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INGRID LUZIA FERREIRA VIÉGAS
A DESVINCULAÇÃO AMOROSA NA RELAÇÃO CONJUGAL
UNIVERSIDADE SÃO MARCOS
SÃO PAULO
2006
INGRID LUZIA FERREIRA VIÉGAS
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A DESVINCULAÇÃO AMOROSA NA RELAÇÃO CONJUGAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade São
Marcos, como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
Orientador: Profa. Dra. Maria Consuelo Passos.
UNIVERSIDADE SÃO MARCOS
SÃO PAULO
2006
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“Quem poderia fotografar, registrar tatear o instante em que algo se rompe entre duas
pessoas? Quando aconteceu? De noite enquanto dormíamos? No almoço, enquanto
comíamos? Agora, quando vim ao consultório? Ou muito, muito tempo atrás, apenas
não percebemos? E continuamos a viver, a falar, a nos beijar, a dormir juntos, a
procurar a mão do outro, o olhar do outro, como bonecos animados que continuam a
se movimentar ruidosamente por um tempo, mesmo estando a mola de seu mecanismo
quebrada...O cabelo e as unhas do morto continuam a crescer, talvez as células
nervosas ainda sobrevivam quando os glóbulos vermelhos já estão mortos...Nada
sabemos. O que posso fazer agora? Que refletor devo acender para encontrar nessa
escuridão, nessa trama, aquele momento único, aquele milésimo de segundo em que
algo cessa entre duas pessoas?”
Tradução do húngaro de Ladislao Szabo
(Márai, 2003. Contra capa).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................................9
MÉTODO .............................................................................................................12
1. UMA CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DOS VÍNCULOS ............................15
1.1 Sobre os vínculos amorosos ................................................................18
1.2 Contingências atuais da vinculação amorosa ......................................28
2. DE COMO FAZER E DESFAZER O NÓS.......................................................33
2.1 A formação da conjugalidade .............................................................33
2.2 A identificação como elemento constitutivo da conjugalidade ..........37
2.3 Breves considerações sobre a separação conjugal ..............................39
3. O LAÇO E O DESENLACE .............................................................................44
3.1 Entrevista com Socorro .......................................................................44
3.1.1 O início da história do casal: “Solidão a dois” ..........................44
3.1.2 O casamento: “Casamento a três” .............................................45
3.1.3 Os descontentamentos: “Desilusão” .........................................47
3.1.4 A Decisão da Separação: “Ver para crer” .................................48
3.1.5 A separação: “Começar de novo” .............................................50
3.2 Entrevista com Vítor ...........................................................................52
3.2.1 O início da história do casal: “Deixa a vida me levar” ............52
3.2.2 O casamento: “No início somos três” .......................................53
3.2.3 Os descontentamentos: “O embate” ..........................................55
3.2.4 A decisão da separação: “Partindo...” .......................................56
3.2.5 A separação: “De volta ao ninho vazio” ...................................57
3.3 Entrevista com Luísa ............................................................................59
3.3.1 O início da história do casal: “No início uma lua-de-mel”.........59
3.3.2 O casamento: “Ligados pelos conflitos”.....................................61
3.3.3 Os descontentamentos: “Faltando algo em mim”.......................63
3.3.4 A decisão da separação: “O encanto quebrou” ..........................64
3.3.5 A separação: “Arrumando a casa” .............................................66
3.4 Síntese das Entrevistas .........................................................................68
4. INDICADORES DO PROCESSO DE DESVINCULAÇÃO...........................70
4.1.Preponderância do eu sobre o nós ..................................................70
4.2 Desidealização ...............................................................................71
4.3 Sentimentos de aniquilamento .......................................................72
4.4 Tudo acabado entre nós .................................................................74
4.5 Recomeço ......................................................................................75
5. DESVINCULAÇÃO DE CASAL .....................................................................77
CONCLUSÃO ......................................................................................................79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................82
ANEXOS ...............................................................................................................86
A. Entrevista com Socorro ..............................................................................87
B. Entrevista com Vítor ..................................................................................97
C. Entrevista com Luísa ................................................................................108
D. Termo de consentimento livre e esclarecido ............................................118
AGRADECIMENTOS
Este trabalho de pesquisa não foi uma construção totalmente individual. Em
diversos momentos contei com o apoio de inúmeras pessoas na qual venho neste
momento agradecer.
Agradeço primeiramente a Deus que me concedeu a graça de concluir esta
pesquisa.
Agradeço a minha orientadora Maria Consuelo Passos pela paciência, incentivo
e pela generosidade em dividir seus conhecimentos.
A Professora Dra. Miriam Debieux pelo acolhimento e por suas contribuições
que foram de grande valia para a construção desta dissertação.
A Professora Dra. Inês Loureiro pelas aulas empolgantes e pela delicadeza com
que propôs sugestões de aprimoramento de minha pesquisa.
Ao meu pai Ismael Viégas por ser minha inspiração e por acreditar no meu
potencial.
A minha mãe Rosemary Viégas que sempre me incentivou a lutar para vencer os
desafios da vida, e que certamente, de onde estiver, me acompanhou em todo o
processo de construção da pesquisa.
Ao meu esposo Sâmio Pimentel Ferreira pela cumplicidade e paciência quando
eu dedicava a maioria do meu tempo a dissertação, negando-lhe a atenção merecida.
A toda minha família que mesmo à distância torceu por mim.
A amiga Ana Carolina Armelin que sempre esteve presente e me encorajava nos
momentos de crescimento, angústia e medo.
A amiga Andréa Santarelli Alves por ser companheira, por compartilhar
desafios e agradáveis momentos de conversa.
A todos os entrevistados que confiaram a mim suas histórias amorosas e sem os
quais a dissertação não poderia ter sido realizada.
VIÉGAS, Ingrid Luzia Ferreira. A desvinculação amorosa na relação
conjugal. São Paulo, 2006. 119 p. Dissertação (Mestrado).
Universidade São Marcos.
RESUMO
Esta pesquisa propõe-se a discutir o processo de desvinculação amorosa a partir
de depoimentos de sujeitos que tiveram esta experiência de vida. Foi empregado o
método de entrevista semi-dirigida aplicada em três sujeitos, dois do sexo feminino e
um do sexo masculino, separados do cônjuge há mais de um ano. As entrevistas
foram realizadas em um consultório de psicologia com duração de um ou dois
encontros, aproximadamente, de duas a três horas. Foram considerados para análise,
sob a perspectiva do sujeito que se separou, os seguintes momentos da história
amorosa do casal: o momento do encontro (a escolha amorosa passando pela união e
seu cotidiano relacional), os primeiros descontentamentos, os conflitos até o
desinvestimento. Os dados obtidos foram analisados com base em noções
psicanalíticas sobre a configuração dos vínculos, sobre a construção da conjugalidade
e o processo de separação. Após a análise qualitativa dos dados observou-se que a
desvinculação foi ocorrendo para todos os sujeitos quando estes ainda dividiam o
mesmo espaço residencial, antes da separação. Notamos que a desvinculação dá
sinais de que está ocorrendo e se apresenta como um desinvestimento processual na
relação e no parceiro. Observa-se a morte do objeto de amor para o sujeito. Além
disso, a desvinculação amorosa não ocorre por um único fato, mas sim por diversos
fatores que vão se apresentando durante o cotidiano do casal.
Palavras-chave: conjugalidade; desvinculação; vínculo.
ABSTRACT
The purpose of this research was to discuss the process of emotional
detachment based on testimonies of subjects who experienced marriage breakdown.
Semi-structured interviews were used in two women and one man separated from
their spouses for more than one year. Interviews based on two or three hour sessions
were carried out at a psychology clinic. The following moments of the couple's love
story were considered for analysis: first encounter, love choice, the marriage and
daily relationship, first dissatisfactions, conflicts, and detachment. Data analysis was
based on psychoanalytic conceptions of attachment, conjugality, and separation
process. Qualitative analysis showed that emotional detachment started before
separation, when couples still lived in the same residence. It was observed that
detachment is a process in which individuals detach from the relationship and from
their spouses, leading to the death of their love object. Moreover, such a detachment
does not happen due to a single reason, but as a result of several factors along marital
daily routine.
Key-words: attachment; conjugality; detachment.
INTRODUÇÃO
É cada vez maior o número de casamentos desfeitos, legalizados ou não. Tal
fenômeno tem provocado inquietações em vários contextos sociais e motivado
pesquisadores a buscar as razões que levam um casal a se separar. Para entender tal
processo é necessário olhar para o passado, para a história do casal, para o momento
em que os parceiros se encontraram, escolheram e foram escolhidos um pelo outro,
se uniram, conviveram, tiveram descontentamentos e iniciaram um desinvestimento
no vínculo até, de fato, chegar à desvinculação.
Referindo-se ao momento inicial das relações amorosas que é a escolha do
parceiro, Freud (1914) mostra como a origem das escolhas objetais do presente se
encontram no passado, mais especificamente na infância, quando o primeiro objeto
de amor da criança é a mãe.
O autor relaciona a psicodinâmica da escolha amorosa ao fenômeno
identificatório, demonstrando que a escolha se dá com base no modelo dos objetos
parentais e nas identificações edípicas. Uma pessoa pode amar de acordo com uma
escolha anaclítica ou narcísica. Na primeira, o parceiro representa alguém que
oferece cuidado e proteção. A segunda remete a características do próprio sujeito que
faz a escolha amorosa, enfocando o que foi, o que se gostaria de ter sido ou alguém
que foi considerado parte dele mesmo ao longo de seu desenvolvimento.
Na união do casal, os sujeitos conjugam aspectos conscientes e
inconscientes originados na trama das identificações da qual fazem parte
sentimentos, emoções, fantasias, idéias, expectativas e projetos compartilhados.
Para Magalhães (2003), a conjugalidade é uma dimensão da vivência
compartilhada dos parceiros, estruturada na continuidade e na estabilidade do vínculo
conjugal. Seguindo esse foco, quando um casal se forma, aspectos individuais de
cada parceiro se unem inconscientemente constituindo o que será comum ao par.
Além disso, entra nesse jogo o percurso edípico de cada cônjuge e o compromisso
inconsciente que sustentará a conjugalidade.
O vínculo entre um casal, segundo Puget e Berenstein (1993), é uma estrutura
de no mínimo três termos. Ambos autores desenvolveram estudos sobre as estruturas
vinculares que apontam que um vínculo é formado por dois egos e um conector que
fará a ligação entre ambos e possibilitará que os dois continuem investindo no
vínculo.
Puget (1997), como representante da teoria dos vínculos, considera que a
conjugalidade resulta de uma criação inédita denominada “objeto casal”, do qual
participam os inúmeros vínculos estabelecidos ao longo da vida de cada parceiro. A
autora afirma que o objeto casal de cada parceiro se torna compartilhado.
Dentro dessa perspectiva, a conjugalidade constitui-se de acordo com as
elaborações resultantes da estrutura relacional narcisista e dos modelos
identificatórios edípicos, provenientes das determinações inconscientes de cada
sujeito que passam a formar também um inconsciente compartilhado.
Diante disso, é possível dizer que a união de um casal é constituída mediante a
elaboração do conflito infantil e tem como base os acordos inconscientes que
sustentam o vínculo conjugal. Assim se dá o processo de construção dos pilares da
conjugalidade. Mas o que ocorre no processo em que há um desinvestimento no
outro ou no vínculo, acarretando uma desconstrução da relação amorosa?
A literatura está repleta de material sobre a relação conjugal, no entanto, são
poucas as pesquisas que tratam dos caminhos que levam à desvinculação amorosa.
Neste processo, o sujeito entra em contato com a descontinuidade, principalmente se
lembrarmos do modo como é feita a escolha conjugal e de como a conjugalidade é
construída. A separação rompe a unidade formada pelo casal, demandando uma
reconstrução na subjetividade de cada cônjuge.
Segundo Vilhena (1991), a separação é mais que uma ferida no narcisismo,
pois atinge dolorosamente a objetalidade do sujeito, colocando em risco a sua própria
identidade. A autora afirma que, na separação, o desaparecimento na vida e na
memória do cônjuge tem valor de uma sentença de morte, uma vez que atinge o que
era seu modelo de relação. Dessa forma, fere não só o ego, mas o ideal amoroso.
Caruso (1989) também faz uma analogia com a morte, afirmando que na
separação ocorre a morte entre vivos, já que um morre na consciência do outro.
Partimos do pressuposto de que a escolha amorosa se dá segundo
identificações, por meio das quais o laço emocional vai sendo construído com base
no amor infantil. A ligação entre os sujeitos do casal que toma forma de vínculo
requer investimentos mútuos de um sobre o outro para que seja constituída a
conjugalidade com o compartilhamento de fantasias, desejos e ideais. Mas ficam
questões. Um vínculo amoroso se desfaz em um certo momento ou ele é um
processo? Que sinais são relevantes para que se afirme que a desvinculação se deu?
Por quais caminhos se passa até chegar à morte do parceiro amoroso dentro do
sujeito?
Penso que a desvinculação de casal ocorre mediante transações e transições
graduais, nem sempre percebidas pelos parceiros. Meu interesse é discutir o processo
de desconstrução dos vínculos amorosos. Esta pesquisa se propõe, portanto, a
analisar este processo no contexto da relação conjugal, enfocando os acontecimentos
que levaram a um desinvestimento amoroso.
Entendo que é necessário buscar a história do casal desde o momento do
encontro, ou seja, a escolha amorosa passando pela união e seu cotidiano relacional,
os primeiros descontentamentos, os conflitos e o processo de desinvestimento. Esse
processo poderá ser vivido de distintas formas na conjugalidade, por um só membro
ou por ambos, em momentos diferentes. Daí a escolha de um único sujeito como
participante da pesquisa, já que a separação pode se iniciar e se concluir em épocas
distintas para cada um. Dessa forma, privilegiei o relato da história amorosa e da
separação sob a perspectiva de apenas um integrante do casal.
A primeira parte da pesquisa é dedicada a reflexões sobre os princípios que
organizam os processos de vinculação nos sujeitos e as formas de enlace. Para isso,
serão enfocadas noções teóricas psicanalíticas sobre a configuração dos vínculos.
Posteriormente, seguindo o movimento de construção e desconstrução das relações
amorosas de casal, abordo aspectos da escolha do parceiro, da conjugalidade e da
separação. Em seguida, apresento vinhetas das entrevistas e suas análises para tratar
da desvinculação conjugal propriamente dita.
MÉTODO
Esta pesquisa tem como perspectiva central discutir o processo de
desvinculação na relação conjugal a partir de depoimentos de sujeitos que viveram
esse processo, ressaltando as tensões, os conflitos e os acontecimentos que levaram a
um desinvestimento amoroso. Para tanto, escolhi a pesquisa qualitativa que busca
estudar a realidade como um fenômeno cultural, histórico e dinâmico. Tal realidade é
captada pela observação do pesquisador, sentida e descrita por ele.
Este tipo de investigação privilegia os significados das ações nas relações
humanas, trabalha com a vivência dos sujeitos, com a experiência e, no cotidiano,
com aspectos não captáveis por métodos estatísticos.
Segundo Ferreira, Calvoso e Gonzalez (2002), a pesquisa qualitativa considera
o envolvimento do pesquisador e participante, e não simplesmente uma situação na
qual sejam representados processos externos ao observador.
Como o estudo trata principalmente de aspectos subjetivos, a investigação
qualitativa parece a mais indicada, uma vez que permite que a subjetividade seja
captada e entendida por meio da narrativa da história amorosa de cada depoente.
Utilizarei a entrevista semi-dirigida, pois o método direciona o depoente ao tema
investigado, mas também oferece a ele autonomia para abordar sua história na ordem
que lhe convier. Assim, começo a entrevista com uma pergunta inicial
desencadeadora da fala do participante e algumas outras perguntas que focalizam os
aspectos centrais do estudo.
Participaram três depoentes indicados por pessoas que fazem parte do meu
círculo profissional, que se dispuseram a colaborar oferecendo relatos de suas
histórias amorosas e se encaixaram nos critérios utilizados para a seleção da
população a ser pesquisada: ter vivido uma união conjugal e ter se separado há pelo
menos um ano. Este último critério buscava também assegurar que a entrevista não
mobilizasse aspectos emocionais vividos recentemente e que não oferecessem riscos
aos sujeitos. Por esse motivo, os depoimentos foram colhidos a posteriori, ou seja, no
momento em que já havia uma elaboração sobre a separação e a desvinculação. Caso
a entrevista mobilizasse algum aspecto emocional e o sujeito sentisse necessidade de
expressá-lo, a entrevistadora, sendo psicóloga, estava disponível para oferecer o
suporte psicológico necessário.
Os sujeitos desta pesquisa são: Socorro, 27 anos, psicóloga, sexo feminino,
casada durante dois anos no civil, separada há um ano, sem filhos; Vítor, 44 anos,
administrador de empresas, sexo masculino, casado durante 23 anos no civil,
separado há um ano e um mês, pai de três filhos da união; e Luísa, 44 anos, artista
plástica, sexo feminino, casada (embora sem registro civil da união) por dois anos e
separada há quatro anos e meio, sem filhos.
O fato de incluir sujeitos com ou sem filhos teve a intenção de investigar se
haviam pontos em comum na desvinculação de quem possui filhos e de quem não os
tem. Vale ressaltar que todos os nomes utilizados nesta pesquisa são fictícios, com o
objetivo de preservar a identidade dos depoentes. Os trechos transcritos das
entrevistas foram fielmente mantidos, sem correções semânticas, gramaticais ou
ortográficas.
Diante dos impasses que tive na pesquisa, como primeiramente a necessidade
de entender o que é uma relação conjugal, precisei refletir sob que pressupostos se
classificaria um relacionamento dessa natureza. Após diversos questionamentos
sobre os elementos que configuram uma relação amorosa, cheguei a um raciocínio
que me parece fazer sentido. Tendo em vista que uma relação deste tipo não pode ser
somente demarcada por uma dimensão jurídica, nem tampouco pelo tempo de
convivência, ou mesmo pelo espaço compartilhado, penso que o relacionamento é
marcado pelo enlaçamento afetivo, se configurando em uma experiência de ordem
subjetiva. Dessa forma, partindo da idéia de que uma vida compartilhada por um
casal pressupõe investimento afetivo, só as pessoas que o experienciam podem,
efetivamente, afirmar se ele ocorreu. Então, ao final, optei por entender que se
tratava de uma união conjugal quando os depoentes assim o declaravam.
Primeiro impasse solucionado, logo veio o segundo que foi como obter
participantes para a pesquisa, já que no momento não estava trabalhando na clínica.
Decidi perguntar para algumas pessoas de meu círculo profissional se elas conheciam
pessoas que houvessem vivido uma união de casal, que estivessem separados há pelo
menos um ano e que estivessem dispostas a colaborar com a pesquisa. Assim, obtive
a resposta de três pessoas interessadas.
As entrevistas ocorreram em um consultório de psicologia em um ou dois
encontros, com duração de duas a três horas, aproximadamente. O primeiro passo foi
informar aos sujeitos quanto aos objetivos da pesquisa, os procedimentos que seriam
utilizados e a respeito do termo de consentimento.
Nas entrevistas, gravadas e transcritas, foram abordados o início da história
amorosa do casal (que consiste na fase em que os parceiros se conheceram e no
namoro), a história do casamento (dinâmica de relacionamento, os primeiros
descontentamentos e a decisão de se separar), a separação e a desvinculação.
Optei por colher os relatos de um sujeito e não dos dois cônjuges por priorizar
em minha pesquisa os caminhos de desvinculação do sujeito que se separou e não do
par conjugal, embora tenha clareza de que o desinvestimento de um sujeito do casal
repercuta sensivelmente no outro. É importante assinalar que as histórias relatadas e
utilizadas dizem respeito ao relacionamento do casal, mas privilegiam o ponto de
vista do sujeito entrevistado.
A primeira parte desta pesquisa foi dedicada à reflexão sobre os princípios que
organizam os processos de vinculação nos sujeitos isto é, a maneira como esses
sujeitos vão se enlaçando. Para isso, abordo a teoria dos vínculos. Posteriormente,
com o conhecimento dos conteúdos e da análise das entrevistas, trago mais
especificamente a questão da escolha amorosa de casal, da conjugalidade, da
separação de casal e finalmente da desvinculação.
1. UMA CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DOS VÍNCULOS
O termo vínculo vem do latim vinculum, de vincire: atar, significando união ou
atadura de uma pessoa ou coisa com outra, com ligaduras e nós que se prendem de
forma duradoura e estável.
Puget e Berenstein (1993), em seu estudo sobre as estruturas vinculares
apontam que vínculo é uma estrutura de no mínimo três termos: dois egos e um
conector que fará a ligação entre ambos e possibilitará o investimento dos dois no
vínculo.
O conector é o que nos permite entender o que mantêm as pessoas juntas, isto é,
unidas de forma estável em uma relação de casal. E ao mesmo tempo, nos permitirá
perceber o processo de falência do conector, quando o vínculo já não existe. Um
conector pode crescer, ser funcional, deteriorar-se, regredir ou ser disfuncional.
Nos vínculos se realizam relações de troca que funcionam por pares de termos.
Desta forma, há o intercâmbio de palavras, significados, bens e produtos. E ainda o
intercâmbio sexual, corporal, de prazer e de necessidade, o que vai depender de
como se situam os dois egos ou o sujeito e o objeto, em relação ao desejo.
Para Puget e Berenstein (1993), um vínculo é estabelecido mediante acordos e
pactos inconscientes que, por sua vez, resultam de uma combinação de elementos
compartilháveis e incompartilháveis de cada ego. Esses aspectos, vindos do espaço
mental dos sujeitos, se desdobram e unificam funcionamentos mentais e vinculares.
Desta mistura se origina uma nova unidade vincular que vai além da mera soma de
ambos.
Os acordos inconscientes podem especificar elementos diferentes originados no
espaço mental incompartilhável de cada ego. Para compartilhar o incompartilhável os
egos devem desdobrar-se para ceder a concessões e, assim, pactuar, satisfazer o
desejo do outro e colocar-se em situação favorável.
O que se tem como acordo inconsciente já foi mencionado por Freud (1905),
quando se reportou à apropriação como mecanismo da identificação, onde o ego
incorpora o traço do outro, que passa a funcionar como se fosse seu, mediante uma
transformação. Para o autor, um acordo seria uma apropriação mútua e
compartilhada de aspectos de cada ego. Desta forma, cabe à parte incompartilhável
do ego a criação de pactos - como, por exemplo, a tolerância para que se mantenha o
vínculo.
Do que agora se sabe sobre os acordos inconscientes podemos seguir adiante
tratando da bidirecionalidade do vínculo, condição essencial para sua existência. Para
todo vínculo deve haver um referencial externo, isto é, um outro ego que será
simultaneamente lugar do desejo e de realização do desejo um para o outro. Ambos
se alternarão segundo suas funções, de acordo com os pactos combinados
inconscientemente.
Segundo Puget e Berenstein (1993):
O desejo do ego é realizado ou busca realizar-se mediante operações
do outro. Chamamos de ego o que se erige como fonte do desejo, e
chamamos de outro aquele cuja valorização permite situá-lo como
objeto em posição favorável para a realização do desejo, isto é, a
realização correspondente a esse desejo. (p.22)
Os dois terão que ser, alternativamente, fonte de desejo e objeto desejado e de
ação, um para o outro, o que pode ser uma situação produtora de conflitos entre os
sujeitos vinculados. Quando um sujeito da estrutura vincular se destaca,
monopolizando a existência de seu desejo, o outro será pensado como objeto a
serviço do desejo do ego. Nesta relação primitiva e originária transitam a relação
intra-subjetiva e a vincular, onde o ego supõe uma unidirecionalidade, segundo a
qual existe um objeto sempre disposto a cumprir a demanda do ego.
A seguir, apresento as modalidades de contato com o outro que servem como
base de constituição dos vínculos, segundo os autores acima:
a) Modelo corporal: influencia a forma como todos se representam no mundo e
sustenta toda a relação com o outro, tornando possível que a pessoa possa se
apresentar como um acompanhante permanente, tanto na ausência quanto na
presença do parceiro. Essa modalidade se dá pelo contato corporal, sem o qual
nenhum vínculo seria possível. Sua expressão é composta de imagem-emoção-
sentimento, como recortes mentais do olhar, da escuta e do sentir a presença externa
ao próprio ego, apropriando-se da imagem desse outro.
b) Reconhecimento da existência do outro: marcado pelo que o ego espera que
esse outro seja. A construção psíquica está pautada em fantasias, ou melhor, pelo
nível fantasmático sob o qual é construída a imagem do outro como bom ou mau. É
sob esse aspecto que se dará o investimento fantasmático do aparelho psíquico de
cada um - o nível interfantasmático.
c) Palavras intercambiadas: o nível ideativo e da comunicação sob o qual as
palavras trocadas estarão sujeitas a serem bem ou mal entendidas.
Puget e Berenstein (1993) propõem diversas modalidades vinculares. De
acordo com sua organização fantasmática, os vínculos podem ser localizados entre a
regressão e a progressão. A regressão remete a níveis mais concretos e a progressão a
patamares de abstração e simbolização como as que apresento a seguir:
-Vínculos de sangue de aliança: datam do início da cultura.
Laços consangüíneos são operados por meio do fator biológico, unindo
parentes do grupo familiar. Já as alianças consistem em ligações de compromisso
visando ao matrimônio. A passagem do vínculo de sangue para o de aliança foi
proporcionada pelo tabu do incesto, que permitiu a reformulação da endogamia para
a exogamia, bem como a transição do permitido para o proibido.
- Vínculo adesivo ou narcisista dual: a expressão “adesivo” remete ao contato
de pele com pele, como se formassem uma só. Nesse tipo de vínculo encontram-se
fantasias como o medo de ficar isolado frente à ameaça de perder o outro. Diante
disso, o ego se defende, criando um vínculo dual. Em situações de separação ocorre o
desespero como resultado de sentimentos de vazio.
- Vínculo de posse (possuído-possessivo): também há a presença do contato
corporal concreto, em que a finalidade está na redução da distância do casal que
forma o vínculo gerador de angústias ligadas ao reconhecimento das diferenças. Para
isso, se busca anular a distância por meio do controle visual e auditivo. O vínculo de
posse origina-se de intensos sentimentos de perseguição e são dotados de uma
desconfiança contínua, controlados pela modalidade vincular e complementar de
possuído-possessivo.
- Vínculo de controle: assemelha-se ao anterior, mas possui uma maior
tolerância de diferenciação entre os egos que constituem a ligação, apesar de partir
do pressuposto que os egos devem ocupar concomitantemente os mesmos lugares
com a finalidade de evitar o descontrole do objeto e, conseqüentemente, do próprio
ego. As angústias passam pelo terror da castração e do despedaçamento, caso a
necessidade de controle e a pulsão de domínio não sejam satisfeitas.
- Vínculo amoroso: apresenta a reciprocidade e a modificação dos vínculos já
citados. Os parâmetros que definem um casal, como o compromisso de fazerem parte
de uma estrutura vincular de investimento recíproco, estão presentes na modalidade.
O vínculo de tipo amoroso pressupõe a perda dos outros tipos de ligação. A
passagem da endogamia para a exogamia depende da capacidade e da
disponibilidade de criar um vínculo inédito, o que traz consigo o fim da intenção de
perpetuar o conhecido, o que iremos tratar adiante.
1.1 Sobre os vínculos amorosos
O início da construção vincular amorosa se dá no encontro, na escolha do
parceiro no momento de enamoramento. Nessa etapa, a ilusão tem a função de
superar a dor mental surgida ao entrar em contato com a descontinuidade proveniente
do processo de saída do grupo primário, e da recém-descoberta do grupo casal. Mas,
como afinal se dá a escolha amorosa, e conseqüentemente, como se inicia a
construção do vínculo amoroso de casal?
Em “Introdução ao Narcisismo”, Freud (1914c), afirma que existem duas
formas de escolha amorosa: anaclítica e narcísica. Na objetal anaclítica ou de apoio,
o objeto de amor é eleito com base nas figuras parentais que lhe asseguram alimento,
cuidados e proteção. As pulsões sexuais se apóiam nas pulsões de autoconservação.
O primeiro objeto é o seio materno e, mais tarde, a criança aprende a amar pessoas
que a ajudam no seu estado de desamparo e satisfazem suas necessidades. A escolha
anaclítica é, portanto, uma reprodução de objeto preexistente. Uma lembrança da
vinculação do passado.
A escolha objetal narcisista é constituída por uma idéia de que a pessoa amará o
que foi outrora e não é mais, ou então, aquele que possui os atributos que ela nunca
possuiu. Assim, o fascínio e idealização são projeções de um ideal narcisista que
propicia a identificação e o empréstimo de um ego aceitável. Portanto, a escolha de
objeto se faz a partir da relação do sujeito consigo mesmo, já que o objeto representa
a própria pessoa. O que o sujeito projeta diante de si como seu ideal de escolha
amorosa é o substituto do narcisismo perdido na infância, quando o seu ideal era ele
mesmo.
Portanto, Freud (1914c) propõe que a origem de nossas escolhas objetais do
presente se encontra no passado, mais especificamente na infância, onde a criança
tem a mãe como seu primeiro objeto de amor.
Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais -
ele próprio e a mulher que cuida dele - e ao fazê-lo, estamos
postulando a existência de um narcisismo primário em todos, o qual,
em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua
escolha objetal (p.104).
Os primeiros objetos sexuais de uma criança são ela mesma e as pessoas que
lhe oferecem cuidado, carinho e proteção. O narcisismo primário diz respeito ao
movimento da criança de tomar a si mesma como objeto de amor, antes de escolher
objetos externos. Nessa fase a criança se encontra num estado psiquicamente
indiferenciado, no qual não há a noção de separação entre o sujeito e o mundo que o
cerca.
Freud (1914c) aponta que a crítica exercida pelos pais em relação à criança,
interiorizada por ela como uma instância psíquica de censura e de auto-observação, é
responsável pelo abandono do narcisismo primário. Em seu lugar, é criada uma
espécie de referência ao ego para a apreciação das realizações afetivas.
Há ainda, segundo o autor, o narcisismo secundário que remete à idéia de um
retorno ao ego da libido retirada dos seus investimentos objetais. Para Freud (1914c),
o narcisismo secundário é uma estrutura permanente do sujeito que tem como
finalidade a gratificação em benefício próprio.
Tomando como base a libido que é direcionada para si mesmo e a libido que
aflui ao ego pelas identificações, Freud (1914c) aponta os caminhos que levam à
escolha de um objeto:
Uma pessoa pode amar:
(1) Em conformidade com o tipo narcisista:
(a) O que ela própria é (isto é, ela mesma),
(b) O que ela própria foi,
(c) O que ela própria gostaria de ser,
(d) Alguém que foi uma vez parte dela mesma (que cuidou dela,
numa fase bastante arcaica).
(2) Em conformidade com o tipo anaclítico (de ligação):
(a) A mulher que o alimenta,
(b) O homem que a protege e a sucessão de substitutos que tomam
o seu lugar. (p.107)
A escolha de objeto tem, portanto, base na vida infantil e que consiste na
substituição do objeto de desejo - originalmente as figuras parentais. Assim, o
narcisismo pode convergir para uma relação com os substitutos, na qual o sujeito
procura se conformar com a não realização do amor infantil, constituindo o que
constitui o que Freud (1914c) chamou de ideal do ego.
De acordo com Laplanche (1992), o ideal do ego é uma instância da
personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das
identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais coletivos.
Freud (1923) afirma que os efeitos das primeiras identificações na mais
primitiva infância serão gerais e duradouros. O autor afirma que por trás da origem
do ideal do ego está a mais importante identificação de um indivíduo, a sua
identificação com o pai em sua pré-história pessoal. Trata-se de uma identificação
direta, imediata e mais primitiva do que qualquer catexia do objeto.
Não se trata, porém, de uma sentença em que o ideal do ego terá que
obrigatoriamente estar submetido às primeiras escolhas objetais, ele também pode
apresentar uma formação reativa contra essas escolhas. Diante disso, para Freud
(1923), o preceito: “Você deveria ser assim (como seu pai)” é também compreendido
como proibição: “Você não pode ser assim (como seu pai)”. Não se pode fazer tudo o
que ele faz, certas coisas são prerrogativas dele.
Há um aspecto duplo do ideal do ego: a função de reprimir o complexo de
Édipo e, ao mesmo tempo, possibilitar a identificação com a figura paterna pai, o que
não era uma missão fácil de ser cumprida.
Segundo Freud (1923):
Os pais da criança e especialmente o pai eram percebidos como
obstáculo a uma realização dos desejos edipianos, de maneira que o ego
infantil fortificou-se para a execução da repressão erguendo este mesmo
obstáculo dentro de si próprio.
Na proibição do incesto é fundado o princípio exogâmico, que
impulsiona os indivíduos do sexo oposto a se unirem sexualmente com
um parceiro do exogrupo, permitindo a saída do complexo de Édipo. Na
dissolução do complexo de Édipo, Freud afirma que a angústia de
castração é a primeira capaz de apaziguar o desejo da criança.
A identificação com o pai será a saída do ego infantil diante da ameaça de
castração e da proibição do incesto. Dessa forma, a criança partirá para a procura de
um objeto de amor que se pareça com sua mãe, tornando possível a conciliação de
desejo, angústia de castração e identificação.
A escolha objetal é guiada pelos indícios da história infantil, pela inclinação
sexual da criança por pais ou pelos que cuidam dela. No entanto, é desviada dessas
pessoas pela barreira do incesto e se volta para outras pessoas que se assemelhem a
elas, seus primeiros referenciais.
Assim, é dado um livre curso a um desejo que determina a autonomia e o
investimento do exogrupo pelo menino. Ele perde sua mãe, mas pode escolher outra
mulher, o que segundo Eiguer (1985), se constitui na liberdade condicional, porque
irá procurar uma mulher como sua mãe.
Ao se referir ao curso da evolução humana marcada pela vida erótica, Freud
(1930) afirma que na primeira fase a criança descobre o primeiro objeto para o seu
amor em um ou outro dos pais e todos os seus objetos de satisfação, unificam-se
nesse objeto.
Com a repressão, a criança renuncia à maior parte desses objetivos sexuais
infantis e, com isso, há uma modificação na sua relação com seus pais - ela ainda fica
ligada a eles, mas por instintos que devem ser descritos como inibidos em seu
objetivo. A criança passa a sentir emoções afetuosas.
Esta configuração afetiva primitiva da criança, nos casos típicos, toma a forma
de complexo de Édipo e é substituída pelo período de latência, sucumbindo a uma
onda de repressão. Freud (1930) descreve que o que resta deste período toma a forma
de um laço puramente afetuoso em relação às mesmas pessoas às quais eram
destinados os laços descritos como sexuais.
De acordo com o autor, as primeiras tendências sensuais, porém, continuam
preservadas no inconsciente, possibilitando que a totalidade da corrente original
continue a existir. Para Freud, os vínculos sexuais dos primeiros anos da infância
também persistem, embora reprimidos e inconscientes. Podemos dizer que, ao fazer
sua escolha conjugal, o sujeito não recorda coisa alguma do que foram esquecidos ou
reprimidos. Freud (1914a), afirma que a pessoa revela esses materiais reprimidos
pela ação, repetindo, sem saber que está repetindo. Para o autor, a repetição é uma
transferência do passado esquecido. O passado de um casal refere-se ao amor
infantil, pelos primeiros objetos de cada um dos cônjuges. Freud (1914a) alerta que
devemos estar preparados para descobrir que o paciente se submete à compulsão à
repetição, que por sua vez substitui o impulso de recordar, não apenas em sua atitude
pessoal para com o médico, mas também em diferentes atividades e relacionamentos
que podem ocupar sua vida.
O sujeito, porém, não está fadado a se tornar eterno prisioneiro da compulsão à
repetição. A elaboração é um recurso, por meio do qual o paciente pode correlacionar
as cotas de afeto estranguladas pela repressão através da ab-reação, a fim de elaborá-
las e superá-las. Para isso, Freud (1914a) aponta que devemos dar ao paciente tempo
para conhecer melhor esta resistência com a qual começou a se familiarizar. Afirma
ainda que o primeiro passo para superar as resistências é reconhecê-las e se
familiarizar com elas.
Eiguer (1995) considera a escolha conjugal como um organizador psíquico, isto
é, formações inconscientes mais ou menos complexas que tornam possíveis e
expressam o desenvolvimento integrado dos vínculos de agrupamento, oferecendo
suporte a eles. É algo que ordena os objetos inconscientes, operando na integração e
na transformação dos elementos componentes do grupo casal, e que propõe o
primeiro modelo de vínculo objetal.
Diante da realização da escolha de objeto amoroso, a estrutura vincular
continua seu processo de constituição por meio do intercâmbio e da elaboração dos
componentes narcisistas, fantasmáticos, ideativos e da linguagem corporal de cada
elemento do casal.
Segundo este autor acima citado:
Na constituição do vínculo com um objeto privilegiado, como é o
vínculo matrimonial, intervém também os objetos internos de cada um,
segundo diferentes vicissitudes. Podemos conceber o vínculo como a
colocação em funcionamento da relação pensada em ausência do outro.
(p.25).
Como vimos anteriormente, Puget e Berenstein (1993), afirmam que o vínculo
é uma estrutura de três termos formada por dois egos e um conector, que fará a
ligação entre os sujeitos. Fazem parte desta estrutura dois tipos de representação que
possuem leis de funcionamento distintas: a do espaço do macrocontexto social e do
complexo de Édipo. A primeira determina a relação familiar, as leis de parentesco e a
continuidade histórica. O modelo sócio-cultural na estrutura vincular matrimonial
pode tanto delimitar o espaço e o lugar, a denominação de esposo e esposa, quanto
definir representações presentes nos papéis exercidos, incluindo prescrições e
proibições.
Baseados neste modelo sócio-cultural, os autores definem os parâmetros de um
vínculo matrimonial: cotidianidade, modalidade de relações sexuais, alguma forma
de projeto vital compartilhado e alguma promessa de tendência monogâmica.
Já o complexo de Édipo é regido pelo desejo inconsciente que determinará que
cada ego deverá seguir o modelo parental de constituição do casal, de acordo com
sua estrutura mental e suas identificações com seu próprio casal parental.
Como já sabemos, um vínculo se realiza a partir de acordos e pactos
inconscientes. Tais acordos originam-se de combinações de aspectos compartilháveis
de cada elemento do casal. Mas também tendem a especificar elementos diferentes,
vindos de um espaço mental incompartilhável de cada ego. Essa tarefa de
compartilhar o incompartilhável obriga os egos a realizar acordos e pactos. Aliás,
ambos os egos são simultaneamente lugar de desejo e realização do desejo do outro.
Os dois terão que ser, alternativamente, fonte de desejo e objeto desejado e de ação.
Na relação conjugal, estamos diante da identificação-projetiva da época em que
conviviam mãe/bebê. O relacionamento é revivido na idade adulta no encontro com o
outro que tem a ilusão de preencher as expectativas do cônjuge e vice-versa. A ilusão
de completude já vivenciada com a mãe estará presente na passagem da endogamia
para a exogamia, mesmo que isso consista na vivência de algo novo, com alguém
original, mas que concomitantemente trará, por meio da transferência, lembranças e
fantasias do passado.
Em relação a isso, Freud (1914b) afirma que o amor consiste em novas adições
de antigas características, propiciando a repetição de reações infantis. Para ele esse é
o caráter essencial de todo estado amoroso. O autor compara o amor da vida
cotidiana ao amor transferencial, relatando que este último não exibe uma só
característica nova que se origine da situação atual, mas se compõe de repetições e
cópias de reações anteriores, inclusive infantis.
A construção de um vínculo amoroso demanda uma nova identidade para o
casal, de um “eu-conjugal”, como nos diz Singly apud Silva (2001), que se constrói
pelas interações estabelecidas por eles. Dessa forma, quando duas pessoas decidem
manter uma relação de troca, de investimento no parceiro e de aliança terão de se
modificar internamente e se reorganizar.
A tarefa não é das mais fáceis, pois implica num exercício de compartilhamento
de materiais inconscientes herdados e não simplesmente um exercício espontâneo de
adaptação ao parceiro.
O “eu-conjugal” pode ser comparado ao modelo de aparelho psíquico grupal
desenvolvido por Kaës (1997), uma vez que seu sistema funciona de forma
autônoma. Além disso, na conjugalidade há um movimento dialético como no grupo,
ocorrem trocas de conteúdos psíquicos (dentre eles, os fantasmas) de cada parceiro,
formando o grupo casal. Por sua vez, o grupo faz retornar os conteúdos para cada
sujeito em um movimento recíproco.
Puget e Berenstein (1993), propõem tipologias de vínculos que procuram
explicar sua significação inconsciente. Os autores buscam definir o que conecta o
casal, as características e qualidades determinantes do tipo de interação entre os dois
egos. Vale ressaltar, que as tipologias traçadas pelos autores são consideradas
psicopatológicas. Mas aqui, nesta pesquisa, elas são tomadas somente como
referencial para compreender melhor o funcionamento vincular, já que não
pretendemos apontar e nem explicar a psicopatologia do casal e, tampouco, de cada
um dos egos separadamente. Para os autores, os vínculos são divididos em três
grupos: dual, terceiridade limitada e terceiridade ampla.
A estrutura dual se subdivide em: gemelaridade erotizada, gemelaridade
tanática e complementaridade enlouquecedoura; o grupo da estrutura de terceiridade
limitada que se subdivide em funcionamento pervertedor-pervertido, enciumante-
ciumento, de tipo hiperdiscriminação e inibidor-inibido. A estrutura de terceiridade
ampla não apresenta subdivisões.
No vínculo de estrutural dual predomina o vínculo de tipo fusão, dominado pela
idealização mútua de algum aspecto. Pode existir nesta estrutura uma relação de
simetria chamada de gemelaridade, ou de assimetria estável chamada de
complementaridade. Cada uma delas poderá dar lugar à constituição de casal, a partir
do que foi se constituindo desde o enamoramento.
• Gemelaridade erotizada - “Somos um só”:
A idealização rege esse tipo de vínculo. Ele possui uma pequena quantidade de
indícios diferenciais, pois existe apenas um ou dois iguais e, portanto, são recusadas
as particularidades de cada um. A visão especular dá ao olhar uma importância
fundamental nesse tipo de vínculo. A constituição de funcionamentos é simétrica e
paralela, os membros do vínculo têm a mesma representação: o desejo de ser a
imagem especular do outro, daí a conceitualização derivar da denominação de
gêmeos. O olhar é utilizado para observar apenas aquilo que é percebido como
ilusoriamente semelhante ao ego, oferecendo ao olhar o que é semelhante ao outro. A
cotidianidade é um espaço de não-conflito para homologar gostos e afinidades,
expurgando todo o diferente como uma forma de reforçar a convicção ilusória do
igual. O projeto vital de um casal que mantêm este tipo de vínculo é compartilhar o
espaço que só pertence a eles dois. Se o projeto inclui a transformação e a inclusão
de um terceiro objeto, como um filho, um outro parceiro, ou até planos e desejos não
compartilhados, podem surgir angústias catastróficas e de descontinuidade. Isso se dá
pelo fato de que o compromisso era manter o vínculo sempre igual e especular, não
cabendo uma outra imagem no espelho. A recusa a representação do diferente
provoca dificuldades quando ocorre a irrupção do real, podendo trazer crises e
ruptura do vínculo.
• Gemelaridade tanática - “As censuras eternas”:
Para Puget e Berenstein (1993), o funcionamento deste tipo de vínculo é
apoiado em Tanatos, é gerador de frustrações permanentes. Mantém a denominação
de funcionamento narcisista devido à presença de fantasias de fusão e à dependência
máxima, que geram mal-estar. Cada ego está conectado ao seu objeto imaginado para
evitar a frustração de não possuí-lo. A presença do outro real, diferente, denuncia os
aspectos não-coincidentes com o objeto imaginado. Para se confirmar na necessidade
de ficar recluso, é preciso ter do lado de fora um outro ego a quem frustrar. No
vínculo de gemelaridade tanática, o terceiro perseguidor é tanto o outro ego como
algum outro. Quando ainda surge um filho, a angústia pode se tornar intolerável. Os
elementos do casal ficam presos mutuamente para espelhar um ao outros suas falhas.
Mantêm uma dependência adesiva, como se cada um dos egos estivesse incompleto.
A autonomia não é permitida e o compartilhar é persecutório, pois ameaça denunciar
traços do outro diferente do objeto imaginado. Dirigem para o parceiro desprezo e
críticas, mas, mesmo diante disso, não se separam. Esse vínculo apresenta-se
impenetrável, e o terceiro tem a sensação de desprazer e impotência diante de si,
como se fosse um enamoramento em negativo. A tendência monogâmica é
respeitada, mas requer a fantasia de realizar uma relação com um objeto imaginado
ou com seu representante, fantasia representante de uma vivência aterrorizante de
desamparo.
• Complementaridade enlouquecedora:
Amparador-desamparado: o principal elemento deste vínculo é a função de
assistente. Quando um ocupa o lugar de desamparado, o outro ocupa o lugar de
cuidador. É uma modalidade de predomínio tanático, os afetos são da ordem da
irritação, da hostilidade e da humilhação. O pacto entre o casal data da fase do
enamoramento, quando ambos estipularam ser assistentes mútuos, alternadamente ou
não, de acordo com a possibilidade de cada elemento assumir ambos os papéis. As
relações sexuais são de nível pré-genital, o que nem sempre compromete a satisfação.
A cotidianidade é satisfatória, já que é sustentada pelo amparo, mas quando fracassa
a complementaridade surge o desacordo e a provável falência do vínculo.
Segundo Puget e Berenstein (1993), projeto vital do casal é construído sob a
submissão, onde há a redução do projeto de dois ao de um só. Portanto, não existirá
conflito até quando a meta de um ego for a de transformar o outro em um
complemento, anulando sua autonomia. O acordo desse tipo de vínculo é confirmar e
devolver ao outro a imagem de enlouquecedor, a partir da posição de enlouquecido.
O acordo leva a uma estipulação a respeito dos limites, com a finalidade de resolver
a falta dos mesmos, vivida por cada um segundo a sua própria história. Organiza-se
um pacto inconsciente pautado na confusão e na ambigüidade com a parte que não
pactua com o acordo.
No vínculo de estrutura de terceiridade limitada, o terceiro ocupa o lugar de
excluído em diferentes posições. Há um vínculo dual já não auto-suficiente, mas que
provoca angústia diante a ameaça do terceiro, logo a ordem é evitá-lo. O que impera
nesse tipo de vínculo é a lei do “querer é poder”. A autonomia do outro só é aceita
sob a condição desta lei.
• Funcionamento perversor-pervertido:
O que marca o vínculo é transgressão de valores com intercâmbios sádicos,
constantemente trocados, como se pudessem ir de um mal-estar profundo e erotizado
para uma lua-de-mel. Precisam de um terceiro para triangular a relação, mas este
ocupa sempre um lugar de excluído. Sua função é de olhar impotente uma orgia de
maus-tratos e transgressão praticada pelo casal, ou assistir uma cena amorosa, mas
ser privado de desfrutá-la. Assim, o terceiro está sempre presente ou pode ser
recriado imaginariamente, o que importa é que a cena seja representada para um
outro. A sexualidade é tortuosa, pré-genital, insatisfatória e a tendência monogâmica
não é respeitada.
O projeto de vida de um casal com esse vínculo é em seu conteúdo manifesto a
separação, mas no conteúdo latente está a possibilidade de conservar este
funcionamento independentemente do projeto a seguir.
• Funcionamento enciumante-ciumento:
Há a criação de uma cena em que o terceiro possui papel importante. O vínculo
funciona mediante uma cena imaginada em que há uma relação maravilhosa entre um
ego e outro ego externo, excluindo um terceiro ego. Da exclusão vem toda a fonte de
prazer. Um ou até os dois podem ficar na posição de ciumento. O cônjuge é
imaginado pelo parceiro em uma relação de fusão dual maravilhosa com outro que
pode ser ele mesmo ou um terceiro. O prazer está associado ao sofrimento do outro.
A cena que causa prazer tem origem pré-genital e sádica. O funcionamento ciumento,
erotizado pela situação vivida a três, está ligado ao mecanismo perverso. Um dos
egos permanece excluído e depende da relação do outro que está fundido com o
terceiro.
• Funcionamento de tipo hiperdiscriminação:
A dinâmica defensiva evita a angústia de um vínculo de dependência, por isso
essa modalidade é chamada de anverso do funcionamento narcisista. Nele, o casal se
mantém aparentemente isolado e seus egos não estabelecer conexão. O
funcionamento tem a finalidade de marcar a diferença entre um e outro.
Projetos e desejos não são compartilhados. Cada um representa uma totalidade
que possui zonas de evitação. A hiperindependência é a base do contato e por meio
dela são expressos desacordos constantes. Assim, o cotidiano será recheado de
diferenças de gostos e de concepção de organização espaço-temporal da vida. Tudo
isso, porém, é uma defesa diante da própria integridade mental que não suporta a
perda de limites.O projeto vital é individual e distinto. Para evitar a angústia de
compartilhar e enfrentar componentes de fusão, a tendência monogâmica é evitada.
Diante disso, um terceiro será convocado para suprir a necessidade de autonomia. As
relações sexuais são escassas e, em geral, deixam um ranço de insatisfação. O outro é
utilizado como necessário, mas não se configura como um objeto amoroso, não é
tolerado dessa forma.
No conceito de estrutura de terceiridade ampla, desenvolvido por Puget e
Berenstein (1993), existem duas mentes distintas, mas há só uma representação
interna do outro, sem que seja necessário referir-se permanentemente a ela para se
sentir incluído. Para o casal, há a existência de um outro diferente do ego, sem o
despertar de uma angústia insuportável.
Cada um se constitui no melhor acompanhante para o outro, não significando
aquele objeto de sobrevivência infantil, mas sim um outro buscado por sua
especificidade.
Desacordos ou diferenças serão estímulos para a adaptação dos processos
vinculares, nos quais surgirão possibilidades de novos arranjos, como resultado da
articulação das diferenças. O projeto vital compartilhado permite o aparecimento de
um terceiro, já que admite sentimentos de exclusão que, por sua vez, trazem a
possibilidade de reelaborar o vínculo de casal. As relações sexuais podem alternar-se
com períodos, sendo que nem sempre coincide o nível simétrico de desejo dos dois
egos.
1.2 Contingências atuais da vinculação amorosa
Hoje temos que pensar em uma série de contingências na formação dos
vínculos amorosos, visto que muitas transformações políticas, econômicas e culturais
se deram desde que Freud desenvolveu sua teoria psicanalítica, há cerca de um
século.
O romantismo amoroso era a ideologia da época e pregava que o
apaixonamento romântico era “constitutivo” do desenvolvimento emocional do
sujeito. Dessa forma, este tipo de vínculo com base no romantismo foi incentivado e
treinado ao longo do tempo, o que nos faz vê-lo presente até hoje.
Segundo Costa (1999), esta ideologia foi proposta basicamente por três
motivos:
1) porque favoreceu a formação da família nuclear e suas conseqüências
sócio-afetivas como o cuidado das crianças, a conversão das mulheres
em mães, a conversão dos homens em pais, a divisão dos humanos em
heterossexuais e homossexuais etc; 2) porque incentivou a aprendizagem
da autonomia e da independência burguesas e utilitaristas diante dos
interesses grupais das linhagens e casas aristocráticas e 3) porque
ofereceu ao burguês recém-nascido uma experiência de êxtase físico-
sentimental que veio a substituir outras experiências culturais extáticas,
como o êxtase religioso, os êxtases das violências das guerras, os êxtases
dos rituais orgiásticos etc. O amor-paixão romântico é o êxtase próprio à
cultura da contenção burguesa, à qual vieram se somar certas injunções
cristãs, sobretudo a de origem puritana.(p.24)
Mas estes elementos tão importantes para a ideologia do amor romântico
parecem estar caindo vertiginosamente na escala de prioridades atuais. O que
presenciamos é a tomada de outros valores como o culto ao corpo, a busca por
prazeres imediatos, a liberação sexual e a fuga de tudo que possa trazer sofrimento.
No lugar do romantismo amoroso vai se configurando o modelo da liquidez nos
laços humanos. É a mudança da modernidade “sólida” para a modernidade “líquida”,
na concepção de Bauman (2001). Para o autor, configurações, padrões de
dependência e interação foram postos a derreter para depois serem moldados e
refeitos.
Percebendo os rumos que tomavam as novas formas de vinculação da
modernidade, este mesmo autor a relacionou à fluidez advinda dos líquidos e gases.
Tal relação se faz devido ao fato de que os líquidos, ao contrário dos sólidos,
sofrerem mudanças constantes no que se refere a sua forma quando expostos a
situações de tensão. Além disso, os fluidos não possuem tempo e nem espaço fixos.
O autor afirma:
Os fluidos se movem facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-
se”, “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”,
“pingam”; são “filtrados”, “destilados”; diferentemente dos sólidos, não
são facilmente contidos - contornam certos obstáculos, dissolvem outros
e invadem ou inundam seu caminho.(p.8).
Bauman (2004), assinala que fazemos parte de uma cultura consumista e traça
um paralelo entre o produto de consumo e as relações amorosas, afirmando que estas
últimas são produto pronto para uso imediato que devem proporcionar um prazer
passageiro com satisfações instantâneas, mas sem esforços prolongados. Esse autor
ainda afirma que a promessa de amar é a oferta (falsa, mas que se deseja verdadeira)
de construir a “experiência amorosa” como as outras mercadorias que fascinam e
seduzem, prometendo desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem
empenho.
Pactos realizados entre casais como aquele que diz “até que a morte nos
separe”, hoje estão sendo substituídos por “enquanto esta relação me der prazer”.
Logo, caso a relação não proporcione mais satisfação, é facilmente substituída por
outra e a durabilidade, pressuposto das relações românticas, é derrubada.
Tristeza, doença e pobreza mencionada nos pactos de casamento devem passar
longe das novas modalidades de vínculos amorosos, pois além de remeter ao
desamparo, põem em risco o prazer. Além disso, poucos parecem dispostos a investir
no vínculo de tal modo que se tenham que compartilhar dores, conciliar desejos e
respeitar regras mais contundentes.
Para Bauman (2001), laços e parcerias tendem a ser vistos e tratados como
coisas destinadas a serem consumidas e não produzidas. Vivemos a cultura do
efêmero diante da prática dos modismos, do apelo ao que é novo e da produção de
objetos não-duráveis. As formas de relacionamento acompanham a tendência de
“prazos de validade”. O famoso slogan utilizado na publicidade: “100% de satisfação
ou o seu dinheiro devolvido” também se encaixa às formas de relacionamento, pois
se a parceria não mais oferecer satisfação, logo é substituída.
A ordem atual é marcada pela diversidade de tipos de vínculo. Penso que esta
organização é mais um produto da criatividade humana frente às demandas que se
formam na atualidade, é a invenção de um novo modo de amar, diferente daquele
proposto pelo romantismo, que não significa necessariamente uma fragilidade nos
laços afetivos como sugere Bauman (2004).
Muller (1999) parece ver com naturalidade as mudanças na forma de amar.
Afirma: “Cada terra com seu uso; cada roca com seu fuso; cada época com as suas
modalidades de amor”. (p.42).
O que vivemos atualmente talvez seja a transição do modelo romântico das
relações amorosas para a possibilidade de estabelecimento de novos laços que
também podem ser considerados vínculos amorosos. Afinal, o modo de amar do
romantismo é só um entre outros possíveis, não uma “obrigação da natureza” nem
um sentimento inscrito a-historicamente na estrutura do psiquismo.
Voltando à idéia de liquidez, segundo a qual nada se fixa no espaço e no tempo,
tudo flui e se modifica facilmente, as relações devem acompanhar a esse padrão
movendo-se de forma leve e não se fixando em coisas sólidas. O que é sólido é tudo
o que impõe resistência, é duradouro, adia satisfação e oferece segurança. O que
antes era atraente justamente por sua confiabilidade, segurança e solidez já não é
mais.
Dessa forma, o casamento (pelo menos o tradicional), que para muitos significa
garantia de segurança, hoje parece não mais interessar, já que relações de
compromisso podem acabar com a possibilidade de encontrar outras formas de
satisfação. E, ainda mais: quem garante que um relacionamento com compromisso
será capaz de apaziguar a solidão e a incerteza de investir no parceiro? Tal garantia
não existe, logo numa sociedade em que a frustração não é tolerada talvez seja
melhor substituí-la por constantes episódios de satisfação para tentar tamponar a
falta.
Bauman (2004), descreve as “relações de bolso” como aquelas que são
guardadas para posteriormente se fazer uso delas, quando for preciso. São relações
caracterizadas pela curta duração e pela descartabilidade. Há também o fato de que
cada um dos parceiros se sente no controle durante a curta vida desta relação,
podendo mantê-la ou abandoná-la quando lhe for conveniente. O autor alerta que nas
relações de bolso não se deve se apaixonar. A ordem é: cabeça fria sem coração
quente e mantenha o bolso livre para logo colocar alguma coisa nele.
Os relacionamentos devem ser encarados como investimentos em ações e só se
investe no que é vantajoso e isso não implica que se invista somente em um tipo de
ação. Bauman (2004) questiona: e quem é fiel às ações? Se elas estão em baixa
investe-se em outras, pois se pode lucrar mais.
Com toda a mudança nos padrões dos vínculos amorosos e a aposta na
efemeridade, penso que a desvinculação pode se dar de maneira diferente das já
abordadas pela literatura em que o luto e o sofrimento estão sempre presentes.
Acredito que o processo de desvinculação hoje também pode ser feito sem acarretar
sensações dolorosas ao sujeito.
É enorme a diversidade de expressões afetivas na atualidade. Podem ser
encontradas sob a forma de relações de bolso, como citou Bauman (2004), mas
também vemos homens e mulheres que ainda esperam seus príncipes e princesas
sonham com um casamento de contos de fadas. É preciso olhar para as diferenças e
acolher todas como formas plurais de expressão dos vínculos amorosos.
2.0 DE COMO FAZER E DESFAZER O NÓS
2.1 A formação da conjugalidade
A conjugalidade pode ser considerada como uma vivência compartilhada pelos
parceiros que investem mutuamente na construção de um enlace afetivo. A
construção se dá a partir da reatualização da trajetória edípica de cada elemento que
forma o casal, bem como do compromisso inconsciente que sustenta toda a escolha
amorosa.
Teóricos como Eiguer e Ruffiot, que centram seus estudos na psicanálise de
grupos e família, abordam a conjugalidade segundo a concepção de um psiquismo
conjugal. Para eles, todo grupo humano é constituído de projeções subjetivas que
cada membro faz sobre o outro num movimento de investimento pulsional.
Complementando a idéia de inconsciente compartilhado e de unidade psíquica
de grupo, Kaës (1997) formula o conceito de “aparelho psíquico grupal”, constituído
por uma parte em que há um duplo apoio sobre os aparelhos psíquicos grupais e por
outra parte baseada na cultura e nas representações coletivas que promovem a
atividade fantasmática.
Em uma formação de grupo composta de dois membros como o casal, há uma
espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente
de quando um só indivíduo isolado sentia, pensava e agia. A conjugalidade
funcionaria, dessa maneira, privilegiando projetos e desejos compartilhados pelo
casal.
Para Freud (1921), há certas idéias e sentimentos que não surgem e não se
transformam em atos, exceto no caso de indivíduos que se encontram em parceria.
Para ele, dessa união, surge uma nova estrutura que apresenta características muito
diferentes daquelas possuídas por cada célula, isoladamente. É possível considerar
que na formação do casal há o intercâmbio do que é de um e do que é do outro
formando uma estrutura única.
Outra característica grupal defendida por Freud (1921), é que um indivíduo nas
relações com pais, irmãos, amigos ou com a pessoa amada é influenciado por apenas
uma pessoa ou por um número bastante reduzido de pessoas, cada uma das quais se
torna enormemente importante para ele. Estamos nos referindo aos líderes de grupo,
que exercem domínio sobre os outros elementos do grupo, a ponto de paralisá-los
criticamente e enchê-los de admiração e respeito. Freud (1921) comparou esse poder
de dominação do líder ao de um hipnotizador que deixa o sujeito hipnotizado em um
estado de fascinação, no qual sentimentos e pensamentos inclinam-se na direção
determinada pelo hipnotizador.
Esse estado pode ser também observado na maneira como o indivíduo se porta
diante de um grupo casal do qual faça parte, no qual segue princípios, ideais e
sentimentos que isoladamente não lhe pertenciam e que, vivendo no grupo casal,
fazem sentido e são seguidos por ele como projetos de vida.
Na constituição da conjugalidade, se pressupõe que estejam contidas duas
individualidades e, portanto, farão parte de sua dinâmica as histórias de vida e as
fantasias e desejos de cada um. Esses fatores serão elementos constituintes do que
chamamos de conjugalidade, isto é, algo comum e que pertença aos cônjuges.
A conjugalidade passa a funcionar como um terceiro elemento que possui
dinâmica própria, movimentando-se constantemente em favor ora de demandas
conjugais, ora de necessidades e desejos individuais. Tais movimentos podem ser
relacionados aos fatores de contágio existentes no grupo, no qual todo sentimento e
todo ato podem ser contagiosos em tal grau que o indivíduo prontamente sacrifica
seu interesse pessoal em nome do interesse coletivo. Para Freud (1921), trata-se de
uma aptidão bastante contrária à natureza humana e da qual o sujeito dificilmente é
capaz, exceto quando faz parte de uma parceria.
Segundo Freud (1921), idéias contraditórias como, por exemplo,
individualidade e conjugalidade podem existir no grupo - como no casal, duas
pessoas podem viver lado a lado e tolerar-se mutuamente, sem que nenhum conflito
surja.
Féres-Carneiro (1998) afirma que em todo o momento o casal se depara com a
dificuldade de lidar com duas forças que possuem direções opostas: a individualidade
e a conjugalidade. A negociação do que vai ser satisfeito não é consciente, ela
configura uma nova unidade mental e vincular. Assim como os pactos, essas
negociações originam-se de um espaço mental incompartilhável do ego de cada um e
leva à realização de concessões com a finalidade de satisfazer o desejo do outro e
manter o vínculo.
Sobre o conflito entre a necessidade de individuação e as demandas
conjugais a autora (1998), diz:
(...) por um lado, os ideais individualistas estimulam a autonomia dos
cônjuges, enfatizando que o casal deve sustentar o crescimento e o
desenvolvimento de cada um, por outro, surge a necessidade de
vivenciar a conjugalidade, a realidade comum do casal, os desejos e
projetos conjugais (p. 4).
Ao formarem uma parceria, os sujeitos travam uma batalha entre forças
paradoxais como os desejos de fusão (que têm relação com o narcisismo primário) e
de separatividade, isto é, a necessidade de diferenciação e de cada um emergir como
sujeito.
A maneira como o casal articula tais forças paradoxais determinará a
configuração do enquadre conjugal ou pacto. Segundo Magalhães (2003), essa
articulação consiste conjunção do narcisismo e dos modelos identificatórios edípicos
e sociais. Vale observar que o enquadre conjugal é uma produção única de cada
parceria.
A mesma autora afirma ainda que a conjugalidade é formada pelas
constituições individuais dos parceiros e pelo interjogo dinâmico inconsciente que
ocorre no par conjugal. Para ela, o encontro amoroso e a conjugalidade que evoluem
por meio da recordação, da repetição e da elaboração dos Édipos dos parceiros pode
exercer influências sob a constituição da subjetividade de cada elemento do casal,
num processo que se realizará ao longo da vida.
O individual e o conjugal se misturam na dinâmica do casal, formando o que
Ferro-Bucher (1996) chama de “nós conjugal”, onde o “eu” se origina a partir de um
“nós” primitivo e fusionado que reaparece na relação de forma transmutada.
Hoje, os ideais individualistas estão cada vez mais presentes nos
relacionamentos nos quais se almeja alcançar desenvolvimento, realização e
autonomia de cada elemento separadamente. Em contrapartida, na formação de um
casal se busca formar um compartilhamento de estruturas comuns, ou seja, ligações.
A tendência à fusão e a tendência à diferenciação estão constantemente
presentes na conjugalidade e podem ser causadoras de conflitos entre o casal. Para
Magalhães (2003), essas tendências conflitantes são promovidas pela organização
edípica dos parceiros. A articulação produz diferentes tipos de conjugalidades, mais
ou menos saudáveis, criativas e estimuladoras do desenvolvimento dos parceiros.
De acordo com Silva (2001), o relacionamento conjugal contemporâneo possui
uma dinâmica peculiar justamente por tentar conciliar estas tendências opostas dos
ideais individualistas e da constituição da conjugalidade. A convivência entre tais
forças paradoxais já é conhecida. Basta nos lembrarmos que na própria família há o
estímulo para que nos tornemos autônomos, ao mesmo tempo em que a dinâmica de
mesmo grupo nos puxa para que os laços de dependência não sejam totalmente
desfeitos.
Segundo Singly apud Silva (2001), a família em sua função de ajudar cada
indivíduo a se tornar independente mostra também suas contradições internas, já que
ao mesmo tempo os laços de dependência são reforçados e negados. Sabemos que
para haver a aliança conjugal deve ocorrer a ruptura com a família de origem: ou se
escolhe a família originária ou a aliança conjugal, sem opção de conciliação de
ambas, pois a continuação do vínculo filial pressupõe o fracasso do pacto conjugal.
Julien (2000) afirma que não há ruptura possível sem a transmissão parental.
Mas o que se transmite de fato? A lei do desejo, fundadora da conjugalidade, que
consiste em abandonar o pai e a mãe para construir uma aliança com um homem ou
uma mulher do exogrupo. Segundo essa lei determinante, só a família de origem
pode transmitir a lei do desejo e conferir o poder de efetuá-lo por meio de uma
aliança conjugal.
Para Julien (2000):
(...) a verdadeira filiação é ter recebido dos pais o poder efetivo de
abandoná-los para sempre, porque a conjugalidade deles era e
continua sendo primeira. Em outras palavras, pôr no mundo é saber
retirar-se, de modo que os descendentes sejam capazes, por sua vez, de
se retirarem (p.36).
O ato de retirar-se nada mais é que negar o filho como objeto de gozo dos pais.
Em virtude disso, o filho pode direcionar-se para um outro lugar, para a sua própria
geração. Eis a castração libertadora. Quando o filho já adulto encontra o parceiro
amoroso e sua alteridade para o gozo, vê-se que a lei do desejo transmitida pelos pais
possibilitará o avanço e a constituição da conjugalidade.
2.2 A identificação como elemento constitutivo da conjugalidade
Se Freud em 1914 construiu sua teoria sobre o narcisismo, afirmando que a
escolha amorosa está pautada no modelo dos objetos parentais e nas identificações
ocorridas no período edípico, vemos uma continuidade e o aumento da complexidade
do interjogo identificatório quando se trata da conjugalidade.
O processo identificatório é ativado a todo o momento na conjugalidade e
reatualizado tanto em vivências pré-edípicas quanto edípicas. Não se trata, porém,
somente de uma reprodução, pois a conjugalidade pode se apresentar como um
espaço para novas e criativas configurações subjetivas. Na dinâmica conjugal, há
uma trama de identificações e ideais que sustentam a relação entre os parceiros.
De acordo com Féres-Carneiro e Magalhães (1998), na conjugalidade, o ideal
de ego e o ego dos parceiros articulam-se na trama identificatória possibilitando
reestruturações subjetivas em cada um dos cônjuges. Dessa forma, a relação entre
ego e ideal de ego, encenada pelos parceiros, apresentará valor estruturante, devido
ao alto grau de investimento libidinal colocado em ação.
A passagem do narcisismo primário em que a criança direciona sua libido a si
mesma para o narcisismo secundário, no qual há o reconhecimento dos objetos e a
criação dos ideais, possibilita a instalação de uma dinâmica que será ativada
permanentemente na vida do sujeito: a integração egóica. Esta tem função de buscar
o preenchimento da lacuna que se forma entre o ego e seu ideal. A conjugalidade
pode se incluir como participante desta dinâmica caso os parceiros da união conjugal
busquem satisfação no processo sublimatório em que o ideal do ego é fonte e ilusão
de completude.
Para Freud (1923), existem três modalidades de identificação: a identificação
primária, (pré-edipiana); a que substitui a escolha de objeto abandonado e a
identificação caracterizada por um elemento comum e que aparecerá em um outro
ponto, sem investimento sexual direto. Tais modalidades de identificação podem se
manifestar de forma inter-relacionada na conjugalidade por meio do processo
identificatório.
Também faz parte desse processo a ambivalência que acompanhará as
identificações constituídas ao longo da vida e que se expressarão ora com
movimentos de aproximação, ora com gestos de hostilidade frente ao outro.
Ao discorrer sobre o fenômeno totêmico, Freud (1930) afirma que este se
estrutura mediante a identificação. Por meio desta, ocorre uma operação resolutiva
que culmina na renúncia a uma relação pulsional ambivalente com o objeto edipiano.
A entrada do pai substitui o objeto de ambivalência, tornando possível a identificação
dos sujeitos entre si. O autor aponta que o pai antes temido e honrado é assassinado
pelos que antes o admiravam: seus filhos. Os irmãos formam uma comunidade
totêmica com direitos iguais para todos e se mantêm unidos pelas proibições
totêmicas que se destinavam a preservar e a expiar a lembrança do assassinato. Mas,
como no antigo estado, o macho continuava a ser o chefe da família e, dessa forma, a
nova família continuava a ser apenas uma sombra da antiga, com a diferença que na
nova família havia um grande número de pais e cada um deles era limitado pelo
direito dos outros.
Um indivíduo que não aceitava esta limitação imposta pelos outros pais
libertou-se do grupo e assumiu o lugar do pai. Freud (1930) refere que quem
conseguiu este feito foi o primeiro poeta épico que inventou o mito heróico. O herói
era um homem sozinho que havia matado o pai - um monstro totêmico. Como o pai
fora o primeiro ideal do menino, também no herói que aspira o lugar do pai o poeta
criava o primeiro ideal do ego.
A conjugalidade, assim como o fenômeno totêmico, se estrutura por meio da
identificação. Nela, a corrente sensual e os impulsos desviados da finalidade sexual
estão sob os efeitos do recalcamento e da lei do pai.
Segundo Florence (1994), o processo identificatório evoca a multiplicidade,
sendo melhor denominá-lo de identificações devido ao conjunto de relações entre
personagens que o fenômeno mobiliza. Para o autor, as identificações estão sempre
ligadas ao romance edipiano, onde estão presentes desejos ambivalentes, bissexuais,
ativos e passivos.
Existem para Freud (1923) dois fatores que fazem parte da ambivalência e
estão incluídos na complexidade da identificação: o triângulo edipiano e a
bissexualidade constitucional a todo o indivíduo. Segundo ele, estes fatores terão
forte influência na escolha dos objetos de amor da vida adulta.
Assim, tomamos o caso de um menino que desenvolve uma catexia objetal
pela mãe, originalmente relacionada ao seio materno como protótipo do modelo
anaclítico e, em contrapartida, identifica-se com o pai. Por um certo período esses
dois relacionamentos coexistem. Segundo Freud (1923), com o avançar do tempo, os
desejos sexuais do menino em relação à mãe ficam mais intensos e o pai é percebido
como uma barreira para a plenitude deste desejo.
O complexo de Édipo vivido pela criança é marcado tanto pela identificação
com o pai como pela hostilidade, devido ao desejo do filho tomar seu lugar junto à
mãe. A atitude ambivalente de identificação inicial e posterior hostilidade à figura
paterna, bem como a relação objetal de conteúdo afetivo com a mãe, constituem o
complexo de Édipo simples no menino. No caso de uma menina, no desfecho do
complexo de Édipo há a intensificação de sua identificação com a mãe, fixando sua
identidade feminina ou a instalação da identificação pela primeira vez.
Para Lemaire (1988), na relação de casal não há uma apresentação totalmente
definida dos sujeitos. É comum que a identificação com o outro seja intensa e que os
sujeitos envolvidos na relação percam seus contornos precisos. Portanto, em muitos
casos, o casal se mistura em suas fronteiras e se mostra menos diferenciado. A
presença de uma “leve” fusionalidade faz parte dos relacionamentos amorosos,
principalmente na fase de apaixonamento.
De acordo com Freud (1930), na paixão, os limites de fronteira entre ego e
objeto ficam ameaçados de não mais existir. Quem se apaixona volta à fase do
narcisismo em que o sentimento oceânico traz a sensação aos amantes de que ambos
são um só. O autor afirma ainda que o sujeito deve ter a capacidade psíquica de
vivenciar a fusão e depois conseguir se diferenciar do outro.
2.3 Breves considerações sobre a separação conjugal
A separação de um casal implica na reorganização dos vínculos que compõem
a dinâmica da relação - os vínculos, o próprio compromisso compartilhado pelo
casal, o relacionamento com os filhos e os parentes de cada família nuclear, a casa e
os bens materiais adquiridos durante o relacionamento e os amigos em comum.
Porém, antes que cada cônjuge possa se reorganizar, pós a separação, é necessário
que o luto seja vivido. Afinal, o projeto de uma relação “para sempre”, estável e feliz
não foi cumprido, produzindo em cada um sentimentos de abandono, rejeição, raiva,
tristeza e dissolução.
O sofrimento é natural na separação. Aliás, na maioria das perdas ele está
presente e se faz necessário para que haja o reconhecimento da dor e sua superação,
embora haja relações em que a separação não se apresenta tão sofrida. No caso da
separação conjugal, o vínculo foi destruído, a história vivida em comum acabou, é
preciso reconhecer este fato para iniciar uma outra história.
O luto da separação pode fazer com que os cônjuges tenham a sensação de
despersonalização, ficando em dúvida de quem realmente é, do que realmente gosta e
o que de fato quer. Isso pode ser esperado se levarmos em conta que, com o parceiro,
o sujeito compartilha desejos e projetos formando o chamado “nós conjugal”. Uma
vez separado, tem de iniciar um trabalho psíquico para se reestruturar
individualmente e não mais como uma dupla.
Para um casal é freqüente a utilização do pronome “nós”, o que pode
demonstrar a continuidade entre os cônjuges. Na separação, o “nós” começa a ser
desfeito, podendo trazer um estado de descontinuidade ao sujeito que se vê diante da
transição de um passado amparado e de um futuro vazio e solitário.
Vilhena (1991) afirma que com a ruptura do “nós” é como se o parceiro levasse
consigo toda a possibilidade de uma vida amorosa. A autora refere que, em alguns
casos, a perda é vivida de forma tão mutiladora que para o sujeito não há
possibilidade de imaginar uma reconstrução.
Ao discorrer acerca da elaboração do luto de uma separação amorosa ressalta a
“capacidade de ficar só” dos sujeitos, apontando para diversas modalidades de
solidão, que podem tanto estar relacionadas à impossibilidade de permanecer consigo
mesmo quanto à incapacidade de tolerar a indiferença do outro, o que se mostra no
isolamento voluntário ou na compulsiva troca de parceiros. Em relação a isso, é
possível observar casais que se separam, se rearranjam em outra parceria, mas não
finalizam o vínculo com o cônjuge anterior. Desse modo, podemos crer que houve a
separação, mas que o laço não foi desfeito, configurando num acúmulo de vínculos.
A separação rompe a unidade formada pelo casal, demandando uma
reconstrução na subjetividade de cada cônjuge, muitas vezes vista como impossível.
A impossibilidade se dá devido ao investimento de vida feito no objeto casal que
gradualmente é enfraquecido, deixando o sujeito sem uma direção, sem objeto para
investir.
Daí pode se explicar, pelo menos em parte, o medo e a resistência de certos
casais ou seus componentes em se separar. Alguns deles ficam ligados, por um certo
tempo, em função de conflitos e disputas judiciais até que alguns finalmente
conseguem desfazer o laço que os conectava, já outros continuam vinculados mesmo
que separados e fazendo parte de outra união. E mesmo afastados, os sujeitos podem
continuar vinculados, investindo um no outro e na relação. Assim, pode existir
separação sem que exista concomitantemente a desvinculação.
Voltando aos sentimentos e sensações relacionados à separação, Farkas (2003)
destaca o sentimento de culpa, afirmando que os protagonistas da separação se
sentem culpados ou atribuem ao outro a responsabilidade pelo desencontro. Para ela,
isso pode ter a função de fazer com que o “culpado” elabore o sofrimento ou para
que aquele que responsabiliza o outro projete nele a dificuldade de enfrentar a dor.
A separação só ocorrerá se for desejo de pelo menos um cônjuge. Casos em que
ambos decidem se separar são menos freqüentes. Logo, culpar o outro ou se sentir
culpado é corriqueiro. O sujeito que abandona e o que é abandonado podem se
diferenciar pela forma como cada um lidará com sua posição e com a nova situação,
mas possuem um ponto em comum: a perda da parceria.
Em geral, a parte que fica com a casa e com a família e que é apontada como
que mais sofre a perda, pode elaborar melhor o luto da perda do companheiro ao não
deixar o lugar e as pessoas que compunham a dinâmica da união. Em contrapartida, a
permanência no ambiente no qual a história do casal se deu pode ser mais um
obstáculo para que ocorra a desvinculação. As lembranças estarão por todos os
lugares e o cenário continuará o mesmo, portanto, cabe ao sujeito construir uma
história diferente para aquele ambiente. Um luto que foi elaborado pode levar à
superação, que junto com a criatividade proporciona um recomeço na vida do sujeito.
É possível, entretanto, encontrar pessoas que se separam e se dizem isentas da
dor e alheias ao processo de luto descrito acima. Será que estas pessoas não padecem
ou negam o sofrimento? Será que não houve ligação e investimento entre os
elementos que formaram um casal e, em função disso, a saída é menos dolorosa? Ou
as pessoas procuram logo evitar a etapa do sofrimento para logo ali encontrar outra
pessoa interessante?
Digamos que tudo isto possa ser respondido de forma afirmativa, pois se existe
hoje uma diversidade de encontros amorosos, também há diversas formas de sair de
uma ligação afetiva. Em uma cultura que valoriza o prazer e quer afastar qualquer
contato com o sofrimento, uma das coisas que se pode perceber é a utilização de
recursos maníacos na tentativa de elaboração do luto. Algumas pessoas pensam até
de forma fantasiosa, criando situações que em dado momento servem para consolá-
las: “Depois de tudo isso vou fazer diferente, vou encontrar meu verdadeiro amor” ou
“Agora sim vou poder ser livre”.
Para Farkas (2003):
Os recursos que cada parte de uma dupla ou casal utiliza para elaborar o
luto muitas vezes são recursos maníacos, que não permitem de fato uma
recuperação verdadeira, a qual sempre pressupõe o reconhecimento da
perda. É necessário um tempo físico e mental, para essa vivência de
reconhecimento da ruptura que foi real e que, em geral, será
irrecuperável (p.367).
Ao discorrer sobre a separação amorosa, Caruso (1989) afirma que esse
processo do casal pode ser entendido como a eclosão da morte psíquica na vida dos
seres humanos - morte entre vivos. A dor produzida pela separação pode ser remetida
ao narcisismo. Dessa forma, a separação é uma ameaça para a vida, pois consiste em
uma catástrofe para o ego identificado com o objeto.
A condenação de morte recíproca acontece na consciência de ambos os
cônjuges, assim a sentença de morte do outro equivale a decretar a morte de si
próprio. E, mesmo vivo, o sujeito está morto no outro com quem compartilhou
desejos e projetos.
A forma que cada um encara esta morte recíproca, porém, depende do quanto
se investiu na relação e no parceiro, bem como, de como foram construídas as
experiências ancestrais do sujeito em relação à separação do objeto-suporte de amor
quando criança. O luto vivido na desvinculação poderá remeter ao desamparo
proveniente do abandono da condição de unidade simbiótica.
O complexo de Édipo e a castração, a perda do seio e da mãe como primeiro
objeto de amor e a separação das fezes na fase anal são algumas das experiências
ancestrais constituintes do psiquismo e da sexualidade que podem preparar o sujeito
para situações de perda e de autopreservação.
Segundo Freud (1926):
Quando a criança houver descoberto pela experiência que um objeto
externo perceptível pode pôr termo à situação perigosa que lembra o
nascimento, o conteúdo do perigo que ela teme é deslocado da situação
econômica para a condição que determinou essa situação, a saber, a
perda de objeto. É a ausência da mãe que agora constitui o perigo, e logo
que surge esse perigo a criança dá o sinal de ansiedade, antes que a
temida situação econômica se estabeleça. Essa mudança constitui o
primeiro grande passo à frente na providência adotada pela criança para
a sua autopreservação, reservando ao mesmo tempo uma transição do
novo aparecimento automático e involuntário da ansiedade para a
reprodução intencional da ansiedade como um sinal de perigo (p.161).
Sinais indicativos de que um vínculo está se rompendo podem funcionar como
alerta, um sinal de perigo frente à sensação de estar jogado no mundo ao sabor da
própria sorte. Em função disso, no entanto, pode ser utilizada a capacidade de
autopreservação, responsável por uma mudança positiva na vida do sujeito. Com a
separação pode haver uma alteração de projetos de vida que possibilitem uma maior
autonomia do sujeito, proporcionando descobertas de habilidades pessoais e a criação
de novos vínculos no grupo familiar e social.
3. O LAÇO E O DESENLACE
3.1 Entrevista com Socorro
3.1.1 O início da história do casal:
“Solidão a dois”
“Na verdade, eu já amava ele, mas também foi um pouco de fuga
o meu casamento... Exatamente das coisas que eu vivia em casa.
Era um inferno tão grande que eu pensava em ir embora daquela
casa nem que fosse casada”.
“Hoje eu penso que naquela época o casamento era a solução da
minha vida e ainda tinha o fato de que eu amava o Pedro e ele
era a figura do príncipe. Ele chegou com uma proposta muito
bacana de sermos felizes, dele cuidar de mim”.
“O sorriso dele era muito engraçado, ele parecia com um sorriso
de“me ajuda também” . Eu penso que ele tava tão perdido
quanto eu. Era assim, sabe: “Eu tô me identificando com você,
não sei o que fazer, mas estou na intimidade com você pra
aprender” tipo tô aberto, sabe? O sorriso dele me pegou tanto
que talvez isso me prendeu para não sair de casa”.
“Daí no Natal ficamos noivos, mas a mãe dele não gostou
muito... E em abril a gente casou. Ah, antes tenho que te falar que
era para a gente casar em fevereiro, mas a mãe dele teve um
“siricutico” e ela é quem fazia as roupas de muitas pessoas para
o casamento. Então, atrasou tudo e adiamos para abril”.
O início da construção vincular amorosa de Socorro e Pedro foi calcada na
solidão vivida no grupo familiar vivida por ela e no anseio de fuga desse lugar. É
possível pensar que tipo de investimento é feito quando alguém se vincula a outro
porque precisa mudar de lugar. Socorro queria sair de casa por não suportar a
dinâmica de subordinação que ela e seu pai viviam em relação à mãe e à ausência de
amparo na relação entre elas.
Pedro parece ser o instrumento de fuga de Socorro e, percebendo o que esta lhe
pede, ele lhe oferece cuidados e felicidade. Presumo que ele lhe promete coisas que
não pode dar, mas faz a oferta como uma forma de ter Socorro do seu lado, cria a
ilusão de ser o príncipe capaz de lhe fazer feliz.
E o que Pedro quer? Penso que possivelmente ele queira o mesmo que Socorro:
o fim da solidão. Os dois estavam perdidos e solicitando ajuda um do outro. Ambos
eram instrumento um do outro para a fuga da solidão e isso marca o vínculo do casal.
Percebo-os como duas peças que se conectam, que se encaixam em suas demandas,
numa projeção mútua de expectativas.
Noto que Socorro se refere à identificação que se estabeleceu entre ambos e
que os aproximou e ligou. O acordo estabelecido é que um preencha a solidão do
outro. E, na busca do preenchimento desta falta, Socorro se envolve amorosamente
com Pedro e parece entrar novamente num grupo familiar em que a figura feminina é
o centro do grupo em uma dinâmica muito parecida com a que já vivia em sua
família primária. Antes do casamento, Socorro já havia notado a desaprovação da
mãe de Pedro em relação à união. Mesmo assim, seguiu adiante.
3.1.2 O casamento :
“Casamento a três”
“Eu fui pro casamento esperando uma coisa meio fantástica,
mágica e que na verdade hoje sei que não existe”.
“Bem, de início, nós tínhamos gostos parecidos, sonhos
parecidos ou que se complementavam, ele tinha carinho comigo e
eu estava em primeiro plano para ele em tudo. E eu também
procurava agradá-lo fazendo tudo que ele gostava e eu tinha
tempo para isso porque estava sem trabalhar. Mas não ligava pra
isso porque cuidar dele e receber amor em troca me satisfazia
naquele momento”.
“Para mim era estranho aquele relacionamento com a mãe, mas
antes de casar eu não ligava. Até que já casada, com dias de
casada eu percebi que a mãe fazia dele o homem da casa. Eu
percebi isso porque em tudo do nosso casamento ela queria se
intrometer”.
“Ela sempre preparava para ele o que ele mais gostava e pedia
para ele ligar para ela todos os dias e ele fazia tudo o que ele
queria. Parecia que ela fazia parte do casamento”.
A idealização da relação acompanha Socorro durante o namoro. Ela molda o
casamento de acordo com suas fantasias e Pedro a estimula a criar um mundo mágico
e particular.
No início da união, a complementação do casal é evidente, Pedro e Socorro
parecem ser um só, com gostos e sonhos semelhantes. O enredo do casamento
perfeito era cumprido: ela cuidava de Pedro e em troca era cuidada. Ambos
executavam suas funções de instrumento antisolidão. Assim, a dinâmica de
funcionamento constituída pelo casal funciona e não existirá conflito enquanto
houver a bidirecionalidade dos elementos do casal, com os dois preocupados em
atender às demandas um do outro.
Puget e Berenstein (1993) afirmam que todo o vínculo é bidirecional e que os
dois integrantes da dupla têm de ser, alternativamente, fonte de ação, desejo e objeto
desejado para o parceiro.
Por ser bidirecional, o vínculo de casal pressupõe a perda dos outros vínculos
com a função de criar uma estrutura inédita. Para isso, os dois devem ter
disponibilidade e capacidade para o investimento mútuo. Pedro, porém, parece não
ter se afastado da relação materna para criar um laço diferenciado com Socorro. E
ela, por sua vez, se vincula a Pedro com a finalidade de mudar de lugar. Portanto,
penso que em vez da criação de um novo vínculo, tenha havido talvez uma
sobreposição de vínculos, um acúmulo, pois ambos estão sustentados em dimensões
que não são aquelas de um investimento recíproco e inédito. De acordo com o
discurso de Socorro, a premissa do encontro não é outra senão a saída da solidão.
Assim, Socorro e Pedro se vincularam, na medida em que um é investido como
instrumentos para suprir a demanda um do outro.
A dinâmica complementar do casal os satisfazia, até que a mãe de Pedro fez
com que sua presença e suas imposições fossem mais constantes. Ela já marcava sua
presença desde o início do relacionamento, quando expressou sua insatisfação com a
união, mas talvez para Socorro tenha sido mais marcante tê-la visto ocupando o lugar
que ela pensava ser só seu.
Socorro começa a perceber que ela e Pedro já não são mais um só. As
diferenças começam a aparecer, os desejos não são mais direcionados a ela, há um
terceiro que já existia anteriormente. Pedro ainda se mantém “colado” à mãe e
permite que ela se faça presente entre os dois.
3.1.3 Os descontentamentos:
“Desilusão”
“A primeira coisa que me desagradou no relacionamento com
ele era que ele parecia o maridinho dela, e isso já me deixava
incomodada. Isto ficou guardado em mim e retornou em um dia,
já quando estávamos em crise, em que ele me contou que quando
era solteiro fazia sexo virtual. Daí eu lembrei que o computador
fica na sala da casa dele, e que a mãe tem tipo um sofá cama que
ela dorme na sala, o que acontece muitas vezes. Então associei
que ela devia ver ele se masturbando e que ele devia saber que
estava sendo visto. Isso me causou nojo deles”.
“Depois, a mãe dele também ia à nossa casa para ditar o que a
gente tinha que ter ou não em casa. Teve uma vez que ela foi em
casa para visitar e quando eu saí de perto dela, ela foi para a
cozinha e começou a fazer o jantar. Aí foi a primeira vez que eu
tive “culhão” para enfrentá-la e disse gritando: “-Dá pra eu
usar as minhas panelas na minha casa?”. Ah, eu tava muito de
saco cheio com ela”.
“Eu não topava fazer as fantasias sujas dele de sadomasoquismo
que eu acho que deve ser mais homossexual, e daí parece que
estragou nosso casamento. Esse foi o ponto que desandou a
relação”.
“Ah, e no fim ele já não parava em casa, estava diferente, não ia
em casa para almoçar como ia antes. O sexo era esporádico e à
noite nós ficávamos vendo tv. Quer dizer, ele ficava vendo e eu
tentando chamar a atenção dele para mim, pra me ver ali. Mesmo
assustada com a mudança dele eu ainda queria salvar o
casamento e achava que era fase”.
Aqui, Socorro expressa o que mais a incomodou na relação com Pedro. Os
aspectos negativos estão ressaltados em detrimento dos positivos. As diferenças estão
mais acentuadas do que as semelhanças, apontadas no começo do relacionamento.
Ela faz em seu relato um ordenamento de lembranças negativas que parecem ser
cronologicamente organizadas, diferente do que aconteceu no início da história
amorosa dos dois.
Socorro ainda faz uma tentativa de salvar o casamento, mas seu plano não
obtém êxito, Pedro parece dar sinais de não estar interessado em manter o vínculo.
Com as diferenças e defeitos descobertos, a realidade vem à tona e ela percebe que o
marido não é o príncipe que fantasiou. Noto que o casal, diante dos conflitos, não
conseguiu amadurecer e lidar com as imperfeições um do outro. Assim, os pontos de
discordância que desagradavam Socorro e que ela mantinha em segredo tomaram
grandes proporções e se converteram em descontentamentos e mágoas.
O funcionamento da vida sexual, pelo menos no que se refere a Pedro, aponta
para a existência de um terceiro e para intercâmbios sádicos que causam mal-estar
em Socorro. A exemplo disso, o episódio em que ele representa a cena com sua mãe
presente na sala.
Penso que, nesse ponto ou a relação amadurece com a discussão e elaboração
dos conflitos entre os parceiros ou fracassa diante de um abismo criado entre o que
era idealização e a realidade do cotidiano conjugal, o que observo ter acontecido com
Socorro e Pedro.
Não se pode esquecer também que tipo de vínculo foi criado pelo casal: aquele
que tinha como perspectiva preencher o vazio de cada parceiro, evitando a solidão.
Os laços parecem frágeis, dando a impressão de que qualquer pressão ou obstáculo
os desmancharia.
3.1.4 A decisão de separação:
“Ver para crer”.
“...dois dias depois eu liguei de novo pro trabalho dele pra gente
ir almoçar fora e disse: Que tal a gente ir almoçar fora pra sair
desse tédio?Ele disse que tava atolado de trabalho... E então
pensei: eu já sei onde eu vou. E fui no japa... Na fila eu encontrei
ele. Ele olhou pra minha cara e ficou verde, azul, branco,
amarelo... Logo depois, ele virou pro amigo dele e disse baixo:
Leva ela, leva ela, dá carona pra ela. Só que eu escutei e disse:
Meu, relaxa, fica tranqüilo que no mínimo você tem que ser
educado. Se você trouxe a moça, você tem que levar de novo...”
“Em seguida eu pedi a conta e voltei na mesa e eles estavam de
casalzinho e eu disse que já estava indo embora. E ele não veio
atrás de mim, ficou a tarde inteira sem me procurar e eu fui pra
um bar beber. E bebi muito. Chorei que nem uma condenada e
me senti abandonada, um trapo e traída”.
“Quando cheguei em casa, ele quis inverter o jogo tomando
satisfações como se eu fosse a errada e daí foi a decisão final de
me separar, ou melhor, foi no bar que eu decidi me separar
dele”.
“Na discussão em casa eu já não deixei ele falar e falei tudo o
que ficou entalado da nossa relação e do quanto eu estava infeliz.
Eu vomitei todas aquelas palavras e disse que ele era sujo e que
tinha me traído. Eu sentia que era uma trouxa e que só precisava
ver pra crer, São Tomé, né?”
O episódio em que Socorro afirmou ter sido traída foi decisivo para a
separação. Já havia outra mulher, ou melhor, uma terceira na vida do marido, o que
parece ter sido insuportável para Socorro.Ela também já havia percebido a possível
desvinculação de Pedro e o que lhe restava era expressar a sua frustração e a decisão
de sair da relação. Do meu ponto de vista, Socorro entendeu os sinais de que a
separação já havia ocorrido.
Em relação a isso, Silva (2001) refere que alguns cônjuges utilizam além do
confronto direto, alguns métodos indiretos para forçar os parceiros a redefinirem o
relacionamento em crise, como a violação de regras de relacionamento (como o fez
Pedro). Dessa forma, quebrou-se alguma regra (explícita ou não) sobre a conduta
apropriada em relação ao parceiro ou ao relacionamento. A regra infringida com
mais freqüência, segundo o autor, é a que envolve sexo com uma outra pessoa.
No casamento de Socorro e Pedro a solidão continua presente, agora vivida a
dois. Na suposta traição, Pedro tentou preencher esse espaço, enquanto a entrevistada
fazia tentativas para que se restituísse uma união que só existia em fantasia e evitava
constatar o fato de que o marido estava indiferente a ela. A traição já era sentida ou
sabida por Socorro, mas ela talvez evitasse encará-la, já que isso pressupunha
deparar com a solidão novamente.
3.1.5 A separação:
“Começar de novo”
“Pô... foi difícil pra caramba... porque eu só tinha a casa da
minha mãe pra ir. Além de sofrer a perda dele eu tinha que ouvir
ela me pressionando pra trabalhar. Eu depois consegui um
emprego e minha mãe me enxotou da casa dela dizendo que não
queria filha separada em casa e com a intenção que eu voltasse
para o Pedro”.
“Nos primeiros dias dá a sensação de vazio, de que você não
existe e o mundo não tem cor, não tem graça. Depois, vem tudo o
que aconteceu e não sai da tua cabeça que você é um lixo, que
você é culpada pela separação e pelo outro não gostar de você”.
“Nesta época eu amadureci muito e subi dois degraus de uma vez
só. Doeu muito e tinha dias que eu queria morrer literalmente
porque eu tava tão junto dele que não me reconhecia sozinha,
faltava um pedaço de mim. E daí vinha aquela coisa positiva
minha e o trabalho ajudou a voltar a ser eu mesma. Voltei a fazer
o que eu gostava, a descobrir coisas de mim mesma que eu nem
sabia e voltei a confiar no meu potencial como profissional”.
“Ah, hoje só o meu advogado me fala dele porque no início eu
queria algumas coisinhas que eram dos dois e daí ele veio com
umas baixarias e querendo me difamar. Então, eu decidi que
nada vale a pena e desisti de lutar por besteiras e até pra não ter
contato com ele e encerrar esta história”.
Socorro relata a dor que sentiu com a separação, com o fim de um ideal. O
sofrimento referido por ela é esperado numa separação, está presente na maioria das
perdas e se faz necessário para que haja o reconhecimento da falta. É essa percepção
que permite a saída do luto. A dor surge em função de um vínculo amoroso que foi
destruído, a história vivida em comum acabou e é preciso experienciar o vazio da
perda.
Segundo Farkas (2003):
O luto é a oportunidade que cada um tem de fazer o reconhecimento,
aliás, é, talvez, a única possibilidade de não ser destruído(a) junto com a
separação. É esta a diferença entre o luto e a melancolia. Na melancolia
a pessoa tem o seu mundo interno destruído e sua auto-estima
seriamente comprometida. O luto permite uma saída, não-maníaca, sem
negação, ou seja, positiva, de elaborar a perda e de adequar-se a novas
situações, de forjar um outro repertório (p.369).
O luto da separação trouxe a Socorro a sensação de despersonalização, e
deixou-a insegura em relação a seus projetos e desejos. Aqui observo uma espécie de
perda parcial da identidade, em decorrência da desconstrução da conjugalidade.
Com Pedro, ela compartilhou desejos e projetos, formando o “nós conjugal”.
Ao se desvincular, Socorro tem de se reestruturar individualmente e não mais como
parte de uma dupla, o que se traduz em um exercício árduo.
No início da separação diz que não conseguia se reconhecer sozinha, como se
lhe faltasse um pedaço, o que corresponde à ruptura dos “nós”. A perda parece ser
vivida de forma tão mutiladora que, pelo menos no início Socorro não imagina uma
nova construção vincular amorosa, não consegue se interessar por outra pessoa.
Noto, porém, que a separação desencadeou por uma mudança positiva em sua
vida, apesar de no início parecer exatamente o contrário. Após o sofrimento inicial,
Socorro consegue, paulatinamente, voltar a investir em si mesma. O trabalho teve um
papel importante como possibilitador de recuperação ou construção de autonomia,
auto-estima e produtividade. Com o fim do casamento, surgiram a redefinição de
projetos de vida e a surpresa de novas descobertas sobre si mesma.
A entrada em cena de um advogado que iniciou os procedimentos legais da
separação de Socorro e Pedro marcou o início de um disputa pelos bens do casal, o
que os faz ficar vinculados por meio do processo judicial. O antagonismo
exacerbava-se à medida que cada um tentava manipular as decisões do juiz. Pedro
lançou mão de artifícios para atingir Socorro emocionalmente, desqualificando-a
publicamente, o que resultou na renúncia por parte dela dos bens aos quais tinha
direito.
Entendo este fato como uma disputa para ver quem vai ficar sozinho,
desamparado, de mãos vazias. Pedro utilizou os mesmos instrumentos que a mãe de
Socorro utilizava com ela: a desqualificação e a falta de apoio, que remetem ao
desamparo.
Ela parece ter reeditado sua história infantil na relação com Pedro. Ela se
queixava de não ter apoio por parte de sua mãe e de ser vista como uma concorrente
ao amor do pai. Ao se casar com Pedro, entra novamente em uma relação triangular,
composta desta vez pelo marido e pela mãe dele. Busca no vínculo de casal
apaziguar a solidão que tem sua origem na relação primária, mas escolhe um par que
não rompeu o vínculo parental e, com isso, a relação do casal ficou fadada ao
fracasso.
A renúncia dos bens do casal por parte de Socorro é também marco da renúncia
à história vivida por eles, o que parece ser determinante para a desvinculação.
3.2 Entrevista com Vítor
3.2.1 O início da história do casal:
“Deixa a vida me levar”
“Pois bem, meu amigo pediu para eu conversar com ela pra ver
se ele pegava a irmã dela. E assim foi, eu a conheci e depois
nós saímos ainda sem compromisso nenhum. E foi rolando,
rolando e eu acabei namorando, e namoramos um bom tempo”.
“O início foi assim: eu conheci ela bem jovem, eu era bem
novinho, eu tinha menos de vinte anos, uns 19 acho e ela tinha
uns 17, 16...então casamos jovens, eu com 22 e ela com 18. E o
casamento aconteceu pela gravidez, ela engravidou e por isso
nós casamos. Antigamente era uma coisa de caráter você
assumir a menina que engravidou de você, daí meu pai também
deu uma pressionada e então casamos”.
“Na verdade eu fui na igreja naquele dia, não casei, eu fui na
igreja e depois voltei pra casa”.
“O homem tinha que honrar sua palavra e eu disse que
assumiria ela e o bebê. Para mim mãe era sagrado”.
“Nós nos gostávamos, mas não pensávamos concretamente em
casamento. Falávamos neste assunto ainda como uma coisa
distante”.
Desde o início da história com Vitória, sua ex-esposa, Vítor passa a impressão
de ter sido sempre levado a fazer as coisas, sem se responsabilizar diretamente por
situações que lhe diziam respeito. Ele conheceu sua ex-esposa porque um amigo lhe
pediu, casou porque seu pai o pressionou, pela convenção social e por causa da
gravidez. Assim, ele se exime de qualquer intenção e responsabilidade por seus atos,
principalmente pela gravidez, o que fica claro quando diz: “Ela engravidou”, como
se apenas Vitória tivesse participado desse processo.
Vítor deixa claro que não havia intenção de um investimento em um vínculo de
casal, pelo menos naquele momento. Mas a cerimônia do casamento aconteceu e ele,
mais uma vez demonstrando que não estava disposto a constituir uma união conjugal,
relata que não casou, apenas foi à igreja naquele dia, como se a situação lhe fosse
alheia.
Isso me faz refletir como o vínculo vai se constituindo nesse casal em que, pelo
menos um dos cônjuges (Vítor), faz uma tentativa apenas formal de responder à
família e ao social por uma gravidez.
Outro ponto interessante é que Vítor transforma a sua namorada até então, na
figura de uma mãe. Logo, sugiro que ele vai morar com a mulher que está grávida e
não com a mulher com quem namorou.
3.2.2 O casamento:
“No início somos três”
“Nós tínhamos tudo de diferente. Por exemplo, eu gostava muito
de sair pra dançar e ela já não gostava, preferia ficar em casa,
era mais calma. Hum... sexualmente também era bem difícil, era
incompatível e eu fui levando. Acho que o casamento durou muito
por um pouco de comodismo. É lógico que a gente gostava um do
outro, tinha amor, mas não aquele amor e paixão de novela. A
gente tinha muitos momentos de companheirismo entre nós
também, e isso fazia eu ficar com ela. No começo eu queria que
ela fosse a minha companheira, a minha mulher, alguém pra
cuidar de mim e eu dela, me colocar no colo e ficar junto comigo
para caminhar na vida”.
“Na verdade a gente nem sabia como era ter um relacionamento
sem filhos no casamento, porque a gente já casou ‘grávido’ e foi
um filho atrás do outro. Na verdade, a gente praticamente não
teve relacionamento a sós.
Na verdade, era um relacionamento de filho e mãe, e ela
também tinha pouca preparação, e acho que ela era minha mãe
também porque ela é bem dominadora, mas assim fomos no final
aos trancos e barrancos, mas fomos”.
“Começou a melhorar quando as crianças tinham por volta de
dez anos de idade, mas aí ela engravidou novamente. Aí não foi
um descuido da natureza, mas sim um azar. Ela usava DIU, mas
tinha um mioma que cresceu e empurrou o DIU e ela engravidou.
Foi um dilema porque a gente ia começar a viver e a decisão foi
não perder o filho e ter mais um filho”.
“O relacionamento era muito difícil, eu tinha muito trabalho, o
relacionamento é que prende a gente para conseguir as coisas
pros filhos. Pra gente foi uma vida ‘inaproveitada’, digamos
assim. A gente tinha muita afinidade, mas não era aquele amor
dos romances das revistas, mas tinha uma ligação entre nós.
Tinha todo um gostar e isso foi indo, foi indo, foi indo”.
No casamento de Vítor e Vitória as diferenças são acentuadas desde o início, ao
contrário do que geralmente acontece no começo de relações amorosas em que um
cônjuge se identifica com o outro e se cria uma ilusão de complementação. Isso
ocorre quando um parceiro (ou um ego) investe emocionalmente em outro ego e
busca compartilhar desejos e vivências, o que não noto em relação ao casal em
questão. Percebo sim, que a cada fala fica mais clara a função que Vítor atribui a
Vitória: a de mãe de todos no grupo familiar. Assim, seu desejo de ser amparado e
cuidado é privilegiado.
Vítor queria colo de mãe, queria ser cuidado e não foi possível estabelecer a
relação homem-mulher. Quando havia a possibilidade de que esse funcionamento
fosse alterado, um outro filho foi providenciado para garantir a dinâmica materna. E,
como de costume, Vítor justifica a gravidez atribuindo responsabilidade ao azar e a
um mioma de Vitória.
É preciso pensar que o que liga o casal é um compromisso formal que depois se
transforma em uma demanda de Vítor de ser cuidado e de Vitória ser a cuidadora.
Esse tipo de relação é nomeado, de acordo com Freud (1914c), de anaclítica ou de
ligação. Tal união terá sentido para o casal enquanto ambos estiverem dispostos a
cumprir o acordo inconsciente constituído por eles.
3.2.3 Os descontentamentos:
“O embate”.
“Ela começou a ficar super competitiva, ou até já era e eu nem
percebi antes. Bem, o fato é que aí o relacionamento ficou
complicado. Se no começo eu queria que ela fosse a minha
companheira, a minha mulher, alguém pra cuidar de mim e eu
dela, e ficar junto comigo para caminhar na vida, logo eu
descobri uma competidora quando ela foi trabalhar. Ela ficou
distante de mim”.
“Ela queria a liberdade que eu tinha no trabalho, queria mostrar
que sabia fazer o meu trabalho melhor do que eu, que podia
liderar pessoas como eu”.
“Ela queria ser também a líder e não ficar de coadjuvante. Daí
ela começou a estudar, fazer cursos, trabalhar e realmente ficou
mais descolada. Então a competição correu solta”.
No momento em que Vítor e Vitória revelam a rivalidade, as características
negativas, os desentendimentos, os conflitos e as diferenças se tornam mais
marcantes e adquirem uma força que praticamente apaga os aspectos positivos da
relação e dos parceiros. Os vínculos fragilizam-se, um parece não corresponder mais
ao ideal do outro, isto é, um não cuida e o outro não é mais cuidado. Nesse momento
as identificações (como a liderança, a inteligência e o companheirismo que
constituem essa conjugalidade) já não são compartilhadas.
Vitória começa a trabalhar e vai se retirando da função constituída na história
do casal: a de mãe, que confirmava a função de Vítor: a de filho. Ela rompe a dupla
mãe-filho a relação parece ter invertido seu movimento, de investimento para o
desinvestimento. O casal se retroalimentava nas suas respectivas funções, até que a
esposa/mãe de Vítor vislumbra outra possibilidade: a de produzir em outra função, a
de mulher e profissional, o que se torna insuportável para Vítor.
3.2.4 A decisão de separação:
“Partindo...”.
“Eu que tomei a iniciativa”.
“Tudo começou quando eu tive que trabalhar mais para ganhar
mais, e ela também foi trabalhar. E...teve a separação”.
“Ela já queria só disputar a atenção dos filhos comigo, não
cuidava mais de mim e as conversas se resumiam às contas a
pagar”.
“Eu saí de casa, achava que não dava mais e ela concordou. Ela
concordou numa boa. Como eu te falei, eu descobri depois que
ela já estava separada. Ela só estava comigo pelo dinheiro, pela
parte financeira. Ela se preparou, estudou, fez curso”.
Vítor tomou a iniciativa da separação, mas reconhece que Vitória já estava
separada. Penso que para ela, a dinâmica que inicialmente vinculava o casal há
algum tempo já não fazia sentido, já não devia mais ser compartilhada. Vitória,
segundo o relato de Vítor, já vinha há tempos se preparando para a mudança, num
processo gradual de separação. Ela estudou, começou a trabalhar e seus cuidados
eram direcionados aos filhos e não mais ao marido, ou seja, ela deu sinais de que
seus investimentos iam em direção a um projeto individual.
Esse movimento de Vitória mostra que a separação não caminha no mesmo
momento para cada um dos sujeitos do casal. Para Vaughan (1991), ambos podem
passar pela mesma transição, mas começam e terminam em momentos diferentes.
Dessa forma, vê-se que Vitória iniciou o movimento de separação e deu sinais disso,
mas Vítor foi quem expressou verbalmente e fez com que se iniciasse formalmente a
separação e a sua provável desvinculação.
3.2.5 A separação:
“De volta ao ninho vazio”.
“Eu ofereci uma série de coisas para ela na separação como
divisão de bens e mais um dinheiro. Mas ela queria um dinheiro
só pra ela. Ela imaginava um valor estratosférico. Hoje eu vejo
que o que eu ofereci para ela já era estratosférico. Daí ela
colocou um advogado e eu disse que não iria conversar com o
advogado. Eu disse que iria colocar o meu advogado para
conversar com o dela”.
“Daí as coisas ficaram muito ruins pra ela porque os números
baixaram muito drasticamente e ela ficou sem dinheiro. Então
começou a existir raiva. E aí achei melhor cortar as relações. Foi
uma decisão minha. Foi melhor cortar o vínculo de vez”.
“Uma coisa é pensar em se separar e outra é se separar mesmo.
É muito difícil separação. São muitos anos na mesma coisa, e eu
não consegui sair logo. O que me prendia no final era a família,
os filhos, a rotina. Quando você sai do casamento você fica muito
mal porque você perde toda a rotina”.
“A separação é muito estranha. Você se sente sozinho no mundo.
Sem a família você se sente sozinho. Mas aí você vai se virando
novamente, se adaptando e aí vai conseguindo. Agora com esta
nova pessoa que eu estou eu comecei a dividir de novo, a criar
novos amigos e vai indo”.
“Com os meus filhos eu tenho hoje um relacionamento mais
integrado, mais emotivo, muito legal mesmo. Mudou de
quantidade para qualidade”.
Na desvinculação, o mundo compartilhado deixa de existir. As subjetividades
antes entrelaçadas pelo “nós conjugal”, começam a seguir cursos independentes. Não
há mais uma dupla. E é isso que pode ser percebido em relação a Vítor: um processo
que passa pelo luto do fim de uma parceria, pelo medo de se ver sozinho, pelo
estranhamento de ter que mudar a rotina de vida, mas que também se volta para a
reconstrução da individualidade, para a mudança das metas de vida, para a melhoria
da qualidade das relações com os filhos e para o recomeço de um investimento em
um novo vínculo de casal.
Ao se separar, Vítor viveu o luto da falência de uma história, mas utilizou a
experiência a seu favor, reconhecendo a perda e se reestruturando individualmente
pouco a pouco.
Freud (1914d) já afirmava que neste processo em que o luto se faz presente, o
objeto amado não existe mais e a libido é retirada das ligações com aquele objeto.
Este movimento libidinal segue pouco a pouco, com dispêndio de tempo e de energia
catexial, prolongando psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto
perdido. Quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre.
Eventualmente, o que pode se pensar é que aquele que toma a iniciativa de sair
da relação não sofre ou sofre menos que o outro. Na verdade, quem abandona pode
deixar para trás a casa, os filhos e toda a rotina vivida. Foi o que aconteceu com
Vítor. Sendo considerado o sujeito que abandona o lar e Vitória a que tem o lar
abandonado, os dois podem se diferenciar pela forma como lidam com as novas
situações e posições, mas possuem como ponto em comum a perda do parceiro no
“jogo da vida”, a perda do complemento, seja ele de que natureza for.
Com a separação, Vitória parece ter perdido também grande parte do poder
econômico que possuía, o que fez com que ela levasse a disputa dos bens à Justiça,
tornando pública a competição por poder. Para Vítor, este foi o marco da separação,
embora a dinâmica amorosa do casal por muito tempo já viesse caminhando entre
disputas e a separação não pudesse se dar de modo diferente. Penso que o casamento
foi marcado pela competição entre mãe e filho pelo poder e, por que não dizer, pela
disputa do falo. Portanto, na separação eles também não saberiam dividir o poder e o
que foi produzido pelo casal.
Vítor consegue dar menos do que Vitória esperava obter na divisão de bens. Ele
relata encerrar assim a disputa e parece que, dessa maneira, se encerra também o
vínculo.
Em relação aos filhos, notei que no geral estes foram capazes de enfrentar a
separação dos pais. Muitas vezes, o casal tende a fragilizar a capacidade dos filhos
para lidar com a separação, projetando neles sentimentos que podem não
corresponder ao que realmente sentem. No vínculo de Vítor com seus filhos a
separação conjugal teve efeitos construtivos em relação a melhoria da qualidade da
relação e a união entre eles.
Por fim, a separação foi uma via para mudanças positivas na vida de Vítor
possibilitando o fortalecimento do vínculo de pai e filhos e a capacidade de abertura
para que um novo vínculo amoroso fosse constituído e houvesse um novo
investimento em outro objeto de amor.
3.3 Entrevista com Luísa
3.3.1 O início da história do casal:
“No início uma lua-de-mel”
“Nós éramos amigos de profissão, os dois artistas plásticos e nós
nos dávamos muito bem, muito bem (...) e nós tínhamos uma
ligação muito grande pelo trabalho. Eu naquela época era muito
‘workholic’, e tava procurando o caminho da arte pra voltar pra
dentro”.
“A gente tinha uma ligação muito forte. Inclusive, tem aquele
negócio, sabe aquilo de observar meia hora a mais? Você via que
não ia dar certo. Mas, eu era muito empolgada... Era aquela
coisa: ai que bom os dois artistas, ai a gente vai ter o mesmo
ateliê (...) Eu tinha uma amiga que dizia: “Helloooo, isso não
existe”. E eu dizia que comigo ia ser diferente. Enfim, a gente
começou a se dar bem”.
“O que me encantava nele era a coisa de ele ser artista, os
flashes da inteligência dele, de ele ser articulado (...) e era tudo
muito lindo. Eu via com o Henrique a possibilidade de ser um
igual porque ele era muito solto: “Ai que bacana um igual à mim,
que tudo, que belo! (...) Esta sou eu que consigo ver qualidades
no outro que ninguém enxerga”.
“Voltando para o começo, a gente foi fazer uma viagem de lua-
de-mel, muito bacana para a Bahia que a gente foi de carro...
não, a gente foi primeiro pra Nova Iorque e depois fizemos uma
viagem de final de ano de carro que foi muito bacana (...) Mas,
enfim nós ficamos vinte dias viajando e foi maravilhoso, uma lua-
de-mel. Até então, era cada um na sua casa”.
“No começo sim, foi um relacionamento, foi mágico, foi uma
paixão (...) e ele dizia que eu era a melhor coisa da vida dele e
que ele aprendeu a agradecer à vida comigo sem vincular isso à
religião. (...) O início foi muito lindo, aquele homem que trazia
café na cama e fazia ovo do jeito que eu gostava”.
O encontro de Luísa e Henrique se dá por meio da profissão que têm em
comum. Naquela época, a vida de Luísa estava voltada para o trabalho, ela se
declarava “workholic”, e este contexto proporcionou a ligação.
O trabalho com arte servia de instrumento para uma busca pessoal interna de
Luísa. O que será que ela encontrou? Nesse momento ela percebe Henrique de forma
diferente, como mais que um amigo de profissão. Ela o viu como um igual: ambos
eram artistas, eram soltos, belos, articulados, inteligentes, eram tudo - e poderiam ter
o mesmo ateliê. Parecia um encontro com um espelho que refletia perfeição, o que
remete a gemelaridade.
Os primeiros alicerces da construção vincular de Luísa e Henrique estão
fundados em conteúdos narcísicos. O objeto de amor (Henrique) representava o
próprio sujeito (Luísa). Ele não só era valorizado por atributos que ela também
julgava ter, como também atendia como que por “adivinhação” aos seus desejos. Isto
remete ao que Freud (1914c), afirmou se tratar da identificação projetiva da época
mãe-bebê, em que o fascínio e a idealização gerados pelo objeto são projeções de um
ego ideal narcisista para, em seguida, se identificar com ele. Logo, este tipo de
escolha amorosa de objeto se dá a partir da relação do sujeito consigo mesmo, pois o
objeto representa a própria pessoa.
Luísa projetou em Henrique qualidades que talvez não lhe pertencessem, mas
que eram desejos dela. E apesar de sentir e ouvir dos outros que a parceria não ia dar
certo, ela preferia acreditar que seria diferente. E talvez tenha sido, enquanto a lua-
de-mel e a paixão duraram, enquanto eles viajavam e tinham, cada um, o seu próprio
espaço.
3.3.2 O casamento:
“Ligados pelos conflitos”
“Engraçado, né, como a gente se mistura...”
“Antes dele(...), o que me assustava era aquele cotidiano de todos
os dias acordar e estar junto, e ser uma meleca e não ter tempo
de distanciar e sentir saudades e perceber o potencial do outro
porque tudo vai se misturando no cotidiano. Eu não podia nem
ouvir falar em casamento.
“E a gente começou a ensaiar de ir morar junto. A idéia era de
eu ir morar na casa dele que tinha mais infra, era uma casa
enorme e tal. Aí eu comecei a levar as minhas coisas aos poucos
até pra experimentar. Daí, começamos a ficar juntos nos fins de
semana e depois durante a semana. Quando eu vi, já tinha levado
meus livros. Eu estava indo aos poucos”.
“Era uma história muito louca do computador com essa ‘neura’
de ciúmes. Ele queria saber com quem eu me correspondia,
queria saber dos meus ex-namorados, e eu pensava que a vida
era daqui pra frente, lá de trás já foi (...). Nossa, o ciúme dele era
gritante. A gente estava conversando, e daí entrava alguém e ele
já pensava que eu tava olhando pra alguém...era uma coisa
alucinante”.
“O relacionamento virou uma meleca, cada dia ele foi me
sufocando mais e nós nos separamos umas três vezes. A cada vez
ele arrumava uma namorada e ficava com aquele monte de
amigos separados. E eu dizia pra ele que a gente se gostava
mesmo com as diferenças e que a gente tinha também um monte
de coisas em comum”.
“A gente se ligava na briga (...) E eu detesto brigar, e vinha
aquele barraco e depois ficava tudo bem.
Era uma coisa tão louca que me dava vergonha de dizer que ele
berra, grita, xinga... Isto existe sim, e era apavorante que eu nas
brigas levantava do jeito que eu tava pegava o carro e ia embora,
do jeito que ele saía do eixo (...) Eu tinha a ilusão que ele podia
melhorar, e não sabia bem como sair da história”.
“O que eu fazia era dar o que eu conquistei para o outro, pra ele.
Então, eu passei a ser a agente dele, levei ele nos meus clientes,
ou seja, no meu espaço, no meu jeito, e tudo virou ele. Eu
coloquei muita luz nele e apaguei a minha, e achava tudo lindo.
Eu peguei as minhas “jóias” e dei pra ele”.
Luísa e Henrique decidem viverem juntos. Com isso, a idealização de um
homem perfeito vai sendo desfeita juntamente com o clima de lua-de-mel,
característico do apaixonamento. Luísa teve que lidar com um cotidiano da vida de
casal diferente do qual talvez tenha imaginado: o de ter um marido ciumento e
controlador.
Henrique parecia ter uma fixação em saber das histórias amorosas do passado
de Luísa, e em função disso, tinha crises de ciúmes e a agredia verbalmente.
Luísa, por sua vez, mesmo sofrendo agressões e sendo interpelada sobre o seu
passado relatou não conseguir sair dessa dinâmica conjugal.
Dessa forma, podemos confirmar o que ela declara: eles estavam vinculados
pelas brigas, pelos conflitos e, essencialmente, pela posse que Henrique tinha sobre
Luísa.
De acordo com Puget e Berenstein (1993), um vínculo (em especial em uma
relação conjugal), possui uma estrutura de três termos: dois egos e um conector que
fará a ligação entre os sujeitos. Ela, Luísa, talvez mascare esse vínculo possuidor-
possuído com a ilusão de que ele poderia mudar e que a relação ia melhorar e voltar a
ser como no início. Este tipo de vínculo de posse origina-se de intensos sentimentos
de perseguição e revela uma desconfiança contínua.
Assim, mesmo ciente de que o que os mantinha unidos era o que lhe trazia
vergonha e sofrimento, Luísa afirmou que não conseguia se desvincular de Henrique.
Tinha com ele uma identificação fusional, mesmo no campo profissional doava seus
espaços e clientes. A fronteira entre ego e objeto perdia seu contorno e a vida dela se
tornava ele.
3.3.3 Os descontentamentos:
“Faltando algo em mim”
“Ele era acadêmico e eu não tive mais paciência de estudar.
Mas, nessa coisa acadêmica dele eu me senti despotencializada
perto dele, ele me fazia sentir isso”.
“Eu me sentia culpada, porque ele me fazia acusações e eu
estava nesse oco, e ele dizia que sempre faltava algo em mim
para estar com ele, e eu não consegui olhar pro lado e dizer que
aquilo não era amor como eu pensei”.
“O que ficava na cabeça dele era buscar saber como eram os
meus relacionamentos anteriores. Era uma doença, ele era louco
porque de madrugada ele me acordava perguntando dos meus ex.
E a coisa foi crescendo tanto que eu propus uma terapia de casal,
mas ele queria ir na minha terapeuta. Ele queria era saber das
minhas coisas e isso me desagradava.
“Quando eu via ele com mulher, ao invés de eu olhar aquilo de
frente e pensar que não era com uma pessoa como aquela que eu
queria me relacionar, pelo contrário, eu me sentia muito mal. A
baixa estima era ‘elevadézima’, eu não me sentia eu com as
minhas potências. Mais uma coisa que não me agradava”.
“A Danuza Leão escreveu na coluna dela sobre o que faz um
amor não dar certo: a ‘mulherzisse’. A pessoa liga pra outra
umas dez vezes por dia, e depois não tem assunto, mistura
trabalho, tira satisfação. E isso ele fez muito”.
“Aí eu pensei que ele não dava conta de dividir, de compartilhar,
e claro que uma pessoa com problemas seríssimos”.
“Um dia, o meu pai estava bem mal e tocou o celular de
madrugada. Só que os nossos celulares eram iguais, e eu atendi e
era uma ‘gatinha’ e ele ficou embaçado. E esse foi um dos pontos
de que eu não gostei”.
Os descontentamentos de Luísa com a relação começaram a ficar mais
evidentes quando ele apontou que faltava algo. O espelho devolvia um reflexo que
mostra a falta, ao contrário da completude que ela projetava no início da história do
casal, deixando Luísa no vazio, no “oco”.
Com suas acusações e ciúmes, Henrique mostrava mais interesse nos
relacionamentos passados de Luísa. Isto parece inviabilizar ou, no mínimo, dificultar
o compartilhamento de projetos conjuntos. Parece existir uma demanda
predominante de um sobre o outro a todo o momento, não havendo espaço para o
conjugal se manifestar.
Mais um ponto de insatisfação de Luísa foram as mulheres que apareceram
entre eles. Luísa começava a ter a sensação de que a relação ia se esvaindo, uma vez
que Henrique colocava outras mulheres entre eles. Assim, crescia nela a impressão
de que era incapaz de ser complementar ao marido.
Diante disso, penso que os ciúmes de Henrique só incomodaram Luísa na
medida em que geravam um sentimento de vazio e angústia em razão da
impossibilidade de ser feliz na relação. Estes sentimentos serviram como um sinal de
que o objeto não estava mais ao lado, proporcionando prazer.
3.3.4 A decisão de separação:
“O encanto quebrou”.
“Eu, nas minhas relações eu vou até o fim, até o fundo
explorando todas as possibilidades, e quando eu vejo que ok, eu
fui até o fundo, aí eu posso desistir”.
“Um belo dia eu comecei a me olhar e eu tinha envelhecido,
comecei a engordar como uma porca, insatisfeita, infeliz, e isso
não é relacionamento. Amor não é igual a sofrimento, pode ser
tudo, um monte de coisas, mas não só sofrimento”.
“Eu lembro que um dia eu tava fazendo uma tela enorme de seis
metros e estava toda feliz, e ele veio de novo me perguntar dos
meus relacionamentos, e eu fui embora. Foi tão significativo o
que aconteceu depois... Eu lembro que peguei o carro e fui dar
ré, e o vidro de trás não tem proteção, não tem aquele borrachão
no vidro e eu bati numa quina, e eu olhei no retrovisor aquele
vidro estilhaçado e pensei:“Nossa, acabou mesmo”. Foi uma
coisa assim...gente, o quê que é isso? E acabou de vez”.
“Eu vi um filme muito rápido na minha cabeça em que eu tinha
cem anos de idade, estava desdentada e dizia: “Ai, agora a gente
tá junto” e depois, “Ai agora a gente tá separado”. E aí deu, deu.
Isto me deu uma força tão grande para me decidir”.
“Nas nossas discussões ele usava umas palavras que não se usa
no cotidiano e eu dizia:“pára com isso”.
Então, o que me encantou foi o que me desencantou e foi o que
me fez acorda.”
Luísa foi até o fundo, até onde não podia suportar mais. Em função da
insatisfação ela decidiu separar-se, já que o vínculo passou a só lhe proporcionar
sofrimento. O marco da decisão de separação foi quando Luísa se viu como um vidro
estilhaçado onde não era mais possível juntar os cacos, era um caminho sem volta.
Os tributos que antes atraíram sua admiração e encantamento, no fim da relação não
tiveram força devido à desilusão e assim não investiu mais no vínculo conjugal.
Ao pensar no futuro com Henrique, deu-se conta de que estava sozinha. A
partir daí, encontrou respostas para sua insatisfação e decidiu se separar.
3.3.5 A separação:
“Arrumando a casa”.
“Eu no final fiquei um trapo, agora fiz umas comparações que
não podia dar certo mesmo nós dois...”.
“Nesse período do fim eu ficava me perguntando se eu não sabia
amar, se não tinha capacidade de amar, então eu tava me
perguntando o quê que era o amor”.
“Eu comecei a me perguntar quem eu sou, o quê que eu vou fazer
da minha vida e o que restou de tudo isso? Eu pensei: “Eu vou
conseguir grudar isso?” Não vou conseguir. E foi muito
interessante porque a seguradora não conseguiu vir no dia e
foram três dias pra arrumar um vidro! Três dias eu fiquei com o
carro enfiado no estacionamento, e se nisso tá difícil imagina
como eu estava”.
“Eu levei muito tempo pra ir me organizando, arrumando isso,
vendo o que era meu, o que era dele porque muita coisa eu
peguei dele. Teve um momento que eu fiquei com muito dó de
mim por que como um ser humano deixa o outro fazer isso com a
sua vida? Eu via que eu era extremamente potente pra trabalhar
e fazer as coisas, no trabalho eu nunca me senti inferior a nada.
E que diferença era essa que você deixa o outro fazer na tua
vida?”.
“No negócio do vidro estilhaçado eu percebi em cada vidrinho o
que foi, sabe? As dores terríveis que eu tive que enfrentar. Foi
difícil olhar para uma coisa que era muito bonita, muito mágica,
encantada e depois ver que a gente se ligava pela briga. Foi
louco perceber isso que o negativo nos unia. No início na terapia,
ao perceber isso, eu tinha vergonha de pensar que isso uniu a
gente como casal”.
“Pois é, não vou ser piegas porque o fim doeu pra burro e, no
início, eu me fechei pro mundo, e agora eu já comecei a olhar, e
eu acho que eu tinha que ter esse luto mesmo. É solitário esse
caminho”.
“Hoje eu quero sim um companheiro. E essa experiência foi boa.
Hoje os vidros foram embora, foi aspirado o carro, foi colocado
um novo vidro, e atualmente eu penso que eu quero um novo
relacionamento. No fim da relação você pensa que se não deu
certo com aquele não vai dar com ninguém, o que não é verdade,
não é assim. O que me ajudou muito foi o trabalho”.
“Hoje eu não quero encontrar um príncipe encantado, eu quero
um desencantado porque tem uma hora que desencanta”.
“Foi legal passar por essa crise porque eu passei a olhar tudo
diferente vi que o outro tem que estar junto também, o outro tem
que participar também”.
Luísa passou por um longo período de reorganização em relação ao que ela
realmente era sem a presença de Henrique. Foi um período difícil em que ela
questionou sua experiência amorosa e pôde separar o que era seu e o que era dele.
Chegou a pensar se não seria dela a culpa do relacionamento não ter dado certo,
achando que não sabia amar, idéia que depois foi gradativamente abandonada ao
longo do processo de luto.
Para Farkas (2003), a culpa tanto pode ter a função de fazer com que o
“culpado” elabore o sofrimento quanto de fazer com que aquele que põe a
responsabilidade do fracasso da relação no outro projete a dificuldade de enfrentar a
dor. Um luto pode levar à condição de superação, que junto com a criatividade
proporciona um recomeço na vida do sujeito.
Luísa desvinculou aos poucos: foi retirando sua energia libidinal da relação que
vivia com Henrique e, com o passar do tempo, desistiu do objeto, declarando-o morto
e oferecendo ao ego o incentivo de continuar a viver.
Penso que com esta experiência de relacionamento pode ter havido a
elaboração, percebida no momento em que a entrevistada declarou não quer mais um
príncipe encantado e sim alguém “desencantado” - uma pessoa real, um ser humano
sem a aura imaginária da perfeição, que queira investir em um vínculo amoroso e em
uma parceria.
3.4 Síntese das entrevistas:
Retomarei cada caso com a perspectiva de mostrar o que é comum, isto é, o que
apareceu de mais marcante na maioria dos relatos, mas também apontarei para o que
não é comum, mas que se destaca na história dos sujeitos.
Todos os entrevistados fazem referências a vínculos alicerçados na idealização.
Na história de Socorro, havia a projeção em relação ao marido de um ideal de um
príncipe salvador; Vítor buscava um ideal materno em Vitória e Luísa projetava suas
expectativas em um igual que reunia as características que ela tinha ou gostaria de
ter. É esperado que a idealização ocorra, principalmente no início da construção
vincular, mas o que notamos nas histórias amorosas colhidas é que o parceiro, o
objeto de amor, é idealizado durante toda a relação até que a fantasia criada sobre ele
seja desfeita diante da realidade. Com o cotidiano vivido pelo casal, o objeto de amor
revela que também possui desejos e que tais demandas podem ser diferentes das
esperadas pelo outro. Isso pode ser exemplificado claramente no caso de Vitor: sua
mulher revela seu desejo trabalhar e, com isso, negligencia a realização do desejo
dele, na busca a sua própria realização. Ela passa a deixar a função de mãe para
desempenhar a de mulher e profissional, o que frustra Vítor.
A idealização dos parceiros, juntamente com outros dados das histórias
relatadas, revela que duas das escolhas eram de tipo anaclítico: a de Socorro e a
Vítor. Nos dois casos os entrevistados buscavam ser cuidados e acolhidos. A terceira
escolha amorosa, de Luisa, era de tipo narcísico: o objeto de amor representava o que
ela gostaria de ser.
Outro ponto a ser destacado, comum a dois dos sujeitos, foi o relato de que a
vida sexual era insatisfatória, ou que pelo menos se tornou assim em algum momento
em que o casal ainda estava vinculado. Isso ocorreu, por exemplo, com Socorro no
momento que Pedro revelou fantasias sexuais, recebidas por Socorro como
sadomasoquistas e definitivamente rejeitadas por ela. Depois disso, a vida sexual do
casal se tornou esporádica. Penso que a relação sexual insatisfatória aliada a outros
fatores significativos que desagradem um sujeito do casal já caracterizam sinais de
que algo não vai bem na estrutura vincular.
Os sujeitos de sexo feminino revelaram em sua história amorosa uma dinâmica
de casal que aponta para uma submissão frente ao desejo do outro. Tanto Socorro
quanto Luísa exerceram por algum tempo a função de servir ao marido em troca de
atenção e carinho (no caso da primeira), e de ser controlada, possuída e de ceder sua
vida profissional ao marido (no caso de Luísa).
Ainda referente às mulheres entrevistadas, podemos lembrar que ambas fizeram
tentativas de separação de seus maridos que, inicialmente, não foram levadas adiante,
mas que certamente significaram um passo importante no processo de desvinculação
que ainda estava por vir.
Um outro fator importante e comum a todos foi a disputa judicial, o que ainda
manteve os casais vinculados mesmo que sob brigas e conflitos até que gradualmente
um mediador (advogado) entrou na disputa e possibilitou que os sujeitos não
tivessem mais em contato direto uns com os outros e, finalmente, se separassem.
Por fim, no processo de luto vivido pelos personagens foram comuns os
sentimentos de despersonalização, culpa, desvalorização das potencialidades,
sensação de vazio e desamparo. Mas, depois de passada a “tormenta”, esse processo
doloroso tornou possível o recomeço na vida de todos os sujeitos.
Já em relação ao que não foi comum, pode ser ressaltado o fato de que somente
um dos sujeitos teve filhos da união que se desfez. Essa particularidade mostrou que
a desvinculação amorosa foi possível sem que fosse atingido negativamente o
vínculo com os filhos, pelo contrário, a quebra da união proporcionou uma melhoria
na qualidade do relacionamento e redefinição da função paterna de Vítor.
4. INDICADORES DO PROCESSO DE DESVINCULAÇÃO
4.1 Preponderância do eu sobre o nós:
Aqui há o privilégio da satisfação de desejos individuais em detrimento de uma
partilha dos projetos, da realidade comum do casal e de seus desejos, o que
aconteceria na vivência da conjugalidade.
Tomo o caso de Luísa e Henrique. O tipo de vínculo amoroso formado por eles
pode ser entendido primeiramente sob a forma de gemelaridade erotizada em que
ambos são um só, e depois de possuído-possuidor, no qual a autonomia só é aceita
sob as condições deste último, função exercida pelo marido. Os momentos de ciúmes
de Henrique demonstram a angústia diante da ameaça de um terceiro, portanto, para
evitá-la ele detém a posse de Luísa na tentativa de garantir sua exclusividade, o que
se pode constatar neste trecho da entrevista:
“O que ficava na cabeça dele era buscar saber como eram os
meus relacionamentos anteriores. Era uma doença, ele era louco
porque de madrugada ele me acordava perguntando dos meus
ex... Aí eu pensei que ele não dava conta de dividir, de
compartilhar, e claro que era uma pessoa com problemas
seríssimos... Eu vivia com um homem extremamente intelectual,
que a biblioteca dele pegava todo este espaço, mas que não sabia
viver a dois”.
Inicialmente, Luísa pactua com seu parceiro na sua função de objeto na
dinâmica vincular, mas logo o que lhe cabe nesta relação é percebido como
insuficiente e diferente do que ela idealizou e projetou em seu par.
Já na história amorosa de Vítor e Vitória, na qual o vínculo estava pautado na
função cuidadora-cuidado, nota-se que tal acordo, que antes funcionava, vai sendo
quebrado quando ela se retira dessa função e inicia um movimento para a satisfação
de um desejo: trabalhar.
“Se no começo eu queria que ela fosse a minha companheira, a
minha mulher, alguém pra cuidar de mim e eu dela, e ficar
junto comigo para caminhar na vida, logo eu descobri uma
competidora quando ela foi trabalhar. Ela ficou distante de
mim”.
Diante disso, penso que o que distanciou o casal, dentre diversas questões, foi,
sobretudo, a falha que se abriu em razão de Vitor saber que não era mais o detentor
da vida de Vitória, que ela tinha seus próprios projetos e que esses eram diferentes
dos seus. A condição tornou-se insuportável para ele, primeiro porque a mulher não
mais responde exclusivamente às suas demandas o que impôs um deslocamento de
papéis e algumas mudanças na dinâmica relacional.
Sem a bidirecionalidade, na qual os egos ocupam tanto lugar de desejante
quanto e realizador do desejo do outro, pode haver uma clivagem na estrutura
vincular, assim como aconteceu nas histórias dos entrevistados: a condição de objeto
não foi sustentada por muito tempo. Assim, as rachaduras apareceram no que antes
era a unidade “eu e tu”.
4.2 Desidealização:
A idealização é algo que existe somente no plano do imaginário. Portanto,
quando ocorre o processo de desinvestimento, a desidealização, o sujeito depara com
a dor e a frustração daquilo que, embora “vivido” nunca teve “realidade”.
Este indicador tem um funcionamento inverso ao que ocorre no início do
vínculo de casal, quando o objeto de amor correspondia a tudo o que o sujeito
gostaria de ser e ter. Na desidealização, a diferença do que foi projetado em relação
ao parceiro e o que ele (a) realmente é pode ser tão grande que o sujeito mal
reconhece aquela pessoa que esteve ao seu lado.
As projeções feitas por Socorro e Luísa em relação a seus maridos não
correspondiam ao que eles mostraram ser e não há como um vínculo amoroso se
sustentar sem que haja uma zona de encontros de ideais e desejos.
Os vínculos construídos por dois dos sujeitos entrevistados, Socorro e Luísa,
foram baseados em ilusões de um mundo de encantamento e, como tal, se
esvaneceram. Ambas percebem que se tratava de projeções. Vemos isso na seguinte
fala de Luísa:
“(...) a gente tomava café juntinhos, lia na cama, ele fazia ovo
frito do jeito que eu gostava, os dois adoram cinema e não tinha
tempo ruim pra um monte de coisas, a gente andava de bicicleta
junto e tinha muitas coisas maravilhosas. E no fim da relação eu
pensava:“Cadê aquela pessoa?”. Porque quando ele se
transformava era uma coisa horrível”.
Com Socorro a idealização se deu também em relação ao casamento, logo a
desilusão foi dupla, ao contrário de Luísa que já esperava ser difícil a convivência a
dois. Soma-se a isso o fato de que Socorro via no casamento a fuga de um conflito
vivido em sua família de origem. Logo, o casamento era a solução de todos os seus
problemas.
“Eu fui pro casamento esperando uma coisa meio fantástica,
mágica, e que na verdade hoje sei que não existe”.
Na desidealização notamos um fenômeno comum a todas as histórias
pesquisadas: a evidência dos aspectos negativos do parceiro em detrimento dos
positivos. Enfrentar o desprazer do desencontro é importante para a desvinculação do
sujeito na relação conjugal, já que pode ser um indicador de que o parceiro está
elaborando e significando as impossibilidades do casamento. O que podemos
perceber, por exemplo, na história de Luísa:
“O relacionamento virou uma meleca, cada dia ele foi me
sufocando mais, e nós nos separamos umas três vezes. E cada
vez ele arrumava uma namorada e ficava com aquele monte de
amigos separados.... Nossa, o ciúme dele era gritante. A gente
estava conversando, e daí entrava alguém e ele já pensava que
eu tava olhando pra alguém...era uma coisa alucinante”.
Nesse momento, Luísa percebeu que os momentos felizes vividos pelo casal
ficaram no passado e que as qualidades admiráveis de Henrique se minimizaram para
virem à tona características que ela não conhecia, como a posse, o ciúme e a traição.
No caso de Luísa, o primeiro passo foi perceber que Henrique não correspondia
mais ao que ela idealizava no início da relação e, mesmo diante da desilusão, ela não
se desvinculou amorosamente de forma imediata. Luísa afirma que os conflitos
ligaram o casal por um certo período, até que conviver com o que a desagradava,
dentre outros fatores, se tornou insuportável, culminando no fim do vínculo.
4.3 Sentimentos de aniquilamento:
Freqüentemente, nas situações de desvinculação, os sentimentos de
aniquilamento funcionam como indicadores que dizem respeito a sensações de
destruição de si mesmo, abatimento, prostração, anulação e inexistência. Trechos do
depoimento de Socorro demonstram isso:
“Nos primeiros dias dá a sensação de vazio, de que você não
existe e o mundo não tem cor, não tem graça. Depois, vem tudo o
que aconteceu e não sai da tua cabeça que você é um lixo, que
você é culpada pela separação e pelo outro não gostar de você...
Doeu muito e tinha dias que eu queria morrer literalmente
porque eu tava tão junto dele que não me reconhecia sozinha,
faltava um pedaço de mim”.
Os sentimentos vividos por Socorro apontam para um processo gradual de
dissolução do vínculo amoroso. A solidão, o vazio, a culpa, o não-reconhecimento de
si mesma sem o cônjuge e a desqualificação caracterizam momentos nos quais
Socorro teve de lidar com a perda do vínculo amoroso. Tal como na morte, na
desvinculação há um trabalho psíquico de retirar-se da relação com o objeto, o que
requer um esforço enorme e se dá de acordo com as possibilidades do sujeito.
Para muitos, como no caso de Socorro, a desvinculação pode se tornar um
processo doloroso, marcado por aspectos regressivos, pois traz de volta uma
experiência bem arcaica e temida do ser humano: o desamparo provocado pela
separação do objeto-suporte de amor. Para crianças, a ameaça de abandono à própria
sorte pode remeter ao terror do aniquilamento. Os sentimentos ou estados psíquicos
próprios do processo de luto amoroso fizeram com que Socorro perdesse
provisoriamente a unidade, mas, também lhe conferiu a possibilidade de reconstrução
de seu espaço psíquico.
Para Vítor não foi fácil dar adeus a tudo o que foi vivido em comum com
Vitória. As mudanças foram marcantes nessa fase como a perda da rotina, do
acolhimento e do lugar na família, bem como do contato com os filhos.
“Uma coisa é pensar em se separar e outra é se separar mesmo.
É muito difícil separação. São muitos anos na mesma coisa, e eu
não consegui sair logo. O que me prendia no final era a família,
os filhos, a rotina. Quando você sai do casamento você fica muito
mal porque você perde toda a rotina”.
Vítor viu-se sozinho, tentando reconstruir e reconhecer a si mesmo,
independente da dupla. Além disso, afastou-se do convívio com os filhos. Ele
vivenciou o luto do fracasso de uma história e de um ideal que por muito tempo
funcionou de forma complementar.
“A separação é muito estranha. Você se sente sozinho no mundo.
Sem a família você se sente sozinho. Mas, aí você vai se virando
novamente, se adaptando e aí vai conseguindo”.
Reconhecendo e vivendo as perdas, Vítor foi tentando elaborar uma identidade
própria e, aos poucos, consolidando o desenlace.
4.4 Final do processo de desvinculação
“(...) Olhei no retrovisor aquele vidro estilhaçado e pensei:
“Nossa, acabou mesmo”. Foi uma coisa assim...gente, o quê que
é isso? E acabou de vez. Hoje os vidros foram embora, foi
aspirado o carro, foi colocado um novo vidro, e atualmente eu
penso que eu quero um novo relacionamento”.
O vidro se estilhaçou e tudo fez sentido para Luísa. Aquele vínculo havia
terminado. Não tinha mais como ser colado, reconstruído. Para ela, cada pedacinho
de vidro era uma dor vivida, numa união que as brigas funcionavam como a cola que
a unia ao marido.
Luísa compara seu processo de luto a uma produção artística solitária, da qual
não sabe o rumo e o resultado que vai ser obtido no fim da criação, como se a obra
fosse direcionando o caminho a ser percorrido. Penso que, no luto, o reconhecimento
e a disponibilidade para viver a perda podem levar à elaboração da dor, o que parece
ter ocorrido com Luísa. Assim, concluído o processo de desvinculação amorosa, ela
passou a enxergar a importância da participação do outro no investimento vincular e
reconheceu que não existe “príncipe encantado”.
Em relação ao vínculo de Vítor e sua esposa, podemos dizer que o que antes era
compartilhado pelo casal passou a ser alvo de disputa: os bens adquiridos ao longo
da relação e os filhos do casal. Não havia mais o objetivo de construção de um
enlace, pelo contrário, as motivações particulares provocavam a disputa. A
individualidade tomou lugar da conjugalidade. Isto ocorreu de tal forma, que nas
disputas judiciais só prevaleceu a motivação de causar danos mútuos e tentar provar
quem ia sair mais lesado da separação. Até então, eles ainda estavam vinculados
nesse “cabo de guerra”.
O advogado entra na história de disputas do casal como um mediador,
facilitando a progressiva retirada de Vítor do contato direto com Vitória na briga.
Isso facilitou a desconstrução vincular de Vítor, já que deixando a disputa à cargo do
advogado, o vínculo foi caminhando para a extinção, como se constata neste trecho
da entrevista:
“Eu não falo mais com ela e ela não sabe da minha vida... Foi
melhor cortar o vínculo de vez”.
4.5 Recomeço:
Após reconhecer e vivenciar o luto do fim de uma história e de um ideal
amoroso, aos poucos Socorro foi voltando a se reconhecer sem o cônjuge e a traçar
planos para sua vida, voltando-se para interesses individuais e não mais conjugal. O
que ocorreu foi a reconstrução se sua identidade e de seu mundo particular.
“Voltei a fazer o que eu gostava, a descobrir coisas de mim
mesma que eu nem sabia e voltei a confiar no meu potencial
como profissional”.
Socorro passou a trabalhar e a investir em sua profissão, ganhando com isso
confiança em si e em seu potencial profissional. Ela sentiu que houve um
amadurecimento, e que começou a perceber coisas em si mesma que não eram
notadas logo após o fim da relação.
Socorro declarou que algumas vezes ainda pensava em Pedro, mas que
depois de um tempo tudo passou, o que demonstra que alguns investimentos
amorosos demandam tempo para se desfazerem. Hoje, ela voltou a investir em novos
relacionamentos que poderão futuramente se constituir em vínculos amorosos, mas
afirma que vai procurar conhecer melhor o futuro parceiro.
Passado o luto em função do fim do vínculo de casal, Vítor obteve ganhos em
sua vida como o salto qualitativo da relação com seus filhos. Ele se posicionou de
forma diferente, se tornando mais presente e participativo na vida deles. Segundo
suas palavras, a relação mudou de “quantidade para qualidade”.
“Depois busquei me reaproximar dos meus filhos como nunca
tinha feito. Hoje somos mais próximos do que quando vivíamos
numa só casa”.
Com a desvinculação, Vítor não mais ocupava o lugar em uma parceria
amorosa, mas em compensação, pôde rearranjar e fortalecer seu vínculo de pai com
seus filhos. Além disso, tendo vivido e reconhecido os sentimentos que podem
envolver um desenlace, obteve a disposição para investir em um novo laço amoroso.
5. A DESVINCULAÇÃO DE CASAL
Assim como no trabalho realizado pelo luto, na desvinculação o objeto vai
sendo abandonado paulatinamente e não mais investido de libido. Na prática vemos
que fatores importantes sucedem-se na vida do casal como se fossem corroendo a
satisfação de estar junto e a disposição para continuar apostando na união. Basta que
um elemento do casal não se sinta mais motivado a dar continuidade ao vínculo para
que a desvinculação seja iniciada. Portanto, não é necessário que ambos os elementos
estejam na mesma fase de desvinculação para que ela ocorra, visto que a
simultaneidade isso raramente ocorre.
A desvinculação pode não se dar de forma linear, é um processo que ora avança
para o abandono do objeto, ora amplia o tempo de existência da relação, até que
finalmente o sujeito está disposto a finalizar definitivamente o vínculo. Isso aparece
nos relatos de Luísa que, mesmo diante de descontentamentos, vivia um processo ora
rompendo, ora reatando com Henrique. Penso que ela não havia ainda se
desvinculado dele, não estava ainda suficientemente preparada para se afastar.
O sujeito que se desvinculou, após passar pelo luto, necessariamente abandona
o objeto declarando sua morte, podendo construir assim um outro laço amoroso. Ele
tem, então, energia pulsional para direcionar e investir em um outro objeto amoroso.
Se partirmos do pressuposto que para construir uma ligação amorosa é
necessário que exista investimento, logo para que haja a desvinculação se faz
necessário o desinvestimento. Esse processo se dá de forma gradativa.
A desvinculação vai se dando tal como um vaso que vai apresentando
rachaduras onde inicialmente são imperceptíveis, mas, ao longo do tempo, o vento, a
chuva e a pressão da planta que cresce dentro dele o faz rachar, até que o recipiente
não suporte mais e se rompa, ficando impossível juntar suas partes e recolher os
cacos.
Talvez os sujeitos envolvidos na relação não possam ou não queiram perceber
os sinais de que o vínculo não está mais sendo investido, de que o movimento agora
é de retirada libidinal e, não percebendo que se iniciou o desinvestimento, apontam
para algo que marcou e que foi fator preponderante para o desenlace quando, na
verdade, ele já vem caminhando há algum tempo, assim como aconteceu com Vítor:
ele relatou que o que culminou na quebra da união foi o fato de Vitória disputar os
bens que lhe cabiam na partilha. Notamos, porém, que a desvinculação já aparecia,
expressa em uma série de descontentamentos.
Seguindo esse raciocínio, podemos crer que não há um fato isolado que
desencadeie a desvinculação, ela se dá por um conjunto de fatores que caminham ao
longo da história do casal. Assim, o cotidiano do casal vai ocorrendo, sem que os
dois, muitas vezes, percebam que estão se afastando, que não estão mais
compartilhando uma vida comum. A rotina caminha mecanicamente, como se fossem
robôs com um trajeto traçado, sem a emoção de quem investe no encontro e no outro.
O objeto amado deixa de existir como tal. Toda a libido vai sendo retirada de
forma gradual de suas ligações com aquele objeto. Podemos fazer um paralelo com o
que Freud (1914d) afirma sobre o trabalho realizado pelo luto. Para ele, no luto, a
ordem de abandonar o objeto e a posição libidinal é executada pouco a pouco, com
grande dispêndio de tempo e energia catexial, podendo prolongar psiquicamente a
existência do objeto perdido - o que ocorre também no processo de desvinculação.
Freud salienta que o trabalho do luto deve ser tão lento e gradual que, na ocasião que
for concluído, o emprego de energia necessária à sua manutenção também estará
dissipado. O luto compele o ego a desistir do objeto, declarando-o morto e
oferecendo ao eu o incentivo de continuar a viver. Passado o tempo, se o trabalho do
luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido.
CONCLUSÃO
Acompanhei o relato sobre o itinerário das histórias amorosas de três sujeitos
que se desvincularam, desde o início até o fim. Cada um contou sob seu ponto de
vista como se deu o encontro do casal, como foi o cotidiano da união, os fatos que os
desagradaram em relação ao parceiro, como foi a decisão de afastar-se, e finalmente,
como foi a separação e a desvinculação.
Em todos os relatos das histórias amorosas percebi dados importantes no que se
refere a como foi formado o vínculo de cada sujeito com o parceiro amoroso:
Socorro se uniu a Pedro buscando fugir do grupo familiar e criou um ideal mágico
sobre o parceiro e o casamento; Vítor não tinha inicialmente intenção de investir em
um vínculo de casal, casou com a namorada grávida e manteve com ela um vínculo
de mãe e filho; Luísa se vinculou a alguém que representava ela mesma e os atributos
que ela gostaria de possuir: um espelho. Acredito que, sabendo como foram
construídos os alicerces do vínculo de casal, podemos conjecturar que rumos a
dinâmica do cotidiano e a desconstrução vincular seguirão. É como se fosse uma
espécie de curso imaginário mais ou menos previsível e interdependente, na qual um
roteiro com dados do início da história pode tornar possível prever o meio e,
conseqüentemente, seu fim.
As três histórias mostraram sujeitos com e sem filhos, com idades, sexo,
profissões, tempo de união e de separação e cotidiano de vidas distintas. Mas, mesmo
com estas diferenças foi possível extrair conclusões.
A primeira delas é que a desvinculação é diferente da separação e arrisco ainda
dizer que a primeira tem um sentido mais amplo, pois há quem se separe mesmo sem
ter se desvinculado. Isso ocorre porque, na desvinculação, o sujeito deixa de investir
no objeto de amor e no laço amoroso de casal, o que nem sempre ocorre com a
separação. Por outro lado, há desvinculações que ocorrem antes mesmo da
separação: apesar de juntos e vivendo sob o mesmo teto, pelo menos um dos sujeitos
já se encontra no processo de desinvestimento do parceiro(a) e da relação. Os três
entrevistados podem ilustrar tal situação: eles foram se retirando da dinâmica de
casal na medida em que não viam retorno do investimento que fazia e começaram a
perceber que estavam sozinhos, sem satisfações.
A segunda e não menos importante conclusão é que a desvinculação não ocorre
em um só momento. É difícil apontar para o momento exato em que ela se inicia,
quando os sujeitos entrevistados expõem os seus descontentamentos em relação ao
parceiro e a dinâmica conjugal. Os acontecimentos mencionados adquirem
proporções tão grandes que acabam sendo apontados como os causadores da
desvinculação e da separação. Mas o que notamos é que os descontentamentos se
apresentam no início, no meio e no fim das histórias amorosas, tornando árdua a
tarefa de saber quando passam a serem insuportáveis.
Os sujeitos apontaram para um fato marcante e iniciador da separação, mas
creio que a desvinculação se expressa como um processo, nem sempre linear, que
ocorre para pelo menos um sujeito ao longo do cotidiano do casal até que seja
decretada a morte do cônjuge como objeto de amor. A história relatada por Luísa
demonstra a dificuldade de se retirar da dinâmica conjugal. Ela tinha consciência de
que o seu vínculo com o parceiro lhe trazia vergonha e sofrimento, mas durante um
certo tempo ainda não se sentia capaz de abdicar da ligação. Com o passar do tempo,
com o desgaste da união e, provavelmente, diante de sucessivas insatisfações e da
constatação de que estava sozinha, finalmente, decidiu se separar.
A desvinculação dá sinais e pode ser notada quando o sujeito que está nesse
processo e começa a investir em projetos e desejos individuais, deixando em segundo
plano tudo que for relacionado ao âmbito conjugal. Há a desidealização, isto é, o
ideal é projetado no parceiro, embora não corresponda à realidade. O sujeito vivencia
inicialmente sentimentos de aniquilamento quando separado do cônjuge e, por fim,
quando percebe que aquela união não tem mais sentido deixa de investir nela como
relação amorosa, completando o ciclo do processo de desvinculação. Existem pistas
desse processo, mas saber o instante exato em que o vínculo se rompeu é uma tarefa
difícil, até porque há casais que continuam a viver seu cotidiano sem perceber que
seus carinhos, conversas e até desentendimentos obedecem a movimentos mecânicos
e rotineiros.
Durante o processo de desvinculação aparece o luto, as disputas pelo poder,
pelos filhos e pelos bens materiais. Costumam surgir sentimentos de aniquilação,
solidão, de despotencialização. Porém, depois que o sujeito que atravessa essa etapa
pode perceber que é capaz de superá-la e de sentir-se novamente pronto para iniciar
um outro vínculo amoroso e, quem sabe, escrever uma nova história.
Outro ponto importante da pesquisa diz respeito à desvinculação de Vítor e ao
fato de ele ser o único sujeito com filhos. É comum esperar que haja algumas
diferenças na desvinculação entre sujeitos com filhos e sujeitos sem filhos. No
entanto, a amostragem desta pesquisa não foi suficiente para avaliar esse tipo de
variável de forma mais profunda. Ainda assim, percebi que, mesmo com essa
particularidade, Vítor vivenciou sentimentos bem próximos ao dos outros sujeitos,
mas com a diferença de que ainda tinha preocupações de como a separação poderia
atingir a qualidade do vínculo com os filhos. Mesmo diante dessa dúvida, seguiu com
o processo de desvinculação. Passado o período de crises e disputas, obteve o saldo
positivo. Sua história demonstra que a desvinculação amorosa é possível mesmo com
filhos, afinal ela finaliza o investimento amoroso apenas com o parceiro, as funções
parentais se mantêm.
Estas foram algumas das questões que pude explorar dentro de um tema
extremamente amplo e rico em detalhes como os vínculos e desvinculação amorosa
na relação conjugal. Pretendo ampliar estes estudos, em um futuro próximo,
pesquisando, por exemplo, sujeitos que fizeram parte de casais homossexuais com o
intuito de investigar as semelhanças e as particularidades da formação dos vínculos e
da desvinculação nesta população. Por enquanto, estou construindo artigos
científicos baseados nesta pesquisa afim de torná-la conhecida no meio acadêmico,
como possibilidade de troca de conhecimento com outros profissionais, como
contribuição para a academia e como realização pessoal.
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Anexos
A. Entrevista com Socorro.
Socorro; 27 anos; sexo feminino; casada durante 2 anos no civil; separada há um
ano; psicóloga; sem filhos; atualmente está solteira.
Entrevistador: Como começou a sua história com seu ex - marido?
Entrevistado: Nós trabalhávamos na mesma empresa e na época eu tinha
namorado. Mas, mesmo assim ele dizia pras pessoas que era meio afim de mim. Aí
acabou que eu tive uma briga com esse namorado e nós terminamos.
Isto tudo ao mesmo tempo, que eu estava terminando a faculdade e tive que
fazer os estágios na minha área profissional. Então, eu pedi as contas e por
coincidência, na mesma semana eu saí com o pessoal da faculdade e tava saindo com
um “carinha” que era esporádico.
No barzinho que fui com o pessoal da faculdade eu encontrei o pessoal que eu
trabalhava aí o Pedro (ex-marido) tava lá também. Daí ele pediu para eu ligar pra ele
e disse que não investia forte em mim porque a gente trabalhava na mesma empresa.
Ele era praticamente da minha chefia.
Depois de uma semana ele me ligou e a gente acabou saindo.
Entrevistador: O que você achava dele nesta época antes do namoro?
Eu achava ele charmoso. Mas, ele era engraçado porque usava um óculos fundo
de garrafa. Eu lembro de uma festa que ele foi e tinha feito a cirurgia de miopia. Na
verdade, pra mim ele não só tirou o óculos, mas tudo que tinha de feio nele. Eu vi que
ele era bonito. Tanto é que no bar eu olhei e perguntei: - Quem é aquele? É o Pedro?
Lembro que fiquei interessada. Foi uma descoberta de um homem bonito.
Entrevistador: E o namoro? Como começou?
Então, ele me ligava pra sair, nos saímos com freqüência. Era muito bom sair
com ele porque a gente tinha muito papo: eu tinha o meu papo de empresa e ele tinha
o dele também e ele tinha uma visão diferente da empresa porque eu era praticamente
subordinada a ele. Ele trabalhava chefiando todas as lojas e eu cuidava de uma só
loja.
Neste tempo eu fiz várias descobertas, foi super excitante. Nós sempre tivemos
coisas pra conversar, ele era mais experiente e não tinha aquela coisa de não ter
assunto. Eu ficava encantada nele.
Entrevistador: O que te encantou?
Isso mesmo de querer conversar, de querer saber como é o seu dia, de saber
como você está. Hoje em dia é difícil um cara que queira conversar. Outra coisa que
eu gostava era que ele era um cara esforçado, ele queria subir na vida e tinha uma
ambição bacana.
Hum...ele tinha um sorrisinho que era muito bonitinho. No começo da separação
dava saudade do sorrisinho.
Entrevistador: O que tinha aquele sorrisinho?
O sorriso era muito engraçado, ele parecia com um sorriso de “me ajuda
também”. Eu penso que ele tava tão perdido quanto eu. Era assim, sabe: “eu tô me
identificando com você, não sei o que fazer, mas estou na intimidade com você pra
aprender” tipo tô aberto, sabe? O sorriso dele me pegou tanto que talvez isso me
prendeu para não sair de casa.
Entrevistador: Me fale do namoro
O namoro foi bom, durou uns cinco meses. Mas eu acho que para mim culminou
com uma coisa que não foi legal: eu tava terminando a faculdade, tendo uma vida que
era difícil por ter deixado um emprego que eu ganhava mais e estava subindo de
cargo, e graças a esse emprego que eu tinha eu consegui pagar a faculdade, comprar
carro e em sustentar. Mas, eu queria naquele momento exercer a profissão que eu me
formei, e pensei em ir pra Curitiba que é uma cidade que eu amo e que eu tenho
parentes. Isto tudo também porque eu não me dava bem com a minha mãe e queria
sair de casa de qualquer jeito.
Então o Pedro chegou na minha vida e eu comentei desses planos com ele de eu
ir embora e aí foi a merda porque acabou precipitando tudo...o casamento que era uma
coisa que eu não tinha muita certeza. Quando comentei com ele de Curitiba ele dizia
que eu ia ficar com ele, juntos, que eu não devia ir embora porque minha vida não era
boa na minha casa. Na verdade eu já amava ele, mas também foi um pouco de fuga o
meu casamento.
Entrevistador: Fuga de quê?
Exatamente das coisas que eu vivia em casa. Era um inferno tão grande que eu
pensava em ir embora daquela casa nem que fosse casada. A minha mãe nunca me
deu carinho e tinha ciúmes porque eu me dava bem com o meu pai e o defendia
quando ele bebia. Nós éramos unidos.
Desde a adolescência eu trabalho porque ela não me dava nada de dinheiro. Eu
só comia pelo que pagasse. Já o meu pai ganhava pouco e me dava o que podia. Disso
ela tinha raiva. Até hoje eu não sei o motivo de tanto desprezo por mim.
Eu me sentia mal naquela casa e só ia lá pra dormir. Eu tinha um endereço e não
um lar.
Aí apareceu ele, que me deu um monte de esperanças e ilusões dizendo que eu
ia ter uma vida maravilhosa e que eu ia ver como ia ser diferente ter um
relacionamento legal em casa. Daí, no natal ficamos noivos, mas a mãe dele não
gostou muito...e em abril a gente casou. Ah, antes tenho que te falar que era para a
gente casar em fevereiro, mas a mãe dele teve um “siricutico” e ela é quem fazia as
roupas de muitas pessoas para o casamento. Então, atrasou tudo e adiamos para abril.
Neste tempo de fevereiro a abril eu fiquei triste com o casamento adiado e fui
pra Curitiba e já tinha desencanado de casar. Ah, eu percebi a manobra da minha
sogra, né? E ele foi passivo diante dela. E eu fiquei um pouco decepcionada.
Hoje eu penso que naquela época o casamento era a solução da minha vida e
ainda tinha o fato de que eu amava o Pedro e ele era a figura do príncipe. Ele chegou
com uma proposta muito bacana de sermos felizes, dele cuidar de mim. Mas, na época
eu não via assim. Eu via que era o meu amor prometendo que eu ia ser feliz.
Ele me fez todas as promessas. Eu tenho uma amiga que fala que o Pedro foi
uma propaganda enganosa. Pensando agora, ele falou tanta coisa, tanta coisa que eu
trouxa acreditei. Mas, na época era tudo o que eu queria ouvir, que eu precisava ouvir.
Entrevistador: O que você precisava ouvir?
Que iam finalmente cuidar de mim. Que eu ia ter uma família de verdade. Que
eu ia começar de novo a minha vida, mas por um caminho legal e feliz.
Eu fui pro casamento esperando uma coisa meio fantástica, mágica, e que na
verdade hoje sei que não existe.
Eu já sabia que tinha um monte de coisa ruim, né? Eu via com os meus pais que
era o “ó de borogodó”, que era um casamento já acabado e que agonizava. Que não
era casamento, que não tinha amor, amizade e nada mais em comum. E casamento
tem que ter tudo isso...
Com o Pedro eu achava que podia ser diferente da minha casa e ele confirmava
que sim, então dei a mão a ele e fui embora. ...ilusões.
Uma coisa que eu lembrei é que quando o meu casamento não estava mais
dando certo eu pensava que tinha que agüentar, e que não tinha que abandonar o
barco e, talvez isso fosse herança do que eu via com os meus pais que viviam um
casamento de bosta, mas estavam ali sofrendo...hum...insight, hein? Eu fiz a mesma
coisa. Para mim devia ser normal um período de distância entre o casal...podia ser
uma fase.
Eu suportei....ah, pensa desde a parte sexual onde ele quase não me procurava
mais, as mentiras, as traições e os esconderijos. Hoje penso que eu não conhecia a
pessoa antes porque no primeiro ano e alguns meses ele era perfeito, e o nosso
casamento era muito bom.
Entrevistador: E quando surgiram os primeiros descontentamentos?
Bem, de início nós tínhamos gostos parecidos, sonhos parecidos ou que se
complementavam, ele tinha carinho comigo, e eu estava em primeiro plano para ele
em tudo. E eu também procurava agradá-lo fazendo tudo que ele gostava, e eu tinha
tempo para isso porque estava sem trabalhar. Mas, não ligava pra isso porque cuidar
dele e receber amor em troca me satisfazia naquele momento.
Ele gostava de me ver fazendo as coisas para ele e eu gostava de fazer. Quando
ele me elogiava sempre vinha um carinho. Depois de jantar ele e eu ficávamos
conversando e namorando. Falávamos sobre o dia dele, sobre a empresa e sobre o que
eu tinha feito no dia. Ela tinha mais o que falar do que eu.
Procurávamos sair quando dava e íamos a barzinho principalmente. Ás vezes eu
ia a eventos da empresa com ele e viajava pro interior também.
Eu comecei a ficar primeiro só magoada com algumas atitudes. É...ele era mais
velho que eu, ganhava bem para se sustentar e era estranho para mim um homem
daquela idade morar ainda com os pais, ou melhor, com a mãe porque o pai era
falecido. Para mim era estranho aquele relacionamento com a mãe, mas antes de casar
eu não ligava. Até que já casada, com dias de casada eu percebi que a mãe fazia dele
o homem da casa. Eu percebi isso porque em tudo do nosso casamento ela queria se
intrometer.
Entrevistador: Por exemplo?
Ah, ela me convidava para ir tomar café na casa dela no fim de tarde e me
enrolava pra eu ficar lá até ele ligar para ela e ela convidá-lo para ir me encontrar e ir
jantar lá. Ela sempre preparava para ele o que ele mais gostava e pedia para ele ligar
para ela todos sos dias e ele fazia tudo o que ela queria. Parecia que ela fazia parte do
casamento. A primeira coisa que em desagradou no relacionamento com ele era que
ele parecia o maridinho dela e isso já me deixava incomodada. Isto ficou guardado em
mim e retornou em um dia, já quando estávamos em crise, em que ele me contou que
quando era solteiro fazia sexo virtual. Daí eu lembrei que o computador fica na sala
da casa dele, e que a mãe tem tipo um sofá cama que ela dorme na sala, o que
acontece muitas vezes. Então associei que ela devia ver ele se masturbando e que ele
devia saber que estava sendo visto. Isso me causou nojo deles.
A mãe dele também ia na nossa casa para ditar o que a gente tinha que ter ou
não em casa. Teve uma vez que ela foi em casa para visitar e quando eu saí de perto
dela, ela foi para a cozinha e começou a fazer o jantar. Aí foi a primeira vez que eu
tive “culhão” para enfrentá-la e disse gritando: “-Dá pra eu usar as minhas panelas na
minha casa?”. Ah, eu tava muito de saco cheio com ela. Eu acho que o pai dele
infartou de tanto ter que agüentar aquela mulher grossa e petulante.
Eu e o Pedro nos fins de semana sempre saíamos juntos pro cinema ou pra jantar
e nos divertíamos muito, conversávamos sobre a nossa vida, fazíamos planos e era
muito bom. Mas, quando íamos na casa da minha sogra era chatíssimo. Ela batia na
mesa e dizia que ela ganhava bem, que ela era linda, ela isso, ela aquilo, que ela
sempre bancou os filhos com a confecção que ela tem. Ela fazia questão de dizer que
ela era quem ganhava mais no casal e isso tudo na frente de todo mundo. Então ela
era o verdadeiro macho da casa. Isso era o “ó” e eu ficava olhando assim e me
sentindo mal naquela casa. Às vezes achava engraçado.
O Pedro gostava de pintar e eu o apoiava nisso. Ele tem talento, mas nunca
investiu nisso. O próprio pai dele também era um artista quando era vivo. O pai
deixou quadros que o Pedro tem até hoje, e ainda tem as fotos dos aniversários do
Pedro em que o pai fazia a decoração toda e era coisa de profissional. O pai dele era
muito sensível para as artes. E aí eu comecei a perceber que os papéis tinham se
invertido naquela casa, e talvez a sexualidade deles também.
A irmã já era lésbica e assumia a sexualidade, e o Pedro eu vejo hoje que ele
podia estar confuso. Sabe? A identidade de masculino e feminino? Tanto é que ele e
eu nos dávamos bem na cama, mas ao mesmo tempo tinha aquela coisa meio suja,
porca, de um monte de coisa podre que às vezes ele pedia direto pra mim, pra eu fazer
com ele e aí ele se transformou pra mim de príncipe para um estranho. Eu não topava
fazer as fantasias sujas dele de sadomasoquismo que eu acho que deve ser mais
homossexual, e daí parece que estragou nosso casamento. Esse foi o ponto que
desandou a relação.
No namoro nada disso acontecia. Ele e eu tínhamos um bom relacionamento na
cama, como te disse.
Então...continuando, no momento que ele viu que eu não topei as fantasias dele
ele percebeu que eu me assustei e me pediu desculpas e continuamos a transar como
transávamos. Mas, eu não sabia que ele devia se satisfazer com outras fora de casa.
Eu já estava assustada com ele e ficava com medo dele me pedir pra fazer coisas
que eu não queria. Além disso, ele começou a mudar comigo.
Entrevistador: O que mudou?
Ah, ele já não parava em casa, estava diferente, não ia em casa para almoçar
como ia antes. O sexo era esporádico e à noite nós ficávamos vendo tv. Quer dizer,
ele ficava vendo e eu tentando chamar a atenção dele para mim, pra me ver ali.
Mesmo assustada com a mudança dele eu ainda queria salvar o casamento e achava
que era fase. Te disse, né?
Em terapia eu vi que nós vivemos momentos bons a dois no início e no meio da
relação, e eu tive mais momentos bons eu mesma já no final da relação. Eu sofri
muito quando eu fui pegar as minhas coisas na saída do apartamento. Eu peguei a
minha vida lá. Eu também deixei muitas coisas lá, mas que hoje eu já reconstruí e
substituí por melhores até.
Entrevistador: O que você deixou?
Roupas, coisas pessoais, livros, deixei uma história nossa, do casal pra trás. E
foi sofrido, chorei muito pra me levantar dessa história.
Entrevistador: Você considera que viveu uma relação conjugal com ele?
Totalmente. Enquanto deu certo, em um ano e meio vivemos uma relação
conjugal e depois eu tentei, mas ele parece que não quis mais. Eu sentia segurança
quando ele me apresentava como esposa dele, eu achava que não tava sozinha no
mundo, mas depois era um casal só na sociedade de Campinas, só na aparência. Em
Campinas nossa vida desandou.
Entrevistador: O que aconteceu em Campinas?
Eu tinha vida de dona de casa, o que foi um erro, mas na época eu nem ligava.
Em Campinas eu acho que acelerou a separação, porque as fantasias sexuais
surgiram lá. E eu ficava em casa pensando em tomar uma atitude, conversar sério com
ele que não tava mais dando certo o casamento, que eu não estava mais feliz. Daí eu
conversava com ele, mas nada mudava e pra gente se separar tiveram antes várias
dessas discussões que ele dizia que ia mudar e me dar mais atenção e que as coisas
iam voltar ao que era. Mas, nada acontecia.
Eu às vezes dizia que ia arrumar minha mala e ia embora, e ele não acreditava.
Então no carnaval eu fui embora e voltei pra casa da minha mãe. Foi um inferno
porque a minha mãe também é aquela mulher macho...olha a associação com a mãe
dele, hein? E a minha mãe jogava na minha cara que ela que pagava tudo e começou a
me humilhar e dizer pra eu voltar com o Pedro, que eu não ia conseguir trabalhar e
que eu tinha que pagar as contas. Ele do outro lado me ligava dizendo que não ia me
dar dinheiro separado de mim, e eu fiquei assim umas duas semanas e acabei voltando
com ele.
Quando eu voltei, ele me disse que me amava, que era infeliz sem mim. Então
nos propomos em melhorar o casamento, tentar se reaproximar ou não iria dar certo.
Então nós viajamos, só que lá encontramos os amigos dele da empresa. Ou seja,
ele tinha combinado de ir de turma viajar. Eu fiquei chateada, mas depois resolvi
curtir porque já estava lá mesmo. E foi até divertido. Eu pensei que tínhamos voltado
às boas.
Ao chegar em casa, ele adoeceu e eu fiz sopinha, canjinha pra ele e ele disse que
a canja da mãe dele era melhor e não tinha muito arroz. Daí eu fiquei puta e disse pra
ele comer sozinho.
No outro dia eu resolvi ligar pra ele pra gente ir comer no japa, e ele disse que
não ia porque tinha coisas pra fazer no trabalho e que ainda tava mal do dia anterior.
E eu aceitei e fiz um jantar melhor naquela noite.
Dois dias depois eu liguei de novo pro trabalho dele pra gente ir almoçar fora e
disse: “Que tal a gente ir almoçar fora pra sair desse tédio?” e ele disse que tava
atolado de trabalho. E...com isso...não sei...me deu uns três segundos, sabe? E pensei
que não era possível que ele sendo o chefe não ia almoçar.
Eu pensei comigo que aquilo queria me dizer alguma coisa. E então pensei: “ eu
já sei onde eu vou”. E fui no japa.
Na hora que cheguei lá eu vi o carro dele e aí me começou a borbulhar o sangue.
E eu disse pra mim: “-Calma”. Entrei e olhei em volta, mas não o encontrei. Então
rapidamente sentei e aí já pedi uma cerveja porque eu tava muito pilhada e se não
bebesse ia começar a tremer e aí seria pior. Passaram alguns minutos e eu não via
nada, não via nada... fui no buffet de saladas, peguei meu prato e fui. Na fila eu
encontrei ele. Ele olhou pra minha cara e ficou verde, azul, branco, amarelo e falou
com cara e voz cínica: “-Quê que ce tá fazendo aqui?” e eu respondi: “-Ué, você não
almoça? Eu também almoço”. Então ele ficou branco, olhou pro amigo que estava
com ele e não falou nada e eu puta e calada.
Logo depois ele virou pro amigo dele e disse baixo: “- Leva ela, leva ela, dá
carona pra ela”. Só que eu escutei e disse: “Meu, relaxa, fica tranqüilo que no mínimo
você tem que ser educado. Se você trouxe a moça, você tem que levar de novo. Aí ele
ficou mais branco ainda, e nisso eu já larguei a fila, e fui embora com ele atrás de
mim dizendo que queria sentar comigo, pode?
Eu logo respondi: “- Vai almoçar com as pessoas que você queria vir”. E ele
começou a falar um monte de coisas e eu disse pra ele sair senão eu ia fazer um
escândalo naquele lugar, e então ele saiu. Em seguida eu pedi a conta e voltei na mesa
e eles estavam de casalzinho e eu disse que já estava indo embora. E ele não veio
atrás de mim, ficou a tarde inteira sem me procurar e eu fui pra um bar beber, e bebi
muito. Chorei que nem uma condenada e me senti abandonada, um trapo e traída.
Quando cheguei em casa, ele quis inverter o jogo tomando satisfações como se
eu fosse a errada e daí foi a decisão final de me separar, ou melhor, foi no bar que eu
decidi me separar dele.
Na discussão em casa eu já não deixei ele falar, e falei tudo o que ficou intalado
da nossa relação e do quanto eu estava infeliz. Eu vomitei todas aquelas palavras e
disse que ele era sujo e que tinha me traído. Eu sentia que era uma trouxa e que só
precisava ver pra crer, São Tomé, né?
Entrevistador: E ele, como reagiu?
Eu acho que achou melhor ficar calado. Ele tentou falar um pouco, mas como eu
não deixei, ele ficou na dele e se conformou...até rápido demais...por isso que eu creio
que ele queria se separar de mim. Depois disso eu fiquei um tempo sem falar com ele.
Entrevistador: Como você ficou depois desse episódio?
Pô...foi difícil pra caramba...porque eu só tinha a casa da minha mãe pra ir.
Além de sofrer a perda dele eu tinha que ouvir ela me pressionando pra trabalhar. Eu
depois consegui um emprego e minha mãe me enxotou da casa dela dizendo que não
queria filha separada em casa e com a intenção que eu voltasse para o Pedro. Minha
mãe tinha raiva porque eu me separei e porque eu conseguia viver sem a ajuda dela.
Tudo o que eu tenho fui eu que comprei. Eu comecei de garçonete bem novinha e
hoje estou me mantendo bem. Hoje nós duas estamos sem nos falar.
Para mim, a minha mãe queria que eu fosse infeliz que nem ela, mas esta fase já
passou e eles, o Pedro e ela não conseguiram que eu ficasse na merda.
Uma amiga minha já me disse que parece que a minha mãe tem inveja de mim.
Que ela queria ser como eu sou. Eu sou muito batalhadora, não tenho medo e sou
otimista na vida. Eu posso estar numa crise, mas eu tenho força pra sair dela e até
chego a rir de tudo o que passei. E a minha mãe fica muito presa pensando no que os
outros vão falar.
O meu pai também conseguiu sair de casa, eles se separaram. Ele é um fofo e
me apóia nas dificuldades e pergunta com quem eu estou saindo e diz pra eu me
cuidar.
Na separação eu sofri que nem um cão chupando manga e o meu pai ia me ver
no quarto. E depois que fui morar sozinha ele me visitava.
Nos primeiros dias dá a sensação de vazio, de que você não existe e o mundo
não tem cor, não tem graça. Depois, vem tudo o que aconteceu e não sai da tua cabeça
que você é um lixo, que você é culpada pela separação e pelo outro não gostar de
você. A terapia me ajudou a entender que a culpa não era minha. E, mais tarde você
vai se levantando e voltando, aos pouco a ver cor na vida e ver que existem outras
pessoas interessantes. Tudo isso lentamente.
Nesta época eu amadureci muito e subi dois degraus de uma vez só. Doeu muito
e tinha dias que eu queria morrer literalmente porque eu tava tão junto dele que não
me reconhecia sozinha, faltava um pedaço de mim. E daí vinha aquela coisa positiva
minha e o trabalho ajudou a voltar a ser eu mesma. Voltei a fazer o que eu gostava, a
descobrir coisas de mim mesma que eu nem sabia e voltei a confiar no meu potencial
como profissional.
Ah, passei um tempo ouvindo músicas “deprês” e vivendo mesmo a tristeza.
Pensava nele de vez em quando...mas, teve um tempo que eu nem pensava mais e daí
voltei a sair e a conhecer gente nova e a paquerar, ficar com uns carinhas na balada.
Hoje eu quero voltar a namorar, mas vou com mais calma e vou conhecer
melhor com quem eu me relaciono. Ainda planejo casar, mas não agora...quem sabe
no futuro.
Entrevistador: E o Pedro? O que você sabe dele hoje?
Ah, hoje só o meu advogado me fala dele porque no início eu queria algumas
coisinhas que eram dos dois, e daí ele veio com umas baixarias e querendo me
difamar. Então, eu decidi que nada vale a pena e desisti de lutar por besteiras e até pra
não ter contato com ele e encerrar esta história.
B. Entrevista com Vítor
Vítor; 44 anos; sexo masculino; casado durante 23 anos no civil; separado há
um ano e um mês; administrador de empresa; com três filhos da união; atualmente
está casado.
ENTREVISTA 1
Entrevistado: Quando eu conheci a minha esposa, a gente era bem jovem e não
tinha preparação alguma. Nos conhecemos e já naquela época tivemos um
relacionamento razoável. Era meio conturbado, não era maravilhoso, mas tinha pontos
fortes no relacionamento que me fazia ficar com ela como querer ter alguém para
cuidar da família e de mim. Por um tempo isso aconteceu. Já vou chegar lá.
Bem, o casamento ocorreu por causa de uma gravidez. Na verdade eu não tinha
intenção alguma de casar, eu não tava preparado psicologicamente e financeiramente
pra isso. Mas, ela engravidou por motivo de descuido talvez, que na época era normal,
e casamos por motivo da gravidez.
Ela eu não sei se era a favor de casar, mas eu era totalmente contra, mas fui
criado pra isso. O homem tinha que honrar sua palavra, e eu disse que assumiria ela e
o bebê. Para mim mãe era sagrado.
Nós tínhamos dois a três anos de relacionamento quando casamos, mais ou
menos isso e, eu gostava dela. Então, quando aconteceu a gravidez ela tinha 17, 18
anos, mais ou menos. Aí surgiu a gravidez e falei pro meu pai. Foi o meu pai que
praticamente fez o casamento, comprou todos os móveis e pagou tudo que precisava.
Na realidade eu não tinha nada quando casei. Na verdade eu fui na igreja naquele dia,
não casei, eu fui na igreja e depois voltei pra casa.
Coincidentemente, quando casei, ela já estava grávida, e eu perdi o emprego.
Ela trabalhava em uma loja e também saiu porque engravidou, enfim eu tava em uma
situação muito difícil. Mas, a trancos e barrancos a gente foi nesse primeiro ano...e,
com o nascimento do primeiro filho, com mais ou menos trinta dias ela engravidou
novamente. E aí nos tivemos um filho atrás do outro, tivemos dois filhos.
Com isso, a luta piorou porque nós lutamos muito para conseguir tudo isso que
conseguimos.
Entrevistador: Como ficou o relacionamento de vocês com a chegada dos
filhos?
Na verdade a gente nem sabia como era ter um relacionamento sem filhos no
casamento, porque a gente já casou “grávidos” e foi um filho atrás do outro. Na
verdade, a gente praticamente não teve relacionamento a sós.
O que eu acho que falhou foi o relacionamento homem e mulher no fim do
casamento. Na verdade, era um relacionamento de filho e mãe, e ela também tinha
pouca preparação, e acho que ela era minha mãe também porque ela é bem
dominadora, mas assim fomos no final aos trancos e barrancos, mas fomos.
Entrevistador: Dominadora em quê?
Em casa, com os filhos e comigo. Ela tinha que ser o centro das atenções, então
fazia tudo para ter o poder de tudo. Cuidava da casa e dos filhos para me dizer que
sabia tudo deles, e cuidava de mim também, o que era bom, mas ruim ao mesmo
tempo porque ela depois jogava na cara que todos dependiam dela.
Voltando ao que eu estava te dizendo, das dificuldades ainda teve a parte
financeira que também foi difícil de conseguir alguma coisa, de dar conforto à
família, mas deu a troco de muito trabalho.
Começou a melhorar quando as crianças tinham por volta de dez anos de idade,
mas aí ela engravidou novamente. Aí não foi um descuido da natureza, mas sim um
azar. Ela usava DIU, mas tinha um mioma que cresceu e empurrou o DIU e ela
engravidou. Foi um dilema porque a gente ia começar a viver e a decisão foi não
perder o filho e ter mais um filho.
Entrevistador: A decisão foi de quem?
Nossa. E hoje temos três homens: um com 23, um com 22 e um com 16.
Voltando a situação do relacionamento de mãe e filho que tinha entre nós dois,
na verdade a gente não percebe na hora, hoje que eu percebi isso. O relacionamento
era muito difícil, eu tinha muito trabalho, o relacionamento é que prende a gente para
conseguir as coisas pros filhos. Pra gente foi uma vida “inaproveitada”, digamos
assim. A gente tinha muita afinidade, mas não era aquele amor dos romances das
revistas, mas tinha uma ligação entre nós. Tinha todo um gostar e isso foi indo, foi
indo, foi indo. Até que se chegou a um final, né?
E esse final não era de se estranhar, o relacionamento já era difícil e ela tem um
histórico familiar.
Entrevistador: De quê ?
De separação.
O pai se separou da mãe e casou com outra, e separou da outra e casou com
outra. Ela tem seis irmãs e as seis são divorciadas, não tem nenhuma casada. O pai
tem um outro relacionamento e tem dois filhos desse relacionamento com essa
mulher. A tia dos meus filhos também se separou dias depois da nossa separação, e
até foi meio traumática essa separação dessa irmã. Então, já existe uma naturalidade
na família, não é uma coisa diferente se separar. Todo mundo se separa, porque eu
não me separar? Esta história é até meio esdrúxula, mas nem vem ao caso desviar da
minha história.
Então... minha vida foi destinada a trabalho, a criar filhos, e foi isso. Pensando
agora....este também foi um vacilo que foi meu. E o trabalho me consumiu o que fez
com que saísse do motivo principal que era bom até um tempo, que era o
companheirismo e o gostar. O eixo que deveria ter controlado tudo isso, saiu-se dele e
foi ela pra um lado e eu para o outro. E o errado foram os dois, os erros eu já te falei:
o controle dela e agora vi que o meu era trabalhar demais. E no final houve a
separação.
Outro fato marcante foi quando ela começou a trabalhar e daí o tempo que era
do casal acabou indo só para o trabalho.
Eu não me arrependo de nada. Acho que tudo que aconteceu foram as verdades
verdadeiras.
A separação já vinha acontecendo, caminhando. Eu penso que ela já vinha se
preparando. Foi um processo mais dela porque ela já estava separada de mim há
muito tempo.
Entrevistador: O que te faz pensar isso?
Ah, a frieza dela comigo, ela já queria só disputar a atenção dos filhos comigo,
não cuidava mais de mim e as conversas se resumiam às contas a pagar.
Entrevistador: E você, como estava em relação a ela?
Eu trabalhava muito, chegava cansado em casa e confesso que tinha vezes que
nem ligava. Mas, no fim de semana era difícil não ver que ela estava diferente e eu era
para ela mais uma peça da casa. Ela só via os filhos. E eu pensava: onde foi parar o
cuidado, a atenção e o companheirismo?
Olha, antes quando o relacionamento caminhava gostoso, ela me esperava
chegar para jantar, me beijava e depois do jantar ela e eu víamos televisão de mãos
dadas, mas isto mudou e tudo começou quando eu tive que trabalhar mais para ganhar
mais, e ela também foi trabalhar. E...teve a separação.
Entrevistador: Quem tomou a iniciativa da separação?
Fui eu. Eu que tomei a iniciativa.
Entrevistador: E como foi?
Foi muito duvidoso, né? Uma coisa muito estranha, eu não sabia como era isso.
Eu saí de casa, achava que não dava mais e ela concordou. Ela concordou numa boa.
Como eu te falei, eu descobri depois que ela já estava separada. Ela só estava comigo
pelo dinheiro, pela parte financeira. Ela se preparou, estudou, fez curso.
Entrevistador: E você estava preparado?
É....tava. Quando você se separa você acha que está. Mas, você não está. E aí
vem todo um processo difícil, que agora depois de uns seis meses eu estou melhor.
Parece que hoje é bem melhor viver na separação do que viver daquela forma.
Os filhos estão comigo...é meio problemático separar , mas tem os filhos. Os
amigos também começam a definir o lado que vão ficar porque não dá mais para ser
amigo dos dois porque os dois acabaram. Na verdade pode parecer meio tranqüilo,
meio bacana, mas depois que começou a separação virou guerra.
Entrevistador: Guerra?
É...guerra por dinheiro e bens. Guerra na justiça. Ela quer uma pensão faraônica
que não tem direito. Eu ofereci um valor que era justo, mas ela cresceu o olho e pediu
muito, e perdeu na justiça. Agora está recorrendo de novo. É difícil esta parte.
Entrevistador: O que foi mais difícil para você?
A separação dos filhos, a perda do poder...
Entrevistador: Do poder de quê?
Do controle, né? A gente controla uma casa, controla os filhos, e isso acabou.
Hoje você tem controle do teu celular, das tua mãos...Pensando bem, ela e eu numa
casa querendo controlar, olha a cena. Não ia mais dar certo, né?
Nós tentamos conversar mais quando nos separamos, mas eu e ela perdemos o
contato total.
Entrevistador: Porque?
Nós não conversamos mais sobre nenhum assunto. E não a vejo mais também.
Rompemos. Ela é uma pessoa um pouco difícil. Ela resolveu partir para o processo de
advogado, fez uma série de grosserias pra mim e eu não aceitei.
Entrevistador: Para você, em que momento houve o rompimento?
Esse foi o fato que marcou. Acho que esse foi o marco da separação entre nós
dois. Foi esse momento aí. Eu ofereci uma série de coisas para ela na separação como
divisão de bens e mais um dinheiro. Mas, ela queria um dinheiro só pra ela. Ela
imaginava um valor estratosférico. Hoje eu vejo que o que eu ofereci para ela já era
estratosférico. Daí ela colocou um advogado, e eu disse que não iria conversar com o
advogado. Eu disse que iria colocar o meu advogado para conversar com o dela.
Após isto, ela quis conversar comigo e eu não quis. Ela não botou advogado?
Então...
Daí as coisas ficaram muito ruins pra ela porque os números baixaram muito
drasticamente e ela ficou sem dinheiro. Então começou a existir raiva. E aí achei
melhor cortar as relações. Foi uma decisão minha. Foi melhor cortar o vínculo de vez.
A mãe tinha aquele manto sagrado, e eu acreditava em tudo o que ela falava,
tinha a maior confiança nela. Aí depois da separação esse manto cai e você vê a
realidade, e a realidade não é aquela. Ela não é nenhuma santa, ela tem milhões de
defeitos, orgulhosa. Ela vinha conversar comigo e tudo era mentira, então já não
quero mais escutar isso. Mas, eu só percebi isso depois que eu saí de casa. Bem
depois.
Entrevistador: Como foi perceber tudo isso?
Foi horrível. Percebi com a terapia um pouco, e depois com o tempo.
Ela desviava dinheiro, mentia e fazia todas as artimanhas possíveis.
Entrevistador: E em relação aos filhos como foi a separação?
Os filhos são legais. Eles aceitaram bem. O do meio deu mais trabalho pra
explicar, mas aceitaram bem. Aceitaram bem. Eles já são homens, né?
O filho do meio ficou um pouco confuso por ela manipular ele e dizer que a
culpa foi só minha na separação. Ela inventou coisas que não existiram como
agressões físicas, que eu nunca pratiquei, não sou disso. Então, eu deixei passar um
tempo e conversei com ele, contei o que aconteceu, que a culpa é do casal quando se
separa e não só de um. Depois busquei me reaproximar dos meus filhos como nunca
tinha feito. Hoje somos mais próximos do que quando vivíamos numa só casa.
A separação é muito estranha. Você se sente sozinho no mundo. Sem a família
você se sente sozinho. Mas, aí você vai se virando novamente, se adaptando e aí vai
conseguindo. Agora com esta nova pessoa que eu estou eu comecei a dividir de novo,
a criar novos amigos e vai indo.
Hoje posso te dizer que na minha vida prezo pela qualidade dos momentos com
as pessoas e não pela quantidade que era como eu vivia.
Entrevista 2
Entrevistador: Como foi o início da história de vocês, do casal?
O início foi assim: eu conheci ela bem jovem, eu era bem novinho, eu tinha
menos de vinte anos, uns 19 acho e ela tinha uns 17, 16...então casamos jovens, eu
com 22 e ela com 18. E o casamento aconteceu pela gravidez, ela engravidou e por
isso nós casamos. Antigamente era uma coisa de caráter você assumir a menina que
engravidou de você, daí meu pai também deu uma pressionada e então casamos.
Na realidade nós não tínhamos condições nenhuma de casar, tanto
financeiramente quanto emocionalmente. Nós nos gostávamos, mas não pensávamos
concretamente em casamento. Falávamos neste assunto ainda como uma coisa
distante.
Na verdade mesmo tudo começou de uma forma engraçada porque nós nos
conhecemos assim: eu tinha um amigo, sabe aqueles amigos de homem que sai só pra
farra? E aí ele estava querendo sair com a irmã dela e ela estava atrapalhando porque
vigiava e não saía de perto da irmã e eu fui convocado para ser um “quebra galho”,
digamos assim, o que não foi nenhum esforço porque ela era bonita e a beleza me
atraiu de primeira.
Bem, elas estavam num restaurante ou coisa parecida. Naquela época em cidade
pequena se usava lanchonete, tinha uma na cidade e todos se encontravam lá. Pois
bem, meu amigo pediu para eu conversar com ela pra ver se ele pegava a irmã dela. E
assim foi, eu a conheci e depois nós saímos ainda sem compromisso nenhum, e foi
rolando, rolando e eu acabei namorando, e namoramos um bom tempo.
Entrevistador: O que você gostou nela?
Sabe que eu não lembro?
Eu era totalmente irreverente, era livre, solto. Eu trabalhava num laboratório
farmacêutico em outra cidade e só voltava pra casa no sábado. . E era cansativo, eu
não gostava de trabalhar longe. Ou seja, eu só namorava no sábado e no resto da
semana eu ficava fora. Nós tínhamos tudo de diferente. Por exemplo, eu gostava
muito de sair pra dançar e ela já não gostava, preferia ficar em casa, era mais calma.
Hum...sexualmente também era bem difícil, era incompatível e eu fui levando. Acho
que o casamento durou muito por um pouco de comodismo. É lógico que a gente
gostava um do outro, tinha amor, mas não aquele amor e paixão de novela. A gente
tinha muitos momentos de companheirismo entre nós também e isso fazia eu ficar
com ela. No começo eu queria que ela fosse a minha companheira, a minha mulher,
alguém pra cuidar de mim e eu dela, me colocar no colo e ficar junto comigo para
caminhar na vida e me colocar no colo.
Taí, era isso que me agradava nela, era companheira. Um dia foi... Ela tinha
qualidades. Ela é inteligente e nisso nós fazíamos uma boa dupla.
Entrevistador: E quando aconteciam estes momentos?
Em relação aos filhos e a educação deles, quando eu precisava de alguém pra
desabafar, quando ficava alegre por conquistar vitórias profissionais, lembro dela ali
do meu lado e era importante ela estar ali pra mim.
Entrevistador: Por que?
Era pra dividir mesmo, pra me colocar no colo quando eu estava triste....mas,
quando eu mudei de emprego e ela começou a trabalhar as coisas mudaram, isto
ocorreu há uns cinco anos atrás.
Entrevistador: Mudaram em quê?
Ah...ela começou a ficar super competitiva, ou até já era e eu nem percebi antes.
Bem, o fato é que aí o relacionamento ficou complicado. Se no começo eu queria que
ela fosse a minha companheira, a minha mulher, alguém pra cuidar de mim e eu dela,
e ficar junto comigo para caminhar na vida, logo eu descobri uma competidora
quando ela foi trabalhar. Ela ficou distante de mim.
Entrevistador: Como era a competição?
Em tudo. Ela sempre queria competir comigo. Era uma coisa até meio
engraçada, de criança mesmo. Ela queria fazer as coisas que eu fazia, ela queria as
coisas que eu queria.
Entrevistador: O que por exemplo?
Ela queria a liberdade que eu tinha no trabalho, queria mostrar que sabia fazer o
meu trabalho melhor do que eu, que podia liderar pessoas como eu. Nesta época eu
trabalhava como chefe em uma empresa. E pra ser sincero eu sempre fui o líder dos
amigos, eu organizava festas, passeios, tomava atenção pra mim, era natural. E ela
queria ser também a líder e não ficar de coadjuvante. Daí ela começou a estudar, fazer
cursos, trabalhar e realmente ficou mais descolada. Então a competição correu solta.
Entrevistador: E isso te causava que sentimentos?
Bom, isso não me incomodava...mas, isso me dava....era.... uma agonia, né?
Entrevistador: Porque?
Por que soava falso, ela queria ser o que eu era e não ela mesma. E eu queria ela
e não dois de mim, o que é dose, né? (ri)
E com o tempo isso dela competir se tornou uma obsessão. Ela só se importava
com ela e nem perguntava como eu estava. Eu disse pra ela um dia: você deixou de
me ver. Porque eu era o que ela enxergava e eu não era o que eu era. Ela me tinha
como um....não era inimigo a palavra....ela me tinha como um.... concorrente. Eu era
concorrente em relação aos filhos, ela queria ser mais querida que eu pra os amigos...
E a relação virou uma competição.
Entrevistador: Você considera que vocês tiveram uma relação conjugal ?
Sim. Tivemos uma relação conjugal. Nós dividimos sonhos, vontades, planos e
nós nos gostávamos mesmo com aquela coisa de ser diferentes. Um cuidava do outro
e dos filhos. Nós éramos uma família e um time. Posso te dizer que tivemos uma
história que foi boa enquanto durou. A falha foi ter arrastado a relação quando não
tava mais legal. Eu lembro de um episódio que a gente já não estava mais com uma
relação legal, que hoje eu percebo como uma separação onde a gente saía de casa
juntos na noite, mas nunca queríamos sair sozinhos, sempre tinha um grupo grande de
amigos. E quando sentávamos no bar nunca sentávamos juntos e nem conversávamos.
Só nos olhávamos de novo quando voltávamos pra casa.
Outra história era o comportamento infantil dela já nos últimos dias de
convivência. Era assim: se eu queria ir pra praia ela dizia que ia chover, se eu
comprava uma coisa pra casa a coisa não prestava, se eu dizia sim pros filhos ela dizia
não. Acho que aí passou totalmente do ponto da relação, era competição total. Ela
fazia tudo pra me irritar...e continua tentando, mas hoje não consegue porque eu não
me deixo mais passar por isso. Eu ignoro ela e ela vendo que não me atinge fica
tiririca da vida. Hoje eu penso: não preciso mais disso.
Entrevistador: Você já precisou disso?
Na terapia eu vi que eu vivia num círculo de masoquismo. Isso foi duro no
processo de separação: saber que você gostava de sofrer é duríssimo.
Uma coisa é pensar em se separar e outra é se separar mesmo. É muito difícil
separação. São muitos anos na mesma coisa, e eu não consegui sair logo. O que me
prendia no final era a família, os filhos, a rotina. Quando você sai do casamento você
fica muito mal porque você perde toda a rotina. E a mulher não perde a rotina porque
geralmente fica na casa e na rotina, então ela sofre muito menos que o homem porque
ela fica com a casa, com os filhos. E o homem sai e vai ter que criar uma rotina nova:
uma nova casa, um novo caminho. Então a fase da separação é a quebra da rotina.
Quando você sai de casa e se separa parece que ainda vai voltar para lá e aquilo
é um pesadelo e que você vai acordar. E olha que fui eu que decidi sair, hein? Mas,
com o tempo é sofrido porque você de longe vê melhor os defeitos da ex-mulher, e
vai se desiludindo. A tristeza bate forte e você vê que está sozinho na vida, e que não
dá mais pra voltar com aquela pessoa que nem é mais conhecida por você. A dureza é
ver que se viveu com uma estranha pensando que era conhecida, íntima e que cheguei
a gostar disso.
Hoje eu tô fazendo um outro Vítor porque não sou mais aquele de antes. Hoje
sou melhor.
Na separação você diz pra si mesmo que a tua rotina não é aquela nova é a outra
e daí fica mais difícil a construção de uma nova rotina. Então você pensa que precisa
fazer, tem que fazer outra rotina e daí você constrói uma nova rotina, como eu
consegui.
Voltando à terapia, outra coisa que descobri é que quem tinha o real poder na
casa era eu. Ela descobriu também, mas através da falta de dinheiro. Hoje ela trabalha
por conta própria e nem sempre pinta trabalho. Ela é decoradora e de vez em quando
surge um trabalho.
Com a falta de dinheiro baixou o nível econômico e social e aí ela sofreu. Ela
sofreu na separação não por sentir minha falta, mas por sentir a falta do dinheiro de
antes. Aí ela pirou porque passou a cobrar dos filhos um dinheiro pela comida e pelo
cuidado doméstico que tinha com eles.
O que ocorreu? Dois deles já saíram de casa e foram tocar a vida deles. Só o
mais novo é que está com ela, e ainda reclama e pede pra morar comigo. Resumindo:
ela perdeu o dinheiro e os filhos. Os amigos ficaram comigo na maioria.
Acho que ela achava que tinha o controle, mas quando eu saí de casa saiu o
dinheiro e parte dos filhos, as viagens, as inovações dos passeios.
Lembrei de outra coisa: para ela a família era também as irmãs dela e a mãe
dela. E muitas vezes ela esquecia de nós (eu e os meninos). Quando a gente casa a
primeira família tem que ser um pouco afastada e em primeiro lugar vem a segunda
família. Isso também atrapalhou. Ela deixava que as irmãs dessem opinião na nossa
casa. A família dela influenciava fazendo de tudo pra gente se desentender. Para eles
divorciar é coisa normal e elas gostavam de envenenar. Eles são baixo nível.
Atualmente ela ainda tenta incomodar e se aliou ao meu pai para saber da minha
vida, mas ele não sabe de nada que ela possa usar pra me atingir, então não incomoda
e assim, vou levando a vida. Acho que ela deve estar doente porque perdeu quem ela
competia e porque ela não sabe nada da minha vida pra usar em seu favor no
processo. Ela não sabe o que tem do outro lado que eu estou. Eu não falo mais com
ela e ela não sabe da minha vida. Ela já percebeu que perdeu na competição que ela
inventou e deve estar arrasada.
Já eu ganhei uma vida nova, vida boa. Com a mudança de vida eu mudei o meu
jeito de ser e ganhei muito com isso. Eu evoluí com a separação, no fim foi muito
bom pra mim
Entrevistador: O que mudou?
A própria ansiedade porque eu era muito ansioso, muito detalista, empolgado
com coisas fúteis. Deixava as decisões na mão dela. Não tomava muitas decisões.
Hoje eu estou mais tranqüilo, mais calmo, comecei a enxergar melhor as coisas da
vida. A separação pra mim hoje significa algo maior do que separar dela porque
significa uma mudança de vida. Eu evoluí profissionalmente....parecia no fim da
relação que eu tinha uma pedra amarrada no pé e quando você solta você sobe, que foi
o que aconteceu hoje comigo.
Com os meus filhos eu tenho hoje um relacionamento mais integrado, mais
emotivo, muito legal mesmo. Mudou de quantidade para qualidade.
C. Entrevista com Luísa
Luísa; 44 anos; sexo feminino; sua relação conjugal teve duração de 2 anos; está
separada há quatro anos e meio; artista plástica; sem filhos; atualmente está solteira.
Entrevistador: Me conte a tua história amorosa, a sua história com o seu ex-
marido.
Entrevistado: Nós éramos amigos de profissão, os dois artistas plásticos e nós
nos dávamos muito bem, muito bem. Na época ele era casado, e nós tínhamos uma
ligação muito grande pelo trabalho. Eu naquela época era muito “workaholic”, e tava
procurando o caminho da arte pra voltar pra dentro.
Eu desenvolvia um trabalho de qualidade de vida nas empresas e levava arte.
Nisso, eu fui me transformando e me conhecendo através da arte.
A gente tinha uma ligação muito forte. Inclusive, tem aquele negócio, sabe
aquilo de observar meia hora a mais? Você via que não ia dar certo. Mas, eu era
muito empolgada. Foi muito bacana, tal, daí ele se separou, namorou uma outra
pessoa, com outra, com outra, e numa hora deu química e a gente teve uma
aproximação. Era aquela coisa: ai que bom os dois artistas, ai a gente vai ter o mesmo
atelier...Eu tinha uma amiga que dizia: “-helloooo, isso não existe”. E eu dizia que
comigo ia ser diferente. Enfim, a gente começou a se dar bem.
Como a gente já se conhecia, tínhamos vários amigos em comum aparentemente
isso é bom e ao mesmo tempo não é, porque tem uma certa invasão, e ao mesmo
tempo todo mundo curte muito, e essa foi uma temporada muito boa.
Nós tínhamos uma diferença de idade grande, de quatorze anos, e por eu ser
bastante expansiva começou a surgir os ciúmes. Eu sempre tive esse jeito de falar
muito com a mão e toda a minha família é assim, e ele começou a invocar com isso.
Então, eu pensei: “é com isso que eu vou viver?”. E, começaram as desavenças.
Voltando para o começo, a gente foi fazer uma viagem de lua-de-mel, muito
bacana para a Bahia que a gente foi de carro...não, a gente foi primeiro pra Nova
Iorque e depois fizemos uma viagem de final de ano de carro que foi muito bacana.
Ele era extremamente organizado e organizou toda a viagem que foi linda e
maravilhosa. Eu já sou só organizada espacial, é tudo na cabeça. Mas, enfim nós
ficamos vinte dias viajando e foi maravilhoso, uma lua-de-mel.
Até então, era cada um na sua casa. E na viagem nós começamos a pensar como
seria difícil ficar longe. Engraçado, né? Como a gente se mistura...e, foi aí que
começou a surgir a possibilidade da gente morar junto e começar uma vida em
comum, como casal. Ao mesmo tempo isso assustava porque era o terceiro casamento
dele, e ao mesmo tempo era instigante, sei lá, acho que pela diferença de idade. Era a
minha primeira experiência de morar com alguém e eu fui.
Agora tinha uma coisa, eu sempre pensava em não casar. Eu nunca namorei
muito, não é isso, o que me assustava era aquele cotidiano de todos os dias acordar e
estar junto, e ser uma meleca e não ter tempo de distanciar e sentir saudades e
perceber o potencial do outro porque tudo vai se misturando no cotidiano. Eu não
podia nem ouvir falar em casamento.
Entrevistador: Antes dele?
Entrevistado: É, tudo isso antes dele. Mas, aí eu pensei que ele era artista e tinha
uma cabeça mais leve...tá bom... hãhã ( com expressão sarcástica).
E a gente começou a ensaiar de ir morar junto.
A idéia era de eu ir morar na casa dele que tinha mais infra, era uma casa
enorme e tal. Aí eu comecei a levar as minhas coisas aos poucos até pra experimentar.
Daí, começamos a ficar juntos nos fins de semana, e depois durante a semana.
Quando eu vi já tinha levado meus livros. Eu estava indo aos poucos. Depois de um
tempo, quando eu levei o meu computador eu vi que não ia dar a relação, mas eu
insisti, e eu vi que ele não dava conta de se relacionar com a intimidade apesar de ter
sido casado duas vezes.
Era uma história muito louca do computador com essa “neura” de ciúmes. Ele
queria saber com quem eu me correspondia, queria saber dos meus ex-namorados, e
eu pensava que a vida era daqui pra frente, lá de trás já foi. Não sei se ele era assim
por conta da descendência dele, por ele ser judeu e pensar que o mundo está contra
ele. E, ainda nos dois casamentos ele foi traído. Ainda tinha um detalhe, que um filho
de um dos casamentos ele não assumiu por que ele já estava separado da esposa, um
rolo assim com uma separação drástica. Mas, eu pensava que um homem que não
assume um filho não aceita nenhuma mulher.
Entrevistador: Isso você percebeu ainda vivendo com ele?
Entrevistado: Não. Era assim, eu percebia, mas não pensava sobre isso. Hoje a
distância facilita isso e na terapia eu fui descobrindo, pensando.
No episódio do computador, era uma coisa que hoje eu sei que a gente podia ter
falado, visto isso. Mas, eu não senti espaço. Mas, ele tinha crise, e dizia que não
queria mais aquilo.
Entrevistador: Aquilo o que?
Entrevistado: Morar junto. E aí eu topei voltar pra casa. Mas, logo a gente
voltou porque tinha tanta coisa bacana: a gente tomava café juntinhos, lia na cama, ele
fazia ovo frito do jeito que eu gostava, os dois adoram cinema e não tinha tempo ruim
pra um monte de coisas, a gente andava de bicicleta juntos e tinha muitas coisas
maravilhosas. E no fim da relação eu pensava: “cadê aquela pessoa?”. Porque quando
ele se transformava era uma coisa horrível.
Entrevistador: No que ele se transformava?
Entrevistado: Nossa, o ciúme dele era gritante. A gente estava conversando, e
daí entrava alguém e ele já pensava que eu tava olhando pra alguém...era uma coisa
alucinante.
Hoje eu lembrando de tudo eu concluí que na época eu não registrava as
agressões verbais, e com muita facilidade eu passava por cima e aquilo não ficava
trabalhado nem por mim nem por ele.
Entrevistador: Porque você acha que passava por cima?
Entrevistado: Tudo pode ser resumido numa música do Cazuza que diz: “eu
sonhava acordada com medo de sentir dor”. No dia que eu ouvi essa música e me fez
sentido, eu fui pra terapia.
Eu tenho um histórico familiar com isso, na minha família todos falam as coisas
e é um vulcão, falam tudo o que pensam, mas depois não se conversa sobre o que
aconteceu, não se pergunta se ficou alguma rachadura na relação, não existe isso.
Depois todos agem como se nada tivesse acontecido e dito. Coisa de vulcão. E eu
aprendi a viver assim, e hoje vejo a importância de sentar, de olhar, de conversar, de
confessar que pisei na bola. Eu acho que eu levei esse hábito pro meu relacionamento,
e nem tinha me dado conta que era assim.
Outra coisa, ele era acadêmico e eu não tive mais paciência de estudar. Mas,
nessa coisa acadêmica dele eu me senti despotencializada perto dele, ele me fazia
sentir isso. Sempre faltava alguma coisa em mim. Teve um momento da relação que
eu não ficava à vontade de encontrar os amigos pensando em como ele ia reagir, e eu
sou inteira de abraçar e beijar os outros. A minha mãe é tímida, mas eu não sou a
minha mãe. E, lógico eu já não estava ficando natural, e algumas pessoas próximas
notaram isso. E nós éramos vistos pelas pessoas como o “casal exemplo”, e com isso
muitas pessoas sofreram quando a gente se separou. Eu não era de dizer pro outros:
“gente, ferrou!”. Eu não contava pros outros o que acontecia entre nós.
O que a gente viveu no final era uma aparência de vazio, havia um vazio entre
nós em que a gente não estava confortável, e a gente não dava conta de falar sobre
isso e esclarecer. O que ficava na cabeça dele era buscar saber como eram os meus
relacionamentos anteriores. Era uma doença, ele era louco porque de madrugada ele
me acordava perguntando dos meus ex. E a coisa foi crescendo tanto que eu propus
uma terapia de casal, mas ele queria ir na minha terapeuta. Ele queria era saber das
minhas coisas e isso me desagradava. Olha o controle aí (risos).
No trabalho com empresas eu aprendi uma coisa muito importante. Porque eu
tenho muita facilidade em contactar uma pessoa com a outra, e eu nem percebia que
isso era uma qualidade. Então, como ele estava de saco cheio de dar aula na USP eu
comecei a vender o homem nas empresas, falava muito bem dele, ressaltava as
qualidades dele. O que eu fazia era dar o que eu conquistei para o outro, pra ele.
Então, eu passei a ser a agente dele, levei ele nos meus clientes, ou seja, no meu
espaço, no meu jeito, e tudo virou ele. Eu coloquei muita luz nele e apaguei a minha,
e achava tudo lindo. Eu peguei as minhas “jóias” e dei pra ele. Mas, não é problema
você dar, mas tem que haver troca.
O relacionamento virou uma meleca, cada dia ele foi me sufocando mais, e nós
nos separamos umas três vezes. E cada vez ele arrumava uma namorada e ficava com
aquele monte de amigos separados. E eu dizia pra ele que a gente se gostava mesmo
com as diferenças, e que a gente tinha também um monte de coisas em comum.
Quando eu via ele com mulher, ao invés de eu olhar aquilo de frente e pensar
que não era com uma pessoa como aquela que eu queria me relacionar, pelo contrário,
eu me sentia muito mal. A baixa estima era “elevadézima”, eu não me sentia eu com
as minhas potências. Mais uma coisa que não me agradava.
Eu demorei pra me dar conta de tudo que eu passei. Eu, nas minhas relações eu
vou até o fim, até o fundo explorando todas as possibilidades, e quando eu vejo que
ok, eu fui até o fundo, aí eu posso desistir.
Eu lembro de uma coisa que foi quando o meu pai estava muito mal, e eu estava
em Porto Alegre e ele estava aqui, e com o meu pai doente ele entrou numa crise de
ciúmes, e eu sofrendo com o meu pai ele gritava no telefone: “Me conta, onde mora o
seu ex-namorado?”. Era uma coisa louca porque ele foi traído nos outros
relacionamentos e eu acho que ele ficava com medo de ser traído de novo.
Eu conheci e era amiga da ex-mulher dele e ela me dizia que só conseguia estar
com ele porque ela berrava mais que ele, mas eu não queria berrar, eu não queria isso.
Eu tinha a ilusão que ele podia melhorar, e não sabia bem como sair da história.
Um dia, nós fizemos um workshop de integração em uma empresa e ele estava
puto com alguma coisa e não me olhava na cara. E eu pensava: “Como assim? A
gente está fazendo uma integração e ele não me olha”. Foi um “mico” porque ele
estava estressado e ele perdeu o controle dos alunos e foi o maior “mico” da minha
vida porque eu que vendi o cara.
Um belo dia eu comecei a me olhar e eu tinha envelhecido, comecei a engordar
como uma porca, insatisfeita, infeliz, e isso não é relacionamento. Amor não é igual a
sofrimento, pode ser tudo, um monte de coisas, mas não só sofrimento. Eu acho que
no casal os dois são diferentes e leva um tempo pra se acostumar e lidar com as
diferenças e se aproximarem, mas aquilo não era vida.
Eu lembro que um dia eu tava fazendo uma tela enorme de seis metros e estava
toda feliz, e ele veio de novo me perguntar dos meus relacionamentos, e eu fui
embora. Foi tão significativo o que aconteceu depois...Eu lembro que peguei o carro e
fui dar ré, e o vidro de trás não tem proteção, não tem aquele borrachão no vidro e eu
bati numa quina, e eu olhei no retrovisor aquele vidro estilhaçado e pensei: “Nossa,
acabou mesmo”. Foi uma coisa assim...gente, o que que é isso? E acabou de vez. Daí
ele alucinou, ele me deu tanto problema depois que acabou. Ele foi num lugar dizendo
que eu roubei o projeto que eu tinha feito, e tive que botar advogado porque eu não
queria mais falar com ele e nem vê-lo.
A Danuza Leão escreveu na coluna dela sobre o que faz um amor não dar certo:
a “mulherzisse”. A pessoa liga pra outra umas dez vezes por dia, e depois não tem
assunto, mistura trabalho, tira satisfação. E isso ele fez muito.
Eu não sentia liberdade em convidar os amigos pra ir em casa. A gente fez uma
festa de aniversário juntos, porque era próximo o meu do dele. Foi tão interessante
porque todos os meus amigos sabiam que era aniversário dos dois, mas os amigos
dele só sabiam do dele, ou seja, ele só falou dele. Foi de um egoísmo...e, as pessoas
ficavam constrangidas ao saber que era festa dos dois.
Depois eu perguntei o quê que foi, o que aconteceu? E ele disse que achava que
não precisava dizer. Aí eu pensei que ele não dava conta de dividir, de compartilhar, e
claro que era uma pessoa com problemas seríssimos. Mas, depois que dava pra ver.
Em exposições ele brigava por causa de pregos, por causa de martelo em uma
exposição coletiva, que tudo é coletivo, então ele não ia dar conta de morar junto.
Mas, eu não enxergava. Eu só conseguia pensar assim: é algo muito mais forte, que
tinha dor que vai te dilacerando, vai te consumindo se você não tem força pra dar
aquele salto e falar: “Não é isso”. E eu não tinha forças, é incrível pensar nisso agora.
Eu vivia com um homem extremamente intelectual, que a biblioteca dele pegava todo
este espaço, mas que não sabia viver a dois.
Aconteciam uns barracos de vez em quando que a gente pensa que é só em
favela, mas que acontecia na praça Panamericana onde a gente morava. Era uma coisa
tão louca que me dava vergonha de dizer que ele berra, grita, xinga...Isto existe sim e
era apavorante que eu nas brigas levantava do jeito que eu tava pegava o carro e ia
embora, do jeito que ele saía do eixo. Ele tinha uma neurose, que como ele é muito
intelectual, então a mente dele era muito poderosa e ia o raciocínio dele, e ia, ia e ele
não conseguia parar e pensar que ele estava fora do eixo. E eu pensava que naquele
ponto não era amor. Mas, eu não dava conta de tomar uma atitude até que chegou a
última vez e foi a última vez.
Eu vi um filme muito rápido na minha cabeça em que eu tinha cem anos de
idade, estava desdentada e dizia: “Ai, agora a gente tá junto” e depois, “Ai agora a
gente tá separado”. E aí deu, deu. Isto me deu uma força tão grande para me decidir.
Engraçado que com as amigas que tinham namorado ciumento eu falava: “-Mas,
que mico é esse que você ta passando? Pra quê que você quer esse homem? Pra quê
que você quer esse trambolho?”.
Eu me sentia culpada, porque ele me fazia acusações e eu estava nesse oco, e ele
dizia que sempre faltava algo em mim para estar com ele, e eu não consegui olhar pro
lado e dizer que aquilo não era amor como eu pensei.
No começo sim, foi um relacionamento, foi mágico, foi uma paixão. Outro dia
eu tava lendo um livro de um iogue que ele falou uma coisa que foi a melhor tradução
de paixão. Ele dizia que na paixão você ingere uma droga e promete coisas, e diz
coisas enquanto está drogado, o outro te cobra o que você disse, mas a droga já foi
embora pra você e o outro pode ainda estar drogado e te cobra o que você prometeu e
falou, mas a droga já foi embora, já passou, e você não consegue corresponder. No
começo sim, os dois correspondem. No nosso começo foi uma coisa muito linda, e ele
dizia que eu era a melhor coisa da vida dele e que ele aprendeu a agradecer à vida
comigo sem vincular isso à religião. Então, nós vivemos um momento mágico
brilhante, mas isso não é o cotidiano. O início foi muito lindo, aquele homem que
trazia café na cama e fazia ovo do jeito que eu gostava, mas cadê aquele homem?
Hoje eu não quero encontrar um príncipe encantado, eu quero um desencantado
porque tem uma hora que desencanta. O que me encantava nele era a coisa dele ser
artista, os flashes da inteligência dele, dele ser articulado, e isso ficou tão maior que
eu não via a dificuldade dele se relacionar e era tudo muito lindo. Eu via com o
Henrique a possibilidade de ser um igual porque ele era muito solto: “Ai que bacana
um igual à mim, que tudo, que belo!”.
A inteligência ao mesmo tempo encantava e aprisionava. Foi horrível porque eu
percebi que ele era uma biblioteca ambulante, ele foi um ótimo professor na arte. Na
nossa separação, neste processo, eu fiz uns trabalhos e deslanchei, foi um sucesso, e
ao mesmo tempo, uma aluna dele ganhou um prêmio de arte e ele não ganhou nada e
ele não gostou. Tinha esta mistura de ficar abaixo.
Nas nossas discussões ele usava umas palavras que não se usa no cotidiano e eu
dizia: “-Pára com isso”.
Então, o que me encantou foi o que me desencantou e foi o que me fez acordar.
E depois eu tive muitos problemas com ele como o que eu te falei e não quis mais
falar com ele, e nunca mais falei com ele porque ele é uma pessoa que não dá nem pra
pegar na mão hoje.
Eu no final fiquei um trapo, agora fiz umas comparações que não podia dar
certo mesmo nós dois...Eu sempre larguei meu carro na rua, pôxa pode ficar na rua e
até hoje meu carro fica na rua, e ele tinha o controle remoto disso, daquilo, alarme,
fios de segurança, trancava a porta de um jeito, de outro, nooosa, que engraçado essa
cena agora. Era uma coisa pra entrar naquele castelo, sabe? Não ia dar certo mesmo.
A segurança não era essa, mas a que um dava pro outro, e não tinha isso mais.
Bom, do vidro lá...quando eu olhei o vidro estilhaçado eu realmente vi a minha
vida na famosa mistura do trabalho. Eu comecei a me perguntar quem eu sou, o quê
que eu vou fazer da minha vida e o que restou de tudo isso? Eu pensei: “Eu vou
conseguir grudar isso?” Não vou conseguir. E foi muito interessante porque a
seguradora não conseguiu vir no dia e foram três dias pra arrumar um vidro! Três dias
eu fiquei com o carro enfiado no estacionamento, e se nisso tá difícil imagina como
eu estava.
Eu levei muito tempo pra ir me organizando, arrumando isso, vendo o que era
meu, o que era dele porque muita coisa eu peguei dele. Teve um momento que eu
fiquei com muita dó de mim por que como um ser humano deixa o outro fazer isso
com a sua vida? Eu via que eu era extremamente potente pra trabalhar e fazer as
coisas, no trabalho eu nunca me senti inferior a nada, e que diferença era essa que
você deixa o outro fazer na tua vida? Nesse período do fim eu ficava me perguntando
se eu não sabia amar, se não tinha capacidade de amar, então eu tava me perguntando
o quê que era o amor.
Hoje eu quero sim um companheiro, e essa experiência foi boa. Hoje os vidros
foram embora, foi aspirado o carro, foi colocado um novo vidro, e atualmente eu
penso que eu quero um novo relacionamento. No fim da relação você pensa que se
não deu certo com aquele não vai dar com ninguém, o que não é verdade, não é assim.
O que me ajudou muito foi o trabalho.
Eu projetei nele que tudo ia dar certo e toda a minha alegria. E eu vivi com ele a
indisponibilidade dele em se relacionar. E hoje não tem problema nenhum você não
estar com alguém, porque eu estava com ele e estava sozinha.
Um dia eu o encontrei numa exposição, e eu só vi a camisa dele, tinha muita
gente, e eu comecei a registrar as agressões e tudo de ruim que aconteceu, e eu resolvi
não falar com ele, e foi a única vez que eu o encontrei e não quis mais saber. Naquela
época eu estava com raiva de mim por ter deixado ele fazer aquilo tudo comigo e dele
por ter feito e dito coisas e colocados mulheres no meio da relação. Isso não é ser
masculino.
Hoje eu não tenho raiva nenhuma dele. Saudades? Nenhuma. Eu aprendi a
registrar as “superindelicadezas” dele. E companheiro não é isso.
Um dia, o meu pai estava bem mal e tocou o celular de madrugada. Só que os
nossos celulares eram iguais, e eu atendi e era uma “gatinha” e ele ficou embaçado. E
esse foi um dos pontos de que eu não gostei.
A gente se ligava na briga, o que eu percebi com a terapia depois de me separar.
E eu detesto brigar, e vinha aquele barraco e depois ficava tudo bem.
No negócio do vidro estilhaçado eu percebi em cada vidrinho o que foi, sabe?
As dores terríveis que eu tive que enfrentar. Foi difícil olhar para uma coisa que era
muito bonita, muito mágica, encantada e depois ver que a gente se ligava pela briga.
Foi louco perceber isso que o negativo nos unia. No início na terapia, ao perceber
isso, eu tinha vergonha de pensar que isso uniu a gente como casal.
A princípio, me vem essa coisa que eu tinha uma educação rígida, em que não
existia a coisa de confidenciar para o outro o que você está sentindo, a minha avó
viveu em tempos de guerra, porque podia ser um inimigo que estava do seu lado e era
muito terrível não compartilhar para não ficar na mão do outro. Profissionalmente
isso é verdade, é um ou outro relacionamento profissional que você pode aprofundar.
Nos meus relacionamentos eu consigo encontrar no outro uma qualidade, mas
hoje pra mim nem todo mundo é tudo. Esta sou eu que consigo ver qualidades no
outro que ninguém enxerga. Nas empresas eu tenho que ver que a produção artística
das pessoas está no abstrato, eu tenho que ver o melhor de cada funcionário naquela
hora e naquele trabalho, mas aí eu esqueço que isso é na minha atuação profissional.
Esse é o meu olhar artístico e não dá pra ser nas relações diárias isso. Outro dia uma
pessoa me disse: “Pára com essa mania de pensar que todo mundo é bonzinho”.
Então, quando eu digo que eu projetei é porque eu botei muita luz nessa relação.
Pois é, não vou ser piégas porque o fim doeu pra burro, e no início eu me fechei
pro mundo, e agora eu já comecei a olhar, e eu acho que eu tinha que ter esse luto
mesmo. É solitário esse caminho, é que nem uma produção de uma obra em que você
não sabe aonde a obra vai te levar, você tem uma leve idéia, mas a obra é que vai te
levando no teu mergulho.
Então na obra você pode tirar o máximo, e no relacionamento você tira o
máximo, mas tem que ter o laço que foi por onde começou a conversa. Quando acaba
esse elo não dá porque o outro tem que estar disponível, o outro precisa sair do lugar e
estar disponível para se relacionar.
Foi legal passar por esta crise porque eu passei a olhar tudo diferente que o
outro tem que estar junto também, o outro tem que participar também. Mas, enfim, foi
essa a história.
D. Termo de consentimento livre e esclarecido
.
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