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A VOZ DA MULHER NO CONTEXTO
TRADUTÓRIO: ANÁLISE DA TRADUÇÃO DE
“BLISS”, DE KATHERINE MANSFIELD,
PARA O PORTUGUÊS,
POR ANA CRISTINA CESAR
Adriana de Freitas Gomes
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Adriana de Freitas Gomes
A VOZ DA MULHER NO CONTEXTO
TRADUTÓRIO: ANÁLISE DA TRADUÇÃO DE
“BLISS”, DE KATHERINE MANSFIELD,
PARA O PORTUGUÊS,
POR ANA CRISTINA CESAR
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora,
como requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Letras.
Área de concentração: Teoria da Literatura
Orientadora:
Profª. Drª. Maria Clara Castellões de Oliveira
Juiz de Fora
Instituto de Ciências Humanas e de Letras
Universidade Federal de Juiz de Fora
Agosto de 2006
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Dissertação defendida e aprovada, em 18 de agosto de 2006, pela banca examinadora
constituída pelos professores:
________________________________________________________________________
Profª. Drª. Maria Clara Castellões de Oliveira – Orientadora.
_________________________________________________________________________
Profª. Drª. Marcia Amaral Peixoto Martins.
_________________________________________________________________________
Profª. Drª. Márcia de Almeida.
Instituto de Ciências Humanas e de Letras
Universidade Federal de Juiz de Fora
Juiz de Fora, 18 de agosto de 2006
DEDICATÓRIAS
A meus amados pais, Miguel e Juracy, pela
compreensão, dedicação e amor com que me
educaram; por estarem todos esses anos ao meu lado,
compartilhando momentos alegres e tristes; por
estenderem suas mãos sempre que preciso de apoio;
por me ouvirem, acalentarem e, principalmente, pelo
constante estímulo a trilhar novos caminhos e a
enfrentar os obstáculos que surgem.
Ao meu querido irmão, Júlio César, que este trabalho
seja um estímulo para que você também possa
continuar buscando alcançar seus objetivos.
À querida Profª. Drª. Maria Clara Castellões de
Oliveira, pela seriedade e dedicação com que se
entregou à tarefa de orientação.
AGRADECIMENTOS
A Deus, meu alicerce maior e a quem devo minha vida, por ter me abençoado com uma
família maravilhosa, responsável direta por todas as minhas conquistas.
À minha amada mãe, interlocutora interessada em participar de minhas inquietações, que
se prontificou, em todos os momentos, a ajudar-me a concluir este trabalho,
compartilhando carinhosamente das minhas dúvidas e descobertas. Sua amizade, presença
e incentivo constantes foram fundamentais para que este objetivo fosse alcançado.
À minha querida orientadora, Profª. Maria Clara Castellões de Oliveira, sem a qual este
trabalho não teria sido realizado. Agradeço, principalmente, pela confiança na realização
desta dissertação; pelo constante incentivo; pela paciência com que me conduziu durante
todo o processo de escrita, sempre indicando a direção a ser tomada em momentos de
dificuldade; pelas correções infindáveis e pelas sugestões carinhosas.
Aos meus queridos professores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras “Santa
Marcelina”, de Muriaé, onde tudo começou.
Aos professores Emília Montezano e Luiz Gonzaga da Silva, pelo apoio e encorajamento
durante meus saudosos tempos de graduação, e pelas inestimáveis contribuições à minha
vida acadêmica.
Aos meus tios Ney e Wanda Barros, e ao meu primo Rúlio de Freitas Silveira, por terem
me acolhido carinhosamente em sua casa em minhas idas a Juiz de Fora.
A Mairton e Luciene Guedes, pelo apoio e amizade.
Ao Prof. Dr. Evando Nascimento, da Universidade Federal de Juiz de Fora, pelo
empréstimo de material para a realização desta pesquisa.
Aos colegas de trabalho da E. E. “Temístocles Eutrópio”, em especial à diretora Alcione e
à professora Maria de Lourdes, pela amizade e pelo incentivo à produção deste trabalho.
Às amigas Aniery Vieira Guimarães, Rosa Sigilião e Juliana Marchitto, pelos momentos
alegres e divertidos, que tanto contribuíram para a minha permanência em Juiz de Fora
durante os anos de estudo que passamos longe de nossas famílias.
Aos colegas do Mestrado em Letras Teoria da Literatura, da Universidade Federal de
Juiz de Fora.
Aos professores do Mestrado em Letras – Teoria da Literatura, da Universidade Federal de
Juiz de Fora, em especial à Profª. Drª. Márcia de Almeida, que contribuiu diretamente com
a bibliografia sobre crítica literária feminista e que aceitou, carinhosamente, fazer parte da
Banca.
À Profª. Drª. Marcia Amaral Peixoto Martins, que gentilmente aceitou participar e
colaborar com este trabalho fazendo parte da Banca.
Aos meus queridos alunos da E. E. “Temístocles Eutrópio”, em especial à turma do EJA
série, pelo carinho e amizade. O esforço e a luta de vocês pela aquisição do
conhecimento, após um longo dia de trabalho, são um estímulo para mim.
Aos funcionários da Universidade Federal de Juiz de Fora, pelo carinho e presteza com
que auxiliam aos professores e alunos.
A todos que contribuíram direta ou indiretamente para a realização deste trabalho.
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo entrelaçar as vozes de Ana Cristina Cesar e
Katherine Mansfield através de “Bliss”, conto escrito por Mansfield em 1918 e traduzido
por Ana Cristina para a língua portuguesa entre 1979 e 1981. Ressaltamos ambas as
autoras como figuras de transição, por se encontrarem em uma posição liminar em relação
aos momentos sócio-histórico-culturais em que viveram. Buscamos apresentar a
importância da prática tradutória para a ascensão das mulheres ao mundo das letras e para
a formação da identidade autoral feminina de Ana Cristina. Destacamos também a
existência de afinidades entre as duas escritoras determinadas por questionamentos em
relação aos papéis por ela desempenhados enquanto mulheres. Com o intuito de analisar a
prática tradutória de Ana Cristina, utilizamos, entre outros, conceitos extraídos do
pensamento de estudiosos(as) da tradução e de intelectuais que se dedicaram à crítica
literária em geral. Analisamos como os estudos emergentes no final da década de 70 e
início dos anos 80 influenciaram Ana Cristina em sua tradução de “Bliss” e verificamos de
que forma ela antecipa posicionamentos caros ao momento atual da disciplina Estudos da
Tradução.
ABSTRACT
This thesis intends to intertwine the voices of Ana Cristina Cesar and Katherine
Mansfield through “Bliss”, a short story written by Mansfield in 1918, and translated by
Ana Cristina into the Portuguese language between 1979 and 1981. We emphasize both
authors as transition figures, since they stand in a liminar position in relation to the social,
historical and cultural moments in which they have lived. We try to show the importance
of translation practice not only as means through which women have achieved access to
the lettered world but also to the formation of Ana Cristina’s feminine author identity. We
also point out the existence of affinities between Ana Cristina and Mansfield due to
questions related to the roles they have played as women. In order to discuss Ana
Cristina’s translation practice, we use, among others, concepts extracted from the thought
of translation scholars and of intellectuals who have dedicated themselves to literary
criticism in general. We analyse how studies which emerged at the end of the 1970s and at
the beginning of the 1980s influenced Ana Cristina’s translation of “Bliss” and we verify
the way through which she has anticipated postures that are dear to the most recent
moments of the discipline Translation Studies.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 11
CAPÍTULO 1
ANA CRISTINA CESAR, KATHERINE MANSFIELD E “BLISS”...................... 22
1. 1 – Ana Cristina Cesar e a busca de uma identidade autoral................................ 25
1. 1. 1 – Os movimentos apropriativos de Ana Cristina César......................................... 28
1. 1. 2 – A construção de uma identidade feminina......................................................... 35
1. 2 – O encontro de Ana Cristina com Katherine Mansfield em “Bliss”................. 44
CAPÍTULO 2
A MULHER, A CRÍTICA E A TRADUÇÃO............................................................. 51
2. 1 – A visão patriarcal da mulher e da tradução...................................................... 53
2. 2 – A tradução como forma de resistência............................................................... 57
2. 3 – A crítica literária feminista e a tradução........................................................... 61
2. 4 – Estratégias tradutórias feministas..................................................................... 70
2. 4. 1 – O prefácio e as notas de pé de página................................................................ 71
2. 4. 2 – O suplemento..................................................................................................... 79
2. 4. 3 – O seqüestro......................................................................................................... 81
2. 5 – Tradução e/na pós-modernidade........................................................................ 84
CAPÍTULO 3
“BLISS” E “ÊXTASE”: DE KATHERINE MANSFIELD A
ANA CRISTINA CESAR.............................................................................................. 93
3. 1 – “Bliss”: o contexto de sua escritura e de sua tradução..................................... 96
3. 2 – Uma leitura de “Bliss”......................................................................................... 104
3. 3 – “Bliss” em tradução.............................................................................................. 122
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 141
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 147
ANEXOS......................................................................................................................... 153
Anexo 1: O conto “Bliss”, em inglês ............................................................................ 154
Anexo 2: Tradução de Ana Cristina do conto “Bliss” seguida ................................ 161
das 80 notas
Ana Cristina
Ana Cristina cadê seus seios?
Tomei-os e lancei-os
Ana Cristina cadê seu senso?
Meu senso ficou suspenso
Ana Cristina cadê seu estro?
Meu estro eu não empresto
Ana Cristina cadê sua alma?
Nos brancos de minha palma
Ana Cristina cadê você?
Estou aqui, você não vê?
Cacaso
Poema citado por Maria Lúcia de Barros Camargo, em sua obra intitulada Atrás dos Olhos Pardos: Uma
Leitura da Poesia de Ana Cristina Cesar (2003, p. 12).
INTRODUÇÃO
O suicídio de Ana Cristina Cruz Cesar, em 29 de outubro de 1983, aos 31 anos,
acabou por convertê-la em um dos maiores mitos literários brasileiros. Ainda hoje, a morte
de Ana Cristina tem suscitado o interesse de muitos que, buscando encontrar na leitura de
seus poemas as pistas que justifiquem esse desfecho prematuro, descobrem uma poesia
altamente sofisticada. No entanto, não foi esse evento que nos aproximou da poeta: nosso
interesse por Ana Cristina e sua obra cresceu no bojo da pesquisa que desenvolvemos
sobre o objeto de análise deste trabalho, ou seja, a tradução que ela realizou do conto
“Bliss”, da escritora neozelandesa Katherine Mansfield. Com a apresentação dessa
tradução e de comentários sobre a mesma, Ana Cristina obteve o grau de Master of Arts,
em “Teoria e Prática de Tradução Literária, com distinção”, na Universidade de Essex,
Inglaterra, em 1981. A tradução de Ana Cristina, portanto, não foi realizada com o intuito
de ser publicada. Postumamente, sua mãe, Maria Luiza Cesar, reuniu os estudos e
reflexões da filha sobre poesia e prosa moderna traduzidas, entre eles a dissertação “O
Conto ‘Bliss’ Anotado”, e os publicou na obra Escritos da Inglaterra (1988).
Ana Cristina nasceu no dia 2 de junho de 1952, no Rio de Janeiro. Aos quatro anos,
ela recitava seus primeiros versos para a mãe. Com sete, alguns de seus poemas foram
publicados no “Suplemento Literário” do jornal carioca Tribuna da Imprensa, sob o título
de “Poetisas de Vestidos Curtos”. O interesse precoce pelas letras se comprova também
pelos poemas datados de 1961, incluídos em Inéditos e Dispersos (indicado nessa
dissertação pela sigla ID), publicado originalmente em 1985, organizado por Armando
Freitas Filho, amigo de Ana Cristina.
O interesse da poeta pela tradução iniciou-se quando surgiu a oportunidade de Ana
Cristina participar de um programa de intercâmbio na Inglaterra, entre 1969 e 1970. Ela
aproveitou a ocasião para escrever poemas noutra língua e traduzir outros tantos (Emily
Dickinson, Sylvia Plath e Katherine Mansfield são autores que trouxe na bagagem). Aos
19 anos, ingressou no curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). Posteriormente, além de dar aulas, ela passou a colaborar com os
principais jornais alternativos do país nos anos 70, como o semanário Opinião, do
suplemento Livro (Jornal do Brasil); o jornal Beijo e o Correio Brasiliense. Além disso,
Ana Cristina escreveu para as revistas Malazartes, Almanaque, Alguma Poesia, Veja, Isto
É e Leia Livros, fez mestrado em tradução literária na Inglaterra, e publicou, em vida, dois
livros: Literatura não é Documento (1980), resultado da pesquisa encomendada pelo
MEC/FUNDARTE Rio e A Teus Pés (indicado pela sigla ATP), de 1982, seu único livro
de poemas publicado em vida. Nesse volume estão incluídas as obras anteriores,
publicadas em edições independentes, a saber: Cenas de Abril, Correspondência Completa
e Luvas de Pelica.
Além de Inéditos e Dispersos, são obras póstumas: Escritos da Inglaterra (1988);
Escritos no Rio (1993), onde se encontram os artigos jornalísticos de Ana Cristina; um
caderno de desenhos da poeta, intitulado Portsmouth-Colchester (s/d), que Augusto Massi,
poeta e crítico paulista, trouxe ao conhecimento do público; Correspondência Incompleta
(1999), obra em que Armando Freitas Filho e Heloísa Buarque de Hollanda reuniram as
cartas escritas pela poeta e amiga, e Crítica e Tradução (1999), também organizado por
Armando Freitas Filho.
Desde a morte de Ana Cristina, muitos trabalhos, teses e dissertações têm surgido.
Alguns desses textos se tornarão referências constantes nessa dissertação, como o ensaio
de Flora Süssekind, intitulado Até Segunda Ordem, Não me Risque Nada: os Cadernos,
Rascunhos e a Poesia-em-vozes de Ana Cristina Cesar (1995); a tese de doutoramento de
Maria Lúcia de Barros Camargo, publicada com o título de Atrás dos Olhos Pardos: Uma
Leitura da Poesia de Ana Cristina Cesar (2003), e a obra de Italo Moriconi, Ana Cristina
Cesar: O Sangue de Uma Poeta (1996).
O acervo de Ana Cristina, no entanto, não se compõe apenas de poemas. Ela
também deixou malas cheias de agendas, bloquinhos de anotações, cartas, cartões, bilhetes,
diários, pastas com rascunhos, traduções, enfim, “escritos sempre tingidos de intenção
literária” (MORICONI, 1996, p. 11). Juntamente com seus poemas, esse material tem
possibilitado o surgimento de diversos estudos, como o citado ensaio de Süssekind
(1995), que proporcionam ao leitor novas descobertas da literatura de Ana Cristina, que
vem sendo constantemente reeditada. Além disso, o meio virtual tem tornado a obra e a
fortuna crítica existente acerca dos textos e da biografia da poeta disponível ao público.
1
O
interesse pelos poemas, pelo epistolário, pelas traduções e outros escritos possibilitam o
contínuo crescimento dessa fortuna crítica, e a realização desse trabalho sobre a tradução
de Ana Cristina do conto “Bliss” comprova tal assertiva.
No que diz respeito à tradução, podemos afirmar serem muitos os que hoje se
debruçam sobre as diversas questões suscitadas pela transposição de um texto para outra
língua, seja ele literário, científico ou religioso, e sobre as diversas formas de torná-lo
compreensível em uma cultura que não aquela em que foi escrito originalmente. Até a
metade do século passado, a tarefa do tradutor era vista como secundária. No entanto, no
final dos anos 70 do século XX, surgiram os estudos que ofereceram subsídios para que o
ofício de traduzir passasse a ser analisado em termos mais amplos e visto também como
culturalmente motivado. Contemporaneamente, esses estudos se valem de contribuições de
áreas do saber como os Estudos Culturais e Pós-Coloniais, a Crítica Feminina, a
Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a História, a Análise do Discurso, a
Psicolingüística e a Etnolingüística.
Ao retratar o contexto contemporâneo da tradução, Sherry Simon, na obra Gender
in Translation: Cultural Identity and the Politics of Transmission, 1996 (Gênero na
1
Alguns sites disponíveis são:
http://www.releituras.com/anacesar_menu.asp
http://www.revista.agulha.nom.br/anac.html
http://www.lumiarte.com/luardeoutono/accabertura.html
Tradução: Identidade Cultural e a Política da Transmissão, não traduzido para o
português), ressalta que a “virada cultural”, ocorrida no final da década de 70 e início da
década de 80 do século XX, foi um fator que proporcionou mudanças nos estudos da
tradução, possibilitando que as tradicionais perguntas “como devemos traduzir, o que é
uma tradução correta?”,
2
cedessem lugar aos questionamentos “o que fazem as traduções,
como elas circulam no mundo e dele extraem respostas?” (1996, p. 7).
3
Tais mudanças
permitiram percebermos a tradução como “um processo de mediação que não se sobrepõe
à ideologia, mas trabalha através dela” (1996, p. 8).
4
Simon ainda ressalta que, para a
eficácia do ato tradutório, é preciso que o(a) tradutor(a) esteja “totalmente engajado(a)
com as realidades literárias, sociais e ideológicas do seu tempo” (1996, p. 137),
5
e que
ele(a) “compreenda a cultura do texto original, pois os textos estão ‘encravados’ nela”
(1996, p. 137).
6
O “significado cultural”, portanto, não será encontrado nos dicionários,
“mas em uma compreensão da forma em que a linguagem está conectada às realidades
locais, às formas literárias e às trocas de identidades” (1996, p. 138).
7
Finalmente, “para
determinar o significado e garantir sua transferência adequadamente, o(a) tradutor(a) deve
comprometer-se com os valores do texto. O projeto de tradução é essencial para essa
transação; ele(a) ativa os significados culturais implícitos que são trazidos ao uso” (1996,
p. 140, grifos da autora).
8
Nesse sentido, buscaremos, nesta dissertação, encontrar o porquê da escolha de
2
Texto original: “[...] how should we translate, what is a correct translation?”. Essa e as traduções que se
seguem da obra citada de Sherry Simon foram feitas por nós.
3
Texto original: “[...] what do translations do, how do they circulate in the world and elicit response?”.
4
Texto original: “[...] (see translation) as a process of mediation which does not stand above ideology but
works thorough it”.
5
Texto original: “[...] (the translator must be) fully engaged in the literary, social and ideological realities of
his or her time”.
6
Texto original: “[...] (the translator) must understand the culture of the original text, because texts are
‘embedded’ in a culture”.
7
Texto original: “[...] but rather in an understanting of the way language is tied to local realities, to literary
forms and to changing identities”.
8
Texto original:In order to determine meaning, therefore, and ensure its transfer adequately, the translator
must engage with the values of the text. The translating project is essential to this transaction; it activates the
implicit cultural meanings which are brought to bear”.
Ana Cristina pela tradução do conto “Bliss” e qual a gênese do seu interesse por
Mansfield. Analisaremos como Ana Cristina, enquanto tradutora, mostrou estar engajada
com os estudos literários, sociais e ideológicos do seu tempo, e como esses fatores
influenciaram sua tradução de “Bliss”. Para tal, faremos uma leitura de sua tradução à luz
das teorias tradutórias feministas que se desenvolveram nas décadas de 70 e 80 no Canadá,
bem como sua relação com a teoria da tradução que se desenvolveu na década de 90, visto
que Ana Cristina, de certa forma, antecipa alguns desses questionamentos em sua tradução
do conto de Mansfield. Consideraremos também o interesse de Ana Cristina pela cultura e
língua do texto original, a saber, a inglesa.
Katherine Mansfield teve uma vida breve (1898-1923), mas deixou uma ampla
produção literária. Autora de cerca de uma centena de contos (hoje traduzidos para mais
de 26 idiomas), de muitos diários, de uma vasta correspondência, de pequenos artigos de
crítica literária que escreveu para jornais e revistas da época, Mansfield teve uma trajetória
errática e conturbada por crises sentimentais e por relacionamentos bastante agitados para
a atmosfera vitoriana de sua época, tendo vivido dividida entre amores femininos e
masculinos. Em nossa análise, veremos que a temática do homossexualismo, entre outras,
encontra-se retratada em “Bliss”.
Pode-se afirmar que a obra de Mansfield colaborou de forma significativa para a
cultura literária do período em que viveu. Seus muitos textos publicados se caracterizam
pelo viés poético que deles emerge, principalmente ao buscar registrar a intensidade
narrativa de pequenos acontecimentos que, embora sejam aparentemente sutis, na verdade
têm a faculdade de mudar uma vida inteira, como apontava a escritura do autor russo.
Anton Tchecov, por quem Mansfield nutria verdadeira adoração. Pode-se dizer que
esse caráter inovador se coaduna com o início dos novos tempos e, desse modo, com a
emergência de novas preocupações por parte dos intelectuais de então: a efemeridade do
tempo, a transitoriedade da vida, a luta por parte das mulheres para serem ouvidas, vistas e
lidas.
Dos contos de Mansfield “Bliss” é o mais conhecido. Escrito numa época em que
as histórias das (poucas) mulheres escritoras abordavam temas tipicamente femininos,
como a jardinagem, a vida doméstica, a religião e a literatura infantil, Mansfield, em
contrapartida, ressalta em “Bliss” a condição da mulher na sociedade inglesa pós-vitoriana,
bem como a descoberta sexual da protagonista Bertha Young. Abordar temas ligados ao
sexo era um tabu nesse período, assim como mencionar a própria palavra sexo era um
pecado grave e, portanto, era impensável que ela fosse pronunciada pelas moças de
família. Dessa forma, “Bliss” permite-nos uma leitura acerca da necessidade de a mulher
lutar por sua felicidade, buscando o auto-conhecimento e o conhecimento de mundo, que
não lhe eram permitidos devido à estrutura patriarcal vigente.
A tradução de Ana Cristina do conto “Bliss” se deu num período marcado pela
efervescência intelectual, considerando-se que vários pensamentos sobre o papel da
mulher, dos negros, dos homossexuais e das literaturas periféricas estavam emergindo e
mobilizando diversos intelectuais nesse momento. No final dos anos 70 do século XX,
surgiu o pensamento desconstrutivista de Derrida, cuja leitura do texto seminal de
Benjamin sobre tradução (“A Tarefa-Renúncia do Tradutor”, tradução oferecida por
Susana Kampff Lages), apresentada em Torres de Babel (2002), possibilitou, entre outras
coisas, uma valorização do caráter histórico dessa atividade de tradução. No contexto
brasileiro, o pensamento teórico dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos também
permitiu uma nova maneira de conceber a tradução. Através de práticas tradutórias
criativas, os irmãos Campos questionaram a visão tradicionalista que colocava o tradutor e
seu texto numa posição secundária e subserviente em relação ao autor e ao texto original e
defenderam um impulso criativo para o tradutor, ou seja, a transcriação do texto original.
Esse contexto em que se deu a tradução de Ana Cristina também se caracteriza
pelos intensos fluxos migratórios que atravessam o planeta, que levam o intelectual à
análise da diluição de fronteiras territoriais e suscitam o surgimento de um contexto de
crescentes trocas simbólicas. Sandra Regina Goulart de Almeida, em “Escrituras
Migrantes: Sujeitos Femininos em Deslocamentos” (2003), cita a tradutora Barbara
Godard, que desenvolve uma análise sobre a importância das trocas culturais para a escrita
feminina. Segundo ela: “Godard visualiza essas questões dos deslocamentos femininos
como uma forma de exílio que se torna evidente através da escritura” (2003, p. 331). A
autora ressalta ainda a importância desses fluxos para a “prática de tradução cultural como
formas de re-escrituras subjetivas” (p. 331). Através do deslocamento, do exílio e do
contato com um novo contexto cultural, social e histórico, uma gama de experiências,
indagações e questionamentos afluem, expostos através da escritura ou da prática
tradutória. Graças à fluidez de fronteiras, às trocas culturais, ao trânsito em que se cruzam
passado e presente, textos são apropriados, traduzidos e lidos novamente, trazidos para
uma nova instância cultural, reinterpretados, recriados. Almeida enfatiza os sujeitos
femininos migrantes, entre eles as tradutoras que, buscando dar voz às mulheres, atuam
como fronteira de transferências culturais diversas (p. 330), o que nos remete a Ana
Cristina, que ela escolheu ir à Inglaterra para fazer seu curso de mestrado, onde
eclodiam, entre outros, os estudos de gênero. Como mediadora, ela traduziu para a língua
portuguesa o conto “Bliss”, com o qual enfatiza sua posição de mulher, trazendo à tona
uma temática que fora abordada, num tom anunciatório, há mais de 60 anos por Mansfield.
No primeiro capítulo dessa dissertação, enfatizamos a tradução como um exercício
de criação para a poeta Ana Cristina Cesar. Isso porque, através do contato íntimo com
autores como Charles Baudelaire, Dylan Thomas, Emily Dickinson, Sylvia Plath, de quem
traduziu vários textos, Ana Cristina construiu sua própria identidade autoral, apropriando-
se da temática e também de versos inteiros desses e de outros autores. Damos destaque ao
interesse de Ana Cristina pelo conto “Bliss” e retratamos como o contato da poeta com o
conto e a biografia de Mansfield também colaborou para a construção de sua identidade
autoral. Ao investigar a gênese do interesse de Ana Cristina por “Bliss” e Mansfield,
recorremos à obra de Rhoda B. Nathan que, numa edição da série Literature and Life:
British Writers (Literatura e Vida: Escritores Ingleses, não traduzida para o português),
intitulada Katherine Mansfield (1988), traça, de forma ampla, dados biográficos da autora
muito pertinentes para a nossa análise.
No capítulo dois, analisamos como o surgimento da crítica literária feminista e os
estudos de gênero na década de 70 influenciaram a escrita e a prática tradutória das
mulheres. Abordamos a tradução como um dos principais meios de inserção das mulheres
no mundo letrado, visto que lhes era vedado o direito de criação literária. Dessa forma,
analisamos como elas, ao longo da história, ganharam acesso à esfera pública das letras
através da prática tradutória. Após uma abordagem diacrônica sobre as mulheres
tradutoras, chegamos aos anos 80 do século XX, quando, concomitante ao movimento
feminista, se desenvolve um pensamento feminista sobre a tradução no Canadá, baseado,
principalmente, no conceito de uma “escritura feminina”, desenvolvido pela teórica
francesa Hélène Cixous, que enfatizava a escrita do corpo pela mulher. Buscando dar voz à
mulher através da língua, as tradutoras feministas recorreram a práticas tradutórias
subversivas. Por afirmarem que à violência da sociedade androcêntrica corresponde a da
língua falocêntrica, elas buscaram romper com o longo e dominante pensamento da
tradução como equivalência de sentidos fixados, utilizando, no ato tradutório, estratégias
subversivas da linguagem, como o prefácio e as notas de de página, paratextos que
também foram usados por Ana Cristina em sua tradução de “Bliss”. Dessa forma, as
tradutoras de língua francesa rechaçaram os conceitos tradicionais rebatidos desde a Idade
Média, como a obrigatória fidelidade do tradutor ao texto dito original, do autor
onipotente, da mesma maneira que a mulher deve obediência e fidelidade ao homem. Esse
estudo sobre a tradução e a crítica de tradução por parte de mulheres se estende até a
década de 90 do século XX, quando a norte-americana Suzanne Jill Levine, tradutora de
escritores latino-americanos, constrói uma prática e um discurso tradutórios menos radicais
do que os das tradutoras canadenses.
No terceiro capítulo, buscamos analisar o panorama do momento em que Mansfield
escreveu “Bliss” (1918), bem como o contexto no qual Ana Cristina o traduziu (1979-
1981). Nesse sentido, remetemo-nos à Inglaterra dos anos 20 do século passado, e à
consideração desse contexto sócio-histórico-cultural. Apontamos para o fato de que a
escrita de “Bliss” se deu em 1918, época em que acontecia a Primeira Guerra Mundial,
coincidindo também com a eclosão do movimento feminista na Inglaterra.
Em seguida, fazemos um estudo de “Bliss” à luz da crítica feminista, chamando a
atenção para a possibilidade de se ler esse conto como revelador do desconforto em relação
à posição ocupada pela mulher na sociedade patriarcal inglesa, visto que Mansfield,
através de “Bliss”, denuncia e critica essa situação. Enfocamos, nesse momento, o tema do
desejo homoerótico feminino e masculino, pois a contista aborda tais questões através dos
personagens Bertha Young e Eddie Warren, respectivamente.
Finalmente, fazemos uma análise da tradução de Ana Cristina, buscando, através
do prefácio e das notas que escreveu, evidências de como a tradutora compreendeu
“Bliss”, bem como a relação de Ana Cristina com a cultura e língua do texto original.
Retratamos as maneiras pelas quais ela ressaltou as características temáticas abordadas
que, de certa forma, deixaram de ser enfatizadas por outros tradutores. Procuramos
estabelecer uma relação entre as posturas práticas e teóricas tradutórias de Ana Cristina em
relação às das intelectuais canadenses, de quem foi contemporânea, e às de Levine, de
quem foi antecessora. Dessa forma, buscamos, através da análise da tradução de Ana
Cristina do conto “Bliss”, evidências para a sua resposta à pergunta presente no poema de
Cacaso, escolhido como epígrafe a essa dissertação: “Estou aqui, você não vê?”.
CAPÍTULO 1
ANA CRISTINA CESAR, KATHERINE MANSFIELD
E “BLISS”
Ana Cristina Cesar.
Capa do livro Correspondência Incompleta.
Rio de Janeiro, Aeroplano Editora, 1999.
Fonte: http://www.pacc.ufrj.br/literaria/galeria.html
Ausência
Por muito tempo achei que ausência é falta
E lastimava, ignorante, a falta...
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
Ausência é um estar em mim.
E sinto-a tão pegada, aconchegada nos meus braços
Que rio e danço e invento exclamações alegres.
Porque a ausência, esta ausência assimilada,
Ninguém a rouba mais de mim.
(Carlos Drummond de Andrade Com o
pensamento em Ana Cristina)
*
Neste primeiro capítulo, buscaremos entrelaçar Ana Cristina César, Katherine
*
Poema extraído do livro Inéditos e Dispersos (1998, p. 208).
Mansfield, “Bliss”, tradução e feminismo. Para tal, faremos um breve histórico da vida e
da produção literária de Ana Cristina, enfatizando a forma pela qual a poeta chegou à
tradução como um exercício de recriação. Daremos destaque ao interesse formal e
temático de Ana Cristina por “Bliss”, da autora neozelandesa Katherine Mansfield, que a
levou a apresentar, como dissertação de mestrado, uma tradução comentada do conto, com
a qual recebeu o título de mestre, em 1981. Também traçaremos um breve histórico da
vida de Mansfield, para compreendermos os motivos que podem ter conduzido Ana
Cristina à contista.
1. 1 – Ana Cristina Cesar e a busca de uma identidade autoral
Estou Atrás
do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra
28.5.69 (Ana C., ID, 51).
Grande parte da produção poética de Ana Cristina Cesar, ou Ana C. (como
costumava assinar), se deu nos anos 70, período conturbado do cenário brasileiro, visto que
a repressão da ditadura militar estava no auge, o que ocasionou profundas mudanças nos
fatores comportamentais, estéticos e econômicos do país. Silviano Santiago, no ensaio
datado de 1988, “Poder e Alegria: A Literatura Brasileira Pós-64 Reflexões” (2002, p.
13-27), faz uma interessante análise desse momento de intenso autoritarismo em que,
“tanto a violência visível quanto a invisível restringiram ao mínimo o universo de
pensamento e o campo de ação dos cidadãos inconformados (e, entre estes, o do artista)”
(p. 19). Sem dúvidas, o reflexo do militarismo é visto em todas as manifestações culturais
dessa época, como nas canções de protesto dos novos compositores ligados ao
engajamento político. Podemos destacar as composições de Caetano Veloso, que gritava
“Alegria! Alegria!” mas, segundo Santiago, era um “grito dado no momento mesmo em
que o corpo do artista era dilacerado pela repressão e a censura” (p. 25), e também as de
Chico Buarque, como “Cálice” e “Apesar de Você”, e de outros intelectuais contestadores
que buscavam fazer da arte uma espécie de arma contra a opressão.
No campo literário, surge “a boa literatura pós-64”, para usar a expressão do crítico
brasileiro (p. 26), constituída pelos grupos de escritores denominados “marginais”, visto
que se colocavam à parte dos movimentos revolucionários daquele período, como uma
forma de recusa à ditadura militar. Segundo Maria Lúcia Camargo, em Atrás dos Olhos
Pardos: Uma Leitura da Poesia de Ana Cristina Cesar (2003), naquela década,
principalmente até 1974, “uma múltipla ‘cultura à margem’ se instala: à margem da
intelectualidade, à margem da sociedade de consumo, à margem da moral estabelecida, à
margem da atuação política direta na esquerda revolucionária” (p. 29). Nesse ínterim,
destaca-se a produção dos poetas considerados antiintelectuais, como Chico Alvim, Chacal
e outros cujas poesias se caracterizam pela baixa qualidade estética e pelo descuido com a
linguagem, visto que produzidas por uma “geração desinformada, de escritores sem leitura,
sem conhecimento da tradição literária” (p. 37). No entanto, prossegue a autora, tal
assertiva “talvez seja verdade em relação a muitos daqueles jovens autores, mas sem
dúvida não é uma afirmativa válida para o conjunto de poetas” da geração de 70 (p. 37,
grifo nosso).
Ana Cristina, em seu artigo “Literatura Marginal e Comportamento Desviante”, de
1979, publicado na obra Crítica e Tradução (1999, p. 213-223), ressalta esse período por
ela vivenciado, originário do tropicalismo, marcado pela contracultura e que coloca em
debate questões como o uso de drogas, o rock n’roll, a psicanálise, os circuitos
alternativos, o desbunde, a liberdade, a descrença com a política, a desrepressão e outros.
Nesse contexto, os poetas buscavam novas experiências profissionais e sentimentais. Ana
Cristina, segundo Moriconi, buscava, entre outras, a “verdade de seu desejo. Navegando
delicadeza na brutalidade jardim da libido coletiva” (1996, p. 26).
Em seu artigo, Ana Cristina prossegue retratando esse período, e afirma que, na
adoção do sistema de valores da contracultura, “a identificação não é mais, como no grupo
de esquerda, com o ‘povo’ ou o ‘proletariado revolucionário’, mas com as minorias:
negros, homossexuais, hippies, marginal de morro, pivete, Madame Satã (símbolo de
integração marginal/homossexual), cultos afro-brasileiros, etc.” (1999, p. 217). Segundo
Ana Cristina, a produção literária marginal dos novos poetas:
...é tomada não como saída alternativa, mas sim como ameaça ao sistema,
como possibilidade de agressão e transgressão. A contestação é assumida
conscientemente. O uso de tóxicos, a bissexualidade, o comportamento
“exótico” são vividos e sentidos como gestos perigosos, ilegais e portanto
assumidos como contestação de caráter político (1999, p. 217).
Em meio à produção panfletária dos poetas marginais emerge o corpus literário de Ana
Cristina, que apresenta características diferenciadoras em relação à escrita poética de 70,
como ressalta Camargo:
Ao contrário do que seria de se esperar num momento em que se falava
em “poesia marginal” como a poesia da espontaneidade, do
antiintelectualismo, momento em que, ao menos aparentemente, se
defendia uma literatura confessional, Ana Cristina explicita, na
contramão, um conceito de literatura como reinvenção, construção, que
não se confunde nem com a invenção, nem com a confissão da
intimidade; que pede rigor, na escrita e na leitura, e que não aceita
complacências com a desqualificação literária (2003, p. 55).
Nesse contexto, os poemas de Ana Cristina se sobressaem visivelmente quando
comparados aos produzidos pelos grupos marginais do Rio de Janeiro, qualificados por
Affonso Romano de Sant’Anna como “lixeratura” (SANT’ANNA citado por CAMARGO,
2003, p. 37). Ao contrário do que acontecia com o modo de produção e veiculação dos
poemas desses grupos, que constituíam a geração mimeógrafo pela sua produção artesanal,
Ana Cristina teve textos seus publicados na antologia 26 Poetas Hoje, em 1976, que logo
ganharam notoriedade, distanciando sua escrita poética da proposta vanguardista daquele
período.
1. 1. 1 – Os movimentos apropriativos de Ana Cristina Cesar
Enquanto leio meus textos se fazem
descobertos. É difícil escondê-los no meio
dessas letras. Então me nutro das tetas dos
poetas pensados no meio seio (Ana C., ID, 95).
Segundo Camargo, diferentemente dos amigos e poetas de sua época, Ana Cristina
desconsiderava a poesia como experimentação de linguagem, pois sua composição literária
se aproxima da “idéia borgeana do palimpsesto, de múltiplas vozes ecoando” nos textos da
poeta (2003, p. 52). Ao ser concebida como palimpséstica, sua poesia enfatiza que não
obra absolutamente pura, não contaminada, mas sim a impossibilidade do novo, da
existência de originalidade absoluta.
Dessa forma, ela “vai preservar, apenas, uma certa visão ‘menardiana’ da literatura.
Vai preservar, assim, a idéia do poeta-tradutor, do poeta que para escrever. Para esse
poeta, sua principal ferramenta é a Biblioteca”, como ressalta Camargo (p. 35, grifo
nosso). Aqui, a autora cita o texto seminal de Borges, “Pierre Menard, autor de Dom
Quixote”, como metáfora da escrita poética de Ana Cristina. Nesse conto, o autor
argentino ressalta que todo texto é uma recriação de uma recriação, desestabilizando os
conceitos de autor/original e tradutor/cópia. Segundo o conto, Menard, leitor contumaz,
devorador de livros, vive dividido entre a assimilação do modelo, do texto original, e a
necessidade de reinvenção, de renovação. O projeto de Menard é reescrever o “Dom
Quixote”, de Miguel de Cervantes. Mas, segundo Silviano Santiago, em seu artigo “O
Entre-lugar do Discurso Latino-americano” (1978, p. 11-28), a reescritura de Menard é
“invisível”, pois é idêntica ao modelo, ao texto original, não havendo qualquer diferença
na sintaxe e no vocabulário. sua obra visível se caracteriza pela apropriação criativa,
pelo caráter renovador, pela transgressão ao modelo original. Santiago cita, como exemplo,
a transcrição do poema “Le Cimitière Marin”, de Paul Valéry. Nessa transcrição, Menard
transgride o poema original por suplementá-lo com duas sílabas que, acrescidas aos
decassílabos, transformou os versos de Valéry em alexandrinos. Essa é uma das obras
visíveis de Menard e, portanto, encontra-se presente na bibliografia citada pelo narrador do
conto (p. 26). Ainda em seu ensaio, Santiago afirma que é a apropriação, uma idéia
roubada ou “uma imagem ou palavras pedidas de empréstimo” (p. 21) que têm permitido,
ao longo dos séculos, a proliferação de textos e o enriquecimento da literatura. Nesse
contexto, o crítico brasileiro cita “a voz canibal de Valéry”: “nada mais original, nada
mais intrínseco a si que se alimentar dos outros. É preciso, porém, digeri-los. O leão é feito
de carneiros assimilados” (VALÉRY citado por SANTIAGO, 1978, p. 21).
Semelhantemente à obra visível de Menard, a originalidade da literatura de Ana
Cristina se pela apropriação de textos alheios e a liberdade de criação da poeta-
tradutora. Como ela própria enfatiza em depoimento prestado durante o curso “Literatura
de Mulheres no Brasil”, ministrado pela professora Beatriz Rezende, em 6 de abril de
1983, e publicado na obra Crítica e Tradução (1999, p. 256-273): “Cada texto poético está
entremeado com outros textos poéticos. Ele não está sozinho. É uma rede sem fim. É o que
a gente chama de intertextualidade. Então, um remete ao outro...” (p. 267).
Silviano Santiago, em Glossário de Derrida (1976), esclarece o conceito de
intertextualidade definido pelo teórico francês pós-estruturalista Jacques Derrida:
Falar de intertextualidade ou sistema textual, para Derrida, implica uma
metáfora: a descoberta das malhas ou fios do texto que podem ser
apreendidos por seus traços em diversos momentos de análise. O próprio
desse tecido, que é o texto, é regenerar-se, refazer-se, após cada recorte,
isto é, cada nova análise. Nesse movimento de regeneração orgânica,
toda tessitura tende a se reorganizar e o entrelaçamento (sumploké) de
seus fios a se ocultar cada vez mais. Perceber o desenho (dessin) do texto
significa uma certa determinação de leitura, somente conseguida pelo
analista após o desvendamento (dévoilement), ou o descoser (découdre)
da tessitura, e o vencimento de sua resistência natural: o entrelaçamento
dos fios (1976, p. 52).
Portanto, os poemas de Ana Cristina são tecidos a partir de diversos fios alheios: ao
se “perceber o desenho” de seu texto, a leitura revela referências tanto a poemas canônicos
como àqueles escritos por namorados ou amigos, como Armando Freitas Filho e Ângela
Melim. Além disso, o leitor descobre diversas alusões feitas por Ana Cristina à cultura
popular e de massa (a Roberto Carlos, por exemplo), estabelecendo uma rede infinita de
intertextualidades. É ela própria quem confessa, nos versos escolhidos como epígrafe, que
são “das tetas dos poetas” que se a elaboração de sua escrita poética. Também em A
Teus Pés, sua vampiragem, termo utilizado por Camargo (2003, p. 141), é declarada:
“Escrever é a parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro” (1988, p.
89). Neste outro poema de Inéditos e Dispersos, lemos:
Como terei orgulho do ridículo de passar bilhetes pela porta.
Esta mesma porta hoje fecho com cuidado; altivo.
Como não repetirei, a teus pés, que o profissional esconde no
índice onomástico os ladrões de quem roubei versos de amor
com que te cerco.
Te cerco tanto que é impossível fazer blitz e flagrar a
ladroagem (1995, p. 173).
Sabemos que a escrita como citação não é tendência exclusiva da literatura de Ana
Cristina. Camargo afirma:
É evidente que toda obra literária tem relação com a tradição que a
antecede, seja por influências, seja por adesão, por mímese, por negação,
por resistência, por releitura ou recuperação [...] Mas em Ana Cristina a
relação com a tradição literária não vai se limitar a influências, nem será
apenas prática epigonal da modernidade. É o processo construtivo da
obra, conscientemente planejado e elaborado: paródias, pastiches,
apropriações de versos, alusões e referências diretas a autores amados, a
amigos e a outras artes (2003, p. 119).
Não aleatoriamente, Süssekind refere-se à obra de Ana Cristina como “arte da
conversação” (1995, p. 9) e considera a poeta como alguém que e traduz para escrever,
aproximando a atividade do poeta à de um tradutor. De fato, Süssekind afirma que a
tradução, como aperfeiçoamento literário, possibilitou a “afirmação de uma dicção poética
própria” de Ana Cristina (p. 7). Segundo a autora, a escolha seletiva dos textos traduzidos
pela poeta se deu “para o aprimoramento de seu método poético. Em alguns casos, tratava-
se de traduzir para observar mais de perto este ou aquele traço estilístico, esquema rítmico
ou imagem recorrente” (p. 49).
Nos poemas de Ana Cristina, encontramos referências não apenas a autores
brasileiros, como Mário de Andrade, Adélia Prado, Jorge de Lima, Carlos Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira, como também uma série de diálogos explícitos com textos de
vários autores traduzidos por ela, entre os quais se encontram Charles Baudelaire, Emily
Dickinson, Katherine Mansfield, Marianne Moore, Sylvia Plath, Anthony Barnett, Dylan
Thomas, T.S. Eliot e Conan Doyle.
Uma análise da poesia de Ana Cristina nos revela sua prática tradutória também
como responsável pela formação de sua identidade autoral. Ao se valer de fragmentos de
textos alheios por ela traduzidos para compor sua poética, Ana Cristina os recria,
fornecendo-lhes novos contornos e sentidos. Dessa forma, podemos afirmar que a prática
tradutória de Ana Cristina está em consonância com o pensamento teórico de Walter
Benjamin, expresso em seu ensaio intitulado “A Tarefa Renúncia do Tradutor” (2001, p.
189-215), que é a introdução à tradução alede Cenas Parisienses (Tableaux Parisiens,
1923), de Charles Baudelaire. Nesse texto, importante para a construção do pensamento
contemporâneo sobre a tradução, Benjamin refere-se à tradução como Fortleben, termo
para o qual Else Vieira, em sua tese de doutorado intitulada Por Uma Teoria Pós-Moderna
da Tradução (1992), oferece a tradução de “existência continuada” (p. 149). Dessa forma,
a tradução possibilita a um texto continuar sua vida em novos contextos, através da
transformação e renovação. Para tal, o tradutor precisa transformar o passado em algo
novo. “Liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação essa é a tarefa do
tradutor” (2001, p. 211), segundo Benjamin. Portanto, o pensamento tradutório de
Benjamin desloca a idéia da tradução como uma atividade inferior, submissa, para
enxergá-la como um processo criador, transformador, subversivo.
Nos textos publicados em Escritos da Inglaterra (1988) percebe-se o quanto Ana
Cristina desestabiliza o conceito da tradução como busca de fidelidade ao texto-fonte. Esse
tipo de postura relega a tradução a uma posição secundária e derivativa e torna o tradutor
invisível em sua releitura ou reescrita. Os textos de Escritos da Inglaterra corroboram que
o viés tradutório de Ana Cristina é outro, que ela imprime em suas traduções traços
pessoais, através de estratégias criativas, como o prefácio e as notas de de página, e os
comentários aos poemas de Emily Dickinson, nos quais ela nos relata com minúcias como
se deu o processo de tradução.
Else Vieira, em Fragmentos de uma História de Travessias: Tradução e
(Re)Criação na Pós-Modernidade Brasileira e Hispano-Americana (1996), enfatiza a
importância da tradução “como processo de criação ou recriação, desvios, deslocamentos,
mutações, suplementos, movimentos bilaterais” (p. 63). Recorrendo ao texto do escritor
mineiro Guimarães Rosa, “A Terceira Margem do Rio”, Vieira defende “uma visão da
tradução que se situa no limiar do doar e receber, que descreve uma existência continuada
de crescimento através do Outro e a experiência ambígua de, ao ser traduzido e
suplementado, sentir-se transformado nos sons do outro” (p. 65). Esse contato íntimo com
o texto alheio tem possibilitado a apropriação da voz do Outro que, sob um novo olhar,
ganha sentidos múltiplos no processo de criação literária. Assim, é possível vislumbrar a
tradução como uma prática que opera contra a invisibilidade do tradutor, possibilitando a
existência do Outro com criatividade e ousadia, como o fez Ana Cristina. Ao elaborar seus
poemas nos interstícios do texto do outro, ela presentificou a fala alheia, redimensionando
e situando essa fala num outro espaço, alterando e conferindo-lhe um novo sentido.
Vale ressaltarmos o artigo de Evando Nascimento, intitulado “Ana Cristina Cesar e
Charles Baudelaire: Signos em Tradução”, publicado na obra Literatura em Perspectiva
(2003, p. 47-59). Nesse artigo, Nascimento ressalta que Ana Cristina não apenas se
apropria da tradição, mas a reinventa, transformando o erudito em fala cotidiana,
dessacralizando o passado e inserindo-o num novo contexto, produzindo uma obra
singular. O crítico desenvolve uma análise do poema “Carta de Paris”, de Ana Cristina,
publicado em Inéditos e Dispersos (1995, p. 82-84), que seria uma tradução do poema Le
Cygne, de Charles Baudelaire. Ele enfatiza que “Ana Cristina não pratica uma tradução
convencional do poema de Charles Baudelaire, mas o que Haroldo de Campos chama de
transcriação (2003, p. 48). Nessa reescritura, a poeta-tradutora opera uma transformação
do poético para o prosaico e, ao intitulá-la “Carta de Paris”, um tom confessional e
coloquial ao poema no primeiro verso, quando se refere ao destinatário como “minha
filha”, intimidade comum às cartas pessoais. Nascimento declara que não colocaria “Carta
de Paris” “na categoria do pastiche, nem o classificaria como paródia, paráfrase, ou
qualquer procedimento dessa natureza”. Segundo o autor: “Prefiro chamá-lo de
comentário íntimo ou de confissão poética. Poderia ainda nomeá-lo como tradução
literária, em sentido amplo” (p. 47, grifos do autor). Pode-se afirmar que Ana Cristina
elabora no todo de Le Cygne sua própria fala, redimensionando e recriando o texto de
Baudelaire, operando uma tradução transcriativa em que o Outro não é apenas traduzido,
mas “suplementado”, no sentido de Derrida, para quem o suplemento, nas palavras de
Santiago, é “uma adição, um significante disponível que se acrescenta para substituir e
suprir uma falta do lado do significado e fornecer o excesso de que é preciso” (1976, p.
88).
No ensaio “A Permanência do Discurso da Tradição no Modernismo” (2002, p.
108-144), Santiago destaca o pastiche como uma estética do suplemento: “eu não diria que
o pastiche reverencia o passado, mas diria que o pastiche endossa o passado, ao contrário
da paródia, que sempre ridiculariza o passado” (p. 134). Portanto, a partir da análise
esboçada pelo crítico, segundo a qual o “pastiche não rechaça o passado, num gesto de
escárnio, de desprezo, de ironia” (p. 134), como é típico da paródia, e a partir de sua
contraposição paródia/pastiche, relacionando-os a moderno e s-moderno,
respectivamente, podemos dizer que Ana Cristina, ao escrever cartas e diários falsos, bem
como ao reescrever textos lidos e traduzidos, recriando-os, como se deu com “Carta de
Paris”, retorna ao passado, à Biblioteca, mas não de forma sarcástica, irônica. Não é uma
ruptura com o passado, conforme enfatiza Nascimento citando Lyotard, mas
“desdobramento, distanciamento, reescrita” (2003, p. 54).
Moriconi ressalta que essa infante “pós-moderna fúria apropriativa do método
compositivo” de Ana Cristina, “baseado na apropriação incessante de versos e trechos de
outros poetas, que ela distorce, desloca, alude, readapta, reescreve, parafraseia, parodia”,
confere sim ao texto de Ana Cristina “o perfil de pastiche, no sentido de superfície tecida
de retalhos entrechocantes, mélange adultère de tout, mistura adúltera de tudo” (1996, p.
96). Segundo o autor, corroborando o que afirmamos, este é um fator que diferencia
grandemente a literatura de Ana Cristina da produzida pela geração de 70 (p. 97). No
entanto, diferentemente da radicalidade modernista, sua composição poética se caracteriza
pelo “gesto amoroso da fusão intertextual no pastiche” (p. 98). É interessante ressaltar
ainda o ato autofágico atribuído por Moriconi a Ana Cristina, descrita pelo autor como a
“poeta bicho-da-seda”, considerando-se que sua criação artística não se dá somente através
da “remixagem de material pronto”, mas também de seu “próprio material escrito, seus
diários, suas anotações, seus ‘cadernos terapêuticos’” (p. 96).
Podemos afirmar, dessa forma, que algumas características ressaltadas, comuns à
arte pós-moderna, como a intertextualidade, o pastiche, a linguagem fragmentada e a
mistura do popular e o erudito, estão presentes na obra de Ana Cristina. Além disso, vimos
que sua prática tradutória corrobora o pensamento do teórico e tradutor brasileiro Haroldo
de Campos, segundo o qual, em “Transluciferação Mefistofáustica” (1979), “a tradução é
também uma persona através da qual fala a tradição. Nesse sentido, como a paródia, ela é
também um “canto paralelo”, um diálogo não apenas com a voz do original, mas com
outras vozes textuais” (p. 191). Nesse sentido, como “canto paralelo” (e não como “contra-
canto”, uma das acepções possíveis da paródia), a escrita de Ana Cristina é polifônica,
visto que nela estão presentes tanto textos da tradição universal, por ela traduzidos, como
também das fontes nativas, num processo de constante recriação.
1. 1. 2 – A construção de uma identidade feminina
Posso ouvir minha voz feminina:
estou cansada de ser homem (Ana C., ATP, 72).
A militância feminina ao longo dos anos possibilitou a conquista de espaços muito
desejados pelas mulheres escritoras, como a privacidade de um quarto todo seu. Moriconi,
em referência a Ana Cristina, ressalta que, “na solidão de seu quarto de eterna adolescente
[...], no silêncio do apartamento dos pais à Rua Tonelero (hoje Toneleros) 261,” a poeta
atravessava “as noites em vigília produtiva”, desenvolvendo “uma fina reflexão sobre a
natureza do literário, o que explica o grau de maturidade atingido por seu texto” (1996, p.
13). Nesse sentido, pode-se afirmar que Ana Cristina faz parte da linhagem das mulheres
que usufruíram das reivindicações feitas por, entre outras escritoras, Virginia Woolf. Isso
porque, ao ser interrogada sobre o motivo da pouca produção literária das mulheres
inglesas, Woolf forneceu sua resposta através da obra A Room of One´s Own, de 1928.
Nesse livro, a escritora inglesa declarou que, para escrever ficção, a mulher inglesa
precisava ter, principalmente, privacidade, ou seja, um espaço interno, um lugar íntimo,
enfim, um quarto seu para que ela pudesse pensar sobre o externo que, até então, pertencia
ao homem.
Dessa forma, vale ressaltar a carta intitulada “O Quarto de Virginia Woolf”,
publicada pela revista Veja (11 de janeiro de 2006, p. 26), escrita pela leitora Adelaide
Reis, que faz uma breve análise sobre a tradução do título original da obra de Woolf para a
língua portuguesa, a saber, Um Teto Todo Seu. Nesta, a autora afirma que a palavra inglesa
“room” não deveria ter sido traduzida como “teto” que, em português, pode significar
“abrigo, habitação”, segundo o Dicionário Brasileiro Edelbra (s/d, p. 757), mas sim como
“quarto”. Isso porque, o que faltou à mulher inglesa para que ela pudesse desenvolver seu
talento criador foi ter, além de uma renda, um lugar todo seu, pois “em seus primeiros anos
de vida, ela dormia com os pais, depois com as irmãs e mais tarde com o marido” (2006, p.
26). Assim, a ausência de privacidade, do clima de silêncio, de um quarto próprio “onde
deixasse um soneto para melhor lapidá-lo, mais tarde” (p. 26), colaborou para a pouca
produção literária feminina na Inglaterra. Nesse sentido, pode-se afirmar, juntamente com
Adelaide Reis, que o tradutor não conseguiu captar o sentido que norteou Woolf na escrita
de sua obra. Portanto, o título da edição brasileira não conta do conteúdo do texto de
Woolf, o que justifica nossa opção pelas referências ao título original inglês ao longo desse
trabalho, e não à tradução para o contexto brasileiro.
Ana Cristina usufruía de sua privacidade criativa escrevendo não apenas poesia e
prosa, mas também textos íntimos, como cartas, bilhetes, diários, escritos que viriam a
compor seus poemas. Sobre o talento epistolar da poeta, Moriconi afirma que, “escritora
por vocação e profissão, ela jamais escreveria cartas inocentes” (1996, p. 11), e ainda,
“toda carta de Ana é um objeto belo de linguagem” (p. 89). Em referência às cartas por ela
escritas ao amigo Caio Fernando Abreu, que as publicou no jornal O Estado de São Paulo,
pouco antes de morrer, Moriconi enfatiza que elas “são pura pose, pura malícia, como
convém à boa literatura. No entanto, delas é possível extrair verdades fortes de vida, mais
cruéis que qualquer intenção documental” (p. 11). Essa predileção da poeta pelos gêneros
confessionais a levou a elaborar sua escrita de mulher, através de uma fala coloquial e
íntima, própria dos textos femininos.
Além de cartas, Ana Cristina aproveitou a privacidade de seu quarto para escrever
ensaios, como o intitulado “Os Professores Contra a Parede”, publicado em dezembro de
1975 no jornal Opinião, que se encontra na obra Crítica e Tradução (1999, p. 146-153).
Nesse texto, como o próprio título sugere, Ana Cristina expõe sua visão sobre o mundo
imerso em machismos em que vivia, ao abordar questionamentos muito presentes na Vila
dos Diretórios da PUC na década de 70, entre eles, as relações hierarquizadas e autoritárias
das instituições de saber, bem como a repressão existente na relação professor-aluno.
Ainda nesse artigo, Ana Cristina nos apresenta seu sentimento de revolta com a “estrutura
masculina da liderança intelectual” que predominava em sua época, como define Moriconi
(1996, p. 70), quando apenas os homens “podiam brilhar, falar de poesia, fazer poesia, ou
dominar politicamente o departamento de Letras” (p. 70).
Estudiosa das teorias feministas e pós-feministas, “que leu com interesse, mas com
interesse que sempre subordinou à construção da própria assinatura literária”, segundo
Moriconi (p. 71), Ana Cristina buscou veemente desconstruir o conceito da elite acadêmica
masculina que imperava na PUC, com o modelo machista que considerava que aos
homens cabia a produção e transmissão do saber. Ana Cristina compreendeu que a tarefa
político-cultural das mulheres:
... localizava-se no estabelecimento de alianças intelectuais, de redes de
solidariedade, admiração e auto-modelagem a partir de linhagens de
transmissão exclusivamente femininas. No lugar da relação mestre-
discípulo, construir um imaginário pautado pela relação mestra-discípula
(1996, p. 71, grifo nosso).
Moriconi ainda ressalta que a “poesia de Ana se desengaja da militância ortodoxa
para engajar-se numa política de linguagem anti-autoritária” (1996, p. 50). Nesse sentido,
através de seus poemas, Ana Cristina enfatiza a necessidade de a mulher buscar uma
dicção própria, desvencilhando-se dos modelos masculinos estabelecidos. Ao mesmo
tempo, porém, ela declara ser preciso preservar a especificidade da condição de mulher.
Dessa forma, a feminilidade de sua poesia se faz presente na linguagem, na sintaxe, na
dicção íntima, no tom, no caráter de interlocução que, segundo Moriconi, Ana Cristina
considerava “o traço textual capaz de definir não propriamente uma escrita feminina, mas
o feminino na escrita” (p. 110). Ainda:
O feminino diria então respeito à pessoalização da relação entre texto e
leitor, à corporificação (histerização) da interlocução da leitura através de
sua concretização material como dado de construção formal do texto. Por
outro lado, a pessoalização enquanto troca de intimidades
automaticamente politiza o discurso no sentido de abrir uma vereda
paralela ao discurso patriarcal, por dissolver o narrador onisciente.
Narrador onisciente (onipotente, panóptico) que Ana em seus artigos do
Opinião chamava narrador-pai (1996, p. 110).
Através de sua poesia, Ana Cristina mostra ao leitor sua total libertação da “teoria
patriarcal da gênese literária”, como ela própria enfatiza na seguinte passagem, escrita
durante o período em que esteve na Inglaterra, quando tomou contato com a obra
clássica nos estudos sobre literatura feminina, intitulada The Madwoman in the Attic The
Woman Writer and the Nineteenth Century Literary Imagination, 1979 (A Louca no Sótão
A Mulher Escritora e a Imaginação Literária do Século Dezenove, não traduzido para o
português), de Sandra Gilbert e Susan Gubar. Numa resenha sobre essa obra, segundo
Maria Lúcia Camargo, Ana Cristina pergunta: “Há uma identificação cultural entre pena e
pênis, autoria literária e autoridade patriarcal, autor e pai? [...]. E como se situam as
escritoras mulheres diante dessa teoria (implícita ou explicitamente) patriarcal da gênese
literária?” (CESAR citada por CAMARGO, 2003, p. 75). Camargo oferece ao leitor a
resposta de Ana Cristina, segundo a qual, “para poder empunhar da pena e produzir texto,
a mulher tem de formular alternativas a essa autoridade”, sendo necessário “escapar do
espelho do texto masculino para uma tradição que possibilitasse a criação de sua própria
autoridade” (CESAR citada por CAMARGO, 2003, p. 75). Essa obra, segundo a autora,
foi lida quando Ana Cristina escrevia um dos seus livros mais femininos, Luvas de Pelica,
concomitantemente à leitura das cartas, diários e textos de Katherine Mansfield e, em
especial, à tradução de “Bliss”. Em Luvas de Pelica, a poeta enfatiza a independência
autoral da mulher, em consonância com os versos escolhidos por nós como epígrafe deste
subcapítulo, nos quais Ana Cristina declara estar cansada da imposição de ter de se igualar
aos modelos masculinos. Mesmo quando reescreve a partir deles, como se deu com o
poema de Baudelaire, ela o faz com subjetividade e tom pessoal, revestindo a linguagem
de intimidade. Portanto, pode-se afirmar que Ana Cristina colaborou para uma escrita
poética feminina.
Sobre a questão de gênero na poesia de Ana Cristina, Moriconi esclarece que o
projeto literário da poeta busca desconstruir o conceito metafísico de identidade sexual
rígida, fixa, isto é, Ana Cristina desfaz a distinção entre masculino e feminino como pólos
opostos determinados por uma “essência sexual” (1996, p. 107). Para o autor, a poesia de
Ana Cristina desconstrói a crença numa verdade absoluta e universal que aprisiona os
sexos em pólos opostos. Por isso, ela não pode ser reduzida a um “projeto de identidade
feminina”, nem “ao quadro da homossexualidade chapada” (p. 107). Vale transcrever a
citação do crítico:
A questão de gênero na poesia de Ana não funciona se analisada na pauta
dos jogos rígidos das identidades fixas e essencializadas, mas ‘fora da
pauta’, para usar uma expressão dela. Na clave errante do travestismo
como modo de vida imaginário associado à máscara irônica e
desconstrutora. A identidade se constrói, se desconstrói e se reconstrói
num processo interminável de negociação e conflito entre masculino e
feminino. A identidade é texto, espaço de concretização de uma
ambivalência que Ana não quer ou não pode “resolver”, “superar”,
“curar” (1996, p. 108).
Nesse sentido, pode-se afirmar que Ana Cristina retoma em sua poética o pensamento de
Katherine Mansfield que, em 1918, ao retratar em “Bliss” o desejo homoerótico, quebra a
barreira das identidades sexuais rígidas, antecipando em cerca de 60 anos questionamentos
que se fizeram presentes no contexto da crítica pós-estruturalista e, mais especificamente,
da desconstrução.
Virginia Woolf também retratou, em A Room of One´s Own, esse conceito fundante
da crítica pós-estruturalista. Eduardo de Assis Duarte, em “Feminismo e Desconstrução:
Anotações para um Possível Percurso” (2002), ressalta que a autora inglesa apresenta em
sua obra a androgenia da mente como desconstrução, ou seja, em sua escrita, Woolf busca
reverter o conceito de identidades sexuais fixas por aproximar os extremos, “fazendo com
que os opostos se atraiam e se interpenetrem” (p. 26). Assim, a mente torna-se “masculina
e feminina nos homens e feminina e masculina nas mulheres” (p. 25). O autor faz
referência à seguinte passagem da obra A Room of One´s Own:
É fatal ser um homem ou uma mulher, pura e simplesmente; é preciso ser
masculinamente feminina ou femininamente masculino. [...] Alguma
colaboração tem que ocorrer na mente entre a mulher e o homem antes
que a arte da criação possa realizar-se. Algum casamento entre opostos
precisa ser consumado. [...] É preciso haver liberdade e é preciso haver
paz (WOOLF, 1985, p. 136).
A temática do homossexualismo, abordada por Mansfield, em “Bliss”, de 1918, e por
Virginia Woolf, em A Room of One´s Own, em 1928, é retomada por Ana Cristina nas
décadas de 70 e 80. Embora temporalmente distante de ambas as autoras, a proximidade
entre elas se no que tange à temática abordada em suas escrituras, ou seja, à
desestabilização dos conceitos autoritários relativos à identidade sexual. Como exemplo,
podemos citar o poema intitulado “21 de fevereiro”, de Cenas de Abril que, segundo
Moriconi, “pode ser lido como um livro de catarse da adolescência”, escrito num período
em que Ana Cristina estava vivenciando, de maneira conflitiva e sobressaltada sua
liberação sexual (1996, p. 30). Nesse poema, Ana Cristina retrata o homoerotismo, criando
um jogo de ambigüidades através da interlocução com Manuel Bandeira e a apropriação de
Baudelaire, de quem precisa “para falar da dor que lhe provoca ser homem. A dor que lhe
provoca o desejo homoerótico. Imagem que a vitrine lhe vende: sapatão. Entrar na
sapataria popular e escolher o modelo brutal, a persona de homem, assumir o desejo”
(CESAR citada por MORICONI, 1996, p. 112). Aqui, Ana Cristina ressalta a
mutabilidade, o entre-lugar, a indefinição, o caráter camaleônico da sexualidade dos
sujeitos, temática cara à contemporaneidade.
Como dito anteriormente, é inegável que a tradução de textos de autoria feminina
colaboraram para a formação da identidade autoral da poeta, destacando-se a influência
dos textos de Emily Dickinson e Katherine Mansfield. A “cumplicidade” (CAMARGO,
2003, p. 219) entre Ana Cristina e Emily Dickinson se percebe tanto na escrita poética
quanto nas temáticas que abordam, sendo as questões da mulher e da morte as que mais se
destacam. Tal fato se comprova quando nos dedicamos à leitura do ensaio escrito por Ana
Cristina, intitulado “Cinco e Meio”, publicado em Escritos da Inglaterra (1988, p. 118-
136), no qual ela retrata as traduções que realizou de alguns poemas de Emily Dickinson:
A paixão que certas formas de expressão mínima transmitem ao leitor
nos inquieta, assim como o insistente mergulho no tema da morte.
Sentimos, mais do que nunca, o peso inegável da língua portuguesa – sua
pesada doçura e marcação silábica, sua sintaxe intrincada, todas as
qualidades que são mais visíveis no ato de traduzir, escrever ou ler uma
poesia (1988, p. 119, grifo nosso).
Além dos laços temáticos que unem as duas poetas, ao definir os limites que orientam a
produção de seus poemas, percebe-se que Ana Cristina corrobora o que Emily Dickinson
considera ser o modelo válido como escrita feminina, pois a escritora brasileira afirma, em
artigo citado, ter optado por uma:
... prosódia simples (regularidade e “primitivismo”) e, se possível um
padrão definido de rimas; tom de conversa, informal, sem paixão, sem
tom “literário” (uma espécie de “modéstia” de expressão); a rigor, o tom
não é coloquial; é, por assim dizer, seco; densidade/entrelinhas; precisão
(não ambigüidade) (1988, p. 123).
Poderíamos acrescentar que essa linguagem informal, em tom de conversa,
colaborou, significativamente, para o trabalho de Ana Cristina com os gêneros
confessionais. Ao escrever através de uma linguagem simples, clara e não hermética, seu
método a afastou das “perfeições” tão desejadas por Cecília Meireles, cuja preocupação
formal torna seus poemas visivelmente distintos dos produzidos por Ana Cristina, o que a
levou a declarar certa vez que “Cecília Meireles é um homem”. Em contrapartida, Ana
Cristina admirava “as belas imperfeições de Adélia (Prado)” (CESAR citada por
CAMARGO, 2003, p. 221).
A comunicação estreita com os textos de autoria feminina que traduzia possibilitou
a Ana Cristina elevar sua voz de mulher, como se deu com os poemas de Emily Dickinson.
Süssekind (1995, p. 45-57) exemplifica essa relação quando cita um caderno de Ana
Cristina dedicado especialmente à tradução dos poemas da autora americana, no qual se
percebe o processo tradutório de Ana Cristina. Primeiramente, uma busca ao dicionário de
vocábulos desconhecidos presentes no poema de número 290, publicado numa edição de
Thomas H. Johnson, como se pode observar:
290: ‘Of Bronze and Blaze?
blaze: chama, labareda, fogo, fogueira, luz intensa, brilho, esplendor,
fulgor, arroubo;
preconcert: combinar previamente;
strut: superior, segurar com escora;
stem: tronco, talo, haste, pé, suposte, base (gram.), raiz, origem;
menagerie: coleção de animais selvagens (circo?) (CESAR citada por
SÜSSEKIND, 1995, p. 53).
Esse mesmo processo de listagem de verbetes usados por Ana Cristina em seu exercício de
tradução dos poemas de Emily Dickinson é incorporado quando a tradutora compõe sua
poesia, como afirma Süssekind:
... o exame da página de caderno em que se acha o rascunho manuscrito
do poema “Estou sirgando, mas”, datado de 2 de outubro de 1983 [...].
Há, neste caso, em destaque, no lado direito da página do caderno, um
quadro com um verbete dentro: Sirgar = puxar ou conduzir (uma
embarcação) por meio de sirga (corda com que se puxa uma embarcação
ao longo da margem)” (1995, p. 53).
É esse verbete-guia, ou seja, o verbo sirgar, que fornece à Ana Cristina a imagem central
para a composição de seu poema Estou sirgando, mas”. A todo momento, ela o terá à
mão, e por ele se orientará, conforme lemos:
Estou sirgando, mas
o velame foge.
Te digo: não chores não.
Aqui é mais calmo, é suave ardor
que se pode namorar à distância.
Não é teu corpo.
É a possibilidade da sombra.
Que se recorta e recobre.
Eles se desencaminham,
mas não se pode fazer por menos.
Querida, lembra nossas soluções?
Nossas bandeiras levantadas?
O verão?
O recorte dos ritmos, intacto?
É para você que escrevo, é para
você.
“My life closed twice before its close.”
Emily Dickinson
2.10.83 (ID, 199).
Aqui, o verso roubado por Ana Cristina da autora americana é inserido no poema na língua
original, sendo reinventado no processo de composição da poeta brasileira. Ao fechar seu
poema com um verso de Emily Dickinson, com a citação em grifo e entre aspas, constata-
se em Ana Cristina o imbricamento das atividades de traduzir e compor.
Não apenas Ana Cristina tomou de empréstimo versos de Emily Dickinson para
compor seus próprios poemas, como também se percebe essa cumplicidade da poeta com a
biografia de Katherine Mansfield, e também com seu conto “Bliss”. Nos poemas de Luvas
de Pelica, vê-se referências diretas a Mansfield, visto que ela estava no centro das atenções
da poeta-tradutora naquele período inglês de sua vida.
1. 2 – O encontro de Ana Cristina com Katherine Mansfield em Bliss
Estou a escrever – conheces esta sensação? Até
acabar a minha novela sinto-me no fundo de
um abismo. Todavia, não se trata de uma
história trágica mas é assim... tomou conta de
mim, engoliu-me [...]. Tenho perfeitamente a
noção de que é este o preço que nós outros,
escritores, temos de pagar. Sinto-me perdida,
ausente, possessa. Quem quer que se aproxime
de mim, nesta ocasião, é um inimigo
(Katherine Mansfield).
9
Podemos afirmar que Ana Cristina Cesar compartilhava com Katherine Mansfield
uma ambigüidade quanto à sua inclinação sexual. No que diz respeito a Mansfield, essa
ambigüidade se revela ficcionalmente em “Bliss”, conto que, como mencionado, Ana
Cristina escolheu para trabalhar em sua dissertação de mestrado. Esse foi o conto
responsável pela solidificação da carreira literária de Mansfield. Segundo Esdras do
Nascimento, em Diário e Cartas (1996), “conta-se que Virginia Woolf, depois de ler
“Bliss”, tomou um porre e ficou gritando num bar: “Eu morro de inveja dessa mulher”” (p.
14). Se verdade ou não, foi através dele que Mansfield se tornou reconhecida em muitos
países e também no Brasil.
Considerada a melhor contista da literatura inglesa, Kathleen Mansfield
Beauchamp, nascida no dia 14 de Outubro de 1888, na cidade de Wellington, em Nova
Zelândia, ocupa uma posição singular dentro da tradição literária do século XX. Sua obra,
pessoalíssima, extraiu elogios de Virginia Woolf, sua grande admiradora, que confessou
ter sido Katherine Mansfield a única autora por cujo talento se sentia ameaçada, segundo
Rhoda B. Nathan, professora da Hofstra University, em Nova York, numa edição da série
Literature and Life: British Writers (Literatura e Vida: Escritores Ingleses, não traduzido
para o português), intitulada Katherine Mansfield (1988, p. 141). Nessa obra, a autora traça
9
Trecho de uma das cartas de Katherine Mansfield enviada a J. M. Murry, em outubro de 1920, presente em
Cartas de Katherine Mansfield (s/d: 366).
o perfil biográfico da contista neozelandesa, da qual extrairemos alguns dados úteis ao
nosso trabalho.
Mansfield, assim como viria a acontecer com Ana Cristina Cesar, iniciou muito
cedo sua carreira literária. Aos nove anos, demonstrava o seu dom para as letras e aos
quinze, ganhou o prêmio do colégio onde estudava, pela composição de uma história
chamada “A Sea Voyage” (“Uma Viagem Marítima”, não traduzido para o português), que
foi publicada na revista da escola, intitulada Queen’s College Magazine. Esse foi o
primeiro de vários contos que a fariam reconhecida, embora tenha tido uma curta
existência, visto que faleceu aos 34 anos (1888-1923), em Fontainebleau, no sul da França,
onde tentava se recuperar de uma crise de tuberculose. Mansfield levou uma vida errante,
precisando viajar muitas vezes para a Suíça, a França e a Itália, em busca da cura de sua
doença, contra a qual travou sua batalha mais dura, como podem comprovar suas cartas e
diário que, além disso, oferecem preciosas informações sobre a vida literária londrina nas
primeiras décadas do século XX. Os poucos anos de vida, porém, foram suficientes para
consagrá-la: deixou-nos três livros de contos publicados: In a German Pension (Numa
Pensão Alemã), Bliss and Other Stories (Felicidade e Outros Contos) e The Garden Party
(Festa ao Ar Livre e Outras Histórias), além de uma série de artigos dispersos em
periódicos. Seus vários esboços, contos inacabados, seu diário, a grande quantidade de
cartas e até os rascunhos foram todos publicados postumamente pelo seu marido, o crítico
e editor John Middleton Murry, em sucessivas edições, que se estenderam até os anos 50.
Essa produção literária e sua polêmica biografia têm sido objeto de vários estudos, críticas
e análises.
É recorrente entre os críticos a crença de que a obra de Mansfield é um espelho de
sua vida. Nathan afirma que:
Certamente não um artista na história cuja vida não está, de algum
modo, refletida em seu trabalho. Ao biógrafo é dada a tarefa de descobrir
e iluminar as conexões entre a vida do artista e o seu trabalho, tendo em
mente o fato de que este deforma, distorce, e reforma os fatos de sua vida
para adaptá-los à sua visão pessoal. No caso de Katherine Mansfield, os
estágios sucessivos de sua vida estão claramente refletidos em sua ficção.
(1988, p. 1, grifo nosso).
10
Nesse momento, a partir da obra de Nathan, traçaremos alguns dados biográficos de
Mansfield que são significativos para a compreensão das escolhas de Ana Cristina por essa
autora e pelo conto “Bliss”.
Segundo a estudiosa, a infância e, posteriormente, a juventude de Mansfield foram
bastante conturbadas: “em uma família de irmãos dóceis e atraentes, ela era caseira, gorda,
severa e briguenta” (1988, p. 4).
11
Na escola, devido ao seu temperamento instável e
exaltado, era considerada ríspida, rebelde e petulante. Nathan continua descrevendo
detalhes biográficos da autora:
Seu próprio desenvolvimento sexual foi ambivalente. Quando
completava o ensino médio na “Miss Swainson’s School”, em
Wellington, ela apaixonou-se por uma exótica garota maori. A segunda
versão não censurada do seu diário revela sua apaixonada atração lésbica
pela jovem mulher, chamada Maata Mahukupu:
“Eu quero Maata, eu a quero – e eu a tive – terrivelmente – isso é impuro,
eu sei, mas é verdadeiro. Uma coisa extraordinária e eu me sinto
selvagemente rude e ainda mais poderosamente apaixonada pela
menina” (MANSFIELD citada por NATHAN, 1988, p. 6).
12
De acordo com a biógrafa, Maata, conhecida como Martha Grace, parece ter-se entregado
a Mansfield, mas não correspondeu aos sentimentos da agressiva amiga. Ela prossegue:
A experiência, do ponto de vista de Mansfield, contudo, é significativa,
10
Texto original: “There is scarcely an artist in history whose life is not reflected in some significant way in
his work. It is left to the biographer to discover and illuminate the connections between the subject’s life and
work, keeping in mind the fact that the artist bends, distorts, and reshapes the facts of his life to suit his
private vision. In Katherine Mansfield’s case, the successive stages of her life are clearly reflected in her
fiction”. Essa e as próximas traduções que se seguem da obra de Rhoda B. Nathan foram feitas por nós.
11
Texto original: “In a family of attractive and tractable siblings, she was homely, fat, severe, and
contentious”.
12
Texto original: “Her own sexual development was ambivalent. While she was completing her secondary
schooling at Miss Swainson’s School in Wellington, she had fallen in love with an exotic highborn Maori
girl. The uncensored second version of her Journal reveals her passionate lesbian attraction to the young
woman, named Maata Mahukupu: “I want Maata I want her and have had her terribly this is unclean I
know but true. What an extraordinary thing I feel savagely crude and almost powerfully enamoured of
the child”.
visto que ela retorna ao tema do lesbianismo em algumas de suas
histórias mais tarde e, mais notavelmente, em “Bliss”, na qual Bertha,
assim como a própria Katherine, encontra-se apaixonada pela exótica,
distante e passiva Pearl Fulton (1988, p. 6, grifo nosso).
13
Em 1903, com apenas quatorze anos, apareceu a primeira oportunidade de Mansfield fugir
de sua cidade natal, onde se sentia confinada: seus pais permitiram que a jovem fosse para
Londres, em companhia de duas irmãs e de uma tia. Lá, ela permaneceu durante três anos.
Foi nesse período que Mansfield começou a descobrir os grandes autores, que viriam a
acompanhá-la por toda a vida em seu processo de criação, como Oscar Wilde,
Shakespeare, Wordsworth, Milton, Goethe, Maupassant, Proust, Joyce, Tolstoi,
Dostoievski e, acima de todos, Anton Tchecov, contista russo por quem nutria verdadeira
adoração. Durante sua estadia em Londres, Mansfield apaixonou-se muitas vezes, e “seus
romances, alguns triviais e outros sérios, realizados e não realizados, são de grande
importância, visto que contribuíram para o sucesso de muitas das suas histórias de
romance, galanteio e casamento” (NATHAN, 1988, p. 6).
14
De volta à Nova Zelândia, Mansfield teve outro relacionamento lésbico, dessa vez
com uma mulher mais velha chamada Edie K. Bendall. Portanto, até 1918, quando
finalmente se casou com John M. Murry, Mansfield teve uma vida afetiva e sexual
conturbada e polêmica para o alto padrão inglês de moral da época, tendo vivido
sentimentalmente dividida entre amores masculinos e femininos.
A atração de Ana Cristina pela biografia de Katherine Mansfield se percebe nas
palavras abaixo, presentes no prefácio à sua tradução de “Bliss”, na obra Escritos da
Inglaterra (1988, p. 12), através das quais Ana Cristina declara seu fascínio pela contista
neozelandesa:
13
Texto original: “The experience, from Mansfield’s point ot view, however, is significant, in that she was to
touch upon the subject of lesbian love later in some of her stories, most notably in “Bliss”, in which Bertha,
like Katherine herself, finds herself falling in love with the exotic, remote, and passive Pearl Fulton”.
14
Texto original: “[...] both the trivial and serious commitments, and those realized and unfulfilled, are
significant as they contributed to much of the content of the stories that deal with romance, courtship, and
marriage”.
Não constituiu coincidência alguma o fato de que, ao mesmo tempo em
que eu traduzia o conto “Bliss”, ia mergulhando, paralelamente, no diário
de KM, em suas cartas e biografias. Um leitor atento afirmou: “Não
consigo pensar em KM apenas em termos de autora literária. Ela ocupa
lugar de destaque entre os escritores modernos que primam pela
originalidade e subjetividade e, em seu caso, ficção e autobiografia
constituem uma única e indivisível composição”. [...] Na qualidade de
autora, essa fusão de ficção e autobiografia me seduz. E, na qualidade de
tradutora alguém que procura absorver e reproduzir em outra língua a
presença literária de um autor não consegui deixar de estabelecer uma
relação pessoal entre “Bliss” e a figura de KM (1988, p. 12-13, grifos
nossos).
Nesse sentido, o gosto pela narrativa epistolar que ambas as autoras demonstram sentir
talvez seja um fator de aproximação entre elas. Na citação acima, Ana Cristina ressalta seu
interesse explícito pela biografia de Mansfield, em especial pelas muitas cartas deixadas
pela contista. Como ressaltado, a poeta brasileira nos deixou um acervo repleto de
cartas, e muitos de seus poemas refletem essa predileção.
Outro fator que comprova o quanto Mansfield estava presente nos estudos de Ana
Cristina nesse período é o décimo segundo fragmento de Luvas de Pelica,
15
em que lemos:
Preciso aproveitar os últimos segundos, as soluções do dia, a maturação da espera
realmente pensei nisso, e não sou um personagem sob a pena impiedosa e suave
de KM, wild colonial girl e metas no caminho do bem, tuberculose em
Fontainebleau e histórias em fila e um diário com projetos de verdade que me vejo
admirando nos últimos segundos. E disciplina. E aquela rejeição das soluções mais
fáceis (1988, p. 102-103).
Sobretudo, o interesse de Ana Cristina por Mansfield é manifestado pela sua literatura de
reinvenção, não apenas dos textos da própria Mansfield, como também de suas histórias
autobiográficas, como acontece neste fragmento intitulado “Primeira Tradução”, presente
em Luvas de Pelica, em que Ana Cristina faz uma tradução apócrifa, relatando o que
poderia ter acontecido após a morte da contista:
KM acaba de morrer. LM partiu imediatamente. Ao chegar ao mosteiro
jantou com Jack no quarto que ela ocupara nos últimos meses. Olga
Ivanovna veio conversar um pouco e tentou explicar que o amor é como
uma grande nuvem que a tudo rodeia e que na última noite KM estava
15
Utilizamos a edição citada de A Teus Pés para as citações de Luvas de Pelica.
transfigurada pelo amor. O seu rosto brilhava e ela deve ter se esquecido
do seu estado porque ao deixar o grupo no salão começou a subir a
escada em passos largos. O esforço foi o bastante para causar a
hemorragia. Na manhã seguinte LM e Jack foram à capela (1988, p. 103-
104).
Em seus textos, Ana Cristina se reporta a Mansfield pelas iniciais KM, e se refere a Ida
Constance Baker por LM. Ida Baker foi uma grande amiga e enfermeira da autora de
“Bliss”, a quem Mansfield chamava de Leslie Moore, ou LM, em homenagem a seu
querido irmão morto na guerra. O terceiro personagem, Jack, parece substituir seu marido,
John M. Murry. Segundo Maria Lúcia Camargo, “a cena no mosteiro, o relato da aparência
de transfiguração e da subida para o quarto a que se seguiu a hemoptise fatal, são, todos,
elementos conhecidos da biografia de KM” (2003, p. 260). Tal afirmativa se comprova
quando lemos as palavras escritas por John M. Murry ao fim do Diário da contista:
Cheguei a Avon na tarde do dia 9 de Janeiro de 1923. Nunca vi, nem
nunca verei, um rosto mais lindo do que o de K.M. nesse dia. Dir-se-ia
que a delicada perfeição que sempre fora sua se aperfeiçoara ainda.
Empregando uma expressão que lhe era familiar, direi que “os últimos
grãos de sedimento”, os últimos vestígios de “impureza terrestre”,
haviam desaparecido. Infelizmente, perdera a vida, para salvá-la. Quando
subia ao seu quarto, às dez horas da noite, foi tomada de um ataque de
tosse, que terminou por uma violenta hemorragia. Às dez e meia estava
morta (MANSFIELD, s/d: 548).
Vemos na literatura de Ana Cristina uma verdadeira fusão de biografia e ficção, mescladas
pela poeta em seu diálogo com a obra e vida de Mansfield. A narrativa prossegue:
No cemitério LM e Jack ficaram lado a lado. No último momento houve
uma certa hesitação. Parece que estavam esperando que Jack fizesse
alguma coisa. LM tocou a mão de Jack, e ele recuou num gesto rápido.
Alguém sugeriu que a manta espanhola fosse junto. LM não deixou,
lembrando outra vez o combinado. [...] No dia seguinte Jack e LM
partiram para o seu país. KM teria apreciado que LM cuidasse dele o
máximo possível (1988, p. 104-105).
Ao apropriar-se de dados verossímeis descritos nas biografias e autobiografias (diários e
cartas) de Mansfield e incluí-los em sua ficção, Ana Cristina inventa uma narrativa e a
atribui a outrem, e realiza, como citado, uma “tradução apócrifa”. Pode-se afirmar que,
dessa vez, ela foi além de uma escrita palimpséstica: não se contentou apenas com os
textos de Mansfield, mas os reinventou a partir do cruzamento dos fatos reais da vida da
autora com sua ficção, levando o leitor a se questionar, segundo Maria Lúcia Camargo:
“onde termina a verdade e começa a ficção? Onde termina a autobiografia e começa a
literatura, a reinvenção?” (2003, p. 261).
CAPÍTULO 2
A MULHER, A CRÍTICA E A TRADUÇÃO
Pintura de Francesco Primaticcio.
Odisseu e Penélope (1563).
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Penelope
Pintura de John William Waterhouse.
Penélope e os Pretendentes (1912).
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Penelope
O mito da dependência da mulher em relação ao homem sempre esteve presente na
história. Como iremos analisar neste capítulo, a questão da dependência também permeou
a teorização tradutória. Durante séculos, a tradução, assim como a mulher em relação ao
homem, foi vista como uma atividade secundária em relação ao original. Numa perspectiva
diacrônica, consideraremos a importância da tradução para a ascensão das mulheres ao
mundo das letras, antes reservado somente aos homens. Daremos ênfase aos estudos
tradutórios feministas que se desenvolveram no final dos anos 70 do século XX, no
Canadá, que enfocaram mais diretamente as mulheres tradutoras de língua francesa e suas
estratégias subversivas da linguagem. Esses estudos tradutórios, influenciados pelos
estudos de gênero, colaboraram, sobremaneira, para que as tradutoras pudessem elevar sua
voz e desfazer os conceitos hierárquicos presentes tanto na história da mulher quanto na
história da tradução que, como mencionado, enfatizam ambas como dependentes,
respectivamente, do homem e do texto original. Algumas dessas estratégias se encontram
na tradução de Ana Cristina Cesar do conto “Bliss”, de Katherine Mansfield, na qual se
percebe marcas da postura crítico-literária da tradutora, bem como sua preocupação com a
questão de gênero.
2. 1 – A visão patriarcal da mulher e da tradução
Por isso, Jeová Deus fez cair um profundo sono
sobre o homem, e, enquanto ele dormia, tirou-
lhe uma das costelas e fechou então a carne
sobre o seu lugar. E da costela que havia tirado
do homem, Jeová Deus passou a construir uma
mulher e a trazê-la ao homem (Gênesis 2: 21,
22).
muito a Bíblia tem sido utilizada como meio de afirmar a inferioridade da
mulher em relação ao homem. A sociedade patriarcal tem recorrido, principalmente, à
passagem citada como epígrafe, que se refere à criação de Eva a partir de uma costela de
Adão, para comprovar a discriminação de Deus contra as mulheres, e uma aprovação
divina do domínio do homem sobre a mulher. Na Idade Média, as autoridades eclesiásticas
se valiam de epístolas e demais textos bíblicos como meios de impor a submissão da
mulher ao homem. Como exemplo, Tertuliano, teólogo do terceiro século, descreveu as
mulheres como “o portão do Diabo”, segundo a revista DESPERTAI!, em artigo intitulado
“Será que a Bíblia Discrimina as Mulheres?” (8 de novembro de 2005, p. 18). Dessa
forma, manipulava-se o texto divino para que o poder do homem estivesse assegurado,
forçando, assim, a sujeição das fiéis aos maridos.
Virginia Woolf, em A Room of One´s Own (1985), refere-se às condições em que
viviam as mulheres inglesas em 1470:
Surrar a esposa era um direito legítimo do homem, e era praticado sem
nenhuma vergonha tanto nas classes altas como nas baixas... Da mesma
forma, a filha que se recusasse a desposar o cavalheiro da escolha de seus
pais estava sujeita a ser trancafiada, surrada e atirada pelo quarto, sem
que qualquer abalo causasse na opinião pública (1985, p. 56).
Nessa época, à mulher cabia ser somente procriadora. Como não lhe era dado o
direito de trabalhar, pois apenas o homem tinha autonomia econômica, ela devia ficar em
casa cuidando dos afazeres domésticos e dos filhos. Duzentos anos mais tarde, segundo
Woolf, “ainda era exceção para as mulheres das classes alta e média escolherem os
próprios maridos, e, uma vez designado o marido, ele era amo e senhor, ao menos tanto
quanto a lei e os costumes podiam torná-lo” (1985, p. 56). Devido à dificuldade de
rompimento com o destino que lhe era traçado, a mulher permanecia em seu estado de
submissão, vivendo um cotidiano monótono e enfadonho, ficando submetida às ocupações
do lar e ao domínio do pai ou do marido. Subservientes ao homem e aos votos de
casamento, recalcavam seus mais secretos sonhos de liberdade e sua fantasia de
autenticidade. Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo (1990), afirma que esse injusto e
milenar processo de inferiorização do sexo feminino perpetuou-se até o século XX,
permanecendo a mulher em sua “condição de vassala”, pois “a estrutura social não foi
profundamente modificada pela evolução da condição feminina; este mundo, que sempre
pertenceu aos homens, conserva ainda a forma que eles lhe imprimiram” (p. 450). Segundo
a autora, que escreveu o referido livro em 1949, apesar de ter adquirido muitos direitos, a
mulher, naquela época, ainda permanecia numa situação de inferioridade em relação ao
homem no que tange à diferença salarial, à dupla jornada de trabalho, etc. De Beauvoir
ressalta que as mulheres ainda tinham de conviver com os preconceitos da sociedade
advindos de sua independência financeira e sexual.
No século atual, embora não se possa negar as muitas conquistas da mulher nos
inúmeros campos do conhecimento e da vida social, a resistência patriarcal ainda é uma
realidade. Eliane Vasconcellos Leitão, em seu artigo “A Mulher na Língua do Povo Vinte
Anos Depois” (2003), ressalta que, apesar dos avanços, a sociedade moderna ainda não
absorveu por completo a idéia de igualdade, visto que “os homens insistem em reter o
poder para si, baseados nos ‘princípios divinos’ do patriarcalismo, pretensamente eternos”
(p. 515). A autora exemplifica: “mesmo que as mulheres ocupem 44% da força de
trabalho, a remuneração é 41,3% menor que a dos homens, apesar de 42% entre elas
terem concluído o grau, um índice que, para os homens, é de 26%, segundo dados do
DIEESE” (p. 516), Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.
Além do salário inferior, em algumas sociedades e em determinadas classes sociais, a
violência contra a mulher continua sendo praticada com a mesma covardia e abuso da
força física.
No campo da tradução, a luta das mulheres contra a discriminação atingiu seu ápice
nas décadas de 70 e 80 do século passado. Segundo Sherry Simon, em Gender in
Translation: Cultural Identity and the Politics of Transmission (1996), citado neste
trabalho, as tradutoras de língua francesa elevaram ao grau máximo o conceito de tradução
infiel, fazendo lembrar o adágio Les Belles Infidèles (“As Belas Infiéis”), criado pelo
teórico francês Ménage (1613–1692). No Classicismo do século XVII, esse adágio, que
parte do princípio de que a tradução para ser bela necessita ser infiel ao texto dito original,
assim como são infiéis a seus maridos as mulheres que são belas, adquiriram considerações
libertadoras para a prática tradutória na França, quando Perrot d’Ablancourt e seus
companheiros criaram a “Escola das Belas Infiéis” (p. 11).
Lori Chamberlain, estudiosa feminista da tradução, no texto “Gender and the
Metaphorics of Translation” (“Gênero e as Metáforas da Tradução”, traduzido para o
português, mas não publicado), de 2001, faz a seguinte referência à sexualização presente
nesse chavão francês:
Para “les belles infidèles”, a fidelidade é definida como um contrato
implícito entre tradução (como mulher) e original (como marido, pai ou
autor). Contudo, o infame “padrão duplo” opera aqui como nos
casamentos tradicionais: a mulher/tradução “infiel” é publicamente
julgada pelos crimes que o marido/original é, por lei, incapaz de cometer.
Esse contrato, em suma, torna impossível para o original ser culpado de
infidelidade. Tal atitude trai a ansiedade real sobre o problema da
paternidade e da tradução; isso imita o sistema de relação patrilinear onde
a paternidade não a maternidade – legitima uma descendência (2001, p.
315).
16
Segundo Chamberlain, as analogias binárias homem/mulher e autor/tradutor
sugerem a obrigatória fidelidade do segundo ao primeiro e retratam um mundo centrado no
masculino, onde a paternidade (o original) representa a autoridade sobre a maternidade (a
cópia). Simon ressalta que a “autoridade hierárquica do original sobre a reprodução está
ligada à imagem do masculino e do feminino; o original é considerado o homem forte e
gerador, a tradução, a mulher fraca e derivada” (1996, p. 1).
17
A autora cita a figura da
16
Texto original: “For les belles infidèles, fidelity is defined by an implicit contract between translation (as
woman) and original (as husband, father, or author). However, the infamous “double standard” operates here
as it might have in traditional marriages: the “unfaithful” wife/translation is publicity tried for crimes the
husband/original is by law incapable of committing. This contract, in short, makes it impossible for the
original to be guilty of infidelity. Such an attitude betrays real anxiety about the problem of paternity and
translation; it mimics the patrilineal kinship system where paternity not maternity legitimizes an
offspring”. Traduzido por Mônica Beatriz Pedrosa Schittini, aluna do Bacharelado em Letras: Ênfase em
Tradução - Inglês.
17
Texto original: “the hierarchical authority of the original over the reproduction is linked with imagery of
Malinche, uma exceção a essa regra patriarcal, visto que ela é uma das poucas mulheres
lembradas pelo seu trabalho como intermediadora cultural. A escrava maia que se tornou
intérprete do colonizador espanhol Hernando Cortez no México e que participou nas
negociações que lideraram a conquista européia da América Latina é considerada uma das
mais poderosas e intrigantes personagens na história das relações culturais entre povos
colonizadores e colonizados (p. 40). Embora vista por alguns como traidora da população
mexicana, como aquela que entregou seu povo aos espanhóis, a experiência da Malinche
como intermediadora retrata a contínua necessidade de se transcender as fronteiras que
continuam a separar as identidades sociais, bem como o papel importante que as tradutoras
culturais desempenham.
2. 2 – A tradução como forma de resistência
Os estudos referentes à prática da tradução por parte das mulheres têm possibilitado
enxergar suas intervenções nos movimentos culturais e intelectuais de seus tempos e
analisar como elas próprias constróem suas identidades, segundo Simon (1996, p. 9). Para
essa autora, os trabalhos de tradução das mulheres se iniciaram, primeiramente, com os
textos religiosos. Através deles, elas quebraram o silêncio ao qual estavam submetidas e
confinadas. Ao escreverem, traduzirem e publicarem seus trabalhos religiosos, as mulheres
reivindicaram o direito de demonstrar sua e devoção a Deus, valendo-se,
principalmente, dos prefácios às obras que traduziam. Isso se deu no início da Idade Média
na Europa, particularmente. Embora a religião tenha reforçado a subserviência feminina e
tenha impedido as mulheres de escreverem sobre assuntos seculares, a prática tradutória
desses textos lhes possibilitou a inserção no mundo letrado, pois essa era uma das poucas
atividades consideradas próprias para elas. Para Simon, nesse momento “a tradução
masculine and feminine; the original is considered the strong generative male, the translation the weaker and
derivative female”.
ofereceu às mulheres um envolvimento na cultura literária, como produtoras e
consumidoras, o que não desafiava diretamente o controle masculino daquela cultura”
(1996, p. 46).
18
Outro teórico da tradução, Douglas Robinson, em Theorizing Translation in a
Woman's Voice: Subverting the Rhetoric of Patronage, Courtly Love and Morality (A
Teoria da tradução na Voz de uma Mulher: Subvertendo a Retórica da Patronagem, do
Amor Cortês e da Moralidade, não traduzido para o português), de 1995, confirma que, na
Idade Média, às mulheres não era concedido o direito à criação, visto que ocupavam um
papel subordinado nas atividades literárias. As tradutoras eram reduzidas a meras
portadoras da palavra masculina e, quando o trabalho de uma tradutora era publicado,
muitas vezes era mantido o anonimato. Ao se saber que a obra era feminina, normalmente
ela permanecia em manuscrito, dentro do círculo familiar. no século XVI, segundo
Robinson, deu-se a “feminização” da tradução. Nesse período, as tradutoras “encontraram
uma voz pública, descobriram caminhos através dos quais elas puderam falar e serem
ouvidas além dos limites do lar” (1995, p. 153).
19
Das tradutoras do Renascimento inglês que se sobressaíram, Simon cita Margaret
Tyler (século XVI) que, apesar de não ter sido uma aristocrata e pouco se saber sobre sua
vida, causou um grande impacto na sociedade tradicional inglesa de sua época, tendo
exercido um importante papel para a entrada das mulheres na atividade pública da escrita.
A autora também ressalta o trabalho de Aphra Behn (século XVII) que, além de escritora,
foi uma importante tradutora das línguas latina e francesa. O principal feito de Aphra Behn
foi ter enfatizado que a mulher pode falar por si própria. Através do seu trabalho, ela
denunciou a situação feminina da época, como a exclusão da mulher da educação clássica.
18
Texto original: “Translation offered women an involvement in literary culture, as both producer and
consumer, that did not directly challenge male control of that culture”.
19
Texto original: “[...] found a public voice, discovered channels through which they could speak and be
heard beyond the confines of the home”. Essa e as traduções que se seguem da obra de Douglas Robinson
foram feitas por nós.
Simon chama a atenção para o fato de que as atividades de tradução dessas precursoras nos
possibilitam compreender que:
Apesar do seu status como uma versão fraca e degradada da autoria, a
tradução emergiu em certos momentos como uma forma forte de
expressão para as mulheres permitindo a elas entrar para o mundo das
letras, promover causas políticas e se engajar em estimulantes projetos de
escrita (1996, p. 39).
20
No século XIX, o nome que se destaca é o da intelectual francesa Madame de Staël,
cujas atividades de criação e transmissão da literatura ressaltam o caráter político da
tradução. Embora não tenha publicado traduções, a ficção e os escritos teóricos de
Madame de Staël deram às letras européias uma nova sensibilidade tradutória. Ao se
referir à importância da tradução, ela enfatiza que não qualquer outro trabalho mais
importante do que o de “transportar de uma língua à outra as obras-primas do espírito
humano” (de STAËL citada por SIMON, 1996, p. 63).
21
Sendo impossível aos leitores
dominarem todas as línguas nas quais os grandes escritores se expressaram, ela afirma que
mais prazer em se ler uma boa tradução que um texto na língua do original. A lição
mais importante deixada por Madame de Staël é a possibilidade de criação que a tradução
permite, visto não ser “um ato mecânico de troca, uma transação neutra” (p. 83).
22
Para ela,
“os trabalhos traduzidos têm o poder de interagir dinamicamente com outros trabalhos em
seu novo ambiente, e agir como um estimulante para a criação literária” (p. 83).
23
Dessa forma, o pensamento de Madame de Staël sobre a importância das trocas
literárias como necessárias para o crescimento das literaturas nacionais, bem como sua
assertiva de ser a atividade tradutória um componente essencial de afirmação e construção
dessas literaturas, permearam os estudos literários ao longo dos séculos XIX e XX, que
20
Texto original: “Despite its historical status as a weak and degraded version of authorship, translation has
at times emerged as a strong form of expression for women allowing them to enter the world of letters, to
promote political causes and to engage in stimulating writing relationships”.
21
Texto original: “[...] transport from one language to another the masterpieces of the human spirit”.
22
Texto original: “[...] it was not a mechanical act of exhange, a neutral transaction [...]”.
23
Texto original: “[...] but that translated works had the power to interact dynamically with works in their
new environment, and acts as a stimulant to literary creation”.
viram o surgimento de grandes tradutoras. Um dos nomes mais reconhecidos desse período
é o de Constance Garnett (1862 1946), que introduziu ao público leitor inglês os autores
russos contemporâneos — Tchecov, Dostoievski, Gogol, Tolstoi, Gorki e Turgueniev.
No cenário brasileiro, segundo Nadilza Moreira, em A Condição Feminina
Revisitada (2003), podemos destacar uma tradutora no século XIX que, sob o pseudônimo
de Nísia Floresta Brasileira Augusta, conquistou as feministas brasileiras da época. A
francófona traduziu para a língua portuguesa o livro A Vindication of the Rights of Woman:
With Structures on Political and Moral Subjects, escrito em 1792 pela novelista inglesa e
teórica social Mary Godwin Wollstonecraft. Ao publicá-lo no Brasil, em 1832, sob o título
Direito das Mulheres e Injustiças dos Homens, Nísia Augusta trouxe ao conhecimento do
público o que havia de mais atual sobre as reivindicações das mulheres, provocando
profundas transformações no pensamento das brasileiras, contribuindo para a formação de
uma onda feminista no país. Podemos afirmar, juntamente com Moreira, que Nísia
Augusta, nordestina, natural do Rio Grande do Norte, foi a precursora do movimento
feminista entre nós (p. 31). Além disso, Eduardo de Assis Duarte, em “Feminismo e
Desconstrução: Anotações para um Possível Percurso” (2002), ao comentar sobre a
“tradução livre” que Nísia Augusta realizou da obra de Wollstonecraft, afirma que:
... a versão brasileira é, de fato, um ‘outro texto’, uma apropriação
antropofágica, na qual a fundadora do nosso feminismo dialoga com a
matriz européia sem perder de vista nem as especificidades locais, nem a
sua condição de leitora-autora. O que se tem, pois, em ambas é o
processo a que mais tarde Derrida nomearia disseminação. Tanto Mary
quanto Nísia partem ou se apropriam de textos alheios para, falando
das margens do sistema, suplementá-los com sentidos desconstrutores
(2002, p. 20).
Ao longo dos anos, portanto, a tradução tem desempenhado um papel social,
estético e cultural importante para as mulheres, tendo-lhes aberto a porta de entrada para o
mundo das letras e oferecido um campo de batalha para a resistência a conceitos patriarcais
tradicionais que enfatizam, segundo Simon, a “herança de dupla inferioridade” conferida
às mulheres e à tradução (1996, p. 1).
2. 3 – A crítica literária feminista e a tradução
A segunda metade do século XX, mais particularmente a década de 70, marcou
profundamente a forma pela qual a tradução foi praticada e teorizada por mulheres. Nessa
época, se deu o surgimento da crítica literária feminista, tendo como um dos objetivos a
subversão do status quo da mulher na prática acadêmica hegemômica que, através da
literatura, sempre apresentou uma visão estereotipada da mulher, caracterizada, entre
outras coisas, pela submissão, pela resignação, pela espera e pelo sofrimento.
Lúcia Osana Zolin, em Desconstruindo a Opressão: A Imagem Feminina em “A
República dos Sonhos”, de Nélida Piñon (2003), afirma, a partir da teórica feminista Toril
Moi, que aos homens não é vedada uma postura feminista diante do texto, e ressalta a
diferença entre feminist (postura político-ideológica) e feminine (conjunto de
características definidas culturalmente, portanto, em constante mudança)” (p. 17). A autora
enfatiza que “a crítica feminista é, antes de mais nada, uma perspectiva crítica fundada no
feminismo, ou seja, em uma postura político-ideológica com a qual o sexo masculino pode
perfeitamente compactuar. Nesse sentido, os homens podem e devem praticar a crítica
feminista” (p. 17). Portanto, a leitura feminista de um texto é uma forma de interpretação,
uma das muitas possibilidades de leitura que é possível se fazer de um texto. Ainda, um
sujeito biologicamente masculino pode se posicionar, enquanto leitor, a partir da ótica
feminina, o que significa pressupor os interesses das mulheres, seus desejos, suas
necessidades e suas experiências (p. 17).
Nadilza Moreira afirma que a crítica feminista privilegiou duas vertentes teóricas
distintas: a linha francesa e a anglo-americana (2003, p. 35). A primeira, sob influências da
desconstrução de Derrida e da psicanálise de Lacan, buscava identificar uma “possível”
subjetividade feminina. A vertente teórico-crítica anglo-americana, por sua vez:
... privilegia(va) a contextualização político-pragmática, trabalhando com
mais ênfase os problemas ligados à formação dos cânones, às ideologias
de gênero e de suas práticas interpretativas, às implicações das
experiências culturais e intersubjetivas de leitoras e/ou autoras reais nos
discursos de representação (2003, p. 35).
Ao se referir à questão de gênero para o discurso feminista anglo-americano, Moreira
prossegue ressaltando que o “surgimento do conceito de gênero, como categoria de análise,
resultou numa das mais marcantes mudanças dentro das ciências humanas e das letras, na
década de 80” (p. 45). E, ainda, o estudo de “gênero como categoria trata, não somente da
questão da diferença que pressupõe simetria, mas da questão de poder, onde a simetria e a
desigualdade se fazem presentes, com a dominação do feminino pelo masculino” (p. 50,
grifo nosso).
Uma das principais teóricas representantes da crítica feminista anglo-americana é
Elaine Showalter. Foi ela quem criou, em “Feminist Criticism in the Wilderness” (“A
Crítica Feminista no Território Selvagem”), de 1994, o termo “ginocrítica”, que designa a
concentração dos estudos na redescoberta e na investigação da literatura produzida pelas
mulheres, elegendo esses textos ficcionais como os norteadores para a pesquisa sobre
autoria feminina.
A vertente da crítica feminista francesa, semelhante à anglo-americana, apoiava-se
na investigação da literatura feita por mulheres, e suas principais representantes são Hélène
Cixous, Luce Irigaray e Julia Kristeva. No entanto, elas não se detiveram apenas no campo
literário, como a vertente anglo-americana, mas consideraram também a relevância dos
estudos da Lingüística, da Semiótica e da Psicanálise dentro da análise crítica feminista.
Buscando romper a ditadura do discurso patriarcal falocêntrico e o monolitismo das teorias
masculinas, as teóricas feministas francesas rebateram os conceitos de Lacan, para quem a
linguagem é fálica. Irritadas com essas teorias autoritárias e repressivas da lingüística, que
constroem a mulher como o outro, elas se concentraram no corpo feminino como forma de
criar uma linguagem feminina, revolucionária, subversiva, não apenas contra o discurso
hegemônico, mas também fora dele.
Assim, a feminização lingüística inscreveu-se como uma vontade das mulheres de
tornarem-se visíveis na língua. Para tal, fez-se necessário modificar a função do gênero na
escritura e na reescritura, ou seja, na tradução. Para as tradutoras feministas, o conceito de
gênero se liga ao conceito de sexo biológico, acrescentando-lhe a dimensão sócio-cultural
das relações de poder entre os sexos. Tal conceito, embora tenha sido um passo necessário
à crítica feminista, principalmente no que diz respeito ao domínio literário, foi rebatido
por Tereza de Lauretis, na década de 90 do século passado, conforme veremos.
Suzanne de Lotbinière-Harwood, estudiosa da escola de tradução canadense, foi
uma das tradutoras que aceitaram mais veemente essa concepção de gênero proposta pelas
teóricas feministas. Em seu artigo “Re-Belle et Infidèle/ The Body Bilingual: Translation
as Rewriting in the Feminine” (“Re-Bela e Infiel/ O Corpo Bilíngüe: A Tradução como
Reescrita no Feminino”, não traduzido para o português), de 1991, ela afirma que:
O gênero afeta como o tradutor o texto na língua de origem, como ela
ou ele o decodifica/interpreta e o recodifica/reinterpreta na língua alvo. O
gênero influencia como o/a tradutor/a se relaciona com o autor, com o
leitor, a que posturas ideológicas e valores culturais ela ou ele irão,
conscientemente ou não, querer dar primazia ou emudecer (1991, p.
101).
24
Sobre a sexização da língua, de Lotbinière-Harwood, citando Schowalter, enfatiza:
Toda língua é a língua da ordem dominante, e por isso o espaço
semântico mudo é ocupado por pessoas de todas as classes, raças,
religiões e categorias que têm uma voz inferior na sociedade. Visto que o
gênero é uma categoria organizada da língua e da sociedade, as mulheres
constituem o maior grupo emudecido do universo (1991, p. 94).
25
24
Texto original: “Gender influences how the translator relates to the author, to the reader, what ideological
stances and cultural values she or he will, consciously or not, want to foreground or mute”. Essa e as
traduções que se seguem do artigo de de Lotbinière-Harwood foram feitas por nós.
2
5
Texto original: “All language is the language of the dominant order”, therefore the muted semantic space
is occupied by people of every class, race, religion, condition, and category who have a lesser voice in
society. Since gender is an organizing category of language and of society, women are the most universal
representatives of a muted group”.
Para a tradutora, nenhuma língua é neutra e todas são sexistas. Para comprovar sua
assertiva, de Lotbinière-Harwood cita o exemplo da língua inglesa, considerada mais
neutra e igualitária que outras, como o francês. No entanto, quando o falante inglês quer se
referir a significantes universais, é preciso utilizar o pronome masculino “he” (ele) e o
genérico “man” (homem). De Lotbinière-Harwood ressalta o porquê: “O masculino
domina a(s) língua(s) porque o masculino domina o mundo” (1991, p. 112).
26
No contexto de língua portuguesa, podemos citar exemplos a partir do artigo
citado de Eliane Vasconcellos, no qual a autora oferece ao leitor diversas amostras de que
nossa língua é igualmente sexista, o que se prova pela obrigatoriedade do uso da palavra
“homem” ao se referir à humanidade em geral, bem como o sentido pejorativo de algumas
expressões quando o núcleo delas é o vocábulo “mulher”. Vejamos os seguintes exemplos
citados pela autora:
“homem da rua”= homem do povo, mas “mulher da rua”= meretriz.
“Homem do mundo” = homem da sociedade, mas “mulher do mundo” =
prostituta ou mundana. “Homem público” = indivíduo que ocupa um alto
cargo no Estado, mas “mulher pública” = meretriz” (2003, p. 524).
Ao retratar as tendências da crítica feminista francesa de rebater tal sexização da
língua, Lúcia Zolin (2003) afirma que as tradutoras passaram a priorizar os atributos
biológicos da mulher, que viam a anatomia física como sendo a textualidade, enquanto o
corpo era considerado como fonte de imaginação. Para elas, a desconstrução da linguagem
pelo lado de dentro seria o caminho para a representação do feminino. Dessa forma, o
pensamento desconstrutivista de Jacques Derrida se fez bastante presente em seus estudos.
As teorias desenvolvidas pelas feministas francesas possibilitaram à tradução entrar
no debate corrente, encontrar suas novas definições de autoridade textual e desenvolver
26
Texto original: “The masculine rules language(s) because the masculine rules the world”.
2
sua política de transmissão, pois os estudos derrideanos ofereceram às tradutoras um
vocabulário que lhes permitiram redefinir suas tarefas, de acordo com Simon (1996, p. 95).
Vale ressaltar o pensamento da escritora e crítica literária Hélène Cixous, que propõe o
conceito de uma écriture féminine, ou seja, a escrita do corpo pela mulher.
Susan Bassnett afirma, em “From Comparative Literature to Translation Studies”
(“Da Literatura Comparada aos Estudos da Tradução”, traduzido para o português, mas
não publicado),
27
de 1993, que, para Cixous, a “escritura feminina ocorre em um lugar
entre os pólos masculino e feminino” (p. 14), considerando o tradutor um ser do entre-
lugar e a tradução como uma atividade bissexual. As teóricas feministas da tradução, em
sua maioria lésbicas ou bissexuais, segundo Bassnett (p. 14), se fundamentaram nessa
noção do entre-lugar de Cixous, descrita em seu polêmico artigo “Le Rire de la Méduse”
(“O Riso da Medusa”), de 1976, e a desenvolveram em novas perspectivas. Como
afirmado, a metáfora Les Belles Infidèles sugere que a fonte, o original, é masculino e
todo-poderoso, enquanto a tradução é feminina e subserviente. Mas, de acordo com
Bassnett, a teoria feminista da tradução, ao celebrar o entre-lugar proposto por Cixous,
desfaz essa antiga noção binária e afirma que a tradução, ocorrendo num espaço bissexual,
não pertence nem a um, nem ao outro pólo (p. 15). A autora prossegue ressaltando que a
tradução do texto “Le Rire de La Meduse” representou o trabalho de Cixous e também o
feminismo francês na América. Neste, de acordo com Bassnett, Cixous afirma, através de
um grande jogo de palavras, que o corpo da mulher e sua escrita são armas com as quais se
torna possível desconstruir os valores falocêntricos e alcançar a libertação (p. 15).
Luce Irigaray, assim como Cixous, ressalta que a literatura é sexuada, pois, se
diferença sexual, essa é expressa através do discurso. Irigaray, estabelecendo um diálogo
2
7
Texto traduzido por Christian Hygino Carvalho, Denise Rezende Mendes, Erika Paula Faria Dias,
Giovana Cordeiro Campos, Juliana Soares Fagundes e Newton Tavares da Silva Filho. Orientação: Profª
Dra. Maria Clara Castellões de Oliveira.
virtual com Sigmund Freud, desenvolveu a teoria de que, embora a mulher seja desprovida
do falo, considerado o maior símbolo do poder masculino, ela possui outras zonas
erógenas igualmente relevantes, como os seios, a vagina e o clitóris. Ao invés da ausência,
Irigaray enfatiza a multiplicidade, dessacralizando, assim, as teorias falocêntricas que
reprimem a mulher e ressaltando que sua libertação advém do discurso, da linguagem.
Assim como Cixous e Irigaray, Kristeva, combinando Lingüística, Literatura e
Psicanálise, tematiza em seus estudos as questões referentes à sexualidade, identidade,
escrita e linguagem feminina. O feminino, para ela, não implica a mulher real,
considerando-se que um homem pode ocupar a posição de sujeito feminino. Nesse sentido,
a crítica literária e psicanalista ressalta a impossibilidade de se definir uma fala ou uma
escrita específica da mulher. Em consonância com o pensamento de Cixous, para Kristeva
a escritura feminina é uma força capaz de quebrar a ordem simbólica restritiva.
No fim dos anos 70 e início dos 80, a crítica feminista anglo-americana entrou em
contato com o pensamento pós-estruturalista que vinha se desenvolvendo na França,
principalmente com a sua vertente desconstrutivista. A curiosidade, a necessidade de
renovação e a busca de uma base filosófica compatível com os pensamentos anglo-
americanos foram responsáveis pela popularidade dos conceitos franceses na América.
Inicialmente, de acordo com Simon, a disparidade das teorias causou divergências, que
residiam, principalmente, na linguagem, visto que, “enquanto as feministas anglo-
americanas focalizaram as conseqüências lingüísticas da opressão, o foco do feminismo
francês residia na desconstrução da estrutura simbólica do patriarcalismo” (1996, p. 90).
28
Segundo a autora:
A vitalidade pragmática do feminismo americano, com seu passado rico
de ativismo político, entrou em contato com uma dimensão nova e mais
conceitual do feminismo. O feminismo francês ofereceu a promessa de
uma investigação mais profunda e necessária dos caminhos simbólicos e
históricos do patriarcalismo. A tradução serviu para prover o alimento
28
Texto original: “While Anglo-American feminists had highlighted the linguistic consequences of
oppression [...], the focus of French feminism lay in desconstructing the symbolic structure of patriarchy”.
teórico e as ferramentas analíticas as quais o feminismo norte-americano
sentiu que precisava. Através das feministas francesas, os leitores da
língua inglesa entraram em contato com a filosofia continental e com o
pensamento crítico, modos de pensar que constituíram um desafio à
maior representação do conhecimento e à construção discursiva da
identidade sexual (1996, p. 87).
29
Da metade dos anos 70 em diante, o trabalho dessas teóricas feministas
desenvolveu-se consideravelmente no continente americano, principalmente no Canadá.
Os diversos contatos possibilitaram novos engajamentos e também uma compreensão
maior do pensamento feminista francês e das teorias de Derrida, Foucault, Lacan e
Barthes. Além de Luce Irigaray e Hélène Cixous, e também de Julia Kristeva, outras
teóricas de língua francesa influenciaram a escrita tradutória feminista, como Nicole
Brossard e Louky Bersianik, permitindo uma melhor compreensão da releitura e da
reescritura (ou seja, da tradução) no feminino, com a utilização de diversas estratégias
subversivas, criadas com o objetivo de dar voz às mulheres.
Bassnett ressalta que as tradutoras, especialmente as quebeco-canadenses, não têm
sido modestas em suas práticas, exibindo sua posse e re-posse do texto e, assim como os
tradutores brasileiros “luciferantes”, ou seja, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, elas
têm expressado o direito em modelar e manipular o texto-fonte (1993, p. 15). De acordo
com a autora: “as mulheres canadenses vêem a tradução como fundamental para sua
existência como bilíngües e como feministas, lutando contra valores falo/logocêntricos” (p.
16).
Um exemplo clássico da ousadia dessas tradutoras é citado por Simon, a partir do
artigo de Luise von Flotow intitulado “Feminist Translation: Context, Practice and
29
Texto original: “The pragmatic vitality of American feminism, with its rich past of political activism, came
into contact with a new, more conceptual dimension of feminism. French feminism offered the promise of a
deep and necessary investigation into the symbolic and historical roots of patriarchy. Translation served to
provide the theoretical nourishment and analytical tools in which Anglo-American feminism felt itself to be
lacking. Through the French feminists, English-language readers came into contact with Continental
philosophy and critical thought, modes of thinking which allowed a challenge to the very representation of
knowledge, and to the discursive construction of sexual identitly”.
Theories” (“Tradução Feminista: Contexto, Prática e Teorias”, não traduzido para o
português), de 1991. Neste, von Flotow se refere à tradução inglesa da fala de uma das
personagens de Nicole Brossard (escritora feminista que pertencia ao grupo de Quebec, em
1976). Nessa fala, a personagem diz: Ce soir, j’entre dans l’histoire sans relever ma
jupe”, cuja tradução para o inglês seria:this evening I’m entering history without pulling
up my skirt”. Em português: “esta noite, entro para a história, sem levantar minha saia”. A
tradutora feminista Linda Gaboriau a verteu da seguinte forma: This evening, I am
entering history without opening my legs”, ou seja, “esta noite, entro para a história, sem
abrir minhas pernas” (von FLOTOW citada por SIMON, 1996, p. 14, grifo nosso).
Provocando um deslocamento da linguagem por usar expressões chocantes, como a acima
citada, essas tradutoras, sem deixar de lado a tradição francesa das Les Belles Infidèles,
têm parodiado o discurso hegemônico masculino e enfatizado a leitura das mulheres por
renunciarem a sempre pregada fidelidade de todo ato tradutório.
Vejamos aqui o mito grego de Penélope, criado por Homero em sua Odisséia,
segundo o qual Penélope espera a volta de seu marido Ulisses, grande herói e conquistador
que se perdeu por longínquos horizontes e tarda em voltar. Certos da morte do guerreiro,
outros pretendentes a pressionam a contrair um novo casamento. No entanto, com o
pretexto de enganá-los, Penélope decide começar a tecer o manto de Laerte, seu sogro, e
alega que ao término do trabalho fará a escolha do seu novo pretendente. No íntimo, ela
sabe que seu marido não havia morrido e haveria de voltar, e então sua longa espera seria
recompensada. Assim, a figura arquetípica de Penélope tornou-se um ícone da sociedade
patriarcal, que a considera uma representação da imagem de feminilidade, o ideal da
mulher que espera resignada e que, enquanto espera, tece e borda. Porém, a estratégia de
Penélope, como sabemos, era outra. Ela não tece para se distrair. O que ela tecia durante o
dia, desfazia durante a noite, adiando indefinidamente o término do trabalho e a escolha de
um novo marido. Uma releitura desse mito desfaz aquele arquétipo feminino que, ao longo
da história do mundo, busca fazer-nos acreditar que o destino das mulheres é esperar por
seus homens, e esperar pacientemente. Reinterpretá-lo significa encontrar a possibilidade
de uma nova imagem feminina, como uma Penélope que não espera passivamente, mas
que busca um novo caminho para sua própria história, acreditando ser possível mudá-la,
bem como a reinvenção de um novo desenho na tessitura.
É nesse sentido que podemos associá-la às tradutoras feministas, pois, através de
criativas estratégias, elas buscam desfazer os estereótipos femininos cristalizados pela
cultura patriarcal, desestabilizando a tradição secular que há muito tem relegado a tradução
a uma posição secundária e derivativa, descrevendo-a através de um vocabulário sexista,
que recorre a “imagens de dominância e inferioridade, fidelidade e libertinagem”, segundo
Simon (1996, p. 1).
30
Essas mulheres têm questionado os conceitos que declaram ser a
tradução inferior ao texto original e a tarefa do tradutor concebida como transparente,
exigindo-se dele fidelidade absoluta às intenções do autor. Através das estratégias
utilizadas, elas imprimem em suas releituras as marcas de gênero, tecendo uma escritura
toda pessoal, nos relatando como é difícil a arte de bordar esses novos “tapetes”, combinar
suas cores e criar uma nova tessitura em outro idioma.
Assim como o trabalho de Penélope, geralmente evocado como a tela, o bordado,
ou o tecido interminável, o mesmo se dá com a tradução: é uma tessitura infinita, que pode
ser constantemente renovada. Nesse sentido, podemos retomar o conceito expresso por
Walter Benjamin em seu ensaio “A Tarefa Renúncia do Tradutor” (2001), pois essas
tradutoras têm possibilitado a sobrevida dos textos por elas traduzidos. Isso porque essas
reescrituras continuam suas vidas em novos contextos, através da transformação e
renovação. Os discursos dessas tradutoras feministas, provenientes e emitidos sobre
contextos ocidentais, enfatizam a capacidade que a mulher tem de falar alto, claro e em sua
30
Texto original: “[...] drawing on images of dominance and inferiority, fidelity and libertinage”.
própria voz, através de uma posição de fala diferenciada. Ao identificar e criticar os
conceitos os quais relegam as mulheres e a tradução ao fundo das camadas social e
literária, as tradutoras têm tornado visível o feminino na língua e também na sociedade
como um todo.
2. 4 – Estratégias tradutórias feministas
Algumas das estratégias usadas pelas tradutoras quebeco-canadenses a fim de
darem voz às mulheres revelam traduções verdadeiramente ousadas. Segundo Simon, elas
procuram, de diferentes formas, “explicar como a interação criativa com o trabalho
provocará a emergência de novos significados” (1996, p. 13).
31
Para tal, elas recorrem ao
uso de diversos recursos como desordem gráfica, palavras destorcidas, acréscimos
voluntários para um enriquecimento do texto, polissemia, trocadilhos, neologismos e
metáforas violentas, como formas de desestabilizarem o discurso lógico, convencional.
Simon, citando o artigo mencionado de Luise Von Flotow, especifica três
estratégias usadas pelas tradutoras feministas de língua francesa, identificadas como sendo:
1) o prefácio (prefacing) e a nota de de página (footnoting); 2) o suplemento
(supplementing) e 3) o seqüestro (hijacking) (p. 14). Em nossa análise, daremos ênfase,
primeira e especialmente, ao estudo dos prefácios e das notas de de página, visto que
ambos são elementos paratextuais da tradução e se encontram presentes na tradução
realizada por Ana Cristina Cesar do conto “Bliss”, de Katherine Mansfield.
Um dos estudiosos dos paratextos é o francês Gerard Genette que, na obra
intitulada Paratexts: Thresholds of Interpretation (Paratextos: Limiares da Interpretação,
não traduzido para o português), de 2001, faz um estudo detalhado de cada elemento
paratextual de um livro. Genette define a importância destes, pois:
31
Texto original: “[...] explain how their creative interaction with the work will provoke the emergence of
new meanings”.
...é o paratexto que permite a um texto tornar-se um livro e ser oferecido
como tal aos seus leitores e, mais geralmente, ao público. Mais do que
uma fronteira ou um limite demarcado, o paratexto é, antes, um limiar,
ou uma palavra que Borges usou a propósito de um prefácio um
“pórtico” que oferece ao mundo em geral a possibilidade de continuar ou
recuar. É uma “zona indefinida” entre o interior e o exterior, uma zona
sem nenhuma fronteira rígida e fixa seja para o lado de dentro (voltado
para o texto) ou para o lado de fora (voltado para o discurso do mundo
sobre o texto), uma margem ou, como Philippe Lejeune colocou, “uma
franja do texto impresso que controla, na realidade, toda a leitura que se
faz do texto” (2001, p. 2).
32
Genette continua seu discurso e afirma que essa zona não é apenas de transição,
mas também de “transação”, um lugar privilegiado de contínuas trocas e influências entre
o público leitor e o texto, conforme veremos.
2. 4. 1 – O prefácio e as notas de pé de página
Luise von Flotow, segundo Simon, refere-se ao prefácio como uma das estratégias
fundamentais adotadas pelas tradutoras feministas. Como exemplo, a estudiosa cita o papel
didático do prefácio de Bárbara Godard, que traduziu vários textos de Nicole Brossard e
foi uma das mais produtivas teóricas e praticantes anglófonas da tradução feminista do
Québec.
Em seu prefácio a uma das obras de Nicole Brossard, Godard explica as intenções
do texto original e expõe as dificuldades que encontrou ao traduzi-lo, devido à interseção
que estabelece com a ciência, a filosofia e o pós-modernismo, apresentando ao leitor as
estratégias que adotou ao longo de sua tradução. Nesta, Godard se empenhou, através de
modos inovadores, em apresentar sua posição, enquanto tradutora, dentro do discurso da
tradução. Simon, ao se referir à técnica de Godard, afirma que, para esta, “a tradução não é
32
Texto original: “[...] the paratext is what enables a text to become a book and to be offered as such to its
readers and, more generally, to the public. More than a boundary or a sealed border, the paratext is, rather, a
threshold, or - a word Borges used apropos of a preface a “vestibule” that offers the world at large the
possibility of either stepping inside or turning back. It is an “undefined zone” between the inside and the
outside, a zone without any hard and fast boundary on either the inward side (turned toward the text) or the
outward side (turned toward the world’s discourse about the text, an edge, or, as Philippe Lejeune put it, “a
fringe of the printed text which in reality controls one’s whole reading of the text”. Essa e outras traduções
que se seguem da obra de Gerard Genette foram feitas por nós.
uma simples transferência, mas a continuação de um processo de criação e de significado,
a circulação do significado dentro de um emaranhado de textos e discursos sociais” (1996,
p. 24).
33
Godard, em seu artigo “Theorizing Discourse/ Feminist Translation” (“Teorizando
o Discurso/ Tradução Feminista”, não traduzido para o português), de 1990, propõe uma
nova maneira de repensar a prática tradutória, não mais através de um vocabulário de
dominação que enfatiza a hierarquia dos gêneros, mas por uma escrita subjetiva e recriada,
chamada por ela de transformance”, que implica “a construção do significado na
atividade de transformação, um modo de desempenho” (1990, p. 90).
34
Ao afirmar a
conexão entre o trabalho de tradução feminista e a teoria da tradução pós-modernista,
Godard defende que a diferença de gênero, embora tenha tradicionalmente sido um topos
negativo em tradução, é positiva na tradução feminista. De acordo com ela:
A tradutora feminista, afirmando sua diferença crítica, seu prazer em
interminável releitura e reescrita, ostenta os sinais de sua manipulação do
texto. O manuseio feminino do texto na tradução envolveria a
substituição do tradutor modesto que se auto-anula [...]. A tradutora
feminista ostenta, sem modéstia, sua assinatura em itálico, nas notas de
rodapé – e até em um prefácio (1990, p. 94, grifo nosso).
35
Genette (2001) afirma que o prefácio é um dos mais importantes paratextos da
tradução. Segundo ele, existem os prefácios originais, alográficos (escritos pelo editor, por
exemplo) e ficcionais. Vale ressaltarmos o prefácio original, isto é, aquele assinado pelo
próprio autor da obra ou pelo tradutor, cuja função mais importante, segundo Genette, é
fornecer a interpretação que o autor fez do texto, ou melhor, sua intenção (2001, p. 221). O
prefácio original ainda tem como objetivo assegurar que a leitura do texto seja apropriada,
pois, situado no início, na “Introdução”, em geral esse prefácio apresenta o porquê e como
33
Texto original: “Translation is not a simple transfer, but the continuation of a process of meaning creation,
the circulation of meaning within a contingent network of texts and social discourses”.
34
Texto original: “[...] constructing meaning in the activity of transformation, a mode of performance”.
35
Texto original: “The feminist translator, affirming her critical difference, her delight in interminable re-
reading and re-writing, flaunts the signs of her manipulation of the text. Womanhandling the text in
translation would involve the replacement of the modest, self-effacing translator [...]. The feminist translator
immodestly flaunts her signature in italics, in footnotes – even in a preface”.
se deve ler a obra. Neste, o autor faz referências às fontes de pesquisa e ressalta os
agradecimentos, comenta a escolha do título, o gênero do texto. No caso do “escritor-
prefaciador-tradutor, este poderá, entre outras coisas, comentar sua própria tradução” (p.
264).
36
É interessante ressaltarmos que, para o autor, “a produção dos prefácios parece
estar estritamente relacionada à prática humanista de publicação e tradução de textos
clássicos da Idade Média e antigüidade clássica (p. 263, grifo nosso).
37
Isso se confirma,
pois foi através dos prefácios às suas traduções que as mulheres passaram a ter voz no
mundo hegemônico masculino.
Outra estudiosa dos paratextos, principalmente da relevância dos paratextos para a
prática tradutória, é Else Vieira. Em sua tese de doutorado intitulada Por Uma Teoria Pós-
Moderna da Tradução (1992), citada anteriormente, a autora afirma que a capa, as folhas
de rosto, o prefácio e as notas de de página marcam “a entrada do livro num universo
diferente, o da circulação” (p. 146). Assim, no que diz respeito especificamente à tradução,
os paratextos são ‘a via de acesso à macro-estrutura, ou seja, fornecem uma dimensão
histórico-política da cultura da tradução em sua articulação com o(s) contexto(s)’ (p. 146).
De acordo com Vieira (1992, p. 148-165), o prefácio se destaca “na sua função
ritual de passagem de palavra, de propriedade e de autoridade” e por fazer “crescer em
nitidez, tanto a cultura originária quanto a receptora” (p. 148). Por sua posição estratégica,
o prefácio do livro traduzido possui importância singular, visto que neste a palavra do
editor e a do tradutor antecedem à do autor. Ao tomar a palavra e expressar sua voz, o que
é um gesto de autoridade, ambos, editor e tradutor, possibilitam criar “interpretantes que
estruturarão a futura recepção e a leitura da obra, passando, assim, a direcionar a Fortleben
do livro traduzido em seu novo contexto” (p. 161), ou seja, permitindo sua “existência
36
Texto original: “The translator-preface-writer may possibly comment on, among other things, his own
translation”.
37
Texto original: “the production of prefaces seems to have been closely tied to the humanist practice of
publishing and translating the classic texts of the Middle Ages and classical antiquity”.
continuada”, em referência ao texto seminal de Benjamin sobre tradução, citado neste
trabalho. Em especial, é nesse momento que o/a tradutor/a tem a oportunidade de falar, e
não raro sua prática discursiva se aproxima do didático.
Em nosso caso específico, vale ressaltar o estudo desenvolvido por Douglas
Robinson (1995, p. 156-162), que retrata, numa abordagem sincrônica (séculos XVI e
XVII), os mais importantes prefácios de teóricas e tradutoras da Inglaterra nesse período e
enfatiza como eles colaboraram para a trajetória das mulheres rumo à esfera pública das
letras, que as libertou da subserviência física, moral e intelectual à qual estavam
subjugadas.
Segundo Robinson, os prefácios escritos por tradutoras ao longo da história,
presentes em obras por elas traduzidas,m beneficiado o estudo da teorização e da prática
tradutórias realizadas por mulheres. O autor afirma que foi o prefácio que possibilitou às
mulheres se dirigir ao público leitor da cultura de chegada e apresentar-lhes, ‘implícita ou
explicitamente’, seus conceitos em relação à tradução e, principalmente, reivindicar o
direito de tornar pública a voz da mulher, libertando-as, assim, do anonimato. Dos
exemplos citados por Robinson, vale ressaltarmos o de Margaret Tyler, cuja atividade
tradutória, bem como seu prefácio, são de extrema importância para a entrada da mulher
no mundo da escrita. Diferentemente do que até então acontecia, ela traduziu para o inglês
uma obra não religiosa, um romance do autor espanhol Diego Ortuñez de Calahorra,
colaborando para a introdução do romance de cavalaria na Inglaterra:
... o prefácio de Margaret Tyler à tradução da obra A Mirrour of Princely
Deeds and Knighthood (1578), de Diego Ortunez de Calahorra, é um
documento aberta e inegavelmente feminista, no qual ela, ousadamente,
defende seu posicionamento contra os cavaleiros, inteligentemente,
despedaçando (desconstruindo) a lógica patriarcal que a excluía
(ROBINSON, 1995, p. 158, grifo nosso).
38
38
Texto original: “[...] Margaret Tyler’s preface to her translation of Diego Ortunez de Calahorra’s A
Mirrour of Princely Deeds and Knighthood (1578) is an openly and unapologetically feminist document that
boldly defends her project against cavilers by expertly chopping (of deconstructing) the patriarchal logic that
would exclude her”.
Seu prefácio se sobressai tanto quanto sua tradução, visto que nele ela defende o
direito da mulher de ler e também de traduzir textos que não apenas os religiosos. Ao
concordar com as imagens femininas propostas no romance de Diego Ortunez, que não se
adequavam às normas preestabelecidas para as mulheres inglesas de sua época, Tyler
declara sua aprovação apresentando um discurso persuasivo e ofensivo, o que levou seu
prefácio a ser considerado “um marco na história feminista literária”, segundo Simon
(1996, p. 48).
39
O trabalho dessas pioneiras colaborou para que, posteriormente, as tradutoras
viessem a afirmar seu papel como participantes ativas na (re)criação do texto traduzido,
utilizando, para tal, o prefácio como meio de dirigir a atenção do leitor para o processo de
seu próprio trabalho, como afirma Simon (p. 29). Em referência a um contexto
contemporâneo, a autora cita, como já vimos, o papel didático que exercem os prefácios de
Barbara Godard.
As notas de de página, assim como o prefácio, constituem-se outro paratexto da
tradução que, segundo von Flotow, chamam a atenção do leitor para o processo tradutório
(von FLOTOW citada por SIMON, 1996, p. 15). Genette (2001, p. 319-340) esboça uma
extensa análise sobre as notas de pé de página, e as define como sendo “uma declaração de
tamanho variado (uma palavra é o suficiente) ligada a um segmento mais ou menos
definitivo do texto” (2001, p. 320).
40
Sobre a diferença entre o prefácio e as notas, o autor
afirma que: “a distinção formal entre nota e prefácio obviamente revela uma afinidade de
funções: em muitos casos, o discurso do prefácio e o das notas está numa relação muito
próxima de continuidade e homogeneidade” (p. 320).
41
Assim, enquanto o prefácio se
refere a considerações gerais, as notas têm a responsabilidade de retratar pontos mais
39
Texto original: “[...] a landmark in feminist literary history”.
40
Texto original: “a statement of variable length (one word is enough) connected to a more or less definite
segment of text”.
41
Texto original: “the formal distinction between note and preface obviously reveals an affinity of function:
in many cases, the discourse of the preface and that of the apparatus of notes are in very close relation of
continuity and homogeneity”.
específicos.
Segundo o autor, as notas são um recurso usado desde a Idade Média, e vinham
posicionadas no meio da página, escritas em fonte menor que a do texto. No século XVI,
elas tiveram a fonte ainda mais reduzida e no século XVIII, passaram a ocupar o fim da
página. Atualmente, sua posição é bastante variada: elas podem vir localizadas nas
margens; nas entrelinhas, como em grande parte dos livros didáticos; no fim de um
capítulo ou de um livro; ou até num volume à parte. Em algumas obras, elas se localizam
entre duas colunas de texto, e em outras, as notas ocupam o lado esquerdo da página e o
texto o direito (p. 320).
Sobre o tamanho das notas, Genette afirma que nada impede que elas se estendam a
ponto de ocuparem várias páginas, como ocorre em certa obra citada pelo autor, em que
uma nota se inicia na página 173 e ocupa todas as páginas subseqüentes, correspondendo a
um sexto de todo o livro. Geralmente, as notas são indicadas por um número, letra ou
símbolo e podem, assim como os prefácios, serem alteradas, acrescentadas ou até
suprimidas de uma edição para outra. Em sua maioria, elas são alográficas (escritas por
editores ou tradutores), mas também podem ser autorais ou apócrifas e, ainda, reais ou
fictícias.
As notas são muito mais opcionais que os prefácios: os leitores farão suas próprias
escolhas, e os que lêem todas as notas, enquanto outros não. Segundo Genette, elas
terão importância para “aqueles que se interessarem em uma ou outra consideração
suplementar ou digressiva, e sua natureza eventual justifica a objetividade e precisão da
nota” (p. 324).
42
Para o autor, a função das notas está estritamente ligada a seu remetente e
à situação temporal. Basicamente, seu objetivo é explicar termos usados no texto, que
4
2
Texto original: “to those who will be interested in one or another supplementary or digressive
consideration, the incidental nature of which justifies its being bumped, precisely, into a note”.
43
Texto original: “the basic function of the original authorial note is to serve as a supplement, sometimes a
digression, very rarely a commentary”.
estão no sentido figurado; apresentar a tradução de uma citação que aparece na língua
original no texto, ou vice-versa; fazer referências às citações que aparecem; indicações de
origem, etc. notas cuja função básica “é servir como suplemento, às vezes uma
digressão, muito raramente um comentário” (p. 327).
43
Embora muitos autores têm se mostrado relutantes quanto ao uso de notas, Genette
defende a presença delas no texto, visto que aprofundam o conhecimento do leitor. É
verdade que elas provocam uma desordem no texto, um desvio, uma momentânea
bifurcação, o que faz com que ele perca seu caráter de linearidade. No entanto, é uma
desordem tão necessária que Genette passa a questionar o caráter paratextual dessas notas,
que se situam em uma zona de indefinição entre texto e paratexto (p. 324).
Essa concepção de Genette, de que as notas são tão relevantes quanto o próprio
texto, nos remete a Derrida, que defende a prática de uma leitura descentrada da obra. Para
ele, os sentidos localizados na margem passam a suplementar o significado textual. Em
Glossário de Derrida (1976), encontramos o termo margem definido como:
O transbordamento de um limite; o lugar do suplemento [...]. Não há uma
margem branca, virgem, vazia, mas um outro texto, um tecido de
diferenças de forças sem nenhum centro de referência presente [...], o
texto escrito da filosofia transborda e faz crepitar seu sentido. A margem
não é um além, o que prescreveria o limite. Não é, por conseguinte, um
“fora” (dehors) em oposição a um dentro (dedans). O limite é violentado,
rasura-se, perde-se; o próprio e o outro jogam; a perda é o encontro. E o
primeiro texto é desvelado (ao menos, em parte), permite-se ser
contrariado em sua opacidade inicial. O fora e o dentro se reescrevem e
não se separam. A margem e o “marginalizado”, o “disseminado”, o
“suplemento” e a possibilidade de ser da escritura (re) compõem o texto,
mais do que exteriores a ele, são o “interior do interior”, razão de ser da
estrutura que se deixa ler dentro (e) fora da superfície significante (1976,
p. 57, grifos nossos).
Para Derrida, portanto, o comentário, o que está às margens (aquilo que Genette
chama de paratextos) subverte a hierarquia original/tradução, texto/interpretação,
binarismos tão caros ao estruturalismo de Saussure, segundo o qual a langue forma um
4
sistema fechado, estável, uma estrutura delimitada de significação. Terry Eagleton, em
Teoria da Literatura: Uma Introdução (1997), ressalta que a desconstrução busca rechaçar
esses conceitos. Para o autor:
A desconstrução tenta mostrar como tais oposições, para se manterem
como tais, por vezes traem-se a si mesmas, invertendo-se ou
desaparecendo, ou precisam colocar à margem do texto certos detalhes
insignificantes que podem voltar a perturbá-las. A leitura típica habitual
de Derrida consiste em tornar um fragmento aparentemente periférico da
obra uma nota de rodapé, um termo ou imagem menor e repetido, uma
alusão casual e nele trabalhar tenazmente até o ponto em que ele
ameace desmantelar as aposições que governam o texto como um todo. A
tática da crítica desconstrutiva é, em outras palavras, demonstrar como os
textos podem embaraçar seus próprios sistemas lógicos dominantes. E a
desconstrução mostra isso tomando os pontos “sintomáticos”, os aporia
ou impasses de significado, nos quais o texto enfrenta problemas, perde a
coesão, e se abre a contradições (1997, p. 184, grifo nosso).
A experiência de Eugene A. Nida como tradutor de textos bíblicos o levou a
discorrer sobre as funções das notas de de página. Segundo ele, em sua obra Toward a
Science of Translating (Para uma Ciência da Tradução, não traduzido para o português),
de 1964, são duas as funções principais das notas:
(1) corrigir discrepâncias lingüísticas e culturais, por exemplo (a)
explicar costumes contraditórios, (b) identificar objetos físicos e
geográficos desconhecidos, (c) dar equivalentes de pesos e medidas, (d)
prover informações sobre jogos de palavras, (e) incluir dados
suplementares sobre nomes próprios [...]; e (2) acrescentar informações
as quais podem ser úteis à compreensão de antecedentes históricos e
culturais do documento em questão (1964, p. 239).
44
Sobre sua localização, Nida enfatiza que elas podem vir situadas na mesma página
onde o texto está escrito ou no final do documento, em forma de tabelas ou glossários.
Além disso, não raro elas assumem caráter primordial na atividade tradutória e, devido ao
seu número extensivo, elas são classificadas como comentários (1964, p. 239).
Enfim, vale destacar o pensamento de Álvaro L. Hattnher que, em seu texto
intitulado Nota de de Página: Alicerce Fundamental da Tradução (1985, p. 89-98),
44
Texto original: “(1) to correct linguistic and cultural discrepancies, e.g. (a) explain contradictory customs,
(b) identify unknown geographical or physical objects, (c) give equivalentes of weights and measures, (d)
provideinformation on plays on words, (e) include supplementary data on proper names [...] ; and (2) to add
information which may be generally useful in understanding the historical and cultural background of the
document in question”. Tradução nossa.
enfatiza que as notas constituem “um dos principais alicerces sobre os quais repousa a
ponte cultural construída pelo tradutor, ou seja, o próprio ato tradutório” (p. 98). Embora
consideradas, geralmente, como a parte menos importante de um texto (e sua localização
dentro da página muitas vezes corrobora esse fato), as notas de de página são de
extrema relevância como “ferramenta” para a prática tradutória e um “recurso
indispensável (quando não obrigatório) quando se trata da tradução de uma obra literária
que situe um contexto cultural totalmente diverso daquele expresso pela língua de
chegada” (p. 89). Ainda, para realizar uma tradução eficaz, não basta ao tradutor ter
somente o domínio do léxico, da sintaxe e da semântica da língua de partida, mas faz-se
mister que ele também seja um profundo conhecedor da cultura e da civilização que
produziu tal língua. E as notas têm sido uma das pontes que unem as diversas culturas, um
verdadeiro alicerce para o tradutor, pois é nelas que ele deixa registrado o difícil processo
de versão das obras literárias para uma cultura diametralmente oposta (1985, p. 98).
2. 4. 2 – O suplemento
Outra estratégia utilizada pelas tradutoras feministas, segundo von Flotow, é o
suplemento, através do qual as muitas diferenças existentes entre as línguas são
compensadas devido às mudanças intervencionistas que são feitas ao longo da tradução
(von FLOTOW citada por SIMON, 1996, p. 14).
Simon menciona alguns exemplos de “traições produtivas” citadas por von Flotow,
como a tradução realizada por Godard do romance de Nicole Brossard, L’Amèr, no qual a
tradutora faz um jogo de palavras em torno do termo francês Amèr, que contém, no
mínimo, três outros termos: mère (mãe), mer (mar) e amer (amargo). Godard traduziu o
título criando um gráfico em torno de um grande S, posicionando o artigo The à esquerda,
e as palavras e, our, e mothers alinhadas, verticalmente, à direita, o que possibilitou a
formação do título em inglês The Sea Our Mother (“O Mar Nossa Mãe”). Além do título, o
jogo criado por Godard em torno desses termos origem a outras palavras e expressões,
como “Sea S(mothers) and S(our) Mothers” (“Mar Sufoca e Azeda Mães”); “These Our
Mothers” (“Estas Nossas Mães”) e “These Sour Mothers” (“Estas Mães Azedas”) (von
FLOTOW citada por SIMON, 1996, p. 14).
Em outro momento, Simon cita algumas passagens que destacam a tradução de
Godard de obras de Brossard, como a mencionada These Our Mothers, em que o texto
original em francês diz: “Chaque fois que l’ espace me manque à l’horizon, la bouche
s’entrouvre, la langue trouve l’ ouverture”, que em português seria “Toda vez que me falta
o horizonte, minha boca se abre, a língua encontra uma abertura”. Em inglês, Godard
traduziu como: “Each time I lack space on the her/i/zon, my mouth opens, the tongue finds
an opening” (BROSSARD citada por SIMON, 1996, p. 26). O jogo de palavras criado por
Godard, que traduziu horizon (horizonte), por her/i/zone, ou seja, “her eye zone”, que em
português significa “a zona de olhar dela”, possibilita uma nova tradução e interpretação
da sentença de Brossard: “Toda vez que me falta o olhar dela, a boca se abre, a língua
encontra uma abertura”.
Outro exemplo citado por Simon se a partir da frase original francesa: “J’ai tué
le ventre et fait éclater la mer”, cuja tradução para o português seria: “Eu matei o útero e
explodi o mar”. Godard, ao traduzir para o inglês esse trecho, assim o verteu: “I have
killed the womb and exploded the Sea/ Sour mother” (BROSSARD citada por SIMON,
1996, p. 27). Em português: “Eu matei o útero e explodi o Mar/ a mãe Azeda”.
Segundo Simon, esses recursos usados pela tradutora permitem que o leitor leia
Nicole Brossard e Barbara Godard ao mesmo tempo (1996, p. 27). Interessante também é a
tradução que Godard fez do título de outra obra de Brossard, que em francês recebeu o
título de Amantes (amantes femininas), que foi traduzido por Godard como Lovhers, em
português, “o amor delas”. Em seu trabalho de tradução de obras de Brossard, Godard
utiliza ainda recursos como deixar na língua original (francês) algumas passagens, marcar
em negrito o que Brossard escreveu em inglês, com o objetivo de criar ambigüidade de
significado e significante, gerando polissemias.
Outro exemplo da estratégia do suplemento citado por Simon é a tradução feita do
romance Mirza, de Madame de Staël. Com o objetivo de valorizar a ideologia não-
escravizante do texto, as tradutoras usaram o recurso de traduzir partes referentes aos
personagens africanos não do francês para o inglês, mas do francês para a língua que foi
aquela falada por eles, Wolof, com a tradução inglesa entre parênteses. Vale notar que essa
língua foi introduzida pelas tradutoras, sendo que, no texto original, sua presença era
apenas implícita. Assim, as tradutoras deram voz aos que estavam emudecidos pela língua
imperial, chamaram a atenção para a dominação cultural e a opressão que ela descreve.
Além disso, através das intervenções que fizeram, as tradutoras enfatizaram as questões de
gênero e raça e tornaram mais realística a história de Madame de Staël (1996, p. 35).
2. 4. 3 – O seqüestro
A terceira estratégia usada pelas tradutoras feministas, segundo von Flotow, é o
seqüestro, ou seja, a “apropriação do texto cujas intenções não são necessariamente
feministas pela tradutora feminista” (von FLOTOW citada por SIMON, 1996, p. 15).
45
Simon cita exemplos da tradução realizada por de Lotbinière-Harwood, extraídos do
citado artigo “The Body Bilingual”, no qual a tradutora feminista ressalta como traduziu a
obra de Lise Gauvin, intitulada Lettres d’une autre (Literatura de uma outra, não
traduzido para o português). Nesse caso, de Lotbinière-Harwood “corrigiu” o uso do
masculino do texto original pelo feminino, evitando usar o termo francês masculino
45
Texto original: “[...] refers to the appropriation of a text whose intentions are not necessarily feminist by
the feminist translator”.
Québécois, registrando Québécois-e-s, em todos os casos. De Lotbinière-Harwood explica
aos leitores em seu prefácio que: “a tradução que você vai ler emprega todas as estratégias
possíveis da tradução para fazer o feminino isto é, as mulheres visível no texto” (1991,
p. 101).
46
Em outras traduções que realizou, de Lotbinière-Harwood utilizou recursos como
neologismos, pois, segundo ela: “quando as combinações de palavras existentes não são
suficientes, a invenção sincera é uma estratégia interessante” (p. 119).
47
Por exemplo,
quando traduz a feminizada palavra auteure em auther, amante em shelove, ela justifica
suas intervenções: para ela, nós, mulheres, “precisamos re-sexizar a língua” (p. 117),
48
tornando manifestas as marcas de gênero no discurso feminino. Como enfatizado, para
de Lotbinière-Harwood não há língua mais sexista que outra, pois todas foram criadas pelo
homem. Portanto, para que as mulheres possam se manifestar, é preciso feminizar a língua,
sendo necessário “ridicularizar a Ordem Fálica das Coisas, na qual o lugar para a mulher é
o silêncio. Silêncio, o tabu quebrado pelo feminismo” (p. 108).
49
Outro exemplo que merece destaque é a tradução que de Lotbinière-Harwood fez
do filme Firewords (Palavras de Fogo, não traduzido para o português), baseado no
romance de Louky Bersianik, escritora do Québec. Em certa passagem, Bersianik
questiona: “Quel est le féminin de garçon? Cést garce!”. Na verdade, a palavra francesa
garce não é o feminino de garçon, e o termo faz referência à prostituta. O mesmo sentido
pejorativo do termo foi traduzido por de Lotbinière-Harwood para o inglês: “What’s the
feminine of dog? It’s bitch!”. Assim, ela enfatiza que “novos significados podem ser
atribuídos às palavras quando elas são tiradas do sentido masculino e recontextualizadas no
46
Texto original: “[...] the translation you are about to read employs every language strategy possible to
make the feminine – i.e women – visible in this text”.
47
Texto original: “When combinations of existing words aren´t enough, outright invention is an exciting
strategy”.
48
Texto original: “We need to resex language”.
49
Texto original: “[...] redicule the Phallic Order of Things, in which a woman’s place is silence. Silence, the
taboo broken by feminism”.
sentido feminino” (p. 118).
50
Em seu artigo, de Lotbinière-Harwood ressalta a importância de a mulher expressar
seus direitos em modelar o texto-fonte, empregando “todas as estratégias possíveis da
língua para tornar o feminino ou seja, as mulheres visível no texto” (p. 101).
51
Ao
criticar o citado chavão francês de Ménage, a tradutora sugere o acréscimo do prefixo
re-, convertendo a expressão para Re-Belles et Infidèles (“Re-Belas e Infiéis”), pois o
prefixo re- muda as belas para rebeldes e implica repetição com mudança. A tradução
como uma reescrita no feminino” (p. 99).
52
Ainda de acordo com a tradutora:
O feminismo desconcerta o esquema patriarcal das coisas. Nossa
infidelidade é ao código de silêncio imposto às mulheres desde os tempos
pré-‘históricos’, e à forma em que a história tradicionalmente é contada.
Francamente falando, as feministas têm mudado para além de ‘um lugar
da mulher’, e têm feito nossa língua estrangeira ser escutada pela
primeira vez. Ao escrever no feminino, a tradução feminista colabora na
subversão por espatifar o traço da língua e dar voz ao que estava mudo
(1991, p. 95).
53
2. 5 – Tradução e/na pós-modernidade
Edwin Gentzler, em artigo intitulado “Translation, Poststructuralism, and Power”
(“Tradução, Pós-Estruturalismo e Poder”, traduzido para o português, mas ainda não
publicado), de 2002, ressalta o caráter de violenta resistência dessas escrituras. Segundo o
autor:
As tradutoras canadenses feministas estão bem cientes das relações de
poder com o seu trabalho. As tradutoras deixam claro que suas invenções
pretendem subverter a língua e a cultura patriarcal que domina o espaço
cultural em Quebec. Elas esperam que desconstruindo o espaço
50
Texto original: “New meanings can be encoded into existing words when they are taken out of the
malestream and recontextualized in the feminine”.
51
Texto original: “[...] every language estrategy possible to make the feminine i.e women visible in this
text”.
52
Texto original: “[...] the prefix re- changes the beauties into rebels and implies repetition with change.
Translation with change. Translation as a rewriting in the feminine”. As traduções do texto “The Body
Bilingual” (1991), de Suzanne de Lotbinière-Harwood, foram todas feitas por mim.
53
Texto original: “Feminism disturbs the patriarcal scheme of things. Our infidelity is to the code of silence
imposed on women since pre-‘historical’ times, and to the way the story traditionallity is told. In speaking
out, feminists have moved beyond ‘a woman’s place’, and have made our alien’s language heard for the first
time. Like writing in the feminine, feminist translation collaborates in this subversion by crashing the
language line and voicing what was muted”.
masculino, o espaço será aberto para as mulheres (2002, p. 214).
54
Para Gentzler: “o discurso em Quebec sobre tradução, escritura da mulher, política de
identidade e o futuro [...] está em um nível excepcionalmente rico para todos aqueles
interessados na teoria e na prática de política alternativa” (p. 214).
55
No entanto, as estratégias dessas tradutoras feministas canadenses tornaram-se alvo
de críticas, como as levantadas pela teórica brasileira da tradução Rosemary Arrojo. Em
seu ensaio “Feminist, ‘Orgasmic’ Theories of Translation and Their Contradictions”
(“Teorias de Tradução Feministas ‘Orgásticas’ e suas Contradições”, não traduzido para o
português), de 1995, Arrojo critica as metáforas violentas utilizadas pelas tradutoras
feministas, como Lori Chamberlain, Barbara Godard e de Lotbinière-Harwood. Segundo a
teórica brasileira, quando recorrem à teoria derrideana para expressarem suas estratégias
subversivas e à “escritura feminina” enfatizada por Cixous, buscando dar voz à mulher
através da linguagem, essas tradutoras, ao invés de transcenderem os modelos patriarcais
que combatem, acabam por endossá-los. Isso porque, ao criticarem as metáforas
“machistas” e violentas usadas por estudiosos que situam a mulher e a tradução como
secundárias, as tradutoras não conseguem desfazer a concepção binária tradicional,
deixando de encontrarem o entre-lugar proposto por Cixous, pois elevam a escrita da
mulher através de metáforas feministas tão violentas quanto às usadas pelos teóricos
mencionados. Para Arrojo, a tradução, sendo uma re-escritura e, portanto, um ato
interpretativo, é “violenta”, visto que o texto é apropriado e novos significados são
atribuídos a ele.
54
Texto original: “The Canadian feminist translators are well aware of relations of power to their work. The
women translators make it clear that their inventions are intended to subert the patriarchal language and
culture that dominates the cultural space of Quebec. They hope that by desconstructing the male space, space
will be opened up for women”. Essa e outras traduções que se seguem à obra de Gentzler foram feitas por
Adriana Maria Soares da Cunha, aluna do Bacharelado em Letras: Ênfase em Tradução - Inglês da UFJF.
55
Texto original: [...] the discourse in Quebec on translation, women´s writing, identity politics, and the
future [...] is at an exceptionally rich level for all those interested in the theory and practice of alternative
politics”.
O pensamento tradutório de Arrojo expresso acima, de que as feministas
canadenses, através de suas estratégias, reafirmam o discurso patriarcal que buscam
desconstruir, está em consonância com o conceito desenvolvido por Tereza de Lauretis,
professora da Universidade da Califórnia, em seu texto “A Tecnologia do Gênero”,
publicado no Brasil em 1994. Embora não faça menção diretamente à tradução feminista,
Lauretis ressalta que a categoria gênero, tal como era proposta, uma vez que toma o sexo
biológico como elemento “natural”, não problematizado, reafirma o binário que deveria
desconstruir. Lauretis associa a construção de tecnologias de gênero, que se desenvolveu
nas décadas de 60 e 70, com a militância das mulheres. Ao contrário do que esperava o
movimento, “o conceito de gênero como diferença sexual e seus conceitos derivados a
cultura da mulher, a maternidade, a escrita feminina, a feminilidade, etc acabaram por se
tornar uma limitação, como que uma deficiência do pensamento feminista” (1994, p. 206).
Dessa forma, a autora busca enfatizar a limitação do conceito de gênero que, a partir de
determinismos biológicos e de uma divisão sexual do trabalho, foi fundamental para
solidificar o discurso patriarcal e a hegemonia masculina que as mulheres tanto
combatiam. Nesse sentido, a autora ressalta que a ênfase no sexual, na diferença entre a
mulher e o homem, o feminino e o masculino, esteve presente nos discursos culturais
dominantes, nas “narrativas fundadoras”. Segundo Lauretis, a persistência em se colocar a
questão de gênero nesses termos, tende a reproduzir, a retextualizar esses conceitos,
“mesmo nas reescritas feministas das narrativas culturais” (p. 207). Dessa forma, pode-se
afirmar, parafraseando Lauretis, que as tradutoras canadenses não conseguiram “sair dos
limites da casa patriarcal” (p. 208), visto que perpetuaram os binarismos que lutaram por
desestabilizar.
Portanto, segundo o pensamento crítico tradutório de Arrojo:
... para que uma teoria de tradução feminista possa ser também pós-
moderna terá que reconhecer, em primeiro lugar, que o prazer da
tradutora, ao se apossar do texto que traduz e ao interferir explícita e
implicitamente em sua rede de significados, está mais ligado ao prazer
autoral de quem imagina poder inaugurar o significado do que à
satisfação de uma “colaboração” supostamente pacífica e “orgásmica”
com o “original” (1995, p. 68).
Corroborando a teoria de Arrojo, podemos citar a tradutora norte-americana Suzanne Jill
Levine, cujo trabalho se insere no contexto crítico-literário e tradutório pós-modernista dos
anos 90 do século XX. Pode-se afirmar que Levine penetrou na esfera política com base na
nova consciência da mulher refletida na linguagem, não à maneira “orgásmica” das
tradutoras feministas canadenses, mas buscando “o prazer autoral de quem imagina poder
inaugurar o significado” através da tradução.
O trabalho de Suzanne Jill Levine se destaca por suas importantes traduções da
ficção latino-americana, registradas em The Subversive Scribe: Translating Latin American
Fiction, 1991 (A Escriba Subversiva: Traduzindo a Ficção Latino-Americana, não
traduzido para o português), no qual ela apresenta ao leitor sua tradução de textos de
autoria masculina, como os renomados Guillermo Cabrera Infante e Manuel Puig. Nesse
livro, Levine relata suas estratégias tradutórias, como o uso de trocadilhos, jogos de
palavras e aliterações. Como tradutora de obras que são, em sua grande maioria, de autores
misóginos, ela faz menção à difícil tarefa de imprimir sua marca subversiva em textos
machistas.
Para ela, as tradutoras precisam recriar, “subverter” o texto original, pois a tradução
literária deve ser sinônimo de criação, um ato que apresenta questionamentos e indaga o
seu leitor, que faz uma recontextualização da ideologia do original. Levine se refere a
Borges que, em seu citado conto “Pierre Menard, autor de Dom Quixote”, declara ser o
texto original apenas uma das muitas versões possíveis de uma obra, e ainda afirma que:
Distante da visão tradicional das tradutoras como simples servis e
desconhecidas escribas, a tradutora de texto literário pode ser considerada
uma escriba subversiva. Alguma coisa é destruída – a forma do original –
mas o significado é reproduzido através de outra forma. Uma tradução
assim vista se torna uma continuação do original, a qual sempre altera a
realidade que tenciona recriar (1991, p. 8).
56
Embora se perceba nas traduções de Levine o uso de várias estratégias da
desconstrução, que ela chama de “subversivas”, a análise de sua obra revela algumas
diferenças entre sua atividade tradutória das citadas práticas usadas pelas tradutoras
feministas de língua francesa. Gentzler, em seu artigo, faz menção a um dos livros
traduzidos por Levine, intitulado Tres Tristes Tigres, de Cabrera Infante. Segundo o autor,
a prosa do romancista cubano:
... é subversiva e abusiva. Assim, Levine parece reivindicar uma certa
licença poética para tomar certas liberdades com sua tradução, pois o
texto original joga com a linguagem, especialmente dialetos do
espanhol cubano, oferecendo múltiplos referentes e trocadilhos, fazendo
conexões intersemióticas com filmes, passagens da Bíblia, versos sem
sentido e os quadrinhos. Levine também conversou extensivamente com
o autor e tem a benção de Cabrera Infante para tomar as liberdades que
toma (2002, p. 203).
57
É nesse sentido que Levine, em menção à tradução dessa obra, ressalta seu trabalho
como um processo de “closelaboration”, termo que retrata a junção das palavras inglesas
“close” (perto, próximo) e “collaboration” (colaboração), sugerindo um processo de
“colaboração próxima”, elaboração em parceria. Isso porque a tradução de Levine da obra
de Cabrera Infante se pareceu com a escrita do texto original, pois o autor participou de
todo o processo, o que aumentou ainda mais a afetividade entre o escritor e a tradutora.
Devido às inúmeras piadas, elaborações e aos trocadilhos acrescentados à tradução, que
colaboraram para uma atividade subversiva, o romance tem 30 páginas a mais em inglês
56
Texto original: “Far from the traditional view of translators as servile, nameless scribes, the literary
translator can be considered a subversive scribe. Something is destroyed the form of the original but
meaning is produced through another form. A translation in this light becomes a continuation of the original,
which already always alters the reality it intends to re-create”. Essa e as traduções que se seguem da obra de
Levine foram feitas por nós.
5
7
Texto original: “[...] whose (Cabrera Infante) own prose is already subversive and abusive. Thus Levine
seems to claim a certain poetic license to take such liberties with her translation because the original text
also plays with language, especially dialects of Cuban Spanish, offering multiple references and puns,
making intersemiotic connections to movies, passages from the Bible, nonsense verse, and comics. Levine
has also talked extensively with the author and has Cabrera Infante´s blessing to take the liberties she does”.
que em espanhol.
Levine, na tradução que recebeu o título de Three Trapped Tigers, enfatizou as
palavras comuns do dia-a-dia, atribuindo-lhes sentidos diferentes. Por exemplo, o termo
espanhol cosa significa “thing”, em inglês. Mas Levine ressalta que, no romance Tres
Tristes Tigres e em sua tradução inglesa Three Trapped Tigers, cosas ou cositas tem um
significado mais abrangente, como ela nos mostra ao se referir ao capítulo “Los
Debutantes”, cuja narradora é uma menina de nome não revelado. A pequena garota conta
que estavam, ela e sua namorada Aurelita, escondidas debaixo de um caminhão, quando
viram Petra tendo relações sexuais com seu namorado em uma varanda. No entanto, a
menina não revela o que exatamente ambas estavam fazendo debaixo do caminhão
enquanto observavam o casal:
A versão original espanhola Lo que no le dijimos nunca a nadie fue que
nosotras tambien hacíamos cositas debajo del camión” literalmente diz:
“Mas o que nunca dissemos a ninguém era que nós também fazíamos
coisinhas debaixo do caminhão”. Em Three Trapped Tigers essa se
tornou “Mas o que nunca dissemos a ninguém era que nós também
estávamos acostumadas a brincar com as coisas uma da outra debaixo do
caminhão” (1991, p. 169).
58
Portanto, por não fazer referência direta à masturbação das duas meninas, a versão
espanhola permite que os detalhes da história sejam compreendidos pela imaginação do
leitor, o que não faz a tradução inglesa. O termo cositas, cujo significado remete a alguma
coisa de sexual, ou ao próprio sexo, ativa o caráter transgressivo da tradução. Levine
afirma que:
O diminutivo afetivo e efetivo no espanhol tece uma nota infantil, mas
também íntima, na imprecisão de “coisa”. Essa sexualidade implícita, que
a gramática da língua espanhola articula, é literalmente neutralizada pela
gramática inglesa. A tradutora, tentando ser verdadeira aos efeitos da
língua, assim como à literariedade, escolhe restaurar, através desta tão
chamada liberdade, a primeira “investida” sexual tão importante para os
58
Texto original: “The original Lo que no le dijimos nunca a nadie fue que nosotras tambien hacíamos
cositas debajo del camión” literally says, “But what we never told was that we too did things under the
truck.” In Three Trapped Tigers this became “But what we never told anyone was that we too used to play
with each other’s things under the truck”.
inícios dessas principiantes (1991, p. 169).
59
Nesse momento, podemos inferir que Levine utiliza uma prática semelhante à
suplementação de von Flotow, estratégia citada que tem como objetivo compensar as
diferenças entre as línguas através de mudanças intervencionistas feita pelo tradutor.
Segundo Levine, ao escrever Tres Tristes Tigres, o objetivo de Cabrera Infante foi
transformar a língua cubana falada e escrita em uma língua literária. No entanto, o discurso
do espanhol cubano de Havana, com seus “acentos” próprios, desapareceu na tradução
inglesa. Para que os efeitos sonoros de Tres Tristes Tigres se tornassem o mais próximo
possível, cultural e etnicamente, dos seus muitos personagens mulatos e negros, Levine
recorreu ao vocabulário e aos jargões de rua dos negros americanos de Nova Iorque (1991,
p. 68). Nesse sentido, segundo Gentzler, a estratégia adotada pela tradutora “leva a
conexões interculturais e à invenção semiótica que é procriativa e destrói as fronteiras
entre as línguas” (2002, p. 204).
60
Em sua obra, Levine ressalta ainda a tradução do romance La Traición de Rita
Hayworth (1967), em inglês Betrayed by Rita Hayworth, de Manuel Puig, que ofereceu
vários desafios à tradutora. Segundo ela, para tornar a entonação e as sentenças mais
naturais, foi necessário lê-las em voz alta e em alguns casos ouvi-las em uma fita cassete,
pois esse romance se constitui pelos textos falados e escritos de seus personagens, ficando
silenciada a voz do narrador.
Uma das características dos trabalhos de Manuel Puig, presente em La Traición de
Rita Hayworth, é sua íntima relação com o cinema, também encontrada no romance
Boquitas Pintadas (1968), traduzido por Levine como Heartbreak Tango, cuja tradução
59
Texto original: “The affective and effective diminutive in the Spanish weaves an infantile but also intimate
note into the vagueness of “thing”. This implied sexualness, which the grammar os the Spanish language
articulates, is literally neutralized by English grammar. The translator (s), attempting to be true to language’s
effects as well as to literariness, chose to reinstate, through this so-called liberty, the underlying sexual
“thrust” central to the beginnings of these beginners”
60
Texto original: “[...] leads to cross-cultural connections and semiotic invention that is procreative and
breaks down borders between languages”.
merece destaque. Nesse romance, o autor faz diversas citações aos tangos argentinos, cujas
letras aparecem como epígrafes a cada capítulo. Ao retratar a tradução de Boquitas
Pintadas, Levine nos explica qual foi a estratégia utilizada:
O vasto conhecimento de Puig sobre a cultura de massa norte-americana
foi inestimável para a nossa colaboração criativa. A solução que
finalmente encontramos foi traduzir algumas letras de tangos que eram
essenciais para o enredo, mas substituir no mínimo metade das citações
da epígrafe por outras citações de filmes de Hollywood ou por comerciais
da rádio argentina (1991, p. 127).
61
Levine esclarece ainda que Boquitas Pintadas e Heartbreak Tango possuem formas
diferentes, mas a substituição dos tangos pelas citações fílmicas representa a mudança do
meio e não da mensagem. Sobre a escolha do título e dos nomes dos personagens, ela
enfatiza que os nomes próprios devem ser traduzidos, assim como os títulos, mas eles
devem sugerir conotações ao leitor. Assim, nesse romance, Levine traduziu Dr. Aschero,
cujo nome sugere “asco”, repugnância, por Nastini, originado de Nasti, que também sugere
uma pessoa repugnante. Ambos os nomes produzem um efeito cômico para os leitores de
língua espanhola e inglesa, respectivamente. Ainda sobre a importância da tradução eficaz
dos nomes, Levine afirma que eles possibilitam ao leitor compreender não apenas a
tradução, mas a própria escrita original.
Embora ela tenha traduzido textos de algumas escritoras, no epílogo de Infante’s
Inferno, obra de Cabrera Infante, Levine se confessa uma traidora e uma escriba
subversiva, que realiza o trabalho de “transcriação” em textos que são, em sua maioria,
misóginos. No entanto, Levine ressalta que não apenas nas obras referendadas, mas em
grande parte da escrita dos homens, a mulher é vista como o outro, idealizada ou
degradada e, algumas vezes, a própria mulher se condena a um status de inferioridade em
seu discurso. Levine questiona o sistema patriarcal que afirma ser uma mulher, assim
61
Texto original: “Puig’s vast knowledge of North American mass culture was invaluable to our creative
collaboration. The solution we finally came up with was to translate some tango lyrics that were essential to
the plot, but to replace at least half of the epigraph quotations with either tag lines from Hollywood films or
Argentine radio commercials”.
como uma tradução, infiel, se bonita, dizendo que:
Marginalidade e dissidência são palavras que m sido usadas para
definir o papel feminino na história e na cultura. Julia Kristeva via a
inevitável marginalidade da mulher como uma vantagem; ela compara a
mulher com o artista, particularmente com artistas vanguardistas. Mas,
uma vez no reino do discurso verbal, se somos ou não dissidentes,
geralmente temos que usar o tão chamado código patriarcal, mesmo que
nossa intenção seja questionar ou transpor a autoridade. “Língua mãe” é
uma metáfora enganosa: a Mãe nos ou ensina a língua do pai. Se,
como Donna Stanton afirmou, o principal recurso da feminista e/ou da
dissidente é expor, de alguma forma, a “intencionalidade fálica” da
língua, os não-feministas Puig, Cabrera Infante e Sarduy minam tal
intencionalidade – intencionalmente ou não (1991, p. 182).
62
Mesmo afirmando ser “uma criada do discurso de escritores”, Levine enfatiza que é
preciso questionar a interpretação do termo handmaiden, que podemos traduzir como
“criado/a”, referindo-se ao papel atribuído ao tradutor ou à tradutora, bem como os
posicionamentos abaixo citados, os quais consideram que:
O tradutor é secundário, escravizado e ainda violado pelas palavras de
outros; o tradutor não pertence a si mesmo, mas está alienado de sua
própria língua; o autor cria a si mesmo, o tradutor permanece escondido.
O tradutor é apenas uma voz de passagem. A tradutora é considerada
sempre feminina (porque secundária), mesmo que ela seja um homem
(1991, p. 183).
63
Nesse sentido, Levine afirma que, embora a prática tradutória seja vista como uma
das inumeráveis versões do original, suas colaborações com Cabrera Infante e Puig a
ensinaram que uma tradução, quando recriada, pode repercutir na próxima tradução, e até
mesmo no original. Segundo a autora, o título The Subversive Scribe tem como objetivo
desconcertar o leitor de sua tradicional visão das traduções como secundárias, como
62
Texto original: Marginality and dissidence are words that have been used to define the feminine role in
history and culture. Julia Kristeva sees woman’s inevitable marginalitu as an advantage; she aligns woman
with the artist, particularly with avant-garde artists. But once in the realm of verbal discourse, whether or not
we are dissident, we all usually have to use the so-called patriarchal code, even though our intention is to
question or to make it over. “Mother tongue” is a deceptive metaphor: Mother gives or teaches us father´s
tongue. If, as Donna Stanton has stated, the feminist’s and/or dissident’s principal recourse is to expose
somehow language’s “phallic intentionality”, nonfeminist Puig, Cabrera Infante, and Sarduy undermine such
an intentionality – intentionally or not”.
63
Texto original: “The translator is secondary, enslaved, nay raped by another’s words; the translator does
not belong to himself but is alienated from his own language; the author creates himself, the translator
remains secret. The translator is only a voice of passage. The translator is female, even if she is sometimes a
male”.
apenas sombras dos textos originais.
Enfim, podemos afirmar que Levine reinveste a tradução de significado,
enriquecendo o texto original. Seu trabalho contesta os dogmas de fidelidade a um texto-
fonte e eleva os estudos tradutórios dentro do sistema literário, permitindo a ascensão da
disciplina. E ao enfatizar a diferença de gênero, Levine ressalta a voz da mulher,
possibilitando o contínuo desaparecimento da terminologia negativa que dominou a
discussão acerca da prática tradutória e do sexo feminino.
Dessa forma, veremos, no próximo capítulo, como o pensamento e o exercício
tradutório de Ana Cristina possuem consonância com a assertiva de Levine, que descreve:
... o que me moveu, como tradutora, a esses escritores foi a brincadeira, a
possibilidade criativa de traição pessoal, de recriar (n)a língua. Flaubert
afirmou que a etapa da escrita de que ele mais gostava era esculpir a
sentença; para o tradutor, esculpir a sentença é a parte criativa (LEVINE,
1991, p. 182).
64
64
Texto original: “What drew me as a translator to these writers was the playful, creative possibility of self-
betrayal, or re-creating (in) language. Flaubert claimed that the stage of writing he enjoyed most was
sculpting the sentence; for the translator, sculpting the sentence is the creative part”.
CAPÍTULO 3
“BLISS” E “ÊXTASE”: DE KATHERINE
MANSFIELD A ANA CRISTINA CESAR
Katherine Mansfield
Fonte: MANSFIELD, 1940, contracapa.
Soneto a Katherine Mansfield
Vinicius de Moraes
O teu perfume, amada — em tuas cartas
Renasce, azul... — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.
Relembro-as, vou... nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.
Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!... e a primavera
Vem já tão próxima! ...(Nunca te apartas
Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.
Poema extraído da obra Livro de Sonetos (1991, p. 13).
A atividade tradutória sempre esteve condicionada por fatores de ordens diversas
políticos, econômicos, sociais, religiosos, etc. Dessa forma, neste capítulo final,
consideraremos o contexto em que “Bliss” foi escrito, em 1918, bem como o panorama do
momento em que Ana Cristina o traduziu, entre 1979 e 1981.
Posteriormente, faremos uma leitura de “Bliss” buscando encontrar o porquê da
escolha de Ana Cristina pela tradução do conto de Mansfield. Nossa leitura visa ressaltar a
condição da mulher na sociedade patriarcal inglesa pós-vitoriana, pois Mansfield, através
da protagonista Bertha Young, apresenta sua posição de mulher libertadora de
preconceitos, por denunciar e criticar essa situação. Conforme veremos, tal fato também se
comprova quando Mansfield retrata o homoerotismo feminino e masculino, através dos
personagens Bertha e Eddie Warren, respectivamente.
Na terceira parte, faremos uma análise da tradução de Ana Cristina de “Bliss”,
buscando, através do estudo de seu prefácio e de suas notas, evidências de como a
tradutora compreendeu o conto de Mansfield. Consideraremos também o interesse de Ana
Cristina pela cultura e língua do texto original, a saber, a inglesa. Finalmente, buscaremos
enfatizar a relação de Ana Cristina com os estudos tradutórios feministas que se
desenvolveram no Canadá na segunda metade do século XX, visto que sua tradução de
“Bliss” apresenta algumas das estratégias adotadas pelas tradutoras de língua francesa.
Além disso, ressaltaremos como a prática tradutória de Ana Cristina antecipa alguns
questionamentos da teoria pós-moderna da tradução que se fez mais presente a partir da
década de 90 do século passado.
3. 1 – “Bliss”: o contexto de sua escritura e de sua tradução
Sopremos com força para ver se afastamos a
guerra. É um pesadelo que tomou conta de
todos nós [...], nunca me sai do espírito e
envenena tudo. Está dentro de mim todo o
tempo, consumindo-me, e sinto-me
verdadeiramente aterrada (Katherine
Mansfield).
65
A publicação de “Bliss” se deu numa época em que o mundo se via em estado de
choque pelos horrores de quatro anos de devastação causados pela Primeira Guerra
Mundial. Nesse momento, os artistas buscavam representar sua desilusão com a sociedade
moderna, rejeitando formas tradicionais de expressar suas idéias. Muitos poetas
abandonaram a métrica e a rima, e dramaturgos como Bertold Brecht viram no teatro mais
do que um lugar apenas de representação. Em suas peças, os personagens tinham o livre
arbítrio de abandonar os textos e se dirigir à platéia, buscando maior interação com o
público.
Na Inglaterra, Londres se tornou o centro de protestos e de atividades artísticas e
literárias. Um dos primeiros e mais importantes círculos intelectuais da capital inglesa foi o
grupo Bloomsbury, nomeado em homenagem ao bairro londrino onde morava Virginia
Woolf, na casa de quem muitos encontros aconteciam. Esse grupo reunia pessoas de
tendências diversas, com opiniões e posturas ideológicas conflitantes, mas com alguma
coisa em comum. Entre os participantes, além de James Joyce, D.H. Lawrence e do casal
Virginia e Leonard Woolf, encontrava-se Katherine Mansfield. A importância desse grupo
se pela influência que ele exerceu sobre as artes do Ocidente, no início do século XX,
pois seus componentes, de várias maneiras, ajudaram a inaugurar o que chamamos de
modernidade nas mais variadas manifestações artísticas e culturais.
Outro dado histórico de grande relevância para os nossos estudos se relaciona ao
movimento feminista que estava no auge entre 1910 e 1920, período em que “Bliss” foi
escrito e publicado. Como afirmamos, a capital inglesa se tornou o palco de intensos
protestos nessa época, e as sufragettes, entre elas Emmeline e Christabel Pankhurst, se
65
Esta citação é parte da carta escrita por Katherine Mansfield a seu marido J. M. a 3 de fevereiro de 1918,
em Bandol, extraída da obra Cartas de Katherine Mansfield (s/d, p. 121-122).
lançavam às ruas de Londres reivindicando melhores condições para as mulheres e,
principalmente, o direito das mesmas ao voto. As manifestações e denúncias das feministas
contra os maus-tratos que a mulher sofria elevaram o número de divórcios na Inglaterra,
tornando mais fácil à esposa libertar-se do marido cruel ou adúltero. Também na literatura,
a mulher denunciava as desigualdades de oportunidades devido às diferenças sexuais.
Algumas autoras usavam a escrita como forma de protesto e reivindicavam uma sociedade
igualitária, como o fez Virgínia Woolf, no mencionado A Room of One´s Own. Por sua
vez, Mansfield, em 1908, escreveu em seu diário as palavras abaixo:
Acabo de terminar a leitura de um livro de Elizabeth Robins, Come and
find me). Realmente, um livro brilhante, esplêndido; cria em mim uma tal
sensação de poder! Sinto que agora realmente posso imaginar do que as
mulheres serão capazes, no futuro. Até agora não tiveram sua
oportunidade. Falar de nossos dias iluminados, de nosso país emancipado
– pura tolice! Estamos firmemente presas com grilhões de escravidão que
nós mesmas modelamos. Sim, agora percebo que nós os fizemos e temos
de tirá-los. [...] É a doutrina desesperadamente insípida, segundo a qual o
amor é a única coisa no mundo que é ensinada e posta dentro das
mulheres, de geração em geração, e que nos detém de um modo tão cruel.
Devemos nos livrar desse demônio e então virá a oportunidade de
felicidade e libertação (1996, p. 31).
Embora jovem, a autora expressava sua indignação em relação ao patriarcalismo inglês,
em que a mulher era escrava do homem e da sociedade burguesa. Fosse da elite ou da
classe média, sua vida se passava principalmente no interior da casa, onde recebia aulas de
trabalhos domésticos e bordado. Sua imagem estava associada à idéia de inferioridade
física e mental. Apesar disso, as mulheres contestaram veementemente essa tão propalada
inferioridade do sexo feminino, e buscaram sua emancipação. Em “Bliss”, Mansfield nos
leva a questionamentos muito próprios à época de sua escrita, que certamente abalaram as
estruturas da velha e aristocrática Inglaterra, visto que a autora retrata a situação da mulher
dentro da sociedade inglesa pós-vitoriana e aborda, sutilmente, a atração possível entre
duas pessoas do mesmo sexo.
No período em que Ana Cristina traduziu “Bliss” (no final dos anos 70 e início dos
80), o cenário da crítica literária vinha se alterando em função do surgimento de vários
pensamentos político-ideológicos e filosóficos, frutos de preocupações de intelectuais e
jovens que transitavam entre os países da Europa Ocidental, os Estados Unidos da América
e a América Latina, principalmente. Questionamentos sobre o papel dos negros, dos
homossexuais, das literaturas periféricas e, em especial, das mulheres povoaram o discurso
desses intelectuais. No plano acadêmico, essa minoria foi alvo de estudos e debates, como
os desenvolvidos pelos filósofos franceses pós-estruturalistas. Terry Eagleton, em Teoria
da Literatura: Uma Introdução (1997), obra citada, ressalta esse momento em que
passamos da era do estruturalismo ao pós-estruturalismo, em fins da década de 60 e
princípios da década de 70. O pós-estruturalismo, com sua perspectiva descentralizada,
caracterizava-se como “um estilo de pensamento que abarca(va) as operações
desconstrutivas de (Jacques) Derrida, da obra do historiador francês Michel Foucault, dos
escritos do psicanalista francês Jacques Lacan e da filósofa e crítica feminista Julia
Kristeva” (p. 185). Entre eles, vale destacar o pensamento filosófico de Derrida, visto que
ele corroborou o enfraquecimento das oposições instauradas pelo estruturalismo clássico,
como centro/margem, Natureza/Cultura, homem/mulher, original/cópia, etc.
Segundo Moriconi, Ana Cristina, em 1975, em seu último ano de graduação na
PUC, manifestou-se contra o peso da teoria estruturalista no curso de Letras, devido à
dificuldade encontrada na leitura dos “complicadíssimos teóricos estrangeiros, para não
falar nos esotéricos e mal escritos textos que os professores jovens produziam e se
apressavam em impingir sobre os alunos” (1996, p. 57). Moriconi ressalta que Ana
Cristina liderou um movimento de debate entre os estudantes universitários com o objetivo
de diminuir o número de aulas de teoria no currículo de literatura (p. 58). No ensaio
citado de Ana Cristina, “Os Professores Contra a Parede”, ela reage, de acordo com
Moriconi, “contra o uso repressivo da teoria na relação docente” (p. 46). Nessa época, os
teóricos estruturalistas eram considerados modelos de arrogância intelectual, e em relação
à teoria imposta pelos professores aos discentes, Ana Cristina se expressou:
Foram os alunos a os primeiros a sentir dificuldades graves em relação ao
que se chamou “teoria”. Falava-se do excesso de teorização, da
dificuldade de aprender a matéria dada, da incompreensibilidade dos
termos usados, do pouco contato do aluno com textos de literatura, da
falta de relação da matéria aprendida com a vida profissional do aluno
[...]. O libelo contra a “teoria” não deve ser considerado no seu aspecto
irracionalista, mas sim como uma reação a uma forma de impor, à
utilização de determinados termos e teorias em detrimento do aluno e da
própria literatura (1999, p. 146).
Foi em reação ao hermetismo da teoria estruturalista e à noção por ela difundida da
estabilidade e centralidade da linguagem que se deu o advento dos estudos pós-
estruturalistas. No entanto, não somente a subversão das estruturas da linguagem foi
beneficiada com o pós-estruturalismo. Como mencionado, grupos sociais
marginalizados, entre eles o das mulheres, foram também privilegiados. Eagleton ressalta
que: “de todas as oposições binárias que o pós-estruturalismo buscou desfazer, a oposição
hierárquica entre homens e mulheres era talvez a mais virulenta” (1997, p. 206). Ainda:
O feminismo não era uma questão isolável, uma “campanha” particular
juntamente com outros projetos políticos, mas uma dimensão que
informava e interrogava todos os aspectos da vida pessoal, social e
política. A mensagem do movimento feminino, tal como interpretada por
pessoas fora dele, não era apenas a de que as mulheres deviam ter
igualdade de poder e de condição com os homens era um
questionamento desse poder e dessa condição (1997, p. 206).
Nesse contexto, as principais solicitações das mulheres relacionavam-se à sexualidade, ao
direito ao prazer e ao aborto. Nadilza Moreira, em A Condição Feminina Revisitada
(2003), obra citada, ressalta que, através do slogan “o pessoal é político”, a mulher
reivindicava para si o direito de igualar-se ao homem no que toca à desvinculação entre
prazer, sexo e maternidade. A ciência também colaborou com o surgimento da pílula
anticoncepcional, que se tornou a grande aliada do feminismo.
Como vimos, outro fator de relevância para o movimento das mulheres emergiu na
Inglaterra, no fim da década de 70, a saber, os estudos de gênero. Não podemos deixar de
ressaltar que, em 1979, Ana Cristina se encontrava em território inglês. Dessa forma, esses
estudos influenciaram sua composição poética (visto que foi nessa época que Ana Cristina
escreveu seu livro mais feminino, Luvas de Pelica, conforme mencionado), sua escolha
pela autora, Katherine Mansfield, pelo conto “Bliss”, bem como sua prática tradutória.
Buscando rechaçar os conceitos binários do discurso patriarcal, o estudo acerca do gênero
no processo literário abriu as portas para a possibilidade de diálogo e interação com outras
identidades sociais, com grupos minoritários que, até então, não tinham espaço dentro da
crítica, como os grupos étnicos, raciais e homossexuais. Nesse contexto, novos debates
surgiram dentro da crítica literária feminista que, até então, contemplava um grupo seleto,
constituído por mulheres brancas, heterossexuais, de classe média/alta, tornando-se
necessário abranger outros segmentos igualmente importantes, como mulheres de outras
etnias, com outras preferências sexuais e de diferentes classes sócio-econômicas.
Linda Hutcheon, em Poética do Pós-Modernismo: História, Teoria, Ficção (1991),
ressalta que a constante dos estudos desconstrutivistas de Derrida é o “ex-cêntrico, o off-
centro”, que ela designa como tudo o que é “inevitavelmente identificado com o centro ao
qual aspira, mas que lhe é negado” (p. 88). Como exemplos de “ex-cêntrico”, a autora cita
os grupos que, até 1960, eram “silenciados por diferenças de raça, sexo, preferências
sexuais, identidade étnica, status pátrio e classe”, mas que passaram a ter voz nas décadas
de 70 e 80, quando os “andro- (falo-), hetero-, euro- e etnocentrismos foram intensamente
desafiados” (p. 88, 89). Dessa forma, a noção de centro passou a ser rechaçada em todas as
suas formas, intensificando-se as discussões sobre a crise, o descentramento e a
fragmentação do sujeito moderno, agora deslocado, cuja identidade não é mais fixa e
estável. Dessa forma, questões relativas à alteridade, marginalidade, diferença,
multiplicidade, heterogeneidade e pluralidade foram trazidas à tona nesse contexto
contemporâneo. Como exemplo, podemos citar Moriconi que, em Os Cem Melhores
Contos Brasileiros do Século (2000), aborda a produção literária brasileira entre os anos 60
e 80 dizendo que:
... a geração que fez a revolução sexual (em 60) agora (em 80) coloca no
papel suas histórias. Explode o erotismo feminino. As grandes
metrópoles fornecem cenários para as aventuras do corpo. As trocas
sociais, no contexto totalmente urbanizado e erotizado, são roteirizadas
pela cultura da mídia, cuja língua internacional é o inglês. Emerge a
problemática homossexual (2000, p. 391).
Não poderia faltar, na antologia citada, o conto “Aqueles Dois” (1982), de Caio Fernando
Abreu, um dos autores que melhor expressou, em língua portuguesa, a problemática do
homossexual e, não por acaso, um dos admiradores de Ana Cristina, como comprovam as
palavras encontradas na contracapa de A Teus Pés, onde ele afirma que esse livro revela
“um dos escritores mais originais, talentosos, envolventes e inteligentes surgidos
ultimamente na literatura brasileira” (1988).
Ressaltamos no capítulo dois que, paralelamente ao movimento feminista, deu-se o
surgimento de duas grandes vertentes da crítica literária feminista, a anglo-americana e a
francesa, que tinham como objetivo comum contestar a estrutura androcêntrica que
sustenta o nosso sistema social. Nesse momento, a tradução teve participação significativa
como instrumento de mudança dentro do movimento. Com o intuito de resgatar a voz
silenciada da mulher, barreiras lingüísticas e geográficas foram transpostas. A tradução
permitiu às feministas o acesso ao pensamento e às teorias críticas em voga. Como
atividade de releitura e reescrita, ela também possibilitou a divulgação de textos
reivindicadores, libelos ou panfletos centrados sobre as idéias veiculadas pelo movimento
feminista, que buscavam conscientizar as mulheres do seu papel econômico, político e
social. Como analisamos, as tradutoras canadenses na década de 80 tiveram participação
significativa no contexto do movimento das mulheres, visto que, através da língua, elas
buscaram rechaçar conceitos patriarcais vigentes.
No cenário brasileiro do final dos anos 70 e início dos 80, os estudos da tradução
tinham nos irmãos Augusto e Haroldo de Campos sua mais notável expressão. O seu
trabalho criativo e revolucionário, que se pautava na recriação do texto-fonte, relacionava-
se diretamente ao Movimento Concretista dos anos 50 do século XX, lançado por ambos,
juntamente com Décio Pignatari. Imbuídos dos conceitos teóricos desenvolvidos por
Oswald de Andrade em seu projeto antropofágico, que surgiu nos anos 20 do século
passado e cujo objetivo era uma reavaliação da relação de poder entre a cultura européia e
a brasileira, os irmãos Campos contribuíram de forma significativa para a teorização e
prática tradutórias, através da tradução de autores de nacionalidades diversas (como
Pound, Donne, Rimbaud, Maiakovski, Marianne Moore, Lewis Caroll, Ovídio e Dante) e
também da produção de textos seminais. Nesses textos, Haroldo e Augusto de Campos
enfatizam a tradução como devoração, não para destruir, mas para alimentar, nutrir novos
textos. Como exemplo, a própria Ana Cristina, em artigo intitulado “Bastidores da
Tradução”, publicado na obra Escritos da Inglaterra (1988, p. 139-151), faz uma análise
do prefácio de Augusto de Campos à obra intitulada Verso, Reverso, Controverso, de
1978, em que o autor nos apresenta os recursos que utilizou na tradução de diversos
poemas, bem como as introduções críticas a cada tradução. Em referência à tradução
concretista de Augusto de Campos, Ana Cristina apresenta vários exemplos das “soluções
bastante engenhosas” (1988, p. 147) por ele adotadas, que combinam “a inventividade
concretista com a abordagem multilingüística” (p. 147). Nesse sentido, pode-se afirmar
que Ana Cristina, através de seu ensaio e de sua tradução do conto “Bliss”, que passaremos
a analisar, corrobora a teoria e prática tradutórias dos irmãos Campos, de que os tradutores
não são uma parte neutra no processo tradutório e que a tradução não é uma mera
transposição de conteúdo lingüístico. Ao contrário, os irmãos Campos ressaltam uma ação
crítica dos tradutores na devoração do texto original, negando o conceito há muito imposto
de uma condição passiva do tradutor através de um trabalho diferenciador, criativo.
Portanto, foi num momento de fragilidade de fronteiras, de eclosão de estudos a
respeito das minorias destituídas, em que se enfatiza, segundo Moreira, “a análise da
construção do gênero e da sexualidade dentro do discurso literário” (2003, p. 45), em que
as concepções de autor/tradutor e original/cópia cederam lugar à reescrita como
criatividade que Ana Cristina escolheu trazer “Bliss” ao conhecimento do público de
língua portuguesa.
3. 2 – Uma leitura de “Bliss”
Oh! meu amigo! Haverá outra pessoa, a não ser
eu,
que conheça o significado verdadeiro da
palavra “êxtase”?...
Katherine Mansfield
66
Mas eu lhe digo, meu tolo senhor, dessa
urtiga, o perigo, colhemos esta flor, a salvação.
Shakespeare, Henrique IV, parte I
67
As palavras de Shakespeare citadas acima estão gravadas na pedra tumular de
Katherine Mansfield, enterrada no cemitério comum de Avon, perto de Fontainebleau, no
sul da Fança. Palavras que ela sempre amou e que foram, coincidentemente, as escolhidas
pela autora para a página de rosto de “Bliss”, que, como afirmamos, foi o conto que
solidificou a carreira literária de Mansfield e a tornou reconhecida em diversos países.
“Bliss” foi escrito entre 1917-1918, período em que Mansfield, buscando
recuperar-se de um grave resfriado, viajou para a cidade de Bandol, no sul da França,
fugindo do rigoroso inverno inglês. Em 24 de dezembro de 1917, ainda em Londres,
Mansfield comunicou a seu marido, J. M. Murry (que foi trabalhar no Ministério da Guerra
66
Esta citação é parte da carta escrita por Katherine Mansfield a seu marido J. M. Murry, no dia 31 de maio
de 1918, e foi extraída da obra Cartas de Katherine Mansfield (s/d: 181).
67
Texto original: “But I tell you, my Lord fool, out of this nettle, danger, we pluck this flower, safety”.
Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura e Alexandre Barbosa de Souza, em Katherine Mansfield:
Contos (2005, p. 277).
em Garsington, Inglaterra), na carta citada abaixo, sobre sua doença:
Tenho aqui a certidão que o médico acaba de me passar. Estará bem? Diz
que o meu pulmão esquerdo não se encontra “nada melhor” e que no
pulmão direito um ponto que “confirma a sua impressão de ser-me
absolutamente necessário sair deste país e nunca mais passar o
inverno”. Evidentemente que é grave. Pelo menos pode vir a sê-lo, se não
levanto vôo... O programa parece consistir (se não quiser dar o misterioso
salto) em conservar-me muito quieta, depois arranjar as malas e ir à
procura do sol. Estás a entender? Que te parece?” (MANSFIELD, s/d:
94).
A viagem para a França foi bastante conturbada por causa da Primeira Guerra
Mundial. Apesar de seu melindroso estado de saúde, Mansfield partiu só, visto que seu
marido não podia acompanhá-la devido ao trabalho. No entanto, o grave resfriado mais
tarde degenerou-se em tuberculose, que a vitimou no dia 9 de janeiro de 1923, com apenas
34 anos.
Distante de todos, dos amigos, da família e de seu marido, num quarto todo seu,
Mansfield extravasava toda a sua capacidade criativa na composição de seus contos. Além
disso, suas cartas, escritas durante esse período de confinamento, são perpassadas por
medo e ansiedade, devido aos horrores da guerra com a qual convivia. Sozinha, tornou-se
um hábito para ela escrevê-las. João Gaspar Simões, em sua “Introdução” às Cartas de
Katherine Mansfield (s/d) afirma que:
Esse afastamento do círculo de amigos e parentes foi, sem dúvida, o
grande estimulante da sua veia epistolar. Só, doente, sensível, inteligente,
delicada, sobreexcitada, ei-la que se põe a comunicar a amigos e afins o
que vê, o que sente, o que sonha, a febre e os delíquios da sua alma
extraordinária. Por isso mesmo as suas Cartas são como que um roteiro
psicológico, a esteira de uma vida que decorre nos confins da
sensibilidade: um dos mais emocionantes “documentos humanos” da
literatura universal (SIMÕES, s/d: 11).
Não apenas Mansfield escrevia, como também lia cartas alheias, entre elas, as de
seu autor predileto, Anton Tchecov. Seu gosto pelo gênero epistolar a levou a traduzir
essas cartas do russo para o inglês, quando se encontrava com a saúde bastante
debilitada, conforme ressalta a biógrafa Rhoda Nathan, em Katherine Mansfield (1988, p.
10).
Muitas das cartas escritas por Mansfield foram remetidas a J. M. Murry, quem lhe
ajudou no que tange, principalmente, ao seu trabalho de escritora, visto que sempre atendia
aos pedidos da esposa e enviava-lhe os livros para leitura e pesquisa que solicitava, e
também emitia opiniões e conselhos referentes aos contos que Mansfield produzia. Na
carta abaixo, escrita ao término de “Bliss”, a contista diz ao marido:
A J. M. Murry.
Quinta-feira, 28 de fevereiro de 1918.
São três horas. Acabei agora mesmo a minha nova história
(“Bliss”) e vou mandar-ta. Mas, meu Deus!, embora tivesse sentido
imenso prazer ao escrevê-la, fiquei um trapo para o resto do dia, e tens de
desculpar-me esta carta. Amanhã escreverei mais. Oh! Diz-me
sinceramente o que pensas desta história (mas sinceramente!). Peço-te,
contudo, que procures gostar dela: para eu poder começar outra. Desde
que aqui estou (Bandol) acontece-me uma coisa extraordinária: assim que
começo uma história, fico obcecada, sou perseguida e atormentada por
ela até terminar.
Fui passear até um valezinho que desejaria muitíssimo mostrar-te.
Sentei-me num rochedo muito quente. As flores das amendoeiras
caíram, mas as árvores ficaram cobertinhas de folhas tenras e de pássaros
enamorados a questionar imagina! por causa da passadeira da escada,
que era comprida demais e que não sabiam se deviam cortar, se dobrar
por dentro. Quanto às árvores, jogavam a bola, com uma brisazinha que
atiravam de umas para as outras.
Demorei-me muito tempo sentada na minha pedra, depois gravei
nelas as tuas iniciais com um alfinete e vim-me embora...
Não podes imaginar com que esforço dou voltas e reviravoltas a
esta carta, no meu carrinho de mão que não faz outra coisa senão chiar.
Não sei onde tenho a cabeça. Amanhã mando-te uma maior (uma carta,
não uma cabeça, evidentemente) (MANSFIELD, s/d: 140).
No dia 21 de maio de 1918, numa terça-feira à tarde, Mansfield escreve à Murry:
“Estou convencida de que Harrison (editor) não aceitará a minha história (‘Bliss’)” (p.
170). Cinco dias depois, ansiosa pela resposta do marido, solicita-lhe: “Peço-te que me
previnas quando Harrison te devolver a minha história. Devolvida tenho a certeza de que
vai ser. Mas gostava de saber quando...” (p. 177). No entanto, ao contrário do que pensava
Mansfield, “Bliss” fora mandada para The English Review e publicada em 1920, e tornou-
se sua história mais conhecida.
Conforme afirmamos, a época da escrita de “Bliss” foi marcada pelo movimento
feminista das sufragettes londrinas, com o qual Mansfield demonstra estar em perfeita
consonância, visto que seu conto revela o desconforto em relação à posição ocupada pela
mulher na sociedade patriarcal inglesa, e em seu texto a autora denuncia e critica essa
situação. Ao mesmo tempo, a contista chama a atenção para o fato de que a mulher
também possui libido e que a atração sexual pode ser despertada por um ser do mesmo
sexo, corroborando o fato de que em “Bliss” uma intensa fusão de ficção e
autobiografia, como veremos na análise que se segue, feita a partir da tradução de Ana
Cristina, publicada em Escritos da Inglaterra (1988, p. 23-49).
68
O conto se inicia com uma descrição da protagonista, revelando-nos seu nome,
idade e temperamento:
Apesar dos seus trinta anos, Bertha Young ainda tinha desses momentos
em que ela queria correr em vez de caminhar, ensaiar passos de dança
subindo e descendo da calçada, sair rolando um aro pela rua, jogar
qualquer coisa para o alto e agarrar outra vez em pleno ar, ou apenas ficar
quieta e simplesmente rir – rir – à toa (p. 23).
69
68
As referências ao texto em inglês de “Bliss”, presentes nas notas que se seguem, também foram extraídas
da tradução bilíngüe de Ana Cristina, publicada na obra citada.
69
Texto original: “Although Bertha was thirty she still had moments like this when she wanted to run instead
of walk, to take dancing steps on and off the pavement, to bowl a hoop, to throw something up in the air and
catch it again, or to stand still and laugh at – nothing – at nothing, simply”.
Aqui, a narradora nos apresenta não somente a agitação inicial da mente de Bertha Young,
cujo sobrenome sugestivo (“Young”, ou seja, jovem, em português) comunica seu estado
de espírito, como também os primeiros sintomas do êxtase que, inexplicavelmente, a
domina naquele dia tão especial de primavera, quando ofereceria um jantar festivo a alguns
amigos: ela é “invadida por uma sensação de êxtase absoluto êxtase” (p. 23),
70
o que
justifica seus gestos impetuosos de alegria e seu riso súbito. Essa forte emoção é descrita
como natural, como se qualquer pessoa a pudesse sentir, “como se você tivesse de repente
engolido o sol de fim de tarde e ele queimasse dentro do seu peito, irradiando centelhas
para cada partícula, para cada extremidade do seu corpo” (p. 23).
71
A percepção de Bertha
é de que nunca o jardim da casa esteve tão bonito, de que sua vida é perfeita, pois tem um
marido bem-sucedido, um bebê maravilhoso, uma linda casa e amigos elegantes. Seu
estado de espírito é intensificado ao longo da narrativa e ele nos transmite uma beleza
sensual dos objetos: as frutas irradiam um brilho extraordinário, suas formas arredondadas
e a combinação de suas cores, bem como o jogo de luz na sala de jantar, dão uma
composição perfeita ao ambiente e uma sensação de plenitude. Ela abraça
apaixonadamente as almofadas do salão e se extasia com a exuberância da pereira no
fundo de seu jardim: “uma árvore alta e esguia, em flor, luxuriantemente em flor, perfeita,
como se apaziguada contra o céu de jade. Bertha não podia deixar de notar, mesmo a
distância, que não havia na árvore nem um broto por abrir; nem uma pétala esmaecida” (p.
31).
72
70
Texto original: “[...] overcome, suddenly, by a feeling of bliss-absolute bliss”.
71
Texto original: “[...] as though you'd suddenly swallowed a bright piece of that late afternoon sun and it
burned in your bosom, sending out a little shower of sparks into every particle, into every finger and toe”.
72
Texto original: “There was a tall, slender pear tree in the fullest, richest bloom: it stood perfect, as though
becalmed against the jade green sky. Bertha couldn't help feeling, even from this distance that it had not a
single bud or a faded petal”.
A pereira sugere a Bertha uma imagem de sua própria vida, e não por acaso ela
trajava naquela noite especial “um vestido branco, um colar de contas de jade, sapatos
verdes e meias de seda” (p. 33).
73
A árvore, símbolo fálico por excelência, com suas flores
todas abertas, insinua uma metáfora da sexualidade de Bertha, que desabrocha nesse dia.
Metaforicamente, é possível sugerir que Bertha é a própria árvore, o que se nota quando
lemos a passagem em que “as pregas do vestido farfalharam suavemente entrando no
vestíbulo” (p. 33, ver nota).
74
Enquanto admira a pereira, Bertha percebe, numa visão
aziaga, que “um gato cinzento, arrastando-se pelo chão, atravessou furtivamente o
gramado, seguido por um gato negro, como se fosse a sua sombra. A passagem dos dois
gatos, tão precisa e rápida, provocou em Bertha um estranho arrepio” (p. 31).
75
E somente
mais tarde, esse mau presságio é compreendido pelo leitor.
Nathan afirma que “Bliss” é “mais uma das histórias de Katherine Mansfield
iluminada por uma epifania” (1988, p. 73).
76
E a técnica narrativa da contista nos permite
acompanhar todo o processo de transcendência por que passa a personagem, até o desfecho
da história. Durante o dia, Bertha esteve conectada à sua casa; ao seu marido; à sua filha; a
si mesma, cuja face refletida no espelho lhe “devolveu uma mulher radiante, com lábios
que sorriam, que tremiam, e olhos grandes, escuros, e um ar de escuta, de expectativa de
que alguma coisa... divina acontecesse” (p. 25)
77
e também à natureza, através da pereira.
À noite, durante o jantar, sua sensação é de que nunca as pessoas estiveram tão bem-
vestidas e de que a cozinheira preparou um jantar delicioso.
As conexões de Bertha prosseguem com seus convidados: os Norman Knights,
73
Texto original: “A white dress, a string of jade beads, green shoes and stockings”.
74
Texto original: “[...] her petals rustled softly into the hall”. A tradução literal da palavra inglesa petals, em
português, é pétalas.
75
Texto original: “[...] a gray cat, dragging its belly, crept across the lawn, and a black one, its shadow,
trailed after. The sight of them, so intent and so quick, gave Bertha a curious shiver”.
76
Texto original: “This is another of Mansfield’s stories that is illuminated by an epiphany”. Essa e as outras
traduções que se seguem da obra de Rhoda Nathan foram todas feitas por mim.
77
Texto original: “[...] it gave her back a woman, radiant, with smiling, trembling lips, with big, dark eyes
and an air of listening, waiting for something ... divine to happen...” .
Eddie Warren e Pearl Fulton. Os primeiros constituíam um “casal sólido ele ia abrir um
teatro, ela era entusiasmada por decoração de interiores” (p. 29).
78
A esposa Norman
Knight é descrita como hilária num “casaco laranja dos mais divertidos, com uma fileira
de macacos pretos em volta da bainha e subindo pela frente” (p. 33)
79
e seu “enorme
monóculo de aro de tartaruga” (p. 34).
80
Eddie Warren, por sua vez, é caracterizado como um homem magro, pálido e
bastante aflito, escritor e dramaturgo, homossexual. Em português, a palavra inglesa
“warren”, sobrenome de Eddie, significa “coelheira”, segundo o Minidicionário Ridel
(2003, p. 187), isto é, local onde procriam os coelhos, o que se pode ler como uma alusão à
fertilidade dos pensamentos renovadores de Eddie, pois o coelho, na cultura cristã, é
símbolo de renovação, de vida nova. Essa assertiva se comprova com a nota 5 de Ana
Cristina, na qual a tradutora se refere, a partir do ensaio de Marvin Magalaner, intitulado
“Traces of her ‘self’, in Katherine Mansfield’s ‘Bliss’” (“Traços do seu ‘eu’, em ‘Bliss’, de
Katherine Mansfield”), às idéias significativas do personagem, à alusão que este faz a dois
poemas de Bilks que retratam o momento histórico-cultural em que “Bliss” foi produzido,
quando: “os novos escritores são conclamados a abandonar o estilo romântico pelo realista
e esse apelo é visto como uma necessidade de se vomitar em cima da literatura
contemporânea” (MAGALANER citado por CESAR, 1988, p. 54-55).
No entanto, a conexão mais significativa de Bertha se com Pearl Fulton, uma
recente amiga por quem a protagonista se sente fortemente atraída. Ao recebê-la, o contato
com o braço quente de Pearl despertou novos sentimentos em Bertha: “O que é que havia
no contato com aquele braço que atiçava – incendiava incendiava – o fogo do êxtase que
78
Texto original: “[...] a very sound couple he was about to start a theatre, and she was awfully keen on
interior decoration”.
79
Texto original: “[...] amusing orange coat with a procession of black monkeys round the hem and up the
fronts”.
80
Texto original: “[...] a large tortoiseshell-rimmed monocle”.
Bertha não sabia como exprimir e o que fazer daquilo?” (p. 38).
81
Durante o jantar, com
sua forma indireta de olhar as pessoas e seu meio sorriso, a enigmática Pearl parece
distante e misteriosa. Somente mais tarde ela vai dar o “sinal” pelo qual Bertha aguardou
toda a noite, quando a convida para ver o jardim: e as duas mulheres se deixaram ficar ali,
lado a lado, olhando para a esguia árvore em flor.
A narrativa prossegue: Bertha percebe que, logo, seus convidados irão embora,
então ela e seu marido estarão “sozinhos, juntos, no quarto escuro, na cama quente...” (p.
45)
82
e “pela primeira vez na vida Bertha Young desejou o seu marido” (p. 45).
83
Assim,
pode-se afirmar que, naquele dia, Bertha deseja tanto Pearl como Harry. Nesse momento,
através de Bertha, Mansfield tematiza a questão da homossexualidade feminina que,
somente décadas mais tarde, viria a ser assunto de debate da crítica literária e ocuparia a
cena da escritura de caráter ficcional.
No entanto, eis que surge um acontecimento, um foco de instabilidade, uma
perturbação que acomete a protagonista e que a traz de volta à realidade. Logo após o
desejo intenso que Bertha sente por seu marido, quando os convidados estão partindo, ela
Harry muito próximo de Pearl, e os lábios dele quando este diz: “Eu te adoro” (p.
48),
84
e depois o sussurro: “Amanhã” (p. 48),
85
e Miss Fulton responde com os olhos:
“Sim” (p. 48). Com esse desfecho trágico, inesperado, cumpre-se a intuição profética de
Bertha: e Pearl “partiu, Eddie atrás, como o gato negro seguindo o gato cinzento” (p. 49).
86
É interessante ressaltar que, mais uma vez, percebe-se aqui o entrelaçamento entre
vida e obra. Em Diário e Cartas (1996, p. 209-210), lemos que, em dezembro de 1920
(ano em que “Bliss” foi publicado), enquanto Mansfield se encontrava em Menton
81
Texto original: “What was there in the touch of that cool arm that could fan fan – start blazingblazing
– the fire of bliss that Bertha did not know what to do with?”.
82
Texto original: “[...] alone together in the dark room – the warm bed”.
83
Texto original: “[...] for the first time in her life Bertha Young desired her husband”.
84
Texto original: “I adore you”.
85
Texto original: “Tomorrow”.
86
Texto original: “[...] she was gone, with Eddie following, like the black cat following the grey cat”.
(fronteira franco-italiana), fugindo do inverno inglês, a contista recebeu uma carta escrita
por Bibesco (princesa e filha do Conde de Oxford, esposa de um aristocrata romeno), que
“sugeria ‘intimidades’ entre ela (Bibesco) e Murry”, marido da contista (p. 209). Nesta, a
princesa perguntava a Mansfield: “como uma mulher doente, na França, e totalmente sem
possibilidade de vida ou felicidade para Murry, como ousava ela tentar segurá-lo?” (p.
209). Os escritos de Mansfield desse período comprovam que ela ficou profundamente
ferida com esse acontecimento.
Cerca de 60 anos mais tarde, o mesmo ocorreu com Ana Cristina. Durante sua
estadia na Inglaterra, ela conheceu Chris, um rapaz com quem a tradutora manteve um
namoro tranqüilo. No entanto, segundo Italo Moriconi, em Ana Cristina Cesar: O Sangue
de Uma Poeta (1996), esse relacionamento terminou de forma desconcertante, pois Ana
Cristina o encontrou com a proprietária da casa onde alugava o quarto em Londres. “Ironia
máxima”, segundo Moriconi, visto que “a cena reproduzia na vida real a situação do conto
“Bliss” [...] que Ana tinha passado o ano traduzindo” (1996, p. 128).
A narrativa de Mansfield prossegue: após seu contato íntimo com Harry, Pearl se
aproximou de Bertha e exclamou: “Que linda sua árvore!” (p. 49).
87
As palavras da
convidada ficaram ressoando na mente da protagonista: “Sua árvore linda linda linda”
(p. 49).
88
Atordoada com a traição do marido, Bertha questiona a si mesma: “E agora, o
que vai acontecer?” (p. 49).
89
Bertha olhou a pereira e a viu ali, no fundo do jardim, tão
bela quanto antes: “Mas a árvore continuava tão bela e florida e imóvel como sempre” (p.
49).
90
Assim termina o conto, de forma inconclusiva, reticente. Quando lemos essa frase
final, a história parece continuar ecoando na nossa consciência, mesmo depois de
interrompida a narração. No entanto, torna-se necessário analisarmos alguns pontos que
87
Texto original: “Your lovely pear tree!”.
88
Texto original: “Your lovely pear tree – pear tree – pear tree!”.
89
Texto original: “Oh, what is going to happen now?”.
90
Texto original: “But the pear tree was as lovely as ever and as full of flower and as still”.
estão além da palavra escrita, que se escondem e parecem encobertos pela língua.
Primeiramente, consideraremos o símbolo focal de “Bliss”, ou seja, a pereira, sendo
necessário analisarmos mais cuidadosamente esse elemento que foi escolhido de forma
criteriosa por Mansfield. Nathan sugere que os símbolos escolhidos pela contista para
compor seus contos “sustentam o significado da autora para além de suas funções limites e
servem para resolver um problema ou esclarecer um conflito ou iluminar um tema dentro
do enredo (1988, p. 67, grifo nosso).
91
Como afirmamos, “Bliss” possui alguns elementos de cunho autobiográfico, e não
podemos deixar de mencionar que a natureza sempre exerceu uma forte influência em
Mansfield, alterando até mesmo seu estado de humor. O diário e as cartas escritas por ela
confirmam a presença dos elementos da natureza em sua vida. Em uma das cartas enviadas
a J. M. Murry, escrita a 23 de dezembro de 1917, época em que escrevia “Bliss”,
Mansfield declara: “Sinto que, realmente, o que me resta a fazer é ir à procura do sol para
me cobrir de folhinhas tenras e florir” (s/d, p. 94). Talvez a exuberância, vitalidade e
fertilidade daquela pereira em flor, pronta para encher-se de frutos, com a qual Bertha se
identifica, cause em Mansfield a mesma admiração. Mesmo combalida e enferma, a autora
demonstra em seus escritos pessoais um grande desejo de viver, de lutar para vencer sua
doença. Ainda, é interessante analisarmos que todo aquele êxtase que dominou Bertha se
deu por uma justificativa que nos é apresentada pela protagonista: “Eu estou ficando louca.
Louca!” E ela sentou-se; mas sentia-se tonta, bêbada. Devia ser a primavera. Claro, era a
primavera” (p. 32, grifo nosso).
92
A primavera provocava em Bertha, assim como em
Mansfield, um sentimento de intensa alegria. Um dado interessante a ser ressaltado é que
“Bliss” foi escrito basicamente nessa estação do ano.
91
Texto original: “They are also frequently marked by epiphanies experienced by the characters serving as
centers of sentience in each case. In these stories there is a moment of insight generated by a focal symbol
such as the pear tree in “Bliss” [...] These carefully chosen symbols carry the author’s meaning beyond their
finite function and serve to solve a problem or clarify a conflict or illuminate a theme within the plot”.
92
Texto original: “I’m aburd. Absurd!” She sat up; but she felt quite dizzy, quite drunk. It must have been
the spring. Yes, it was the spring”.
Nesse sentido, é importante verificarmos algumas possíveis leituras da pereira em
“Bliss”, e encontrarmos significados mais sugestivos para a sua presença no texto. A
primeira aparição da pereira se quando Bertha a das janelas da sala num lindo
jardim, em cujos canteiros havia tulipas amarelas e vermelhas, que se inclinavam sob o
próprio peso contra a penumbra da tarde. Essa imagem nos remete ao livro bíblico de
Gênesis, e ao Jardim do Éden criado por Deus e dado a Adão e Eva. Numa analogia,
Bertha também acredita viver num paraíso, refugiada de todas as maldades do mundo
exterior, e sua inocência não a faz imaginar a presença de uma “serpente”, travestida de
“anjo de luz” (visto que, nessa noite, Pearl estava toda iluminada, seu cabelo muito louro e
trajada de prateado), para desfazer toda aquela fantasia, aquele mundo imaginário que ela
própria criou. Ainda, pode-se inferir que Pearl simboliza o fruto proibido da árvore da
sabedoria que Deus ordenou a Adão e Eva que não comessem. E assim como aquele fruto
despertou em Eva novos sentimentos, Bertha, em seu contato com Pearl, sentiu
desabrochar em si o desejo homoerótico.
Além disso, no momento em que Bertha e Pearl contemplam a pereira, sob o luar,
que corresponde ao ápice da tonalidade erótica de “Bliss”, pode-se afirmar que o
homoerotismo despertado em Bertha a leva ver aquela pereira como símbolo do objeto de
seu desejo, Pearl, cujas quatro primeiras letras formam, em inglês, a palavra pear que, em
português, significa pereira.
Ainda há outras possibilidades de leituras, visto que pear tree sugere a formação da
expressão pair tree, considerando-se que pear e pair são vocábulos de pronúncia idêntica
em inglês, o que proporciona um jogo de palavras em português. Ana Cristina refere-se,
novamente, ao ensaio de Magalaner, no qual o autor afirma que “a relação de Bertha com
Pearl fruto híbrido e místico da única pereira do jardim (ou árvore-par) tem seu
contraponto na criação e forte presença literária de personagens que aparecem aos pares,
no decorrer da história” (MAGALANER citado por CESAR, 1988, p. 66). Como
Magalaner inferiu, é interessante ressaltar que pair significa par em português e, em
“Bliss”, os personagens nos são apresentados aos pares, como o Sr. e a Sra. Norman
Knight, podendo simbolizar também os casais Bertha-Harry, Harry-Pearl e Pearl-Bertha.
Numa outra reflexão, nascida durante o processo de orientação desta dissertação, pode-se
inferir que pear tree nos possibilita pensar na expressão pair three, considerando-se ser
idêntica a pronúncia de pear e pair e a dificuldade que alguns falantes do inglês como
língua estrangeira têm de distinguirem o fonema th /θ/ do fonema t /t/. Isso faz com que,
muitas vezes, o último substitua o primeiro. Em português, pair three poderia remeter a
“par de três”, sugerindo, portanto, o triângulo amoroso da história, formado por Bertha,
Harry e Pearl. Na verdade, vale lembrar que, inicialmente, o conto nos apresenta um
triângulo constituído por Bertha, o bebê e a babá, e é interessante que, em ambos,
sempre um terceiro elemento, aquele que se faz presente para desconstruir a harmonia
estabelecida, o extra que apenas desestabiliza a constituição perfeita do par. No primeiro
caso, a babá intrusa e possuídora, que toma dos braços de Bertha seu bebê e domina a
situação; no segundo, Pearl Fulton, que aparece para abalar a ordem conjugal e
sentimental de Bertha.
Diante do que acabamos de dizer, parece ficar mais explícita a alegação que
fizemos anteriormente, de que Mansfield antecipa algumas das principais preocupações da
pós-modernidade, que vieram à tona 50 anos após a publicação do conto, a saber: a
impossibilidade de se fixar papéis imutáveis para os seres humanos ao longo de sua
existência. Dessa forma, também a homossexualidade implícita de Bertha Young e a
explícita de Eddie Warren, sobre a qual nos deteremos mais adiante, apontam para a
liminaridade desses dois personagens, que transitam por um espaço intermediário, entre o
ser e o não ser, ressaltando, assim, a permeabilidade das fronteiras de gênero.
Outra questão presente em “Bliss” é a condição da mulher na sociedade inglesa
pós-vitoriana. Virginia Woolf, em A Room of One´s Own (1985), denunciou a situação da
mulher inglesa, seu parco acesso à educação e ao mercado de trabalho. Confinada ao
mundo doméstico e à procriação ter cerca de treze filhos era natural (1985, p. 22), era
praticamente impossível que a mulher inglesa aprimorasse sua vocação artística e se
afirmasse como sujeito de sua história.
Mansfield, em consonância com a crítica de Woolf, retrata, através de Bertha, o
destino imposto à mulher por séculos de opressão, a cegueira aparente em que vivia, a
pequenez de seu cotidiano, e o seu estado de alienação e insatisfação. Também esse é o
principal interesse da crítica feminista: debater a posição de prestígio e autoridade que os
homens, durante séculos, ocuparam em relação às mulheres, questionar a identidade
feminina definida pelo discurso patriarcal, suas concepções, mitos e estereótipos acerca
das mulheres.
Assim, Mansfield descreve uma mulher vítima do sistema patriarcal, que se
encontra totalmente despreparada para enfrentar os problemas e que não sabe como reagir
diante dos conflitos pessoais e sociais. Bertha, que tem 30 anos mas ainda é “Young”, é
descrita como despreparada e ineficiente, encontrando dificuldades até mesmo para cuidar
do seu bebê, e se vê sujeita às ordens da babá, como na passagem em que ela percebe, pela
fisionomia da nanny, que “havia chegado outra vez no momento errado” (p. 26).
93
Ao
saber que o bebê havia puxado a orelha de um cachorro desconhecido no parque, ela
desejou questionar à babá se isso não seria perigoso para a criança, “mas não ousava, e
ficou ali, olhando, as mãos abanando, como a menininha pobre em frente da menininha
rica com a boneca” (p. 27).
94
E ao pedir à babá que a deixasse alimentar a filha,
passivamente Bertha ouviu a repreensão: “Agora, não a excite depois do jantar. A senhora
93
Texto original: “[...] she had come into the nursery at another wrong moment”.
94
Texto original: “But she did not dare to. She stood watching them, her hands by her side, like the poor
little girl in front of the rich little girl with the doll”.
sabe. Depois ela me um trabalho!” (p. 27).
95
Portanto, Bertha tem pouco contato com
seu bebê, visto que ele estava todo o tempo sob os cuidados da babá. Ao ser chamada ao
telefone, a nanny “voltava triunfante e agarrava a sua pequena B” das mãos de Bertha (p.
28).
96
O grifo da autora, salientado por Ana Cristina, sugere a ambigüidade
propositalmente inserida no possessivo: na verdade, a babá tinha a pequena B. como sua.
Em outro momento, mais uma vez Bertha se mostra incapaz de quebrar as regras às quais
estava submetida: ao conversar com Harry ao telefone, ela repreende seu desejo de
expressar quão feliz ela se sentia naquele dia:
“Ela não podia exclamar como louca, “Não foi um dia divino?”
“Que foi?” martelou a vozinha do outro lado.
Nada. Entendu”, e Bertha desligou considerando que a civilização era
muito mais que meramente idiota (p. 29).
97
Ao responder usando o termo francês Entendu, numa língua que não é a sua, mais uma vez
Bertha expressa sua fraqueza, sua incapacidade de revelar seus verdadeiros sentimentos. O
comportamento da protagonista é característico de alguém que vivia e se comportava
segundo as normas coletivas preestabelecidas, ou seja, as normas daquela sociedade
machista. Além disso, Bertha se dedica ao bom desempenho de suas tarefas: preocupa-se
com a organização da casa, atividade para a qual, segundo concepções patriarcalistas, as
mulheres geralmente têm um dom “natural”, com os cuidados da filha e com o sucesso
profissional de seu marido.
No entanto, é possível perceber em “Bliss” a não aceitação de Bertha do papel
social que lhe foi previamente estabelecido. Ana Cristina ressalta a especificidade da
técnica narrativa de Mansfield concernente às mudanças marcantes de tom na narrativa,
que ora tende para o poético e ora para o prosaico, quando a narradora nos revela seu olhar
95
Texto original: “Now, don't excite her after her supper. You know you do”.
96
Texto original: “[...] coming back in triumph and seizing her Little B”.
97
Texto original: “She couldn't absurdly cry: `Hasn't it been a divine day!' `What is it?' rapped out the little
voice. `Nothing. Entendu, said Bertha, and hung up the receiver, thinking how more than idiotic civilization
was”.
de ironia. Sem dúvidas, o tom irônico que perpassa o conto “Bliss” não é casual, pois nos
desvenda o inconsciente de Bertha.
Descrita como uma típica mulher burguesa, Bertha tem, segundo a sociedade da
época, “tudo” para ser feliz: “não havia que se preocupar com dinheiro” (p. 32),
98
visto que
“a casa e o jardim eram absolutamente satisfatórios” (p. 32),
99
completos com empregada,
cozinheira e babá. Ela usava belas roupas e jóias de jade, tinha livros, ouvia boa música, o
que sugere que freqüentava os concertos. Ainda, Bertha e Harry eram membros de um
clube, tinham amigos inteligentes e “uma ótima costureirinha recém-descoberta, e eles iam
viajar para o exterior no verão” (p. 32).
100
Dessa forma, não deveria haver motivos para
insatisfação e Bertha devia se sentir realizada em seu gratificante papel de esposa e mãe,
servindo às necessidades da família.
A protagonista expressa como as pequenas coisas a agradam. Ela demonstra o
prazer que sente em preparar um arranjo de frutas para combinar com os tons do novo
carpete da sala de estar: “Eu preciso daquelas uvas vermelhas para puxar o tapete para a
mesa” (p. 25).
101
Esse simples dever que consiste em dar uma arrumação elegante às frutas
suscita em Bertha uma reação emocional que beira o histérico. No entanto, é preciso que o
leitor esteja atento à sensibilidade de Mansfield, para captar o seu tom irônico. O
desenrolar da narrativa nos revela que, apenas inicialmente, Bertha expressa esse estado de
espírito, pois a ironia da narradora sugere que, na verdade, ela não tem uma vida assim tão
satisfatória. Bertha sente que suas lindas roupas, a casa, seus bens, enfim, sua vida, na
verdade não lhe satisfazem. Ela apenas vive mais confortavelmente dia após dia e isso é
tudo o que conhece ser a felicidade, que se limitava, principalmente, à sua segurança
financeira.
98
Texto original: “[...] they didn't have to worry about money”.
99
Texto original: “[...] absolutely satisfactory house and garden”.
100
Texto original: “[...] and she had found a wonderful little dressmaker, and they were going abroad in the
summer”.
101
Texto original: “I must have some purple ones to bring the carpet up to the table”.
As constantes e enfáticas afirmativas de quão feliz Bertha se sente na verdade
sugerem que ela está escondendo seus verdadeiros sentimentos de si mesma. As relações
interpessoais que mantém com os amigos ajudam-na a preencher o vazio de sua existência,
contribuem para a calma aparente de sua vida e colaboram para que ela possa seguir
tranqüila o destino de mulher que lhe foi traçado. Além disso, o viver para os outros
marido, filha, amigos a impede de compreender melhor sua existência, e de empreender
um mergulho para dentro de si mesma. Os fatos descritos no decorrer da narrativa
expressam seu “ar de revolta contra os códigos da civilização” (1988, p. 17), segundo Ana
Cristina. Por exemplo, Bertha demonstra sua indignação por ter pouco contato com seu
bebê, visto que ele estava todo o tempo sob os cuidados da babá: “Que absurdo tudo
aquilo. Para que então ter um bebê se é preciso mantê-lo guardado [...] nos braços de outra
mulher?” (p. 27).
102
Ainda sobre a ironia presente em “Bliss”, é relevante analisarmos a nota 34 de Ana
Cristina:
Depois de ter visto “a maravilhosa árvore do jardim, completamente em
flor, como um símbolo de sua própria vida”, Bertha mergulha num
processo de ampla racionalização a respeito das causas de sua felicidade
(jovem... se amavam... um bebê adorável... dinheiro... casa e jardim...
amigos envolventes... livros... música... ótima costureirinha e
cozinheira... férias...) e termina pensando em omeletes fantásticas
ironia maliciosa por parte de KM. (1988, p. 68, grifo nosso).
A insatisfação da protagonista é perceptível no início da história, quando Bertha
questiona: “Para que então ter um corpo se é preciso mantê-lo trancado num estojo, como
um violino muito raro?” (p. 24).
103
Metaforicamente, Bertha é um instrumento musical que
nunca foi tocado, que permanece fechado num estojo. Assim, não lhe era permitido
expressar seus sentimentos, muito menos sua sexualidade. Após desejar ardentemente seu
marido, Bertha exclama duas vezes, em voz alta, próxima ao piano: “Que pena que
102
Texto original: “How absurd is was. Why have a baby if has to be kept [...] in another woman´s arms?”
103
Texto original: “Why be given a body if you have to keep it shut up in a case like a rare, rare fiddle?”.
ninguém toca!” (p. 45).
104
Nesse momento, ela é o instrumento musical que deseja,
ardorosamente, o “toque” de seu marido. No entanto, Harry é caracterizado como
impassível, indiferente aos sentimentos da esposa. A harmonia que Bertha deseja é a
satisfação do seu êxtase sexual, que nunca ocorrera.
O clímax da história atesta a natureza dúbia de Harry, que fingia todo o tempo não
gostar de Pearl. A constante implicância com a convidada na verdade era uma tática para
encobrir seu relacionamento adúltero. Harry descreve Pearl a Bertha como “fria como
todas as louras, talvez com um toque de anemia cerebral” (p. 30).
105
Quando Bertha diz que
alguma coisa por trás da postura e do sorriso de Pearl, Harry diz que é “muito
provavelmente um bom estômago” (p. 30).
106
No conto, a luxúria de Harry e seu desejo por Pearl estão presentes nas referências
que ele faz às imagens de prazer oral, que se traduz em termos de alimento em “Bliss”,
expressas pelo personagem enquanto degustava seu jantar com prazer. Sobre essas
constantes imagens, Ana Cristina faz um comentário sugestivo na nota 5, citando o ensaio
de Magalaner, aqui parcialmente transcrito:
A fascinação de Harry por Pearl Fulton se esconde atrás de palavras: ele
se expressa com grande facilidade ao falar sobre comida e não esconde
sua ‘paixão desenfreada pela carne branca da lagosta’, por ‘sorvetes de
pistache verdes e frios como as pálpebras das dançarinas egípcias’,
predileção essa que remete o leitor a uma referência na mesma página
sobre as pálpebras de Miss Fulton, que ‘se fecharam pesadamente’
(MAGALANER citado por CESAR, 1988, p. 54).
Embora caracterizado como um grosseirão e, muitas vezes, ridículo, e não ser um
companheiro e um pai amoroso, Harry é descrito como competidor, sagaz, astuto, um bom
provedor, pois, financeiramente, nada falta à sua família, o que se revela por “sua paixão
pela luta por procurar em tudo que lhe aparecia pela frente mais um teste do seu poder e
104
Texto original: “What a pity somebody does not play!”.
105
Texto original: “[...] cold like all blonde women, with a touch, perhaps, of anaemia of the brain”.
106
Texto original: “Most likely it's a good stomach”.
da sua coragem” (p. 36-37).
107
É interessante ressaltar que Bertha sente verdadeira
admiração por essas qualidades do marido e, em contraposição, ela é descrita como frágil,
inocente, uma pessoa que não sabe reagir diante de uma situação conflituosa, pois não foi
educada social e mentalmente para enfrentar problemas. A descoberta da traição do marido
revela-nos uma mulher desprovida de força emocional e iniciativa. Ao se questionar: “E
agora, o que vai acontecer?”, possivelmente Bertha não estava incomodada por perder o
marido, mas por ter agora que vivenciar uma experiência totalmente inusitada para uma
pessoa acostumada e acomodada a uma vida estável e equilibrada. Vimos que Bertha
prefere a pretensa estabilidade de seu lar a encarar a realidade, inclusive ela “mal ousava se
olhar no espelho gelado” (p. 24),
108
e quando o faz, vê apenas uma imagem superficial, não
buscando um contato com seu próprio ser, com seu íntimo, preferindo ver-se sob o olhar
do outro, ao invés de buscar conhecer a si mesma. Assim, não se pode confirmar o que
Bertha fez diante dessa nova situação, pois o conto termina de forma inconclusiva. No
entanto, a visão final da pereira, que “continuava tão bela e florida e imóvel como sempre”
(p. 49),
109
talvez possa ser interpretada como uma fonte de inspiração para Bertha, capaz de
lhe dar poder e vitalidade para lutar por uma nova vida. Essa tomada de consciência talvez
seja capaz de despertar na personagem um forte desejo de se libertar daquele mundo falso
e fútil que a privava de expressar seus reais sentimentos, e que a confinava a uma vida tão
impessoal, a uma ilusão de felicidade.
Portanto, Mansfield, através de “Bliss”, antecipa o pensamento libertador feminista
de Virginia Woolf, expresso na obra A Room of One´s Own, de 1928, e num tom
anunciatório ressalta o que viria a ser, mais de duas décadas depois, tematizado por
Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, publicado originalmente em 1949. Em
107
Texto original: “[...] his passion for fighting--for seeking in everything that came up against him another
test of his power and of his courage”.
108
Texto original: “She hardly dared to look: into the mirror”.
109
Texto original: “[...] the pear tree was a lovely as ever and as full of flower and as still”.
consonância com o pensamento teórico dessas autoras, “Bliss” é um conto que nos permite
uma leitura livre de preconceitos, pois ressalta que a mulher tem o direito e a oportunidade
de buscar sua felicidade e libertação, de fazer suas escolhas sem estar condicionada à visão
masculina.
Para Nathan: “A conclusão ambígua da história confirma que a “conexão” que ela
(Bertha) finalmente estabeleceu com sua adormecida sexualidade é válida, embora
atrasada, e que ela persistirá, mesmo tendo sido privada de sua realização (1988, p. 75,
grifo nosso).
110
A autora ressalta ainda que: “a lamentosa pergunta final de Bertha: ““E
agora, o que vai acontecer?”, permanece suspensa no ar, reforçando a ambigüidade
intencional de Mansfield (p. 75, grifo nosso).
111
Assim, as palavras da estudiosa nos levam
a considerar que o descortínio da sexualidade de Bertha, que estava apenas adormecida, a
levará à busca de sua identidade, escondida por trás de regras e imposições sociais
estabelecidas por homens, forjadas para aprisioná-la. Esse viés desconstrutor do
patriarcalismo, presente em “Bliss”, pode ter sido a gênese do interesse de Ana Cristina
pelo conto. Para tal confirmação, consideraremos sua tradução e paratextos (prefácio e
notas), visto que estes são reveladores do posicionamento crítico da tradutora.
3. 3 – “Bliss” em tradução
Escolhi não apenas o comprimento de cada
frase, mas até mesmo o som de cada frase.
Escolhi a cadência de cada parágrafo, até
conseguir que eles ficassem inteiramente
ajustados às frases, criados para elas naquele
exato dia e momento. Depois, leio o que escrevi
em voz alta inúmeras vezes –, como alguém
que estivesse repassando uma peça musical
tentando chegar cada vez mais perto da
110
Texto original: “[...] the story’s ambiguous conclusion confirms that the “connection” she has finally
made with her dormant sexuality is valid although belated, and that it will persist even though she has been
deprived of its fulfillment”.
111
Texto original: “Her final wailing question, “Oh, what is going to happen now?” remains suspended in the
air, reinforcing Mansfield’s intentional ambiguity”.
expressão perfeita, até lograr alcançá-la por
completo (MANSFIELD citada por CESAR,
1988, p. 10).
112
Foi em um quarto todo seu, na casa de Colchester, Inglaterra, que Ana Cristina
realizou a tradução de “Bliss”. Segundo Moriconi, nesse “lugar fixo, próprio, estável,
tranqüilo”, na verdade “uma espécie de simulacro material daquilo que significava para ela
(Ana Cristina) o quarto do apartamento (de seus pais) da Tonelero” (1996, p. 128), a poeta-
tradutora realizou sua dissertação de mestrado intitulada “O Conto ‘Bliss’, Anotado”, com
a qual obteve o grau de mestre with distinction, na Universidade de Essex (1979-1981), “a
primeira ‘distinction’ que o programa de tradução daquela universidade ganhava em anos”,
ressalta Moriconi (p. 128).
A tradução de Ana Cristina do conto de Mansfield não foi realizada com o intuito
de ser publicada. Ao redigi-la, e suplementá-la com prefácio e 80 notas, sua preocupação
foi puramente acadêmica. Segundo Ana Cristina, se fosse publicar sua dissertação, apenas
a nota 1 seria incluída. Postumamente, sua mãe, Maria Luiza Cesar, reuniu os estudos
tradutórios de Ana Cristina, entre eles a dissertação “O Conto ‘Bliss’ Anotado”, e os
publicou na obra Escritos da Inglaterra (1988). Na contracapa, Maria Luiza Cesar faz a
seguinte citação à tradução realizada pela filha do conto “Bliss”:
Ao longo de todo o trabalho ela (Ana Cristina) vai contando as
dificuldades que teve e as soluções que encontrou dentro das sutilezas de
cada língua, quais os vícios que tentou evitar, as repetições que inventou
para não truncar as frases em português, os pronomes que precisou
eliminar para não cair em transcrições literais. Explica, enfim, o que é
traduzir, demonstrando pela palavra escrita o respeito dos que trabalham
com ela e permitindo ao leitor brasileiro vislumbrar essa paisagem tão
diferente – e tão bonita – que é a língua inglesa.
Portanto, a técnica desenvolvida por Ana Cristina a levou a elaborar como
112
Essa e outras citações que se seguem à obra de Katherine Mansfield, que serviram de epígrafes à
dissertação “O Conto ‘Bliss’ Anotado”, publicado em Escritos da Inglaterra (1988), foram extraídas pela
tradutora de cartas escritas por Mansfield a seu marido John Middleton Murry.
dissertação de mestrado uma tradução comentada, rica em notas de pé de página, nas quais
tece considerações sobre a própria tradução, declara sua preocupação constante com o tom,
o estilo e as expressões idiomáticas, possibilitando ao leitor uma análise sobre o próprio
ato de traduzir.
Com esse trabalho, Ana Cristina comprova que a prática tradutória requer criação e
renovação, pois sua atividade não se caracteriza pela transposição objetiva, fato que torna
o/a tradutor/a invisível em sua releitura ou reescrita. Ao contrário, Ana Cristina ressalta,
através de teoria e prática, que a tradução se refere mais corretamente a uma apropriação, a
uma reescrita do texto por meio da qual novos significados são forjados, devido à interação
de linguagens. Em sua tradução, percebe-se que novas leituras emergem a partir dos
resvalos, das margens e suplementações resultantes do confronto entre as culturas e as
línguas. Pode-se afirmar que Ana Cristina, em sua tradução, reconstrói a trama
imprimindo-lhe traços pessoais, como sugere o mito de Penélope.
Em fevereiro de 1980, época em que se encontrava na Inglaterra e redigia sua
tradução de “Bliss”, Ana Cristina escreveu o ensaio “Pensamentos Sublimes sobre o Ato
de Traduzir”, publicado na obra Crítica e Tradução (1999, p. 233-240), no qual ela aborda
a tradução literária. Segundo ela:
Há dois movimentos possíveis no ato de traduzir.
1) um movimento tipo missionário-didático-fiel, empenhado no
seu desejo de educar o leitor, transmitir cultura, tornar acessível o que
não era. As variações vão desde o trot (=tradução literal, palavra a
palavra, ao do original) à versão literatizada. Tentação recorrente (ou
às vezes recurso inevitável): explicar o original mais do que ele se
explicou, acrescentar vínculos que estavam silenciados, em suma,
inflacionar o texto original.
2 ) Um movimento não empenhado, livre de preocupações com o
leitor iletrado ou de um projeto ideológico definido, que inclua digamos a
importância de divulgar fulano no país. As variações vão desde bobagens
e exercícios de pirotecnia, equivalentes adestrados do trot
compromissado com o leitor, àquela coisa fascinante que são as
“imitações” – o acesso de paixão que divide o tradutor entre a sua voz e a
voz do outro, confunde as duas, e tudo começa num produto novo onde a
paixão é visível mas o nome tradução, com seus sobretons de fidelidade
matrimonial, vacila na boca de quem lê (Robert Lowell tem um belo livro
chamado Imitations, em que ele imita os seus queridos) (1999, p. 233-
234).
Considerando-se as notas presentes em “O Conto ‘Bliss’ Anotado”, pode-se afirmar que
Ana Cristina traz à língua portuguesa uma versão pessoal do texto de Mansfield usando, de
forma recorrente, “o recurso inevitável” por ela mencionado: em todo o conto, Ana
Cristina busca “explicar o original mais do que ele se explicou, acrescentar vínculos que
estavam silenciados, em suma, inflacionar o texto original”. Através de suas notas, ela
transmite aos seus examinadores a cultura e o conhecimento da língua inglesa que possuía,
enriquecendo o texto-fonte, suplementando-o, numa visão derrideana. Portanto, nosso
maior interesse na análise da tradução de Ana Cristina do conto “Bliss” é buscar, através
do prefácio e das notas por ela acrescentados ao texto original, marcas de sua postura
crítico-literária e de seu gênero.
O prefácio e as notas de de página inseridos por Ana Cristina adquirem grande
importância em sua tradução, assumindo um caráter primordial, o status de “suplemento”,
segundo a proposta desconstrutivista de Jacques Derrida, para quem os paratextos são tão
relevantes quanto o corpo principal. No caso do texto produzido por Ana Cristina, os
paratextos possibilitam ao leitor maior compreensão do texto-fonte, ampliando-o e
conferindo-lhe novos significados, graças às citações referentes à cultura e à língua
inglesa.
Como enfatizado por Sherry Simon (1996) e Douglas Robinson (1995), o prefácio
é uma das estratégias adotadas pelas tradutoras feministas, no qual elas tecem comentários
referentes à sua prática tradutória, informando ao leitor os desvios por elas cometidos a
favor de uma reescritura subversivamente feminina. Também o prefácio de Ana Cristina à
tradução do conto “Bliss” é direcionado para seu exercício tradutório. Ela o dividiu em
duas partes: na primeira, ela faz referência às notas de de página, classificando-as em
notas referentes aos problemas gerais de interpretação, aos problemas de sintaxe, às suas
escolhas idiossincráticas (como dicção e tom) e outras relacionadas aos problemas
estilísticos. Na segunda parte, intitulada “Tradução”, ela faz algumas análises acerca do
conto “Bliss” que se tornam necessárias para a compreensão de certas notas e as justifica.
Baseada em estudiosos da ficção narrativa, como Robert B. Heilman e Norman Friedman,
Ana Cristina utiliza seus conceitos teóricos para tecer comentários sobre seu objeto de
análise.
Nas 80 notas escritas por Ana Cristina, o leitor encontra referências às estratégias e
aos recursos por ela adotados ao longo de sua prática tradutória. Citando Nabokov, Ana
Cristina declara seu desejo de “que as traduções tenham muitas notas de de página,
notas que subam, como arranha-céus, até o topo das páginas, deixando entrever apenas a
tênue sugestão de uma linha de texto entre o comentário e a eternidade” (NABOKOV
citado por CESAR, 1988, p. 118). Suas notas abarcam as estratégias por ela adotadas ao
longo da tradução, e os recursos que se tornaram necessários à transposição do conto para
a língua portuguesa. Devido ao grande número, as notas foram publicadas ao final da
dissertação e se tornaram um recurso primordial para o processo tradutório, conforme
descreve Ana Cristina:
Aqui, as notas de de página, essencialmente discretas, são promovidas
à categoria da própria substância do texto. Trata-se, na realidade, de uma
dissertação formada por notas de de página, expressão essa que deixa
de ter propriedade, uma vez que as notas ultrapassam o espaço reduzido
de um de página e passam, efetivamente, a ocupar o lugar mais
privilegiado. Inicialmente, não tive essa intenção. Pretendia escrever um
ensaio geral sobre a tradução para o português do conto Bliss, de
Katherine Mansfield, completando-o com notas de de página, que
abarcariam problemas específicos. Mas o processo se subverteu
espontaneamente (ou se inverteu) e logo ficou evidente que as notas
haviam absorvido toda a substância primordial do ensaio “a respeito da
tradução”. Mais ainda: as oitenta notas acabaram ficando mais extensas
do que a própria história ou sua tradução e foram desvendando
gradualmente a forma como o processo de tradução se estava efetuando;
elas convergem, passo a passo, para os movimentos da mão e da mente
do tradutor, incluindo digressões que não são eruditas, problemas de
interpretação literária e algumas perplexidades sobre os próprios
personagens, que não puderam ser adeqüadamente resolvidas (1988, p.
12, grifo nosso).
As palavras acima citadas comprovam que o pensamento teórico-crítico de Ana
Cristina estava em perfeita consonância com os estudos pós-estruturalistas que se
desenvolviam nas décadas de 70 e 80. Conforme mencionado, Derrida enfatizava em
seus escritos a desestabilização dos conceitos binários tão valorizados pelo estruturalismo,
como a subversão das hierarquias original/tradução, texto/interpretação, etc. Derrida
pretendia que o comentário fosse além do texto, ou seja, que as margens ocupassem a
posição de centro – o “ex-cêntrico, o off-centro”, segundo Hutcheon (1991, p. 88).
Na tradução de Ana Cristina, conforme ela própria esclarece na citação acima, as
notas “ultrapassam o espaço reduzido de um pé de página e passam, efetivamente, a ocupar
o lugar mais privilegiado”. Citando Genette, poderíamos até mesmo questionar o caráter
paratextual das notas de Ana Cristina, visto que elas se situam em uma zona intermediária
entre texto e paratexto.
Essas notas espalhadas pelo texto tradutório de Ana Cristina são sinais evidentes da
fecundidade de suas pesquisas. Ao escrevê-las, a tradutora confessa que não pôde “evitar
algumas exclamações subjetivas (impróprias de um tradutor). Espero que o leitor atento e
culto releve o fato” (1988, p. 16). No entanto, veremos que notas que merecem atenção
especial, considerando-se que elas podem revelar o interesse de Ana Cristina pelo conto,
bem como o porquê de sua insistência em determinadas questões. Destas, duas que se
destacam, visto que enfatizam a preocupação da tradutora com a questão do gênero.
Não aleatoriamente, Ana Cristina optou por resgatar um conto escrito mais de
60 anos (considerando-se que a tradução se deu entre 1979 e 1981), mas cuja temática
retrata, e antecipa, questionamentos comuns à contemporaneidade, a saber, a dificuldade
de representação de papéis fixos, a reivindicação da possibilidade de se transitar entre
espaços, sem necessariamente se deter em um ponto específico, de se ocupar um espaço
liminar. Dessa forma, a tradução de Ana Cristina comprova que suas preocupações
reverberam os questionamentos acerca do gênero que emergiam na década de 70. Além
disso, devemos considerar a opção de Ana Cristina por um conto escrito por outra mulher
e, mais interessante, um conto de Mansfield, que foi educada dentro do padrão de moral
inglês da década de 20 do século passado, mas que viveu entre amores femininos e
masculinos.
Vimos que Ana Cristina traduziu “Bliss” num período pós-tropicalista, marcado,
principalmente, pela revolução sexual, em que o erotismo feminino e a homossexualidade
emergiam nos textos literários. Desse modo, as notas 1 e 41 do ensaio de Ana Cristina
ressaltam a preocupação da tradutora com a temática do gênero, apontando a questão do
homoerotismo da protagonista Bertha Young, bem como a homossexualidade masculina,
que se faz presente no conto através do personagem Eddie Warren. Para confirmar as
assertivas feitas, analisaremos nesse momento a nota 1, visto que esta seria a única que
Ana Cristina acrescentaria para os leitores brasileiros, caso sua tradução fosse publicada:
A tradução de título merece atenção especial. Não existe equivalente para
bliss, em português. Nos dicionários palavras com sentido
aproximado: felicidade, alegria, satisfação, contentamento, bem-
aventurança etc. Decidi usar a palavra êxtase, porque ela exprime uma
emoção que, ou ultrapassa a palavra felicidade ou é mais forte do que
ela (1988, p. 50).
É interessante ressaltar que foi Érico Veríssimo quem realizou a primeira tradução
de “Bliss” para a língua portuguesa, publicada na coleção Nobel, da Editora Globo. Em
sua tradução, Érico Veríssimo não fez qualquer menção ao porquê da tradução de “Bliss”
por “Felicidade”. Julieta Cupertino, que também traduziu esse conto para a língua
portuguesa, teve sua tradução publicada no livro Felicidade e Outros Contos (1991).
Nesta, Cupertino apresenta apenas três notas ao leitor, sendo a mais relevante a citada
abaixo, na qual a tradutora se refere à dificuldade que encontrou para efetuar a tradução do
título:
Tal como saudade em português, bliss é uma palavra inglesa sem
correspondente exato em outras línguas. Êxtase, felicidade total, euforia,
há muitas traduções possíveis, mas nenhuma atende a todas as nuances da
palavra original. Preferimos felicidade, simplesmente, por ser a opção
mais simples, não excessiva, embora fique faltando alguma coisa. (1991,
p. 11, grifo nosso).
Por sua vez, Ana Cristina ressaltou que o termo “êxtase” “tem uma aguçada
tonalidade religiosa e não pode ser confundida com just plain happiness (felicidade)”
(1988, p. 50, grifo nosso). A tradutora justifica sua afirmação:
Creio que é importante estabelecer a diferença entre êxtase e felicidade.
Êxtase sugere a sensação de uma espécie de suprema alegria paradisíaca,
que pode ser sentida em ocasiões muito especiais: em momentos de
satisfação na relação bebê/mãe, em outras relações apaixonadas
“primitivas”, em fantasias homossexuais, no êxtase religioso e, muito
raramente, na “vida real”, nos relacionamentos entre adultos. Poder-se-ia
dizer que o êxtase é, basicamente, uma emoção imaginária cheia de força
e do poder próprios do imaginário (1988, p. 50, grifo nosso).
Ana Cristina enfatizou ainda que essa palavra nos remete a uma sensação de
“suprema alegria”, que ocorre, entre outras situações, “em fantasias homossexuais”. Ela
prossegue:
Uma citação interessante de C. (Christopher) Isherwood estabelece a
diferença entre bliss (êxtase) e plain happiness (felicidade). O narrador
passa a ter a sensação de que o termo felicidade está mais relacionado
com relações heterossexuais, enquanto êxtase, que é mais violento e
“sensacional” e não apenas uma sensação de felicidade, é aquilo que uma
pessoa busca em relações homossexuais (alguma coisa que não é
propriamente deste mundo?). A citação está no livro de Paul Piazza,
Christopher Isherwood, Myth and Anti-Myth, e refere-se a seu romance A
Single Man, que trata de um “frustrado homossexual, de meia-idade”
(1988, p. 50, grifos nossos).
Assim o fazendo, Ana Cristina retoma e ressalta a temática abordada por
Mansfield, a saber, o desejo homoerótico feminino, sentimento que se relaciona, em
“Bliss”, à atração de Bertha por Pearl.
Nessa nota 1, a tradutora destaca ainda, a partir da obra citada de Paul Piazza,
Christopher Isherwood, Myth and Anti-Myth, o sentimento despertado no personagem
homossexual do livro de Isherwood, intitulado A Single Man. O sentimento é assim
descrito:
...não é ‘bliss’, nem êxtase, nem alegria é uma sensação de total
felicidade. Das Glueck, le bonheur, la felicidad (palavras que pertencem
a gêneros diferentes), mas temos que admitir, mesmo a contragosto, que a
língua espanhola leva a melhor: é termo feminino, criado para a mulher
(PIAZZA citado por CESAR, 1988, p. 51, grifo nosso).
Nesse sentido, ao buscar ressaltar a incompletude do termo êxtase em relação a bliss, Ana
Cristina enfatiza a questão de gênero, esclarecendo ao leitor que este é um sentimento
tipicamente feminino, referindo-se ao desejo homossexual que Bertha sente naquela noite.
Tal fato se comprova pelo trecho em que, descrevendo o êxtase da personagem, Mansfield
declara: “Acho que isso acontece muito raramente entre mulheres” (p. 53).
113
Também a nota 41 nos permite afirmar que Ana Cristina está preocupada em tornar
visível em sua tradução a temática do homossexualismo, trazida à tona por Mansfield,
quando ela imprime uma entonação diferente na linguagem do personagem Eddie Warren,
como vemos na citação abaixo:
“I have had such a dreadful experience with a taxi-man; he was most
sinister. I couldn’t get him to stop. The more I knocked and called the
faster he went. And in the moonlight this bizarre figure with the
flattened head crouching over the lit-tle wheel...” (MANSFIELD, 1988,
p. 35).
114
“Acabo de ter uma experiência terrível com o motorista do táxi; era um
tipo dos mais sinistros, disparando pelas ruas, e eu não conseguia fazer
que ele parasse. Quanto mais eu batia mais ele corria. Aquela figura
bizarra à luz do luar com a cabeça achatada, todo encolhido em cima do
volante...” (CESAR, 1988, p. 35).
Nessa nota, Ana Cristina justifica sua tradução:
O uso de grifos na linguagem de Eddie Warren origem a uma
113
Texto original: “I believe this does happen very, very rarely between women”.
114
A referência ao texto em inglês de Bliss foi extraída do livro Escritos da Inglaterra (1988).
entonação plausível em português, que poderá sugerir um modo afetado
de falar, como o discurso caricatural de um homem homossexual. Sem
mais comentários (1988, p. 71, grifo nosso).
Nessa e em outras passagens, Ana Cristina não deixa de enfatizar, assim como fez
Mansfield, a afetação da fala de Eddie Warren, deixando em grifo palavras do discurso do
personagem. Portanto, na tradução do conto de Mansfield, Ana Cristina, como o fizera
Mansfield, torna visível o seu posicionamento em relação à temática do gênero, tão em
voga nas décadas de 70 e 80.
Outra estratégia utilizada pelas tradutoras canadenses que se faz presente na
tradução de Ana Cristina é o suplemento. Esse recurso, como mencionado, tem como
objetivo compensar as muitas diferenças existentes entre as línguas através de mudanças
intervencionistas que são feitas ao longo da tradução. Nesse sentido, embora tenha
traduzido bliss por êxtase, Ana Cristina escolheu usar o título inglês entre parênteses, com
o objetivo de mostrar ao leitor brasileiro que o termo português não abarca todo o sentido
que a palavra inglesa bliss transmite.
Ao longo de sua tradução, Ana Cristina inseriu diversas notas nas quais declara sua
preocupação em transmitir ao leitor o ponto de vista de Bertha, isto é, o quanto aquele
êxtase alterava os sentidos da personagem. Na nota 4, Ana Cristina afirma que, em busca
de um efeito melhor, ou seja, com a intenção de descrever com mais intensidade o êxtase
de Bertha, ela praticou, “por vezes, uma intervenção drástica, alterando semanticamente o
original” (1988, p. 53). Como exemplo, a tradutora cita a resposta dada por Bertha à
seguinte pergunta de Eddie: “Tem lua cheia hoje, sabe?” (p. 36). A resposta de Bertha, a
saber, “She wanted to cry: ‘I am sure there is often often!’” (p. 53), poderia ter sido
traduzida literalmente como: “Ela teve vontade de gritar: ‘É claro que sei muitas vezes
muitas vezes”. No entanto, Ana Cristina a traduziu como: “Ela queria gritar: Eu sei que
tem eu sei eu sei!” (p. 53). A iteração escolhida por Ana Cristina, “eu sei eu sei”,
possibilita ao leitor perceber, com muito mais facilidade, o espírito impetuoso, aflito de
Bertha naquela noite.
Na nota 5 Ana Cristina ressalta como se deu a tradução da passagem grifada
abaixo:
“What can you do if you are thirty and, turning the corner of your own
street, you are overcome, suddenly, by a feeling of bliss absolute bliss!
as though you´d suddenly swallowed a bright piece of that late
afternoon sun and it burned in your boson, sending out a little shower of
sparks into every particle, into every finger and toe? (p. 55, grifo nosso).
Uma tradução possível seria:
O que pode alguém fazer quando se tem trinta anos e, virando a esquina
de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade
felicidade absoluta! como se tivesse engolido um pedaço brilhante do
sol de fim de tarde e ele estivesse queimando o peito, irradiando um
pequeno chuveiro de chispas para dentro de cada partícula do corpo, para
cada ponta de dedo?
Ana Cristina faz menção às suas escolhas tradutórias, feitas a fim de ressaltar o
êxtase de Bertha:
No primeiro exemplo, quando KM usa a comparação “as though you´d
suddenly swallowed a bright piece of the late afternoon sun”, resolvi
concentrar o impacto da imagem apenas sobre o verbo. Assim, a
tradução, em português, fica: “como se você tivesse de repente engolido
todo o sol poente”. Omiti “a bright piece” não para obter um efeito
hiperbólico, mas apenas para evitar uma estranha e rebarbativa
explicação, em português, assim como o tom pouco natural de “um
pedaço brilhante do sol de fim de tarde”. Paradoxalmente, apesar de a
força hiperbólica da comparação ficar mais intensa, em português, a
tradução soa mais fluente e sintética, sem o uso da expressão “bright
piece”. “Um pedaço brilhante” constituiria uma pedra de tropeço que
levaria o leitor a tomar consciência do absurdo desse êxtase (1988, p. 55,
grifo nosso).
Na nota 6, Ana Cristina declara: “Muitas vezes, durante a tradução, senti que estava
beirando o ridículo. Senti que tinha o “dever” de evitar que os sentimentos de Bertha
soassem ridículos, exatamente porque, facilmente, poderiam ser lidos dessa forma” (1988,
p. 56). Isso porque, segundo a tradutora, Mansfield demonstra que “sentia carinho por
Bertha e respeitava seus sentimentos, tornando-se, assim, possível uma identificação” (p.
56). Dessa forma, Ana Cristina afirma ainda que optou, em alguns momentos, “por cortes
que eliminassem uma tradução exagerada ou deselegante” (p. 55). Podemos citar como
exemplo a seguinte passagem:
...’a little shower’ é uma expressão que considerei intraduzível, porque
‘chuveirinho’ soa prosaico demais, parece palavra muito ligada à idéia de
um banheiro, em português. A solução foi encontrar um verbo mais rico e
confiar na força da bela palavra ‘centelhas’, que contém, igualmente, a
idéia do movimento sugerido por ‘a little shower of sparks”: “...
irradiando centelhas para cada partícula (1988, p. 55).
Na nota 45, a tradutora faz menção ao momento em que Bertha se questiona:
“What was there in the touch of that cool arm that could fan fanstart blazind blazing
the fire of bliss that Bertha did not know what to do with?” (1988, p. 72), cuja tradução
literal seria: “O que havia naquele braço frio, que podia avivar – atiçaratiçar o fogo da
felicidade com o qual Bertha não sabia o que fazer?”. Ao buscar dar mais ênfase ao
sentimento da personagem, Ana Cristina optou por: “O que é que havia no contato com
aquele braço que atiçava incendiava incendiava o fogo do êxtase que Bertha não
sabia como exprimir e o que fazer daquilo?” (p. 72). A primeira tradução, segundo Ana
Cristina, “parece artificial e pesada (embora correta)” (p. 72). Sobre a grande presença das
iterações no conto de Mansfield, como a acima citada, Ana Cristina declara, na nota 78,
que estas repetições “representam o eco do caráter obsessivo das emoções de Bertha [...],
usadas para exprimir as modulações das ondas de êxtase, como se fossem algo
indescritível” (p. 82). Através dos exemplos citados, podemos afirmar que Ana Cristina
realizou algumas intervenções ao longo de sua tradução com o objetivo de mostrar ao
leitor brasileiro o sentido que o termo êxtase possui, e o quanto esse sentimento
influenciou Bertha.
Como vimos no capítulo dois desta dissertação, um dos meios usados por Barbara
Godard em sua tradução de obras de Nicole Brossard para o inglês foi deixar alguns
termos na língua original, o francês. Semelhantemente, Ana Cristina optou por não traduzir
o termo Miss para o português. Na nota 25, a tradutora esclarece ao leitor as duas razões
que a levaram a deixar o termo em inglês:
Primeiro, o artificialismo da palavra senhorita no português do Brasil:
ora é usada de forma mica, ora de forma ultraformal. Segundo, Miss é
uma palavra bem conhecida, em português (as jovens dos concursos de
beleza são chamadas de Miss Brasil ou Miss Inglaterra; uma canção de
êxito popular recente se chamava “Miss Brasil Dois Mil”, sem falarmos
de outros usos correntes da palavra inglesa). Não é à toa que “Miss
Fulton” soa muito bem em português, um pouco entre o exótico e o usual
(1988, p. 65).
Além disso, encontramos ao longo da tradução de Ana Cristina algumas
intervenções feitas por ela para que o leitor brasileiro possa compreender melhor a cultura
inglesa, na qual está inserida o conto “Bliss”. Como exemplo, ao optar por traduzir a
palavra nanny por babá, Ana Cristina acrescentou a nota 19, na qual ela transmite ao leitor
dados referentes à importância dessa figura para o sistema social inglês. Nesta, a tradutora
elucida, a partir do livro de Jilly Cooper, intitulado Class, que “as classes dominantes
(inglesas) são criadas quase que exclusivamente por babás pertencentes à classe operária,
tendo os pais abdicado de qualquer responsabilidade para com os filhos” (COOPER citado
por CESAR, 1988, p. 63). A tradutora continua descrevendo “a relação de bajulação, amor
e raiva que existe entre a esposa e a babá” (1988, p. 63), considerando-se que, no conto
“Bliss”, Bertha e a nanny possuem um sentimento de rivalidade. Nesse sentido, podemos
inferir que a nota de Ana Cristina esclarece ao leitor um dado cultural inglês relevante para
a compreensão do conto de Mansfield.
Outra nota de Ana Cristina que merece destaque é a 29, na qual ela faz nova
menção ao ensaio de Magalaner. Ao buscar, com essa nota, justificar sua tradução de pear
tree por “árvore”, a tradutora permite ao leitor entrar em contato com outra informação
cultural inglesa que se faz presente no conto “Bliss”, ou seja, a pereira:
Na realidade, muitas explicações a respeito da preferência da autora
(Mansfield) por essa árvore, que tem grande significado para os leitores
ingleses: é a pereira que floresce no quintal das casas e é nela que irão
repousar os pássaros da época do Natal. A presença da pereira toca
particularmente a sensibilidade do povo inglês e traduz uma experiência
do dia-a-dia (MAGALANER citado por CESAR, 1988, p. 66, grifo
nosso).
A nota acrescida por Ana Cristina levou-nos à análise da música abaixo, intitulada
“The Twelve Days of Christmas” (“Os Doze Dias de Natal”), que enfatiza o caráter
simbólico e a influência que a pereira exerce na cultura inglesa, conforme lemos:
The first day of Christmas my true love
sent to me
A partridge in a pear tree.
The second day of Christmas my true love
sent to me
Two turtle doves
And a partridge in a pear tree.
The third day of Christmas my true love
sent to me
Three French Hens
Two turtle doves
And a partridge in a pear tree.
The fourth day of Christmas my true love
sent to me
Four Colly birds . . .
The fifth day of Christmas my true love
sent to me
Five gold rings . . .
The sixth day of Christmas my true love
sent to me
Six geese a-laying . . .
The seventh day of Christmas my true love
sent to me
Seven swans swimming . . .
The eighth day of Christmas my true love
sent to me
Eight maids a-milking . . .
The ninth day of Christmas my true Love
sent to me
Nine drummers drumming . . .
The tenth day of Christmas my true love
sent to me
Ten pipers piping . . .
The eleventh day of Christmas my true love
No primeiro dia de natal, meu verdadeiro
amor me deu
Uma perdiz numa pereira.
No segundo dia de natal, meu verdadeiro
amor me deu
Duas rolinhas rajadas
E uma perdiz numa pereira.
No terceiro dia de natal, meu verdadeiro
amor me deu
Três pintinhos franceses,
Duas rolinhas rajadas
E uma perdiz numa pereira.
No quarto dia de natal, meu verdadeiro
amor me deu
Quatro pássaros canoros...
No quinto dia de natal, meu verdadeiro
amor me deu
Cinco sinos dourados...
No sexto dia de natal, meu verdadeiro amor
me deu
Seis gansos pousados...
No sétimo dia de natal, meu verdadeiro
amor me deu
Sete cisnes nadando...
No oitavo dia de natal, meu verdadeiro amor
me deu
Oito amas de leite amamentando...
No nono dia de natal, meu verdadeiro amor
me deu
Nove tamboreiros tamborilando...
No décimo dia de natal, meu verdadeiro
amor me deu
Dez gaiteiros tocando...
No décimo primeiro dia de natal, meu
sent to me
Eleven ladies dancing . . .
The twelfth day of Christmas my true love
sent to me
Twelve lords a-leaping,
Eleven ladies dancing,
Ten pipers piping,
Nine drummers drumming,
Eight maids a-milking,
Seven swans a-swimming,
Six geese a-laying,
Five gold rings,
Four Colly birds,
Three French hens,
Two turtle doves,
And a partridge in a pear tree.
115
verdadeiro amor me deu
Onze damas dançando...
No décimo segundo dia de natal, meu
verdadeiro amor me deu
Doze cavalheiros saltando,
Onze damas dançando,
Dez gaiteiros tocando...
Nove tamboreiros tamborilando...
Oito amas de leite amamentando...
Sete cisnes nadando...
Seis gansos pousados...
Cinco sinos dourados...
Quatro pássaros canoros...
Três pintinhos franceses,
Duas rolinhas rajadas,
E uma perdiz numa pereira.
Durante séculos, essa canção faz parte da cultura inglesa. Foi através dela que os
doze dias de Natal se tornaram uma tradição para o povo inglês e irlandês. Mais tarde, essa
canção atravessou o mar, chegando ao continente europeu e à América do Norte. “The
Twelve Days of Christmas” foi composta porque, entre 1558 e 1829, os católicos que
viviam na Inglaterra não tinham liberdade de praticar, nem ensinar, suas doutrinas às
crianças, pois poderiam ser presos pelas autoridades e protestantes, caso insistissem em seu
culto. No entanto, durante todo esse período, os fiéis persistiram em ensinar seu catecismo
aos jovens, utilizando, para tal, a canção acima, cujos versos simbólicos, compreendidos
pelos católicos, eram ocultos ao governo. Dessa forma, as autoridades ouviam-na, mas
nada entendiam, e pensavam ser esta mais uma cantiga infantil. Mas cada elemento que a
compõe possui um sentido que está além da palavra escrita, como a pereira, que simboliza
a cruz para o povo cristão.
Assim, embora Ana Cristina tenha tecido considerações referentes à pereira em sua
tradução de “Bliss”, ela preferiu traduzir a expressão pear tree por árvore, considerando-se
115
A letra da música “The Twelve Days of Christmas” em inglês, sua correspondente tradução para o
português, de autoria desconhecida, bem como os dados que se seguem nessa dissertação a respeito dessa
letra, composta pelos irmãos Olsen Twins, foram todos consultados na internet, no dia 8/04/06, e estão
disponíveis no site: http://natalnomundo.sites.uol.com.br/12dias. html.
que, para a cultura de língua portuguesa do Brasil, pereira é “uma palavra desarmoniosa e
inexpressiva (em termos de experiência)” e que, “em inglês a palavra pereira sugere uma
imagem que não tem correspondência na experiência de um leitor de língua portuguesa”
(1988, p. 66-67). Porém, Timothy Webb, um dos examinadores da dissertação de mestrado
de Ana Cristina, em referência a essa tradução, ressalta que o “significado específico dessa
árvore é fundamental para a história o leitor precisa ficar consciente disso. A melhor
solução não é a omissão da palavra ou a busca de uma alternativa, mas a inclusão de uma
nota que explique o significado cultural da árvore para os leitores brasileiros” (p. 92).
Nesse sentido, a crítica de Timothy Webb é relevante, pois, como mencionado, Mansfield
inseriu em “Bliss”, não aleatoriamente, um dos mais importantes símbolos culturais do
Natal inglês.
Vale retomarmos o pensamento desenvolvido pela teórica brasileira da tradução
Rosemary Arrojo, para quem, em seu ensaio “Feminist, “Orgasmic” Theories of
Translation and Their Contradictions” (1995), o prazer autoral da tradutora reside em sua
capacidade de, através de seu exercício tradutório, poder produzir novos significados,
tornando-se co-autora do texto original (p. 68). Dessa forma, vimos que Arrojo faz críticas
ao projeto tradutório das tradutoras feministas canadenses, que privilegiavam o uso de
metáforas violentas e recorriam a estratégias subversivas da linguagem para dar voz à
mulher. Nesse sentido, pode-se afirmar que Ana Cristina, embora estivesse mais próxima,
temporalmente, das tradutoras feministas canadenses e tenha utilizado em sua tradução de
“Bliss” alguns recursos adotados por elas, como o prefácio e as notas de de página, sua
tradução antecipou práticas que vieram a ocupar espaço no trabalho tradutório de Suzanne
Jill Levine, o que se comprova em sua obra analisada The Subversive Scribe, de 1991,
publicada há exatos dez anos após a tradução de Ana Cristina.
Alguns dados confirmam a assertiva acima: ambas, Ana Cristina e Levine
demonstram ter a mesma preocupação com a técnica, e levam em questão o ritmo e a
sonoridade em suas traduções. Vale citarmos as palavras escolhidas por Ana Cristina das
cartas de Mansfield, que constituem a primeira epígrafe das três, da mesma autora, que
Ana Cristina escolheu para o seu próprio texto: “Tenho paixão pela técnica. Tenho paixão
em transformar o que estou fazendo em algo completo se é que me entendem. Acredito
que é da técnica que nasce o verdadeiro estilo. Não atalhos nesse caminho
(MANSFIELD citada por CESAR, 1988, p. 10).
A técnica desenvolvida por Ana Cristina está descrita nas palavras escolhidas por
mim como epígrafe a esse subcapítulo, nas quais se pode perceber a preocupação da
tradutora com o “som de cada frase”, “com a cadência de cada parágrafo”. Ainda nessa
mesma epígrafe, Ana Cristina declara que leu, inúmeras vezes, sua tradução de “Bliss”,
como se “estivesse repassando uma peça musical”, buscando encontrar a “expressão
perfeita, até lograr alcançá-la por completo”. O mesmo fez Levine que, como vimos no
capítulo dois deste trabalho, lia em voz alta sua tradução do texto de Manuel Puig.
Em busca do ritmo apropriado de “Bliss” para o português, Ana Cristina recorreu à
utilização de vários recursos, como a contração da sintaxe, visto que a língua portuguesa é
menos econômica que a língua inglesa. Mesmo assim, sua tradução de “Bliss” para o
português tem um número maior de palavras que o texto original em inglês. Na citação
abaixo, ela declara:
Por isso, fui compelida, freqüentemente, a contrair a sintaxe, a fim de
conseguir um enunciado mais sintético em português pelo menos do
ponto de vista literal. E havia giros sintáticos em inglês, que não teriam
correspondência em português, pelo menos do ponto de vista literal. Esse
procedimento incluiu a supressão consciente de pronomes supérfluos, a
condensação de dois ou três períodos diferentes através de estruturas
subordinativas e, às vezes, a alteração na ordem das palavras, para se
conseguir melhor ritmo e tensão (1988, p. 13-14).
Outro dado de relevância a ser mencionado na tradução de Ana Cristina é a
preocupação por ela demonstrada em apresentar aos leitores a cultura do texto original, ou
seja, a inglesa. Essa característica está também presente na tradução de Levine do texto de
Puig, na qual ela busca maneiras de ressaltar a importância dos tangos citados nas
epígrafes do texto original, essenciais para o enredo. Ana Cristina apresenta, em suas
notas, além de dados esclarecedores sobre a própria língua do texto original, os
significados culturais da nanny e da pereira para o povo inglês.
Também a tradução dos apelidos do Sr. e da Srª. Knight do conto “Bliss”, a saber,
“Face” e “Mug”, mereceram destaque na nota 38 de Ana Cristina. Segundo Levine, os
nomes precisam ser traduzidos, mas devem ter um significado para o leitor. Dessa forma,
Ana Cristina declara que, inicialmente, teve o desejo de conservar os apelidos, assim como
fez com todos os nomes próprios do conto. No entanto, segundo ela:
... decidi usar a expressão “cara ou coroa”, com suas interessantes
ressonâncias (heads or tails: o jogo em que se atira uma moeda para o
alto, para se ganhar uma aposta), e alterá-la ligeiramente, uma vez que
“cara” seria um apelido absurdo (tanto significa querida como rosto).
Consegui, assim, chegar a “careta e coroa”, palavras que serão entendidas
como uma deformação intencional da expressão relativa a cabeças ou
caudas. “Careta” significa grimace ou grin e poderia, facilmente, ser
usada como apelido também uma gíria moderna que define uma
pessoa muito formal). “Coroa” (crown) também é gíria (menos recente),
usada em relação a homens ou mulheres de meia-idade. Pode ser usada
em tom de carinho ou de sarcasmo (1988, p. 70).
Enfim, tomando de empréstimo as palavras de Levine para se referir à tradução de
Ana Cristina do conto de Mansfield, podemos afirmar que esta desmente o pensamento de
que a “tradicional virtude das tradutoras, principalmente de prosa, tem sido sua
invisibilidade como modestas escribas, rabiscando textos transparentes no porão do castelo
da Literatura” (1991: xii).
116
Em “O Conto ‘Bliss’ Anotado”, Ana Cristina não se revela
uma ‘modesta escriba’ subserviente: além de ter escolhido traduzir um texto que traz à
tona uma temática em efervescência nas décadas de 70 e 80, a saber, o homoerotismo, a
técnica tradutória de Ana Cristina apresenta o germe das teorias e práticas contemporâneas
116
Texto original: “The traditional virtue of translators, particularly prose translators, has been their
invisibility as humble scribes, scribbling transparent texts in the cellar of the castle of Literature”.
da tradução. Nesse sentido, Ana Cristina se apresenta como uma tradutora pós-moderna,
cuja preocupação não reside numa tradução “orgásmica” do original, mas seu prazer está
em sua interferência na rede de significados do texto original, como declara Arrojo (1995).
Ao traduzir “Bliss” para a língua portuguesa, ela reconstrói a trama, imprimindo-lhe
oitenta notas, como que confeccionando uma colcha, um patchwork, à moda de Penélope.
E nesse trabalho de tecer, tipicamente feminino, Ana Cristina atinge o seu intento inicial,
expresso pelas palavras de Mansfield, que constitui a última epígrafe das três escolhidas
pela tradutora: “Quero escrever uma espécie de longa elegia... Talvez não em forma de
poesia, nem tampouco em prosa. Quase certamente numa espécie de prosa especial”
(MANSFIELD citada por CESAR, 1988, p. 10).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se você tivesse de repente engolido o sol
de fim de tarde e ele queimasse dentro do
peito... (Katherine Mansfield, “Bliss”)
117
Ao longo dessa dissertação, vimos que Katherine Mansfield e Ana Cristina Cesar
tiveram uma trajetória de vida que se assemelha em diversos sentidos. Muito cedo, ambas
demonstraram ter dom para as letras: enquanto Mansfield se dedicou a contar histórias,
Ana Cristina recitava versos que ela própria compunha, enquanto sua mãe, Maria Luiza
Cesar, registrava-os. Mas elas não deixaram apenas contos e poemas. Como mencionado, o
acervo de Mansfield e de Ana Cristina se compõe de cartas e diários íntimos, visto que elas
tinham a mesma predileção pelos gêneros confessionais. Ainda, elas escreveram resenhas e
críticas literárias, sendo que alguns desses textos foram publicados em vida, outros o
foram postumamente. Vimos que a produção intelectual dessas autoras foi interrompida
pelo curto período de vida que tiveram, pois Mansfield foi vencida pela morte aos 34 anos,
no auge de seu poder de criação, vítima da tuberculose, enquanto Ana Cristina resolveu se
despedir aos 31 anos.
Buscamos ressaltar nesse trabalho que a aproximação maior entre Ana Cristina e
117
Texto original: “[...] as though you´d suddenly swallowed a bright piece of that late afternoon sun”.
Trecho extraído da obra Escritos da Inglaterra (1988, p. 23).
Mansfield se deu pela escolha da primeira pela tradução do conto “Bliss”, para o
português, escrito por Mansfield em 1918. Ressaltamos que Mansfield ocupa um lugar de
transição, visto que ela viveu em uma época de intensa efervescência sócio-histórico-
cultural, e que a escrita de “Bliss” foi informada por questionamentos que emergiram nesse
período, como a luta por parte das mulheres para serem ouvidas, vistas e lidas.
Demos destaque ao interesse formal e temático de Ana Cristina por esse conto, que
a levou a apresentar, como dissertação de mestrado, uma tradução comentada de “Bliss”.
Consideramos a importância da prática tradutória para a formação da identidade autoral de
Ana Cristina, para o aprimoramento do seu método poético, visto que ela se apropriou não
apenas de fragmentos de textos alheios para compor seus poemas, como também da
temática abordada por alguns dos autores que traduziu. Além disso, o contato íntimo da
poeta-tradutora com os poemas de Emily Dickinson, Sylvia Plath e com o conto de
Mansfield colaborou, sobremodo, para a composição poética de Ana Cristina.
Abordamos o fato de que suas escolhas por “Bliss” e pela autora Mansfield não
foram casuais. Os principais assuntos abordados por Mansfield no conto em questão, a
saber, a condição da mulher em uma sociedade patriarcal e a possibilidade de se sentir
sexualmente atraído(a) por seres do sexo masculino e do sexo feminino, ocupavam a cena
da juventude urbana brasileira nos anos 70 do século XX, informada, entre outras coisas,
pelo descentramento da noção de sujeito e pela fragilidade de fronteiras, inclusive as de
gênero.
Além disso, em fins dos anos 70 e início dos 80, período que Ana Cristina traduziu
o conto de Mansfield, grandes mudanças ocorreram no cenário da tradução. Nessa época,
emergiram diversas reflexões teóricas que enfatizavam as inevitáveis transformações
implicadas no ato de traduzir. Como buscamos destacar, as tradutoras feministas
canadenses apresentaram uma nova forma de pensar a tradução, ao recorrerem a
estratégias tradutórias subversivas em suas atividades. Em consonância com esses estudos,
a análise de “O Conto ‘Bliss’ Anotado” possibilitou-nos identificar duas dessas estratégias,
visto que Ana Cristina utilizou o prefácio e as notas e também o suplemento para que seu
leitor pudesse compreender melhor a cultura e a língua inglesas.
Ressaltamos também que a teorização e a prática tradutórias de Ana Cristina a
aproximaram de Suzanne Jill Levine, tradutora que se destacaria nos anos 90. Ambas estão
mais próximas das concepções do/a tradutor/a como um/a mediador/a, que transita entre
dois espaços culturais distintos, procurando colocar em diálogo as diversas tradições que
operam nesses contextos. Dessa forma, podemos afirmar que Ana Cristina ocupa um
espaço liminar, visto que ela se mostra adepta de algumas estratégias adotadas pelas
tradutoras feministas e, ao mesmo tempo, antecipa questionamentos que seriam abordados
anos mais tarde, no contexto da pós-modernidade, quando a tradução passou a ser vista
como um “canto paralelo”, na acepção que Haroldo de Campos (1981) fornece à paródia,
isso é, como uma suplementação do original e não como um “contra canto”, em outra
acepção possível de paródia, mais afeita a estratégias modernistas no que diz respeito ao
tratamento da tradição. Portanto, Ana Cristina se apresenta como uma tradutora pós-
moderna, também nos termos de Rosemary Arrojo (1995), pois o seu prazer reside em sua
capacidade de, através do exercício tradutório, poder produzir novos significados,
tornando-se co-autora do texto original.
Assim, a reescritura de Ana Cristina do conto “Bliss” nos permite afirmar que ela
responde à pergunta presente no poema de Cacaso, que serviu como epígrafe a essa
dissertação, pois ela se faz presente na tradução do conto de Mansfield, tornando-se co-
autora do texto original. Portanto, podemos afirmar que Ana Cristina, em consonância com
esse contexto pós-moderno, buscou rechaçar a concepção tradicional de tradução, que
pressupõe significados absolutamente estáveis e transparentes e um sujeito/tradutor que
possa traduzir um texto sem interferir nos seus significados. Na verdade, Ana Cristina
apresenta ao leitor sua concepção da atividade tradutória como um exercício de
transformação.
Buscamos mostrar Mansfield e Ana Cristina como sujeitos migrantes, que viveram
coincidentemente no mesmo espaço deslocado: a Inglaterra. Vimos que a contista
neozelandesa abandonou, com apenas catorze anos, sua terra natal, Wellington, e foi viver
em Londres. Sua vida errante a levou a morar em diversos países, entre eles a França, onde
se deu a escrita de “Bliss”. Ana Cristina, com dezessete anos, estreitou sua relação com
a cultura de língua inglesa quando, entre 1969-1970, participando de um intercâmbio,
viajou para a Inglaterra pela primeira vez, fato que veio colaborar, posteriormente, para sua
intensa atividade tradutória. A experiência positiva a fez retornar, dez anos mais tarde, à
Inglaterra, para se dedicar com mais afinco aos estudos da tradução. Tal fato corrobora o
contexto que caracterizou a tradução de Ana Cristina, marcado pela permeabilidade de
fronteiras territoriais, por intensos fluxos migratórios e trocas culturais. Nesse novo
panorama, a tradução permitiu o comércio da literatura entre várias nações e a atividade
tradutória passou a ser compreendida em sua relação com os elementos culturais, sociais,
políticos e intelectuais. A tradução passou a ser vista como “um ato intensamente
relacional, o qual estabelece conexões entre texto e cultura, entre autor e leitor”, como
ressalta Simon (1996, p. 83, grifo da autora).
118
Retomemos as palavras emprestadas de Mansfield, traduzidas por Ana Cristina,
com as quais iniciamos essas considerações finais: “Como se você tivesse de repente
engolido o sol de fim de tarde e ele queimasse dentro do peito...”. A imagem que essa
citação nos sugere talvez seja a que melhor define o envolvimento que a poeta manteve
com o conto “Bliss”, que passou traduzindo, de 1979 a 1981, durante seu exílio voluntário
118
Texto original: “[...]translation is in itself na intensely relational act, one which establishes connections
between text and culture, between author and reader”.
na Inglaterra. Tornou-se perceptível, através desse estudo ao qual nos empreendemos
acerca da tradução de Ana Cristina, notar o êxtase da poeta diante de seu ofício de
tradutora, mergulhando, maravilhada, na solidão de um quarto todo seu, no sutil jogo entre
linguagem e sensibilidade. Podemos afirmar, juntamente com Maria Luiza Cesar que,
através de “O Conto ‘Bliss’ Anotado”, Ana Cristina, intermediada pela voz de Mansfield,
permite “ao leitor brasileiro vislumbrar essa paisagem tão diferente – e tão bonita – que é a
língua inglesa”.
119
Por fim, este trabalho, tendo abordado o contato entre Mansfield e Ana Cristina
através de “Bliss”, não se esgota em si mesmo, pois ele abre outras possibilidades de
análises aqui não abordadas. Dentre elas, podemos destacar o estudo de como o exílio, o
estar fora de lugar, colaborou para a produção literária de ambas as autoras. Além disso,
este trabalho abre perspectivas para pesquisas futuras sobre a escritura íntima de Mansfield
e Ana Cristina, a saber, suas cartas e diários, bem como o estudo de outras traduções de
contos de Mansfield para a língua portuguesa.
119
Assertiva presente na contracapa do livro Escritos da Inglaterra (1988).
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Capturado em: 12 de julho de 2006.
ANEXOS
ANEXO 1:
O CONTO “BLISS”, EM INGLÊS
BLISS
1
Although Bertha Young was thirty
2
she still had moments like this when she wanted to run
instead of walk, to take dancing steps on and off the pavement, to bowl a hoop,
3
to throw
something up in the air and catch it again, or to stand still and laugh at nothing at nothing,
simply.
4
What can you do if you are thirty and, turning the corner of your own street, you are
overcome, suddenly by a feeling of bliss–absolute bliss!–as though you’d suddenly swallowed a
bright piece of that late afternoon sun
5
and it burned in your bosom, sending out a little shower of
sparks into every particle, into every finger and toe?...
6
Oh, is there no way you can express it without being “drunk and disorderly”? How idiotic
civilisation is! Why be given a body if you have to keep it shut up in a case like a rare, rare fiddle?
7
“No, that about the fiddle is not quite what I mean,” she thought,
8
running up the steps and
feeling in her bag for the key she’d forgotten it, as usual and rattling the letter-box. “It's not
what I mean, because–Thank you, Mary”–she went into the hall. “Is nurse back?”
“Yes, M’m.”
“And has the fruit come?”
“Yes, M'm. Everything’s come.”
“Bring the fruit up to the dining-room, will you? I’ll arrange it before I go upstairs.”
It was dusky in the dining-room and quite chilly. But all the same Bertha threw off her coat; she
could not bear the tight clasp of it another moment, and the cold air fell on her arms.
But in her bosom there was still that bright glowing place that shower of little sparks
coming from it.
9
It was almost unbearable. She hardly dared to breathe for fear of fanning it higher,
and yet she breathed deeply, deeply. She hardly dared to look into the cold mirror but she did
look, and it gave her back a woman, radiant, with smiling, trembling lips, with big, dark eyes and
an air of listening, waiting for something... divine to happen... that she knew must happen...
infallibly.
Mary brought in the fruit on a tray and with it a glass bowl, and a blue dish, very lovely,
with a strange sheen on it as though it had been dipped in milk.
“Shall I turn on the light, M’m?”
“No, thank you. I can see quite well.”
There were tangerines and apples stained with strawberry pink.
10
Some yellow pears, smooth as
silk, some white grapes covered with a silver bloom and a big cluster of purple ones.
11
These last
she had bought to tone in with the new dining-room carpet.
12
Yes, that did sound rather far-fetched
and absurd, but it was really why she had bought them.
13
She had thought in the shop: “I must have
some purple ones to bring the carpet up to the table.” And it had seemed quite sense at the time.
14
When she had finished with them and had made two pyramids of these bright round shapes,
15
she
stood away from the table to get the effect and it really was most curious. For the dark table
seemed to melt into the dusky light
16
and the glass dish and the blue bowl to float in the air.
17
This,
of course, in her present mood, was so incredibly beautiful...
18
She began to laugh.
“No, no. I'm getting hysterical.” And she seized her bag and coat and ran upstairs to the
nursery.
Nurse
19
sat at a low table giving Little B her supper after her bath. The baby had on a white
flannel gown and a blue woollen jacket, and her dark, fine hair was brushed up into a funny little
peak. She looked up when she saw her mother and began to jump.
20
“Now, my lovey, eat it up like a good girl,” said nurse, setting her lips in a way that Bertha
knew, and that meant she had come into the nursery at another wrong moment.
“Has she been good, Nanny?”
“She's been a little sweet all the afternoon,” whispered Nanny. “We went to the park and I
sat down on a chair and took her out of the pram and a big dog came along and put its head on my
knee and she clutched its ear, tugged it. Oh, you should have seen her.”
21
Bertha wanted to ask if it wasn’t rather dangerous to let her clutch at a strange dog’s ear.
But she did not dare to. She stood watching them, her hands by her side,
22
like the poor little girl in
front of the rich girl with the doll.
The baby looked up at her again, stared, and then smiled so charmingly that Bertha
couldn’t help crying:
“Oh, Nanny, do let me finish giving her her supper while you put the bath things away.
“Well, M’m, she oughtn’t to be changed hands while she’s eating,” said Nanny, still whispering.
“It unsettles her; it’s very likely to upset her.”
How absurd it was. Why have a baby if it has to be kept not in a case like a rare, rare
fiddle – but in another woman’s arms?
“Oh, I must!” said she.
Very offended, Nanny handed her over.
“Now, don't excite her after her supper. You know you do, M'm. And I have such a time
with her after!”
23
Thank heaven! Nanny went out of the room with the bath towels.
“Now I’ve got you to myself, my little precious,” said Bertha, as the baby leaned against
her.
She ate delightfully, holding up her lips for the spoon and then waving her hands.
Sometimes she wouldn’t let the spoon go; and sometimes, just as Bertha had filled it, she waved it
away to the four winds.
When the soup was finished Bertha turned round to the fire. “You’re nice you’re very
nice!” said she, kissing her warm baby. “I'm fond of you. I like you.”
And indeed, she loved Little B so much her neck as she bent forward, her exquisite toes
as they shone transparent in the firelight that all her feeling of bliss came back again, and again
she didn’t know how to express it – what to do with it.
“You’re wanted on the telephone,” said Nanny, coming back in triumph and seizing her
Little B.
Down she flew. It was Harry.
“Oh, is that you, Ber? Look here. I'll be late. I'll take a taxi and come along as quickly as I
can, but get dinner put back ten minutes – will you? All right?”
“Yes, perfectly. Oh, Harry!”
“Yes?”
What had she to say?
24
She’d nothing to say. She only wanted to get in touch with him for
a moment. She couldn’t absurdly cry: “Hasn’t it been a divine day!”
“What is it?” rapped out the little voice.
“Nothing. Entendu,” said Bertha, and hung up the receiver, thinking how much more than
idiotic civilisation was.
They had people coming to dinner. The Norman Knights a very sound couple he was
about to start a theatre, and she was awfully keen on interior decoration, a young man, Eddie
Warren, who had just published a little book of poems and whom everybody was asking to dine,
and a “find” of Bertha's called Pearl Fulton. What Miss Fulton
25
did, Bertha didn’t know. They had
met at the club and Bertha had fallen in love with her, as she always did fall in love with beautiful
women who had something strange about them.
The provoking thing was that, though they had been about together and met a number of
times and really talked, Bertha couldn’t make her out. Up to a certain point Miss Fulton was rarely,
wonderfully frank, but the certain point was there, and beyond that she would not go.
Was there anything beyond it? Harry said “No.”
26
Voted her dullish, and “cold like all
blonde women, with a touch, perhaps, of anaemia of the brain.” But Bertha wouldn't agree with
him; not yet, at any rate.
“No, the way she has of sitting with her head a little on one side, and smiling, has
something behind it, Harry, and I must find out what that something is.”
“Most likely it’s a good stomach,” answered Harry.
He made a point of catching Bertha’s heels with replies of that kind... “liver frozen, my
dear girl,” or “pure flatulence,” or “kidney disease”, ...and so on. For some strange reason Bertha
liked this, and almost admired it in him very much.
She went into the drawing-room and lighted the fire; then, picking up the cushions, one by
one, that Mary had disposed so carefully, she threw them back on to the chairs and the couches.
27
That made all the difference; the room came alive at once. As she was about to throw the last one
she surprised herself by suddenly hugging it to her, passionately, passionately.
28
But it did not put
out the fire in her bosom. Oh, on the contrary!
The windows of the drawing-room opened on to a balcony overlooking the garden. At the
far end, against the wall, there was a tall, slender pear tree
29
in fullest, richest bloom;
30
it stood
perfect, as though becalmed against the jade-green sky. Bertha couldn’t help feeling, even from
this distance, that it had not a single bud or a faded petal.
31
Down below, in the garden beds, the red
and yellow tulips, heavy with flowers, seemed to lean upon the dusk. A grey cat, dragging its belly,
crept across the lawn,
32
and a black one, its shadow, trailed after. The sight of them,
33
so intent and
so quick, gave Bertha a curious shiver.
“What creepy things cats are!” she stammered, and she turned away from the window and
began walking up and down...
How strong the jonquils smelled in the warm room. Too strong? Oh, no. And yet, as
though overcome, she flung down on a couch and pressed her hands to her eyes.
“I’m too happy – too happy!” she murmured.
And she seemed to see on her eyelids the lovely pear tree with its wide open blossoms as a
symbol of her own life.
Really really she had everything. She was young. Harry and she were as much in love
as ever, and they got on together splendidly and were really good pals. She had an adorable baby.
They didn’t have to worry about money.
34
They had this absolutely satisfactory house and garden.
And friends modern, thrilling friends, writers and painters and poets or people keen on social
questions just the kind of friends they wanted. And then there were books, and there was music,
and she had found a wonderful little dressmaker, and they were going abroad in the summer, and
their new cook made the most superb omelettes. . . .
“I’m absurd. Absurd!” She sat up; but she felt quite dizzy, quite drunk. It must have been
the spring.
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Yes, it was the spring. Now she was so tired she could not drag herself upstairs to dress.
A white dress, a string of jade beads, green shoes and stockings. It wasn’t intentional. She
had thought of this scheme hours before she stood at the drawing-room window.
Her petals
36
rustled softly into the hall, and she kissed Mrs. Norman Knight, who was
taking off the most amusing orange coat with a procession of black monkeys round the hem and up
the fronts.
...Why! Why! Why is the middle-class so stodgy so utterly without a sense of humour!
My dear, it’s only by a fluke that I am here at all Norman being the protective fluke. For my
darling monkeys so upset the train that it rose to a man and simply ate me with its eyes. Didn’t
laugh wasn’t amused that I should have loved. No, just stared–and bored me through and
through.”
37
“But the cream of it was,” said Norman, pressing a large tortoiseshell-rimmed monocle
into his eye, “you don't mind me telling this, Face, do you?” (In their home and among their friends
they called each other Face and Mug.
38
) “The cream of it was when she, being full fed, turned to
the woman beside her and said: ‘Haven't you ever seen a monkey before?’”
“Oh, yes!” Mrs. Norman Knight joined in the laughter. “Wasn’t that too absolutely
creamy?”
39
And a funnier thing still was that now her coat was off she did look like a very intelligent
monkey who had even made that yellow silk dress out of scraped banana skins. And her amber
ear-rings: they were like little dangling nuts.
“This is a sad, sad fall!said Mug, pausing in front of Little B’s perambulator. “When the
perambulator comes into the hall –” and he waved the rest of the quotation away.
40
The bell rang. It was lean, pale Eddie Warren (as usual) in a state of acute distress.
“It is the right house, isn’t it?” he pleaded.
“Oh, I think so – I hope so,” said Bertha brightly.
“I have had such a dreadful experience with a taxi-man; he was most sinister. I couldn't get
him to stop. The more I knocked and called the faster he went. And in the moonlight this bizarre
figure with the flattened head crouching over the lit-tle wheel...”
41
He shuddered, taking off an immense white silk scarf. Bertha noticed that his socks were
white, too – most charming.
“But how dreadful!” she cried.
“Yes, it really was,” said Eddie, following her into the drawing-room. “I saw myself
driving through Eternity in a timeless taxi.”
He knew the Norman Knights. In fact, he was going to write a play for N.K. when the
theatre scheme came off.
“Well, Warren, how's the play?” said Norman Knight, dropping his monocle and giving his
eye a moment in which to rise to the surface before it was screwed down again.
And Mrs. Norman Knight: “Oh, Mr. Warren, what happy socks?”
“I am so glad you like them,” said he, staring at his feet. “They seem to have got so much
whiter since the moon rose.” And he turned his lean sorrowful young face to Bertha. “There is a
moon, you know.”
She wanted to cry: “I am sure there is – often – often!”
He really was a most attractive person. But so was Face, crouched before the fire in her
banana skins, and so was Mug, smoking a cigarette and saying as he flicked the ash: "Why doth the
bridegroom tarry?”
“There he is, now.”
Bang went the front door open and shut. Harry shouted: “Hullo, you people. Down in five
minutes.” And they heard him swarm up the stairs. Bertha couldn’t help smiling; she knew how he
loved doing things at high pressure. What, after all, did an extra five minutes matter? But he would
pretend to himself that they mattered beyond measure. And then he would make a great point of
coming into the drawing-room, extravagantly cool and collected.
42
Harry had such a zest for life. Oh, how she appreciated it in him. And his passion for
fighting for seeking in everything that came up against him another test of his power and of his
courage – that, too, she understood. Even when it made him just occasionally, to other people, who
didn’t know him well, a little ridiculous perhaps... For there were moments when he rushed into
battle
43
where no battle was... She talked and laughed and positively forgot until he had come in
(just as she had imagined) that Pearl Fulton had not turned up.
“I wonder if Miss Fulton has forgotten?”
“I expect so,” said Harry. “Is she on the phone?”
“Ah! There’s a taxi, now.” And Bertha smiled with that little air of proprietorship that she
always assumed while her women finds were new and mysterious. “She lives in taxis.”
“She’ll run to fat if she does,” said Harry coolly, ringing the bell for dinner. “Frightful
danger for blonde women.”
“Harry–don’t!” warned Bertha, laughing up at him.
Came another tiny moment, while they waited, laughing and talking, just a trifle too much
at their ease, a trifle too unaware. And then Miss Fulton, all in silver, with a silver fillet binding her
pale blonde hair, came in smiling, her head a little on one side.
“Am I late?”
“No, not at all,” said Bertha. “Come along.” And she took her arm and they moved into the
dining-room.
44
What was there in the touch of that cool arm that could fan – fan – start blazing – blazing –
the fire of bliss that Bertha did not know what to do with?
45
Miss Fulton did not look at her; but then she seldom did look at people directly. Her heavy
eyelids lay upon her eyes
46
and the strange half-smile came and went upon her lips as though she
lived by listening rather than seeing. But Bertha knew,
47
suddenly, as if the longest, most intimate
look had passed between them–as if they had said to each other:
48
“You too?” that Pearl Fulton,
stirring the beautiful red soup in the grey plate, was feeling just what she was feeling.
And the others? Face and Mug, Eddie and Harry, their spoons rising and falling dabbing
their lips with their napkins, crumbling bread, fiddling with the forks and glasses and talking.
49
“I met her at the Alpha show the weirdest little person. She’d not only cut off her hair,
but she seemed to have taken a dreadfully good snip off her legs and arms and her neck and her
poor little nose as well.”
“Isn’t she very liée with Michael Oat?”
“The man who wrote Love in False Teeth?
“He wants to write a play for me. One act. One man. Decides to commit suicide. Gives all
the reasons why he should and why he shouldn't. And just as he has made up his mind either to do
it or not to do it – curtain. Not half a bad idea.”
“What’s he going to call it – ‘Stomach Trouble’ ?”
“I think I’ve come across the same idea in a lit-tle French review, quite unknown in
England.”
50
No, they didn’t share it. They were dears – dears and she loved having them there, at her
table, and giving them delicious food and wine. In fact, she longed to tell them how delightful they
were, and what a decorative group they made, how they seemed to set one another off and how
they reminded her of a play by Tchekof!
51
Harry was enjoying his dinner. It was part of his well, not his nature, exactly, and
certainly not his pose – his – something or other – to talk about food and to glory in his “shameless
passion for the white flash of the lobster” and “the green of pistachio ices – green and cold like the
eyelids of Egyptian dancers.”
When he looked up at her and said: “Bertha, this is a very admirable soufflée!she almost
could have wept with child-like pleasure.
Oh, why did she feel so tender towards the whole world tonight? Everything was good
was right. All that happened seemed to fill again her brimming cup of bliss.
52
And still, in the back of her mind, there was the pear tree.
53
It would be silver now, in the
light of poor dear Eddie’s moon, silver as Miss Fulton, who sat there turning a tangerine in her
slender fingers that were so pale a light seemed to come from them.
What she simply couldn’t make out what was miraculous was how she should have
guessed Miss Fulton’s mood so exactly and so instantly. For she never doubted for a moment that
she was right, and yet what had she to go on? Less than nothing.
54
“I believe this does happen very, very rarely between women. Never between men,”
thought Bertha. “But while I am making the coffee in the drawing-room perhaps she will ‘give a
sign’.”
What she meant by that she did not know, and what would happen after that she could not
imagine.
While she thought like this she saw herself talking and laughing. She had to talk because of
her desire to laugh.
“I must laugh or die.”
But when she noticed Face’s funny little habit of tucking something down the front of her
bodice as if she kept a tiny, secret hoard of nuts there, too–Bertha had to dig her nails into her
hands–so as not to laugh too much.
It was over at last. And: “Come and see my new coffee machine,” said Bertha.
“We only have a new coffee machine once a fortnight,” said Harry. Face took her arm this
time; Miss Fulton bent her head and followed after.
55
The fire had died down in the drawing-room to a red, flickering “nest of baby phoenixes,”
said Face.
56
“Don’t turn up the light for a moment. It is so lovely.” And down she crouched by the fire
again. She was always cold...
57
“without her little red flannel jacket, of course,” thought Bertha.
58
At that moment Miss Fulton “gave the sign.”
“Have you a garden?” said the cool, sleepy voice.
This was so exquisite on her part that all Bertha could do was to obey. She crossed the
room, pulled the curtains apart, and opened those long windows.
“There!” she breathed.
And the two women stood side by side looking at the slender, flowering tree. Although it
was so still it seemed, like the flame of a candle, to stretch up, to point, to quiver in the bright air,
to grow taller and taller as they gazed – almost to touch the rim of the round, silver moon.
59
How long did they stand there? Both, as it were, caught in that circle of unearthly light,
understanding each other perfectly, creatures of another world, and wondering what they were to
do in this one with all this blissful
60
treasure that burned in their bosoms
61
and dropped, in silver
flowers, from their hair and hands?
For ever for a moment? And did Miss Fulton murmur: “Yes. Just that”. Or did Bertha
dream it?
Then the light was snapped on and Face made
62
the coffee and Harry said: “My dear Mrs.
Knight, don’t ask me about my baby. I never see her. I shan’t feel the slightest interest in her until
she has a lover,” and Mug took his eye out of the conservatory for a moment and then put it under
glass again
63
and Eddie Warren drank his coffee and set down the cup with a face of anguish as
though he had drunk and seen the spider.
“What I want to do is to give the young men a show. I believe London is simply teeming
with first-chop, unwritten plays. What I want to say to ‘em is: ‘Here’s the theatre. Fire ahead’.”
“You know, my dear, I am going to decorate a room for the Jacob Nathans. Oh, I am so
tempted to do a fried-fish scheme, with the backs of the chairs shaped like frying-pans and lovely
chip potatoes embroidered all over the curtains.”
64
“The trouble with our young writing men is that they are still too romantic. You can’t put
out to sea without being seasick and wanting a basin.
65
Well, why won’t they have the courage of
those basins?”
“A dreadful poem about a girl who was violated by a beggar without a nose in a lit-tle
wood...”
Miss Fulton sank into the lowest, deepest chair and Harry handed round the cigarettes.
From the way he stood in front of her shaking the silver box and saying abruptly:
“Egyptian? Turkish? Virginian? They’re all mixed up,” Bertha realised that she not only bored
him; he really disliked her. And she decided
66
from the way Miss Fulton said: “No, thank you, I
won’t smoke,” that she felt it, too, and was hurt.
“Oh, Harry, don’t dislike her. You are quite wrong about her. She's wonderful, wonderful.
And, besides, how can you feel so differently about someone who means so much to me. I shall try
to tell you when we are in bed tonight what has been happening. What she and I have shared.”
At those last words something strange and almost terrifying darted into Bertha’s mind. And
this something blind and smiling whispered to her:
67
“Soon these people will go. The house will be
quiet quiet. The lights will be out.
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And you and he will be alone together in the dark room–the
warm bed...”
She jumped up from her chair and ran over to the piano.
“What a pity someone does not play!” she cried. “What a pity somebody does not play.”
For the first time in her life Bertha Young desired her husband.
Oh, she’d loved him she'd been in love with him, of course, in every other way, but just
not in that way. And equally, of course, she’d understood that he was different. They’d discussed it
so often. It had worried her dreadfully at first to find that she was so cold, but after a time it had not
seemed to matter. They were so frank with each other–such good pals. That was the best of being
modern.
But now ardently! ardently! The word ached in her ardent body! Was this what that
feeling of bliss had been leading up to? But then, then –
“My dear,” said Mrs. Norman Knight, “you know our shame. We are the victims of time
and train.
69
We live in Hampstead. It's been so nice.”
“I’ll come with you into the hall,” said Bertha. “I loved having you. But you must not miss
the last train. That’s so awful, isn't it?”
“Have a whisky, Knight, before you go?” called Harry.
“No, thanks, old chap.”
Bertha squeezed his hand for that as she shook it.
“Good night, good-bye,” she cried from the top step, feeling that this self of hers was
taking leave of them for ever.
When she got back into the drawing-room the others were on the move.
“... Then you can come part of the way in my taxi.”
“I shall be so thankful not to have to face another drive alone after my dreadful
experience.”
“You can get a taxi at the rank just at the end of the street. You won’t have to walk more
than a few yards.”
“That’s a comfort. I’ll go and put on my coat.”
Miss Fulton moved towards the hall and Bertha was following when Harry almost pushed
past.
“Let me help you.”
Bertha knew that he was repenting his rudeness she let him go. What a boy he was in
some ways – so impulsive – so – simple.
And Eddie and she were left by the fire.
“I wonder if you have seen Bilks’ new poem called Table d'Hôte,” said Eddie softly. “It’s
so wonderful. In the last Anthology. Have you got a copy? I’d so like to show it to you. It begins
with an incredibly beautiful line: ‘Why Must it Always be Tomato Soup?’”
“Yes,” said Bertha. And she moved noiselessly to a table opposite the drawing-room door
and Eddie glided noiselessly after her. She picked up the little book and gave it to him; they had
not made a sound.
While he looked it up she turned her head towards the hall. And she saw... Harry with Miss
Fulton’s coat in his arms and Miss Fulton with her back turned to him and her head bent. He tossed
the coat away,
70
put his hands on her shoulders and turned her violently to him. His lips said:
71
“I
adore you,” and Miss Fulton laid her moonbeam fingers on his cheeks and smiled her sleepy smile.
Harry’s nostrils quivered; his lips curled back in a hideous grin while he whispered:
72
“Tomorrow,”
and with her eyelids
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Miss Fulton said: “Yes.”
“Here it is,” said Eddie. “‘Why Must it Always be Tomato Soup?’ It’s so deeply true, don’t
you feel? Tomato soup is so dreadfully eternal.”
74
“If you prefer,” said Harry’s voice, very loud, from the hall, “I can phone you a cab to
come to the door.”
“Oh, no. It's not necessary,” said Miss Fulton, and she came up to Bertha and gave her the
slender fingers to hold.
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“Good-bye. Thank you so much.”
“Good-bye,” said Bertha.
Miss Fulton held her hand a moment longer.
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“Your lovely pear tree!” she murmured.
77
And then she was gone, with Eddie following, like the black cat following the grey cat.
“I’ll shut up shop,” said Harry, extravagantly cool and collected.
“Your lovely pear tree – pear tree – pear tree!”
78
Bertha simply ran over to the long windows.
79
“Oh, what is going to happen now?” she cried.
But the pear tree was as lovely as ever and as full of flower and as still.
80
Fonte: CESAR, Ana Cristina. O Conto “Bliss” Anotado”. In: Escritos da Inglaterra. São Paulo:
Brasiliense, 1988, p. 23-49.
ANEXO 2:
TRADUÇÃO DE ANA CRISTINA CESAR DO CONTO “BLISS” SEGUIDA DAS 80 NOTAS
ÊXTASE (BLISS)
1
Apesar dos seus trinta anos,
2
Bertha Young ainda tinha desses momentos em que ela queria
correr em vez de caminhar, ensaiar passos de dança subindo e descendo da calçada, sair rolando
um aro pela rua,
3
jogar qualquer coisa para o alto e agarrar outra vez em pleno ar, ou apenas ficar
quieta e simplesmente rir – rir – à toa.
4
O que fazer se aos trinta anos, de repente, ao dobrar uma esquina, você é invadida por uma
sensação de êxtase absoluto êxtase! como se você tivesse de repente engolido o sol de fim de
tarde
5
e ele queimasse dentro do seu peito, irradiando centelhas para cada partícula, para cada
extremidade do seu corpo?
6
Não há como explicar isso sem soar “bêbado e desordeiro”? Que idiota que é a civilização!
Para que então ter um corpo se é preciso mantê-lo trancado num estojo, como um violino muito
raro?
7
“Não, isso de violino, não é bem o que eu quero dizer”, pensou Bertha
8
correndo a escada
acima e catando na bolsa a chave que ela esquecera, como sempre e sacudindo a caixa do
correio. “Não é bem isso, porque obrigada, Mary” disse entrando no vestíbulo, “a babá
voltou?”.
“Já, sim senhora”.
“E as frutas, chegaram?”
“Sim, senhora. Já chegou tudo”.
“Traga as frutas para a sala de jantar por favor que eu quero fazer um arranjo antes de
subir.”
Estava escuro e um tanto frio na sala de jantar. Mesmo assim Bertha tirou fora o casaco:
impossível suportá-lo apertado contra o corpo mais um minuto que fosse; e o ar frio bateu nos seus
braços.
Mas no seu peito ainda havia aquela ardência aquela irradiação de centelhas que
queimavam.
9
Era quase insuportável. Bertha mal ousava respirar com medo de atiçar esse fogo, e
no entanto ela respirava, respirava profundamente. Mal ousava se olhar no espelho gelado mas
olhou, e o espelho devolveu uma mulher radiante, com lábios que sorriam, que tremiam, e olhos
grandes, escuros, e um ar de escuta, de expectativa de que alguma coisa divina acontecesse... que
ela sabia que tinha de acontecer... infalivelmente.
Mary trouxe as frutas numa bandeja e também uma travessa de louça, e um prato azul
muito lindo, com um estranho brilho, como se tivesse sido banhado em leite.
“Posso acender a luz, madame?”
“Não, obrigada. Ainda está dando para ver”.
Havia tangerinas e maçãs tocadas por manchas avermelhadas.
10
Havia pêras amarelas lisas
como seda, uvas brancas cobertas por uma floração prateada, e um cacho repleto de uvas
vermelhas,
11
comprado especialmente para combinar com os tons do novo tapete da sala.
12
Que
idéia pomposa e absurda! Mas na verdade ela havia comprado as uvas exatamente por essa razão.
13
“Eu preciso daquelas uvas vermelhas para puxar o tapete para a mesa”, ela pensara na loja, e o seu
desejo lhe parecera então absolutamente sensato.
14
Ao terminar o arranjo duas pirâmides de brilhantes formas arredondadas
15
Bertha se
afastou um pouco para apreciar o efeito, que lhe pareceu extraordinário. A mesa escura parecia se
dissolver na penumbra
16
e o prato de louça e a travessa azul pareciam soltos no ar.
17
E no seu atual
estado de espírito a visão era tão incrivelmente bela...
18
Bertha começou a rir.
“Não, não. Estou ficando histérica”. E ela agarrou a bolsa e o casaco e correu escada acima
para o quarto do bebê.
A babá
19
estava sentada numa mesa baixa dando de jantar para a pequena B. de banho
tomado. O bebê vestia uma camisolinha branca de flanela e um casaco de azul, o cabelo
castanho muito fino penteado para cima num rabinho engraçado, e ao ver a mãe começou a pular.
20
“Vamos lá, meu bem, come tudo como uma boa menina”, disse a babá torcendo a boca de
um jeito que Bertha conhecia e que significava que ela havia chegado outra vez no momento
errado.
“Ela ficou boazinha, babá?”
“Ela foi um amor a tarde toda”, murmurou a babá. “A gente foi ao parque e eu sentei e tirei
ela do carrinho e apareceu um cachorro enorme e ela deitou a cabeça no meu colo e ela agarrou a
orelha dele e deu um puxão, só vendo!”
21
Bertha queria perguntar se não era perigoso deixar um bebê agarrar a orelha de um
cachorro estranho. Mas não ousava, e ficou ali, olhando, as mãos abanando,
22
como a meninha
pobre em frente da menininha rica com a boneca.
O bebê olhou para a mãe outra vez e riu tão bonito que Bertha não se conteve:
“Babá, deixa que eu termino de dar a comida dela enquanto você arruma as coisas do
banho”.
“Não é bom para ela mudar de mãos durante a refeição”, respondeu a babá ainda num
murmúrio. “Agita, pode perturbar o bebê.”
Que absurdo tudo aquilo. Para que então ter um bebê se é preciso mantê-lo guardado
não num estojo como um violino muito raro – mas nos braços de outra mulher?
“Por favor!”
Muito ofendida, a babá passou o bebê para a mãe.
“Agora, não a excite depois do jantar. A senhora sabe. Depois ela me um trabalho!”
23
Ainda bem! A babá saíra do quarto com as coisas do banho.
“Agora você é minha, meu tesouro”, disse Bertha, e o bebê se encostou contra o seu
colo.
Ela comeu que foi um encanto, fazendo o bico para a colher e sacudindo as mãozinhas. Às
vezes ela não soltava a colher; e outras vezes, assim que Bertha enchia uma colherada, era comida
para os quatro ventos.
Terminada a sopa, Bertha se virou para a lareira.
“Você é um amor um amor!” disse beijando o seu bebê tão quentinho. “Eu gosto muito
de você. Eu gosto muito de você.”
E, realmente, ela amava tanto a pequena B seu pescocinho se inclinando para a frente,
seus dedinhos do que brilhavam transparentes contra o fogo da lareira e toda aquela sensação
de êxtase voltou novamente, e novamente ela não sabia como exprimir aquilo e o que fazer
daquilo.
“Telefone para a senhora” — era a babá que voltava triunfante e agarrava a sua pequena B.
Voando escada abaixo. Era Harry.
“Ah, é você, Bertha? Olha, eu vou chegar atrasado. Pego um táxi e venho assim que puder,
e aí você tira o jantar em dez minutos, está bem? Tudo bem?”
“Tudo ótimo. – Harry!"
“Quê?”
O que é que ela tinha a dizer? Nada.
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Ela não tinha nada a dizer. Ela queria um contato
com ele por um momento. Ela não podia exclamar como louca, “Não foi um dia divino!?”
“Que foi?” martelou a vozinha do outro lado.
“Nada. Entendu”, e Bertha desligou considerando que a civilização era muito mais que
meramente idiota.
Havia convidados para o jantar. Os Norman Knights um casal sólido ele ia abrir um
teatro, ela era entusiasmada por decoração de interiores; o jovem Eddie Warren, que tinha acabado
de publicar um livro de poesia e que todo mundo estava convidando para jantar, e um “achado” de
Bertha chamado Pearl Fulton. O que Miss Fulton
25
fazia Bertha não sabia ao certo. Elas haviam se
encontrado no clube e Bertha se apaixonara por ela, como se apaixonava sempre por belas
mulheres com alguma coisa de estranho.
O mais desconcertante nisso tudo era que apesar de terem se encontrado várias vezes e
conversado bastante, Bertha não conseguia entendê-la exatamente. Até um certo ponto Miss Fulton
era extraordinariamente, maravilhosamente franca, mas havia um certo ponto e daí ela não
passava.
Havia alguma coisa além? Harry dizia “Não”.
26
Achava-a insípida, e “fria como todas as
louras, talvez com um toque de anemia cerebral”. Mas Bertha não podia concordar; pelo menos
ainda não.
“O jeito dela se sentar com a cabeça meio inclinada para o lado, e sorrindo, qualquer
coisa por trás disso, Harry, e eu preciso descobrir o que é.”
“Muito provavelmente um bom estômago”, respondia Harry.
Ele fazia questão de provocá-la com respostas do gênero... “fígado congelado, menina”, ou
“pura flatulência”, ou “mal dos rins”... e assim por diante. Por alguma estranha razão Bertha
gostava disso e quase que o admirava por falar assim.
Bertha passou para a sala de estar e acendeu a lareira, e então, uma a uma, atirou nas
poltronas e sofás todas as almofadas que Mary havia arrumado tão cuidadosamente.
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Que
diferença a sala tomou vida imediatamente. No momento em que ia jogar a última almofada,
surpreendeu-se retendo-a contra o corpo e abraçando-a com paixão – com paixão.
28
Mas o fogo não
se extinguia no seu peito. Ah, pelo contrário!
As janelas da sala se abriam para uma varanda que dava para o jardim. No extremo oposto,
contra o muro, havia uma árvore
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alta e esguia, em flor, luxuriantemente em flor, perfeita,
30
como
se apaziguada contra o céu de jade. Bertha não podia deixar de notar, mesmo a distância, que não
havia na árvore nem um broto por abrir, nem uma pétala esmaecida.
31
Embaixo, nos canteiros,
tulipas amarelas e vermelhas pareciam inclinar-se sob o próprio peso contra a penumbra da tarde.
Um gato cinzento, arrastando-se pelo chão, atravessou furtivamente
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o gramado, seguido por um
gato negro, como se fosse a sua sombra. A passagem dos dois gatos,
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tão precisa e rápida,
provocou em Bertha um estranho arrepio.
“Gatos são coisas aflitivas!” gaguejou, e afastou-se da janela, e começou a andar de um
lado para o outro...
Como os junquilhos perfumavam a sala quente! Demais? Não, não demais. E como se
subitamente invadida por alguma coisa, Bertha atirou-se no sofá e apertou os olhos contra as mãos.
“Eu estou feliz demais – demais!” murmurou.
E parecia ver dentro de suas pálpebras a maravilhosa árvore do jardim, completamente em
flor, como um símbolo da sua própria vida.
Era verdade ela tinha tudo. Era jovem. Harry e ela se amavam como nunca, davam-se
esplendidamente bem, eram realmente bons companheiros. Ela tinha um bebê adorável. Não havia
que se preocupar com dinheiro.
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A casa e o jardim eram absolutamente satisfatórios. E os amigos
amigos modernos, envolventes, escritores e pintores e poetas ou pessoas interessadas em
questões sociais exatamente os amigos que eles desejavam. E havia livros, e a música, e uma
ótima costureirinha recém-descoberta, e eles iam viajar para o exterior no verão, e a cozinheira
nova fazia omeletes fantásticas...
“Eu estou ficando louca. Louca!” E ela sentou-se; mas sentia-se tonta, bêbada. Devia ser a
primavera. Claro, era a primavera.
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E agora ela estava tão cansada que não podia nem ao menos se
arrastar escada acima para se vestir.
Um vestido branco, um colar de contas de jade, sapatos verdes e meias de seda. Não fora
intencional. Ela havia imaginado essa combinação horas antes de ter se deixado ficar diante da
janela da sala.
As pregas do vestido
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farfalharam suavemente entrando no vestíbulo, e Bertha beijou a
sra. Norman Knight, que tirava um casaco laranja dos mais divertidos, com uma fileira de macacos
pretos em volta da bainha e subindo pela frente.
“Mas por quê? Por quê? Por que a classe média é tão indigesta tão completamente sem
senso de humor? Minha querida, é por pura sorte que eu estou aqui esta noite Norman foi o meu
anjo protetor. Os meus macacos queridos causaram um verdadeiro escândalo no trem chegou ao
ponto do trem inteiro simplesmente me devorar com os olhos. Ninguém riu, ninguém achou graça,
nada disso que eu teria adorado. Simplesmente me devoraram com os olhos e eu me entediei
como o diabo.”
37
“Mas o máximo aconteceu”, continuou Norman ajeitando o seu enorme monóculo de aro
de tartaruga, “você não se importa se eu contar, se importa, Careta? (Em casa e entre amigos eles
sempre se tratavam de Careta e Coroa.
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) “O máximo foi quando ela saturada se virou para a
mulher ao lado e disse: ‘A senhora nunca tinha visto um macaco antes?’ ”
Ah, é verdade!” riu junto a sra. Norman Knight. “Isso não foi absolutamente o máximo?”
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E o mais engraçado era que sem o casaco ela se parecia definitivamente com um macaco
muito inteligente que até tivesse feito para si mesmo, com cascas de banana, aquele vestido
amarelo de seda. E os brincos de âmbar eram exatamente como duas minúsculas castanhas
penduradas.
“Trágica queda foi aquela, compatriotas!” recitou Coroa parando em frente do carrinho da
pequena B. “Quando o carrinho do bebê chegou à porta e ele abandonou a citação no meio do
caminho com um gesto.
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A campainha tocou. Era o magro e pálido Eddie Warren, como sempre em estado de
aflição aguda.
“Essa é a casa certa, não é?
“Acho que sim – espero que sim”, respondeu Bertha efusivamente.
“Acabo de ter uma experiência terrível com o motorista do táxi; era um tipo dos mais
sinistros, disparando pelas ruas, e eu não conseguia fazer que ele parasse. Quanto mais eu batia
mais ele corria. Aquela figura bizarra à luz do luar com a cabeça achatada, todo encolhido em
cima do volante...”
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E Eddie estremeceu todo ao tirar fora o imenso cachecol de seda. Bertha notou que suas
meias também eram brancas – muito atraente.
“Mas que horror!” exclamou.
“Realmente, foi um horror”, disse Eddie e seguiu atrás para a sala. “Eu me vi conduzido
através da Eternidade num táxi intemporal...”
Eddie conhecia os Knights, e até ia escrever uma peça para NK quando o esquema do
teatro saísse.
“Então, Warren, como vai a peça?” perguntou Norman Knight deixando cair o monóculo e
dando um minuto para o olho voltar à superfície antes de atarrachá-lo outra vez.
E a sra. Norman Knight: “Ah, mas que escolha tão feliz de meias, sr. Warren!”
“Fico tão contente que a senhora tenha gostado”, disse Eddie mirando os próprios pés.
“Elas parecem que ficaram muito mais brancas desde que a lua surgiu no céu.” E voltando o rosto
fino e angustiado para Bertha: “Tem lua cheia hoje, sabe?”
Ela queria gritar: “Eu sei que tem – eu sei – eu sei!”
Ele era uma pessoa tão sedutora. Mas Careta também era, encolhida junto ao fogo nas suas
cascas de banana, e Coroa também, fumando um cigarro e dizendo ao bater a cinza: “Por que deve
o noivo sempre tardar?”
“Aí vem ele!”
Bang – a porta da frente abriu e fechou. Harry gritou:
“Alô, todo mundo. Desço em cinco minutos”. E todo mundo ouviu que ele zunia escada
acima. Bertha não pôde deixar de sorrir; ela sabia o quanto ele gostava de fazer as coisas sob alta
pressão. O que importavam cinco minutos afinal de contas? Mas ele fingiria para si mesmo que
cinco minutos importavam acima de tudo. E faria questão de entrar na sala extravagantemente
calmo e contido.
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Harry tinha tanto gosto pela vida. Como ela apreciava isso nele. E a sua paixão pela luta
por procurar em tudo que lhe aparecia pela frente mais um teste do seu poder e da sua coragem
ela também entendia. Mesmo quando, ocasionalmente, diante de quem não o conhecia direito, ele
ficava talvez um pouquinho ridículo... Havia horas em que ele entrava em riste
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na batalha onde
não havia batalha alguma... Bertha falava e ria e tinha até se esquecido inteiramente, até o
momento em que ele entrou na sala (exatamente como ela imaginara), que Pearl Fulton ainda não
havia chegado.
“Será que Miss Fulton se esqueceu?”
“Parece que sim”, disse Harry. “Ela tem telefone?”
“Ah, vem um táxi”. E Bertha sorriu com aquele seu arzinho de propriedade que ela
sempre assumia quando seus achados eram mulheres novas e misteriosas. “Ela vive dentro de
táxis.”
“Vai engordar se continuar assim”, disse Harry friamente, tocando a campainha para o
jantar. “Grave perigo que correm as mulheres louras.”
“Harry – por favor”, admoestou Bertha, rindo dele.
Passou-se um outro breve momento, em que todos esperaram, rindo e conversando, um
pouco à vontade demais, um pouco descontraídos demais. E então Miss Fulton, toda de prateado,
com uma tira de prata prendendo o cabelo louro muito claro, entrou sorrindo, a cabeça ligeiramente
inclinada para o lado.
“Me atrasei muito?”
“De jeito nenhum. Entre”, disse Bertha dando-lhe o braço, e passaram para a sala de
jantar.
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O que é que havia no contato com aquele braço que atiçava incendiava incendiava o
fogo do êxtase que Bertha não sabia como exprimir – e o que fazer daquilo?”
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Miss Fulton não olhou para ela; mas Miss Fulton raramente olhava diretamente para as
pessoas. Suas pálpebras se fechavam pesadamente
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e aquele estranho meio sorriso ia e vinha dos
seus lábios com se ela vivesse de ouvir e não de ver. Mas Bertha sabia,
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subitamente, como se elas
tivessem trocado
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o olhar mais longo e mais íntimo – como se elas tivessem dito uma para a outra:
“Você, também?” que Pearl Fulton, ao mexer a bela sopa vermelha no prato cinza, estava
sentindo exatamente o que ela estava sentindo.
E os outros? Careta e Coroa, Eddie e Harry, colheres subindo e baixando, guardanapos
tocando lábios, migalhas de pão, tilintar de garfos e copos e conversas.
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“Encontrei com ela no Alpha Show – uma criaturinha esquisitíssima. Além de cortar fora o
cabelo, ela parece que também tirou um bom pedaço das pernas e dos braços e do pescoço e do
pobre narizinho também.”
“Ela não está muito liée com Michael Oat?”
“Aquele que escreveu Amor e Dentadura?
“Ele quer escrever uma peça para mim. Ato único. Um único personagem que decide se
suicidar. Passa a peça enumerando todas as razões a favor e contra. E justo quando ele se decide
por uma coisa ou outra – pano. Não é má idéia.”
“Como é que a peça vai se chamar? ‘Mal de estômago’?”
“Se não me engano, eu dei com a mesma idéia numa revista francesa não muito
conhecida aqui.”
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Não, eles não sentiam a mesma coisa. Eram todos uns amores – uns amores – e ela adorava
tê-los ali, na sua mesa, e dar-lhes comida e vinho esplêndidos. Ela até desejaria dizer que ótimos
todos eles eram, e que grupo tão decorativo que formavam, e como pareciam deslanchar uns aos
outros e como a lembravam de uma peça de Tchecov!
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Harry estava degustando o jantar com prazer. Era parte da sua – não bem da sua natureza, e
certamente não da sua pose bem, ou de uma coisa ou de outra falar de comida e se vangloriar
da sua “paixão desenfreada pela carne branca da lagosta” e “sorvetes de pistache verdes e frios
como as pálpebras das dançarinas egípcias”.
Então ele olhou para ela e disse: “Bertha, este soufflé está admirável” e ela poderia ter
chorado de prazer como uma criança.
Por que sentia tanta ternura pelo mundo inteiro nessa noite? Tudo estava bom e certo.
Tudo que acontecia parecia encher outra vez até a borda a taça transbordante do seu êxtase.
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E no fundo da sua mente ainda havia a árvore, que devia estar toda prateada agora,
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à luz
da lua do pobre Eddie querido, prateada como Miss Fulton, que estava ali sentada virando uma
tangerina nos seus dedos finos e tão pálidos que pareciam emanar uma luz.
O que era simplesmente incompreensível e mágico era como ela havia sido capaz de
adivinhar tão perfeitamente e instantaneamente o estado de espírito de Miss Fulton. Nem por um
momento ela duvidara de que sabia, e no entanto o que havia de concreto?
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Menos que nada.
“Acho que isso acontece muito raramente entre mulheres. Nunca entre homens”, pensou
Bertha. “Enquanto eu preparo o café na sala talvez ela me ‘faça o sinal’.”
O que aquilo queria dizer ele não sabia, e o que poderia acontecer depois ela não podia
imaginar.
Enquanto essas coisas lhe passavam pela cabeça, ela se viu conversando e rindo. Era
preciso conversar para controlar o seu desejo de rir.
“Eu rio ou morro”.
E então ela notou a mania engraçada de Careta de enfiar alguma coisa no decote – como se
ali também ela guardasse uma minúscula provisão de castanhas e Bertha teve de enterrar as
unhas nas palmas das mãos para não rir demais.
O jantar terminou finalmente. “Venham ver a minha nova cafeteira”, disse Bertha.
“E de quinze em quinze dias que nós trocamos de cafeteira”, disse Harry. Careta foi
quem deu o braço a Bertha dessa vez; Miss Fulton seguiu atrás, inclinando a cabeça para o lado.
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Na sala de jantar, o fogo havia esmaecido e agora, vermelho, tremeluzindo, parecia,
segundo Careta, um “ninho de filhotes de fênix”.
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“Não acenda a luz ainda. Está tão bonito”. E se enroscou ela novamente junto ao fogo.
Sempre com frio,
57
“agora o mico do realejo está sem o seu casaquinho vermelho de flanela”,
pensou Bertha.
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Nesse momento Miss Fulton “fez o sinal”.
“Você tem um jardim?” disse a voz calma e sonolenta.
Foi tão sublime da parte dela que Bertha pôde apenas obedecer. Atravessou a sala, abriu as
cortinas e as longas janelas.
“Aí está!” disse num alento.
E as duas mulheres se deixaram ficar ali, lado a lado, olhando para a esguia árvore em flor.
Embora imóvel, a árvore parecia estender-se para cima, subir, tremer no ar brilhante como a chama
de uma vela, e crescer, crescer mais alto diante delas – quase tocar a borda da lua cheia prateada.
59
Por quanto tempo elas ficaram ali? Era como se as duas estivessem presas naquele círculo
de luz extra-terrena, entendendo-se uma à outra perfeitamente, criaturas de um outro mundo,
perguntando-se o que fazer neste mundo com todo aquele tesouro sublime
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que queimava dentro
do peito
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e se derramava em flores prateadas pelos seus cabelos e mãos?
Para sempre ou por um segundo? E Miss Fulton murmurara mesmo “Sim, exatamente
isso” ou Bertha havia sonhado?
Então a luz acendeu de repente e Careta fazia
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café e Harry dizia “Minha querida, não me
pergunte nada sobre o bebê. Eu nunca vejo a minha filha. E não vou me interessar o mínimo até o
dia em que ela arranjar um amante”, e Coroa tirava por um minuto o olho da estufa e outra vez o
metia sob o vidro
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e Eddie Warren bebia café e pousava a xícara com uma expressão de angústia
como se ele tivesse engolido uma aranha e percebido.
“O que eu quero é abrir um espaço para os novos. Londres está simplesmente fervilhando
com peças de primeira que ainda não foram escritas. O que eu quero é dizer ‘Aí está o teatro. Vão
em frente’.”
“Sabe, meu bem, eu vou fazer a decoração da sala dos Jacob Nathans. Estou tão tentada a
montar um esquema ‘peixe frito’, com o espaldar das cadeiras em forma de frigideira e lindas
batatas fritas bordadas nas cortinas.”
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“O problema com os nossos novos escritores é que eles ainda são românticos demais. Não
se pode embarcar num navio sem enjoar e precisar de uma boa bacia.
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Por que não ter a coragem
de pedir a bacia?”
“Um poema pavoroso sobre uma menina que é violada por um mendigo sem nariz num
bosque...”
Miss Fulton se afundou na poltrona mais funda e macia e Harry ofereceu cigarros para o
grupo.
Pelo jeito dele, ali na frente dela, sacudindo a caixa de prata e dizendo bruscamente:
“Egípcios? Turcos? Virgínias? Estão todos misturados”, Bertha percebeu que ela não apenas o
irritava; ele definitivamente não gostava dela. E pelo jeito de Miss Fulton dizer “Não, obrigada,
não quero fumar”, Bertha decidiu
66
que ela também sentia o mesmo, e estava ofendida.
“Harry, não a deteste. Você está enganado a respeito dela. Ela é maravilhosa, maravilhosa.
E além do mais como é que você pode sentir tão diferente a respeito de alguém que significa tanto
para mim? Hoje à noite na cama vou tentar contar o que se passou entre nós. O que ela e eu
compartilhamos.”
Junto com essas últimas palavras, alguma coisa de estranho e quase aterrorizante cruzou o
seu pensamento. Uma coisa cega, eu sorria e murmurava:
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“Logo essas pessoas vão partir. A casa
vai ficar quieta, muito quieta. As luzes apagadas.
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E você e ele sozinhos, juntos, no quarto escuro,
na cama quente...”
Bertha levantou-se num ímpeto da poltrona e correu para o piano.
“Que pena que ninguém toca!” falou bem alto. “Que pena que ninguém toca!”
Pela primeira vez na vida Bertha Young desejou o seu marido.
Ela o tinha amado, claro, e tinha estado apaixonada por ele, mas nunca exatamente daquele
jeito. E ela havia compreendido, é claro, que ele era diferente. Eles haviam discutido tantas vezes
sobre isso. A princípio, ela se preocupara terrivelmente ao descobrir que era tão fria, mas depois de
um tempo não parecia mais importar. Eles eram tão francos um com o outro tão bons
companheiros. Nisso residia o melhor de ser moderno.
Mas agora – ardentemente! ardentemente! A palavra doía no seu corpo ardente! Era para aí
que a levava toda aquela sensação de êxtase? Mas então, então –
“Minha querida”, disse a sra. Norman Knight, “você sabe o nosso drama. Nós somos
vítimas do tempo e dos trens. Moramos em Hampstead. Foi tudo ótimo.”
“Vou com vocês até a porta”, disse Bertha. “Adorei vocês terem vindo. Mas vocês não
podem perder o último trem.
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Que coisa irritante, não é mesmo?”
“Um uísque antes de ir, Knight?” chamou Harry.
“Não obrigado, meu velho.”
Bertha apertou a mão dele mais um pouco em gratidão.
“Boa-noite, boa-noite”, ela gritou do último degrau, sentindo que uma parte dela se
despedia deles para sempre.
Ao voltar para a sala, os outros estavam de partida.
“... e você pode vir parte do caminho no meu táxi.”
“Eu fico tão grato de não ter que enfrentar sozinho um outro motorista depois da minha
terrível experiência.”
“Vocês podem pegar um táxi num ponto bem no fim da rua. precisa andar um
pouquinho.”
“Ainda bem. Vou buscar o meu casaco.”
Miss Fulton dirigiu-se para a entrada e Bertha ia seguindo atrás quando Harry quase que a
empurrou.
“Deixa que eu ajudo.”
Bertha sabia que ele estava arrependido da sua indelicadeza e deixou-o passar. Ele era
um menino às vezes – tão impulsivo – tão simples.
E Eddie e ela sobraram ali perto da lareira.
“Você chegou a ver o novo poema de Bilks chamado Table d’Hôte?” perguntou Eddie
suavemente. “É ótimo. Saiu na última Antologia. Você tem uma cópia? Eu queria tanto mostrar
para você. Começa com uma linha incrivelmente bela: ‘Por que sempre sopa de tomate?”
“Tenho”, disse Bertha, e dirigiu-se silenciosamente para a mesa em frente à porta da sala, e
Eddie deslizou silenciosamente atrás dela. Apanhou o livrinho e o passou para as mãos dele;
nenhum dos dois havia feito um ruído sequer.
Enquanto Eddie folheava o livro, Bertha virou a cabeça em direção ao vestíbulo. E ela
viu... Harry com o casaco de Miss Fulton nos braços e Miss Fulton de costas para ele, a cabeça
inclinada para o lado. Harry afastou bruscamente o casaco,
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pôs as mãos nos ombros dela e a virou
com violência. Seus lábios diziam:
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“Eu te adoro”, e Miss Fulton pousou seus dedos cor de luar no
rosto dele e sorriu seu sorriso sonolento. As narinas de Harry tremeram; seus lábios se crisparam
num esgar horrível ao sussurrarem:
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“Amanhã”, e com um bater de olhos
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Miss Fulton disse:
“Sim”.
“Aqui está”, disse Eddie. “‘Por que sempre sopa de tomate?’ É uma verdade tão profunda,
você não acha? Sopa de tomate é uma coisa tão terrivelmente eterna.”
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“Se você preferir”, disse a voz de Harry, muito alta, do vestíbulo, “eu posso chamar um
táxi pelo telefone.”
“Não, não é preciso”, respondeu Miss Fulton, e aproximando-se de Bertha ofereceu-lhe
seus dedos muito finos.
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“Até-logo. Muito obrigada.”
“Até-logo”, disse Bertha.
Miss Fulton reteve a sua mão por mais um momento.
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“Que linda a sua árvore!”
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E então ela partiu, Eddie atrás, como o gato negro seguindo o gato cinzento.
“Vou trancar a casa”, disse Harry, extravagantemente calmo e contido.
“Sua árvore linda – linda – linda!”
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E Bertha apenas correu para as longas janelas dando para o jardim.
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“E agora, o que vai acontecer?” exclamou.
Mas a árvore continuava tão bela e florida e imóvel como sempre.
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ANOTAÇÕES
NOTA 1
A tradução de título merece atenção especial. Não existe equivalente para bliss, em
português. Nos dicionários palavras com sentido aproximado: felicidade, alegria, satisfação,
contentamento, bem-aventurança etc. Decidi usar a palavra êxtase, porque ela exprime uma
emoção que, ou ultrapassa a palavra felicidade – ou é mais forte do que ela. Creio que é importante
estabelecer a diferença entre êxtase e felicidade. Êxtase sugere a sensação de uma espécie de
suprema alegria paradisíaca, que só pode ser sentida em ocasiões muito especiais: em momentos de
satisfação na relação bebê/mãe, em outras relações apaixonadas “primitivas”, em fantasias
homossexuais, no êxtase religioso e, muito raramente, na “vida real”, nos relacionamentos entre
adultos. Poder-se-ia dizer que o êxtase é, basicamente, uma emoção imaginária cheia de força e do
poder próprios do imaginário.
Uma citação interessante de C. Isherwood estabelece a diferença entre bliss (êxtase) e
plain happiness (felicidade). O narrador passa a ter a sensação de que o termo felicidade está mais
relacionado com relações heterossexuais, enquanto êxtase, que é mais violento e “sensacional” e
não apenas uma sensação de felicidade, é aquilo que uma pessoa busca em relações homossexuais
(alguma coisa que não é propriamente deste mundo?). A citação está no livro de Paul Piazza,
Christopher Isherwood, Myth and Anti-Myth, e refere-se a seu romance A Single Man, que trata de
um “frustrado homossexual, de meia-idade”:
“Com ela, pela primeira vez no romance, ele começa a sentir essa coisa absolutamente
misteriosa e alheia aos sentidos - não é ‘bliss’, nem êxtase, nem alegria é uma sensação de total
felicidade. Das Glueck, le bonheur, la felicidad (palavras que pertencem a gêneros diferentes), mas
temos que admitir, mesmo a contragosto, que a língua espanhola leva a melhor: é termo feminino,
criado para a mulher”.
A referência de Isherwood a outras línguas nos torna mais conscientes da ausência de
tradução para essa palavra inglesa, de significado tão especial. É, porém, interessante notar que a
palavra que ele usa logo depois de bliss é ecstasy.
Êxtase foi a palavra que escolhi para traduzir Bliss. É uma palavra forte, proparoxítona de
boa cepa, tem uma aguçada tonalidade religiosa e não pode ser confundida com just plain
happiness (felicidade). No entanto, eu usaria o título em inglês entre parênteses, logo depois, e,
provavelmente, seria essa a única nota que faria para leitores brasileiros.
NOTA 2
Comparar: “Although Bertha Young was thirty” com “Apesar dos seus trinta anos”.
Em português pode-se fazer uso desse recurso, que consiste na redução da frase e na
supressão do pronome pessoal e do verbo, diminuindo-se, assim, a tensão sintática.
O mesmo procedimento é visível no início do parágrafo seguinte e em outros trechos da
história:
“What can you do if you are thirty...”
“O que fazer se aos trinta anos...”
NOTA 3
A expressão “to bowl a hoop” exigiu alguma pesquisa, porque se trata de uma brincadeira
antiga, sem palavra de sentido equivalente em português moderno Lendo a expressão “rolar um
aro”, o leitor provavelmente pensará numa brincadeira bastante popular algum tempo. Não se
trata, porém, de uma expressão de significado idêntico: a palavra usada na tradução é menos exata.
Creio, contudo, que ela evoca visualmente o jogo, acrescentando a idéia de um movimento ao
longo da calçada – que não tem relação com a cena descrita por Proust, no jardim do Luxemburgo.
NOTA 4
“... and laugh at – nothing – at nothing, simply.”
No conto há uma longa série de iterações, das quais este é o primeiro exemplo. A iteração é
usada principalmente nos momentos em que a história se refere aos sintomas do êxtase de Bertha
(nível de conteúdo) ou quando o narrador está tentando revelar o tom de Bertha (nível da técnica
narrativa). Tratei mais desse problema na nota 78. Depois de notar a repetição do recurso, percebi
que não poderia estabelecer uma regra para sua tradução. Cada iteração requeria uma solução
diferente e isso acontece na medida em que se verificam repetições de sons: um forte recurso
fonético, que tem ressonâncias diferentes em línguas diferentes.
No primeiro caso, transferi a ênfase para o verbo:
“... e simplesmente rir – rir à toa...”
basicamente por que à-toa é uma expressão demasiado forte e também porque a repetição do som
ee em “rir rir” me pareceu bastante efetiva. A mesma escolha fonética irá ocorrer na última
iteração do conto (nota 78).
A transferência da ênfase para o verbo ocorre, novamente, mais adiante e também para se
obter um efeito sonoro de maior qualidade: ...and yet she breathed deeply, deeply...”/ “e, no
entanto, ela respirava, respirava profundamente.”
Não existe nenhuma alteração semântica real, mas note-se que a frase, em português, é
maior.
Esse processo não ocorre no trecho em que Bertha “surprised herself by suddenly hugging
it to her, passionately, passionately.” / “surpreendeu-se retendo-a contra o corpo e abraçando-a com
paixão.” (ver também a nota 28).
Às vezes, a tradução é bem literal:
“... a feeling of bliss – absolute bliss...” / “... uma sensação de êxtase – absoluto êxtase!...”
“They were dears dears .../ “Eram todos uns amores uns amores...” ; “But now ardently!
ardently!” / “Mas agora – ardentemente! ardentemente!...”
Às vezes ignorei a iteração:
“... like a rare, rare fiddle...” / “... como um violino muito raro”; “I believe this does happen very,
very rarely between women.” / “Acho que isso acontece muito raramente entre mulheres.”
Por vezes, pratiquei uma intervenção drástica, alterando semanticamente o original, para
obter melhor efeito: “She wanted to cry: ‘I am sure there is – often – often! / “Ela queria gritar: “Eu
sei que tem – eu sei – eu sei!”
E também:
“What was there in the touch of that cool arm that could fan fan start blazing blazing the
fire of bliss...” / “O que é que havia no contato com aquele braço que atiçava incendiava
incendiava – o fogo do êxtase...”
O excesso de rimas que a forma verbal produz (a terminação ava no imperfeito do
indicativo) não permitiria uma iteração dupla, como no original.
A frase acima citada vai aparecer ainda na nota 45.
NOTA 5
No conto uma longa série de imagens de prazer oral (emoção traduzida em termos de
alimento), das quais este é o primeiro exemplo. Em seu ensaio sobre Bliss, Marvin Magalaner
aponta que:
“A história se apóia fortemente em imagens de comida, no ato de comer e beber e em
outras sugestões de satisfação oral, como o ato de fumar. O primeiro dever de Bertha, ao entrar em
casa, consiste em dar uma arrumação elegante às frutas; essa tarefa, que é muito simples, suscita
nela uma reação emocional que raia o ‘histérico’. Em seguida, luta surdamente com Nanny para ter
o direito de dar de comer a sua própria filha. O resto da história focaliza o jantar festivo, os
convidados, a conversa à mesa, depois o café e cigarros no salão: em seguida, o episódio da pereira
e da lua batendo no jardim e a epifania final de Bertha sobre a traição de seu marido com Pearl.
“Mesmo quando a trama não necessita de alusões ao ato de digerir, mascar, morder,
engolir, beber etc., ao tubo digestivo, à indigestão e coisas do mesmo estilo, Bliss faz essas alusões,
sempre que possível. O sorriso distante de Pearl é explicado humoristicamente por Harry como
conseqüência de uma indigestão de fígado, ou ‘pura flatulência’, ou talvez ‘mal dos rins’. O leitor
fica sabendo, gratuitamente, que a nova cozinheira da família Young faz ‘omeletes fantásticas’; a
senhora Norman Knight se queixa de que os simplórios viajantes de trem a ‘devoravam’ com os
olhos, para em seguida caracterizar o episódio como ‘creamy’. Bertha imagina que a convidada fez
‘com cascas de banana, aquele vestido amarelo de seda’ e olha os brincos da sra. Knight como se
fossem ‘duas minúsculas castanhas penduradas’. A fascinação de Harry por Pearl Fulton se
esconde atrás de palavras: ele se expressa com grande facilidade ao falar sobre comida e não
esconde sua ‘paixão desenfreada pela carne branca da lagosta’, por ‘sorvetes de pistache verdes e
frios como as pálpebras das dançarinas egípcias’, predileção essa que remete o leitor a uma
referência na mesma página sobre as pálpebras de Miss Fulton, que ‘se fecharam pesadamente’ .
Durante todo o jantar, e de maneira bastante óbvia, aquela conversa pretensiosa gira ao redor de
imagens relativas ao ato de comer. A peça de Michael Oat (aveia) recebe o título de ‘Amor e
Dentadura’. O mais recente trabalho daquele teatrólogo é batizado de ‘Mal de Estômago’. E à
medida que jantam, ‘as colheres subindo e baixando, guardanapos tocando lábios, migalhas de pão,
tilintar de copos e conversas’, os dedos de Pearl sugerindo uma tangerina. A sra. Knight esconde
alguma coisa ‘no decote como se ali também ela guardasse uma minúscula provisão secreta de
castanhas’ e o grupo ouve falar do ‘esquema peixe frito’, de decoração de interiores, do ‘espaldar
das cadeiras em forma de frigideira e lindas batatas fritas bordadas nas cortinas’. Os novos
escritores são conclamados a abandonar o estilo romântico pelo realista e esse apelo é visto como
uma necessidade de se vomitar em cima da literatura contemporânea. As alusões literárias estão
intimamente baseadas em imagens sobre comida e são mencionados dois poemas: ‘Table d’Hôte’ e
‘Por que sempre sopa de tomate?”.
Citei todo o trecho, que é de leitura vagamente escatológica, porque ele fornece um
inventário completo das imagens relacionadas com o ato de comer, que são usadas no conto; por
vezes, essas imagens proporcionarão ao tradutor a oportunidade de se defrontar com opções
interessantes.
No primeiro exemplo, quando KM usa a comparação “as though you’d suddenly
swallowed a bright piece of the late afternoon sun”, resolvi concentrar o impacto da imagem
apenas sobre o verbo. Assim, a tradução, em português, fica: “como se você tivesse de repente
engolido o sol de fim de tarde”. O resultado é uma hipérbole espantosa: em vez de engolir um
pedaço brilhante do entardecer, o personagem tem agora que engolir todo o sol poente. Omiti “a
bright piece” não para obter um efeito hiperbólico, mas apenas para evitar uma estranha e
rebarbativa explicação, em português, assim como o tom pouco natural de “um pedaço brilhante do
sol de fim de tarde”. Paradoxalmente, apesar de a força hiperbólica da comparação ficar mais
intensa, em português, a tradução soa mais fluente e sintética, sem o uso da expressão “bright
piece”. “Um pedaço brilhante” constituiria uma pedra de tropeço que levaria o leitor a tomar
consciência do absurdo desse êxtase.
NOTA 6
“... sending out a little shower of sparks into every particle, into every finger and toe...”
Como na anotação anterior, optei por cortes que eliminassem uma tradução exagerada ou
deselegante. Inesperadamente, o efeito da tradução em português foi a generalização de uma
imagem específica.
‘A little shower’ é uma expressão que considerei intraduzível, porque ‘chuveirinho’ soa
prosaico demais, parece palavra muito ligada à idéia de um banheiro, em português. A solução foi
encontrar um verbo mais rico e confiar na força da bela palavra ‘centelhas’, que contém,
igualmente, a idéia do movimento sugerido por ‘a little shower of sparks”: “... irradiando centelhas
para cada partícula, para cada extremidade do seu corpo...”
De novo caí numa generalização ao traduzir “every finger and toe” por “cada extremidade
do seu corpo”. Não existe quase oposição semântica entre dedos da mão e do pé, tanto em
português, como em outras línguas. Uma tradução literal, nesse caso, soaria ridícula. A solução
leva a um tom mais nobre.
Muitas vezes, durante a tradução, senti que estava beirando o ridículo. Senti que tinha o
“dever” de evitar que os sentimentos de Bertha soassem ridículos, exatamente porque, facilmente,
poderiam ser lidos dessa forma. muita sensibilidade nesse movimento sutil da autora: ela
consegue evitar que o potencial de ridículo de uma situação aflore completamente ao nível da
frase. Parece que KM brinca à beira de um abismo; creio, porém, que ela sentia carinho por Bertha
e respeitava seus sentimentos, tornando-se, assim, possível uma identificação. É claro que ela não
trata nenhum dos outros personagens com o mesmo cuidado.
Como afirmei na introdução, Bliss constitui um exemplo de “ficção em duas tonalidades”,
em que o jogo entre a coisa séria e a intenção irônica tem uma regularidade que, virtualmente,
forma à estrutura. Não afirmei, porém, que essa dualidade se concentrasse em Bertha. A relação do
narrador com Bertha é ambígua seus sentimentos ora são tratados com sinceridade, ora com
ironia. Mas os outros personagens não merecem piedade, nem segundas intenções, nem dualidade
de tom. Não há dúvida sobre o que o narrador pensa a respeito deles.
Este conflito entre Bertha e os outros, ou entre o carinho ambíguo sobre os outros
personagens, revelam uma contradição que é absolutamente fundamental para a compreensão desta
história e até mesmo da obra de KM, em geral. Passo a citar o que Isherwood diz, em seu ensaio
sobre KM:
“Não creio que um ponto de vista infantilmente ingênuo e o de um adulto se tenham
jamais fundido completamente em qualquer história de KM. É que o seu psiquismo dividido
produziu uma autora dividida, ou, para sermos mais claros, duas autoras distintas. O que de
melhor na obra de Mansfield resulta da colaboração entre as duas escritoras. Era, no entanto, uma
colaboração dificultosa, que a qualquer momento podia transformar-se numa luta, com suas
conseqüentes dificuldades. No momento em que uma escritora obrigava a outra a afastar-se da
escrivaninha, para poder trabalhar sozinha, o resultado era de qualidade inferior.
“A escritora A é uma Mansfield infantil, intuitiva, uma poeta. Ela transmite clarividentes
clarões de percepção, que aparecem, principalmente, nas histórias da Nova Zelândia. O leitor fica
extasiado com sua sensibilidade para com os seres ou objetos uma flor, um bule de chá pintado,
um pássaro a voar tudo isso é visto, por um momento, como algo que tem o direito de ser uma
maravilha, no microcosmo da criação. Esses instantes de percepção têm a marca da genialidade,
mas por isso mesmo são intermitentes. A escritora A é um médium, com os lapsos de um médium
– e um médium meio desonesto: quando ela finge, o tom soa falso e embaraçosamente sentimental.
Às vezes, essas alternâncias de verdade poética e de falsidade sentimental ocorrem com uma
freqüência espantosa, como, por exemplo, na descrição do nascer do sol, no início do conto At the
Bay.
“A escritora B é uma Mansfield crítica, um adulto inteligente e satírico. Ela pode refrear
impiedosamente o sentimentalismo da escritora A, se lhe for permitido. A escritora B pode criar,
subitamente, retratos miniaturais extremamente engraçados, como faz com a enfermeira Andrews,
em The Daughters of the Late Colonnel. Pode também expor a futilidade de uma mulher, como a
de Isabel, em Marriage à la Mode, com terrível e bela exatidão. O único problema é que, às vezes,
ela é inteligente demais. Constrói tramas inteligentíssimas para suas histórias e tenta fazer com que
a escritora A colabore com ela. Lemos essas histórias e ficamos, inicialmente, maravilhados:
depois, aos poucos, a dúvida se insinua em nós”.
Em que momento começamos a duvidar, em Bliss?
NOTA 7
“Why be given a body if you have to keep it shut up in a case like a rare, rare fiddle?”
“Para que então ter um corpo se é preciso mantê-lo trancado num estojo, como um violino
muito raro?”
A voz passiva (be given) não foi usada, para que a frase soasse mais natural, em português.
Apesar de termos eliminado o pronome pessoal em “é preciso” a frase não ficou impessoal. A
repetição de “rare, rare fiddle” não poderia ser mantida, tal qual. Percebi que a estrutura global da
pergunta seria repetida mais adiante, numa espécie de refrão ou eco (“Para que então ter um bebê
se é preciso mantê-lo guardado – não num estojo como um violino muito raro mas nos braços de
outra mulher?”. Aí a forma escolhida foi um pergunta mais enfática: Para que então...?
NOTA 8
Um pequeno problema de natureza técnica deu origem a esta nota; com isso talvez
possamos distinguir melhor os limites que existem entre literalismo e estilo. Ao traduzir Bliss,
deparei, imediatamente, com um problema, aparentemente ligado a palavras bem modestas:
pronomes pessoais, possessivos, demonstrativos. Em inglês, eles não chamam a atenção porque são
indispensáveis à frase: ninguém pensaria que uma presença tão discreta de uma sílaba apenas
pudesse ser vista como um excesso. Em português a flexão verbal permite que eles sejam omitidos.
Verifica-se também uma rejeição tipicamente brasileira ao uso correto do pronome objeto, que
deve ser levada em consideração. Isso não acontece em Portugal.
No decorrer da tradução vi que estava eliminando pronomes que, em inglês, eram usados
com perfeição, a fim de obter um tom mais natural. Às vezes, preferi usar o nome próprio, em vez
do pronome, como neste exemplo: “She thought” / “pensou Bertha”). Essas supressões cuidadosas
referem-se, em geral, a pronomes da terceira pessoa, como o pesado ele, ela, eles, elas e,
evidentemente, ao pronome neutro it, que não existe em português.
Às vezes, a solução foi bastante fácil, como podemos ler na nota 2: “Apesar dos seus trinta
anos, Bertha Young tinha ainda desses momentos em que ela queria correr em vez de caminhar...”
/ “Although Bertha Young was thirty, she still had moments like this when she wanted to run
instead of walk...” O segundo she não foi omitido na tradução, para se evitar uma cacofonia (“em
que queria”).
E mais adiante:
“She could not bear the tight clasp of it another moment” /impossível suportá-lo apertado
contra o corpo mais um minuto que fosse”.
“But she did not dare to. She stook watching them, her hands by her side...” / “Mas não
ousava, e ficou ali, olhando, as mãos abanando...” (ver também nota 22).
Em muitos casos, os pronomes possessivos podem ser simplesmente eliminados em
português. Assim, quando Bertha procura na sua bolsa a chave da porta, podemos dizer
simplesmente “catando na bolsa a chave”.
Por outro lado, no português oral, o uso do excessivo de pronomes é bastante freqüente;
portanto, não é necessário eliminá-los nos diálogos. É o que acontece, de forma bastante óbvia,
quando Nanny descreve seu passeio à tarde, com o bebê (ver nota 21).
NOTA 9
Neste trecho há uma clara intervenção semântica, quase que uma tradução livre:
“But in her bosom there was still that bright glowing place that shower of little sparks
coming from it.” / “Mas no seu peito ainda havia aquele ardência aquela irradiação de centelhas
que queimavam.”
Note-se a tentativa de reduzir a quantidade de adjetivos, usando-se uma palavra forte, que
engloba toda a idéia contida em “that bright glowing place” (“ardência”). De novo, “shower” e
“little” não podem ser traduzidos adequadamente e tive que escolher entre várias palavras, bastante
exatas e expressivas (“irradiação de centelhas”) para resolver o problema. A modificação mais
radical ocorre na parte final da frase: “coming from it” é traduzido por “que queimavam”. Esta
solução proveio, espontaneamente, da necessidade de reforço da imagem relativa ao fogo e,
também, para se obter um ritmo harmonioso, eliminando-se a intraduzível expressão “from it”.
A imagem relativa ao fogo se desenvolve na frase seguinte. Em português, o substantivo
fogo substitui o pronome it: “She hardly dared to breathe for fear of fanning it higher.” / “Mal
ousava respirar com medo de atiçar esse fogo.”
NOTA 10
“Strawberry Pink” foi traduzido pela expressão menos exata “manchas avermelhadas”,
devido à sua sonoridade, em português, com um tom vagamente sensual, um plural expressivo e
vogais sonoras.
NOTA 11
Some yellow pears, smooth as silk, some white grapes covered with silver bloom and a
big cluster of purple ones. / “Havia peras amarelas lisas como seda, uvas brancas cobertas por
uma floração prateada, e um cacho repleto de uvas vermelhas”.
Esta frase recebeu uma tradução cuidadosa, para poder transmitir, com o devido destaque,
a sensação de prazer visual, com ressonâncias sensuais e fortes tonalidades de plenitude, madurez e
fertilidade. Dei ao verbo “there were” uma forma explícita, introduzindo a palavra “havia”, no
início da frase, como que para tirar algum efeito rítmico da repetição (a frase anterior também
começa com “havia”). Senti, também, as implicações rítmicas contidas na enumeração da fruta, sua
textura e cor. Por isso, para reforçar o paralelismo, eliminei a palavra “some”, e usei a belíssima
palavra “repleto” (coisa possível, através do desaparecimento do adjetivo big) e repeti a palavra
“uvas”.
NOTA 12
“These last she had bought to tone in with the new dining-room carpet.” /”(... e um cacho
repleto de uvas vermelhas), comprado especialmente para combinar com os tons do novo tapete da
sala.”
Na tradução, mantive, em geral, a estrutura sintática do original, mas, às vezes, impôs-se a
necessidade de resumir a estrutura e fundir duas ou três frases num único enunciado, devido a
razões de ritmo e economia, principalmente este último fator. O português não é uma língua
concisa, como o inglês, e a revisão do conto, página por página, comprovará esse fato: mesmo com
todos esses cortes, o número de palavras usadas na versão portuguesa da história é maior do que no
Bliss original. Por isso, o português literário não exige tanta explicitação como o inglês. KM pode,
facilmente, iniciar um período com estar palavras “These last she had bought...” referindo-se às
uvas vermelhas da frase anterior. Uma tradução literal dessa frase não seria coisa impossível, mas o
resultado obtido soaria mal: a frase ficaria pesada, pareceria carta comercial. Daí a opção feita,
com a escolha de uma estrutura subordinada.
NOTA 13
“Yes, that did sound rather far-fetched and absurd, but it was really why she had bought
them.” / “Que idéia pomposa e absurda! Mas na verdade ela havia comprado as uvas exatamente
por essa razão.”
Outra alteração sintática, ditada pela necessidade de concentrar a estrutura no início da
frase. O enunciado “Yes, that did sound rather far-fetched and absurd...” ficaria reduzido a uma
exclamação (estilo indireto livre), que serve de eco à frase anterior (“Que idiota que é a
civilização!”), expandindo-se na parte final com o acréscimo da expressão enfática “exatamente
por essa razão”; posteriormente, reaparece no conto o mesmo processo de redução, no momento
em que Bertha atira as almofadas sobre os sofás e modifica a ordem em que elas estavam
momentaneamente arrumadas: “That made all the difference: the room came alive at once.” / Que
diferença – a sala tomou vida imediatamente.”
NOTA 14
“She had thought in the shop: I must have some purple ones to bring the carpet up to the
table. And it had seemed quite sense at the time.” / “Eu preciso daquelas uvas vermelhas para
puxar o tapete para a mesa, ela pensara na loja, e o seu desejo lhe parecera então absolutamente
sensato.”
Aqui a alteração da ordem da frase aumenta a tensão do período. A frase continua, sem que
um ponto final a interrompa. A palavra desejo é usada para evitar o termo isto, que é deselegante.
NOTA 15
“When she had finished with them and had made two pyramids of these bright round
shapes” foi condensado para “Ao terminar o arranjo duas pirâmides de brilhantes formas
arredondadas...”, para evitar qualquer dificuldade no uso idiomático do primeiro verbo.
NOTA 16
“For the dark table seemed to melt into the dusky light” / “A mesa escura parecia dissolver
na penumbra...”
Chamo a atenção dos leitores para esta linda palavra latina paene: quase/almost + umbra:
sombra/shadow – originando penumbra), termo que é raramente usado em inglês, a não ser para se
aplicar à astronomia, mas que é muito comum em português e outras línguas neolatinas.
Em português, o conectivo for é claramente dispensável na frase.
NOTA 17
“... and the glass dish and the blue bowl to float in the air.” / “E o prato de louça e a
travessa azul pareciam soltos no ar.”
Aqui há duas alternativas de tradução perfeitamente válidas: “to float in the air”: “soltos no
ar” e “flutuar no espaço”. Escolhi a primeira forma porque sugeria mais mistério e era mais
simples.
NOTA 18
“This, of course, in her present mood, was so incredibly beautiful...” / “E no seu atual
estado de espírito a visão era tão incrivelmente bela...”
Vivo procurando substantivos que possam expressar pronomes, como it, this e one. É
possível que minha escolha imponha uma determinada interpretação do texto.
NOTA 19
“Quando uma pessoa estuda o sistema social inglês, nota certas similaridades entre a classe
de padrão de vida mais alto e a classe popular: rigidez, xenofobia, indiferença pela opinião pública,
paixão por corridas e jogo, gosto pela linguagem clara e por comida simples, caseira. Jonathan
Gathorne-Hardy em The Rise and the Fall of the British Nanny explica o porquê dessas
características: “nos dois últimos séculos, as classes dominantes foram criadas quase que
exclusivamente por babás pertencentes à classe operária, tendo os pais abdicado de qualquer
responsabilidade para com os filhos”.
Transcrevi o primeiro parágrafo do capítulo sobre “The Nanny”, do livro Class, de Jilly
Cooper, em que aparecem também algumas referências interessantes sobre a “relação de bajulação,
amor e raiva que existe entre a esposa e a babá. No entanto, essa parte do conto não se presta a esse
tipo de considerações. Além disso, é óbvia demais e falta-lhe flexibilidade. Não desperta interesse,
parece que não está integrada na estrutura narrativa da história. Como tradutora, fiz o possível para
que a linguagem de Nanny tivesse um tom simultaneamente coloquial e protetor, ou então, que se
caracterizasse pelo uso de frases estereotipadas: na maior parte do tempo, mesmo ao falar
diretamente com Bertha, a babá controla a situação, ora usando continuamente linguagem dirigida
ao bebê, ora jargão típico de babá.
Quanto a esta cena, lembremos que, em português, muitos diminutivos se insinuaram
imperceptivelmente na linguagem usada com os bebês:
“a flanel gown”/ “uma camisolinha de flanela”; “a funny little peak”/ “um rabinho
engraçado”; “The pram” / “O carrinho”; “kissing her warm baby”/ “beijando o seu bebê tão
quentinho” (seria impossível dizer “tão quente” nesta frase, pois poderia sugerir uma conotação de
estado febril); “her neck as she bent forward, her exquisite toes” / “seu pescocinho se inclinando
para a frente, seus dedinhos do pé”.
Em português não soa bem falar sobre mãos, pescoço ou dedos do de um bebê sem se
usar a forma diminutiva, especialmente dentro de um contexto carinhoso. O diminutivo explica a
ausência do peculiar adjetivo exquisite, visto que esta palavra descreve a perfeição dos dedinhos do
bebê e também a admiração que a mãe sente. Não nenhuma necessidade de se acrescentar um
adjetivo, pois o diminutivo já é bastante expressivo.
NOTA 20
“She looked up when she saw her mother and began to jump” / “... ao ver a mãe começou a
pular.”
É uma contração radical da frase, em português, que permite, igualmente, a supressão dos
pronomes pessoais e possessivos.
NOTA 21
Foi uma façanha passar para o português o tom expressivo das palavras protetoras da babá
(que não denotam propriamente determinada classe social).
NOTA 22
“She stood watching them, her hands by her side” / “... e ficou ali, olhando, as mãos
abanando...”
Novamente obedeci à regra da redução sintática, para obter um ritmo bom. A expressão “as
mãos abanando”, que traduz quase literalmente a estrutura “her hands by her side”, é, na realidade,
uma expressão idiomática, que significa “with nothing left”. Três pronomes foram eliminados na
tradução.
NOTA 23
É exemplo de linguagem estereotipada, com tradução idiomática:
“And I have such a time with her after!” / “Depois ela me dá um trabalho!”
NOTA 24
“What had she to say? She’d nothing to say” / “O que é que ela tinha a dizer? Nada. Ela
não tinha nada a dizer.”
A tradutora intervém e introduz uma pausa rítmica, um enfático... nada.
NOTA 25
Mantive o tratamento Miss ao me referir a Pearl Fulton por duas razões. Primeiro, o
artificialismo da palavra senhorita no português do Brasil: ora é usada de forma mica, ora de
forma ultraformal. Segundo, Miss é uma palavra bem conhecida, em português (as jovens dos
concursos de beleza são chamadas de Miss Brasil ou Miss Inglaterra; uma canção de êxito popular
recente se chamava “Miss Brasil Dois Mil”, sem falarmos de outros usos correntes da palavra
inglesa). Não é à toa que “Miss Fulton” soa muito bem em português, um pouco entre o exótico e o
usual.
NOTA 26
Merece atenção neste trecho o uso do imperfeito do indicativo, no momento em que a
narração se distancia do que Bertha está fazendo naquele momento. O imperfeito diferencia os dois
níveis de tempo com muita exatidão e transmite ainda uma idéia de repetição: sugere que a
implicância de Harry e as dúvidas de Bertha tinham sido tema muito freqüente nos últimos dias.
NOTA 27
“... then, picking up the cushions, one by one, that Mary had disposed so carefully, she
threw them back on the chairs and the couches” / “... e então, uma a uma, atirou nas poltronas e
sofás todas as almofadas que Mary havia arrumado tão cuidadosamente.”
Note-se uma inversão dramática na ordem das palavras, a fim de se criar tensão sintática.
Assim, a tradução fica ainda mais compacta.
NOTA 28
“... she surprised herself by suddenly hugging it to her passionately, passionately.” /
“...surpreendeu-se retendo-a contra o corpo e abraçando-a com paixão – com paixão.”
O advérbio apaixonadamente foi minha primeira opção; tive, porém, que suprimi-lo devido
à presença de dois advérbios com a terminação –mente, nas frases anteriores. Seria uma rima
impossível, neste caso.
NOTA 29
“... at the far end, against the wall, there was a tall slender pear tree...” / “...no extremo
oposto, contra o muro, havia uma árvore alta e esguia...”
Esta frase constituiu um problema muito sério, na tradução de Bliss. O símbolo central da
história se concentra na pereira florescente do jardim. Muito foi dito a respeito desse símbolo,
representado pela pereira; não faltaram, também, nessa ordem de comentários, as sugestões
biográficas e citações tiradas do Diário. No ensaio que escreveu sobre Bliss, Marvin Magalaner vai
mais longe ainda: “a relação de Bertha com Pearl fruto híbrido e místico da única pereira do
jardim (ou árvore-par)
- tem seu contraponto na criação e forte presença literária de personagens
que aparecem aos pares, no decorrer da história. Na realidade, muitas explicações a respeito da
preferência da autora por essa árvore, que tem grande significado para os leitores ingleses: é a
pereira que floresce no quintal das casas e é nela que irão repousar os pássaros da época do Natal.
A presença da pereira toca particularmente a sensibilidade do povo inglês e traduz uma experiência
do dia-a-dia.
Pensando em tudo isso, notei, em primeiro lugar, que o nome dessa árvore corresponde, em
português, ao termo pereira, uma palavra desarmoniosa e inexpressiva (em termos de experiência).
Na expressão “pear tree” existe uma suave conotação familiar, que não existe na palavra pereira
usada, freqüentemente, como nome próprio, tal qual Smith ou Brown. Em inglês a palavra pereira
Jogo de palavras intraduzível em português. Em inglês, as palavras pear (pereira) e pair (par, casal) são
quase idênticas. (N.A.)
sugere uma imagem que não tem correspondência na experiência de um leitor de língua
portuguesa.
O parágrafo que apresenta a figura da pereira é um parágrafo-chave. É um daqueles raros
momentos em que o narrador aceita a qualidade poética da experiência de Bertha: por isso, a
linguagem é de primeira qualidade. Todo o cenário transmite um impacto estranho e simbólico e
sentimos que uma integração perfeita entre a intenção simbólica e a percepção do personagem.
Senti tudo isso e fiz o possível para obter, em português, um parágrafo bem trabalhado, com
linguagem exata e fiel. Contudo, a palavra pereira não servia; era um sério obstáculo, uma palavra
maciça demais, que levava a associações incorretas e transmitia um som desagradável. Por fim,
novamente decidi optar pela generalização e usei a palavra árvore (uma palavra proparoxítona,
forte e bonita por natureza). Examinei o conto cuidadosamente e concluí que essa palavra não
prejudicaria a intenção da autora. Além disso também se destacaria na última frase a
fundamental. Não me seria possível terminar a história com uma pereira, mesmo que estivesse
coberta de flores.
NOTA 30
“...a tall slender pear tree in fullest, richest bloom; it stood perfect...” / “...uma árvore alta e
esguia, em flor, luxuriantemente em flor, perfeita...”
A tradução desta frase e de todo o parágrafo foi muito cuidadosa, visando atingir uma
precisão “poética” e efeitos rítmicos (principalmente paralelismo rítmico). O resultado é a
contração da estrutura sintática.
A repetição enfática de em flor e o isolamento da palavra perfeita representam invenções
para se obter o efeito desejado.
NOTA 31
Note-se, mais abaixo, outro recurso poético, em que a frase “it had not a single bud or a
faded petal” é traduzida com o objetivo de fazer com que o leitor tome mais consciência do estilo
ou do tom literário. Daí o paralelismo rítmico, alcançado através da repetição da conjunção nem:
“Não havia na árvore nem um broto por abrir, nem uma pétala esmaecida”.
NOTA 32
“A grey cat, dragging its belly, crept across the lawn...” / “Um gato cinzento, arrastando-se
pelo chão, atravessou furtivamente o gramado...”
Usei o advérbio furtivamente por três motivos: para reforçar a imagem do gato arrastando-
se pelo gramado, para dar destaque àquela expressiva palavra e pela dificuldade de traduzir a frase
verbal (“creep across”).
NOTA 33
“The sight of them, so intent and so quick, gave Bertha a curious shiver.” / “A passagem
dos dois gatos, tão precisa e tão rápida, provocou em Bertha um estranho arrepio.”
A expressão “The sight of them” passa a ser “a passagem dos dois gatos”, forma que
supera a tradução literal, por ser mais exata e tangível. Também quis evitar a repetição da palavra
visão, que já tinha sido usada anteriormente na tradução (ver nota 18).
NOTA 34
Mudança de tom: depois de ter visto “a maravilhosa árvore do jardim, completamente em
flor, como um símbolo de sua própria vida”, Bertha mergulha num processo de ampla
racionalização a respeito das causas de sua felicidade (jovem... se amavam... um bebê adorável...
dinheiro... casa e jardim... amigos envolventes... livros... música... ótima costureirinha e
cozinheira... férias...) e termina pensando em omeletes fantásticas ironia maliciosa por parte de
KM. O aspecto financeiro se define numa única e simples frase (“They didn’t have to worry about
money”), que foi traduzida idiomaticamente: “Não havia que se preocupar com dinheiro”. Esta
frase idiomática permite a eliminação do pronome pessoal they, que vai aparecer na frase seguinte
(“They had this absolutely satisfactory house and garden”) e que é suprimida através da mudança
de assunto (“A casa e o jardim eram absolutamente satisfatórios”). Mas adiante, no mesmo
parágrafo, há outra supressão de pronomes pessoais: “she had found a wonderful little dressmaker”
passa a ser “(havia) uma ótima costureirinha recém-descoberta”.
NOTA 35
“It must have been the spring” / “Devia ser a primavera.”
No texto em inglês, depois da racionalização inicial, vem, em outro parágrafo, a
reafirmação: “Yes, it was the spring”. Para enfraquecer a ênfase da explicação que Bertha a si
mesma, resolvi intervir no original e não iniciei novo parágrafo.
NOTA 36
“Her petals rustled softly into the hall...” / “As pregas do vestido farfalharam suavemente
entrando no vestíbulo...”
Notamos aqui uma paráfrase clara, em substituição a uma metáfora obscura. Veja-se
também a introdução de um verbo entrando para compensar a ausência do equivalente da
preposição into. É um bom exemplo do caráter da língua portuguesa, que é muito menos
econômica do que a língua inglesa. A solução é tirar vantagem de um aparente obstáculo e
valorizá-lo através do uso de palavras expressivas e longas. Veja-se o efeito rítmico desta cadeia de
palavras longas: “... farfalharam suavemente entrando no vestíbulo...”
NOTA 37
Custou-me bastante reproduzir, em português, o mesmo tom agudo e exagerado do
discurso de Mrs. Knight. Algumas soluções: a expressão indigesta (“stodgy”), que traz lembrança
de comida e de digestão (no entanto, mais adiante, na fala de Mr. Knight, a mesma idéia, expressa
pela palavra antiquada (?) “creamy”, não pode ser reproduzida); Pura sorte (“a flup”); anjo
protetor (“the protective fluke”); causaram um verdadeiro escândalo (“so upset”); me entediei
como o diabo (“bored me through and through”). A expressão hiperbólica o trem inteiro procura
transmitir a mesma idéia da frase “...so upset the train that it rose to a man”. Todas essas
expressões, fluentes e expressivas, são muito usadas na linguagem diária. São clichês que oscilam
entre a linguagem coloquial e a intenção de se usar uma linguagem engraçada.
NOTA 38
Inicialmente, tive a intenção de conservar os apelidos Face e Mug, como havia feito com
todos os nomes próprios: depois decidi usar a expressão “cara ou coroa”, com suas interessantes
ressonâncias (heads or tails: o jogo em que se atira uma moeda para o alto, para se ganhar uma
aposta), e alterá-la ligeiramente, uma vez que “cara” seria um apelido absurdo (tanto significa
querida como rosto). Consegui, assim, chegar a “careta e coroa”, palavras que serão entendidas
como uma deformação intencional da expressão relativa a cabeças ou caudas. “Careta” significa
grimace ou grin e poderia, facilmente, ser usada como apelido também uma gíria moderna que
define uma pessoa muito formal). “Coroa” (crown) também é gíria (menos recente), usada em
relação a homens ou mulheres de meia-idade. Pode ser usada em tom de carinho ou de sarcasmo.
NOTA 39
“Wasn’t that too absolutely creamy?” / “Isso não foi absolutamente o máximo?”
O máximo: expressão coloquial portuguesa significando “the best part” (da história, do
show).
NOTA 40
“This is a sad, sad fall!” (...) “When the perambulor comes into the hall...” / “Trágica
queda foi aquela, compatriotas!” (...) “Quando o carrinho do bebê chegou à porta...”
Tentei encontrar a pista desta citação de Mrs. Knight em diversos dicionários
especializados. Havia apenas duas referências no verbete fall que pareciam importantes: uma se
referia à canção de ninar (“Roda no alto da árvore, bebê, roda/Quando o vento soprar o berço vai
balançar/ Quando o galho quebrar, o berço vai cair/ E o berço, o galho e o bebê vão cair”). A outra
citação é de Júlio César: “O grande César caiu. Trágica queda foi aquela, compatriotas.” (JC III, ii,
194).
Não vendo muitas possibilidades de rima na canção de ninar, decidi recorrer a
Shakespeare, para conseguir um efeito de rima. Escolhi uma citação quase direta, que pode ser
reconhecida como inspirada em Shakespeare: é a palavra retórica countrymen (“trágica queda foi
aquela, compatriotas”). Esta última palavra compatriotas levou, imediatamente, a uma rima
com porta, que dá um tom de absurdo à vivacidade de expressão de Mrs. Knight.
NOTA 41
O uso de grifos na linguagem de Eddie Warren origem a uma entonação plausível em
português, que poderá sugerir um modo afetado de falar, como o discurso caricatural de um
homem homossexual. Sem mais comentários.
NOTA 42
“...extravagantly cool and collected.”
Essa expressão aparecerá três vezes na história, para qualificar a atitude de Harry. Entre as
várias e possíveis traduções de cool, optei por calmo, para poder reproduzir a aliteração da
seqüência “calmo e contido”.
NOTA 43
“For there were moments when he rushed into battle where no battle was...” / “Havia horas
em que ele entrava em riste na batalha onde não havia batalha alguma...”
“Riste” é uma antiga palavra portuguesa que significa lance rest: lança em repouso, mas
“em riste” é uma expressão idiomática usual, que quer dizer ready for action, at the ready,
threatening: pronto para agir, de prontidão, ameaçador, além de ter leve sugestão fálica. Ela
combina bem com a metáfora relativa à batalha e resolve o problema da falta de uma equivalência
para a frase verbal (rush into).
NOTA 44
“No, not al all”, said Bertha. “Come along”. “And she took her arm and they moved into
the dining-room.” / “De jeito nenhum. Entre”, “disse Bertha dando-lhe o braço, e passaram para a
sala de jantar.”
Outra contração sintática com a conseqüente eliminação do pronome pessoal.
NOTA 45
“What was ther in the touch of that cool arm that could fan – fan – start blazing – blazing –
the fire of bliss that Bertha did not know what to do with?” / “O que é que havia no contato com
aquele braço que atiçava incendiava incendiava o fogo do êxtase que Bertha não sabia como
exprimir – e o que fazer daquilo?”
Na parte final deste parágrafo apareceu um problema inesperado, na frase aparentemente
simples: “the fire of bliss that Bertha did not know what to do with”. Basicamente, trata-se de um
problema sintático, visto que essa construção é inexistente em português (preposição no fim da
frase). A tradução literal deslocaria a preposição para o início da frase: “o fogo do êxtase com o
qual Bertha não sabia o que fazer”.
Esta forma parece artificial e pesada (embora correta), como acontece na maioria dos casos
em que uma preposição inicia uma oração subordinada.
Minha solução: recorrer a um verbo intransitivo que havia sido usado antes, para
exemplificar uma forma freqüente em KM: o refrão comum (exprimir). Assim, consegui introduzir
na frase uma subordinação secundária, que traduziu adequadamente a frase original (“e o que fazer
daquilo”).
NOTA 46
Fiz uma pequena alteração, para respeitar o ritmo e a economia semântica:
“Her heavy eyelids lay upon her eyes” / “Suas pálpebras se fecharam pesadamente.”
NOTA 47
“But Bertha knew, suddenly...” / “Mas Bertha sabia, subitamente...”
O emprego do imperfeito leva a um movimento menos repentino e sutil, na perspectiva de
Bertha (como se ela estivesse consciente disso o tempo todo).
NOTA 48
Aqui houve uma mudança na ordem da frase e no sujeito, para evitar a tradução literal de
“between them”. O resultado levou a um paralelismo mais intenso:
“As if the longest, most intimate look had passed between them as if they had said to
each other...” / “Como se elas tivessem dito uma para a outra...”
NOTA 49
“And the others? Face and Mug, Eddie and Harry, their spoons rising and falling – dabbing
their lips with their napkins, crumbling bread, fiddling with the forks and glasses and talking.” / “E
os outros? Careta e Coroa, Eddie e Harry, colheres subindo e baixando, guardanapos tocando
lábios, migalhas de pão, tilintar de garfos e copos e conversas.”
Reconheço que impus, conscientemente, a interpretação deste parágrafo por mais sutil
que tenha sido a mudança. Bertha tinha acabado de experimentar uma forte sensação de êxtase, que
o contato com o braço quente de Miss Fulton tinha acelerado; depois, isso se transforma na certeza
extática de uma compreensão mútua perfeita. Ela está completamente mergulhada nessa sensação,
quando a lembrança do mundo exterior lhe vem à mente. “E os outros?” A visão passa a ser
diferente e até se poderia chegar a uma mudança de tom: do sublime para o terreno. Resolvi
prolongar o tom anterior e reproduzir a cena em tons mais brandos. Ou então, recriar o espírito do
transe, uma espécie de atmosfera que nos fizesse pensar numa câmera focalizando os que estavam
à mesa: uma câmera não para documentar, mas para notar um detalhe aqui, outro ali, talvez sob um
foco indistinto ou sonolento. Mas por que tanta preocupação com este parágrafo? Na realidade, não
acredito que tivesse havido um empobrecimento de tom: é que a cena é bastante prosaica, cheia de
colheres, garfos guardanapos, migalhas e falatório bobo. Tentei, então, dar ao parágrafo uma forma
precisa, quase afetada: daí a sintaxe abreviada, a linda palavra “tilintar”, que cria uma nova
metáfora o “tilintar” de facas, copos e de conversas) e o cuidadoso paralelismo. O leitor ficaria
apto a enfrentar a transição abrupta com o diálogo seguinte.
Note-se também a incrível demonstração de inteligência de Miss Fulton, que não diz uma
palavra sequer (“como se ela vivesse de ouvir e não de ver”). Este silêncio aumenta a ambigüidade
de personagem. Será que ela é igual aos outros? Ela se cala, enquanto os outros se destroem com
palavras.
NOTA 50
“I think I’ve come across the same idea in a little French review quite unknown in
England”./ “Se não me engano, eu dei com a mesma idéia numa revista francesa não muito
conhecida aqui”.
Evitei a palavra Inglaterra e usei a palavra aqui, a fim de não introduzir um elemento
alheio ao leitor estrangeiro.
NOTA 51
“... Ela até desejaria dizer-lhes que ótimos todos eles eram, e que grupo tão decorativo que
formavam, e como pareciam deslanchar uns aos outros e como a lembravam de uma peça de
Tchekov!”
Teria Bertha bebido demais, neste momento? Ou estaria KM usando uma de suas armas
especiais, bem disfarçada pelo uso do estilo indireto livre?
Em seu livro sobre KM, Sylvia Berkman afirma que “os ritmos da prosa m uma batida
rápida e ligeira. Na melhor hipótese esse ritmo será veloz e borbulhante; na pior, será irregular e
histérico, como se vê nas obras The Singing Lesson e em alguns trechos de Bliss”.
Por outro lado, o ritmo histérico não será adequado a este momento?
NOTA 52
“Everything was good and right. All that happened seemed to fill again her brimming
cup of bliss.” / “Tudo estava bem – e certo. Tudo que acontecia parecia encher outra vez a borda da
taça transbordante de seu êxtase.”
Faço o possível por usar palavras longas e ressoantes – “.... até a borda a taça transbordante
do seu êxtase” para poder conduzir o leitor ao mundo imaginário de Bertha e para que ele não
comece a questionar a imensa ternura que ela sente pelo mundo exterior.
NOTA 53
“And still, in the back of her mind, there was the pear tree. It would be silver now...” / “E
no fundo da sua mente ainda havia a árvore, que devia estar toda prateada agora...”
Eliminei o ponto que finalizava a expressão “pear tree”; introduzi, em seguida, uma frase
subordinada o que a todo o parágrafo um ritmo fluente e macio, com uma transição bem
marcada, que vai da árvore “no fundo de sua mente” à concentração visual nos dedos esguios de
Miss Fulton.
NOTA 54
“For she never doubted for a moment that she was right, and yet what had she to go on?
De novo, uma frase muito simples, que apresenta uma pequena dificuldade semântica. Em
português, é mais uma interpretação do que uma tradução, com insistência na idéia de evidência,
de prova:
“... e no entanto o que havia de concreto?
NOTA 55
“Miss Fulton bent her head and followed after.”
A tradução literal acentual a rigidez do movimento: (“Miss Fulton inclinou a cabeça para o
lado e seguiu atrás”). Inverti a ordem da ação, para poder usar a frase “inclinando a cabeça para o
lado” como uma espécie de refrão, um sinal que identifica os silêncios sedutores de Miss Fulton:
“Miss Fulton seguiu atrás, inclinando a cabeça para o lado”.
NOTA 56
“The fire had died in the drawing-room to a red, flickering ‘nest of baby phoenixes’, said
Face.” / Na sala de jantar, o fogo havia esmaecido e agora, vermelho, tremeluzindo, parecia,
segundo Careta, um ‘ninho de filhotes de fênix’.
Em inglês, a frase é bastante direta. Em português, mudanças que tensionam a estrutura
do período: um adjunto adverbial no início da frase ou a interrupção da estrutura com expressões
intercaladas. O resultado obtido proveio, em parte, da dificuldade de tradução da expressão verbal
“the fire had died down to a red, flickering nest...”
NOTA 57
Nesta passagem, uma pequena dúvida: quem é que sempre demonstrava frieza? Face ou
Miss Fulton? Não poderia ser Miss Fulton, caso contrário ela não estaria usando uma jaqueta de
flanela vermelha com um vestido cor de prata. Por outro lado, sabemos que Face compareceu à
festa usando um casaco cor de laranja, adornado com uma fileira de macacos pretos ao redor da
bainha, e subindo pela frente...
NOTA 58
Sem ter conseguido solucionar o mistério, fiz, primeiramente, uma tradução literal (“... sem
aquele casaco vermelho de flanela, é claro...”) que me pareceu estranhamente sem sentido. Foi o
esquisito casaco cor de laranja da sra. Knight, enfeitado com aqueles engraçados macaquinhos,
que, por fim, me fez chegar a uma solução. Desde sua chegada triunfal, proferindo um brilhante
discurso contra a indigesta classe média, essa senhora havia sido secretamente comparada por
Bertha a um “macaco muito inteligente”. Aquele vestido amarelo de seda parecia ter sido
confeccionado com cascas de banana. Os brincos cor de âmbar pareciam pequenas castanhas que
balançavam. O hábito de enfiar alguma coisa no decote induz Bertha a pensar que ali ela poderia
estar guardando uma reserva de castanhas tal qual um macaco que guardasse provisões para o
inverno. Quando Bertha Face, agachada junto à lareira para se aquecer, não consegue deixar de
associá-la à imagem de um macaquinho de realejo – um daqueles animais treinados em acrobacias,
que recolhem dinheiro entre os transeuntes e que devem estar usando um “casaquinho vermelho de
flanela, logicamente”. Agradeço a um amigo que despertou minha atenção para esse aspecto, mas,
mesmo assim, a tradução literal continua sem sentido. O leitor brasileiro não teria nenhuma pista
mental para chegar a essa imagem, visto que, raramente, depara com macaquinhos de realejo. A
solução foi explicitar a idéia: mencionar o macaquinho (“mico do realejo”, em português). O
resultado não é favorável à sra. Knight e perde-se a elegância resultante de idéias subentendidas.
Mas a cômica percepção de Bertha fica intacta.
NOTA 59
Bertha está sob os efeitos intoxicantes do êxtase que sente. Na realidade, uma paisagem
mergulhada numa luminosidade toda especial pode assumir aspecto mágico e causar profunda
impressão na sensibilidade de uma pessoa em estado de êxtase. Assim, a tradução é quase “livre”, a
fim de criar um parágrafo bem forte, uma vez que é muito importante reproduzir o caráter
emocional do ritmo. Mesmo que as imagens não sejam muito originais, o impacto do trecho deve
ser garantido, pelo menos, pela sintaxe. Segundo Amado Alonso, o ritmo da prosa se baseia na
sintaxe, ou melhor, o ritmo de um trecho em prosa é, de certo modo, a sua sintaxe.
Comparem:
“Although it was so still it seemed, like the flame of a candle, to stretch up, to point, to
quiver in the bright air, to grow taller and taller as they gazed...” / “Embora imóvel, a árvore
parecia estender-se para cima, subir, tremer no ar brilhante como a chama de uma vela, e crescer
mais alto diante delas”.
Em seu livro sobre KM, Sylvia Berkman afirma que “Ela é qualitativamente melhor
quando apreende um momento carregado de emoção, do que quando constrói uma trama
substancial”.
NOTA 60
“...with all this blissful treasure...”/ “...com todo aquele tesouro sublime...”
Estou usando excessivamente a palavra sublime, mas não consigo encontrar melhor
tradução para blissful. Extático não serviria, porque soa exatamente da mesma forma que seu
homófono “estático”, que significa static.
NOTA 61
“...that burned in their bosoms...” / “...que queimava dentro do peito...”
É impossível dizer “nos seus peitos”, “no peito delas” ou algo semelhante. O adjetivo
possessivo soa mal e peitos, no plural, se aproxima mais de seios do que de regaço. Optei por
omitir o possessivo e usei o singular. O resultado é mais ambíguo do que a forma original, porque,
assim, o singular, que tem uma conotação vaga, tanto pode indicar que o fogo queima em ambas as
mulheres, como somente no peito de Bertha.
NOTA 62
“Then the light was snapped on and Face made coffee...” / “Então a luz acendeu de repente
e Careta fazia café...”
O uso do imperfeito lembra uma cena de palco que está sendo apresentada sem nenhum
destaque especial; de repente, ela é bruscamente focalizada pela iluminação. Bertha fica consciente
de uma cena que estava acontecendo, no momento em que ela havia mergulhado em outra ordem
de idéias (conseqüências do emprego do imperfeito).
NOTA 63
“...and Mug took his eye out of the conservatory for a moment and then put it under glass
again...” / “e Coroa tirava por um minuto o olho da estufa e outra vez o metia sob o vidro...”
Mantive a metáfora relativa ao monóculo, mesmo que os leitores a considerem enigmática.
NOTA 64
“Oh, I am so tempted to do a fried-fish scheme...” / “Estou tão tentada a montar um
esquema peixe frito...”
Talvez decidisse escrever pequena nota etnográfica sobre peixe e batatas fritas, para o
leitor brasileiro.
NOTA 65
“You can’t put out to sea without being sea-sick and wanting a basin.” / “Não se pode
embarcar num navio sem enjoar e precisar de uma boa bacia.”
Introduzi no período o adjetivo boa, que tem o mesmo peso e sabor da palavra good, num
trecho anterior, cheio de tagarelice: “Além de cortar fora o cabelo, ela parece que também tirou um
bom pedaço das pernas e dos braços e do pescoço e do pobre narizinho também”. Em português, o
efeito é igualmente coloquial e enfático.
NOTA 66
“And she decided from the way Miss Fulton said: ‘No, thank you, I won’t smoke’ that she
felt it too, and was hurt.” / “E pelo jeito de Miss Fulton dizer ‘Não, obrigada, não quero fumar’,
Bertha decidiu que ela também sentia o mesmo, e estava ofendida.”
Aqui houve inversão na ordem, para se conseguir mais tensão sintática e mais ritmo.
NOTA 67
“And this something blind and smiling whispered to her...” / “Uma coisa cega, que sorria e
murmurava...”.
Notar a variedade de mudanças neste período. O adjetivo smiling passa a verbo, em
português, visto que a palavra sorridente soaria excessivamente festiva. Ao contrário do pretérito
perfeito, o emprego do imperfeito, neste caso, produz um efeito mais trágico, pois faz com que o
ambiente de terror fique mais difuso e envolvente. Esse efeito se intensifica através da supressão
do objeto direto ou indireto.
NOTA 68
“The lights will be out.” / “As luzes apagadas.” Mesmo recurso no comentário referente à
nota 57.
NOTA 69
Sempre fui muito atenta ao uso dos pronomes pessoais e procurei reduzi-los ao mínimo.
Contudo, nos diálogos, a repetição monótona do pronome pessoal é absolutamente legítima.
NOTA 70
“He tossed the coat away...” / “Harry afastou bruscamente o casaco...”
O advérbio bruscamente compensa a ausência de um verbo que traduzisse com precisão, a
expressão “toss away”. O mesmo problema (uso de palavras exatas) aparece no decorrer da
história, com verbos como wave away, drag, creep, drop, dab, tuck, stretch-up, quiver, dart, que
descrevem movimentos bastante específicos. Esta precisão sutil é muito anglo-saxônica e dificulta
a tradução. Quase sempre se encontra a solução através de uma paráfrase desenvolvida.
NOTA 71
“His lips said...” / “Seus lábios diziam...”
Novamente o uso do imperfeito mergulha a cena numa espécie de nível de tempo diferente.
NOTA 72
“His lips curled back in a hideous grin while he whispered...” / “Seus lábios se crisparam
num esgar horrível ao sussurrarem...”
Economia de sujeitos: “ao sussurrarem” indica que foram os lábios dele que sussurraram.
NOTA 73
“...and with her eyelids Miss Fulton said ‘Yes’ / “...e com um bater de olhos Miss Fulton
disse ‘Sim’ ” .
Os dois adjuntos adverbiais de modo, “com um bater de olhos” e “num esgar horrível”
(nota 72) foram cuidadosamente escolhidos, e o tom é ligeiramente mais literário do que na forma
original.
NOTA 74
Chegando a este trecho, percebi que não havia mais necessidade de insistir na fala
caricatural de Eddie. O movimento da história havia atingido um nível quase trágico e qualquer
palavra a mais seria redundante.
NOTA 75
O uso da subordinação acelera o ritmo do parágrafo e os últimos gestos de Miss Fulton.
Comparemos:
‘Oh, no. It´s not necessary’, said Miss Fulton, and she came up to Bertha and gave her
the slender fingers to hold.” / ‘Não, não é preciso’, respondeu Miss Fulton, e aproximando-se de
Bertha ofereceu-lhe seus dedos muito finos.”
NOTA 76
Agora, sabemos, com certeza, que Miss Fulton está empenhada num jogo muito
delicado. A conclusão da história se destaca pela concisão e ausência de qualquer comentário ou
intrusão por parte do narrador.
NOTA 77
Releia-se a nota 29, apenas para se ter certeza de que a supressão da palavra pereira não
foi negativa.
NOTA 78
“Your lovely pear tree – pear tree – pear tree!” / “Sua árvore linda – linda – linda!”
Outra interferência perigosa, que me fez refletir muito, até tomar uma decisão. É uma
daquelas repetições (veja nota 4) que representam o eco do caráter obsessivo das emoções de
Bertha. A maior parte dessas iterações são usadas para exprimir as modulações das ondas de
êxtase, como se fossem algo indescritível: na realidade, não muitas palavras que consigam
descrever essa sensação (sem caírem no sentimentalismo), o que explica a compulsão das
repetições, como um esforço apaixonado e hesitante para transmitir uma idéia.
Em Middlemarch, George Eliot afirma que a tendência de dizer o que foi dito
anteriormente constitui um “princípio fundamental da fala humana”, expressa de forma mais ou
menos marcante, de acordo com o personagem e as circunstâncias. No conto Bliss, no entanto, as
iterações não constituem um artifício realista, que maior verossimilhança à fala do personagem.
Elas enfatizam momentos no discurso em que as palavras do narrador representam um esforço de
transmissão de emoções, como se fossem filtradas diretamente da consciência do personagem. E é
esse estado desordenado de consciência que impõe a necessidade de repetir para dar voz à
paixão. “É uma bela e louca paixão”, diz Henry James, em um de seus prefácios, acrescentando a
seguir: “penso que se trata sempre da intensidade do esforço criador, para poder entrar no íntimo
do personagem...”. Esse sentimento insopitável pode ser expresso através da simples repetição de
palavras.
Não é por coincidência que a maior parte das repetições (pelo menos as mais importantes)
sejam usadas para descrever a paixão; algumas relacionam metaforicamente esse sentimento com o
fogo. Vejamos este esquema:
a feeling of bliss – absolute bliss
deeply, deeply
passionately – passionately
fan – fan – start blazing – blazing
ardently! ardently!
pear tree – pear tree – pear tree
Entenderemos, então, que a expressão pear tree constitui uma curiosa exceção dentro da
tendência geral. Trata-se da única repetição tripla e é a única que é “substantiva”, como que oposto
aos poderes qualificativos e descritivos das outras repetições. O que ecoa incessantemente na
mente de Bertha é a existência de uma pereira, a única coisa que restou de tudo.
Ciente desse fato, a tradutora (que havia proibido a presença inesperada de uma pêra)
ignorou o senso comum e focalizou a intensidade dos sentimentos no adjetivo. Não realmente
argumentos racionais que justifiquem minha escolha, que é predominantemente emocional: eu
desejava concentrar-me inteiramente naquele momento, no efeito do eco, que realmente funciona
melhor, quando se usa uma palavra paroxítona curta, como “linda”. O som do fonema /i/ perdura
em nossos ouvidos, quase como na repetição “tree, tree, tree”.
Meu desejo era fazer com que o leitor percebesse esse efeito, com a intensidade do eco que
ressoava na mente de Bertha.
NOTA 79
“Bertha simply ran over to the long windows” / “Bertha apenas correu para as longas
janelas dando para o jardim.”
Um pequeno acréscimo foi feito, para marcar o ritmo de forma mais convincente.
NOTA 80
“But the pear tree was as lovely as ever and as full of flower and as still” / “Mas a árvore
continuava tão bela e florida e imóvel com sempre.”
Poderia ter repetido a palavra correspondente a as, acrescentando apenas a palavra tão,
antes de cada adjetivo (“tão bela e tão florida e tão imóvel”); no entanto, a solução encontrada me
parece mais exata, por ser bastante sóbria. A tradução de “as ever” não caberia em nenhum outro
lugar, exceto no fim da frase.
LIVROS CITADOS NAS NOTAS
ALONSO, Amado. Materia y forma en poesia. Editorial Gredos, Madrid, 1960.
BERMAN, Sylvia. Katherine Mansfield, A Critical Study, Oxford University Press, 1952.
ISHERWOOD, Christopher, “Katherine Manfield”, in Exhumations. Methuen & Co., Londres,
1966.
MAGALLANER, Marvin, “Traces of her ‘self’, in Katherine Manfield’s ‘Bliss’”, in Modern
Fiction Studies, vol. 24, n. 3, outono 1978.
PIAZZA, Paul, Christopher Isherwood, Myth and Anty-myth, Columbia University Press, 1978.
Fonte: CESAR, Ana Cristina. O Conto “Bliss” Anotado. In: Escritos da Inglaterra. São Paulo:
Brasiliense, 1988, p. 10-84.
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