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ARTUR RIBEIRO CRUZ
Primeiras Estórias e o filme A Terceira Margem do Rio: estruturas artísticas e
consciência possível
Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Campus de
São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em
Literaturas de Língua Portuguesa (Área de Concentração:
Imagem, Música e Texto Literário).
Orientador: Prof. Dr. Antonio Manoel dos Santos Silva
São José do Rio Preto
2006
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COMISSÃO JULGADORA
Titulares
Prof. Dr. Antonio Manoel dos Santos Silva (orientador)
Prof. Dr. Alvaro Luiz Hattnher
Prof. Dr. Romildo Antonio Sant’Anna
Suplentes
Profa. Dra. Rosangela Marçolla
Prof. Dr. Sérgio Vicente Motta
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Para Marcos e Roseli
AGRADECIMENTOS
Ao amigo-professor Antonio Manoel: sua sensibilidade e competência na arte de ensinar são o
ideal a ser buscado em minha vida profissional.
A meus queridos irmãos, Lívia e Lucas: o amor de vocês sempre me renova.
À amiga Daniela: nossa troca de experiências, parceria em palestras e mini-cursos, bate-papos
e ansiedade compartilhada foram essenciais em meu desenvolvimento acadêmico.
Ao professor Alvaro Luiz Hattnher, que acompanhou este trabalho desde o pré-projeto e
contribuiu com muitas observações pertinentes e sugestões de leitura.
Ao professor Sérgio Vicente Motta, pelas prestativas observações no Exame de Qualificação e
pelo acompanhamento no estágio-docência.
A Nelson Pereira dos Santos, que de maneira simpática e atenciosa respondeu-me algumas
perguntas em uma breve, mas inesquecível, conversa durante sua visita a São José do Rio
Preto em 2004.
Aos amigos que me incentivaram; em especial, Eduardo e Víctor, pela convivência sadia e
apoio bem-humorado.
Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação e da Biblioteca, pelas orientações.
À Capes, pelo apoio financeiro.
As necessidades humanas estando ligadas por
natureza ao aspecto qualitativo dos objetos,
ocorre que o reaparecimento na consciência
dos homens das relações qualitativas com as
coisas e com os outros homens seja ao mesmo
tempo, ao menos do ponto de vista formal,
um retorno aos valores arcaicos, mas também
orientação real e essencial para possibilidades
de desenvolvimento humano no futuro.
Lucien Goldmann, Crítica e dogmatismo na
cultura moderna, p. 95
Conto, para o senhor conhecer quanta espécie
de causa, no mover da mente, no mero da
tragagem de guerra.
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, p.
602
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................................8
1. FUNDAMENTOS PARA UMA COMPARAÇÃO ..................................................................16
1.1. A arte e a comparação entre as artes ...................................................................................16
1.2. Uma abordagem inter-semiótica do cinema ........................................................................21
1.3. Abordagens estruturais da narrativa ....................................................................................23
1.4. O texto cinematográfico ......................................................................................................26
1.4.1. A montagem ...................................................................................................................27
1.5. Do estético ao sociológico ..................................................................................................30
2. ESTRUTURA ESPECULAR EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS .....................................................35
3. DA UNIDADE À DIVERSIDADE ...........................................................................................52
4. “SEQÜÊNCIA”: UMA VIAGEM DE RETORNO AO SER ....................................................65
5. ANÁLISE COMPARATIVA ....................................................................................................79
5.1. Premissas da análise ............................................................................................................79
5.2. Quadro das seqüências narrativas do filme A terceira margem do rio ...............................85
5.3. A terceira margem entre o sertão e a cidade .......................................................................87
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................101
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .........................................................................................105
RESUMO
O objetivo deste trabalho é a análise comparativa entre Primeiras Estórias, publicado
por Guimarães Rosa em 1961, e o filme A terceira margem do rio, produzido em 1993 por
Nelson Pereira dos Santos, com base em cinco contos do livro de Rosa. Pretende-se
demonstrar alguns dos aspectos estético-semióticos que envolvem o processo de adaptação do
texto literário para o texto fílmico, o que implica a definição do grau de aderência, de
afastamento e de interferência resultantes desse processo. Em primeiro lugar, identificamos
em Primeiras Estórias uma estrutura especular a partir de relações significativas entre os
tecidos narrativos dos contos “O espelho”, “As margens da alegria” e “Os cimos”, em função
de um jogo com a posição dos respectivos contos no livro. Em segundo lugar, feitas as
interpretações sobre essa estrutura em relação aos demais contos, levantamos a hipótese de
que o filme se compõe segundo uma transmutação da estrutura especular do livro de Rosa.
Articulada à unidade narrativa que Nelson Pereira dos Santos deu às cinco narrativas em que
se baseou, transformando seus núcleos de ação independentes numa única história no filme,
essa transmutação confere ao filme sua autonomia criativa. Finalmente, aplicando os
conceitos da sociologia estruturalista genética de Lucien Goldmann (1978, 1990),
trabalhamos com a hipótese de que a diferença entre as formas das obras é decorrente de
distintas consciências possíveis de grupos sociais.
Palavras-chave: Cinema, Literatura, Guimarães Rosa, Nelson Pereira dos Santos,
Transcodificação, Consciência Possível.
ABSTRACT
This work aims at comparing the short-stories book Primeiras Estórias [First Stories],
published by Guimarães Rosa in 1961, to the film A terceira margem do rio [The third bank
of the river], which was filmed by Nelson Pereira dos Santos in 1993, based on five short-
stories from Rosa’s book. We intend to demonstrate some of the aesthetic-semiotical aspects
that involve a transcodification process from a literary text into a filmic text. The analysis
implies the definition of the degrees of adherence, deviation and interference resulting from
that process. Firstly, it was identified in Primeiras Estórias a structure of mirror through the
significant relations among the narrative tissues of the short-stories “O espelho”, “As margens
da alegria” and “Os cimos”, because of a play on the position of the respective short-stories in
the book. Secondly, as we proposed the interpretations about that structure in relation to the
other short-stories, we suggested the hypothesis that the movie was organized by a
transmutation of the mirror structure from Rosa’s book. This transmutation is articulated to
the unity that Nelson Pereira dos Santos gave to the five narratives on which the movie was
based, putting together the five independent action nuclei from the short-stories into a single
story in the movie. As a result of this composition, the movie reveals its creative autonomy.
Finally, we applied the concepts of Lucien Goldmann’s genetic structuralist sociology (1978,
1990) to state the hypothesis that the difference between the forms of the works, the short-
stories and the film, is due to distinct possible consciousness of social groups.
Keywords: Cinema, Literature, Guimarães Rosa, Nelson Pereira dos Santos,
Transcodification, Possible Consciousness.
Introdução
No cenário da Literatura Brasileira do Século XX, a obra de Guimarães Rosa talvez
seja a que mais tenha atraído e fascinado a crítica. Por ter o autor alcançado o status de
clássico precocemente, o pesquisador Willie Bolle (1973) afirma que a apreciação de sua
vasta obra chegou até a cair no lugar-comum do panegírico ou do elogio, o que, segundo o
mesmo Bolle, levaria a uma crítica de “artigo de exportação”.
O impacto da arte do escritor mineiro se deu logo com a primeira obra, Sagarana
(1946), sobre cujo processo criativo Rosa escreveu:
Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já
tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas,
modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições —
no tempo e no espaço (...) De certo que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a
mãe severa, mas como a bela amante e companheira
1
.
Ainda estavam por vir, após um silêncio de dez anos, as obras-primas Corpo de Baile
e Grande Sertão: Veredas, em que Guimarães Rosa aprofunda-se no ideal da linguagem
adequada e original (que é o mito de toda e qualquer atividade literária), e se digna a receber
de críticos o epíteto, entre outros, de bruxo ou de feiticeiro da linguagem.
Percebe-se que houve, não só pela crítica, mas também por parte do autor, o desejo de
afirmar e preservar o caráter de enigmatismo a ser desvendado na obra. É notável que ao falar
sobre seu trabalho e sobre si mesmo em cartas e nas poucas entrevistas que concedeu — veja-
se especialmente a entrevista a Günter Lorenz (em COUTINHO, 1983) —, Rosa muitas vezes
se expressou de forma vaga, utilizando seguidas metáforas, e sempre ressaltando a primazia
dos valores metafísico-religiosos transfigurados em suas ficções, aspecto esse cuja descoberta
1
Transcrição de trecho de carta de Guimarães Rosa a João Conde contida no livro Relembramentos: João
Guimarães Rosa, meu pai, de Vilma Guimarães Rosa, 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999, p. 377.
e fruição seriam a recompensa dos esforços do leitor, ao concordar em vencer as barreiras do
texto hermético.
Na correspondência com tradutores e com amigos, o autor abriu ligeiramente o leque
da complexidade de sua criação e revelou um pouco de sua impressionante consciência do
trabalho com a linguagem; mas, geralmente, Rosa manteve a postura de menos revelar que
obscurecer, buscando promover, ao que parece, um jogo de quebra-cabeças para leitores e
crítica, e contribuindo para criar uma aura de mistério em torno da obra e de sua
personalidade.
Contudo, ao lado do desafiador estudo dos aspectos estilísticos e do substrato
metafísico da literatura de Guimarães Rosa, importa, para uma compreensão integral de sua
obra, verificar a forma com que elementos de estrutura sócio-histórica, em certa medida
obliterados pelo autor e por alguns críticos, integram-se à sua estrutura artística. Consoante a
esse interesse crítico, Bolle assinalou a necessidade, especificamente em relação ao Rosa
contista, de “verificar em que medida seus contos apresentam a sociedade na qual viveu e
conhecer os processos narrativos empregados para estruturar, a partir de certos dados da
realidade, um modelo literário da sociedade brasileira” (Bolle, 1973, p. 13).
E se o interesse citado acima motivasse não apenas críticos, mas também outro artista
consagrado, que se ocupasse de uma releitura de textos literários num outro código artístico,
focando-se primordialmente nos elementos de conteúdo sócio-histórico manifestados pela
forma da obra? Pois esse interesse produtivo parece ter sido o motor do filme realizado por
Nelson Pereira dos Santos com base no livro de contos Primeiras Estórias, de 1962.
No cenário de nossas produções artísticas são famosas e em grande número as leituras
cinematográficas de obras consagradas da literatura. Um diretor que se destacou com esse tipo
de trabalho e que parece apreciar sobremaneira o processo de transformar textos literários em
filmes é Nelson Pereira dos Santos, um dos ícones do Cinema Novo. Levando na bagagem
filmes baseados na obra de Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1962, e Memórias do Cárcere,
1984), Machado de Assis (Azyllo muito louco, 1969) e Jorge Amado (Tenda dos Milagres,
1977, e Jubiabá, 1986), o diretor se lançou ao desafio de trabalhar com textos de Guimarães
Rosa, especificamente cinco contos do livro Primeiras Estórias. Desse desafio resultou o
filme A Terceira Margem do Rio, produzido em 1993, a fim de concretizar, segundo o
cineasta, um forte desejo de trabalhar com o conto que dá nome ao filme, cuja leitura o havia
impressionado fortemente. A seguir, transcrevo a sinopse do diretor, impressa na capa da
versão em VHS, de distribuição da Riofilmes e Sagres Vídeo (1994):
Um homem abandona a casa, a mulher e os filhos para viver isolado numa canoa, no
meio do rio. Jamais volta a pisar em terra firme, nunca mais aparece a ninguém.
Desde que li Primeiras Estórias, em 1962, fiquei particularmente impressionado por
esse conto. Para melhor adaptá-lo misturei outras quatro estórias (...) Por que o
homem abandona a família e vai viver no meio do rio? São indagações que não
procurei responder. Talvez a terceira margem do rio seja o que todo mundo procura e
não sabe o que é. Quis mostrar que talvez exista uma terceira margem para o Brasil,
entre o velho e o novo.
Podemos afirmar que os filmes baseados em textos literários seguem basicamente duas
linhas opostas. Numa primeira, caracterizam-se por um viés de busca de semelhança,
efetivando, dentro das viabilidades e particularidades do código, a maior aderência possível
em relação ao texto-base. A mediação do código cinematográfico e da consciência de outro
artista evidentemente transforma a obra literária em outra distinta; no entanto, os filmes feitos
com o objetivo de similaridade ao texto literário podem concretizar com certo sucesso uma
confluência de enredo, de caracterização de ambientes e personagens e até de elementos
metafóricos e simbólicos. Isso é o que ocorre, por exemplo, no filme Outras Estórias (1999),
de Pedro Bial, também baseado em contos de Primeiras Estórias. Em contrapartida, e aqui
nos referimos à segunda linha condutora, há filmes que se caracterizam pela autonomia
criativa em relação aos textos-base, fundamentada numa releitura crítica e transformadora do
texto literário. O filme de Nelson Pereira dos Santos enquadra-se nessa segunda modalidade,
apresentando notável caráter de interferência criativa em relação aos contos em que se baseia,
destacando-se, num primeiro momento, o fato de que cinco histórias independentes foram
transformadas em uma única história no filme.
Nesse processo de transformação está o problema central do presente trabalho.
Visamos ao estudo comparativo entre o livro de contos Primeiras Estórias e o filme A
terceira margem do rio com o interesse de explicitar alguns dos aspectos de transcodificação
e interferência verificáveis na transformação do texto literário em texto cinematográfico. No
sentido de uma abordagem geral de nossos objetos de estudo, partimos de conceitos de
comparativismo estético, com base em Etienne Souriau (1965), e inter-semiótico, com base
geral em Iuri Lotman (1978).
Souriau apresenta em Correspondencia de las artes (1965) conceitos de grande
abertura para o estudo das obras de arte. Primeiramente, o conceito de arte de primeiro grau
e arte de segundo grau, segundo o qual os objetos artísticos podem ser classificados em dois
níveis a partir do trabalho com qualidades percebidas pelos sentidos, às quais Souriau se
refere pelo termo qualia. Segundo a sistematização de Souriau, as artes de primeiro grau são
as que se realizam na imanência mesma das qualidades sensíveis, sem representação de algo
mais que não seja a composição sensível. As artes de segundo grau são aquelas em que a
organização estética dos elementos sensíveis pela qual a obra se dá a conhecer (existência
fenomenológica) projeta ou evoca um universo, um cosmos (existência reica ou projetiva),
que extrapola aquela. O fato de literatura e cinema serem artes de segundo grau implica, num
primeiro momento, a possibilidade de traçar uma homologia entre o texto literário e o
cinematográfico, mesmo em face de códigos de manifestação de natureza distinta.
O teórico Iuri Lotman, por sua vez, compreende que toda obra de arte,
independentemente da qualidade sensível em que se baseia, é estruturada conforme os padrões
lingüísticos. Portanto, para Lotman, a obra cinematográfica que segue ou adapta outra obra de
arte, como um romance, um drama ou um conto, transcodifica em segundo grau, de modo que
a mensagem seja produzida por meio da justaposição de unidades mínimas de significação, de
forma similar à estrutura das línguas naturais. Porém, surge aí o problema da definição clara
dessas unidades e sua sistematização, problema deixado explícito pelo próprio Lotman:
Cria-se no cinema uma situação original do ponto de vista semiótico: um sistema ao
qual se quer aplicar a definição clássica da linguagem deve possuir um número finito
de signos que se repetem e que podem ser representados a todos os níveis por feixes
de traços diferenciais ainda menos numerosos. Afirmar que os signos da linguagem
cinematográfica e os seus critérios semânticos-distintivos podem muito bem
constituir-se ad hoc, é contradizer essa regra (LOTMAN, 1978, p. 65).
Em última instância, Lotman defende a montagem como princípio fundamental do
cinema que permite a similitude com os processos verbais de narração. Isso o faz relevar,
entre outros aspectos, a importância dos elementos não figurativos do filme (o som),
considerando-os secundários e subalternos à imagem.
Tendo em vista a complexidade dos meios expressivos do cinema, torna-se necessário
remetermo-nos às teorias que se ocupam de estabelecer um conjunto de referências para uma
linguagem cinematográfica. Dessa maneira, pode-se compreender o modo com que os meios
próprios ao cinema podem recuperar homologamente técnicas literárias, ou, ainda, verificar a
existência de recursos expressivos totalmente autônomos, ou seja, aquilo que só pode ser
expresso pelo cinema. Nesse sentido, consideramos fundamentais os textos de Jacques
Aumont (1995, 2001), Marcel Martin (1963) e Guido Logger (1959), ocupando-nos, segundo
a necessidade e a pertinência em nossa análise comparativa, dos seguintes componentes do
texto cinematográfico:
1. Em termos criativos: a Direção e a Montagem.
2. Em termos de texto cinematográfico:
2.1.Componentes dramáticos: décor, iluminação, personagens.
2.2.Componentes plásticos: Planos, Cenas e Seqüências; ligações (cortes,
cortinas, raccord, etc.); angulações; movimentos.
2.3.Componentes estético-sonoros: diálogo, música, ruídos.
Tomando o processo da transcodificação cinematográfica por outro viés, deve-se
considerar que a maioria das obras envolvidas enquadra-se no rol de mensagens narrativas —
é o que acontece com nossos objetos de estudos. Posto isso, é possível traçar caminhos
comparativos por meio da narratologia, contrastando aspectos importantes da forma do
conteúdo segundo as categorias delimitadas pelos teóricos dessa linha. Aplicamos, portanto,
conceitos que dizem respeito à organização das ações nos mundos criados ou evocados nas
narrativas literárias e fílmica, baseados de modo geral nos textos de Claude Bremond (1971) e
Gerard Genette (1979). Além desses, aplicamos, também, para o estudo específico de um dos
contos transcodificados, o modelo de análise da forma do conto maravilhoso proposto por
Propp (1978).
Nosso objetivo último é a aplicação do método proposto por Lucien Goldmann
nomeado sociologia estruturalista genética, que tem em seu fundamento a idéia de que, por
meio do artista, os verdadeiros sujeitos das criações artísticas são os grupos sociais; segundo
essa afirmação, deve-se entender que a obra revela sua validade estética na medida da
coerência com que realiza a mediação formal das estruturas mentais, ou da visão de mundo,
de um determinado grupo social. Nesse sentido, o artista é o indivíduo excepcional
responsável por criar um universo imaginário, cuja estrutura responde à consciência possível
de um grupo, esta entendida como os valores afetivos não conceitualizados a que esse sujeito
coletivo aspira em face dos problemas levantados pelas relações inter-humanas.
Em termos práticos, partimos da análise das estruturas artísticas dos textos literários e
cinematográfico, focados nas implicações do processo de transcodificação, buscando verificar
a autonomia estética de cada obra. Começamos o trabalho com a hipótese de uma estrutura
especular articulada às figuras simbólicas de margens e centro nos textos de Primeiras
Estórias. Essa primeira hipótese levou a uma segunda, que diz respeito à transmutação
criativa da estrutura acima citada no texto cinematográfico A terceira margem do rio. A
transcodificação de Nelson Pereira dos Santos, somada a outras interferências criativas do
cineasta, acabou por transformar a natureza metafísico-religiosa e de negação das bases
racionais de relação com a realidade subjacentes à unidade compositiva da obra de Guimarães
Rosa, numa obra autônoma, cujo eixo é a representação dialética das relações materiais em
dois universos: o primeiro, rural e arcaico, onde o sagrado é organicamente vinculado ao
modo de vida; o segundo, urbano, em que os valores transcendentes perdem o sentido e se
degradam frente a uma estrutura social baseada nos valores de troca.
Para constatar as afirmações acima, o trabalho foi dividido em cinco capítulos.
No primeiro, discutimos e relacionamos conceitos operatórios das quatro linhas de
abordagem que guiam a pesquisa: a comparativa, a literária, a cinematográfica e a
sociológica.
O segundo capítulo trata da verificação da estrutura especular em Primeiras Estórias
com base em relações entre o conto que está em posição central no livro, “O Espelho”, e os
contos que ocupam suas margens, “As margens da alegria” e “Os cimos”. Por meio da análise
do tecido narrativo desses contos, foram levantadas hipóteses interpretativas que dizem
respeito às coordenadas narrativas que sintetizam a estrutura de todos os 21 contos do livro.
No terceiro capítulo, procede-se à expansão argumentativa dos elementos de síntese
levantados no capítulo anterior, com vistas a comparar a forma do conto curto desenvolvido
em Primeiras Estórias e a forma do romance Grande Sertão: Veredas, colocados, romance e
contos, em perspectiva genética na definição da poética de Guimarães Rosa. Feitas as
interpretações imanentes à obra, relacionamo-la à consciência possível a que o universo
imaginário dessa obra dá forma artística, segundo nossa hipótese.
No capítulo quarto encontra-se uma análise específica do conto “Seqüência”, a fim de
não só exemplificar com mais acuidade uma das variantes narrativas de Primeiras Estórias,
como também demonstrar algumas das implicações da transcodificação de um texto literário
em texto fílmico.
O quinto e último capítulo trata propriamente da comparação entre o texto fílmico e os
textos literários em que foi baseado. O princípio organizador da comparação é um mapa das
seqüências narrativas do filme, a partir do qual se esquadrinharam aderências, afastamentos e
interferências do texto cinematográfico em relação aos textos-base. Em última instância,
verificou-se a autonomia da obra cinematográfica em conseqüência da transmutação
promovida. E, segundo nossa última hipótese, essa autonomia formal revela a consciência
possível de um grupo social distinto ao daquele a cuja estrutura mental Guimarães Rosa dá
forma artística. As diferenças entre as consciências desses grupos dizem respeito a valores
aspirados diametralmente opostos, mas que buscam dar resposta aos mesmos problemas
compartilhados na estrutura social do Brasil contemporâneo.
1. Fundamentos para uma comparação
1.1. A arte e a comparação entre as artes
Dentre várias propostas bem articuladas de abordagem comparativa entre as diferentes
artes, destacamos a de Etienne Souriau (1965), cujos conceitos de grande abertura analítica e
interpretativa acreditamos oferecerem uma base geral e sólida para tratar um dos problemas
centrais abordados neste trabalho: os aspectos estéticos que envolvem a transformação de uma
obra literária em obra cinematográfica.
O esteta francês entende a arte como a “atividade instauradora” ou “sabedoria
instauradora”, referindo-se ao
conjunto de procedimentos, orientados e motivados, que tendem expressamente a
conduzir um ser — será necessário precisar: fictício [...] —, do nada ou de um caos
inicial, até a existência plena, singular, concreta, e que testemunha sua indubitável
presença (SOURIAU, 1965, p. 34).
Daí que Souriau distingue a arte do produto que dela advém, isto é, a arte diz respeito
ao processo de criação de uma obra, desde o estímulo inicial, passando pela intuição de
origem, pela escolha das técnicas e sua aplicação, até o acabamento final. E a arte chega a seu
termo quando vem à existência a obra: ser concreto, único, individual e pleno. Resultado de
uma atividade humana consciente, os objetos artísticos são fruto de múltiplas formas de
atividade, segundo diferentes maneiras da arte promover um ser anaforicamente. Deste modo,
Souriau entende que, para existir, a arte é o que há de comum numa pintura ou numa poesia,
num filme ou numa sinfonia; e é também o que possibilita comparar entre si diversas
manifestações que se denominam artísticas. Por outro lado, os objetos em que ela resulta têm
modos de existência bem específicos.
Arquitetura, música, dança, literatura, cinema, escultura, pintura, etc — essa é a
maneira tradicional pela qual se classificam as obras de arte. Mas no que consistiria a
existência das várias formas artísticas? Souriau argumenta que a pergunta só pode ser
respondida mediante um prévio estudo da morfologia comum a todas as obras, ou seja, por
meio do reconhecimento dos diversos planos que fundamentam sua existência, a partir dos
quais é possível encontrar as razões dessa pluralidade. Então, antes de classificar as obras, o
teórico descobre nelas os seguintes modos de existência: a existência física, a
fenomenológica, a reica ou projetiva e, finalmente, a existência transcendente.
O mais óbvio dos modos de existência da obra de arte, a existência física, refere-se,
como o nome deixa claro, à sua corporeidade física — a obra é um ser concreto e singular,
ocupa um lugar no espaço que nenhum outro corpo ou objeto pode ocupar. Em certas artes, a
presença física é única e definitiva, como acontece com o quadro, a estátua, o monumento, a
obra arquitetônica. Contudo, há obras cuja existência física é múltipla e provisória, como no
caso de uma sinfonia, de uma representação dramática e, em certa medida, de uma obra
literária. A substancialidade física dessas obras se refaz a cada vez que se executam, que se
lêem, a cada vez que se representam. Mesmo que sua presença seja única ou múltipla,
definitiva ou provisória, a obra de arte tem uma presença física; e esse corpo se destina a
sustentar uma combinação de qualidades sensíveis, um jogo de fenômenos, que se apresenta
ao fruidor (leitor, espectador, ouvinte).
A existência fenomenológica se manifesta enquanto apresentação aos sentidos, quer
dizer, enquanto concretização de qualidades perceptíveis. O estatuto existencial
fenomenológico, ou, com outras palavras, o jogo de puras qualidades sensíveis numa obra de
arte é essencial. Porém, não se pode afirmar que um poema não é mais do que um canto
silábico, duma combinação fônica ou de relações posicionais (sintáticas); ou que uma obra
musical seja apenas o estímulo acústico de notas e acordes; que o cinema seja somente o
estímulo visual de projeções de luz combinados a valores sonoros (em suas diversas
manifestações). Mas se as artes não são apenas isso, são também isso.
O plano fenomenológico mostra-se importante na medida em que aponta para uma
primeira classificação das artes. Entre a pintura (em que o corpo da obra apresenta um sistema
de qualidades sensíveis referentes às sensações visuais da cor), e a música (que se nos
apresenta por meio das qualidades acústicas), e o cinema (que combina qualidades visuais de
projeções luminosas e estímulos sonoros vários — som articulado, som puro, ruídos), é a
especificidade das qualia sensíveis que determina a diferença primordial. Dessa forma, toda
obra de arte se baseia na organização de qualidades sensíveis, as entidades fenomenológicas
de que se serve.
Souriau argumenta que uma obra de arte não apresenta apenas determinadas qualia,
mas que o complexo sensorial de uma obra está organizado esteticamente de forma a se
caracterizar — no plano fenomenológico — pela hegemonia de um jogo específico de qualia
(mais à frente elencaremos os tipos de qualia e a classificação geral das artes segundo Souriau
a partir desses tipos, além de discutir a abrangência e uma possível limitação desse modelo).
Um universo limitado e organizado, um todo sistemático, fechado em si, auto-
suficiente, um cosmos: trata-se do modo reico ou projetivo de existência da obra de arte. A
existência das coisas, no entanto, é fundamentada no ilusório; a coisa evocada pela obra de
arte está ausente, ou, ainda, entre a imaginação pura e a presença concreta. O mundo da obra
de arte pode reproduzir o mundo real, substituí-lo, fazer-lhe concorrência. Estamos no
universo do discurso, no plano das coisas representadas ou apresentadas pela arte.
Souriau deixa claro que há obras em que o plano fenomenológico desdobra-se no
projetivo — o universo da obra não é projetado para fora do fenomenológico. Nessas obras
(como a maioria das obras arquitetônicas, certas peças musicais e pinturas abstratas) o cosmos
projetado é o próprio plano fenomenológico; as coisas aí representadas são as próprias
relações de combinação de qualia. Daí que fica clara uma divisão que será também
fundamental para o sistema classificatório: há as obras que se realizam apenas no plano
fenomenológico e, assim, a existência reica é o próprio modo de organização da existência
fenomenológica; e há as que projetam uma existência reica que não se confunde com a
fenomenológica, ou seja, a obra que projeta a existência reica evoca (para uma presença
ilusória) seres e coisas que não se confundem com as qualidades de aparência dessa obra.
O último modo de existência defendido, descrito e sugerido por Souriau, o modo de
existência transcendente, se impregna de certa subjetividade e nos remete para os domínios do
mito-poético, do místico e do simbólico. Para ele é aquilo que numa obra ultrapassa os limites
da compreensão e dos significados imanentes e nos introduz no universo dos sentidos, aquilo
que se instaura na esfera de uma trans-linguagem, da transfiguração sublime do homem e da
realidade. Somente as grandes obras de arte comportariam esse caráter de existência sublime,
que se decifra em mensagens continuamente renovadas no tempo e através dos tempos. Pode-
se afirmar que este quarto modo constitui o antípoda do primeiro modo, tanto que, ao tratar da
classificação e do sistema das artes, Souriau se limita aos dois modos intermediários.
Baseado numa combinação do modo de existência fenomenológico e do modo reico,
Souriau classifica uma série de artes segundo dois eixos. Num dos eixos há uma classificação
de acordo com a qualidade sensível hegemônica dos objetos artísticos. Posto que as qualia
sensíveis olfativas e gustativas ainda não têm uma organização artística definida, há sete
qualia sensíveis que se estilizaram com o desenvolvimento do homem e de suas técnicas, a
saber: as linhas, os volumes, as cores, as luminosidades, os movimentos musculares, os sons
articulados e os sons puros. No outro eixo, a classificação diz respeito à distinção entre as
artes em que a existência reica confunde-se com a própria existência fenomenológica (são as
artes não representativas, que Souriau denomina artes de primeiro grau) e as artes em que a
existência reica projeta seres e coisas distintas da organização fenomenológica (artes
representativas ou de segundo grau). A partir desses eixos Souriau classifica catorze artes,
conforme colocamos no seguinte quadro:
Qualidades Sensíveis Primeiro Grau Segundo Grau
Traço ou linha Arabesco Desenho
Cor Pintura abstrata Pintura figurativa
Volume Arquitetura Escultura
Luz (projeção luminosa) Fotografia/Cinema
Movimento muscular/Corpo Dança Mímica
Som articulado (prosódia pura) Literatura
Som puro Música Música descritiva
Não é tarefa difícil descobrir limitações na classificação de Souriau, já que qualquer
esquematização, por si mesma, está sujeita a isso. Podemos começar com o fato de que em
algumas obras torna-se problemático definir a qualidade sensível dominante. O próprio
Souriau aponta o teatro como uma forma de arte de que podem fazer parte da organização
estética todas as qualia. E mesmo o cinema (cuja qualidade sensível essencial é, para Souriau,
a luz) tornou-se, com o tempo, uma arte complexa, pois em seu desenvolvimento técnico
incorporou som e cor como qualidades sensíveis capitais de composição. Em outra arte, a
literatura, há casos em que acreditamos não poder considerar apenas o som articulado como
qualidade sensível única: isso acontece com algumas obras de neo-vanguarda poética (a
poesia concreta, por exemplo) que promovem uma espacialização da palavra no papel, ou
seja, uma composição visual (traços e linhas?), como elemento também essencial da obra.
Acrescentaríamos também outras expressões artísticas contemporâneas, como as denominadas
instalações — obras geralmente de caráter provisório —, em que várias qualia sensíveis, sem
que se possa determinar uma qualidade hegemônica, instauram sua existência e concorrem
para a fruição da obra. Ou, ainda, podemos questionar: como classificar, ou mesmo abordar
certas manifestações artísticas recentes que são resultado de apropriações dos últimos avanços
tecnológicos, como a bioarte ou arte biotecnológica?
De qualquer maneira, a classificação de Souriau, mesmo em seu esquematismo, parece
ser uma boa porta de entrada para a abordagem comparada de nossos objetos, visto que apesar
de literatura e cinema se distanciarem em seu plano fenomenológico — qualia distintas
constituem a composição estética de cada uma delas, isto é, trata-se de códigos específicos —,
elas se aproximam em seu caráter de arte de segundo grau ou representativa. Nesse sentido, na
literatura usa-se o termo verossimilhança ao passo que no cinema pode-se falar em
ilusionismo, ao abordar o filme como uma imagem ou ilusão da realidade. Aproximação que
se inicia aí e se estende ao fato de que nossos objetos — tanto a obra literária Primeiras
Estórias quanto a obra cinematográfica A terceira margem do rio — se enquadram no rol de
mensagens narrativas, o que nos conduz a nos valermos de suportes teóricos que nos
permitam a análise e a comparação dessas estruturas narrativas.
1.2. Uma abordagem inter-semiótica do cinema
Se vamos nos ocupar de linguagens específicas, buscando verificar, por um lado, a
autonomia de cada uma das obras que por meio delas se dão a conhecer e, por outro, em que
medida se aproximam para possibilitar o que é correntemente chamado de “adaptação”,
alguns conceitos dos estudos semióticos, que se debruçam sobre os processos de significação
de diferentes linguagens ou códigos são de grande valia para a abordagem comparada de
nossos objetos.
O caminho apontado por Lotman (1978a) resume-se na palavra “transcodificação”, de
modo que todo texto artístico, sem exceção, pode ser visto como um discurso que
transcodifica, em nível específico ou próprio, estruturas estabelecidas pelas línguas naturais.
Este teórico defende a idéia de que toda expressão artística está mediada por padrões mentais
ou até pragmáticos determinados pelo sistema lingüístico.
No caso do cinema, enquanto arte, Iuri Lotman, segue essa idéia, matizando-a em
função da complexidade do texto fílmico. Assim, quando Lotman (1978) distribui os
elementos narrativos cinematográficos em quatro níveis, suas referências são dadas pelas
línguas naturais. Deste modo, o primeiro nível, o da combinação de unidades mínimas
independentes, que nas línguas naturais constitui o das microcadeias dos fonemas,
transcodifica-se, no cinema, no nível da montagem dos planos (seja dentro de cada plano, seja
entre os planos); o segundo nível, o do todo sintagmático elementar, que nas línguas naturais,
segundo Lotman, constitui o nível da sentença ou da proposição, torna-se no cinema o nível
da frase cinematográfica (se entendemos bem, a concatenação de planos formadores de uma
cena, portanto com seus limites estruturais ou pausas); o terceiro nível, o da reunião de
unidades frásicas e microcadeias de frases, que, nas línguas naturais define as unidades
transfrásicas, no cinema corresponderia (Lotman não define isso com clareza) às seqüências;
por fim, o quarto nível, o nível do tema, que, nos textos das línguas naturais, define a
unidade semântica (o significado central), no cinema se transcodifica em acontecimento
autêntico (a ilusão da realidade).
Em síntese: Lotman — e neste sentido se aproxima de Souriau — aproxima o primeiro
e o terceiro nível do plano da expressão lingüística (existência fenomenológica), e o segundo
e o quarto níveis do plano do conteúdo (existência reica). Entretanto, quando Lotman trata
desses níveis, deixa de lado, por sua complexidade, os elementos sonoros e a cor. Também
não se refere à transcodificação segunda, isto é, a construção de uma obra de arte baseada em
outra arte, ainda que sobre isso (mas sempre no domínio da imagem – a fotografia)
desenvolva um instigante estudo sobre Blow-Up (1969), de Antonioni.
O fato levantado acima é um dos problemas no estudo das chamadas adaptações, que
encontra talvez sua formulação mais radical em Christian Metz quando problematiza (e
propõe) sobre a especificidade do cinema enquanto linguagem: num filme é realmente
cinematográfico aquilo que não se pode exprimir a não ser pelo cinema. A afirmação causa
impacto, mas o que só o cinema pode exprimir, ou melhor, quais são os meios exclusivos do
cinema?
1.3. Abordagens estruturais da narrativa
Como já afirmamos, apesar de se constituírem em linguagens distintas, os objetos que
aqui nos propomos a comparar são contos, de um lado, e um filme que se enquadra no cinema
tradicional, de outro; portanto, eles são passíveis de uma análise estrutural de seus aspectos
narrativos. Isto quer dizer que podem ser observados sob dois ângulos. Primeiramente, como
um conjunto de acontecimentos envolvendo personagens; em segundo lugar, estes mesmos
acontecimentos dispostos numa ordem e numa maneira peculiar por um narrador que os
comunica a um leitor ou a um espectador. O suporte teórico em que nos apoiaremos para
analisar essas estruturas e, então, compará-las, são os escritos de Claude Bremond e Gerard
Genette, dos quais destacaremos aqueles aspectos que mais nos auxiliarão nas análises.
Na esteira dos estudos pioneiros de Propp (1978), Claude Bremond (1971, 1972)
propôs um modelo de organização orgânica que resolve o problema da linearidade de funções
narrativas defendida por aquele. Bremond estabelece um mapa de seqüências narrativas a
partir da trajetória do personagem. Ao contrário da proposta de Propp, em que toda narrativa é
organizada numa ordem obrigatória de funções, Bremond organiza a narrativa em seqüências
que pressupõem processos de melhoramento ou de degradação, de acordo com o projeto de
cada personagem (um mesmo acontecimento pode desempenhar funções diferentes de acordo
com a perspectiva de sujeitos distintos). A seqüência elementar, que envolve três fases
obrigatórias de um processo — a possibilidade de um acontecimento (virtualidade), uma
conduta ou a inércia, e um resultado esperado — pode se somar a outras para constituir uma
seqüência complexa. Os modos de combinação das seqüências elementares são os seguintes:
a) encadeamento sucessivo: ao atingir seu termo, a seqüência elementar cria uma nova
situação, que se torna ponto de partida para uma nova seqüência; b) encaixe: para chegar ao
seu final, uma seqüência elementar tem a mediação de uma ou várias seqüências; c)
emparelhamento: duas ou mais seqüências concorrem simultaneamente na narrativa.
Em seu Discurso da Narrativa (1979), Genette propõe para a análise da narrativa uma
distinção entre três níveis: a história, que constitui a seqüência de ações contadas ou o
conteúdo; a narrativa, correspondente ao discurso ou texto narrativo em si; e a narração, o
ato narrativo produtor, em que se inclui o lugar real ou fictício em que se insere. A partir
dessas diferenciações e da relação entre esses níveis, o teórico monta um quadro de análise do
discurso narrativo com base em três classes: tempo, modo e voz.
Com relação ao tempo, Genette trata de três aspectos: ordem, duração e freqüência.
Desses três, importa aqui a ordem por permitir alguma analogia com a montagem
cinematográfica. Quanto a este aspecto, Genette aponta as relações possíveis entre ordem
cronológica dos acontecimentos na diegese e a ordem de sua disposição na narrativa. Duas
formas já estabelecidas de discordância entre a ordem da história e a ordem da narrativa
(anacronias) são conceituadas pelo autor: prolepse (antecipação de um acontecimento futuro)
e analepse ou flash-back (evocação de um evento passado). Além dessas discordâncias pode
ocorrer também a elipse, que consiste em um salto no tempo, e a paralipse, que não suprime
o tempo, mas omite alguns elementos de uma situação narrada.
A segunda classe dos elementos da narrativa proposta por Genette é o modo, o qual,
segundo o autor apresenta dois fatores: distância e perspectiva.
No que concerne à distância na narrativa de acontecimentos, a mimese é definida por
um máximo de informação e um mínimo de narrador e a diegese, por um mínimo de
informação e um máximo de narrador.
A perspectiva, por sua vez, refere-se ao ponto de vista pelo qual se dá a narração, para
o qual Genette adota o termo focalização, estabelecendo três tipos de perspectiva narrativa:
não-focalizada ou focalização zero; focalização interna, e focalização externa. Na focalização
zero o narrador onisciente sabe mais que a personagem ou conta mais do que a personagem
sabe. Quando o narrador só conta o que a personagem sabe, a focalização é interna, na qual
se pode adotar uma postura fixa (tudo é focalizado por uma personagem), variável (há
mudança do personagem focalizado) ou múltipla (o mesmo acontecimento é focalizado várias
vezes por personagens diferentes). A focalização externa ocorre ao se contar menos que a
personagem sabe.
Para a instância da voz, considerando-se que ela pode ser variável durante a narrativa,
o autor estuda as modificações possíveis a partir do tempo da narração, dos níveis e da pessoa,
importando destacar a categoria da pessoa, que se faz por meio de três narradores: o
heterodigético, que não participa da história que narra; o homodiegético, que participa como
personagem da história que narra, mas tem função secundária; e o narrador autodiegético,
protagonista da história que conta.
Além da função propriamente narrativa, o narrador, segundo a classificação de
Genette, pode desempenhar outras quatro funções: 1) regência: relativa à organização interna
do discurso; 2) comunicação: destaca-se a própria situação narrativa, mais as personagens
que são o narratário, e o próprio narrador; 3) testemunhal ou de atestação: revela a relação
afetiva, moral e intelectual do narrador para com a história que conta; 4) ideológica: que
consiste em comentários explicativos e justificativos do narrador a respeito da história.
1.4. O texto cinematográfico
Tem-se afirmado que o cinema é a arte que mais proporciona a impressão de realidade.
A ilusão de profundidade e de movimento proporcionada pela imagem fílmica é essencial
para que se acredite numa apreensão fiel do espaço real pela câmera.
Ao tratar da representação do espaço no filme, Aumont (1995) explica que a imagem
provoca tal impressão de analogia com o espaço real por meio das técnicas da perspectiva e
da profundidade de campo, mecanicamente desenvolvidas com a câmera, que faz com que o
espectador se esqueça do caráter bidimensional dessa imagem. Somado a isso, ele se esquece
de que além dos limites do quadro do filme, não existe mais imagem, mas mesmo assim
percebe o campo (o espaço diegético enquadrado) como parte de um espaço mais vasto, de
que esse campo seria apenas uma parte visível.
Além dos aspectos ilusionistas relacionados à superfície do quadro, à profundidade
fictícia do campo, e ao espaço diegético fora de campo, sabe-se que a imagem fílmica não é
fixa, nem independente do tempo, mas se apresenta ao espectador com uma duração e em
movimento. Tal como a vemos na tela, a imagem do filme se define por uma duração,
resultado do encadeamento em alta velocidade de fotogramas sucessivamente projetados.
Imagem que, também, está em movimento: “movimentos internos ao quadro, induzindo a
apreensão de movimentos no campo (personagens, por exemplo), mas também movimentos
do quadro em relação ao campo, ou, se consideramos o momento da produção, movimentos
de câmera” (AUMONT, 1995, p. 39).
Em suma, na constituição da imagem fílmica e, consequentemente, do todo fílmico,
concorrem: os planos, a angulação, os movimentos e os enquadramentos, que são elementos
plásticos da morfologia cinematográfica; os elementos dramáticos como a iluminação, as
personagens e os diálogos; os elementos estéticos-sonoros e, do ponto de vista sintático, a
montagem. Desses elementos, cujas caracterizações podem ser encontradas em Guido Logger
(1959), Marcel Martin (1963), Lotman (1978b) e Aumont (1995), convém dar destaque para a
montagem.
1.4.1. A montagem
Quando se lêem as obras de teoria e de crítica sobre a sétima arte, depreende-se que
“um dos traços específicos mais evidentes do cinema é ser uma arte da combinação e da
organização (um filme sempre mobiliza uma certa quantidade de imagens, de sons e de
inscrições gráficas em organizações e proporções variáveis” (AUMONT, 1995, p. 53). Por
isso, em qualquer teorização sobre o fílmico a noção de montagem é essencial, pois diz
respeito às características citadas acima.
Assim como a noção de plano, a de montagem provém de uma base empírica, e
corresponde, em termos de produção, à última atividade na feitura de um filme. Desde suas
origens, a produção cinematográfica pressupõe uma divisão do trabalho, como ocorre em
grande parte das atividades especializadas. Seguindo a ordem cronológica da prática, a
primeira atividade é a elaboração do argumento ou roteiro simples, texto prévio de conteúdo
do filme e que traz as primeiras indicações visuais e sonoras. Em seguida, o trabalho de
decupagem dá origem ao roteiro técnico, que contém todas as indicações técnicas necessárias
para a filmagem. A decupagem clássica permitiu quebrar a “descontinuidade elementar” do
cinema por meio da decomposição do filme em unidades mínimas denominadas planos, os
quais são encadeados para desenvolver unidades detentoras de espaço e tempo, as cenas —
que finalmente são organizadas em seqüências.
Na prática, há que se fazer uma distinção entre os termos decupagem e montagem
devido a fatores de ordem cronológica. A decupagem diz respeito ao preparo do roteiro do
filme enquanto a montagem propriamente dita é a organização, corte e colagem dos
fragmentos filmados.
Além da montagem de imagens, há a montagem do som, pela qual os diálogos, os
ruídos e a música são sincronizados às imagens, no processo de superposição de sons
chamado mixagem.
Contudo, muito mais do que seu aspecto mecânico, interessa-nos montagem como
processo artístico. É nesse sentido que utilizamos essa palavra aqui.
Considerada por muitos teóricos e cineastas a base da linguagem fílmica ou a própria
linguagem fílmica, a montagem recebeu várias classificações e nomenclaturas que se
justificam não em termos de simplicidade teórica, mas sim historicamente, de acordo com as
propostas estético-ideológicas dos realizadores em seus filmes. Marcel Martin (1963), num
esforço de síntese, definiu três categorias principais da montagem: a montagem rítmica, a
montagem ideológica e a montagem narrativa.
A montagem que constrói o ritmo do filme tem, em primeiro lugar, um aspecto
métrico, em função do comprimento dos planos, determinado pelo grau de interesse
psicológico que suscita o conteúdo de cada plano. Trata-se de um ritmo de atenção, da
correspondência entre a duração de cada plano e os movimentos de atenção que ele desperta e
satisfaz. Se o comprimento dos planos depende de seu conteúdo, da dominante afetiva da
história, os planos longos determinam um ritmo lento, podendo criar o efeito de monotonia,
de tédio, de ociosidade, de impotência, ao passo que, quanto mais curtos os planos, mais
acelerado o ritmo, promovendo também efeitos variados. Como os planos se ligam para
montar uma cena, indicada cinematograficamente por uma unidade de lugar e tempo, uma
cena, por sua vez, terá seu ritmo, rápido ou lento. Mas as cenas também se ligam para formar
seqüências, que se caracterizam pela unidade de ação, e que, assim como os planos e as cenas,
também têm seu ritmo.
A montagem rítmica também se caracteriza pelos componentes plásticos do plano, ou
seja, os planos aproximados podem criar um ritmo tenso, enquanto os planos de conjunto
apresentando-se seguidamente, geralmente determinam um ritmo tranqüilo. O ritmo se
quebra, contudo, quando se contrasta, por exemplo, um primeiro plano com um plano de
conjunto. Ainda deve-se ressaltar que, evidentemente, os componentes plásticos articulam-se
aos aspectos métricos para criar o ritmo.
Quando Martin aborda o papel ideológico da montagem, refere-se às ligações de
planos, cenas ou seqüências que têm por finalidade comunicar uma idéia, um ponto de vista,
um conceito abstrato; portanto, “ideológico” constitui um termo de significação bem ampla.
Esse tipo de montagem expressiva diz respeito, sobretudo, às metáforas e símbolos, às
analogias e contrastes, que se interpolam e servem à montagem narrativa, que é a base dos
filmes em quase sua totalidade.
Tendo em vista que o critério fundamental de toda narrativa é o tempo, a montagem
narrativa fílmica tem por função contar uma ação ou desenvolver uma sucessão de
acontecimentos. Segundo os termos empregados por Martin, essa montagem pode ser de
quatro tipos: linear (sucessiva), invertida (regressiva), paralela e alternada.
A montagem linear caracteriza uma ação única, exposta numa sucessão de planos,
cenas e seqüências em ordem lógica e cronológica; portando, a continuidade temporal é
respeitada. Na montagem invertida, por outro lado, a ação se passa num tempo
eminentemente dramático, saltando livremente do presente ao passado.
A montagem paralela consiste em aproximar acontecimentos que podem estar se
dando ao mesmo tempo, mas que no filme, em função de sua sucessividade significante,
obrigatoriamente se mostra em tempos distintos. Assim, por exemplo, uma seqüência
qualquer pode ser paralela se os fatos se dão ao mesmo tempo em cenas diferentes.
A montagem alternada, um pouco mais rara, aproxima-se da anterior. Une
acontecimentos dados em tempos distintos e em lugares distintos, mas que, no plano
significante, vão-se sucedendo de forma ininterrupta.
A síntese aqui feita de alguns dos elementos discursivos do cinema, especialmente a
montagem, tem por objetivo nos dar suporte à comparação entre as estruturas narrativas dos
textos literários e do texto cinematográfico que são objeto de nosso estudo. Desse modo
pretende-se, no capítulo 5, abordar: 1) algumas possíveis homologias entre esses diferentes
discursos, traçando caminhos de convergência entre os textos; 2) o grau de afastamento do
texto fílmico em relação ao literário mediante a recriação da estrutura narrativa, o que resulta
na autonomia estética do filme em face da obra literária.
1.5. Do estético ao sociológico
Antonio Candido (1965), ao tratar do que considera a análise integral de uma obra,
explica que não é possível dissociar os estudos de forma dos elementos de estrutura social que
a constituem. Deixando claro que a análise estética precede considerações de outra ordem, e
que a crítica de viés sociológico não consiste em buscar veridicção histórica nos conteúdos,
ou na matéria da obra, afirma que o “externo (no caso, o social), importa, não como causa,
nem como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na estrutura,
tornando-se portanto, interno (CANDIDO, 1965, p.6)”. Com clareza, Candido ainda explica
que
Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica,
lingüística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma
interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico ressalte o elemento da sua
preferência, desde que o utilize como componente da estruturação da obra
(CANDIDO, 1965, p. 6).
Valendo-se de intrincado arcabouço teórico, Lucien Goldmann (1973) desenvolve um
método nomeado sociologia estruturalista genética. Partindo do princípio dos estudos
dialéticos e genéticos (de gênese) de que “os fatos humanos são respostas de um sujeito
individual ou coletivo, constituindo uma tentativa de modificar uma situação dada no sentido
favorável às suas aspirações (GOLDMANN, 1973, p. 43)”, propõe um estudo dos objetos
artísticos em que se deve ressaltar o caráter significativo interno ou subjacente ao universo
imaginário da obra em relação à estrutura social em que se insere.
Em concordância com Candido, Goldmann preconiza em seu método uma “mudança
radical nos métodos em sociologia da literatura”, dos quais George Lukács foi o iniciador, e
que se debruçavam sobre o conteúdo das obras e buscavam relacionar esses conteúdos ao
conteúdo da consciência coletiva. O teórico afirma que esse tipo de estudo é tanto mais
fecundo quanto mais medíocre a obra, já que procura nela mais o documento do que
propriamente o estatuto artístico. Posto isso, Goldmann estabelece algumas das premissas da
sociologia estruturalista genética:
1. No que diz respeito à relação entre a vida social e a criação artística, ela “não
concerne ao conteúdo desses dois setores da realidade humana, mas somente às estruturas
mentais, o que se poderia chamar as categorias que organizam ao mesmo tempo a consciência
empírica de um certo grupo social e o universo imaginário criado pelo autor” (GOLDMANN,
1973, p. 44).
2. Essa estrutura mental não se restringe a um indivíduo, mas é resultado de uma ação
conjunta de um grupo social em busca de uma solução significativa para uma série de
problemas compartilhados.
3. Há uma relação de homologia ou, freqüentemente, de simples relação significativa
entre a estrutura da consciência de um grupo social e a do universo da obra. Desse modo,
pode ocorrer que “conteúdos inteiramente heterogêneos e mesmo opostos sejam
estruturalmente homólogos ou se encontrem numa relação funcional no plano das estruturas
categoriais” (Idem, Ibidem).
4. As estruturas categoriais conferem às grandes obras sua unidade, constituindo um
dos elementos do caráter especificamente estético.
Para Goldmann essas estruturas categoriais não são nem conscientes nem
inconscientes no sentido freudiano do termo, quer dizer, recalcadas. A sociologia genética
concorda com a psicanálise ao afirmar que todo comportamento humano se relaciona a uma
estrutura significativa, que deve ser apreendida pelo pesquisador em sua gênese. Porém, a
compreensão da totalidade de uma obra não se dá apenas por meio da compreensão de sua
gênese individual, que na psicanálise refere-se à estrutura libidinal ou do desejo. Goldmann
ressalta que, a partir do desenvolvimento da função simbólica, da linguagem e da
comunicação, “apareceram meios de totalmente revolucionários e novos de satisfazer a outra
necessidade fundamental do homem, ao lado da libido, a proteção da vida (contra a fome, o
frio, etc)” (GOLDMANN, 1973, p. 81), conjunto de comportamentos este denominado
“domínio da natureza”. Esse conjunto de comportamentos promove uma série de implicações
a respeito da entidade do sujeito, já que
[…] se a libido, apesar de todo o desenvolvimento e as modificações trazidas pelo
aparecimento da consciência, da função simbólica e da linguagem, permanecia sempre
individual, o comportamento correspondente à necessidade de dominar a natureza
para melhorar as condições de vida mudava completamente; com a comunicação e a
linguagem se desenvolvia, com efeito, a possibilidade de uma divisão do trabalho que
reagisse por sua vez sobre a função simbólica, e assim sucessivamente — é o que
Piaget chamou de repercussão — engendrando algo de inteiramente novo e
desconhecido até aqui: o sujeito constituído por vários indivíduos
(GOLDMANN,1973, p. 81).
Essas relações de divisão do trabalho entre os indivíduos, no entanto, não são do tipo
sujeito-objeto, como no âmbito da libido, e também não são relações inter-subjetivas, como
consideram os filósofos individualistas que conferem ao indivíduo um sujeito absoluto, mas
são relações chamadas de intra-subjetivas. Isso quer dizer que os indivíduos são elementos
parciais do sujeito da ação — que é coletivo —, ainda que o motor para a ação, no plano
individual, tenha origem na libido. Mas isto não quer dizer que exista uma consciência
coletiva externa às consciências individuais; porém, a relação entre essas consciências é intra-
subjetiva, o que constitui o sujeito do pensamento e da ação de caráter social e cultural.
O trabalho do pesquisador consiste em ressaltar a estrutura mental mediada pela forma
da obra, a partir da qual se podem esquadrinhar respostas significativas a problemas
compartilhados por um grupo.
Deve-se ressaltar nesse ponto que, tendo em vista que a realidade não é estática, a
sociologia estruturalista genética a considera integralmente constituída por processos de
estruturação, os quais comportam “uma fase complementar: a de ser ao mesmo tempo um
processo de desestruturação de um certo número de estruturas anteriores às custas da qual ela
está se efetuando” (GOLDMANN, 1973, p. 67). E se num determinado momento da realidade
social e histórica se nos apresenta uma intrincada rede de processos de desestruturação e
estruturação, as grandes obras literárias têm o privilégio de apresentar uma “estruturação
extremamente avançada” e um número menor de elementos heterogêneos. Ao relacionar os
elementos formais de uma obra com algumas realidades sociais e históricas, podem-se
averiguar importantes elementos constitutivos dessas realidades.
Considerando-se que o sujeito da criação cultural é transindividual, a análise de uma
obra corresponde a ressaltar a estrutura social a que se deve sua gênese e, em particular, a
estrutura mental de um grupo mediada pela obra. Aqui vale dizer que se a consciência real de
um grupo num dado momento histórico é também heterogênea, numa grande obra, no entanto,
são mediadas pelo artista respostas aos problemas fundamentais compartilhados pelos
indivíduos desse grupo. Nesse sentido, o artista é o indivíduo privilegiado que cumpre o papel
de mediar a estrutura mental com “o máximo de adequação ao qual poderia chegar o grupo
sem entretanto mudar sua natureza” (GOLDMANN, 1973, p. 103), o que se denomina
consciência possível, da qual decorre o conteúdo complexo e múltiplo da consciência real.
Em termos práticos, a análise segundo o método estruturalista genético se efetua por
meio de dois processos complementares: o de compreensão e o de explicação. A compreensão
refere-se à análise formal do texto, em que se dê conta de sua totalidade, inserindo-o numa
estrutura significativa geral. A explicação consiste em inserir esse texto em uma estrutura que
imediatamente o engloba, ou seja, buscar o sujeito coletivo para quem a estrutura mental
depreendida na obra tem um caráter significativo.
Contudo, Goldmann ressalta que
Durante a pesquisa, com efeito, explicação e compreensão se reforçam mutuamente de
forma que o pesquisador é levado a transitar permanentemente de uma a outra e vice-
versa, enquanto no momento em que interrompe a pesquisa para apresentar seus
resultados ele pode e deve mesmo, separar de maneira muito rigorosa suas hipóteses
interpretativas imanentes à obra de suas hipóteses explicativas transcendentes a esta.
(GOLDMANN, 1973, p. 60).
Não se especificam nesse método os instrumentos teóricos propriamente literários
para o trabalho de compreensão do texto. Uma dificuldade apontada pelo próprio Goldmann
refere-se à falta de especialistas da área literária em seu grupo de trabalho. O desafio que nos
propomos aqui é a aplicação desse método, num viés comparativo que não se restringe à
linguagem literária, mas também ao código específico do cinema. A partir do levantamento da
unidade estética de cada uma das obras, pretendemos verificar em que medida elas se
aproximam e como o seu grau de distanciamento pode revelar consciências possíveis
distintas, manifestando o conteúdo complexo da consciência de diferentes sujeitos coletivos.
2. Estrutura Especular em Primeiras Estórias
Junto ao interesse em trazer à compreensão os meandros metafísicos transfigurados
nas narrativas de Rosa, levanta-se também a necessidade de abordar, como já ressaltamos, a
forma com que elementos de estrutura sócio-histórica se integram à obra, tornando-se, assim,
internos à estrutura artística.
Focados na forma de relação significativa entre esses dois aspectos (metafísico-
religioso e sociológico) especificamente nos textos de Primeiras Estórias, buscando uma
síntese com vistas à posterior comparação com o texto fílmico A terceira margem do rio,
fomos instigados pela sugestão de Willie Bolle (1973) a respeito de uma estrutura especular
que daria coerência à disposição dos 21 contos do livro. Somou-se a esse interesse um ensaio
de Heloísa Vilhena de Araújo (1996) em que a autora aponta e propõe uma interpretação para
um jogo de espelho no índice das primeiras edições de Corpo de Baile.
Contudo, as conclusões a que chegamos com nossas análises não se restringem às duas
obras roseanas (Primeiras Estórias e Corpo de Baile), mas podem estender-se ao filme A
terceira margem do rio, em que se percebe uma transmutação da estrutura especular e de
centro e margens que averiguamos existirem em Primeiras Estórias e que explicitaremos a
seguir. No capítulo 5, buscamos mostrar como essa transmutação resulta em relações
significativas distintas no texto de Nelson Pereira dos Santos, relações essas cuja síntese
contribui para explicar a mediação de consciências possíveis diferentes em cada obra.
Comecemos pelas explicações de Araújo a respeito da especularidade entre as novelas
de Corpo de Baile. A ensaísta afirma que
No início do livro [Corpo de Baile], em sua primeira edição em dois volumes,
Guimarães Rosa colocou um índice que é o exato contrário de um segundo índice, que
se encontra no final. Um desce do primeiro ao último conto e o outro sobe do último
ao primeiro. Os contos vão e vêm, sobem e descem. No centro dos sete contos que
compõem Corpo de Baile está aquele intitulado ‘O recado do morro (ARAÚJO, 1996,
p. 38)”.
Se emparelhamos os dois índices:
1. Campo geral 7. Buriti
2. Uma estória de amor 6. O Cara-de-Bronze
3. A estória de Lélio e Lina 5. Lão-Dalalão
4. O recado do morro 4. O recado do morro
5. Dão-Lalalão 3. A estória de Lélio e Lina
6. O Cara-de-Bronze 2. Uma estória de amor
7. Buriti 1. Campo geral
Araújo observa que “O recado do morro” é o único “que se emparelha consigo
mesmo”. E este conto, que ocupa posição numérica central, parece funcionar como um
espelho a refletir os demais contos, invertendo no segundo índice os que o precedem e o
sucedem no primeiro.
Ao proceder à análise de “O recado do morro”, a ensaísta trata do aspecto planetário
ou de correspondências astrológicas da viagem de Pedro Orósio, esclarecido pelo próprio
Rosa em carta a seu tradutor para o italiano, Edoardo Bizarri, na qual assinala as relações
onomástico-toponímicas entre as fazendas visitadas/companheiros do protagonista e os
planetas na Antigüidade e na Idade Média, que, ainda hoje, são os planetas da Astrologia.
Baseada na especularidade estrutural sugerida pelos índices e no caráter astrológico de “O
recado do Morro”, Araújo formula o questionamento que norteia seu ensaio: “Em ‘O recado
do Morro’, temos os reflexos dos sete planetas nas fazendas por que passa Pedro Orósio e,
também, nos nomes de seus companheiros. Teríamos nele, igualmente, em resumo, os
reflexos dos sete contos de Corpo de Baile? (ARAÚJO, 1996, p. 387)”. Tendo em vista as
epígrafes tomadas por Rosa ao místico do século XIV Ruysbroeck, especificamente no texto
O anel ou a pedra brilhante, a autora propõe suas interpretações sob a ótica do pensador de
tradição mística católica primitiva e medieval. Estabelece, então, uma rede de assimilações
simbólicas entre os sete contos de Corpo de Baile, os sete planetas astrológicos e as práticas e
ritos de que trata Ruysbroeck em O espelho da salvação eterna, Os sete claustros, Os sete
degraus da escada do amor espiritual, O ornamento do casamento espiritual, O anel ou a
pedra brilhante e As doze beguinas, textos que fazem parte dos tomos I, III e VI das Ouvres
de Ruysbroeck, a cujas cópias a autora teve acesso na biblioteca de Guimarães Rosa.
Contudo, o que nos interessa aqui num primeiro momento — cientes de que não será
possível aprofundar neste trabalho as interpretações cabíveis — é a semelhança que parece
existir entre as formas de organização dos contos de Corpo de Baile e de Primeiras Estórias.
Atentando-se à disposição dos contos deste, é possível verificar uma forma similar a de Corpo
de Baile — não devido a uma pista deixada pelo autor em índice, mas em função da
disposição material dos contos no livro e do título de um deles: entre os vinte e um contos
curtos, o décimo primeiro, o que ocupa posição central, intitula-se “O Espelho”, ou seja, há
dez contos à margem direita de “O Espelho” e outros dez à sua margem esquerda.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
11
12 13 14 15 16 17 18 19 20 21
1. As margens da alegria
2. Famigerado
3. Sorôco, sua mãe, sua filha
4. A menina de lá
5. Os irmãos Dagobé
6. A terceira margem do rio
7. Pirlimpsiquice
8. Nenhum, nenhuma
9. Fatalidade
10. Seqüência
11. O espelho
12. Nada e a nossa condição
13. O cavalo que bebia cerveja
14. Um moço muito branco
15. Luas-de-mel
16. Partida do audaz navegante
17. A benfazeja
18. Darandina
19. Substância
20. — Tarantão, meu patrão
21. Os cimos
Ao iniciar o exame de uma possível especularidade nos contos de Primeiras Estórias,
isto é, buscando verificar, em termos narrativos, se efetivamente havia indícios de que os
contos anteriores a “O Espelho” seriam o inverso dos posteriores, ficou-nos evidente que tal
condição se constatava ao se comparar o primeiro e o último conto. “As margens da alegria” e
“Os cimos”, contos-moldura do livro, tratam das viagens de um mesmo menino para uma
“grande cidade em construção”. As frases de abertura das narrativas comprovam a
correspondência de personagens, espaço e evento (viagem):
Esta é a estória. Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a
grande cidade (“Margens da Alegria”, 2001a, p. 49).
Outra era a vez. De sorte que de novo o Menino viajava para o lugar onde as muitas
mil pessoas faziam a grande cidade (“Os cimos”, 2001a, p. 224).
A primeira marca de que um conto é o reflexo do outro, ou o outro invertido, é o
primeiro subtítulo de “Os cimos”: O inverso afastamento. O menino afasta-se de seu lar, nas
duas viagens, mas de modo inverso. Mas do que trataria essa inversão no tecido narrativo?
No início do conto de abertura de Primeiras Estórias, temos o Menino tomado pela
alegria promovida pela viagem: “O Menino, agora, vivia; sua alegria despedindo todos os
raios” (GUIMARÃES ROSA, 2001a, p. 50). O ponto mais alto do estado de alegria da
personagem, auge da sensação de intensidade da existência, se dá na contemplação do peru no
quintal da casa dos tios. Para o Menino, é um encontro com o sublime, com o ideal de beleza;
a experiência provoca-lhe um transbordamento dos sentidos:
Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da
mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a
cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão — brusco, rijo, — se
proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça
possuía laivos de um azul claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado,
redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto
— o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um
transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os
olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruziou outro gluglo.
O Menino riu, com todo coração (“As margens da alegria”, 2001a, p. 51).
Porém, a morte do peru para se comemorar o aniversário do tio faz com que o Menino
tome consciência da fugacidade da alegria. A personagem se dá conta de que a manifestação
concreta, material, de sua idéia de beleza, o peru, é mortal: “Tudo perdia a eternidade e a
certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam” (2001a, p. 52).
Presenciar uma árvore sendo derrubada à máquina aumenta-lhe tristeza: “Ele tremia. A árvore
que morrera tanto”. O conhecimento da morte e da finitude das coisas desencadeiam a
inversão brusca do estado de espírito da personagem.
A sensibilidade primária do menino projetada nos objetos permite-lhe apenas
experienciar os acontecimentos de forma binária, alegria ou tristeza: “entre o contentamento e
a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia” (2001a, p. 52). Os acontecimentos
que se seguem na narrativa e que determinam as oscilações de espírito do garoto não têm uma
ordem lógica, que encaminhe ao clímax e desfecho. A sensibilidade do Menino, contudo, dá
sentido transcendente a esses eventos. Ao encontrar um outro peru no terreiro resigna-se “com
o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe a alma”
— houve a morte de um indivíduo, mas há outro peru vivendo, o qual poderia refletir traços
daquele Belo que encontrara no primeiro peru; porém, em seguida, desponta o mistério de ver
o peru vivo bicando com ódio a cabeça do outro, morto: “O Menino não entendia. [...] eram
um montão demais; o mundo”. Finalmente, a personagem retorna ao estado inicial à noite, ao
contemplar um vaga-lume “tão pequenino, no ar, um instante só, alto, indo-se. Era, outra vez
em quando, a Alegria”. O vaga-lume, cuja luz não é ininterrupta, mas sim alterna sua luz com
a escuridão, conota a duplicidade desenvolvida no conto, alegria e tristeza, vida e morte.
Outro aspecto que se pode levantar em “As margens da Alegria” é a sua estruturação
em outro contraponto: a experiência individual — o mundo sentimental do menino e o
alargamento de sua consciência durante a viagem — contrasta com um projeto coletivo da
“grande cidade em construção”, numa alusão à cidade de Brasília
2
: “A grande cidade apenas
começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão” (2001a, p. 50); “Esta cidade ia ser a mais
levantada no mundo” (2001a, p. 52). Portanto, fica como pano de fundo da experiência
sentimental do indivíduo um evento de dimensão trans-individual, a construção dessa grande
cidade — vemos aí um outro âmbito de duplicidade na narrativa.
O choque da sensibilidade do menino com a racionalidade instrumental do mundo que
o cerca faz com o leitor compartilhe com a personagem a sensação de perda de uma relação
orgânica do sujeito com o objeto. Tal idéia nos remete à teoria do objeto moderno
desenvolvida por Benjamin (1996), que diz respeito à noção de “aura”. No mundo moderno, a
aura seria, para Benjamin, o que era o sagrado nas sociedades primitivas. A sensação de
intensidade da presença física de um objeto, o que corresponde à aura dessa coisa, poderia ser
mais bem expressa por meio do ato do olhar, numa retribuição de entendimento: a experiência
da aura é baseada na transposição de uma reação social para a relação do inanimado ou da
natureza com o homem. A pessoa que olhamos, a pessoa que se crê olhada, olha de volta para
nós. Experimentar a aura de um fenômeno significa conferir-lhe o poder de olhar em
retribuição. Porém, num universo secular a aura mais facilmente poderia ser encontrada no
momento de sua desaparição, de sua queda, esta provocada pela invenção da técnica, pela
substituição da percepção humana por suas extensões mecânicas.
2
Diga-se que a cidade de Brasília foi inaugurada em 1960 e, dois anos depois, houve a publicação de Primeiras
Estórias. Com respeito à nova capital brasileira, marco da arquitetura moderna e do projeto de um Brasil
progressista, vários artistas trataram do evento em suas criações. Rosa o fez também nesses dois contos de
Primeiras Estórias, e, ao que parece, parte da história dos contos é resultado da transfiguração criativa de uma
viagem que o autor fez à cidade em meados de 1958. Em carta a seus pais, Rosa relata: “Em começo de junho
estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto
no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis:
parece coisa de russos ou de norte-americanos” (...) Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e
ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, na copa da alta
árvore pegada à casa, uma ‘tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das
cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida” (fonte do trecho da carta: ROCHA, Luiz Otávio Savassi. João
Guimarães: sua HORA e sua VEZ. In: Cadernos da Pró-Reitoria de Extensão da PUC-MG; v. 3, n. Especial; p.
45-68, set. 1993).
Nesse sentido, o momento de choque em que o Menino vê a árvore cair pela ação da
máquina, no espaço onde se deverá construir o aeroporto da cidade, constitui uma evocação
dessa perda da aura, o que implica a nostalgia de uma plenitude da existência no mundo das
coisas. Em função disso, o personagem “descobria o possível de outras adversidades, no
mundo maquinal, no hostil espaço” (2001a, p. 53).
Paulo Rónai, no prefácio a Primeiras Estórias, afirma a possibilidade de traçar riscos
bem variados se quisermos representar a ação de cada conto do livro por uma linha, e
exemplifica um desses traçados em “As margens da Alegria”: “[a estrutura do conto] daria
uma curva ondulante de acordo com as oscilações do pensamento do Menino” (RÓNAI,
2001a, p. 28). A partir das considerações acima acreditamos poder representar o núcleo de
ação, determinado pelo mundo interior do personagem, com a seguinte curva:
Alegria
Tristeza
Em “Os cimos”, por sua vez, a segunda ida, ou a volta, do Menino à cidade em
construção ocorre em condição inversa a da primeira viagem. O estado da personagem é de
tristeza por conta da doença da mãe: “Sabia que a mãe estava doente. Por isso o mandavam
para fora” (2001a, p. 224). Para ele, o sofrimento e a mãe são inversos, e, mesmo já havendo
se defrontado com a morte de coisas belas, que lhe trazem alegria (o peru, a árvore), a
possibilidade da morte da mãe lhe é incompreensível: “A Mãe e o sofrimento não cabiam de
uma vez no espaço de instante, formavam avesso — do horrível do impossível. Nem isso ele
entendia, tudo se transtornando então em sua cabecinha” (2001a, p. 225). A simultaneidade
de contrários não cabe na consciência da personagem; por isso não lhe faz sentido a Mãe
sofrendo — a morte em quem gera vida —, assim como não fizera sentido o peru bicando
com ódio os restos do outro — o ódio ao semelhante. O mundo sentimental do Menino,
domínio do irracional, só pode ser o inverso do mundo dos adultos, pautado no intelecto. E a
personagem desconfia de que o equilíbrio desse mundo seja apenas um disfarce: “Também,
todos, até o piloto, não eram tristes, em seus modos, só de mentira no normal alegrados?”
(2001a, p. 225).
Como em “As margens da Alegria”, uma visão epifânica reverte o estado do garoto,
que vai a outro ápice de alegria ao presenciar um tucano ao amanhecer. Como indica um dos
subtítulos — o trabalho do pássaro —, as aparições do animal, por três manhãs seguidas,
ganham um significado mais amplo: é o prenúncio da cura da mãe: “Ao quarto dia, chegou
um telegrama. (....) A Mãe estava bem, sarada! No seguinte — depois do derradeiro sol do
tucano — voltariam para casa”(“Os Cimos”, 2001a, p. 232).
Se desenharmos a linha que representa o núcleo de ação de “Os Cimos”, teremos:
Alegria
Tristeza
Partindo para associações a símbolos religiosos, está na personagem a figura do homo
viator — o Menino está in via, no mundo temporal, e este é para os homens que carregam
desde o nascimento a falha do pecado original, segundo o mito judaico-cristão, um mundo
instaurado pelo avesso: a vida implica a morte. A alegria na primeira ida (“As margens da
alegria”), descoberta de existência plena, tem por avesso a tristeza, na segunda viagem (“Os
cimos”), consciência da finitude que é a morte.
Contudo, percebe-se que o espaço da narrativa não diz respeito apenas ao mundo
temporal. A cidade que se está construindo no “chapadão”, alusão à região do Planalto
Central, permite que se estabeleça uma relação com o símbolo do centro. Mircea Eliade
(1974, II, p. 149-168) diz que o centro (árvore cósmica, pedra, coluna central, templo, palácio,
cidade, inclusive a construção desta, casa, etc.) costuma vincular-se à revelação, a alguma
modalidade de iniciação, a uma conquista, ao acesso à imortalidade ou ao absoluto. Eliade
também divide o símbolo do centro em três conjuntos complementares: 1) no centro do
mundo, lugar da revelação, está a Montanha sagrada, ponto de encontro entre o céu e a terra;
2) toda cidade sagrada, cujo centro é o palácio real ou o templo, é assimilada a uma montanha
sagrada; 3) a cidade sagrada, lugar em que se encontra o Axis mundi, constitui o ponto de
alinhamento entre Céu, Terra e Inferno. Em vista disso, entende-se que o espaço diegético em
que se desenvolvem os contos, a cidade que se constrói no chapadão, comporta três
dimensões simbólicas. Na viagem à cidade sagrada, no centro do mundo, é revelada ao
menino a natureza do Inferno (morte e sofrimento) em contraste com a realidade do Céu (vida
e plenitude da existência).
Voltando à síntese da estrutura narrativa dos contos, sobrepostas, as curvas que
representam a ação nos enredos configuram:
Verificada a condição de reflexo simétrico entre os contos-margem do livro, foi
inevitável tentar buscar comprovações de que o mesmo ocorresse em todos os outros contos.
As análises nos levaram a admitir que não. Fizemos então um caminho inverso, voltando a
um trecho da análise de Araújo (1996) sobre Corpo de Baile que nos inspirou a interpretar
essa aparente discrepância na composição com centro e espelho em Primeiras Estórias. Ao
questionar-se sobre a validade de sua interpretação sobre a estrutura especular do livro, a
autora pondera:
Para que tal interpretação tenha fundamento, seria preciso, portanto, seguir a ordem
dos contos tal como aparecem na primeira edição do livro. Entretanto, a partir da
terceira edição, o livro dividiu-se em três volumes e a ordem dos contos mudou: “O
recado do morro” deixou de ocupar a posição numericamente central. Este é um
problema que me preocupou na ocasião de escrever. Creio, todavia, que o centro que
interessa a Guimarães Rosa não é um centro numérico e que é por isso que a ordem
dos contos não é, no fundo, importante — a não ser a posição inicial de “Campo
Geral”, que introduz o livro. A ordem numérica parece ser somente um expediente
inicial do autor para ajudar a perceber o centro, que, na realidade, está em toda
parte (ARAÚJO, 1996, p. 404 — grifo meu).
Já que a ordem dos contos fundamenta a sua interpretação da forma especular em
Corpo de Baile, a autora quer dar sentido à contradição entre a ordem dos contos nas três
primeiras edições da obra e a posterior mudança nessa ordem. Deixando à parte as razões
editoriais para a divisão do livro em três volumes, nota-se que Araújo busca um motivador
interno à obra para essa desestruturação. A ensaísta apóia-se, então, no símbolo místico do
centro onipresente, que prescinde à manutenção do centro racional identificado no jogo com
os índices das primeiras edições. Ressalta, também, o fato de “Campo Geral” continuar em
posição inicial, por exigência de Rosa.
Em Primeiras Estórias, a busca comprobatória de uma estrutura especular também
leva a uma contradição: a inexistência de simetria nos demais contos que não o primeiro e o
último. Essa quebra, contudo, parece-nos desencadeada pelos próprios instrumentos lógicos
dessa composição, cujo resultado já mostramos acima: a forma simbólica articulada pela
representação dos núcleos de ação dos contos “As margens da alegria” e “Os cimos” é o
infinito — o jogo de simetria entre espelho, centro e margens do livro resultou no símbolo
que representa a limitação da lógica. A propósito do caminho percorrido para chegarmos a
essa conclusão, é esclarecedora uma das reflexões do narrador de Grande Sertão: Veredas:
“Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na idéia
dos lugares de saída e de chegada” (Grande Sertão: Veredas, 2001b, p. 51).
Em síntese, somos levados a afirmar que, subjacente à forma de composição de
Primeiras Estórias descrita acima, há o pensamento de um caráter duplo do mundo, o caos e o
cosmos, que se interpenetram. Identifica-se na obra um eixo que estabelece proporções
equilibradas, um ponto eqüidistante entre o primeiro e o último conto, em que se coloca o
espelho a refletir início e fim, partida e chegada. Essa simetria diz respeito às bases racionais
de relação com a realidade. Contudo, a organização lógica se desconstrói na diversidade dos
demais contos, que não se refletem linearmente como nos contos inicial e final. O próprio
narrador de “O espelho” dá ironicamente alguma pista ao leitor do caráter duplo representado
pelo centro e pelo espelho na obra: “O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho que
nem tenha idéia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física,
com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta
de um mistério” (“O espelho”, 2001a, p. 119). O espelho não é mais o objeto material — é
instrumento de transcendência. O centro, então, não é mais apenas o ponto que marca a
eqüidistância, o equilíbrio, o racional, mas é o centro movente. Ora, um centro em movimento
impossibilita a fixação das coisas, sua disposição equilibrada e objetiva, um ir e vir, que, na
verdade, não é racionalmente compreensível: “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a
nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a
meio” (“A terceira margem do rio”, 2001a, p. 80). A síntese de partida e chegada, início e fim,
não é o meio estático e racional, mas, sim, fluido e ilógico, que promove a dinâmica e
diversidade da substância da realidade. É a mobilidade, a travessia, que instaura o real, como
afirma Riobaldo: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é
no meio da travessia” (Grande Sertão: Veredas, 2001b, p. 80).
Nas narrativas de Primeiras Estórias, as formas de existência, em incessante
movimento, submetem-se a uma essência transcendente, atemporal, que se substancia na ação
peculiar das personagens descentradas, marginais:
(...) sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa
verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia (“A
terceira margem do rio”, 2001a, p. 80).
Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela
queria, que falava, súbito acontecia (“A menina de lá”, 2001a, p. 70).
[A vaquinha] transcendia ao que se destinava (“Seqüência”, 2001a, p. 116).
Olhado por outro ângulo, esse fazer existir e acontecer o que não há desdobra-se na
relação dialética da própria manifestação do discurso literário e suas implicações específicas
na poética de Guimarães Rosa. Se na linguagem cotidiana o fim do discurso é o conceito
abstrato, dispensando a presença das coisas, em favor de uma utilidade prática, a linguagem
literária, contrariamente, faz ausente o conceito em favor de uma presença. Como explica
Lefebve (1975) a linguagem literária se fundamenta na interdependência entre materialização
(do significante) e presentificação (do significado), processo que visto de outra perspectiva,
pode ser chamado de conotação reflexiva (1975, p. 50-55), entendido como a propriedade do
discurso literário de refletir a si mesmo, objeto que afirma sua presença material de discurso
desvinculado da ordem prática. Contudo, o discurso literário não tem um fim em si mesmo, na
medida em que, ao negar a utilidade prática ou a validade científica, ele evoca a presença de
um outro real, em que se espelha o questionamento essencial da existência do homem e sua
ação no mundo.
Tendo em vista que toda literatura é uma investigação da problemática da linguagem,
a qual se projeta como uma interrogação sobre o mundo, entendemos que um dos fatores
essenciais dessa problemática em Primeiras Estórias é a forma de incorporação da
irracionalidade, ou da presença imaginal (como conceitua Lefbve, 1975), dominante no
discurso poético, no interior do discurso narrativo, o qual não pode prescindir do reenvio ao
referente (este entendido como a soma de experiências e informações que determinam o nosso
conhecimento sobre o objeto, por isso, objeto de pensamento). Enquanto o paralelo com a
linguagem cotidiana é necessário para entender na narrativa as realidades representadas,
envolvendo as relações de espaço, tempo e personagens, no discurso poético o referente
parece desaparecer em função da presentificação imaginal do significado, que é seu próprio
referente.
É da projeção de um novo referente na narrativa que se conceitua o termo diegese em
oposição à narração. Mas a diegese, por ser realidade ficcional, fundamenta-se também como
linguagem, mediante significantes próprios, que instituem os fenômenos de materialização e
presentificação. Evidentemente a diegese só existe por meio da narração, o que dificulta a
delimitação dos aspectos próprios daquela estrutura. Contudo, estudiosos da narratologia (dos
quais escolhemos Propp, Bremond e Genette, conforme nossa necessidade analítica)
instituíram uma metalinguagem sobre os elementos importantes da forma do conteúdo
narrativo como: a intriga (ações e situações — relações de causa e conseqüência), o cenário,
as personagens. A fraqueza desses esquemas de análise é o estabelecimento de um estado
neutro, de normalidade da diegese, desprezando as lacunas e incertezas. Porém, essa fraqueza
torna-se positiva na medida em que ao se verificar o desvio da diegese de certa narrativa em
relação a esse estado neutro, despontam os indícios que fazem transparecer sua natureza
conotativa e simbólica.
Em Primeiras Estórias, verifica-se que a narração promove desvios a ponto de
impossibilitar, em alguns contos, o traçado de um esquema das relações entre intriga,
personagem e cenário pressuposto por um estado neutro ou grau zero da diegese. Queremos
apontar aqui dois fatores desse desvio, os quais serão retomados no próximo capítulo:
1) Este primeiro fator foi levantado por Sperber (1982) referindo-se à dispersão das palavras
indiciais, informativas, ou funcionais da ação na frase, cujas lacunas são preenchidas pelo que
a ensaísta chamou de palavras-instrumento, que desviam o leitor da ação (reduzida, ou, às
vezes, quase nula) em função de outros valores expressivos. Veja-se, por exemplo, o
parágrafo inicial do conto “Nenhum, nenhuma”, em que se estrutura ao mesmo tempo em que
se desestrutura o ambiente da ação:
Dentro da casa-de-fazenda, achada, ao acaso de outras várias e recomeçadas
distâncias, passaram-se e passam-se, na retentiva da gente, irreversos grandes fatos —
reflexos, relâmpagos, lampejos — pesados em obscuridade. A mansão, estranha,
fugindo, atrás de serras e serras, sempre, e à beira da mata de algum rio, que proíbe o
imaginar. Ou talvez não tenha sido uma fazenda, nem do indescoberto rumo, nem tão
longe? Não é possível saber, nunca mais. (PE, 2001a, p. 97).
2) Em cada história, personagens de extrema marginalidade psíquica (e, conseqüentemente,
social) ou crianças sensíveis constituem o eixo da narrativa, mas não são essas personagens
descentradas que narram os eventos. Na maioria dos contos a focalização é interna, mas é uma
personagem secundária (narrador homodiegético) ou um narrador marcado por uma
invisibilidade, ou um diluído na coletividade, o responsável por contar a história. Ao assumir
o ponto de vista desse narrador, o leitor assume também a perplexidade diante das ações
ilógicas, da loucura dessas personagens, a cujo peculiar psicologismo não se tem acesso
direto. Incrementa-se, dessa forma, o mistério sobre a ação dessas personagens marginais e
fecham-se as portas para a explicação racional dos eventos narrativos. Contudo, o maior
desvio realmente se materializa nas poucas ocorrências de discurso relatado das falas da
criança ou do louco. Nesses trechos, o discurso poético aflora livremente, refletindo-se na
diegese como um fator de desestabilização da realidade concreta representada. Esse desvio é
marcante, por exemplo, na poesia das palavras de Nhinhinha: “Ele xurugou?”, “Tatu não vê
lua...”, “O passarinho desapareceu de cantar”, “A gente não vê quando o vento se acaba”,
“Jabuticaba de vem-me-ver”, “Eeu? Tou fazendo saudade”, etc; ou, ainda, na bela
metahistória narrada por Brejeirinha no conto “Partida do audaz navegante”.
Em Primeiras Estórias, a interrogação sobre a realidade exterior, levantada pelo
discurso poético que é porta de entrada para o interior dessas personagens, avessas a
enquadramentos racionais, parece ser formulada em todos os contos como reflexo abissal a
partir do conto “O Espelho”. Neste conto, o narrador autodiegético, que se dirige a um
interlocutor “companheiro no amor da ciência”, conta a experiência em que busca penetrar
por meio do espelho no seu “disfarce do rosto externo” com vistas a encontrar sua “vera
forma”, seu eu interior, ou sua alma, por trás das “capas de ilusão da realidade”. Se
atentarmos ao tom de cientifismo com que o narrador relata sua pesquisa, o que é uma ironia,
por conta dos objetivos e do resultado do empreendimento, pode-se entender aí uma tentativa
de fusão entre conceitos psicanalíticos e crenças primitivas e místicas que se construíram a
partir do objeto espelho. Para a psicanálise, o espelho é o lugar da identificação primária,
chamada “Fase do Espelho”, na qual a formação do ego na criança depende de se reconhecer
em sua imagem; a partir dessa primeira fase, dá-se lugar à identificação com o próprio olhar,
que é secundária em relação à fase especular. Por outro lado, em crenças primitivas, o espelho
é motivo de vários receios supersticiosos (por exemplo, o de mostrar a alma dos mortos), ou é
objeto de “manejos de magia, imitativa ou simpática”, como explica o próprio narrador. Do
choque entre substrato científico/crenças primitivas, tom investigativo/resultado irracional da
pesquisa cria-se o paradoxo na narrativa: o narrador afirma “Sou, porém, positivo, um
racional, piso o chão a pés e patas”, mas as motivações e os resultados de sua pesquisa negam
suas premissas racionais. E qual é esse resultado final?
Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor
razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal
emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que:
rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca
compreenderá? (PE, 2001a, p. 127).
Guimarães Rosa transforma em ficção o próprio processo que guia a construção dos
contos de Primeiras Estórias, a saber, o de substancializar, de dar corpo ao complexo de
fenômenos mágicos interiorizados em nossa vida subjetiva. Faz-se reviver o duplo, o qual
deixara de ser tido como real para se tornar sentimento, por conta da consciência racional e
objetiva.
O desejo do narrador-personagem de voltar à formação do eu (ou da identificação
primária) tem o fim de retornar ao olhar infantil, primitivo, calcado no Imaginário, o que
implica uma desestabilização das coordenadas de identificação secundárias, ou seja, das
formas socialmente desenvolvidas de ver e se relacionar com o mundo exterior.
Contudo, tanto o autor quanto o leitor são sujeitos que passaram pela “Fase do
Espelho”, pelo Imaginário, e que já acederam ao Simbólico, ao estatuto da linguagem — tem-
se aí a relação dialética do retorno a uma fase ilógica por via do próprio logos, do simbólico, o
qual, de fato, é a única maneira de comunicar o imaginário. A narrativa é uma construção
simbólica, um discurso, e, com respeito à realidade intradiegética, é a própria personagem
quem comunica em tom cientificista o seu retorno ao estado mágico de “menos-que-menino”,
e inescapavelmente ele o faz por meio do discurso lógico.
Como afirmamos mais acima, acreditamos que os contos de Primeiras Estórias
organizam-se significativamente numa construção em reflexo abissal a partir do conto “O
Espelho”. Este centro de Primeiras Estórias reflete-se numa relação antropo-cosmomórfica
que fundamenta todas as outras narrativas; o rosto “metafisicado” do narrador torna-se meio
revelador do cosmo: o rosto é o espelho da alma, e a alma é o espelho do mundo. A alma é
aqui entendida como, nas palavras de Edgar Morin (2003),
esta zona imprecisa do psiquismo no seu estado nascente, no seu estado
transformante, esta embriogênese mental em que tudo quanto é distinto se confunde,
em que tudo o que é confundido se encontra no âmago da participação subjetiva num
processo de distinção (MORIN, 2003, p.167).
E esse rosto, como metáfora, espelha-se em todas as narrativas, constituindo projeções
de estado de alma, o qual corresponde, segundo o mesmo Morin, “a um momento da
civilização em que esta [a alma] já não pode aderir às antigas magias, se bem que no âmago
das participações afetivas e estéticas se alimente da sua seiva” (MORIN, 2003, p.167).
Ao se identificar com a personagem-narrador de “O espelho”, o leitor participa afetiva
e esteticamente de seu estado de alma, permitindo-o em última instância ressuscitar a magia
primitiva, ou antes, criar uma nova magia.
À explicação psicanalítica, no entanto, soma-se a explicação da alma em sentido
metafísico, a alma pré-nascimento e pós-morte, a qual é revelada pelo espelho ao narrador-
personagem, e que lhe pode permitir apreender o verdadeiro mundo escondido por trás das
ilusões dos sentidos (mito da caverna).
Nesse sentido, entende-se estar o eixo organizador de cada narrativa em particular nas
personagens de crianças sensíveis ou de loucos. É nelas que a magia, o estado de alienação
(princípio de tudo), não foi assimilada pela alma, aprisionada nos recônditos do sentimento.
Ou, por outro lado, elas são almas puras, que têm a capacidade de ascender à realidade
absoluta, da qual o mundo sensível é apenas reflexo. A ação ilógica dessas personagens
subverte as formas de relação com o mundo exterior (os processos de identificação
secundária), e é nelas e por meio delas, sobretudo, que a presença imaginal característica do
discurso poético se concretiza e se reflete na diegese, o que retorna ao leitor como uma
interrogação sobre seus próprios referenciais (sua estrutura mental) acerca do que seja a
realidade.
3. Da unidade à diversidade
Para iniciar este capítulo, voltemos a uma das proposições apresentadas sobre os
contos-moldura de Primeiras Estórias: entende-se neles, pelos aspectos formais levantados,
uma valorização da subjetividade do indivíduo e de suas experiências concretas em contraste
com um sistema racional, abstracionista, que oblitera o sentido daquelas. O crítico Fredric
Jameson (1985) relaciona a contraposição entre a experiência concreta e o pensamento
abstrato com a estrutura do mundo moderno e o conseqüente reflexo dessa estrutura na forma
da obra artística:
O referencial da obra de arte é a experiência individual vivida. E é dentro destes
limites que o mundo exterior permanece obstinadamente alienado. Quando passamos
da experiência individual para a dimensão coletiva, para a abordagem histórico-
sociológica através da qual as instituições humanas tornam-se lentamente
transparentes para nós, novamente penetramos no terreno do pensamento abstrato,
desencarnado, e deixamos a obra artística para trás. Esta vida em dois níveis
irreconciliáveis corresponde a uma fissura básica na própria estrutura do mundo
moderno: o que somos capazes de entender como mentes abstratas, somos incapazes
de viver diretamente em nossa vida e experiência individual. Nosso mundo, nossas
obras artísticas são doravante abstratos (JAMESON, 1985, p. 134).
Se a obra artística no mundo moderno é inescapavelmente abstrata, reflexo da
disjunção entre sentido e vida cotidiana na sociedade contemporânea, vejamos como essa
circunstância se revelou num gênero, o romance, que parece ter surgido com o advento dessa
sociedade e ter se modificado como reflexo de sua evolução histórica. Considerando-se o
romance ocidental do século XIX, período de ouro do gênero, a experiência individual que é
base para sua forma se manifesta na história da personagem problemática, do louco ou do
criminoso, que busca encontrar, sem sucesso, uma reconciliação autêntica entre homem e
mundo. Essa foi a conclusão a que chegou Lukács, ainda na primeira década do século XX,
sobre a forma dialética do romance clássico, uma narração que busca a unidade entre espírito
e matéria, segundo uma terminologia hegeliana, sob condições de vida que tornam essa
unidade impossível. Para o autor de Teoria do Romance, o modelo de narrativa em que o
sujeito não se dissocia dos objetos, homem e mundo conciliados, encontra-se na epopéia, e o
romance é a tentativa moderna dessa reconciliação num mundo em que não existem mais
deuses. Entende-se que a pedra de toque para a teorização de Lukács sobre o romance
consiste de relações histórico-evolutivas desse gênero com o épico; assim sendo, enquanto o
herói épico representava uma coletividade num mundo orgânico e dotado de sentido, o
romance clássico é a história da obstinação de um sujeito (o herói demoníaco) procurando em
vão, e de modo degradado, dar significado ao mundo exterior e à experiência humana. Para
Lukács, essa vontade subjetiva de unidade, essa obstinação, vem da mente do romancista, e o
problema estético do romance consiste em fazer com que valores autênticos que existem na
consciência do romancista como conceitos abstratos, revestidos de caráter ético, transformem-
se em obra literária, em que esses conceitos só podem existir mediante uma “ausência
tematizada” ou uma “presença degradada”. Não obstante o fracasso do herói romanesco em
sua busca pelos valores autênticos, o romancista realizaria, ao contar esse fracasso, uma
reconciliação momentânea de matéria e espírito. A atividade criadora do romancista, portanto,
teria um significado ético, cujo objetivo é a adequação utópica — unidade entre homem e
mundo, o sentido e a vida inseparáveis. Em última instância, Lukács defende não ser o
pensamento abstrato, mas sim a narração concreta, na organização formal das intrigas, o lugar
ideal da atividade utópica. A partir das teorizações de Lukács, Goldmann (1990) levantou
uma hipótese referente ao desenvolvimento ulterior do gênero. Para Goldmann, o romance é a
“transposição para o plano literário da vida cotidiana na sociedade nascida da produção para o
mercado (p. 16)”, sociedade na qual o valor de uso (qualitativo) tende a ser suplantado pelo
valor de troca (quantitativo). A constituição do valor de troca como valor absoluto se traduz
num mal ontológico na sociedade burguesa, em que os valores de uso, apesar de ainda
nortearem a vida econômica, se reduzem a um nível implícito, assim como os valores
autênticos do mundo romanesco. As transformações do romance a partir de Kafka, e os
posteriores romances de dissolução do sujeito ou de negação de uma busca que progride
seriam homólogos às transformações da vida nessa sociedade, de acordo com a evolução da
economia de mercado e o incremento do processo de reificação.
Contudo, não estamos aqui preocupados necessariamente com a forma romanesca,
mas, em situação bem mais restrita e específica, interessa-nos a forma dialética de busca de
Guimarães Rosa pelo sentido do mundo por meio da arte de narrar. Nossas considerações
referem-se às narrativas de Primeiras Estórias, que se substanciam na forma de contos. A
respeito dessa forma de narração, distintamente do romance, sabe-se que o universo diegético
projetado no conto não tem a abrangência daquele, mas é tão somente um recorte de
experiência vivida, ou melhor, o conto geralmente se restringe a um momento chave, crucial,
da existência de uma personagem ou de um grupo. Goldmann (1990) coloca essa diferença
formal nos seguintes termos: enquanto no romance clássico há uma oposição constitutiva
entre o herói e o mundo, fundamento de uma ruptura insuperável, no conto essa ruptura pode
ser apenas acidental. No conhecido ensaio sobre O Narrador, Benjamim (1996) esclarece
pormenorizadamente essa diferença ao considerar o surgimento do romance como ponto
culminante da morte da narrativa, por conta da extinção da sabedoria, esta chamada de “o lado
épico da verdade”, o conselho tecido pelo narrador na substância viva da existência.
Benjamim explica:
O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está
essencialmente vinculado ao livro. (...) A tradição oral, patrimônio da poesia épica,
tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. (...) Ele se
distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele
conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do
romance é o indivíduo isolado, que não pode falar mais exemplarmente sobre suas
preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los
(BENJAMIM, 1996, p. 201).
Que relação haveria entre as narrativas de Primeiras Estórias e a transmissão de
sabedoria mediante o contar de uma experiência vivida, de cujo esfacelamento na sociedade
capitalista fala Benjamim? De que forma o conteúdo social contemporâneo poderia ter se
refletido nessas narrativas, tendo como pressuposto a tese de Benjamim
3
segundo a qual o
rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, destrói a possibilidade de transmissão em
sentido pleno de uma experiência do plano individual para o coletivo? Que diferença
fundamental se pode verificar entre essas narrativas e o romance Grande Sertão: Veredas,
vistos em perspectiva genética na obra de Guimarães Rosa? A esses questionamentos
buscamos traçar alguns caminhos de resposta nos parágrafos que seguem.
Em Primeiras Estórias encontra-se uma série de vinte e um contos curtos que dão ao
leitor uma primeira impressão de extrema diversidade. Sobre essa diferenciação entre as
narrativas, Paulo Ronái (2001) comenta:
[...] cada espécime pertence, por assim dizer, a outra variante ou subgênero — o conto
fantástico, o psicológico, o autobiográfico, o episódio cômico ou trágico, o retrato, a
reminiscência, a anedota, a sátira, o poema em prosa... Distinga-se a multiplicidade
dos tons: jocoso, patético, sarcástico, lírico, arcaizante, erudito, popular, pedante —
multiplicidade decorrente não só do tema, senão também da personalidade do
narrador, manifesto ou oculto. Observa-se a variedade da construção e do ritmo
(RÓNAI, 2001, p. 19).
Apesar da multiplicidade característica desse livro que foi a primeira incursão de
Guimarães Rosa pela narrativa curta, o leitor tem também uma marcante impressão de
unidade entre os contos. Em comentário elegante, Rónai afirma:
[...] as histórias se apresentam com inconfundível ar de família, nimbadas do mesmo
halo, trescalando o mesmo perfume. O seu parentesco não se reduz a traços
estilísticos: provém de uma concepção pessoal tanto da vida como da arte (RÓNAI,
2001, p. 19).
3
Ver especialmente os ensaios “Experiência e pobreza” e “O narrador”, em Benjamin (1996).
Conclui-se das observações acima que não há como escapar de um percurso de mão
dupla na análise de Primeiras Estórias: há que se transitar a todo tempo entre os traços
conjuntivos e os disjuntivos.
Ao se buscar um esquema que dê conta da unidade significativa do livro, há o perigo
do reducionismo, de tentar equacionar uma obra que transborda os limites lógicos. Como
ainda ressaltou Paulo Rónai sobre essa armadilha para a crítica: “As tentativas de explicação
acabam, sem querer, apoiando o traço de desenhos cuja magia está no esvaimento dos
contornos, por dar expressão matemática a um conjunto em que não há equações perfeitas”
(RÓNAI, 2001, p. 16). Contudo, a síntese é necessária para o trabalho comparativo. Mas em
função da complexidade da obra, exige-se um minucioso trabalho com as partes, que, não
obstante, resulta no traçado de alguns poucos caminhos dos muitos possibilitados pela leitura.
De antemão, portanto, é preciso ressaltar as limitações de nossas análises, que se focaram em
alguns poucos aspectos, julgados mais relevantes para o trabalho de comparação de que nos
ocupamos. E, paradoxalmente, o que nos pareceu durante o trabalho ser um dos aspectos
essenciais de unidade da obra é aquele já levantado por Rónai — “um conjunto em que não há
equações perfeitas” —, pois o que pauta os contos de Primeiras Estórias, como já tratamos no
capítulo anterior, é a promoção de uma realidade não apreendida por instrumentos lógicos e
que determina os peculiares núcleos de ação das narrativas.
Em primeiro lugar, a narração de cada história, ao invés de aproximar o leitor da ação,
tende a afastá-lo dela, e a ação em si, se considerada como um evento de ordem material que
serve à seqüência lógica, à relação de causa e efeito na narrativa, essa ação é bem reduzida.
Suzi Sperber em esclarecedor ensaio explica e confere um termo barthesiano — distaxia — à
relação existente entre a microestrutura (frase) e a macroestrutura (núcleo de ação) nos contos
de Primeiras Estórias:
[a frase] apresenta uma maior distância de nome a nome. Esta distância — distaxia —
é preenchida por palavras-instrumento em quantidade, palavras que encaminham o
relato, sem destinação. Estas palavras-instrumento revelam-se nem funcionais, nem
indiciais, nem informantes, porque não se referem à ação. O núcleo da ação é curto e
pouco. As palavras-instrumento fazem com que o leitor-receptor tenha sua atenção e
memória afastada da ação — que se mostra insuficiente e insignificante diante de
verdades maiores. (SPERBER, 1982, p. 99)
Ademais, os eventos que poderiam ser considerados essenciais para a construção das
diegeses são em alguns casos narrados abrupta e casualmente, de forma sintética, em função
de uma maior importância conferida a valores que transcendem os acontecimentos. Veja-se o
seguinte trecho de ‘A menina de lá’, em que se narra a morte da protagonista:
E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. (PE, 2001a,
p. 71).
Em outra estória, “Os irmãos Dagobé”, a morte de Damastor Dagobé, assassinado em
legítima defesa pelo personagem Liojorge, é o evento desencadeador do clima de tensão, que
se incrementa no decorrer da narrativa. No entanto, a expectativa de vingança por parte dos
irmãos de Damastor é quebrada, a ação esperada e fomentada pelas especulações do narrador
não se realiza. Mas o anticlímax do desfecho, por conta de sua surpresa, amplia o valor do
acontecimento final: a redenção dos dois irmãos por intermédio da morte do primogênito.
Essa forma de promover a tensão para finalmente quebrar a expectativa encontra-se ainda em
“Famigerado”, “O cavalo que bebia cerveja”, “Luas de mel”, “Darandina” e “—Tarantão,
meu patrão”. Os finais desses contos se realizam não numa ação exterior esperada, mas
somente na solução de um conflito interior das personagens.
Efetivamente percebe-se nos contos uma desestruturação da seqüência lógica narrativa
e a relativização da ação, pois esta se submete a uma outra realidade que não a material:
Parecia não acontecer coisa nenhuma.
Acontecia o não-fato, o não-tempo (PE, 2001a, p. 212).
Todos os vivos atos se passam longe demais (PE, 2001a, p. 72).
Aquilo que não havia, acontecia (PE, 2001a, p. 80).
Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo (PE, 2001a, p. 119).
Afirmamos em certo ponto de nossas considerações que nos interessava buscar nos
contos de Primeiras Estórias a relação dialética que parece haver na tentativa de reconciliação
entre matéria e espírito por meio da narração. Não há dúvidas de que essa busca em
Guimarães Rosa se dá de forma metafísica. Num momento histórico em que a unidade
desejada é impossível, a realização de um universo reconciliado é projetada no passado, num
movimento nostálgico em direção ao mito. Se na experiência concreta moderna o tempo
equivale à rotina de trabalho e sono, e à separação entre trabalho e lazer, se a
superintelectualização da vida moderna faz com que a experiência real com os objetos pareça
apenas ocorrer em momentos fugazes e quando menos esperamos, Guimarães Rosa instaura
sua narração calcada num tempo ritualístico primitivo, de forma que a expressão desse tempo
pela linguagem permita ao leitor a experiência de uma relação orgânica com o mundo por
meio da arte. Isso não quer dizer que a adequação utópica de Guimarães Rosa seja
simplesmente uma mística nostálgica, limitando-se à tentativa de retorno aos parâmetros de
um antigo sistema cultural, em que se encontrariam os valores autênticos aspirados pelo
sujeito da obra. Por meio da narração, as experiências das personagens se presentificam no
tempo concreto da expressão verbal, que as projeta como figuras da experiência da eternidade,
de uma religação com o ser.
Nos contos de Primeiras Estórias todo o universo diegético está em espaço do
sagrado, cada uma das narrativas é uma epifania, as personagens se conciliam com o mundo
pela mediação transcendente, e o elo dessa reconciliação, como explicamos no capítulo
anterior, são as personagens marginais, seres de alma pura, para quem o mundo em que vivem
é apenas reflexo de uma realidade supra-sensível, a qual se revela em suas palavras e suas
atitudes enigmáticas.
Desse modo entende-se como, em contrapartida, no romance Grande Sertão: Veredas
a busca pelo significado essencial das coisas se frustra: Riobaldo rememora sua experiência
concreta para conferir-lhe sentido, mas as abstrações decorrentes dessa tentativa se acumulam
em mais interrogações. O sentido se afasta da vida tanto na experiência concreta (“eu
atravesso as coisas — e no meio das coisas não vejo!”) quanto na atividade de racionalização,
ou de questionamentos metafísicos sobre o percurso da ação. A travessia de Riobaldo é de
caráter duplo. É o jagunço em estado de inocência quem cruza o sertão, onde o “diabo na rua,
no meio do redemoinho” anuvia tudo, impede o saber as coisas; mas é o Riobaldo
barranqueiro quem perscruta seu interior no monólogo, e busca as palavras que nomeiam o
sertão. A travessia, então, torna-se viagem interior, a fim de se encontrar valores autênticos na
busca da palavra: Grande Sertão: Veredas revela a inquietação encontrada nos grandes
romances do século XX.
Ao contrário da epopéia, onde os conceitos têm representação concreta nos deuses,
envolvendo organicamente todas as atividades do homem, no romance Grande Sertão
Veredas o divino e o demoníaco se tornam conflito subjetivo, são mediados pela consciência
inquiridora do ex-jagunço; Deus e Diabo abstraem-se. Como explica Donaldo Schüler (1969):
Guimarães Rosa, com o aproveitamento do sobre-humano não recria a epopéia. Não
há verdadeiramente uma epifania do sobre-humano no Grande Sertão. A
multiplicidade das revelações de uma força demoníaca não têm concretitude objetiva.
Satanás tem uma existência apenas lingüística. Os nomes nos quais se diversifica o
demoníaco não designam um ser ou seres, designam antes a imaginação fecunda do
homem. Satanás tem existência verbal, não ontológica. Esta concepção é radicalmente
anti-épica. Na epopéia palavra e realidade coincidem. O que tem existência verbal é
também ontologicamente verdadeiro. Deus é totalmente abstrato em Grande Sertão:
Veredas. Age nas coisas, mas só um ato de fé testemunha a sua presença. Não tem ao
menos a concretitude lingüística do diabo. (SCHÜLER, 1969, p. 55-56).
Assim, o fascinante e misterioso sertão habitado por Deus e pelo Diabo, se desfaz na
reflexão sobre a existência concreta desses seres sobre-humanos. “O sertão: é dentro da
gente”, e ao se tornar inquietação interior, destrói a magia daquele mundo de inocência e
ingenuidade, recolocando o homem em face da busca do sentido perdido do mundo. De
acordo com as teorizações de Lukács, mais tarde retomadas e revistas por Goldmann, a
superação nesse caso está no próprio romancista Guimarães Rosa, que ao dar forma em sua
narração à extensa busca de Riobaldo por valores que dêem sentido à experiência humana,
consegue ele mesmo, o autor, uma unidade momentânea entre sujeito e objeto.
Contudo, acreditamos que em Primeiras Estórias essa superação ganhe contornos
distintos devido à forma em que a diegese se manifesta. A unidade entre homem e mundo que
parece se efetivar totalmente por meio da epifania, se considerado cada conto em particular
em relação ao conjunto, não deixa também de ser frustrada, porque fragmentária, acidental e
fugaz. Parece-nos que a forma de conto curto pôde veicular a epifania que envolve
integralmente cada narrativa, permitindo que se manifeste o sentido das coisas, o que não
seria possível numa narração de maior fôlego. Ademais, a vasta diversidade e complexidade
de técnicas narrativas que dão forma às estórias de Rosa parece-nos ser também reflexo da
própria fragmentação da experiência na vida contemporânea. Analisando por esse ângulo, a
reconciliação alcançada em cada conto perderia seu sentido na totalidade da obra. Porém,
mesmo sendo cada conto um fragmento ínfimo da existência das personagens, e cada história
se manifeste numa forma particular de perspectiva, de tom, e de subgênero (como afirma
Rónai), as narrativas parecem promover, por outro lado, a reconciliação almejada, epifânica,
por conta do substrato totalmente articulado pelo sentido metafísico, tanto na estrutura
totalizante (a estrutura especular) quanto na estrutura específica de cada narrativa. Contudo, o
sucesso da busca metafísica é feito à custa da ação; esta é retraída, quase inexistente, a fim de
que a epifania seja possível e uma verdade absoluta seja revelada (“Quando nada acontece, há
um milagre que não estamos vendo”). Dessa forma, em Primeiras Estórias o sentido
existencial é buscado não pela articulação lingüística de e reflexão sobre os fragmentos da
memória da personagem, como ocorre em Grande Sertão: Veredas, mas sim pela amnese
platônica das personagens marginais: a lembrança do mundo perfeito para além da percepção
dos sentidos, que conduz essas personagens, de cunho mais contemplativo que ativo, à
plenitude da existência.
Sperber (1976) explica com as seguintes palavras a diferença da busca no romance
Grande Sertão: Veredas e no conjunto de contos Primeiras Estórias:
Na passagem de Grande Sertão: Veredas a Primeiras Estórias passaram-se seis anos e
um amadurecimento maior. O Belo já não é mais buscado. Já faz parte do cosmos. O
mundo, aliás, é antes declaradamente de irrealidade que de realidade. A vida é
encarada como prisão: é a própria caverna. Como o mundo já é belo, e o belo ficcional
foi encontrado na crescente força poética da linguagem, o que é buscado é algo além
de si, sugerido pelo mundo. O mundo apresenta os reflexos deste além.
Reconhecendo-se os reflexos, o salto é possível: é a epifanicidade. (...) E a busca já é
não mais nem sequer ética, senão metafísica: (...) da busca do ético, misturada com o
metafísico, passando, no caso de Primeiras Estórias, a funcionar como o seu sentido
primordial, que era o metafísico. (SPERBER, 1976, p. 76).
Partindo do pressuposto de que o autor Guimarães Rosa é o responsável por dar forma
em sua obra à consciência possível de um sujeito num determinado momento do processo
histórico, temos a hipótese de que Primeiras Estórias dá forma narrativa aos valores do
sujeito sertanejo, esse grupo de uma vasta e mal delimitada região do interior do Brasil, que se
encontra às voltas com o processo de urbanização e “modernização” do país em meados do
século passado.
O sertanejo é detentor de uma visão mística do mundo e, primordialmente, no sertão
de magia em que desenvolvem as narrativas de Primeiras Estórias, as personagens de mais
extrema marginalidade social e psíquica, a criança de sensibilidade exacerbada, o louco —
nos mais variados graus — representam o avesso do mundo secularizado, dominado pela
ciência e pela técnica. Por meio dessas personagens se materializa uma ordem oculta, que
escapa à consciência racional e objetiva do homem civilizado, ou do leitor, provavelmente
urbano e culto, de conferir sentido à sua existência. Resulta disso o fato de não haverem
acontecimentos tal como comumente se encontra na forma do conto: “parecia não acontecer
coisa nenhuma”. Porque essas personagens enxergam, intuem, dão palavras ao que não há, o
existente oblitera-se para se criarem novas existências. Rónai (2001), em comentário preciso,
trata desse percurso do irracional nos contos, que os leva ao campo do discurso poético:
Neles [personagens] a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras
ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos.
O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma e passa a agir. Essa vitória do
irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia (RÓNAI, 2001,
p. 19).
A vivência do menino João Guimarães Rosa no sertão de Minas Gerais
indubitavelmente é a fonte primeira dessa concepção primitiva de mundo preservada pelo
sertanejo. Contudo, quem efetua o resgate e a organização artística dessa consciência é o
Guimarães Rosa de meados do século XX, homem de formação erudita, escritor num país em
processo de modernização às margens do desenvolvimento capitalista.
Há uma aspiração de retorno ao arcaico, uma relação constituinte com o passado, mas
por meios extremamente modernos, que relançam as narrativas ao presente. A ponte para um
passado remoto, para o tempo original, é construída em complexas associações simbólicas,
característica da literatura moderna, num trabalho de extrema consciência lingüística, que
inclui experimentações com a estrutura de diversas línguas ao mesmo em tempo que
incorpora no discurso do narrador a oralidade regional, do homem dos gerais, aquele que
detém a perdida arte de narrar da cultura oral.
Se concordarmos que o conteúdo é determinado pela sua forma, ou seja, esta e aquele
não se dissociam, somos levados a concluir que o conteúdo expresso nos contos não é o da
consciência real do sertanejo. As modernas técnicas narrativas, a experimentação até os
limites da linguagem na obra parece advir de uma outra consciência que não a do homem do
sertão. Contudo, parece-nos que as narrativas projetam por meio da consciência do artista
Guimarães Rosa uma síntese entre o vertiginoso e contraditório processo de modernização do
país no período, e o lugar do homem sertanejo e seus valores dentro desse processo.
Às margens do capitalismo, o país se moderniza de forma contraditória. O homem do
interior despede-se do campo, onde não pode haver mais condições para a agricultura
familiar, haja vista a transformação da agricultura em negócio aos moldes industriais, cuja
produção passa a ser regulada pelas oscilações do mercado. Resta ao homem do campo ir
para a cidade — é o movimento da margem para o centro. Mas na cidade, ele só faz engrossar
o grupo de marginalizados.
A cidade de Brasília, monumento à modernidade, cidade-símbolo de um projeto de
racionalidade instrumental, ergue-se no centro do país, cercada pelo que há de mais arcaico, e
levantando a bandeira dos cinqüenta anos de progresso em cinco. Os padrões de imitação vêm
dos países desenvolvidos — o país marginal busca se espelhar nos centros de poder
econômico. Mas não é possível haver espelhamento simétrico, que instauraria a semelhança.
A relação é de diferença; continua-se à margem, pois os que estão ao centro dominam,
impondo um modelo de desenvolvimento que não faz sentido para a realidade do país.
Aquela sociedade essencialmente rural começara a se urbanizar efetivamente a partir
do primeiro surto industrial durante a República Velha. Mas essa urbanização se torna
vertiginosa nos anos 50, e a população urbana ultrapassa finalmente a rural nos anos 60. O
setor industrial e financeiro assume o comando no movimento da produção de riqueza,
gerando empregos no meio urbano e suprimindo empregos no meio rural por meio da
mecanização do trabalho. Os trabalhadores rurais que são obrigados a deixar o campo juntam-
se à classe operária na cidade ou ficam à margem do processo, sem um lugar definido dentro
da nova organização.
Deslocado de seu ambiente originário, o sertanejo se integra ou busca se integrar à
realidade secular da vida urbana, onde o modo de vida não é mais aquele do tempo ritualístico
do ambiente rural, do trabalho intimamente ligado às práticas e crenças místico-religiosas.
A religião no mundo contemporâneo é caracterizada pela perda da centralidade com
relação à capacidade de conferir significado à existência do homem e a sua experiência de
vida. A marginalização dos valores religiosos enquanto sistema cultural é concomitante ao
processo de laicização na modernidade. O universo religioso se marginaliza em função de
uma sociedade dessacralizada, mais centrada no indivíduo e regida pelo mercado, por outras
instituições e práticas, pela ciência.
Em face dessa situação sócio-histórica, Guimarães Rosa busca superar na criação de
Primeiras Estórias a disjunção entre a realidade da vida urbana moderna em que o sertanejo é
inevitavelmente aglutinado e os valores transcendentes a que esse sujeito aspira. Supera-se
pela atividade artística o largo rio que divide uma concepção mística do mundo, fundada no
irracional e contemplativo, e a extrema intelectualização da vida moderna, em que há a
consciência de que a realidade material, na qual se insere o próprio produto do ato criador do
autor, é resultado da atividade dos homens na história. Guimarães faz existir pela criação
artística a terceira margem, que não é nem esta primeira, em que se figura o “ordeiro,
positivo”, segundo as leis lógicas da realidade material, e nem mesmo aquela outra margem,
“de não se poder ver a forma”, por tão largamente que se estende o rio.
4. “Seqüência”: uma viagem de retorno ao Ser
Os cinco contos-base da transcodificação fílmica operada por Nelson Pereira dos
Santos com sua obra A terceira margem do rio são: “A menina de lá”, “Os irmãos Dagobé”,
“A terceira margem do rio”, “Fatalidade” e “Seqüência”. Como o objetivo principal é o de
compreender a forma com que essas narrativas foram organizadas na totalidade da narrativa
do filme e propor explicações para a diferença de composição entre o filme e os textos
literários, esses contos serão tratados mais adiante em função dessa totalidade fílmica. Antes,
porém, será abordado de maneira específica e mais aprofundada o conto “Seqüência”, que não
só exemplifica uma das variantes narrativas que se encontram em Primeiras Estórias, mas
também permite oferecer uma mostra parcial das implicações da transcodificação
cinematográfica de uma peça literária.
“Seqüência”, a décima estória do livro, pode ser enquadrada entre as narrativas que
desenvolvem o tópico do retorno, ou entre os contos maravilhosos em que um animal faz o
papel de auxiliar do herói na conquista de seu objeto amoroso. Uma vaca liberta-se de quem a
comprou e faz uma viagem de volta a seu local de origem. Diante desse dano, um moço, filho
do proprietário (“seo” Rigério), vai em busca do animal fugitivo, chegando, após uma
trabalhosa perseguição, à fazenda Pãodolhão, de propriedade de Major Quitério. Lá encontra
uma moça e, imediatamente, os dois percebem que se amam. Nessa estória, Guimarães Rosa
esboça quadros descritivos amplos (rio, vastos campos, morros), sugerindo-os ou referindo-
os, quando não equilibra essas descrições com detalhes que nos conduzem ou nos dão pistas
para interpretações possibilitadas pela polissemia inerente a esses procedimentos.
Partimos da hipótese de que a forma fundamental do referido conto é a do
maravilhoso, e verificamos que os estudos morfológicos de Vladimir Propp se mostraram os
mais adequados à análise formal de nosso objeto, já que ele apresenta apenas uma seqüência
narrativa simples que se encaixa perfeitamente à linearidade de funções do conto maravilhoso
formulada pelo teórico russo
4
. Verificamos também que essa forma fundamental passa por
um processo de derivação em plano simbólico, mediante a vinculação das esferas de ação das
personagens a elementos e ritos da religião cristã.
Os estudos de Vladimir Propp são ponto de partida quando se trata de análise formal
do conto. Em Morfologia do conto ele analisa cem contos populares russos, postulando uma
estrutura invariante do conteúdo narrativo dos contos maravilhosos. Essa estrutura propõe
uma autonomia do plano do conteúdo em relação ao plano de expressão, e é apreendida pelo
critério das funções narrativas, que são determinadas e classificadas segundo a ação das
personagens. Propp encontra no conto maravilhoso russo uma série de 31 unidades mínimas,
as funções, que se caracterizam pela linearidade e uma ordem fixa. Essas 31 funções não se
manifestariam em todos os contos, mas sua ordem seria inalterável.
Tendo em vista que a análise de Propp é de caráter sintagmático e não paradigmático,
as personagens, que são variáveis, não são para o teórico unidades de caráter fundamental
para a intriga. De qualquer forma, ele agrupa as personagens em 7 esferas de ação: a do herói,
a do agressor, a do doador, a do auxiliar, a da princesa e do seu pai, a do-que-manda e a
do falso herói. Uma mesma personagem pode cumprir funções diversas no desenvolvimento
da intriga, assim como uma mesma função pode ser exercida por várias personagens.
A partir dessas definições, o trabalho do analista consiste em segmentar o conto,
codificar cada uma das unidades e modelizar as relações estabelecidas entre elas.
Abaixo, procede-se a essa análise no conto “Seqüência”.
4
Na esteira dos estudos pioneiros de Propp, desenvolveram-se outros estudos mais amplos de forma, que
poderiam ser aplicados de maneira mais genérica às estruturas narrativas. As críticas à metodologia do teórico
incidiram principalmente sobre o caráter linear de encadeamento das funções. Partindo desse problema, Claude
Bremond propôs um modelo de organização orgânica, em que se distinguem três tipos de ligação entre as
seqüências narrativas. Greimas se ancorou nos estudos de Propp para estabelecer um modelo aplicável a várias
manifestações culturais, integrando a informação paradigmática com o encadeamento sintagmático da estrutura
narrativa. Contudo, para os objetivos de nossa análise, o modelo de Propp melhor se presta aos nossos objetivos
por se tratar da análise um conto contemporâneo que se apropria da forma fundamental do maravilhoso, a qual
foi rigorosamente analisada em Morfologia do conto.
O título do conto, “Seqüência”, já parece nos indicar o caminho para a análise formal.
A narrativa consiste de apenas uma seqüência elementar, de encadeamento sucessivo, cujas
esferas de ação das personagens se enquadram na tradição do conto maravilhoso. Segue
abaixo a segmentação e classificação da narrativa em funções segundo o modelo morfológico
proposto por Propp.
Uma vaca segue por uma estrada em direção à fazenda Pãodolhão, de propriedade de
Major Quitério (α - Situação Inicial). O animal, que fazia parte de uma boiada comprada por
seo Rigério, dono da fazenda Pedra, está fugindo em retorno a sua antiga terra: “Só, assim, a
vaquinha se fugira, da Pedra, madrugadamente […] Fazia parte de um gado, transportado, de
boiadeiros […] Viera do Pãodolhão — sua querência (PE, 2001, p. 114)” (a – falta). A notícia
da fuga da vaca chega a seo Rigério, que poderia mandar um de seus vaqueiros ao encalço do
animal. Porém, um de seus filhos (o herói) se propõe a buscar a vaca e reparar a falta (B
3
– A
notícia da malfeitoria ou falta é divulgada; deixa-se o herói partir por sua livre vontade):
Soada a notícia, seo Rigério, o dono da Pedra, disse: “Diaba” […] Seus vaqueiros,
postos, prontos. Esse seo Rigério tinha os filhos diversos, que por em volta se
achavam […] Só um dos filhos, rapaz, senhor-moço, quis-se, de repente, para aquilo:
levar em brio e tomara conta (PE, 2001, p. 114).
O herói, então, toma um cavalo, prepara o laço, deixa a casa e vai cumprir sua missão
(C).
Nesse ponto da análise, faz-se necessário esclarecer que a personagem da vaca
encaixa-se em duas esferas de ação. Ela faz o papel de futuro doador, que põe o herói à prova
(D
1
) para o recebimento do auxiliar mágico e, ainda, o animal é o próprio objeto mágico, que
permitirá ao herói encontrar em outro reino a princesa e suprir sua carência. Essa carência,
portanto, também tem um caráter duplo: refere-se tanto à falta do objeto mágico quanto à de
uma noiva (a
1/2
).
A perseguição da vaca (E
1
– Reação do herói) é dividida em três etapas, o que
corresponde a uma triplicação da prova do herói. Na primeira, o rapaz pede informações do
animal fugido, galopa por bom tempo através de campos secos pela estiagem, mas não avista
a vaca e, cansado, faz uma pausa na busca:
Já o rapaz se anorteava. Só via o horizonte. Sabia ode uma vaquinha fugida: que, de
alma, marca o rumo e faz atalhos — querençosa. Entrequanto, ele perguntava.
Davam-lhe novas de arribada. Seu cavalo murça se aplicava, indo noutra forma,
ligeiro. Sabia que coisa era o tempo, a involuntária aventura. E esquipava. Ia o longo,
longo, longo. Deu patas à fantasia. Ali, escampava. Tempo sem chuvas, terrentas
campinas, os tabuleiros tão sujos, campos sem fisionomia. O rapaz ora se cansava.
Desde aí, o muito descansou (PE, 2001, p. 115).
Na segunda etapa, o herói se questiona sobre sua missão, pensa em desistir da
empreitada, mas não o faz por vergonha de retornar sem o objeto da busca. É nesse ponto que
o rapaz avista a vaquinha à distância, subindo um morro:
O rapaz lançou longe um olhar. De repente, ajustou a mão à testa, e exclamou. Do
ponto, descortinou que: aquela. A vaquinha, respoeirando. Aí e lá, tomou-a em vista.
O vulto, pé de pessoa, que a cumeada do morro escalava. Ver o que diabo. Reduzida,
ocupou, um instante, a lomba linha do espigão. Aí, se afundou para o de lá, e se
escondeu de seus olhos. Transcendia ao que se destinava (PE, 2001, p. 116, grifo
meu).
A última fase da viagem apresenta ao herói mais uma tarefa: atravessar o rio, que
“como cortando o mundo em dois, no caminho se atravessava”. Sem hesitar, a vaca transpõe o
rio, e o rapaz, não se dando por vencido, descalça as botas e atravessa as águas com seu
cavalo.
Cabe aqui ressaltar que a narração da perseguição da vaca é homóloga a uma técnica
de montagem narrativa muito utilizada no cinema, especificamente para montar seqüências de
perseguição nos filmes de ação. A montagem é paralela, focalizando revezadamente o espaço
percorrido pela vaca e pelo rapaz. A narração da perspectiva visual das personagens faz-se
homóloga à focalização de uma câmera, gerando belos planos de conjunto como este de um
vasto campo: “[O rapaz] só perseguia a paisagem. Preparava-se uma vastidão: de manchas
cinzas e amarelas. O céu também em amarelo. Pitavam extensões de campo, no virar do sol
das queimadas; altas, mais altas, azuis, as fumaças desmanchavam-se”; ou esta descrição da
visão que a vaca tem de cima de um morro: “antes das portas do longe, as colinas convalares
— e um rio, em suas baixadas, em sua várzea empalmeirada. O rio, liso e brilhante, de
movimentos invisíveis”. Em certo ponto da perseguição, há uma ligeira confluência de
espaços, quadro em que a vaca se insere pela primeira vez no campo visual do rapaz. Em
seguida, o animal sai do enquadramento ao descer o morro em que foi focalizado. A narração
segue de forma paralela, até que a perseguição culmina num enquadramento em que os
personagens ocupam o mesmo campo visual: “o rapaz e a vaca se entravam pela porteira-
mestra dos currais”.
Vencida a tarefa da perseguição, fica implícito que o auxiliar mágico se coloca à
disposição do herói (F
5
— o herói encontra-o). Nesse ponto, já noite, o herói adentra outro
reino, a fazenda do major Quitério (G
2
– deslocação no espaço entre dois reinos). Sob a
indicação dos mugidos da vaca, o rapaz avista a casa grande da fazenda: “Mugiu,
arrancadamente. Remugiu em fim. A um bago de luz, lá, lá. Às luzes que pontilhavam, acolá,
as janelas da casa, grande. Só era uma luz de entrequanto? A casa de um Major Quitério”.
Então, juntamente com o objeto mágico, o herói dirige-se ao palácio desse reino. Ali encontra
sua princesa, uma das quatro moças da casa, e sua verdadeira falta, até então desconhecida, é
finalmente suprida (KF
1/2
– Reparação):
Sob o estúrdio atontamento, começou a subir a escada. Tanto tinha de explicar.
Tanto ele era o bem-chegado!
A uma roda de pessoas. Às quatro moças da casa. A uma delas, a segunda. Era alta,
alva, amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-se? O moço compreendeu-se.
Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele a ela diria: — “É sua”. Suas almas se
transformavam? E tudo à sazão do ser. No mundo nem há parvoíces: o mel do
maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se
(PE,2001, p. 118).
Abaixo, segue a cadeia de funções do conto analisado, composto de uma só seqüência:
α a
1/2
B
3
C D
1
E
1
F
5
G
2
KF
1/2
No texto “As transformações do conto maravilhoso”, Vladimir Propp (1978) vincula a
forma fundamental desse conto a antigas representações religiosas. Para ele, os contos
maravilhosos provêm de antigas religiões em que se acreditava na viagem dos mortos e na
transmigração das almas num plano supra-sensível. Com efeito, esses elementos de uma
religião animista são encontrados em antigas civilizações, nas quais as narrativas orais eram
vinculadas à prática religiosa.
Por outro lado, a realidade, segundo o teórico, está ligada a formas derivadas ou
secundárias e, no caso do conto maravilhoso, ao contrário de outras classes de contos, haveria
relativamente poucos elementos decorrentes da vida prática.
Deixando claro que é preciso ser prudente ao estabelecer relações entre as formas
primárias do conto maravilhoso e a vida religiosa, Propp afirma que a ligação é mais provável
nos casos em que se faz referência direta aos cultos e ritos. Dessa forma, haveria casos em que
se poderia estabelecer a matéria dos cultos e ritos como caráter primário ou fundamental do
conto. Contudo, essa vinculação só seria verdadeira “nos casos em que um grande espaço de
tempo separa o aparecimento da religião e do conto, nos casos em que a religião em causa
desapareceu, em que seus objetivos se perdem no passado pré-histórico” (PROPP, 1978, p.
209). Quando se trata de comparar uma religião viva com um conto, a relação de dependência
é inversa: “O conto (maravilhoso) surge das antigas religiões, mas a religião contemporânea
não surge dos contos. Esta de maneira alguma os cria, mas modifica os seus elementos”
(idem). Propp nomeia um dos tipos de derivação da forma fundamental de substituição
confessional, em que religiões contemporâneas como o cristianismo, islamismo e budismo
são espelhadas nos contos dos povos que as professam, substituindo formas antigas por
formas novas.
Em se tratando do conto contemporâneo “Seqüência”, se nos utilizarmos das
categorias descritas por Hjelmslev (1963), é evidente que no plano de substância do conteúdo
— ou da forma secundária, segundo Propp — representa-se um ambiente localizável, o do
sertão dos Gerais; os personagens seo Rigério, o rapaz, Major Quitério e a moça são legítimos
representantes do patriciado rural, e as práticas descritas tratam de um Brasil arcaico, que
convive até hoje com um Brasil integrado ao mundo moderno. No plano da forma do
conteúdo, por outro lado, a esfera de ação dos personagens remonta à forma do conto
maravilhoso, conforme se depreende da análise: seo Rigério é o-que-manda, o rapaz é o
herói ou príncipe, a moça e Major Quitério são a princesa e seu pai, e a vaca desempenha as
funções de doador e auxiliar mágico. Mais do que isso, o texto nos leva a afirmar que
Guimarães Rosa promove uma substituição confessional em que a antiga forma do conto
maravilhoso incorpora formas próprias à religião cristã. Contudo, essa substituição não é
explícita, mas ocorre em nível simbólico, sendo necessária uma série de associações entre
elementos e ritos da religião cristã e a descrição das personagens e suas esferas de ação, além
de deslocamentos simbólicos no espaço da narrativa.
Carregada de elementos simbólicos, a vaca cumpre no conto a função de ser
intercessor, ou mediador, que permite ao rapaz encontrar outro ser que supre sua carência.
Várias indicações textuais conduzem o leitor a conferir à vaquinha o estatuto simbólico de
cristo na narrativa:
1. A cor do animal: “Vinha pelo meio do caminho, como uma criatura cristã. A
vaquinha vermelha, a cor grossa e afundada” (PE, 2001a, p. 113). A cor vermelha
simboliza o sangue do ser expiatório. No rito da santa ceia, bebe-se o vinho em rememoração
ao sacrifício expiatório do Cristo, cujo sangue representa o valor pago pela remissão dos
pecados da humanidade.
2. A forma dos chifres: “Sacudia os chifres, recurvos em coroa, e baixava a testa”
(idem). Os chifres do animal, que convencionalmente têm um caráter de símbolo diabólico,
têm a forma de uma coroa, que tanto pode representar aquela usada por Cristo, quanto a
auréola que circunda a cabeça de santos, segundo a iconografia cristã.
3. O próprio animal escolhido, um bovino, que é de certa forma alimento básico na
cultura ocidental, pode representar também o sacrifício e o corpo de Cristo, um dos elementos
centrais dos ritos cristãos.
4. O caráter transcendente conferido à vaca: “Transcendia ao que se destinava” (PE,
2001, p. 116). O texto deixa claro que o animal é predestinado e que sua empreitada vai além
da simples fuga.
A vaquinha, contudo, tem um caráter ambíguo: no texto lhe são conferidos atributos
tanto de ser divino quanto demoníaco. O demoníaco aparece na fala de seo Rigério, que a
chama de diaba ao saber de sua fuga, e repete-se quando o rapaz vê ao longe o animal
subindo o morro: “Ver o que diabo” (PE, 2001a, p. 116). Essa ambigüidade é inerente aos
cristos ou bodes expiatórios. Lembremos que na história do Evangelho, Jesus Cristo foi tido
por herege pela comunidade religiosa, pelos líderes judeus (“Veio para os seus, mas os seus
não o receberam”); por outro lado, sua divindade foi aceita por pessoas da comunidade
profana, os chamados gentios.
Além do animal, outros símbolos cristãos se nos apresentam no tecido textual. O
traçado do caminho de retorno da vaca (“ao rumo, que reto a trazia, para o rio, e — para lá do
rio — a terras de um Major Quitério, nos confins do dia, à fazenda do Pãodolhão”), se
esquematizado, delineia o símbolo central da religião:
PÃODOLHÃO
RIO
FAZENDA DA PEDRA
A trajetória do animal intercessor é de cunho mítico, representa um mundo que se
atravessa em linha horizontal para voltar ao lugar de origem. Diversas provas, barrancos a
descer, cerca a pular, campos a cruzar, morros a subir não fazem com que a vaca se desvie
nem por um momento de seu objetivo, o de retornar ao lar conduzindo o herói a um destino
que ele desconhece. O rapaz, durante todo o caminho, e conforme o aumento da dificuldade e
do cansaço causado pela viagem, questiona-se sobre a validade de todo o esforço, pois não
compreendia a que se destinava sua tarefa. Como última etapa da viagem o herói deve
atravessar um rio, que “como cortando o mundo em dois, no caminho se atravessava — sem
som. Seriam buracos negros, as sombras perto das margens (PE, 2001a p. 116)”. A travessia
do rapaz serve a representar o batismo por imersão, rito de iniciação cristã, simbolizando a
morte para uma vida de pecados, que ficam depositados no fundo das águas, e a ressurreição
para uma nova vida. Para tanto, o herói deve descalçar suas botas, pois está entrando em lugar
santo, assim como Moisés foi convidado por Deus a retirar suas sandálias durante a
manifestação na sarça em chamas, conforme a história do Velho Testamento. Só após esses
rituais o herói entra em outro reino, onde finalmente poderá suprir sua falta.
Conforme viemos afirmando, a vaquinha é um mediador, que recebe atributos
simbólicos de cristo, e após guiar o herói numa viagem de caráter mítico culminada no rito de
iniciação e entrada em lugar santo, possibilita ao rapaz o encontro com a moça “alta, alva,
amável”, o que revela a lógica do acontecimento que até então lhe era incompreensível: “O
moço compreendeu-se. Aquilo mudava o acontecido”. Não é a primeira vez que aparece na
obra de Guimarães Rosa a personagem enigmática de uma moça cujo atributo central é a cor
branca e que é objeto de uma busca. Em “Cara-de-bronze”, novela que ocupa a posição do
centro na organização material das sete novelas de Corpo de Baile, o personagem Cara-de-
bronze envia o vaqueiro Grivo numa viagem para buscar informações sobre a “moça muito
branca de todas as cores”. Considerando-se a cor branca como símbolo de totalidade
5
, por
conta de ser a união de todas as cores, somos levados a afirmar que o encontro do herói com a
princesa assume um caráter metafísico de encontro com a Totalidade, ou o Ser, de quem a
vaquinha foi um mediador. A carência do herói, que de início parecia ser apenas a perda de
um objeto material (a vaca), revela-se transcendente e é compreendida no encontro
inesperado. O herói reconhece que só pôde chegar ao fim da perseguição e atravessar o rio por
conta de uma “oculta, súbita saudade”.
Em nossa hipótese, “Seqüência” trata-se de uma narrativa de retorno ao UM, ou de
religião — no sentido de re-ligação com Deus —, uma metafísica de nostalgia, segundo as
linhas filosóficas de caráter místico. No pensamento neoplatonista, a individualidade e a
distinção entre os seres existem mediante sua separação do UM, fonte e fundamento de todas
as coisas. Etienne Souriau (1973), ao comentar essa separação postulada pela atmosfera
estética do neoplatonismo, diz:
Mas, à medida que se separam e se afastam, arrependem-se. Param — parada esta que
lhes constitui o estatuto ontológico — no momento em que se equilibram os dois
movimentos, que trespassam e animam todas as coisas: a promoção, que os separa do
UM, e a nostalgia de retorno a esse UM (SOURIAU, 1973, p. 6).
Esse retorno transcendente só seria possível por meio do amor, o qual move a
vaquinha, que “seguia, certa; por amor, não por acaso”, e inspira a oculta saudade do rapaz.
Se no platonismo esse amor é incorpóreo e nostálgico, no sentido de ideal, Guimarães
Rosa em sua narrativa corporifica-o na figura da moça “alta, alva, amável”. Assim como no
fundamento da religião cristã, em que Cristo é o ser ao mesmo tempo humano e divino que
permite a ligação do homem com Deus, o autor soluciona simbolicamente no conto o
5
Em aula do curso de pós-graduação em Letras do Ibilce-Unesp, Antonio Manoel dos Santos Silva esclareceu o
caráter metafísico da busca do personagem Cara-de-Bronze, o qual queria saber o “quem” das coisas. Entre os
seus empregados, vaqueiros que vivem num mundo pré-socrático, o personagem Grivo é o escolhido para mediar
a busca do enigmático Cara-de-Bronze. O nome Grivo foi interpretado como uma corruptela fonética de Grifo,
personagem mitológico responsável por guardar o segredo do velocino de ouro. Nessa busca, “a moça muito
branca de todas as cores”, que aparece em itálico no texto de Guimarães Rosa, foi destacada como elemento
simbólico central, representando a Totalidade.
problema da nostalgia de retorno ao UM, com a inserção de um ser mediador que permite a
religação ao Ser, para suprir uma carência ontológica. Porém, consoante o topos da imagem
proibida de Deus, que não pode ser apreendida devido ao seu caráter sublime, na narrativa o
Ser é descrito com apenas três atributos genéricos, os quais, diga-se de passagem, podem ser
encontrados nas narrativas bíblicas como prerrogativas divinas.
A partir dessas interpretações sobre o texto, cabe afirmar que este advém de uma visão
cosmogônica segundo a qual, por trás do caos aparente, das “capas de ilusão” da realidade, há
o Ser, uma unidade transcendente, de quem os seres e as coisas são manifestação.
Tratando-se do filme, o texto de Nelson Pereira dos Santos foi estruturado em encaixe
de seqüências narrativas. Do ponto de vista da macro-narrativa fílmica, a história do conto “A
terceira margem do rio” chega ao desfecho após a mediação das seqüências narrativas dos
demais contos, as quais, por sua vez, dão unidade à história por meio de encaixes e
emparelhamentos de suas funções, ou seja, os contos foram fragmentados para que, então,
fossem remontados numa seqüência lógica. Para que essa reestruturação dos contos em uma
única história fosse possível, foi necessária uma aglutinação de espaços e de papéis das
personagens.
O conto “Seqüência”, contudo, foi o que menos teve sua narrativa desmontada e
reestruturada no filme, continuando como uma seqüência elementar, de encadeamento
sucessivo. Ela sucede à seqüência de abertura, na qual o menino Liojorge, ao lado da mãe e da
irmã vê a partida do pai para o meio de um rio dentro de uma pequena canoa. O menino se
encarrega de levar diariamente alimento para o pai: um cacho de bananas e um prato
embrulhado num pano, deixados num esconderijo no barranco do rio. Numa das cenas em que
o menino deixa a comida no esconderijo, há um raccord de gesto que promove uma elipse
temporal — enquadra-se o menino colocando o embrulho no barranco, há o corte, e o plano
seguinte enquadra um rapaz, completando a ação. Compreende-se, por meio dessa técnica,
que se passaram anos e o menino chegou à idade adulta com a mesma rotina de cuidado com
o pai. O rapaz Liojorge (nome tirado do conto “Fatalidade”) incorpora o papel de perseguição
à vaquinha do protagonista de “Seqüência”. Contudo, se no conto o narrador afirma estar o
animal fugitivo a horas de distância do rapaz (“Com horas de diferença, a vaquinha
providenciava”), e este só iniciar a perseguição após pedir permissão a seo Rigério, seu pai,
no filme a vaca inicia a fuga às vistas de Liojorge, passando em frente a sua casa, e o rapaz
prontamente inicia a perseguição. Apesar de a narração de eventos anteriores ao início da
perseguição ter sido suprimida, a técnica utilizada por Nelson Pereira dos Santos para filmar a
perseguição é homóloga à do conto, o que era de se esperar, pois as montagens paralela e
alternada são técnicas comuns ao cinema, como já havíamos tratado. Similarmente à
descrição presente no conto, alternam-se planos de conjunto da paisagem sertaneja percorrida,
planos médios do rapaz cavalgando e da vaca em sua fuga. Há que se ressaltar também o
papel da trilha sonora da perseguição, uma toada de viola acompanhada por percussões, que
promove as variações de ritmo das cenas.
Um dos maiores distanciamentos refere-se aos elementos plástico-descritivos da
paisagem no conto e no filme. As locações escolhidas para a filmagem da seqüência fílmica
apresentam uma boa amostra de campos cobertos por gramíneas e formações arbóreo-
arbustivas típicas do sertão, mas não há planos que se aproximem da composição plástica das
descrições de Rosa. Deve-se considerar aí que, por trás dessas constatações, existe o fato de o
trabalho expressivo da linguagem de Guimarães Rosa ter sido transcodificado numa
conformação documental no filme, sem manipulação de cores por meio de filtros, o que
resulta em efeitos plásticos distintos. O que chama a atenção em algumas descrições de
paisagem no conto é a composição das cores e uma proximidade com a pintura
impressionista:
Preparava-se uma vastidão: de manchas cinzas e amarelas. O céu também em
amarelo. Pitavam extensões de campo, no virar do sol, das queimadas; altas, mais
altas, azuis, as fumaças desmanchavam-se (“Seqüência”, PE, 2001a, p. 116).
Só as encostas guardando o florir de árvores esfolhadas: seu roxo-escuro de julho as
carobinhas, ipês seu amarelo de agosto. Só via os longes de um quadro [...] Agora,
manchava o campo a sombra grande de uma nuvem (“Seqüência”, PE, 2001a, p. 116).
No que se refere ao tempo diegético, os textos se aproximam consideravelmente. Não
se determina o momento do dia em que se inicia a fuga da vaca, mas tanto no conto quanto no
filme a perseguição tem seu clímax ao pôr-do-sol, na travessia do rio, e a história tem o
desfecho já à noite, quando a vaca, acompanhada pelo rapaz, chega finalmente a sua fazenda
de origem. A entrada do rapaz na casa grande da fazenda foi filmada de modo a acentuar o
suspense, o encontro com o ainda desconhecido, tanto pela trilha sonora, em tom grave,
quanto pela iluminação, ou a falta dela (os planos filmados dentro da casa são feitos com
pouca luz). No entanto, o plano que descreve o encontro de Liojorge com as pessoas da casa,
a luz frontal direcionada à moça, sentada ao centro, em contraste com a penumbra que
envolve os outros, expressa a motivação do acontecimento, como se a personagem naquele
instante compreendesse a que se devia o esforço de sua empreitada. Deve-se ressaltar aqui,
porém, uma diferença significativa na caracterização da moça no conto e no filme: no texto
literário a moça é sinteticamente descrita por “alta, alva, amável”, descrição essa que nos
levou à interpretação do caráter simbólico de Ser, ou Totalidade, da personagem; no filme, vê-
se a moça vestida de vermelho. Esse detalhe do figurino promove efeitos de sentido deveras
expressivos: 1) O branco (Alva) e o vermelho (vestido) remontam ao rito da santa ceia, pois
fazem alusão ao pão e o vinho; portanto, o encontro de amor entre o herói e a moça traça um
paralelo com o rito de rememoração de Cristo; 2) A união das cores (branco + vermelho =
Rosa) sugere ainda a homenagem do cineasta ao autor mineiro.
Aquela carência ignorada pelo herói, que é guiado por um auxiliar até o ser que pode
suprir essa falta, tem também no filme outras relações significativas. A personagem Liojorge
tinha até aquele momento se recusado a buscar companheira e constituir família, devido a sua
dedicação ao pai. Seu cunhado, Rigério, já lhe havia aconselhado a deixar o pai de lado, com
sua loucura, e prosseguir a vida, mas o rapaz se sentia responsável pelo patriarca. A falta do
pai é, pelo menos momentaneamente, suprida pela descoberta do amor em Alva.
Ainda, o encontro de Liojorge e Alva desempenha papel fundamental na organização
lógica da narrativa fílmica, pois a partir daí se constituirá outra família — em contraponto
com a família desestruturada pela partida do pai — e essa personagem coletiva será o núcleo
de inserção dos recortes das outras narrativas trabalhadas por Nelson Pereira dos Santos. O
mistério das motivações da partida do homem para a terceira margem é espelhado em toda a
experiência da nova família no decorrer do filme, mantendo-se como questionamento que
permeia toda a narrativa, para ser retomado diretamente na última cena. A respeito desse
questionamento e de seus desdobramentos na experiência da personagem coletiva do filme,
uma família de sertanejos e seu êxodo do sertão para a periferia de uma grande cidade,
pretendemos propor as relações significativas a partir de um quadro de síntese da estruturação
do filme, de que nos ocuparemos a seguir.
5. Análise Comparativa
5.1. Premissas da análise
Um travelling para trás abre o quadro aos poucos para um rio no sentido longitudinal.
O horizonte divide no quadro o céu, em vermelho e laranja, e o rio, que reflete aquelas cores,
toma maiores proporções no quadro ao movimento da câmera. Parece pôr-do-sol, parece que
vai escurecer, mas, na verdade, amanhece, e o dia fica claro. Assim é o plano de abertura de
“A terceira margem do rio”, de Nelson Pereira dos Santos. Pela câmera do diretor se oferecem
à visão, paralelamente, ambas as margens deste rio que inicia o filme. Não é um rio “largo, de
não se poder ver a forma da outra beira”; pelo menos na aparência, o rio está ali, dentro das
margens do visível. Mas que águas correm pelo rio de Nelson Pereira dos Santos? E, ainda,
que sentido teria uma terceira margem na narrativa do diretor?
Queremos considerar aqui a forma com que Nelson Pereira dos Santos deu unidade a
contos de Primeiras Estórias em seu filme e, mediante esta forma, que implica
primordialmente o trabalho com outro código de significação, verificar os novos sentidos que
recobrem os textos-base de Guimarães Rosa, culminando na promoção de uma obra
autônoma. Não obstante as obras se construírem por meio de códigos distintos, o que instaura
em primeiro lugar a diferença, tanto o filme quanto os contos são narrativas, projetam ou
evocam um mundo independente da existência fenomenológica de seus suportes (como já
explicamos na fundamentação teórica). A princípio, parece ser óbvio afirmar que o fato de
serem histórias seja o primeiro elemento possibilitador da semelhança entre filme e contos.
Contudo, o fator aparentemente essencial de identidade, a história, desencadeia, por outro
lado, uma rede distinta de significações em cada obra, mediante mesmo a diferença entre as
formas de seus conteúdos. Essa diferença revela, segundo a hipótese que desenvolveremos,
concepções da vida e da arte até certo ponto opostas em cada autor.
O primeiro ponto a ser considerado na transcodificação refere-se à forma da unidade
conferida pelo diretor no filme a narrativas independentes, sem personagens e espaços
diegéticos em comum (a não ser no primeiro e último conto, como já explicamos). Ao invés
de trabalhar com uma estrutura episódica, filmando a história de cada conto separadamente,
Nelson Pereira dos Santos reestruturou-os numa relação de interdependência, por meio da
fusão dos ambientes e personagens, além do acréscimo de uma série de eventos não
encontrados nos textos-base. Antes de avançar, porém, relembremos o argumento dos quatro
contos que, além de “Seqüência”, já analisado, foram a base do filme de Nelson Pereira dos
Santos.
“A menina de lá” é a história da curta vida de uma menina milagreira (ou de poderes
mágicos), que parece se inspirar, em seu viés cristão, naquelas histórias, muito comuns no
interior, de crianças que são beatificadas pelo povo, talvez em função de buscar um sentido
para a morte precoce dessas “almas puras”.
A protagonista, chamada Nhinhinha, ainda nem com quatro anos completos espanta a
família e próximos pelo comportamento estranho, sua “perfeita calma, imobilidade e
silêncios”, pelas histórias “absurdas, vagas” que conta. Nhinhinha não se importa com a
realidade prática e refuta com estranha tranqüilidade os padrões de relação social:
Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo:
Menino pidão... Menino pidão...” Costumava dirigir-se à Mãe desse jeito: —
Menina grande... Menina grande...” Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se. Em
vão. Nhinhinha murmurava só: “Deixa... Deixa...” — suasibilíssima, inábil como uma
flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de
entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila,
mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas
preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. Mas, o
respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia mais uma engraçada espécie de tolerância.
(“A menina de lá”, PE, 2001a, p. 68).
O narrador-testemunha, que poderia ser um amigo ou alguém próximo da família,
pergunta-se se o comportamento da menina não denota um problema mental: “Seria mesmo
seu tanto tolinha?”. Mas essa dúvida é uma forma de se identificar com o leitor, relutante em
aceitar que, na verdade, a despreocupação de Nhinhinha com a realidade prática diz respeito a
seu conhecimento de uma realidade supra-sensível, esquecida por todos, mas que se faz
lembrar pelas palavras mágicas da menina de “lá” — de onde ela veio e para onde voltará.
Quando começa a realizar milagres, Nhinhinha demonstra esse mesmo
descompromisso para com as necessidades do cotidiano: “Só queria muito pouco, e sempre as
coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita” (PE, 2001a, p. 70). E até mesmo
numa situação limite, quando a mãe está em leito de morte, a menina diz sorrindo o seu
Deixa... Deixa...”. Mas apesar do desdém de Nhinhinha pela doença fatal da mãe, esta recebe
a cura por meio de um abraço e da fé que tem na filha.
O último milagre relatado é o da chuva. Já haviam pedido a Nhinhinha que fizesse
chover para que a seca não acabasse com “tudo, o leite, o arroz, a carne, os doces, frutas, o
melado”; mas os pedidos insistentes recebem apenas o “Deixa... Deixa...” como resposta. No
entanto, dois dias depois, por vontade de ver o arco-íris, a menina pede chuva. A chuva vem
e, em seguida, surge um arco-íris “sobressaído em verde e vermelho — que era mais um vivo
cor-de rosa”. Os pais se animam com a esperança de que ao crescer Nhinhinha ajude bastante
a família, segundo a vontade da Providência. Mas Nhinhinha então morre. Acontecida a
tragédia inesperada para a família, Tiantônia revela que Nhinhinha havia pedido no dia do
arco-íris um caixãozinho cor-de-rosa com enfeites verdes brilhantes. A princípio o pai reluta
em aceitar o pedido da filha, mas por fim consente, “porque era, tinha de ser! — pelo milagre,
o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha”.
A narrativa de “Os irmãos Dagobé” inicia-se no velório de Damastor, primogênito de
quatro irmãos, temidos num arraial por suas maldades. O narrador homodiegético, diluído
entre os presentes ao velório, conta como Liojorge, homem pacífico e honesto, matara
Damastor Dagobé em legítima defesa. Esse narrador passa então a especular sobre o provável
futuro trágico de Liojorge nas mãos dos “Dagobés sobrevivos”: “Depois do cemitério, sim,
pegavam o Liojorge, com ele terminavam” (PE, 2001a, p. 75). O clima de tensão aumenta
quando chega a notícia de que Liojorge corajosamente se propõe a vir ao velório para dar
prova de sua inocência. De fato, o rapaz vem, e acompanha o cortejo fúnebre, ajudando a
levar o caixão por uma das alças. Enterrado o defunto, a expectativa do fim trágico para
Liojorge chega ao máximo, mas é quebrada com a sentença de Doricão: “Moço, o senhor vá,
se recolha. Sucede que o meu saudoso Irmão é que era um diabo de danado...”. Doricão
também declara a todos os presentes que ele e seus irmãos vão embora para cidade grande. O
conto termina com chuva, símbolo da renovação.
Em “A terceira margem do rio”, o filho conta a história de seu excêntrico pai, que
encomenda uma canoa e, sem dar maiores explicações, abandona a família e vai viver em
meio às águas de um largo rio, sem nunca mais pisar em terra. Todas as tentativas de fazê-lo
retornar, as rezas, os soldados chamados pela Mãe, de nada valem. O tempo faz com que a
família se desmembre: o irmão do narrador vai para uma cidade, a irmã se muda com marido
e filho para longe dali, e a Mãe, envelhecida, finalmente vai morar com sua filha. Apenas o
filho-narrador não abandona o pai, e já sofrendo “começo de velhice” decide que é hora de
substituir o pai na canoa. Quando, porém, o pai ouve o convite e vem com a canoa em direção
ao filho, este desiste de continuar o inexplicável projeto: “E eu não podia... Por favor,
arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto ele
me pareceu vir: da parte de além” (PE, 2001a, p. 85).
“Fatalidade” é a história do homenzinho simples José de Tal, de apelido Zé Centeralfe,
que tem a mulher cobiçada e perseguida pelo valentão Herculinão Socó. Depois de fugir com
a mulher de arraial em arraial, Zé Centeralfe muda-se para uma cidade do sul de Minas, na
divisa com São Paulo, e vai à casa de um intrigante “delegado-filósofo” pedir providências
legais. A história é narrada por um amigo do delegado que está na casa quando Zé Centeralfe
chega e lhes conta sua situação. O delegado fatalista insinua a resolução do problema a Zé
Centeralfe:
Meu Amigo fez uma coisa. Virou, por metade, o rosto, para encarar aquela carabina.
Sério, carregando o minuto. Só. Sem voz. Mas nela afirmando a vista, enquanto umas
quantas vezes rabeava com os olhos, na direção do homenzinho; em ato, chamando-o
a que também a olhasse, como que a o puxar à lição. Mas o outro ainda não entendia
que ele acenasse em alguma coisa. Sem tanto, que deu: “E eu o que faço?” — na
direita perguntação.
Surdeava o Meu Amigo, pato-mudo. Soprou nos dedos. Sempre em fito, na arma, na
parede, e remirando o outro — ao tempo que — tanto quanto tanto. De feito. O
homenzinho se arregalou — de desperto. Desde que desde, ele entendesse, a ver o que
para valer: a chave do jogo. Entendeu. (PE, 2001a, p. 111)
O delegado e seu amigo seguem Zé Centeralfe sem que ele saiba, no encalço de
Herculinão. Exímio atirador, o delegado acerta de longe o vilão entre os olhos. Herculinão
morre com dois tiros: um do delegado e outro de Centeralfe, que também atirara. O delegado
encerra o caso como se tudo já estivesse determinado que assim fosse: ‘“Tudo não é escrito e
previsto? Hoje, o deste homem. Os gregos...” Disse: — “Mas... a necessidade tem mãos de
bronze...” Disse: — “Resistência à prisão, constatada...” Dissera um “não”, metafisicado.
’(PE, p. 112). Trata-se de uma das narrativas mais irônicas de Guimarães Rosa: o modo com
que o destino se realiza pela vontade de quem acha que tudo está definido pelo destino.
Explicou-se no capítulo anterior o caráter reduzido da ação em Primeiras Estórias.
Mais do que isso, afirmamos que a maioria das histórias não se pode analisar em termos de
uma lógica narrativa, pois em muitos casos a relação material de causa e efeito é obliterada
pela intervenção de forças supra-sensíveis, ou pela ação irracional, em função daquela
realidade não perceptível, das personagens que chamamos de “marginais”. Como mostramos
nos capítulos 2 e 3, a desestruturação da lógica dá-se tanto na microestrutura quanto na
macroestrutura.
No filme, no entanto, salta aos olhos a organização lógica da narrativa. Se, por um
lado, muitos dos contos de Primeiras Estórias não se deixam enquadrar em abordagens
teóricas que se debruçam sobre a estrutura lógica do discurso narrativo, a estrutura da
narrativa fílmica A terceira margem do rio, por sua parte, constrói-se por meio da
seqüenciação lógica, que é desconstruída em Primeiras Estórias. A fim de constatar a
afirmação acima, segue um quadro das seqüências narrativas do filme inspirado no método de
Claude Bremond (1972), e, partir deste esquema, a comparação dos aspectos julgados mais
relevantes nas obras.
1. Prólogo
Enigma (partida
do Pai
)
Ausência
Elipse temporal
(raccord)
2. Apresentação da
história de Rigério e
Rosário
3. História da vaquinha
Pitanga
1° função do doador
Reação do herói:
perseguição à vaca
Transmissão do auxiliar
mágico
Transferência de reino
Encontro com o objeto
da busca
Retorno
Casamento
4. História de
Nhinhinha:
Apresentação da
menina ao “Pai”
Elipse temporal
(raccord)
2. Rigério e Rosário
anunciam ida para a
cidade
5. Perigo (gravidez
de risco de Alva)
4.Primeiros
milagres de
Nhinhinha: rã e
pamonhinha de
goiaba.
5. Transmissão
(poder de Nhinhinha)
4. Milagre da
ressurreição de
Alva
Perigo afastado
6. Perigo: Seca
Transmissão
4. Milagre da
chuva
Perigo afastado
7. Perigo virtual: chegada
dos Dagobé
(malevolência)
Fuga da família /Partida
do herói = Fracasso da
1° tentativa de maldade
2. A família vai morar
na casa de Rigério e
Rosário
Família reencontra os
Dagobé na cidade
4. Início da
degradação de
Nhinhinha
7. Herculinão Dagobé
obtém informações sobre
Alva com Rigério
Perigo atualizado
(família) = maleficência
(vilão)
4. Degradação
de Nhinhinha:
troca de
milagres por
presentes
8. Logro (Herculinão
faz uma armadilha
para Liojorge)
Cumplicidade
involuntária de
Liojorge
Sucesso do logro
(Prisão de Liojorge)
7. Dano sofrido +
maldade cometida
Maldade Cometida 9. Seqüestro de Alva:
dano sofrido (família)
10. Ação
Reparadora
Auxiliar
(“Amigo”)
Luta
7. Castigo + dano
reparado
8. Castigo 9. Dano reparado Vitória do
herói (morte
do vilão)
4. Últimos
milagres de
Nhinhinha
Morte de
Nhinhinha
Glorificação
8. Redenção dos
Dagobé (no enterro
de Herculinão)
7. Retorno do herói
(Liojorge volta sozinho
ao sertão)
Epílogo: Enigma
5.3. A terceira margem entre o sertão e a cidade
O filme A terceira margem do rio como um todo tem a estrutura de encaixe. Para
chegar a termo, a seqüência narrativa elementar (1) passa pela mediação de uma série de
outras seqüências, numa sucessão de encaixes. Desse modo, a cena inicial, do pai que deixa
casa e família para viver dentro da canoa no meio do rio, constitui o enigma ou a seqüência
elementar, da qual todo o restante da história entendemos ser uma investigação que busca
conferir sentido à ação do pai.
Pelo título A terceira margem do rio, é evidente que o conto homônimo de Guimarães
Rosa tem papel central para uma síntese explicativa do filme. Porém, a forma com que a
história do conto se organiza na narrativa fílmica parece nos sugerir uma outra natureza
significativa que não havíamos considerado na análise restrita ao texto literário.
Segundo interpretamos no texto-base, a primeira margem do rio é a representação da
vida prática, da realidade material, esfera em que o pai vivia “cumpridor, ordeiro, positivo” no
meio familiar. A segunda corresponde ao lugar do ideal, ou melhor, ao real absoluto não
acessível à percepção dos sentidos, já que no conto essa margem não toma forma: “[O rio]
largo, de não se poder ver forma da outra beira”. A rota para a segunda margem do escritor
mineiro, como tratamos nos capítulos anteriores, é de caráter metafísico, quer dizer, a sua
utopia baseia-se no retorno ou na religação a valores transcendentes, com o desejo de
promover uma realidade em que estes valores não se dissociam da vida prática. Por essa razão
a projeção utópica de Guimarães Rosa está no passado, chegando à narrativa mítica. Assim,
há a busca de superação da distância entre essas margens, aquela tentativa de reconciliar a
vida prática ao sentido, o qual no mundo moderno se oferece tão somente em termos
abstratos. A terceira margem, portanto, é o espaço movente, em meio às águas que não param
de fluir, onde é possível a ligação entre a vida concreta e os valores transcendentes que
poderiam conferir-lhe um sentido. Na margem de cá está a substância da realidade, sob a
tutela da dinâmica do tempo, e do lado de lá uma realidade imutável, atemporal — em face da
distância entre as margens, a personagem do pai cumpre o papel de superá-la, mas nessa
função ele se torna irremediavelmente um ser marginal, louco, cuja ação é irracional no
mundo da primeira margem, afastando-o da vida em família e sociedade.
Guimarães Rosa faz existir uma terceira margem do rio mediante a criação artística —
a crença na palavra e o ato da escrita (como uma prática ou rito religioso) tornam essa
realidade concreta na própria palavra. E a personagem problemática, o homem isolado na
canoa é uma imagem do próprio Rosa, buscando em sua atividade remar entre as águas da
realidade laicizada da vida contemporânea e os valores metafísicos que regem sua
consciência.
Voltando ao filme A terceira margem do rio, Nelson Pereira dos Santos cria um
contraponto entre a experiência individual do pai e a experiência vivida pela personagem
coletiva família, expandindo e investigando uma situação abordada sinteticamente no conto, a
saber: a partida dos membros da família para longe de seu lugar de origem e o choque com a
nova realidade em que se enquadram.
No conto, o filho (narrador homodiegético) relembra sua fidelidade ao pai. Para que o
desconhecido projeto do pai tenha continuidade, é necessário um futuro substituto, cargo de
que ele, o filho primogênito, se incumbe, como sucessor natural na empreitada: “Nosso pai
carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito (2001a, p.
84)”. A irracionalidade da situação em que se encontra o pai fica evidente na própria forma de
estruturação lingüística do discurso do narrador: “Nosso pai ao voltou. Ele não tinha ido a
parte nenhuma (p. 80)”. A fim de que partes significativas do discurso do narrador ganhem
substância no filme sem ter de recorrer a voz-off, algumas vezes esse discurso se concretiza na
voz de personagens. O trecho citado acima, por exemplo, transforma-se num diálogo entre
mãe e filha, à beira do rio: “Nosso pai não volta?”, pergunta a filha chorando; “Não, porque
ele não foi a nenhuma parte”, responde a mãe.
No texto-base, o filho continua ligado ao pai mesmo diante das transformações
causadas pelo tempo na vida dos que ficaram do lado de cá do rio. Rejeita-se a dar
continuidade à estrutura familiar (“Eu nunca podia querer me casar”), e fica sozinho quando
os outros deixam a casa:
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi,
para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe
terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida.
Eu fiquei aqui, de resto (PE, p. 83).
No filme, o filho, nomeado Liojorge (nome tirado ao conto “Os irmãos Dagobé”),
chega à idade adulta resoluto em continuar cuidando do pai, em concordância com a história
do texto-base. As personagens referidas no conto apenas “minha irmã” e seu “marido”
(nomeados Rosário e Rigério no filme) ganham importância na medida em que são os
desencadeadores da transformação na vida da família sertaneja, ao anunciarem sua ida para a
cidade (2).
Contudo, o encaixe de uma outra seqüência narrativa (3), interrompe a história do
conto A terceira margem do rio, e abre espaço para a experiência da personagem coletiva, da
qual Liojorge será o fio condutor. Encaixa-se, de ponta a ponta, e sem modificações
substanciais, a história do conto “Seqüência”, que culmina no casamento de Liojorge. A partir
de então, Liojorge não é mais apenas filho, mas também pai, responsável por um núcleo
familiar. Neste ponto da narrativa entram em cena, com o nascimento de Nhinhinha, filha de
Liojorge e Alva, eventos do conto “A menina de lá”, cuja história se desenvolve
fragmentariamente no decorrer do filme (4).
Em relação ao novo núcleo familiar, deve-se dizer que a investigação sobre a
experiência desta personagem coletiva baseia-se no contraste do modo de vida em duas
realidades sociais opostas. A primeira refere-se à realidade rural arcaica e de produção
familiar, espaço diegético em que se desenvolve a primeira metade do filme. Neste espaço
Liojorge e sua família vivem da agricultura e da pecuária. As ameaças de degradação surgidas
ali são todas de ordem natural, e a intervenção de forças sobrenaturais efetivamente afasta
essas ameaças. Assim, Alva é curada no leito de morte pelo poder de Nhinhinha (5), que
também vence a seca com o milagre da chuva (6). E lembremos que Liojorge encontrou o
amor de Alva, que em parte supre a carência do pai, mediante a ação de um animal
predestinado.
Torna-se importante explicitar aqui o recurso de montagem simbólica utilizada pelo
diretor em função da relação entre a vaca e a família. A título de exemplo desse método, são
antológicas as últimas cenas do filme A Greve, em que a repressão aos trabalhadores é
alternada por planos da matança de um boi no matadouro. Dessa maneira, o ato do açougueiro
que mata o boi a golpes de machado relaciona-se significativamente ao assassinato dos
trabalhadores a sangue frio. Essa montagem relacional simbólica (ou ideológica, segundo
Martin, 1963) é um meio de comunicar ao espectador uma idéia abstrata por meio do choque
de imagens aparentemente desconexas do ponto de vista da continuidade da ação. Nelson
Pereira dos Santos faz uso dessa técnica expressiva ao pontuar planos de detalhe da cara da
vaca antes da cena do encontro de Liojorge e Alva e antes da cena de núpcias do casal,
relacionando o estatuto simbólico sagrado do bovino com a constituição da família.
É fato que o universo diegético dessa primeira parte do filme remonta ao sistema
cultural de uma comunidade primitiva, ou seja, constitua-se de um núcleo familiar numa
estrutura rural arcaica, estrutura social em que se efetiva uma relação orgânica entre a
experiência concreta das personagens e os elementos místicos essenciais dos texto-base, mas,
por outro lado, há a inserção de elementos que atualizam historicamente essa realidade e
ressaltam suas contradições. São elementos sutis, mas significativos: 1) Logo nas primeiras
cenas, há o caminhão de Rigério, usado para transportar gado; 2) Na cena do casamento na
roça de Liojorge e Alva, é algumas vezes enquadrado de relance e às margens do quadro um
convidado carregando no ombro um enorme rádio portátil, causando até um efeito cômico.
O processo de mudança campo-cidade efetivamente se desencadeia com a chegada de
um grupo de pistoleiros, que decidem acampar na margem do rio próximo à casa da família
(7). O prenúncio da transformação que esse evento acarretará, em toda sua dimensão
simbólica, aparece na cena em que Liojorge vai à beira do rio levar a trouxa de comida ao pai
e vê as águas trazerem para a margem o cadáver de um boi, aparentemente o da vaca pitanga.
Em seguida, em câmera subjetiva avista-se o barco dos pistoleiros cruzando o rio, intercalado
a planos americanos que mostram a expressão de preocupação de Liojorge. O plano que fecha
a cena enquadra a aproximação de uma flor aquática ao cadáver do animal. Entendemos que a
morte desse animal simbólico preconiza a dissolução de todos os elementos sagrados na
segunda parte do filme, quando a família se muda para o meio urbano. Não apenas isso, mas
também a dimensão de ser sacrifical do boi, somada ao fato de o bovino incorporar o estatuto
de símbolo do país (por ter permitido a união de seu território e estar presente em quase toda
sua área), permite-nos tecer uma relação entre o animal e a personagem da família em sua
experiência na cidade. Nesse sentido, pode-se entender ainda a inserção da flor nesse
contexto, haja vista que, em sentido amplo, a flor é símbolo do princípio passivo (ver
Chevalier, p. 437). Na realidade rural e primitiva da primeira parte do filme, a personagem
família é passiva da atividade transcendente ou divina (entre cujos símbolos está a chuva);
desse modo, a mudança para a realidade urbana transforma a natureza dessa passividade, que,
a partir de então, refere-se a fatos de ordem econômica desvinculados do sagrado.
A fuga para a cidade é um evento narrativo tirado ao conto “Fatalidade”, no qual a
personagem Herculinão cobiça e persegue a mulher de Zé Centeralfe, obrigando-o a mudar-se
com a esposa para uma cidade no sul de Minas. Na narrativa fílmica, a ameaça do vilão (fusão
das personagens Damastor Dagobé e Herculinão Socó) implica a fuga da família (Liojorge,
sua mãe, a esposa Alva, e a filha Nhinhinha) para a cidade satélite Sobradinho, para onde já
tinha se mudado o casal Rigério e Rosário.
Chegamos ao meio do filme, ponto de transição fundamental para a compreensão da
autonomia da obra de Nelson Pereira dos Santos em relação à de Guimarães Rosa.
Verificamos que as margens do livro passam a ocupar o centro da estrutura narrativa do
filme, mediante a transcodificação de elementos da diegese dos contos-moldura, “As margens
da Alegria” e “Os cimos”, em cenas mediais. Expliquemos: as viagens do Menino para “a
grande cidade em construção” foram aludidas por Santos nas cenas da passagem da família
pela cidade de Brasília. A família passa pelo plano-piloto, observa seus prédios principais, o
centro do poder, e se dirige à periferia, Sobradinho.
Não se trata, pois, de uma viagem ao centro místico, princípio dinamizador da
realidade e lugar da revelação dos valores sagrados. Estes, aliás, que emergem como os
valores autênticos das narrativas de Rosa, degradam-se um a um na realidade urbana que
Nelson Pereira dos Santos cria. O eixo organizador da obra do cineasta não se encontra na
nostalgia ou na mitificação de uma realidade em que valores transcendentes oferecem
respostas aos anseios do homem. A consciência organizadora do filme revela-se de outra
natureza, oposta a de Guimarães Rosa.
Nesse sentido, as imagens fugazes de Brasília, no centro da narrativa fílmica,
contrastadas com a representação da realidade de sua periferia, de sua margem, podem ser
entendidas como uma forma de presença de uma ausência — a presença do símbolo do Estado
e a ausência desse mesmo Estado enquanto promotor do desenvolvimento social no processo
de urbanização.
O contraste com as imagens da arquitetura moderna de Brasília se dá na continuidade
da história nas ruas sem asfalto, com esgoto a céu aberto, onde candangos levantam seus
casebres. Com fins realistas na representação de Sobradinho, o diretor inclusive utilizou-se de
pessoas da comunidade para figurar no filme, recurso estético esse colocado na cartilha do
grupo do Cinema Novo, inspirados na estética do neo-realismo.
No novo ambiente, a família recém-chegada entra num processo de degradação
múltiplo.
Uma das coordenadas do processo de degradação tem como eixo Nhinhinha. A
personagem de poderes mágicos, cujas realizações ou milagres eram fruto de projeções
subjetivas determinadas pelo modo orgânico de vida do sertão, acaba tendo a estrutura do
desejo alterada por comerciais de TV — a menina não quer mais ver uma rã em tempo de
seca, ou fazer chover para ver o arco-íris, mas, agora, quer os bombons que viu numa
propaganda. Os dons de Nhinhinha por fim são descobertos pela comunidade, e os milagres
passam a ser trocados por presentes, sob a liderança dos tios Rigério e Rosário, que
vislumbram as possibilidades de lucro com a menina. Filas intermináveis se formam em
frente à casa; gente trazendo presentes à santinha e pedindo milagre do emprego, da casa
própria, da cura de doenças... Os tios promovem, inclusive, o espetáculo para a mídia, e a
história da “santinha milagreira” vira manchete em jornal televisivo. É dessa forma que a aura
sagrada envolvendo a personagem é suplantada pelo valor de troca.
Assim como no texto literário, a seqüência narrativa referente à Nhinhinha termina
com a morte-glorificação da personagem. Porém, as condições de sua morte são distintas nos
textos. No conto, a narração da morte é abrupta, o narrador informa: “E, vai, Nhinhinha
adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares” (PE, 2001a, p. 71). O evento não
decorre de nenhuma circunstância narrativa anterior, ao invés disso, contradiz uma
expectativa revelada pelo narrador no trecho do texto que imediatamente antecede ao da
morte: “Pai e mãe cochichavam, contentes: que quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder
ajudar muito a eles, conforme a Providência decerto prazia que fosse” (idem). Contudo, há em
meados do texto uma analepse que sugere ao leitor que a menina tem consciência da
proximidade de sua morte e a espera com estranha tranqüilidade: ‘Outra hora, falava-se de
parentes já mortos, ela riu: — “Vou visitar eles...”’. Essa consciência é confirmada no
desfecho do conto, quando Tiantônia revela o pedido de Nhinhinha:
Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que naquele dia, do arco-íris da chuva, do
passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara. O que
fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes (PE, 2001a, p.
71).
Na narrativa fílmica, porém, os eventos que antecedem a morte da menina (4) dão-lhe
outra dimensão. Nhinhinha esgota-se de fazer milagres; os poderes mágicos outrora usados
sem compromisso com a realidade prática agora se vinculam diretamente a ela, viram objeto
de fé do povo carente, não atendido em suas necessidades básicas. Nhinhinha morre,
finalmente, para fugir da degradação.
Na cena da morte da menina, Nelson Pereira dos Santos trabalhou criativamente
elementos expressivos do texto literário. No conto, o pedido de Nhinhinha por um caixão cor-
de-rosa com enfeites verdes brilhantes relaciona-se com o arco-íris sobressaído em verde e
rosa que aparecera no dia da chuva. A morte, portanto, não significa apenas o fim da vida, o
caixão enterrado, mas essencialmente o retorno para lá, além do arco-íris. No filme, as cores
verde e rosa do texto literário sugerem ainda a Nelson Pereira dos Santos um último milagre
de Nhinhinha: a aparição de uma escola de samba, aludindo à escola de samba Mangueira —
a morte da personagem ocorre durante uma manifestação popular e tipicamente urbana. Assim
como no texto literário, o caixão de Nhinhinha é também verde e rosa, e a glorificação de que
trata o texto aparece de modo simbólico na conclusão da cena, em que o caixão passa pelas
mãos da multidão, como um barco a cruzar um rio antes de, finalmente, subir ao céu.
Paralelamente à história de Nhinhinha, desenvolvem-se no filme outras seqüências
narrativas (7, 8, 9, 10) que dizem respeito ao outro eixo de degradação da família na cidade.
Ao chegar a Sobradinho, Liojorge e sua família descobrem que o lugar é dominado pelos
Dagobé, liderados por Herculinão, o mesmo que obrigara os sertanejos a fugir de sua terra. A
ameaça contra Alva é atualizada. Herculinão, em conluio com a polícia, põe em prática uma
armadilha para Liojorge. No embrulho de um suposto presente para Nhinhinha, que um
homem pede para Liojorge entregar a ela, está escondido um pacote de cocaína; Liojorge é
revistado e preso em flagrante. Na próxima seqüência (9), Santos utiliza-se de um
procedimento de anacronia narrativa, um flash-back bem peculiar: na cadeia, Liojorge relata a
seus companheiros de cela o que aconteceu imediatamente após ter sido preso. O texto
fílmico, então, reproduz o relato de Liojorge inserindo a cena do seqüestro e do estupro de
Alva por Herculinão Dagobé. O que chama a atenção é que Liojorge não poderia estar
presente ao evento (já que estava preso), e relembra os fatos não segundo sua memória, mas
segundo o que ouviu de alguém que foi visitá-lo — provavelmente Rigério. De qualquer
maneira, não é a narração de Liojorge que traz o evento ao conhecimento do espectador. A
cena começa com a personagem relatando verbalmente o rapto de sua esposa aos presidiários,
mas então há o corte, e a própria câmera assume a narração do rapto, presentificando em
imagens o ocorrido.
Ainda na cadeia, Liojorge é abordado por um presidiário que propõe apresentá-lo a um
“Amigo” que poderá auxiliá-lo num projeto de vingança. Como condição, o homem pede a
Liojorge que pague por sua liberdade. Rigério vem em socorro do cunhado. Com dinheiro
levantado por Nhinhinha, Rigério paga alta soma a um advogado e seu comparsa delegado
para soltar Liojorge e o homem que conhecera na prisão.
Desse modo, percebe-se novamente o entrelaçamento das narrativas “Os irmãos
Dagobé” e “Fatalidade”. O narrador homodiegético de “Fatalidade” perde no filme o estatuto
de narrador, mas ele é personificado no homem que apresenta Liojorge a um matuto fatalista,
o qual assume a personagem do delegado-filósofo “Meu amigo” do conto e cumpre o papel de
auxiliar na ação reparadora do herói contra Herculinão Dagobé (10). Desse modo, o herói
assume concomitantemente na narrativa fílmica os papéis de personagens dos dois contos: o
papel de Liojorge, que mata Damastor Dagobé em legítima defesa, e o de Zé Centeralfe, que
mata Herculinão Socó auxiliado pelo delegado fatalista.
Similarmente ao conto, a seqüência 8 termina com o enterro do Dagobé, no qual
Liojorge acompanha o cortejo ajudando a carregar o caixão e é dispensado em paz pelos
irmãos do morto. Um dos Dagobé anuncia que eles irão se mudar para cidade grande.
A dimensão simbólica da morte no conto “A menina de lá” e em “Os irmãos Dagobé”
foi mantida. Os dois eventos, que são consecutivos na ordem da narração fílmica, atestam a
glorificação, no caso do primeiro, e a redenção, no segundo. O caixão de Nhinhinha, alma
pura, sobe ao céu, ao passo que o caixão de Herculinão Dagobé, homem de maldades, desce à
terra, para que seus irmãos possam se redimir.
Na última cena do filme, Liojorge está de volta ao sertão, à margem do rio, chamando
pelo pai para tomar seu lugar na canoa. A primeira seqüência do filme, transcodificada do
conto A terceira margem do rio, é retomada para sua conclusão, ou seja, a narrativa desse
conto foi transformada nas margens, ou na moldura, do texto fílmico. Porém, não há como
pensar na seqüência da enigmática ação do pai sem relacioná-la com o que há entre suas
margens — toda a experiência da família (no sertão e na cidade), da qual Liojorge é o fio
condutor. A personagem família passou por uma transformação; todos os seus valores
sagrados caíram por terra na experiência urbana. Mas a vida degradada da cidade não é
resultado de forças supra-sensíveis. Os inimigos da família de sertanejos na cidade estão na
margem de cá, a da vida prática: é o poder do grupo de criminosos (os Dagobé) que domina o
gueto onde vivem; é a realidade de Sobradinho, abandonada pelo poder público; é a televisão,
que endeusa o consumo; é o valor de troca, que sobrepuja os valores transcendentes.
A ação do pai se reflete na ação do filho: Liojorge também busca uma terceira
margem, a concretização de um projeto utópico. Mas, finalmente, como no conto, o filho
desiste do projeto irracional do pai. Liojorge foge da canoa que, se por um lado aproximou o
pai dos valores transcendentes que ele talvez buscasse, por outro, alienou-o quase por
completo da realidade da primeira margem, da vida em sociedade.
Pelas considerações acima, podem-se esclarecer as implicações de natureza
sociológica na obra do diretor Nelson Pereira dos Santos em contraste com a obra de
Guimarães Rosa.
Em Primeiras Estórias, os valores autênticos subjacentes às narrativas referem-se a
uma transcendência religiosa, com o fim de que o sagrado esteja organicamente vinculado à
vida prática. Porém, a concretização artística desses valores se dá num contexto sócio-
histórico em que esses valores se tornaram marginais. Na estrutura social contemporânea, os
valores espirituais se dissociam da vida concreta em função da intelectualização, da técnica,
da ciência — os novos deuses do mundo moderno. Contudo, Guimarães Rosa é um escritor
brasileiro do século XX, e em nosso país o moderno e o arcaico podem ser entendidos em sua
absoluta simultaneidade; um país em que a imitação dos modelos modernos de países
desenvolvidos pretende escamotear a estrutura arcaica. Guimarães Rosa conheceu
profundamente a realidade do sertão, cujo homem vivia segundo um modo de vida
ritualístico. Mas Rosa também viveu num período histórico de intensa mudança: a
urbanização e modernização do país, realidade com que aqueles antigos valores se chocam, ou
são colocados em segundo plano. As contradições desse processo de mudança se refletem na
forma de Primeiras Estórias: 1) em termos de narração, uma escritura de extrema
intelectualização que nega seu veio intelectual no próprio processo constitutivo; 2) na diegese,
a marginalidade das personagens que fazem intermediação entre a realidade transcendente e o
mundo concreto, recuperando o sentido do mundo por meio da epifania. A nosso ver, esse
universo imaginário advém da consciência possível do sertanejo, do homem do interior, que
sente a degradação de seus valores na realidade contemporânea. Guimarães Rosa dá forma
artística às aspirações não conceitualizadas na consciência real desse grupo em face das
transformações sociais por que passa.
Em contrapartida, a forma do filme A terceira margem do rio, no qual se procede à
organização lógica dos núcleos narrativos de Primeiras Estórias, reflete uma outra
consciência possível, que parece ser a do intelectual marxista. O irracionalismo dos núcleos
de ação dos contos é colocado em perspectiva dialética por via de sua articulação às relações
lógicas que dão corpo aos eventos narrativos. A história se constrói contrapondo o
rural/sagrado ao urbano/secular. Santos testa as personagens do sertão de Rosa no ambiente
urbano, onde perdem sua aura sagrada e se degradam.
A estrutura de centro e margens também conota as diferenças entre as obras.
Em Primeiras Estórias, o centro é o símbolo da atividade transcendente, e as margens
são o reflexo dessa atividade, desenhando os contornos do movimento de ida e volta, tema
recorrente em Rosa, que diz respeito à dinâmica da substância da realidade.
No filme, as margens da estrutura narrativa referem-se ao enigma da terceira margem,
cuja solução pode estar no símbolo do centro. No texto fílmico, o centro corresponde a
imagens de Brasília, que representa por excelência o projeto desenvolvimentista proposto para
o país em meados do século passado. Desse modo, parece que Nelson Pereira dos Santos se
propõe, num filme feito nos anos 90, a uma investigação das conseqüências do processo de
urbanização decorrente daquele projeto para um grupo social específico, o povo sertanejo que
passa pelo êxodo rural e que se mantém marginalizado. Em última instância, Santos mostra
que esse processo culmina também na reificação da subjetividade e das relações sociais desse
grupo em sua experiência na cidade. Tendo o cineasta um certo distanciamento histórico para
constatar as conseqüências da urbanização no país, ele buscou mostrá-las especificamente na
cidade satélite de Sobradinho, num ambiente que se assemelha a qualquer periferia de nossas
cidades atualmente. A escolha dessa cidade também diz respeito à dimensão simbólica: centro
(Brasília) e margem (Sobradinho).
Entendemos, ainda, que a adequação utópica específica na obra de cada autor
constitui-se sobretudo numa distinção de sentidos conferidos à metáfora da terceira margem
do rio. Nos dois autores há a oposição entre a realidade concreta e o ideal, entre o ontológico
e o ôntico, o conteúdo múltiplo da realidade e o Ser (ou a Totalidade) — a primeira e a
segunda margem. Mas a busca de superação dessa oposição nas obras implica uma distinção
dessas categorias. Para Guimarães Rosa, a metafísica, forma de pensamento abstrato que foge
ao domínio do ôntico, ao ser transfigurada na concretitude diegética das narrativas literárias,
pode superar a disjunção entre o Ser e a realidade concreta. Mas os anseios metafísicos de
Rosa, contudo, estão menos ligados a um sistema filosófico particular do que ao desejo de
salvação presente no complexo conteúdo da consciência real do povo, desejo esse que se
projeta numa miscelânea místico-religiosa. Para Nelson Pereira dos Santos, contudo, guiado
por uma concepção de filosofia da História, a relação dialética entre a Totalidade e a realidade
concreta implica as categorias de progressão e regressão, ou seja, sua terceira margem diz
respeito a um devir do conhecimento, em que o progresso se instaura pela aproximação entre
o pensamento sobre os dados da realidade material e a categoria da Totalidade. Nesse sentido,
a regressão diz respeito ao afastamento entre o pensamento sobre a matéria e a categoria da
Totalidade, regressão essa que, no marxismo, é entendida pelo conceito da reificação, que no
filme é representado pela experiência de degradação da personagem coletiva. Desse modo,
vemos no filme a história da viagem da família sertaneja, cujos valores autênticos — que são
os mesmos implícitos nos contos de Primeiras Estórias — não dão sentido à vida da
personagem coletiva no mundo reificado da cidade. Essa estrutura nos parece bem semelhante
àquela do romance tal como definiu Goldmann: a história da pesquisa do herói problemático,
que busca por meio degradados aceder a valores autênticos num mundo também degradado.
Para esse teórico, a forma romanesca é essencialmente crítica e de oposição: “É uma forma de
resistência à sociedade burguesa em curso de desenvolvimento. Resistência individual que
não pôde apoiar-se, no seio de um grupo, senão em processos psíquicos afetivos e não
conceitualizados” (Goldmann, 1990, p. 25). Parece-nos que Nelson Pereira buscou revelar em
seu filme as implicações e limites da consciência possível do sertanejo, identificada na obra
de Guimarães Rosa, em sua relação oposicionista ao pensamento burguês, o qual se vincula,
como a própria sociedade burguesa, às determinações da atividade econômica. Por conta da
categoria de absoluto que o valor de troca tende a ocupar nessa sociedade, nas palavras de
Goldmann o pensamento burguês “é precisamente na História o primeiro pensamento ao
mesmo tempo radicalmente profano e a-histórico; o primeiro pensamento cuja tendência é
para a negação de tudo o que é sagrado, quer se trate do sagrado celestial das religiões
transcendentes, quer do sagrado imanente do devir histórico (1990, p. 27)”. A esse sagrado
imanente histórico, em última análise, os valores autênticos subjacentes na obra de Santos
dizem respeito; e, assim, a consciência possível do sertanejo, que se refere a aspirações
transcendentes religiosas, revela-se na concepção marxista de Santos como uma consciência
limitada em face dos problemas enfrentados pela família sertaneja na realidade reificada da
sociedade burguesa.
Concluímos que, enquanto a narrativa roseana promove sua utopia na volta do logos
ao mito, lançando no passado a busca de valores inerentes ao homem, Nelson Pereira dos
Santos, por sua vez, toma um caminho contrário: atualiza historicamente a narrativa e busca
uma via utópica segundo os valores do pensamento marxista, projetando sua terceira via no
futuro, ao mesmo tempo em que valoriza a vida espiritual como expressão de uma realidade
mais vasta e ampla. Ambos os autores buscam por meio da arte uma terceira margem do rio
remando, contudo, em direções opostas.
Considerações Finais
O interesse no estudo comparado entre cinema e literatura está, em primeiro lugar, no
fato de que a adaptação cinematográfica de textos literários é uma prática recorrente, que
desperta variados questionamentos sobre o diálogo entre as artes, por meio do qual se pode
discutir as confluências e as especificidades expressivas das referidas instituições artísticas,
além de suscitar ainda o interesse em situar tal diálogo historicamente.
A confluência imediata entre o filme e o texto literário é a instância narrativa.
Contudo, quando se trata de definir a especificidade do cinematográfico, teóricos do cinema,
como Christian Metz (1980), argumentam que o narrativo é, por definição, o extra-
cinematográfico, pois se refere a qualquer sistema de narração, seja o teatro, o romanesco, ou
mesmo as conversas cotidianas. Portanto, a narratologia, que se iniciou como instrumento de
abordagem da literatura e se estendeu às mais variadas manifestações culturais, abre a
possibilidade de se analisar comparativamente alguns aspectos dos sistemas de narração
literário e cinematográfico, mas não abarca o cinematográfico propriamente dito. A discussão
sobre a especificidade expressiva é central nas teorias do cinema e implica definir ou
problematizar uma linguagem cinematográfica. Em nosso primeiro capítulo, afirmamos um
embasamento na teoria de Lotman (1978), segundo a qual o cinema, como todas as artes,
baseia-se nos padrões de estruturação lingüística. Contudo, se o mecanismo central de língua
é a dupla articulação, pela qual se instaura a arbitrariedade e se estrutura o sistema de
significação, o cinema, por sua vez, não se fundamenta de forma correlata pela dupla
articulação. Em primeiro lugar, o cinema é imagem, e a relação entre o significante e o
significado da imagem é motivada pela semelhança, tendo em vista o caráter analógico da
imagem cinematográfica. E essa relação se torna mais complexa com a adição dos elementos
sonoros. Em face disso, o cinema não pode ser conceituado como uma língua, mas, por se
tratar da seleção e organização de unidades que representam coisas numa continuidade
discursiva, o cinema pode ser considerado linguagem, a qual existe mediante fusão complexa
de códigos especializados e códigos culturais.
Ao comparar a linguagem literária com a cinematográfica levanta-se o desafio de
estabelecer relações de homologia. Os instrumentos oferecidos pela narratologia abrem a
possibilidade de comparar um nível homológico entre as linguagens: permitem traçar as
aproximações e afastamentos entre as estruturas narrativas. Contudo, para se analisar a forma
com que se dá a transformação dessas estruturas, o que confere autonomia às obras, faz-se
necessário abordar a especificidade de cada código. Entre outros aspectos, interessa analisar o
modo com que o conjunto de simbolismos e conotações do texto literário é traduzido em
objetos visuais e sonoros que aparecem no filme.
O objetivo geral deste trabalho foi o de proceder a um estudo comparativo que
explicitasse alguns dos aspectos de transcodificação e de interferência verificáveis na
transformação do literário em cinematográfico.
Como ponto de partida, nos capítulos 2 e 3, a análise se restringiu aos textos literários,
no esforço de definir os limites e ajustar o foco da posterior comparação. Buscou-se inserir os
cinco contos-base numa estrutura totalizante de Primeiras Estórias, o que resultou na
identificação de uma estrutura especular articulada às figuras de margem e centro. Essa
articulação, e as interpretações decorrentes dela, serviram de eixo para traçar as coordenadas
narrativas dos contos transcodificados, servindo de norte à abordagem das microestruturas.
Desse modo, relacionamos os valores conotativos e simbólicos desses elementos de síntese —
centro, margem e espelho — aos desvios da diegese dos contos de Primeiras Estórias, a
saber, a implosão da lógica narrativa mediante: 1) a dispersão das palavras informativas da
ação no discurso do narrador; 2) o discurso poético da fala das personagens descentradas. Em
última instância, a interpretação da natureza conotativa e simbólica dos contos em nível micro
e macroestrutural, pautada num complexo de valores metafísico-religiosos, abriu caminho
para se chegar à consciência possível que dá forma a essa obra de Guimarães Rosa, segundo a
aplicação do método estruturalista genético.
Terminada essa etapa do trabalho, a análise foi direcionada ao estudo específico e
detalhado do conto “Seqüência”, no capítulo 4. Na montagem de Nelson Pereira dos Santos,
esse conto foi o menos desmontado, e, em termos comparativos, é o que apresenta mais
aproximações com sua versão cinematográfica, como resultado de técnicas homólogas de
narração. Além disso, o conto serviu de fio de continuidade à narrativa de Santos, pois trata da
busca do protagonista, Liojorge, pelo amor, que resulta na constituição da personagem
coletiva da família sertaneja, núcleo da investigação dialética promovida pelo cineasta.
Para a análise literária de “Seqüência” foi aplicado o modelo proppiano tendo em vista
a hipótese de que a forma fundamental do referido conto é a do maravilhoso, forma esta que
passa por um processo de derivação secundária, pelo qual Guimarães Rosa assimila
simbolicamente elementos da religião cristã às formas primárias do conto maravilhoso —
originárias, segundo Propp (1978), de religiões primitivas. Seguida a essa análise, verificou-se
o modo com que o conto se traduziu no sistema de narração do cinema e constatou-se que
tanto para a narração literária quanto para a cinematográfica foi empregada a técnica da
montagem paralela, que tem origem na literatura, mas é amplamente utilizada no cinema,
principalmente em cenas de perseguição. Com relação aos códigos específicos, procurou-se
explicar o distanciamento entre os aspectos plástico-descritivos, além de verificar como a
riqueza simbólica de alguns elementos do conto, como a “vaquinha”, ou o encontro entre o
protagonista e a moça “alta, alva, amável”, foi expressa em imagem e som, por meio de
iluminação, cor, décor, música, recursos de montagem simbólica, entre outros.
Por fim, no capítulo 5, tem lugar a análise comparativa geral entre os contos e o filme.
O eixo dessa análise é a comparação entre as estruturas narrativas das obras, pontuada,
segundo a pertinência do foco analítico, por algumas considerações sobre recursos
expressivos específicos das linguagens. A partir de um quadro das seqüências narrativas do
filme, buscou-se tecer relações de semelhança e alteridade entre as obras, a fim de verificar o
grau de autonomia estética da obra cinematográfica e, como último objetivo, chegar à
consciência possível revelada pelo complexo estético do filme, aplicando o método proposto
por Lucien Goldmann (1990). Nos capítulos 2 e 3, com base no estudo da organização
especular de Primeiras Estórias, envolvendo as figuras de margem e centro, e da ilogicização
do discurso narrativo promovidos por Guimarães Rosa, foi defendida a hipótese de que a obra
advém da consciência possível do homem sertanejo, que aspira a valores metafísico-religiosos
na realidade laicizada contemporânea. Comparando a obra literária ao filme, verificou-se que
Nelson Pereira dos Santos conferiu uma estrutura lógica aos contos de Rosa e transmutou a
organização especular de Primeiras Estórias, conferindo novos valores à relação simbólica
margem-centro. A organização dialética do discurso de Santos, focado na passagem histórica
do campo à cidade, e em suas conseqüências para o grupo que sofreu o êxodo, parece revelar
a consciência possível de um grupo intelectual marxista, o qual esquadrinha os limites da
busca metafísico-religiosa do sertanejo migrado para a cidade frente à sua degradação nas
transformações da realidade material, mas, ao mesmo tempo, considera a vida espiritual como
expressão de uma realidade humana mais profunda e mais vasta, tendo em vista a totalidade
dos processos sociais.
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A terceira margem do rio (1993). Direção: Nelson Pereira dos Santos. Distribuição: Sagres
Vídeo e Rio Filmes. Versão em VHS.
Outras estórias (1999). Direção: Pedro Bial. Distribuição: Rio Filmes. Versão em VHS.
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