falta e o que é que sobra, na vida de vocês?
- (C.G.) Sobra amor da minha família, falta eu me soltar mais. Eu
gostaria de conseguir falar mais.
- (I.M.) Sobra amor, e não falta nada, eu estou bem assim. Tudo o que
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eu preciso eu tenho.
- (J. H.) Sobra amor que minha família me dá o tempo inteiro, e...
assim... não falta nada! Lógico que a gente pode melhorar sempre, ninguém é
perfeito, mas por enquanto está bom assim.
- (G.O.) Bom, é o que todo mundo falou. Mesmo a família tendo
desentendimento, porque todo mundo tem, não falta amor. Aliás não falta
nada pra mim. Bens materiais, espiritualidade, não falta nada.
- (B. V.) Sobra amor, apoio da família. Não tem uma coisa que falta..
- (M.F.M.) Acho que nem falta nem sobra, eu tenho tudo que eu preciso
mas o que eu tenho em excesso eu aproveito, por isso nem posso dizer que
sobra.
Parque Ribeirão
10 de outubro de 2005
Excepcionalmente marcamos nosso encontro neste dia, uma segunda-
feira, em função dos feriados que viriam a seguir.
Visita à casa de
Quézia Carolina,
Convidada para uma tarde com as amigas, lá estava eu, no meio das
meninas, medindo as palavras e conversas. Como eram e como se portavam
essas jovens fora da escola, o que diziam, como viviam seu cotidiano?
- (E.C.M.) Gente, vocês viram o passeio que a escola está fazendo? Só
eu e a K. não vamos participar.
- (Q.C.C.N.) Por quê?
- (K..M.C.) Porque nós aprontamos.
- (R.L.N.C.) Ah, um dia eu quero ir nesses passeios. Mas de graça,
porque dinheiro nós não temos.
- (Q.C.C.N.) Ah gente, eu posso sair tão pouco. Quando eu posso eu
saio com minha irmã, aí o bicho pega.A gente não pára de rir. E quando a
gente vai no cemitério, então. A gente ri o tempo todo. Ah, eu odeio o
cemitério, mas a gente acaba indo pro outro lado e morrendo de rir. Ah, como
eu gostaria de sair mais, ir pras baladas.Mas nós somos evangélicos e eu não
vou.
- (K.M.C.) Mas eu vou, vou mesmo.
- (E.C.M. )Meu passeio com o núcleo é bem mais chique do que esses
da escola. Porque nós vamos lá no clube, no Paulistinha. Tem cachoeira, tem
43
parquinho, pé de amora para se deliciar.Ah, é muito bom!
- (E.C.M) Também nos fomos já no Mercado (refere-se ao Mercado
Municipal), na parte de presentes. Tem bola de vôlei, muito chique, muito
chique. Eu ganhei uma canetinha desse tamaninho, com cheirinho de
morango. Ah, que delícia!.
- (R.D.N.C.) Bom, lá no meu Núcleo eu faço tapete, dança de rua,
capoeira, culinária.
- (Q.C.C.N.) Eu não vou no Núcleo porque quando a gente tem 14 ou
15 anos sai pra trabalhar, para ser guardinha. Pára, tem regra pra tudo. Tem
hora pra rir, tem hora pra chorar. Ah, eu não gosto disso.
- (R.L.N.C.) Ah, mas a gente sai de lá e vai pro Senac pra trabalhar.
Três dias no Senac e três dias de trabalho: em posto de gasolina, em escola. É
bom.
- (M.R.) Minha irmã ficou lá e não chamaram ela pra trabalhar.
- (E.C.M.)Ah, mas eles vão chamar. Já faz sete anos que estou no
Núcleo.
- (M.R.) Minha irmã fez dez entrevistas e ninguém chamou.
- (K.M.C.) Por quê?
- (M.R.) Porque tinha gente com o currículo melhor.
- (E.C.M.) É., no currículo é importante seus cursos, a série que você
está, se você já repetiu, se você tem 3o. colegial completo, tudo. Curso de
informática também, dependendo do emprego.
- (R.L.N.C.) Minha irmã está trabalhando. Secretária, numa casa de
motor de carro. Ela ganha bem, não sei quanto, mas dá pra ajudar.
- (E.C.M.) É, o núcleo tem umas coisas ruins, mas a gente aprende
bastante coisa.
- (Q.C.C.N.) É mesmo, quando eu estava no núcleo, eu aprendi a fazer
bastante coisa: bordado, tapete, biscui.Tinha uns passeios bons.
- (E.C.M.) É, nós vamos no Sesi, no Paulistinha. A gente chega no
clube, por exemplo, fica na piscina, depois vai no parquinho. Mas tem hora
pra tudo. Hora do parquinho, da piscina.
- (M.R.) Mas no Banespa você pode fazer o que quiser.
- (E.C.M.) A gente só paga o ônibus para ir lá. Dois reais.Por causa do
núcleo a gente não paga pra entrar.
- (K.C.M.) Ah, eu não vou nem num passeio da escola.
- (R.L.N.C.) Por quê?
- (K.C.M.) Porque nós fomos pra feira do livro, aí ...
-(E.C.M.) Não, não foi por isso não.
- (K.C.M) Foi por causa disso e por causa do “Pë”., vou contar dos dois.
No dia que nós fomos na feira do livro a minha irmã roubou gibi e deu pra
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gente. Eu estava inocente. Ela tinha dinheiro, eu pensei que ela tinha
comprado. Mas um monte de menina roubou. Nós pegamos e levamos
embora. No dia seguinte, cheguei em casa e eu falei pra minha mãe. Aí nos
fomos no núcleo e lá reuniram nossa mãe, nós e o dono do núcleo, aí falamos
que nós roubamos. A outra coisa é que teve uma festa lá no núcleo e aí nós
estávamos sentadas em rodinha ...
- (E.M.C.) Eu não estava nesse dia, eu faltei!
- (K.C.M) Os meninos ficaram passando a mão. Em mim ninguém
passou, mas eu passei neles. Aí a mulher de lá viu e aí eu, o Pê, o Gilmar e a
Débora não fomos pro clube por causa disso.
- (R.L.N.C.) As festas do núcleo são boas, fazem bolo, tem almoço,
refrigerante.
- (E.M.C.) Na festa das crianças eles deram algodão doce.
-(R.L.N.C.) Só tem dança quando tem apresentação de dança de rua
- (E.M.C.) É muito diferente do nosso. Tem muita dança, a gente canta
pras pessoas verem.No nosso núcleo o patrão é padre. Lá a gente ganha
presente, às vezes estão meio quebrados, mas a gente ganha.
- (Q.C.C.N) As pessoas fazem esses núcleos pra tirar as pessoas da rua.
- (K.M.C.) Eu sempre quis ir pro núcleo. Antes eu não tinha idade.
Quando eu fiz sete anos eu entrei. Foi o melhor presente. Eu fiquei 6 anos no
mesmo núcleo.
- (R.L.N.C.) Lá no núcleo, no fim de ano, a gente também ganha
dinheiro porque a gente vende tapete. Metade da gente, metade da gente que
faz.
- (E.M.C.) Agora não é mais 50%, é 70% pro núcleo porque o material
está aumentando. É uma injustiça.
- (M.R.) Quando eu ia, eu fazia culinária: biscoito, rosquinha. Não sei
porque eu saí. Acho que eu enjoei. Agora eu ajudo minha mãe, como ela
trabalho no Glete, tem vez que eu vou lá, eu lavo louça.
- (Q.C.C.N.) O núcleo é mais importante que a escola, mas a escola
também é importante. Mas o núcleo ajuda a gente a ganhar dinheiro. Fazer
crochê, bordado. É bem criativo.É gostoso.Mas eu gosto mesmo é da igreja.
As pessoas acham que ser crente é careta. Mas a gente dança, a gente passeia,
curte. Nós, crente, somos meio extraterrestres porque nós somos diferentes do
povo do mundo.
- (K.M.C.) Eu sou povo do mundo.Eu vou em festa, uso roupa curta, ela
não, ela é diferente.
- (Q.C.C.N.) Não tem nada a ver. Desencana essa de roupa, é nosso
coração que é diferente.
- (K.M.C.) Seu pai é crente?
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- (Q.C.C.N.) Meu pai nunca foi de igreja. Ele trabalhava com escola de
samba. Mas quando eu nasci, eles já eram crentes evangélicos.
- (K.M.C.) Mas é diferente.
- (Q.C.C.N.) Diferente é gente rica. Gente que estuda em escola paga.
Para estudar em escola particular tem que ser inteligente. (K.MC.)
- (Q.C.C.N.). Ah, mas na nossa classe tem gente inteligente: a Júlia, a
Tauana. A Edilene também é muito inteligente e não estuda em escola paga. A
gente já participou de uma festa de “boy”. Nossa, nada a ver.(Q.C.C.N.) Olhe
como eles ficam:
- (Q.C.C.N.).Nós nos comportamos de outro jeito, ficamos mais soltos,
dançamos, mexemos o corpo inteiro. Rico não, parece que tem medo de
desmanchar a roupa.Nós somos mais soltos. Festa de rico não pode fazer isso,
não pode fazer aquilo. Fica cada um num canto. Nós somos mais livres.
- (E.C.M) Festa de rico tem valsa, essas músicas descriminadas.
- (Q.C.C.N.) A gente tem que ter mais animação. É legal ter valsa, mas
depois... Ah, eu fico meia hora ali, eu tento me envolver, mas não dá.
- (Q.C.C.N.). Ih, em festa de rico, a gente tem que fazer de chique.
Cruza as pernas, olha de lado. Aí vai passando o tempo, a gente vai
corcundando, despencando...
- (E.C.M.) A televisão mostra muito o mundo dos ricos.
- (Q.C.C.N.) É, uma colega estava falando isso. Nós estávamos vendo
uma propaganda de bolacha e de Danone e aí ela disse: “Nossa gente, uma
criança vendo isso e não podendo comprar, que judiação”. É triste mesmo,
mas e daí, que é que a gente pode fazer...
- (K.M.C.) Ah, eu fico triste de ver coisa que eu não posso ter.
- (Q.C.C.N.) Isso mexe comigo também, quando eu vejo aquelas
mulheres magrinhas, aquelas modelos e eu olho pra mim, esse barrigão...
- (E.C.M.) Ah, se meu pai tivesse um fusquinha, com 8 dentro e
estacionasse aquele carrão que a gente vê na televisão, eu teria vergonha.
- .(K.M.C.) Ah, eu prefiro andar a pé.
- (R.D.N.C.) Isso humilha.
- (E.C.M.) Olha, eu estava vendo na televisão um programa que dizia
que o nosso país é muito rico por causa das exportações, mas que nós não
sabemos dividir a riqueza. Tem gente lá no topo que é mais rico, agora, tem
gente que não tem nada pra comer. Então eu vi isso na tevê. Nossa senhora, é
duro!
- (Q.C.C.N.) Tem gente que joga comida fora.
- (K.M.C.) Isso revolta, porque eu nunca vou conseguir ter essas coisas.
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- .M.C) A televisão traz coisas que tem parte que revolta, tem parte que
anima. Eu gosto mais de ouvir rádio.
- .C.M.) Ah, na hora da novela eu não agüento, eu quero ver. Eu não
perco um canal, eu não pisco!
Parque Ribeirão Preto
20 de outubro de 2005
Chego à casa de E.C.M. às 17, conforme havia combinado na semana
anterior. Hermínio, pai de E. esperava-me na sala; G. estava no banho. As
filhas sentaram-se no chão, ao redor da mesa onde estávamos. A conversa
começou descontraída a propósito da televisão, que estava ligada, ainda que
ninguém prestasse atenção ao programa que passava, naquele momento.
Minutos depois Gervina entra “em cena”: roupas limpíssimas, cabelo
preso, cheirava a banho tomado com muito esmero.
Desculpe, professora, eu demorei mais, sabe, meu cabelo, é muito crespo e dá
trabalho pra arrumar.
Senti a importância que Gervina dava com a visita de uma professora
que queria saber um pouco da vida dela.
- Gervina, seu marido acaba de me falar que esses jovens de hoje estão
com a cabeça virada por causa das coisas da televisão. Você concorda?
- .(G.C.M.) Não, não. O mundo tá assim mesmo porque as coisas têm
que mudar. No meu tempo, eu vivia na roça, só fui namorar com 21 anos. Não
conhecia nada da vida. Só conheci televisão quando casei, com 25. Na
televisão tem coisa boa e tem coisa ruim. As pessoas que tomam o rumo ruim
da vida, ou essas moças que vivem quase peladas, fazem isso porque a família
não cuida. A violência, o roubo. Isso aqui não tem. Minhas filhas têm juízo
porque nós pegamos firmes. Tem exemplo ruim até na escola, mas é a
educação que nós damos que conta mais. Por exemplo, um dia a E. falou que
quem rouba pra matar a fome estava certo. Eu ensinei que não, que nós já
tínhamos passado fome e eu não roubei. Pedi eu pedi sim, isso não é pecado,
mas roubar nunca. Na televisão tem uma mulher rica na novela que rouba,
mas minhas filhas não vão roubar só por causa disso.
- (H.N.M.).Pra mim o mundo tá pior com esses programas. Eles
mostram de tudo, o exemplo não presta. O mundo antes era bom.
- .(G.M.) Era bom, mas o mundo agora está melhor.
- H.N.M.) Que nada, antigamente, sem a televisão, a gente era temente a
Deus e aos pais. Aquela época era mais fácil porque era só nós acreditando
47
nas coisas dos mais velhos. Hoje, á tudo errado nesta juventude por causa da
televisão.Essas meninas às vezes querem fazer igual, porque vêem as
mulheres da televisão fazer, roupa com as coisas tudo de fora! Onde já se viu?
Eu acho que o mundo tá nada bom. Os moços não respeitam a gente. Eu
tomava bênção do meu pai, toda manhã. Quando saia, quando voltava. Hoje,
essas meninas nem falam bom dia. Antes eu ficava bravo, hoje, larguei mão,
não adianta. Estou falando sozinho.
- (G.M.) Mas não é por causa da televisão, é porque é tudo moderno
mesmo. As coisas têm que mudar. Você vê, antes nós não tínhamos nada. Eu
tinha que fazer de um tudo: pegar água no poço com lata na cabeça e era longe
de casa. Lavava roupa no rio, ajudava meus pais na roça.E não conhecia nada
da vida. Agora essas meninas têm outra vida. Sabem de tudo e assim é melhor.
Nem estudar eu pude. Agora eu vou na escola, aprender a ler.A gente tem que
mudar. O mundo lá de Minas não é mais nosso, quer dizer, é ... mas ficou pra
trás.
- E você está indo bem na escola?
- (G.C. M.) Ah, tô milhorzinha este ano. Mas eu repeti. Sabe, eu
embaraço um pouco as letras. Mas já to dando conta de assinar meu nome. A
professora é muito pacienciosa, coitada, nem ganha nada. Quer dizer, ela
trabalha mas o salário está atrasado. Mas o Hermínio tá melhor que eu. Ele já
é mais esperto.
- Ah, Hermínio, você também está estudando?
- (H.N.M.) Uai, precisa, né. Lá em Minas eu comecei a trabalhar cedo,
não deu. Quer dizer, eu já conhecia as letras, mas pra combinar elas era que
era o Diabo. Agora tô melhor.
- A escola ajuda a entender melhor as coisas?
- (G.C.M.) Ah, ajuda sim. Você vê, professora, eu adoro os noticiários.
Por mim, via todos, mas tenho minhas meninas, as coisas,a roupa pra
lavar,tudo isso. E as novelas? Ai que beleza! Tanta coisa certa, né? Que
acontece mesmo. Nossa, dá vontade de chorar. Tudo lindo! É a vida mesmo,
né? Você vë, aqueles homens que querem ter a vida de mulher, sabe como é?
Isso existe, a gente vê por aí. Mas aqui em casa não, graças a Deus, e a gente
faz tudo certo, né? Dá educação pras meninas.
- (H.N.M.) É, não é só os estudos, não. As pessoas também, a gente vai
conversando com os outros e a gente vai tendo outras idéias na cabeça, vai
abrindo mais as idéias, entendeu?
- (G.C.M.) .Tá vendo, Hermínio. É isso, por isso que eu falo que o
mundo hoje tá diferente e melhor, tudo mais fácil. Quando eu cheguei aqui
nós não tínhamos nada. Só a roupa do corpo, não tinha trem nenhum. Alugava
um cômodo nos fundos de uma casa. Aí compramos o terreno da prefeitura.
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Pagando um tiquinho de nada por mês e fomos construindo. Mutirão, sabe?
Mesmo assim eu só tinha a roupa do corpo. As pessoas me davam as coisas.
Meus vizinhos ajudavam. Às vezes até mistura, porque nós tínhamos só um
pouco de arroz. Passamos até fome. Se não fossem os vizinhos, eu não sei o
que seria de nós. Hoje tenho minha casinha. Tá vendo, não tenho nada, mas
tenho meu teto, sou gente como as outras gentes!.
- (H.N.M.) É mais os mais jovens hoje não valorizam nada. A senhora
ta vendo aquela máquina, elas ganharam lá no núcleo porque eram as
melhores, as mais inteligentes de lá. Mas você pensa que elas ligaram, ficava
jogada aí. Eu é que guardei ali..
- (G.N.M.) Gente moça é assim mesmo. Tem coisa mais importante,é
ser honesto. Eu acho que com minhas filhas ta tudo certo. Bom é certo que
essa aí (aponta para uma das filhas que amamentava seu bebê, sentada ao
chão), fez as coisas antes do tempo. Teve um menino antes de casar, mas ela
ta com o pai do filho dela e, se Deus quiser, eles casam. Estão esperando um
emprego. Ela estava trabalhando mas foi mandada embora. O pai do menino
trabalha, mas ainda não dá pra casar. Minha outra que está casada mora aqui,
com o marido e o filho, lá no fundo. Em minha casa sempre cabe mais um
filho e neto. Importante ter todo mundo feliz por perto
E as despesas da casa, Gervina?
- (G.C.M.) Bom, o Hermínio conseguiu a aposentadoria, por causa da
diabete, e ele faz um biquinho aqui e ali, quando tá bom de saúde. Eu tomo
conta dos meninos dos outros, ganho um dinheirinho.Faço tapete pra fora, as
meninas ajudam e assim vai. Deus ajuda.
As meninas ajudam, a E., por exemplo, ajuda o trabalho de casa?
- (G.C.M.) Uai, eu falo, não é possível eu com tanta mulher em casa e
eu ter que fazer tudo. Quando mando uma, fica aquele empurra-empurra:
“Mãe, mas e a Marta não vai fazer nada? E a Elizabeth?”E assim vai. Mas elas
ajudam.Por exemplo, a E. cozinha direito, quando ela está com vontade. O
feijão dela é meio duro, mas a gente tem que comer.
Todos gargalham, felizes, à vontade.
- Bom, pessoal, já ta na hora, vamos tirar umas fotos antes de eu sair?
- (G.C.M.) Ih, mas a prosa ta tão boa. Fica mais.
- Fica pra próxima vez. Se eu não incomodar, Gervina, eu volto uma
outra hora.
- (G.C.M.) A senhora não incomoda nadinha, professora. A senhora
pode vir quando quiser. Sabe, a senhora não é fidalga, assim, é simples, pode
vir sempre. Parece que a senhora aceita a gente pobre como a gente é ...
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Fotos e despedidas com muitos abraços. Senti uma emoção verdadeira
no casal.
Liceu Albert Sabin
21 de outubro de 2005
Clipe publicitário contra a Violência (Ver fita vídeo)
Passado o clipe, os comentários vieram a seguir, acompanhados por
rostos perplexos.
- (L.S.) O assunto do filme é muito forte, ele fala de abuso das crianças,
violências, essas coisas. No começo, parece ter um teor muito engraçado,
porque as pessoas não sabem do que se trata, mas, no final, dá um choque
muito grande porque você vê que é um pai que fuma, que bebe e que bate na
criança. Ele faz uma comparação com uma criança de desenho animado, em
seguida ela mostra uma criança de verdade e aí você entende que uma criança
de verdade, quando sofre esse tipo de abuso – uma surra, ou um abuso sexual
– ela não se recupera, por isso é uma propaganda muito pesada pra fazer a
gente refletir.
- (F.R.) No começo, com as figuras do desenho animado, acaba ficando
engraçada, depois ela mostra o drama: isso não acontece só em desenho
animado, isso acontece na vida real, também.
- (T.K.) O L. falou tudo: violência, abuso. Mas vou ser bem analítico
(?), no começo a gente acaba até rindo. Depois, com a frase final, você que “as
crianças não voltam”. Nós estamos julgando, aqui, esse tipo de atitude, só que
a gente deve pensar em como vamos ser quando nós ficarmos maiores, mais
adultos...
As crianças pedem que eu coloque de novo a fita.
Ao término do clipe, L. retoma, rápido:
- (L.S.) É uma antítese a propaganda: ao mesmo tempo em que está
parecendo ser cômica, ela mostra um drama que é muito triste e dá um
impacto na gente muito forte.
- (C. F.) Em muitas famílias isso acontece, nem sempre isso é levado a
pessoas que possam tratar e muitas crianças que sofreram esse abuso, quando
mais novas são complexadas e, quando mais velhas, podem voltar a fazer isso
com o filho, sabe?
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- (E.P.K.) Acho que isso mostra a realidade de algumas pessoas, que
não têm nada a ver com a gente, por exemplo, pode ser o caso de um pai
chega do trabalho e não conseguiu alguma coisa e vai descontar no filho que
não tem nada a ver com o que aconteceu antes.
As crianças pedem, meio fascinadas, que eu passe ainda mais uma vez o
vídeo.
- (E.P.K) Depois que eu vi de novo, eu percebi que o pai, ele está, sim ,
estressado com alguma coisa, mas parece que ele está perseguindo a criança,
ele chega na casa e já reclama de tudo, o filho vai procurar o filho onde ele
está: no quarto, brincando, isso acontece...
- (C.G.) Isso é muita falta de responsabilidade dos pais, porque isso não
tem mais volta, a criança pode ter até morrido, ou ficado traumatizada.
- A mídia induz à violência?
- (L.S.) Não. Há uma predisposição para isso na própria pessoa. Não é a
mídia que é a responsável.
- (F.M.) Essa propaganda mostra a realidade de algumas pessoas. Acho
que algumas pessoas não agüentam ver a felicidade de outras. Esse pai até
revela um pouco disso porque o menino está lá quieto, vendo tevê e o pai já
chega batendo nele. É a realidade de algumas pessoas, não tem nada a ver com
a mídia.
- Que pessoas?
- (F.M.) Acho que mais, não sei... , (F. titubeia, medo de fazer
“acusações injustas”?), acho que as pessoas com menos possibilidade de
trabalho, esse pai deve ser o tipo de pai que está com dificuldade de conseguir
emprego e acaba descontando toda a raiva dele no filho
- (F.R.) Eu acho, que no começo, por causa da música de fundo, a
propaganda induz, assim, nós achamos, no começo, que é um desenho
animado; depois de uns quatro quadros, a gente vê que é a história de crianças
que os pais não têm muitas condições..., algo sobre o trabalho, sobre
problemas. É uma propaganda muito certa.
- (L.S.) Eu acho que o F.M. atentou para um fato interessante. Eu penso
que para um pai fazer uma coisa dessas, ela não pode ser uma pessoa normal,
ele tem que ter uma raiva dentro dele, um trauma; e, muitas vezes eu acho que
o problema vem bem “mais embaixo”: a criação desse pai, da bebida, algum
vício, várias coisas que propiciam uma atitude dessas que, na minha opinião, é
injustificável.A mídia, como eu disse, não pode ser responsabilizada.
- (T.K..) Quero só dar mais uma contribuição, falando duas coisas:
primeiramente, isso é uma contradição: essas coisas acontecem em periferia,
51
com famílias com menos condições de vida. Mas também pode acontecer em
todos os lugares. Também, o legal dessa propaganda é que ela alerta para
outras coisas: a bebida, o fumo. É um alerta, ela mostra que a bebida ajuda na
violência. Está aí uma boa coisa da mídia.
- (F.M.) Eu quero dizer que essa violência não é necessária, e é uma
pena porque realmente acontece e é uma questão de raiva, uma mágoa e o pai
acaba descontando no filho e eu concordo com o L. Isso depende da criação,
talvez, na infância dele ele não tenha tido um pai muito presente, ou um pai
que não dava muita atenção ou o que era violento com eles e isso ele acaba
passando pro filho.
Casa de F. M. .
Convite para um lanche junto com uma ou duas outras amigas.
27 de outubro de 2005
Fui anunciada, em casa de Fernanda, pela segurança do condomínio.
Ao chegar a casa, fui recebida por ela, com sorriso tímido. Ela interrompeu a
leitura (estava lendo “O fantasma da ópera, de Shakespeare , obra indicada
pela escola) para receber a mim e as amigas
Apareceu Carolina Ferretti; as outras tinham compromissos (ou
intimidaram-se com minha presença). No início, como as meninas mesmas
confessaram, foi difícil separar a minha pessoa, amiga, que estava ali para
tomar depoimentos e vivenciar um pouco do cotidiano delas e a minha figura
de diretora da escola. Aos poucos – fui sentindo e elas confirmaram – um tom
natural tomou conta das garotas.
Antes da chegada de Carol, passeamos pela casa e ela falou-me de seu
dia-a-dia, dos gostos da mãe pela jardinagem. De como a vida estava mais
apertada e mais sofrida com a separação dos pais – que estavam brigando
muito na justiça por causa de bens materiais -. Há um tom triste na voz de
Fernanda, seus olhos, na maioria do tempo, não brilharam (a não ser no
momento em que, entre entusiasmada e envergonhada, disse que, no futuro,
gostaria de ser atriz de televisão!).
Quando falávamos de sua rotina fora da escola, de suas atividades
extracurriculares, ela contou-nos do hipismo. Uma atividade que ela começava
a desenvolver há poucos meses (os irmãos- um mais velho, de 14 anos e outra
mais nova de 10 – já faziam). Ela resolveu entrar porque uma de suas
melhores amigas – Gabi Maximiano – também “era boa nisso”, e ela resolveu
começar para se aproximar um pouco mais dela.
Ao falar da mãe – que ela adora e “que precisa muito do meu apoio
nesta fase difícil”- ela lembrou-se de contar:
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Sabe, minha mãe adora jardinagem e adora animais. Ela não agüenta
ver um cachorro, por exemplo, na rua, abandonado. Ela pára o carro e vai ver
se ele tem dono.Semana passada, nós estávamos voltando da escola de
Hipismo, você sabe onde é, lá no Guega, na estrada que vai para Sertãozinho?
Pois é, aí nós vimos um cachorro muito magro sozinho, perto da estrada.
Minha mãe parou o carro e acabamos achando os donos dele. Ali por perto
tem uma casa, na verdade, é um casebre, muito pobre. Entramos lá e o que eu
vi foi chocante. Lá, naquele tipo de casa, mora uma família. Tem um homem,
uma mulher, muito nova, que tinha acabado de ter um bebê. O homem estava
todo quebrado. Com gesso na perna, ele tinha sido atropelado.. Ela estava
cozinhando numa lata um pouco de arroz, pra eles e pro cachorro.
Muito emocionada, os olhos de Fernanda encheram-se de lágrimas:
Minha mãe perguntou se eles tinham mais filhos e a mulher disse que
tinha mais um mas que tinha dado para outras pessoas criarem.Eu me sinto
mal de ver essa pobreza, essa miséria.
Num outro dia, nós passamos lá e nós estávamos com um amigo do meu
irmão e ele falou uma coisa muito legal, depois que nós levamos a ajuda pra
essa família e o amigo do meu irmão viu as condições dela ele virou pro
amigo dele e falou: “Você viu, Rolando, como nós somos felizes?” E eu senti
a mesma coisa. Sabe, meu irmão contou no carro que esse amigo tinha falado
que não valia a pena ajudar as pessoas pobres porque elas eram vagabundas.
Aí, depois que ele viu o que nós estávamos fazendo, ele ficou muito sem-
graça.
- Além do que vocês fizeram, o que você acha que pode fazer mais pra
ajudar tantas pessoas pobres.
- Eu não sei, mas acho que nós já fizemos alguma coisa. A moça nem
sabia ler, minha mãe orientou a mãe pra fazer o teste do pezinho, falou de
como registrar a criança. Isso já é alguma coisa.
- Você mora num bairro nobre da cidade e atitude de vocês foi muito
solidária, os seus vizinhos também são solidários?
Chegada de C.F. que justificou a ausência da outra amiga:
- Ela tinha aula de equitação.
- (F.M.) São poucos. Na verdade, não sei, mas acho que são poucos.
Esse casebre, por exemplo, é perto de um bairro nobre, mais ou menos igual
ao meu. Como as pessoas nunca ajudaram essa família?
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- E entre vocês, vizinho com vizinho.
- (F.M.) Tem, nós recebemos muita ajuda da minha vizinha. Brigas,
aqui em casa, quando eles ouvem, eles vêm. Essa vizinha me ajuda muito.Eu
tenho a Dani, minha amiga, quando eu estou “down”, ela é superamiga.
- (C.F.) No meu prédio, é muito diferente. Ninguém pensa nos outros,
eles são muito cômodos, ninguém está nem aí. Eu acho que em relação à
solidariedade, é muito importante as pessoas fazerem alguma coisa, pelo
menos pra você se sentir bem. Você sabe que pode ajudar e não você não faz
nada, é muito mal isso.Você se sente mal.
Ao falarmos de passatempo, fora do horário de estudo, Fernanda fala da
televisão e do tanto que ela adora as novelas (afirma isso com certo
constrangimento, com medo da crítica da “diretora”?).
- (F.M. ) Eu gosto MUITO de assistir novela. Eu assisto Alma gêmea e
América. Normalmente elas mostram muitas verdades
- (C.F.) Principalmente América.
- (F.M.) É, tem várias pessoas. Tem a Aidê, que tem cleptomania, ela
até procurou um psicólogo. Ela tinha prazer em viver a sensação em roubar,
ela até tinha dinheiro, mas o prazer dela era esse. Isso me impressionou muito.
Na verdade, eu fiquei muito perturbada, no começo da novela eu não entendia
isso, mas eu perguntei pra minha mãe – porque a gente vê a novela junto,
assim eu posso conversar sobre todas as coisas da vida e ela vai me explicando
– daí ela me explicou que é uma doença.Uma outra coisa que me impressiona
é a Raíssa. Ela tem tudo o que quer, mas ela tem uma família desmembrada.
(Risos). Eu fico impressionada porque o pai que sempre ligou muito pros
negócios e uma mãe que é desequilibrada. Eu lembro de uma coisa que ela
falou: “Se eu pudesse falar: eu não tenho uma relação boa com meu pai, até
que seria compreensível, mas eu NÃO TENHO NENHUMA RELAÇÃO
COM ELES”. Então, NÃO TEM, relação, não HÁ. Então, eu acho que ela é
muito sozinha. Mas o que ela dizia é que na casa dela tudo era como uma
fotografia, tudo certinho, mas era só aparência, aí ela se rebelou. Ela foi pra
um baile funk, com a amiga da Rose, que trabalha na venda, na periferia.
Por isso que vocês têm vontade de conhecer um baile funk ? (Quando elas
souberam que eu estive em uma festa desse tipo, no Parque Ribeirão, com os
jovens de lá, elas insistiram em que eu as convidasse numa próxima vez).
- (F.M.) É por isso, sim.
- (C.F.) Minha mãe falou que me deserda, se eu for a uma festa funk!
- (F.M.) É, a Raíssa fez piercing, pintou o quarto de preto. Ela fez,
depois, as pazes com o pai – sabe, a Lurdinha que está namorando o pai e era
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a melhor amiga da Raíssa está fazendo bem pro pai, porque ela dá conselhos
pros dois -. Quando ela conversou com o pai, ela disse que estava feliz
daquele jeito, em ser o que ela queria ser e não ser só uma personagem de uma
fotografia.
- (C.F.) É, a Raíssa, sempre foi uma bonequinha dentro de casa. Ela
nunca foi o que ela queria ser. Isso ficou sendo guardado dentro dela e um dia
ela explodiu.
-(F.M.) É ela começou a ser do jeito que ela queria e não do jeito que a
sociedade queria.
- (C.F.) O que me impressionou muito também é o caso dos cegos.
Acho que a televisão, quer dizer, as novelas, ensinam muito as pessoas, por
exemplo, nesse caso, a aceitarem as diferenças, pelo menos respeitar.
A tevê, então, influencia as pessoas...
- (C.F.) Olha, TODO MUNDO vê tevê, ninguém pode dizer que não, e
isso faz as pessoas conhecerem coisas... Por exemplo, na novela tem um
programa chamado “É preciso saber viver ...”, que fala sobre os cegos, aí a
gente fica sabendo de coisas que a gente desconhecia antes.Está falando sobre
preconceito em relação aos cegos. Eles falaram também da importância do
cachorro-guia, como eles são importantes pros cegos. A partir daí, passou a
existir uma lei que não proíbe mais os cachorros entrarem nos lugares, por
exemplo. Isso está melhorando a vida das pessoas, de certa forma.
- E as cenas de violência? Há quem diga que a violência na tevê gera
violência na atitude dos jovens. O que vocês acham?
- (F.M) Não, eu acho que não. Cada um tem seus motivos... não seus
motivos, mas cada um tem sua história, cada um tem seu porquê de estar
fazendo aquilo. Nada justifica a violência, mas não é a televisão, é a criação, é
a história de vida das pessoas.
- (C.F.) Eu concordo de certa forma com isso, mas os jovens que
assistem à novela vêem coisas negativas e falam: “Ah, eu quero fazer a mesma
coisa”, isso porque eles acham bonito e acham que tudo pode acontecer como
na novela e não vai ter conseqüência na vida real. Adultos nem tanto, os
jovens são mais influenciados, Mas a história de vida é mais importante para
explicar as atitudes deles.
- E os outros valores, os outros bens materiais ou não, que são
mostrados, eles estimulam, eles frustram?
- (C.F) A tevê coloca muito as marcas famosas. As pessoas que
assistem à tevê e que não podem ter esse tipo de coisas se sentem
humilhadas.Eu às vezes me sinto, eles colocam coisas muito sedutoras e
quando você vai ver o preço, uma calça Diesel que custa 1000 reais, você vê
que não dá pra comprar. Bom, mesmo que dê, eu acho um absurdo uma calça
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valwer isso..
- (F.M.) Eu acho muitas vezes as pessoas fazem as coisas porque ou
porque todo mundo tem, ou porque é tão caro que se ela tiver ela vai fazer
sucesso. Às vezes a pessoa nem acha aquilo bonito, mas porque ta na moda ela
compra. Não comigo. Apesar de eu saber que eu posso ter tudo, desde
pequena, minha mãe não me dá tudo o que eu quero, desde pequena. Minha
mãe sempre segurou muito isso. Isso me ajuda a não me sentir frustrada diante
de coisas que a tevê mostra e eu não posso ter. Ainda mais depois da
separação dos meus pais, que as coisas estão mais controladas.Antes, sempre
que ele chegava de viagem – na verdade ele nunca morou com a gente, porque
ele sempre viajou muito, nas fazendas – aí, quando ele chegava, ele brigava
um pouco,mas comprava tudo o que nós queríamos. Agora, eu preciso dar
apoio à minha mãe, e eu sei que nós não podemos ter a mesma vida. E eu
aceito.
(C.F.) Eu sempre fui muito mimada, a primeira neta. Fui sempre
agradada. Agora eu me sinto excluída, por causa dos meus primos mais novos.
Agora eu me sinto mal. Isso influenciou muito na minha educação. Eu
comecei a ver o mundo de outra forma, de outra maneira. Eu comecei a ter
que dividir. Eu não deixei de ser filha única, mas eu deixei de ser o centro de
atenção.
- (F.M.) Eu nunca fui filha única. Uma vez eu ouvi uma discussão entre
meu irmão e minha mãe, eles discutiam por causa da escola. Ela nunca deixa a
gente faltar. Um dia, por causa do horário de verão, meu irmão não levantou, e
faltou à aula.. Aí minha irmã ficou muito brava, ela disse: “Se o E. vai faltar
eu também quero faltar”. Aí minha mãe respondeu: “Ele faltou, mas ele vai
sofrer as conseqüências”. Aí, nessa discussão, minha mãe disse: “E., você tem
que sofrer as conseqüências dos seus atos, você escolheu ficar dormindo, eu
tentei uma conversa aberta com você e agora você tem que aceitar o castigo”.
Meu irmão ficou muito nervoso e respondeu: “Puxa, isso aqui é uma
ditadura”, isso porque ela ia tirar dele o computador, durante dois dias, só eu
ia usar. Aí ele ficou uma fera! Aí minha mãe falou que o computador
realmente estava fazendo mal pra ele, que só por causa de dois dias. Minha
mãe citou o caso de um menino que nós vimos engraxando sapato pra ganhar
dinheiro, ela citou isso, pra comparar com a vida que nós tínhamos e que ele
não estava valorizando.. Aí meu irmão respondeu que achava melhor que nós
não tivéssemos nada, porque daí talvez, ele não sentisse falta das coisas que
ela queria tirar. Ele falou muita asneira. Não sei o que está acontecendo com
meu irmão. Ele está meio deprimido com a nossa situação. Ele está com muita
mágoa dentre dele. A minha mãe está correta. Se isso fosse comigo, eu
entenderia, eu sou mais compreensiva. As pessoas têm que sofrer as
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conseqüências.
- (C.F.) Lá em casa é diferente porque eu não tenho irmão. Mas lá em
casa também é um quartel. Esse negócio do computador é certo. Tia Yara está
certo, ela sempre se esforçou muito pra dar as coisas melhores pros filhos.
Dois dias sem computador, olha, ele não vai morrer!
- Me falem um pouco dessa importância toda do computador.
- (F.M..) Eu vou ser sincera, assim... Eu me considero ... (F. olha dos
lados, abaixa o tom de voz, e arrisca o termo perigoso: ) viciada! Faz um ano
e meio mais ou menos que tudo começou. Antes eu só usava o computador pra
entrar na internet, ver alguma coisa. Daí começou o Icq, a comunicação com
os amigos.... Um dia eu vi o meu irmão entrando no ICQ e perguntei; “Nossa,
E., o que é que é isso?”Eu vi escrito Ho, ho, ho, na tela e perguntei se ele
estava “FALANDO” com alguém e aí ele me perguntou se eu queria que ele
fizesse um para mim e eu disse que sim e, a partir daí, eu achei O MÁXIMO!
Eu entrava TODO dia. Aí veio o MSN o ORKUT, ah, é muito bom! Bom, tem
sempre as brigas porque um quer usar, o outro também.
- (C.F.) Às vezes eu nem tenho o que fazer lá, eu sei que podia ler um
livro, não sei, mas eu não consigo, eu fico lá, entende? Bom, eu tenho
computador só pra mim, mas eu acho que vicia sim. Depois do Speed, que
tudo é rápido, você chega em casa, eu já ligo o computador, mesmo que eu
não use, eu deixo ligado e vou vendo. Por exemplo, quando começa A
malhação, eu paro, vou pra televisão, mas não desligo o computador. Nos
intervalos eu vou lá pra ver se tem alguma coisa, se alguém entrou. É muito
bom; eu sei que o excesso não é muito educativo, mas hoje em dia a gente
tem que estar por dentro de tudo e isso é o máximo!
- (F.M.) É, eu falei do meu irmão. Ele ficou com MUITA raiva, não é
legal isso.
Voltando à televisão, falando um pouco do cinema, do rádio. Em que
espaço vocês conseguem ver pessoas com quem vocês se identificam? Quero
dizer, onde vocês “acham” os ídolos de vocês?
- (F.M.) Eu me interesso MUITO por isso que você falou! Eu admiro os
atores, eles vivem mesmo o papel que eles fazem, por isso é que eu gosto
MUITO de novela (esconde um certo constrangimento atrás de um riso). Por
isso, meus ídolos são mais esses atores. Os cantores, também, quando eu
escuto o rádio, eu acho magnífico! Eu falo, quando escuto músicas, eu falo pra
minha mãe: “Mãe, como pode? Olha que voz!”. Mas os atores da novela, ah,
eu admiro. Eu acho que eles pensam, por exemplo, a Raíssa, ela deve pensar:
“Eu vou ser assim, eu vou mergulhar nesse personagem, eu tenho que me
rebelar de verdade”. Ah, sabe, eu gostaria de ser atriz. (Fer confessou isso com
muita timidez, voz baixa, entre risos nervosos e olhos tímidos).
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Por que não, é uma profissão como outra qualquer, não é preciso ter
vergonha.
- (F.M.) É, por que não?Quando eu conheci a Gabi, ela me falou que já
havia gravado uma novela, aí eu pensei que isso podia acontecer comigo, mas
eu tenho vergonha de confessar. Sabe, falar “eu quero ser uma atriz da
Globo”, todo mundo ia rir de mim. Aí eu perco a esperança, mas às vezes eu
acho que pode até acontecer, sei lá.
Risos nervosos e tímidos.
- (F.M.) Bom, tudo isso é meio assustador. Sabe, eu penso também na
questão da fama. Todo mundo te conhece, você não tem vida própria, isso é
interessante, mas é assustador.
- (C.F.) Eu admiro os atores de Hollywood, mas os atores de novela são
O MÁXIMO!
Enquanto íamos nos preparando para a mesa do lanche, falávamos
sobre Hollywood; as meninas, com muito desembaraço, elencavam os ídolos:
nome e sobrenome, sua rapidez de comunicação embaraçam qualquer um – de
outra geração, naturalmente.
Terminamos a tarde falando do último sucesso do cinema brasileiro:
“Os dois filhos de Francisco”. Dado o entusiasmo delas (Ah, eu chorei muito e
minha mãe também”), combinamos um outro encontro para uma conversa
sobre ele.
Parque Ribeirão Preto
21 de novembro de 2005
Perdidas as fotos feitas na casa de Gervina e Hermínio, entrei em
contato para pedir a ela solicitação para uma rápida visita a fim de fazer as
fotos. Gervina acabava de chegar da Igreja – era Finados. Atendeu-me ao
telefone com alegria. Ao ser indagada se ela não teria compromisso mais tarde
e se poderia receber-me, ela foi rápida na resposta:
-Se tivesse compromisso, professora, eu desmarcaria.
Boa Gervina!
Às 17 em ponto, bato à porta da casa de Gervina, mãos cheias de
sacolas: bolos, refrigerantes, balas para o lanche.
58
Parque Ribeirão – Shopping Center
3 de novembro de 2005.
Às 17h30, chego ao local combinado: frente à casa da avó de Karina.
Todos deveriam estar ali para a ida ao cinema. Carro cheio – éramos 6 - tarde
chuvosa, máquina e gravador prontos. Lá fomos nós em direção ao shopping
da área nobre da cidade. A minha entrada com as garotas despertou a atenção
dos freqüentadores.
“Os dois filhos de Francisco”.
Ribeirão Shopping 18h20
Durante o filme, duas das garotas mais estavam interessadas nos
rapazes que estavam pouco atrás de nós do que no próprio filme. As outras,
entre longos goles de coca-cola e bocadas gulosas na pipoca mergulharam,
realmente, na narrativa.
Depois do filme, um lanche no McDonald’s.
- (Q.C.C.N.) Ah, eu achei muito interessante o filme, emocionante.
- Porque é a vida deles, né?
- (C.A.C.N.) Eu também achei. É uma lição, eu vejo isso muito no meu
bairro: família passando fome, criança ajudando a sustentar a família, é c.uma
lição, é muito legal. Ele ajuda a gente a dar valor naquilo que a gente tem.
- (K.M.C.) Ah, eu achei muito legal. Eu e minha mãe gostamos muito
deles e agora eu pude ver a vida deles. Minha mãe também vai querer assistir
também.
- (E.C.M.) Esse filme faz a gente chorar. O momento mais legal foi a
hora que eles estavam na rodoviária cantando pra ganhar dinheiro. A cara
deles é muito emocionante.
- (M.C.M.) Eu gostei da parte em que o pai ficava ligando pra rádio pra
pedir a música dele.
- (Q.C.C.N.) Eu também gostei mais dessa parte. Mostra o amor de pai,
né? É diferente. É mais a mãe que faz isso, mas o pai amou mais o filho.
- (C.A.C.N.) É, todos falavam que o Francisco era um louco, mas era
um louco por amor. Eu achei muito bonita a parte em que a família dele estava
passando fome e as crianças tomam a iniciativa de ajudar a família.
- (K.M.C.) Ah, o Zezé é muito lindo! Ele é o “Perereca” da novela, quer
dizer, numa outra novela ele chamava Perereca e eu acostumei chamar ele
59
assim.
- (E.C.M) É, agora ele faz outra novela, “Os ricos também choram”, no
STB. Ele está na guerra.
- (C.A.C.N.) Esse é um filme brasileiro que eu mais gostei. Eu vi “O
sertão”, é muito bom. Mas esse, sabe, as músicas que eles colocam vêm na
hora certinha, dão muita emoção.
- (Q.C.C.N.) Depois, é uma coisa que pode acontecer conosco. Nós
podemos cantar, também, mostrar nosso talento. Eu e minha irmã cantamos na
igreja, isso pode acontecer com a gente. Pode acontecer na vida de todo
mundo.
- (K.M.C.) É, mas a gente tem que lutar como eles.
- (Q.C.C.N.) É, essa história foi um exemplo de vida. A gente vê os que
eles passaram pra chegar lá, onde chegaram. A gente vê o sacrifício deles, e
não vê o dos outros, mas é bom que a gente começa a imaginar uma pessoa
rica, por exemplo, e começa a pensar que eles devem ter lutado muito também
pra chegar onde chegaram
- (E. C.M.) É gente, mas isso é exceção, é bom a gente pôr os pés no
chão, isso não vai acontecendo assim tão fácil...
- (C.A.C.N.) É, a gente vê como as crianças, quer dizer os filhos de
Francisco tiveram um apoio. Eles tiveram estrutura do pai. Hoje, a gente vê
que a maioria das crianças não têm esse apoio. Eu acho que todo mundo tem
seu talento, mas poucos são os que têm o apoio do pai, aí as pessoas acabam
indo pro caminho errado, roubando, por exemplo. Os meninos do filme,
mesmo passando fome, eles não roubaram porque tiveram a estrutura do pai.
- (Q.C.C.N.) Ah, hoje eu vou sonhar com o Zezé de Camargo.
- (M.C.M.) Eu não entendi o Miranda, ele não apareceu mais e, na
primeira vez, ele não pagou os pais dos meninos.
- (K.M.C.) Ah, eu acho que ele só se arrependeu com a morte do irmão
do Zezé.
- (E.C.M.) A Vanessa de Camargo não aparece, né?
- (C.A.C.N.) Os meninos que trabalham no filme, que fazem o papel
deles quando crianças, são muito bons atores, né? O olhinho deles...
- (K.M.C.)As músicas deles são muito boas, né?
- (C.A.C.N.) Antes eu não gostava muito, mas agora, meu Deus, eu vou
querer ouvir todas. Acho que, depois do filme, eles vão vender muito mais
discos.
- (E.C.M.) Mas eu achei o Zezé muito frio no final do filme, ele só
apertou a mão da mãe, que frio! Depois de tudo o que o pai dele fez por ele.
- (Q.C.C.N.) A irmã deles e o irmão que não anda são cantores também,
eles são cantores evangélicos. Muito lindos.
60
- (Q.C.C.N.) Ah, gente foi uma quinta-feira muito boa, gente!
No carro, de volta a casa.
- (Q.C.C.N.) Vou fazer uma entrevista, agora é minha vez. O que você
gosta num homem?
- (C.A.C.N.) Dos olhos.
- (K.M.C.) Eu também.
- (Q.C.C.N.) Os moços lá no shopping são muito lindos.
- (C.A.C.N.) Ah, então eu vou contar uma coisa. A hora que Q. foi ao
banheiro, ela demorou pra voltar porque ela foi conversar com aqueles dois
caras que estavam sentados lá no fundo.
- Tá brincando!
- (C.A.C.N.) Não, eu juro.
- (Q.C.C.N.) Você que falou pra eu ir lá.
- (C.A.C.N.) Eles estavam paquerando todo mundo.
- (Q.C.C.N.) Então, eu fui e eles falaram pra eu sentar ali um pouco, eu
sentei, eles perguntaram meu nome e uma hora um deles, o mais feio, pôs a
mão em cima da minha e eu dei um soco na mão dele.
Gargalhadas
A volta foi alegre e descontraída. Falou-se dos sanduíches, da beleza
dos atores. A perfeição da voz deles, o cenário.
- (C.A.C.N.) Ah, eu vou sonhar com o Zezé!
- (Q.C.C.N.) Quem não vai!?
Glete de Alcântara –
Os dois filhos de Francisco/ América
24 de novembro de 2005.
A chegada à escola provocou alvoroço no grupo que estava chegando
para o primeiro período de aula. Eram 7h30.
Ao saberem que passaria o filme ao grupo que freqüentava as reuniões
que andávamos fazendo, desde o início do semestre, outros alunos que se
esquivaram da pesquisa, insistiram em participar da sessão.
Depois de todas as dificuldades para a montagem do DVD que ainda
não havia sido utilizado na escola, conseguimos iniciar a projeção que
precisou ser interrompida no horário do intervalo. Os jovens iam merendar...
61
Durante o intervalo, algumas jovens quiseram ficar conversando e
aproveitamos esse momento para nos aproximar daqueles que se mostraram,
inicialmente, mais arredios. Duas jovens, que estavam conversando antes do
início do filme, mais velhas, que não haviam se disposto, antes, a participar
das entrevistas, mostraram-se abertas, naquela hora, a uma proximidade
maior:
- Vocês estavam dizendo que os meios de comunicação abrem a cabeça
das pessoas... Eu gostaria de saber um pouco mais disso. Os meios, na opinião
de vocês quebram preconceitos?
- (L.M). Eu não acho que quebra tanto não. Por exemplo, o
homossexual, mesmo com as novelas que falam disso, algumas pessoas vão
sempre pensar diferente, não vão aceitar.
- (S.A.N.). Eu não acho que quebra totalmente. Eu lembro de uma
reportagem que a professora de Educação Física deu, eles falavam de um
preconceito, o racismo. Foi o caso do jogador de futebol que, só porque era
preto, ele foi chamado de macaco. Apesar de outro time ter tido uma punição,
devia ter tido mais coisa, não só isso.
- O preconceito racial no nosso país é maior do que o do
homossexualismo?
- ( L.M. ) Eu acho igual.
- (S.A.N.) É igual, sim.
- (L.M.)Tem uma lei, que isso crime. Sobre o gay também. Todo
mundo é igual.Eles têm o mesmo direito que a gente.
- Você aceita o homossexual, então? Ter um irmão assim, um filho?
- (L.M.)) Ah, aí eu não sei!
- (S. A.N.)) Ah,, eu aceito, eu não sou contra nada. Mas eu falei outro
dia com a minha mãe: Mãe, se tivesse alguém na família, você aceitaria?Ela
disse que sim, desde que eu não fosse a primeira da família.
Gargalhadas do grupo.
- (S.A.N.) Eu acho tudo normal, quando eu vejo na rua, por exemplo,
pra mim tudo bem, mas as pessoas não respeitam os outros, todo mundo fica
falando mal de todo mundo. As pessoas querem tomar conta da vida dos
outros, por isso que dá muita briga, muita morte. Cada um tem que cuidar da
sua própria vida. Eu acho isso.
-O que acham da questão dos cegos que a novela América trouxe para a
história.
- (K.M.C.) Ah, é o Marcos Frota que faz papel de cego!
62
- Sim, mas há vários outros atores e atrizes.E aí, o que acham?
- (K.M.C.) Ah, normal!
- Voltando à novela, eu gostaria de saber como vocês vêem as duas
realidades que ela traz: o mundo do rico, o mundo do pobre. É frustrante ver
as coisas que a gente não tem? As pessoas se frustram ou ficam angustiadas
em ver tanta diferença?
- ( L.M.) Bom, eu penso assim: a gente nasceu pobre, mas, nem por
isso, a gente tem que morrer pobre,entendeu? A gente tem que estar sempre
tentando crescer mais. A vida está aí pra isso. A gente tem que ir à luta.
- (S.A.N.) É,mas o pobre acaba sendo mais desfavorecido. Em vários
objetos, quer dizer, como eu posso falar, não sei.
- E a televisão faz mal, mostrando essas diferenças?
- (S.A.N.) Ah, faz! Esses cantores que ganham muito dinheiro, os
atores. A gente sabe que eles ganham muito dinheiro, por que eles precisam
mostrar. Eles filmam aquelas casas enormes, cheias de luxo. Pra quê? Não
precisa disso! Não precisa mostrar.
- Vocês conhecem a Revista Caras?
- (L.M.) Conheço.
- E aí, o que você acha dela?
- (L.M.) É uma revista que só mostra luxo, riqueza. Ela não mostra a
realidade.
- E qual é a realidade?
- (L.M.) A realidade são as pessoas morrendo de fome, as pessoas se
matam porque devem alguma coisa, são doentes, precisam de uma ajuda. Isso
não mostra na Caras. Eles só mostram um mundo que tem “glamour”. Ah, eu
não vou falar, se eu falar, eu vou ficar nervosa.
- E o fillme que nós estamos vendo? Vocês estão gostando?
- (S.A.N.) Eu estou gostando muito. O pai dos meninos está dando uma
esperança melhor pros filhos.
- (L.M.) É o pai dele apostou tudo no filho. Isso eu acho que o mais
legal no filme. Trocou uma plantação por uma sanfona... Ele acreditou. Isso é
emocionante!
- Há um momento no filme em que o pai arrebenta um cômodo da casa
dele, no sítio onde eles moravam, pra fazer uma escola. O que vocês acham
disso?
- (S.A.N.) A escola é uma LEI! E, no filme, os filhos do Francisco, se
não tivessem ido pra escola que o pai criou, eles não podiam compor músicas.
A escola, então, é muito importante pra vida das pessoas.
- Pra você, pra sua vida, a escola também é importante?
63
- (S. A.N.) Ah, pra mim também é muito importante. Minha mãe, por
exemplo, ela nunca teve escola, estudo completo, sabe? Aí ela me dá o maior
apoio. Eu disse pra ela que eu quero fazer veterinária e ela me disse que vai
fazer tudo pra me ajudar até eu chegar lá. Mesmo que eu não tenha dinheiro
pra fazer faculdade, eu vou fazer de tudo. Eu acho que é possível eu chegar lá.
Tendo força de vontade, a gente consegue. O governo está ajudando alguma
coisa, nessa parte. Tem aquela bolsa-estudo. Você trabalha de dia e estuda de
noite. Com força de vontade, eu acho que as pessoas conseguem, os pais
ajudando...
- (L.M) Bom, o que aconteceu no filme mostra muita coragem. O pai foi
muito bom pros filhos. Estudo é tudo na vida da gente.
- A escola, esta escola, pra você é importante?
- (L.M.) Muito! Ela mudou a minha vida. Aqui a gente se comunica
com os outros, a gente aprende várias coisas que não sabe, os deveres e os
direitos da gente...
- (S.A.N.) Até pra pegar ônibus a escola é importante. Ela ensina a
gente a ler e não depender dos outros. É horrível ter que depender dos outros.
- Você tem planos pro seu futuro?
- (L.M.) Eu gostaria de fazer psicologia, mas eu não sei ainda.
- Você acha que está se preparando para, no futuro, fazer um vestibular,
pra entrar em uma escola que não seja paga?
- (L.M.) Um pouco. Eu estudo, eu me interesso pelos estudos, mas mais
tarde eu sei que vou ter que me dedicar mais.
Vocês têm o hábito de ler?
- (S.A.N.) Ah, eu leio. Romance. Assim, os livros que me interessam.
- A escola oferece livros?
- (L.M.) Os professores passam livros. Eu li “Amor de Perdição”.
Eu adorei! Eu não saio da biblioteca “Altino Arantes”. É uma biblioteca lá no
centro da cidade.
- Quem mais vai daqui vai muito à biblioteca?
- (L.M.) Ah, várias colegas, bom não muitas.
- Na opinião de vocês, as pessoas que freqüentam a biblioteca e lêem
mais são diferentes?
- (L.M.) Ah, são!
- Em que sentido?
- (S.A.N.) Elas têm uma opinião formada sobre as coisas. Na hora de
fazer uma redação, que a professora pede, por exemplo, você já tem um
mundo na sua cabeça pra pôr no papel.
- E fora da escola, o que vocês fazem pra se distrair?
- (L.M.) Eu leio, até no shopping eu vou, às vezes, teatro.
64
- O que você viu de bom no teatro?
- (L.M.) Eu esqueci.
E você?
- (S.A.N.) Balada a minha mãe não deixa, mas eu vou pra casa de
amigos, a gente faz reuniões lá e Lan house também, a gente não sai de lá.
Gargalhadas.
- A que horas vocês vão a essas LanHouses?
- ( S.A.N.) Quando a gente tem dinheiro. Assim, depois da aula, quando
a gente sai mais cedo.
- Na hora do almoço?
Gargalhadas. .
- (S.A.N.) Se a gente tem dinheiro, ué...
- (L.M.) Ah, mas não é só jogo lá. A gente aprende várias coisas porque
a gente pode navegar pela internet.
Vocês que navegam pela internet e gostam tanto de jogos do computador,
vocês acham que esse uso tão freqüente do computador deixou as pessoas
mais solitárias?
- (L.M.) Solitária? Não! Lá na Lan House tem várias pessoas e a gente
faz amizade lá também. Não tem nada de solitário nisso, não.
Bom, o pessoal já está voltando do intervalo, vamos retomar o nosso filme?
Ao término da projeção, a conversa continua...
- E aí, pessoal, o que vocês acharam?
- (Todos). Muito bom!
- Deixe-me perguntar algumas coisas. Eu gostaria que vocês me
falassem um pouco sobre a condição do homem que sai do campo e procura
uma vida melhor na cidade. Isso é bom?
- (J.S.C) Ah, é um pouco aquilo que nós falamos da América. As
pessoas vão pros Estados Unidos pensando que vão ter vida melhor. É pura
ilusão. Aqui também é assim. O homem sai da roça e vai pra cidade grande
achando que vai se dar bem, e não é nada disso.
- (S.C.O.F.) Mas eles melhoraram muito!
- (J.S.C.) É, mas é exceção. Se não fossem os meninos, os pais iam ficar
na miséria. O pai dele nunca melhorou de vida no trabalho. Ele trabalhava na
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construção, amassando cimento, e lá ficou até o final. Se não fossem os
filhos...
- (E.C.M.) É, mas foi meio a meio. Os filhos e o pai. Se o pai não
tivesse acreditado nos meninos, nada ia acontecer.
- E o que vocês me dizem da escola. O pai – Francisco - derruba parte
da escola e exige do prefeito que se monte lá uma classe para as crianças da
região estudarem, inclusive os filhos dele, né?
- (D.C.M.C.) A escola foi muito importante. Se eles não soubessem ler
e escrever, como eles iam compor as músicas?
- Todos diziam que o Francisco era um louco. Pra vocês, ele era
realmente louco?
- (Todos) Nããããoooo.
- (F.M.) O que ele tinha era persistência e fé!
- Esse sonho de Francisco é possível?
- (L.M.) Lógico, ele correu atrás, ele não desistiu. Mas pra eles é
possível, pra mim, não, eu não sei cantar.
- Mas, sem ser com a música, você não acha que é possível que você
realize outros sonhos?
- (L.M.) Acho, com certeza!
- Como vocês entenderam aquela passagem em que o Francisco, pela
primeira vez, levou os filhos pra cantar no rádio e o dono da estação de rádio
mandou-os embora?
- (D.R.S.) Eles não sabiam a letra da música.
- (E.C.M.). Não, não foi isso. Foi por causa de uma palavra... eu esqueci
...
- Tirania.
- (E.C.M.) É, isso mesmo, tirania. Essa palavra falava mal do
presidente, e naquela época era proibido. Não é porque eles não sabiam a letra,
eles não sabiam o significado das palavras que eles estavam cantando.Foi por
isso.
- (S.C.O.F.) Era época dos militares. Não tinha liberdade de expressão!
Se alguém falasse mal do governo, ia preso. E essa palavra significava ir
contra o governo.
- Quase ao final do filme, antes de os filhos fazerem sucesso, a mãe
entra em casa e, vendo o marido preocupado com o futuro dos filhos, ela diz:
“Foi bem acordada que eu criei meus filhos!” Como vocês entenderam isso?
- (E.C.M.) Ela quis dizer que tinha criado os filhos de “pé no chão”, que
ela não tinha se iludido, como o marido.
- Quem estava com a razão na criação dos filhos? O sonhador ou a mãe,
mais realista?
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- (E.C.M.) Se não fosse o sonho do pai, nada teria acontecido pra eles.
- O pai acreditou nos filhos.
- (A.C.R.P) Ela é mãe, né? É assim mesmo, mas eu acho que ela devia
ter tido um pouquinho mais de confiança no marido dela.
Qual a parte mais emocionante do filme?
- (F.M.) A morte do irmão do Luciano.
- (R.A.S.) É a hora que o Luciano gastou muito dinheiro na brincadeira
da boca do palhaço pra ganhar uma bola de futebol pro irmão, que era o sonho
dele ter uma, e logo depois tem o acidente e ele morre. Foi muito triste!
- (D.S.S.) No fim, no show, eles começaram a chorar por causa dos pais
que eles estavam lá.
- (L.M.) O pai trocou toda a colheita dele numa sanfona. Nossa, foi
muito corajoso, eu fiquei emocionada.
- (S.A.N.) A mais emocionante foi a morte do irmão, mas eu acho que
foi engraçado que toda hora eles saíam do matinho e a mulher já estava
grávida.
Gargalhadas.
- Valeu a pena ter visto o filme?
- (Todos) Valeu!!!
- Digam-me por quê.
-(A.C.R.P.) Foi uma lição de vida. A gente sai daqui refletindo.
Pensando que a gente pode conseguir alcançar nosso sonho.
- (S.A.N.) Mesmo porque nós também temos uma condição de vida
melhor que a deles. A gente não mora no fim do mundo, acho que a gente
pode sonhar até mais.
- Muito bom, pessoal. Obrigada. Boa sorte pra vocês!
- A saída dos jovens foi barulhenta e alegre. Era o último dia de aula do
ano letivo. Para trás, fui juntando fios, anotações e sentimentos esparsos de
um semestre que já se passava. Olhando a sala, antes de trancá-la com grades,
senti uma nostalgia de que talvez ficassem ali, também trancados, os sonhos
daqueles garotos e garotas...
No portão, K.M.C. me esperava para uma última palavra:
- (K.M.C.) Margaret, eu gostei muito de ter participado deste trabalho.
- Legal, Karina, por quê?
- (K.M.C.) Você me deu muitas dicas pra eu me dedicar mais aos
estudos. Por isso eu não vou esquecer isso nunca!
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Abraçou-me, sem resistência, pela primeira vez...
Parque Ribeirão Preto
24 de novembro de 2005/11
Assim como foi feito em casa de E., solicitei uma visita na casa de K.,
para aproximar-me um pouco mais da família da garota que me acompanhou a
todas as entrevistas, desde o começo de meu trabalho.
O pai dispôs-se a receber-me – aliás, segundo K., ele estava ansioso por
isso – já que a mãe trabalha o dia todo.
Final de tarde chuvosa, calor de 37o. Lá fomos nós.
- Boa tarde, José Umberto, já estive aqui um vez, você se lembra de
mim, não é?
- Lembro, professora. Entra.
- Quem é o garoto –referia-me a um menino que estava no colo dele,
assistindo à televisão, de seus 7 anos, aproximadamente – é filho também?
- Não, é o filho dos vizinhos. As meninas tomam conta dele, enquanto
os pais vão pro serviço.
- Ah, e elas ganham por esse trabalho, José Humberto?
- Ganham. Ganham R$20,00 por mês.
- Já dá pra dar uma ajuda, né?
- Ah, dá sim.
- Como é criar filhos, hoje em dia, José Humberto?
- Até os 10 anos é fácil, depois é difícil.
- Por quê?
- Principalmente filha mulher. Você cria filha com todo carinho, aí vem
um malandro aí e quer ficar, ficar. Eu sou dos antigos.
- Você quer dizer que os rapazes querem só ficar e não querem
compromisso, é isso?
- É isso mesmo.
- Por que acontece isso hoje?
- A televisão influenciou. Os adolescentes, se não tiverem cabeça,
copiam o que ela passa. Elas querem fazer igual: o jeito de vestir, de calçar,
até de comer. Elas não comem aquela abobrinha batidinha, um torresminho lá
de casa da avó, de Minas. Elas querem coisa que passa na propaganda. As
coisas que já são congeladas. Até os grandes também querem copiar.
Influencia sim.
- O que você acha de morar neste bairro, José Humberto?
- Muito bom. Os vizinhos são gente muito boa. Tem malandro aqui,
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mas eles respeitam a gente. Você pode deixar tudo aberto que eles não entram.
- Você vai muito para o centro da cidade?
- Só pra fazer as despesas da casa, comprar alguma coisa pros filhos.
- Você não pode fazer isso aqui no bairro?
- Posso, aqui já começa a ter as coisas. Supermercado, está abrindo uma
farmácia melhor, tem a Caixa pra gente pagar as contas. Mas aqui tudo é um
roubo. Um tênis aqui é o dobro.
- E emprego, em Ribeirão Preto, o que você acha? Ainda tem?
- É difícil. Eu estou parado. Só tem emprego pra um, dois meses. Só pra
sujar a carteira. Não vale a pena.
- E como você está fazendo?
- Faço um bico aqui, outro lá. A mulher está trabalhando, a minha filha
mais velha também está. Fome nós não passamos.
- O que é que a família gosta de comer, José Humberto?
- Comida mineira, da minha terra. Torresmo, arroz, feijão com jiló.
- Minhas filhas não, elas já são enjoadas; não querem arroz, feijão, abóbora,
elas querem lasanha, essas coisas assim.
- Você veio de Minas, então?
- Vim. Minha mãe ficou viúva e aí a patroa dela vinha de mudança pra
cá e carregou ela e os filhos.
- Você estudou aqui?
- Até a sétima série.
- Por que parou?
- Vou falar a verdade: malandragem! Hoje eu sofro com isso. As coisas
ficam difíceis sem o estudo. Por isso que eu pego no pé delas para o estudo.
Eu quero um futuro melhor pros meus filhos.
- Você acha que isso é possível, com essa dificuldade de emprego?
- É possível sim, se elas querem, elas têm.
- Fale um pouco de suas filhas, José Uumberto.
- A Karina começou a responder, mas ela tem juízo, mas está
respondona. Na minha época, o pai flava, os filhos obedeciam, na hora!
Agora, não. Eu mando fazer alguma coisa, ela manda esperar. A Débora é
filha de criação. Essa está dando trabalho, não tem juízo. Tem cabeça, mas
não usa. A Jéssica está na adolescência, 17 anos, sabe como é. Acha que pode
tudo. Quando chega de ovo virado, não dá nem pra chegar perto. A Elaine é a
quietona da casa. Não conversa, não tem namorado. O Juninho é molecão. 9
anos, ainda é criança. Gosta de futebol. Diz que quer ser jogador.
- É diferente ter filho e filhas?
- No amor, não, mas a gente mais liberdade com filho, né? As meninas
puxam mais pra mãe, falam mais com ela. Quando é pra pedir coisa é com o
69
pai.
Risadas
- Do que você mais gosta na tevê, José Umberto?
- Esporte. Eu já joguei futebol. Profissional, no Botafogo. Acho que é
por isso que o Juninho quer ser jogador. Eu estimulo, mas a mãe não, ela não
quer.
- Você não assiste a novelas?
- Assisto.
- E o que você acha? Fale-me um pouco, José Humberto, desses dois
mundos que eles mostram: o bem e o mal, o pobre e o rico.
- Esse negócio de ver tanta gente com tanto dinheiro e os outros que não
têm nada. Isso incomoda. Isso faz mal. Pensar que tem tanta gente roubando.
Você vê essa CPI. Gente roubando milhões e milhões e o povo passando
fome. Isso revolta!
- O mundo é melhor com televisão ou sem televisão?
- Era melhor o mundo sem televisão.
- Por quê?
- Eu conheci televisão já tinha mais de 20 anos. Antes a gente ia mais na
casa dos outros. A gente ficava até tarde na roda dos amigos, conversando. As
vizinhas faziam café e levavam pra porta e a gente sentava fora, na calçada, de
noite, tomava café e conversava.
(José Umberto se refere ao passado, em tom arrastado, mastigando e
alongando a pronúncia das vogais. Segurando, com nostalgia, os tempos idos.
O tempo em que se estava junto).
- Hoje ninguém faz mais isso. Também não tem condição, né? Ficar na
porta de casa com o mundo violento de hoje, quem pode? É só deixar o portão
aberto e as pessoas estão entrando pra roubar.
- Com essas mudanças todas, José Umberto, você acha que o casamento
hoje também mudou?
- Ah, tem muita diferença. Hoje tem muito interesse.
Interesse? Como assim?
- O povo fica casado 3, 4 meses e depois separa para pegar pensão. O
marido também não quer trabalhar pra pegar pensão da mulher. Como as
coisas estão mudando, nossa! Antigamente, as pessoas ficavam casadas pra
sempre, não tinha nada disso.
- Isso acontece entre as famílias mais ricas ou entre as mais pobres?
70
- Com todo mundo. Acontecem as coisas e as pessoas já querem
separar, ninguém tem paciência pra consertar nada. Rico, pobre. Tudo igual.
- Você se sente um homem realizado?
- Ainda não.
- Por quê?
- Porque eu não consegui ter tudo o que eu quero ter pra dar pras
minhas filhas. Quando a televisão mostra alguma coisa, eu fico revoltado
porque eu quero conseguir as coisas para elas. Não fico assim revoltado de
ficar nervoso, mas eu quero conseguir uma vida melhor pra elas.
Você quer falar alguma coisa para nós finalizarmos? Da sua vida, da política...
Da política não dá nem pra falar. Trabalhei pra vários políticos em Ribeirão, já
elegi prefeito e vereador, todos me decepcionaram. Minha vida, bom... Até
agora ela está boa. Eu quero melhorar mais, não pra mim, pra minhas filhas,
minha mulher, que trabalha muito, me ajuda, sempre me ajudou. De uns três
anos pra cá, ela que está segurando a barra.
- Ela ganha bem?
- Doméstica, é o salário. Mas a gente vai tocando. Sei que as coisas vão
melhorar.
Depois das fotos, as despedidas. Corro sob a chuva, comemorando o ar
puro. Karina corre atrás de mim:
- Margaret, você me compra um sorvete?
Liceu Albert Sabin
29 de novembro de 2005.
Reunimo-nos com os alunos – aqueles que se dispuseram a vir – para
conversarmos sobre o filme – O dois filhos de Francisco e e sobre o último
capítulo da novela América.
- Eu gostaria de conversar com vocês sobre o filme Os dois filhos de
Francisco e o último capítulo da novela América. Tudo bem?
- (Todos) Tudo bem!
- Então, vamos lá. Quem quer falar sobre a novela América?
- ( G. B.) Bom, eu não vi o último capítulo porque no final tudo
acontece de uma vez, e isso acaba sendo chato. Preferi fazer outra coisa. Mas
o que eu acho importante na novela é que todo mundo agora fica mais atento
na passagem do México para os Estados Unidos. Antes isso acontecia e as
pessoas não tomavam muito cuidado, a novela, agora, alertou todo mundo
71
como é perigoso as pessoas se aventurarem e se darem mal.Eu conheço um
casal que se deu bem lá, são pessoas que são desonestas e estão lá ilegalmente.
São pessoas que só pensam em dinheiro, tipo ganância, entende? Eu não acho
isso legal!
- Por que não?
- (G.B.) Primeiro porque você está entrando num lugar que você não
conhece, e agindo de maneira errada, é ilegal, eu não acho isso correto.
- Que tipo de exemplo a novela está dando com essa história?
- (G.B.) A novela mostra o lado errado das coisas.
- (C. V.) Eu acho que a novela cria uma ilusão nas pessoas, a Sol
consegue passar, da primeira vez, depois ela se envolve com pessoas que usam
droga, ou traficam droga, mas depois ela volta de novo por causa do filho.
Enfim, sei lá, acho que ela cria uma ilusão na cabeça das pessoas de que tudo
pode dar certo. As coisas reais não são tão simples assim.As pessoas podem
ser presas lá e nunca mais poderão voltar.
- (T. K.) Ah, eu quero falar sobre isso. Nós estávamos até conversando
na aula do Marcelo de Ciências. Antes pra ir pro México nem era preciso
apresentar passaporte, mas agora, com essa gente toda querendo fazer de lá
uma passagem para os Estados Unidos, eles estão exigindo. A novela, então,
estimula porque a gente começa a mostrar esses casos e as pessoas confundem
com a realidade.
- Então a mídia cria ilusões?
- (C.V.) Eu acho que cria. Antes a gente não tinha idéia dessas coisas,
de repente começa a ver uma pessoa, jovem, lutando assim, passando por
tudo, sem dinheiro, pra ajudar o pai dela e conseguindo vencer vários
obstáculos. Vendo isso, as pessoas pensam: Puxa, se ela pode eu também
posso. Eu conheço um monte de gente, mais velha de que nós, mas que
querem ir trabalhar um tempo lá nos Estados Unidos pra juntar dinheiro, como
a Sol fez.
- Se ela cria ilusões, vocês acham que ela quebra tabus?
- ( R. H.) Explique melhor o que é isso.
- Quem quer explicar ao colega o que significa isso.
- (C. F.) É falar abertamente sobre as coisas. Eu acho que quebra tabus,
sim. Por exemplo a Sol foi para os Estados Unidos ganhar a vida e pra isso ela
fazia qualquer coisa. Por exemplo, ela dançava numa discoteca. Todo mundo
acha que isso é uma profissão que não é certa, mas ela fazia isso com um
objetivo, ela estava tentando ganhar a vida dela e isso a novela mostrou que é
válido. Acho que muita gente acabou aceitando o que ela fazia/
- (R. H) Acho que essa novela estimulou muita gente a fazer muita
coisa. A primeira é a festa de rodeio. Ela estimulou muita gente a ir a essas
72
festas de peão, rodeio, mesmo quem achava meio brega, agora todo mundo
está gostando. Também mostrou a vida dos cegos. Isso foi importante. A
novela mostrou que, mesmo sendo cega, a pessoa pode ter uma vida como os
outros. A gente passou a respeitar mais as pessoas deficientes. Foi muito
importante a novela nesse ponto. Também mostra que não é só gente da
periferia que gosta ou que freqüente baile funk, as pessoas ricas também
gostam. Ta certo que a novela exagera um pouco. A cidade
tinha festa todo dia ... é meio impossível, né?
- (F. M.) Eu acho que a maioria das novelas da Glória Perez pega muito
essa questão sexual, quer dizer, o homossexualismo.Ela aborda os melhores
temas. Antes as coisas eram mostradas, mas tudo era meio obscuro. Agora,
com as novelas as coisas são mais mostradas, são mais claras.
- E isso, na sua opinião, é legal?
- (F. M.) Por um lado é legal, por outro não. Tipo, as pessoas querem
fazer o que os personagens fazem, como a Sol, por exemplo, que foi para os
Estados Unidos e acabam se dando mal, acaba não dando muito certo, e isso
frustra as pessoas.
- ( L. M.) Bom, mas a novela fala também, como o F. disse, sobre o
homossexualismo. É importante que a novela fale sobre isso porque dá uma
quebrada no tabu, ninguém consegue falar nisso numa boa.
E o fato de a novela ter abordado tão abertamente o tema faz com que você
tenha uma posição diferente da que você tinha antes de assistir à novela.
(L. M.) Ah, agora, depois da novela, eu aceito mais o homossexual.
A gente começa a ver o lado deles, o que o cara passou, o que ele sente, o
medo dele de falar pra todo mundo. A novela me ajudou a entender o
problema e eu acho que se acontecesse na minha família eu iria apoiar ele,
como a mãe dele
ajudou.
- (T.K.) Ó, deixa eu falar. Eu não tenho nada contra gay... Tipo, eu ....,
bom, eu não tenho, tipo... preconceito, mas eu, assim.... eu às vezes fico meio
com medo, sabe, com receio...
- Como assim?
-(T.K) Ah, sabe, vai que eu to saindo com um amigo e depois..., já
pensou ...?(risadas).
- Você tem receio daquilo que os outros vão pensar?
- (T.K.) É também, mas não é só isso...
- O que é, então?
- (T.K.) Ah, influência… (risadas)
- (C.F.) A novela ajudou as pessoas a deixarem de ter vergonha de
fazer suas opções sexuais. E a gente aprende um pouco a respeitar. Se duas
73
pessoas escolheram ser felizes assim, acho que a gente tem que entender,
respeitar, mesmo! Deixar eles viverem assim.
- (F.M.) Foi legal o que a mãe dele
falou: “Eu não quero isso pro meu filho,porque essa é uma vida difícil, mas
eu respeito”. Eu estava lendo num jornal, um pequeno, assim, ou uma revista,
não lembro, que muitos homossexuais, por causa da novela, acabaram
contando pra família e eles passaram a viver mais felizes. Isso é uma opção de
vida e a gente tem que respeitar.
- Então, podemos dizer que realmente a novela democratiza um pouco a
maneiro de as pessoas se relacionarem.
- (-(F.M.) Por isso que a gente pode chamar esse horário de nobre.Todo
mundo está ligado porque os temas das novelas desse horário servem para
isso. Como eles sabem disso, eles abordam esses temas para melhorar a
sociedade. Aí todo mundo – rico, pobre, preto, branco, homossexual - assiste
e pode ficar por dentro do que está acontecendo.
- (L.M.) Eu acho que a novela está errada em não mostrar o beijo
no último capítulo.
- Por quê?
- (L.M.) Ah, se eles quiseram ser tão naturais com esse tema, por que
não mostrar tudo o que acontece normalmente entre duas pessoas de uma
vez?. Não mostrar foi preconceito também. Até os homossexuais ficaram
revoltados.
Todos confirmam ao mesmo tempo essa posição da colega
.
- (T.K.) Ó, peraí, eu não vi o último capítulo. Eles iam mostrar um beijo
dos gays? Quem ia dar?
- (L.M.) O Júnior e o Zeca.Os dois, ora.
- (T.K.) Nossa!
- (F.M.) Deixa eu falar. Eu estava lendo numa revista que o Bruno
Galhardi, o que faz o Júnior, ele disse que o fato de não ter tido o beijo tirou
um pouco a glória da história, da novela. E ouvi dizer que saiu em várias
revistas, eu não sei se é verdade, que pra fazer essa cena, eles tiveram que se
beijar em várias cenas, daí que eu penso que foi mal não ter tido a cena.
- (R. H.) Eu li uma entrevista dele e ele falou que teve que ensaiar muito
e se tivesse a cena ela ia ser bem-vinda.
- (G.B.) Pra gravação do beijo, eles fizeram uma preparação
psicológica, eles tiveram toda uma ajuda por trás. E se o beijo aparecesse
realmente na tevê, cada um ia ganhar uma boa grana.
- (C.F.) Se eles estavam abordando esse assunto, eles deveriam abordar
74
com mais naturalidade. Hoje isso é mais natural, se você vai ao shopping, por
exemplo, você pode ver...
- (L.M.) Não espera, não é tão comum não. Eu acho que se eles querem
se beijar, eles têm que estar num lugar reservado. Isso não é tão aceitável
como você fala. Já pensou, você andando na rua e ver um agarramento!
- (C.F.) Não é tão comum assim, mas pode acontecer e eles deviam ter
mostrado, é pena que tenham feito a censura.
- (F.M.) Tem uma moça que trabalha na loja do meu pai que estava me
contando, o marido dela é segurança no shopping e ele disse pra ela que a
maioria da população que vai ao shopping são homossexuais, e ele falou que
se você entra no banheiro, tem muito homossexual se beijando e isso lá é
normal.
- (T.K.) Ô Margaret, olha, não pode falar que essa novela com esse
negócio de homossexual melhorou o Brasil. Tem muita gente que tem
preconceito e se essa novela prega isso, já pensou o que vai ser? A gente
andando na rua e ver dois homens se agarrando?
- (R.H.) É, mas a gente vai ter que se acostumar com isso.
- (T.K) É, você tem razão, a gente pode ter que conviver com isso, mas
vai acontecer como antigamente aconteceu com os travestis. Jogaram extintor
neles, agrediam... Faziam um monte de coisa porque não aceitavam.
- (F. M.) É mas eles são PESSOAS TAMBÉM!
- (G.M..) Sabe, eu acho que foi bom a novela das oito mostrar esse
problema de homossexualidade. A gente tem que ir se acostumando a aceitar o
que os outros querem fazer, sem dar palpite. A vida é assim. A novela ajuda a
gente a respeitar.
- (F.M.) Não sei se meu comentário é pertinente, mas se você é homem
e todo mundo aceita isso, por que você não pode aceitar em quem é
homossexual? Eles são pessoas também, iguais à gente, só que têm o modo de
vida deles.
(T.K.) Ta certo, eu concordo, mas também eles têm que respeitar. Outro
dia eu estava com o A ., andando na rua e daí um viado, quer dizer, um gay
mexeu com a gente: “Ai gostoso...”Aí não pode, né?
Gargalhada de todos.
- (T.K) Ei, gente, ele falou isso pro A . e não pra mim!
Gargalhada de todos.
- (C.F.) Você tem que aceitar numa boa, o fato de você não ser, tudo
75
bem, ué, você não deve ligar, oras.
Gargalhada de todos.
- Pessoal, e a música sertaneja da novela que foi o tempo todo tão
valorizada, o que é que vocês me dizem?
- (G.B.) Bom, antes esse tipo de música era “a música caipira”, agora é
música sertaneja, “country”.
Gargalhada de todos.
- (G.B.) Então, o fato de ter tocado na novela fez todo mundo começar a
gostar. Quando, antes, começava a tocar, todo mundo reclamava, agora, não, a
gente até canta junto. Curte. O funk também, eu curto até. Todo mundo quer ir
num baile funk, ouvir rap...
- (C.F.) Eu fui pra Belo Horizonte visitar meus primos, neste final de
semana, e bem no dia ia ter um show da Tati Quebra Barraco, eu fiquei
alucinada pra ir.Mas pros mais velhos, assim, meu pai, minha mãe, eles acham
que o rap é uma falta de cultura pra música brasileira, sabe.Eles acham que
estraga a música brasileira. Eles acham que é uma influência ruim pra gente.
Mas a gente gosta e eles tinham que respeitar, né?
- (F. M.) Outro dia eu estava vendo num programa na tevê. Antes o
funk era coisa de periferia, de gente pobre. Hoje não, hoje é coisa pra classe
média, gente rica. Muita gente gosta.
- Então a televisão está trazendo coisas que eram só da periferia pra
vida de vocês?
- (F.M.) Cada vez vai entrando mais e mais...
- (R.H.) É isso mesmo. Quem, daqui, há quatro anos atrás, ia num show
de pagode? Hoje em dia isso virou moda. “Os inimigos do HP” virou moda.
Funk, por exemplo, também virou moda. Explosão total! Apesar das letras ser
machistas, eu gosto de funk. Sertanejo, nossa, todo mês tem muito show em
São Paulo.
- (C.F.) É no rap eles falam do preconceito, falam dos negros, mas o
caso é que todo mundo canta...
(O grupo de jovens, entusiasmado, canta o refrão da música “Som de preto”
, de Tati Quebra Barraco).
76
Som de Preto
Tati Quebra Barraco
Refrão:
som de preto
De favelado
Mas quando toca
Ninguém fica parado
som de preto
De favelado
Mas quando toca
Ninguém fica parado
O nosso som não tem idade, não tem raça e nem vigor
Mas a sociedade pra gente não dá valor
Só querem nos criticar pensam que somos animais
Se existiu o lado ruim, hoje não existe mais
Porque o funkeiro de hoje em dia, caiu na real
Porque essa história de porrada, isso é coisa banal
Agora pare
E pense
Se liga na responsa
Se ont
m foi a tempestade
Hoje vira a bonança
Porque a nossa união, foi Deus quem consagrou
A milk chocolate é new funk, demorô
E as mulheres lindas de todo o Brasil, só na dança da bundinha pode crê que é
mais de mil
Libere o seu corpo, vem pro funk vem dançar
Nessa nova sensação que você vai se amarrar
Então eu peço liberdade para todos nós DJ
Porque no funk reina a paz
E o justo é nosso rei.
Refrão x3
- (T.K.) O que eu acho legal , tipo, que muita gente tem preconceito.
Sabe, tipo, todo mundo fala: “Ah, você vai nesse tipo de show, você é
roubado, tipo assim. Mas eu fui num show da Tati Quebra Barraco e não tem
nada disso.Só que aí você vê diferente. Ela até deu uma atrasada porque antes
77
ela tinha feito um show no Golf Clube, mais caro, pra outra classe social, e
isso separou gente. Lá no Golf o convite estava a 30,oo e no outro lugar – o
Consulado – foi a 2,50. Isso mostra que separou as classes alta e baixa, mas
todo mundo gosta.
- (G.B.) Eu tenho uma curiosidade pra contar: no show,em São Paulo,
mulher sem calcinha não paga pra entrar. Tem uma fiscal olhando...
Gargalhadas.
- Bom, vocês estão falando que o mundo da periferia está entrando no
mundo de vocês e vocês fazendo parte deles. E o inverso acontece? Como
vocês vêem isso?
- (G.B.) Os pobres pensam que os ricos são um bando de filho de papai,
com cabeça oca, que não pensam nada, que não sabem viver, que não têm
experiência. Se um preto malvestido agora entrasse aqui agora, a gente vai sair
correndo achando que é ladrão.
- (F. M.) .Muita gente, acho que todo mundo, tem preconceito.
(G.B.) Eu não sei se eu tenho, eu namoraria um negro, sem preconceito, se eu
gostasse dele, tudo bem.
Gargalhadas.
- ( R.H.) Nossa, aquela atriz da Globo que fez “A cor do pecado”eu
namoraria. Os gringos preferem as negras. Eu namoraria, eu até casaria.
Talvez hoje não, o povo repara, não sei se eu teria coragem. Talvez se fosse
muito bonita. Eu estava vendo um programa na MTV, tinha um gringo e duas
mulheres: uma de cor e uma normal, mas você vê como eles preferem as
outras porque ele escolheu a de cor.
- (C.F.) Mas a periferia, os pobres também têm preconceito. Nós fomos
jogar numa escola pública e fomos muito discriminadas. Só no final que as
meninas vieram falar com a gente. Os meninos nem vieram, eles têm mais
preconceito.
- (F.M.) Eu acho que o problema não são só as pessoas. O problema
maior é a cultura. Os brancos não conhecem a cultura negra e os negros têm
uma idéia totalmente errada dos brancos. Então eles não sabem que todo
mundo é igual. Como fala aquela música: “Todo mundo é igual, todo mundo é
pessoa”.
Vamos falar um pouco deste filme de que se tem falado tanto: “Os dois
filhos de Francisco”. Eu sei que a maioria que está aqui assistiu a ele. Falem
78
um pouco do que chamou a atenção de vocês.
- ( G.B.) Bom, eu queria comentar um pouco a produção do filme. A
produção dele está muito boa, aliás, o cinema brasileiro está cada vez melhor.
Tem muito filme americano que eu vi que é pior que este. O filme também
fala muito da realidade brasileira, eles mostram as dificuldades das famílias.
Eu nunca tinha pensado que seria possível uma criança passar fome, passar
sede. Agora, depois do filme, eu vi que isso acontece mesmo. Foi legal ter
visto o que eles
passaram por tudo aquilo e chegaram aonde chegaram. Olha o que eles são
hoje! Foi muito bom ter visto a força de vontade dos meninos!
- (F.M.) O filme mostra o que é um sonho! Mostra esperança. Tem que
ter.
- (T.K.) Ô Margaret, eu achei muito legal a parte que fala sobre a
ditadura. O pai leva os filhos pra cantar e na letra da música tinha uma palavra
“soberania”...
- (Alguns jovens) Tirania!
- (T.K.) Isso, “tirania” alguma coisa... Eles foram desclassificados, tipo,
bom, sabe né? Eles não sabiam o que significava a palavra e deram, tipo, o
maior fora. Chamar o governo de tirano bem na ditadura..., tipo, isso poderia
fazer o dono da rádio ir preso. Aí eles voltaram derrotados pra casa,
supertristes.
- (R. H.) Eu não sei o que é tirania.
- (F.M.) É quando há um governo autoritário. Só ele manda. Tem
censura pra tudo.
..............(T.K.) Isso mostra a importância de a gente conhecer bem o
que diz. Eles não tinham cultura. Eles só repetiam o que mandavam. Dá, tipo,
a maior pena deles.
- (C.F.) O filme mostra o duro que eles deram pra eles chegarem até
onde eles chegaram. O filme mostra a realidade do Brasil. Foi muito bom nós
temos visto essa realidade pra gente sair um pouco do nosso mundinho. A
gente nunca passou fome. Nós nunca soubemos o que os outros sofrem.
Mostra o quanto as pessoas dão duro pra conseguir alguma coisa na vida.
- (G.M.) É o filme mostra muita coisa real. Sobre tudo: a música, a vida,
sobre tudo! Tipo, eu nunca tinha visto a novela. Como todo mundo começou a
falar, eu achei que seria legal curtir com os outros os comentários que todo
mundo estava fazendo. Das músicas, sobretudo. E eu acabei vendo e gostei
pra caramba!
- (F.M.) A hora que eu achei MUITO triste foi quando o Francisco abre
o porta-malas e mostra o caixão do filho morto no acidente. Ah, nossa, foi
chocante! Mostra o amor da família pelo filho. Não dá nem pra imaginar.
79
Puxa, me partiu o coração essa cena!
- (T.K.) Eu achei legal, aquela hora que eles estão crescidos, e eles
fecham o contrato com a gravadora pra gravar o disco e a músico de outro
grupo – Xitãozinho e Xororó – é que estava fazendo sucesso, mas que tinha
composto a música era o Luciano. Superinjusto, ele ficou maior triste. Nossa,
foi legal essa parte.
- (F.M.) É o filme mostra a realidade mesmo. Tem muita gente que tem
esse sonho e não consegue alcançar por falta de grana ou de outras coisas.Essa
é a realidade de muitos brasileiros. Eles têm sonho, mas sabem que não vão
alcançar.
- (R.H.) O que eu acho legal é ver que o nosso cinema está começando a
competir com a indústria internacional de cinema. Tem outra coisa. Quando o
pai da gente não deixa a gente, tipo assim, ir num show. Você fica numa baita
raiva. De repente, você assiste a um filme desse e vê que a nossa vida é per-
fei-ta! Na raiva a gente não vê isso, mas depois de ver a vida dessas crianças
você valoriza o que tem. Uma coisa que me chamou a atenção foi a união dos
irmãos. Quando um estava mal,o outro falava: “Nós vamos vender um milhão
de discos!”Legal isso, nem sempre a gente tem.
- (G.C.) Achei uma coisa interessante ver como a família muda pra
cidade,pensando em melhorar de vida. As coisas não são assim. E se você
olhar de lado tem um monte de gente nessa situação. Só ver em São Paulo. É
só ilusão.
- Mas a vida deles não melhorou?
- (G.C.) Melhorou, mas depois de muito trabalho. E a DELES, né!
- (F.M.) Eu fiquei MUITO impressionada com a casa deles!
- Qual? A da cidade ou a do campo?
- (F.M.) A da cidade. MUITA pobreza, meu Deus. Eu fiquei arrasada!
- Você sabe que existem muitas pessoas no nosso país que moram
nessas condições?
- (G.C.) E não são poucas!
.... Silêncio.
- (G.C.) Mas sabe, falando outra coisa, coisa alegre. Eu adorei o final,
com toda a família deles no palco e aquela multidão aplaudindo. Eu chorei.
Chorou? Mas você disse que foi uma parte alegre.
- (G.B.) É, mas eu chorei muito de emoção!
- (F.M.) Foi emocionante porque o Zezé e o Luciano não sabiam que os
pais iam ver o show deles. Aí ficou mais emocionante, sabe, o encontro da
família.
80
- (C.F.) Eu me emocionei quando a mãe disse que não podia comprar
comida porque não tinha dinheiro. E a doença do irmão deles, que ficou
paralítico. Tudo isso mexeu muito comigo.
- Vocês têm estudado, em História, Geografia, a condição do homem
que sai do campo e vem pra cidade em busca de condições melhores está bem
retratada no filme?
- (C.F.) É. O homem do campo vem pra cidade, mas ele não consegue
melhorar porque as pessoas não dão oportunidade.
- (G.C.) Não é porque as pessoas não dão oportunidade. É porque o
homem que viveu no campo não tem preparo. Hoje, pra tudo, você precisa ter
feito até o Ensino Médio. Eles não têm essa oportunidade.
- (R.H.) É, você vê a nossa região, tem muita usina e muita
oportunidade pro homem do campo. Eles podem trabalhar e até, um dia,
chegar a estudar, fazer faculdade.
- (G.C.) Os homens que trabalham nas usinas, cortando cana, nunca vão
chegar lá. Eles não podem competir com as pessoas que tiveram a
oportunidade de morar na cidade.
- Então vocês acham que tudo vai continuar como está?
Silêncio...
- ( Alguns) É.
- (G.B.) É, mas o campo tem boas coisas. Eu sou suspeita em falar
porque minha família tem fazenda. Mas se fosse pra escolher, eu viveria no
campo. Na cidade você pode passar fome, no campo não. E você tem ar puro.
Não tem poluição, não tem barulho. Ah, é outra coisa, gente. Não tem
comparação!
- Bom, gente, pra terminar, eu queria agradecer a contribuição de
vocês.
-(C.F.) Nós é que temos que agradecer, foi muito legal participar deste
trabalho com você.
- Foi mesmo?
- (C. F.) Foi. Sabe, é legal a gente ter alguém pra ouvir as nossas
opiniões sobre as coisas. É legal também a gente conversar sobre esses
assuntos, sobretudo os atuais, os que estão acontecendo na nossa sociedade. A
gente assim, debatendo, começa a entender realmente o que acontece.
- (F. M.) Tem coisa que a gente acaba guardando com a gente porque
não tem com quem falar, trocar idéias.Foi legal participar do seu trabalho, mas
o mais legal com isso é que a gente cresce, debatendo esses assuntos.
- Mas entre vocês, os amigos, quando estão juntos, vocês não
81
conversam sobre esses assuntos da atualidade?
- (R. H.) Às vezes, sim. No último final de semana, quando fui pra praia
com uns amigos, não tinha nada pra fazer porque choveu, aí a gente ficava
conversando dessas coisas. Mas é difícil, às vezes a gente tem até que ir pra
um psiquiatra pra falar sobre a gente, o que a gente pensa ou sente, pra
entender um pouco melhor as coisas.
Liceu Albert Sabin
8 de dezembro de 2005
Ao encerrar o ano letivo, uma festa de despedida.
Salão fechado, jovens bem vestidos.
Luzes alucinantes, refrigerantes.
Com discrição e cuidado, um pouco de bebida alcoólica para os
rapazes.
A conversa tímida do início foi sendo substituída pela dança. As
músicas prediletas – segundo me relataram – conseguia contaminar até os
mais tímidos.
- Que músicas são essas?
- (G.B.) É Tati Quebra Barraco. Maior sucesso!
- Vocês gostam da letra?
- (R.H.) É demais!
- (I.M.) Muito doida, muito boa. Contamina!
- (T.C.) Toca lá dentro, a gente ouve e não consegue ficar parado.
- (R.D.) Desopila, descarrega, se realiza.
- As letras não são meio pesadas?
- (R.H.) Ah, mas é isso aí mesmo. Normal.
Atoladinha
Tati Quebra Barraco
Composição: Tati Quebra Barraco
Alô!
Oi pulguenta.
Quem t
falando?
Sou eu bola de fogo
E ai t
82
de bobeira hoje?
Vamo da um rolé na praia? Mó solzão, praia da Barra...
Então vo ai te busca vlw?
Então fui!
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim
Sou eu Bola de Fogo
E o calor tá de matar
Vai ser na praia da Barra
Que uma moda eu vou lançar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar
Tô ficando atoladinha
Tô ficando atoladinha
Tô ficando atoladinha
calma calma foguetinha[3x]
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim
Sou eu Bola de Fogo
E o calor tá de matar
Vai ser na praia da Barra
Que uma moda eu vou lançar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar
Vai me enterrar na areia?
Não, não vou atolar[2x]
To ficando atoladinha
To ficando atoladinha
To ficando atoladinha
calma calma foguetinha
Som de Preto
Tati Quebra Barraco
Refrão:
som de preto
83
De favelado
Mas quando toca
Ninguém fica parado
som de preto
De favelado
Mas quando toca
Ninguém fica parado
O nosso som não tem idade, não tem raça e nem vigor
Mas a sociedade pra gente não dá valor
Só querem nos criticar pensam que somos animais
Se existiu o lado ruim, hoje não existe mais
Porque o funkeiro de hoje em dia, caiu na real
Porque essa história de porrada, isso é coisa banal
Agora pare
E pense
Se liga na responsa
Se ont
m foi a tempestade
Hoje vira a bonança
Porque a nossa união, foi Deus quem consagrou
A milk chocolate é new funk, demorô
E as mulheres lindas de todo o Brasil, só na dança da bundinha pode crê que é
mais de mil
Libere o seu corpo, vem pro funk vem dançar
Nessa nova sensação que você vai se amarrar
Então eu peço liberdade para todos nós DJ
Porque no funk reina a paz
E o justo é nosso rei.
- Que músicas são essas?
- (G.B.) É Tati Quebra Barraco. Maior sucesso!
- Vocês gostam da letra?
- (R.H.) É demais!
- (I.M.) Muito doida, muito boa. Contamina!
- (T.C.) Toca lá dentro, a gente ouve e não consegue ficar parado.
- (R.D.) Desopila, descarrega, se realiza.
- As letras não são meio pesadas?
- (R.H.) Ah, mas é isso aí mesmo. Normal.
84
20 de dezembro de 2005
Encerro as entrevistas de 2005 com visitas e presentes às famílias que me
ajudaram.
Em casa de Gervina, a emoção maior: no quintal, uma carroça
construída de forma improvisada. Era o veículo que estava servindo a
Hermínio para pegar papelão na rua e vender nas fábricas de papel reciclado.
- Estamos juntando um dinheirinho pras passagens pra Minas,
professora. Quero ver se vou com meu velho visitar minha mãe... Logo, logo é
Natal! Coitado, ele está desempregado, ganhar um dinheirinho assim, que é
que tem, né?
Entre os abraços, o desejo mudo de que a situação dessa gente humilde
possa mudar um dia...
Ribeirão Preto, dezembro de 2005.
85
QUESTIONÁRIO
Nome: ________________________________________________________________________
Idade: _______ Sexo: ___________________________
Escola em que estuda: __________________________________
Bairro em que mora: ____________________________________
Série: _______________________________________________
Período: ____________________________________________
Faz outros cursos, atualmente?
( ) Sim ( ) Não
Se sim, assinale um ou mais cursos:
( ) Idiomas
( ) Informática
( ) Outros ___________________________________________________________
Qual sua idade?
( ) Até 15 anos
( ) De 16 a 20 anos
( ) Acima de 21 anos (coloque sua idade) __________________________
COTIDIANO
1.Quem mora na mesma casa que você?
( ) Pai
( ) Mãe
( ) Irmãos
( ) Avós
( ) Outros parentes. Quais? __________________________________
2.Quantos irmãos?
( ) Nenhum
( ) Um
( ) Dois
( ) Mais que dois
3.Você faz suas refeições com a família reunida?
( ) Café da manhã com toda a família
( ) Almoço com toda a família
( ) Jantar com toda a família
( ) Nenhuma refeição com a família reunida
86
4.As refeições são tomadas
( ) Na copa
( ) Na sala de jantar
( ) Na cozinha
( ) Na sala de estar
( ) Outro cômodo da casa. Qual? __________________________
5. Durante as refeições
( ) A família conversa
( ) A família vê tv
( ) Os membros da família ocupam espaços diferentes de acordo com seus interesses
6. Se a família tem o hábito de conversar durante as refeições, fala-se sobre:
( ) Questões ou problemas familiares
( ) Questões ou problemas do trabalho
( ) Questões das escolas
( ) Problemas econômicos da família
( ) Assuntos políticos atuais
( ) Problemas sociais discutidos pela imprensa
( ) Questões sobre educação e comportamento dos filhos
7. Quando você está em casa, qual (quais) o(s) momento(s) que você julga mais agradável
(agradáveis)?
( ) Na hora das refeições
( ) Quando assistimos juntos à programas de televisão
( ) Aos domingos, quando a família está junta
( ) À noite, quando posso ficar só.
( ) Outros. (Especificar): _________________________________________________
8. O que você costuma fazer nas suas horas vagas, depois da escola?
( ) Visitas a amigos ou parentes
( ) Leitura
( ) Clube
( ) Shopping centers
( ) TV
( ) Internet
( ) Outros. (Especificar): ___________________________________________________
9. O que faz nos fins-de-semana?
( ) Visitas a amigos ou parentes
( ) Leitura
( ) Clube
( ) Shopping centers
( ) TV
( ) Internet
( ) Outros. (Especificar): ___________________________________________________
87
10. Qual sua forma preferida de lazer?
( ) Leitura
( ) Televisão
( ) Shopping Centers
( ) Cinema
( ) Festas
( ) Internet
( ) Outros. (Especificar): __________________________________________________
11. Você convive com pessoas de seu bairro?
( ) Sim ( ) Não
12. Se sim, em que espaços, no bairro, vocês se encontram? (Caso seja mais do que um, numere-os,
de acordo com a freqüência com que você os ocupa).
( ) Praças
( ) Lanchonetes
( ) Quadras de esporte
( ) Shopping Centers
( ) Cinema
( ) Lan Houses
( ) Outros. (Especificar) ____________________________________________________
TELEVISÃO
1. Você assiste à televisão?
( ) Sim ( ) Não
2. Se sim, com qual freqüência assiste à TV?
( ) Diariamente
( ) Uma vez por semana
( ) De 1 a 3 vezes por semana
( ) De 3 a 5 vezes por semana
( ) Raramente assisto à TV
( ) Nunca
( ) Outros: ___________________
3. Você assiste à TV:
( ) Sozinho
( ) Com familiares
( ) Com amigos
( ) Outros:___________________
4. Quantas horas você assiste à TV por dia?
( ) Menos de 1 hora
( ) Entre 1 e 2 horas
( ) Entre 2 e 3 horas
( ) Mais de 3 horas
88
5. Em que horário assiste à TV?
( ) Manhã
( ) Tarde
( ) Noite
( ) Madrugada
6. A que canal (is) assiste com mais freqüência? Cite os três preferidos:
1________________________
2________________________
3________________________
7. Numere em ordem de preferência o tipo de programa a que costuma assistir:
( ) Jornalísticos
( ) Esportivos
( ) Novelas
( ) Filmes
( ) Programas de auditório
( ) Programas educativos
( ) Clips
( ) Desenho animado
( ) Programas especializados
( ) Seriados
( ) Outros: _______________________________________________________
8. Qual o seu programa preferido? ____________________________________________
9. Você está assistindo a alguma telenovela?
( ) Sim ( ) Não
Qual? (Especificar o canal) ___________________________________________
RÁDIO
1. Costuma ouvir rádio?
( ) Sim ( ) Não
2. Se sim, onde:
( ) Em casa
( ) Na escola
( ) No carro
( ) No escritório
( ) Na academia
( ) Outros:__________________
89
3. Com qual freqüência?
( ) Diariamente
( ) Entre 3 e 5 vezes por semana
( ) Entre 1 e 2 vezes por semana
( ) Menos de 1 vez por semana
4. Quantas horas ouve rádio por dia?
( ) Menos de 1 hora
( ) Entre 1 e 2 horas
( ) Entre 2 e 3 horas
( ) Mais de 3 horas
5. Qual rádio você mais ouve? Cite os três preferidos:
1____________________________________________________________________
2____________________________________________________________________
3____________________________________________________________________
6. Qual (quais) o(s) programa(s) preferido(s):
1____________________________________________________________________
2____________________________________________________________________
3 ____________________________________________________________________
INTERNET
1. Tem acesso à Internet?
( ) Sim ( ) Não
2. Se sim, onde:
( ) Em casa
( ) Na escola
( ) Em Cyber Cafés / Lan Houses
( ) Na casa de amigos
Outros:__________________________________________________
3. Quantas horas por dia você navega pela Internet?
( ) Menos de 1 hora
( ) Entre 1 e 2 horas
( ) Entre 2 e 3 horas
( ) Mais de 3 horas
4. Quando navega pela rede, que tipo de sites visita? Coloque os números em ordem de preferência:
( ) Sites de Busca
( ) Sites de Notícias
( ) Serviços de E-mail
( ) Sites de Músicas
( ) Sites de Filmes
90
( ) Pesquisa (Acadêmica ou Interesse Pessoal)
( ) Governamentais
( ) Bate papos
( ) Bancos
( ) Eróticos
( ) Economia / Mercado de Ações
( ) Esportes
( ) Serviços online: Flores, supermercado, pesquisa de preços, cotações, etc.
Outros sites ________________________________
5. Você realiza operações pela Internet?
( ) Sim ( ) Não
6. Se sim, que tipo de operações?
( ) Bancárias
( ) Compras
( ) Buscas
( ) Cursos a distância
( ) Cotações
Outros: __________________________________
7. Tem e-mail?
( ) Sim ( ) Não
8. Que tipo de e-mails recebe que o interessam?
( ) Notícias
( ) Propaganda
Outros ___________________________
REVISTAS
1. Você lê revistas?
( ) Sim ( ) Não
2. Quais revistas lê e/ou assina?
Revistas Lê Assina
4 rodas
Amiga
Caras
Chiques e Famosos
Claudia
Contigo
Época
Exame
Globo Rural
Exame
Isto É
91
Nova
Playboy
Raça
Revistas de histórias em quadrinhos
Sexy
Super Interessante
Trip
Veja
VIP
Você S.A.
Outras:
3. Com qual freqüência lê revistas?
( ) Diariamente
( ) Semanalmente
( ) Mensalmente
( ) Bimestralmente
( ) Raramente
JORNAIS
1. Você lê jornais?
( ) Sim ( ) Não
2. Qual (is) jornal(is) você lê e/ou assina?
Jornal Lê Assina
A Cidade
Gazeta Ribeirão
Agora
Diário de São Paulo
Folha de S.Paulo
Gazeta Mercantil
Jornal da Tarde
Jornal do Brasil
O Estado de S.Paulo
O Globo
Valor Econômico
Outros
3. Com qual freqüência lê jornal?
( ) Diariamente
( ) Entre 3 e 5 vezes por semana
( ) Entre 1 e 2 vezes por semana
( ) Semanalmente
( ) Raramente
92
4. Por qual seção do jornal você começa a leitura?
( ) Política nacional
( ) Política internacional
( ) Cultura/variedades
( ) Esporte
( ) Cidades/cotidiano
( ) Economia
( ) Classificados
Outros _______________________________________________________________
CINEMA
1. Você costuma ir ao cinema?
( ) Sim ( ) Não
2. De que tipo de filme você gosta. Coloque os números em ordem de preferência:
( ) Ficção Científica
( ) Aventura
( ) Drama
( ) Suspense
( ) Terror
( ) Comédia
( ) Romance
( ) Animação
( ) Documentário
Outros: _____________________________________________________
3. Prefere filmes brasileiros ou estrangeiros?
( ) Brasileiros
( ) Estrangeiros
( ) Ambos
4. Com que freqüência vai ao cinema?
( ) Uma vez por semana
( ) Duas vezes por semana
( ) Uma vez por mês
( ) Duas / três vezes por mês
( ) Menos de uma vez por mês
( ) Raramente
( ) Nunca fui ao cinema
5. Qual foi o último filme brasileiro a que assistiu no cinema?
____________________________________________________________
6. Qual foi o último filme estrangeiro a que assistiu no cinema?
____________________________________________________________
93
7. Aluga filmes em videolocadoras?
( ) Sim ( ) Não
8. Se sim, quantos filmes vê por semana?
( ) Pelo menos 1 filme por semana
( ) De 2 a 3 filmes por semana
( ) 4 ou mais filmes por semana
TEATRO
1. Costuma ir ao teatro?
( ) Sim ( ) Não
2. Com qual freqüência vai ao teatro?
( ) Uma vez por semana
( ) Uma vez por mês
( ) Duas / três vezes por mês
( ) Raramente
( ) Nunca fui ao teatro
3. Qual a última peça que viu? ____________________________________________
4. Qual a peça de que mais gostou? ________________________________________
LIVROS
1. Você lê livros?
( ) Sim ( ) Não
2. Com qual freqüência lê livros?
( ) Diariamente
( ) Semanalmente
( ) Mensalmente
( ) Bimestralmente
( ) Raramente
3. Quantos livros lê por ano?
( ) Entre 1 e 2 livros
( ) Entre 3 e 5 livros
( ) Entre 6 e 12 livros
( ) Mais de 12 livros
4. Que tipo de leitura?
( ) Ficção
( ) Romances
( ) Escolares
( ) Biografias
Outros: ________________________________________________________
94
5. Qual foi o último livro que você leu?_____________________________________
OUTROS
1. Você tem diskman, walkman?
Sim ( ) Não ( )
2. Você usa celular?
Sim ( ) Não ( )
3. De que modo você usa celular?
( ) Para falar
( ) Para jogar
( ) Para fotografar
( ) Para navegar
( ) Outros ____________________________________________________
4. Marque com um X na primeira coluna os itens extremamente necessários à sua vida, sem os
quais, na sua opinião, não se pode viver bem; marque com X na segunda coluna os itens que,
embora necessários e/ou agradáveis, podem ficar para depois:
Itens
Extremamente
Necessários
Podem ficar
para depois
Academia
Carro zero
Cinema
Aluguel de filmes
Compras de roupas e acessórios
Cursos de idiomas
Doação para entidades
Televisão
Jogo na loteria
Jogos (de futebol e outros).
McDonald’s
Livros
Revistas
Salão de beleza
Shows
Teatro
Viagens
Computador
Celular
95
5. Que atitudes suas você considera que ajudam a fazer um mundo melhor?
1____________________________________________________________
2____________________________________________________________
3____________________________________________________________
SOBRE CONSUMO DE PRODUTOS
1. Como você se informa sobre os produtos que quer comprar?
( ) TV
( ) Rádio
( ) Jornal impresso
( ) Revistas
( ) Internet
( ) Mala direta
( ) Outdoor (cartaz de rua)
( ) Conversando com outras pessoas
( ) Outros ___________________________________________________________
2.Quando você compra algum produto, você leva em conta (Numere por ordem de prioridade)
( ) A qualidade
( ) A marca
( ) O preço
( ) A indicação de outra pessoa
( ) A novidade do produto
( ) A promoção
( ) A moda
( ) Outros __________________________________________________________
3.Na sua opinião, as propagandas (publicidades) que mais influenciam o consumidor são aquelas
que aparecem
( ) Na TV
( ) Em outdoor (cartaz de rua)
( ) Nas revistas
( ) Nos jornais
( ) Folhetos de rua
( ) Rádio
( ) Outros _____________________________________________________
4. Quando você vê /ouve/lê uma propaganda, o que mais lhe chama a atenção?
( ) A música
( ) A história
( ) As cores
( ) Os desenhos
( ) O texto
( ) Os(as) modelos
( ) Outros _____________________________________________________________
96
5. Qual foi o último produto que você comprou?
6. O que influenciou a sua decisão de comprar este produto?
_________________________________________________________________________
7. Qual o produto que você está querendo comprar?
_________________________________________________________________________
8.Qual a última propaganda de que você se lembra? Como ela era?
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
ESCALA POCHMANN
Grau de escolaridade:
Do pai: ( ) Analfabeto
( ) 1
a.
a 4
a
.
( ) 5
a
. a 8
a
.
( ) Ensino Médio
( ) Universitário
( ) Pós-graduação
Da mãe: ( ) Analfabeta
( ) 1
a.
a 4
a
.
( ) 5
a
. a 8
a
.
( ) Ensino Médio
( ) Universitário
( ) Pós-graduação
Profissão do pai: _____________________________________________
Profissão da mãe: ____________________________________________
97
Posição no mercado de trabalho (Pai): ( ) Faz “bico”
( ) Ambulante
( ) Aposentado
( ) Assalariado com carteira assinada
( ) Assalariado sem carteira assinada
( ) Funcionário pública
( ) Nunca trabalhou
( ) Trabalha por conta própria
( ) Está desempregado Desde: ______
Posição no mercado de trabalho (Mãe): ( ) Faz “bico”
( ) Ambulante
( ) Aposentada
( ) Assalariada com carteira assinada
( ) Assalariada sem carteira assinada
( ) Funcionária pública
( ) Nunca trabalhou
( ) Trabalha por conta própria
( ) Está desempregada Desde:______
Renda familiar (em Reais): ( ) De 0 a 500,00
( ) 500,00/1500,00
( ) 1500,00/3000,00
( ) Acima de 3000,00
Casa em que mora : ( ) Própria
( ) Alugada
( ) Cedida
A família possui carro? ( ) Nenhum
( ) um
( ) dois
( ) mais de dois
Na casa há: Nenhum Um Dois Mais de dois
Televisor ( ) ( ) ( ) ( )
Videocassete ( ) ( ) ( ) ( )
DVD ( ) ( ) ( ) ( )
Computador ( ) ( ) ( ) ( )
Quarto ( ) ( ) ( ) ( )
Banheiro ( ) ( ) ( ) ( )
MUITO OBRIGADA A VOCÊ!
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