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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Maria Helena do Rego Monteiro de Abreu
Medicalização da Vida Escolar
RIO DE JANEIRO
2006
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2
Maria Helena do Rego Monteiro de Abreu
Medicalização da Vida Escolar
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre
em Educação.
Orientadora:Profa Dayse Martins Hora
RIO DE JANEIRO
2006
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3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS - CCH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
NOME DO CANDIDATO
Medicalização da Vida Escolar
Aprovado pela Banca Examinadora
Rio de Janeiro, ______/______/______
_____________________________________________________
Professora Doutora Dayse Martins Hora
Orientador – UNIRIO
_____________________________________________________
Professora Doutora Cecilia Maria Bouças Coimbra – UFF
______________________________________________________
Professora Doutora Ângela Maria Souza Martins – UNIRIO
4
M775 Monteiro Helena Rego
A medicalização da vida escolar /Helena Rego Monteiro. – 2006.
???f.
Orientador: Dayse Martins Hora.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
1. Educação – Filosofia. 2. Estudantes – Saúde e higiene - Aspectos
morais e éticos. 3. Distúrbios da aprendizagem – Filosofia. 4. Fracas-
so escolar. 5. Aprendizagem – Filosofia. 6. Drogas – Abuso. 7. Am-
biente escolar. 8. Professores e alunos. I. Hora, Dayse Martins. II.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Curso de
Mestrado em Educação. III. Título.
CDD – 370.1
DEDICATÓRIA
Por que um assunto nos pega? Por que escrevemos sobre certos assuntos? Para
responder a essa pergunta, faz-se necessário usar a primeira pessoa do singular. Usar
o Eu, mais como recurso para escrever do que como afirmação de individualidade.
Mesmo utilizando o Eu, devo avisar que não sou eu quem escreve. Eu sou muitas
pessoas, muitas vozes, muitas identidades que se misturam e dialogam entre si. Sou
“Helenas”, e as “Helenas” em mim falam de muitos lugares, de muitos caminhos
percorridos. A Helena mãe do Fernando confunde-se com a Helena alfabetizadora
que, por sua vez, esbarra-se com a Helena psicóloga. Há também a Helena poeta, a
mãe do Diogo e a aluna do curso de Pós Graduação em Educação.
Trabalhei com crianças durante quinze anos. Tive alunos de todos os jeitos, gostava
daquela diversidade: quietos, bagunceiros, sorridentes, tímidos... Trabalhava, com
eles, inspirada nas teorias da pesquisadora Emília Ferreiro. Acompanhava-os, com
muita emoção, no movimento de construção da língua escrita.
A graduação em psicologia complicou minha vida. Não gostava de ver desenhos
infantis em mesas de supervisão, para serem analisados e interpretados. Não me
sentia pertencendo àquele mundo. Alguma coisa me incomodava muito e eu não sabia
identificar. Sentia-me desencaixada...
As coisas se complicaram ainda mais quando meu filho iniciou o seu processo de
alfabetização. “Fernando não consegue aprender a ler e a escrever!” “Fernando tem
problemas...” Mas como? Logo meu filho! Tinha tanta experiência naquele assunto,
havia acompanhado tantas crianças naquela aventura... Diante das dificuldades de
Fernando, não sabia o que fazer? A quem recorrer? Que Helena deveria entrar em
cena para ajudar Fernando? Na escola, as queixas se multiplicavam. “ Fernando
5
precisa de ajuda especializada”. “ É um sintoma psicanalítico!”, disseram. “Tem
uma disfunção!”, sentenciou uma especialista...! A culpa é da mãe, a culpa é do pai...
A culpa é de quem?
Visitamos alguns especialistas, passamos por muitos diagnósticos. Até que um dia ele
aprendeu a ler e a escrever... Qual é a explicação? Quem vai saber... O que sei é que
Fernando tinha, e tem até hoje, paixão pelo Flamengo. E por isso gostava de ler as
notícias de seu time no jornal! Mas, as queixas continuaram e Fernando continuava
refém do saber especializado. “Ele tem lacunas, precisa resolvê-las”, advertiu a
professora. “Temos que retornar ao passado e preencher os “buracos” que
permaneceram; afinal, o processo de aprendizagem do Fernando não foi igual ao dos
outros”, sentenciou a especialista. E o tempo passou... Fernando cresceu.
Hoje, tem 21 anos, está cursando a graduação em Comunicação e ainda gosta muito
de esporte... Mas, se daquele tempo, restaram marcas de um processo doído, de
sentenças proferidas, permaneceram também forças e resistências que juntas
escreveram este trabalho com uma única certeza, expressa nas palavras de Deleuze:
“nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender – que amores tornam alguém
bom em Latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que dicionários se aprende
a pensar.”
Esse trabalho é dedicado
ao meu filho Fernando
e a todas as crianças
que resistem a fazer sempre igual.
AGRADECIMENTOS
São os encontros que dão “o impulso de um movimento infinito que ao mesmo
tempo nos despoja do poder do eu”. (Deleuze)
À Dayse Hora, um grande encontro pela sabedoria e arte no orientar.
À Claudia Abbês pelo empurrão inicial, fundamental para que eu chegasse até
aqui, à Lilia Lobo pela atenção afetiva e à Silvia Josephson pela sintonia de
sempre.
À Regina Benevides pelo “Hodosmeta” e toda a turma do mestrado em
psicologia pela força-pensamento sempre tão presentes nos encontros da UFF.
À Cecília Coimbra pela força-guerreira que me faz falar, nomear, dizer quem
fez, o que fez, designar o alvo de nossas lutas.
À Ângela Martins pelas ricas contribuições durante o processo e pelas
animadas aulas de História da Educação.
À Madel Luz e a turma do IMS pelas ricas reflexões no curso.
Aos professores, funcionários e colegas do mestrado e em especial à amiga
Giovanna por suas interferências sempre afetivas e pertinentes e ao sempre
atencioso professor Miguel.
Ao Atila, pelo amor e pelo companheirismo.
Às minhas meninas Luana e Letícia pelos momentos de relaxamento e
descontração, e em especial ao meu filho Diogo Ariel que soube me distrair no
momento certo.
À mãe Regina guerreira na arte de educar, pelas orações a Santo Antônio que
sempre me iluminaram e ao pai Jorge, energia sempre presente.
6
Às minhas queridas irmãs, em especial à Regina Abreu e à Ana Monteiro pela
íntima interlocução e aos meus sobrinhos Kiko pelo abstract e Pedro Sol pelo
devaneio áudio-visual.
Às tias Maria Helena e Myriam e em especial à Tetê minha leitora vibrante,
pelas experiências vividas no Curso Nossa Senhora das Vitórias.
Ao Temporão, pelo livro e pela bela crônica do Drummond.
À Lilia pela homeopatia e a certeza de que é possível fazer diferente.
Ao Olivier pelo “desenferrujamento” do francês.
Ao Ariel, que sempre acreditou nas minhas idéias, pelo incentivo e às amigas
Flávia, Ana, Marcela, Sandra, Gláucia e Dá por outros caminhandos vida a
fora.
Aos atores e amigos Claudia Paiva e Osvaldo Mil pela disponibilidade artística.
Ao mar e ao sol de Arraial do Cabo fontes de inspiração e revitalização durante
este caminhando.
Ultimamente venho sendo consumidor forçado de drágeas,
comprimidos, cápsulas e pomadas que me levaram a meditar na
misteriosa relação entre a doença e o remédio. ... Ninguém sai
de uma farmácia sem ter comprado, no mínimo cinco
medicamentos prescritos pelo médico, pelo vizinho ou por ele
mesmo, cliente. Ir a farmácia substitui hoje o saudoso habito de
ir ao cinema ou ao Jardim Botânico. Antes do trabalho, você tem
de passar obrigatoriamente numa farmácia, e depois do
trabalho não se esqueça de voltar lá. Pode faltar-lhe justamente
a droga para fazê-lo dormir, que é a mais preciosa de todas. A
conseqüente noite de insônia será consumida no pensamento
de que o uso incessante de remédios vai produzindo o
esquecimento de comprá-los, de modo que a solução seria
talvez montar o nosso próprio laboratório doméstico, para ter à
mão, a tempo e a hora, todos os recursos farmacêuticos de que
pode necessitar o homem, doente ou sadio, pouco importa, pois
todo o sadio é um doente em potencial, ou melhor, todo ser
humano é carente de remédio. Principalmente, de remédio
novo, com embalagem nova, propriedades novas e novíssima
eficácia, ou seja, que se não curar este mal, conhecido, irá curar
outro, de que somos portadores sem sabê-lo. ... Estou confuso
e difuso, e não sei se jogo pela janela os remédios que
médicos, balconistas de farmácia e amigos dedicados me
receitaram, ou se aumento o sortimento deles com a aquisição
de outras fórmulas que forem aparecendo, enquanto o
Ministério da Saúde não as desaconselhar. E não sei, já agora,
se se deve proibir os remédios ou o homem. Este planeta anda
meio inviável.
Carlos Drummond de Andrade
7
RESUMO
Este trabalho discute o processo de medicalização que se dá no espaço
escolar, focalizando dois momentos históricos: modernidade e
contemporaneidade. Desestabilizando processos já naturalizados, mapeamos
as práticas e os discursos da racionalidade biomédica e o modo como se
engendraram naquele espaço. Dessa forma, perguntamos: como funciona,
como opera o olhar medicalizante em direção ao aprendiz e que efeitos
produz? Vimos que o discurso higienista, do início do século XX, criou
dispositivos médicos constituídos para o uso escolar, através dos quais os
professores foram treinados como investigadores do corpo dos alunos.
Procuramos entender a emergência e o desenvolvimento do olhar clínico do
mestre e o estabelecimento da relação entre doença e não-aprender. No
contemporâneo, a partir das transformações do mundo capitalista, intensificou-
se a medicalização da vida escolar com a utilização do psicofármaco, principal
instrumento daquela ação, e a psiquiatria biológica tem surgido como a
especialidade que diagnostica os problemas escolares. Portanto,
problematizando a psiquiatrização da demanda escolar que inclui um
contingente significativo de crianças nos programas oficiais de saúde como
“portadores de transtornos”, empreendemos nossas análises no
entrecruzamento dos aportes teóricos advindos principalmente dos trabalhos
de Gilles Deleuze e Michel Foucault. Pudemos compreender o biopoder,
funcionando na sociedade disciplinar e também na sociedade de controle,
especialmente quanto ao processo de patologização das condutas desviantes.
O tema “medicalização da vida” desafia àqueles que se interessam em pensar
a dimensão coletiva da saúde, na qual a transversalidade entre os campos da
educação e da saúde opera em benefício do humano, e não do capital ou,
ainda, da indústria farmacêutica.
Palavras chave: biopoder, medicalização, subjetividade, espaço escolar
8
ABSTRACT
This dissertation argues about the medicalization process happening within the
school environment, focusing on two different historical moments: modernity
and contemporaneity. Destablishing naturalized processes, we have mapped
the practices and discourses of biomedical rationality and the means they are
engendered within the school environment. In that sense, we ask: how does the
medicalizing outlook work and operate towards the apprentice, and what effect
does it produce? It is noticed that the hygienist discourse, in the beginning of
the 20th century, created medical dispositives constituted for school use,
through which teachers were trained as investigators of the student’s bodies.
We seek to understand the emergency and the development of the clinical view
of the master and the linkage between disease and non-learning. In
contemporaneous time, emerging from the transformations of the capitalist
world, the medicalization of the school life through the use of pharmaceuticals
by the biological psychiatry have become the specialty that diagnoses school
related problems. Therefore, problematizing the psychiatryzation of school
related demand, which includes a significant amount of children enrolled in
official health programs entitled as “bearers of disorders”, we have done our
analysis in the intercrossing of theoretical disembarks that came mainly from
the works of Gilles Deleuze and Michel Foucault. We were able to comprehend
biopower, working within the disciplinary society as well as the control society,
specially concerning the attempt to diagnose deviant behavior as pathological.
The theme “medicalization of life” challenges those who are interested in
thinking about the collective dimension of health, in which the tranversality
between the education and health fields operates for the human benefit, instead
of capital and the pharmaceutical industry.
Keywords: medicalization, school, biopower
9
SUMÁRIO
I - Sobre o método, as ferramentas e as pistas para pensar............................10
II – Educáveis versus não educáveis:
a lente que identifica anormalidades ................................................................23
2.1 Tempos Modernos: a atmosfera republicana .........................................23
2.2 Homem Moderno: a invenção do “novo homem brasileiro”
e a ordenação do espaço ......................................................................29
2.3 Educação Moderna: uma estratégia biopolítica? ...................................34
2.4 Medicalização em ação e a caçada aos anormais. ................................40
III – A lente que inventa os Transtornos: TDAH, TC, TDO, Txxx......................51
3.1 No mundo contemporâneo: discursos e práticas que formatam o
existir .................................................................................................................51
3.2 A emergência do aluno como corpo-consumidor ...................................59
3.3 Doente ou sadio, pouco importa, pois todo sadio é um
doente em potencial..........................................................................................62
3.4 – Relacionando a doença com o não-aprender: o aparecimento de novas
subjetividades medicalizadas ..........................................................................67
3.4.1 A emergência do DSM ...............................................................71
3.4.2 Doenças relacionadas com o não-aprender ..............................75
3.4.3 Medicamento: aprisionamento a céu aberto? ............................81
IV – Considerações Finais ...............................................................................90
V – Referências ..............................................................................................95
VI – Anexos .....................................................................................................99
10
Sobre o método, as ferramentas e as pistas para pensar.
Pensar não é o exercício natural de uma faculdade.
O pensamento nunca pensa por si mesmo (...)
Pensar depende de forças que se apoderam do
pensamento. Enquanto o nosso pensamento estiver
ocupado por forças reativas, é preciso reconhecer
que ainda não pensamos.
1
Ao escrever um texto para uma dissertação de mestrado, podemos
proceder como um escultor e imaginar que estamos diante de um bloco de
mármore, prestes a esculpir/criar a obra. Neste processo, há um duplo
movimento: descarte/colagem. Nele, o texto vai se fazendo, onde o que
interessa é o pensamento que já vai sendo pensado. O que interessa é o
movimento de descarte/colagem, que se desloca do ponto em que se esperaria
a “origem”, o “antes”, o “princípio”, a “meta” para afirmar o movimento, o
caminhando, o já pensando. No caminhando, partimos das implicações, daquilo
que empurra o pensamento forçando-o a pensar. É preciso ter um problema,
algo que nos afete, que nos convide a trilhar um caminho, afinal, concordamos
que, o “pensar-escrever uma dissertação passa não por uma vontade de
descoberta, mas por uma vontade de experimentar o encontro com algo que
nos faz pensar”. Deleuze costumava dizer que “só se pensa porque se é
forçado”. O que nos força a pensar? O que nos afetou a ponto de nos pegar, a
ponto de nos convocar a trilhar o caminho do fazer a obra e do deixar-se fazer
por ela? “Certamente não é a competição acadêmica para ver quem chega
primeiro ao trono da verdade que hoje tem sua sede no palácio da mídia
cultural; isto nada tem a ver com o pensar”, adverte Suely Rolnik
2
ao refletir
sobre o assunto.
Durante a nossa vida profissional, nos deparamos com situações que
nos levam às indagações em que somos forçados a parar, fazer uma pausa e
decidir o caminho a trilhar. Neste processo, as certezas são mais daquilo que
estranhamos e que recusamos a aceitar como verdades naturalizadas e
cristalizadas. Não temos certeza da existência de um porto feliz de chegada.
1
DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia, Rio de Janeiro, Editora Rio 1976 p.8.
2
ROLNIK, Suely. Despedir-se do Absoluto. In: PELBART, Peter Pál. Cadernos de
Subjetividade. São Paulo: Núcleo de Pesquisas da Subjetividade - PUC/SP, 1996. p.
245.
11
Nossa aposta então se dá, então, na atitude daquele que estranha o mundo
das formas prontas e acabadas. Nosso ponto de partida é a ligação do
pensamento à vida, onde “pensar não é questão de teoria, mas problema de
vida. E, se é problema de vida, é história de luta entre forças: forças
aprisionadoras da vida e forças liberadoras da potência coletiva de uma
vida
” 3
.
.
Para trilhar esse caminho utilizaremos um método cujo
funcionamento mais parecerá com um “hodosmeta”
4
. No “hodosmeta”, a meta
surgirá como efeito do hodos (caminho). Não há meta a priori ou uma verdade
a espera de um caminho que a revele. O que há, desde agora, é um
caminhando, um caminho da experiência do pesquisar, onde a meta se
constrói no próprio caminhar, no qual o método é a direção de um caminhando.
Tradicionalmente o momento teórico do conhecimento
refere-se à construção lógica de um sistema de
inteligibilidade do objeto, o momento teórico diz respeito à
intervenção sobre o objeto. Em se apostando no caráter
sempre intervencionista do conhecimento, em qualquer de
seus momentos todo conhecer é um fazer.
5
O método-martelo de descarte/colagem que pretendemos usar para
pensar-escrever e revelar o texto-dissertação faz perguntas. Ele é genealógico.
Ele exige meticulosidade e paciência. Ele, o genealogista escultor, assim como
Nietzsche genealogista, recusa a pesquisa de origem “porque primeiramente, a
pesquisa da origem se esforça para recolher nela a essência exata da coisa,
sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si
mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo que é externo, acidental, sucessivo”
diz Foucault.
6
3
MONTEIRO DE ABREU, A. Clínica, Biopoder e a Experiência do Pânico no
Contemporâneo, Dissertação de Mestrado, Niterói, UFF, 2000, mimeo.
4
Idéia desenvolvida pelos professores Benevides e Passos durante a disciplina sobre
método, em 2005, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (mestrado) na
Universidade Federal Fluminense.
5
BENEVIDES, R. e PASSOS, E. Clínica e Transdiciplinaridade. In: Psicologia:
Teoria e Pequisa. Jan-Abr 2000, vol.16, n.1, p.11.
6
FOUCAULT, M. A verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro, Nau Editora,
2001, p.9.
12
Mas em nosso caminhando, como não contamos com a garantia da
meta a priori, correremos riscos. Um dos riscos de nosso trabalho é o próprio
pensamento e a maneira como ele já está acostumado a pensar. Somos
viciados em origem, e mesmo recusando a pesquisa que busca a origem dos
acontecimentos, podemos ser traídos por nosso pensamento. Podemos nos
iludir e olhar para o que passou, o que ocorreu em épocas anteriores, com a
intenção de identificar sua semelhança com o que esta ocorrendo no tempo
presente ou, ainda, acreditar que o contemporâneo já continha suas sementes
no passado. Assim, para tentar escapar desta possibilidade incorporamos em
nosso caminhando o método histórico-genealógico. Ao afirmar este método,
buscamos desestabilizar os discursos e as práticas instituídas. Neste processo,
pretendemos entrar em contato com as forças históricas que atuam produzindo
aquilo que, no presente aparece como verdade naturalizada. “A genealogia,
neste sentido, é um método crítico por excelência que mantém aceso este
ímpeto emancipatório próprio da modernidade em confronto constante com o já
dado.”
7
Nesta perspectiva, diante de qualquer enunciado associado à
apresentação de uma realidade que nos chega como verdade naturalizada,
interrogamos: como isso que aí está, assim se tornou? Quais foram as
condições de sua emergência? Como foi o fazer disso que está feito?
Nosso trabalho interessa-se pelo efeito do encontro de dois campos:
Saúde e Educação. É neste lugar, no lugar do “entre” que pretendemos trilhar o
nosso caminhando. Como se estabelece o movimento entre aqueles dois
campos?
Utilizando tal metodologia, propomo-nos analisar o tema
Medicalização da Vida Escolar, focalizando dois momentos históricos:
modernidade e contemporaneidade. E assim perguntamos: como funciona,
como opera este olhar medicalizante em direção ao aprendiz e que efeitos ele
produz? Do que estamos falando, quando usamos o conceito medicalização?
Segundo Aguiar, medicalização é um conceito proposto inicialmente
por Irving Zola em 1972 para designar “a expansão da jurisdição da profissão
médica para novos domínios, em particular àqueles que dizem respeito a
7
BENEVIDES, R. e PASSOS, E. Clínica e biopolítica na experiência do contemporâneo. In:
Psicologia Clínica 13 (1) 2001, p. 89.
13
problemas considerados de ordem espiritual/moral ou legal/criminal”.
8
Historicamente, este conceito muito utilizado na década de 1970 pretendia
designar uma severa critica ao crescimento da intervenção repressora da
medicina que passava a assumir uma função de regulação social. Entretanto,
no mesmo período, Foucault dedicou-se a pensar o poder para além das forças
repressivas e coercitivas afirmando, com isso, a sua positividade, a sua
característica produtiva. Para ele, “o que faz com que o poder se mantenha e
seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não,
mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber,
produz discurso”
9
.
Nessa perspectiva, entendemos que o poder da medicina não opera
tanto pela violência ou coerção; mas sim, como uma força que produz
realidade. Assim, deixaremos de pensar a medicalização apenas como um
processo de regulação corpos. Medicalização passa a significar, portanto, um
modo de subjetivação
10
que aciona os processos de constituição de uma
subjetividade
11
como resultante das forças que constroem e conformam modos
de existir. Medicalização adquire aqui, o sentido de força de invenção e
fabricação de subjetividades medicalizadas.
A medicalização passa a ser vista como processo, como modo de
subjetivação que nos faz indagar-problematizar a respeito dessa longa história
de institucionalização do desvio e da diferença como patologia. Nesse
percurso, procuraremos ver a emergência do que estamos caracterizando
como a invenção da relação entre doença e não-aprender, cuja história e
trajetória nos levam, necessariamente, a acompanhar o movimento da
racionalidade biomédica no campo escolar.
Como ponto de partida em nosso caminhando, tomaremos os
acontecimentos que marcam a modernidade em sua vontade de ordem
8
AGUIAR, A. A. Da Medicalização da Psiquiatria à Psiquiatrização da Vida – uma
cartografia bio-política do contemporâneo, Dissertação de Mestrado, UFF, 2002,
mimeo p.139.
9
FOUCAULT, M. Verdade e Poder. In: Foucault, M. Microfísica do Poder.
Organização e Tradução Roberto Machado, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979, p.8.
10
Quando nos referimos aos modos de subjetivação, estamos tomando-os em seu sentido
intensivo, isto é, maneira pela qual, a cada momento da história, prevalecem certas relações de
poder-saber que produzem objetos-sujeitos, necessidades e desejos.
11
O termo subjetividade neste trabalho tem um sentido distinto de individualidade e
identidade.
14
disciplinada, descrita e nomeada por Michel Foucault
12
como sociedade
disciplinar, onde os corpos eram vigiados de modo a garantir uma população
saudável. Nesse período, segundo Monteiro de Abreu, a medicina desloca-se
“da arte da cura, para a gestão e produção de saúde com objetivo de formar
um saber médico-administrativo acerca da sociedade, de sua saúde e suas
doenças, de sua condição de vida e de sua habitação”
13
.
No Brasil, é na primeira metade do século XX que observamos tal
processo de desenvolvimento de uma vida regulada pelos discursos e práticas
médicas. Trata-se de um momento que traz fortes marcas de um movimento
civilizatório no qual o desejo de constituir-se como uma nação próspera
perpassava todas as ações políticas direcionadas para a nascente população
brasileira. Com uma população composta, em sua maioria, por analfabetos e
com a demanda por mão-de-obra para a indústria emergente, era preciso
investir na escolarização em massa. O aprimoramento do povo brasileiro,
tornando-se meta das elites governantes e dos intelectuais da época, fez da
escola (como meio) e da criança (como fim) os alvos das ações de prevenção e
saneamento, unindo Saúde e Educação na Primeira República. Desta união
hierarquizada e normalizadora, veremos surgir o professor como um
“identificador de anormalidades” a partir das teorias gestadas na Europa do
século XIX. Tais teorias divulgavam idéias como: as teses da eugenia de
Francis Galton, o perigo da degeneração difundido por Morel e os estudos
sobre o perfil do criminoso nato desenvolvido por Cesare Lombroso.
Acreditava-se, naquele momento, que era preciso combater o mal que
ameaçava a ordem e o progresso da nação. Este mal, em uma de suas faces,
apresentava-se como a criança anormal, que tinha em seu corpo (biológico) a
inscrição do defeito, da anomalia. Era preciso capacitar o professor,
desenvolvendo-lhe o “olho clínico” e assim torná-lo coadjuvante dos
diagnósticos. Saúde e Educação organizaram-se numa verdadeira cruzada
para combater a ameaça da degeneração, dando início ao que se pode chamar
de uma caçada aos anormais
14
. Surgiram diversos dispositivos normalizadores
12
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1977, p.77
13
MONTEIRO DE ABREU, A. op.cit. p.74.
14
Esta expressão foi utilizada por LOBO, L. F. em sua tese de doutorado Os Infames
da História: A Instituição das Deficiências no Brasil, Tese de Doutorado, PUC/RJ,
1997, mimeo.
15
que, no curso deste processo, se instituíram: a inspeção médica, a ficha
sanitária do aluno e a metáfora do professor-soldado cujo currículo de
formação passou a ter disciplinas de conteúdo biomédico.
Em seguida, propomos deslocar o nosso olhar para o tempo
presente, já que o nosso caminhando, por recusar a pesquisa de origem, não
tem a pretensão de construir uma linha do tempo, uma evolução histórica dos
acontecimentos.
Ao mudar de foco, o que vemos? O que caracteriza o funcionamento
do mundo contemporâneo? Como se dá hoje, o processo de medicalização da
vida escolar? Quais são as novas tecnologias de assujeitamento, às quais nós,
habitantes deste mundo globalizado e que opera na lógica do capital mundial
integrado, estamos submetidos?
Há uma psiquiatrização ocorrendo na sociedade. Já
existem quase 500 tipos descritos de transtorno
mental e de comportamento. Com tantas descrições,
quase ninguém escaparia a um diagnóstico de
problemas mentais. Se o sujeito é tímido e você forçar
um pouquinho, ele pode ser enquadrado na categoria
de fobia social. Se ele tem mania, leva um diagnóstico
de transtorno obsessivo-compulsivo. Se a criança
está agitada na escola, podem achar que está tendo
um transtorno de atenção ou hiperatividade. Coisas
normais da vida estão sendo encaradas como
patologias. Hoje em dia, se um indivíduo não tomar
cuidado e passar desavisado pela porta de um
psiquiatra pode entrar numa categoria dessas e sair
de lá com diagnóstico e um tratamento na mão
15
Na contemporaneidade, o que vemos entrar em cena, com força total
é o medicamento e sua maciça prescrição por parte dos especialistas, para
atuar no que se acredita ser a doença do não-aprender – hoje, relacionada aos
comportamentos desatentos, hiperativos e desobedientes.
Ao contrário de outras novidades, criadas e desenvolvidas
nos anos 90, a Ritalina parece ser daquelas drogas que
15
COSTA E SILVA, J A. Psiquiatria S. A, in: Revista Veja. São Paulo, ano 34, nº 25,
jun. 2001, p. 11-15.
16
tiveram que esperar décadas para arrumar um espaço no
mercado. Velha de quase cinqüenta anos, a Ritalina não
colava numa época em que os pais e professores exerciam
domínio irrestrito, um olhar de repreensão bastando para
por a criança em prumo
16
.
De lá para cá, o que mudou? O olhar que repreendia e paralisava
perdeu a eficácia? Como funciona, como opera no contemporâneo, este outro
olhar em direção ao aprendiz? Que efeitos ele produz? Como se dá a luta de
forças entre instituições
17
que concorrem para se afirmarem como
hegemônicas na explicação do não-aprender?
André Luiz não mais resiste, já se submeteu e é refém de
uma incapacidade que não tem, mas introjetou.
Está preso em uma doença que não existe.
Está confinado em uma instituição invisível, sem paredes,
virtual.
André Luiz está institucionalizado.
I n s t i t u c i o n a l i z a d o.
18
André Luiz não é um personagem de um tempo que passou, nem foi
encontrado em uma estante com referência catalográfica, André Luiz é criança
do nosso tempo – anda bem de bicicleta, faz pipas bonitas, mas teme ser
internado. André Luiz foi atendido por uma médica neurologista quando tinha
nove anos e cinco meses a partir de uma queixa da professora que em poucas
palavras proferiu a sua sentença:
André Luiz é desinteressado, apático, concentração
mínima. Acho que tem problema neurológico, ele só tem
um assunto: cavalo. No ano passado, apanhava muito da
professora, ela puxava as orelhas. Em casa faz todos os
serviços
Ao entrar no consultório da médica, André Luiz teve que ser
arrastado pela mãe e, com medo, perguntou à médica:
16
ALCALDE, Luísa. Pílula contra o agito, in: Revista Isto É, 23 de outubro de 1997.
17
O termo Instituição que aqui tem um sentido distinto de estabelecimento, será
melhor trabalhado ao longo do texto.
18
MOYSÉS, M. A. A. A institucionalização invisível: crianças que não aprendem
na escola. Ed Mercado das Letras, São Paulo, 2001 p.22.
17
- Eu vou ficar internado?
- Internado por quê? – respondeu a médica.
- Por causa que eu não sei ler nem escrever? Eu não
aprendia porque ela me batia. Eu não sou inteligente, não.
Só um pouquinho. Porque eu não sei ler. Eu adoro cavalo!
Sei montar desde pequeno, monto muito bem em pelo! Eu
tenho um cavalo só meu!
No encontro com André Luiz, o olho da médica não viu a apatia
descrita pela professora. O olho da médica viu em André Luiz, uma criança
inteligente e desenvolta que tem um cavalo e o adora. André Luiz considera-se
doente porque não aprende na escola. A história de André Luiz e de tantos
outros que não aprendem na escola e são sistematicamente encaminhados
aos serviços de saúde, para terem suas sentenças proferidas, do alto de um
saber que se quer sempre poder, nos fazem problematizar a demanda que vem
superlotando os consultórios, sejam eles públicos ou privados. Maria Cristina
Ventura Couto
19
, em seu artigo “Novos Desafios à Reforma Psiquiátrica
Brasileira”, alerta-nos para a psiquiatrização da demanda escolar, chamando a
atenção para a superlotação de ambulatórios públicos, que absorvem uma
clientela infanto-juvenil, sem, contudo, problematizar a demanda que a produz.
“Um contingente significativo desta clientela é incluído nos programas oficiais
de saúde mental como portadores do ‘distúrbio de aprendizagem’ e ‘distúrbio
de conduta”.
O que tem levado os professores a manterem-se nesse lugar de
submissão ao poder-saber especializado, reproduzindo as práticas de exclusão
para aquele que desvia? O que tem levado os professores a aceitarem a
convocação da psiquiatria biológica
20
para tornarem-se, hoje, identificadores de
transtornos? O que temos nós, educadores, a fazer neste campo do Cotidiano
Escolar, campo onde as forças insistem, lutam para desestabilizar as “análises
desses objetos tornados naturais – o professor incompetente, desvitalizado, ou
19
COUTO, M. C. V. Novos Desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade de
construção de uma política de saúde mental para crianças e adolescentes. In:
Cadernos e textos da III Conferencia Nacional de Saúde Mental. Ministério da
Saúde, Brasília-DF, 2001.
20
Segundo AGUIAR op. cit. p.20, a psiquiatria biológica emerge na década de 1970
como um movimento de reação a desmedicalização do campo psiquiátrico dos
Estados Unidos, e passa a dominar a psiquiatria americana e mundial a partir de
1980.
18
o aluno carente, fracassado, ou ainda a escola anacrônica, fracassada – para
compreender o caráter heterogêneo das práticas com que se produziam esses
objetos?”
21
. Para Monteiro de Abreu, cabe ao pesquisador, “extrair da história
seus processos de produção, isto é, desnaturalizar os acontecimentos,
historicizá-los, fazendo aparecer a dinâmica temporal das relações de forças
que configuram a realidade. Produto de relações de forças móveis e mutantes,
a realidade traz em si a potência de transformação”
22
.
Como desestabilizar estes objetos tornados naturais? Como
desnaturalizar este processo?
A desnaturalização implica imediatamente um voltar-se
para as práticas, um desmanchamento da dualidade
sujeito-objeto privilegiando, no lugar da identidade,
abstrata e universal, a subjetividade, múltipla e processual.
Implica não apenas a historicização, a contextualização
político-social onde se engendram as práticas, mas a
geografização, um acompanhar das linhas que se
deslocam e se compõem na montagem das
subjetividades.
23
Utilizando o método histórico genealógico, problematizaremos a idéia
de instituição. A instituição aqui se refere às práticas e discursos que ganham
estatuto de verdade inquestionável, categoria universal que fornece o contorno
de medidas padronizadas possuindo, portanto, um sentido distinto do
“estabelecimento” ou de uma “técnica” para operar nos estabelecimentos.
Tomaremos a instituição como algo que em algum momento histórico torna-se
produto (instituição), que se quer separado das forças produtoras das mais
diversas realidades (forças instituintes). Dessa forma, Rodrigues
24
define a
conceituação de instituição: “escapa do empirismo (INSTITUIÇÃO =
ESTABELECIMENTO) e ao pragmatismo e profissionalismo (INSTITUIÇÃO =
TÉCNICA). Instituição aparece como algo imediatamente problemático”,
21
HECKERT, A. L Narrativas de Resistências: Educação e Políticas, UFF/Niterói,
2004, mimeo p. 28.
22
MONTEIRO DE ABREU op.cit p. 29.
23
.BENEVIDES DE BARROS, R. e HECKERT A. L. Subjetividade Repetente
Contemporaneidade e Educação: Revista Semestral de Ciências Sociais s Educação, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 2, p. 111-129, 1997 p. 7.
24
RODRIGUES, H. C. Psicanálise e Análise Institucional. In: Grupos e Instituições
em Análise. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. p.33.
19
problema que nos faz perguntar novamente: como isso que aí está, assim se
tornou?
Conceber, então, o Fracasso Escolar como uma instituição é pensá-
lo na dimensão da instituição produzida pelas relações de saber-poder e
produtora de relações de saber-poder que pretendem impedir, obstruir, barrar,
retirar, da experiência produtiva de si e de mundos, o plano da produção-
criação-invenção de inéditas e diversificadas realidades. É também pensar que,
como diz Lourau
25
, “se o homem sofre as instituições, também as cria e as
mantém por meio de um consenso que não é somente passividade diante do
instituído, mas igualmente instituinte”. É também pensar no “fracasso” do
escolar, em sua dimensão singular. Desta forma, se já podemos falar em
Instituição para além do estabelecimento outras perguntas emergem: que
outras instituições instrumentalizam o Fracasso Escolar? Que forças compõem
as relações de poder-saber nisso que se institui como Fracasso Escolar?
Novas instituições aparecem a partir do movimento incessante de
forças instituintes. O fracasso do escolar pode ser visto, então, como um afeto
móvel, uma singularidade que, na operação de institucionalização torna-se a
expressão Fracasso Escolar, esta inquestionável instituição do sistema de
ensino. O mesmo ocorre com a loucura se quisermos fazer um paralelo. A
Doença Mental é uma instituição, ou seja, uma integração entre as relações de
poder e as estratificações de saber sobre a loucura.
Percebendo a instituição Fracasso Escolar como algo que não tem
natureza nem essência, mas sim algo que opera, que funciona
26
, cabe-nos aqui
perguntar: como funciona o fracasso do escolar quando ele é visto como uma
entidade nosográfica da psiquiatria? Que outras instituições surgem a partir da
conexão da psiquiatria com o fracasso do escolar? Que hierarquias, direções e
vinculações estas instituições possuem? Quais são seus pontos de resistência,
acontecimentos reguladores e rituais ocultadores? Por outro lado, como o
espaço escolar em suas práticas instituintes e institucionalizadoras se torna
dispositivo para “fazer disto o que está feito”?
25
LOURAU, R. Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro:UERJ,
1993 p. 25.
26
Deleuze e Guattari, quando pensam em funcionamento, querem pensar a ação de
uma máquina em seu caráter produtor, a noção diz do próprio processo de produção.
20
Na escola o fracasso tem alguns nomes. O mais conhecido
e usado é o de repetência. Imediatamente somos levados
a pensar na repetência de ano escolar para uma criança. A
imagem, integrante de um imaginário social conhecido,
desliza para a busca de causas que vão desde a
"incapacidade natural para a escolarização", "inaptidão
para as exigências do processo escolar", "baixa
capacidade de concentração", "pouca inteligência", até a
"fome", "baixa estimulação cultural", "família desagregada",
"meio ambiente promíscuo", etc. Explicações encontradas
no indivíduo ou no meio social, a moeda é sempre a
mesma.
27
O fracasso do escolar, então materializado na repetência do aluno, já
foi visto e ainda é visto por diferentes lentes; entretanto, a lente que
pretendemos interrogar nesta investigação é a lente da psiquiatria biológica
que, com seu manual de diagnósticos, o DSM IV
28
, diz existir uma relação de
causa e efeito entre o fracasso do escolar e os Transtornos descritos no
manual. A psiquiatria biológica pretende relacionar comportamentos
considerados desviantes, como o déficit de atenção, a desobediência e a
hiperatividade, por exemplo, a problemas relacionados a neurotransmissores,
ou seja, a problemas relacionados com o corpo biológico do aluno. O que
parece que essa lente quer nos fazer ver é que os Transtornos agem
provocando rebaixamento do desempenho e causando o fracasso do escolar.
Em diversos sites pesquisados na Internet e matérias sobre
Transtornos Mentais publicadas em jornais e revistas tanto de divulgação
científica quanto de variedades, podemos perceber que há uma constante
relação dos Transtornos com problemas no aproveitamento e na conduta do
escolar. Como exemplo, podemos citar a carta, divulgada no jornal O Globo, na
qual o psiquiatra e autor de vasta literatura sobre o assunto, Paulo Mattos
escreveu conclamando todos os poderes e todas as instituições como a
Associação Americana de Medicina, os Estudos Genéticos e Radiológicos, a
Organização Mundial da Saúde, os Códigos, os Estudos Científicos e o
Fracasso Acadêmico para afirmar:
27
BENEVIDES DE BARROS, R. e HECKERT A. L. op.cit. p. 10.
28
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION – DSM-IV – Anxiety Disorders. In
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Washington, American
Psychiatric Press, 1994.
21
O TDAH é uma doença muito pesquisada, sendo mais
comprovada que a maioria dos transtornos mentais. Quem
afirma é a Associação Americana de Medicina, uma das
mais respeitadas no mundo. Existem inúmeros estudos
genéticos e radiológicos (inclusive no Brasil)
confirmando que o portador do TDAH é expressão de
disfunções do cérebro. A Organização Mundial da Saúde
tem um código para o TDAH em sua listagem de doenças,
tal como ocorre com o diabetes, a hipertensão ou a
enxaqueca. Além de existirem mais de 200 estudos
científicos comprovando que a medicação controla de
modo efetivo os sintomas da doença, existem dados
sólidos demonstrando que crianças não tratadas têm mais
fracasso acadêmico...
29
(grifos nossos)
Apostando nas novas tecnologias de imagem cerebral e nas
pesquisas do campo da genética, especialistas acreditam que podem dar início
a uma nova caçada aos anormais, agora, identificados como portadores de
Transtorno.
Veremos em nosso trabalho, que a Medicalização da Vida Escolar, a
partir das transformações do mundo contemporâneo, será intensificada pela
utilização do medicamento como principal instrumento de ação. Veremos
também que a psiquiatria biológica surgirá neste cenário como a principal
especialidade diagnosticadora dos problemas escolares.
Enquanto na psiquiatria psicanalítica a relação terapêutica
constituía o foco principal do tratamento, na psiquiatria
contemporânea ela é pouco valorizada, destacada apenas
pela sua importância na adesão do paciente ao tratamento
farmacológico.
30
No caso do TDAH
31
, por exemplo, o fármaco mais frequentemente
utilizado é a Ritalina® (Novartis) e o Concerta® (Janssen-Cilag) cujo princípio
ativo é o Cloridato de Metilfenidato, um estimulante. Ambos comercializados
com a advertência (tarja preta) são vendidos com receita especial (talonário
29
MATTOS, Paulo. Carta dos Leitores, in: Jornal O Globo, julho de 2003.
30
AGUIAR, A. A. op cit p.70
31
Transtorno de Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade, definição e critérios
diagnósticos vide o Manual de Diagnóstico (DSM-IV) em anexo.
22
amarelo)
32
utilizada para a prescrição de drogas com alto risco de induzir
dependência. Lima nos chama atenção para um preocupante percentagem:
“Os EUA respondem por 90% do consumo mundial de psicoestimulantes”
33
.
Hoje, o que parece existir é a lente da biomedicalização querendo
ensinar, que não só o “fracasso” do escolar e suas condutas disruptivas, mas a
vida como um todo tem um determinado remédio, uma pílula.
A doença do não-aprender, em nosso tempo, recebe nova
embalagem com novo tratamento, o medicamento. Aos pais e professores é
vendido com embalagem científica, cujo slogan poderia ser “pílula contra o
agito”, prometendo atuar como uma “palmatória química” para assim garantir a
“ordem e progresso” no terceiro milênio.
O que parece existir é o “aprisionamento a céu aberto”
34
já que o
tratamento proposto para tais transtornos não é mais o isolamento nas
instituições ou classes especiais para anormais, como aconteceu na primeira
metade do século XX. Então, como pensar as práticas de resistência frente ao
crescente processo de medicalização em crianças?
Antes de qualquer coisa, é preciso recusar as explicações
totalizadoras que aparecem com freqüência nas pesquisas científicas, nas
estatísticas, nos censos, nos consensos, para podermos mudar a lente com
que enxergamos o fazer do aluno e o fazer do professor. É preciso desconfiar
dos transtornos assim como Foucault desconfiou da degeneração
35
considerando-a como peça maior da medicalização. Assim, poderemos “captar
os processos de resistência que se afirmam nas margens das propostas
32
Existem três tipos de receituários para medicamentos com ação no Sistema
Nervoso Central (SNC): branco-carbonado para medicamentos sem risco de causar
dependência (antidepressivos, antipsicóticos), notificação "B" com talonário azul
para medicamentos que potencialmente podem induzir dependência
(benzodiazepínicos), e a notificação "A" com talonário amarelo para drogas com alto
risco de induzir dependência (anestésicos barbitúricos, opióides e derivados da
anfetamina de uso psiquiátrico, o metilfenidato), todas com validade estadual.
33
LIMA, R. C. Todos Desatentos? O TDA/H e a construção de bioindentidades..
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005, p.80.
34
Expressão trabalhada por Monteiro de Abreu em sua dissertação de mestrado para
definir o modo contemporâneo de exercer o biopoder e aprisionar a vida.
35
A degeneração é formulada em 1957 por Morel, isto é na mesma época em que
Falret estava liquidando a monomania e construindo a noção de estado. É a época
em que Baillarger, Griesinger, Luys propõem modelos neurológicos do
comportamento do anormal; é a época em que Luys percorre o domínio de
hereditariedade patológica. A degeneração é a peça maior da medicalização do
anormal – ou se, preferirem, cientificamente – medicalizado.” FOUCAULT, M. Os
Anormais, São Paulo, Martins Fontes, 2002 p.401
23
institucionalizadas, na intensidade das memórias das lutas que fagulham
modos imprevisíveis de agir”.
36
Só assim poderemos multiplicar as lentes,
experimentar novas práticas e inventar novos caminhos de ação.
36
HECKERT, A. L.op. cit p,47.
24
2.1 - Tempos Modernos: a atmosfera republicana
A partir das modificações jurídicas, políticas, sociais, econômicas e
culturais ocorridas na sociedade ocidental durante a segunda metade do século
XIX, consolidando o capitalismo como sistema econômico hegemônico, o
Brasil, em 1889, tornou-se um país republicano. Ao tornar-se uma República, o
Brasil assim o fez em nome de um Estado Liberal cujos princípios, segundo
Cunha
37
, são: o individualismo, a liberdade, a prosperidade, a igualdade e a
democracia. Entretanto, de fato este Estado Liberal não se estabeleceu nos
primeiros decênios da primeira República. A política instalada no Brasil neste
período foi a política dos governadores, também chamada de política café com
leite, em que a presidência da república era revezada entre Minas Gerais e São
Paulo. Aquela política oligárquica produziu no recém criado Estado
Republicano, uma característica intervencionista, reproduzindo o mesmo modo
de agir que se estabeleceu no tempo do Brasil Império.
Entretanto, no que se referem ao campo da educação, os tempos
republicanos anunciaram mudanças no panorama geral uma vez que este
período é considerado inaugural no que diz respeito à preocupação com uma
efetiva política educacional. A criação dos Grupos Escolares na última década
do século XIX é exemplar desta preocupação com a organização do sistema
educacional brasileiro. O “Grupo Escolar” consistia na reunião, em um só
espaço, de quatro a dez escolas preliminares. Diferenciando-se do improviso
das instalações das escolas dos tempos imperiais, o Grupo Escolar pretendia
oferecer melhores condições de higiene e maior organização e controle,
tornando-se o modelo de escola para o meio urbano. Sobre a criação dos
grupos escolares, Souza esclarece que:
O ensino primário oficial no Estado de São Paulo se
organizou em dois cursos: o preliminar, para crianças entre
7 e 15 anos, e o complementar, para os mais velhos. O
curso preliminar se fez presente através de seis
modalidades de escolas: as preliminares, as intermédias,
os grupos escolares, as provisórias, as noturnas e as
ambulantes. Uma classe de quarenta alunos formava uma
37
CUNHA, L. A. Educação e Desenvolvimento no Brasil Rio de Janeiro, Francisco
Alves Editora, 1983, p.25.
25
escola preliminar, que deveria fornecer o ensino primário
laico e gratuito. Mas o governo estadual não se
encarregava de construir o prédio escolar, que ficava por
conta do município, em geral sem recursos (em parte,
vários dos grupos escolares da época foram construídos
pelas elites locais e, mais tarde, absorvidos pelo Estado
mais amplamente). O governo se responsabilizava pelo
pagamento do professor, e exigia que este fosse
normalista ou formado pela Escola Normal da Capital, e
fornecia os livros oficiais, aliás, os únicos permitidos. Essas
escolas podiam funcionar com meninas e meninos.
Duravam quatros anos, com aulas das nove da manhã às
duas da tarde. As disciplinas eram Leitura, Escrita e
Caligrafia, Moral Prática, Educação Física, Geografia
Geral, Cosmografia, Geografia do Brasil, Noções de Física,
Química e História Natural (Higiene), História do Brasil e
Leitura Sobre a Vida dos Grandes Homens, Leitura de
Música e Canto, Exercícios Ginásticos e Militares e, por
fim, Trabalhos Manuais, este últimos, então, separavam
meninas e meninos e separavam também faixas etárias de
modo específico. Os exames eram rigorosos, sempre em
dupla forma, oral e escrito. Os alunos que recebiam aulas
em suas próprias casas, com professores particulares
poderiam participar dos exames. A reunião de quatro a dez
escolas preliminares (escola ou classe) formava um grupo
escolar.
38
Mas será somente a partir da década de 20, com a instalação do
capitalismo e a efetivação do processo de industrialização que se criará uma
atmosfera de otimismo e entusiasmo no campo educacional.
Alguns estudiosos da historia econômica e social Brasileira
apontam a década de 1920 como o período de passagem
de um sistema colonial, induzido, para outro, autônomo;
constitui essa década a fase de instalação do capitalismo
no Brasil, e, portanto se define como período intermediário
entre o sistema agrário-comercial e o urbano-industrial, os
dois grandes ciclos da vida econômica brasileira.
39
Tendo em vista o princípio liberal de educação onde “a escola não
deve estar a serviço de nenhuma classe, de nenhum privilégio de herança ou
38
SOUZA, R. F. de. The infancy militarism: expressions of nationalism in the Brazilian
culture. Cad. CEDES, Nov. 2000, vol.20, no.52, p.106.
39
NAGLE, J. Educação e sociedade na primeira República. Rio de Janeiro: EPU/
Fundação Nacional de Material Escolar, 1974.p. 134.
26
dinheiro, de nenhum credo religioso ou político”
40
criou-se neste período o
movimento “Escola para todos” que visava a conquista da chamada
democratização do ensino. O movimento “Escola para todos” tanto se referiu a
uma proliferação de estabelecimentos escolares, quanto a uma discussão em
termos de projeto pedagógico para a nação.
De um lado existe a crença de que, pela multiplicação das
instituições escolares, da disseminação da educação
escolar, seria possível incorporar grandes camadas da
população na senda do progresso Nacional, e colocar o
Brasil no caminho das grandes nações do mundo; de outro
lado, existe a crença de que determinadas formulações
doutrinárias sobre a escolarização indicam o caminho para
a verdadeira formação do novo homem brasileiro
(escolanovismo).
41
Com este movimento entra em ação o movimento disciplinador da
sociedade tendo como alvo prioritário os corpos educáveis. Veremos mais
adiante os efeitos medicalizantes deste movimento.
A década de 20 marcou a ruptura definitiva com o modo de gestão
Imperial e desenvolveu a escolarização, exercendo um papel fundamental na
reforma da sociedade. A alfabetização configurou-se o carro chefe do projeto
educacional para a Nação, constituindo-se assim, como afirma Jorge Nagle
42
,
na “mais eficaz alavanca da história brasileira”. Era preciso formar cidadãos
para servirem à pátria e, neste sentido, a “nova escola” seria um laboratório
social do trabalho com o desenvolvimento da disciplina, do patriotismo, da
cooperação e da solidariedade.
Após a Primeira Guerra Mundial, o Brasil viveu uma onda
de nacionalismo efervescente. Vários movimentos e
campanhas nacionalistas eclodiram, tendo como finalidade
a elevação moral e política do país e como principais
temas o voto secreto, a erradicação do analfabetismo e o
serviço militar obrigatório. O fervor nacionalista, alimentado
por alguns grupos políticos e intelectuais descontentes
com a oligarquia no poder e os desvirtuamentos da
República, trouxe à baila a questão da nacionalidade
40
CUNHA, L. A. op.cit. p.34.
41
NAGLE, J. op. cit. p.134.
42
NAGLE, J. op.cit.. p.136.
27
brasileira, o combate à estrangeirização do Brasil, a
reforma política, a moralização dos costumes e a
regeneração da nação.
43
Em 1920, por iniciativa de Sampaio Dória, diretor de Instrução
Pública, realizou-se um Censo Escolar que, como resultado, apurou o total de
656.114 crianças de 6 a 12 anos. Das de 7 a 12, 74% não sabiam ler; 175 mil
freqüentavam escolas e 370 mil não o faziam, isto é, cerca de 64%”.
44
Constatando assim a dramática situação no que se refere ao alto índice de
analfabetos no Brasil, iniciaram-se as reformas de ensino que visavam o
aumento de matrículas nas escolas, em última instância. As reformas ocorridas
neste período foram a de: Sampaio Dória, em São Paulo (1920), a de Lourenço
Filho, no Ceará (1923), a de Anísio Teixeira, na Bahia (1925), a de Mario
Casassanta, em Minas Gerais (1927), a de Fernando Azevedo, no Distrito
Federal (1928) e a de Carneiro Leão, em Pernambuco (1928).
Com a fundação da Associação Brasileira de Educação (ABE), em
1924, vimos acontecer nesta mesma década, três Conferências Nacionais
Brasileiras. E com as conferências divulgaram-se também as teorias propostas
pela Escola Nova. Foi um período de grande efervescência em termos de
discussão de métodos de ensino e de políticas públicas para a educação, com
a penetração do escolanovismo no Brasil.
O pensamento pedagógico ensaia ver além das paredes
da escola. Realiza-se, em São Paulo, em 1920, uma
campanha de redireção social da educação, baseada no
espírito de nacionalização e democratização do ensino, de
que o volume de Sampaio Dória Questões do ensino dá
documentada notícia.
45
Sob o título “O problema da Educação Nacional”, a conferência de
Azevedo Sodré apontou para a necessidade de se pensar um projeto
educacional para além das necessidades imediatas da luta contra o
analfabetismo para que se pudesse daquela forma elevar o nível do povo
brasileiro. A partir daí, o aprimoramento do ensino primário e a formação
43
SOUZA, R. F. de. op. cit. p.109-110
44
LOURENÇO FILHO, M. B. Tendências da educação brasileira. Brasília: INEP/MEC, 2002.
(Coleção Lourenço Filho; 6). p.80.
45
LOURENÇO FILHO, M. B op. cit. p.24.
28
daqueles professores primários constituíram-se nos principais debates em
torno das políticas públicas para a educação.
Pretende-se que a escola brasileira se transforme
radicalmente na década de 1920: nos objetivos, conteúdos
e função social. À medida que se torna à instituição mais
importante do sistema escolar brasileiro – a matriz onde se
integram o humano e o nacional – a escola primária se
transforma no principal ponto de preocupações de
educadores e homens públicos.
46
O professor deveria ter um embasamento científico e a biologia, a
psicologia e a sociologia deveriam servir-lhes de suporte para a compreensão
da tarefa educativa. “Não era mais possível aceitar projetos educacionais que
não se apoiassem no atendimento às assim chamadas ‘diferenças individuais’,
baseadas no conhecimento do desenvolvimento biológico e psicológico”
enfatiza Hora
47
ao discorrer sobre o projeto medicalizante da escola nova.
Além disso, naquele período crescia a influência norte-americana
48
entre os nossos renomados educadores. Era recorrente entre os intelectuais da
época, o discurso de que a escola deveria tornar-se um estabelecimento onde
o saber científico prevalecesse sobre os demais. Para isso, afirmava-se a
necessidade - já expressada por Rui Barbosa
49
em seu célebre “Parecer sobre
a Reforma do Ensino Primário e várias instituições complementares da
Instrução Pública”, datado de 1882 - da renovação do pensamento pedagógico.
Esta renovação expressava-se pelo questionamento do modelo francês, e da
divulgação de novas referências, principalmente as norte-americanas.
46
NAGLE, J. op.cit. p.152.
47
HORA, D. M. Racionalidade Médica e Conhecimento Escolar: A Trajetória da
Biologia Educacional na Formação de Professores Primários, Tese de Doutorado,
mimeo p. 95
48
A partir do fim da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos da América emergiram como
potência desbancando o antigo credor brasileiro, a Inglaterra, tornando-se uma forte referência
não somente para a economia brasileira, mas também para o comportamento, a educação e a
cultura.
49
“Nova fase é inegavelmente aberta ao pensamento pedagógico em 1882 e 1883,
com os pareceres de Rui Barbosa aos projetos de ensino primário, secundário e
superior, apresentados ao parlamento. Os que se vinham preocupando com a
educação e o ensino, até essa época, inspiravam-se principalmente nos modelos
franceses. Rui oferece uma documentação preciosa, com referência às realizações da
Inglaterra, da Alemanha, dos Estados Unidos”. FILHO, L. op.cit. p.23
29
Em meados dos anos vinte, nossos intelectuais
interessados em educação puderam ler, entre outros
autores, o filósofo norte-americano John Dewey (1859-
1952) que, em 1896, nos Estados Unidos, criou a
University Elementary School, acoplada à Universidade de
Chicago, como um campo experimental da “educação
nova” ou “pedagogia nova” ou, ainda, a “pedagogia da
escola nova” (o que gerou entre nós o termo
“escolanovismo”).
50
Diferentemente do período imperial no qual, as publicações sobre
crianças limitavam-se a uma ou outra tese oriunda de cópias de compêndios
franceses; o tema da infância e adolescência marcou presença no período
republicano. Os princípios da Escola Nova, ou seja “a corrente que trata de
mudar o rumo da educação tradicional, intelectualista e livresca, dando-lhe
sentido vivo e ativo”,
51
determinaram importância privilegiada para o estudo da
criança, colocando-a no centro do processo educacional.
Foi, portanto naquele novo Brasil, urbano-industrial e com ideais
liberais, que se viu emergir uma nova figura de governo, a população brasileira.
E com a população brasileira surge o “novo homem brasileiro”. O homem
moderno, este novo homem, exigido pela nova ordem urbano industrial,
deveria ser disciplinado, hígido, saudável, ativo e amante da pátria.
50
GHIRALDELLI Jr, P. Introdução à Educação Escolar Brasileira: História, Política e Filosofia
da Educação. p.23.
51
LUZURIAGA, L. História da educação e da pedagogia. São Paulo, Companhia
Editora Nacional, 1987 p.227.
30
2.2 – Homem Moderno: A invenção do “novo homem
brasileiro” e a ordenação do espaço
Entra em cena o julgamento das paixões, dos instintos, das
anomalias, das enfermidades, das inadaptações, dos
efeitos do meio ambiente ou da hereditariedade. E o
modelo que emerge é o de gerir a vida de forma ordenada
através da regulação do tempo e da fixação de limites
espaciais, com vistas à produção de um corpo individual
normatizado, que não ofereça resistência.
52
A intervenção sobre o espaço urbano foi feita em nome da prevenção
das doenças e das epidemias que ameaçavam, não só a saúde da mão-de-
obra necessária ao desenvolvimento do capitalismo, como também a saúde
das elites oligárquicas. A remodelação e o saneamento do Rio de Janeiro e as
primeiras grandes vitórias da presidência Rodrigues Alves assinalaram uma
etapa histórica na vida nacional. Não era apenas a capital que se modernizava,
mas sim o Brasil que sonhava com uma “vida nova”, muito distante de sua
antiga fisionomia classificada na época como “anti-higiênica”. Tais discursos
oriundos do século das luzes, em que estavam em pauta idéias de liberdade e
de progresso, anunciaram o surgimento de um novo modo de exercer o poder.
Tal união também pode ser vista como um saneamento científico, cuja
tecnologia de poder esteve voltada para o controle e a gestão dos desviantes:
isolando o louco, vacinando o doente e promovendo uma intervenção médica
na sociedade urbano-industrial do início do século XX.
Dessa forma, com a população dividida em classes, composta por
novos atores - com a formação do proletariado e a ascensão das camadas
médias, os intelectuais brasileiros buscaram romper definitivamente com o
modo de gestão Imperial. Para isso, foram adotadas como modelos correntes
de pensamento européias, tais como o positivismo comtista, o darwinismo, o
evolucionismo, o determinismo, enfim, as várias formas de antagonismo do
século XIX. A crença no determinismo biológico, por exemplo, permitiu
acreditar que não só a vida de um homem, mas, também os seus
52
MONTEIRO DE ABREU, A. op. cit. p.66.
31
comportamentos sociais poderiam ser definidos e justificados pela herança
genética. Dessa forma, explica Moysés
53
,
a vida social, a sociedade é determinada biologicamente,
pela simples somatória dos atributos biológicos, individuais
de seus membros. Entende-se porque o determinismo
biológico (ou biologização da sociedade) é parceiro do
reducionismo, que pretende que as características de
qualquer coisa, seja no plano do mundo da natureza ou do
mundo social, pode ser explicada apenas pela somatória
das características de suas partes.
A biologia constituiu, naquele momento, a ciência encarregada de
explicar comportamentos. Assim, vista como um corpo biológico, a criança que
desviava do comportamento padrão foi transformada em “doente”. Veremos ao
longo deste capítulo o processo de institucionalização do comportamento que
passou a ser visto, juntamente com a inteligência e a aprendizagem, como
matérias do campo médico.
Teorias como a teoria da degenerescência”, formulada por Morel
contribuíram para que naquele momento se acreditasse na existência de um
“mal” orgânico e geneticamente transmissível aos descendentes difundindo-se
a idéia de que era necessário proteger-se do “mal” prevenindo mais que
remediando
54
e as do psiquiatra italiano Cesare Lombroso, considerado
fundador da antropologia criminal, postulava a existência do “criminoso nato”.
Ou seja, para Lombroso além dos traços hereditários, existiria uma
predisposição do degenerado, a qual poderia ser identificada a partir dos
estigmas da degenerescência (sinais mais ou menos típicos, físicos ou morais).
Além da degenerescência de Morel e da antropologia criminal de
Lombroso, a demanda republicana de ordenação e limpeza do espaço urbano
ainda precisou importar mais uma descoberta no campo da ciência do homem,
que foi o movimento eugenista baseado nos estudos do biólogo, geógrafo e
estatístico Francis Galton. Naquela época, o mundo estava impregnado pela
53
MOYSÉS, M. A. A. op. cit. p.102.
54
O Tratado das degenerescências físicas, intelectuais e morais da espécie humana e
das causas que produzem as variedades doentias foi produzido em 1857 e difundido
através de seu Traité des Dégénérescences physiques, intelectuelles et Morales de
l’espéce humaine et des causes qui produisent ces variétés maladives.
32
teoria evolucionista de Darwin, Galton, então, inspirado nas teorias escreveu o
livro Hereditary Genius no qual, a partir dos seus estudos sobre a
hereditariedade, pretendeu intervir sobre a evolução humana, no sentido de
aperfeiçoar a espécie pela seleção de cruzamentos.
Ele tinha como projeto o aprimoramento da espécie humana. Para
exemplificar a influência do eugenismo no Brasil, podemos citar a fundação, em
1917, Renato Kehl, da primeira Sociedade Eugênica da América do Sul
liderada pelo médico paulista. Compartilhando das idéias de Galton, Kehl viu
na Educação Eugênica a possibilidade de desenvolver uma ciência para
melhorar o patrimônio hereditário do povo brasileiro. Os postulados de sua
Sociedade Eugênica buscavam interferir na união dos casais de maneira a
evitar o nascimento de insanos e degenerados. Para Kehl, a Eugenia evitaria
os males nas suas origens por que: “Ela proíbe o casamento de todo o
indivíduo atacado de mal hereditário. Quem não aplaude a criação desta
disposição proibitiva, acauteladora das futuras proles...?”
55
Da Sociedade Eugênica para a Câmara dos Deputados, em 1927,
num projeto repleto de pareceres médicos favoráveis, tenta-se transformar em
lei a necessidade do Certificado Médico Pré-nupcial. Acreditava-se que o
certificado exerceria o controle sobre o casamento entre doentes e,
conseqüentemente, evitaria a contaminação dos descendentes pelas temidas
doenças transmissíveis como a tuberculose, a lepra, a sífilis contagiante, a
blenorragia, o cancro venéreo, a epilepsia confirmada, a idiotia, a imbecilidade
e a alienação mental sob todas as suas formas
56
.
Assim como no episódio da “revolta das vacinas”, momento em que
Oswaldo Cruz, ainda triunfante por seus resultados na luta contra a febre
amarela e a peste bubônica, tentou efetivar a vacinação contra a varíola,
instituindo a lei da vacina compulsória no governo Rodrigues Alves. A lei que
instituía a obrigatoriedade do Certificado Pré-nupcial não vingou, mostrando a
não eficácia da coerção, das leis e dos decretos quando o assunto era a saúde
da população. Até por que, numa sociedade com ideais liberais, preservar a
55
KEHL, R. Eugenia e medicina social – o problema da vida. Rio de Janeiro, 2ª
edição, Francisco Alves, 1923, p.20.
56
Sobre esse assunto ver KEHL, R. Certificado médico pré-nupcial –
regulamentação eugênica do casamento, Separata do “Brasil-Médico”, Rio de
Janeiro, Sodré e Cia Editores, 1930, p.5
33
liberdade do cidadão e o individualismo, constituía-se numa questão política da
maior importância que se sobrepunha até ao perigo do contágio.
Dessa forma, podemos afirmar que foram teorias geradas na Europa,
que influenciaram os discursos dos nossos intelectuais preocupados com o
desenvolvimento civilizatório do país e de seus habitantes. Assim o discurso
proferido em diversas instâncias afirmava a necessidade de “branquear”,
“regenerar”, “aprimorar” a raça do povo brasileiro a fim de evitar que o mal da
degenerescência comprometesse o futuro da nação. Era preciso proteger os
indivíduos na nova sociedade, afastá-los das áreas de risco e fazê-los evitar o
contágio. Para isso, foi necessário desenvolver, nas cidades e nos centros
urbanos, o saneamento, não somente dos espaços, mas também dos corpos e
da própria vida social.
As transformações políticas e econômicas que ocorrem na
sociedade, na fase inicial do capitalismo, demandam, para
sua consolidação, transformações também, nas formas de
se organizar a vida das pessoas e, mais ainda, nas formas
de se pensar esta organização. O capitalismo e o
liberalismo necessitam de uma nova conformação de
sociedade, mais especificamente de família.
57
Foucault (1977) definiu as sociedades modernas como “sociedades
disciplinares”. Diferente da escravidão, da domesticidade, da vassalidade, do
ascetismo e das ‘disciplinas’ de tipo monástico, a dominação gerada pelo poder
da disciplina produziu o corpo do homem moderno, segmentando-o em
diversas partes, num total esquadrinhamento. Nas sociedades disciplinares, o
corpo transformou-se a partir daquela tecnologia específica de poder em
indivíduo, e como tal, possuía uma individualidade fabricada. Inventaram-se as
ciências do homem com seus especialistas e seus saberes específicos. O
especialista era, portanto, naquele tempo, aquele que revelaria a “Verdade”
com seu modo disciplinar, partindo sempre de um esmiuçamento absoluto, de
uma “anatomia política do detalhe”. Naquela anatomia composta de padrões e
modelos, vão constituindo-se muitas outras instituições, como o diagnóstico, a
avaliação, o desempenho. E assim os corpos-indivíduos, lá fabricados, eram
57
MOYSÉS, M. A. A. op. cit. p.173.
34
descritos, mensurados, analisados, classificados, treinados, esquadrinhados
pela tecnologia específica de poder denominada “disciplina”.
Em Vigiar e Punir
58
, Foucault descreve com detalhes o
aprimoramento das práticas disciplinares nas Escolas, como as divisões em
séries, de séries em classes, de classes em filas, numa composição
individualizada, ao mesmo tempo classificatória e combinatória. Nesta
condição, com metas a serem alcançadas, o aluno passará ser medido em
escalas de desenvolvimento, num constante processo de avaliação. Foi, sem
dúvida, um tempo de expansão dos olhares biologizante e psicologizante em
direção ao aprendiz.
58
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1977 p.77.
35
2.3 – Educação Moderna: uma estratégia biopolítica?
Esta surgindo um novo modo de exercer o poder. O poder
que antes se exercia pelo confisco e supressão da vida
transforma-se em um poder destinado a produzir forças
mais do que barrá-las ou destruí-las. Encarregado da
gestão calculista da vida, esse poder passa a operar tanto
na via das ordenações disciplinares dos corpos como na
via do controle da vida como conjunto. Trata-se de um
longo processo em que o homem ocidental aprende pouco
a pouco o que é ser espécie viva num mundo vivo: ter um
corpo e construir as próprias condições de existência a
partir de forças que podem se modificar.
59
Os discursos disciplinares tiveram, segundo Madel Luz
60
, seu ápice
institucional na primeira metade do século XX “atualizando-se nas escolas, nas
creches, nos lares, nos quartéis, nas fabricas”. Ou seja, os estabelecimentos
passaram a funcionar reproduzindo categorias e conceitos originários do
discurso científico disciplinar como o mecanicismo na medicina que utilizava a
metáfora “homem como uma máquina” para entender o funcionamento do
corpo humano.
A multiplicação de disciplinas, de objetividades discursivas
especializadas, é uma das características mais importantes
da racionalidade moderna. Praticamente desdobráveis ao
infinito, as disciplinas podem tematizar seja conjunto de
relações teóricas entre sistemas de preposições, seja a
matéria desde sua mais intima partícula até o gigantesco
astronômico, seja a totalidade dos seres vivos, vegetais,
animais, humanos. E, entre os seres humanos, seja nas
relações sociais, seja a privacidade cotidiana de seus
afetos e hábitos individuais, seja a materialidade orgânica
de seu corpo.
61
Neste sentido a medicina é um saber que incide ao mesmo tempo
sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos
biológicos tendo, portanto, efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores’
62
. A
59
MONTEIRO DE ABREU, A. op. cit. p.61.
60
LUZ, M. T. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade cientifica
moderna, Rio de Janeiro, Campus, 1988 p.7.
61
LUZ, M T. op. cit. p.3.
62
FOUCAULT, M. – Em defesa da sociedade: curso no Collège de France, São Paulo,
Martins Fontes, 1975-1976 p.302.
36
medicina, com sua racionalidade e seu aparato cientítico-positivista, exerceu o
biopoder, um novo poder sobre a vida prescrevendo para a população normas
de higiene e de controle social, através da imposição de normas familiares
burguesas e da apropriação da infância pelo saber médico. Para isso, tornou-
se fundamental instituir tanto nas instituições de saúde quanto nas instituições
escolares a vigilância, a sansão normalizadora e as técnicas de exame,
disciplinando os corpos e regulamentando a população.
A medicina criou suas especialidades para assumir a função de
normalizadora da vida. A neurologia, a puericultura e a psiquiatria foram
instituídas como especialidades médicas que, munidas de um “olhar clínico”
bem desenvolvido, identificarão as anormalidades produzindo para a educação
uma relação entre doença e não-aprender.
Loucos, deficientes e criminosos, temidos por conter os contagiosos
genes da degenerescência serão identificados e isolados daqueles
considerados sãos. Os sãos eram aqueles cuja forma/vida se constituía de
maneira “ordenada através da regulação do tempo e da fixação de limites
espaciais, com vistas à produção de um corpo individual normatizado, que não
ofereça resistência”
63
. Os sãos deveriam existir como cópias fiéis ao modelo,
uma vez que “a dualidade postulada por Platão assegurava uma ‘ordem’ e uma
‘hierarquia’ em que acima estavam os modelos e abaixo vinham as cópias. As
cópias ficavam sob controle, posto que almejavam aos modelos e com eles
procuravam se identificar”.
A prática de isolamento do desvio com o seu respectivo
confinamento constituiu o modo de funcionar da medicina na modernidade.
Falaremos sobre esse assunto mais adiante, quando abordarmos o movimento,
ocorrido neste período, intitulado: “caçada aos anormais”. Antes disso,
procuraremos entender como se constituiu a relação de tutela entre o saber
médico e o campo escolar uma vez que “a pedagogia tomou a biologia como
modelo, esta se transformou rapidamente em ciência médica: aqueles que se
desviavam das normas, formariam indivíduos deficientes, anormais enfermos”,
ressaltam Dussel e Caruso
64
. O que se produziu (e ainda se produz) com a
63
MONTEIRO DE ABREU, A. op. cit. p.66.
64
DUSSEL, I. e CARUSO, M. A invenção da sala de aula. São Paulo, Editora
Moderna, 2002 p. 180.
37
interferência do saber-poder médico no campo escolar, uma vez que a
medicina durante todo o século XX procurou transformar todos os espaços
sociais, todos os espaços do viver, em espaços de intervenção médica?
Como já dissemos, a puericultura emergiu neste período a partir da
disseminação da idéia de que os pais precisavam aprender a cuidar de seus
filhos e que a doença (incluindo aí as doenças do não-aprender) era fruto da
ignorância dos pais. Como, então, acessar os pais? A escola aparece como
campo de atuação do saber-poder médico, o qual vê no espaço escolar um
lugar que deve ser inspecionado, normatizado e disciplinarizado de acordo com
as regras da higiene.
A inspeção médica nos colégios foi iniciada ainda no século XIX
65
, mas
no contexto higienista do inicio do século XX o serviço foi oficializado. Tendo
como um dos principais incentivadores o médico Moncorvo Filho, criou-se na
gestão do prefeito Inocêncio Serzedello Correa
66
, no Rio de Janeiro, o Serviço
de Inspeção Médica na escola mais um tentáculo do saber médico a exercer
um domínio de atuação no espaço escolar, prescrevendo normas de conduta
de higiene e fiscalizando a saúde de todos os atores sociais da escola:
professores, alunos e funcionários. Lobo nos relata alguns trabalhos de
Moncorvo e de sua equipe, que pretendiam valorizar e difundir a prevenção.
Assim, segundo Lobo, ele:
Empreenderá com sua equipe verdadeira cruzada de
conferências e conselhos gratuitos pelo Brasil a fora,
dirigidos principalmente às mulheres, em seus papeis de
mães e esposas. Nas mães procurará incutir-lhes a
importância do aleitamento natural e do exame médico das
nutrizes, as normas da higiene infantil, desqualificando, em
contrapartida, todo um saber popular dos chás, das
crendices e simpatias no trato dos bebes e suas moléstias.
Às esposas atribuirá a responsabilidade pela limpeza do
lar, pela separação das crianças dos quartos dos pais, pela
permanência do marido em casa para evitar a freqüência
aos botequins e bordéis
67
65
Em 1889, é promulgado um decreto, pelo Barão do Lavradio, que regulamentava,
com detalhe, a inspetoria nas escolas MOYSES, M. A. op. cit p.186.
66
SERZEDELLO CORREA, Inocêncio. Inspeção sanitária escolar – apontamentos
sobre as primeiras medidas postas em pratica para a organização do serviço,
Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do País, 1909, p.32.
67
LOBO, L. F. op. cit. p.138.
38
Podemos pensar que o discurso de prevenção veiculado na primeira
metade do século serviu como uma luva para que a racionalidade biomédica se
instalasse no campo escolar e ali fincasse suas raízes. Em Dilema
Preventivista, Arouca nos mostra que falar em prevenção no início do século
era falar dos preceitos da higiene onde o que se pretendia era defender a
espécie e a raça quando a suspeita era de ameaça ou perigo iminente.
Peixoto (1938) em seu Tratado de medicina pública,
conceitua Higiene como “o conjunto de preceitos buscados
em todos os conhecimentos humanos, mesmo fora e além
da medicina, tendentes a cuidar da saúde e poupar a vida”.
Assim, o autor considera a Higiene como uma nova
medicina, pois se “a velha medicina procurava, muitas
vezes sem o conseguir, curar as doenças, esta (a Higiene)
trata da saúde, para evitar a doença”. A Medicina
Preventiva aparece nesta obra como parte da Higiene.
68
Com o discurso de que havia sempre um mal à espreita de todos
nós, a prevenção ofereceu-se como única forma de evitar aquele mal.
Podemos pensar, então, que identificar o mal em estado nascendi era o
mesmo que identificar nas crianças todo e qualquer indício de anormalidade.
É importante deixar claro que, como ainda hoje observamos, as
crianças de elite sofrerão intervenções diferentes das crianças de classes
desfavorecidas. No início do século, os médicos higienistas, atentos para a
importância da educação das crianças de elite no projeto de modernização da
sociedade, criaram uma série de normas e formularam diversas teorias a
respeito das diferenças individuais dos alunos quanto às capacidades físicas,
sensoriais e psicológicas. Interferiam, com seus preceitos higiênicos, sobre as
instalações, os mobiliários, a alimentação, os horários da rotina, a separação
em classes na escola e acima de tudo interferiam no processo de
aprendizagem. Já para as crianças pobres, defeituosas o mesmo empenho não
foi observado, tais crianças habitavam o discurso médico somente quando o
68
AROUCA, S. O Dilema Preventivista. Rio de Janeiro, Editora Unesp, 2003, p.33.
39
assunto era o “perigo da degeneração” e das epidemias, uma vez que Morel já
havia sentenciado que “classes pobres, classes perigosas”.
69
De um modo geral, as instituições educativas passaram a constituir o
foco dos higienistas e juristas como lugar privilegiado de detecção, prevenção e
correção de desvios infantis e juvenis. Nesse contexto, a criança foi vista como
a esperança de uma nação saudável, o que a fez alvo prioritário da prevenção.
O movimento de aprimoramento do povo brasileiro passou a incluir o cuidado
com a criança tendo como estratégias a difusão e proliferação da escola
primária de um lado e, o movimento de prevenção dos higienistas de outro. O
anseio de uma “nova sociedade” exigiu uma transformação da pedagogia
fazendo da escola o local da formação de indivíduos aptos a tornarem-se
cidadãos de uma tão sonhada democracia.
Desta forma, a medicina exercendo o biopoder
70
sobre a população,
com o seu discurso produtor de verdades, colocou em ação o que se chamou
de práticas higienistas e seus dispositivos de controle e poder. Como exemplo,
podemos citar os grupos de profissionais da saúde chamados de “Pelotões da
Saúde”. Os “Pelotões da Saúde” segundo Carlos Sá, em seu livro Higiene e
Educação da Saúde
71
, eram calcados nos modelos americanos e europeus e
propunham a criação de hábitos físicos e mentais. Estimulando a competição,
os alunos eram classificados para a formação do “pelotão” de acordo com um
perfil de aptidões e habilidades individuais a desenvolver, ou defeitos e
doenças a corrigir. Os profissionais da saúde (integrantes do “pelotão”), numa
relação visivelmente hierarquizada, davam as coordenadas e as tarefas para
que os professores das escolas públicas as cumprissem.
Ainda visando a capacitação dos professores, uma série de
disciplinas foram incorporadas no curso de formação do professor primário.
Assistimos na primeira metade do século XX, à expansão dos conteúdos
médicos na formação do professor com a criação de novos serviços de saúde
escolar e a presença de disciplinas correlatas ao campo biomédico no
69
MOREL apud LOBO, L. op.cit. p. 87
70
O termo biopoder aparece pela primeira vez na obra de Michel Foucault na
conferência “O nascimento da Medina Social” realizada no Rio de Janeiro em 1974 e
publicada por Roberto Machado em Microfísica do Poder, em 1979.
71
SÁ, C. Higiene e Educação da Saúde, 7ª ed. Rio de Janeiro, Ministério da
Educação e Saúde. Departamento Nacional de Saúde, Serviço de Educação
Sanitária, 1963.
40
currículo. Essas disciplinas contribuíram de forma efetiva para o
desenvolvimento do que se pode chamar de um “exercício disciplinado do
olhar” tornando a criança, a escola e a pedagogia objetos de estudos, para os
quais o professor foi capacitado como investigador do corpo do seu aluno no
cotidiano. Assim, desenvolvia-se o “olhar clínico” do professor, ele deveria olhar
para o seu aluno e, tal qual o médico, deveria identificar os desvios, as
patologias e as doenças do não-aprender. O professor, instruído e capacitado
pelas especialidades médicas e pelas disciplinas de conteúdo biomédico,
deveria tornar-se capaz de distinguir entre seus alunos os que eram educáveis
e os não eram a partir de medições das aptidões dentre elas a inteligência.
Desenvolveremos melhor, mais adiante, esse processo de produção
do “olhar clínico” do professor para problematizarmos a seguinte questão: o
que o professor vê quando lança o seu olhar em direção à criança “desatenta”,
“inquieta”, “distraída”, “impulsiva” e “desobediente”?
41
2.4 - Medicalização em ação e a caçada aos anormais.
O problema remete a um risco mais sutil, embora não
menos perigoso: o risco da anormalidade que ronda todas
as casas, todos os becos e que, segundo nos ensinou
Morel, é mutante e traiçoeiro, pois surpreende ainda no
ventre materno, como uma disposição hereditária, um
defeito inscrito na herança parental, impossível de ser
apagado ou corrigido.
72
Todo aquele processo do início do século XX parece demonstrar a
influência do saber-poder médico tanto nas práticas educativas quanto na
formação dos professores. Trata-se do modo como a vida é normatizada pela
medicina com prescrições de condutas para todos os níveis da existência.
Podemos pensar em uma medicalização do processo educacional produzindo
práticas e discursos para determinar formas de pensar e de se comportar,
formas de ensinar e de aprender. O saber-poder médico, aliado aos modernos
preceitos do escolanovismo, foi ganhando terreno nas esferas educacionais e,
pouco a pouco, foi se infiltrando nos programas de Ensino da Escola Normal.
Testes psicológicos começaram a ser usados nas escolas, consolidando a
aliança entre os educadores da Associação Brasileira de Educação com a Liga
Brasileira de Higiene Mental, ao lado da organização das redes de ensino
primário no Brasil que, a partir da “expansão do movimento da Escola Nova,
introduziram o poderoso instrumental da psicologia nas escolas e nos cursos
normais”
73
, contribuindo para o processo de identificação dos desviantes por
parte dos professores.
Hora
74
afirma que “educação e medicina – irão se articular, movidos
pelos apelos do projeto de modernização da sociedade brasileira”. Contudo,
segundo a autora será no final da primeira República que identificamos com
maior nitidez a expansão dos conteúdos médicos na formação do professor.
“Novas disciplinas como a Biologia Educacional e Anatomia e Fisiologia
Humanas foram criadas no currículo e a Higiene se refinou ao dividir-se em
três: Higiene e primeiros cuidados médicos, Higiene e Puericultura, Higiene e
72
SANTOS A. R. C. Alienados, Anormais, Usuários, Claudicantes:A máquina
psiquiátrica e a produção de ´subjetividade falha´. Dissertação de Mestrado,
Niterói, UFF, 2003, mimeo. p.83.
73
LOBO, L. op.cit. p. 349.
74
HORA, D. M. Op. Cit. p.47 e 55.
42
Educação Sanitária”. Tais disciplinas proporcionaram a adesão dos
professores, dos alunos e de seus familiares aos procedimentos higiênicos,
medicalizando a infância ao transformar a escola em local de experimentação e
pesquisa para o desenvolvimento do saber da medicina e da psicologia.
As escolas começam a organizar uma medicina preventiva
que dava ao médico a intervenção mais constante e eficaz:
o exame do desenvolvimento físico da criança
75
:
Concomitantemente aos serviços médicos, criados para funcionarem
como anexos das salas de aula, e a partir do que se aprendia nas disciplinas
de conteúdo biomédico, os professores desenvolviam um modo de ver e
perceber seus alunos, o “olhar clínico”. Tal olhar funcionou, a partir de então,
como uma prótese com a marca da racionalidade biomédica, uma lente para
ver o que se passava na sala de aula. Nela o que se via era um corpo pronto
para ser mensurado, avaliado, classificado, diagnosticado. Para aumentar a
capacidade dessa lente, a anamnese
76
, uma ferramenta de diagnóstico
médico
77
, passou a ser amplamente utilizada pelos professores, colaborando
assim, para um longo processo de “fichamento” dos alunos.
Inicialmente utilizaram-se “cadernetas escolares” nos quais médicos
e pedagogos faziam seus registros, incluindo, segundo Hora
78
“todas as
observações antropométricas, médicas, biológicas, fisiológicas, e psíquicas,
todos os incidentes, variações, e desvios em relação aos padrões e escalas de
crescimento da criança”.
Mais tarde, outro dispositivo de controle introduzido foi a Ficha
Sanitária Escolar, primeiro mandamento da higiene escolar. Tais fichas e suas
detalhadas informações a respeito do aluno permitiam recolher informações
75
HORA, D. M. op. cit. p.165.
76
“É historicamente datada uma forma de produção de conhecimento pela medicina
na qual o medico é aquele que interroga sobre os sintomas, e torna-se a figura social
mais legitima para sobre o funcionamento do corpo de qualquer um e de suas
alterações” HORA, D M. op.cit p.51.
77
Procedimento até hoje utilizado nas escolas, a Anamnese (do grego ana, trazer de novo e
mnesis, memória) significa no campo médico relembrar todos os fatos que se relacionam com a
doença e à pessoa doente. Trata-se de uma entrevista médica ou terapêutica, realizada como
ponto inicial no diagnóstico de uma doença.
78
HORA, D. M. op. cit. p.166.
43
sobre as crianças e suas respectivas famílias, de modo que todos, médicos,
psicólogos e professores, pudessem fazer previsões dos resultados escolares
e de comportamentos sociais futuros.
Foram também criados serviços para identificar os anormais fora do
ambiente escolar. Denominados como “visitadores sociais”
79
e vinculados aos
serviços de neuropsiquiatria infantil tais profissionais foram os responsáveis
pelos inquéritos realizados em crianças para identificar aquelas com suspeita
de amoralidade e assim prevenir o contágio das outras crianças. Coletando e
armazenando dados sobre o aluno produziu-se um total esquadrinhamento da
população infantil. Como efeito dessas práticas criou-se classes escolares
diferenciadas: principais para alunos normais, diferenciais para débeis de
espírito, instáveis e retardados e as especiais para os anormais psíquicos
verdadeiros. Segundo Dussel e Caruso
80
“a assimilação da pedagogia pela
biologia também resultou no determinismo da análise daqueles que poderiam
triunfar na escola e daqueles que fracassariam”.
Lobo, ao fazer uma cartografia da Instituição das Deficiências no
Brasil, deixa claro que “a figura do anormal (de inteligência ou de moral) só
surgirá como objeto médico pedagógico no início do século XX”. E junto com a
invenção do anormal e a configuração do espaço asilar como território de
tratamento do desviante, temos a consolidação da psiquiatria como uma nova
especialidade médica responsável pela higiene das paixões. Segundo Monteiro
de Abreu
81
a psiquiatria surgiu “na aurora da industrialização da sociedade
ocidental” para instituir “a perspectiva de uma moral regulada”. Aquela nova
especialidade médica fez emergir o asilo de alienados como dispositivo de
produção e assistência da loucura medicalizada, ou seja, da loucura definida
como doença. O louco passou a ser visto como incapaz e perigoso,
necessitando ser privado da liberdade. Confinado, ele tornou-se alvo das
tecnologias de saber-poder da medicina, que atribuía como causas de seu mal,
as determinações hereditárias e as lesões orgânicas. “Periculosidade, tutela, e
incapacidade serão os vocábulos que irão circunscrever, na modernidade, o
79
A criação dos visitadores sociais foi proposta pelo presidente da Liga Brasileira de
Higiene mental (LBHM) e adepto da psiquiatria alemã Ernani Lopes em seus escritos
para a revista ´Arquivos Brasileiros de Higiene Mental´.
80
DUSSEL, I. e CARUSO, M. op. cit. p. 180.
81
MONTEIRO DE ABREU, A. op. cit.. p.69.
44
personagem individualizado que emerge nas novas práticas disciplinares”,
sintetiza Santos
82
.
A psiquiatria se consolida como saber-poder que
administra a desordem, a indisciplina, a ausência de afeto
e a ausência de bondade, a agitação e a recalcitrância, a
libertinagem e a lassidão. Toda e qualquer conduta que se
afaste do metro implacável da normalidade será objeto
deste saber. De saber sobre a alienação mental, modesto
território circunscrito, a psiquiatria alarga generosamente
seu horizonte e se constitui em saber sobre as condutas
anormais, os indivíduos anormais. Transforma-se, pois, em
uma tecnologia da anomalia.
83
Desta forma, a partir da noção de anormalidade, calcada no conceito
de degenerescência e hereditariedade, vimos surgir uma nova classificação de
doenças mentais, uma nova nosografia. Ou seja, na nova nosografia, a doença
mental não se configurou mais a partir de uma sintomatologia de base
meramente descritiva
84
. A doença passou a ter uma causa objetiva, uma
etiologia. No final do século XIX, além da causalidade oculta da doença,
consolidaram-se as síndromes, certas configurações anômalas, que reuniam
diferentes tipos de excentricidades e aberrações. Tal mudança nosográfica
determinou profundas mudanças na forma de codificar, diagnosticar, intervir e
acompanhar o curso da doença mental. Novas síndromes como as
agorafobias, a cleptomania e o masoquismo foram descritas e o delírio foi
amplamente classificado.
Além disso, a noção de “estado” cunhada por Falret entre os anos
1860 e 1870, em que estado não é um traço, mas uma “espécie de déficit geral
das instâncias de coordenação do indivíduo”; “liberação descontínua e
imprevisível do que deveria ser inibido, integrado e controlado”
85
caracterizou o
anormal. Tudo o que era patológico ou anormal, no corpo ou ao nível do
comportamento, como as doenças físicas, psicológicas, deformidades,
82
SANTOS A. R. C., Op. cit. p.20.
83
SANTOS A. R. C. Op. cit.p.74 e 75.
84
“A nosografia anterior, também denominada como nosografia pineliana era baseada
na descrição dos sintomas para a realização da classificação das doenças mentais”.
SANTOS A. R. C op. cit. p. 770.
85
FOUCAULT apud SANTOS A. R. C op. cit. p.80.
45
impulsos, atos de delinqüência, qualquer desvio (podemos incluir os desvios
encontrados nas crianças) foi considerado efeito do estado ou, como também
foi chamado posteriormente de fundo psíquico. A “hereditariedade dos desvios”
e a “degenerescência da espécie” deram ao psiquiatra um novo status, o de
protetor biológico da espécie. Tal concepção fez com que se buscasse uma
forma de atingir o processo patológico em seu estado nascendi ou mesmo de
prevenir sua instalação antes que ela aconteça. A partir daí, a palavra de
ordem, circulante no discurso dos psiquiatras tornou-se a prevenção, pois que
para eles, os desvios/doenças transmitidos hereditariamente poderiam levar a
sociedade a um estado de degenerescência total.
Lobo nos chama atenção para o fato de que: “todo esse processo
engendrado pela psiquiatria francesa será o fundamento dos primeiros
trabalhos dos nossos médicos e educadores sobre a criança anormal no inicio
do século XX”
86
.
Nesse contexto a psiquiatria assumiu-se como a verdadeira ciência
médica com o claro propósito de ir ao encontro de qualquer conduta desviante.
A teoria da degenerescência se constituiu como a peça central para a
identificação do anormal e sua respectiva medicalização, pois possibilitou situar
a patologia no corpo biológico e, desta forma, transformar o anormal em objeto
de intervenção estritamente médica. A definição dos estados anormais também
resultou numa mudança de perspectiva em relação à noção de cura. Os
anormais, a partir desta nova psiquiatria e nova nosografia, apresentariam uma
natureza inalterável. Assim, distinguir o indivíduo normal do degenerado
passou a ser objetivo de todos aqueles que em seus discursos mostravam-se
dispostos a construir uma nação civilizada e evoluída.
Além da Liga Brasileira de Higiene Mental
87
, criada em 1923,
Gustavo Riedel mais tarde organizou sua revista “Arquivos Brasileiros de
Higiene Mental”, na qual seus integrantes divulgavam idéias e pesquisas. Os
integrantes da Liga, assim como os psiquiatras, assinala Santos, trocaram as
86
LOBO, L. F. op.cit. p. 294.
87
A LBHM inicialmente considerada instituição de utilidade pública recebia doações
de entidades filantrópicas, mais tarde, a partir de 1925, passou a receber também
subvenções do Governo Federal.
46
“matrizes alienistas francesas pela psiquiatria alemã divulgada por Kraepelin
88
,
estritamente organicista, tributária da eugenia e da hereditariedade”
89
. Este foi
o caso de Juliano Moreira que, em 1903, era diretor do Hospício Nacional de
Alienados, tornando-se, em 1911, também diretor da Assistência Médico-Legal
a Alienados, e permanecendo nos dois cargos até o final da Primeira
República. Para Juliano Moreira, a psiquiatria deveria ser entendida numa
perspectiva científica na qual, como já dissemos, a clássica nosografia
pineliana assentada no sintoma seria substituída por um novo modelo
classificatório apoiado na pesquisa das causas e dos sinais clínicos e na
anatomia patológica. Isso fez com que o anormal se transformasse em
entidade clínica com características próprias, as quais só um especialista com
o olho treinado pela ciência poderia identificar. E, ainda, como afirmou Foucault
“a eliminação pelo suplício é, assim, substituída por métodos de assepsia: a
criminologia, a eugenia, a exclusão dos ‘degenerados’...”
90
Dessa forma, segundo Lobo, “essa figura do indisciplinado, vicioso,
instável, contumaz, desequilibrado, impulsivo, qualificado sob inúmeras outras
denominações, povoou toda a literatura médico-pedagógica sobre a criança
anormal”
91
, constituindo uma nova categoria da nosografia psiquiátrica, uma
entidade clínica.
Uma vez identificados, os desviantes da norma deveriam ser
separados dos sãos, determinando assim, a construção dos espaços asilares,
dentre eles o Hospício de Pedro II, seguido do Imperial Instituto dos Meninos
Cegos e do Instituto de Surdos-Mudos construídos ainda no século XIX. Já no
século XX, criou-se o Pavilhão Bourneville situado no interior do Hospício
Nacional dos Alienados. O pavilhão Bourneville foi o primeiro estabelecimento
e, durante muito tempo, o único especializado em crianças anormais. Sua
88
“Kraepelin é um marco da psiquiatria alemã que compreende a enfermidade mental
em um quadro de referência clínico, que supõe a evolução do quadro patológico e um
nexo causal objetivo no processo de adoecimento. Agrega ainda as contribuições da
psicologia experimental, sem abrir mão, contudo, da etiologia orgânica da doença
mental. Em 1904, ao propor um novo quadro classificatório organizado em torno das
causas da doença, Kraepelin formula a noção de personalidade psicopática para se
referir àqueles que não se enquadram nas formas conhecidas de alienação mental,
mas não obstante, se desviam dos parâmetros sociais vigentes”. SANTOS A. R. C
op.cit. p.94.
89
SANTOS, A. R. C.. op. cit.. p. 93.
90
FOUCAULT, M. op. cit. p.145.
91
LOBO, L. F. op. cit. p. 325.
47
população rapidamente excedeu o limite de sua capacidade, uma vez que
“instaurada a caçada aos anormais, a população do Hospício só tenderia
aumentar”, esclarece Lobo.
92
Com o uso indiscriminado dos recém descobertos
testes psicológicos pelos serviços de psicologia estabelecidos no interior das
escolas, vimos acontecer a “caçada aos anormais”. Segundo a autora no
experimento de Clemente Quaglio realizado em 1913, quando foi aplicada a
escala métrica de Binet-Simon num grupo de crianças de uma escola em São
Paulo, foi encontrada uma percentagem de anormalidade de 13% numa
população de 149 crianças. Assim, foi a partir deste resultado que Quaglio
produziu uma generalização para todo o estado de São Paulo proclamando
naquele momento a existência de 12.058 anormais e a urgente necessidade de
identificá-los.
Como argumento principal, médicos e educadores alegavam a
vantagem econômica que significava separar os anormais das escolas
primárias “normais”. Nessa caçada, associaram-se critérios médicos e
pedagógicos para “distinguir os anormais completos (ou ineducáveis) e os
incompletos (educáveis) das demais crianças escolares”
93
. Afinal, era preciso
identificar os seres perigosos que “num primeiro momento poderiam passar
despercebidos ao olhar do mestre”.
94
Acreditava-se, portanto, que era o futuro
da nação que estava em jogo, de forma que anormais, convivendo com os
sãos, certamente prejudicariam o desenvolvimento da nova sociedade
brasileira.
Entretanto, o médico do Serviço de Higiene Mental do então Distrito
Federal, Arthur Ramos, em seu livro a Criança Problema de 1939, chamou-nos
atenção para o fato da história da assistência aos anormais escolares possuir
muita semelhança com a história da assistência ao homem alienado da razão.
A nova nosografia e a nova concepção de psiquiatria calcada nas noções de
hereditariedade e degenerescência determinaram o olhar do médico em
relação à criança desviante, criando assim a categoria anormal escolar. “A
92
LOBO, L. F. op. cit. p. 407.
93
LOBO, L. F. op. cit. p. 313.
94
LOBO, L. F. op. cit. p. 313.
48
criação desta categoria facilitou o trânsito do conceito de anormalidade dos
hospitais para as escolas” sintetizou Patto
95
.
Nos trinta primeiros anos do século XX, a avaliação dos anormais
escolares foi sinônimo de avaliação intelectual, realizada através do teste de
QI. O destino de um grande contingente de crianças em idade escolar foi
traçado a partir da utilização desses testes. Patto relata que naquele período,
tendo como palavra de ordem a higiene mental escolar, criou-se uma obsessão
preventivista, assim justificando-se a criação de “clínicas de hábitos” para as
crianças.
96
Entretanto, no final dos anos trinta, algumas publicações sobre o
assunto em questão, como o livro de Arthur Ramos (já citado) começaram a
demonstrar uma mudança de concepção etiológica e nosográfica em relação
ao estudo dos “anormais escolares”. Ramos chamou atenção para essa
população indiferenciada de crianças que povoavam os pavilhões especiais,
referidas como idiotas nos hospitais psiquiátricos, advertindo que os anormais
escolares constituíam um grupo muito amplo e “englobava o grosso das
crianças que por várias razões não podiam desempenhar os seus deveres de
escolaridade”
97
. Diante disso, perguntamos: que outras razões existiriam para
justificar o mau desempenho daquele grupo de alunos? A que categoria eles
deveriam pertencer? Se não eram normais, nem anormais, o que eles eram?
Para Ramos, somente uma percentagem pequena daquele grupo de crianças
mereceria ser classificada como anormais escolares, isto é, os anormais
seriam “aqueles escolares, que em virtude de defeitos constitucionais,
hereditários, ou de causas várias que lhes produzissem um desequilíbrio das
funções neuropsíquicas não poderiam ser educados no ambiente da escola
comum”.
98
Mesmo no contexto hegemônico de explicações medicalizantes,
Ramos enunciava um discurso oposto que levantava dúvidas sobre tantas
certezas estabelecidas. Nesse quadro histórico, podemos afirmar que, a partir
da metade do século XIX e no início do séc XX, foram os médicos que se
95
PATTO, M. H. S. A Produção do Fracasso Escolar, São Paulo, Casa do
Psicólogo, 2000, p. 63
96
PATTO, M. H. S. op. cit. p. 67.
97
RAMOS, A. A Criança Problema, Rio de Janeiro, Livraria Editora da Casa do
Estudante do Brasil, 2º ed., 1949, p 13.
98
RAMOS, A. op. cit. p.13.
49
ocuparam dos casos de dificuldade na aprendizagem escolar, ditando as
normas para os professores e definindo estratégias de intervenção para os
estabelecimentos escolares. Foi também naquela época que a imagem do
professor como educador sanitário se consolidou, tornando-o um profissional
análogo ao perfil de um soldado. Eram exigidos e aplicados aos professores
exames médicos e testes de inteligência, nos moldes dos que eram aplicados
ao exército americano. Pretendia-se, através das práticas eugenistas aplicadas
aos professores, submetê-los às mesmas técnicas de aprimoramento que se
impunham aos alunos. A seção de Ortofrenia e Higiene Mental do Instituto de
Pesquisas Educacionais, fundado em 1933 em decorrência da reforma de
Anísio Teixeira, tornou-se segundo Ramos, a “primeira experiência brasileira de
Instalação de Clinicas de Higiene Mental, nas escolas, articuladas com a tarefa
pedagógica.
99
No mesmo livro, afirmou que 90% das crianças tidas como
“anormais”, na verdade eram crianças “anormalizadas” pelo meio. Essa
afirmação parece apontar para uma mudança de sentido no conceito de
anormalidade. O que produzia a anormalidade? Tentando responder a isso,
Ramos parecia duvidar do orgânico como único e exclusivo causador da
anormalidade. Podemos pensar que o percentual de crianças (90%) tidas como
anormais foi efeito de uma concepção de racionalidade médica e psiquiátrica
que patologizou o desvio, transformando-o em anormalidade. Ramos quis
problematizar a demanda considerada como problemática, indagando se
realmente “a criança é turbulenta, agitada, desobediente, desatenta...” Na
grande maioria dos casos, não se tratava de nenhuma anormalidade
constitucional, mas tudo aquilo que podia revelar a existência de reações de
desajustamento”.
100
O autor parecia levar em conta outros aspectos na
produção das dificuldades escolares, como a influência do meio ambiente e a
da relação familiar. As crianças com problemas de “desajustamento”
receberam, a partir das produções teóricas de Ramos, o nome de “crianças
problema”. OU seja o pesquisador e estudioso não consegue se desvencilhar
das malhas da classificação presente na sua formação médica.
99
RAMOS, A. op. cit. p.26.
100
RAMOS, A. op. cit. p.19.
50
Patto, referindo-se ao discurso que aparece no final da Primeira
República, analisou que, se antes as crianças eram diagnosticadas a partir de
um discurso médico que falava em anormalidade genética e orgânica, “agora o
são com os instrumentos conceituais da psicologia clínica de inspiração
psicanalítica, que buscam no ambiente sócio-familiar as causas dos desajustes
infantis”. Aspectos como influência ambiental e desenvolvimento da
personalidade nos primeiros anos de vida ganharam, então, espaço entre os
especialistas que buscavam explicar o suposto insucesso escolar do aprendiz.
“Amplia-se assim, o espectro de possíveis problemas presentes no aprendiz.
As causas agora vão desde as físicas até as emocionais e de personalidade,
passando pelas intelectuais”, conclui Patto
101
. Mas o aumento do espectro de
explicações para o insucesso do aprendiz descrito por Patto em a produção do
Fracasso Escolar não foi suficiente para abalar a lógica medicalizante e a
respectiva relação de tutela entre os campos da saúde e da educação.
Podemos também pensar, analisando este período histórico, que o
movimento de “caçada aos anormais” serviu como estratégia para camuflar as
dificuldades socioeconômicas impostas à população, as deficiências do
sistema educacional e a inexistência de um sistema de saúde para a
população, presentes na Primeira República. Como assinala Hora,
Coube, portanto, ao saber médico científico a missão de
engendrar as soluções para o descompasso, que havia
entre as políticas públicas para a educação e a saúde e as
demandas da burguesia emergente. O saber médico
passou a explicar, com seus discursos, as desigualdades
entre as classes sociais, justificando o racismo brasileiro. A
pobreza, classificada como efeito da degeneração e da
miscigenação deixaram os governantes e suas respectivas
políticas públicas de educação e saúde para país isentos
de qualquer responsabilidade.
102
Chegando neste ponto de nosso caminhando, acreditamos ter
produzido elementos para pensar as condições de emergência do que estamos
chamando, aqui, de Medicalização da Vida Escolar e refletir sobre a luta de
forças entre instituições que hoje, concorrem para se afirmarem como
101
PATTO, M. H. S. op. cit. p. 66.
102
HORA, D. M. op. cit. p.
51
hegemônicas na explicação do não-aprender. E, retornando a nossa pergunta
inicial, queremos saber: como foi o fazer disto que está feito?
No próximo capítulo, dando continuidade ao processo de
desnaturalização das verdades cristalizadas, focaremos o momento presente,
momento em que o olhar do especialista retorna ao corpo do aprendiz, criando
novas patologias e novos tratamentos e a medicalização passa a atuar na
própria saúde com a captura do próprio viver pelo discurso biomédico.
Para interrogar o mundo contemporâneo seguiremos as pistas de um
outro caminhando cujo efeito/meta, encontramos nestas indagações de
Monteiro de Abreu:
Imersos no tempo, interrogamos o processo: o que se
passa? O que acontece? Como funciona? Como se
engendra tal saber, tal verdade, tal sintoma? Qual o
diagrama de forças que dá sustentação às formas
sintomáticas visíveis e dizíveis correlatas ao modo de
subjetivação dominante na atualidade? Como se dá o
processo de invisibilização das formas que ameaçam à
vida na atualidade?
103
103
MONTEIRO DE ABREU, A, op. cit p.90
52
3.1 Mundo contemporâneo e os discursos e práticas que
formatam o existir.
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se
opera simplesmente pela consciência ou pela
ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no
biológico, no somático, no corporal, que antes de
tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma
realidade bio-política. A medicina uma estratégia bio-
política.
104
No capítulo anterior, tratamos da modernidade e do modo como se
exercia o biopoder na sociedade disciplinar. Ou seja, analisamos o “fazer
viver”, movimento identificado por Foucault como característico do biopoder na
modernidade e seu respectivo aprimoramento. Vimos a construção do discurso
higienista e a sua respectiva ação no campo educacional, através de
dispositivos disciplinadores, como: a expansão dos conteúdos biomédicos na
formação do professor, a criação de serviços médicos anexos às salas de aula
e a institucionalização da “anamnese” como recurso fundamental para ver-
conhecer o aluno. Vimos também o processo de medicalização escolar
desenvolvendo o “olho clínico do mestre” e relacionando doença com o não-
aprender instituindo, assim, a categoria: Anormais Escolares.
Dessa forma, exigindo uma tecnologia de dupla face, na
modernidade, o biopoder manteve, por um lado, a lógica disciplinadora descrita
por Foucault em Vigiar e Punir
105
, docilizando o corpo-máquina do indivíduo
para torná-lo útil e obediente. Por outro lado, houve o desenvolvimento de
estratégias de regulação do corpo-espécie, criando normas e condutas para a
população, tais como: as estatísticas, os censos, os programas de saúde
pública e prevenção, os estudos de epidemiologia, as regras de imigração, etc.
Nesse sentido, Saúde e Educação, unidas, proporcionaram o
esquadrinhamento da população infantil, classificando-a a partir de pré-
supostos orgânicos. O corpo do aluno, moldado por uma escola medicalizada e
104
FOUCAULT, M. Nascimento da Medicina Social. In: Foucault, M. Microfísica do
Poder. Organização e Tradução Roberto Machado, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1979, p.80.
105
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1977, p.77.
53
medicalizante, tornou-se um corpo dócil e disciplinado. O professor-soldado,
equipado com um olhar devidamente treinado, agiu como coadjuvante de
diagnósticos médicos, identificando os anormais escolares que eram vistos
como os perigosos seres que ameaçavam a ordem e o progresso da nação.
E hoje, qual é o corpo que se quer inventar? A quem ele deve servir?
De posse de nosso método-martelo de descarte/colagem e dando
continuidade ao nosso caminhando indagaremos o “fazer viver” no tempo
presente. Buscamos, nesse momento, entender o que caracteriza o
funcionamento do biopoder, no mundo contemporâneo e como se opera hoje a
medicalização da vida.
Há novas tecnologias de assujeitamento às quais nós estamos
submetidos? Novas instituições concorrem para se afirmarem como
hegemônicas no processo de medicalização da vida escolar? Novos
instrumentos são utilizados no aperfeiçoamento do “olho clínico do mestre”?
Que novos especialistas se afirmam nesse campo?
Deleuze, num pequeno texto escrito em 1990, intitulado como Póst-
Scriptum sobre as Sociedades de Controle, chama a atenção para novos
modos de confinamento. Controle, afirma Deleuze
106
, “é o nome que Burroughs
propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso
futuro próximo.” Futuro que se tornou presente, pois vivemos em um tempo no
qual o se quer e o que se faz, constantemente, é exercer o controle em todos
os níveis da existência. Podemos dizer que vivemos numa sociedade na qual o
controle tende a prevalecer como estratégia biopolítica. “Não se trata mais de
controlar o tempo através de sua espacialização, mas de controlar os
processos de vida no espaço aberto do tempo, ou seja, no próprio movimento
processual de produção e diferenciação”, esclarece Monteiro de Abreu
107
.
Soma-se ao lugar do espaço esquadrinhado pela família, escola,
prisão, fábrica, pelo hospital, manicômio, tão característicos do período
moderno e da sociedade disciplinar, uma sociedade de controle com novas
instituições, novas tecnologias de assujeitamento que funcionam através de
mecanismos de monitoramento.
106
DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações
. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
107
MONTEIRO DE ABREU, A. op. cit. p.80
54
O biopoder que antes era exercido em espaços fechados com a
função de correção ou ortopedia, agora age de modo mais sutil, a céu aberto,
interferindo diretamente na produção dos modos de viver, inventando assim,
novos modos de aprisionamento da vida. “Na medida em que o controle
escapa das instituições e é feito fora delas, ele se torna mais tênue, mais fluido,
mas mesmo por isso mais poderoso, uma vez que se infiltra melhor e mais
sorrateiramente por todas as frestas”, adverte Gallo
108
. Para exemplificar,
podemos citar as câmeras espalhadas por todos os lugares como: elevadores,
parques, estradas, escolas; os serviços de atendimento ao cliente (SAC); a
plataforma Lattes com o armazenamento da produção dos pesquisadores e
pós-graduandos brasileiros, os celulares que se monitoram mutuamente, a
rede mundial de computadores com e-mails, Messenger, Orkut e Skype.
Dessa forma, se já não são mais os dispositivos disciplinares que
formatam a nossa subjetividade e se as instituições de confinamento perderam
a condição de lugar exclusivo de vigilância e punição, como podemos
circunscrever o funcionamento do biopoder na atualidade, quais são as suas
estratégias e seus efeitos na produção da subjetividade humana? O que
caracteriza o mundo do controle? Como que os neomanagement exercem o
controle sobre as equipes de sua empresa?
Paula Sibilia, em seu livro Corpo Pós-Orgânico, analisou as
transformações do corpo em relação às passagens dos regimes de dominação
(da soberania para a modernidade e da modernidade para a
contemporaneidade). Nesse contexto, referindo-se à passagem da
modernidade para a contemporaneidade, a autora relata que “tal esquema, que
combinava habilmente biopolíticas e disciplinas com as dores e delícias do
capitalismo industrial, vigorou até meados do século XX.”
109
A partir daquele
período e de uma série de mudanças que ocorreram no modo de
funcionamento do capitalismo, como as sucessivas inovações tecnológicas em
todos os campos, observou-se “um processo vertiginoso que continua até os
108
GALLO, S. Deleuze & a Educação. São Paulo: Autêntica, 2003. p.108.
109
SIBILIA, P. O Homem Pós-Orgânico: Corpo subjetividades e tecnologias
digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003 p.166.
55
dias de hoje: a transição do regime industrial para um novo tipo de
capitalismo, globalizado e pós-industrial”
110
.
Sendo assim, na atualidade com a efetivação capitalismo
globalizado no qual o mundo perde a nitidez de suas fronteiras, vemos
surgir nesse momento um novo modo de exercer o poder que
desestabiliza o funcionamento de um poder centralizado. O homem
contemporâneo se vê desterritorializado, ou seja, seus antigos territórios
referenciais vão perdendo suas funções, de estruturação e unificação,
reguladas por ordens a priori.
Segundo Monteiro de Abreu
111
,
esta nova modalidade de funcionamento do capital
estabelece-se num processo de luta bem organizada do
projeto político neoliberal, cujo objetivo final é fazer triunfar
a política econômica não de qualquer capitalismo, mas de
um capitalismo de mercado, livre de regras a priori,
centrado não mais na produção fabril, mas na
competitividade empresarial.
Assim podemos dizer que, principalmente, a partir dos anos 80 do
século XX, ocorreu uma transformação em diversos setores das atividades
humanas com a entrada da tecnociência contemporânea em cena – a
informática, as telecomunicações e as biotecnologias – como nova força
compondo com as forças do humano.
Nessa esteira, o viver torna-se refém da conexão, da
interatividade e da ação. A troca instantânea de informações passa a
produzir uma aceleração em um nível jamais experimentado pelo homem.
A vida passa a ser comandada pelo consumo sem espera, pela conexão
sem fio e pela (hiper)atividade em todas as direções. Deslizando no
mundo do instantâneo, das próteses, do virtual, do silício, do consumo, da
compulsão, da medicalização, o homem contemporâneo vive a
impossibilidade de escolher o seu modo de viver.
110
SIBILIA, P. op. cit. p 25.
111
MONTEIRO DE ABREU, A. op.cit. p.93.
56
Na atualidade, essas escolhas nos são impostas pelo
campo sóciopolítico, e cremos escolher quando, na
verdade, consumimos escolhas predeterminadas
112
.
Sem espaço para hesitação, com o imperativo da ação no
comando, a tendência é o desaparecimento do intervalo entre o tempo de
olhar e o tempo de agir. Segundo Maciel
113
, é a supressão desse tempo
de hesitação e questionamento que nos afasta da possibilidade de
escolher a escolha como ato de criação de si e de mundos.
Escolher a escolha é algo mais do que simplesmente
escolher entre alternativas decidíveis, isto é,
possibilidades previamente estabelecidas. Para que a
escolha da escolha se faça é preciso que o indivíduo
se encontre diante de um indecidivel, isto é, de uma
experiência-limite em que não há qualquer solução
possível, experiência sempre problemática para o
pensamento, já que, nessa instancia, pensar é sempre
criar novos modos de existência.
114
Nesse novo cenário
115
, ou seja, no mundo globalizado e
informatizado, no qual a ênfase não está mais na fábrica, na produção e
no trabalho braçal, o que vemos aparecer como prioridade é o
consumidor de estilos de vida, de modos de existência e de necessidades
mutantes.
E se, como afirma Aguiar
116
, “vender uma mercadoria é também
fabricar um modo de existência, é colocar as subjetividades e as mercadorias,
umas em relação com as outras”, então, outra estratégia do capitalismo atual é
a criação do serviço de vendas, visto nesta engrenagem como a “alma” da
112
MACIEL JUNIOR, A. O problema da escolha e os impasses da clinica na era do
biopoder. In: MACIEL JUNIOR, Auterives; TEDESCO, Silvia; KUPPERMANN, Daniel.
Polifonias: Clínica, Política e Criação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005. p. 51.
113
MACIEL JUNIOR, A. op.cit p.53.
114
MACIEL JUNIOR, A. op.cit p.55.
115
No Brasil este movimento ficou mais explícito a partir da década de 90, tendo
início durante o governo Collor com a intensificação da abertura do mercado ao
capital internacional globalizado, e desdobrando-se no governo Fernando Henrique,
com as sucessivas privatizações ocorridas em seu governo. Naquele momento,
pretendia-se dar início a uma reforma do Estado para transformá-lo de acordo com as
novas regras do mercado internacional globalizado.
116
AGUIAR, A. A. op.cit. p.102
57
empresa. Com o surgimento deste serviço, temos a valorização do marketing,
que ao longo desses anos tem se constituído como uma poderosa estratégia
de controle social uma vez que “não se produz uma mercadoria atualmente,
sem que seja produzido ao mesmo tempo o seu consumidor.”
Deleuze, pensador do/no contemporâneo, ao tematizar o
assunto, numa atitude provocativa, diz: “a empresa substituiu a fábrica, e
a empresa é uma alma, um gás”. E se a empresa é uma alma, acrescenta
Pelbart, “é também a alma do trabalhador que é posta para trabalhar, não
mais o corpo, que apenas lhe serve de suporte”.
117
Podemos dizer que no contemporâneo a tendência é a fábrica
ser substituída pela empresa e os corpos adestrados cederem espaço
para o desenvolvimento das almas capacitadas com “subjetividades
equipadas com as qualidades voláteis mais cotadas no mercado de
trabalho contemporâneo, tais como a criatividade, a inteligência e as
habilidades comunicativas”.
118
Para a produção de almas capacitadas, as escolas também
constituem-se como alvo de transformações. Elas devem adotar uma
política de qualidade que as aproxime do funcionamento da empresa,
valorizando as técnicas de gerenciamento, transformando o aluno em
consumidor de ensino e o professor em funcionário treinado e
competente, preparando mão-de-obra com as novas exigências do
mercado de trabalho e tratando o ensino público como mercadoria
119
.
Como diz Sonia Alem Marrach
120
O termo qualidade total aproxima a escola da empresa.
Em outras palavras trata-se de rimar a escola com
negócio. Mas não qualquer negócio. Tem que ser um
bem-administrado. ... Assim a noção de qualidade total
traz no bojo o tecnicismo que reduz os problemas
sociais a questões administrativas, esvaziando os
campos social e político do debate educacional,
117
PELBART, P. P. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras,
2003. p.24.
118
SIBILIA, P. op.cit. p.169.
119
Sobre esse assunto ver HECKERT, A. L. op. cit. p.182-201
120
MARRACH, S. A.. Neoliberalismo e Educação. In: SILVA JUNIOR, Celestino A. da
et al. Infância, Educação e Neoliberalismo. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000. p.52.
58
transformando os problemas da educação em
problemas do mercado e de técnicas de
gerenciamento.
Veremos ao longo deste capítulo os efeitos da ação destas
instituições (empresa, mercado, marketing e consumidor) na constrão das
biopolíticas contemporâneas, tendo em vista que o que caracteriza o
funcionamento da máquina capitalista atualmente: é o investimento na
produção da própria vida, produzindo subjetividades assujeitadas ao imperativo
do consumo.
E o que está aí para ser consumido? A resposta é: tudo.
Ao novo capitalismo, interessa a produção de mercado, mercadoria,
necessidades e consumidores, criando “subjetividades coletivas, relações
sociais, valores, afetos, maneiras de perceber o mundo e modos de viver”
121
.
Quem, nos dias atuais, ousa questionar a lógica do mercado ou o
funcionamento de uma empresa? Ou, ainda, não seguir os atuais manuais
de management
122
?
Trazendo mais uma vez o conceito de instituição e seu sentido
trabalhado anteriormente, podemos dizer que o novo capitalismo repleto de
produções de “subjetividades capitalísticas” traz consigo novas e já
naturalizadas instituições, produtos e, ao mesmo tempo, produtoras de
relações de saber-poder que ganham status de verdade inquestionável.
“Qualidade total, modernização da escola, adequação do ensino à
competitividade do mercado internacional, incorporação das técnicas da
informática e da comunicação, pesquisas praticas, utilitárias, produtividade”
segundo Marrach
123
, são algumas dessas verdades que aparecem hoje para a
educação como palavras de ordem.
121
AGUIAR, A. A. op.cit. p.121
122
Os manuais com textos escritos para os administradores de empresa, funcionários
de alto escalão propõem uma nova função para o manager, onde segundo Pelbart,
“não é propriamente o diretor que manda, calculista e frio administrador, mas aquele
líder visionário e intuitivo, capaz de catalizar uma equipe, animá-la, inspirar
confiança, comunicar-se com todos, com uma intuição criativa – um humanista.”
PELBART, Peter Pál. op. cit p.98.
123
MARRACH, S.A. op cit p.42
59
Concluindo, podemos dizer que o capitalismo dos anos 1980 passou
a operar dentro de uma nova lógica, para o qual o principal valor é a força-
invenção dos cérebros, e como diz Palbert
124
, é “como se as máquinas, os
meios de produção tivessem migrado para dentro da cabeça dos trabalhadores
e virtualmente passassem a pertencer-lhes. Agora sua inteligência, sua ciência,
sua imaginação, isto é, sua própria vida passou a ser fonte de valor”.
No lugar da força muscular do corpo-máquina institui-se a força dos
cérebros aclamada por um decreto presidencial, no qual o então presidente
George Bush, em declaração no Congresso dos Estados Unidos, disse:
“Proclamo a década começando em 1º de janeiro de 1990,
como a Década do Cérebro. Eu solicito a todos os
funcionários públicos e ao povo dos Estados Unidos da
América que celebrem essa década com programas,
cerimônias e atividades condizentes”.
125
Que efeitos foram produzidos partir daí?
124
PELBART, P. P. op. cit. p.24
125
BUSH, G. Presidential Proclamation 6158 apud AGUIAR. A. op. cit. p.19.
60
3.2 – A emergência do aluno como corpo-consumidor
Produzido na modernidade, o conceito de infância tinha como
objetivo conferir a criança o status de indivíduo. Naquele período, constituiu-se
objeto de estudo, isto é, uma vez estabelecida a idéia da criança como um “ser
singular, com características diferentes das do adulto, passou-se a busca de
suas peculiaridades, dos elementos próprios a sua condição de indivíduo”
esclareceu Ghiraldelli
126
, ao refletir sobre Pedagogia e Infância em Tempos
Neoliberais. O autor nos chama atenção para o fato de que naquele período, a
criança-indivíduo e suas características próprias, ou seja, suas peculiaridades
(interesses, formas de pensamento, emoções etc.) foram dissecadas e
determinadas pela medicina em geral e pela puericultura e psicologia em
particular. A partir daí, surgiram os especialistas e seus saberes especializados
que, junto a educadores de orientações teórico-filósoficas diversas
prescreveram normas e condutas para a criança, agora tratada como um ser
de “essência ativa”
127
.
E hoje, o que os saberes especializados definem como sendo o
conceito de infância? Qual é a “criança” que encontramos em nossas salas de
aula?
A noção de infância inventada na modernidade servia a um tipo de
funcionamento do capitalismo, o da era industrial. Hoje, afirma Ghiraldelli, o
neoliberalismo “não ousa apresentar a pura e simples volta do sujeito moderno
– o indivíduo racional livre. O que ele pode apresentar é o ‘sujeito’ reduzido: o
indivíduo como consumidor”.
128
Ou seja, em tempos neoliberais, a criança
torna-se “corpo que consome coisas de crianças”
129
e sua ‘essência’, agora e a
todo momento, é definida e redefinida pela mídia. “A infância deixa de ser uma
fase natural da vida humana e passa a ser um flash corporal autorizado pela
mídia”.
130
126
GHIRALDELLI, P. Pedagogia e Infância em tempos neoliberais. In: SILVA JUNIOR,
Celestino A. da et al. Infância, Educação e Neoliberalismo. 2. ed. São Paulo:
Cortez, 2000. p.13.
127
GHIRALDELLI, P. op. cit. p.32.
128
GHIRALDELLI, P. op. cit. p.36.
129
GHIRALDELLI, P. op. cit. p.37-38.
130
GHIRALDELLI, P. op. cit. p.38.
61
A criança, vista assim como corpo-consumidor, torna-se o alvo de um
mercado que não pára de se multiplicar, criando necessidades e fomentando
desejos, o mercado de consumo e suas “coisas de criança”.
Quem define que uma coisa é uma necessidade de criança? Quem
cria a necessidade? A mídia? O especialista? A escola? Sem dúvida,
simplificaríamos muito ao apontar uma destas alternativas como sendo a
responsável pela criação de necessidades e das “coisas de crianças”.
Se não há sujeito definido nesta ação, o que há então? O que há, é o
que Guattari e Rolnik em Micropolíticas – Cartografias do Desejo, chamaram
de produção de subjetividade capitalística, na qual “tudo o que nos chega pela
linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é apenas
uma questão de idéia, não é apenas uma transmissão de significados.” As
crianças que passam horas sentadas diante da televisão e do computador,
absorvendo passivamente todas estas “coisas de crianças” vendidas como
necessidades, “terão toda a sua subjetividade modelizada por esse tipo de
aparelho... Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas
produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas
que definem a maneira de perceber o mundo” conclui Guattari
131
.
As necessidades começam a ser produzidas ainda na fase de
gestação do bebê e ficam visíveis nas listas do conhecido “chá do bebê”. São
utensílios para banho, alimentação e amamentação. Mais tarde aparecem os
brinquedos pedagógicos e os livros infantis com sua variada temática. Há ainda
os manuais para os pais com livros do tipo “criando meninas”, “criando
meninos”. Os alimentos são específicos para cada idade, com cálcio, ferro e
vitaminas. No caso das escolas particulares, elas não são escolhidas apenas
por sua proposta pedagógica. Elas devem oferecer muitos cursos extras e, de
preferência devem ser bilíngüe (uma exigência da globalização). Terapias com
especialistas também são oferecidas no varejo. E como se não bastassem
todas essas “coisas de criança” vendidas dia-a-dia como se fossem
necessidades vitais, nas últimas décadas, temos visto o crescimento de uma
mercadoria muito peculiar, os psicofármacos para uso infantil. No lugar das
131
ROLNIK, S. Despedir-se do Absoluto. In: PELBART, P. P. Cadernos de
Subjetividade. São Paulo: Núcleo de Pesquisas da Subjetividade - PUC/SP, 1996.
62
vitaminas, do cálcio e dos estimulantes de apetite amplamente utilizados na
década de 1970, a indústria farmacêutica passou a privilegiar a produção de
antidepressivos, psicoestimulantes e estabilizantes de humor, bem como seu
respectivo mercado consumidor, as crianças. Lima
132
aponta que segundo
dados da Agencia Nacional de Vigilância Sanitária, o consumo de metilfenidato
(Ritalina) no Brasil passou de 23 Kg em 2000 para 93 kg em 2003.
Hoje, não é raro encontrar em mochilas escolares, uma caixa de
Ritalina dividindo o espaço com o lanche, os cadernos e as canetas dando-nos
a impressão de que, naturalmente, fazem parte do material escolar. Como se
produziu a necessidade de psicofármacos no tratamento das dificuldades
escolares? Que discursos foram acionados neste processo?
132
LIMA, R. C. op.cit. p. 22.
63
3.3 - Doente ou sadio, pouco importa, pois todo o sadio é um
doente em potencial...
O mundo globalizado, pós-industrial como vimos anteriormente,
produz mudanças no funcionamento da sociedade como um todo. A
produção de práticas e discursos médicos ganha um alcance muito maior
com os novos instrumentos do capitalismo de mercado. Aguiar, ao analisar
tais mudanças, chamou atenção para o que ele denominou como uma “nova
biomedicalização” da sociedade que “conserva do processo de medicalização,
ocorrido ao longo do século XX, a característica de expansão da jurisdição
médica para novos domínios, mas repousa fortemente sobre as inovações
trazidas pelas novas tecnologias”.
133
Se antes havia a medicina como
instituição normalizadora da vida, agora, o que há é a vida regulada pela lógica
de um mercado neoliberal, ampliando o seu campo de ação, deixando de
produzir apenas as mercadorias para agir na produção de seus respectivos
mercados.
A medicina, que antes se ancorava em velhas instituições
hospitalares, em sua maioria, geridas pelo Estado, assume outra lógica de
funcionamento na contemporaneidade. Privatizado, instrumento da máquina
capitalista, o saber médico agora funciona como uma empresa que vende
discursos e práticas estimuladas pelo “mercado da saúde”. Para obter sucesso
em suas vendas, as empresas de serviços diagnósticos, as clínicas e a
indústria farmacêutica utilizam o mesmo recurso de todas as empresas
neoliberais: investem no marketing como mola mestra de seu faturamento e na
criação de novos mercados e de novas mercadorias, e assim sucessivamente.
Nesse sentido, podemos observar o vertiginoso desenvolvimento da
indústria farmacêutica que, a partir de 1950 deixa de ser produtora de
medicamentos demandados pelas descobertas do saber médico para atuar na
invenção e na divulgação de doenças.
Sibilia nos fala da mão invisível do mercado ao citar como o exemplo
a produção do hGH, um hormônio de crescimento projetado geneticamente.
133
AGUIAR, A. A. op.cit. p.141.
64
Nos anos 80, duas empresas da área farmacológica e
biotecnológica, Eli Lilly e Genentech, obtiveram a patente
para comercializar o hGH, um hormônio de crescimento
projetado geneticamente para um mercado restrito: uns
poucos milhares de crianças que sofrem de nanismo nos
Estados Unidos. Para compensar o investimento em
pesquisa e desenvolvimento, as empresas ganharam o
direito ao monopólio sobre o medicamento durante sete
anos. Em 1991, porém, o hGH tinha se tornado um dos
maiores sucessos comerciais da indústria farmacêutica:
extrapolando seu público-alvo, passou a ser consumido por
crianças que se encontravam dentro da faixa de estatura
considerada normal, e inclusive por jovens esportistas que
queriam aumentar sua massa muscular. As empresas
aproveitaram a ocasião para promover uma campanha
mercadológica e publicitária visando à redefinição da baixa
estatura — que até então era considerada normal — como
um tipo de doença. O episódio levou a representante do
Instituto Nacional de Saúde dos EUA a declarar que tais
crianças não eram “normais”; eram baixas, “numa
sociedade que vê esse traço como desfavorável”. Do
mesmo modo, o excesso de peso foi decretado “doença”
pelo Departamento do Tesouro dos EUA; agora, as
despesas com dietas e tratamentos para emagrecimento
podem ser descontadas no Imposto de Renda. Trata-se,
sem dúvida, de importantes redefinições de termos como
normal, saudável e doente. Não é mais necessário
localizar uma origem patológica para os sintomas: basta
apenas conferir sua distância com relação ao padrão
normal – que, por sua vez, é definido pelos caprichos da
“mão invisível” do mercado.
As campanhas de marketing são utilizadas com um duplo objetivo:
obter a ampliação do mercado de um determinado serviço ou mercadoria já
existente e criar necessidades (serviços, medicamentos) para o consumidor
sadio. Como efeito de tais campanhas empreendidas, temos o que Sibilia,
tomar emprestado um termo da retórica digital, nomeou como sendo a tirania
do upgrade de hardware e de software. Interpelados pelas novas modalidades
biopolíticas de formatação subjetiva, hoje, somos governados pelo imperativo
da saúde que nos incita à obsessão pelo cuidado do corpo.
Temos também, campanhas que buscam redefinir o conceito de
doença tanto para os médicos, quanto para população. Trata-se da veiculação,
65
em espaços midiaticos, da idéia de que os processos subjetivos da existência
constituem-se como doenças. Dessa forma, um sentimento de tristeza passa a
ser imediatamente classificado como depressão, estados de contemplação e
devaneio passam a ser rotulados como déficit de atenção, a agitação
transforma-se em hiperatividade, e até mesmo uma pirraça infantil passa a ser
identificada como TDO - Transtorno Desafiador Opositivo
134
.
Sibilia, ao problematizar a medicalização no contemporâneo, chama-
nos a atenção para o fato de estarmos vivendo em um mundo em que o próprio
viver é capturado pelo discurso biomédico. O ‘normal’ também se tornou alvo
do processo de medicalização da vida. No contemporâneo, não vivemos mais
somente a medicalização da doença ou do desvio, mas sim, a medicalização
da saúde.
O mundo contemporâneo vivencia fortes mudanças,
incluindo a aliança cada vez mais forte entre a tecnociência
e o mercado. Percebe-se um movimento crescente de
medicalização e biologização da sociedade, no qual a
mídia desempenha um papel fundamental
135
A medicina da era digital se empenhará também em agir no substrato
micromolecular do corpo humano, oferecendo ao mercado a promessa de
dominar o imprevisível a partir de um novo conceito de prevenção. Trata-se da
“prevenção dos riscos”
136
, colocando em ação expressões como “tendência” e
“propensão”. As novas descobertas do campo da genética, com exames em
tecnologias de última geração, parecem indicar uma retomada dos princípios
da Eugenia como estratégia de marketing e venda para as suas mercadorias –
os serviços diagnósticos, as consultas com especialistas, os fármacos e etc.
Tudo indica que a Eugenia da era digital pretende constituir-se numa poderosa
estratégia do biopoder.
134
A definição desse transtorno e seus critérios diagnósticos previstos no DSM-IV
encontram-se em anexo.
135
SIBILIA, P. op. cit. p 20.
136
SIBILIA, P. op. cit. p 53.
66
O dispositivo genético está se configurando como uma
estratégia fundamental do biopoder: após definir o
conteúdo informativo do código considerado normal, todos
seus desvios são qualificados como erros. É assim que
funcionam, de fato, os biochips, microprocessadores
híbridos que contêm fragmentos de DNA humano em sua
composição e são utilizados nos laboratórios para realizar
exames genéticos, a fim de detectar erros nas moléculas
analisadas ao compará-las com o material normal inserido
no chip. Assim, as “anormalidades” encontradas no
material genético são vistas como defeitos, falhas ou erros
na programação: um problema de tipo informático, que
pode (e deve) ser corrigido com a ajuda das ferramentas
digitais. Entretanto, se as falhas no programa genético são
definidas como desvios com relação à normalidade, o que
seria normal? Como é definido, nesse contexto, o padrão
de normalidade?
Desse modo, podemos dizer que trata-se da retomada de um antigo
projeto de saneamento da população, porém, em vez de segregar apenas o
anormal aprisionando-o em pavilhões de confinamento, a diferença é que todos
os indivíduos serão medicalizados a partir da pesquisa que esmiúça do código
genético, cujos “erros” seriam corrigidos com novas tecnologias de
aprisionamento. Hoje, “são os genes que determinam ‘o que você é’; o código
genético é a chave da revelação” explica Sibilia. A identidade do indivíduo é
torna-se o próprio código genético e será analisada através dos exames
informatizados com a crença de que, com isso, será possível identificar os
“genes degenerados”, ou seja, os “erros” no código genético.
As estratégias de biopoder no contemporâneo apontam para a
prevenção de riscos e “envolvem todos os sujeitos ao longo de toda a vida,
com seu imperativo da saúde e seu amplo menu de medidas preventivas:
alimentação, esportes, psicofármacos, vitaminas, terapias, etc.”
137
Como exemplo, apontamos para o sítio eletrônico do Ministério da
Saúde e sua série “Dicas em Saúde”, abordando o tema “Saúde na Terceira
Idade”.
137
SIBILIA, P. op. cit. p 34.
67
Todos nascem, crescem, amadurecem e envelhecem. O
tempo e a forma como se processam essas fases depende
de cada indivíduo, da sua programação genética e de
fatores ambientais.
O processo de envelhecimento acontece no dia a dia e
será cada vez mais intenso quanto maiores forem as
interferências negativas em nosso organismo. Sendo
assim, podemos retardar ao máximo o processo de
envelhecimento adicionando mais vida aos anos e não
somente mais anos a nossa vida.
Um envelhecimento saudável e bem sucedido é marcado
por uma redução no risco de doenças e pela prevenção
ou reversão da perda funcional, garantindo a manutenção
de uma vida independente e autônoma (os grifos nosso)
138
Não será esta busca incessante pela qualidade de vida, expressa no
imperativo da saúde, uma armadilha do novo capitalismo para nos fazer
consumir as tendências, sempre mutantes, do mercado voltado para o corpo?
138
Ministério da Saúde - www.saude.gov.br/
68
3.4 - Relacionando a doença com o não-aprender: o
aparecimento de novas subjetividades medicalizadas.
Que efeitos produz esse novo modo de dominação, que se utiliza do
controle contínuo dos corpos e a comunicação instantânea, nos corpos dos
escolares?
O corpo do aluno-consumidor passa a ser novamente o alvo das
investigações a cerca das causas dos insucessos dos escolares, reeditando a
lente biologizante que marcou o início do século XX. O que se produz quando:
o olhar biologizante em direção ao aprendiz e a investigação de “disfunções” e
“anomalias” volta a fazer parte do cotidiano escolar?
Lima acredita que esta tendência de re-inscrever o não-aprender,
instituído como patologia, no corpo biológico do aluno “tem sido denominada
por alguns críticos de ‘neofrenologia’, pelas semelhanças que exibe com a
frenologia do século XIX, a qual relacionava funções psíquicas, centros
anatômicos cerebrais e protuberâncias no crânio.” O argumento utilizado para
reeditar tais procedimentos é que a medicina da época não possuía a
tecnologia adequada, e que, agora, com o avanço da ciência, os “métodos de
imagem cerebral conduzirão inevitavelmente ao sucesso do mapeamento
reducionista.”
139
Como vimos em Artur Ramos no final da década de 1930, as causas
do insucesso escolar, naquele momento, migravam para outros campos de
saber convocando outros especialistas. Agora, no entanto, as causas retornam
ao corpo.
Mas, como ficou evidente em nosso caminhando, o corpo não é mais
o mesmo, uma vez que “o par hardware-software sobrepuja o dualismo corpo-
mente, irradiando metáforas de inspiração digital”
140
, então, qual será a
terapêutica proposta para a doença do não-aprender atualmente? Qual é o
software danificado? Segundo Sibilia, hoje, cada vez mais, identificamos a
valorização de uma terapêutica direcionada para “a correção dos erros
139
LIMA, R. C. op.cit. p. 99.
140
SIBILIA, P. op. cit. p 2.
69
pontuais inscritos no código ou nos sistemas nervoso e neuronial do paciente.
Alterar a programação e corrigir os erros, eis o novo procedimento de cura para
as doenças”.
141
Nessa linha de correção de erros, que hoje observamos uma
tendência em relacionar comportamentos considerados desviantes como o
déficit de atenção, a desobediência e a hiperatividade, por exemplo, a
problemas relativos aos neurotransmissores.
Nos últimos anos, um interesse crescente vem surgindo
em relação aos estudos de genética molecular no TDAH. O
principal alvo dessas pesquisas são genes que codificam
componentes dos sistemas dopaminérgico, noradrenérgico
e, mais recentemente, serotoninérgico, uma vez que dados
de estudos neurobiológicos sugerem fortemente o
envolvimento desses neurotransmissores na patofisiologia
do transtorno.
142
Dessa forma, o mundo do controle, impulsionado pela tecnociência,
mostra-se a nova versão digital e high-tech da racionalidade biomédica. Assim,
apostando nas novas tecnologias de imagem cerebral e nas pesquisas do
campo da genética, os especialistas deram início a uma nova caçada aos
anormais, agora identificados como “portadores de Transtorno”. Como
funciona, então, o “fracasso do escolar” quando ele é visto como entidade
nosográfica da psiquiatria? Como se deu a emergência da lente que agora
identifica os portadores de Transtorno? Quais são suas estratégias de poder e
quais são seus discursos de saber?
Lima faz uma pergunta que consideramos oportuna neste momento
de nosso caminhando, portanto vamos reproduzi-la. Referindo-se ao TDAH, ele
pergunta: “como entender a explosão atual desse Transtorno?” E mais: como
entender esta epidemia de crianças hiperativas?
Certamente a racionalidade biomédica tem uma explicação. Segundo
Lima, para os especialistas adeptos desta teoria, “o número crescente de
diagnósticos apenas faria justiça as crianças e adultos que vinham sendo
141
SIBILIA, Paula. op.cit. p.196.
142
ROHDE, L. A. and HALPERN, R. Recent advances on attention
deficit/hyperactivity disorder. p.61-70.
70
subdiagnosticados e que agora estariam sendo beneficiados pelo avanço e
pela disseminação do saber psiquiátrico.”
143
Diante do predomínio daquele discurso, que afirma a legitimidade da
epidemia, pretendendo transformar todos os processos humanos em entidades
nosográficas, somos convocados a refletir. Se as forças que estão tentando se
afirmar no cotidiano dos alunos e no fazer dos professores são forças que nos
levam à práticas medicalizantes, como desestabilizá-las?
Partindo do princípio que a desestabilização implica em alterar a
relação de forças de um sistema, pensamos que um bom início para este
desarranjo seja a desnaturalização daquilo que aí está, daquilo que se
apresenta como verdade inquestionável, como descoberta científica irrefutável.
E o que é isso que aí está?
Escolares portadores de transtorno, circulando nos pátios, fazendo
uso de psicofármacos na hora do recreio e professores com manuais de
diagnóstico embaixo do braço, carimbando seus alunos com os números das
novas doenças. Subjetividades medicalizadas se engendraram no cotidiano
escolar a partir das transformações ocorridas em nosso tempo.
No Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa do Usuário
de Medicamentos, o consumo desses psicoestimulantes de tarja preta,
vendidos mediante retenção de receita – passou de 71 mil caixas, em 2000,
para mais de 731 mil caixas, em 2004.
Sendo assim, não é difícil estimar o crescimento da medicalização da
população infantil que visa tratar o baixo rendimento escolar, uma vez que, a
doença do não-aprender em nosso tempo tornou-se parte integrante desta
máquina que produz a doença e seu remédio, produto e consumidor ao mesmo
tempo. No caso das instituições escolares e seu modo ainda disciplinar de agir,
o aluno que não aprende constitui o alvo perfeito.
Estamos falando de expansão da engrenagem capitalista, sendo
possível ver este movimento, que caracterizamos como sendo o de uma nova
biomedicalização através do crescimento da indústria farmacêutica.
143
LIMA, R. C. op.cit. p. 16
71
A medicina, por meio de seus discursos produtores de saber-poder,
passa a divulgar novas doenças, trazendo, a reboque, uma indústria
farmacêutica que não pára de crescer. Mas também poderíamos dizer que
indústria farmacêutica, em sua vontade capitalista de expansão e crescimento,
patrocinou a difusão dessas doenças inventadas, como é o caso da Novartis e
da Jassen-Cilag, indústrias farmacêuticas patrocinadoras do site da Associação
Brasileira do Déficit de Atenção - ABDA
144
.
Desta forma, ao analisarmos a emergência destas “novas doenças”,
de seus respectivos manuais e da eficácia e pertinência da utilização dos
psicofármacos, queremos agir nesta luta de forças e instituições que concorrem
entre si para afirmarem-se como hegemônicas na produção da existência,
regulando e homogeneizando a vida.
Trataremos, então, de três aspectos deste processo. O primeiro é a
invenção do manual de diagnóstico americano, denominado DSM, que hoje é a
referência para o mundo na classificação de doenças mentais. O segundo é a
problematização dessas “novas doença” e a produção de relação entre
“doença” e “não-aprender”. O terceiro e último aspecto, é o advento do
medicamento, “necessidade” cada vez mais consumida em nosso tempo.
144
ATENÇÃO, Associação Brasileira do Déficit de. Associação Brasileira do Déficit de
Atenção.
72
3.4.1 - A emergência do DSM
No campo da medicina, motivada pelo decreto presidencial
proclamado nos anos 1990, que indicava a “Década do Cérebro”, a psiquiatria
com a abordagem biológica dos transtornos mentais, impulsionada pelos
avanços biotecnológicos, tornou-se hegemônica no entendimento das
patologias classificando todas as modalidades de comportamento humano.
Alguns autores caracterizam esta tendência como um
movimento de remedicalização da psiquiatria, em oposição
às fortes perspectivas de afastamento da psiquiatria do
modelo médico que predominou no cenário psiquiátrico
norte-americano e de outros paises nas décadas de 1950,
1960 e 1970. A chamada psiquiatria biológica emerge na
década de 1970 como um movimento de reação à
desmedicalização do campo psiquiátrico nos estados
unidos e passa a dominar a psiquiatria americana mundial
a partir de 1980
145
Partindo do princípio que o cérebro é o órgão da mente e que as
doenças mentais existem, nesse processo, buscou-se a eliminação do que eles
acreditavam ser “aspectos vagos e imprecisos” do comportamento humano,
anteriormente expresso numa linguagem psicológica ou psicossocial. Aguiar
146
transcreve em seu livro os princípios da psiquiatria biológica definidos por
Gerald Klerman, considerado um dos mais influentes psiquiatras americanos
no final do século XX. Tais princípios, relacionados abaixo, servem para
exemplificar o discurso com que se pretendia afirmar um modo de ver o
sofrimento humano e seus percalços.
1. A psiquiatria é um ramo da medicina
2. A prática psiquiátrica deve ser fundada sobre um
saber cientifico proveniente de estudos empíricos rigorosos
(e não sobre interpretações impressionistas)
3. Existe um limite entre o normal e o patológico. Esse
limite deve ser traçado de modo pertinente.
145
AGUIAR, A.A. op.cit. .p 20.
146
AGUIAR, A.A. op. cit. p. 21-22.
73
4. As doenças mentais existem. Não se trata de um
mito. Trata-se antes de transtornos múltiplos que de um
fenômeno unitário. A tarefa da psiquiatria cientifica e das
outras especialidades medicas é pesquisar suas etiologias,
seus diagnósticos e seus tratamentos.
5. A psiquiatria deve tratar de pessoas que necessitem
de cuidados médicos por doenças mentais e dar uma
prioridade menor àqueles que procuram ajuda para
problemas existenciais e a busca da felicidade
6. A pesquisa e o ensino devem de maneira explicita
enfatizar o diagnostico e a classificação.
7. Os critérios diagnósticos devem ser classificados e
validados.
8. Os departamentos de psiquiatria devem ensinar
estes critérios, e não os depreciar como é freqüente o
caso.
9. Os esforços de pesquisa para melhorar a
confiabilidade e a validade do diagnostico e das
classificações devem utilizar técnicas modernas de
pesquisa quantitativa.
10. A pesquisa em psiquiatria deve utilizar métodos
científicos modernos, especialmente àqueles vindos da
biologia.
Estava instalada a guerra imposta pela psiquiatria biológica com seu
uso hegemônico do discurso biológico. O objetivo, naquele momento, foi
desbancar a psicanálise e todas as suas referencias do manual de diagnóstico,
que estiveram presentes na primeira e na segunda versão do DSM, o DSM I e
o DSM II.
No DSM I, a primeira versão do Manual de Diagnóstico e Estatística
de Transtornos Mentais, produzido em 1952, a influência da psicanálise se fez
presente “como pode ser evidenciado pelo uso freqüente de expressões como
‘mecanismo de defesa’, ‘neurose’ e ‘conflito neurótico”. Na segunda versão do
manual, publicada dezesseis anos mais tarde, em 1968, “a influência da
psicanálise se torna ainda maior. O termo neurose, por exemplo, é a maior
classe de perturbação presente no DSM II”. Além disso, temos o advento do
medicamento que de desenvolveu nesse período, rompendo barreiras para se
afirmar como a principal terapêutica não só da psiquiatria, mas de toda a
medicina.
74
O combate se estendeu até os anos 1980, momento em que ocorre a
publicação da terceira versão (DSM III), quando um comitê composto por “um
grupo de profissionais mais comprometidos com a pesquisa de diagnósticos do
que com a prática clinica”, ou seja, tratou-se de um comitê visto, no meio
psiquiátrico, como sendo composto por um grupo “contrário aos interesses
daqueles cuja prática e teoria derivavam da tradição psicanalítica”.
Traduzido quase que imediatamente para vários idiomas, o DSM III
foi um marco na história da psiquiatria americana, reafirmando o compromisso
daquela especialidade com a medicina científica. O manual foi o resultado de
um empreendimento antigo, liderado pela psiquiatria norte-americana que,
desde 1960, buscava romper com a ênfase dos aspectos da personalidade
individual para a compreensão do sofrimento psíquico. Ele foi considerado a
segunda revolução da psiquiatria depois do advento dos medicamentos
psicotrópicos. No manual, os sintomas foram abstraídos da história de vida
singular dos sujeitos, para serem analisados e classificados como entidades
universais.
Alegando que o saber psiquiátrico desconhecia as causas de muitos
dos transtornos, o comitê determinou que o manual fosse descritivo e ateórico.
Isso representou o triunfo de uma psiquiatria extremamente comportamental e
biológica, cujo tratamento se daria essencialmente pela prescrição de
medicamentos.
Para os pacientes sedentos por uma explicação que seja
capaz de retirar seu sofrimento dessa zona de
invisibilidade nada melhor que a obtenção de um
diagnóstico e de um prognóstico cientificamente
comprovado. Para a medicina, como dispositivo de
poder/saber, nada melhor que controlar/anestesiar esses
espíritos em ebulição através de uma nova “camisa de
força” química, que além de sua função controladora,
agrega uma outra função: a criação de mercado.
147
147
MONTEIRO DE ABREU, A. op cit p.55-56.
75
A quarta versão no manual, o DSM IV surgiu em 1994 e embora haja
uma continuidade conceitual entre o DSM III e o DSM IV, Aguiar
148
ressalta que
o DSM IV “declara abertamente que pode servir como suporte educativo de
utilidade nos ensinamentos de psicopatologia”, ou seja, ele pode servir como
um compêndio de psiquiatria e não apenas como um sistema de classificação.
Dessa forma, com o advento dos medicamentos psicotrópicos,
despejando a cada dia novos produtos no mercado e uma eficiente indústria de
comunicação vendendo e criando subjetividades coletivas, a psiquiatria
biológica
149
ganhou força e tornou-se hegemônica no modo de entender e
tratar os transtornos previstos no DSM IV. Mas, a psiquiatria apoiada na
explicação biológica, que tem como instrumentos ação o manual de
diagnósticos, não funciona isoladamente em relação à indústria farmacêutica.
Ambos fazem parte de uma engrenagem movida pelo capitalismo
contemporâneo, que cria tecnologias e formula teorias que incidem diretamente
sobre a vida dos humanos, medicalizando-a.
148
AGUIAR, A. A. op. cit. p.74
149
Psiquiatria Biológica é a expressão que caracteriza a abordagem biológica dos
transtornos mentais. Segundo Aguiar, este modo de entender e tratar os transtornos
mentais tornou-se hegemônico nos Estados Unidos na década de 1980. No curso
deste trabalho ampliaremos este debate para analisar os efeitos produzidos por esta
especialidade médica.
76
3.4.2 Doenças relacionadas com o não-aprender
Vimos, em nosso caminhando, o que se quer hoje, a saber, a
produção incessante de novos mercados e mercadorias. Assim podemos
pensar que o não-aprender e as doenças a ele relacionadas não poderiam ficar
de fora deste circuito. A partir de uma lente medicalizante constantemente
operante nas escolas, o instituído e naturalizado não-aprender já foi visto como
doença, anormalidade, distúrbio, e/ou disfunção e, agora, é visto como
transtorno.
No entanto, devemos ressaltar que, ao “avaliar, selecionar e
hierarquizar certos comportamentos dissonantes como distúrbios e
dificuldades, como cópias degradadas a serem corrigidas”, a escola agindo
como coadjuvante neste processo, perde “sua potencia desestabilizadora das
práticas instituídas”
150
e mantém-se numa relação de tutela em relação ao
saber poder da racionalidade médica.
Desnaturalizar este processo implica, então, pensar que expressões
tão comumente utlizadas, tais como “método de ensino” e “avaliação do aluno”
como instituições produzidas e produtores de ralação saber-poder e, como tais
são instrumentos de controle e conferiram ao ato de aprender uma mecânica
de mensuração do aprendiz.
Como aprendemos? Por que deixamos de aprender? Se existe a
doença do não-aprender, ou melhor, se o não-aprender foi instituído como
doença é por que outras verdades também foram instituídas no campo da
pedagogia.
Gallo afirma que, uma dessas verdades naturalizadas é a expressão
“ensino-aprendizagem”, cunhada pela pedagogia “buscando denotar a via de
mão dupla na qual deve se constituir esse processo”.
151
Outra verdade também naturalizada neste processo, foi a invenção
do “método para ensinar”. Correntes de pensamento no interior da pedagogia
disputam o título de maior eficiência para seus métodos, como se eles
150
HECKERT, A. L op. cit. p. 144.
151
GALLO, S. op.cit. p. 102.
77
pudessem avaliar fidedignamente os alunos, conferindo-lhes os respectivos
resultados, traduzidos em última instância como fracasso ou sucesso escolar.
Para os casos de fracasso do escolar, se o aluno não aprende o problema é
dele, que possui uma doença, a do não-aprender. Se o problema é médico, o
professor julga que não há nada a ser feito e, com isso, livra-se da implicação
que possui nesta relação e do compromisso de rever as estratégias que utiliza
para ensinar. O aprender passa a ser visto como uma atividade natural do
aluno, uma equação sem variáveis e com duas resultantes: ou se aprende ou
não se aprende.
Como já vimos no capitulo anterior, consoante ao pensamento
dominante no período, em 1918, o neurologista americano Strauss formulou a
hipótese da existência de uma lesão no cérebro. Ao pesquisar a existência
desta lesão, sua intenção era a de que ela pudesse justificar a anormalidade
dos escolares e seus distúrbios de comportamento e de aprendizagem; em
suma algo que justificasse o não-aprender. A idéia de Strauss, era a de que a
lesão seria mínima o suficiente para alterar o comportamento ou acarretar
algum desajuste intelectual sem, com isso, ocasionar outras manifestações
neurológicas. Strauss e seus colaboradores trabalharam muito tempo com a
hipótese da existência da lesão cerebral mínima sem, contudo, conseguirem
provar sua existência.
Na década de 1960, após sucessivos estudos que não obtiveram
êxito em comprovar a existência da tal lesão, abandonou-se aquela idéia,
substituindo-a pela crença na disfunção. Passando a se chamar Disfunção
Cerebral Mínima (DCM), a descrição das manifestações clínicas dessa nova
entidade nosográfica foi ampliada: hiperatividade, agressividade, distúrbio de
aprendizagem, déficit de concentração, instabilidade de humor, baixa tolerância
a frustrações, para citar apenas as mais divulgadas.
O DCM, anunciado como descoberta médica e associado aos
problemas do não-aprender, rapidamente, foi incorporado pelo campo
educacional, tornando-se muito popular entre os pais de classe média. Dessa
forma assinala Lima
152
,
152
LIMA, R. C. op.cit. p. 64.
78
à medida que os pais passam a contar com essa categoria
diagnóstica para explicar as atitudes ou reações
desviantes de seus filhos e as escolas a incluem entre os
motivos do fracasso acadêmico de seus alunos, observa-
se uma expansão do mercado de cuidados profissionais
dirigidos a infância.
Nas décadas seguintes, o DCM cedeu espaço para outras categorias
diagnósticas num movimento de refinamento em termos da institucionalização
da doença do não-aprender. Tal refinamento pôde ser visto no discurso e nas
práticas dos saberes produzidos pelas especialidades emergentes naquele
momento. Psicólogos, fonoaudiólogos, enfermeiros, psicopedagogos aliados
aos médicos em sua prática biologizante fabricaram crianças doentes. Como
exemplo, citamos Julio César um menino de oito anos e nove meses que,
segundo Moyses
153
não conseguiu escapar do destino que lhe foi traçado.
Ele nasceu bem, sem problemas. Nunca teve nada. Andou
antes de um ano. Com um ano já falava algumas palavras.
Era nervoso fazia birra. Com dois anos levei ao médico
pedindo um calmante, ele disse que não podia dar sem
saber o que ele tinha, fez um eletro e constatou que tinha
disritmia, que eu trato até hoje. Ele trata com Tegretol. Na
Saúde Mental. Convulsão? Não nunca teve, só era
nervoso, birrento, era só disritmia.
Foi assim que sua mãe o descreveu durante a consulta médica. Um
EEG foi o suficiente para fazer de Julio César um menino com “problemas
mentais que precisa de remédio”. Ele próprio assina a sua sentença “Eu não
aprendo por causa que eu tenho essa coisa na cabeça”. Julio César, depois de
medicado, ainda precisou ser atendido pela psicóloga aos três anos, e, depois,
pela psicopedagoga. Novamente, antes da alfabetização, por medidas
preventivas adotadas pela professora, segundo relato da mãe.
A médica que o atendeu por saber que, “em Neurologia é consenso
que uma criança que não apresente crises convulsivas não deve ser tratada
153
MOYSES, M. A. op. cit. p.88.
79
apenas por alterações no traçado do eletroencefalograma” discordou da
conduta adotada para conter Julio César e escreveu no final da consulta:
Criança que começou a ser medicada aos dois anos,
quando apresentava crises de birra, aparentemente
normais para a idade. Com o diagnostico de disritmia, é
tratada ate hoje, sem nunca ter tido convulsões... Sem
conseguir escapar o destino que lhe traçaram, Julio César
tem problemas na escola, embora seja normal em casa.
No consultório, permaneceu sentado todo o tempo,
desenhando e conversando. Criança normal.
Estigmatizada. Já incorporou uma ‘doença’ inexistente
(disritmia)
Mas, de modo geral, as ondas elétricas e eletromagnéticas têm
servido para carimbar aqueles que se revelam portadores de alteração em
seus traçados.
O eletroencefalograma (EEG) e a radiografia de crânio
constituem, no imaginário de pais, professores e outros
profissionais que não dominam a racionalidade médica,
instrumentos privilegiados para o entendimento dos
motivos que fazem com que uma criança não-aprenda-na-
escola e/ou apresente comportamentos que transgridem as
normas sociais.
Seu uso indiscriminado e seus efeitos medicalizantes em nada
diferem ao que se fazia no início do século, como já vimos no capítulo anterior,
quando se apostava nas medidas do crânio para identificar as anormalidades e
evitar a degeneração.
E hoje, o não-aprender está sendo relacionado à quais patologias?
Que explicações médicas estão sendo produzidas para as dificuldades
escolares? Que mercadorias, que mercados, estão sendo engendrados no
cotidiano escolar? Que especialistas são convocados a intervir com as crianças
que fracassam na escola?
O que vemos hoje com a ampla utilização da quarta versão do
manual de classificações de doenças mentais (DSM IV), é a captura do não-
80
aprender pelo discurso da psiquiatria biológica. Relacionado com as doenças
previstas no manual, o não-aprender passa a ser visto como entidade
nosográfica e, como tal, recebe como tratamento o uso de psicofármacos.
Vemos, por exemplo, o site especialmente criado para divulgar tais doenças,
quando afirma que “o TDA/H é considerado o distúrbio infantil mais comum e é
tido como a principal causa de fracasso escolar”
154
. Ou, ainda, o artigo
intitulado “Desempenho escolar e transtorno do déficit de atenção e
hiperatividade” de Paulo Mattos e colaboradores, cujo resumo indica o objetivo
do estudo:
Objetivo: esta revisão visa fornecer aos pediatras,
neurologistas infantis e psiquiatras infantis noções
atualizadas sobre a relação entre desempenho escolar e
transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).
Fonte de dados: revisão abrangente não-sistemática da
literatura médica sobre a relação entre desempenho
escolar e TDAH. Síntese de dados: os dados da literatura
demonstram que o TDAH, principalmente o tipo desatento
está relacionado a mau desempenho escolar. Conclusões:
crianças com TDAH estão sob risco de mau-desempenho
escolar e devem receber cuidados especiais.
155
Dessa forma, veremos siglas como TDAH, TC e TDO
156
,
representando entidades nosográficas previstas no DSM-IV, disseminando-se
não só no universo escolar, mas na sociedade como um todo.
É preciso indicar que não será objeto de nossa análise a
investigação aprofundada dos referidos transtornos, no que diz respeito a sua
veracidade, sua epidemiologia e sua terapêutica. Em nosso caminhando,
queremos contribuir para a reflexão de como se dá a luta de forças entre
instituições que concorrem para se afirmarem como hegemônicas na
explicação da doença do não-aprender em relação a essas entidades
nosográficas.
154
HELP, Mental. Mentalhelp.
155
PASTURA, Giuseppe Mário C., MATTOS, Paulo e ARAUJO, Alexandra P. Q. Campos.
Desempenho escolar e transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, 2005, vol.32,
no.6 p.324-329.
156
As definições de cada um desses transtornos, bem como os critérios para
diagnóstico previstos no DSM-IV estão em anexo.
81
Neste processo, a lente que sobressai é a da psiquiatria
biológica, com seu manual de diagnósticos, o DSM IV, que pretende
dizer que existe uma relação entre o fracasso do escolar e os referidos
transtornos. Referenciando-se numa lista de sintomas denominada como
“Critérios Diagnósticos” a psiquiatria contemporânea parece privilegiar o
tratamento de “casos”, fazendo com que o indivíduo perca a sua
condição singular. O tratamento de casos é constituído pela semelhança
na apresentação de sintomas, o que possibilita classificar e analisar os
indivíduos independentemente das suas singularidades ou de seus
modos de vida.
Essa lente parece querer nos fazer ver que os transtornos agem
provocando rebaixamento do desempenho e causando o fracasso do escolar,
ou que a desobediência é uma doença e como tal deve ser tratada.
Será que, ao enxergarmos o aprendiz desta maneira, perdemos o
que Gallo denominou como sendo a beleza do processo educativo, onde
munidos de uma dose de incerteza “agimos sem nunca saber qual será o
resultado de nossas ações”
157
?
157
GALLO, S. op. cit. p. 103.
82
3.4.3. Medicamento, aprisionamento a céu aberto?
Tomar um remédio não é uma atividade natural. O medicamento nem
sempre existiu tal como o conhecemos e consumimos hoje. A produção de
remédios iniciada nas primeiras décadas do século XX, consolidou-se na
década de 1950 e constituiu-se como uma verdadeira revolução no campo da
saúde.
Michel Foucault, em ‘O Nascimento da clínica’, mostrou a
mudança ocorrida no início do século XIX: não se diz mais
“o que você tem?”, mas: onde lhe dói? Uma mudança
igualmente importante ocorreu com a revolução
terapêutica. A nova questão poderia ser: “que
medicamentos serão mais eficazes no seu caso” ou
mesmo que “medicamentos estou autorizado a lhe dar?”.
158
Atualmente, temos muita dificuldade de pensar na vida sem
medicamentos, tais como: os analgésicos, os antitérmicos, os antiinflamatórios,
os antibióticos, os ansiolíticos, etc. Mas, na verdade, a idéia de um remédio
específico para cada doença é muito recente. A nova bacteriologia iniciada com
o isolamento do bacilo da tuberculose por Robert Kock ocorreu no final do
século XIX e inaugurou um novo pensamento no campo.
A nova bacteriologia forçou a criação de um modelo de
doença. Uma mudança na filosofia dos tratamentos se
opera. Se antes a doença era vista como o resultado de
um desequilíbrio do organismo como um todo e os
tratamentos eram bastante inespecificos, envolvendo
purgantes, sangrias e tônicos, agora, para cada bactéria
identificada, parecia existir uma doença específica,
exigindo também a pesquisa de diferentes tratamentos.
159
Em 1931, impulsionada pelas grandes guerras do século passado,
tivemos a produção do streptozon, o primeiro antibiótico industrial. A partir daí,
158
PINARRE apud AGUIAR op. cit. p.141.
159
AGUIAR, A. A. op cit. p.51.
83
outros antibióticos foram criados e, na década de 1950 vimos aparecer os
primeiros diuréticos, hipertensivos e os psicoativos como, por exemplo, o
metilfenidato (Ritalina)
160
.
Temporão
161
já em 1986, em A propaganda de medicamentos e o
mito da saúde, preocupava-se com os efeitos do crescimento da indústria
farmacêutica no Brasil, afirmando que “o crescimento deste ramo industrial em
nosso país tem sido extremamente acelerado” e, citando Frenkel
162
quando diz
“após um processo de expansão iniciado nos anos 60, o país possui hoje um
mercado interno de produtos farmacêuticos cujo volume de vendas é um dos
dez maiores do mundo capitalista”, concluía que era preciso: “construir os
nexos que hoje ligam a indústria de medicamentos, as práticas médicas, as
agências de publicidade, o saber médico e os meios de comunicação de
massa, enquanto estratégia de ampliação do consumo e medicalização da
sociedade.”
163
Ao citar exemplos de dois laboratórios em expansão na primeira
metade do século XX, como a Roche com o Redoxon e, a Bayer com a
Bayeraspirina, o autor enfatiza que era a propaganda que fazia tais
medicamentos liderarem as vendas do setor. “Já por essa época, fazia parte da
estratégia da Bayer colocar seus produtos como originais, puros, científicos...”
164
A propaganda de medicamento desenvolveu-se consideravelmente
com as duas grandes invenções da segunda metade do século. A primeira foi o
rádio, um novo veículo para a propaganda. Ao introduzir a estética do som
teatralizado tão presente nos anúncios de medicamento da época, estimulando
com isso a imaginação dos ouvintes, a rádio transformava, segundo Temporão,
o consumidor “em terapeuta, diagnosticador, examinador e prescritor. Na falta
de outro rosto, presente na propaganda impressa, resta-lhe o próprio rosto... o
próprio corpo”
165
160
A mesma Ritalina que na década de 90 apareceu como novidade para o tratamento do
TDAH.
161
TEMPORÃO, J. G. A propaganda de medicamentos e o mito da saúde. Rio de
Janeiro: Graal, 1986, p.14.
162
FRENKEL, apud TEMPORÃO, J. G. op. cit. p.14.
163
TEMPORÃO, J. G. op. cit.. p.16-17
164
TEMPORÃO, J. G. op. cit.. p.47.
165
TEMPORÃO, J. G. op. cit.. p.65
84
Em seguida, mais precisamente na década de 1970, vimos surgir a
mídia televisiva com som e imagem a serviço do marketing das empresas
aumentando o alcance de suas mensagens, difundindo novos medicamentos e
produzindo novos consumidores.
A propaganda de medicamentos, segundo Temporão, “através dos
conteúdos publicitários, claramente alienantes e biologicidas, ajudaram a
construir e estruturar uma determinada consciência urbana sobre a saúde, a
medicina e a terapêutica”
166
.
Mas, as instâncias normalizadoras, tão características do
funcionamento da sociedade disciplinar, como a americana FDA (Food and
Drug Administration) nos Estados Unidos, não tardariam a produzir mudanças
no funcionamento desse mercado. A FDA passou a controlar os medicamentos
através das tarjas
167
em embalagens e da exigência da receita preenchida pelo
médico em talonário especial. Entretanto, uma classe de medicamentos ficou
de fora desse controle, são medicamentos livres e funcionam como uma
166
TEMPORÃO, J. G. op. cit.., p.68.
167
Os medicamentos são classificados conforme o grau de risco que o seu uso pode oferecer
à saúde do paciente. Para esta classificação, foi adotado o critério de tarjas (faixas):
Não tarjados (OTC ou de venda livre)
Sua venda é livre. São medicamentos com poucos efeitos colaterais ou contra-indicações,
desde que usados corretamente e sem abusos. Tais medicamentos dispensados sem a
prescrição médica são utilizados para o tratamento de sintomas ou males menores, como:
resfriados, azia, má digestão, hemorróidas, varizes, dor de dente, pé de atleta e outras.
O termo OTC vem do idioma inglês que significa “over the counter”, ou seja, “sobre o balcão”.É
importante ressaltar que esses produtos, estão isentos de prescrição médica porque a
instância sanitária reguladora federal considerou que suas características de toxicidade
apontam para inocuidade ou são significativamente pequenas. Porém, sua utilização deve ser
feita dentro de um conceito de automedicação responsável.
Tarja vermelha, vendidos sem retenção de receita
Normalmente são vendidos mediante a apresentação da receita. Na tarja vermelha está
impresso "venda sob prescrição médica”.
Estes medicamentos têm contra-indicações e podem provocar efeitos colaterais graves.
Tarja vermelha, vendidos com retenção da receita
São os medicamentos que necessitam retenção da receita,conhecidos como medicamentos
controlados (psicotrópicos).
Só podem ser vendidos com receituário especial de cor branca.
Na tarja vermelha está impresso “venda sob prescrição médica – só pode vendido com
retenção de receita”.
Tarja preta
São os medicamentos que exercem ação sedativa ou que ativam o sistema nervoso central,
portanto também fazem parte dos chamados psicotrópicos. Só podem ser vendidos com
receituário especial de cor azul ou amarela. Na tarja vem impresso “venda sob prescrição
médica – o abuso deste medicamento pode causar dependência”.
Tarja amarela
Esta tarja deve constar na embalagem dos medicamentos genéricos e deve conter a inscrição
G e Medicamento Genérico escritos em azul.
85
mercadoria qualquer. Tais medicamentos são chamados de OTC (over the
caunter) e não necessitam tramitar pelas instâncias médicas para chegar ao
consumidor. Todo o “funcionamento regulatório é posto de lado em proveito de
um funcionamento de mercado, como qualquer outro do mundo capitalista”
168
Já os medicamentos controlados, ou seja, os tarjados (tarja preta e
vermelha) passaram a necessitar do médico como um intermediário
intransponível, com o surgimento, na década de 1960, da exigência da
prescrição médica. Temporão analisa que a partir daí com o “gradativo controle
por parte da prática médica... é obvio que a indústria farmacêutica tende a
colocar como seu objetivo de conquista o médico”
169
.
A prescrição médica tornou-se assim, um obstáculo para o aumento
de vendas de medicamentos, pois, sem a receita, os medicamentos
controlados não chegam ao consumidor. Uma nova ordem foi imposta ao
mercado de medicamentos, restringindo a sua circulação ele passou a ter que
ser vendido primeiramente aos médicos, o que fez do medicamento, uma
mercadoria muito peculiar. “Embora participe do mercado capitalista, seu modo
de regulação e sua socialização obedecem a um modo de funcionamento muito
particular” esclarece Aguiar
170
.
Como vender o medicamento ao médico, já que ele agora é o
intermediário entre a mercadoria e o consumidor?
Entram em cena, portanto, como estratégia de venda da indústria
farmacêutica, os “porta-vozes científicos” isto é, os representantes dos
laboratórios. Esses ao divulgarem informações detalhadas sobre o novo
medicamento, pretendem convencer o médico da eficácia e da ação de
determinado medicamento e sua respectiva associação com uma doença
específica. Com isso, a indústria farmacêutica deteve segundo Temporão, “o
monopólio da informação e atualização dos médicos em terapêutica, efetiva e
concreta política de educação continuada de nossos profissionais.”
171
168
AGUIAR, op. cit. p.122.
169
TEMPORÃO, J. G. op. cit. p.83
170
AGUIAR, A. A. op cit. p63
171
TEMPORÃO, J. G. op. cit. p.105
86
Fazendo parte desta engrenagem, há também os médicos que,
patrocinados pelo laboratório, possuem suas produções científicas voltadas
para a divulgação de um determinado medicamento. Tais médicos fazem
palestras em congressos e ministram cursos enfatizando os efeitos positivos
daquela substância no tratamento de uma determinada doença.
Como vimos anteriormente, uma das novidades do capitalismo
neoliberal é a ênfase no serviço de vendas através das ações de marketing.
Temporão
172
citando Riedel em seu livro O Uso da Mídia Eletrônica em
Relações Públicas, escrito em 1982, informa-nos que:
Até uns vinte anos atrás, os setores mais importantes das
indústrias farmacêuticas eram as divisões internacionais de
pesquisa cientifica, dedicadas ao descobrimento e
desenvolvimento de novas substâncias... Hoje, talvez já se
possa considerar o Departamento de Marketing como o
principal responsável pelo sucesso ou fracasso de um
laboratório farmacêutico.
Dessa forma, os departamentos de marketing promovem não só os
medicamentos, mas também as doenças, sugerindo pautas em jornais, revistas
e programas de televisão, através de releases preparados por seus assessores
de imprensa. Não são raras as reportagens produzidas com ares de
informação científica, compostas por testemunhos de pacientes, entrevistas
com psiquiatras, modelos de explicação biológica, eficácia dos antidepressivos
e a utilidade das psicoterapias. O empenho é para que o consumidor pense
que a matéria possui interesse científico, voltado para o bem estar coletivo, e
não um interesse privado da indústria farmacêutica. Segundo Aguiar, “este tipo
de estratégia chega a ser mais poderosa que a publicidade direta, pois gera um
interesse que se faz em torno do saber científico”.
A psiquiatria está entre as áreas da medicina cujo
vocabulário se difundiu mais fortemente na sociedade nos
últimos anos, desde o lançamento do antidepressivo
Prozac em 1988. As revistas semanais e os programas de
172
TEMPORÃO, J. G. op. cit. p.85.
87
televisão exibem um novo discurso psiquiátrico amparado
nas neurociências que promete decifrar o funcionamento
do cérebro e assim explicar a subjetividade humana
173
.
Com a veiculação midiática desse discurso agindo na produção de
subjetividades medicalizadas, vemos ocorrer um processo de naturalização dos
conteúdos biomédicos e do vocabulário neurocientífico, fazendo com que
termos como ‘baixa seretonina’, ‘recaída da depressão’, ‘alteração da dose do
antidepressivo’, ‘neurotransmissores’ sejam incorporados ao discurso cotidiano
das pessoas, traduzindo, muitas vezes, o modo como as pessoas
experimentam a vida.
A postulação de uma etiologia biológica é parte
indispensável das estratégias de popularização do TDA/H.
A disseminação dessa concepção pela mídia, escolas,
grupos de pais e portadores e pela literatura destinada aos
leigos vai impregnando a cultura... Ganha potência e poder
de convencimento, ajudando indivíduos a redescreverem
suas experiências pessoais e as condutas de seus
filhos
174
.
Segundo o Le Monde, na França “a prescrição de pílulas contra a
hiperatividade de crianças triplicou nos últimos cinco anos na França. Calcula-
se que entre 7.500 e 9.000 crianças tomaram as chamadas ‘pílulas para
obedecer’ em 2005”. Nos Estados Unidos, “a Ritalina é usada desde 1955 e,
em 2004, foram receitadas 29 milhões de caixas deste remédio, das quais 23
milhões seriam usados por crianças.”
175
Segundo Lima
176
a previsão era a de
que em 2004, a venda do medicamento alcançasse um milhão de caixas. De
1991 a 1995 houve um aumento de 33% no consumo mundial de
antidepressivos.
O que isso nos faz pensar?
173
AGUIAR, A. A. op. cit. p 53.
174
LIMA, R. C. op.cit. p. 96-97.
175
SANITÁRIA, Agencia Nacional de Vigilância. Anvisa.
176
LIMA, R C. op.cit. p. 15.
88
Tendo em vista que há cinqüenta anos atrás, quando o primeiro
antidepressivo surgiu, não havia praticamente mercado para consumi-lo, o que
deixava o laboratório (Geigy) em duvida se deveria, ou não, comercializá-lo,
pois considerava o mercado da depressão insignificante, podemos afirmar,
hoje, que essa situação mudou. Atualmente, qualquer empresa farmacêutica
tem pelo menos um antidepressivo entre seus produtos principais, uma vez
que, tais medicamentos constituem-se numa das classes de medicamentos
mais rentáveis.
177
Passamos de uma situação em que o médico dava ao
farmacêutico as indicações para a produção de remédios
adequados para cada paciente, a uma outra situação em
que uma nova figura de farmacêutico propõe
medicamentos ao médico com os imperativos de sua
utilização já estabilizados antes do seu encontro com o
paciente
178
O mesmo ocorre com a Ritalina, medicamento a composto pelo
metilfenidato muito usado no tratamento do TDAH, cuja bula
179
, em anexo, traz
algumas informações importantes para a nossa reflexão em termos de
informações que não são questionadas. São elas: “mecanismo de ação não
elucidado”, “não está claramente estabelecido”, “nem há evidência conclusiva”,
relatos de Reações Adversas como “perda do apetite, insônia, dor de cabeça,
tontura, alterações nos batimentos cardíacos, febre e reações alérgicas” e,
ainda, a advertência alertando para a possibilidade da dependência.
Por que essas informações não produzem sentido? O que faz com
que a venda deste medicamento não cesse de aumentar?
Este aumento de consumo de medicamentos nos faz lembrar do
irônico texto de Drummond quando ele provocativamente afirma:
...todo ser humano é carente de remédio. Principalmente,
de remédio novo, com embalagem nova, propriedades
177
AGUIAR, A. A. op cit. p.115.
178
AGUIAR, A. A. op.cit p.95.
179
PISCOSITE. Psico site.
89
novas e novíssima eficácia, ou seja, que se não curar este
mal, conhecido, irá curar outro, de que somos portadores
sem sabê-lo.
180
.
Concluindo, podemos dizer que, hoje há remédio para tudo, há
inclusive porta-medicamento de bolso com despertador acoplado para não
perder a hora: de se concentrar, de aprender, de obedecer, de perder o apetite,
de sentir desejo sexual, de não engravidar, de acalmar, de crescer, de lembrar,
de consumir, de não consumir, de dormir e etc.
Amanhã quem sabe...
Agência de pesquisa traçou cenários para uso de drogas.
Drogas que aumentem a inteligência de pessoas
saudáveis devem se tornar comuns em duas décadas.
Esse cenário foi apresentado pela agência de pesquisas
Foresight, que estuda o cérebro e publicou um relatório
independente elaborado por 50 especialistas nesta quarta-
feira em Londres.
O relatório da Foresight afirma que: "Em um mundo onde a
competitividade vem aumentando, o uso individual de tais
substâncias pode deixar de ser exceção e se transformar
na regra, com fortificantes cognitivos usados como o café
atualmente".
Segundo o relatório da Foresight, os medicamentos,
conhecidos como "fortificantes cognitivos" podem se
transformar em algo tão "comum quanto café".
Cientistas não descartam a hipótese de crianças e jovens,
que estão prestes a fazer provas importantes, terem que
fazer antidoping antes de fazer exames para detectar
presença de drogas que melhore o desempenho.
Alguns medicamentos já são usados atualmente para
ajudar a melhorar a performance mental.
A Ritalina, por exemplo, que já é receitada para crianças
que têm déficit de atenção e hiperatividade, já foi usada
por alguns estudantes para melhorar sua performance em
provas.
O modafinil, usado atualmente para tratamento de
distúrbios do sono como a narcolepsia, mostrou-se eficaz
para ajudar pessoas a se lembrarem de números e ajudou
180
DRUMMOND apud TEMPORÃO op .cit. p. 9-11.
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em outros casos em que era preciso tomar decisões mais
cuidadosamente.
Um dos autores do relatório, Trevor Robbins, professor do
Departamento de Psicologia Experimental da Universidade
de Cambridge, na Grã-Bretanha, lembrou que "ninguém se
importa com o fato das pessoas tomarem vitaminas para
se sentirem melhor".
"Mas tomar substâncias, naturais ou artificiais, em provas,
pode gerar problemas éticos, parecidos com o que temos
nos esportes hoje", afirmou.
Para Gerry Stimson, especialista em sociologia
comportamental no Imperial College de Londres, que
também ajudou na elaboração do relatório pergunta se a
popularização destes medicamentos vai "colocar as
pessoas em uma vantagem justa ou injusta".
"É permitido tomar estes medicamentos por motivos
terapêuticos, mas precisaríamos de um sistema para
regulamentar o uso destas drogas por pessoas que têm
boa saúde", disse.
181
181
SANITÁRIA, Agencia Nacional de Vigilância. Anvisa.
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Considerações Finais
Nem sempre quando chegamos aqui, chegamos ao fim. Talvez, no
máximo, tenhamos chegado ao meio. Ao afirmarmos o meio como um lugar
bom para chegar, não estamos dizendo que o trabalho está inacabado ou
mesmo interrompido. Queremos sim, positivar o meio como um ponto de
múltiplas saídas e entradas, como um ponto de abertura, onde muitos outros
caminhandos possam se iniciar.
Adotamos o funcionamento “hodosmeta”, onde a meta emerge como
efeito do caminhando. E assim, caminhamos durante dois anos, num
movimento sinuoso, com tropeços, bons e maus encontros, pausas e
retomadas. Dessa forma, não há moral da história, nem há verdade revelada.
O que há, desde o início, é um caminho do “fazer a obra” e “deixar-se fazer por
ela”.
No início de tudo, imaginávamos “gritar” para os professores: “temos
que sair desse lugar”, “é inadmissível permanecer neste lugar de submissão
aos saberes ditos especializados”. Imaginávamos fazer uma denúncia. Mas,
logo, percebemos que a denúncia isolada tem vida curta, perde a força.
Desprovidas de força, as palavras correm o risco de se esmaecerem no
amarelado das páginas. Correm o risco de tornarem-se apenas o pré-requisito
para obtenção do titulo de mestre, através de mais uma dissertação de um
programa de pós-graduação.
Pensando assim, não abandonamos a denúncia, apenas agimos com
ela considerando-a o primeiro passo para outras lutas, pois como diz
Foucault
182
“designar os focos, denunciálos, falar deles publicamente é uma
luta, não é porque ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar
a esse respeito forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem
fez, o que fez, designar o alvo é uma primeira inversão de poder”.
182
FOUCAULT, M. Verdade e Poder. In: Foucault, M. Microfísica do Poder.
Organização e Tradução Roberto Machado, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979 p.75.
92
Partimos, então, para a desnaturalização do que nos é apresentado
hoje como verdade. “O que quer a racionalidade biomédica no campo escolar?”
– perguntamos num primeiro momento.
No início tínhamos um foco de denúncia: a psiquiatrização da
demanda escolar e a crescente prescrição de medicamentos psicoativos como
os psicoestimulantes (dentre os quais, a Ritalina) para crianças. Identificamos
uma engrenagem que se movimenta produzindo doença nos corpos dos
escolares, relacionando doença com o não-aprender medicalizando a vida
escolar. Tomemos como exemplo, o bastante divulgado TDAH, no qual os
estados de contemplação e devaneio são codificados como Transtorno de
Déficit de Atenção. Concomitantemente à invenção do Transtorno,
constatamos a existência da criação de uma entidade para a divulgá-lo, a
Associação Brasileira do Déficit de Atenção, que, por sua vez, é patrocinada
pelas indústrias farmacêuticas Novartis e da Jassen-Cilag, fabricantes da
Ritalina e do Concerta respectivamente.
Enquanto atacávamos os focos: TDAH e Ritalina, outros focos
embalados como novidades científicas que respondem ao imperativo de
renovação permanente proposto pelo capitalismo de mercado, surgiam em
nosso caminhando.
É o caso do transtorno desafiador de oposição (TDO), considerado
um transtorno disruptivo, caracterizando-se por desobediência, comportamento
hostil e desafiador. O diagnóstico TDO aparece como um novo mercado para
absorver os produtos farmacêuticos, novos ou velhos. Dessa forma, são
prescritos para crianças portadoras de TDO: estimulantes (Ritalina) no caso de
TDO comórbido com TDAH e ácido valpróico (Depakene), haloperidol (Haldol),
risperidona (Risperdal) e lítio (Carbolitium) quando há instabilidade de humor
observável.
Além do TDO encontramos outro foco, o lançamento de um novo
medicamento indicado para o tratamento do TDAH. A atomoxetina (Strattera)
produzida pelo laboratório Eli Lilly será lançada ainda este ano no Brasil
prometendo trazer novidades para o mercado. Sua apresentação no Brasil será
em grande estilo, pois acontecerá no II Congresso Internacional de Déficit de
Atenção, promovido pela ABDA. Segundo o release do próprio laboratório,
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trata-se do “primeiro e único medicamento não estimulante para tratar o
TDAH”. Mas as novidades não estão apenas na formula química e na sua
respectiva ação, elas vão além... Podemos ver por meio do release de
lançamento do medicamento no Brasil (em anexo) que, o Strattera, por não ser
um medicamento da classe dos estimulantes, é o primeiro medicamento
vendido “sem receita controlada indicado para o tratamento do TDAH.”
Qualquer um pode ir à farmácia e comprar o medicamento que pode ser
receitado pelo médico, até por telefone.
Paralelamente a euforia do laboratório e de todos que o circundam
com a criação desse medicamento livre de amarras, do controle dos
receituários especiais e das embalagens tarjadas, encontramos o primeiro
Boletim Informativo da Organização Mundial da Saúde do ano de 2005 (em
anexo), informando que a FDA publicou um Talk Paper recomendando
mudanças na bula da atomoxetina norte-americana (Strattera). Isso se deu
após relato de duas situações de lesão hepática grave em pacientes que
haviam recebido o medicamento por vários meses. Segundo o boletim, a bula
da atomoxetina deve ser atualizada com a inclusão de uma advertência em
negrito sobre o risco de lesão hepática grave, que pode evoluir para uma
insuficiência hepática, o que exigirá um transplante de fígado ou, ainda, resulta
em óbito.
São diversas instituições regidas pelo novo capitalismo mundial
integrado que se acoplam numa eficiente engrenagem produtora de modos de
subjetivação, em que prevalecem certas relações de poder-saber que
produzem necessidades, doenças, teorias, fracassos, especialistas,
medicamentos, etc.
Diante desta eficiente engrenagem, que funcionava com ares de
“está tudo dominado” sentíamos-nos como espectadores de um grande circo.
Como desestabilizar tal engrenagem?
Movidos por uma vontade de mundo que escapasse ao controle e
pretendendo agir como um beija-flor bombeiro no incêndio da floresta,
começávamos a pensar: como fazer para desmontar o funcionamento deste
circo e caminhar em direção a outras lutas, outras inversões de poder?
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Este foi o nosso trabalho durante este percurso. Procuramos
desmontar esta engrenagem para entender o seu processo de construção,
instituição de discursos e cristalização de verdades.
Inventamos a metáfora do “relógio despertador” que nos
acompanhou durante o nosso caminhando. Quem não teve algum dia, a
curiosidade de entender o funcionamento de uma máquina? Quem não
experimentou, por exemplo, desmontar um “relógio despertador”?
Pegue um “relógio despertador” e observe o seu funcionamento. É
perfeito, não é? Uns fazem tic-tac, outros não. Uns tem campainha estridente,
outros emitem um zumbido perturbador. Os ponteiros, sempre três, giram com
ritmo e tempo sincronizados. Uma volta do ponteiro, que marca o segundo,
corresponde ao movimento do ponteiro responsável pelo minuto, e este por sua
vez, ao girar faz movimentar as horas, que giram num ciclo de doze em doze,
fazendo dia e noite aparecerem, despertando-nos na hora marcada.
Experimente abrir o relógio, tirar todas as suas peças, desmontá-lo e
espalhá-las sobre a mesa. Juntas, elas fazem o tempo girar, indicam-nos o que
fazer durante o dia. Juntas falam sobre o horário de dormir, de trabalhar, de
descansar, de estudar, de brincar e de amar. Mas ali, soltas sobre a mesa,
para que servirão? Qual o sentido da mola, das catracas, dos pinos, dos
ponteiros e dos números ali expostos, lado a lado, sobre a mesa?
Uma vez desmontado, o relógio, nunca mais será o mesmo. Mesmo
que se consiga remontá-lo, ficarão as folgas, sobrarão peças e a memória de
seu não funcionamento. A engrenagem nunca mais será a mesma. O
despertador nunca mais soará as mesmas ordens.
Esperamos que ao fim deste trabalho, as “peças” que fazem
funcionar a Medicalização da Vida Escolar tenham, ao menos, se
“desencaixado” e que abram as “folgas” necessárias para se pensar práticas de
resistência, apontando para modos alternativos de pensar e agir.
Muitas vezes, não será a criança que se agita, ou que não presta
atenção, uma criança que protesta, resiste e tenta escapar ao controle?
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Não será a criança que se agita, ou que não presta atenção uma
criança que afirma o desvio e a resistência em adaptar-se a um mundo
acelerado, com pouco espaço para o devaneio e para a criação de novos
modos de existir?
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos
completamente o mundo, nos desapossaram dele.
Acreditar no mundo significa principalmente suscitar
acontecimentos, mesmo que pequenos, que escapem ao
controle, ou engendrar novos espaços–tempos, mesmo de
superfície ou volume reduzidos. É ao nível de cada
tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou,
ao contrário, a submissão a um controle.
183
183
DELEUZE, G.Conversações . Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992 p.218.
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