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MARIA DO CARMO PEREIRA SERVIDONI
A AXIOMATIZAÇÃO DA ARITMÉTICA:
E A CONTRIBUIÇÃO HERMANN GÜNTHER GRAβMANN
MESTRADO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
PUC/SP
São Paulo
2006
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1
MARIA DO CARMO PEREIRA SERVIDONI
A AXIOMATIZAÇÃO DA ARITMÉTICA:
E A CONTRIBUIÇÃO DE HERMANN GÜNTHER GRAβMANN
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE
EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, sob a orientação
da Professora Doutora Sonia Barbosa Camargo
Igliori.
PUC/SP
São Paulo
2006
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2
Banca Examinadora
_________________________________
_________________________________
_________________________________
3
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total
ou parcial desta Dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura: __________________________ Local e Data: ______________
4
Quem pode contar os grãos de areia do mar, as gotas de chuva, os dias do tempo?
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Quem pode contar os grãos de areia do mar, as gotas de chuva, os dias do tempo?
Quem pode medir a altura do céu, a extensão da terra, a profundidade do abismo?
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Quem pode
Quem pode Quem pode
Quem pode penetrar a sabedoria divina, anterior a tudo?
penetrar a sabedoria divina, anterior a tudo?penetrar a sabedoria divina, anterior a tudo?
penetrar a sabedoria divina, anterior a tudo?
A sabedoria foi criada antes de todas as coisas, a inteligência prudente existe antes dos
A sabedoria foi criada antes de todas as coisas, a inteligência prudente existe antes dos A sabedoria foi criada antes de todas as coisas, a inteligência prudente existe antes dos
A sabedoria foi criada antes de todas as coisas, a inteligência prudente existe antes dos
séculos!
séculos!séculos!
séculos!
Eclesiástico 1, 1
Eclesiástico 1, 1Eclesiástico 1, 1
Eclesiástico 1, 1-
--
-6
66
6
5
As minhas duas filhas, Thaís e
Letícia, que acompanharam
muito de perto a realização deste
sonho compartilhando sempre de
meus anseios
A meus 24 sobrinhos, por quem
me sinto tão querida e abraçada
A meu querido esposo, Marcos,
que, inquestionavelmente, se fez
presente e amigo durante todo
esse tempo
A meus oito irmãos que
comungam comigo a idéia de que
o conhecimento é a melhor arma
em defesa da construção de uma
sociedade mais justa
A meu pai, José Severiano (in
memoriam), cuja filosofia de vida
sempre foi baseada no princípio de
justiça, amor e fraternidade. A minha
mãe, Maria de Lourdes que em suas
simplicidade sempre valorizou a
educação
6
AGRADECIMENTO
À Professora Doutora
Sonia Barbosa Camargo Igliori
Sonia Barbosa Camargo IglioriSonia Barbosa Camargo Igliori
Sonia Barbosa Camargo Igliori
,
orientadora desta pesquisa, pelo apoio e incentivo na busca do
conhecimento, sempre afirmando com muita propriedade que o
conhecimento é o melhor caminho para a realização de uma
pesquisa.
Ao professor Doutor
Michael Otte
Michael OtteMichael Otte
Michael Otte
, co-orientador deste
trabalho, pelo carinho e atenção que dedicou com profundas
reflexões que contribuíram para o processo de desenvolvimento
deste estudo.
À Professora Doutora
Silvia Dias Alcântara Machado
Silvia Dias Alcântara MachadoSilvia Dias Alcântara Machado
Silvia Dias Alcântara Machado
e ao
Professor Doutor
Benedito
BeneditoBenedito
Benedito
Antonio da Silva
Antonio da SilvaAntonio da Silva
Antonio da Silva
, pelas contribuições
no Exame de Qualificação e durante as aulas, com sugestões e
orientações valiosas, que muito contribuíram para a constituição e
aperfeiçoamento do trabalho.
Aos
Professores do Programa de Estudos de Pós
Professores do Programa de Estudos de PósProfessores do Programa de Estudos de Pós
Professores do Programa de Estudos de Pós-
--
-
Graduação em Educação Matemática
Graduação em Educação MatemáticaGraduação em Educação Matemática
Graduação em Educação Matemática
, pela seriedade e
responsabilidade com que conduzem o processo ensino-
aprendizagem.
7
A meus
amigos
amigos amigos
amigos
de curso, em especial a
Vânia, Michaela,
Vânia, Michaela, Vânia, Michaela,
Vânia, Michaela,
Luciana e Renata
Luciana e RenataLuciana e Renata
Luciana e Renata
,
,,
, pela amizade e companheirismo nesta
trajetória.
À meus familiares,
esposo, filhas, sobrinhos, mãe, irmãos e
esposo, filhas, sobrinhos, mãe, irmãos e esposo, filhas, sobrinhos, mãe, irmãos e
esposo, filhas, sobrinhos, mãe, irmãos e
cunhados,
cunhados,cunhados,
cunhados,
que sempre acreditaram e mostraram-se compreensivos
pelas minhas ausências em muitas datas comemorativas.
A uma grande amiga e escritora,
Márcia Plana
Márcia PlanaMárcia Plana
Márcia Plana
, por
mostrar-se sempre acreditando na educação e exercendo seu ofício
de mestre sem reclamar o peso da bagagem e, com isso, de certa
forma, contribuiu para mais um avanço na minha formação.
Ao
grupo de amigos
grupo de amigosgrupo de amigos
grupo de amigos
que no início do curso, contribuiu
carinhosamente com as traduções.
À
Secretaria Estadual de Educação de São Paulo
Secretaria Estadual de Educação de São PauloSecretaria Estadual de Educação de São Paulo
Secretaria Estadual de Educação de São Paulo
, pela
bolsa de estudos concedida, sem a mesma seria difícil a realização
desta pesquisa.
Meu Carinho
Meu CarinhoMeu Carinho
Meu Carinho
8
RESUMO
Esta pesquisa teve como objetivo o desenvolvimento epistemológico do objeto de
conhecimento número em sua constituição como entidade matemática. Ficou
evidenciado que, no final do século XIX, a necessidade dessa constituição gerou
muitas controvérsias, porque número era concebido como presente de Deus e,
conseqüentemente, considerado algo perfeito. Para o desenvolvimento dessa
pesquisa, tivemos como referência os trabalhos de Grassmann, o primeiro
matemático a propor, mesmo que, de forma inconsciente, a Axiomatização da
Aritmética. A referência principal foi o artigo intitulado: A debate about the
axiomatization of arithmetic: Otto Hölder against Robert Graβmann de Mircea
Radu (2003), no qual se encontra um debate a respeito da Axiomatização da
Aritmética sob dois pontos de vista; por um lado, temos Otto Hölder que
acreditava na natureza sintética da Matemática, sendo assim rejeitava o método
axiomático como base para a mesma; por outro lado, Robert Grassmann e
Hermann Grassmann que, também, concordam com a idéia de Hölder, pois
rejeitam o método axiomático. No entanto, apresentaram uma abordagem da
Aritmética, aparentemente, axiomática. Na verdade, Grassmann não entendia
assim seu tratamento da Aritmética, pois as leis que definiriam os números
naturais pertenciam à Álgebra, outra disciplina que Grassmann considerou como
geradora de todas as outras. No desenvolvimento dessa pesquisa, indicamos que
as bases da axiomatização da Aritmética estavam no bojo das grandes
transformações ocorridas na Matemática durante o século XIX e início do XX: o
aparecimento das Geometrias não-euclidianas, a libertação da Álgebra das veias
da Aritmética e o processo intrincado da Aritmetização da Análise. Nesse período,
também, desenvolveu-se a discussão da pertinência ou não do uso do método
9
axiomático, como um fundamento da Aritmética. Concluiu-se que apesar de toda
a polêmica desse período, a possibilidade da axiomatização da Aritmética e a
adoção do princípio axiomático nas ciências formais contribuíram para o avanço
das ciências exatas.
Palavras-chave: Axiomatização da Aritmética, Número, Hermann Graβmann,
Epistemologia.
10
ABSTRACT
This research had as purpose the epistemology development of the knowledge
object, number, in its formation as mathematical entity. It became evident that, in
the end of the XIX century, the need of this formation caused many controversies,
because number was understood as gift by God and consequently, considered
something perfect. To the development of this research, we had as references
Graβmann’s works, the first mathematician to consider, even if, in an unconscious
form, the Axiomatization of Arithmetic. The main reference was the article entitled:
The debate about the Axiomatization of Arithmetic: Otto Hölder against Robert
Graβmann by Mircea Radu (2003), in which, there is a debate about
Axiomatization of Arithmetic under two points of view, on the other hand, we have
Otto Hölder who believed in the synthetic nature of Mathematics, in such case, he
rejected the axiomatical method as base for itself, and otherwise, Hermann
Graβmann and Robert Graβmann that agree with the same idea, but they reject
the axiomatical method. However, Graβmann didn’t understand so well his
treatment of Arithmetic, because the laws that would define the natural numbers
belonged to Algebra, another discipline that Grassmann considered as originated
for all the other ones. In the development of this research, we indicated that the
bases of the Axiomatization of Arithmetic were in the salience of big
transformations occurred in Mathematics in the time of XIX century and beginning
of XX one: the appearing of the non-Euclidean Geometries, the Algebra’s release
of Arithmetic’s veins and the intricate process of Arithmetization of Analysis. In this
period, it also developed the relevancy or not of the use of axiomatic method as a
basis of Arithmetic. We concluded that, in spite of all controversies of this period,
11
the possibility of Axiomatization of Arithmetic and the adoption of the axiomatical
source in formal sciences contributed for the exact sciences.
Keysword: Axiomatization of the Arithmetic, Number, Hermann Grassmann,
Epistemology.
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
.............................................................................................
15
CAPÍTULO I
................................................................................................. 26
AS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NA GEOMETRIA E NA
ÁLGEBRA NA VIRADA DO SÉCULO .......................................................
26
I.1 Introdução ............................................. 26
I.1.1 Panorama histórico em torno de dois grandes acontecimentos ... 28
I.2 O desenvolvimento das Geometrias não-euclidianas ...........................
29
I.2.1 Matemáticos responsáveis pelo desenvolvimento das geometrias
não-euclidianas ..................................................................
31
I.2.2 Efeitos da constatação da existência das Geometrias não-
euclidianas ............................................................................................
34
I.3 O desenvolvimento da Álgebra Abstrata ................................................
36
I.3.1 Contexto histórico do desenvolvimento da Álgebra Abstrata ........
37
I.3.2 A consolidação da Álgebra Abstrata...............................................
41
I.3.3 Conseqüências da estruturação da Álgebra Abstrata…………......
45
CAPÍTULO II
................................................................................................ 46
O CONTEXTO HISTÓRICO EM QUE PEANO ESTAVA INSERIDO ........
46
II.1 A aritmetização da Análise ................................................................... 46
II.1.1 Os responsáveis pelo processo da aritmetização da Análise..... 49
II.1.2 A contribuição de Georg Cantor na aritmetização da Análise .... 50
II.1.3 Richard Dedekind e sua nobre e duradoura permanência na
Matemática ..........................................................................................
53
13
II.1.4 Giuseppe Peano e a incumbência na axiomatização da
Aritmética...............................................................................................
60
CAPÍTULO III
............................................................................................... 65
REFERÊNCIAS HISTÓRICAS DA VIDA DE HERMANN GRASSMANN
E ELEMENTOS DE SUA CONCEPÇÃO....................................................
65
III.1 Referências históricas............ ............................................................. 65
III.2 Elementos da concepção de Grassmann da Matemática ................... 68
CAPÍTULO IV
...............................................................................................
74
A AXIOMATIZAÇÃO DA ARITMÉTICA SOB O PONTO DE VISTA DE
OTTO HÖLDER E ROBERT GRASSMANN..............................................
74
IV.1 Introdução............................................................................................
74
IV.2 Axioma e postulado: Significados e transformações...........................
74
IV.2.1 Axioma..........................................................................................
75
IV.2.2 Postulado......................................................................................
78
IV.3 Contexto histórico do conceito número............................................... 81
IV.4 As característica de Hermann Grassmann e Robert Grassmann....... 83
IV.5 Otto Hölder e os elementos que caracterizam seu pensamento........
85
IV.6 O significado da síntese e da análise em Matemática........................ 90
IV.7 A abordagem da Aritmética proposta por Grassmann........................ 92
IV.8 Estrutura do Grossenlehre...................................................................
101
IV.9 A natureza da prova Matemática.........................................................
107
IV.9.1 Método de prova dos conceitos matemáticos.............................. 108
IV.10 A abordagem de Grassmann do Grossenlehre como o único
fundamento para Aritmética......................................................................
109
IV.11 Elementos que justificam a rejeição de Hölder à abordagem da
Aritmética proposta por Grassmann.........................................................
114
IV.12 Hölder propõe outra forma para a construção dos números
naturais.....................................................................................................
118
IV.13 Pontos divergentes e convergentes entre Robert e Hölder .............
121
CONSIDERAÇÕES FINAIS
..................................................................... 126
14
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
.....................................................
131
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
..............................................................
134
ANEXO I
................................................................................................... 137
ANEXO II
.................................................................................................. 162
15
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa é parte de um projeto de pesquisa sobre o conceito de
número e axiomatização da Aritmética. A problemática que está em foco é a da
possibilidade de existirem conseqüências cognitivas e didáticas em decorrência
das três grandes mudanças ocorridas na Matemática no decorrer dos últimos 200
anos: a aritmetização da Matemática; a mudança na noção de axioma e a nova
noção de objeto matemático. A revolução na Matemática transformou-a de uma
ciência de formas e fórmulas, como se percebeu na Álgebra e Análise Algébrica
de Leibniz, Euler e Lagrange, numa de pensamento conceitual. Nessa perspectiva
a Aritmética e os números fornecem os conceitos mais precisos e mais
nitidamente delimitados. Hilbert no seu famoso “Zahlbericht” de 1897 afirma: “a
teoria dos números tem sido elogiada desde os tempos antigos devido à
simplicidade de seus fundamentos, da precisão de seus conceitos e da pureza de
suas verdades”.
No entanto, Hilbert também destacou naquela mesma obra que a
Aritmética e a Teoria dos Números tiveram que ser desenvolvidas e aprofundadas
além dos limites elementares conhecidos desde muito tempo para servirem
como base para todo pensamento matemático. Finalmente se mostrou claramente
que o caminho construtivo tradicional não era suficiente para incluir todos os
números. A continuidade dos números reais, por exemplo, teve de ser introduzida
por meio de um postulado. Constatada essa problemática na segunda metade do
século XIX começou-se a pensar em fundamentos axiomáticos da Aritmética e
dos números. Caberia aqui a pergunta: por que a axiomatização da Aritmética
16
começa somente no século XIX? Ou seja, por que isso ocorre mais de dois mil
anos depois que a Geometria é apresentada na forma axiomática nos Elementos
de Euclides? A causa reforçando o que é referenciado acima, é que o conceito de
número foi considerado uma criação do próprio homem, enquanto a Geometria e
a Física têm de tratar de coisas objetivas e “externas” ao pensamento humano.
Duas mudanças foram necessárias antes que matemáticos, como
Grassmann, Dedekind, Hilbert ou Peano pudessem pensar no assunto da
axiomatização dos números. A primeira trata-se do caráter e da compreensão dos
axiomas. Deviam transformar-se de verdades objetivas e intuitivamente claras
que, nem precisam nem podem ser provadas, para, premissas hipotéticas do
pensamento ou em postulados, para representar uma perspectiva sobre o objeto
da pesquisa em igualdade com outras possíveis e expressar-se em termos de
relações e equações. Acrescenta-se à mudança exigida sobre o caráter dos
axiomas à do raciocínio lógico. Na Ciência Aristotélica a lógica estava sempre
ligada ou relacionada à Geometria. Até o início do século XIX acreditava-se que a
Aritmética não podia ter axiomas, pois eles não tinham lugar nas ciências formais.
Neste contexto, esta pesquisa tem por alvo o estudo de um artigo escrito
por Radu, no qual ele discute a Axiomatização da Aritmética sob dois pontos de
vista; por um lado, temos, Otto Hölder, um matemático intuicionista, que rejeita
explicitamente o método axiomático para lidar com os fundamentos da
Matemática; por outro, Robert Grassmann que apresentou, em 1891 (apoiado nas
idéias desenvolvidas por seu irmão Hermann Grassmann), uma abordagem da
Aritmética como proposta para seus fundamentos e foi o alvo da critica de Hölder.
Hermann Günther Grassmann, matemático alemão, autodidata e pouco
conhecido de sua época; nasceu em Stettin, 1809. Lá viveu praticamente toda
sua vida, falecendo em 1877. Sua trajetória de vida pode ser considerada entre
tantas, como mais uma tragédia Matemática, pois não obteve o devido
reconhecimento. Entretanto, pode ser visto como um excelente matemático, em
razão da criação de sua nova teoria Die Ausdehnungslehre que proporcionou
aos pesquisadores matemáticos que o sucederam a expansão considerável dos
conceitos matemáticos.
17
A capacidade de considerar o negativo em Geometria foi o passo
fundamental do desenvolvimento de sua teoria; esta capacidade era vista como
impossível, que a Geometria era realizada apoiada na experiência e
observação.
Grassmann concebia a ciência, em especial, a Matemática, como dividida
em duas partes: real e formal. A ciência real é a que reproduz no pensamento o
ser que é independente do pensamento e sua verdade reside na coincidência do
pensamento com o ser; ao passo que a ciência formal tem por objeto o que é
formado pelo pensamento, cuja verdade reside na concordância dos processos
mentais entre si.
Esta concepção pode ser encontrada em:
Pensar só se pode em relação a algum ser, que se enfrenta e é reproduzido
pelo pensamento, mas este ser é, nas ciências reais, algo independente,
existente por si fora do pensamento; e nas ciências formais, ao contrário,
é algo formado pelo pensamento, que faz o papel do ser para um segundo
ato de pensar. Se a verdade consiste, de maneira geral, na coincidência do
ser com o pensar, então, consiste, em especial, nas ciências formais, na
coincidência do segundo ato de pensar com o formado pelo primeiro, isto
é, na coincidência de ambos os atos do pensamento. Conseqüentemente,
nas ciências formais, a demonstração não excede os limites do
pensamento nem entra em outros campos, consiste, pois, puramente na
combinação dos distintos atos do pensamento. Esta é a razão pela qual as
ciências formais não devem basear-se em postulados, como as reais; sua
única base são as definições.
1
(GRASSMANN, 1947, p. 21)
Grassmann entendia que as ciências formais estudam as leis gerais
do pensamento, que denominou de dialética (lógica) e as leis particulares geradas
pelo pensamento, a Matemática. Cria, assim, a divisão das ciências formais em:
dialética e Matemática, sendo a dialética uma ciência, cujas características são
1
Pensar solo se puede en relación a algún ser, que se le enfrenta y es reproducido por el pensamiento; pero
este ser es, en la ciencias reales, algo independiente, existente de por si fuera del pensamiento; en las
formales, en cambio, algo formado por el pensamiento, que hace el papel del ser para un segundo
acto del pensar. Si la verdad consiste, de la manera más general, en la coincidencia del ser con el pensar,
entonces consiste en especial en las ciencias formales, en la coincidencia del segundo acto de pensar con lo
formado por el primero, es decir en la coincidencia de ambos actos del pensamiento. Por consiguiente, en las
ciencias formales la demostración no excede de los límites del pensamiento ni entra en otros campos,
consiste pues puramente en la combinación de los distintos actos del pensamiento. Esa es la razón por la cual
las ciencias formales no deben basarse en postulados, como las reales; su única base son las definiciones.
18
filosóficas, pois busca a unidade de todos os pensamentos, ao passo que a
Matemática caminha no sentido oposto, por considerar o pensamento como algo
particular.
Para ele, a Matemática era como uma forma de pensamento, por isso
nomeou seu trabalho Teoria das Formas, por ser um termo amplo que não geraria
ambigüidade. Nela fez a divisão da Matemática em cinco disciplinas, assim: a
Álgebra Abstrata seria a mais geral e capaz de gerar todas as outras, a
Aritmética, a Combinatória, a Lógica e a Álgebra Exterior (em termos modernos, a
Álgebra Linear).
No desenvolvimento da Teoria das Formas, destacamos a parte que nos
interessa, a Aritmética. Em 1861, Hermann Grassmann publicou um livro didático
intitulado Lehrbuch der Aritmetik, que foi alvo de crítica e inspiração. Crítica no
sentido de apresentar a Aritmética revestida de axiomas que, explicitamente, foi
rejeitada pelos matemáticos de sua época, e inspiração para o desenvolvimento
de uma abordagem axiomática do conceito de número.
A virada do século XIX para o XX foi rica em transformações. Acreditamos
que Hermann Grassmann muito contribuiu para que elas acontecessem, seja de
forma implícita, no caso do desenvolvimento da Análise ou explícita como é o
caso da Álgebra Abstrata. Atribuímos a ele parte do mérito dessas mudanças
notáveis nas ciências exatas. Na introdução de sua tese Palaro (2006) lembra-
nos que o nascimento da teoria da relatividade de Einstein, 1905 foi um fato
marcante na virada do século e que está relacionado com a nova concepção de
espaço, proporcionado pelo desenvolvimento das Geometrias não-euclidianas.
Conforme as questões acima levantadas que resgatamos da história, as
transformações ocorridas na ciência Matemática no século XIX e início do XX,
podem ser equiparadas à uma revolução, pois trouxeram conseqüências
significativas às Ciências Exatas, sobretudo, à Matemática.
Uma compreensão dessas transformações pode revelar elementos que
justifiquem a não definição do conceito número de forma absoluta. Número é
19
um conceito presente em todos os ramos das ciências exatas; no entanto, o
existe ainda uma conceituação de forma abrangente.
No estudo dos fundamentos da Matemática, há que se fazer uma digressão
na história e dependendo do caminho a ser adotado, um ou outro aspecto poderá
ser beneficiado. Dessa forma, a escolha do caminho torna-se importante. Por
exemplo, ao falarmos da Aritmética, poderemos seguir o caminho que privilegia a
teoria dos conjuntos que, desse ponto vista, define número privilegiando a
ordinalidade. Nosso caminho será traçado objetivando a epistemologia do
conceito número.
O homem utiliza a noção de número desde o tempo das cavernas, apesar
disso na Matemática as teorias existentes não respondem de forma definitiva à
questão: o que é número? Então nos indagamos: por que um conceito, por quase
dois mil anos, foi entendido como pronto e acabado pelos matemáticos, passou a
requerer uma teoria capaz de conceituá-lo de forma abrangente? Constatamos
ser essa a preocupação de vários matemáticos. Vejamos o que dizem alguns.
Halmos inicia o capítulo Números de sua obra “Teoria Ingênua dos
Conjuntos”, questionando:
Quanto é dois? Como mais geralmente, definimos os números? Para nos
prepararmos para a resposta, consideremos um conjunto X e formemos a
coleção P de todos os pares não ordenados {a, b} com a em X, b em X e a
b. (HALMOS, 1970, p. 45)
O autor citado adota o caminho da teoria dos conjuntos para responder à
questão, demonstrando as relações e propriedades que são válidas sob o ponto
de vista dos conjuntos, que é assumido por Bertrand Russell.
Bertrand Arthur William Russell (1872 -1970), filósofo e matemático
contribuiu bastante para a Filosofia, Lógica e Teoria dos Conjuntos. No período de
1910 a 1913, publica em três volumes a obra "Principia Mathematica", escrita com
Whitehead (1861-1947), considerada um importante tratado da Lógica do culo
XX.
20
A questão sobre a definição de número também foi posta por Frege na
introdução de sua obra, quando disserta sobre os fundamentos da Aritmética,
A questão o que é o número um? Ou: o que significa o sinal 1? Receberá,
freqüentemente, como resposta: ora, uma coisa. E se fazemos, então,
notar que a proposição “o número um é uma coisa” não é uma definição,
porque há, por um lado, o artigo definido; por outro, o indefinido que
apenas é afirmado que o número um pertence às coisas, mas não que
coisa seja, seremos talvez convidados a escolher uma coisa qualquer que
desejamos chamar de um. (FREGE, 1974, p.203)
O estudo do conceito número pode ser comparado ao de uma árvore, que
tem partes, tais como: copa, tronco e a raiz. Podemos, então, estudar a copa, o
tronco ou a raiz. Na presente pesquisa o objetivo do estudo do número, não é a
“copa” nem o “tronco”, mas, sim, sua raiz, isto é, sua epistemologia.
Estudar a epistemologia do conceito de mero é relevante para a
Matemática e, por conseqüência, à Educação Matemática, visto que a busca da
sistematização desse conceito representou um avanço de muitos ramos da
Matemática.
Representou, também, uma nova perspectiva de abordagem da
Matemática, pois a partir do momento em que a sistematização do conceito de
número é alvo da atenção dos matemáticos, o interesse pela ciência real
(caracterizada pela Geometria e a Mecânica) é deslocado para a ciência formal.
A respeito do método axiomático, Otte (2005)
2
cita que: “matemáticos
começaram a refletir mais profundamente sobre suas próprias construções
mentais e atividades, ao invés de refletir sobre determinados objetos do mundo
externo”.
Observa-se que a Aritmética demorou quase dois mil anos para ser
axiomatizada. Uma das razões dessa demora foi o fato do conceito número ser
admitido como algo perfeito e que nada poderia ser modificado. O número era
apreendido intuitivamente e sua abordagem era, portanto a sintética. Nesse
contexto, Kronecker apresentou os números naturais como um presente do “Bom
2
Fala de Otte (2005) em seminários na Pontifícia Universidade Católica, nos grupos de pesquisas.
21
Deus”. Com isso atribuiu o papel pré-científico à gênese do número, esquecendo-
se que as atividades de todos os representantes do “Bom DEUS”, como as
crianças e até os periquitos de Otto Kohler assemelham-se às atividades dos
matemáticos.
A mudança na conceituação da noção de axioma possibilitou aos
matemáticos conceberem a Aritmética axiomatizada. No desenvolvimento deste
estudo, serão discorridas as mudanças em torno da noção de axioma. Outro fato
que foi constatado no processo da axiomatização da Aritmética, foi a revelação do
número natural como um objeto matemático, desse modo, sujeito de
transformações e desenvolvimento.
Grassmann
3
foi o autor da axiomatização da Aritmética, mas não percebeu
no desenvolvimento de seu trabalho a proposição de uma axiomática, mesmo
porque entendia que a ciência formal não poderia ser constituída por axiomas.
Assim, rejeitava a abordagem axiomática não à Aritmética, mas, para toda a
Matemática pura. (RADU, 2003)
A abordagem utilizada em seu trabalho apresentava uma nova forma de
conceituar número a partir de uma simples operação x + 1, e, portanto, ele próprio
não a viu como uma axiomatização.
Os matemáticos compreendiam que a proposta de Grassmann para a
Aritmética feria os fundamentos do próprio conceito, por isso contestaram, porque
acreditavam que o conceito número jamais poderia ser definido por meio de
fórmulas recursivas, avaliando, assim, o que se apresentava no trabalho de
Grassmann. Entendiam que a abordagem da Aritmética apresentada por
Grassmann apelava ao logicismo e que as questões dos fundamentos não
poderiam ser tratadas como tal. Na verdade, não compreendiam que Grassmann
estava considerando aquelas fórmulas fora de um sistema de linguagem formal.
3
É interessante notar que a família Grassmann era composta por vários integrantes, e os responsáveis pela
discussão do conceito número foram pelo menos três Grassmann , são eles: Justus Grassmann (pai) ,
Hermann Grassmann (filho) e Robert Grassmann (filho), além de Hermann Grassmann Filho (1859), isto é,
filho de Hermann, também matemático.
22
Enfim, a abordagem da Aritmética, comum em nosso meio, ou seja, a
axiomática foi proposta por Grassmann. No entanto, o reconhecimento acabou
sendo de Peano, seu discípulo, que a consolidou com a publicação em 1889 da
obra Arithmetices Principia nova methodo exposita.
A presente pesquisa é teórica e de ordem histórico-epistemológica, com
foco na questão: o que é número? Assim sendo terá como procedimento de
investigação estudos bibliográficos, leituras e a realização de sínteses e análises.
O equacionamento histórico-epistemológico da sistematização de um conceito
matemático, como, por exemplo, o de número interessa à Educação Matemática,
pois, na medida que o questionamento pode explicitar possíveis conflitos
geradores da constituição do conceito, tais conflitos podem ter deixado marcas no
processo de ensino-aprendizagem.
Este estudo está dividido em três momentos: o primeiro, é composto dos
dois primeiros capítulos, sendo apresentado um levantamento histórico dos três
grandes acontecimentos: o desenvolvimento das Geometrias não-euclidianas, a
libertação da Álgebra Abstrata das veias Aritmética e o processo de Aritmetização
da Análise. No segundo momento, apresentado no terceiro capítulo, resgatamos a
história de Hermann Grassmann e os elementos de sua concepção da
Matemática e no terceiro momento, composto pelo quarto e último capítulo,
apresentamos as reflexões geradas por um debate entre dois matemáticos
importantes da época, no qual o foco da discussão era a pertinência do princípio
axiomático constituir-se como fundamento da Aritmética.
Para o desenvolvimento dos dois primeiros capítulos, apoiamo-nos na
história e epistemologia dos conceitos. Consultamos as obras: introdução à
história da Matemática de Howard Eves (2004) e História da Matemática de Carl
B. Boyer (1974), que revelaram os aspectos históricos. As obras: Conceitos
Fundamentais da Matemática de Bento de Jesus Caraça (2003), O que é
Matemática? de Richard Courant e Herbert Robbins (2000) e Essays on the
Theory of Numbers de Richard Dedekind (1963) atenderam ao aspecto
epistemológico.
23
No desenvolvimento do terceiro capítulo, apoiamo-nos na obra Teoria de
La Extensión Nueva disciplina Matemática expuesta y aclarada, mediante
aplicaciones de Hermann Grassmann (1947), além do contexto histórico extraído
das obras de História da Matemática, anteriormente citadas.
No quarto capítulo, o estudo foi elaborado por meio da análise do artigo
intitulado: A debate about the axiomatization of arithmetic: Otto Hölder against
Robert Graβmann, de Mircea Radu (2003), que trata do tema em questão. Nele, a
axiomatização da Aritmética é apresentada sob pontos de vista distintos. Por um
lado, está Otto Hölder, um matemático pouco reconhecido, pertencente à corrente
filosófica intuicionista e, de outro, Robert Grassmann, um alemão que, apoiado
nas idéias de seu irmão Hermann Grassmann, publicou, em 1891 o Die
Zahlenlehre oder Arithmetik, que é foco da critica de Hölder.
No final do trabalho, trazemos como anexo I, parte da obra de Hermann
Grassmann, que julgamos ser interessante à Educação Matemática disponibilizá-
la, pois nela o autor discorre sobre sua concepção de Matemática e apresenta os
elementos essenciais que usou em sua construção, sendo composta por uma
extensa introdução e pelo prefácio em que Grassmann explana a respeito da
obra. E como anexo II, uma tabela mostrando a abordagem estrutural algébrica,
proposta por Grassmann, apenas como curiosidade.
No corpo do trabalho, fizemos a tradução de citações, cujo texto original é
apresentado em notas de rodapé.
Apresentamos no final da introdução dessa pesquisa, uma tabela
cronológica com a maioria dos matemáticos, referenciados no trabalho, cuja
finalidade foi localizá-los no tempo e, com isso, talvez, contribuir para a sua
compreensão.
Nossa concepção da ciência assemelha-se á visão do português Bento de
Jesus Caraça que no prefácio de uma de sua obra cita que a ciência deve ser
vista como:
[...] um organismo vivo, impregnado de condição humana, com as suas
forças e suas fraquezas e subordinado às grandes necessidades do homem
24
na sua luta pelo entendimento e pela libertação; aparece-nos, enfim, como
um grande capítulo da vida humana social. (CARAÇA, 2003, p. xxiii)
O caminho que assumimos encara a ciência da forma descrita por Caraça
(2003), pois acompanhamos o desenvolvimento progressivo do conceito e
assistimos ao modo como foi elaborado, o que nos permitiu descobrir hesitações,
dúvidas, contradições e que após uma longa investigação, será possível
eliminá-las para que, posteriormente, novas hesitações e controvérsias surjam a
fim de que reflexões seguintes venham também eliminá-las.
25
300 a.C.
Eudoxo de Cnido (390 – 338 a.C) Sobre proporção e exaustão.
Euclides (330 – 270 a.C.) – os Elementos (Teoria dos Números e
Números Primos)
1600
Girolamo Saccheri (1667 – 1733) – Euclides ab omni naevo
vindicatus (1733)
1700-1800
J. d’Alembert (1717–1783) – Traité de dynamique (1738)
J. H. Lambert (1728–1777)Die Theorie der Parallellismo; Die
freye Perspektive (1759)
J.L.Lagrange (1736–1813)Mécanique analytique (1788);
Fonctions analytiques (1797)
A.M.Legendre (1752–1833) – Éléments de Géometrie (1794)
F.J. Servois (1767–1847)Geometria Projectiva
1800-1900
B.Bolzano ( 1781–1848 ) – Rein analytischer Beweis (1817)
A. Cauchy ( 1789–1857) – Calcul dês Residus (1827)
A.F.Möebius (1790–1868) – Coordenadas homogêneas (1827)
N. I. Lobachevsky (1793–1856) – Kasan Bulletin (1829)
George Peacock (1791–1858) – Treatise on algebra (1830)
Janos Bolyai (1802–1860) – Ciência Absoluta do Espaço (1832)
W.R.Hamilton (1805–1865) – Quatérnions de Hamilton (1843)
H. G. Grassmann (1809–1877)Die Ausdehnungslehre (1844)
J.B.Listing (1808–1882) – Vorstudien Zur Topologie (1847)
E.E.Kummer (1810–1893) – Teoria dos Ideais
Arthur Cayley (1821–1895) – Teoria dos Invariantes
B.Riemann (1826–1866) – Habilitationschrift de Riemann Boole:
Laws of Thought (1854)
Felix C. Klein (1854–1912) – Erlanger Programm (1872)
R.Dedekind (1831–1916) Stetigkeit und irrationale Zahlen (1872)
C. Hermite (1822–1901) – Prova que e é transcendente (1873)
F.L.G.Frege (1848–1925) – Die Grundlagen der Arithmetik (1884)
G.F.L.P.Cantor (1845–1918) – Mengenlehre de Cantor (1874)
Giuseppe Peano (1858–1932) – Axiomas de Peano (1889)
1900
Robert Grassmann - Die Zahlenlehre oder Arithmetik (1891)
B. A. W. Russell (1872–1970) – Principia Mathematica (1910)
Otto Hölder ( 1859–1937)R.Grassmann, Die Zahlenlehre
oder Arithmetik (1892)
Kurt Gödel (1906–1978 ) – Teorema de Gödel (1931)
Quadro I
Quadro I
Linha cronológica dos matemáticos referenciados no trabalho
CAPÍTULO I
AS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NA
GEOMETRIA E NA ÁLGEBRA NA VIRADA DO
SÉCULO
I.1 – Introdução
Na história da Matemática, houve duas grandes revoluções que trouxeram
conseqüências significativas no modo de compreender e abordar os conceitos
matemáticos. Entre estas transformações, está o descobrimento das Geometrias
não-euclidianas e o desenvolvimento da Álgebra abstrata por um lado e, por
outro, a possibilidade de sistematizar o conceito de número pela axiomatização.
Até então, a Matemática era concebida e construída com base na observação e
na experiência. As novas descobertas fizeram com que o eixo temático se
deslocasse dos problemas entre o conhecimento do mundo externo e se
movesse ao problema da dinâmica e da cognição, conseqüentemente,
matemáticos começaram a refletir sobre suas próprias construções mentais.
A existência das Geometrias não-euclidianas, a adoção da Álgebra como
ramo da Matemática desvinculado da Aritmética e a concepção do princípio
axiomático para o conceito número implicaram transformações em diversos
ramos da Matemática. Entre estas transformações, citamos neste capítulo
somente a topologia da reta, por ser essencialmente constituído com base no
27
conjunto dos números reais, que por sua vez, será remetido aos axiomas que
descrevem o número natural que é nosso foco principal.
As transformações ocorridas na virada do século XIX para o XX, forçaram
os matemáticos a que se adentrassem às questões filosóficas, sendo uma das
mais fundamentais a relativa à natureza do pensamento matemático.
Podemos dizer que elas colocam em questionamento as teorias
embasadas por correntes filosóficas, como, por exemplo, o intuicionismo, cujo
princípio está fundamentado na natureza sintética da Matemática e o método
direto de prova. Elas marcaram o início de uma reorganização do pensamento
humano no que se refere ao pensamento matemático. Isto implica novas formas
de abordar os conceitos matemáticos.
Tais transformações resultaram, conseqüentemente, em mudanças de
concepções. Entre elas, a conceituação do termo axioma, a existência do objeto
número e a possibilidade da abordagem analítica dos objetos matemáticos e o
princípio axiomático inserido na ciência formal.
A percepção de regularidades e a constatação das características comuns
aos objetos nos possibilitam chegar à abstração e à generalização. Isso mostra
que a noção dual: extensional e intensional dos objetos matemáticos, definidos
pelo termo complementaridade de Niels Bohr
4
(1885 – 1962), que são resgatados
por Otte (2003) noções: extensional e intensional e renomeados por Sfard
(1991) estrutural e operacional é uma exigência implícita aos conceitos para
que eles sejam apreendidos de forma plena. A noção intensional ou estrutural
corresponde à sistematização do conceito e a noção extensional ou operacional,
a sua aplicabilidade.
Neste capítulo, delineamos um panorama histórico do período concernente
a dois momentos importantes da Ciência Matemática.
4
Niels Henrick David Bohr, físico dinamarquês que formulou em 1928 o princípio da complementaridade.
Seus trabalhos contribuíram decisivamente para a compreensão da estrutura atômica e da física quântica.
Enciclopédia eletrônica, acessado:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Niels_Bohr , acesso em 20/09/2006 às
16h15m.
28
I.1.1 - Panorama histórico em torno de dois grandes
acontecimentos
Na história da Matemática, houve dois grandes acontecimentos que
alteraram profundamente a concepção no que se refere aos conceitos
matemáticos, até então, desenvolvidos. Um dos grandes acontecimentos foi a
descoberta de outras Geometrias, para além da euclidiana, e o outro foi o
surgimento de uma Álgebra diferente da habitual. Ambos os acontecimentos
marcaram o início do avanço da Ciência Matemática e ocorreram na primeira
metade do século XIX, denominado, hoje, por muitos, como idade de ouro da
Matemática. Expresso em,
Mais do que qualquer outro período, o século dezenove merece ser
considerado a Idade de Ouro da Matemática. Seu crescimento durante
estes cem anos é de longe maior que a soma total da produtividade em
todas as épocas precedentes. (BOYER, 2003, p.343)
Próximo de 1829, houve a descoberta de uma Geometria autoconsistente
com bases diferentes da Geometria de Euclides e, por volta de 1843, o
surgimento de uma Álgebra que se distinguia da Álgebra admitida até então. Os
dois eventos podem hoje ser chamados de grande revolução na Matemática, pois
se atribui a eles a responsabilidade do passo inicial de avanços significativos e
transformações na Ciência Matemática, marcando historicamente esse momento.
Os dois momentos parecem que se contrapõem; por um lado, a Geometria
que era toda axiomatizada, consistindo de provas por meio de construções
rigorosas em que todo seu desenvolvimento estava embasado; por outro lado, o
desenvolvimento da Álgebra distinta da existente na época, a Álgebra abstrata,
cujo abandono da lei comutativa permitiu aos matemáticos desenvolver outras
Álgebras. O desenvolvimento da Álgebra Abstrata foi o que possibilitou foi o
primeiro passo na axiomatização do conceito número, a então, este era
concebido intuitivamente e pertencendo à ciência formal, que não permitia um
princípio axiomático para seu fundamento.
Tão grandes foram estas transformações que, embora nosso foco principal
nesta pesquisa seja a axiomatização do conceito número, não podemos deixar
29
de mencionar as mudanças ocorridas, também, na forma de pensar e abordar os
conceitos geométricos.
I.2 - O desenvolvimento das Geometrias não-euclidianas
Na Matemática, como em toda a ciência, tudo ocorre a respeito de um
problema insolúvel, e com a Geometria não foi diferente. Um dos problemas
enfrentados pelos gregos antigos foi construir de forma consistente a teoria das
paralelas. As considerações abaixo são referências disso:
Euclides enfrentou essa dificuldade definindo retas paralelas como retas
co-planares que não se interceptam por mais que sejam prolongadas em
ambas as direções e adotou como suposição seu agora famoso postulado
das paralelas.( EVES, 2004, p. 539)
Matemáticos, sobretudo, os geômetras, ocuparam-se por quase dois mil
anos em tentativas para demonstrar que o famoso postulado das paralelas
pudesse ser um teorema deduzido a partir de outros nove axiomas e postulados.
As tentativas para demonstrar o postulado das paralelas fecundaram o
desenvolvimento da Matemática moderna, com a descoberta e construção de
outras Geometrias.
Muitas das tentativas de demonstração do postulado das paralelas foram
tornadas públicas. Entretanto, a maioria recaia em suposições implícitas a ele
próprio. Uma demonstração que se distingue das demais como um passo
consistente em direção à descoberta das Geometrias não-euclianas, foi dada por
Saccheri em 1773.
Saccheri encantou-se com o método de Euclides nas demonstrações de
suas teorias, o método da redução ao absurdo. A leitura dos Elementos de
Euclides foi inspiração para a formalização de uma gica demonstrativa que
consistia na aplicação do método de redução ao absurdo no tratamento da lógica
formal. Então, aplicou os procedimentos de Euclides para tentar demonstrar o
30
postulado das paralelas, cujo trabalho resultou no livro intitulado: Euclides ab
omni naevo vindicatus, (Euclides livre de toda imperfeição), publicado, em 1733,
poucos meses após sua morte.
O modo como Saccheri pensou a demonstração do postulado das
paralelas está expresso em,
Saccheri aceita as vinte e oito proposições iniciais dos Elementos
de Euclides que, como já observamos antes, não necessitam do
postulado das paralelas para sua demonstração. Com a ajuda
desses teoremas, ele empreendeu o estudo do quadrilátero ABCD,
nos quais os ângulos A e B são retos e os lados AD e BC são
iguais. (EVES, 2004, p.340)
Como mencionado, Saccheri conhecia os esforços de Nasir Eddin para
provar o postulado quase meio milênio antes e, inspirado no método de reductio
ad absurdum já aplicado por Euclides.
A forma como pensou a demonstração do postulado das paralelas está
expressa,em :
[...] começou com um quadrilátero birretangular isósceles, agora
chamado de “quadrilátero de Saccheri” tendo lados AD e BC iguais
entre si e ambos perpendiculares à base AB. Sem usar o postulado das
paralelas ele mostrou facilmente que os ângulos de “topo” C e D são
iguais e que há, portanto, somente três possibilidades quanto a eles,
descritas por Saccheri como (1) a hipótese do ângulo agudo, (2) a
hipótese do ângulo reto, (3) a hipótese do ângulo obtuso. Mostrando que
as hipóteses (1) e (3) levam a absurdos, ele pensava estabelecer por
raciocínio indireto que a hipótese 2 é uma conseqüência necessária dos
postulados de Euclides com o das paralelas excluído.
Saccheri sentiu pouca dificuldade para excluir a hipótese 3, porque ele
assumia de modo implícito que uma reta é infinitamente longa. Da
hipótese 1, ele derivou teorema após teorema sem encontrar dificuldades.
(BOYER, 2003, p. 301-302)
Na verdade, ele estava construindo uma Geometria não-euclidiana; mas,
por acreditar fielmente na Geometria de Euclides como a única merecedora de
confiança, permitiu que essa crença interferisse no raciocínio que até então
guiava seus trabalhos. Como na hipótese 1, não havia contradição ele destorceu
31
o raciocínio até pensar que ela também levaria a um absurdo. Por isso, deixou de
fazer o que teria sido, sem vida, a descoberta mais importante do culo XVIII
– a Geometria não-euclidiana (BOYER, 2003, p. 301-302)
Os argumentos iniciais de Saccheri para o desenvolvimento de suas idéias
implicaram a existência de muitos teoremas, atualmente, clássicos, pertencentes
às Geometrias não-euclidianas. Se suas idéias não tivessem caído em
descrédito, ou seja, se ele não tivesse partido por um caminho que o conduziu às
noções obscuras sobre os elementos infinitos, seria, hoje, reconhecido como o
precursor das Geometrias não-euclidianas.
Alguns matemáticos apoiaram-se nas idéias de Saccheri e traçaram
caminhos diferentes, como Johann Heinrich Lambert com a obra Die Theorie der
Parallellismo e Adrien-Marie Legendre com Éléments de la Géometrie. Mesmo
não obtendo sucesso, ambos contribuíram, de certa forma, para que o alemão
Gauss, o húngaro Janos Bolyai e o russo Nicolai Ivanovitch Lobachevsky
formulassem a hipótese de que “o postulado das paralelas é independente dos
demais postulados e devido a isso não pode ser deduzido dos demais” (EVES,
2004, p. 541).
A admissão de que o postulado das paralelas não podia ser visto como os
demais, fez com que aqueles matemáticos caminhassem em outra direção,
embora a hipótese relativa ao ângulo agudo, na qual todos os seus
predecessores depararam-se, era ainda a grande incógnita norteadora dos
trabalhos.
A seguir, vejamos qual foi o caminho que conduziu efetivamente à
descoberta das outras Geometrias denominadas autoconsistentes e quais os
responsáveis pelo surgimento delas.
I.2.1 - Os matemáticos responsáveis pelo
desenvolvimento das Geometrias não-euclidianas
32
Tudo indica que Gauss participou desse episódio da Matemática;
entretanto não publicou nada sobre o assunto e, sendo assim, o mérito do
desenvolvimento da Geometria não-euclidiana foi atribuído aos matemáticos,
Bolyai em 1832 e Lobachevsky entre 1829-1830.
De acordo com (BOYER, 2003, p. 359), Gauss durante a segunda década
tinha chegado à conclusão que seria em vão tentar provar os postulados das
paralelas feitos por Saccheri, que Geometrias diferentes da de Euclides eram
possíveis; no entanto, não compartilhou suas idéias com ninguém apenas as
formulou para si próprio.
A não publicação de Gauss incidiu na continuidade de tentar provar o
postulado das paralelas. Entre os matemáticos, estavam o jovem Nicolai
Ivonovich Lobachewsky (1793 1856) e o filho de um amigo de Gauss, Jonas
Bolyai (1802 – 1860) concentrando esforços em tal prova.
A história nos leva a crer que o fato de Bolyai ser húngaro e Lobachevsky
russo, associado à lentidão com que, antigamente, a informação era processada,
implicou que eles não tiveram acesso aos escritos um do outro e que ambos
construíram independentemente suas idéias.
Talvez Bolyai tenha se inspirado em seu pai, um professor, para estudar o
postulado das paralelas, tema de seu interesse. Assim, ocorreu e em prazo curto
chegou à conclusão que “do nada, eu criei um universo novo e estranho” (EVES,
2004, p.542). Esta frase aparece nos manuscritos de Bolyai que foram
encaminhados a seu pai e este, por sua vez, publica-os, como apêndice (de 26
páginas) de sua própria obra.
Lobachevsky desenvolveu vida acadêmica, tendo iniciado como aluno e
posteriormente, assumiu a posição de professor universitário, chegando a
conquistar o cargo de reitor. Sua primeira publicação sobre o postulado das
paralelas foi, em 1829, a obra Kasan Bulletin em russo, que não contou com a
apreciação de seus conterrâneos e tão pouco entre matemáticos de outros
lugares do mundo. Assim, inconformado com a depreciação de seu trabalho
publicou mais duas obras, uma em alemão, em 1840, intitulada Geometrische
33
Untersuchungen Zur Theorie der Parallellinien (Investigação Geométrica sobre a
Teoria das Paralelas) e outra, em francês, 1855, pouco antes de sua morte,
nomeada Pangéométrie (Pangeometria).
Atualmente, a Geometria de Lobachevsky é um dos ramos frutíferos da
Matemática, mas, como muitos matemáticos ele só veio a ser reconhecido após a
morte. Contudo, a investigação a respeito do postulado das paralelas de
Euclides, não se tornou evidente e inquestionável com Lobachevsky, foi sim mais
um passo fundamental em direção a sua consolidação. Entretanto, outros
matemáticos seguiram seus passos e apresentaram em pouco tempo uma
demonstração consistente da hipótese do ângulo agudo.
A real independência do postulado das paralelas dos outros postulados
da Geometria euclidiana só foi estabelecida inquestionavelmente quando
se forneceram demonstrações da consistência da hipótese do ângulo
agudo. Estas não demoraram a vir e foram produzidas por Beltrami,
Arthur Cayley, Felix Klein, Henri Poincaré e outros.(EVES, 2004, p.
543)
O próximo avanço na Geometria resultou do trabalho de Riemann, em
1854, que o considerou a infinitude da reta, mas, apenas a ilimitação da
mesma, apoiando-se e ajustando alguns postulados da Geometria euclidiana e,
com base na hipótese do ângulo obtuso, demonstrou a existência de outra
Geometria não-euclidiana, a elíptica.
Muitas controvérsias existiram como sempre acontece com o surgimento
de algo novo e com a Geometria não poderia ser diferente. As mesmas foram
motivo de debates acalorados. Em 1871, Klein identifica a existência de três
Geometrias: Geometria hiperbólica de Bolyai e Lobachevsky, Geometria
parabólica de Euclides e, por fim, a Geometria elíptica de Riemann.
Toda revolução tem seus efeitos, sendo esse o caso da revolução ocorrida
na Matemática nesse momento histórico. A seguir, vejamos alguns efeitos que
pudemos detectar, sabendo-se que podem existir outros.
34
I.2.2 - Efeitos da constatação da existência das
Geometrias não-euclidianas.
Como a própria semântica do termo revolução sugere, são notáveis as
mudanças advindas das transformações ocorridas no século XIX. É possível que
algumas passem despercebidas a nossos olhos, mesmo porque nossa atenção
está voltada à outra grande revolução do século XIX, que não a relativa à
Geometria. Mesmo assim, mencionaremos aqui alguns aspectos importantes
referentes ao período do surgimento das Geometrias não-euclidianas, um fato
marcante da história.
A mudança mais notável foi tornar a Geometria independente
5
dos
postulados e axiomas euclidianos. Com a demonstração da hipótese do ângulo
agudo, abre-se outro caminho e, conseqüentemente, outra forma de demonstrar
afirmações, libertando-se da realidade física e assumindo uma outra dimensão, a
abstrata.
Há que se destacar, também, a mudança na concepção de axioma e
postulado. Aentão, a noção de axioma distinguia-se de postulado. A diferença
entre eles era considerável, os postulados não se referiam às afirmações tão
evidentes como os axiomas. Além disso, os postulados só eram aplicáveis a uma
ciência específica e os axiomas, às mais gerais.
Conforme explícito em:
Os postulados da Geometria tornaram-se, para os matemáticos, meras
hipóteses, cuja veracidade ou falsidade físicas não lhes diziam respeito.
O matemático pode tomar seus postulados para satisfazer seu gosto
desde que eles sejam consistentes entre si. As características de “auto-
evidencia” e “veracidade” atribuídas aos postulados desde os tempos dos
gregos deixaram de ser consideradas pelos matemáticos. (EVES, 2004,
p. 544)
5
Os grifos são para destacar os efeitos causados com o surgimento das Geometrias não-euclidianas.
35
A mudança na concepção dos matemáticos em relação aos dois termos,
de certa forma, liberta-os da limitação à realidade do espaço físico. Assim, a
Geometria euclidiana foi desenvolvida baseada em uma ciência experimental e
de observação, restrita, então, ao espaço físico, o que não mais era suficiente
para avançar no desenvolvimento de outros conceitos, de uma forma mais ampla,
requerida por conceitos abstratos. Como é o caso das Geometrias não-
euclidianas; a libertação possibilitou aos matemáticos a construção de
Geometrias artificiais marcando, assim, um momento de intensa mudança no
modo de pensar e provar as constatações referentes aos objetos geométricos.
No período do desenvolvimento das idéias de Lobachevsky, a própria
definição de espaço é desfigurada, surge, também, como um dos efeitos do
desenvolvimento das Geometrias não-euclidianas, que ora ressaltamos. A noção
de espaço passou a ser compreendida do ponto de vista relativo, ou seja, o
espaço ora existe fisicamente, ora não. Isso significa que depende dos aspectos
e das características das entidades manipuladas e o que se deseja delas pode
ser: uma demonstração, a existência, a aplicação, etc.
A existência das Geometrias não-euclidianas põe em questionamento o
próprio pensamento filosófico da época, concernente a Kant, acerca da noção de
espaço que matemáticos seguiam fielmente como uma única verdade. A
definição de Kant está expressa em,
O espaço é uma representação necessária a priori, que serve de
fundamento para todas as intuições externas. Nunca se pode formar a
representação da inexistência do espaço, ainda que se possa
perfeitamente pensar que, no espaço não haja objeto algum. O espaço
deve ser, portanto, considerado como a condição da possibilidade dos
fenômenos e não como uma determinação dependente deles: é uma
representação a priori que está necessariamente no fundamento dos
fenômenos externos” (KANT apud ABBAGNANO, 2000, p. 351)
Na época do surgimento da Geometria de Lobachevsky, a teoria kantiana
prevalecia e tinha uma visão intuicionista da noção de espaço. Assim, acreditava-
se que os postulados da Geometria Euclidiana eram juízos a priori, impostos ao
espírito humano e sem eles era impossível pensar a noção de espaço. A
36
Geometria de Lobachevsky mostra a independência dos postulados, sendo
assim, contrapõe-se à teoria de Kant.
Os surgimentos das outras Geometrias mostram claramente a ruptura no
modo de pensar os conceitos matemáticos, expressos em,
A criação das Geometrias não-euclidianas, puncionando uma crença
tradicional e rompendo com um hábito de pensamento secular, desferiu
um golpe duro no ponto de vista da verdade absoluta em Matemática.
Nas palavras de Georg Cantor “A Essência da Matemática está em sua
liberdade”. (EVES, 2004, p.545)
A Geometria de Lobachevsky foi a ponta do iceberg que surgiu durante o
século XIX, as mudanças foram significativas do ponto de vista conceitual,
filosófico e epistemológico.
As próprias questões dos fundamentos no que tangem ao aspecto
epistemológico dos conceitos, necessitaram de revisões e, conseqüentemente,
novas formas de abordagem dos conceitos matemáticos.
O desenvolvimento das Geometrias não-euclidianas proporcionou um
espaço muito mais amplo para que matemáticos pudessem trabalhar as noções
no aspecto cognitivo. Assim, abriram-se caminhos para o desenvolvimento de
novos conceitos e, até mesmo, novos ramos da Matemática. Um exemplo é a
Topologia e, em particular, a Topologia da reta.
I.3 – O desenvolvimento da Álgebra Abstrata
Os trabalhos de Grassmann revelaram a possibilidade de axiomatizar o
conceito de mero natural. O desenvolvimento de uma teoria que possibilitou a
construção de uma abordagem do conceito – número natural – cujo princípio foi o
axiomático, muito nos interessa, pois sabemos que, antes de 1861, número era
concebido como um conceito bem definido e perfeito, não necessitando de
37
qualquer alteração. Em 1861, com a publicação de um livro didático Hermann
Grassmann refere que número natural é um objeto matemático, deixando de ser
um presente de Deus. Grassmann estava bastante envolvido com o
desenvolvimento de uma nova teoria, atualmente, conhecida como Álgebra
Linear.
I.3.1 - O contexto histórico do desenvolvimento da
Álgebra Abstrata
Outro importante marco no desenvolvimento da Matemática foi a libertação
da Álgebra das veias da Aritmética. Até o início do século XIX, a Álgebra era
concebida como uma Aritmética simbólica, generalizadora de modelos, isso fazia
com que suas raízes estivessem presas às da Aritmética dos números inteiros.
Assim, prevaleciam as propriedades e os postulados definidos e aplicados no
domínio dos números, o que significa que a Álgebra não existia, como uma
entidade matemática, mas, como extensão da Aritmética.
O primeiro a enxergar a Álgebra sob outro prisma, foi George Peacock, em
1830, na Inglaterra, pois via as propriedades, tais como: comutativa da adição e
multiplicação, associativa da adição e multiplicação e propriedade distributiva da
multiplicação em relação à adição, aplicadas aos números inteiros, como
estruturas algébricas e aplicáveis a outros elementos diferentes dos habituais.
Peacock foi o pioneiro a elaborar um estudo a respeito dos princípios
fundamentais da Álgebra; que consistiu em tratá-la sob um princípio lógico,
equiparando-a aos elementos de Euclides, por isso ficou conhecido como o
“Euclides da Álgebra”.
Ele entendeu duas maneiras distintas de tratar a Álgebra, Álgebra
aritmética e a Álgebra simbólica. Os elementos da Álgebra aritmética são
números e, suas operações são as da Aritmética; ao passo que a Álgebra
simbólica é uma ciência que lida com as combinações de sinais e símbolos de
acordo com certas leis que são totalmente independentes dos valores específicos
dos símbolos. (BOYER, 2003, p. 400)
38
Esta nova visão possibilitou o avanço no vasto ramo da Matemática, que é
importante para diversos campos que dela se utilizam. Vejamos como Peacock
entendia as duas formas de ver a Álgebra,
[...] distinguia entre o que chamava Álgebra aritmética e Álgebra
simbólica. A primeira era considerada por ele como estudo resultante do
uso do símbolo para denotar os números decimais positivos usuais,
juntamente com os símbolos operatórios, como os de adição e
multiplicação, aos quais se podem sujeitar esses números. Assim, na
Álgebra aritmética, certas operações são limitadas por sua aplicabilidade.
Numa subtração, a b, por exemplo, devemos ter a > b. A Álgebra
simbólica de Peacock, por outro lado, adota as operações da Álgebra
aritmética, mas ignora suas restrições. (EVES, 2004, p. 547)
A extensão da Álgebra aritmética à Álgebra simbólica, era justificada por
Peacock por meio de um princípio, o princípio da permanência das formas
equivalentes, que lembra o princípio da preservação das leis formais, formulado
pelo matemático francês F. J. Servois. (1767 – 18470). Vejamos:
Qualquer forma equivalente a outra, quando expressa em símbolos gerais
deve continuar equivalente, seja o que for que esses símbolos denotem.
Reciprocamente:
Qualquer forma equivalente que pode ser descoberta na Álgebra
aritmética considerada como ciência da sugestão, quando os símbolos
são gerais em sua forma, embora específicos em valor, continuará a ser
uma forma equivalente quando os símbolos forem gerais em natureza
assim como em forma. (BOYER, 2003, p.400)
O princípio de permanência das formas equivalentes foi considerado um
conceito importante da Matemática, e teve um papel histórico significativo no
desenvolvimento inicial da Aritmética do sistema de números complexos, e a
extensão das leis de potenciação aplicada a expoentes inteiros positivos e
estendida a outros mais gerais.
Vejamos uma aplicação do princípio,
39
Na teoria dos expoentes, por exemplo, se a é um mero racional
positivo e n é um inteiro positivo, então a
n
é, por definição, o produto de
n fatores iguais a a . Dessa definição decorre facilmente que, para
quaisquer inteiros positivos m e n, a
m
a
n
= a
m + n .
Pelo princípio de
formas equivalentes, afirmava Peacock que na álgebra simbólica se tem,
então, a
m
a
n
= a
m + n
, não importa de que natureza possam ser a base a e
os expoentes m e n. (EVES, 2004, p. 547)
Atualmente, o princípio da permanência das formas equivalentes não é
mais relevante ou mesmo estudado, porém direciona muitas ações na
Matemática, por exemplo , quando queremos generalizar alguns conceitos,
temos o cuidado de averiguar, em um contexto mais amplo, se este conceito
preserva as propriedades daquilo que queremos generalizar.
Outros matemáticos seguiram o exemplo de Peacock e avançaram com
estudos sobre os fundamentos da Álgebra. Entre eles, temos: Gregory que em
uma publicação, em 1840, enfatizou as leis comutativas e distributivas da
Álgebra. Augusto de Morgan, cujo tema central de estudo foi a propagação da
Álgebra como estrutura, que contribuiu com o desenvolvimento da Álgebra
organizada por postulados.
Dois grandes nomes, cujas produções intelectuais impulsionaram de vez a
desvinculação da Álgebra da Aritmética, logo a sua independência, Hamilton e
Grassmann. Vejamos um relato sobre o trabalho deles,
[...] o matemático irlandês William Rowan Hamilton ( 1805-1865) e o
matemático alemão Hermann Günther Grassmann (1809-1877) tinham
publicado resultados de grande alcance , resultados esses que levaram a
libertação da álgebra , da mesma maneira que as descobertas de
Lobachevsky e Bolyai levaram a libertação da Geometria, e que abriram
as comportas da álgebra abstrata.(EVES, 2004, p. 547)
Ambos contribuíram muito para o desenvolvimento desse ramo da
Matemática, entretanto não foram tão reconhecidos, sobretudo Grassmann, em
razão da generalidade com que escrevia; tinha consciência de que seu resultado
diferia muito dos estudos da época e ansiava pela compreensão de seus
40
contemporâneos, a qual veio aparecer muito mais tarde. Nas palavras do
próprio Grassmann, observamos esta preocupação,
Na exposição de uma nova ciência, é absolutamente imprescindível, para
que se reconheça sua posição e seu significado, mostrar suas aplicações e
sua relação com temas análogos. Para isto, também, deve servir a
introdução. Esta é de natureza bem mais filosófica e, ao havê-la separado
do conjunto de toda a obra, minha intenção foi não atemorizar os
matemáticos com uma forma filosófica. Porque existe, ainda, entre os
matemáticos, e, em parte, não sem razão, certa aversão contra as
disquisições filosóficas sobre os objetos matemáticos ou físicos; [...]
6
(
GRASSMANN, 1947, p.17-18)
Grassmann sabia da necessidade da apreciação por parte dos
matemáticos de seu trabalho, isso lhe traria o reconhecimento, sabia também
do surgimento de um novo ramo da Matemática.
Ele difere de Hamilton, no sentido de que este trabalhava o aspecto
específico dos quatérnios, enquanto ele trabalhava no sentido mais geral.
Hamilton abandonou a lei comutativa para consolidar as noções dos quatérnios,
exigida pelo próprio desenvolvimento do conceito. Surge, então, uma Álgebra não
comutativa, um espanto para época, conseqüentemente, surge, também, o
seguinte questionamento: Como aceitar uma Álgebra não comutativa? A
indignação não para por ai, pois Grassmann foi muito mais além, mais geral e
abstrato, seu trabalho consistia em estender as idéias de Hamilton não para
R
4
e, sim, para R
n
.
Passamos a discutir no tópico seguinte os processos para a consolidação
do nascimento da Álgebra abstrata, observando o contexto histórico e as
controvérsias que os permeiam.
6
En la exposición de una nueva ciencia es absolutamente imprescindible, para que se le reconozca su
posición y su significado, mostrar sus aplicaciones y su relación con temas análogos. Para esto también debe
servir la introducción. Es ésta de naturaleza más bien filosófica y al haberla separado del conjunto de la obra,
fué mi intención no atemorizar a los matemáticos con una forma filosófica. Porque existe todavía entre los
matemáticos, y en parte no sin razón, cierta aversión contra las disquisiciones filosóficas sobre objetos
matemáticos o físicos (…).
41
I.3.2 - A consolidação da Álgebra abstrata
No início do século XIX, a Álgebra era tratada como uma Aritmética
simbólica, ou seja, generalizadora de modelos, cuja noção da Aritmética
prevalecia sobre a incógnita ou variável (até hoje, no ensino médio e início do
superior, a Álgebra é ensinada usando esta concepção)
7
.
Na passagem do século XIX para o XX, esta situação muda de figura, com
o surgimento de uma Álgebra diferente da habitual, denominada Álgebra
abstrata. O passo inicial foi dado por Peacock com a distinção entre a Álgebra
usada na Aritmética e a Álgebra estrutural. Hamilton continua superando a idéia
de existir uma Álgebra que não atendesse às exigências das relações e
propriedades usadas na mesma. Grassmann segue no sentido de generalização
dos trabalhos de Hamilton. Na concepção de Hamilton, a Matemática era
constituída, tendo por base as noções de espaço e tempo. Esta concepção
aparece em uma de suas primeiras publicações, na qual o espaço e o tempo
estão intrinsecamente ligados. Daí, a Geometria estudaria o espaço e a Álgebra
seria o estudo do tempo. É, também, norteado por esta concepção que ele
introduz o produto entre pares ordenados: (a, b). (c, d) = (ac bd, ad + bc),
combinando dados relativos ao espaço e ao tempo.
A idéia de que os números complexos eram pares ordenados de números
reais, estava presente nas representações gráficas dos trabalhos de Wessel,
Argand e Gauss, porém nunca explicitada com tanto rigor e perceptividade.
Hamilton foi o precursor da sistematização e da desmistificação de que o número
complexo era um conceito híbrido. É o que se deduz de: “Dessa forma, eliminou-
se a aura mística que cercava os números complexos, pois não nada místico
num par ordenado de números reais. Esse foi um grande feito matemático de
Hamilton”. (EVES, 2004, p. 549)
A evolução de uma ciência, assim como da Matemática pode ocorrer a
partir do questionamento de um determinado conceito, existente, porém não
7
Para uma visão didática do assunto ver: As idéias da álgebra, do The National Council of Teachers of
Mathematics (1995).
42
tão claro. Hamilton, assim, agiu quando percebeu que o conjunto de números
complexos adequava-se aos estudos de vetores e de rotações no plano. A
investigação da suposta adequação fez com que ele descobrisse e propusesse
coisas inusitadas na Matemática. Foi quando definitivamente percebeu a
necessidade de abandonar a lei comutativa para construir algo novo e propôs
diversas Álgebras tão consistentes quanto à Álgebra habitual e que não,
necessariamente, têm de valer as leis ou relações válidas na mesma.
O grande feito de Hamilton surgiu como um insight, ele refletia muito sobre
suas idéias, porém as forças contrárias à sua própria consciência não o deixavam
aceitar a possibilidade da existência de uma Álgebra em que a x b fosse diferente
de b x a. Isso fez com que ele permanecesse bastante tempo com a questão, em
suspenso, quando num átimo percebeu que se adotasse ao invés de ternas (a, b,
c), quádruplos ordenados ( a, b, c, d ), poderia provar que o sistema dos
números reais e de números complexos constituir-se-iam quatérnios. Para provar
isso, definiu que, dois quádruplos (a, b, c, d) e ( e , f, g, h ) seriam iguais se a =
e, b = f, c = g e d = h. Definiu a adição e multiplicação de quatérnios, conforme
seu propósito e demonstrou que, para a adição de quatérnios, vale a lei
comutativa e associativa e que, para a multiplicação verificavam-se as leis
associativa e distributiva em relação à adição e que não é aplicável a lei
comutativa da multiplicação.
Então, a Álgebra não estaria mais presa aos conceitos puramente da
Aritmética dos números reais, uma vez abandonada uma das leis que claramente
era válida nesse universo.
Hamilton mostrou-se bastante versátil, porém não é muito citado
atualmente. Entretanto, devemos destacar que sua contribuição foi de
fundamental importância para o desenvolvimento da Álgebra em um sentindo
amplo.
O desenvolvimento da Álgebra obteve um estágio ainda mais avançado
com os trabalhos de Hermann Grassmann, trabalhos estes que, como os de
Hamilton não são mencionados enfaticamente, também, foram de suma
importância para o desenvolvimento da Matemática de um modo geral.
43
Grassmann foi grande, por várias razões, entre elas, a de ter a capacidade
de atribuir generalização e abstração aos objetos matemáticos. Pautado em
noções simples como igualdade e união de magnitudes, ele mostra quão a
Matemática é geral e abstrata, atingindo pontos até então intocáveis.
Em 1844, com a publicação de sua obra Ausdehnungslehre generaliza a
Álgebra dos quatérnios de Hamilton, pois adota um sistema de n dimensões, isto
é, um conjunto ordenado de n números reais, ao invés dos quádruplos. Nesse
sistema, os elementos, denominados hipercomplexos, são indicados por
(
)
nn
exexex +++ ...
2211
, sendo
(
)
n
xxx ...,
21
, uma n-upla de números reais e (e
1
, e
2
, ...
e
n
) as unidades básicas de sua Álgebra. Ele define a adição e a multiplicação de
dois elementos do sistema, procedendo da mesma forma que com os polinômios.
Os passos iniciais de Peacock, a possibilidade de abandonar a lei
comutativa vista por Hamilton e a generalização apresentada por Grassmann são
causadores de mudança de rota em diversos ramos da Matemática, entre eles, a
Análise e a Álgebra Linear.
As Álgebras não-comutativas surgem; entre elas, podemos citar uma
bastante usual, desenvolvida por Cayley, a Álgebra das matrizes associadas a
transformações lineares. Cayley, muito próximo da forma como respectivamente
Hamilton e Grassmann introduzem a Álgebra dos quartérnios e a Álgebra
Abstrata, provou também que, para as matrizes, a adição satisfaz as
propriedades associativa e comutativa, a multiplicação satisfaz a associativa e
distributiva em relação à adição e, entretanto, para a multiplicação de matrizes
não é válida a comutatividade.
Vejamos como o historiador Eves (2004) relata esse período,
Desenvolvendo álgebras que satisfazem leis estruturais diferentes
daquelas obedecidas pela álgebra usual, Hamilton, Grassmann e Cayley
abriram as comportas da álgebra abstrata. De fato, enfraquecendo ou
suprimindo vários postulados da álgebra usual ou substituindo um ou
mais postulados por outros, consistentes com os demais, pode-se estudar
uma enorme variedade de sistemas. (p. 553)
44
As descobertas trazidas à tona anteriormente mostram o quão foi
importante para o desenvolvimento da Matemática a virada do século XIX para o
século XX, o tal reconhecimento de idade de ouro da Matemática está justificado
nessas transformações. Matemáticos mudaram de posturas e concepções
relativamente ao próprio objeto desta ciência, a maneira de refletir sobre as
construções matemáticas teve outro rumo, matemáticos começaram a refletir
sobre suas próprias construções mentais. As transformações refletem um
momento muito importante da Matemática, expresso em:
A maior parte desse trabalho deu-se no século XX e reflete o espírito de
generalização e abstração que prevalece atualmente na Matemática. A
álgebra tornou-se o vocabulário da Matemática dos dias de hoje e foi
apelidada “a chave-mestra da Matemática”. (EVES, 2004, p. 553)
De acordo com Hermite, os entes matemáticos, no caso os das Álgebras
não-comutativas e das Geometrias não-euclidianas existiam. Foi
perambulando pelas veias da Geometria e da Álgebra, em uma espécie de
mundo sombrio e eterno que matemáticos, como os citados acima, depararam-se
com descobertas significativas e anunciaram-nas ao mundo. Vejamos como
expressa a existência das entidades matemáticas,
Hermite era um crente declarado na existência desse mundo sombrio da
Matemática. Para ele, os números e suas bonitas propriedades sempre
tiveram existência própria e vez por outra algum Colombo da
Matemática depara-se com algumas dessas propriedades existentes e
anuncia sua descoberta ao mundo. (EVES, 2004, p. 564)
Em seguida, apresentadas de forma sintetizada as possíveis
conseqüências que podem acontecer em qualquer transformação brusca, neste
caso, o da Álgebra.
45
I.3.3 - Conseqüências da estruturação da Álgebra
Abstrata
Não esperamos aqui esgotar o tema, mas buscamos apresentar as
conseqüências mais significativas para este trabalho.
Como mencionamos acima, a ruptura do vínculo com a Aritmética foi
notável no surgimento da Álgebra estrutural. A Álgebra deixou de ser um artefato
para provar as propriedades dos números e sua generalização e torna-se um
objeto importante de estudo, pois garante a evolução de diversos conceitos
matemáticos.
Outro aspecto relevante foi o conforto que o trabalho de Hamilton
proporcionou aos matemáticos, eles se sentiam muito mais confortáveis com a
representação do sistema de números complexos na forma de pares ordenados
de números reais ou como coordenadas do plano.
O poder de generalização e abstração que propiciou o trabalho de
Grassmann mostra o quão geral e amplo é o mundo da ciência Matemática, com
reflexos em diversas ciências que dela dependem de alguma forma.
O abandono da lei comutativa foi um fator decisivo para levar Hamilton a
ser considerado o pioneiro no desenvolvimento de várias Álgebras diferentes da
Álgebra da Aritmética. Entre elas, podemos mencionar: a Álgebra das matrizes,
das booleanas, dos complexos, dos anéis, dos espaços vetoriais, etc. Além do
surgimento de Álgebras não associativas, como, por exemplo, a Álgebra de Lie e
a de Jordan.
46
CAPÍTULO II
O CONTEXTO HISTÓRICO EM QUE GIUSEPPE
PEANO ESTAVA INSERIDO
No capítulo anterior, mostramos dois grandes movimentos na Matemática,
na Geometria e na Álgebra. A Análise também passa por um processo intrincado
de transformações que ficou conhecido como a aritmetização da Análise. Neste
contexto, Giuseppe Peano (1858-1932), autor definitivo do processo da
axiomatização do conceito de número está inserido, assim como Richard
Dedekind (1831-1916) e Georg Cantor (1845-1918), cujos trabalhos foram de
suma importância para o desenvolvimento da Matemática no século XX.
2.1 - A aritmetização da Análise
No culo XIX, ocorreram transformações significativas para a Matemática
no campo da Análise, cujos resultados são a generalização e a adoção de uma
base abstrata para seus fundamentos, cujo desenvolvimento anterior baseava-se
na intuição geométrica.
Os matemáticos movidos pela aplicabilidade dos conceitos fizeram uso
deles de forma incoerente porque, muitas vezes, foram guiados somente pela
intuição; o que os levou a levantar questões como: as bases da Análise estão
bem delimitadas? Há que se rever os fundamentos desse ramo?
47
Estes questionamentos faziam sentido, pois a base da Análise era
sustentada pelo sistema de números reais e este, por sua vez, foi construído, até
então, por um processo guiado pela intuição geométrica, assim não garantia sua
legitimidade.
Em 1817, Bolzano, movido pela inquietação pela falta de uma definição
precisa de número real, foi um dos primeiros a sentir a necessidade do rigor na
Análise, sendo chamado por Klein ”o pai da aritmetização” (BOYER, 2003, p.
388); entretanto seus trabalhos não o confortaram, pois não conseguiu obter êxito
em suas idéias.
Em 1754, Jean-le-Rond d’Alembert (1717-1783) observou a necessidade
de uma teoria dos limites, que seria como a cura para o estado insatisfatório a
que os fundamentos da Análise estavam submetidos. Entretanto, até 1821, não
se verificou o desenvolvimento desta teoria, o que mostra que não obteve êxito
em suas idéias, embora tenha contribuindo com sua sinalização.
Outro passo em direção à construção do rigor na Análise foi dado por
Joseph Louis Lagrange (1736-1813), um ítalo-francês que também não obteve
sucesso, pois, seu trabalho refere-se à representação de uma função por uma
expansão em rie de Taylor, o que requeria clareza nas questões sobre
divergência e convergência darie, o que Lagrange não conseguiu. No entanto,
seus estudos contribuíram para o início do processo de distanciamento entre o
intuicionismo e o formalismo da Análise.
No século XIX, o corpo de conteúdos da Análise começa a crescer no
sentido literal da palavra, sem que suas bases estivessem bem fundamentadas.
A evolução de um conceito requer fundamentos consistentes. Os
protagonistas desse processo sentem-se no dever de apresentá-los. No caso da
Análise, isso não ocorria, pois ela era centrada no sistema dos números reais que
não estava rigorosamente construído.
Em 1821, o francês Augustin-Louis Cauchy (1789 1857) atendo-se às
idéias de d’Alembert consegue desenvolver a teoria dos limites, tão importante
48
para a Análise, pois a definição dos conceitos de continuidade, de
diferenciabilidade e de integrabilidade de função dependia dessa teoria. Além do
mais, o conceito de limite possibilita falar em séries convergentes e divergentes.
De fato, Cauchy, contribuiu com a Análise, dando um passo importante em sua
constituição, como ramo da Matemática, mas até ele as bases da Análise ainda
eram centradas nas intuições humanas.
Em 1874, o alemão Karl Weierstrass foi o pioneiro ao dizer que o sistema
de números reais precisava ser construído rigorosamente, pois toda Análise
sustentava-se nele e tratou de fazê-lo. Assim, defendeu um programa para
tornar o sistema de números reais rigoroso e com isso acarretar que tudo na
Análise que dele decorresse, inspirasse segurança. Weierstrass com seus
trabalhos consolida o processo da aritmetização da Análise. Podemos encontrar
traços desse fato em,
Esse notável programa, conhecido como aritmetização da Análise,
revelou-se difícil e intricado, mas acabou se concretizando através de
Weierstrass e seus seguidores e, hoje, a Análise pode ser deduzida
logicamente de um conjunto de postulados que caracteriza o sistema dos
números reais. (EVES, 2004, p. 611)
O processo de aritmetização da Análise se consolidou quando os
matemáticos tiveram a possibilidade de enxergar os números reais, como
estruturas mentais e não como grandezas intuitivas dadas, caminhando assim no
mesmo sentido da descoberta das Geometrias não-euclidianas e das Álgebras
Abstratas. No sentido de que na Álgebra deixou-se para trás uma propriedade,
para avançar no desenvolvimento de novos conceitos; na Geometria, a tentativa
de demonstrar o postulado das paralelas como um teorema evidencia a
existência de outras Geometrias, senão a euclidiana, com base na demonstração
da hipótese do ângulo agudo e na Análise quando se vêem livres da intuição
geométrica, conseguem solo fecundo para comportar o crescimento da Análise.
É interessante observar como a Ciência Matemática evolui. Vimos que
muito se ganhou com a investigação profunda, dos fundamentos da Análise,
pelos matemáticos, se não bastasse isso, os próprios fundamentos da Análise
49
colocam mais questões. Questões essas que fazem com que os matemáticos se
empenhem na busca da compreensão, admissível à mente humana. É o assunto
que norteia nosso trabalho e direciona nossos passos, cuja discussão iniciamos
no próximo item.
II.1.1 - Responsáveis pelo processo da aritmetização da
Análise
Se não bastasse todo o intrincamento em que a Análise foi envolvida
mediante seu crescimento notável, tornou-se um corpo tão denso em tão pouco
tempo. Para garantir sua permanência e sua veracidade, matemáticos imergiram
em seus fundamentos por um longo período.
As questões que se seguem, estão inseridas nesse contexto. O sistema
dos números reais será suficientemente consistente para servir de base para
vários ramos da Matemática? Se não para todos ou, pelo menos, para quase
todos? Se o sistema de números reais não for consistente, colocará em dúvida a
própria consistência da Matemática. Talvez estas reflexões, além de outras,
tenham conduzido os matemáticos a buscar uma forma para mostrar a
consistência dos números reais. O historiador Eves (2004) expressa assim esta
dependência,
De fato, pode-se afirmar hoje que, essencialmente, a consistência de toda
Matemática existente depende da consistência do sistema dos números
reais. Nisso reside a tremenda importância do sistema dos números reais
para os fundamentos da Matemática. ( p. 611)
Peano sempre se envolveu com as questões dos fundamentos, assim
objetivava revisar os fundamentos dos números reais, com vista à procura da
constituição de uma base sólida para esses números, sustento de toda
Matemática. Neste contexto, além de Peano, também, Dedekind e Cantor
estavam inseridos no estudo dos fundamentos dos números reais. Eles
50
conseguem mostrar que os números reais repousam sobre a base mais
elementar da Matemática, isto é, no sistema dos números naturais. Assim sendo,
o sistema dos números reais pode ser deduzido de um conjunto de postulados
admitidos para o sistema dos números naturais.
Para tal proeza Peano, Dedekind e Cantor despendem um esforço
inigualável em torno da teoria dos conjuntos, na qual inserem os números
naturais e reais. Em seguida, vejamos as contribuições individuais.
II.1.2 – A contribuição de Georg Cantor na aritmetização
da Análise
Georg Ferdinand Ludwig Philip Cantor, foi um dos matemáticos que
vivenciou a virada do século XIX para XX, nasceu em S.Petersburgo, Rússia, em
1845, embora tenha ido para atual Alemanha ainda muito jovem. Interessou-se
pela complexidade da Matemática, suas idéias levaram-no a desenvolver ramos
intricados e rejeitados para sua época, como o contínuo e infinito em Matemática,
os quais contaram com a hostilidade de Kronecker, outro matemático de muita
influência na época, que acreditava que os trabalhos de Cantor eram teológicos e
não matemáticos.
Figura
8
I
8
Acessado em http://library.thinkquest.org/22584/photo/cantor.jpg, acesso em 07/08/2006
às 16h33m.
51
Vejamos à luz da história como Eves (2004), relata seus passos iniciais na
Matemática.
Os primeiros interesses de Cantor voltavam-se para a teoria dos
números, equações indeterminadas e séries trigonométricas. A sutil
teoria das séries trigonométricas parece tê-lo inspirado a se enfronhar
nos fundamentos da Análise. Criou então uma bela abordagem dos
números irracionais, que utiliza seqüências convergentes de números
racionais e difere radicalmente do inspirado tratamento de Dedekind que,
em 1874, começou seu revolucionário trabalho em teoria dos conjuntos e
teoria do infinito. (p. 615)
De certo, o desenvolvimento da abordagem dos números irracionais foi o
que estimulou Cantor a desenvolver um de seus mais nobres trabalhos que
trouxe contribuições significativas à Matemática, pois desenvolveu a teoria do
infinito e a teoria dos conjuntos. Tais teorias constituíam um novo ramo de
pesquisa Matemática e, hoje, estão inseridas em quase toda ramificação da
Matemática, com notáveis contribuições na Topologia e na teoria das funções
reais.
De todos os seus trabalhos o que mais gerou controvérsias entre os
matemáticos foi a teoria do infinito; com esta teoria propiciou um salto qualitativo
no estudo dos números reais. A discussão principal era a respeito da existência
de dois tipos de infinito: o potencial e o atual. O infinito “potencial” era
consideravelmente aceito, mas, o “atual” das quantidades infinitas, não.
Outra perspectiva desenvolvida por ele foi a de que o “número” de
elementos de dois conjuntos infinitos não deveria ser necessariamente o mesmo,
isto é, poderia haver um conjunto infinito que tivesse “mais” elementos que outro
também infinito. Aqui vale observar que o significado de dois conjuntos terem o
mesmo número de elementos, quer dizer que existe uma correspondência
biunívoca entre eles e que um ter mais elementos que o outro significa a
existência de uma injeção entre eles, mas, não de uma sobrejeção.
Cantor inspirou-se nas noções em torno de conjuntos numéricos e pontos
para criar a Teoria dos Conjuntos. Preferia usar a palavra transfinito no lugar de
52
infinito para escapar da interpretação negativa do termo. Chamou de enumerável
os conjuntos que podiam ser colocados em correspondência biunívoca com os
números naturais, evidenciando que este é o “menor” dos conjuntos infinitos.
Em 1874, estabeleceu que o conjunto dos números racionais é
enumerável e, mais tarde, em uma carta a Dedekind (amigo mais próximo) relata
seus trabalhos e a dedução de que o conjunto dos números reais não é
enumerável, pois não pode ser posto em correspondência biunívoca com os
naturais, demonstrando a existência de “quantidades” infinitas distintas .
Um pouco mais tarde provou que existem tantos pontos em um segmento
de reta quantos em toda a reta, que existem tantos pontos em um segmento de
reta quantos em um quadrado do plano. Estas idéias eram muito acentuadas e
bastante complexas para ele mesmo. O que está expresso em uma de suas
frases comovente. “Eu vejo mas não vejo”.
Suas idéias referentes ao infinito e à teoria dos conjuntos foram tão
originais e revolucionárias para a época que acabaram causando sérios
problemas aos matemáticos. Ele próprio aponta a problemática em um de seus
trabalhos.
Estou consciente de que adaptando essas idéias estou me opondo à visão
do infinito mais amplamente difundido em Matemática e das opiniões
correntes sobre a natureza dos números. (CANTOR apud DURAN,
1996, p.273)
O aparecimento de alguns paradoxos perturbou-o, entre eles o que mais
perturbou as suas idéias foi o paradoxo de Russell
9
que surgiu em torno da teoria
9
O paradoxo de Russell foi descoberto por Bertrnd Russell, em 1901, um matemático britânico que prova
que a teoria de conjuntos de Cantor e Frege é contradictória. Considere-se o conjunto M como sendo "o
conjunto de todos os conjuntos que não se contêm a si próprios como membros". Formalmente: A é
elemento de M se e
se A não é elemento de A. Enciclopédia virtual em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paradoxo_de_Russell , acessado em 17/07/2006 ás 13h45m.
53
dos conjuntos, acrescido dos conflitos gerados entre os matemáticos com a idéia
do infinito contribuíram para que passasse parte de sua vida com problemas
psicológicos, morrendo finalmente em um hospital de doenças mentais de Halle,
em 1918.
Em sua época, Cantor foi repudiado por seus contemporâneos, por tratar
de conceitos inusitados e complexos; no entanto, os pesquisadores atuais
encontram em seus trabalhos uma fonte de inspiração para prosseguir no
caminho da ciência.
Passamos agora a observar os trabalhos de Dedekind, outro matemático
que muito contribuiu para com o processo da aritmetização da Análise e
conseqüentemente, com os avanços da constituição dos conceitos matemáticos.
II.1.3 - Richard Dedekind e sua nobre e duradoura
permanência na Matemática
Julius Wilhelm Richard Dedekind, matemático, alemão, nasceu em outubro
de 1831 e iniciou sua trajetória acadêmica aos 17 anos. Até então, não havia
mostrado habilidade com a Matemática, embora tivesse afinidade com a Física e
Química. Em 1850, ingressou na Universidade de Göttingen. Contou com
orientadores famosos na Matemática e na Física, como Moritz Abrahan Stern,
Gauss e Wilhelm Weber, o físico. Deles recebeu uma base de cálculo, elementos
avançados de Aritmética, estudos da geodésia e da Física experimental. Em
1852, Dedekind, com 21 anos recebeu seu grau de doutor por uma pequena
dissertação sobre integrais eulerianas, muito elogiada por Gauss. Permaneceu
em Göttingen por mais algum tempo estudando com Jacobi, Steiner e Dirichlet.
Dedekind deixa um legado, a todos os cientistas matemáticos com a
obra prima Continuity and irrational numbers Continuidade e os números
irracionais. É reconhecido até hoje pelos cortes de Dedekind, em que apresentou
54
pela primeira vez uma sistematização dos números reais baseado na noção de
corte.
Figura
10
II
Dedekind, também, acreditava que o conceito de limite deveria ser
desenvolvido por meio da Aritmética, isto é, abandonando a intuição geométrica
atingiria a uma construção rigorosa do conceito. Dessa forma, mostrou o desejo
de afastar da Análise o intuicionismo e o formalismo que a cercavam. Podemos
entender que o abandono mais uma vez da concepção solidificada, isto é, dos
conceitos prontos e bem delineados em Matemática ( aqui as forças presentes
do intuicionismo e formalismo) permitiram o desenvolvimento da mesma.
Em seus trabalhos, podemos referenciar os estudos sobre conjuntos
infinitos nos quais se depara com uma definição de conjunto infinito incomum
para a época. O conjunto é infinito se puder ser colocado em bijeção com uma de
suas partes. Esta definição vem contrariar uma verdade até então admitida de
que “o todo é sempre maior que suas partes” e se constitui um obstáculo
epistemológico.
A teoria dos números irracionais desenvolvida por Dedekind, pode ser
vista como um dos fatores, inseridos no contexto de sanar a crise instaurada nos
fundamentos a respeito das noções de incomensurabilidade, cujo produto foi a
10
http://en.wikipedia.org/wiki/Richard_Dedekind acessado em 06/10/2006 às 18h24m.
55
consolidação e adoção do método axiomático na Matemática. Com o objetivo de
relembrarmos, como foi instituída a crise em torno dos fundamentos, observamos
as palavras expressas,
A crise se desencadeou com a descoberta de que nem todas as grandezas
geométricas da mesma espécie são comensuráveis; mostrou-se, por
exemplo, que a diagonal e o lado de um quadrado não admite uma
unidade de medida comum. Como a teoria pitagórica das grandezas se
baseava na crença intuitiva de que todas as grandezas da mesma espécie
deveriam ser comensuráveis, a descoberta de segmentos
incomensuráveis provocou grandes transtornos. (EVES, 2004, p. 673)
O desenvolvimento da teoria dos números irracionais de Dedekind
remonta aos trabalhos de Eudoxo que, 370 a.C, desfaz um atado, com o
desenvolvimento da teoria das grandezas e proporções, cujo fruto foi uma das
obras-primas da Matemática de todos os tempos. Vejamos como o historiador
Eves (2004) relata a semelhança entre os trabalhos de Dedekind e Eudoxo,
A notável abordagem dos incomensuráveis de Eudoxo pode ser
encontrada no quinto livro dos Elementos de Euclides e coincide em
essência com a moderna teoria dos números irracionais dada por Richard
Dedekind em 1872. (p. 673)
Dedekind talvez possa ser considerado como um dos matemáticos mais
brilhantes dos últimos tempos. Com a publicação da obra intitulada Continuidade
e números irracionais, em 1872, pela primeira vez apresentou um tratamento
rigoroso do conceito de continuidade.
Galileu e Leibniz tinham julgado que a continuidade de pontos em uma
reta é uma conseqüência da densidade da reta, o que significa que entre dois
números sempre existe um terceiro. Entretanto, os números racionais têm essa
propriedade e não constituem um contínuo. Foi buscando responder à questão, o
que há na grandeza geométrica contínua que a distingue dos números racionais,
que Dedekind formula o princípio da continuidade dos números reais.
56
Em relação aos números racionais e à noção de continuidade, sua
inquietação conduziu-o a uma reflexão sobre a questão, levando-o a concluir que
a essência da continuidade está na divisão de um segmento. Assim, enunciou o
seguinte princípio,
Eu encontrei a essência da continuidade na discussão, isto é, no seguinte
princípio: Se todos os pontos da reta recaem em duas classes de modo
que cada ponto da primeira classe permanece à esquerda de cada ponto
da segunda classe, então existe aqui um e somente um ponto que produz
essa divisão de todos os pontos em duas classes, isto divide a reta em
duas partes.
11
(DEDEKIND, 1963, p. 11)
Dedekind estava confiante em sua descoberta, mas sabia ser impossível
encontrar argumentos suficientes para produzir uma prova. Sabia que seu
princípio deveria ser enunciado como um axioma. Observamos suas palavras
em:
Como disse creio não errar admitindo que toda a gente reconhecerá
imediatamente a exactidão do princípio enunciado. A maior parte dos
meus leitores terá uma grande desilusão ao aprender que é esta
banalidade que deve revelar o mistério da continuidade. A este propósito
observo o que segue. Que cada um ache o princípio enunciado tão
evidente e tão concordante com a sua própria representação da reta, isso
me satisfaz ao máximo grau, porque nem a mim nem a ninguém é
possível dar deste princípio uma demonstração qualquer. A propriedade
da reta expressa por este princípio não é mais que um axioma, e é sob a
forma deste axioma que nós pensamos a continuidade da reta, que
reconhecemos à reta a sua continuidade. (DEDEKIND, 1872, apud
CARAÇA, 2003, p. 58)
Dedekind supôs que o domínio dos números racionais pode ser estendido
de modo a formar um continuum de números reais, o que hoje se chama o
11
I find the essence of continuity in the converse, i.e., in following principle: “If all points of the straight line
fall into two classes such that every point of the first class lies to the left of every point of the second class,
then there exists one and only one point which produces this division of all points into two classes, this
severing of the straight line into two portions”.
57
axioma
12
de Dedekind-Cantor, em que pontos sobre a reta podem ser postos em
correspondência biunívoca com os números reais. Isso significa que para toda
divisão dos números racionais em duas classes A e B tais que todo número da
primeira classe A é menor que todo número da segunda classe B existe um e um
só número real que produz essa classificação.
O axioma ou postulado da continuidade de Dedekind pode ser enunciado,
assim: todo o corte da reta é produzido por um ponto dela, isto é, qualquer que
seja o corte (A, B) existe sempre um ponto da reta que separa as duas classes
(A) e (B). (DEDEKIND, 1872 apud CARAÇA, 2003, p. 58)
Caraça (2003, p. 58-59) fornece exemplos da aplicação da noção de corte,
primeiramente, sua observação é pertinente à compreensão. Vejamos, vamos
então aplicá-lo ao conjunto Q
0
+
.
Coloca-se uma questão será sempre possível definir, no conjunto Q
0
+
, o
conceito de corte? Sim, basta que a estar à esquerda de em pontos, se faça
corresponder – ser menor que – em números.
Assim, tem-se um corte no conjunto Q
0
+
, quando existirem duas classes
(A) e (B) de números racionais tais que:
1) Todo número racional está classificado ou em (A) ou em (B);
2) Todo o número de (A) é menor que todo o número de (B).
Por exemplo, temos um corte quando colocamos numa classe (A) todos os
números menores que 8 e o próprio 8 e numa classe (B) todos os números
maiores que 8. Neste caso, 8 é o elemento que separa as duas classes.
Citamos agora outra questão fundamental da comparação que nos trouxe
até aqui: do ponto de vista da continuidade, os conjuntos Q
0
+
e P
0
(pontos da
reta) têm a mesma estrutura, como a m do ponto de vista da infinidade,
ordenação e densidade? Ou não?
12
Quase pela mesma altura, o matemático alemão G. Cantor formulou a caracterização da continuidade por
uma maneira semelhante; por isso, a este enunciado se chama, com maior propriedade, axioma da
continuidade de Dedekind-Cantor. Nota rodapé: CARAÇA, (2003, p. 58).
58
Responde-se à questão investigando se o conjunto Q
0
+
satisfaz também o
axioma da continuidade de Dedekind-Cantor, isto é, se todo corte no conjunto Q
0
+
tiver um número em Q
0
+
a separar as duas classes. Vejamos em um exemplo
simples que não é bem assim, pois no conjunto Q
0
+
existem cortes (A, B) que não
têm elemento de separação. Vamos considerar uma repartição da seguinte
forma:
Na classe (A), colocamos todo número racional r cujo quadrado seja
menor que 2, isto é, tal que r
2
< 2;
E na classe (B), todo número racional s, cujo quadrado seja maior que 2,
isto é tal que s
2
> 2.
E agora verificar se esta repartição constitui um corte (A,B).
Supondo o número 0,8. Como 0,8
2
= 0,64 < 2 pertence à classe (A)
1,3
2
= 1,69 < 2 pertence à classe (A)
2
2
= 4 > 2 pertence à classe (B)
1,5
2
= 2,25 pertence à classe (B)
Conseqüentemente, podemos ver que o critério de repartição abrange
todos os números racionais, lhe escapa o mero, cujo quadrado seja igual a
2. que nos remete ao problema da monstruosidade na Aritmética a saber, o da
incomensurabilidade, pois não existe no conjunto dos racionais um número cujo
quadrado seja 2. O corte existe, pois de s
2
> 2 > r
2
resulta s > r.
Então, concluímos que: o conjunto Q
0
+
não satisfaz ao axioma da
continuidade de Dedekind-Cantor e, portanto, não é contínuo. A existência de
cortes no conjunto Q
0
+
que não tem um elemento de separação em Q
0
+
, é que
possibilita a definição de número real. Expressa em,
Chamo número real ao elemento de separação das duas classes de um
corte qualquer no conjunto dos números racionais; se existe um número
racional a separar as duas classes, o número real coincidirá com esse
59
número racional; se não existe tal número, o número dir-se-á irracional.
(DEDEKIND apud CARAÇA, 2003, p. 60).
Dedekind observou que os teoremas fundamentais sobre limites podem
ser provados rigorosamente sem apelo à Geometria. A Geometria que deu
parâmetros para o desenvolvimento de uma definição conveniente do princípio da
continuidade, agora precisava ser abandonada para ser introduzida a definição
aritmética formal do conceito. Como apresentada anteriormente, a noção de corte
de Dedekind no sistema de números racionais ou uma construção equivalente
dos números reais torna-se, desta forma, a espinha dorsal da Análise, anterior a
isto, era considerada a grandeza geométrica como sua base.
Os trabalhos de Dedekind tornaram-se uma pedra preciosa. Ele distinguiu-
se de muitos outros matemáticos, pois teve seu reconhecimento em vida e
presenciou sua teoria alastrando-se no meio acadêmico, com estudantes e
professores apropriando-se dela para desenvolver os conceitos matemáticos.
Existe uma anedota que diz que, Dedekind viveu vários anos depois de sua
célebre introdução dos "cortes", quando a famosa editora Teubner deu como data
de sua morte, o dia 4 de setembro de 1899, no calendário dos matemáticos.
Dedekind enfrentou essa situação com muito humor, escrevendo ao editor que
passara a data em questão em conversa estimulante com seu amigo Georg
Cantor.
Ele viveu ainda mais 12 anos.
Podemos constatar aqui mais uma vez algo sendo abandonado nesse
caso, a intuição geométrica, foi a partir dela que o trabalho de Dedekind
consistiu-se. Presenciamos o fortalecimento da teoria dos conjuntos, como uma
forma que busca explicar os fundamentos da Matemática. Para muitos, a teoria
moderna dos conjuntos é a mais bela criação do espírito humano e é o que
possibilita o entrelaçamento com as outras ciências. Expressa em,
Ela enriqueceu, tornou mais claro e generalizou muitos domínios da
Matemática, e seu papel no estudo dos fundamentos da Matemática é
essencial. E constitui também um elo entre a Matemática, por um lado e
a filosofia e a lógica por outro. (EVES, 2004, p. 662)
60
Aqui podemos resgatar alguns pontos que entendemos ser importantes na
discussão do período da aritmetização da Análise com a finalidade de mostrar o
quão complexa é a discussão em torno do conceito de número. Muitos
matemáticos foram decisivos em determinados momentos; na axiomatização da
Aritmética, podemos citar Giuseppe Peano, pois foi quem instituiu de vez a
questão. No próximo tópico, traçaremos o percurso que fez de Peano autor dos
axiomas da Aritmética.
II.1.4 – Giuseppe Peano e a incumbência na
axiomatização da Aritmética
Giuseppe Peano foi um lógico e matemático italiano, cujas inúmeras
publicações científicas conferiram-lhe o mérito de ser um dos maiores
matemáticos de sua época. Nasceu em Spinetta, Piemonte, em 27 de agosto de
1858. Produziu trabalhos na perspectiva filosófica e suas contribuições teóricas
estão presentes nas áreas de Análise Matemática, Lógica, Teoria dos conjuntos,
Equações diferenciais e Análise vetorial. Faleceu em Turim em 1932.
Figura
13
III
Na vasta lista de suas publicações, podemos destacar as obras Calcolo
differenziale e principii di calcolo integrale publicada em 1884 e "Lezioni di analisi
13
Enciclopédia virtual-Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Giuseppe_Peano acessado em
12/07/2006 às 15h22m.
61
infinitesimale" publicada nove anos depois, como sendo duas das mais
importantes no desenvolvimento da teoria geral das funções, posterior aos
trabalhos de Augustin Cauchy.
Em outra obra, Applicazioni geometriche del calcolo infinitesimale
publicada em 1887, introduziu os elementos básicos do cálculo geométrico e deu
novas definições ao cálculo do comprimento de um arco e para a área de uma
superfície curva. No livro Calcolo geometrico, de 1888, encontramos seu
primeiro trabalho em Lógica Matemática. Ele é, sobretudo, conhecido pela
criação de um sistema de símbolos que permite a descrição e o enunciado das
proposições lógicas e matemáticas sem recorrer à linguagem verbal,
apropriando-se ao máximo de uma simbologia. Podemos encontrar aqui uma
distinção entre ele e Hermann Grassmann nesse aspecto; pois, Grassmann
buscava uma harmonia entre as definições conceituais e expressões verbais.
No período em que atuou como professor assistente, Peano percebeu a
necessidade de uma revisão dos fundamentos da Matemática. Baseado em suas
aulas de Cálculo, decidiu lançar seu primeiro livro com o nome do mestre
Genocchi sob o título “Calcolo differenziale e principii di calcolo integrale” (Cálculo
diferencial e princípios do cálculo diferencial) em 1884. Em 1887, Peano
escreveu o livro “Applicazioni geometriche del calcolo infinitesimale” (Aplicação
geométrica do cálculo infinitesimal).
Neste período, o movimento a favor da axiomatização, da Matemática teve
grande impulso com Cantor e com o surgimento das geometrias não-euclidianas.
A contribuição de Peano foi decisiva, originando, naturalmente, o desejo de uma
axiomatização de toda a Matemática, isto é, o desenvolvimento dos postulados
(axiomas) e definições que são bases do sistema matemático.
Em 1889, Peano propõe a axiomatização dos números naturais, na forma
de panfletos, escritos em latim, Arithmetices Principia Nova Methodo Exposita”
(Princípios Aritméticos: Novo Método de Exposição).
Em sua primeira versão, esta obra contém um sistema da Lógica
Matemática, incluindo os famosos axiomas que definiram os números naturais
62
em termos de conjunto, denominado de axiomas de Peano. A sua importância na
Lógica e nos Fundamentos da Matemática foi imediatamente reconhecida.
Atualmente, Peano é lembrado pelos axiomas que levam seu nome. Por
meio dos cinco axiomas e três noções primitivas que introduziu a série dos
números naturais. Com os cinco axiomas e as três noções primitivas, apresenta
os números naturais de forma rigorosa, na qual repousam os fundamentos dos
números reais, dos quais tantas construções rigorosas da Álgebra e da Análise
dependem.
Para instituir a axiomatização da Aritmética, Peano lança mão da
linguagem simbólica, com o objetivo de atrair um grande público que seria
composto de seus seguidores. Obteve sucesso, pois atualmente os axiomas
estão presentes em todos os ramos da Matemática. Peano adotou uma
linguagem formal contendo símbolos, tais como
( pertence à classe de ), U (
soma lógica ou união), ( produto lógico ou intersecção) e
( contém ).
Os três conceitos primitivos definidos por Peano são zero, número e
sucessor – satisfazendo aos cinco postulados seguintes:
1. Zero é um número.
2. Se a é um número, o sucessor de a é um número.
3. Zero não é sucessor de um número.
4. Dois números cujos sucessores são iguais, são eles próprios
iguais.
5. Se um conjunto S de números contém o zero e também o
sucessor de todo número de S, então, todo número está em S.
A similaridade entre seus trabalhos na Aritmética e os de Grassmann é
notável, embora sem presenciar registros históricos atribuindo a Grassmann o
mérito de ser o pioneiro na abordagem axiomática da Aritmética. Sabemos que,
em 1861, com a publicação do livro didático, intitulado Lehrbrch der arithmetik,
Grassmann apresentava uma abordagem axiomática do conceito de número,
63
os mesmos axiomas definidos e adotados por Peano para a construção da
Aritmética. Talvez isso se deva ao fato de Grassmann jamais admitir que sua
abordagem fosse constituída axiomaticamente.
Peano foi um discípulo de Grassmann, um dos primeiros ater-se aos
trabalhos de Grassmann. Seus trabalhos podem ser vistos como frutos da leitura
do l’Ausdhenungslehre. Peano referenciou Grassmann com a publicação, em
1888, de Calcolo Geometrico secundo l’Ausdhenungslehre di H. Grassmann e
precedutto dalle Operozioni della Logica Deduttiva (DORIER, 2000, p.31). No
entanto, Peano consegue mostrar os aspectos geométricos da teoria, não
atingindo a essência da natureza de sua origem. Mesmo assim demonstra seu
apreço pela obra de Grassmann, consegue resgatar conceitos definidos por
Grassmann em 1844, por exemplo, o de espaço vetorial que Grassmann chamou
de sistemas lineares.
O tratamento de Peano é um tanto diferente de Grassmann, pois ele
utilizou os termos da lógica e o rigor do formalismo, os quais eram conhecidos
por Peano profundamente. Isso mostra que seus trabalhos concernentes à
axiomatização dependeram muito de suas contribuições. Contudo, podemos
salientar que a obra l’Ausdhenungslehre de Hermann Grassmann foi mais que
uma fonte de inspiração. Em 1844, ele havia construído uma abordagem da
Aritmética, cujo princípio era definido pelas fórmulas fundamentais. Grassmann
buscava um equilíbrio entre a abordagem sintética e analítica da Matemática
muito mais do que uma formalização dos conceitos.
Além disso, vale lembrar que foi Grassmann quem trouxe para a
Matemática a abordagem analítica dos conceitos. Por meio desta abordagem,
conseguiu estabelecer novas relações e novos conceitos.
Não podemos deixar de reafirmar, Peano instituiu a axiomatização da
Aritmética; no entanto, o precusor na axiomatização foi Hermann Grassmann,
podendo ser confirmada pela leitura da obra Lehrbrch der arithmetik, publicada
em 1861.
64
Conforme Boyer (2003, p. 415), Peano está entre os matemáticos que se
interessavam pela Lógica Matemática, até mesmo, um dos mais conhecidos. Seu
objetivo era semelhante ao de Frege, contudo, mais ambicioso. Esperava com
seu trabalho Formulaire de Mathématiques (1894) desenvolver uma linguagem
que contivesse a gica Matemática e todos os ramos da Matemática e com isso
atrair um grande público. O que veio acontecer, resultando do fato de ele não
usar uma linguagem metafísica e fazer opção por simbolos. Muitos desses
símbolos são usados até hoje.
Peano é considerado como o fundador da Lógica Matemática, entretanto,
é atribuída a Frege a paternidade da Lógica Matemática.
O nosso objetivo era de mostrar o contexto em que Peano estava inserido,
quando instituiu de vez o conjunto dos números naturais, constituído pelo
princípio axiomático. Encontrava-se (como muitos matemáticos) imergido em
investigações profundas referentes aos fundamentos dos números reais. Nestas,
ele constatou que o sistema dos números naturais é a base que fundamenta a
existência dos números reais.
Vimos que toda a Matemática está centrada no sistema dos números reais
e este repousa seu fundamento no conceito mais elementar, que é o sistema dos
números naturais ou inteiros positivos.
65
CAPÍTULO III
REFERÊNCIAS HISTÓRICAS DA VIDA DE
HERMANN GRASSMANN E ELEMENTOS DE SUA
CONCEPÇÃO DA MATEMÁTICA
III.1 – Referências Históricas
Hermann nther Grassmann nasceu em Stettin, 1809; era um
matemático autodidata, totalmente, desconhecido pelos matemáticos de sua
época. Em 1844, publicou parte de sua nova teoria Die Ausdehnungslebre
(Teoria Geral das Formas) intitulada Die Lineale Ausdehnungslebre. Nela
expressava que um novo ramo da Matemática estava surgindo e que não se
limitava ao contexto geométrico. Assim, considerou a Geometria como sendo
somente uma aplicação específica. A receptividade de seu trabalho foi ruim, pois
ele era criticado pela: (...) “falta de clareza na sua apresentação, especialmente,
em relação à extensa introdução filosófica a qual impediu muitos matemáticos de
qualquer leitura mais aprofundada.“
14
(DORIER, 2000, p. 18)
Grassmann foi um ser humano versátil, o que está expresso em,
Foi um homem de preocupações intelectuais muito amplas. Foi
não professor de Matemática, mas também de religião, Física,
Química, Alemão, História e Geografia. Escreveu sobre a Física, e
compôs textos escolares de Alemão, Latim e Matemática. Nos
tumultuados anos de 1848 e 1849 participou de um semanário político.
Interessava-se por música, e na cada de 1860 foi critico de ópera de
um jornal diário. Preparou um tratado sobre filológico sobre plantas
alemãs, editou um jornal missionário, investigou leis fonéticas, escreveu
um glossário para o Rig-Veda e traduziu o Rig-Veda em versos,
harmonizou canções folclóricas para três vozes, compôs seu grande
tratado Ausdehnungslebre e criou nove de seus onze filhos.(EVES, 2004,
p.556)
14
He was mostly reproached for lack of clarity in his presentation, especially regarding the long
philosophical introduction that prevented most mathematicians from reading any further..
66
Sua formação pode ter sido influenciada por seu pai, Justus Grassmann,
um matemático que pertenceu à escola combinatória de matemáticos no início do
século. Ele muito aprendeu com seu pai e com os livros de sua própria biblioteca.
Como vimos na citação, ele era apreciador da Matemática, da música e das
línguas. Era um lingüísta e especialista em literatura sânscrita, ofício que foi sua
válvula de escape, quando se decepcionou por não ter sido reconhecido na
Matemática.
Figura
15
IV
Hermann Grassmann era modesto e humilde, nunca escondeu seu apreço
pela Matemática, aspectos estes que presenciamos no prefácio de sua obra, o
qual apresentamos no anexo I. Ele contribuiu para com a formação de seu irmão
Robert Grassmann e seu filho Hermann Grassmann nascido em 1859, que
também se tornou matemático. Ambos deram continuidade a seus trabalhos,
prova disto, são as publicações por parte de Robert, de 1872 e 1891, e de um
trabalho sobre Geometria Projetiva elaborado por seu filho.
15
Disponível em:www.cimm.ucr.ac.cr/.../Cap20/Parte05_20.htm
, acessado em: 06/10/2006
às 18h51m.
67
Almejava uma posição de professor universitário, pois acreditava que isto
o favoreceria na elaboração de suas idéias e, conseqüentemente, na divulgação
de sua nova teoria.
Por isso, Grassmann inúmeras vezes submeteu seus trabalhos à
apreciação de especialistas, com o objetivo de adquirir uma cadeira entre os
docentes universitários da época, mas eles não o compreendiam e, por
conseqüência, rejeitavam-no. Kummer foi o matemático responsável em pôr um
ponto final em sua carreira, dando um parecer desfavorável à sua teoria, que foi
definitivo, fazendo com que Grassmann permanecesse como professor de escola
secundária.
O significado de sua obra demorou até que fosse percebido e um dos
motivos era a terminologia inusitada usada, além de tratar de assuntos com
extrema generalidade em relação à extensão dos conceitos. (BOYER, 2003,
406).
Möbius foi o matemático que mais incentivou Grassmann a reescrever o
Ausdehnungslebre, que publicou como uma reescritura em 1862. Não a nova
versão, mas também uma série de artigos publicados no Journal de Crelle em
que ele deu seminários referentes a seus resultados. A estes feitos, podemos
atribuir a responsabilidade na propagação de seu trabalho e, por meio deles,
Grassmann conseguiu atrair um maior número de apreciadores de sua teoria.
No prólogo de sua obra, expressa a necessidade de ter um tempo livre
para dedicar-se aos estudos referentes à Matemática, para ele isto seria o ideal,
o que está expresso em:
Também é motivo de esperar indulgência, o fato de que o tempo de que
disponho é breve e esporádico, em virtude do cargo que ocupo, e o tal
cargo tampouco me a oportunidade de receber notícias do campo
dessa ciência ou, ainda, de assuntos relacionados a ela, o que representa
a frescura que, como um sopro vital, deve animar ao todo para que este
apareça como um membro vivente do organismo que é o conhecimento.
(GRASSMANN, 1947, p. 19)
16
16
También es causa de esperar indulgencia, el hecho de que el tiempo de que dispongo es, en virtud del
cargo que ocupo, breve y esporádico, y dicho cargo tampoco me da la oportunidad de recibir, mediante
comunicaciones del campo de esta ciencia o aún de asuntos relacionados con ella, la frescura que como un
soplo vital debe animar al todo para que éste aparezca como un miembro viviente del organismo que es el
conocimiento.
68
O reconhecimento e a compreensão de sua obra, por parte dos
matemáticos, seriam para ele o sopro vital para a continuidade de seus trabalhos.
Podemos presenciar esta propagação a partir da publicação em 1867, do
trabalho de Hankel sobre sistemas de números complexos que proporcionou a
que Felix Klein conhecesse Grassmann. Klein escreveu a F. Engel em 1911:
Como é bem sabido, Grassmann em sua Ausdehnungslebre é um
geômetra afim mais do que projetivo. Isto se tornou claro para mim no
fim do outono de 1871 e (além do estudo de Möbius e Hamilton e da
elaboração de todas as impressões que recebi em Paris) levou à minha
concepção de meu posterior Erlanger Program. (KLEIN, apud BOYER,
2003, p. 407)
Podemos dizer que William K. Clifford foi quem difundiu sua obra na
Inglaterra e Josiah Williard Gibbs quem sustentou o Ausdehnungslebre nos
Estados Unidos da América.
III. 2 – Elementos da concepção de Grassmann da
Matemática
O anseio e o desejo de ser compreendido por seus contemporâneos estão
presentes em seus escritos, quando diz que de nada adiantam as palavras que
não são compreendidas, “(...), com efeito, a maioria de tais estudos, sobretudo,
os realizados por Hegel e sua escola, são de uma arbitrariedade e falta de
clareza que anulam todos os frutos dos mesmos.”
17
( GRASSMANN, 1947, p. 18)
Vimos que a primeira versão de sua obra Die Lie Ausdehnungslehre
publicada, em 1844, contou com forte crítica em relação à maneira dele
expressar-se, o que o levou a reescrevê-la e publicá-la em 1862.
17
(…) en efecto, son la mayoría de tales estudios, sobre todo los realizados por Hegel y su escuela, de una
arbitrariedad y falta de claridad que anulan todos los frutos de tales estudios.
69
Na obra publicada em 1862, isto é, a segunda versão, Grassmann define
os conceitos e, imediatamente, passa a apresentar as aplicações, fez isso na
tentativa de tornar claras suas idéias. A primeira versão foi criticada por carecer
de clareza, que Grassmann escrevia utilizando termos em alemão
desconhecidos, até mesmo, pelos matemáticos.
A genialidade de Grassmann distanciava-o de todos, em razão da forma
geral e abstrata com a qual escrevia e do que escrevia. Ele era erudito em
línguas, talvez fosse essa a razão de sua dificuldade em escrever de modo
simples, solicitado por todos que tiveram contato com a obra, um exemplo foi
Kummer. Além disso, ele tinha uma visão avançada da Ciência Matemática, para
a época.
Mesmo assim, em 1862, reescreve a obra na tentativa de adequar sua
teoria ao mundo contemporâneo. Para isso, suprimiu o aspecto filosófico, o que
era contra, pois julgava necessário em um estudo epistemológico, um novo ramo
da Matemática, mas julgou que tal supressão era condição para facilitar a
compreensão dos matemáticos. Era consciente das limitações dos matemáticos
em relação aos aspectos filosóficos das teorias matemáticas e tratou de construir
as demonstrações dos fatos de sua teoria por meio de aplicações, de uma forma
bastante estruturada, adequando os termos e usando uma simbologia conhecida
pelos matemáticos.
Contudo, nem assim obteve sucesso imediato. A abstração e a
generalidade ainda não eram concebidas pelos matemáticos, que não
compreendiam a originalidade de sua teoria, muitos viam os aspectos
geométricos da teoria. (DORIER, 2000, p.18)
A Matemática ainda era realizada baseada na observação da experiência
física, talvez se deva a isto a não compreensão da obra de Grassmann, pois os
matemáticos faziam Matemática apoiados nesse modelo de desenvolvimento da
ciência, o que os impedia de romper com laços tão fortes.
Dorier (2000) salienta a importância de Grassmann:
70
De fato, no contexto, da segunda metade do século XIX, quando novos
tipos de vínculos foram estabelecidos entre a álgebra e a Geometria,
Grassmann apresentou uma abordagem epistemológica muito original
que antecipava, em muitas formas, resultados redescobertos somente na
metade do século seguinte, além disso, apesar de certos aspectos frágeis
as visões de Grassmann permanecem únicas, embora nossa compreensão
da natureza da Álgebra Linear ainda possa ser enriquecida com uma
análise minuciosa de sua contribuição.
18
(p.19)
Entre 1844 a 1862, foi um período muito frutífero para Grassmann, tempo
em que reescrevia a sua obra; em paralelo, publicou 17 artigos científicos, nos
quais contribuía com a Física e com a Matemática, sua pluralidade permitia-lhe
transitar em várias vias. Assim, no aspecto político-social publicou material até
sobre a evangelização da China.
Professor da escola secundária publicou, em 1861, Lehrbush der
Aritmetik
19
o livro didático cujo fruto consistiu na axiomatização da Aritmética, que
gerou muita polêmica entre os matemáticos que compreendiam que a
abordagem de Grassmann resultaria na axiomatização do conceito número, o
que era visto pelos matemáticos, como uma ofensa aos fundamentos do
conceito.
A leitura que Peano fez da obra mencionada proporcionou-lhe prestígio.
Atualmente, ele é reconhecido e citado pelos os axiomas que levam seu nome.
O reconhecimento de Grassmann só veio após sua morte, em 26 de
setembro de 1877. Alguns matemáticos, como: Hamilton, Cauchy, Möbius,
familiarizaram-se com a obra e conseguiram compreender a generalidade e a
importância de seus trabalhos e trataram de divulgá-la. Da parte apreendida
pelos matemáticos, foi desenvolvida consideravelmente a Álgebra Linear, hoje
18
Indeed, in the context of the second half of the 19 th century, when new kinds of bridges were established
between algebra and geometry, Grassmann presented a very original epistemological approach which
anticipated, in many ways, results rediscovered only half a century later. Moreover, in spite of certain weak
aspects, Grassmann’s views remain unique; therefore, our understanding of the nature of linear algebra can
still be enriched from a close analysis of his contribution.
19
Curiosidade: Esta obra nunca foi traduzida em outra língua.
71
referenciada em várias ciências e ensinada em diversos campos do
conhecimento, nomeada por Grassmann de Álgebra Exterior.
Mesmo assim, Grassmann não é tão referenciado. Mas a importância de
sua obra é fato; talvez, ainda possa contribuir para com o desenvolvimento da
Matemática. Um dos primeiros matemáticos a aproximar-se de sua obra, a ponto
de aderir mesmo que, parcialmente, foi Giuseppe Peano, embora abordasse
apenas os aspectos geométricos, isto é, não absorvendo a generalidade de sua
origem. Dorier expressa isso,
Giuseppe Peano foi um dos primeiros matemáticos que tentou chamar a
atenção para o trabalho de Grassmann. Em 1888, publicou o Calcolo
Geométrico secundo l’Ausdhenungslehre di H. Grassmann e precedutto
dalle Operazioni della Lógica Deduttiva (Peano 1888), no qual ele
apresentou os aspectos básicos da teoria de Grassmann, ainda limitado à
Geometria.
20
(DORIER, 2000, p. 31)
Em diversas áreas, as habilidades de Grassmann podem ser encontradas,
como, por exemplo: Teologia, Filosofia, Matemática, Física, Lingüística e
Química. Se observarmos a epistemologia de inúmeros conceitos, em diversas
áreas, encontraremos as contribuições de Grassmann. Prova disto foi seu
ingresso na Universidade de Berlim, em 1827, no curso de Teologia, mostrando-
se habilidoso com a Filosofia. Os cursos de idiomas clássicos e Literatura
também fizeram parte de sua vida acadêmica. A habilidade com a Matemática
apareceu quando prestou um exame para ser professor em um ginásio, cuja
preparação deu-se em um ano, e sua boa colocação permitiu que pudesse
ensinar numa escola primária.
Em 1834, iniciou o curso de Didática da Matemática no Gewerbeschule
em Berlim. Um ano depois, voltou a Stettin para ensinar Matemática, Física,
Alemão, Latim, e Estudos Religiosos em uma escola nova, o Otto Schule. A
20
Giuseppe Peano was one of the first mathematicians to have tried to draw attention to Grassmann’s work.
In 1888, he published Calcolo Geometrico secundo l’Ausdhenungslehre di H. Grassmann e precedutto dalle
Operozioni della Logica deduttiva (Peano 1888), in which he presented the basic aspects of Grassmann’s
theory, still limited to geometry.
72
gama extensiva de domínios revela novamente que ele foi qualificado para
ensinar no primário, ou seja, era polivalente. Durante os quatro anos seguintes,
passou em exames que lhe permitiram ensinar Matemática, Física, Química, e
Mineralogia em escolas secundárias.
Grassmann não foi reconhecido em sua época e os matemáticos não
podiam sequer plagiá-lo. É um aspecto interessante de observar, pois difere de
outros matemáticos.
Desse modo, passaram-se quase quarenta anos para que suas idéias
aparecessem novamente. Se fosse concomitante poderia ser dito que houve
vontade dos matemáticos em não copiar suas idéias, o que não ocorreu. Isto
mostra claramente que havia dificuldade para compreender suas idéias, por parte
dos matemáticos.
A consciência da nobreza do que desenvolvia, pode ser notada na leitura
do prólogo de sua obra. Grassmann relata que um novo ramo da ciência
Matemática estava surgindo, mas não presumia o quão era fecundo o terreno
que havia pisado, porém tinha a certeza: quem o apreendesse jamais o largaria.
De fato, a Álgebra Linear está presente em diversas áreas do conhecimento. Não
a Álgebra Linear, mas também a consolidação do processo da aritmetização
da Análise a qual possibilitou a axiomatização, definitivamente, do conceito de
número natural.
A visão da possibilidade de combinar aspectos projectivos com os vetoriais
foi o fator fundamental no desenvolvimento de sua teoria. Grassmann tinha uma
visão ampla, enxergou os segmentos de retas como objetos matemáticos
dotados de sentidos, e não, simplesmente, de comprimentos. Dessa forma,
considera o negativo na Geometria (uma impossibilidade na época, em que se
construía a ciência baseada na observação e na experiência).
É interessante observar que Grassmann não tinha a pretensão de
desenvolver um novo ramo da Matemática, mas se deu conta desse
desenvolvimento quando enxergou a amplitude que seus trabalhos abrangiam.
73
Esta conscientização fez com que persistisse na divulgação de sua obra, pois
sabia que muito contribuiria para a Ciência Matemática.
Não é do escopo deste trabalho um estudo mais aprofundado da obra de
Grassmann, até pela dificuldade em diversos âmbitos. Considerando sua
importância para a constituição da Matemática, esperamos poder fazê-lo em
outro momento. Nosso ponto de vista é que a concepção da Matemática no
aspecto abstrato e geral é fundamental na investigação da aprendizagem,
quando conflitos epistemológicos, possivelmente, presentes possam de certa
forma ter repercussão no processo de ensino-aprendizagem.
74
CAPÍTULO IV
A Axiomatização da Aritmética sob ponto de vista
de Otto Hölder e Robert Grassmann
IV.1 – Introdução
Neste capítulo, as idéias apresentadas estão apoiadas no artigo: Um
Debate sobre a Axiomatização da Aritmética: Otto Hölder contra Robert
Grassmann
21
,escrito por Mircea Radu, em 2003.
Nele estão as reflexões geradas por um debate entre dois matemáticos
importantes da época, no qual o foco da discussão era a pertinência do princípio
axiomático constituir-se ou não como fundamento da Aritmética. As controvérsias
reveladas entre os dois matemáticos confirmam a complexidade relativa à
constituição dos fundamentos da Matemática. O referido artigo é uma peça
fundamental para este estudo, pois nele está reproduzida uma discussão de
pioneiros na jornada da axiomatização, seu estudo, objeto de nossa investigação,
é sempre importante para matemáticos e educadores matemáticos.
IV.2 - Axioma e postulado: significados e
transformações
21
Título original: A debate about the axiomatization of arithmetic: Otto Hölder against Robert
Graβmann.
75
Neste tópico, faremos algumas considerações sobre os significados das
noções de postulado e axioma e as transformações que essas noções sofrem na
virada dos séculos XIX e XX, para isto nos apoiamos no texto de Abbagnano
(2000).
Entre os gregos, as noções de axioma e postulado tinham diferenças sutis,
o que procuramos evidenciar no que se segue. Com o decorrer dos tempos, os
significados das duas noções aproximam-se e mais que isso com o formalismo
matemático e lógico introduzido por: Peano, Russell, Frege e Hilbert essas
noções passam a ter o mesmo significado, assim o significado da noção de
axioma sofre uma transformação, possibilitando a axiomatização da Aritmética.
IV.2.1 - Axioma
Para os povos primitivos, axioma significava dignidade ou valor e os
escolásticos
22
usavam-no com o significado de dignidade. Para os estóicos, o
axioma assumia o papel de indicar o enunciado declarativo que Aristóteles
chamava de apofântico
23
. Para os matemáticos, na Antiguidade, os axiomas
significavam os princípios indemonstráveis, porém evidentes de sua ciência.
Aristóteles (384 a 322 a.C) foi o primeiro a fazer uma análise dos
axiomas, definindo-os como as proposições primeiras de uma
demonstração. Para ele, os axiomas eram os princípios que o ser humano
teria de necessariamente interiorizar para aprender qualquer coisa. Nesse
sentido, o axioma se distinguia-se do postulado, pois não necessitava de
demonstração.
22
São os seguidores da filosofia escolástica, esta assume a tarefa de ilustrar e defender racionalmente
determinada tradição ou revelação religiosa. (ABBAGNANO, 2000, p. 345).
23
No uso filosófico significa algo declarativo ou revelativo.
76
Axioma visto como princípio mostra que o próprio princípio de
contradição
24
é um axioma e é o princípio de todos os axiomas. O
significado de axioma, como um princípio, permaneceu por toda
Antiguidade e Idade Moderna. Para S. Tomás (1224/5 1274), os
axiomas, isto é, os princípios imediatos eram conhecidos por meio de
seus próprios termos e não pelos termos intermediários e sua verdade é
manifestada pela simples intuição dos termos que a compõem.
Por muito tempo, buscou-se justificar a validade absoluta da noção
de axioma, mas esta não foi posta em dúvida. Alguns julgavam que os
axiomas poderiam ser obtidos por deduções ou induções, deixando assim
de ser admitidos como princípio, como foi o caso de Bacon (1561 -1626).
Descartes (1596 1650) compreendia-os como verdades eternas, que
residem em nossa mente. Apesar das diferenças de concepção sobre a
noção de axioma ambos acreditavam que eles se constituíam em
verdades imutáveis. Leibniz (1646 1716) e Locke (1632 1704)
comungavam da idéia de que os axiomas são verdades evidentes;
considerou-os como princípio inato na forma de disposições originárias
que a experiência torna explícita; já Locke contrapôs-se a Leibniz,
considerou-os como proposições, experimentos e experiências imediatas.
Stuart Mill (1806 1873) afirmou que eles eram verdades experimentais e
generalizações da observação.
Para Kant (1724 -1804), os axiomas são verdades evidentes a priori
e os definiu como princípios sintéticos a priori, cuja característica é a
certeza imediata, isto é, a evidência. Para Kant, a existência dos axiomas
na ciência Matemática justifica-se, pois sua concepção da Matemática é
que ela procede, mediante a construção dos conceitos. Sendo assim, a
utilização de axiomas é vinculada a sua natureza. A filosofia, ao contrário
da Matemática, não constrói seus conceitos e, portanto, não necessita de
axiomas.
24
O princípio da contradição informa que duas proposições contraditórias não podem ser ambas falsas ou
ambas verdadeiras ao mesmo tempo. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Contradi%C3%A7%C3%A3o , acessado em 07/09/2006 ás 15h59m
77
O formalismo matemático e lógico estabelecido, com os trabalhos
de Peano (1858 1932), Russell (1872 1970), Frege (1848 1925) e,
especialmente, de Hilbert (1862 1943) é que conduziu o processo de
transformação da noção de axioma, pois nega a imediação (isto é, o fato
do ser imediato ou o imediatismo) da verdade, da certeza e a evidência
da definição dessa noção repousava até então.
Podemos perceber essa transformação; analisando por um lado a
certeza apresentada na afirmaçãoentre dois pontos passa uma única
reta e, por outro, a verdade admitida em 0 é um número
Do ponto de vista formalista, o axioma não é uma verdade evidente,
nem verdadeiro e nem falso, mas assumida por convenção como
fundamento ou premissas do discurso matemático. Após essa
transformação, os axiomas não mais se distinguem de postulados.
Atualmente, a escolha dos axiomas é livre e ditos convencionais ou
assumidos por convenção. Entretanto, a escolha é limitada às exigências
ou condições precisas que atendam aos seguintes aspectos: coerência,
completude, independência e elegância lógica.
1. Os axiomas devem ser coerentes de modo que o sistema que
deles depende se torne um sistema contraditório, isto é, aquele que
possibilita a demonstração ou dedução de qualquer proposição, assim
como sua negação. No aspecto coerência, a realização é um processo
importante, isto é, a referência do sistema a um modelo real, pois o
pressuposto do que é real é possível e garantirá a não contradição.
2. O sistema de axiomas deve ser completo, de modo que de
duas proposições contraditórias formuladas corretamente nos termos do
sistema, em uma deve existir a possibilidade de ser demonstrada. O que
significa que, em presença de uma proposição qualquer do sistema, pode-
se sempre demonstrá-la ou refutá-la e, portanto, decidir sobre sua
verdade ou falsidade em relação ao sistema dos postulados. Nesse caso,
o sistema chama-se decidível.
78
3. Em relação ao aspecto independência, podemos observar
que se refere à sua irredutibilidade recíproca. Mesmo não sendo uma
característica indispensável, garante que as premissas não sejam tão
numerosas.
4. A elegância lógica é desejável, ou seja, um sistema é dito
elegante quando consegue a simplicidade e o menor número possível de
axiomas.
Atualmente, um axioma ou sistema de axiomas está constituído quando
satisfaz as quatro exigências supracitadas e, assim sendo, a definição de axioma
como verdades inerentes ao pensar, evidência e certeza imediata ficam para trás.
IV.2.2 - Postulado
Em geral, é uma proposição cuja admissão se deseja com o objetivo de
poder demonstrar um processo. Sendo assim, o termo postulado na Antiguidade
distinguia-se de axioma, pois axiomas não são demonstráveis, são evidentes e
devem ser admitidos necessariamente. Postulado, apesar de ser demonstrável, é
assumido e usado sem demonstração. Na verdade, é uma proposição ainda não
admitida por aquele a quem é destinada.
A distinção entre axiomas e postulados estava presente nos Elementos
de Euclides (330 – 270 a.C.), enquanto os axiomas expressam as verdades
evidentes, chamadas de noções comuns por Euclides; os postulados expressam
o que é proposto a ser admitido e referem-se à existência de determinados
elementos, neste caso, elementos geométricos. Como ilustração, destacamos as
dez pressuposições
25
que aparecem na maioria dos manuscritos dos Elementos.
Postulados.
1. Traçar uma reta de qualquer ponto a qualquer ponto.
25
As ilustrações foram extraídas de (BOYER, 2003, p. 73).
79
2. Prolongar uma reta finita continuamente em uma linha reta.
3. Descrever um círculo com qualquer centro e qualquer raio.
4. Que todos os ângulos retos são iguais.
5. Que, se uma reta cortando duas retas faz os ângulos anteriores de
um mesmo lado menores que dois ângulos retos, as retas se prolongadas
indefinidamente, se encontram, desse lado, em que os ângulos são menores que
dois ângulos retos.
Axiomas ou noções comuns
1. Coisas que são iguais a uma mesma coisa são também iguais entre
si.
2. Se iguais são somados a iguais, os totais são iguais.
3. Se iguais são subtraídos de iguais, os retos são iguais.
4. Coisas que coincidem uma com a outra, são iguais uma a outra.
5. O todo é maior que a parte.
Kant aproximou o termo mais à experiência e ao mundo real, classificou
dois tipos de postulados. Chamou de postulado do pensamento empírico, os
princípios correspondentes a priori às naturezas do pensamento, com os quais é
possível tudo o que está conforme as condições formais da experiência, e o que
está de acordo com as condições materiais da experiência é real e aquilo, cuja
conexão com a realidade é determinada, segundo as condições universais da
experiência é ou existe necessariamente. E de postulado da razão prática, as
condições que tornam possível a moralidade, isto é, a liberdade, a imortalidade e
a existência de Deus.
A diferença entre os termos axiomas e postulados deixaram de existir na
lógica e na Matemática contemporânea, como mostramos anteriormente.
80
Com base nas diversas concepções e empregabilidade das noções de
axiomas e postulados, é possível indicar a relação entre elas. Vimos que axioma
e postulado sempre tiveram uma relação intrínseca aos conceitos, justificando,
assim, a sutileza em relação às diferenças entre as duas noções. Os axiomas
eram evidentes por si e eram admitidos necessariamente, mesmo não sendo
demonstrados, o postulado era uma proposição ainda não aceita como
verdadeira por aquele a quem é endereçada, embora seja demonstrável, é
assumido e usado sem demonstração.
Quando os axiomas deixam de ser concebidos, como uma verdade
imutável e evidente ou como princípio sintético a priori, ou ainda, como julgava
Descartes, verdades eternas que residem na mente (isto é, aceitas
intelectualmente sem grandes problemas), passam a ser concebidos como
fundamento ou premissas do discurso matemático nos quais desaparecem de
vez a distinção entre axiomas e postulados.
A negação da definição de axioma, como a certeza absoluta, foi
propagada com o formalismo matemático e lógico, proposto, especialmente, com
os trabalhos de Hilbert na virada do culo XIX. Atualmente, um sistema
axiomático requer a escolha dos axiomas de modo livre, isto é, convencionais ou
assumidos por convenções. Um sistema axiomático é dito consistente, quando
estiver atendendo aos seguintes aspectos: coerência, completude, independência
e elegância.
Como aparece expresso nas palavras de Ávila (2001),
(...) um sistema axiomático deve satisfazer três condições seguintes: ser
consistente, quer dizer, os postulados não podem contradizer uns aos
outros, por si mesmos ou por suas conseqüências; deve ser completo, no
sentido de serem suficientes para provar verdadeiras ou falsas todas as
proposições formuladas no contexto da teoria em questão; e por fim,
cada postulado deve ser independente dos demais, no sentido de que não
é conseqüência deles, sob pena de ser supérfluo. (p.8)
Como vimos no capítulo II, Peano mostrou como construir número natural
baseado em noções primitivas e postulados, isto é, em um sistema axiomático.
81
IV.3 – Contexto histórico do conceito número
O trabalho consiste em debruçar sobre elementos histórico-
epistemológicos que interferiram ou resultaram na sistematização do conceito de
número, que teve como efeito o avanço de diversos ramos da Matemática com
bases no conceito - número natural.
Por quase dois mil anos, o conceito de número permaneceu estático, ou
seja, sem sofrer alteração conceitual, esta estagnação é obra do próprio ser
humano. Matemáticos acreditaram por muito tempo que a Aritmética
26
não
necessitaria evoluir, como se espera de todo conceito científico, já que o conceito
de número era admitido como perfeito por todos, sendo utilizado sem que se
percebesse a necessidade de dar ao número o estatuto de objeto matemático.
Entendiam assim que o número natural era um conceito bem formado e o
interpretavam de acordo com a definição de Kronecker “Deus criou os números
naturais; tudo o mais é produto da mão do homem” (KRONECKER apud
ROBBINS ;COURANT, 2000, p.1) portanto, não necessitava de uma melhor
conceituação, compatível com o avanço do desenvolvimento de qualquer
conceito científico.
A axiomatização consiste em termos gerais de um quadro ordenado e
explicativo, no nosso caso, de fenômenos
27
formais que, até antes da
apresentação de Grassmann, os matemáticos não consideravam isso, entendiam
não ser possível sua utilização, para além da Geometria de Euclides. Esta
impossibilidade foi então questionada por necessidade da própria Matemática em
dar ao conceito de número natural o estatuto de um objeto matemático possível
ao conhecimento humano. Seja esse objeto definido pela teoria axiomática de
26
Robbins; Courant (2000) explicam que “a teoria Matemática dos números naturais ou inteiros positivos é
conhecida como Aritmética”.
27
Entendemos por fenômeno tudo que é percebido pelos sentidos ou pela consciência.
82
Peano ou pela teoria dos conjuntos de Russell; ou ainda, conforme apresentado
mais atualmente pela teoria de Conway
28
, definido como jogo.
O enfrentamento do que era admitido como impossibilidade, ou seja, a
constituição dos números naturais de forma sistematizada baseada no princípio
axiomático torna esse conceito como um objeto
29
matemático e traz para a
Matemática um novo campo a ser pesquisado. Podemos dizer que Grassmann
baseou-se no princípio de extensão
30
que, por sua vez, recai no conceito de
igualdade.
Caraça (2003) faz uma analogia entre o homem primitivo e o moderno, em
relação ao conceito de número:
Para o primitivo, e mesmo para o filósofo antigo, os números estavam
impregnados de Natureza – a Natureza em cuja labuta o homem adquiriu
todos os seus conhecimentos – os números estavam ligados às coisas que
eles se serviam para contar. Para o homem civilizado de hoje o número
natural é um ser puramente aritmético, desligado das coisas reais e
independentes delas é uma pura conquista do seu pensamento. Com
essa atitude o homem de hoje, esquecido da humilde origem histórica do
número, e elevando-se (ou julgando elevar-se) acima da realidade
imediata, concentram-se nas suas possibilidades de pensamento e
procura tirar delas o maior rendimento. (CARAÇA, 2003, p. 9)
Esta analogia nos possibilita dizer que o percurso traçado por Grassmann
para efetivamente chegar à axiomatização foi baseado no princípio de extensão
que significa a passagem de um plano real para um plano abstrato. O que quer
dizer que a origem histórica da conceituação do número foi uma fonte de
pesquisa para a generalização e extensão de todas as aquisições do
pensamento de Grassmann, seja qual for o caminho trilhado para obtenção
dessas aquisições.
28
John Horton Conway nascido em 26/12/1937 em Liverpool, Inglaterra. É um matemático ativo na teoria
dos grupos finitos, teoria dos nós, teoria dos números, teoria combinatória dos jogos e teoria de códigos,
sendo mais conhecido entre os matemáticos amadores pela teoria combinatória dos jogos e pela invenção do
jogo da vida.
29
GARDIES (2004): Du Mode D’existence dês objets de la mathématique fala sobre a existência do objeto
matemático.
30
Ver Caraça (2003, p.9); Halmos (1970, p. 3).
83
Russell e Carnap, segundo Abbagnano, discorrem sobre a tese da
extensionalidade;
A tese da extensionalidade propõe que “para cada sistema não
extensional um sistema extensional e que o primeiro pode ser
transformado no segundo”. Como os enunciados intensionais mais
importantes são os modais, a tese em questão afirma a tradutibilidade
dos enunciados modais em enunciados não modais. Por exemplo, os
enunciados “A é possível”, A = não A é impossível”, A ou não A é
necessário”, “A é contingente” equivaleriam respectivamente aos
seguintes enunciados: “’A = não A’ é contraditório”, “’ A ou não A’ é
analítico”, “’A’ é sintético”. (ABBAGNANO, 2000, p. 422)
IV.4 As características de Hermann Grassmann e
Robert Grassmann
Hermann Grassmann e Robert Grassmann eram irmãos e filhos de Justus
Grassmann, o pai era um matemático que pertenceu à escola combinatória no
início do século XIX (BOYER, 2003, p.406) que também discutiu sobre o conceito
de número.
Talvez seja importante notar que a publicação do livro didático Lehrbuch
der aritmetik, em 1861, escrito por Hermann Grassmann, foi o marco decisivo na
abordagem axiomática da Aritmética . Mais duas publicações foram feitas em
1872 e 1891. Segundo Radu (2003), os três livros foram publicações feitas pelos
irmãos, apoiados nas idéias desenvolvidas por seu pai. Embora todo o
desenvolvimento fosse em colaboração dos irmãos, as publicações foram feitas
no nome de somente um deles, sendo a obra publicada em 1861, de autoria de
Hermann Grassmann e as outras duas de Robert Grassmann.
Para Otte
31
(2005), os irmãos Grassmann, sobretudo Hermann, tinham
idéias inusitadas, porém o teor filosófico dessas idéias fazia com que elas não
31
Fala de Otte (2005), em seminários nos grupos de pesquisa. Grande parte deste trabalho foi desenvolvido
apoiado em suas reflexões.
84
fossem compreendidas por seus contemporâneos; por isso, foram pouco
aproveitadas. Até os dias de hoje, não são tão bem compreendidas. Prova disso
é a obra Die Ausdehnungslehre (1844), obra pouco vendida e lida muito menos.
Mas a Hermann Grassmann é conferido o rito de ser o precursor da
axiomatização da Aritmética, pois foi ele quem apresentou pela primeira vez o
conceito número sistematizado, além de ter idéias adiantadas em relação a seu
irmão.
Em 1861, Hermann Grassmann publica um livro didático, no qual o
conceito de número natural aparece axiomatizado. Este livro gerou um intenso
conflito entre os matemáticos, pois, para eles era inconcebível axiomatizar os
números, um conceito tão bem definido e conhecido por todos.
A obra gerou polêmica e também foi fonte de inspiração para Robert
Grassmann que publicou mais dois trabalhos em 1872 e 1891. Este último foi o
alvo de critica de Hölder que trouxe elementos para a construção do artigo que
ora é nosso apoio. Hermann Grassmann muito contribuiu com seu irmão,
indícios que trabalhavam juntos, pois nos estudos de Robert, segundo Radu,
existe muita similaridade entre eles, mostrando assim, que Robert inspirou-se em
seu irmão, que mesmo depois de sua morte continuou propagando suas idéias.
Pouco sabemos a respeito de Robert Grassmann nem tivemos a
oportunidade de tocar em suas obras; quanto à Hermann Grassmann, tivemos o
prazer de consultar sua obra, publicada em língua espanhola que tem como fruto
parte do presente capítulo e do capítulo III.
Quando falarmos no Grossenlehre estaremos nos referindo ao trabalho de
Robert que pode ser visto, como uma nova versão do Ausdehnungslehre de
Hermann Grassmann, o qual Otto Hölder fez profundas criticas; pelo fato de ora
falarmos de Hermann, ora de Robert, durante o percurso, assim, quando nos
referimos a Hermann Grassmann falaremos apenas Grassmann, como tratado no
capítulo III e para referenciar Robert Grassmann chamá-lo-emos de Robert.
Robert publica Die Zahlenlehre oder Arithmetitik , em 1891, inspirado em
Grassmann; na obra descreveu a disciplina Matemática que chamou de mais
85
geral, o Grossenlehre. Nele, a Aritmética, assim como as outras três disciplinas
ditas individuais, Lógica, Álgebra Exterior e Combinatória eram geradas
baseadas em três conceitos-chave: conexão, igualdade e desigualdade. Na
verdade, esta obra aparece com ligeiras modificações na abordagem dada à
Aritmética contida no livro de Grassmann, de 1861, podendo ser considerada
como uma reescritura.
A possibilidade de axiomatizar a Aritmética foi o ponto chave para
evolução da Ciência Matemática; pelas quais diversas áreas solucionaram
problemas, até então colocados, como é o caso do processo de aritmetização da
Análise.
Nesse caminho, Grassmann foi o pioneiro e apresentou em pouco tempo a
Aritmética axiomatizada, da forma como proposta e vista por ele. Inicialmente não
se tratava de uma forma axiomática, pois ele próprio não aceitava axiomas em
ciência formal, como era o caso da Aritmética.
O conceito de número, por volta de 1889, foi concebido em uma
abordagem axiomatizada, cujo mérito é remetido a Peano, reconhecido até os
dias atuais pelos axiomas da Aritmética.
IV.5 Otto Hölder e os elementos que caracterizam
seu pensamento
O artigo escrito por Radu (2003) é um forte instrumento de análise, pois
fornece um debate entre dois matemáticos interessados em estudar os
fundamentos da Matemática. Eles apresentam características que ora se
assemelham e ora se contrapõem que discorreremos durante o percurso, a
seguir.
Otto Hölder (1859 1937), matemático alemão, cuja formação deu-se em
Berlin e Tubigen. Assistiu às aulas ministradas por excelentes matemáticos,
86
como Leopold Kronecker, Eduard Kummer
32
e Karl Weierstrass e teve como
orientador de sua tese Paul du Bois-Reymonnd. Trabalhou em Leipzig com Felix
Klein. Podemos conjecturar que seu modo de pensar pode ter sido influenciado
pelas idéias de seu orientador que, na época, escrevia um livro
33
sobre os
fundamentos da Análise e é referenciado por Hölder em sua tese.
Por um lado, temos Otto Hölder, cujos princípios são baseados na corrente
filosófica do intuicionismo
34
e, por outro, Robert Grassmann seguiu o caminho
trilhado por seu irmão Hermann Grassmann, um matemático autodidata cujo
reconhecimento só veio na posteridade.
A trajetória acadêmica de Otto lder mostra que caminhou no sentido
oposto à maioria dos matemáticos de sua época, pois, enquanto seus
contemporâneos seguiam no sentido de construir os aparatos técnicos usados na
lógica formal, como busca do desenvolvimento dos conceitos pela sistematização
em uma lógica formal, ele, ao contrário, mantinha-se numa direção muito mais
crítica do que produtiva, pois trabalhava no sentido de mostrar as limitações da
tendência formal. Justificando, assim, seu baixo prestígio, pois dificilmente é
citado na comunidade acadêmica, porém quem o julgue importante no
desenvolvimento da Álgebra e Análise, julgamento justificado pelas suas
contribuições ali encontradas.
Radu (2003) apresenta uma das razões para seu não reconhecimento,
quando afirma:
As idéias de Hölder sobre os fundamentos da Matemática estão quase
esquecidas. (...) Isto se deve ao fato de que, embora tenha sido um
matemático importante em sua época, quando escrevia sobre questões
dos fundamentos, Hölder deliberadamente recusou-se a adotar o caminho
32
Curiosidade Ernst Eduard Kummer (1810 1893), foi o matemático que colocou um ponto final na
trajetória acadêmica de Hermann Grassmann, quando solicitado pelo ministro prussiano da educação que
desse um parecer sobre a teoria de Hermann Grassmann, pois Grassmann tinha submetido seu trabalho à
análise na tentativa de conquistar a posição de professor universitário. Foi Kummer quem deu parecer final,
dizendo que a teoria era boa, entretanto, expresso numa forma deficiente.
33
(Du-Bois-Reymond,1882/1968).
34
O intuicionismo refere-se à corrente Matemática fundada por Brouwer, inspirada nas idéias de
L.Kronecker (1923-91), para quem o conceito de número natural fora dado à intuição humana, afirmando
que os números naturais foram feitos por Deus e os outros pelos homens. Para maiores detalhes ver,
(ABBAGNANO, 2000, p.583-584).
87
seguido por eruditos, tais como: George Boole, Charles S. Peirce,
Gottlob Frege, Giuseppe Peano e Hilbert
35
.(p. 342-343).
A história de Hölder é importante para compreender os motivos que o
conduziram à hostilidade, à abordagem da Aritmética proposta por Grassmann,
em 1861, exposta na publicação de um livro didático intitulado Lerbuch der
Arithmetik em que Hermann apresenta pela primeira vez a Aritmética
sistematizada.
Hölder escreveu sobre tópicos dos fundamentos, delineando sua própria
Filosofia Matemática; criticava correntes filosóficas
36
, tais como:
convencionalismo, positivismo, formalismo, psicologismo e a lógica silogística. A
rejeição ao formalismo nos possibilita compreender seu pensamento crítico.
Sua concepção do formalismo era que essa corrente instaurada no final do
século XIX consistia na matematização no tratamento dos fundamentos da
Matemática. Para ele, isso significava um exorcismo às considerações
epistemológicas dos fundamentos da Matemática, não considerando a questão
do pensamento matemático e mais, substituindo-o por cálculos simbólicos.
Hölder tentava mostrar que as questões dos fundamentos da Matemática
não poderiam seguir a tendência formalista, pois acreditava que essa lógica
distanciaria o objeto do pensamento “natural” e perderia muito nesse percurso.
Por isso, buscava desenvolver uma lógica apropriada para tratar as questões dos
fundamentos, a qual difere da formal. Neste ponto, Hölder e Grassmann
comungam da mesma idéia.
No século XIX, houve mais transformação na Ciência Matemática, sendo
mesmo considerado por alguns como a Idade de Ouro da Matemática, uma das
partes atingida foi o conceito número por estar presente em toda ramificação
da Matemática; incluso as transformações, estão as mudanças de ponto de vista
35
Hölder’s ideas on the foundations of mathematics are almost forgotten. (…) This may be due the fact that,
even though a leading mathematician of his time, when writing on foundational issues Hölder deliberately
refused to embrace the path pursued by scholars such as George Boole, Charles S. Peirce, Gottlob Frege,
Giuseppe Peano e Hilbert.
36
Para uma definição das correntes ver Dicionário de Filosofia Nicola Abbagnano (2000).
88
sobre o conceito de número natural que deixa de ser um presente do Bom Deus,
como chamou Kronecker. Assim, passa a ser abordado como um objeto
matemático, instaurando um processo de evolução do conceito que se deve à
sua sistematização e ao modo como foi abordado, posteriormente.
Neste contexto Hölder está inserido, cuja rejeição em conceber a
Aritmética como proposta por Hermann e Robert Grassmann é explícita, aliás, os
próprios responsáveis pelo desenvolvimento dessa abordagem nunca a viram
como uma axiomatização, pois rejeitavam a idéia de que em ciência formal
pudessem existir axiomas.
Axiomas eram possíveis só na Geometria que fazia parte da ciência real.
Com base no estudo genético da epistemologia da Lógica, podemos dizer
que o pensamento de Hölder aproxima-se do matemático Pasch que, segundo
Piaget,
O matemático Pasch sustentou que os métodos da formalização
orientam-se em sentido contrário ao das tendências espontâneas do
pensamento natural. Se nos limitamos a caracterizar este pelo conteúdo
da consciência dos indivíduos, é obvio que ele tem razão, pois o
pensamento comum tende a ir em frente, ao passo que a formalização
consiste num esforço retroativo para determinar as condições necessárias
e suficientes de todas as asserções e destacar explicitamente todas as
intermediárias e todas as conseqüências. (PIAGET, 2002, p.74)
37
A rejeição de Hölder à abordagem da Aritmética proposta por Grassmann,
está expressa em,
A saber, eu também tenho que me opor decisivamente à visão (...) de que
todas as deduções devem ser colocadas em forma de um (...) cálculo
simbólico, e que uma dedução precisa é dada até o ponto em que
possa ser alcançado. É possível refutar essa idéia através da seguinte
consideração: é fácil reconhecer que quando, por exemplo, novos sinais
(símbolos) são introduzidos durante o processo de uma investigação
Matemática (...), não é possível representar os pensamentos que levam a
introdução de novos sinais por meio de outro cálculo simbólico. É (...)
claro que se esse fosse o caso, e se a visão supracitada estivesse correta,
o último cálculo simbólico ele próprio, teria de ser provado por meio de
37
Jean Piaget Epistemologia Genética. Trad. Álvaro Cabral. Título original: L’Épistémologie Génétique.
89
outro cálculo e, assim por diante, até o infinito. Isto conduziria ao que é
conhecido como um recursus in infinitum : mas isto (...) é um absurdo na
argumentação lógica.
38
(HÖLDER, 1924 apud RADU, 2003, p.344)
Para Hölder, a lógica silogística, seja ela formalizada ou não, não era
apropriada para descrever teoricamente o raciocínio matemático. Por isso,
concentrava seus trabalhos na busca de uma lógica apropriada que pudesse
descrever as questões referentes aos fundamentos da Matemática.
Foi um dos primeiros a defender o intuicionismo de uma forma mais
próxima de Poincaré do que de Brouwer, pois apresentava uma diferença em
relação a ele, não era egocêntrico, além de não rejeitar o uso das provas
indiretas.
Hölder defendia a natureza sintética da Matemática e seu trabalho nos
fundamentos da Matemática era desvendar a “verdadeira” natureza do
pensamento matemático, sendo esse o passo que o levaria ao desenvolvimento
de uma lógica matemática apropriada e não formal.
Hölder interpretava que a abordagem da Aritmética proposta por Robert,
era constituída por um princípio axiomático e o estabelecimento da Álgebra
Abstrata como o único fundamento rigoroso para a Aritmética. Sendo assim, o
Grossenlehre (isto é, a Álgebra Abstrata) era a disciplina Matemática mais geral e
capaz de gerar todas as outras, tais como: Lógica, Aritmética, Combinatória e
Álgebra Exterior. Por esse motivo rejeitava a proposta de Robert, como um
fundamento para a Aritmética.
38
Namely, I also have to decisively oppose the view (…) that all deductions have to be put into the form of a
(…) symbolic computation, and that a strict deduction is only given to the extent that this can be achieved. It
is possible to refute this idea through the following consideration: It is easy to recognize that when, for
example, new signs (symbols) are introduced during the course of a mathematical investigation (…) it is not
possible to represent the thoughts that led to the introduction of the new signs through yet another symbolic
computation. It is (…) clear that if this were the case, and if the above-mentioned view were correct, the
latter symbolic computation itself would have to be proved through yet another computation and so on up to
infinity. This would lead to what is known as a recursus in infinitum; but this (…) is absurd in a logical
argumentation.(HÖLDER ,1924,p.5)
90
Acreditava na natureza sintética da Matemática e, de certa forma,
acreditava que a série dos números ordinais era o que melhor descrevia o
pensamento matemático. Então, sua crítica ao trabalho de Robert é que a
Aritmética não poderia ser de certa forma subordinada à Álgebra, ele interpretava
que ela era uma mera linguagem simbólica, que a Aritmética não poderia ser
desenvolvida por meio de símbolos, cujos entes eram dados como axiomas.
As idéias de Hölder desenvolvidas anteriores a 1892, época em que fez a
revisão do trabalho de Robert Grassmann de 1891, foi o que possibilitou a
Hölder questionar a abordagem da Aritmética de R. Grassmann.
IV.6 - O significado da síntese e da análise em
Matemática
O termo síntese no sentido amplo pode representar: a unificação ou a
composição; em um sentido específico pode representar: método cognitivo
oposto à análise.
A síntese como método cognitivo oposto à análise, é o método
fundamental do conhecimento, significando a organização dos objetos, cuja
natureza pretende-se explicar, significa ir do simples ao composto dos elementos
às suas combinações.
A análise, em termos gerais, significa: a descrição, a decomposição de um
todo em suas partes constituintes, ou ainda, a interpretação de uma situação ou
de um objeto qualquer nos termos dos elementos mais simples pertencentes à
situação ou ao objeto em questão.
A diferença entre síntese e análise começa a aparecer na lógica do século
XVII. As noções eram apresentadas, como métodos de ensino, classificado por
Jungius (1587 1657) como uma ordem didática; esta poderia ser sintética, isto
é, compositiva ou, analítica, isto é, resolutiva. Para ele, a ordem sintética vai dos
91
princípios ao principiado, dos constituintes ao constituído, das partes ao todo, do
simples ao composto, enquanto a analítica procede por via oposta.
A síntese e a análise deixam de ser método de ensino, passam a partir de
Descartes (1596 1650) a ser dois processos diferentes de demonstração. Para
ele, a maneira de demonstrar é dupla, uma o faz por meio da análise, ou
resolução, a outra por meio da síntese ou composição. Adotou o processo
analítico ao invés do sintético, por acreditar que o analítico parecia ser o mais
verdadeiro e adequado ao ensino. (ABBAGNANO, 2000, p. 52). Leibniz (1646
1716) mostrou estar de acordo com Descartes quando disse:
Chega-se muitas vezes a belas verdades por meio da síntese, indo do
simples ao composto, mas quando é preciso encontrar o meio de fazer
aquilo que se propõe a síntese normalmente não basta (...) e cabe à
análise dar-nos o fio condutor, quando isso é possível porque casos
em que a natureza do problema exige que se proceda tateando, e nem
sempre é possível cortar caminho. (LEIBNIZ apud ABBAGNANO,
2000, p. 906)
Para Kant (1724 – 1804), o método sintético é progressivo, ao passo que o
analítico é regressivo, vai do objeto às condições que o possibilitam.
As definições acima mostram que, em várias épocas a síntese e a análise
não sofreram tantas transformações, ora eram concebidas, como método de
ensino, ora como processo de demonstração. Agora, existem correntes na
Matemática que se apropriam de um ou de outro método para a construção dos
conceitos matemáticos.
A bandeira da natureza sintética da Matemática era levantada pela
corrente filosófica intuicionista, fundada por Brouwer, que acreditava na
existência das entidades matemática na medida em que fossem possíveis suas
construções, e adotava o método direto de prova. A saber, o método sintético,
apóia-se no método direto de prova, isto é, na construção da entidade por meio
de um número finito de passos. E rejeita explicitamente o método indireto de
prova que, por sua vez, é constituído no princípio de contradição, isto é, para
92
provar a existência de A, admite a existência de não A e prova que não A leva a
um absurdo, provando, assim, a veracidade de A.
Hermann Grassmann na obra Teoria da Extensão (1844) apresenta uma
sinopse da Teoria Geral da Formas – nessa sinopse, ele discute que o método
analítico possibilita encontrar relações que, no método sintético, não seria
possível. Para ele, o método analítico consiste em lançar mão de um resultado
obtido no método sintético e conduzir de forma que chegue ao ponto de partida,
trilhando outro caminho.
Hermann Grassmann uniu os dois processos, o sintético e o analítico e era
um de seus objetivos encontrar o equilíbrio entre síntese e análise nas
abordagens dos conceitos matemáticos.
Segundo Otte (2005), Hermann Grassmann foi o pioneiro em trazer para a
Matemática a abordagem analítica dos conceitos, pois antes de seus trabalhos a
abordagem que se tinha era a sintética.
No próximo tópico, apresentamos a abordagem da Aritmética sob o ponto
de vista de Grassmann.
IV.7 - A abordagem da Aritmética proposta por
Grassmann
O primeiro passo rumo à axiomatização da Aritmética foi dado por
Hermann Grassmann mencionado. Todavia o responsável pelo
desenvolvimento da abordagem não a considerava, como uma axiomática.
Então, aqui é pertinente alertar para o seguinte: os próprios construtores diziam
que sua abordagem não era uma axiomática. Então, o que eles compreendiam
por axiomatização? Qual o caminho que eles queriam trilhar se não a
axiomatização ou o formalismo? Estas questões envolvem diretamente a
sistematização do conceito de número. Como sabemos mais tarde a
93
axiomatização do número veio a ser consolidada por Giuseppe Peano, cujo
reconhecimento perpetua-se até os dias atuais. Atualmente, podemos
identificar o trabalho de 1861 de Hermann Grassmann, como o despontar de uma
estrela a saber, o formalismo na Matemática. Entretanto, em 1931, essa
estrela foi obscurecida com os trabalhos de Kurt Gödel (1906 1978) com a
apresentação do teorema da incompletude. Este teorema possibilitou que Gödel
questionasse a perfeição da Matemática instaurada pela corrente formalista.
Grassmann considerou que os axiomas poderiam ser admitidos nas
ciências reais, e rejeitava explicitamente axiomas na ciência formal, conforme
dividiu a ciência.
Radu expressa a rejeição de Grassmann em,
Nem Hermann nem Robert Grassmann jamais consideraram sua
abordagem da Aritmética como uma axiomatização. Além disso, em
1844, o primeiro (Hermann Grassmann) identificou o método axiomático
com os axiomas de Euclides e explicitamente rejeitou sua adoção, não só
na Aritmética, mas na Matemática pura como um todo. Em
Ausdehnungslehre, Grassmann explicou que um axioma é uma
afirmação que expressa o que é dado pela “intuição pura”.
39
(GRASSMANN, 1844/ 1894, p.10, 22-23 apud RADU 2003, p. 345)
Mesmo não aceitando a pertinência de axiomas nas ciências formais,
sabemos que mais tarde veio a ser uma axiomatização. Interessante, a rejeição
de Grassmann; então, o que significava para ele as definições conceituais ou
princípios formais. Isso sugere que noção de axioma para a Aritmética difere da
noção de axioma da Geometria.
O termo axioma não foi usado por Grassmann, podendo dizer que em seu
lugar aparece definição ou princípios formais, mediante sua própria rejeição da
adoção de axiomas na ciência formal. Sendo assim, (LEWIS, 1977, p.138-139
39
Neither Hermann nor Robert Grassmann ever considered their approach to arithmetic to be an
axiomatization. Moreover, in 1844, the former identified the axiomatic method with Euclidean axiomatic,
and explicitly rejected its adoption not only in arithmetic but in pure mathematics as a whole. In
Ausdehnungslehre Hermann Graβmann explained that an “axiom” [Grundsatz]is a statement expressing
what is given by “pure intuition”( GRASSMANN,1844-1894,p.22 apud RADU,2003, p.345-346)
94
apud RADU, 2003, p.346) propôs o termo axioma intuicional,
40
como uma
adequação ao termo usado em Ausdehnungslehre.
Para Grassmann, como mencionado, a ciência divide-se em dois
aspectos: real e formal. Relativamente ao aspecto real, temos que os objetos que
a descrevem são dados do meio físico, da experiência; enquanto os objetos que
caracterizam a ciência formal são dados da mente, vêm do pensamento.
A ciência formal ou Matemática pura, ou ainda, abstrata trata dos
conceitos que são desenvolvidos por meio dessa ciência, que estão mais
próximos do pensamento. Esta divisão sugere, também, que os conceitos
desenvolvidos com base no aspecto real, como é o caso da Geometria e a
Mecânica tornam-se aplicações dos conceitos desenvolvidos na ciência formal.
Grassmann (1947, p.22) explicita na introdução de sua obra
41
, (...) que
antes de mostrar a divisão da teoria das formas, devemos excluir um ramo, até
agora, incluso erroneamente nela, a saber, a Geometria.
Chamou de definições e princípios formais, o que hoje denominamos de
axiomas, dizia que em ciência formal não poderia ter axiomas, no sentido dos
axiomas da Geometria de Euclides que são conhecidos há mais de dois mil anos.
Grassmann enxergava-os como criações livres da mente e, em regra, eram
chamados de definições. Estas definições ou princípios formais eram
considerados por ele como as descrições conceituais, isto é, expressões verbais,
cuja tradução para expressões simbólicas representava o pensamento puro.
Embora os construtores da abordagem da Aritmética não falassem em
axiomatização e tivessem muito cuidado ao introduzir a linguagem simbólica no
desenvolvimento de seus trabalhos; mais tarde, esta proposta foi vista como uma
axiomatização.
40
Ou axiomas da intuição, esse termo era usado por Kant que indicou com essa expressão os princípios
sintéticos do intelecto puro que derivam da aplicação das categorias à experiência e que exprimem a
possibilidade das proposições da Matemática e física pura. (ABBAGNANO, 2000,p.102)
41
Obra intitulada: Teoría de La Extensión: nueva disciplina Matemática expuesta y aclarada mediante
aplicaciones.
95
Um dos primeiros acadêmicos a enxergar que a abordagem da Aritmética
proposta pelos irmãos Grassmann fosse uma axiomatização, foi Von Helmontz
e outro foi Giuseppe Veronese que em um livro inspirado em Ausdehnungslehre,
afirma que :
[...] em Matemática pura, as definições usadas para introduzir os
conceitos básicos devem ser vistas como estipulações hipotéticas, e
afirmou que, em relação às suas verdades, o diferença entre
axiomas, postulados e definições.
42
(VERONESE, 1894, p.7-26 apud
RADU, 2003, p.346)
Hölder foi o primeiro a realizar uma análise cuidadosa da abordagem da
Aritmética dos irmãos Grassmann, as idéias fluidas dessa análise emergiram
mais tarde no afamado debate
43
, entre Frege e Hilbert.
Com a revisão de Hölder do trabalho de Robert, algumas questões foram
levantadas e justificam de certa forma suas críticas à abordagem da Aritmética,
que listamos a seguir:
1. Qual a relação entre Matemática, Lógica, língua natural e
pensamento?
2. Qual a relação entre Aritmética e teoria formal das expressões
simbólicas
44
?
Na primeira questão, o que estava em jogo era a descrição da prova
matemática e a relação entre descrições conceituais (isto é, expressões verbais)
e expressões simbólicas. Na segunda, conforme foi proposta por Robert, a
Aritmética era uma disciplina específica e o Grossenlehre parecia ser uma
disciplina mais geral e capaz de fundamentar todas as outras disciplinas.
42
(...) in pure mathematics the definitions used to introduce basic concepts must be seen as hypothetical
stipulations, and stated that with respect to their truth, there is no difference between axioms, postulates, and
definitions.
43
Esse debate pode ser encontrado em Frege, 1976, p.56-80). Segundo Radu (2003).
44
A teoria das expressões simbólicas foi nomeada por Robert Grassmann de Grossenlehre e concebida como
uma disciplina Matemática.
96
A concepção de R. Grassmann da Matemática está expressa na seguinte
declaração,
Formenlehre (isto é, a Matemática) deveria nos ensinar estritamente as
leis do pensamento científico. Ela não pode tomar outras leis do
pensamento como uma condição prévia (...) Conseqüentemente, ela
também não pode se basear nas leis da linguagem, ela não pode
prosseguir na dependência das leis e das formas da linguagem. Ela só
pode aceitar como verdade a habilidade humana de pensar
45
. (R.
GRASSMANN, 1872, p. 5 apud RADU, 2003, p.347).
Em relação à Aritmética, ele reforça sua concepção afirmando que,
Quase todos os tratamentos introdutórios do Zahlenlehre
46
(...) contam
com (e isso é um erro que deve ser primeiramente censurado, porque ele
exclui a possibilidade de uma abordagem estritamente científica)
provas baseadas em inferências lógicas, ainda que os alunos nunca
tenham estudado lógica e mesmo que nenhum tratamento científico da
lógica estivesse disponível até pouco tempo. Esses tratamentos [da
zahlenlehre] fazem isso mesmo que o rigor da Matemática não requeira
qualquer aplicação da inferência lógica, mas podem e devem estar
embasados, independente de tal lógica, somente em proposições sobre
magnitudes peculiares, sua igualdade ou desigualdade
47
. (R.
GRASSMANN, 1891,p.3 apud RADU, 2003,p. 347)
Robert sempre enxergou a Matemática como uma ciência, digamos
formada, por isso rejeitava a idéia de que qualquer precedente da lógica servisse
como base aos fundamentos da Matemática, ou mesmo, da Aritmética. Colocou a
Lógica em um patamar abaixo da Matemática, pois defendia que nenhuma
descrição científica da lógica existiria senão apoiada na Matemática.
Dessa discussão, propôs uma hierarquia às disciplinas matemáticas que
em sua concepção são cinco, e apresenta isso na seguinte passagem:
45
Formenlehre [i.e. mathematics] should teach us the laws of strictly scientific thinking. It may not take
other laws of thinking as a precondition: (…) hence , it also may not build on the laws of language,, it may
not proceed in dependence on the laws and the forms of language. It only takes for granted the human ability
to think.
46
Zahlenlehre termo alemão que significa Aritmética.
47
Almost all [introductory] treatments of Zahlenlehre (...) rely on ( and this is an error that has to be
censured first, because it already excludes the possibility of a strictly scientific approach) proofs based on
logical inferences, even though students have never studied logic and even though no scientific treatment of
logic was available until recent times. And these treatments [of Zahlenlehre] do this even though rigorous
mathematics does not require any application of logical inference, but it can and must be founded
independently of such a logic only on propositions about single-value magnitudes, their equality or
inequality.
97
As cinco disciplinas de Formenlehre
Formenlehre ou a Matemática divide-se em cinco disciplinas, uma
disciplina geral, a Grossenlehre e quatro disciplinas especificas.
1. Grossenlehre, a primeira ou a mais geral das disciplinas de
Formenlehre, nos ensina a reconhecer aquelas conexões entre
magnitudes que são comuns a todas as disciplinas da
Formenlehre. Desenvolve as leis da igualdade, adição ou
Fugung, multiplicação ou Webung e exponenciação ou Hochung.
As quatro disciplinas específicas da Formenlehre
As quatro disciplinas específicas da Formenlehre emergem da
Grossenlehre, pela introdução de novas condições. A principal
questão relativa a estas condições é a que emerge quando
magnitudes simples e iguais são conectadas. A conexão e o e
pode ser igual a e ou diferente de e (...)
A primeira conexão corresponde à conexão de idéias dentro da
nossa mente, na qual duas idéias iguais são conectadas para
formar uma idéia comum chamamos de conexão interna. Em
contraste, a última conexão corresponde à conexão das coisas no
mundo exterior, na qual dois objetos iguais jamais se tornam um,
mas permanecem distintos no espaço, como objetos acumulados,
quanto mais espaços eles preenchem, chamamos de conexão
externa.
A característica de conexão interna ou externa pode ser aplicada
à adição (Fügung) tanto quanto à multiplicação (Weben)
Conseqüentemente, quatro tipos diferentes de conexão.
(R.GRAΒMANN, 1872, p.11-12 apud RADU, 2003, p. 348)
48
Nossa interpretação para o termo magnitudes é que são entidades formais
que podem representar ou o um objeto matemático, cuja conexão, (isto é,
operação em termos modernos) gera um objeto igual ou desigual. Hölder critica a
ausência de definição do termo magnitude por parte de Robert, pois, para ele
48
The five disciplines of Formenlehre.
Formenlehre or mathematics branches into five disciplines, one general discipline, Gröβenlehre,
and four special disciplines.
1. Gröβenlehre, the first or most general discipline of Formenlehre, teaches us to recognize those
connections between magnitudes that are common to all disciplines of Formenlehre. It develops the laws of
equality, addition or Füngung, multiplication or Webung, and exponentiation or Höchung.
The four special disciplines of Formenlehre.
The four special disciplines of Formenlehre emerge from Gröβenlehre through the introduction of
new conditions. The main question regarding these conditions is what emerges when equal simple
magnitudes are connected. The connection e
o
e may be either equal to e unequal to e (…).
We call the former connection, which corresponds to the connection of the ideas within our mind
and in which two equal ideas are connected to form one common idea, the inner connection. In contrast, we
call the latter connection, which corresponds to the connection of things in the outside world and in which
two equal things never become one but remain distinct in space so that as things accumulate, the more space
they fill, the outer connection.
The character of inner or outer connection can apply to gen or addition just as much as to Weben
or multiplication. Accordingly there are four different types of connection.
98
uma teoria que sirva de fundamento à Matemática precisa ser minuciosamente
detalhada.
Robert, quanto à concepção da divisão da ciência Matemática em real e
formal, define dois tipos de conexões entre magnitudes: a conexão interna e a
externa. Quando conectamos (e o e) magnitudes que se constituem baseadas
em idéias internas à nossa mente, conexão interna, duas idéias iguais formam
uma idéia comum. Quando conectarmos magnitudes que são dadas do mundo
exterior à nossa mente, a conexão de dois objetos iguais nunca se transforma em
um só, ao contrário, permanecerá distinta no espaço. A esta conexão, nomeou de
externa.
A característica predominante nas duas conexões, interna e externa, pode
ser estendida às operações de adição e multiplicação, resultando em quatro
conexões distintas, que podem ser representadas pelas expressões:
e + e = e e + e e
e x e = e e x e e
Os termos adição e multiplicação não se referem ao sentido usual das
palavras.
Tipo de conexão
Conexão interna
e
o
e = e
Conexão externa
e
o
e e
Adição (Fugung)
Operação
Multiplicação
(Webung)
Quadro II
Robert Grassmann indica que o preenchimento do quadro II, baseado na
realização de duas operações (adição e multiplicação) com as duas conexões,
faz com que seja possível gerar as quatro disciplinas matemáticas ditas
individuais. Quando fez uso dos termos adição e multiplicação, não se referia
Nota: O sinal
o
’ vale para ‘+’ ou ‘x’
99
aos termos usados nas operações habituais com números. Segundo Radu (2003,
p.349), ele se refere a termos modernos para duas operações algébricas binárias
abstratas, porém definidas em um conjunto não especificado.
As quatro disciplinas fundamentais resultantes do preenchimento da
tabela têm a forma estrutural-algébrica. Radu entende poder interpretá-las por
meio das seguintes matrizes:
Lógica
01
01
Aritmética
01
10
Combinatórias
10
01
Álgebra exterior
10
10
Considerando a matriz
10
01
combinatória, entendemos que a adição é
uma conexão interna, enquanto a multiplicação é uma conexão externa, ou seja;
e + e = e
e x e e
Então, na Lógica, a adição e a multiplicação são conexões internas; na
Aritmética a adição é uma conexão externa, enquanto a multiplicação é interna.
Na Álgebra Exterior, tanto a adição como a multiplicação são conexões externas.
100
Assim, a Aritmética parece ser uma disciplina em que e + e e e e x e
e, no qual e denota a unidade básica, da qual todas as outras são construídas.
Ele coloca o Grossenlehre (a disciplina que definiu, como sendo a geradora das
outras) conforme apresentado, como um caminho possível, entre pensamento e
disciplinas matemáticas. As rmulas constituíram-se em um fio condutor que liga
o raciocínio ao desenvolvimento das disciplinas tais como: Aritmética, Lógica,
Combinatória e Álgebra Linear.
Assim, ele adota o Grossenlehre como fundamento para outras disciplinas,
o que se torna um ponto conflitante entre Hölder e Robert, pois para Robert, a
Aritmética é gerada com base no Grossenlehre; para Hölder a Aritmética é uma a
- priori e seu fundamento não pode ser dado por meio de fórmulas recursivas,
como chamou Hölder, a abordagem da Aritmética proposta por Grassmann.
A interpretação de Robert do Grossenlehre, como o caminho que conduz à
geração de todas as outras disciplinas matemáticas, está expressa na seguinte
passagem:
Existem várias leis e conexões que são comuns a todas as disciplinas de
Formenlehre [i.e., Matemática], tais como: as leis que governam a
igualdade (...) adição ou Fugung (...) multiplicação ou Webung. Todas
estas leis sustentam e são aplicadas na Brigriffslehre (Lógica), apenas
como Zahlenlehre (Aritmética), Bindelehre (Combinatória) e Ausenlehre
(Álgebra Exterior). É anti-científico derivar as mesmas leis em cada
disciplina individual separadamente, ou mesmo, tomá-las como
verdadeiras sem qualquer derivação ou prova ao invés de derivá-las
cientificamente e prová-las em uma única disciplina pertencente à
Formenlehre
49
. [R. GRASSMANN, 1872, p.17-18 apud RADU, 2003, p.
350].
Nesse sentido, o Grossenlehre funciona como a unificação das leis que
são comuns a todas as disciplinas, cuja forma vai do geral ao particular; geral no
sentido de que as leis comuns a todas as disciplinas fazem parte do
49
There are a number of laws and connections that are common to all disciplines of Formenlehre
[i.e.mathematics] such as the laws governing equality (…) addition or Fügung, (…) multiplication or
Webung. All these laws hold and applied in Begriffslehre (logic), just as in Zahlenlehre (arithmetic),
Bindelehre (combinatorics), and Ausenlehre (exterior algebra). It is unscientific to derive the same laws in
each individual separately or even to take them for granted without any derivation or proof instead of
deriving then scientifically and proving them in a single discipline belonging to Formenlehre.
(GRASSMANN, 1872, 17-18, apud RADU, 2003, p. 350).
101
Grossenlehre e, ao mesmo tempo funcionam individualmente em cada uma das
disciplinas ditas individuais.
Nesta perspectiva, ao analisarmos o Grossenlehre podemos conjecturar
que Robert considerou-o apenas como:
Uma linguagem simbólica;
Ou uma descrição conveniente e econômica dos resultados dos
fundamentos das disciplinas que são independentes entre si e do Grossenlehre;
Ou uma linguagem universal para podermos falar sobre entidades de
qualquer disciplina matemática, cuja semântica é dada pelos significados das
expressões.
Grassmann gerou as quatro disciplinas matemáticas pautado no
Grossenlehre, tomando-o como uma base formal e introduzindo condições
adicionais.
IV. 8 - Estrutura do Grossenlehre
Robert Grassmann desenvolveu sua teoria, o Grossenlehre, apoiado na
exploração das regras de conexão entre magnitudes, tomando como princípio a
igualdade e a desigualdade. Para ele, estavam em discussão a própria noção de
igualdade e a prova matemática sobre a existência de magnitudes iguais. As
idéias de igualdade e desigualdade não têm relação com as noções do termo
aplicado na lógica (identidade lógica), pois ele usou o sinal “=” , como uma
conexão para formar expressões simbólicas mais complexas.
O Grossenlehre foi dividido em quatro partes. Na primeira, Robert
apresenta as noções mais gerais, nas quais o Grossenlehre está baseado.
Noções essas que são relevantes para uma interpretação adequada de sua
teoria; entre elas, estão as noções: de magnitudes, de variáveis, de valor e de
conexão, de como conectar duas magnitudes, como obter o igual ou diferente,
102
magnitudes simples e magnitudes compostas. Todas as demais noções foram
obtidas apoiadas nas noções definidas na primeira parte, por meio de condições
adicionais. Desta forma, podemos dizer que todo o trabalho de Grassmann está
sustentado nas noções definidas e apresentadas na primeira parte.
Na segunda seção, Grassmann descreve a prova matemática como uma
cadeia de rmulas conectadas por uma igualdade, como, por exemplo, a = b = b
= a, de acordo com sua definição de igualdade a = b implica b = a. Na terceira
parte, apresenta várias definições e teoremas, assim como também três fórmulas
além de um estudo abstrato das propriedades algébricas de uma operação
binária.
Na quarta e última seção, Grassmann considera duas operações binárias
introduzidas sobre um conjunto de magnitudes não especificadas. Chama essas
duas operações de adição (Fugung) e multiplicação (Webung), que não se
tratavam das operações (usuais) da Aritmética. Ainda, nesta seção, são
apresentadas cinco fórmulas básicas, além de teoremas e definições.
É importante lembrar que todas essas fórmulas, teoremas e convenções
foram desenvolvidas apoiadas nas noções mencionadas na primeira seção.
Assim, a compreensão da estrutura do Grossenlehre é necessária para entender
a origem de suas fórmulas, até mesmo, compreender o motivo pelo qual
Grassmann não aceitava que sua proposta para a Aritmética fosse considerada,
como uma abordagem axiomática. Entendia que o Grossenlehre tinha um
aspecto formal e que servia como base para gerar as outras disciplinas e seu
conteúdo era composto por expressões diretas da mente. Isso faria com que a
distância entre as expressões conceituais e as expressões verbais fossem
menores. O que não era o caso da Geometria, pois as noções e definições eram
dadas com base na observação e experiências.
Os conceitos gerais de igualdade e desigualdade, união e separação
foram fortes instrumentos na construção da teoria dos Grassmann, tanto no Die
Ausdehnungslehre (1844/1862) de Hermann Grassmann, como no Die
103
Zahlenlehre oder Arithmetik (1891) de Robert. Grassmann mencionado na
sinopse da TGF
50
.
Devemos estabelecer, primeiramente, o conceito de igualdade e
desigualdade. Como igualdade sempre pressupõe a diversidade, embora
seja única para estabelecer a existência de dois entes; que sem ela,
seriam um só, estaríamos forçados a acreditar que deve estabelecer
diversas relações de igualdade e desigualdade. Assim, por exemplo, ao
comparar os segmentos estabeleceríamos a igualdade da direção ou da
longitude, ou de direção e longitude, ou de direção e posição, etc.
Entretanto, ao comparar outros entes estabelecer-se-iam outras relações
de igualdade. Não obstante, o único fato que estas relações mudam, de
acordo com a natureza das coisas comparadas, demonstram que estas
relações não são inerentes ao conceito de igualdade mas aos objetos a
que este conceito é aplicado
51
. (H. GRASSMANN, 1947, p.35)
Grassmann discute a relação de igualdade e desigualdade e diz que a
noção de igualdade pertence mais aos objetos que estão sendo comparados do
que ao próprio conceito de igualdade. Sendo assim, é inerente aos objetos a que
esse conceito é aplicado. Assim é possível termos diversas relações de
igualdade e desigualdade. Nesse momento, Grassmann estava interessado em
discernir entre um conceito mais geral de igualdade e um particular de
congruência.
Hermann Grassmann trata do conceito de igualdade em,
Por exemplo, no caso de dois segmentos de longitudes iguais não
podemos afirmar que sejam iguais, somente que são iguais suas
longitudes, e são as longitudes as que, portanto estão na relação mutua
de igualdade. Desta maneira nós conservamos a simplicidade do
conceito de igualdade, podendo afirmar conseqüentemente que é igual
todo aquele que se pode afirmar o mesmo, ou em forma mais geral que
pode ser substituído mutuamente em todo o julgamento
50
TGF- Teoria Geral das Formas, visto também como Grossenlehre.
51
Debemos establecer primeramente el concepto de igualdad y desigualdad. Como la igualdad siempre
presupone la diversidad, aunque sólo sea para establecer la existencia de dos entes, que sin ella serían uno
solo, estaríamos inclinados a creer que deben establecerse diversas relaciones de igualdad y desigualdad: así
por ejemplo al comparar los segmentos estableceríamos la igualdad de la dirección o de la longitud, o de
dirección y longitud, o de dirección y posición, etc.: en cambio, al comparar otros entes se establecerían
otras relaciones de igualdad. Sin embargo, el solo hecho de que estas relaciones cambian de acuerdo a la
naturaleza de las cosas comparadas, demuestra que estas relaciones no son inherentes al concepto de
igualdad sino a los objetos a los que se aplica dicho concepto.
104
(sentença)
52
.(H. GRASSMANN,1947, p.35-36)
A preocupação com o aspecto filosófico esteve sempre presente nos
escritos de Hermann Grassmann. Em uma nota de rodapé, esclarece que a
definição mencionada anteriormente não é uma definição filosófica do conceito
de igualdade, mas, sim, uma explicação para que seja compreendida e para se
evitar o entendimento contrário ao pretendido.
A determinação filosófica do conceito exigiria, para entender o contraste do
igual e do diferente, um aparato considerável de conceitos que não é pertinente
no momento. Aqui observamos o abandono do aspecto filosófico, conforme ele
mesmo se propôs a fazer no prefácio da sua obra.
Grassmann buscava distinguir entre um conceito geral de igualdade e um
conceito particular de congruência. Entendia que, a relação de igualdade entre
magnitudes pertencentes às disciplinas ditas individuais depende da natureza
dos objetos que estão sendo comparados, e não do próprio conceito. Mesmo
Grassmann mostrando-se hostil em usar noções lógicas na Matemática suas
definições basicamente resultaram em expressões simbólicas, como em:
(...) mesmo que ele não tenha usado quantificadores, sua definição
formal basicamente resultou em x = y
F(F(x) = F (y)) onde F
denota uma fórmula do Grossenlehre. Ao mesmo tempo, ele fez a
igualdade dependente do valor. Isso o levou a uma dificuldade, que em
nenhum lugar ele discutiu explicitamente
53
(RADU, 2003, p. 352)
Outro aspecto tratado por Grassmann é o conceito de união e separação
ou união e decomposição, como indicado em,
52
Tradução nossa. Texto Original: Por ejemplo, em el caso de dos segmentos de igual longitud no podemos
afirmar que sean iguales, sino solamente que son iguales sus longitudes, y son las longitudes las que por
tanto están em la relación mutua de igualdad. De esta manera hemos salvado la simplicidad del concepto de
igualdad, pudiendo afirmar por lo tanto que es igual todo aquello de lo que se pueda afirmar lo mismo , o en
forma más general aquello que pueda substituirse mutuamente en cualquier juicio.
53
Even though he did not use quantifiers, his formal definition basically amounted to: x = y
F(F(x)
= F (y)) where F denotes a formula of Gröβenlehre. At the same time, he made equality dependent on value.
This brought him into a difficulty which he nowhere discussed explicitly.
105
Se uma espécie de união é tal que, sem que varie o resultado, pode-se
arbitrariamente colocar os parênteses no caso de três membros, pode-se
mudar a ordem no caso de dois, então também no caso de um número
arbitrário de membros pode-se mudar os parênteses e a ordenação
54
.( H.
GRASSMANN,1947, p.38)
Grassmann procurava explorar todas as relações e propriedades
possíveis no processo de união entre magnitudes quando o recurso à união não
fornece mais elementos de exploração, então, o que é indicado é a exploração do
resultado baseado na separação dos dados o que chamou de método analítico.
Toda sua teoria foi desenvolvida de uma forma muito geral. Por exemplo,
quando ele se refere a magnitudes ou entes, não se trata de um elemento
específico, mas, sim, a uma gama de objetos matemáticos, para os quais as
propriedades são satisfeitas ou não. Grassmann define adição, subtração,
multiplicação e divisão de magnitudes, além da potenciação, a partir da união.
Ele diferenciou dois métodos de união, nomeando-os de método sintético e
analítico. Podemos dizer que o método sintético era o caminho de ida na conexão
de magnitudes, ao passo que o método analítico consistia na desconexão dos
resultados obtidos pelo método sintético, o caminho de volta. Foi pautado nos
estudos dessas estruturas que ele definiu o conceito das quatro operações entre
magnitudes. O sentido de operação a que nos referimos, não é ainda o usual,
como as operações com números, mas, sim, operações com magnitudes
diversas, nos quais o resultado dependia das características dos objetos.
Em termos modernos, a Teoria Geral das Formas de Hermann
Grassmann constitui a Álgebra Linear , pois na TGF estão presentes oito
propriedades e duas operações que coincidem com aquelas da definição de
espaço vetorial. Entre essas propriedades, notamos a associatividade, a
comutatividade, a existência de elemento simétrico e de elemento neutro para
uma determinada operação.
54
“Si una especie de unión es tal que, sin que varíe el resultado, se pueden poner arbitrariamente los
paréntesis em el caso de dos, entonces también em el caso de un número arbitrario de miembros pueden
cambiarse los paréntesis y la ordenación”(GRASSMANN, 1947)
106
A Teoria Geral das Formas é responsável pela algebrização das
construções geométricas consideradas, então, como um processo da descrição
matemática dos objetos. Esta forma de descrição pode ser vista na história,
quando matemáticos apropriam-se das relações algébricas para descrever
fenômenos geométricos. A possibilidade dessa forma de descrição conduziu a
uma mudança de concepção, pois matemáticos começam a refletir sobre suas
próprias construções e atividades, ao invés de refletirem sobre objetos do mundo
externo. Deslocando, assim, o foco de investigação dos problemas relativos ao
conhecimento do mundo externo para problemas da dinâmica do conhecimento e
da cognição.
No desenvolvimento dos trabalhos de Robert Grassmann, não estava
prevista uma abordagem axiomática, do conceito de número, que para ele o
gerador do número pertencia a umas das fórmulas contidas no Grossenlehre que
parece ter sido desenvolvido formalmente e, como conseqüência, o havia
como escapar da abordagem axiomática. Grassmann não pensava assim,
considerando as afirmações de sua teoria como definições formais e não como
axiomas.
Robert e Hermann não admitiram que suas teorias utilizassem o método
axiomático, pelo fato de construírem os números naturais, a adição e a
multiplicação com base na relação x + 1. O próprio Grossenlehre foi considerado
por eles, fora de um sistema axiomático, pois interpretavam as fórmulas
contidas nele como expressões conceituais, que conseguia exprimir em
palavras as fórmulas, isto é, expressões verbais.
Grassmann entendia que essas expressões eram dadas diretamente do
pensamento, por isso, não poderiam ser consideradas como axiomas. Aqui, é
pertinente destacar que, na realidade, havia diversas compreensões da noção de
axioma, pois, há dois mil anos Euclides propõe a axiomatização da Geometria, na
qual seus axiomas vêm da experiência e, hoje, temos axiomas que vêm da
intuição. Então, podemos concluir que existem, sim, conceituações diferentes à
noção de axioma.
107
IV.9 - A natureza da prova Matemática
Outro tema bastante presente na obra de Robert Grassmann é a
natureza da prova Matemática. A concepção de prova de Robert emerge na
seguinte passagem:
Porque não admitimos qualquer outra ciência nem mesmo a lógica,
como um pré-requisito para Zahlenlehre, não deveríamos também aplicar
inferências lógicas e provas para suas provas.
Felizmente, no entanto, não temos necessidade de contar com a
inferência conceitual ou lógica em nossas provas da Grossenlehre. A
inferência conceitual, a saber, avança somente de um conceito mais geral
para um conceito que está subordinado ou mais limitado. Nas provas de
Grossenlehre em contraste, não estamos tratando com o geral e o
limitado, mas unicamente com magnitudes iguais e desiguais.
Conseqüentemente, a inferência conceitual ou lógica não tem lugar no
Grossenlehre. Isso também é indicado pelo fato de que todas provas de
Formenlehre podem e devem ser escritas em formulas. A tradução das
provas em linguagem é somente uma transposição na área do
pensamento comum, algo que é inerentemente estranho ao estrito
Formenlehre. As provas em Grossenlehre são conduzidas ao conectar
uma fórmula com uma segunda com o igual, essa segunda com a terceira
e assim por diante
55
. (R. GRASSMANN,1891,§ 9 apud
RADU,2003,p.355).
Conforme explica a citação, ele rejeita qualquer elemento da Lógica como
fundamento para a Aritmética. Nesse ponto, as concepções de R. Grassmann e
Hölder assemelham-se, pois Hölder abomina qualquer inferência lógica nos
fundamentos da Aritmética.
Robert mostra que sua nova criação não se apropria de inferências
conceituais ou lógicas, mas, sim, de duas noções bastante elementares que são
55
Because we do not assume any other science, not even logic, as a prerequisite of Zahlenlehre we should
also not apply logical inference and proof for its proofs. Fortunately, however, we have no need to rely on
the conceptual or logical inference in our proofs of Gröβenlehre. Conceptual inference, namely, advances
only from a more general concept to a concept that is subordinate or more narrow. In the proofs of
Gröβenlehre in contrast, we are not dealing with general and narrow but solely with equal and unequal
magnitudes. Hence, the conceptual or logical inference has no place in Gröβenlehre. This is also indicated
by the fact that all proofs of Formenlehre can and must be written in formulas. The translation of the proofs
into language is only a transposition into the area of common thinking, something that is inherently foreign
to strict Formenlehre. The proofs in Gröβenlehre are conducted by connecting one formula with a second
one as equal, this second one with a third one, and so forth (R. Grassmann,1891,§9. Apud Radu,2003,p.355)
108
as noções de igualdade e desigualdade entre magnitudes, como mostra quando
conduz o processo de prova, conectando magnitudes por meio do igual ou do
desigual em uma cadeia de fórmulas.
Considera também, os aspectos direto e indireto de prova. O aspecto
indireto não era relevante no Grossenlehre somente se fazia presente nas
disciplinas ditas individuais. Todo o Grossenlehre baseou-se em provas diretas,
finitas ou provas por indução completa, um conceito importante da Matemática,
conforme Halmos (1970, p.52). “A indução é, freqüentemente, usada não
somente para provar coisas, mas também para defini-las”.
IV.9.1 - Método de prova dos conceitos matemáticos
Nas ciências exatas, a prova tem a característica de um procedimento
quando se deseja mostrar a existência de um ente matemático. Para demonstrar
a existência de tais objetos, podemos adotar o método direto ou indireto de
prova.
O método de prova direta consiste na construção, passo a passo,
partindo de um princípio particular e chegando ao geral. Este todo foi adotado
pelos intuicionistas que acreditavam na natureza sintética da Matemática e
rejeitavam o todo de prova indireta. Neste método, objetiva-se provar a
existência das entidades matemáticas construindo um exemplo tangível do objeto
e rejeita o princípio do terceiro excluído quando se trata de proposições em que
haja referência a grandezas infinitas.
O método de prova indireta consiste em demonstrar a verdade de uma
proposição, partindo de uma hipótese provisória de que A’, o contrário de A, é
verdadeiro. Então, por meio de uma cadeia de raciocínio de caráter não
construtivo produz-se uma contradição de A’, demonstrando, assim, o absurdo de
A’. Com base no princípio do terceiro excluído, o absurdo de A’ demonstra a
verdade de A. Em suma, podemos dizer que para estabelecer a existência de
109
uma entidade matemática, basta a demonstração de que ela não implica
contradição.
Os seguidores fiéis da corrente intuicionista fundada por Brouwer rejeitam
esse método. Não era o caso de Otto Hölder, que acreditava na natureza
sintética da Matemática, mas não rejeitava o método indireto de prova.
O uso sistemático da indução está presente nos trabalhos de Robert.
Grassmann, embora tenha adotado esse princípio como um teorema
demonstrando-o, baseado em sua definição de igualdade.
A discussão seguinte consiste em descrever a atitude de Robert ao
defender o Grossenlehre como um fundamento para a Aritmética.
IV.10 - A abordagem de Grassmann do Grossenlehre,
como o único fundamento para a Aritmética
A distinção entre ciência real e ciência formal era relevante também para
Robert Grassmann, como a Aritmética pertencia à Matemática formal, os
processos de construção que descreviam os objetos, eram dados por elementos
vindos diretamente do pensamento, isto é, sem intermédio da experiência. Dessa
forma, então, ele considerava o Grossenlehre (ou as expressões contidas nele)
também como o meio descrever os processos que conduzem à existência do
objeto.
Assim também ocorreu com o desenvolvimento de uma teoria para a
construção dos números naturais, a qual foi vista por eles como o único
fundamento da Aritmética. As definições dessa teoria que constam de seus
primeiros escritos, parecem ter características do método axiomático, levando
mesmo Hölder na discussão com Robert Grassmann a questionar a utilização, ou
não, do princípio axiomático na constituição de sua proposta. As definições a que
nos referimos, estão explicitadas a seguir e mostram como R.Grassmann pensou
a construção da Aritmética:
110
(113). Definição - Zahlenlehre ou Aritmética é o ramo de Grossenlehre
que lida com uma unidade única, o “Um”, com as magnitudes que
emergem das sucessivas junções de unidades, os números, assim como
as magnitudes geradas pela conexão de números.
(114). Definição - Os números (o arithmoi,o numeri) que surgem por
meio de sucessivas junções de unidades são considerados como sendo
diferentes um do outro .(...)
(115). Fórmula básica para contagem
m + n m
Fixamos S1(m+n) S1(m) ou 1 + 1+...+1+...+1 1 + 1 +...+ 1.
.Todos os números gerados por meio de sucessivas junções da unidade, i.
e., números gerados por meio da contagem são desiguais uns aos
outros.(...)
(116). Definição - O nome e os símbolos dos dez primeiros números (...)
. Os símbolos para os números são chamados dígitos.
(a) Zero (símbolo 0) é a magnitude que pode ser juntado a qualquer
outra magnitude sem mudar o valor dessa outra magnitude
(b) Um (símbolo 1) é a unidade do número puro para o qual 1 x e = e
(...)
(c) Dois (símbolo 2) é um mais um (...)
(d) Dez (símbolo 10) é nove mais um .(...)
(118). Proposição. a + ( b + 1) = a + b + 1
Os números estão sujeitos a uma fórmula básica da Einfugung: em vez
de juntarmos uma unidade à segunda parte, pode-se juntá-lo à soma, e
em vez de juntar uma unidade à soma, pode-se juntá-la à segunda
parte.(...)
(120). Formula básica da junção de números. a + ( b + 1) = a + b + 1 e 1
+ 1’ = 1’ + 1 .
A fórmula básica de Einfungun e Zufugung ou de Einigung e
Vertauschung vale para junção dos números.
121. Lei da junção dos números. A lei da Zufugung vale para toda
conexão de números pela Fugung. Isto é, pode-se considerar ou remover
os parênteses á vontade sem mudar o valor e variar aleatoriamente a
ordem das partes, e a soma será novamente um número (R.
GRASSMANN, 1891, 133-116, 118-121 apud RADU, 356-357)]
56
.
As definições apresentam muita similaridade com o trabalho de Peano na
Aritmética. Entretanto, é pouco provável que Robert tenha se familiarizado com
as idéias de Peano, os trabalhos de Robert podem ser vistos como uma
reescritura do trabalho de Hermann Grassmann. A obra de Hermann Grassmann
também foi fonte de inspiração para Peano.
A definição (113) mostra que a Aritmética de fato é construída procedendo
do Grossenlehre. Com ela, Grassmann postula a existência de uma unidade
básica para a Aritmética, o “um” e a partir da junção desta unidade com outras
são geradas magnitudes, isto é, os números. Conectando sucessivamente uma
56
As definições foram reproduzidas na integra de Radu (2003).
111
unidade básica com outra, gera-se a seqüência dos números. Na definição
(114), ele afirma que nenhum número gerado a partir de uma junção é igual a
outro. Na fórmula (115), apresenta um modo de contagem dos números. A
existência do elemento neutro “zero” para a adição e o “um” para a multiplicação
estão explicitados na definição (116).
Ao considerar as definições (116) (a) e (b), Grassmann de certa forma
utilizou o método axiomático, pois tanto a definição 116 (a) como a 116 (b)
podem ser vista como axiomas. Em nenhum lugar está escrito o que significou
para ele o “zero” e um” , adotados como existindo enquanto as definições
116 (c) e 116 (d) podem ser vistas como definições convencionais.
A proposição (118) representa uma aplicação para a adição de meros
pelas fórmulas a + ( b + 1) = a + b + 1 e 1 + 1’ = 1’ + 1.
Sendo assim, a operação de adição dos números naturais é introduzida
concomitantemente com a introdução da seqüência dos números naturais com
base na simples operação x + 1.
De fato, se ele adotou o Grossenlehre anteriormente à sua abordagem da
Aritmética, então ela não foi constituída em uma base axiomática, o
Grossenlehre, sim, embora ele nunca admitisse isso.
Robert referenciava o Grossenlehre como uma expressão direta do
pensamento, isso está expresso em:
O desenvolvimento da Aritmética toma uma forma axiomática apenas se
Grossenlehre não for desenvolvido de antemão. Em seu tratamento do
Grossenlehre, R. Grassmann nunca declarou que ele era de natureza
axiomática. Sua referência permanece no fato de que Grossenlehre é
uma expressão matemática direta do pensamento, assim como, o fato que
em todas suas afirmações gerais sobre Grossenlehre ele confiou
exclusivamente em definições e proposições como constituintes desta
teoria, indica uma rejeição a abordagem axiomática da Aritmética, assim
como para Grossenlehre.
57
(RADU, 2003, p. 358)
57
The development of arithmetic takes an axiomatic form only if Gröβenlehre is not developed beforehand.
As for his treatment of Gröβenlehre itself, R. Grassmann never claimed that it has an axiomatic nature. His
permanent reference to the fact that Gröβenlehre is a direct, mathematical expression of thinking, as well as
the fact that in all his general statements about Gröβenlehre he relied exclusively on definitions and
propositions as the constituents of this theory, indicate a rejection of the axiomatic approach to arithmetic as
well as to Gröβenlehre.
112
Ao observarmos as definições contidas no trabalho de Robert Grassmann,
notamos a semelhança entre ele e a de Peano, pois a definição (113) estipula
que a Aritmética usa a unidade básica que é chamada de um e isto corresponde
ao primeiro axioma de Peano
58
“1 é um número”. Quando Grassmann define que
adicionando um número a outro, obtemos um número, estava definindo a função
sucessor que pode corresponder ao axioma de Peano: “O sucessor de qualquer
número é um número”. E, a definição (114) e a fórmula (115) podem
corresponder ao postulado de Peano: “Dois números não têm o mesmo
sucessor”.
Com as definições, Grassmann constrói a seqüência dos números naturais
além de introduzir as operações de adição e multiplicação, bem como as
propriedades, associativas da adição e multiplicação, a comutativa para ambas
as operações, a existência do neutro, o zero para a adição e o um para a
multiplicação.
Ao analisarmos as definições mencionadas anteriormente, sem conhecer a
exposição de sua teoria podemos conjecturar que Robert estava errado, quando
dizia que sua abordagem não era uma axiomática. Entretanto, de seu ponto de
vista, sua abordagem da Aritmética advém do Grossenlehre, o que implica que
ela torna-se livre do princípio axiomático. Isso também justifica a sua rejeição em
admitir o princípio axiomático. Sua abordagem não é de natureza axiomática,
que o Grossenlehre é desenvolvido anteriormente à Aritmética.
As idéias de Grassmann, apesar de terem sofrido fortes críticas,
perpetuam-se aos dias atuais. A teoria dos números é a base para toda a
Ciência Matemática ou, pelo menos, está presente em todas suas ramificações.
A construção dos naturais, proposta por Grassmann mostra que a operação de
adição é intrínseca ao conceito de número. Os trabalhos de Grassmann
formalizaram esta idéia.
58
As formulações dos axiomas de Peano foram reproduzidas de acordo com Radu. Os axiomas que
apresentamos no capítulo II é uma apresentação mais moderna e extraída da obra (BOYER, 2003).
113
Podemos ver relação entre Grassmann e Caraça, quando o segundo
afirma que,
A operação de adição é a operação mais simples e da qual todas as outras
dependem. A idéia de adicionar ou de somar está incluída na própria
noção de número natural – o que é a operação elementar de passagem de
um número ao seguinte, senão a operação de somar uma unidade a um
número? (CARAÇA, 2003, p.16)
Podemos concordar com Poincaré, quando diz: “é das hipóteses mais
simples que devemos desconfiar; porque são aquelas que têm mais
possibilidades de passarem desapercebidas”. (BOYER, 2003, p. 417).
Grassmann desconfiou que a teoria dos números merecesse um teor científico,
entretanto não era seu objetivo principal estudar os números, ou melhor, rever as
questões de fundamentos desse objeto matemático, mas revisar sua nova teoria
de forma a preencher as lacunas da sua obra.
A discussão apresentada no artigo de Radu nos leva a compreender que
Robert pensou o Grossenlehre, como uma teoria que expressa as leis do
pensamento. Talvez isso se deva ao fato de que na Matemática o pensamento é
representado por meio de expressões e os objetos matemáticos aparecem
nas aplicações. Isso responde o porquê do teor operacional da teoria de
Grassmann. Toda a construção dos números naturais foi desenvolvida no sentido
de junções sucessivas de “um”.
A construção do número natural como proposto por Hermann e Robert
revela, assim, a existência do objeto matemático número.
É interessante notar que Grassmann sempre introduziu as definições por
meio de palavras, o que quer dizer expressões verbais e logo, em seguida,
introduz a expressões simbólicas, sempre expressando duas vezes a mesma
definição e Robert prosseguiu da mesma forma.
A análise da abordagem da Aritmética proposta por Robert Grassmann
finda aqui. Passamos, agora, a analisar a crítica que Hölder fez de seu trabalho.
114
IV.11 Elementos que justificam a rejeição de Hölder à
abordagem da Aritmética proposta por Grassmann
Grassmann trouxe para a Matemática uma nova forma de abordar os
conceitos, até então, inexistentes na ciência formal. Esta inovação propõe a
abordagem analítica dos objetos que, até o momento, estavam fundamentados
na abordagem sintética. Sua compreensão era que o método sintético nos
informa algumas propriedades dos objetos, porém a abordagem analítica
possibilita a descoberta de outras relações presentes nos conceitos. Assim
sendo, ele explora um resultado obtido por meio do todo sintético,
desfazendo-o e extraindo dele uma gama de propriedades, que o método
sintético não possibilitava enxergá-las.
Na proposta de Grassmann para a construção dos números naturais,
aparecem os dois métodos de abordagem, o sintético e o analítico. Isso nos
conduz a interpretar que a abordagem da Aritmética nesta perspectiva abrange a
definição do conceito – número – no sentido ordinal e no sentido cardinal.
Podemos dizer que o método sintético define número, usando as noções
de ordinalidade, conforme apresentado na definição 116, ao passo que o método
analítico parte da fórmula estruturada e dada por Robert no Grossenlehre. Isto é,
por meio de um conjunto finito de identidades algébricas que definem
simultaneamente os números naturais e suas operações.
Grassmann foi bastante criticado quando propôs esta nova forma de
interpretar os conceitos. Até então, os objetos pertencentes à ciência formal eram
descritos, segundo o método sintético. A interpretação de Hölder era que o
método referenciava a intuição ou a experiência, enquanto o método analítico era
puramente lógico.
Hölder reconheceu que a consistência lógica do Grossenlehre e sua
coerência dedutiva eram inquestionáveis. Esse reconhecimento está expresso
em: Dificilmente qualquer objeção pode ser feita à consistência lógica
115
(folgerichtigkeit) dos principais resultados da seção introdutória geral
59
.
(HÖLDER, 1892, p.587 apud RADU, 2003, p.360).
Sua critica direcionou-se ao Grossenlehre, quando Grassmann o propõe
como o único fundamento rigoroso para a Aritmética. Hölder revela seu
descontentamento quanto à abordagem de Robert questionando algumas
definições na tentativa de mostrar que a abordagem proposta por ele falharia.
Como mencionamos, Grassmann apropriou-se de alguns conceitos
elementares existentes na Matemática para construir sua teoria, entre eles, o
de igualdade e magnitude. Entretanto, Hölder indignado questiona a não
explicitação de Grassmann do termo magnitude, o que está expresso em:
Eu não estou alegando que na definição de “magnitude”, o termo a ser
definido tenha sido explicado pela palavra sinônima “valor”. Considero
que a exigência de um valor único é para assegurar a natureza exata do
princípio da comparação que é estipulado entre as magnitudes. Mas, é
impossível pensar em objetos que o podem ser comparados sob o
aspecto de um valor? E como deveríamos aplicar o critério dado? As
formulações conceituais desse tipo quase poderiam recordar a Filosofia
Escolástica
60
que está relutante em extinguir-se completamente na
Alemanha
61
. (HÖLDER, 1892, p. 587 apud RADU, 2003, p. 360)
A indagação de Hölder direcionou-se ao modo como Grassmann expôs a
noção de comparação entre magnitudes e, sua crítica está, em tal critério não ser
59
Hardly any objection can be made to the logical consistency [folgerichtigkeit] of the main results in the
general introductory section.
60
Literalmente significa – Filosofia da escola, e como as formas de ensino medievais eram duas, lectio que
consistia no comentário de um texto, e disputatio que consistia no exame de um problema através da
discussão dos argumentos favoráveis e contrários. Na escolástica a atividade literária assume
predominantemente a forma de comentários. Pode se chamar de escolástica qualquer filosofia que assuma a
tarefa e defender racionalmente determinada tradição ou revelação religiosa. Para isso, via de regra, essa
escolástica lança mão de uma filosofia estabelecida e famosa; nesse sentido a escolástica é a utilização de
determinada filosofia para defesa e ilustração de determinada tradição religiosa. Assim sendo, podemos
destacar várias filosofias escolásticas, tanto na Antiguidade como no mundo moderno. Na antiguidade
neoplatonismo, o neopitagorismo, etc.; na Idade Média, a filosofia dos árabes e dos judeus; no mundo
moderno, a filosofia de Malebranche, de Berkeley e de muitos espiritualistas. (ABBAGNANO, 2000,
p.344).
61
I am not claiming that in the definition of “magnitude”, the term to be defined has been explained by the
synonymous word “value”. I consider that the requirement of a unique value is used to ensure the definite
nature of the principle of comparison that is stipulated between the magnitudes. However, is it impossible to
conceive of objects that cannot be compared under the aspect of a value? And how should one apply the
given criterion? Conceptual formulations of this kind could almost recall Scholastic philosophy that is
reluctant to die out completely in Germany.
116
explicitado. Na verdade, Grassmann não adotou nenhum critério específico,
somente o fez pensando no conceito de igualdade e desigualdade. Todavia deixa
claro que a relação de igualdade depende da natureza dos objetos que estão
sendo comparados.
Em nosso entendimento é natural, pois sabemos que Grassmann tratou
da Matemática em termos gerais e abstratos. Um exemplo disso é sua
contribuição ao desenvolvimento da Álgebra abstrata. Entretanto, Hölder
entendeu que, para comparar objetos, temos de primeiramente especificá-los e
Grassmann, assim não o fez, ao considerar as noções de magnitudes. Isto
aparece como um ponto conflitante entre Hölder e Grassmann que levou Hölder a
conjecturar que a abordagem da Aritmética era frágil.
Hölder criticou bastante o tratamento de Grassmann, entendendo o
Grossenlehre como um disfarce aos problemas difíceis da Matemática e seguiu,
ainda, com fortes questionamentos em relação aos procedimentos adotados no
Grossenlehre. Compreendia que o conjunto de fórmulas e teoremas provados
com base nas definições o inconsistentes. Além disso, muitas demonstrações
são pressuposições. Então, como falar que tais expressões sejam
representações do pensamento? Esta foi uma questão levantada por Hölder que
caracterizou as expressões contidas no Grossenlehre, como sendo de natureza
hipotética e, portanto, necessitaria de axiomas para provas consistentes dos
teoremas e das formulas básicas que o compunham.
Na verdade, inicialmente, Hölder não compreendeu o objetivo de
Grassmann que era propor um meio de evidenciar as propriedades dos números
e, com as mesmas defini-los. Hölder ainda apontou várias dificuldades para tratar
a construção dos números na tentativa de mostrar sua fragilidade. Radu agrupou
estas dificuldades em seis objeções
62
, expressas em,
As dificuldades fundamentais consideradas por Hölder podem ser
agrupadas em seis objeções. Eu gostaria de chamá-las de: Objeção à
independência; Objeção à consistência; Objeção à completude ou
62
Para maiores detalhes dessas objeções ver Radu ,(2003).
117
perfeição; Objeção ao dualismo conteúdo / forma; Objeção a teoria pura
/ aplicada; e Objeção a Cardinal e Ordinal
63
. (RADU, 2003, p. 362).
O conjunto de dificuldades explicitadas por Hölder sobre a fragilidade do
Grossenlehre revela sua rejeição à abordagem proposta por R. Grassmann.
Podemos compreender sua rejeição, pois Hölder era um matemático, cuja
concepção da Matemática está embasada nos princípios do intuicionismo,
corrente filosófica que, em termos gerais, tem como recurso a intuição.
Hölder considerava a existência dos objetos matemáticos, segundo a
interpretação de Brouwer, assim: A existência dos objetos matemáticos é definida
pela possibilidade de construção: por isso, “existem” entes matemáticos que
possam ser construídos. (ABBAGNANO, 2000, p.583)
Por fim, Hölder focaliza a existência do número natural, conforme proposto
por R. Grassmann e apresenta duas maneiras de interpretar o Grossenlehre: a
interpretação analítica e a sintética. Discute esses dois métodos e conclui que a
abordagem de Grassmann cobre o conceito de número natural. Entretanto,
Hölder não aceitava a abordagem da Aritmética como o único fundamento
rigoroso ao desenvolvimento de todo sistema numérico. A compreensão de
Hölder era que Robert contava com identidades básicas e condições adicionais
e, sendo assim, sua abordagem não podia ser caracterizada como construtiva.
Do ponto de vista de Hölder, uma base teórica consistente não poderia ser
admitida e, sim, construída. Expressa isso em,
[...] até os irracionais são introduzidos sem provas de sua legitimidade.
“Isso é, simplesmente estipulado que (definição 382): Os números
irracionais são as tais magnitudes que não terminam, mas para quais
todas as leis de comparação suportam à mesma extensão em relação à
terminação dos números”. Isto é seguido pela proposição (número 383):
“Todas as proposições de Zahlenlehre que sustentam quaisquer inteiros e
frações também englobam os números irracionais”. Todavia, se a
proposição existentes são pressupostas, o desenvolvimento das
63
The foundational difficulties considered by Hölder can be grouped into six objections. I should like to call
them the: Independence objection; Consistency objection; Completeness objection; Content/form dualism
objection; pure/applied theory objection; and Cardinal/ordinal objection.
118
proposições é essencialmente consistente
64
. (HÖLDER,1892, p.594 apud
RADU,2003 p.370-371).
Hölder sentiu-se confortável, por um tempo, com a abordagem da
Aritmética proposta por Grassmann; compreendia que a teoria cobria o conceito
de número natural e que ambas as interpretações: sintética e analítica estavam
em perfeita harmonia. Mas, quando nos deslocando para os demais domínios
numéricos, a abordagem era puramente formal-analítica, o que o faz conjecturar
que a abordagem era vulnerável e falharia, uma vez que cobre apenas o número
natural.
Nesta perspectiva, a visão de Hölder possibilitou-lhe fornecer uma
alternativa para construção dos números, de modo que pudesse ser vista como
um fundamento rigoroso à Aritmética e à toda sua extensão.
IV. 12 - Hölder propõe outra forma para a construção dos
números naturais
Hölder propôs a construção dos números naturais, enfocando o conceito
de número ordinal, cujos aspectos envolvidos nesta construção eram: estrutura,
ordem e série.
1, 2, 3, 4, 5,...
Dessa forma, Hölder entendia que o conceito de número era dado pela
intuição, ou seja, da intuição lógica do conceito de número natural ordinal, antes
mesmo da introdução de qualquer operação; o que difere da abordagem de
64
(...)even the irrationals [are] introduced without proof of their legitimacy. It is simply stipulated that (
Definition 382): Irrational numbers are such magnitudes that do not terminate, but for which all laws of
comparison hold to the same extent as for terminating-numbers.” This is followed by the proposition
(Number 383): “All propositions of Zahlenlehre that hold for any integers and fraction also hold for
irrational numbers. “Nonetheless, if the existential propositions are presupposed, the development of the
propositions is essentially consistent (HÖLDER, 1892, 594 apud RADU,2003, p. 594)
119
Grassmann, para o qual o número foi construído simultaneamente com as
operações de adição e multiplicação. Com base nessa introdução podemos
explorar a operação de adição intrínseca ao conceito de número ordinal, assim
como também introduzir o símbolo “+” e tomarmos um elemento arbitrário da
seqüência, de modo a obtermos o sucessor e defini-lo como “a + 1” e de modo
que nenhum elemento dessa seqüência seja igual. Ele entendia que essa forma
garantia o uso das rmulas (mencionadas anteriormente), como uma definição
para a adição.
a + (b + 1) = ( a + b ) + 1 (1)
Com a adição definida, é possível introduzir a fórmula (2), que resulta na
definição de multiplicação,
1.a = a (2)
(b + 1) a = b + a
Para lder, ainda que a construção dos números inteiros negativos seja
uma extensão similar do domínio dos inteiros positivos, é a seqüência,
... – 5, – 4, – 3, – 2, – 1, 0, 1, 2, 3, 4, 5,...
Até aqui a alternativa de Hölder é baseada na intuição, em perfeita
harmonia com o contexto histórico que permeia o conceito de número. Agora,
quando se trata da extensão dos inteiros aos racionais, o comportamento de
Hölder é outro. Passa a utilizar símbolos sem ao menos defini-los, mostrando,
assim, um aspecto bastante formal. Expresso nas suas palavras,
Vamos examinar expressões da forma a/b, a e b sendo inteiros positivos
ou negativos diferente de zero. Provisoriamente, a tal símbolo não é
dado um conteúdo, ele é uma mera forma em que podemos distinguir
a presença de dois valores numéricos denotados por a e b; (...). Nós então
120
estipulamos que dois símbolos a/b e a’/b’ deviam ser vistos como
equivalente a ab’ ba’ = 0
65
. (HÖLDER, 1892,592 apud RADU, 2003,
372)
A alternativa de Hölder torna-se agora contraditória com sua concepção da
Matemática, pois ele se apropria de símbolos e fórmulas para definir os números
racionais, conforme mostra a citação acima. Todavia, Hölder criticou a teoria de
Grassmann, na qual estava prevista a existência de uma disciplina algébrica
antes da Aritmética (que é uma das críticas de Hölder).
Agora, Hölder propõe a construção dos números racionais, adotando, a
princípio, um aspecto bastante formal e omitindo a definição da simbologia
usada por ele na introdução dos racionais.
Não era assim que Hölder via sua construção dos racionais. Sendo assim,
ele formulou dois argumentos a favor de sua alternativa: primeiro, defendeu que
sua construção dos números racionais partiu da ontologia dos números naturais e
não de estruturas, conforme ocorria no Grossenlehre; segundo, ele apoiou-se na
relação de equivalência e no conceito de produto cartesiano N X N para introduzir
uma relação em que definiu como (a, b) Ξ (a’, b’) se a b’ = b a’, b 0 e b’ 0,
mostrando, assim, valer as propriedades: reflexiva, simétrica e transitiva,
conforme a relação de equivalência.
Hölder usou a noção de equivalência para definir o conceito valor (outra
crítica de Hölder ao trabalho de Grassmann era a não definição do termo
magnitude). Hölder ainda argumenta que sua proposta define a adição e a
multiplicação de maneira usual e que suas propriedades são provadas e não
postuladas como no Grossenlehre.
Radu expõe outro ponto em que Hölder contrapõe-se à R.Grassmann,
Isto sugere a seguinte interpretação: a descrição de Hölder da relação
entre igualdade, congruência e valor: considere um conjunto S, para
65
Let us examine expressions of the form a/b, a e b being positive or negative integers that differ from zero.
Provisionally, such a symbol is not given a content, it is a mere form in which we can only distinguish the
presence of two numerical values denoted by a and b, (…). We then stipulate that two symbols a/b and a’/b’
should be viewed as equivalent iff ab’ – ba’ = 0. (Hölder,1892,592)
121
introduzir a relação de igualdade em S, alguma relação R de
equivalência definida em S é necessária.
Se a pertence a S, então, sua classe de equivalência (a) ( mod R)
representa o valor de a. Além disso, (a) = (b) se e somente se a b (mod
R). Isso equivale a uma subordinação da igualdade à congruência, uma
posição que vai contra à defendida por Hermann e Robert
Grassmann
66
.(RADU, 2003, p. 372).
R. Grassmann, também, apoiou-se na relação de igualdade entre
magnitudes para construir sua teoria, menos formal do que a de Hölder se
considerarmos o Grossenlehre antecedendo a Aritmética.
IV.13 – Pontos divergentes e convergentes entre Robert
e Hölder
Vimos que Otto Hölder foi insistente em seu ponto de vista, tentando
mostrar que é inadmissível tratar as questões dos fundamentos da Matemática,
centrados em elementos da lógica. Era assim que ele inicialmente entendia a
proposta de Grassmann. De fato, o tratamento dado por Robert Grassmann à
Aritmética, veio posteriormente, a ser constituído em um princípio axiomático,
obra consolidada por Peano (1889) que muito se inspirou na obra de Hermann
Grassmann (1861).
No entanto, duas questões foram levantadas e permearam toda a
discussão entre Hölder e Robert; uma delas é a relação entre pensamento,
Matemática pura e a lógica. Vimos que Hölder e Robert comungam a idéia de
que a lógica formal não serve como base para a Matemática e a maneira como
foi proposto por Robert, a abordagem da Aritmética estaria longe de ser
constituída pela lógica do silogismo. Mesmo porque, em 1872, ele conferiu à
Lógica a condição de um capítulo da Matemática, isto é, subordinado às leis da
66
This suggests the following interpretation of Hölder’s account of the relation between equality,
congruence, and value: Consider a set S. In order to introduce a relation of equality on S, some equivalence
relation R defined on S is needed. If a belongs to S, then its equivalence class [a] (mod R) represents the
value of a. Furthermore, [ a ] = [ b ] iff a b ( mod R ). This amounts to a subordination of equality to
congruence, a position which goes against the one defended by Hermann and Robert Graβmann.
122
Matemática Pura, apresentando, pela primeira vez, uma de suas primeiras
formalizações. Segundo Radu esta formalização da Lógica proposta por Robert
foi muito elogiada por Peirce
67
.
Além do mais, a Matemática pura ou formal era vista como uma atividade
humana, cujo desenvolvimento não pode ser resumido a nenhuma teoria
declarada da lógica.
As fórmulas contidas no Grossenlehre eram vistas por Robert e, também,
por Hermann Grassmann, como uma expressão direta do pensamento, sendo
assim o Grossenlehre era considerado por eles como o caminho mais curto entre
o pensamento e as disciplinas ditas individuais, podendo ser representado como
no seguinte esquema:
Figura VI
A outra questão é a relação entre pensamento, Álgebra e Aritmética.
Neste ponto, eles divergem. R. Grassmann acredita ser a Álgebra a disciplina
matemática mais geral e capaz de gerar todas as outras disciplinas, mas a
concepção de lder é diferente, ele permaneceu defendendo a posição
intuicionista. Acreditava que o fundamento da Matemática Pura poderia ser
representado pela faculdade do pensamento na construção de infinitas
seqüências, das quais as descrições matemáticas podem ser fundamentadas na
Aritmética.
67
(Ver Peirce,1931/1958, nota de rodapé 3.199).
Pensamento Matemático
Grossenlehre – Álgebra
Lógica
Aritmética
Lógica Álgebra Exterior
Combinatória
123
Para Radu a concepção de Robert Grassmann em relação ao
Grossenlehre expressa-se assim:
A concepção de Grassmann pode ser resumida como a seguinte:
Grossenlehre é a expressão matemática primária do pensamento exato.
Ela não depende de nenhuma teoria lógica. É o fundamento da
Matemática pura, e, conseqüentemente de cada uma das disciplinas
matemáticas individuais (Aritmética, Combinatória, Lógica Formal, e o
Cálculo da Extensão)
68
(RADU, 2003, p. 373).
O Grossenlehre foi desenvolvido como uma teoria algébrico-estrutural,
atualmente, a Álgebra Abstrata. Apoiado em noções sicas, entre elas,
podemos destacar a de igualdade e de operação. As fórmulas nele contidas não
foram introduzidas como axiomas, mas, sim, por meio de definições conceituais
expressas verbalmente. Todas as fórmulas caracterizam as noções e são
apresentadas como conseqüências das definições. Hermann Grassmann, em
1861, o admitiu que seu trabalho pudesse ser visto como uma proposição
axiomática, chamava todas as fórmulas de definições formais e permaneceu
defendendo esta posição.
Hölder descreve duas maneiras de interpretar as fórmulas contidas no
Grossenlehre, são elas: a interpretação analítica e a sintética. Na analítica, os
processos são puramente descritivos e, na sintética, são vistos como uma regra
ou fórmulas recursivas, conduzindo a dois tipos de abordagem, algébrica
estrutural ou analítica e a sintética construtiva.
Na Aritmética, Robert iniciou com um conjunto de definições (mesmo modo
de Peano), que pode ser visto como construindo o sistema dos números naturais
e, seguia com as definições das operações ao longo da trilha construtiva. Na
ampliação do sistema numérico, direcionou-se para uma estratégia postulacional,
68
(...) the conceptions of R. Graβmann and Hölder differ. Graβmann’s conception can be summarized as
follows. Gröβenlehre is the primary mathematical expression of exact thinking. It does not depend on any
logical theory. It is the foundation of pure mathematics, and therefore of each of the four individual
mathematical disciplines ( arithmetic, combinatorics, formal logic, and the calculus of extension).
124
confiando nas identidades algébricas, que correspondem aos axiomas formais.
Evidenciando, assim, as duas abordagens, a sintética e a analítica.
Hölder mostrou que o Grossenlehre atende às duas interpretações, tanto a
sintética ou construtiva e a analítica ou algébrica estrutural. Para ele, o conflito
surge pelo fato dessas interpretações permanecerem disjuntas. Expresso em:
Hölder mostrou que a abordagem de R. Grassmann admite duas
interpretações fundamentalmente diferentes: uma analítica, algébrico-
estrutural, top-down e sintética bottom-up. Segundo a abordagem top-
down, os números naturais formam um subsistema do sistema dos
inteiros, como Wang (1957, 147) mostrou, forma um domínio integral
ordenado em que cada conjunto de inteiros positivos tenha um elemento
mínimo”. A abordagem top-down é baseada nos axiomas, tais como: a +
(b + c) = ( a + b ) + c e a + b = b + a.
Em contraste, a abordagem bottom-up defendida por Hölder da
prioridade à construção dos inteiros particulares independente de
qualquer estrutura formal, por exemplo, como uma seqüência de fatos,
como indicado na seção 3.5.
Embora Hölder contrastasse essas duas abordagens ao admitir a
possibilidade de dar uma interpretação sintética à abordagem de R.
Grassmann com relação à fórmula a + ( b + 1 ) = ( a + b ) + 1 , como um
dispositivo, indicando e definindo simultaneamente, de uma maneira
recursiva os números naturais, adição e multiplicação, ele basicamente
reconheceu a possibilidade em relação a abordagem de R. Grassmann
como o resultado de um esforço para harmonizar a abordagem analítica
top-down e a abordagem sintética botton-up
69
.( RADU,2003, p.373-374)
Em 1844, Hermann Grassmann se esforçava para superar o que
chamou de natureza cega da abordagem sintética, puramente formal da
Matemática e obter um equilíbrio entre síntese e análise na Matemática.
69
Hölder pointed out that R. Graβmann’s approach allows two fundamentally different interpretations: an
analytic, structural-algebraic top-down and a synthetic botton-up interpretation. According to the top-down
approach, natural numbers form a subsystem of the system of the integers which, as Wang (1957, 147)
pointed out, form an ordered integral domain in which each set of positive integers has a least element.”
The top-down approach is based on axioms such as a + ( b + c) = ( a + b ) + c and a + b = b + a.
In contrast, the bottom-up approach advocated by Hölder gives priority to the construction of the individual
integers independent of any formal framework, for instance, as a sequence of tokens as indicated in Section
3.5.
Although Hölder contrasted these two approaches by admitting the possibility of giving a synthetic
interpretation to Graβmann’s approach by regarding the formula a + ( b + 1 ) = ( a + b ) + 1 as a device
aimed at simultaneously defining in a recursive manner both natural numbers and addition and
multiplication, he basically recognized the possibility of regarding R. Graβmann’s approach as the outcome
of an effort to harmonize the analytic top-down approach and the synthetic, bottom-up approach.
125
(H.GRASSMANN,1844 apud RADU, 2003, p. 356).
Hölder, assim como Robert notam a distinção entre as fórmulas: (a + b) + c
= a + (b + c) e a + (b + 1) = (a + b) + 1. A derradeira fornece um meio efetivo de
construir uma Aritmética ontológica e a primeira, não.
Hölder formulou dois caminhos para tratar a dualidade. Um deles seria
assumir a possibilidade de desenvolver uma técnica, mecanismo formal
adequado para produzir uma prova consistente da Aritmética, e o outro, postular
a Aritmética como base no pensamento matemático. Então, assumir que esta
consistência é dada devida a sua natureza construtiva; adotar o primeiro caminho
seria construir a Aritmética como uma teoria axiomática no sentido de Hilbert, e o
segundo caminho seria construir uma teoria puramente dedutiva, como Hölder
fez.
Em resumo, podemos dizer que existiu uma divergência muito aparente
entre Robert e Hölder. Hölder defendia que a Aritmética era a base da
Matemática e capaz de sustentar toda sua ramificação. Robert Grassmann
entendia ser a Álgebra Abstrata a disciplina geradora de toda a Matemática.
126
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A possibilidade da axiomatização da Aritmética representou um momento
importante na história da Matemática, tanto quanto a descoberta de outras
Geometrias não-euclidianas e o desenvolvimento da Álgebra Abstrata e a adoção
do método axiomático nas ciências formais.
A polêmica levantada por Hermann Grassmann, como nos mostra Mircea
Radu (2003), quando apresenta os primeiros passos para a sistematização do
conceito de número, gera um conflito entre seus contemporâneos, pois a
humanidade tinha o número, como um presente do Bom Deus e sendo assim não
precisava de uma demonstração ou uma apresentação rigorosa.
O seu fundamento, como defendeu Otto Hölder, estava na intuição e
qualquer outra forma feria seus princípios. Otto Holder acreditava na natureza
sintética da Matemática e por isso concentrava seus esforços em desvendar a
verdadeira natureza do pensamento matemático e de uma lógica que fosse
adequada ao pensamento.
A abordagem da Aritmética apresentada por Grassmann coloca o conceito
de número em um patamar de objeto de estudo e como conseqüência contribui
com sua evolução, assim como também a de outros conceitos matemáticos que
são embasados nas noções de número.
Até meados do século XIX, a Matemática era para a maioria dos
matemáticos dividida em duas partes, uma tratava dos significados reais, no
127
caso, a Geometria e, a outra era responsável pelos resultados de nossas próprias
construções, como é o caso da Aritmética. Esta divisão fazia com que a
Matemática fosse realizada de formas diferentes, nas ciências reais a base
consistia na experiência e na observação e as ciências formais baseavam na
capacidade humana de pensar.
Este estudo mostra o período em que essa diferença gradualmente
desapareceu e quão valioso foi para o desenvolvimento da Matemática. Revela a
mudança de postura dos matemáticos frente aos objetos dessa ciência.
Matemáticos deixam de enxergar os objetos matemáticos como construções
completamente humanas a priori e passam a considerá-los dentro de um sistema
axiomático, em que os axiomas que o constituem são capazes de descrever e
gerar todas as afirmações sobre os objetos a que se quer demonstrar.
Segundo, Otte (2005) “O foco de interesse desloca dos <<problemas
interface>> entre o conhecimento do mundo externo e move-se para a dinâmica
do conhecimento e da cognição. Matemáticos começam a refletir mais
profundamente sobre suas próprias construções e atividades”.
O estudo histórico-epistemológico proporciona a discussão sobre a
problemática em que um conceito se insere quando está sendo constituído ou
evoluindo. Dessa forma, um estudo assim mostra às controvérsias, as
hesitações, as dúvidas. Esses elementos nos fazem compreender como ocorre o
desenvolvimento da ciência e num processo de investigação torna-se importante
para prosseguirmos no desenvolvimento de uma nova abordagem ou em uma
conceituação que melhor se adapte à nossa realidade.
No processo de investigação desse período rico da Matemática,
presenciamos algumas mudanças significativas como: a noção de axioma, a
abordagem analítica dos objetos, a constituição de um objeto matemático.
Os axiomas deixam de ser verdades evidentes, imutáveis e necessárias
para apreensão dos conceitos, passando a ser premissas do discurso
matemático, assumidas por convenção, não sendo nem verdadeiras nem falsas.
128
A Matemática era até o século XIX realizada sob um aspecto sintético, isto
é, partia da intuição e seguia construindo os conceitos, mostrando assim que o
contexto do desenvolvimento histórico-primitivo dos conceitos era relevante.
Hölder acredita ser esta a melhor forma de descrever os objetos matemáticos e
mostra sua construção dos naturais, partindo de uma seqüência preestabelecida
0, 1, 2, 3,.... para derivar e provar as propriedades e relações pertinentes ao
conceito de número natural.
A abordagem analítica pressupõe outro caminho; um exemplo é a proposta
que Hermann Grassmann (1861) traz para a Matemática quando partindo de uma
operação, x + 1, derivou todas as leis e propriedades aplicadas aos números
naturais.
Esta mudança na forma da abordagem dos conceitos foi discutida por
Boutroux (1920). Acreditava que essa forma (como proposto por Grassmann)
não feria os fundamentos dos conceitos, como considerado por Hölder, desde
que os recursos utilizados fossem vistos como uma linguagem. Assim sendo, ele
cita que “a Álgebra e as proposições gicas o apenas a linguagem na qual se
traduz um conjunto de noções e de fatos objetivos”. (BOUTROUX, 1920 apud
PALARO, 2006, p. 34)
O fato de a Matemática ter ser tornado uma ciência analítica, tendo por
fundamento o pensamento conceitual como defendido por Grassmann, foi o que
possibilitou dar ao número natural o status de objeto matemático, com isso o
número torna-se um sujeito de transformações.
Outro fato importante foi a convergência no final do século XIX, para os
fundamentos da Matemática, devido a densidade com a qual os conceitos se
desenvolviam. Isso ocorreu tanto na Geometria como na Álgebra e na Análise.
Isso fez com que os matemáticos imergissem nas questões dos fundamentos,
pois buscavam uma base consistente, capaz de sustentar praticamente toda
Matemática. Nessa busca, concluíram que a Matemática fundamenta-se no
sistema mais simples dela, a saber, o sistema dos números naturais.
129
A constatação pelos matemáticos, no final do século XIX, que a base da
Matemática repousa nos números naturais, faz nos lembrar do pensamento de
Poincaré, quando diz: é das hipóteses simples que mais devemos desconfiar;
porque são aquelas que têm mais possibilidades de passarem desapercebidas.
De fato, o número sempre foi um conceito simples e utilizado pela humanidade
sem questionamento.
Os objetos matemáticos são suscetíveis de mudanças e dessa forma o
notável crescimento dos conceitos matemáticos fez com que os matemáticos
buscassem uma construção rigorosa de descrição, mostrando que eram
consistentes e, conseqüentemente, dignos de confiança. Parece ser esta a
grande preocupação no final do século XIX, garantir a confiabilidade dos
conceitos que estavam surgindo.
Este estudo mostra que houve mudança de concepção em relação à
noção de axioma, sem a qual a axiomatização da Aritmética não seria possível.
Axioma deixa de ser uma verdade evidente, como visto na Antiguidade e passa a
ser assumido por convenção, como fundamento ou premissas do discurso
matemático, eles deixam de ser verdades imutáveis e não são nem falsos nem
verdadeiros. Entretanto, um sistema axiomático deve atender aos seguintes
aspectos: consistência, isto é, não podem contradizer uns aos outros por si
mesmos ou por suas conseqüências; completo, o que significa dar conta de
provar ser verdadeiras ou falsas todas as proposições formuladas no contexto da
teoria em questão; e por fim, ser independente e elegante, refere-se à
irredutibilidade recíproca, isto é cada axioma deve ser independente dos demais,
no sentido de que não é conseqüência deles, e elegância significa número
mínimo possível de axiomas. Peano, discípulo de Grassmann apresentou um
sistema assim.
Os estudos do período da axiomatização da Aritmética, em uma
perspectiva histórico-epistemológica do conceito de número, revelam que para
apreensão do objeto de estudo nesse caso, número as noções extensional e
130
intensional da complementarista
70
é uma exigência intrínseca no processo de
aprendizagem do conceito.
A noção extensional era o que guiava a sua aplicação, por isso,
matemáticos usavam-no sem grandes problemas, pois o interesse que se tinha
era de dar uma aplicabilidade ao conceito, entretanto, a partir da constituição do
objeto número , a noção intensional fez-se presente. Ela surge com os trabalhos
de Grassmann, pois aborda o conceito número especificando as relações e
propriedades verificadas na teoria do conceito.
Nesse sentido até Hölder entende que o conceito – número – não pode ser
definido apenas segundo um aspecto ou outro, para ele era importante o aspecto
extensional, mesmo assim, admitiu que a abordagem de Grassmann atendesse
aos dois aspectos, pois assumiu poder interpretá-la sinteticamente e a
analiticamente.
Dessa forma, abordar número analiticamente faz corresponder a
perspectiva intensional, enquanto na interpretação sintética corresponde a noção
extensional.
Podemos mencionar que, a abordagem axiomática do conceito de número,
contribuiu para a evolução de uma série de áreas científicas entre elas a Álgebra
Linear e a Análise as quais dependem desse conceito. A Álgebra Linear requereu
para seu desenvolvimento e apreensão, o rigor e o formalismo, iniciado com os
trabalhos de Grassmann e consolidado com Hilbert.
A possibilidade de Grassmann ter visto em 1844, a Ciência Matemática
como uma ciência analítica é grande. Entende-se agora sua rejeição ao uso da
noção de axiomas, no sentido de Euclides, em ciências formais. Para ele o
desenvolvimento da Álgebra Abstrata foi o caminho que conduziu à
axiomatização da Aritmética, pois as expressões contidas nela tinham o
fundamento no pensamento conceitual.
70
Complementaridade ver (OTTE, 2003, p.203-228)
131
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coordenada e revista por Alfredo Bosi. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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137
ANEXO I
TRADUÇÃO DO PRÓLOGO E INTRODUÇÃO DA OBRA
DE HERMANN GRASSMANN
A Teoria da Extensão
71
Nova disciplina Matemática exposta e esclarecida mediante
aplicações
Hermann Grassmann
Prólogo
Designa-se esta obra, cuja primeira parte trago a conhecimento do público,
como exposição de uma nova disciplina Matemática e ela somente pode estar
justificada por si mesma. Desistindo, portanto, de toda outra justificativa, passo
diretamente a expor o caminho a que cheguei, passo-a-passo, aos resultados
aqui expostos, mostrando ao mesmo tempo, uma forma resumida da extensão
71
Título original: Teoría de la extensión. Nueva disciplina matemática expuesta y aclarada mediante
aplicaciones. Trad. Emilio Oscar Roxin
138
dessa nova disciplina. Encontrei a primeira iniciativa ao considerar o negativo na
Geometria; acostumei-me a considerar os segmentos AB e BA como dimensões
opostas, do que resulta que se A,B,C são pontos de uma mesma reta, verifica-se
sempre que AB + BC = AC, tanto se AB e BC têm sentidos iguais, como também
no caso de terem sentidos opostos, isto é, C está entre A e B. No último caso,
não se pode considerar AB e BC como simples comprimentos, mas é necessário
considerá-los dotados de sentido, favorecendo a que são precisamente opostos.
Prevalece, conseqüentemente, a distinção entre a soma dos comprimentos e a
soma de tais segmentos em que se considera sua direção. Sendo assim, é
necessário determinar o conceito de soma não somente para o caso dos
segmentos que tenham sentido igual ou oposto, mas, também para qualquer
outro caso. Isto pode ser feito da maneira mais simples mantendo a lei de que
AB + BC = AC, ainda no caso em que A,B,C não estejam alinhados. Este foi o
primeiro passo para uma análise que me levou posteriormente para o novo ramo
da Matemática aqui exposta. Não presumia então a que terreno fecundo e rico
havia chegado; antes, o resultado parecia-me de pouca importância, até o
momento em que eu o relacionei com uma idéia semelhante. Examinando o
conceito de produto na Geometria, tal como havia sido concebido por meu pai
72
,
cujo resultado revela que se deve considerar não o retângulo, mas também o
paralelogramo, em geral, como produto de seus 2 lados consecutivos, se não se
considera o produto dos comprimentos, mas o de ambos os segmentos
considerando suas direções. Relacionando, agora, este conceito de produto com
o anterior da soma, resultou na mais completa harmonia, porque, se em vez de
multiplicar no sentido recém-estabelecido, a soma de 2 segmentos por um
terceiro no mesmo plano, também tomada em um novo sentido, multiplicava
separadamente somando-os pelo mesmo segmento, adicionando os produtos,
considerando seus sinais, obteria, em ambos os casos, o mesmo resultado, e era
forçoso que isso acontecesse. Essa harmonia me fez suspeitar de que aqui se
abriria um campo de análise completamente novo, que poderia levar a resultados
importantes. Não obstante, por minha profissão me levar a atividades distintas,
fiquei com essa idéia oculta durante certo tempo. A princípio, também me
surpreendeu o resultado curioso de que para essa nova multiplicação existem as
72
Ver: J.G.GRASSMANN, RAUMLEHRE,segunda parte, página 194 e sua trigonometria, p.10.
139
demais leis do produto ordinário, em especial sua relação com a soma, mas que
somente se podem somente trocar os fatores trocando, ao mesmo tempo, o sinal
( permutando + por e vice-versa). Um trabalho sobre a teoria da maré que
empreendi mais tarde me levou à Mecânica Analítica, de La Grange, e, com isso,
àquelas idéias da análise. Todo o desenvolvimento daquela obra se transformava
de tal maneira, mediante os princípios dessa nova análise, que eram muito mais
simples, e o cálculo era, às vezes, mais de dez vezes mais breve do que era
naquela obra. Isto me animou para aplicar a nova análise à difícil teoria da maré.
Para isso, foi necessário desenvolver novos conceitos múltiplos e introduzi-los na
análise; em particular, me levou ao conceito de rotação ao considerar a
magnitude exponencial geométrica, a análise dos ângulos e das funções
trigonométricas, etc.
73
Tive a alegria de ver como, por meio da analise assim
desenvolvido, não se transformavam as fórmulas assimétricas e muito
complicadas em que se baseia está teoria
74
, nas rmulas simétricas é muito
simples, mas que também os desenvolvimentos resultavam sempre paralelos ao
conceito. Com efeito, não somente podia expressar cada fórmula que se
encontrava no desenvolvimento, em forma muito simples mediante palavras,
expressando assim, cada vez, alguma lei, mas que cada passo de uma fórmula à
seguinte parecia somente como uma expressão simbólica de um
desenvolvimento conceitual paralelo. No todo comum, a idéia torna-se
completamente obscura pela introdução de coordenadas arbitrárias, que nada
têm a ver com o problema, enquanto que o cálculo é um desenvolvimento formal
mecânico, que nada oferece ao espírito, e, em conseqüência, o aniquila. Ao
contrário, aqui, onde a idéia por nada obscurecida, aparece através de todas as
fórmulas em toda sua clareza, também o espírito do desenvolvimento conceitual
aparecia no desenvolvimento de cada fórmula. Em vista desse êxito, pensei que
podia abrigar a esperança de ter encontrado nessa nova análise o único método,
segundo o qual deve desenvolver-se toda aplicação da Matemática à natureza,
método segundo o qual também se deve tratar a Geometria a fim de chegar a
resultados gerais e frutíferos
75
. Então madureceu minha decisão de fazer a
73
Ver também mais adiante.
74
Ver La Place, Mec. C´leste, livro 4º.
75
Com efeito, se viu rapidamente como, mediante essa análise, desaparece completamente a diferença entre
os métodos analíticos e sintéticos de tratar a Geometria.
140
descrição, ampliação e aplicação dessa análise uma obra de minha vida.
Dedicando, desde então, todo meu tempo livre a essa tarefa, preenchi pouco a
pouco as lacunas que meus trabalhos anteriores continham. Deste modo,
também cheguei à conclusão, como exposto nessa obra, que se pode adotar
como soma de vários pontos o baricentro deles, como produto de 2 pontos o
segmento que os une, e produto de 3 pontos a superfície (triangular) limitada por
eles e o de 4 pontos o espaço delimitado por eles (a pirâmide). O conceito de
baricentro como soma induziu-me a comparar o Cálculo baricentrico de Möbius,
obra que até então conhecia pelo título; com grande alegria encontrei aqui o
mesmo conceito de soma de pontos ao que me haviam levado os
desenvolvimentos. Havia chegado, assim, ao primeiro e, como se viu mais tarde,
também ao último ponto de contato que apresenta a nova análise com coisas
anteriormente conhecidas. Como o conceito de produto de pontos não aparece
naquela obra, e como inicia há pouco com este conceito, combinado com o de
soma, o desenvolvimento da nova análise não podia esperar encontrar ali alguma
ajuda para meu propósito. Começando, pois, a repassar os resultados obtidos
até então, em forma conexa e começando do princípio, sem basear-me em
nenhum teorema demonstrado em algum outro ramo da Matemática, resultou que
a análise que havia feito não correspondia unicamente, como me parecia a
princípio, ao campo da Geometria, mas que havia chegado a uma nova ciência,
de que a Geometria somente era uma aplicação particular. muito tempo,
me havia convencido de que a Geometria não deveria ser considerada como um
ramo da Matemática, no sentido da Aritmética, ou da combinatória, posto que a
Geometria se refere a algo que nos é dado pela natureza (a saber: o espaço),
devendo existir um ramo da Matemática que desenvolve, de forma puramente
abstrata, leis análogas às que aparecem ligadas ao espaço na Geometria.
Mediante a nova análise se torna possível construir um ramo semelhante
puramente abstrato da Matemática; ainda mais, essa mesma análise,
desenvolvida de forma puramente abstrata e sem pressupor nenhum teorema
demonstrado em outras partes, é precisamente esse mesmo ramo. A vantagem
obtida com isso era que desapareceriam formalmente, todos aqueles postulados
que expressam propriedades intuitivas do espaço, resultando o princípio da
ciência tão imediato como o da Aritmética; e quanto ao seu conteúdo, em
141
compensação, desapareceria a restrição a 3 dimensões. Rapidamente, assim,
apareciam as leis em toda sua extensão e generalidade, aparecendo também
suas relações essenciais, e muitas conexões que, em 3 dimensões, permanecem
ocultas ou visíveis parcialmente, aparecem aqui claramente em toda a sua
generalidade. Posteriormente, também vi que, com as correspondentes
definições que se encontram na obra, pode considerar-se: o ponto a intersecção
de 2 retas, a reta intersecção de 2 planos e o ponto intersecção de 3 planos
como produto daquelas retas ou planos
76
, de onde resultava uma teoria muito
simples e muito geral das curvas
77
. Passei, então, a fundamentar e generalizar
aquilo que deixei para a segunda parte desta obra, a saber, tudo o que
pressupõe o conceito de rotação ou de ângulo. Como essa segunda parte com
que terminará a obra deverá ser impressa brevemente, parece-me conveniente
para a apreciação do conjunto, expor aqui, de forma mais precisa, alguns
resultados para apreciação no futuro. Para isto, devo indicar, primeiramente, os
resultados que haviam aparecido antes da revisão completa. Disse que como
produto de 2 segmentos pode considerar-se o paralelogramo, se, como sucederá
sempre, considerarmos a direção dos segmentos; mas esse produto se
caracteriza pelo fato de que os fatores somente podem ser permutados com a
mudança do sinal, sendo, evidentemente, igual a zero o produto de 2 segmentos
paralelos. Semelhante a esse conceito existe outro que também se refere aos
segmentos dirigidos. Se projetar um segmento perpendicularmente a outro, o
produto aritmético destas projeções pelo segmento sobre o que se havia
projetado também é um produto daqueles 2 segmentos, porquanto é válida para
ele a relação multiplicativa com a soma. Mas este produto é completamente
diferente do primeiro: seus fatores podem permutar-se sem mudança de sinal e o
produto de 2 segmentos perpendiculares é zero. Chamei de produto exterior ao
primeiro e produto interior a este último, porque aquele é diferente de zero
quando as direções dos segmentos divergem, ao contrário, este último só quando
ambas as direções se aproximam. Este conceito de produto interno, que havia
aparecido como essencial ao estudar a Mecânica analítica me levou ao conceito
76
Ver capítulo terceiro do segundo fragmento.
77
Ver esse mesmo capítulo.
142
de comprimento absoluto
78
. Da mesma maneira, a magnitude exponencial
geométrica havia resultado no estudo da teoria de fluxo e refluxo. Se ao
representar um segmento (fixado em direção e dimensão) e β um ângulo ( fixado
também seu plano de rotação), resulta por razões cuja explicação levar-me-ia a
demasiados eixos, que a. e
β
, que pode ser considerado como a base natural dos
logaritmos, representa o segmento que é obtido fazendo girar a de um ângulo β;
isto é, a. e
β
representa o segmento de giro de um ângulo β. Se Cos β , em que β
expressa um ângulo no sentido geométrico, representa o mesmo número que cos
βem que βé um arco correspondente ao ângulo y medido pelo raio: resulta
aquele conceito de magnitude exponencial, que
79
Cos β = e
β
+ e
β
2
Analogamente, se Sen β representa a dimensão que multiplicada por um
segmento o faz girar de 90º no sentido do ângulo β , modificando, ao mesmo
tempo, seu comprimento absoluto da mesma maneira que sen’, resulta
Sen β = e
β
- e
β
2
obtendo-se assim a equação
Cos β + Sen β = e
β
Todas as equações mostram a mais surpreendente analogia com as
expressões imaginárias conhecidas.
Até aqui se trata de conceitos anteriores. Tratando agora de generalizar
esses resultados, ampliei primeiro o conceito de produto interior, analogamente
como havia ampliado o conceito de produto exterior, relacionando-o com as
78
Também esse conceito, por pressupor o de rotação, corresponde à segunda parte.
79
Com efeito, se AB ( figura l ) é o segmento primitivo, que girado do ângulo β passa à posição AC, girado
do ângulo – β, ao contrário, a posição AD, e se completamos o paralelogramo ACDE, resulta AE a soma
dos segmentos AC + AD, e a metade AF desta soma é o cosseno do ângulo β.
143
intersecções das retas e planos. Primeiramente, cheguei então ao conceito de
quociente de segmentos de direções distintas, entendendo por a/b, em que a e b
representam segmentos de direção distinta, mas de comprimento igual, aquela
dimensão que faz gira qualquer segmento do mesmo plano do ângulo ba (
(tomado desde b a a), resultando assim como deve ser (a/ b) . b = a . Disto se
deduz, imediatamente, o conceito de que a e b são comprimentos distintos.
Aquele simples conceito foi a origem de uma série de relações muito
interessantes. Primeiramente, resultou numa nova espécie de multiplicação
correspondente a esta divisão que se diferenciava de todas as anteriores pelo
fato de que esse novo produto podia ser zero se fosse zero um dos fatores,
enquanto, por outro lado, os fatores eram permutáveis . Em resumo, uma
multiplicação, em todas as suas leis, análoga à Aritmética comum. O conceito
dessa multiplicação obtém-se, facilmente, multiplicando progressivamente um
segmento por vários quocientes semelhantes, encontrando logo um quociente
único que pode representar todos esses fatores progressivos. De acordo com a
definição, é
e
ab
= b/a
sendo ab o ângulo de ambos os segmentos, que são de comprimentos iguais,
será também
log b/a = ab.
Além disso, se o ângulo ab é a m-ésima parte de ac, resulta
(a/b)
m
= c/a
Porque, aplicando sucessivamente m vezes um giro b/a a um segmento, este
permanece em giro total do ângulo c/a. Portanto, se o ângulo ab é a metade de
ac, será
(b/a)
2
= c/a, isto é ,b/a = c/a.
Se, em particular, b/a é o giro de um ângulo reto, correspondendo a c/a,
portanto a 2 retos, e como c = - a , isto é, c/a = -1, será b/a = -1, isto é,
multiplicando um segmento pela expressão -1, a princípio, permanece um giro
de 9em um sentido qualquer, mas, uma vez fixado este, sempre no mesmo
sentido. Este lindo significado de dimensão imaginária é completado pelo
resultado de que
144
e
β
e e
(β) -1
representam o mesmo valor, se β é o ângulo, (β), em compensação,
representa o arco correspondente dividido pelo raio. Com efeito, se obtém com
ele
e
x-1
+ e
-x -1
cos x =
2
como correspondente , e também
e
x-1
- e
-x -1
-1 sen x =
2
Fórmulas que, por conseqüência, têm um significado puramente
geométrico, pois e
x-1
é o
giro de um ângulo cujo arco, medido com o raio,
vale x. Assim, todas as expressões imaginárias têm um significado puramente
geométrico, sendo, portanto, representáveis por construções geométricas.
Permanecia também o ângulo determinado como logaritmo do quociente b/a, daí
seus infinitos valores para uma mesma posição dos segmentos. Inversamente,
também resulta que, mediante este significado das expressões imaginárias,
podem deduzir-se as leis da análise do plano, sendo, em compensação,
impossível deduzir, mediante as expressões imaginárias, as leis do espaço. Em
geral, os estudos dos ângulos no espaço apresentam tantas dificuldades que,
para solucioná-las totalmente, não encontrei, ainda, tempo suficiente.
Estes são mais ou menos os temas que reservei para a segunda e última
parte, pelo menos do que eu preparei até agora; com ela, esta obra terminará.
Não posso determinar, ainda, o tempo em que aparecerá essa segunda parte,
que os múltiplos trabalhos a que meu cargo atual me obriga não me dão a
tranqüilidade necessária para a revisão e estudo da mesma. o obstante, esta
primeira parte constitui um todo completo e independente, e acredito ser mais
conveniente explicitar esta primeira parte com suas aplicações correspondentes,
que ambas as partes juntas, mas separadas das aplicações.
145
Na exposição de uma nova ciência é absolutamente imprescindível, para
que se reconheça sua posição e seu significado, mostrar suas aplicações e sua
relação com temas análogos. Para isto, também deve servir a introdução. Esta é
de natureza bem mais filosófica e, ao colocá-la separada do conjunto de toda a
obra, minha intenção foi não aterrorizar os matemáticos com uma forma
filosófica. Porque existe, ainda, entre os matemáticos, e em parte não sem razão,
certa aversão às especulações filosóficas sobre os objetos matemáticos ou
físicos; com efeito, a maioria de tais estudos, sobretudo os realizados por Hegel e
sua escola, são de uma arbitrariedade e falta de clareza que anulam todos os
frutos dos mesmos. Apesar disso, creio ser necessário assinalar a posição da
nova ciência dentro do campo do conhecimento e, para satisfazer a ambas as
exigências, eu fiz esta obra preceder por uma introdução que pode ser passada
por alto, sem que isso prejudique muito a compreensão do todo. Também quero
ressaltar que, entre as aplicações, podem pular aquelas que se referem a objetos
da natureza (física, cristalografia) sem prejudicar com isso a continuidade do
desenvolvimento. Mediante as aplicações da física, creio ter mostrado a
importância, ou melhor, a necessidade da nova ciência e sua análise. Algumas
vezes, penso demonstrar que, em sua forma concreta, isto é, aplicada à
Geometria, esta ciência é um excelente tema de instrução, possível de ser
tratado de forma completamente elementar; nesta obra, em conseqüência de sua
finalidade, não cabe tal demonstração. Principalmente, é absolutamente
necessário adotar o conceito de soma e de produto de segmentos,
desenvolvendo suas leis principais, em um estudo elementar da estática, se
desejam obter-se resultados intuitivos e gerais (e representáveis mediante
construções gráficas). Estou convencido de que quem, ao tratar alguma vez de
conceber estes conceitos, não os deixará jamais.
Quando eu atribuir, conseqüentemente, toda a importância a esta nova
ciência, parcialmente tratada nesta obra, sem diminuir, de forma alguma, sua
posição no campo do conhecimento, não acredito que é possível eu ser
qualificado como uma pessoa vaidosa; porque a verdade exige seus direitos; ela
não é a obra daquele que a descobre ou indica sua importância; ela existe em si
mesma; e restringir-lhe os direitos, em virtude de uma falsa modéstia, é uma
146
traição à verdade. Ao contrário, devo pedir indulgência para tudo aquilo que é
obra minha, pois estou consciente de que, apesar de todo o empenho que
coloquei na forma de apresentá-la, ela é muito imperfeita. Desenvolvi a obra
várias vezes, de diferentes maneiras, seja na forma euclidiana com definições e
teoremas rigorosos, seja na forma de um desenvolvimento que a máxima
importância à clareza e à facilidade de compreensão, seja misturando ambos os
caminhos, dando primeiro a descrição de fácil compreensão e, em seguida, o
desenvolvimento na forma euclidiana. Estou certo de que, se fizesse uma nova
revisão, apareceriam algumas coisas de melhor forma, isto é, em parte com mais
rigor, em parte mais fácil de compreender. No entanto, estando convencido de
que com o todo não chegaria à completa satisfação, e que, em comparação com
a simplicidade da verdade, a exposição sempre será pobre, decidi publicar a
forma que, atualmente, acredito ser a melhor. Também é motivo de esperar
indulgência, o fato de que o tempo de que disponho é breve e esporádico, em
virtude do cargo que ocupo, e o tal cargo tampouco me a oportunidade de
receber notícias do campo dessa ciência ou, ainda, de assuntos relacionados
com ela, o que representa a frescura que, como um sopro vital, deve animar ao
todo para que este apareça como um membro vivente do organismo que é o
conhecimento. Ainda que uma atividade nas comunicações dessa ciência seja o
trabalho mais apropriado para mim, creio que não devia esperar isso com a
publicação desta obra, apesar de ser esse o meu maior desejo e tenho a
esperança de poder alcançar esta meta mediante a publicação dessa primeira
parte.
Stettin, 28 de junho de 1844.
Introdução
A. Dedução do conceito de Matemática pura
147
1. A primeira divisão de todas as ciências as classifica em reais e
formais: as primeiras são aquelas que reproduzem no pensamento o ser que é
independente ao pensamento, e sua verdade reside na coincidência do
pensamento com o ser. As segundas, em compensação, têm por objeto o que é
formado pelo pensamento, e sua verdade reside na concordância dos processos
mentais entre si.
Pensar se pode em relação a algum ser, que se
enfrenta e é reproduzido pelo pensamento, mas este ser é,
nas ciências reais, algo independente, existente por si fora do
pensamento; e nas ciências formais, ao contrário, algo
formado pelo pensamento, que faz o papel do ser para um
segundo ato de pensar. Se a verdade consiste, de maneira
geral, na coincidência do ser com o pensar, então consiste
em especial nas ciências formais, na coincidência do
segundo ato de pensar com o formado pelo primeiro, isto é,
na coincidência de ambos os atos do pensamento.
Conseqüentemente, nas ciências formais, a demonstração
não excede os limites do pensamento nem entra em outros
campos, consiste, pois, puramente na combinação dos
distintos atos do pensamento. Essa é a razão pela qual as
ciências formais não devem basear-se em postulados, como
as reais; sua única base são as definições
80
.
2. As ciências formais estudam ora as leis gerais do pensar, ora do
particular gerado pelo pensamento. O primeiro corresponde à Dialética (Lógica)
e o último à Matemática.
O contraste entre o geral e o particular cria a divisão das
ciências formais na Dialética e na Matemática. A primeira é
uma ciência filosófica, pois busca a unidade de todos os
pensamentos. A Matemática, em compensação, tem sentido
80
Se, apesar disto, se têm introduzido postulados nas ciências formais, por exemplo, na Aritmética, deve ser
um abuso que só se pode explicar pelo tratamento análogo da Geometria. Sobre isto, veremos mais adiante
com maior atenção. É suficiente aqui demonstrar a necessidade da ausência de postulados nas ciências
formais.
148
oposto, considerando o pensado isoladamente como algo
particular.
3. A Matemática pura é, portanto, as ciências do ser particular gerado
pelo pensamento. Ao ser particular, concebido nesse sentido, o chamaremos
forma do pensamento, ou simplesmente forma. A Matemática é, por
conseqüência, a teoria das formas.
O nome da teoria das magnitudes não serve para todos os
ramos da Matemática, devido não ser aplicável a uma delas,
a combinatória, sendo aplicável à Aritmética somente num
sentido impróprio
81
. Em compensação, parece ser a
expressão forma, demasiadamente ampla, sendo melhor o
nome forma do pensamento; no entanto a forma, em seu
significado puro, abstraída de todo o conteúdo real, não é
outra coisa que a forma do pensamento, sendo, portanto
conveniente esse nome. Antes de passar para a divisão da
teoria das formas, devemos excluir um ramo até agora
incluído erroneamente nela, a saber, a Geometria. O conceito
acima estabelecido evidencia que a Geometria, ou mesmo a
mecânica, se baseiam em um ser real, que para a Geometria
é o espaço. O conceito de espaço evidentemente não pode
ser gerado pelo pensamento, opondo-se em compensação
como algo dado. Quem quiser afirmar o contrário, deverá
demonstrar a necessidade das três dimensões no espaço a
partir das leis do pensamento, problema cuja solução ver-se
imediatamente que é impossível. Se apesar disto quisermos
estender o nome de Matemática também para a Geometria,
poderíamos fazê-lo, mantendo por outro lado o nome de
teoria das formas ou algo análogo, mas neste caso poderia
predizer desde que, havendo incluído abaixo disso nome
de coisas tão heterogêneas , esse nome resultaria supérfluo
81
O conceito de magnitude é representado na Aritmética pelo número; o termo diferencia, pois, entre
aumentar e diminuir que se referem ao número, e para ampliar e reduzir que se referem aos valores.
149
e seria rejeitado com o tempo. A posição da Geometria a
respeito da teoria das formas depende da relação em que a
intuição do espaço se faz com respeito ao pensamento puro.
Se bem temos dito que essa intuição do espaço se antepõe
ao pensamento como algo independente, isso não equivale a
afirmar que ela nos é dada recém pela observação das
coisas espaciais; ela é uma intuição básica que nos tem sido
dada, igual como à sensibilidade de nossos sentidos para
com o mundo sensível, e que, portanto está tão unida a nós
como o corpo a alma. O mesmo pode dizer a respeito do
tempo e do movimento, baseado nas intuições do espaço e
tempo, razão pela qual a teoria pura do movimento (
forometria ou cinemática) se tem considerado, com a mesma
razão que a Geometria, pertencente as ciências Matemáticas.
Da intuição do movimento nos vem, mediante o contraste de
causa e efeito, o conceito de força motora, aparecendo
assim a Geometria, cinemática e mecânica como aplicação
da teoria das formas às intuições fundamentais do mundo
sensível.
B. Dedução do conceito da teoria da extensão
4. Tudo aquilo que é produto do pensamento (ver 3) pode ter sido
gerado de duas formas: ou bem por um simples ato de criar, ou por um duplo ato
de justapor e combinar. “O gerado pelo primeiro método é a “forma contínua” ou
magnitude” no sentido restrito; o gerado pelo segundo método, a forma discreta
ou de concatenação.
O conceito simples de geração nos a forma contínua.
No caso da forma discreta, aquilo que foi gerado antes da
concatenação, também o foi pelo pensamento, mas aparece
com referência ao ato da concatenação como algo dado, e a
maneira como se forma, a partir do existente, a forma
150
discreta, é simplesmente um ato de pensar junto os
elementos. O conceito de geração contínua se vê, mais
claramente, se a princípio a supõe análoga à geração
discreta que é mais simples. Porque, na geração contínua, se
retém o gerado e, enquanto se vai gerando, é pensado junto
com o que gera no mesmo instante de sua criação: dessa
maneira, se pode distinguir conceptualmente para a forma
contínua, analogamente à discreta, um duplo ato de criação e
concatenação, mas ambos reunidos aqui em um ato, e,
portanto, em uma unidade inseparável, porque os dois
membros que se concatenam (adaptando-se
momentaneamente este vocábulo por analogia com a forma
discreta), um foi criado antes, mas o outro é criado ao
mesmo tempo em que é concatenado, isto é, não existia
antes do ato da concatenação. Portanto, ambos os atos, de
criar e de concatenar, confundem-se completamente, não se
podendo concatenar antes de criar, nem criar antes de
concatenar, ou melhor dizendo: o que se vai gerando se cria
aderido ao preexistente, e o instante da geração aparece
como um crescimento.
O contraste entre contínuo e discreto é (como todo
verdadeiro contraste) questão de interpretação, podendo-se
considerar o discreto como contínuo e o contínuo como
discreto. O discreto se pode considerar contínuo se o
concebe concatenado como algo novo e a ação de
concatenar como o momento da criação. O contínuo se
considera discreto se se concebem os distintos momentos da
criação como simples atos de concatenação, e o resultado
dessa concatenação se considera como elemento
preexistente para o seguinte ato de concatenação.
151
5. O particular (Nº3) resulta tal mediante os conceitos de distinção, por
meio dos quais se contrapõe a outras idéias particulares e de igualdade,
mediante ao qual se subordina junto com outras idéias particulares à idéia mais
geral. Chamaremos forma algébrica ao que resulta da justaposição do igual, e
forma combinatória ao que resulta do distinto.
O contraste entre o igual e o diferente também é relativo.
O igual é distinto pelo fato de que existe algo que distingue
um do outro (já que sem esta distinção seria um e não
dois iguais); o distinto é igual devido à atividade que relaciona
ambas as idéias, aparecendo estas como uma reunião.
Isso não quer dizer que ambas as idéias se confundam de tal
maneira que se possa medir o quanto contêm de igual e de
distinto, apenas que se o igual pressupõe, de certa maneira,
o distinto e vice versa, é somente uma de ambas as relações
o objeto de nossa atenção em um dado instante, enquanto a
outra só aprece como uma condição implícita indispensável.
Assim, entendemos a forma algébrica como não o
número, mas também o que corresponde ao campo do
contínuo e a respeito da forma combinatória não a
combinação, mas também o correspondente no contínuo.
6. Entrecruzando-se ambos os contrastes, dos quais o primeiro se
refere à forma de geração e o último aos elementos ou objetos da geração em si,
resultam quatro espécies de formas e seus correspondentes ramos da teoria das
formas. Segundo isso, divide-se a forma discreta em numero e combinação
(ligação). O número é a forma algébrica discreta, isto é, é a reunião do que é
considerado como igual. A combinação é a forma discreta combinatória, isto é, a
reunião do que é considerado como distinto. As ciências do discreto o,
portanto, a teoria dos meros (Aritmética) e a teoria das combinações
(combinatória).
152
É evidente que a definição de número e de combinação
permanece assim estabelecida de modo completo e preciso e
o mesmo acontece com a combinação. E como os contrastes
de que resultam as definições anteriores são os mais simples
inerentes ao conceito de forma Matemática, se pode admitir
que a definição feita esteja justificada.
82
Desejo observar,
ainda, como este contraste entre ambas as formas se
expressa de uma maneira muito pura pela diferente
denominação de seus elementos, expressando-se o reunido
que forma o número, por um só sinal (1), em compensação, o
reunido para formar a combinação, por sinais diferentes e
arbitrários (as letras da álgebra). Não é necessário mencionar
como se pode considerar, segundo o ponto de vista adotado,
todo o conjunto de objetos (diversidades) seja como número
ou como combinação.
7. Da mesma maneira se classifica a forma contínua ou magnitude em
forma algébrica contínua, ou seja, a magnitude intensiva e a forma contínua
combinatória, ou seja, a magnitude extensiva. A magnitude intensiva resulta,
pois, da geração do igual, e a magnitude extensiva ou extensão da geração do
distinto. Aquela é, como magnitude variável, o fundamento da teoria das funções
e do cálculo diferencial e integral; esta, em compensação, o fundamento da teoria
da extensão.
Destas duas áreas, a primeira está subordinada à
Aritmética e, por isso, é bastante conhecida, enquanto a
segunda aparece como uma área ainda desconhecida, e é
necessário explicar mais estas considerações, dificultadas
ainda pelo conceito do contínuo fluir. Tal como no número
aparece a uniformidade e na combinação a diversidade das
idéias reunidas, assim também na magnitude intensiva a
82
O conceito de número e combinação já foi desenvolvido de forma análoga há 17 anos por meu pai em uma
dissertação sobre o conceito da teoria pura dos números, que se encontra impressa no programa do
“Gymnasium” de Stettin em 1827, que, no entanto, não se divulgou mais.
153
reunião de seus elementos que, embora conceitualmente
sigam separados, é, na sua essencial igualdade, que
constituem a magnitude intensiva. Em compensação, na
magnitude extensiva aparece a separação de seus elementos
que, embora estejam reunidos para formar uma única
magnitude, é na sua separação que constituem a referida
magnitude. Portanto, a magnitude intensiva é o número
fluidificado e a magnitude extensiva é a combinação
fluidificada. Para esta última, é essencial a separação de
seus elementos e uma retenção destes como elementos
separados; o elemento gerador aparece aqui como um
elemento variável, vale dizer que passa por uma diversidade
de estados, e a totalidade destes estados distintos é
precisamente o sistema desta magnitude extensiva. Em
compensação, a magnitude intensiva se gera por uma série
contínua de estados iguais entre si, cuja quantidade é
precisamente a magnitude intensiva. Como exemplo de
magnitude extensiva, podemos eleger a linha limitada
(segmento), cujos elementos estão essencialmente
separados, constituindo precisamente por isso a reta como
extensão; em compensação, como exemplo de magnitude
intensiva, podemos tomar um ponto dotado de certa força;
aqui os elementos não se separam e se reforçam e
representam, portanto, distintos graus de intensificação.
Também aqui se nota, de maneira muito linda, a diferença
estabelecida na denominação: na magnitude intensiva que é
o objeto da teoria das funções não se distinguem os
elementos por sinais particulares e onde aparecem sinais
especiais estes se referem à magnitude variável completa.
Em compensação, na magnitude extensiva ou na sua
representação concreta, a reta, se representam os
elementos distintos por símbolos distintos ( letras), o mesmo
que na combinatória. Também é claro que toda magnitude
154
real pode ser considerada de ambas as maneiras, como
magnitude intensiva ou extensiva; também a reta é
considerada magnitude intensiva, se não levarmos em conta
a maneira como estão dispostos seus elementos e somente
se considera a quantidade deles; analogamente, se pode
pensar o ponto dotado de uma força como uma magnitude
extensiva, para o qual é suficiente imaginar a força abaixo da
forma de uma reta.
Historicamente se têm desenvolvido os quatro ramos da
Matemática, o discreto antes do contínuo (por ser mais
facilmente captado pelo espírito analítico), o algébrico antes
do combinatório (porque é mais fácil reunir o semelhante do
que o diverso). Ainda que a teoria dos números seja a mais
antiga, a combinatória e o cálculo diferencial foram formados
ao mesmo tempo, enquanto a teoria da extensão, em sua
forma abstrata, teve que ser a última, por outro lado, sua
representação concreta (ainda que limitada), a teoria do
espaço, já pertence a tempos mais antigos.
8. Pode-se antepor aos quatro ramos da teoria das formas, uma parte
geral que estuda as leis de ligações comuns aos quatros ramos e que podemos
denominar a teoria geral das formas.
É essencial antepor essa parte ao conjunto, não somente
para economizarmos a repetição dos mesmos
desenvolvimentos nos quatro ramos e nas partes distintas de
um mesmo ramo e reduzir com isto as deduções, mas
também para juntar a semelhança que aparece como base
fundamental do conjunto.
C. Exposição do conceito da teoria da extensão
155
9. A geração contínua decomposta em seus momentos aparece como
uma criação contínua contendo o criado. Na forma extensiva, é concebido o
elemento criado como algo distinto; se agora não deduzirmos o criado a cada
instante, chegamos ao conceito de variação contínua. O que experimenta esta
variação o denominamos de elemento gerador, e este elemento gerador, em
algumas das formas que toma durante sua variação, um elemento da forma
contínua. Segundo isso, podemos considerar a forma extensiva como o conjunto
de todos os elementos que coincide com o elemento gerador durante a variação
contínua deste.
O conceito de variação contínua do elemento só pode
distinguir-se nas magnitudes extensivas; nas magnitudes
intensivas, se suprimimos cada vez o criado, somente é
deixado em cada momento o começo de um ato da geração
como algo completamente vazio.
Na teoria do espaço, o ponto aparece como elemento, o
deslocamento ou movimento como sua variação contínua e
as diferentes posições do ponto no espaço como seus
diferentes estados.
10. O diferente deve desenvolver-se segundo uma lei, se o resultado
deve ser algo determinado. Esta lei deve ser, para obter uma forma simples, a
mesma em todos os momentos da geração. A forma extensiva simples é, pois, o
resultado da variação do elemento gerador segundo uma única lei; o conjunto de
todos os elementos gerados por certa lei será chamado de sistema.
Como o diferente de algo dado pode ser infinitamente
variado, resulta que a diversidade se perderia
completamente no indeterminado, se não se subordinasse
a uma certa lei. Na teoria pura das formas, esta lei não está
determinada por conteúdo algum, mas pela idéia
puramente abstrata de lei (uniformidade) que determina o
156
conceito de extensão, e a idéia de uma única lei para todos
os instantes da variação, o conceito de extensão simples.
De acordo com isso, a extensão simples tem uma
conformidade de modo que se um de seus elementos, a, se
obtém outro elemento b da mesma extensão, por meio de
certa variação, então de b, por meio da mesma variação, se
obtém um terceiro elemento c e que também lhe pertence.
Na teoria do espaço, é a lei da igualdade de direção que
compreende as variações individuais; o segmento é, pois,
na teoria do espaço, o que corresponde à extensão
simples, a reta infinita que corresponde ao sistema.
11. Aplicando duas leis de variações diferentes, obtém-se um sistema
de segundo grau como o conjunto de todos os elementos gerados mediante
ambas as leis. As leis pelas quais geram elementos do sistema a partir de outros
dependem das duas primitivas: aplicando uma terceira lei independente se chega
a um sistema de terceiro grau e assim sucessivamente.
Tomemos como exemplo, novamente, a teoria do
espaço. Nela são gerados mediante duas direções distintas
e a partir de um elemento, todos os elementos de um
plano, deslocando-se o elemento gerador em ambas as
direções arbitrariamente e reunindo-se conceitualmente o
conjunto de todos os pontos ou elementos assim gerados.
O plano é, pois, o sistema de segundo grau; e contém uma
quantidade infinita de direções que dependem das duas
primitivas. Adicionando uma terceira direção independente,
todo o espaço infinito é gerado com sua ajuda (como
sistema de terceiro grau); e além destas direções (leis de
variações) independentes não se pode aqui chegar,
enquanto que na teoria pura da extensão, a quantidade
delas se pode aumentar até o infinito.
157
12. Para sua determinação exata, a diversidade das leis necessita de
outra lei, através da qual vai de um sistema a outro. E a passagem de um
sistema a outros forma, portanto, uma segunda etapa natural no campo da teoria
da extensão e, com isso, fecha a descrição elementar desta ciência.
A teoria do espaço corresponde à passagem de um sistema a outros,
rotação, e com ela se relaciona a magnitude angular, o comprimento absoluto, a
perpendicularidade, etc.; o qual será incluído na segunda parte da teoria da
extensão.
D. Forma de representação
13. É próprio do método filosófico avançar nos contrates para ir do geral
para o particular; o método matemático, ao contrário, avança dos conceitos mais
simples para os mais complexos.Os conceitos mais gerais são adquiridos
mediante a conexão com o particular.
Isto é, enquanto que na filosofia predomina a visão do
conjunto e o desenvolvimento consiste na progressiva
ramificação e na decomposição do todo, aqui rege a conexão
com o particular e cada desenvolvimento encerrado é uma
ligação para a conexão seguinte. Essa diferença do método
baseia-se no conceito, pois para a filosofia a origem é a
unidade da idéia, porém, na Matemática, a origem é o
particular e a idéia é o alvo a que se aspira.
14. Como tanto a Matemática como a filosofia são ciências no sentido
mais estrito, deve encontrar-se algo comum no método de ambas que
precisamente caracteriza o método científico. Isto posto, chamamos científico um
desenvolvimento quando o leitor é levado, por um lado, necessariamente, ao
reconhecimento de cada uma de suas verdades e, por outro, quando o leitor é
158
capaz de prever de cada ponto do desenvolvimento a direção em que se seguirá
avançando.
Estarão todos de acordo de que necessidade
absoluta do primeiro, isto é, do rigor científico. Em relação
ao segundo, temos um ponto a que a maioria dos
matemáticos não atribui toda a sua importância. Vê-se, com
freqüência, demonstrações nas quais não se poderia saber
aonde se quer chegar, se o teorema não estiver enunciado
no princípio, chegando de repente ao que se tratava de
demonstrar, depois de ter pensado cegamente e sem saber
para que sobre cada passo. Tal demonstração talvez seja
perfeitamente rigorosa, mas não é científica, pois lhe falta a
segunda condição:a clareza. Portanto, quem segue tal
demonstração não atinge um livre conhecimento da
verdade, sempre que não consiga a visão de conjunto por
seus próprios meios,
cai em completa dependência da maneira especial com
que está sendo deduzida aquela verdade. Este sentimento
de falta de liberdade que aparece em tal caso é muito
desconfortável para aquele que está acostumado a pensar
livre e independentemente e a apreender o conhecimento
vivo. Se, ao contrário, o leitor tem a possibilidade de ver em
cada ponto do desenvolvimento a direção aonde se vai,
então dominará a matéria, não estará sujeito à forma
especial da descrição e a apreensão do conhecimento se
transforma em uma verdadeira reprodução.
15. Em cada ponto do desenvolvimento está determinado o
prosseguimento do desenvolvimento por uma idéia diretriz, que pode ser
somente uma suposta analogia com outros ramos conhecidos do conhecimento,
ou, e este é o melhor dos casos, que é diretamente uma intuição da verdade a
buscar em primeiro lugar.
159
A analogia somente é por referir-se a outros campos
do conhecimento, uma necessidade inevitável, salvo o caso
em que se trate precisamente de ressaltar a analogia entre
dois ramos do saber
83
. A intuição parece ser estranha à
ciência pura e,sobretudo,à Matemática. Não obstante, sem
ela seria impossível encontrar verdades novas: não se
chega a estas combinando cegamente os resultados
obtidos; o que se combina e a maneira de combinar devem
ser determinados por uma idéia diretriz, e esta idéia
somente pode aparecer, antes de ser comprovada
cientificamente, na forma de uma intuição.
Conseqüentemente, esta intuição é algo imprescindível
dentro da ciência. Ela é, sempre que for verdadeira, a
síntese de toda uma série de desenvolvimentos que levam
à nova verdade, síntese na qual não aparecem ainda
separados seus distintos passos e que, portanto, no
princípio é somente um obscuro pressentimento; ao
separá-lo, isto é, ao fazer a análise do desenvolvimento,
encontra-se a verdade e se realiza a crítica daquele
pressentimento.
16. A descrição cientifica é, conseqüentemente, uma combinação de
duas séries de desenvolvimentos, das quais uma representa o verdadeiro
conteúdo, nos leva com todo rigor de uma verdade à outra, em compensação,
domina o método e a forma. E na Matemática se nota, de maneira mais
acentuada, a separação entre ambas.
muito tempo, Euclides deu o exemplo, foi costume
na Matemática aparecer somente um de ambos os
sistemas de desenvolvimento, a saber, aquele que forma o
83
Este é o caso desta ciência com a Geometria que têm elegido, geralmente, a analogia como caminho de
descrição.
160
verdadeiro conteúdo deixando por conta do leitor o trabalho
de compreender (ler entre linhas) o outro. Desta maneira,é
impossível, por mais completa e perfeita que seja a
descrição dos desenvolvimentos, proporcionar àquele que
deseja aprender a ciência, a visão do conjunto a cada
instante do desenvolvimento, para tornar assim a
possibilidade de prosseguir livremente por seus próprios
meios. Para isto é necessário colocar o leitor, o quanto for
possível, no mesmo estado em que se encontrava o
descobridor da verdade. O descobridor da verdade reflete
constantemente sobre a seqüência do desenvolvimento;
forma-se em uma série de pensamentos acerca do
caminho que deve tomar e acerca da idéia fundamental em
que se baseia todo o desenvolvimento; esta série de
pensamentos forma o núcleo da verdade e o espírito de
sua atividade, enquanto o desenvolvimento conseqüente
das verdades é somente a materialização daquela idéia.
Pretender que o leitor prossiga independentemente o
caminho do descobridor, sem conduzir previamente tais
raciocínios significa colocá-lo acima do mesmo descobridor
da verdade, invertendo a relação existente entre o leitor e o
autor, resultando, neste caso, supérflua a redação da obra.
Esta é a razão pela qual alguns matemáticos modernos,
sobretudo os franceses, empenharam-se a entrelaçar
ambos os sistemas do raciocínio. As obras resultam assim
atraentes, porquanto o leitor se sente livre e não está
sujeito às formas, a que, em outro caso, deve subjugar-se
totalmente, por não dominá-las. Esta é a particularidade de
seu método (nº13), em que ambas as séries de raciocínio
se distinguem na Matemática de maneira mais clara. Como
elas avançam do particular por meio de uniões sucessivas,
resulta que a unidade da idéia é o final. Por isso, a segunda
série de desenvolvimento tem um caráter completamente
161
oposto ao da primeira, e é mais difícil que em qualquer
outra ciência entrelaçar ambas. Entretanto, não se deve por
isso renunciar a todo o procedimento, como fazem muito
sutilmente os matemáticos alemães.
Na presente obra, é seguido, conseqüentemente, o
caminho indicado, parecendo-me isso tanto mais
necessário por tratar-se de uma nova ciência, da qual se
deve entender principalmente a idéia diretriz.
162
ANEXO II
Reproduzimos a Tabela seguinte objetivando evidenciar o tratamento dado por Grassmann ao Grossenlehre.
Os termos usados por Grassmann para definir as operações não são possíveis de serem traduzidos em termos atuais
e eram desconhecidos até mesmo para os alemães de sua época. Ela nos possibilita notar a perspectiva estrutural-
algébrica, a qual permeia todo seu trabalho.
Operação
a o (b o e) = (a o b) o e
e denota uma
unidade arbitrária (
§30;
grundf.)
e
1
o e
2
=e
2
o e
1
e
1
e
e
2
denota
unidades arbitrárias
(§36 Grundf.)
µ
a( a o
µ
=
µ
o a = a)
µ
: nada
ändernde Gröse
(§ 40;Satz)
ν
a (a
o
ν
=
ν
o
a =
ν
);
ν
: nada;
änderbare
Gröse(§42;Satz)
a
o
b=a
o
c
b=c
b
o
a=c
o
a
b=c
w
o
a
ν
(§ 46;Satz)
Anreihung (§28)
Einigung (§29-34)
Vertauschung (§35-38)
Antrennung (§9-52:53-
54)
opcional
Eintrennung(§39-52:55-
60)
opcional
Abtrennung (§39-
52:61-68)
opcional
Propriedades básicas de uma operação binária entre magnitudes arbitrárias.
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