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LUIZ GUILHERME ARCARO CONCI
COLISÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
JURÍDICAS TRAVADAS ENTRE PARTICULARES: PROBLEMAS DE
INTENSIDADE E A REGRA DA PROPORCIONALIDADE
MESTRADO EM DIREITO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
SÃO PAULO
2006
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LUIZ GUILHERME ARCARO CONCI
COLISÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
JURÍDICAS TRAVADAS ENTRE PARTICULARES: PROBLEMAS DE
INTENSIDADE E A REGRA DA PROPORCIONALIDADE
Dissertação apresentada à banca
examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito (Direito do Estado),
sob a orientação da Professora Doutora
Flávia Cristina Piovesan.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
SÃO PAULO
2006
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Banca Examinadora
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
___________________________ São Paulo, 30 de agosto de 2.006.
À memória de meu pai, Odécio, falecido precocemente, que tanto fomentou nossa
aproximação, minha e de meu irmão, com os livros.
À minha mãe, Leninha, mulher de força invejável, que nos demonstrou que é possível
enfrentar as dificuldades sem perder a esperança.
Ao meu irmão Guga, pela sincronia.
À Eliane, pelo amor de quase uma década, que somente engrandece com o passar dos dias.
AGRADECIMENTOS
Agradecer sem ser ingrato. Essa a dificuldade que nos oferece esse espaço. São tantas as
pessoas que nos auxiliaram nos últimos anos, que corremos, claro, o risco de esquecermos de
figuras tão importantes.
Aos professores da Faculdade de Direito da PUC/SP, entre os quais, hoje, tenho a mais alta
honra de figurar, meu agradecimento pelo poder de reflexão que essa faculdade desperta em
seus alunos, tirando-os de uma perspectiva de imobilidade para que seja visto o Direito como
um instrumento também de transformação da sociedade. Entre esses professores tenho uma
gratidão especial a dois deles que tanto me engrandeceram com suas idéias e mesmo pelas
visões de docência, vida e Direito, que são os Professores Doutores Flávia Cristina Piovesan e
Marcelo Figueiredo, dos quais tive a a honra de ser assistente e tornar-me próximo.
Aos alunos da Faculdade de Direito da PUC/SP, que tanto nos intrigam com suas idéias
perspicazes e suas participações inteligentes, que fazem com que seja a docência um
verdadeiro desafio perene, como deve ser.
Aos meus colegas, tanto de graduação como do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Direito da PUC/SP, com quem construí uma visão reflexiva sobre o Direito. Entre eles cito,
sem incorrer em ingratidão, meus amigos Renato, Cássio, Cecília, Samantha, Marcelo, dentre
tantos outros.
Aos meus colegas Pedro Iokoi, Daniel Zveibil, Ricardo Pantin e André Vasconcellos de Lima.
Aos meus colegas da Escola Superior de Direito Constitucional – ESDC, a qual, na figura do
Prof. Marcelo Lamy, representa um verdadeiro locus de produção intelectual, que merece a
posição de destaque que detém e não pode ser atirada na vala comum das “especializações”
hoje existentes a cada esquina.
Aos meus colegas e professores do Curso de Especialização em Direito Constitucional da
PUC/SP – COGEAE, Mônica de Mello, Derly Barreto e Silva, Roberto Dias da Silva e
Guilherme Aranha, pela satisfação de pertencer a esse grupo que produz tanto boas idéias
quanto boas piadas e com quem tenho a satisfação de estar construindo um curso que reflete
nossa perspectiva puquiana de ver o Direito.
Aos meus familiares de Limeira(Myrian, Roberto, Marcelo, Luciana, Penidinho, José, Lena,
Denise, Ana Maria), que foram tão importantes no caminho para que eu chegasse nesse ponto,
desde a época em que passava, com meu irmão, minhas férias em suas casas, importunando-
os. Além disso, mesmo muito antes de se falar em Programas Sociais de Bolsa Isso, Bolsa
Aquilo, permitiram, com o falecimeto de meu pai, que pudéssemos tanto terminar a faculdade
quanto o programa de pós-graduação enquanto não conseguíamos uma bolsa. Esse último
agradecimento é especialmente voltado a Penido Stahlberg e Rosa Arcaro, que demonstraram
que não superamos totalmente os laços firmados com as comunidades familiares para que
esses fossem transferidos ao “Estado Social brasileiro”.
Agradecemos à CAPES-CNPQ pela bolsa temporária que nos concedeu.
Por último, queremos lembrar das dificulades de se viver da docência e da pesquisa neste país,
onde devem ser eficientizados os mecanismo de acesso a bolsas e, mesmo, aos programas de
pós-graduação, que devem superar as relações de pessoalidade para alcançar as de mérito
definitivamente. É bom lembrar que, sem professores e alunos razoavelmente formados,
interessados e valorizados não alcançaremos os objetivos que previmos constitucionalmente.
RESUMO
O objetivo do trabalho consiste em analisar a questão da vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais. Com isso, pretende-se analisar a expansão da aplicação dos direitos
fundamentais também para as relações jurídicas travadas entre particulares, é dizer, admitir-se
a incidência dos direitos fundamentais em relações jurídicas em que o Estado não está
presente. Foram analisadas tanto parcela da doutrina e jurisprudência nacional quanto
estrangeira e tentou-se formular um modelo de resolução dos problemas advindos da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais a partir da regra da proporcionalidade.
ABSTRACT
The purpose of this study was to analyse the theme of fundamental rights in the privates’
sphere, i.e. the function of fundamental rights in the relations between privates and when the
State is not one of the actors envolved. To reach this purpose we’ve studied the Brasilian
doctrine and cases and also the international ones and, in the last chapter, we’ve tried also to
think in a way to solve the problem of the aplication of fundamental rights in the privates’
sphere using the rule of proportionality.
INTRODUÇÃO........................................................................................................................12
1. DIREITOS FUNDAMENTAIS E ESTADO....................................................................16
1.1. O Estado Liberal: formação, algumas características e a função dos direitos
fundamentais em seu contexto..............................................................................................16
1.1.1. A formação do Estado Liberal: a contar uma breve história..................................16
1.1.2. O Estado Liberal e seus ideais de separação: separação dos Poderes e separação
entre Estado e sociedade...................................................................................................19
1.1.2.1. Separação dos Poderes como divisão: a supremacia do legislador .................20
1.1.2.2. Separação entre Estado e sociedade: o Estado como único destinatário dos
direitos fundamentais....................................................................................................23
1.1.2.3. Estado Liberal, Estado de Direito e o ideal da segurança jurídica que os
permeia .........................................................................................................................24
1.1.2.4. A centralidade do indivíduo singular na vertente liberal dos direitos
fundamentais: a cultura jurídica do Estado Liberal......................................................26
1.1.2.5. Poder Judiciário e Estado Liberal....................................................................28
1.1.2.6. Sobre a aplicação da lei: o recurso único ao método subsuntivo ....................31
1.1.2.7. Os conflitos cidadão-cidadão no Estado Liberal: a centralidade do Código
Civil ..............................................................................................................................32
1.1.2.8. O Início do Fim: o desejo de participação do cidadão trabalhador nos
desígnios políticos do Estado .......................................................................................34
1.2. Direitos fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito ..............................36
1.2.1. A passagem do Estado Liberal para o Estado Social: a necessidade de inserção de
novos atores sociais ..........................................................................................................36
1.2.2. A política do Estado Social, o problema da inclusão generalizada e a representação
partidária em crise: re-descrevendo os papéis do Estado e da sociedade liberais ............39
1.2.3. Algumas considerações sobre o direito do Estado Social ......................................43
1.2.4. A separação dos poderes no Estado Social: a devida cooperação a superar a mera
divisão de funções ............................................................................................................44
1.2.5. O Juiz do Estado Social: o “juiz social”.................................................................45
1.2.6. Estado Social e Sociedade: uma aproximação contínua a atenuar seus contornos 47
1.2.7. Estado Social: do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito................49
1.2.7.1. Estado Social e Democrático de Direito..........................................................50
1.3. Haveria sido superado o Estado Social?........................................................................51
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A DOGMÁTICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
..................................................................................................................................................57
2.1. Direitos fundamentais: seus perfis subjetivo e objetivo................................................57
2.1.1 Direitos fundamentais e direitos subjetivos.............................................................57
2.1.2. A função objetiva dos direitos fundamentais .........................................................60
2.1.3. Uma tentativa de aproximação entre as perspectivas objetiva e subjetiva dos
direitos fundamentais........................................................................................................63
2.2. A multifuncionalidade dos direitos fundamentais: direitos de defesa e direitos a
prestações .............................................................................................................................64
2.2.1. Direitos fundamentais como direitos de defesa contra os poderes públicos e
privados ............................................................................................................................66
2.2.2. Direitos fundamentais como direitos a prestações por parte do Estado .................70
3. EFEITOS JURÍDICOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÕES
JURÍDICAS ENTRE PARTICULARES .............................................................................75
3.1. Novos atores sociais privados e a necessidade de proteção dos cidadãos também contra
este novo “poder”: uma nova função para os direitos fundamentais?..................................76
3.2. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais..............................................81
3.2.1. Uma aproximação conceitual .................................................................................83
3.2.1.1. A negativa de vinculação aos direitos fundamentais, pelos particulares, nas
relações privadas...........................................................................................................85
3.2.1.1.1. A doutrina da state action Norte-Americana............................................85
3.2.1.1.2. A posição de J. Schwabe ..........................................................................94
3.2.1.2. A vinculação mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas .........96
3.2.1.2.1. A posição de Canaris -- ..........................................................................100
3.2.1.2.1.1. Vinculação imediata exclusiva do legislador de direito privado e do
juiz aos direitos fundamentais ............................................................................101
3.2.1.2.1.2. Direitos fundamentais e legislador privado.....................................101
3.2.1.2.1.3. Direitos fundamentais e Poder Judiciário........................................102
3.2.1.2.1.4. Comentários parciais .......................................................................103
3.2.1.2.1.5. As funções dos direitos fundamentais de “proibição de intervenção” e
“imperativos de tutela”.......................................................................................104
3.2.1.2.1.6. Proibições de intervenção e proibição do excesso...........................105
3.2.1.2.1.7. Uma crítica parcial...........................................................................105
3.2.1.2.1.8. Imperativos de tutela e proibição da insuficiência ..........................106
3.2.1.2.1.9. A negativa da eficácia imediata dos direitos fundamentais às relações
jurídicas travadas entre sujeitos privados...........................................................107
3.2.1.2.1.10. Crítica parcial ................................................................................109
3.2.1.2.2. A posição de Konrad Hesse....................................................................112
3.2.1.3. A jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão (TCF)...........115
3.2.1.3.1. Breve análise da jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol e
uma reflexão ...........................................................................................................118
3.2.1.4. A vinculação imediata dos particulares aos direitos fundamentais...............120
3.2.1.4.1. Do Fundamento Constitucional..............................................................122
3.2.1.4.1.1. A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal..............................125
3.2.1.4.2. Sujeitos e destinatários de direitos fundamentais...................................130
3.2.1.4.3. Das funções que desempenham os direitos fundamentais nas relações
entre particulares ....................................................................................................131
3.2.1.4.3.1. Direitos fundamentais a prestação e particulares ............................132
3.2.1.4.3.2. Direitos de defesa e particulares......................................................134
3.2.1.4.4. Do modo pelo qual os direitos fundamentais vinculam os particulares:
questão de intensidade............................................................................................136
3.2.1.4.4.1. As relações particular-particular e Estado-particular em tema de
direitos fundamentais: estipulando diferenças....................................................137
3.2.1.5. Uma tentativa de aproximação das correntes especificadas..........................141
4. PROBLEMAS DE CONCRETIZAÇÃO DAS NORMAS DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES JURÍDICAS PARTICULAR-PARTICULAR .145
4.1. Estrutura e densidade normativa das normas de direitos fundamentais ......................145
4.3. Problemas conceituais das normas de direitos fundamentais......................................147
4.4. A estrutura das normas de direitos fundamentais na teoria dos direitos fundamentais de
Robert Alexy ......................................................................................................................149
4.4.1. Direitos fundamentais como princípios............................................................149
4.4.1.1. Colisões de princípios e a regra da proporcionalidade..................................157
4.4.1.1.1. Exame de adequação ..........................................................................159
4.4.1.1.2. Exame da necessidade ............................................................................161
4.4.1.1.3. O exame da proporcionalidade em sentido estrito..................................162
4.4.1.2. O problema do excessivo recurso à ponderação............................................167
4.4.1.3. Proporcionalidade e (ir)razoabilidade ...........................................................170
4.4.2. Direitos fundamentais como regras......................................................................172
4.5. Vinculação dos particulares às normas de direitos fundamentais: nossas posições....175
4.5.1. Vinculação dos particulares aos direitos fundamentais veiculados a partir de regras
........................................................................................................................................176
4.5.2. Vinculação dos particulares aos direitos fundamentais veiculados a partir de
princípios e a regra da proporcionalidade: enfrentando problemas práticos..................177
4.5.2.1. O caso da fiscalização de mensagens eletrônicas pelo empregador..............179
4.5.2.1.1. A regra da proporcionalidade como critério de decisão das colisões de
direitos fundamentais nas relações jurídica particular-particular...........................182
4.5.2.2. O caso da restrição da liberdade de expressão do empregado por ordem do
empregador: da inexistência de previsão contratual expressa....................................187
5. CONCLUSÃO...................................................................................................................191
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................201
12
INTRODUÇÃO
Aproximação do tema e perspectiva de apreciação
Ao tratar dos fundamentos da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais, pretendemos discutir a evolução histórico-dogmática desses direitos e
analisar, ao final, o modo como vinculam aos particulares nas relações jurídicas que
travam com outros particulares.
Alcançado esse trecho da monografia, pretendemos enfrentar o tema da
resolução dos problemas advindos das colisões de direitos fundamentais nas relações
jurídicas travadas entre particulares e apontar, como de fato apontamos, a regra da
proporcionalidade como um método de resolver esses problemas.
Para chegar a essa passagem, acreditamos ser preciso apontar alguns
problemas históricos dos direitos fundamentais e, para isso, operamos um corte
histórico para começar essa análise a partir do que se entendeu por racionalismo
iluminista do século XVIII, com as Revoluções Francesa e Industrial como grandes
fomentadoras do desenvolvimento expansivo dos direitos fundamentais.
Não desprezamos a possibilidade de buscar outros fundamentos históricos
para os direitos fundamentais. Contudo, trata-se de um recorte histórico que permite
optarmos tratar dos direitos fundamentais a partir do que entendemos fortalecedor do
que se pretende discutir mais à frente.
Não há dúvida, outrossim, que poderíamos envidar esforços para o alcance do
objetivo da monografia sem passar pela perspectiva histórica apontada, a começá-la já
no tema da dogmática.
Todavia, entendemos perder um aspecto que, cada vez mais, a nosso ver,
precisa ser enfrentado: a relação entre o direito – e os direitos fundamentais – e a
13
história, em um movimento de retro-alimentação que para alguns é havida como
supérflua, mas que pensamos imprescindível
1
.
Não há dúvida de que outros podem ser os períodos históricos de
“nascimento” dos direitos fundamentais. Contudo, em nada alteraria a discussão de
fundo que se pretende tratar, vez que correríamos o risco de subverter a pretensão
inicial de desenvolver essa dissertação no sentido de discutir se se vinculam ou não os
particulares aos direitos fundamentais em suas relações jurídicas travadas com outros
particulares e, se afirmativa a resposta, como introduzir um instrumento para modular
ou equilibrar essa vinculação.
Assim, optamos por não nos concentrarmos demasiadamente na história dos
direitos fundamentais para que não se desvie o foco do presente trabalho.
Passada a análise historicizada dos direitos fundamentais, devemos enfrentar a
relação entre Estado e direitos fundamentais, já que pensados, estes, inicial e
unicamente para conter a sanha invasiva daquele.
Após, trataremos dos aspectos dogmáticos dos direitos fundamentais, como as
funções que desempenham no sistema jurídico, seus destinatários e titulares e a
estrutura das normas de direitos fundamentais.
Esgotada essa abordagem, chegaremos ao ponto nuclear da presente
monografia, qual seja, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais e a
utilização da regra da proporcionalidade como método de resolver parcela dessas
colisões entre particulares, sem, é claro, deixar de apontar críticas ao excessivo
recurso a esse método.
Ao final, criaremos casos práticos para apontar os ganhos e as perdas advindos
da utilização da regra da proporcionalidade nas colisões de direitos fundamentais
entre particulares.
1
As razões apontadas são as mesmas de LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência Jurídica. 3ª ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997, p. 5. O autor também afirma que poderia o seu trabalho
começar no “estágio atual da doutrina”, mas que para uma compreensão completa da problemática
necessita-se do recurso à história do pensamento dos últimos 150 anos”. Assim, voltando à nossa
monografia, para o leitor familiarizado com o tema inicial, em nada perderia se começasse a leitura a
partir do trecho posterior à análise histórica dos direitos fundamentais.
14
Antes de terminarmos essa introdução, devemos apontar alguns elementos
formais levados em conta quando da elaboração dessa monografia.
Primeiro, não é nossa intenção fincar pé unicamente no direito brasileiro,
apesar de apontarmos seus problemas quanto ao que se discute. Por isso, ao traçarmos
um brevíssimo apontamento histórico dos direitos fundamentais, preferimos não nos
fixarmos somente no direito brasileiro, apesar de a ele nos referirmos sempre que
possível.
A nosso ver, o discurso ocidental dos direitos fundamentais pode ser tido
como útil quanto se trata da evolução dos direitos fundamentais no direito brasileiro,
ou seja, é possível que nos remetamos a uma análise um pouco mais generalizada para
entender o fenômeno como existente para além de nosso território, apesar de
diferenças a que nos referimos no decorrer do texto.
Já quanto à resolução de problemas advindos da utilização da regra da
proporcionalidade nas colisões de direitos particular-particular, preferimos utilizar
exemplos brasileiros para melhor proximidade daquele que tem acesso a esse texto
com o que se analisa.
Em nada perderíamos, no entanto, se nos utilizássemos de decisões proferidas
por tribunais estrangeiros, como algumas que analisamos, mas, ao final, quando do
desfecho deste texto, nossa opção pelo direito brasileiro é uma escolha que leva em
conta a familiaridade do leitor com os problemas enfrentados, permitindo-lhe que
verifique a possibilidade e a necessidade da utilização da regra da proporcionalidade
para o expediente de resolver colisões de direitos fundamentais nas relações jurídicas
particular-particular.
Ainda sobre alguns aspectos formais, é importante dizer a respeito da principal
estratégia de escrita que utilizamos, qual seja, não fazer citações no decorrer do texto,
exceto se imprescindíveis.
Perceberá o leitor que as citações que entendemos necessárias se encontram
transcritas nos rodapés das páginas, pois acreditamos ficar o texto, assim, menos
truncado.
15
Isso porque acreditamos que se pretende entender as nossas posições sobre os
assuntos versados e as citações no decorrer do texto podem cansar o leitor, muitas
vezes conhecedor das obras referidas.
Outrossim, quanto às citações de obras que não versadas em português,
utilizamo-nos da seguinte estratégia: para aquelas versadas em espanhol, dada a
proximidade com a nossa língua, preferimos deixá-las intactas, sem tradução. Para
outras citações em outras línguas, traduzimo-las livremente.
16
1. DIREITOS FUNDAMENTAIS E ESTADO
O presente capítulo trabalhará com a evolução havida nos últimos três séculos
do papel do Estado, sob as suas facetas liberal e social, e, ao final, discutiremos se
podemos falar em um Estado Pós-social.
Isso porque, em nossa opinião, é a perspectiva da feição do Estado, e suas
relações com os cidadãos, bem assim as relações jurídicas travadas entre os próprios
cidadãos, nesses contextos, que informam a própria função desses direitos
fundamentais.
1.1. O Estado Liberal: formação, algumas características e a função dos direitos
fundamentais em seu contexto
1.1.1. A formação do Estado Liberal: a contar uma breve história
A Revolução do século XVIII ocorrida na França
2
, que culminou com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e, após, com a
2
Não temos a intenção de desenvolver historicamente as particularidades nacionais de cada Estado
nacional referido no decorrer do texto. Assim, sempre que pudermos, faremos referência a disposições
ou situações de países singulares para fortalecer a argumentação que se pretende, pois entendemos que
há grande similaridade no discurso ocidental dos direitos fundamentais. Seria demasiadamente
pretensioso e fora de razão que esta dissertação o fizesse, vez que não é a aproximação histórica o tema
de fundo. Todavia, esta é necessária, com temperança, em razão de informar a evolução histórico-social
dos direitos fundamentais. É claro que reconhecemos que esse processo histórico não se desenvolve
linearmente como alguns querem crer, mas, sob uma análise que exige abstração, é necessária essa
aproximação. No mais, sobre o Brasil reconhecemos que essa linearidade é mais distante ainda, se
comparada aos países centrais. Nesse sentido, CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do
Judiciário: Um Enquadramento Teórico. In: FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais
e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 31, e CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil – o
longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, pp. 11 e ss.
17
Constituição de 1791, fez com que a idéia de que os direitos fundamentais têm por
função proteger o cidadão da ambição do Estado por sobre sua vida privada se
tornasse um paradigma
3
.
Sendo assim, é essa forma que escolhemos para introduzir o debate do
relacionamento entre direitos fundamentais e cidadão, de uma banda, e Estado e seu
perfil, de outro.
A idéia do paradigma da Revolução Francesa
4
para análise dos direitos
fundamentais decorre da importância desta para o estudo do desenvolvimento
intelectual do cidadão e de sua visão do papel do Estado.
Esse Estado nasce como que influenciado pela visão formulada pelo cidadão
sobre o período anterior, o antigo regime, em que a figura do Estado interessava para
poucos, ou só para aqueles a quem o Estado provia com algo: nobres e realeza
5
. Para
os demais, esse Estado não passava de um tomador, de um espoliador
6
.
A confirmação dos desígnios liberais da Revolução Francesa, em sede de
direitos fundamentais, resultou, quando se trata da relação entre Estado e cidadão, de
um dever básico do primeiro: abster-se de invadir a órbita dos direitos individuais dos
3
Com isso não queremos afirmar ser o único grande evento histórico a firmar suas características para
o futuro dos direitos fundamentais. Haveria, por óbvio, grandes lições anteriores ou contemporâneas a
ela, como o desenvolvimento de proteção aos proprietários na Magna Charta ou a Constituição Norte-
Americana, por exemplo. O que mais relevante na Revolução francesa é que vem acompanhada de uma
perspectiva de análise nova, dada a influência do racionalismo oitocentista em seus objetivos.
4
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 30:
“tornou-se a Revolução do século XVIII gênero de importantíssimas renovações institucionais, na
medida em que içou, a favor do Homem, a tríade da liberdade, igualdade e fraternidade, decretando,
com seus rumos, o presente e o futuro da civilização”. Mais à frente (p. 31): “Mercê de tamanha
amplitude hermenêutica de visão dos três últimos séculos, já nos é possível discernir com clareza, pelos
aspectos de historicidade e concreção, e não apenas de sua inexcedível infinitude teórica, que a
Revolução Francesa fora um espécimen do próprio gênero de Revolução em que ela se conteve: a
Grande Revolução espiritual e racionalista do século XVIII”.
5
CALMON, Pedro. Curso de Direito Constitucional Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1947,
p. 275: “Mas, pode-se afirmar, para conseguir-se a plenitude dos direitos individuais foi que se alterou,
no século XVIII, a fisionomia política do mundo. A transformação do Estado veio em seguida:
precedeu-a o clamor pela ‘liberdade’, isto é, o privilégio de não se sofrer pena, ou praticar ato, que não
fosse por expressa disposição de lei, excluídos os arbítrios do poder que estrangulavam as
manifestações de independência do povo, impediam o desenvolvimento das vocações, estratificavam
em classes a sociedade, monopolizando o governo, por uma minoria permanente, à volta da
hereditariedade monárquica”.
6
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 40:
“Na doutrina do liberalismo, o Estado sempre foi o fantasma que atemorizou o indivíduo. O poder, de
que não pode prescindir o ordenamento estatal, aparece, de início, na moderna teoria constitucional
como o maior inimigo da liberdade”..
18
cidadãos, estes caracterizados, principalmente, pelos direitos à propriedade,
segurança, liberdade, legalidade e não opressão (não se falará, aqui, do que se entende
por igualdade formal).
O que se passou ser designado como Estado Liberal impôs, especialmente ao
Poder Público, um dever de abstenção por sobre a órbita jurídica dos direitos dos
cidadãos, que, assim, estariam a buscar que suas relações jurídicas fossem travadas na
base do ideal da liberdade.
Essa liberdade se fincaria, essencialmente, na lei, esta produzida pelos
representantes dos cidadãos
7
. Podemos assim dizer que o Estado Liberal se confunde
com um Estado Legislativo
8
, vez que seria o Poder Legislativo quem definiria, em
última hipótese, o conteúdo jurídico desse ideal de liberdade.
7
O conceito de cidadão, aqui, se refere, mais à titularidade de direitos políticos e civis, vez que são
estes os direitos fundamentais “típicos” do Estado Liberal. Sobre os direitos políticos, mais
especificamente o direito de sufrágio limitado, vale transcrever a passagem da Constituição Francesa de
1791: “SECCIÓN II - Asambleas Primarias. Nombramiento de los electores - Artículo 2. Para ser
ciudadano activo es necesario: – Ser francés por nacimiento o por naturalización; – Tener cumplidos
los venticinco años de edad; – Estar domiciliado en la ciudad o en el canton desde el tiempo que
determine la Ley; – Pagar, en cualquier lugar del reino, una contribución directa igual al menos al
valor de tres jornales y presentar el recibo; – No encontrarse en estado de domesticidad, es decir, de
servidor a sueldo; – Estar inscrito en el municipio de su domicilio en la lista de la Guardia Nacional; –
Haber prestado el juramento cívico. Artículo 3. Cada seis años, el Cuerpo Legislativo fijará el mínimo
y el máximo del valor del jornal, y los Administradores de los departamentos lo determinarán
localmente para cada distrito. Artículo 4. Nadie podrá ejercer los derechos de ciudadano activo en más
de un lugar, ni hacerse representar por otro. Artículo 5. Están excluídos del ejercicio de los derechos de
ciudadano activo, – Los que se encuentren bajo acusación; – Los que, tras haber sido declarados
quebrados o insolventes a través de prueba documental auténtica, no aporten un recibo de descargo
general de sus acreedores. Artículo 6. Las asambleas primarias nombrarán electores en proporción al
número de ciudadanos activos domiciliados en la ciudad o cantón. – Se nombrará un elector por cada
cien ciudadanos activos, presentes o no, en la asamblea. – Se nombrarán dos a partir de ciento
cincuenta y uno más hasta doscientos cincuenta, y se seguirá así de ahí en adelante. Artículo 7. Nadie
podrá ser nombrado elector si a las condiciones necesarias para ser ciudadano activo no añade las
siguientes: – En las ciudades de más de seis mil almas, la de ser propietario o usufructuario de un bien
valorado en el registro de la contribución con una renta igual al valor local de doscientos jornales, o ser
arrendatario de una vivienda valorada en el mismo registro con una renta igual al valor de ciento
cincuenta jornales; – En las ciudades de menos de seis mil almas, la de ser propietario o usufructuario
de un bien valorado en el registro de la contribución con una renta igual al valor local de ciento
cincuenta jornales, o ser arrendatario de una vivienda valorada en el mismo registro con una renta igual
al valor de cien jornales; – Y en el campo, la de ser propietario o usufructuario de un bien valorado en
el registro de la contribución con una renta igual al valor local de ciento cincuenta jornales, o ser
granjero o aparcero de bienes valorados en el mismo registro con un valor de cuatrocientos jornales;
– Respecto de los que sean a un tiempo propietarios o usufructuarios de una parte, y arrendatarios,
granjeros o aparceros de otra, las facultades derivadas de sus diversos títulos se acumularán hasta llegar
al nivel necesario para establecer su elegibilidad”.
8
ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite: Legge diritti giustizia. Torino: Einaudi, 1992, p. 38;
PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional – um
contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 149: “No
19
Encaixa-se nesse raciocínio o caráter absoluto daqueles direitos fundamentais
emprestados pelo constitucionalismo liberal, ou seja, na impossibilidade de sua
limitação pelo Estado
9
, caso inexista lei que assim o autorize, vez que foram
declarados, esses direitos, justamente, para proteger o cidadão daquele Estado
ambicioso.
Vale dizer que, advindos de uma formulação centralizada de Estado, do
Estado Absolutista, aqueles desígnios liberais impuseram que esse novo Estado que se
estava a formular tivesse uma redução do poder detido no seu centro, a se utilizar,
para isso, entre outros, do dogma da separação dos poderes, como divisão de poderes
quase que unicamente.
1.1.2. O Estado Liberal e seus ideais de separação: separação dos Poderes e
separação entre Estado e sociedade
O Estado Liberal se constrói, como se verá, a partir de definições estanques
que, ao seu modo, demonstram que a construção de seu conceito busca atribuir
Estado de Direito de legalidade ou Estado de Legislação Parlamentar, que se constituiu para realizar o
sentido que o Iluminismo confere à lei, o princípio da separação dos poderes é exclusivamente
chamado a garantir o primado da lei, o seu império ou soberania e, simultaneamente, o monismo do
poder legislativo”. Não se vê, então, que efeito limitativo, moderador ou equilibrante do poder político
entre os órgãos estaduais possa ter. Desde logo, neste modelo normativo de Estado de Direito, nem em
rigor, de poder político se trataria pois o Estado pretende-se reduzido ao Direito. E, por outro lado,
muito ao contrário de pretender constituir cada órgão estadual jurídico-funcionalmente referenciado,
como limite ou mesmo como contrapoder dos restantes, o que o princípio da separação dos poderes
visa é assegurar que o poder legislativo seja o único efectivo centro de poder no Estado, mediante a
máxima supressão da autonomia decisória dos órgãos estaduais chamados a executar ou aplicar a lei,
sem qualquer caráter juridicamente constitutivo”.
9
No Brasil da primeira república, de ideal tipicamente liberal: VARELA, Alfredo. Direito
Constitucional Brasileiro – reforma das instituições. Edição fac-similar, 1902. Brasília: Senado
Federal, 2002, p. 307. Ao tratar do que entendeu o poder constituinte de 1891, exemplifica o
pensamento que norteou suas decisões: “Se a esta simples resenha ajuntarmos a enumeração dos
dispositivos liberais da Constituição citada (Constituição provisória de 1890), que a Assembléia
referendou; as seguranças prodigalizadas à guarda de seus direitos; o sistema judiciário idealizado para
a que estatuiu, para evitar e castigar as demasias governamentais contra a autonomia individual.
concluiremos sem esforço que a tendência dominante no Congresso constituinte, foi a de firmar a
liberdade, alargar o seu raio de ação, garanti-la em toda a plenitude”.
Isto posto, temos aqui o critério interpretativo da Constituição (1891), no que concerne à liberdade:
sempre que houver duvida relativamente a latitude que lhe deu o legislador, a interpretação há de ser
ampliativa” (cf. original).
20
tamanha objetividade aos seus ideais a ponto de colocar em cheque, por essa mesma
razão, a fortaleza de seus objetivos.
Entre esses pontos, colocamos as separações entre Estado e sociedade e a
separação dos poderes como referências da conformação do Estado Liberal
10
.
1.1.2.1. Separação dos Poderes como divisão: a supremacia do legislador
Quando falamos em separação dos poderes no Estado Liberal, estamos
tratando de defini-la como divisão de competências em órgãos independentes, ou
separação estanque dos Poderes.
Podemos dizer que a separação dos Poderes, como divisão fincada de funções,
é um dos pilares do conceito de Estado Liberal
11
.
Falar em separação dos poderes é falar, quase que unicamente, em divisão das
funções do Estado, em razão de não se reconhecer a necessidade de cooperação e
fiscalização entre os Poderes do Estado. Por isso, afirmamos que o perfil liberal da
separação dos poderes estava a dizer, muito mais da necessidade de dividir de forma
vincada as funções exercidas pelo Estado do que se estipular uma atribuição de
hetero-fiscalização entre os poderes do Estado.
O ideal da separação dos poderes, nesses termos, se moldava ao que
buscavam, por exemplo, os “vencedores” da Revolução de 1789, acanhados com a
ambição demonstrada pelo Estado no Antigo Regime sobre seus bens, com o intuito
de cobrar-lhes tributos para a manutenção de um grupo que detinha as benesses desses
valores, sem que os usufruidores fossem alcançados pela sua cobrança, ou seja, os
nobres e realeza.
10
PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional – um
contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 145-146.
11
Vide o próprio artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão de 1789, que previa que
toda sociedade na qual “a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes
determinada, não tem Constituição”.
21
O burguês, ou aquele que estava a produzir riquezas, conhecedor do espírito
expansionista do Estado sobre seu patrimônio, quando passou a fazer parte da
produção de decisões do Estado, derrubado o Antigo Regime, se apercebe, por óbvio,
de que a centralização das funções do Estado em um único órgão fez no regime
anterior, e fará, no mais recente, se mantida, com que esse poder central agisse como
que a monopolizar a ambição do próprio Estado.
Daí a necessidade de separar as funções do Estado em órgãos com maior
independência e de construir o ideal da liberdade a ser reforçado
12
pelo órgão de seus
representantes, o Poder Legislativo, sobrando ao Poder Executivo o cumprimento das
decisões legislativas e ao Poder Judiciário
13
a solução dos conflitos privados advindos
da aplicação da lei civil, e, no que toca aos direitos fundamentais, a contenção do
Estado por sobre os direitos dos cidadãos sempre a partir da lei.
Por conseqüência, sendo o Poder Legislativo o veiculador da vontade do
cidadão, restando aos demais poderes constituídos o papel de fazer valer as decisões
dos “representantes do povo”, a teoria dos freios e contra-pesos, tão discutida desde a
12
E não construído, vez que os direitos, sendo naturais, pré-existiam às decisões do legislador.
13
Sobre o Poder Judiciário nos deteremos pouco neste momento em razão de sua função haver sido
pouco necessária para a construção do constitucionalismo liberal francês, que, em regra, é o que apóia
nossos argumentos. Para uma visão mais aprofundada do papel do Judiciário neste período vf.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico. In:
FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, p.
38: “O Judiciário, no período que sucede a Ilustração e a Revolução Francesa, foi concebido como
instituição adequada para garantir direitos individuais e enquadrar a sociedade na legislação,
especialmente aquela de matriz napoleônica”. Mais à frente (p. 45): “O sistema de valores inerente à
função judiciária no Estado Liberal é marcado pela ideologia da fidelidade à lei. A rígida delimitação
da competência do sistema judicial – marcadamente distinta da competência administrativa e legislativa
– reforça a imagem doutrinária do juiz técnico, esterilizado politicamente e que faz da adjudicação um
silogismo capaz de garantir, dogmaticamente, a certeza do direito”. Daí a idéia do juiz boca da lei
(bouche de loi) e não boca do direito.
22
independência norte-americana e seus debates pré-constituintes
14
, não exerceu papel
importante no constitucionalismo francês
15
, e, conseqüentemente, europeu
16
.
Por outro lado, é inegável que a supremacia do legislador e a limitada outorga
de direitos políticos a alguns poucos “cidadãos” informam uma estratégia de
manutenção de poder, ao alijar das decisões aqueles que não titulares desses direitos.
Os demais do povo, os despossuídos, não sendo titulares de direitos políticos,
passaram a ser instrumentos da burguesia, pois não se entendia possível nem que
participassem da criação das leis nem de sua aplicação (executivo e judiciário), pois
não ocupavam tais posições estratégicas na estrutura estatal.
14
Nos Estados Unidos, a visão da própria separação dos poderes como instrumento de hetero-
fiscalização dos Poderes, principalmente após o advento da independência, foi da confiança, daí não se
poder utilizar acriticamente o exemplo francês e norte-americano, ainda que de época próxima. Sobre
isso vf. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. Os Federalistas. Trad. Heitor
Almeida Herrera. Brasília: Editora UNB, 1984. p. 418. Vale a seguinte transcrição: “Esta política de
jogar com interesses opostos e rivais, à mingua de melhores recursos, pode ser identificada ao longo do
sistema das relações humanas, tanto públicas quanto privadas. Ela é particularmente utilizada na
distribuição do poder em todos os escalões subordinados, onde o objetivo constante é dividir e dispor
as várias funções de tal modo que uma possa ter um controle sobre outra – que o interesse privado de
cada indivíduo seja uma sentinela dos direitos públicos. Tais artifícios da prudência não podem ser
menos necessários na distribuição dos poderes do Estado”.
15
FIORAVANTI, Maurizio. Constitución – de la Antiguedad a Nuestros Dias. Madrid: Trotta, 2001, p.
115: “Así sucedió cuando se llegó a la construcción de la forma de gobierno con la Constitución de 3
de septiembre de 1791. Se trataba de uma constitución construida completamente em torna a la
primacía del poder legislativo, privada casi totalmente de verdaderos y autênticos contrapesos, y así de
la posibilidad misma de contrastar, en el plano legal y constitucional, ese mismo poder. Es cierto que la
Constitución atribuía al rey un importante, aunque solo suspensivo, poder de veto. Pero también es
cierto que el rey debía ejercitar ese poder sólo y exclusivamente em su tradicional, y evidentemente no
del todo superada, cualidad de representante de la unidade nacional; y no como titular de un verdadero
y auténtico poder distinto, que la Constitución intentase contrapesar con el legislativo, como sucedía en
el caso – ya conocido – del poder ejecutivo del presidente de los Estados Unidos. También como tal, es
decir, como jefe del poder ejecutivo, el rey aparecía em la Constitución en una posición de total
subordinación al legislativo. La Constitución partia, en efecto, de la idea de que el Gobierno de la
nación deberia ser llevado adelante por la misma asamblea legislativa, y que el poder ejecutivo se
agotaba por ello em la simple administración superior, en la organización de los medios necesarios para
la aplicación de la ley. Um poder así entendido, privado – entre otras cosas – caso totalmente de
autônoma potestad normativa, podia ser bien guiado por el que ahora era ya sólo el primer funcionário
del Estado, es decir, por el mismo rey”.
16
PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional – um
contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 150: “Não
se vê, então, que efeito limitativo, moderador ou equilibrante do poder político entre os órgãos
estaduais possa ter. Desde logo, neste modelo normativo de Estado de Direito, nem em rigor, de poder
político se trataria pois o Estado pretende-se reduzido ao Direito. E, por outro lado, muito ao contrário
de pretender constituir cada órgão estadual jurídico-funcionalmente referenciado, como limite ou
mesmo como contrapoder dos restantes, o que o princípio da separação dos poderes visa é assegurar
que o poder legislativo seja o único efectivo centro de poder no Estado, mediante a máxima supressão
da autonomia decisória dos órgãos estaduais chamados a executar ou aplicar a lei, sem qualquer caráter
juridicamente constitutivo”.
23
1.1.2.2. Separação entre Estado e sociedade: o Estado como único destinatário dos
direitos fundamentais
Também a separação entre Estado e sociedade se formula como um dos pilares
do conceito de Estado liberal, pois tudo que não é Estado é, por conseguinte
sociedade
17
-
18
.
A feição do Estado a partir do que se disse até o momento sobre o Estado
Liberal exige que este fomente a idéia de um Estado que pouco ou nada se intrometa
na vida cotidiana do cidadão, ou melhor, que o faça somente para que essa vida
cotidiana se mantenha privada.
Neste sentido, a participação do Poder Judiciário, e.g., no tocante aos direitos
fundamentais típicos do Estado Liberal, é de garantir a liberdade e a proteção do
cidadão em sua relação para com o Estado. Já no que toca às relações jurídicas
travadas entre particulares, garantir a aplicação da lei, ou do Código Civil, estes sim
veiculadores dos desígnios do cidadão.
Todavia, ainda que se entenda a necessidade de um Estado mínimo, pouco
expandido, de outra banda se exige que este seja o próprio garantidor dessa sua
mínima participação.
Trata-se de dizer que a garantia da abstenção da participação do Estado na
vida cotidiana do cidadão exige que este, também, seja o próprio garantidor a partir da
manutenção da estabilidade das relações jurídicas a partir da lei.
17
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, Sistema jurídico e Decisão judicial. São Paulo: Max
Limonad, 2002, p. 37-38.
18
PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional – um
contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 148: “A
separação Estado-sociedade é de proveniência essencialmente alemã, desenvolvida em função dum
particular problema político que só na Alemanha se colocou dessa forma, mas acabou por exprimir um
ideal liberal de Estado entendido como espaço exclusivo do político, contraposto a uma sociedade
politicamente nivelada ou despolitizada, composta de indivíduos iguais em direitos”.
24
Estabelece-se um paradoxo
19
, mas o tratamento objetivo das ciências humanas
exige, antes da manutenção da objetividade formal, uma aproximação dos temas a
partir da realidade: é o que intentamos.
De tudo isso, podemos afirmar que é o Estado, em sua perspectiva de Estado
Liberal, o destinatário único dos direitos fundamentais
20
, não se podendo falar, neste
momento, em imposição desses direitos aos particulares em suas relações jurídicas
para com os demais particulares.
1.1.2.3. Estado Liberal, Estado de Direito e o ideal da segurança jurídica que os
permeia
Pelo tratado até o momento, pouco ou nada distingue o conceito de Estado
Liberal do de Estado de Direito.
Estão os dois conceitos imbricados com a idéia da lei, fruto único da decisão
do legislador, como estabilizadora das relações jurídicas, a ponto de, nesses conceitos,
poder ser traçada uma distinção pouco clara entre essa lei e justiça
21
, vez que é a lei
que veicula os desígnios de justiça dos cidadãos.
19
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Cortez, 2000, p. 118: “Para começar, o princípio da separação entre Estado e sociedade civil
engloba tanto a idéia de um Estado mínimo como a de um Estado máximo, e a ação estatal é
simultaneamente considerada como um inimigo potencial da liberdade individual e como a condição de
seu exercício. O Estado, enquanto realidade construída, é a condição necessária da realidade
espontânea da sociedade civil. O pensamento setecentista está totalmente imbuído desta contradição
dado que ao libertar a atividade econômica das regras corporativas do ancien régime o pressupõe, de
modo algum, que a economia moderna dispense de uma ação estatal esclarecida”.
20
Atentemos para diferença de intensidade, sobre o que voltaremos mais adiante, referida por
SCHMITT, Carl. Teoria de La Constitución. Madrid: 1996, p. 182: “La garantía de todo derecho
fundamental auténtico se dirige, si bien com la distinción de grado de eficácia: 1) a los órganos
competentes para revisar la Constitución, de manera diversa por cierto, según que actúen como titular
de uma facultad constitucionalmente conferida de revisar la Constitución, o como titular de la facultad
de realizar actos apócrifos de soberania; 2) a los órganos competentes para dictar leyes ordinárias y; 3)
a las restantes autoridades del Estado, sobre todo al llamado Ejecutivo”.
21
ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite: Legge diritti giustizia. Torino: Einaudi, 1992, p. 127-128:
“O positivismo jurídico, negando a existência de ‘estratos’ de direito diversos diferentes da vontade
inscrita na lei, fechava intencionalmente a possibilidade de uma distinção, dotada de relevância
jurídica, entre a lei e a justiça. Tal distinção poderia valer para outro plano da experiência ética, mas
não para o jurídico. Como para os direitos se devia dizer que eram o que a lei reconhecia como tais,
25
No que toca aos direitos fundamentais, núcleo do que se discute
presentemente, trata-se de aspecto muito peculiar à idéia de Estado Liberal, mas não à
de Estado de Direito.
O Estado de Direito, ao eleger a lei como o veículo da aproximação do direito
ao cidadão, não impõe que se parta, para sua apreciação crítica, da análise dos direitos
fundamentais previstos em suas constituições.
Isso porque ao legislador é conferido espécie de “cheque em branco” para
construir a normatividade do sistema jurídico e, por conseguinte, dos próprios direitos
fundamentais, que passam a ter o conteúdo jurídico completado, unicamente, pelo
próprio legislador.
É a lei como elemento de atribuição de segurança jurídica que importa aos
pensadores do Estado de Direito, sendo esta uma das bases construtoras do perfil
conceitual do próprio Estado de Direito
22
.
Assim, a Constituição adquire pouca normatividade para ofertar respostas aos
litígios, mesmo aqueles havidos entre cidadão e Estado, vez que quase toda a sua
formulação se dá a partir das decisões do legislador, o que, por decorrência, faz com
que concluamos que os próprios direitos fundamentais liberais são amplamente
conformados pelo legislador, quase sem limitações ao seu agir.
O conceito de Estado Liberal está calcado na ótica da liberdade dos indivíduos
singulares, mais ainda em sua liberdade econômica, e dos direitos fundamentais a
para a justiça também se repetia que era o que a lei reconhecia como tal. A relação entre lei e justiça era
perfeitamente conforme à relação entre lei e direitos”.
22
Sobre a relação entre lei, Estado de Direito e justiça, vf. SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos
Fundamentais Sociais e proibição de retrocesso: Algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos
direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 4, São Paulo:
ESDC, jul./dez., 2004, p. 242-243: “Renunciando ao desenvolvimento do ponto, há por certo como
assumir a premissa de que, havendo (ou não) menção expressa no âmbito do direito positivo a um
direito à segurança jurídica, de há muito, pelo menos no âmbito do pensamento constitucional (mas
também – de certo modo – especialmente no contexto do que se tem designado de
neoconstitucionalismo) contemporâneo, se enraizou a idéia de que um autêntico Estado de Direito é
sempre também – pelo menos em princípio e num certo sentido – um Estado de segurança jurídica,
que, do contrário, também o ‘governo das leis’ (até pelo fato de serem expressão da vontade política de
um grupo) poderá resultar em um despotismo e de toda sorte de iniqüidades. Com efeito a doutrina
contemporânea, de há muito e sem maior controvérsia no que diz com este ponto, tem considerado a
segurança jurídica como expressão inarredável do Estado de Direito, de tal sorte que a segurança
jurídica passou a ter status de subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do
Estado de Direito”.
26
exercer a função de proteger da aproximação excessiva e espoliadora do Estado,
principalmente do direito de propriedade do cidadão. Entretanto, o Estado Liberal não
está, somente, a atentar à perspectiva jurídica, em que pese exercer a lei função
precípua de estabilização das relações jurídicas sociais.
O conceito de Estado Liberal se apropria da idéia da liberdade sob diversas
óticas, ou seja, tanto jurídica, como se disse, como econômica, política etc.
Assim, podemos dizer que o Estado de Direito está contido no Estado Liberal,
o que permite que nos utilizemos, sem conflitos presentes, da expressão Estado
Liberal de Direito, o que não faremos, unicamente, por opção.
Estar contido significa que o ideal da lei como instrumento de emancipação
dos indivíduos, característica prevalente no conceito de Estado de Direito, é uma
parte, apenas, do que se convencionou denominar Estado Liberal.
Além dela, há outros elementos, no conceito de Estado Liberal, como o
idealismo da liberdade, que se revela no Direito, mas também na política e na
economia, ou no ideal da vida privada distante do Estado, entre outros.
1.1.2.4. A centralidade do indivíduo singular na vertente liberal dos direitos
fundamentais: a cultura jurídica do Estado Liberal
Outra característica dos direitos fundamentais que delineiam o Estado Liberal
que deve ser referida é que a proteção do cidadão em face do Estado deve ser vista a
partir deste como indivíduo singular.
E a abstenção do Estado para a garantia da liberdade negocial ampla
23
, ou da
autonomia privada
24
, como mais adiante se verá, é vincada, sempre, no cidadão, e não
23
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 92:
“O Estado Liberal, produto acabado do liberalismo e sua ideologia, teve assim uma infância coroada de
esperanças de que vinha mesmo para libertar. Os dogmas eram claros e precisos: na ordem econômica,
a livre empresa, a livre iniciativa; o laissez faire, laissez passer, a livre troca, a livre competição; na
ordem política, o homem-razão, o homem governante, o homem-cidadão, o homem-sujeito, em
substituição ao sub-homem ou sub-ser, que fora genericamente aquele súdito e servo das épocas da
monarquia e do feudalismo”.
24
Cf. PRATA, Ana. A Tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra: Almedina, 1997, p. 17.
Vale, também, a seguinte referência a Mario Júlio de Almeida, apud PRATA, Ana. A Tutela
Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra: Almedina, 1997, p. 16, para quem “uma das
27
nos direitos de grupos, ou de coletividades, mas sim na preocupação da liberdade do
indivíduo singular.
Assim, se existe um movimento de ampliação da liberdade individual, este irá,
por conseguinte, espalhar-se a ponto de conferir liberdade ao todo social, à sociedade,
sendo esse movimento unicamente direcionado do indivíduo-singular para o todo
social, para a própria sociedade.
Esta a perspectiva do que a doutrina constitucional amplamente denomina de
direitos de primeira geração, ou, para aqueles que desprezam a idéia de gerações, de
primeira dimensão
25
.
A cultura jurídica resultante dessa perspectiva individualizada dos direitos
fundamentais só pode ser também individualista e formalista, ou seja, o método
utilizado para resolver os conflitos resultantes dessas idéias só pode ser o
fortalecimento da análise dos meios atinentes à realização do direito, como, e.g., as
filigranas processuais, em vez do caráter de materialidade do direito posto em causa
26
.
características que assinalamos ao direito das obrigações foi a da autonomia privada, autonomia da
vontade ou liberdade negocial, que traduz a amplitude deixada aos particulares para disciplinarem os
seus interesses. Esta faculdade de auto-regulamentação exprime-se,aqui, no princípio da liberdade
contratual ou da liberdade de contratar (...) A regra consiste, pois, em os particulares, na área dos
contratos, poderem agir por sua autónoma vontade. Os limites que a lei imponha constituem a
excepção”.
25
Neste trabalho não nos utilizaremos das duas definições. Trata-se, a nosso ver, de aproximações
demasiado didáticas, mas pouco esclarecedoras na órbita da realidade, vez que dão a idéia de uma
ruptura com a geração ou dimensão anterior, sendo que os direitos fundamentais são acumulativos e
sua concretização é que impõe uma acomodação, ainda que conflitiva e pouco racional, na maior parte
das vezes. Também a mudança de perfil do Estado ou a tendência de expansão dos direitos
fundamentais se opõem a simplificações como as teorias das gerações e dimensões.
26
Ainda que não a tratar especificamente do Estado Liberal, mas sim dos problemas do direito e do
Poder Judiciário de hoje, vale a citação de LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito Subjetivo e Direitos
Sociais: O Dilema do Judiciário no Estado Social de Direito. In: FARIA, José Eduardo. Direitos
Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 82-83: “(...) a cultura jurídica é
individualista. Trata-se de um individualismo de base e de método, imaginando-se que a parte precede
ao todo: o direito do indivíduo está acima do direito da comunidade, mesmo porque a comunidade
propriamente dita deixou de existir, sendo substituída pelo mercado. Entre os direitos individuais, dada
e existência do mercado, o mais típico é a propriedade. Assim o individualismo e a propriedade são o
pilar de sustentação da cultura jurídica.
(...)
Mas, além de individualista, a cultura jurídica é formalista. Sobretudo a cultura jurídica transmitida aos
estudantes de direito. Observemos o treinamento típico de um estudante. Na faculdade aprende
institutos legais, no estágio aprende a seguir o trânsito de processos pelas repartições cartoriais. Como
o grosso do processo dá-se justamente no cartório, pouco aprende do debate, da oralidade, do princípio
da concentração dos atos processuais, da investigação dos fatos e da apreciação de provas. Assim
treinado, sai da faculdade para advogar ou entrar na Magistratura ou no Ministério Público. Ingressado,
sendo que não dispôs de outro treinamento e vendo-se premido pelo volume de papéis à sua frente e
28
1.1.2.5. Poder Judiciário e Estado Liberal
Como se disse mais acima, para realizar as tarefas que foram incumbidas ao
Poder Judiciário, com o receio de que passasse a decidir atento à relação próxima que
nutria com o detentor do poder preexistente, centralizado na mão do rei que o
nomeava, impôs-se fossem esses agentes públicos vistos com olhos de desconfiança
pelos que obtiveram o prêmio da queda do Antigo Regime
27
.
Daí a expressão “juiz boca da lei”, ou seja, aquele a quem cabe retirar sentido
de um texto perfeito produzido pelo Poder Legislativo e não, como participante ativo
do processo de interpretação, atribuindo sentido ao texto ou participando da criação
da lei (norma individual), conforme, por exemplo, a posição ocupada pela criação
judicial na ordem hierarquizada do sistema jurídico proposta por Hans Kelsen
28
.
Dado a lei ser fruto daquela racionalidade jurídica liberal, fincada na
construção de códigos que apresentem clareza, coerência, completude, não-
redundância, simplicidade e fácil manejo
29
-
30
, verificou-se por esse meio a
possibilidade de conter qualquer ímpeto contrário aos desejos do ente detentor de
maior parcela do poder, o Poder Legislativo
31
-
32
.
desejando se livrar o quanto antes deles e, pelo sistema de promoções, daquela vara em que ninguém
mais deseja ficar e lhe coube como última opção, passa a despachar furiosamente resolvendo tudo o
que pode com as tecnicalidades do processo”.
27
FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di Storia delle costituzione moderne – le libertà fondamentali.
Torino: G. Giappichelli editore, 1994, p. 71.
28
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 279.
29
OST, François. Júpiter, Hércules e Hermes: três modelos de juiz. Revista DOXA, n. 14 (1993), p.
174. Disponível na internet:
http://cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/doxa/52586177762636009641157/cuaderno14/doxa14_
11.pdf.
30
QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial – sobre a epistemologia da
construção constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 128: “Esta filosofia das ‘leis
uniformes, claras, simples, abstractas e precisas’ alcança seu zênite com o movimento codificador. O
código representa a expressão definida e acabada ‘do racionalismo jurídico europeu na sua tríplice
dimensão – utópico, construtivo da realidade, político, edificador do Estado moderno e unificador da
nação, burguês, profano, afirmador da vida livre e igual’. Constitui só por si um monumento jurídico
‘more geometrico demonstrato, que dá vida um sistema ideal desenhado ao longo dos séculos XVII e
XVIII”.
31
A presente afirmação se situa sob o aspecto ideal da observação. Claro que conceitos como segurança
jurídica, coisa julgada, ato jurídico perfeito etc. demandaram fossem construídos (e não previamente
conhecidos) seus conteúdos. O que se entende necessário frisar é que a racionalidade do direito liberal
pretendia diminuir a parcela de discricionariedade do juiz em detrimento, e.g., da busca da “vontade do
legislador”.
32
Vale dizer que o momento histórico do Estado Liberal permitiu a difusão de tais dogmas, vez que,
dada a reduzida complexidade social, em regra, não conhecedora de níveis de alta conflituosidade, este
29
Assim, não há como se dizer que essa tentativa de contenção da ambição do
Poder Judiciário se resumiria em considerar a atividade do juiz como automática, ou
de mera subsunção do fato à lei
33
.
No que toca aos direitos fundamentais que caracterizam esse período, e a
menor complexidade que envolveria decisões sobre esses direitos fundamentais de
característica liberal dos cidadãos em face do Estado, bem como seu caráter absoluto
e irrestringível, o instrumental jurídico oferecido a esses juízes estaria fincado em dois
corolários: a pirâmide e a lei (códigos)
34
.
A pirâmide resolveria qualquer problema de contradição entre leis de diverso
grau com a utilização do critério hierárquico, vez que para que se fale em validade de
norma de grau inferior exige-se relação lógica com a norma de mais alta hierarquia,
ou seja, que tenha retirado fundamento de validade de norma hierarquicamente
superior
35
.
A partir daí, respeitadas a hierarquia das normas e as regras do procedimento
legislativo, acoplado às técnicas de interpretação fincadas na especialidade, na
historicidade (vontade do legislador) e na temporalidade
36
, estariam dados todos os
instrumentos necessários para a concretização do princípio do non liquet.
O código, assim, seria a mais respeitável obra daquele legislador onipotente,
de quem nunca se esperariam palavras vagas, ou imprecisas, no corpo da lei que
emanara de sua atribuições, resultando àquele juiz somente fazer valer aquela obra
perfeita
37
.
modo de pensar o direito conseguiu se manter intacto por longo tempo. Inclusive, entendemos que este
período se esgota na queda do nazi-fascismo, que desta racionalidade procedimental se utilizou, para
que, mais à frente, com a explosão da conflituosidade e da visão do Estado como provedor, essas
demandas do cidadão passassem a pressionar, mais e mais, o poder público a realizar materialmente os
direitos fundamentais titularizados por coletividades (para alguns, de segunda dimensão).
33
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, Sistema jurídico e Decisão judicial. São Paulo: Max
Limonad, 2002, pp. 50.
34
OST, François. Júpiter, Hércules e Hermes: três modelos de juiz. Revista DOXA, n. 14 (1993), p.
172-173. Disponível na internet:
http://cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/doxa/52586177762636009641157/cuaderno14/doxa14_
11.pdf.
35
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 219.
36
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 230.
37
FIORAVANTI, Maurizio. Constitución – de la Antiguedad a Nuestros Dias. Madrid: Trotta, 2001, p.
116: “Lo mismo (supremacia do legislador) debe decirse de los jueces y de los tribunales, los
cuales,por norma constitucional (Titulo III, capítulo V, artículo 3) (da Constituição Francesa de 1791),
30
Outro corolário caracterizaria essa relação entre cidadão e Estado: a aceitação
dos procedimentos e a imprevisibilidade de seu resultado
38
.
Ainda que desgostoso com o seu resultado, o cidadão que acessou a máquina
do judiciário se veria pressionado a respeitar tal decisão, mesmo porque estaria
pressionado pelos demais cidadãos. Serviria esse procedimento como método de
absorção das desilusões daqueles derrotados
39
.
É, paradoxalmente, esse mesmo procedimento que legitimaria
40
essa mesma
decisão, ajudado pela áurea de imparcialidade que reveste esse meio, que é o processo
judicial, de igualar as partes em litígio quanto ao rito de suas manifestações, à
publicidade de seus atos etc.
Essa decisão oficial retira a questão material do que se entende por lícito, para
que essa licitude resida em aceitar um procedimento que desembocará em decisão
imprevisível.
Assim, o consenso estaria na aceitação ampla do procedimento que
desembocou em decisão não previamente controlada por aquele que se submete ao
procedimento
41
-
42
.
‘no pueden injerirse en el ejercício del poder legislativo, o suspender la ejecución de las leyes’. Por lo
demás, la Constitución ponía en la cúspede del orden judicial al Tribunal de Casación, que en palabras
de Maximilien Robespierre (1758-1794), que enseguida aparecerá a la cabeza del movimento jacobino,
está concebido como ‘complemento de la Asamblea Legislativo’, estabelecida para la defensa de la
integridad de la ley, más que de los derechos de los indivíduos, y así verdadero y auténtico ‘protetor de
la ley, y órganos de vigilancia y control de los jueces’, pendiente de evitar que estos últimos, con el
instrumento de la interpretación, pueden ofuscar y traicionar la soberana voluntad del legislador”.
38
LUHMANN, Niklas. Procedimenti giuridici e legittimazione sociale. Milão: Giuffrè, 1995, p. 112.
39
LUHMANN, Niklas. Procedimenti giuridici e legittimazione sociale. Milão: Giuffrè, 1995, p. 116.
40
LUHMANN, Niklas. Procedimenti giuridici e legittimazione sociale. Milão: Giuffrè, 1995, p. 20:
trata do conceito de legitimidade como “disponibiltà generalizzata ad accetare entro deteminati limiti di
toleranza decisioni ancora indeterminate nel contenuto”.
41
LUHMANN, Niklas. Procedimenti giuridici e legittimazione sociale. Milão: Giuffrè, 1995, p. 26.
42
LUHMANN, Niklas. Procedimenti giuridici e legittimazione sociale. Milão: Giuffrè, 1995, p. 4:
neste ponto, ainda que refutado por Luhmann, que cria uma diferenciação entre o direito do
procedimento, estudado por Kelsen, e o próprio procedimento, do qual se ocupou, os dois autores
convergem sobre a super-estimação dos meios (procedimento) e a subestimação dos fins do direito
(conteúdo).
31
1.1.2.6. Sobre a aplicação da lei: o recurso único ao método subsuntivo
Na esteira da máxima da segurança jurídica liberal e da veiculação do direito a
partir da lei, lei esta produzida pelo parlamento, o método de aplicação desta exigiria,
também, os mesmos contornos de exatidão e objetividade.
Ainda, sendo levados ao Poder Judiciário conflitos unicamente intersubjetivos,
e convivendo esse Poder Judiciário com os resquícios da desconfiança de uma
estrutura que por muito se ligou ao Regime Antigo, a contenção da atividade do juiz
era de se levar em conta para que as decisões produzidas pelo legislador não
recebessem tratamento deformativo a ponto de descaracterizá-las.
Para que não se desse essa descaracterização, necessário que se construísse,
como se disse antes, um direito ideal, coerente e claro, e que ao intérprete pouco ou
nada restasse de liberdade para aplicá-lo.
Vê-se que a partir de um direito “claro e coerente” o próprio ato de interpretar
se faria quase que mecanicamente. Isso porque a lei ofereceria os elementos que,
unidos aos fatos, estariam aptos a produzir a decisão certa e única.
Assim, o método subsuntivo resolveria todo e qualquer problema levado ao
intérprete/aplicador, vez que, a partir de um raciocínio silogístico, apareceria quase
que mecanicamente a decisão a ser tomada
43
.
Pelo momento, vale como descrição de um direito ideal. Sobre o método
subsuntivo voltaremos mais adiante.
43
ASCENÇÃO, José de Oliveira. O Direito – Introdução e Teoria Geral. Rio de Janeiro: Renovar:
2001, p. 644: “A posição típica desta corrente exprime-se através do chamado silogismo judiciário.
Tem-se em vista as formas judiciais de aplicação da lei e raciocina-se como se a lei representasse a
premissa maior dum silogismo. O juiz conheceria a lei, as partes dão os fatos, o juiz subsume os fatos à
lei e tira a conclusão. Em certas épocas, e nomeadamente em conseqüência de uma concepção
mecânica da atividade judiciária, chegou-se a uma visão particularmente rígida deste processo. Para
empregar uma comparação moderna e que é adequada apesar de risível, pode dizer-se que se pensou
que a atuação do juiz seria análoga à das máquinas automáticas. Nestas, metendo-se a moeda, sai
mecanicamente o produto desejado; ali, provados os fatos, produz-se inelutavelmente certa decisão”.
32
Eleitas a premissa maior (lei) e menor (fatos), quase que imediatamente se
resolveria a questão jurídica a partir da conclusão (p. ex., sentença judicial),
independentemente de qualquer valoração ou decisão que se construiria, vez que se
trata de verificar a partir da lei, ou seja, retirando todo e qualquer sentido de seu texto,
independentemente de ato de vontade do intérprete, qual a decisão a ser tomada.
1.1.2.7. Os conflitos cidadão-cidadão no Estado Liberal: a centralidade do Código
Civil
De tudo o que se disse até o momento, principalmente da prevalência do
legislador na construção da normatividade do sistema jurídico, não seria o texto
constitucional o texto jurídico central na aplicação do direito, tanto mais nas relações
jurídicas travadas entre os particulares.
Isso porque é o legislador o veiculador da vontade dos cidadãos, fazendo-o a
partir de leis, e esses cidadãos, na maior parte das vezes, são pequenos grupos dentro
do todo sociedade, como os proprietários, do sexo masculino, com certa idade, etc.
Sendo assim, o texto jurídico que mais se adequaria aos desígnios desses
“cidadãos”, que detêm o monopólio dos direitos políticos, só poderia ser aquele
formulado por seus representantes.
Daí a centralidade do Código Civil, e das leis civis, e a pouca normatividade
das constituições, e, por decorrência, dos direitos fundamentais inscritos em seus
textos
44
.
44
LASKI, Harold J. O Liberalismo Europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973, p. 164: “Seus autores (do
Código Civil) tinham a consciência do que estavam fazendo. ‘Seu principal e grandiosos objetivo’,
disse Louvet, ‘é regular os princípios e o direito de propriedade. ‘O respeito pela propriedade’, disse
Jaubert no legislativo napoleônico, ‘patenteia-se em cada página do Código’. Escreveu o juiz Lahary:
‘Sua mais preciosa máxima é a que consagra o direito de propriedade; tudo o mais é conseqüência
lógica deste fato’. Confere, dentro da lei, um direito absoluto ao gozo e disposição da propriedade. Não
há qualquer obrigação de dispor dela de um modo útil. Um proprietário está até salvaguardado contra a
obrigação de recompensar seus inquilinos ou arrendatários por melhorias que estes realizarem. Ao
ocupar-se dos menores e do matrimônio, a preocupação foi também a proteção da propriedade. No
tocante à instituição do contrato, pouco foi regulamentado que envolva o uso da propriedade como
33
O que importa, para os ideólogos do Estado Liberal, no campo da
normatividade jurídica, é permitir que seja o legislador o grande concretizador dos
textos constitucionais e dos direitos fundamentais.
Também a necessidade de limitar a atuação do Poder Judiciário, acoplada a
construções dogmáticas dúbias, como a atividade interpretativa sem caráter criativo,
ou seja, o desprezo pela idéia de que essa interpretação estaria inspirada em ato de
vontade do intérprete, bem assim, a certeza da coerência e completude do
ordenamento jurídico, fazem com que se deixe, ou se queira deixar, ao intérprete
pequena ou nenhuma margem de construção de conteúdos jurídicos.
Não é por coincidência que o Código Napoleônico foi o grande inspirador do
direito ocidental até meados do século XIX
45
Nesse diapasão, as relações intersubjetivas, ou as relações jurídicas travadas
entre cidadãos, só poderia ser capitaneada pelo próprio Código Civil, restando pouca
ou nenhuma margem de aplicação para as constituições ou para os direitos
fundamentais, quando não perfilados pelo próprio legislador ordinário
46
.
capital, em um contrato de prestação de serviços escassamente recebe uma proteção digna de tal nome.
Se a usura em empréstimos é proibida, nada se diz daquela forma de usura que extrai rendas excessivas
ou paga salários abusivos. Na formação da juris, a participação está limitada a pessoas com
propriedade. Nos aspectos processuais mais técnicos, sua substância foi longamente explicada por
Faure com sendo, numa palavra, ‘a garantia da propriedade’.”
45
No Brasil, somente em 2002 pudemos abandonar o Código Civil de caráter individualista que
criamos em 1916, para este “Novo Código Civil”, inspirado na idéia da solidariedade. O que ainda nos
causa arrepios é que não sabemos se os aplicadores conseguirão se desvencilhar de algumas
construções sedimentadas anteriormente, ou seja, se deixarão de aplicar o Código Antigo a partir do
novo, se, para um novo objeto, que depende de um novo instrumental de aplicação, deixarão de se
utilizar do instrumental antigo.
46
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentias na Constituição Portuguesa de 1976.
2ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 239 (nota de rodapé n. 4): “Na realidade, a consagração
constitucional dos direitos e liberdades dos cidadãos não representa apenas a defesa do indivíduo
isolado perante o Estado. Essa consagração, no fundo, significa também a defesa da Sociedade, no seu
conjunto, perante o Estado, a defesa, afinal, de um determinado modelo de sociedade e uma
determinada ideia de Estado. A sociedade burguesa vivia da liberdade econômica, na crença da ‘mão
invisível’ do mercado, que automaticamente conduziria ao melhor dos mundos possíveis. Para isso,
tinha que evitar a interferência do Estado (do Executivo) na vida económica e social, reduzir à
abstenção essa mão visível, que apenas devia velar pela segurança pública, garantindo a autonomia da
esfera privada e a liberdade e a propriedade dos indivíduos (os seus direitos fundamentais)”.
34
1.1.2.8. O Início do Fim: o desejo de participação do cidadão trabalhador nos
desígnios políticos do Estado
47
Como se verificou anteriormente, estaria condicionado o sujeito ativo de
direitos políticos, ou o sujeito do direito de sufrágio, a ser proprietário ou arrendatário,
na cidade, ou outras profissões campesinas quando se tratasse do indivíduo residente
no campo.
Disso decorre que o trabalhador assalariado, por tudo, não era sujeito de
direitos políticos, somente se fazendo objeto das decisões políticas, não participando,
diretamente ou por meio de seus representantes, das decisões políticas do Estado
48
.
Assim, não detendo representantes no Parlamento, não veriam os
trabalhadores realizadas suas aspirações de ordem trabalhistas, e, ainda, sendo
titulares de direitos civis, mas não de direitos políticos, seria a figura do contrato para
com o seu patrão o meio de regular suas relações com ele.
Disso decorrem as atrocidades conhecidas, como o emprego de crianças e
mulheres com salários muito menores que os dos homens, as horas exorbitantes de
47
Aqui, faremos um salto territorial em razão de a Revolução Industrial, que teve seu primeiro
momento na Inglaterra, ter, no decorrer do século XIX, espraiado-se por todo o território europeu e
americano, cf. TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações Sobre a História Social dos Direitos
Humanos. Direitos Humanos: Construção da Liberdade e da Igualdade. São Paulo: Centro de Estudos
da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2000, p. 86 (n. 98): “Núcleos ou zonas industriais
começaram a surgir em vários pontos da Europa continental (com mais atraso, alguns até na América
do Norte), repetindo, com intensidade menor, o processo ocorrido na Inglaterra. Na última terça parte
do século dezenove, foram descobertas novas fontes de energia que podiam ser aplicadas à indústria e
aos transportes (petróleo e eletricidade), desenvolveram-se as indústrias química e de equipamentos de
aço (no lugar do ferro) e generalizou-se o emprego da ciência na produção de mercadorias. Então, a
industrialização intensificou-se aceleradamente na França, Bélgica, Holanda e Estados Unidos e, logo a
seguir, também na Alemanha, Itália e Japão, configurando o que depois se convencionou chamar de
‘segunda Revolução Industrial’”.
48
TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações Sobre a História Social dos Direitos Humanos.
Direitos Humanos: Construção da Liberdade e da Igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2000, p. 113: “O voto censitário, mais que uma
necessidade de sobrevivência política, era sintoma do atraso elitista da burguesia oligárquica: afinal de
contas, retendo para si o poder econômico e mantendo a hegemonia ideológica da sociedade, ela
dificilmente teria motivos para temer os trabalhadores, mesmo quando, sob pressão, viesse a estender-
lhes o direito de voto – como a história viria a demonstrar”.
35
trabalho que se exigiam do trabalhador
49
etc. ou seja, as indignações sociais que
seriam o ingrediente explosivo desse novo momento histórico.
Com isso, passam os trabalhadores a perceber o único meio de negociarem
suas pretensões sociais e políticas. Aí se inicia a movimentação associativa que
permeou a história dos direito mais fortemente na segunda metade do século XIX
50
.
Aqui, há que se fazer uma breve reflexão para que a seqüência lógica dos
argumentos não se oponha à ocorrência de fatos no âmbito histórico. Ao fixar o
século XIX como o momento em que se acirram as lutas pelos direitos ligados aos
trabalhadores, não desconhecemos que se trata de um movimento com base muito
anterior a isso
51
.
É decorrência da Revolução Industrial, contemporânea da Revolução
Francesa
52
, o engrandecimento da insatisfação do trabalhador pelas condições de
49
LASKI, Harold J. O Liberalismo Europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973, p. 165: “‘Para falar a
verdade’, escreveu o historiador inglês Glasson, ‘o trabalhador foi inteiramente esquecido do Código.
De fato, isto é fazer-lhe uma grande injustiça. O trabalhador não foi esquecido; em substância e em
procedimento, seus direitos foram deliberadamente subordinados aos de seu patrão’”.
50
TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações Sobre a História Social dos Direitos Humanos.
Direitos Humanos: Construção da Liberdade e da Igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2000, p. 89: “(...) os efeitos combinados da ‘Restauração’ e
da ‘Revolução Industrial’ instauraram na Europa, ao longo da primeira metade do século XIX, o que
pode ser chamado de uma primeira grande crise dos Direitos Humanos, desde que haviam sido
formulados pelos filósofos racionalistas do século XVIII. Ela se configurava de duas maneiras: como
estagnação e como agravamento. Era como estagnação no plano institucional, devido à resistência,
tanto reação monárquica como dos liberais, em estender os direitos políticos aos trabalhadores. E era
como agravamento no plano econômico-social pois, além da convergência dessas duas forças no
propósito de manter a igualdade em estado de raquitismo jurídico-formal (recusa em ampliá-la ao
campo social), a Revolução Industrial havia também piorado dramaticamente as condições de vida dos
trabalhadores”.
51
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva,
1999, p. 51: “No tocante ao princípio da igualdade, a mesma evolução dicotômica ocorreu. As
revoluções do final do século XVIII assentaram, com a abolição dos privilégios estamentais, a
igualdade individual perante a lei, Abriu-se, com isso, uma nova divisão da sociedade, fundada não já
em estamentos, mas sim em classes: os proprietários e os trabalhadores. Em 1847, aliás, Toqueville já
antevia: ‘dentro em pouco, a luta política irá estabelecer-se entre homens de posses e homens
desprovidos de posses; o grande campo de batalha será a propriedade’.
Foi justamente para corrigir e superar o individualismo próprio da civilização burguesa, fundado nas
liberdades privadas e na isonomia, que o movimento socialista fez atuar, a partir do século XIX, o
princípio da solidariedade como dever jurídico, ainda que inexistente no meio social a fraternidade
enquanto virtude cívica”.
52
HOBSBAWN, Eric J. A Era das Revoluções – 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 53: “Na
Grã-Bretanha, e portanto no mundo, este período de que trata este livro, pois ele começou com a
‘partida’ na década de 1780, pode-se dizer com certa acuidade que terminou com a construção das
ferrovias e da indústria pesada na Grã-Bretanha na década de 1840. Mas a revolução mesma
(industrial), o ‘ponto de partida’, pode provavelmente ser situada, com a precisão possível em tais
36
trabalho indignas, é dizer, nasce o intento associativista dos trabalhadores ainda no
século XVIII, mas é no século XIX que passam a oferecer, com vigor, oposição aos
interesses dos patrões.
Trata-se de um movimento de amadurecimento constante, começado ainda no
século XVIII e fortalecido no XIX.
A consciência da necessária coletivização desses trabalhadores explorados é
fortalecida, mais fortemente, no século XIX, em que os trabalhadores se colocam em
posição de uma classe, ou de agrupamento mais ou menos homogêneo, e é a partir daí
que passam a oferecer verdadeira afronta às classe dominantes
53
.
Daí a necessidade de reconfiguração do perfil de Estado e dos direitos
fundamentais que lhe peculiarizam: de Liberal para Social, quanto ao Estado, e de
fincados unicamente no indivíduo para também tutelar coletividades, por vezes
condicionando os primeiros, quanto aos direitos fundamentais.
1.2. Direitos fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito
1.2.1. A passagem do Estado Liberal para o Estado Social: a necessidade de
inserção de novos atores sociais
É importante notar que não existe uma ruptura de passagem do Estado Liberal
para o Estado Social. Trata-se de uma acomodação dos interesses conflitantes, dos
antigos interesses do cidadão para com o Estado, em regra de abstenção deste último,
assuntos, em certa altura dos 20 anos que vão de 1780 a 1800: contemporânea da Revolução Francesa,
embora um pouco anterior a ela”.
53
HOBSBAWN, Eric J. A Era das Revoluções – 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 292:
“Nesse sentido, a consciências das classes trabalhadoras ainda não existia em 1789, ou mesmo durante
a Revolução Francesa. Fora da Grã-Bretanha e da França, ela era quase que totalmente inexistente
mesmo em 1848. Mas nos países que personificaram a revolução dupla, ela certamente passou a existir
entre 1815 e 1848, mais especificamente por volta de 1830. (...) Na Grã-Bretanha, as tentativas para
unir todos os operários em ‘sindicatos gerais’, isto é, em entidades que superassem o isolamento local e
regional dos grupos particulares de trabalhadores, levando-lhes a uma solidariedade nacional e até
universal da classe trabalhadora, começaram em 1818 e foram perseguidas com intensidade febril entre
1829 e 1834”.
37
com as novas demandas do cidadão para com o Estado, também, agora, de prestação,
como se verá.
Isso porque o Estado Social não se demonstra apto a anular os ganhos
históricos do Estado Liberal que, em sede de direitos fundamentais, desempenharam e
continuam a desempenhar função central na contenção de excessos por parte do
Estado.
Esse consenso de que os direitos fundamentais estariam aptos a oferecer
proteção contra o Poder, primeiramente estatal, é que vai permear a construção da
idéia de que os direitos fundamentais também seriam úteis para conter os excessos de
poder de uns particulares em face de outros particulares.
O que efetivamente ocorre com a passagem referida é que há a necessidade de
que aqueles direitos fundamentais da perspectiva liberal fundados, inicialmente, em
um direito natural, todavia positivados com o decorrer dos anos e da evolução do
positivismo jurídico, passem e ser condicionados por outros direitos fundamentais, de
perfil mais recente, como se verá mais adiante.
Esses direitos fundamentais mais “recentes” são exigências de grupos que
formavam grande parte da população, mas que estavam alijados das decisões sobre
suas próprias vidas
54
-
55
.
54
TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações Sobre a História Social dos Direitos Humanos.
Direitos Humanos: Construção da Liberdade e da Igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2000, p. 126: “(...) o discurso dos Direitos Humanos,
petrificados desde 1789, esvaía continuamente seu poder de sedução sobre os pobres. Para a imensa
maioria dos habitantes do planeta, ele não passava de eco longínquo vindo de alguns países da Europa
Ocidental ou da América – e, mesmo nessas regiões, representava, de fato, pouco mais que uma ficção
jurídica para a maioria dos humanos. É verdade que a progressiva universalização da igualdade civil
não só coloca um contingente enorme de força de trabalho à disposição da indústria, como também
removera as antigas restrições jurídicas às relações contratuais – a burguesia tirava bom partido disso.
Mas, para os pobres, a igualdade civil fora de muito pouco proveito prático – a não ser de colocá-los
‘em pé de igualdade’ para travar relações contratuais de trabalho com os patrões”.
55
LASKI, Harold J. O Liberalismo Europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973, p. 187: “Esse Estado
(Liberal), de fato, por razões dos interesses que contribuíram para sua formação, tinha propósitos mais
limitados do que o bem-estar geral da comunidade. Sua meta fundamental era servir aos possuidores de
bens de bens e propriedades. Ampliou, sem dúvida, a idéia de propriedade de maneira a conferir
direitos legítimos a todos os que exerciam uma procura efetiva. Destruiu as reivindicações de
nascimento de direitos especiais. Impediu que os donos da terra reclamassem qualquer privilégio
especial do Estado. Mas os seus horizontes fundamentais não foram além dessas realizações. Isto é
mostrado pela sua atitude para com os pobres. É mostrado pela sua atitude ante o desenvolvimento do
sindicalismo. É mostrado pela sua prolongada luta que se fazia necessária – uma luta ainda muito longe
de estar concluída – para estabelecer decentes padrões de educação, saúde, habitação e proteção no
38
Entre os grupos insatisfeitos com a relação entre Estado e sociedade liberais,
os que mais se revelam atuante são as associações de trabalhadores
56
, desprestigiadas
com os rumos dos direitos fundamentais sob a órbita de suas vidas e, principalmente,
com a ausência de leis protetivas de seus interesses, o que acabava por reservar ao
contrato particular o papel de único intermediário do sistema jurídico nas relações
jurídicas que travava com seus empregadores.
O que se renova, a partir dessas lutas, com a evolução para direitos
fundamentais “coletivizados” é que, como se verá, o indivíduo singular, para quem a
função de proteção dos direitos fundamentais contra os excessos do Estado exercia
função principal, ainda mais sob a ótica do desenvolvimento de suas atividades
econômicas, passa a conviver, juridicamente, com a existência de outros direitos
fundamentais a proteger grupos, coletividades, interessadas em dotes materiais
provindos do Estado.
Assim, podemos afirmar que são os movimentos dos trabalhadores havidos,
principalmente, no decorrer do século XIX, mais ainda na sua segunda metade, que
prevêem e influenciam a formação de uma nova disposição de forças no terreno
político que vai desembocar, primeiro, em leis protetivas dos trabalhadores
57
e, após,
com o advento das constituições mexicana, de 1917, e alemã, de 1919, serão previstos
como direitos sociais no ápice do próprio ordenamento jurídico, o que não quer dizer
que obtiveram pronta força normativa.
Disso resulta, como se verá mais adiante, que. enquanto haveria uma
homogeneidade de interesses e sujeitos titulares de direitos fundamentais no Estado
Liberal, ou seja, seriam indivíduos geralmente do mesmo grupo dominante, no Estado
trabalho. Pois, dada a natureza do Estado Liberal, todas as questões tinham de ser referidas, em última
instância, ao motivo essencial sobre o qual o Estado Liberal assentava: o motivo do lucro”.
56
TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações Sobre a História Social dos Direitos Humanos.
Direitos Humanos: Construção da Liberdade e da Igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2000, p. 134: “De sua parte, o movimento operário se
defendia como podia. Nos países de maior concentração industrial começavam a brotar partidos
socialistas e organizavam-se sindicatos e outros instrumentos de auto-defesa operária, abrindo
lentamente fissuras na muralha da resistência patronal-governamental. Na Europa – começando pela
Inglaterra, em seguida na França, depois na Bélgica, Alemanha, Itália e outros países – os
trabalhadores, como visto, já vinham, há décadas num movimento de acúmulo de forças. Em 1864, foi
fundada a Associação Internacional dos Trabalhadores, mais tarde conhecida como Primeira
Internacional (para discerni-la de outras Internacionais criadas depois)”.
57
Tanto na França quanto na Alemanha de Bismarck, cf. LASKI, Harold J. O Liberalismo Europeu.
São Paulo: Mestre Jou, 1973, p. 174 e 182.
39
Social esses direitos fundamentais passam a proteger, também, indivíduos de grupos
distintos que não dispuseram, historicamente, como se viu anteriormente, do controle
político dos demais, como os trabalhadores, primeiro, depois mulheres, crianças,
idosos etc.
A mera previsão desses direitos fundamentais nos textos constitucionais não
impede que ainda dependam, para que adquiram relevante normatividade, da atuação
do legislador para conformá-los, sendo os parlamentos, ainda, o espaço central de sua
configuração, dada a representatividade democrática de seus membros.
Todavia, isso não impede que tracemos alguns problemas da nova
configuração desses parlamentos, como, e.g., a multiplicação de grupos representados
no seu seio.
Essa multiplicidade de grupos no interior dos parlamentos provoca,
obviamente, uma maior dificuldade de obter consensos e é essa conflituosidade de
interesses e direitos que nos faz afirmar que tanto o nascimento quanto a convivência
entre esses interesses e direitos fundamentais se dão a partir de colisões, tema que será
enfrentado mais adiante.
A seguir, apontaremos algumas alterações no sistema político decorrentes da
transição liberal para a perspectiva social do Estado.
1.2.2. A política do Estado Social, o problema da inclusão generalizada e a
representação partidária em crise: re-descrevendo os papéis do Estado e da
sociedade liberais
Os temas a serem tratados pela política podem ser dos mais variados, pois as
limitações temáticas são claramente dispostas nas constituições dos Estados nacionais,
as quais, com a perspectiva social, ampliaram sobremaneira a participação do Estado
não só como protetor dos direitos fundamentais como, também, fomentador de suas
previsões, aumentando, assim, a participação deste na vida dos particulares.
40
A política, destarte, possui liberdade ampla de temas a tratar e decidir e
passou, cada vez mais, a cuidar das áreas mais diferentes da “vida social”
58
, o que, de
per se, fez com que se aumentasse a complexidade no interior do sistema político.
Esse aumento de áreas afetas à política no Estado Social, dotado da obrigação
de oferecer prestação positivas (direitos à prestação do Estado em prol dos cidadãos),
como, e.g., educação e saúde, reflete um sintoma claro: o desejo de maior inclusão de
interlocução política em seu sistema, o que fez com que, em seu interior, fosse
aumentada drasticamente a complexidade, ou seja, o número de decisões possíveis de
serem alcançadas.
Essa ampla inclusão, ao mesmo tempo em que objetiva a inserção de grandes
grupos da população, carentes da realização dos direitos fundamentais prestacionais,
na arena política
59
, exige que esses grupos se organizem a ponto de fortalecerem-se
como grupos verdadeiramente coesos
60
.
Sendo mantido, inicialmente, o papel da representação dos cidadãos, pelos
partidos políticos nos parlamentos, essas casas legislativas têm dificultado o modo de
obtenção de consensos para tomada de decisões, vez que os grupos atuantes são cada
vez mais heterogêneos e dependem, assim, da aceitação e negociação de seus
interesses com outros grupos por vezes desafinados com seus programas.
Disso deriva um sério problema: e os grupos que não querem ou não
conseguem se organizar em partidos políticos?
A resposta é simples: estão fora deste jogo e dependem, exclusivamente, da
boa vontade dos grupos organizados
61
.
Dado que a política, mais que o Direito, está disposta ao aprendizado, ou seja,
consegue captar com mais facilidade os desejos havidos no sistema social e, por isso,
58
LUHMANN, Niklas. Teoria Política en el Estado de Bienestar. Madrid: Alianza Editorial, 1997, p.
49.
59
A Constituição Brasileira, no artigo 1º, IV, reflete essa multiplicação de forças políticas ao garantir o
pluralismo político, que é gênero da espécie pluralismo partidário, mas com esta não se confunde. Vide
MAUÉS, Antônio Gomes Moreira. O Pluralismo Político na Constituição de 1988. Porto Alegre:
Síntese, 1999.
60
LUHMANN, Niklas. Teoria Política en el Estado de Bienestar. Madrid: Alianza Editorial, 1997, p.
47-48.
61
Neste sentido, inclusão e exclusão, paradoxalmente, complementam-se.
41
tem uma liberdade imensa de tomar decisões das mais diversas, as quais vinculam a
coletividade, foi implementando um ritmo de absorção desses desejos do sistema
social que fez com que fosse posta à prova a estrutura do sistema político no Estado
Social.
A seletividade da Política em muito difere da seletividade do Direito, vez que,
ainda que se possibilite a ela resistir à tomada de decisões, seus programas são
teleológicos, ou seja, tentam, sempre, prever o futuro
62
, quando, em regra, os do
Direito são voltados a estabilizar conflitos passados.
O que ocorreu e continua a ocorrer é que a política passou, ao tutelar cada vez
maior número de temas, sendo nela depositada grande parcela de confiança por parte
do cidadão, a perder credibilidade, vez que são dificultosos tanto a obtenção dos
consensos quanto o processo de tomada de decisões, este pouco alterado desde o
Estado Liberal.
Esse processo de decisão, condicionado pela Constituição, exige que as
decisões respeitem as regras formais de produção normativa, o devido processo
legislativo. Devem respeitar, outrossim, as limitações materiais previstas na
Constituição.
Como compatibilizar grande número de possibilidades de decisão, a falta de
certeza quanto à decisão tomada ser a correta para o momento e, ao mesmo tempo,
dado haver contrariado grande número de grupos organizados, a elevada frustração
gerada?
Tudo isso, num ambiente em que a pressão pela tomada de decisões é
aumentada!
Com a transformação e aumento dos atores participantes do jogo democrático,
ou seja, com a entrada dos sindicatos e da sociedade civil organizada, instaura-se um
sério conflito sobre quem terá preferência na tutela de seus interesses pelas decisões
coletivas vinculantes a serem tomadas pela Política.
62
CAMPILONGO, Celso. O direito da sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 105.
42
Cria-se uma situação no mínimo interessante: ao mesmo tempo em que passa a
participar do jogo democrático maior número de cidadãos/grupos, a pressionar o
Estado para realizar direitos fundamentais, tanto de proteção quando de prestações
materiais, essas decisões do Estado, no seio do Legislativo, passam a apresentar
maiores dificuldades para serem tomadas.
Essa dificuldade se dá em razão do grande esforço a ser empreendido para a
obtenção de consensos nos Parlamentos que, na maioria das vezes, não são
alcançados, vez que os atores políticos são, em grande parte, conglomerados de
interesses de grupos dos mais antagônicos possíveis, estando uns a tentar fazer
facilitar o processo de tomadas de decisões para que valham imediatamente, enquanto
outros estão a dificultar esse processo de alcance das decisões.
Por fim, ainda que tomadas tais decisões, há grupos que continuam a tentar
procrastinar sua implementação.
Esses mesmos Parlamentos, que comportam os segmentos políticos dos mais
variados, sofrem do risco da impopularidade de suas decisões, o que, para aqueles que
exercem mandato, condicionado ao sufrágio, é fator de grande apreensão.
Como se não bastasse, esse mesmo Parlamento, povoado pelas mais diversas
correntes de interesses, passou a ser, também, um ambiente em que os interessados na
tutela de seus pleitos buscam diretamente refúgio.
Grandes grupos financeiros, industriais, sociedade civil organizada, órgãos de
classe etc., todos buscam decisões do Parlamento em seu benefício, ou seja, leis
direcionadas com compromisso precário
63
.
Nessa perspectiva, a comunicação política foi exageradamente aumentada no
Estado Social, e restar saber se as estruturas do sistema político dão conta desse
grande aumento de complexidade.
63
OST, François. Júpiter, Hercules, Hermes: Três modelos de juiz. Revista DOXA, n. 14 (1993), p. 177.
Disponível na internet:
http://cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/doxa/52586177762636009641157/cuaderno14/doxa14_
11.pdf.
43
Parece-nos que a perda da credibilidade na política reflete em grande parte
esse aumento despropositado e sem planejamento de seu objeto.
Os Parlamentos, apesar de verem aumentado o número de temas que lhes são
levados para a tomada de decisões, especialmente no decorrer do século XX,
trabalham com um processo legislativo nascido no período de início da modernidade,
tipicamente liberal.
Assim, as leis criadas pelo Legislativo, que de início garantiam em maior parte
o desígnio liberal da segurança jurídica (conteúdo), com a construção de seus códigos,
“obras perfeitas”, passaram por aumento enorme em sua produção.
Essas leis, sem um consenso fortalecido, traduzem-se em uma linguagem não
raro obscura e demasiadamente aberta, conforme se verá, o que dificulta a ação do
sistema jurídico que as utiliza como premissa decisória.
Diante disso, como trabalhar o sistema jurídico com essas decisões precárias
do sistema político? Como garantir direitos diante dessa certeza reduzida das leis?
Como os tribunais deveriam reagir a demandas judiciais fundadas em decisões pouco
claras do sistema político?
1.2.3. Algumas considerações sobre o direito do Estado Social
Com a ampliação das atividades do Estado nessa nova feição social também
no campo da economia e da política, o direito recebe novos influxos que alteram a
concepção prevalente de instrumento de resolução de conflitos inter-individuais ou de
defesa do cidadão/grupos contra o Estado.
Aqueles conflitos entre grupos organizados em busca de regulamentação legal
para seus desígnios, que nas casas legislativas impõem a criação de textos que não
apresentam claramente seus conceitos, vez que não se alcança consenso bastante para
tanto, impõem ao Poder Judiciário maiores dificuldades quando da realização desse
direito. Por essa razão, parte dessas normas são veiculadas a partir de princípios, que
44
impõem trabalho interpretativo mais criador por parte dos operadores do direito, como
se verá mais à frente.
De outra banda, com a necessidade de implementar os programas normativos
dessas leis vagas, verifica-se, necessariamente, um aumento das funções dos juízes e,
por conseqüência, de seu poder jurisdicional.
Ao mesmo tempo em que aumentam os conflitos sociais, há grande chance de
que parcela deles chegue aos tribunais, o que termina por inserir o Poder Judiciário na
seara da concretização de direitos fundamentais, da inclusão social, tarefa exercida
pelos parlamentos.
Ora, o que deve ser entendido por separação dos poderes, hoje? Qual o perfil
do juiz que decide causas tão complicadas? Quando da jurisdicização dos conflitos
sociais, deve o Poder Judiciário se preocupar com os efeitos ou resultados de sua
decisão?
1.2.4. A separação dos poderes no Estado Social: a devida cooperação a superar a
mera divisão de funções
Ao se falar em separação dos poderes no Estado Social, dadas as demandas
pela realização dos direitos fundamentais positivados nas constituições do século XX,
há que se verificar que de cada um deles se exige, hoje, um esforço maior para esse
fim.
O conteúdo do princípio da separação dos poderes deve deixar de ficar
estritamente baseado na sua divisão, como formulado pela doutrina liberal do Estado
do século XVIII para que seja entendido no binômio cooperação e fiscalização
recíproca
64
.
64
QUEIROZ, Cristina. Os Actos Políticos no Estado de Direito – o problema do controle jurídico do
poder. Coimbra: Almedina, 1990, p. 103: “Ao tratar desta coordenação, substitui-se o conceito de
balanceamento de poderes pelo de contrapoderes que se delimitam, colaboram e se controlam
reciprocamente na arena constitucional da política. Uma coordenação que fica a dever-se, sem dúvida à
45
Assim, as funções que exercem os Poderes do Estado se aproximam quanto ao
seu conteúdo, mas não perdem essas funções suas características essenciais: o sistema
político de tomar as decisões vinculantes para a coletividade; o direito, para garantir
expectativas contra-fáticas.
Trata-se, sim, de uma evolução das atribuições tradicionais para que se
atinjam os objetivos previstos nas constituições contemporâneas, ou seja, além
daquelas funções típicas, os poderes devem ampliar suas funções atípicas em razão de
o objetivo ser a realização dos direitos fundamentais positivados nas constituições
contemporâneas
65
, cada vez mais conflitantes, e as leis produzidas pelo legislador,
cada vez menos coerentes, pelas razões que se viu acima.
1.2.5. O Juiz do Estado Social: o “juiz social”
66
Com a superação da lógica puramente procedimental para acoplar a ela a da
busca da materialidade
67
, os tribunais devem adequar seus instrumentos de decisão ao
reforço da finalidade social do processo em detrimento dos meios para seu alcance.
Com isso, o juiz passa a, mais que buscar sancionar as partes em conflito,
arbitrar esse conflito, fortalecendo os esquemas de busca de composição das partes
litigantes, ainda que uma delas seja o próprio Estado
68
.
multifuncionaldade das tarefas público-estaduais, ela própria produto deste momento inicial de
distribuição dos poderes no quadro ‘plural’ da sociedade técnica contemporânea”; Também vf.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, Sistema jurídico e Decisão judicial. São Paulo: Max
Limonad, 2002, p. 38-39.
65
PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional – um
contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 264: ”A
falência daquela tripartição, como classificação universal e intertemporalmente válida das funções
estaduais, e sobretudo, o progressivo esbatimento de fronteiras entre as diversas funções do Estado e a
fluidez e relatividade dos critérios de caracterização material e de diferenciação entre elas, tem levado a
doutrina a desinteressar-se progressivamente da elaboração de uma teoria geral das funções estaduais
como elemento essencial do princípio da separação dos poderes, para se fixar numa análise das funções
do Estado constitucionalmente adequada, no quadro de uma constituição concreta”.
66
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 540.
67
Como sendo a racionalidade do processo, vf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do
Judiciário: Um Enquadramento Teórico. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos
Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 43.
68
LOPES, José Reinaldo Lima. A função política do poder judiciário. In: FARIA, José Eduardo.
Direito e Justiça – a função social do judiciário. São Paulo: Ática, 1989, p. 140.
46
Trata-se de um verdadeiro “sujeito ativo do processo político”
69
.
Essa composição deve permear tanto o momento pré-contencioso como o
propriamente contencioso do processo, podendo ser tratado o juiz, também, como um
verdadeiro “engenheiro social”
70
.
Importa isso no aumento da importância da eficácia ante a validade do direito,
sendo a atividade do juiz de criação, e referida, com mais rigor, ao caso concreto.
71
A decisão desses conflitos jurisdicizados impõe que a interpretação se faça
baseada nos métodos da ponderação e do balanceamento
72
, o que, de per se, faz claro
que as normas jurídicas passam a receber, na maioria das vezes, as vestes de
princípios jurídicos, que impõem deveres a posteriori, ou seja, dependem de atuação
ativa do intérprete na busca de seu conteúdo, em detrimento de normas veiculadas a
partir de regras, que impõe deveres a priori
73
, tema que será tratado mais à frente.
Com isso, abre-se a possibilidade de o Judiciário, que depende de provocação,
adentrar, também, na seara da realização dos direitos fundamentais sociais,
econômicos e culturais.
Frise-se que se mantém com o Legislativo a preferência em criar políticas
públicas para a realização daqueles direitos, que devem, também a priori, ser
implementadas pelo Executivo.
Contudo, caso não se movimentem nesse sentido os demais Poderes, ao
Judiciário se afirma a prerrogativa de implementar esses direitos “sociais” por serem
parte dos rol de direitos da cidadania tutelados pelo próprio Judiciário
74
.
69
Cf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico. In:
FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros,
1998, p. 43, p. 46-47.
70
OST, François. Júpiter, Hércules e Hermes: três modelos de juiz. Revista DOXA, n. 14 (1993), p.
177. Disponível na internet:
http://cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/doxa/52586177762636009641157/cuaderno14/doxa14_
11.pdf.
71
Idem, ibidem.
72
Cf. FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 279.
73
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 98-101.
74
LOPES, José Reinaldo Lima. A função política do poder judiciário. In: FARIA, José Eduardo.
Direito e Justiça – a função social do judiciário. São Paulo: Ática, 1989, p. 138.
47
Sendo que a textura aberta das leis se faz característica da produção normativa
do Estado Social e dada a complexidade das decisões do Legislador e da rápida
alteração das condições de vida do momento da decisão para um futuro próximo, esse
legislador está impossibilitado de fixar todas nuances fáticas da aplicação da lei.
Assim, é ao intérprete e, em último caso, ao juiz a quem cabe preencher esses
conteúdos normativos abertos
75
.
1.2.6. Estado Social e Sociedade: uma aproximação contínua a atenuar seus
contornos
Como dissemos anteriormente, a divisão clara entre Estado e sociedade na
perspectiva liberal se fez necessária para afirmar a ideologia daquele momento
histórico e garantir que os vencedores (burgueses) não vissem seus ganhos perdidos
de um momento para outro.
É dizer, direitos fundamentais de defesa contra o Estado, reduzida extensão de
direitos políticos aos grupos de indivíduos havidos na sociedade que não os
proprietários, supremacia da lei e o instrumento do contrato como a proteger a
autonomia privada da força do Estado foram a fórmula mágica para a manutenção dos
ideais liberais.
Disso decorre que Estado e sociedade em nada se confundiam, sendo que o
próprio direito teria a função de separá-los na construção do Estado Liberal. Primeiro,
para o Estado, com o ideal da legalidade, a exigir lei formal para sua atuação. Por fim,
à sociedade, com o ideal da autonomia privada, restando-lhe lícito tudo que a lei não
lhe proibia.
Entretanto, quando aqueles novos atores sociais passam a participar do “jogo
político”, leia-se associações de trabalhadores e outras minorias, e do Estado, passa-se
75
HEYDE, Wolfgang. La jurisdicción. In Manual de Derecho Constitucional. Madrid: Marcial Pons,
1996, p. 816.
48
a exigir uma atuação mais interventiva e prestacional na e para a vida dos particulares,
e Estado e sociedade em muito passam a se friccionar, pois se aproximam seus
campos de atuação.
Isso porque o Estado passa a intervir com maior intensidade em seara antes
protegida pela ampla autonomia privada outorgada aos cidadãos, como a previsão
legal/constitucional de direitos sociais aos trabalhadores, e.g., antes referidos em
contratos firmados entre particulares, e, com esse novo momento, previstos mediante
leis ou pela própria Constituição.
Esse novo momento começa a alterar a relação de forças anteriormente
referida, vez que eram inexistentes leis garantidoras, e, neste caso, foram os contratos
particulares que deduziriam tais questões.
Deixar tal matéria para o contrato particular é reconhecer a ampla supremacia
do detentor dos meios de produção no momento em face do empregado quando da
formação do contrato e essa ampliação da participação do Estado impõe novas
exigências para com a realização desses direitos pelo Estado.
No Estado Social, pode-se entender que inclusive o contrato passa a suplantar
os interesses dos contratantes para interessar, também, a toda sociedade, ou seja,
reconhece-se que inclusive os contratos geram angústias e preocupações contra
terceiros que não participam da contratação
76
.
Ao mesmo tempo, ampliando o Estado sua participação na vida do particular,
a sociedade passa, também, a atuar em searas que seriam anteriormente de
exclusividade do Estado.
A ampliação das obrigações do Estado caminha, concomitantemente, com a
absorção da tarefa do Estado pela sociedade. Pode isso ser verificado com a explosão
76
Vale a referência a AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e
desregulamentação do mercado – função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que
contribui para o inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v. 750, abr. 1998, p.
116. A função social do contrato “está claramente determinada pela Constituição, ao fixar, como um
dos fundamentos da República, o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV); essa disposição impõe ao
jurista a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes,
desvinculada de todo o mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e
essa asserção, por força da Constituição, faz parte, hoje, do ordenamento positivo brasileiro”.
49
associativa havia na última metade do século XX, quando essas associações passam a
ocupar parcela das atividades exclusivas do Estado como em matéria de educação,
saúde, moradia, pesquisa científica, entre tantas outras.
Destarte, a aproximação entre Estado e sociedade no Estado Social é
recíproca: quanto mais se exige do Estado, mais sociedade civil organizada é
necessária para auxiliar ao próprio Estado.
Trata-se de um paradoxo: quanto mais sociedade, mais Estado. E vice-versa.
1.2.7. Estado Social: do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito
Como referido anteriormente em passagem sobre a relação entre Estado de
Direito e Estado Liberal, quando afirmamos que o primeiro se encontra contido no
último, o aumento da participação dos atores políticos e sociais nas decisões do
Estado e a aquisição de notória normatividade das Constituições alteraram o
monopólio exercido pelo legislador na tomada de decisões em nome do Estado.
Assim, lei e direito passaram a poder entrar em conflito, vez que a atividade
do legislador passou a ser monitorada pelas constituições, nas quais os direitos
fundamentais passaram a deter alguma normatividade ainda que inerte o legislador em
conformá-los.
Assim, ainda que os parlamentos fossem tomados por maiorias esmagadoras,
que potencialmente pudessem oprimir a ponto de anular as minorias, o recurso às
constituições e, claro, ao Poder Judiciário, fez com que se alterasse a relação de forças
entre legislador e lei, por um lado, e constituições e direitos fundamentais de outro.
Na fórmula do Estado Democrático de Direito, duas perspectivas se põem em
manifesto conflito, vez que à parcela do Estado de Direito deve ser adicionada a do
Estado Democrático.
A parcela do Estado Democrático se funda na perspectiva da legitimidade
democrática, em que se funda a própria idéia de democracia, baseada na soberania
50
popular, legitimadora do exercício do poder, que, entre outras funções, produz as leis
a partir dos representantes do povo.
Todavia, essas leis, mais que em um procedimento legislativo fixo e pré-
concebido, devem ser produzidas a partir de um ambiente democrático, em que a
decisão da maioria do legislativo seja dividida com sua minoria e que, por fim, caso
essa maioria vá além do que lhe é válido, possa ser fiscalizada não só pelo Poder
Judiciário, a partir do controle de constitucionalidade, mas também pelo próprio
Poder Executivo, a partir do veto por razão de inconstitucionalidade.
A parcela do Estado de Direito, na fórmula referida do Estado Democrático de
Direito, já não pode mais ser confundida com o monopólio das decisões nas mãos do
Poder Legislativo, vez que há casos em que a lei e o Direito não mais se confundem,
como é o caso das leis inconstitucionais.
Assim, legitimidade (democracia) e legalidade (Estado de Direito) já
fornecem, na própria fórmula, um conflito
77
, vez que já não basta a lei formada nos
parlamentos a partir de um procedimento legislativo exigido pelas constituições, e,
sim, que essa lei seja ambientada em um locus e em um momento democrático.
1.2.7.1. Estado Social e Democrático de Direito
À fórmula do Estado Democrático de Direito se soma a do Estado Social,
alcançando o que se convencionou denominar Estado Social e Democrático de
Direito.
A parcela do Estado Social que se desenvolveu até o momento, adicionada ao
Estado Democrático de Direito, exige que além do ambiente democrático para a
tomada de decisões, estas não só exigidas do Estado, mas da própria sociedade,
77
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 231 e
ss.; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed.
Coimbra: Almedina, pp. 98-100.
51
devem, ainda que fundadas na centralidade do legislador como representante da
soberania popular, ser condicionada aos textos constitucionais sociais.
É necessário que o Direito, e não mais unicamente a lei, seja um instrumento
de igualação material, de fornecimento de meios e bens para o alcance de uma
igualdade material maior entre os particulares.
Os textos constitucionais estipulam diretrizes ao Estado nesse papel de
condutor do processo de melhora do bem-estar dos particulares e esse Estado se faz o
grande árbitro da nivelação, quanto àquele bem-estar, entre os particulares, devendo
intervir quando os processos alcançam, ou fomentam, o alcance de desigualações
excessivas.
Esses textos também impõem severos limites à atuação do legislador, ao
admitir que não só seja fiscalizada sua atividade pelo Poder Executivo, mediante veto
por inconstitucionalidade ou inconveniência/inoportunidade, mas também pelo Poder
Judiciário, mediante controle de constitucionalidade sob os aspectos formal e
material.
Para que se alcancem os objetivos fixados nos textos constitucionais sociais,
as decisões estatais, nesse novo ambiente, exigem um relacionamento cooperativo
entre os poderes do Estado, não mais divididos em funções estatais monopolizadas,
mas em relação de interdependência, é dizer, a depender de uma hetero-cooperação
entre os Poderes do Estado para o alcance desses objetivos.
Por outro lado, é aumentado o papel da sociedade na realização dos fins
almejados pelas constituições, em uma relação também de cooperação com o Estado,
não mais existindo uma divisão marcada e precisa entre Estado e sociedade, como se
viu anteriormente.
1.3. Haveria sido superado o Estado Social?
O tema do Estado pós-social não encontra, a nosso ver, grande sedimentação
doutrinária, mas merece alguma reflexão pois aponta para temas que se revelam
interessantes.
52
Isso porque não há, verdadeiramente, uma renovação de monta a fazer com
que entendamos superado o perfil do Estado Social.
Há, verdadeiramente, uma renovação da perspectiva das características do
Estado Social a incorporar novos elementos, como veremos.
No que toca a representação política e a crise de credibilidade da política, estas
parecem mais evidenciadas na participação de novos atores sociais, dos partidos e
sindicatos no Estado Social, como a monopolizar a representação societal, para
também outros grupos sociais organizados (movimentos sociais, grandes corporações,
transnacionais etc.) no “Pós-Social”
78
, ou no Estado Social tardio, como preferimos
denominá-lo, grupos esses que dependem de um fortalecimento de sua participação na
disputa pela realização de seus interesses no seio dessa sociedade em mudança
79
.
Trata-se da incorporação de novos atores que, todavia, dividem a atenção e a
primazia das atenções com os já evidenciados atores referidos acima (partidos e
sindicatos).
Apesar de acreditarmos que tendemos a uma “re-liberalização” do Estado,
ainda que a contragosto
80
, acreditamos ser ainda precário afirmar a superação do
Estado Social e vemos nos movimentos sociais os instrumentos mais habilitados para
uma oposição à centralidade monopolizadora dos partidos políticos e sindicatos, dada
a credibilidade que detém perante a sociedade.
Interessa dizer que a construção do Estado Social, como vimos, ao derivar das
lutas dos trabalhadores por melhores condições materiais de vida, deriva também de
uma ideologia de fornecimento dessas benesses materiais diretamente pelo Estado.
Todavia, nas últimas décadas, outros valores imateriais foram incorporados à
luta política, fazendo com que as benesses materiais entregues pelo Estado
78
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico. In:
FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 32
e 34-35.
79
FIGUEIREDO, Marcelo. Os Desafios do Direito Constitucional Brasileiro: Continuar a ser um
instrumento efetivo de cidadania. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 1, São
Paulo: Del Rey, 2003, p. 577.
80
FIGUEIREDO, Marcelo. Os Desafios do Direito Constitucional Brasileiro: Continuar a ser um
instrumento efetivo de cidadania. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 1, São
Paulo: Del Rey, 2003, p. 576.
53
diretamente aos particulares, mas aos trabalhadores principalmente, perdessem o
monopólio de interesse no debate jurídico, sendo incorporados outros interesses
sociais como “la defensa de los derechos humanos, de la paz o del entorno fisico
defendido por los nuevos movimiento sociales, los cuales han restado protagonismo a
los partidos políticos tradicionales”
81
.
Isso faz com que, nesse “novo ambiente”, verifique-se que partidos políticos,
sociedade civil organizada e os próprios particulares são elementos de uma rede a
tutelar e fiscalizar a ação estatal, inclusive judicialmente
82
, para a mais eficiente
distribuição de bens materiais.
Isso não significa o abandono do papel do Estado como provedor, ainda mais
quando vemos que o Estado, nos Estados centrais, continua altamente atuante,
interventor, vide, e.g., a mantença dos subsídios econômicos à agricultura nos países
centrais, a necessidade de o Estado prestar benesses materiais garantidas
constitucionalmente, a contínua necessidade de manutenção de aparato administrativo
para garantir direitos de defesa, como polícia e Poder Judiciário, entre tantos outros
exemplos.
Não há dúvida de que aquele Estado Social hiper-provedor deixará de abarcar
tamanho rol de atribuições que acabou por assumir no decorrer da maior parte do
século XX, também pela dificuldade de se autofinanciar e, de outro lado, pela
dificuldade de saldar a extrema agregação de dívidas contraídas
83
.
Contudo, ainda que os partidos representantes do que entendíamos por direita
carreguem suas plataformas de redução de impostos, com a conseqüente redução das
81
LARA, Maria Josefa Rubio. Los Fundamentos Políticos del Estado de bienestar. Revista de Ciências
Sociales Sistema, Madrid: Fundación Sistema, 1992, n. 107, p. 81.
82
ROLF Kuntz. Estado, Mercado e Direitos. In: FARIA, José Eduardo e KUNTZ, Rolf. Qual o futuro
dos direitos? Estado, mercado e justiça na reestruturação capitalista. São Paulo: Max Limonad, 2002,
p. 18-19.
83
LARA, Maria Josefa Rubio. Los Fundamentos Políticos del Estado de bienestar. In: Revista de
Ciências Sociales Sistema. Madrid: Fundación Sistema, 1992, n. 107, p. 73 e ss. A autora propõe nova
denominação para o Estado Social. Do tradicional, ou “institucional”, em que o próprio Estado executa
as prestações positivas para o “Estado de Bienestar Residual”, em que “las prestaciones de los servicios
(públicos) corresponden fundamentalmente al mercado y a los sectores voluntario e informal; mientras
que el Estado posee unas funciones mínimas, sus servicios son de escasa calidad y las prestaciones em
metálico se dan en calidad de subsistencia” (p. 77).
54
prestações sociais, os serviços típicos dos Estados Nacionais, como educação e saúde,
principalmente, continuarão a ser prestados pelos Estados.
Deixar de fazê-lo, que exigiria decisões legislativas, geraria severa
impopularidade. Resta saber quem assumiria esse risco...
Quanto ao Direito, nessa esteira, passa-se a verificar que não só as tradicionais
fontes de produção legal estatal são admitidas como jurídicas, bem assim, os fóruns
de resolução de conflitos passam a ser divididos entre Estado e Sociedade.
Trata-se de refletir se admitiremos que também a sociedade passe a produzir
normas que impliquem efeitos na ordem dos direitos dos particulares, ou seja, se há
espaço para o que vem sendo denominado pluralismo jurídico.
Em que pese acreditar-se na novidade do pluralismo jurídico, outra
característica do que se denomina “Estado Pós-Social”, acreditamos que este sempre
existiu
84
, mesmo que o Direito tenha intentado anular sua existência, entendendo
como dogma o monopólio da produção jurídica com sendo estatal.
Dizer do pluralismo jurídico não exige que tenhamos que retornar ao período
pré-moderno como, por exemplo, a ordem jurídica feudal, que não encontrava um
centro, sendo que haveria uma disseminação das fontes do direito, a partir da
pluralidade dos feudos.
O que definitivamente ocorreu, principalmente nos últimos dois séculos, foi o
abandono dessa perspectiva de análise e a adoção, quase unânime, do instrumental
dogmático do direito positivo normativista, que por muito tempo não permitiu que
essa reflexão fosse aprofundada.
Ou seja, admitir outras fontes do Direito, que não somente as estatais, não
exige que venhamos a concluir pelo fim do Estado Social, mas sim em um momento
em que vivemos a sua reestruturação.
84
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência.
Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2002, p. 171.
55
Essa reestruturação também exige que verifiquemos a existência de novos
locus de resolução de conflitos, não unicamente sediados no Poder Judiciário, é dizer,
no Estado, para também ser a sociedade entendida como capaz de resolver seus
próprios conflitos.
Esse o papel dos institutos da arbitragem, da mediação, entre outros.
Nessa linha, passa-se a entender necessária uma renovação de sua perspectiva,
de unicamente sancionatória para também relacional, ou seja, as relações jurídicas,
antes de dependerem de uma decisão para seu desfazimento em razão de violação de
obrigações assumidas por uma das partes em litígio, exigem que se tente restabelecê-
las, ou estabilizá-las, para, somente após, se infrutífera a tentativa, aplicar-se alguma
sanção
85
.
Quanto, ainda, à sociedade e seu relacionamento com o Poder Judiciário, é
interessante notar, outrossim, que o juiz, para os movimentos sociais, passa a ser visto
como um verdadeiro membro da sociedade
86
, e não, como tradicionalmente visto,
somente como um agente público estatal.
Daí a extrema importância que dispensam os movimentos sociais ao seu papel
como árbitro da relação Estado-sociedade e, de outra banda, também habilitado a
proteger o particular de outros particulares mais fortalecidos, como as grandes
corporações
87
.
Assim, se pudéssemos traçar uma breve linha evolutiva do Direito,
poderíamos dizer que as estruturas normativas do século XX se compõem tanto da
racionalidade liberal de reforço das formas e meios, quanto da racionalidade social de
reforço dos conteúdos, do controle de fins
88
.
85
FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 210 e
ss.
86
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico. In:
FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, p.
38-39.
87
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico. In:
FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, p.
35.
88
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico. In:
FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, pp.
39.
56
Isso quer dizer que a um direito de “matriz napoleônica”, cuja pretensão de
“completude, racionalidade e logicidade interna”, tipicamente liberais, agregamos a
racionalidade do Estado Social, da admissão de conflitos e dificuldades no sistema
jurídico, a exigir o reforço de decisões não mais em sentido abstrato mas a partir de
casos concretos
89
.
Nesse sentido, ainda sobre o Poder Judiciário, passamos do juiz liberal,
“técnico”, em quem se depositava grande desconfiança, a um juiz social, que é
verdadeiro sujeito ativo do processo político
90
.
89
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico. In:
FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 39
e p. 41. Vale a seguinte transcrição de importante reflexão: “as cláusulas gerais, os conceitos jurídicos
indeterminados e as normas programáticas, mantendo um formalismo jurídico de fachada, possibilitam
uma discricionariedade administrativa e uma politização das reivindicações jurídicas que estão a exigir
do magistrado uma versatilidade e uma formação profissional largamente incompatíveis com o que lhe
é ensinado nas faculdades de Direito (pp. 43-44).
90
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico. In:
FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 39
e p. 46-47.
57
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A DOGMÁTICA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
2.1. Direitos fundamentais: seus perfis subjetivo e objetivo
2.1.1 Direitos fundamentais e direitos subjetivos
A idéia da existência de direitos positivados com o intuito de proteger a órbita
de direitos do cidadão, como se a exigir um espaço livre de atuação sem que seja este
molestado pelo Estado, é idéia corrente no direito desde o advento da modernidade.
Haveria marcos no sistema jurídico que fariam com que aquele que é titular de
direitos, e, para o que nos interessa na presente dissertação, direitos fundamentais,
agisse com liberdade, já que detentor de possibilidade de, em havendo atuação
contrária que venha a afrontar tais marcos, buscar sua tutela jurídica para inibir uma
ação ou omissão ilícita, estatal, sobre o exercício desses direitos.
Em que pese ser essa tutela mais referida a partir da justiciabilidade dos
direitos fundamentais, não deve se limitar, unicamente, à tutela jurisdicional.
A tutela jurisdicional dos direitos fundamentais deve ser pensada para além
disso, como a alcançar, também, outros meios disponíveis junto ao sistema jurídico,
como a auto-tutela dos direitos ou o exercício do direito de resistência
91
.
91
ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite: Legge diritti giustizia. Torino: Einaudi, 1992, p. 112: “Os
direitos entendidos como pretensões da vontade têm uma natureza subjetiva, em um sentido duplo. São,
verdadeiramente, meios de realização de interesses individuais, direcionados à valoração autônoma dos
seus titulares e, de outro, sua violação autoriza aos últimos a agir por sua para sua própria tutela (nas
diversas formas possíveis: auto-tutela, recurso ao Judiciário, resistência)”.
58
Assim, outorga-se ao sujeito um mecanismo de deflagração desses direitos,
que existem e, a qualquer momento, quando necessário, podem ser invocados contra
aquele que pretende inibir, mediante uma ação ou omissão, sua atuação livremente
fixada pelo sistema jurídico, em regra, o Estado.
Esta a faceta subjetiva dos direitos, ou seja, entendidos os direitos
fundamentais como direitos subjetivos, estes se prestam a, ainda que não exercidos de
forma perene pelo sujeito, quando da potencial ou efetiva afronta a e;es, serem
invocados judicialmente como pedra de toque de uma confrontação dirigida àquele
que pretende ou, efetivamente, já produziu a violação contra o seu titular
92
.
As próprias constituições prevêem essa justiciabilidade dos direitos, para sua
proteção. São exemplos, entre tantos outros, a Constituição da República Federativa
Brasileira, que em artigo 5º, XXV, diz que “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”, e a Lei Fundamental Alemã, que em seu artigo
19.4 também garante que “quem for lesado nos seus direitos por ato de autoridade
pública, poderá recorrer à via judicial”.
Os direitos fundamentais sob a sua vertente subjetiva devem funcionar como o
elo entre um espaço de atuação com liberdade por parte do sujeito que lhes detém, seu
titular, no qual este poderia exercer sua liberdade com plenitude, e o espaço de
atuação do potencial agente da violação dos direitos.
Essa liberdade se refere, assim, tanto à liberdade de deixar de fazer algo que
viole, ou venha a violar, os espaços oferecidos aos sujeitos de direitos de agir
livremente sem a opressão do Estado, quanto à liberdade de exigir que aquele
obrigado a agir positivamente para concretizar direitos fundamentais efetivamente o
faça
93
.
92
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 159: “Neste contexto, quando – no âmbito da assim denominada perspectiva
subjetiva – falamos de direitos fundamentais subjetivos, estamo-nos referindo à possibilidade que tem
o seu titular (considerando como tal a pessoa individual ou ente coletivo a quem é atribuído) de fazer
valer judicialmente os poderes, as liberdades ou mesmo o direito à ação ou ações negativas ou positivas
que lhe foram outorgadas pela norma consagradora do direito fundamental em questão”.
93
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentias na Constituição Portuguesa de 1976.
2ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 116: “Parece-nos que as características comuns do conceito de
direito subjetivo se verificam, no essencial, nas posições subjectivas em matéria de direitos
fundamentais, sendo, por isso, adequado o recurso tradicional a este ‘mecanismo de tutela da
59
O espaço de liberdade garantido pela faceta subjetiva dos direitos
fundamentais envolve tanto a garantia da liberdade positiva (direito confessar fé ou de
emitir opinião sobre algo), quanto a garantia negativa das mesmas liberdades (direito
de não professar fé ou de não emitir opinião sobre algo)
94
.
Vale aqui adiantarmos algo que desenvolveremos mais adiante, no sentido de
que a perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais, em que pese estar histórica e
tradicionalmente relacionada com a contenção dos excessos por parte do Estado
(relação particular-Estado), também avança para conter excessos havidos por parte de
particulares em suas relações jurídicas travadas também com particulares (relação
particular-particular)
95
.
Isso porque são os direitos fundamentais verdadeiros servidores dos cidadãos,
como a exercer a função de conter o Poder desmedido do Estado.
Esse poder desmedido tanto pode decorrer de ação ou de omissão perpetrada
pelo Estado, como tradicionalmente se verificou, quanto, em outra linha, de poder
excessivo de outros cidadãos, também titulares de direitos fundamentais que podem
entrar em rota de colisão com os direitos fundamentais de outros titulares.
Outro problema de mais difícil solução, a respeito do qual somente faremos
uma apresentação, vez que não se trata do objetivo deste trabalho, é verificar se
também essas características de direitos subjetivos se aplicam aos direitos sociais.
Isso porque são direitos fundamentais e, com isso, carregam uma carga de
normatividade, é dizer, produzem efeitos jurídicos.
autonomia da pessoa’, que é simultaneamente ‘instrumento preferido de autodeterminação’: o direito
subjetivo exprime a ‘soberania jurídica’ (embora limitada) do indivíduo, que garantindo-lhe certa
liberdade de decisão, quer tornando efectiva a afirmação do ‘poder de querer’ que lhe é atribuído”.
94
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad.
Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 236: “(...) se para a
Constituição também se trata de atualização positiva dos conteúdos dos direitos fundamentais, então
trata-se para ela, pois, do mesmo modo, de liberdade desta atualização que só está dada onde existe
uma alternativa. Por isso, é sempre não só garantida a liberdade positiva, de confessar uma fé, de
manifestar uma opinião, de formar uma associação, e assim por diante, mas do mesmo modo, a
liberdade negativa, de não confessar uma fé, de não manifestar uma opinião, de não aderir a uma
associação, e assim por diante”.
95
LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Tecnos, 1998, p. 25: “En su
dimensión subjectiva, los derechos fundamentales determinam el estatuto jurídico de los ciudadanos, lo
mismo em sus relaciones com el Estado que en sus relaciones entre sí”.
60
Por terem normatividade, podem ser judicializados e receber tamanha proteção
de fornecimento como se dá com a judicialização dos direitos individuais, de
proteção? Ou será que merecem alguma alteração quanto aos seus contornos?
A nosso ver, merecem reflexões mais acuradas em razão de serem mais
voltados a grupos e, por isso, dependerem mais de políticas públicas do que de
decisões singulares também conferidas a indivíduos singulares.
Todavia, há situações em que se excepciona o raciocínio e elas se dão, em
regra, quando a posição jurídica desse indivíduo singular é limítrofe ou
demasiadamente delicada.
Isso porque dependem os direitos sociais, mais que os direitos individuais
próprios, de dinheiro para sua realização e dinheiro, por óbvio, é bem finito, cuja
utilização deve ser eficientizada ao máximo.
Daí por que o critério para se entender um direito social como subjetivo deve
ser o bom-senso, a razão, vez que além de imperar, na matéria, uma dependência de
dinheiro para sua realização, impera também a idéia da reserva do possível
96
97
.
Sobre essa expansão das funções dos direitos fundamentais voltaremos mais
adiante.
2.1.2. A função objetiva dos direitos fundamentais
Além de servir como meio de proteção aos direitos fundamentais, cuja fruição
pode ser deflagrada na ocorrência de efetiva ou potencial violação de direitos
96
ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no
Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Administrativo, n. 217, Rio de Janeiro: FGV,
jul./set. 1999, p. 79: “Em uma constituição como a brasileira, que conhece numerosos direitos
fundamentais sociais generosamente formulados, nasce sobre esta base uma forte pressão de declarar
todas as normas que não se deixam cumprir completamente simplesmente como não-vinculativas,
portanto, como meros princípios programáticos. A teoria dos princípios pode, pelo contrário, levar a
sério a constituição sem exigir o impossível. Ela declara as normas que não se deixam cumprir de todo
com o princípios que, contra outros princípios, devem ser ponderados e, assim, são dependentes de
uma ‘reserva do possível no sentido daquilo que o particular pode exigir razoavelmente da sociedade’”.
97
Ainda sobre a reserva do possível, a partir de uma reflexão bastante crítica da posição da doutrina e
jurisprudência brasileira, principalmente quanto à referência à programaticidade desses direitos, e da
ausência de uma adequação da teoria alemã ao Brasil, vf. KRELL, Andréas J. Direitos Sociais e
Controle Judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, pp. 25 e ss.
61
(perspectiva subjetiva), os direitos fundamentais também podem se prestar a
conformar as decisões jurídicas
98
a serem tomadas
99
.
A conformação da ordem jurídica a partir dos direitos fundamentais é uma
expansão da tradicional visão de direitos fundamentais como mero protetores do
sujeito singular, ou de suas situações jurídicas, para que estes exerçam, também, o
papel de elementos condicionantes da produção e da concretização
100
do próprio
direito.
A faceta objetiva dos direitos fundamentais se presta a fazer com que o Poder
Público, ao conformar toda e qualquer atuação sua
101
(decisões baseadas no Direito),
bem assim de todo e qualquer intérprete da Constituição e dos direitos fundamentais,
seja influenciado pela normatividade que os direitos fundamentais espraiam pelo
sistema jurídico.
98
Quando a falar de “decisões jurídicas” queremos dizer toda e qualquer decisão fundada no Direito, ou
seja, desde a produção legislativa até a pactuação de um contrato, ou a decisão judicial em demanda
levada ao Poder Judiciário etc.
99
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad.
Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 242: “Significado crescente
ganha a compreensão dos direitos fundamentais como elementos da ordem objetiva em vista da tarefa
do Estado Social moderno de produzir ou de garantir os pressupostos da liberdade jurídico-
fundamental. Se os direitos fundamentais não sem mais se deixam converter em direitos de ter parte
(subjetivos), então isso não significa que eles sejam sem significado para essa tarefa. Eles contêm,
antes, diretrizes e critérios (objetivos) para a planificação e produção daqueles pressupostos, que os
órgãos de formação da vontade política, apesar de toda a liberdade para a configuração em particular,
não devem deixar desatendidos”.
100
ESTEVES, Maria de Assunção. Legitimação da Justiça Constitucional e Princípio Maioritário.
V.V.A.A., Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional – Colóquio no 10º Aniversário do
Tribunal Constitucional – Lisboa, 28 e 29 de maio de 1.993. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 137-
138.
101
Interessa referir à sentença Luth, tomada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão no ano de
1958. Nela se admite que além dos efeitos de proteger os cidadão contra o Estado, ou de lhe atribuir
direito a prestações por parte do Estado, também os direitos fundamentais poderiam produzir efeitos
conformadores por sobre todo o sistema jurídico. Vf. KOMMERS, Donald. The Constitutional
Jurisprudence of the Federal Republic of Germany. Durham e Londres: Duke University Press, 1997,
p. 363-364: “É também verdade, entretanto, que a Lei Fundamental não é um documento neutro de
valores (citações de diversas decisões). A seção de direitos fundamentais estabelece uma ordem
objetiva de valores e essa ordem reforça sobremaneira o efetivo pode os direitos fundamentais. Este
sistema de valores, com seu centro na dignidade da pessoa humana se desenvolvendo livremente na
comunidade social, deve ser visto como uma decisão constitucional fundamental que afeta todas as
esferas do direito (público e privado). Serve como instrumento para medir e calcular todas as ações em
matéria de legislação, administração pública e julgamento. Destarte, é cristalino que os direitos
fundamentais também influenciam (o desenvolvimento do) direito privado. Toda previsão de direito
privado deve ser compatível com o sistema de valores e toda previsão deve ser interpretada a partir de
seu espírito”.
62
Essa faceta objetiva deflagra efeitos por todas as partes do ordenamento
jurídico e, onde houver normatividade, haverá a conformação dessa normatividade a
partir da inteligência de que esse núcleo duro do ordenamento jurídico, formado pelo
catálogo de direitos fundamentais, está a produzir seus efeitos sobre a decisão jurídica
a ser tomada.
Quando a tomar decisões jurídicas, o decisor/intérprete deve levar em conta,
quando da elaboração e organização do cipoal intelectual que deve preceder a própria
decisão, a normatividade dos direitos fundamentais e os efeitos que estes, como um
todo, produzem no momento em que se descobrem e justificam as decisões
102
.
O poder legislativo, e.g., quando produz uma decisão, deve também levar em
conta a violação de direitos fundamentais da comunidade jurídica “a”, que é formada
por titulares de direitos subjetivos contra o Estado e que, caso essa decisão venha a
violar esses direitos, ou seja, caso se efetive a violação, poderá, a partir da
judicialização destes direitos em face do próprio Estado, exigir seu respeito.
Esse mesmo Poder Legislativo, de outra banda, deve observar a normatividade
dos direitos fundamentais existentes no sistema constitucional ou a influência que
produzem na própria ordem jurídica.
Esses direitos fundamentais, ou as normas jurídicas que os inscrevem no
sistema jurídico
103
, estão, a todo momento, a produzir efeitos normativos por todo
esse sistema jurídico e, assim, toda e qualquer decisão jurídica
104
a ser tomada deve
levar em conta essa normatividade dos direitos.
102
Em que pese a teoria da argumentação jurídica dever se debruçar mais sobre o momento de
justificação das posições adotadas quando da tomada de decisões, também a fase de descoberta deve
ser por ela enfrentada. Sobre o tema, vf. ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito – teorias da
argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2003, pp. 20-23.
103
A discussão sobre a estrutura das normas de direitos fundamentais é levada a cabo na segunda parte
do presente trabalho.
104
ESTEVES, Maria de Assunção. Legitimação da Justiça Constitucional e Princípio Maioritário.
V.V.A.A., Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional – Colóquio no 10º Aniversário do
Tribunal Constitucional – Lisboa, 28 e 29 de maio de 1993. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 137:
“Esta dimensão objetiva das normas sobre direitos fundamentais implica para o legislador ordinário e
para o intérprete da Constituição uma atividade de concretização mediada por múltiplas ponderações
valorativas”.
63
Com isso é ultrapassada a órbita singular dos titulares de direitos
fundamentais
105
, da perspectiva subjetiva, para que se alcance a própria idéia da
realização dos direitos fundamentais.
Isso é o que exige o sistema jurídico e deve o legislador, por exemplo, como
representante do povo, respeitar a limitação que se lhe oferece quando atua como se
espera de um detentor de mandato parlamentar, o qual expressa a relação entre
mandatário e mandante.
Sua ação, como de qualquer um que esteja a tomar decisões jurídicas, se faz
limitada pelo próprio Direito e, mais especificamente, pelos direitos fundamentais.
A idéia de auto-referencialidade se encontra aqui presente, vez que é a partir
do próprio direito que se cria Direito, ou seja, é o direito que fornece o procedimento
para a criação de mais Direito.
Adentrando no sistema jurídico, esses direitos fundamentais passam, eles
mesmos, a condicionar a produção de novas normas jurídicas, em um movimento de
eterno retorno para a tomada de novas decisões. Esse sistema jurídico, inclusive,
estipula limitação para a reforma desses direitos (cláusulas pétreas), que assim passam
a conformar toda e qualquer decisão tomada com base em parâmetros jurídicos.
2.1.3. Uma tentativa de aproximação entre as perspectivas objetiva e subjetiva dos
direitos fundamentais
106
Os conceitos de direitos subjetivos e objetivos se fazem demasiado difíceis de
delimitar, vez que posições jurídicas muito distintas se utilizam desses mesmos
conceitos para tratar de objetos diferentes.
105
Quando se diz órbita singular não se está a desprezar que existem direitos coletivos e difusos e que
estes estão a espelhar direitos fundamentais.
106
LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Tecnos, 1.998, p. 25: “En el
horizonte del constitucionalismo actual los derechos fundamentales desenpeñan, por tanto, uma doble
función: em el plano subjetivo siguen actuando como garantias de la libertad individual, si bien a este
papel clásico se aúna ahora la defensa de los aspectos sociales y colectivos de la subjetividad, mientras
que en el objetivo han asumido una dimensión institucional a partir de la cual su contenido debe
funcionalizarse para la consecución de los fines y valores constitucionalmente proclamados”.
64
Contudo, quando da formulação de um raciocínio lógico, devemos fazer
escolhas.
Destarte, se pudéssemos traçar, sinteticamente, ainda que sabedores do risco
ao qual nos expomos, uma diferença simplificada entre as facetas subjetiva e objetiva
dos direitos fundamentais, poderíamos afirmar que, em regra, os direitos subjetivos
têm por função resguardar aquele(s) titular(es) de direitos fundamentais de uma
intromissão ou omissão ilícita na órbita de seus direitos que, ocorrendo, faz restar
ao(s) próprio(s) titular(es) utilizar(em)-se desses direitos contra a pretensão daquele(s)
que está(ão) a afrontá-lo(s), mormente a partir de uma demanda judicial
107
.
Já a faceta objetiva dos direitos fundamentais se refere a “um outro lado da
moeda”. Isso porque a função objetiva dos direitos fundamentais está em conformar a
atuação daquele que está a produzir decisões fundadas no Direito, de auxiliá-lo, ao
mesmo tempo em que o contém.
A margem de liberdade para decidir passa a ser limitada por influência dos
próprios direitos fundamentais e dos efeitos que deflagram pelo sistema jurídico todo,
criando o paradoxo no qual aquele que está a decidir com o objetivo de concretizar
direitos fundamentais está, sempre, contido pelo próprio catálogo de direitos
fundamentais.
2.2. A multifuncionalidade dos direitos fundamentais: direitos de defesa e
direitos a prestações
O processo histórico-evolutivo por que passaram e continuam a passar os
direitos fundamentais demonstra-nos que não é tarefa simples situá-los conforme as
funções que exercem no sistema jurídico, devendo essa evolução histórica ser
107
BOROWSKI, Martin. La Estrucutura de los Derechos Fundamentales. Bogotá: Universidad
Externado de Colômbia, 2003, pp. 45 e ss. Diz o autor da dificuldade de se conceituar os direitos
subjetivos, vez não haver consenso doutrinário acerca do tema. Contudo, estabelece uma opção, no
sentido de que, ao menos, devem ser entendidos como justicializáveis: “Lo caracteristico de los
derechos subjectivos és la posibilidade de que su titular lo haga efectivos ante los tribunales”.
65
acompanhada de uma evolução da própria dogmática jurídica dos direitos
fundamentais.
Talvez por serem construídos em decorrência de fricções inicialmente
existentes, em regra, junto aos sistemas político e econômico e, após, com sua
positivação, para ulterior acomodação no interior do sistema jurídico, os direitos
fundamentais não podem ser vistos a partir de uma observação nem puramente
histórica, o que faria com que os mantivéssemos conformados juridicamente ao
momento de sua positivação, nem puramente textualista, ou literal, o que faria com
que perdêssemos, também, o seu papel de construtor de realidades, ou, mesmo, de
alterador dessa realidade pela sua capacidade de, de tempos em tempos, se moldar aos
novos desafios que lhes são postos à frente
108
.
Com o advento das lutas pela sua positivação, os direitos fundamentais devem
ser novamente adaptados, ou readaptados, ao momento em que são tomados como
elementos decisórios no processo de construção de decisões jurídicas para que
alcancem o “aqui e agora” da sua concretização.
É esse processo de (re)adaptação que faz com que sejam alteradas as funções
que desempenham os direitos fundamentais em face dos poderes, privados ou
públicos, que lhes impõem pressões que tendem a restringi-los ou, eventualmente,
violá-los.
Passemos, adiante, a tratar das funções que desempenham os direitos
fundamentais no interior do sistema jurídico.
Há que se optar por algumas funções dos direitos fundamentais para serem
desenvolvidas, dado o objeto do presente trabalho, vez que os direitos fundamentais
108
BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 79: “Além de processos
de conversão em direito positivo, de generalização e de internacionalização, aos quais me referi no
início, manifestou-se nestes últimos anos uma nova linha de tendência, que se pode chamar de
especificação; ela consiste na passagem gradual, porém cada vez mais acentuada, para uma ulterior
determinação dos sujeitos titulares de direitos. Ocorreu, com relação aos sujeitos, o que desde o início
ocorrera com relação à idéia abstrata de liberdade, que se foi progressivamente determinando em
liberdades singulares e concretas (de consciência, de opinião, de imprensa, de reunião, de associação),
numa progressão ininterrupta que prossegue até hoje: basta pensar na tutela da própria imagem diante
da invasão dos meios de reprodução e difusão de coisas do mundo exterior, ou na tutela da privacidade
diante do aumento da capacidade dos poderes públicos de memorizar nos próprios arquivos os dados
privados da vida de cada pessoa”.
66
podem tanto se prestar a limitar o poder estatal quanto a manter o desempenho da
democracia em níveis médios para sua manutenção, quanto a conformar as próprias
mudanças do sistema jurídico etc.
109
.
2.2.1. Direitos fundamentais como direitos de defesa contra os poderes públicos e
privados
Entre as funções que desempenham os direitos fundamentais, a que mais se
reconhece presente no decorrer de sua evolução histórica é a função de defesa do
titular de direitos fundamentais em face da ambição expansiva dos poderes, públicos
ou privados
110
.
A função de defesa é a que mais se verifica no discurso dos direitos
fundamentais, seja qual for a aproximação que deles são feitas.
Assim, se retornarmos aos momentos iniciais do Estado Liberal, quando são
pensados os direitos fundamentais como protetores dos seus titulares em face do
Estado, reconhece-se com facilidade qual é a função que sempre os caracterizou: a
função de defesa contra o Estado
111
.
109
HESSE, Konrad. Significado de los Derechos Fundamentales. In: BENDA, Ernst, MAINHOFER,
Werner, VOGEL, Juan J., HESSE, Konrad e HEYDE, Wolfgang. Manual de Derecho Constitucional.
Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 90: “Los derechos fundamentales actúan legitimando, creando y
manteniendo consenso; garantizan la libertad individual y limitan el poder estatal, son importantes para
los procesos democráticos y del Estado de Derecho, influyen em todo su ancance sobre el
ordenamiento jurídico en su conjunto y satisfacen una parte decisiva de la función de integración,
organización y dirección jurídica de la Constitución”.
110
Nesse ponto, vale referir que poderíamos, com um alongamento de raciocínio, dizer que para todo
direito de defesa nasceria algum dever de proteção por parte do Estado, principalmente. Em última
instância poderíamos dizer que já no desígnio do Estado de Direito estaria inscrito um dever de
promoção do próprio Direito pelo Estado. A nosso ver, isso não tiraria a objetividade dessa divisão por
funções dos direitos fundamentais.
111
Ainda que estejamos a defender que a função de defesa dos direitos fundamentais seja estendida às
relações privadas, não se pode deixar de reconhecer que esta função se constrói, evolutivamente, a
partir do conflito entre sociedade e Estado, ou entre as “liberdades” do cidadão e a “ambição” do
Estado em ampliar sua pressão por sobre a sociedade/cidadão.
67
Fica claro que na perspectiva liberal dos direitos fundamentais quem constrói
o conteúdo dos direitos fundamentais é o legislador, representante do “povo”, e não os
intérpretes formais, ou seja, o Poder Judiciário ou Executivo.
Dada a homogeneidade dos “representantes do povo”
112
no parlamento liberal,
não se institui uma relação colisiva entre os titulares, mas, sim, uma unicidade de seus
objetivos: a busca incessante a favor da liberdade contra o Estado.
Quando argumentamos a partir dos direitos à propriedade, à liberdade, à
segurança, entre outros, estamos a revelar a idéia de que os direitos fundamentais
desempenham a função de defender os titulares destes direitos contra aquele(s) que
possa(m) violá-los
113
.
Todavia, nem só os direitos de liberdade se configuram em direitos de defesa.
Também outros direitos, como os direitos de igualdade, podem ser vistos
como de defesa. Quando os textos constitucionais dispõem do direito à igualdade,
além de tratarem de exigir que a intervenção do poderes, públicos ou privados, seja no
sentido de concretizar uma finalidade de igualar materialmente os indivíduos, também
estão a exigir a proteção do titular contra tratamento anti-isonômico.
Destarte, nos direitos de igualdade reconhece-se tanto a função de defesa, por
ora analisada, quanto a função de prestação, mais adiante tratada.
Assim, quando falamos em direitos de defesa fundado no direito à igualdade,
estamos dizendo que o seu desrespeito por parte do Estado está apto a fazer com que o
indivíduo passe a ser titular de direito subjetivo em face do Estado para que não seja
112
A expressão mantém-se entre aspas em razão de não se poder, a nosso ver, entender a teoria da
representação popular por mandatários no Estado Liberal como verdadeiramente democrática, vez que,
em regra, a elitização da seletividade para a atribuição de direitos políticos acaba por distorcer
totalmente o sistema, tornando o parlamento a casa de grupos homogêneos, que em matéria de direitos
fundamentais carrega consigo, entre outros, o ideal da liberdade econômica e, conseqüentemente,
jurídica, sendo essa liberdade somente conformável pelo legislador, inexistindo, verdadeiramente,
colisões de direitos entre os titulares dos direitos fundamentais.
113
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 175: “De acordo com a clássica concepção de matriz liberal-burguesa, os direitos
fundamentais constituem, em primeiro plano, direitos de defesa do indivíduo contra ingerências do
Estado em sua liberdade pessoal e propriedade. Esta concepção das funções dos direitos fundamentais
– em que pese o reconhecimento de diversas outras no âmbito de sua dimensão subjetiva e objetiva –
continua ocupando um lugar de destaque, transcorridos mais de duzentos anos de história dos direitos
fundamentais”.
68
tratado de forma discriminatória
114
, podendo recorrer ao próprio Estado para exigir o
cumprimento do direito que titulariza.
Parece-nos interessante notar que o perfil característico do direito à igualdade
como direito de defesa está mais assentado na sua perspectiva formal, ou seja, na
aplicação isonômica dos direitos fundamentais, enquanto a perspectiva material, como
se verá, está mais ligada às idéias de direitos fundamentais a prestações.
Sob todos os seus aspectos, a função de defesa dos direitos fundamentais se
assemelha ao entendimento de que se oferece aos titulares de direitos fundamentais
uma parcela de liberdade sobre a qual não deve intervir, em regra, o poder público ou,
conseqüentemente, se admitirmos a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas, os poderes privados
115
.
Pode-se também enfrentar o conteúdo dos direitos de defesa sob a faceta
dúplice de seus aspectos objetivo e subjetivo. Assim, para o primeiro, além de direitos
a que os poderes, públicos ou privados, tomem decisões torneadas pelos direitos
fundamentais, mesmo que a concretizá-los, também, agora sob a sua parcela
subjetiva, impõe-se que esses poderes não invadam a seara individualíssima dos
titulares, deixando-os livres tanto para exercerem ativamente seus direitos quanto para
o fazerem quando bem o quiserem
116
.
114
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 177: “Sua inclusão neste grupo (direitos de igualdade), em que pese sua estrutura
normativa diferenciada, justifica-se na medida em que garantem a proteção de uma esfera de igualdade
pessoal, no sentido de que o indivíduo, em princípio, não pode ser expostos a ingerências causadas por
tratamento discriminatório (desigual), gerando, em conseqüência, um direito subjetivo de defesa contra
toda e qualquer agressão ao princípio da igualdade”.
115
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito: Algumas considerações em torno da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. A Constituição concretizada: Construindo
pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 128: “A teoria dos
assim denominados ‘poderes privados’ e o reconhecimento de sua vinculação pelos direitos
fundamentais, apesar de já ter sido sustentado à época de Weimar, acabou acolhida de forma ampla –
ainda que não de forma generalizada – após a promulgação da Lei Fundamental da Alemanha, seja pela
doutrina seja pelo Tribunal Federal Constitucional, em diversos julgados, obtendo igualmente o
reconhecimento na doutrina e prática jurisdicional de Itália, Espanha e Portugal, apenas para citar os
exemplos mais expressivos do direito comparado”.
116
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
Almedina, 2002, p. 404: “Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos
cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de
competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na
esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer
positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de
forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)”.
69
Esse direito a ações negativas por parte do Estado poderia se subdividir em
três vertentes
117
: (a) o direito ao não impedimento de ações dos titulares dos direitos,
ou a que por sobre estas não sejam criados obstáculos
118
; (b) o direito de que o Estado
não afete determinadas propriedades ou situações jurídicas dos titulares de direitos
fundamentais; (c) o direito de que o Estado não elimine ou venha a eliminar
determinadas posições jurídicas dos titulares de direitos fundamentais.
Os primeiros (a) são referidos, e.g., aos direitos à liberdade, sob os mais
diversos aspectos, como a liberdade de expressão, profissão, consciência etc. Nesses
casos, em que pese poder o Estado restringir esses direitos a partir de decisões
juridicamente hábeis para tanto, não pode impor restrições que venham a violar
direitos fundamentais, ou seja, que afetem, indevidamente, parcela do núcleo
essencial
119
dos direitos fundamentais que, para uma eventual restrição, dependeriam
de razões (fundamentação) de maior monta
120
.
Quer-se dizer que esse próprio núcleo essencial é volátil, ou seja, não se
verifica a priori ou abstratamente, e, sim, de acordo com o caso concreto posto em
decisão e, no caso de ações que estejam a dar conta de concretizar direitos
fundamentais como os citados, há que haver um espaço de liberdade para agir no caso
de direitos que o requeiram.
117
As três subdivisões são de ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro
de Estudos Constitucionales, 1997, p. 189-194.
118
Obstar se diferencia de impedir. Obstar é dificultar o atingimento de um fim almejado por outrem.
Impedir é efetivamente não permitir que seja alcançado o fim almejado por outrem. Para uma
conciliação dos dois conceitos, propõe-se a utilização da palavra estorvar, cf. ALEXY, Robert. Teoria
de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1997, p. 189-190.
119
Como veremos mais adiante, a nosso ver, o núcleo essencial se confunde com o terceiro exame da
proporcionalidade, qual seja, a proporcionalidade em sentido estrito, cf. ALEXY, Robert. Teoria de los
derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1997, p. 288-291.
120
É o caso da restrição à liberdade de locomoção em tempos de paz e em tempos de guerra. Para que
exista esta limitação na primeira hipótese, devem as razões para tanto ser solidamente explicadas e
coerentes. Assim, o ônus da argumentação pende para aquele que toma a decisão, como se pudéssemos
entender o processo argumentativo como um pêndulo. É o caso de epidemia, por exemplo, que,
eventualmente, justificaria esta tomada de decisão em tempos de paz, porém demandaria daquele que
decide um exercício de argumentação fortificado. Já no segundo caso, dos tempos de guerra, por
existir, freqüentemente, previsão constitucional expressa para tanto, reduz-se a necessidade de uma
argumentação tão forte como a primeira, ou seja, o pêndulo se voltaria, neste caso, com mais
intensidade, para aquele que se põe contrário à decisão de restringir os direitos fundamentais.
70
Já a segunda hipótese (b) se reflete na necessária abstenção do Estado em
intervir em “situações e propriedades”
121
dos titulares de direitos fundamentais. É o
caso dos direitos à vida (situações) e à inviolabidade de domicílio (propriedades).
Nesses casos, exige-se que o Estado, ou quem venha a impor restrições, não afete tais
situações ou propriedades de forma desproporcional.
A terceira hipótese (c) se configura no direito à não eliminação de posições
jurídicas do titular de direitos fundamentais por parte do Estado. Dá-se a partir da
aceitação de que determinados direitos dependem, para sua fruição, de normas que o
conformem. É o caso do direito à propriedade. Para que valha, é imprescindível que
haja um arcabouço de normas jurídicas que o conformem, cuja ausência levaria à total
fragilidade de seu conteúdo jurídico. Assim, o direito do indivíduo de que se lhe não
derroguem determinadas normas jurídicas é que consubstancia o direito à não
eliminação de posições jurídicas.
2.2.2. Direitos fundamentais como direitos a prestações por parte do Estado
De outra banda, além de impedir ações do Estado, ou de sujeitos particulares,
que violem ou venham a violar direitos fundamentais, podemos nos referir, também,
aos deveres do Estado de prestar benesses materiais aos cidadãos.
Como visto, a perspectiva dos direitos fundamentais no Estado Social envolve,
ainda, além da existência de direitos fundamentais que tenham por função defender os
particulares ante os poderes, públicos ou privados, também o dever de o Estado
prestar, a exemplo da educação, previdência social, serviços judiciais etc..
Nesse sentido, consideram-se direitos à prestação lato sensu todo e qualquer
ato positivo do Estado, ou seja, toda e qualquer ação do Estado
122
com o fim de
concretizar direitos fundamentais, e não a mera abstenção.
121
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos
Constitucionales, 1997, p. 191-192.
122
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos
Constitucionales, 1997, p. 427.
71
Para uma descrição mais pormenorizada das funções que desempenham essa
gama renovada de direitos fundamentais que envolvem prestação por parte do Estado
em benefício do particular (direitos à prestação lato sensu), passamos a subdividi-las
em: (a) função de fornecimento de benesses materiais; (b) função de proteção dos
direitos fundamentais; (c) função de não discriminação desproporcional
123
.
Começaremos pela última, vez que se vislumbra, no direito à igualdade, tanto
uma faceta protetiva como promocional.
No início deste item dissemos que o direito à igualdade carrega consigo uma
nuance de proteger o particular em face de tratamento anti-isonômico por parte tanto
dos poderes públicos quanto dos poderes privados, podendo ser exemplificado no
dever de tratamento igualitário de toda sorte de particulares em mesma situação
jurídica em caso de aplicação do mesmo direito. Trata-se da perspectiva formal da
igualdade que se verifica na própria aplicação isonômica do Direito, já existente sob a
ótica liberal-burguesa dos direitos fundamentais.
De outra banda, quando o Estado fornece algo aos indivíduos (a), deve fazê-lo
conforme aos desígnios dos textos constitucionais, que fixam objetivos que se fazem
deveres do próprio Estado. É o exemplo do artigo 3º da Constituição Federal
Brasileira, que fixa como metas, e.g., a busca da erradicação “da pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Configura-se o dever de prestação de algo aos indivíduos, que deve, quando
do efetivo fornecimento, levar em conta as próprias particularidades daqueles a quem
presta o Estado tal benesse.
Entre aqueles a quem o Estado tem o dever de fornecer educação, e.g., devem
os mais necessitados ser atendidos com mais eficiência e qualidade, ou seja, dá-se
uma espécie de “desigualação” entre titulares do direito à educação (meio) com o
intuito de igualá-los ulteriormente (fim).
123
Como até o momento vínhamos adotando a teoria dos direitos fundamentais de Alexy como
paradigma, o que continuaremos a fazer na segunda parte do presente trabalho, a divisão, ou
subdivisão, dos direitos à prestação é de nossa autoria, claro que com influência de outras obras, como
se verá. É que a subdivisão de Alexy entre direitos à prestações fáticas e normativas não se faz
consistente em alguns momentos, como diz parece dizer o próprio autor, cf. ALEXY, Robert. Teoria de
los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1997, p. 195-196.
72
Trata-se, destarte, da perspectiva material do direito à igualdade, que se revela,
no que se comentou até o momento, não na mera aplicação isonômica do direito, mas
na própria busca de uma igualação final a partir do fornecimento de benesses distintas
para sujeitos distintos, é dizer, a intensidade da aplicação está a depender das
condições daquele que será atingido por ela.
A diferença entre as duas está, emntese, em que a primeira (igualdade
formal) se revela na aplicação idêntica do direito e a segunda (igualdade material), na
aplicação particularista do direito para igualar os indivíduos titulares de direitos ao
final
A função de fornecimento de benesses materiais (a) aos indivíduos impõe que
o Estado, a partir do dever de concretizar tais direitos, as forneça aos titulares de
direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais.
Não há dúvida de que todos os “direitos sociais”
124
estão, ainda que não
conformados pelo legislador ordinário, a produzir parcela dos seus efeitos, ou seja,
produzem obrigações ao Estado no sentido de concretizá-los, ainda que parcialmente,
ou, ao menos, tê-los como conformadores de sua atuação (perspectiva objetiva).
Assim, como a concretizar os objetivos fixados no artigo 3º da Constituição
Federal, no Brasil, é dever do Estado criar e executar satisfatoriamente políticas
públicas que objetivem dar concretude ótima aos “direitos sociais”
125
, tanto para
fornecê-los diretamente, como para criar os meios para que se lhe alcance o objetivo,
como a criação de hospitais, universidades, projetos de subsídios etc.
Já a segunda sub-função, de proteção dos direitos fundamentais por parte do
Estado
126
(b), deve ser bem avaliada, também, em razão de, mais à frente, quando
tratarmos da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, ser ela levada
principalmente em conta por aqueles que negam uma eficácia direta.
124
A entendê-los com direitos sociais, econômicos e culturais.
125
Posição idêntica quanto à Constituição da República Portuguesa é dada por CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, p. 406.
126
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos
Constitucionales, 1997, p. 435: “Por derechos de protección habrán aquí de entenderse los derechos del
titular de derecho fundamental frente al Estado para que este lo proteja de intervenciones de terceros”.
73
Como dito anteriormente, é corriqueiro que se trate de direitos e deveres como
estando um a complementar ao outro, ou seja, para todo e qualquer direito, deve restar
um dever, tanto de ação (prestação) quanto de omissão (defesa) por parte do Estado,
para os primeiros, e do Estado e dos particulares, quanto aos últimos.
Quando falamos em função de proteção dos direitos fundamentais estamos,
assim, falando de dever do Estado em cumprir com sua obrigação de tutela dos
indivíduos e de suas situações jurídicas, mediante ação e não omissão
127
.
O Estado, além de ser parte passiva de direitos fundamentais, é, ao mesmo
tempo, espécie de árbitro, de parte paralela em caso de conflito de direitos entre
indivíduos.
A primeira função do Estado nesse sentido é a função judicial. Caso surja
conflito entre direitos titularizados por indivíduos e estes o levem à resolução judicial
do conflito, é dever do Estado sanar e resolver o problema, mediante sanção negativa
ou composição.
Também é função do Estado proteger os direitos de indivíduos em caso de
conflitos de direitos, mediante a utilização de aparato policial apto a resolver
problemas daí decorrentes, como o direito à inviolabilidade de domicílio, a proteção
do patrimônio etc.
Por conseqüência, também o legislador desenvolve a função de proteção de
direitos fundamentais ao conformar direitos fundamentais mediante leis ou outros atos
legislativos, no sentido de proteger os indivíduos titulares de direitos de propriedade,
e.g., em face de esbulho ou invasões.
Ainda que não seja sujeito ativo ou passivo de direitos fundamentais quando
se fala em função de proteção, vez que esses direitos se revelam a partir da ação do
sujeito que é titular e daquele que está a contender com ele
128
, verifica-se que, ainda
127
Em que pese se poder traçar considerações semelhantes entre direitos de defesa e à proteção,
dizendo que os últimos não deixam de ser uma criação para a defesa do titular de direitos fundamentais,
a diferença saliente não permite sua igualação. Para uma discussão mais aprofundada vf. ALEXY,
Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1997, p.
433.
128
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria Gerald a Constituição. 5ª ed.
Coimbra: Almedina, 2002, p. 407.
74
assim, há a participação do Estado na definição dos contornos dessa relação entre
particulares protegendo suas situações jurídicas, fazendo-o mediante aparato policial e
judicial, ou seja, fornecendo aos indivíduos mecanismos de proteção.
Verifica-se que a função expansiva dos direitos fundamentais os leva a
terrenos impensados quando de sua perfilação liberal, principalmente, como já se fez
notar no decorrer do que se disse, na admissão de que incidem nas relações privadas,
ou cidadão-cidadão, e não somente na relação com o Estado, cidadão-Estado.
75
3. EFEITOS JURÍDICOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÕES
JURÍDICAS ENTRE PARTICULARES
Com a ampliação da força normativa a partir das constituições sociais, ou seja,
com a aceitação do entendimento de que elas próprias produzem efeitos imediatos,
assim também os direitos fundamentais nelas positivados estão a produzir os mesmos
efeitos.
Com isso, desloca-se o centro do sistema jurídico das leis, ou dos códigos,
para a própria Constituição.
Sob a ótica liberal dos direitos fundamentais, como já verificado, o conteúdo
jurídico dos direitos fundamentais estaria a ser “preenchido”, ou conformado, pelo
legislador, dado que a lei importaria no elemento de atribuição de concreção aos
direitos.
Não de admitindo a deflagração de efeitos jurídicos materiais dos direitos
fundamentais para o legislador e estando este investido de ampla liberdade para
conformar os direitos fundamentais previstos constitucionalmente
129
, seria o próprio
legislador o árbitro, único, do conteúdo jurídico dos direitos fundamentais.
A partir do entendimento de que as constituições estariam a vincular
peremptoriamente o Estado, inclusive o legislador, desloca-se a centralidade do
sistema jurídico das leis, ou dos códigos, mormente civis, para os textos
constitucionais, verificando o que se convencionou denominar de supremacia da
Constituição.
129
Pensemos que o controle de constitucionalidade, em terreno europeu, somente é criado a partir do
século XX, em termos bastante distintos daquele norte-americano, pugnando seu maior pensador pela
função legislativa (negativa) do Tribunal Constitucional. Cf. Kelsen, Hans. A Garantia Jurisdicional
da Constituição. In: Kelsen, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Marins Fontes, 2003, p. 150-
3.
76
A supremacia da Constituição impõe que toda e qualquer decisão jurídica
tenha que se vincular aos limites jurídicos que a própria Constituição, e seus direitos
fundamentais, por conseguinte, conforma para tais decisões.
Assim, não exige uma argumentação mais incisiva a afirmação de que se
encontram vinculados à Constituição, e, assim, aos direitos fundamentais, no papel de
Estado, (a) o legislador e o Poder Constituinte reformador, (b) o Poder Judiciário e (c)
o Poder Executivo.
As perguntas que devemos enfrentar, entre outras, são as seguintes: vinculam-
se juridicamente, também, aos direitos fundamentais os particulares em uma relação
jurídica travada com outros particulares? Poderíamos dizer que desde a revisão do
papel do Estado Social, como a conseqüente ocupação de parcela de seu espaço pela
sociedade, nas figuras privilegiadas dos movimentos sociais e dos conglomerados
econômicos, os sujeitos de direito privado verificaram um fortalecimento de suas
posições jurídicas? Merece, assim, nova reflexão sobre o papel dos direitos
fundamentais nesse novo ambiente?
3.1. Novos atores sociais privados e a necessidade de proteção dos cidadãos
também contra este novo “poder”: uma nova função para os direitos
fundamentais?
A aceitação da supremacia da Constituição no sistema jurídico importou em
um grande número de mudanças na teoria constitucional de características liberais.
Alguns movimentos são aparentes e merecem uma breve reflexão. São os
principais para os nossos objetivos: (a) o deslocamento da supremacia do legislador
para as constituições; (b) o aumento desmesurado dos deveres do Estado para cumprir
os programas e diretrizes das constituições programático-sociais; (c) a aproximação
do Estado e da sociedade, cujo distanciamento (b.1.) fora tão marcado no Estado
Liberal, e (b.2.) no Estado Social, sociedade e Estado se fazem tão próximos, fazendo,
77
com isso, seja mitigada a célebre e arguta diferenciação liberal entre direito público e
direito privado.
Sobre o primeiro (a), pensamos já haver desenvolvido em passagem anterior
deste trabalho.
Passemos ao segundo (b).
É notório que o século XX foi pródigo em desmentir o passado no que se
refere ao relacionamento entre Estado e sociedade. Daquele Estado tímido, Estado
Mínimo, construído principalmente a partir do século XVIII sob os desígnios de sua
contenção pela sociedade de espírito liberal, sob o signo da abstenção, da ampla
liberdade para os indivíduos, da amplíssima liberdade de conformação dos direitos
fundamentais pelo legislador, passamos a verificar a ampliação, em campos distintos,
do papel do Estado em searas tipicamente reservadas aos particulares.
O Estado, neste seu momentum de ampliação, acabou por intervir, cada vez
mais, na economia, vide planejamento econômico, intervenção direta, mediante
empresas estatais, e.g.; no Direito, com multiplicação da legislação sobre setores antes
restritos aos contratos ou à autonomia privada somente para citar dois exemplos,
como as regulamentações de determinadas categorias econômicas, do exercício de
profissões, da família
130
etc.
Assim, quanto mais responsabilidades para o Estado, mais intervenção na
liberdade dos indivíduos, regulando juridicamente tais matérias.
Concomitantemente a isso, (c) a sociedade passa a verificar que não é o Estado
somente que deve cumprir os programas inscritos nos textos constitucionais, sendo
que a sociedade passa, mais e mais, a cooperar com o Estado na busca dos objetivos
constitucionalmente fixados
131
.
130
Cf., entre outros, SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente – contra o
desperdício da experiência. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2002, p. 290 e ss.
131
CAMPILONGO, Celso. O direito da sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 62:
“Mais uma vez, esse processo delegativo transferência do poder decisório do Estado para a Sociedade)
pode ser lido de diferentes modos. Para alguns, serve apenas para aliviar a agenda política do Estado e
reduzir a sobrecarga das demandas sociais. A ‘dupla delegação’ apenas reforçaria a perversão da
democracia representativa, esvaziando ainda mais os exauridos Poderes do Estado (Executivo,
Legislativo e Judiciário) e recuando no campo da consolidação da cidadania. Para outros, ao reverso, se
78
Exemplo marcante dessa nova realidade é a expansão do associativismo no
século XX, principalmente no que denominamos Estado Social tardio, para que a
sociedade coopere com o Estado em matérias que, no pensamento liberal, estariam
reservadas à própria sociedade, e que, no constitucionalismo social inicial, passaram a
ser dever do Estado, v.g, educação, saúde etc.
Assim, ao invés daquele estrito distanciamento entre Estado e sociedade
característico do pensamento liberal, cada qual com seus campos bem demarcados, no
constitucionalismo social essas duas instituições antagônicas se aproximam, fazendo
com que campos antes restritos aos particulares (intervenção na economia, família,
p.ex.) fossem alcançados pela atuação estatal, enquanto outros, “passados” dos
particulares para o Estado (saúde, educação etc.) no Estado Social inicial, voltassem a
exigir uma atuação privada (associações, e.g.) em cooperação com o Estado, no
Estado Social tardio.
Como conseqüência disso, aproximam-se o público e o privado, o Estado da
sociedade, relativizam-se os ideais absolutos da legalidade para o Estado e da
autonomia privada para os particulares. Enfim, aproxima-se o direito público do
direito privado
132
, sem que, com isso, por óbvio, reconheça-se a sua completa
superação.
Com essa crise da distinção entre o direito público e o privado, com a
ampliação do papel do Estado e da sociedade
133
, e, por conseguinte, dos atores
no curto prazo a ‘delegação’ na produção normativa representa uma ‘capitis diminutio’, a longo prazo
poderá significar um importante processo de aprendizagem democrática e de superação de formas
tradicionais de produção de lei e ordem”.
132
PRATA, Ana. A Tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra: Almedina, 1997, p. 52:
“Actualmente, como se disse, a crise da separação entre direito público e direito privado é uma
evidência imposta pela realidade jurídica embora as concepções mais vulgares de reintegração e
‘rearrumação’ dos dois domínios ainda se não consubstaciem num claro ultrapassar e reformular
daquelas categorias conceituais: assim, a orientação mais comum é a que se pode reconduzir à fórmula
‘publicização do direito privado’, mas também não falta quem fale em recontratualização da vida
econômica, isto é, numa espécie de reprivatização do direito público, ou em aparecimento de um direito
comum da economia, um direito comum dos operadores económicos públicos e privados”.
133
SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Vinculação das Entidades Privadas pelos Direitos,
Liberdades e Garantias. Revista de Direito Público. Revista de Direito Público,. São Paulo: Malheiros,
n. 82, abr./jun., 1987, p. 43: “Por outro lado, a própria sociedade se modifica. O alargamento dos
actores políticos, pela introdução do sufrágio universal, levam ao multiplicar de instituições mediadoras
entre o indivíduo e o Estado, perdendo estas relações o seu caráter direto e imediato para adquirirem
uma dimensão coletiva, pela mediação de uma série de ‘organismos intermédios’ (partidos, sindicatos,
associações diversas) que não se limitam a pretender conquistar ou influenciar o poder, mas que vão,
elas próprias, adquirindo, gradualmente, um estatuto de poder”.
79
privados, em funções tipicamente estatais, passamos, após o engrandecimento inicial
do papel do Estado na vida privada e a ampliação do papel da sociedade no exercício
de funções tipicamente estatais, a precisar, no segundo momento, refletir sobre a
ampliação do poder de alguns agentes privados.
Assim, particulares travam relações com outros atores privados mais fortes,
como sindicatos, conglomerados econômicos, associações patronais, entre outros, e
isso merece uma nova reflexão sobre o tema dos direitos fundamentais, mais
especificamente, da autonomia privada
134
.
Quando afirmamos a existência de um Estado Social tardio e dizemos que há
uma redução do papel do Estado e, conseqüentemente, uma ampliação do papel da
sociedade, podemos demonstrar esse fenômeno como historicamente aclarado a partir
do processo de “privatização” havido no mundo ocidental a partir da década de 80 do
século passado e, em nosso país e no restante dos países periféricos, principalmente,
na década de 90.
Ainda que fosse mantida a titularidade dos serviços públicos, pelo Estado, cuja
execução fora concedida ou permitida aos particulares, viu-se uma ampliação
desmesurada do poder social dos particulares que nesse mercado passaram a atuar.
Como exemplos outros poderíamos tamm citar a ampliação da atuação dos
movimentos sociais (ONGs, sindicatos etc.) em esfera de atividades antes tipicamente
estatais, como educação, pesquisa, saúde etc.
Esses exemplos demonstram, cada vez mais, que, ainda que esses novos
agentes privados estejam a travar relações de direito privado com outros particulares
(usuários de serviços públicos e associados, p.ex.), essas relações não podem ser
134
PRATA, Ana. A Tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra: Almedina, 1997, p. 77:
“Na medida em que não exista uma real igualdade econômica ou contratual dos sujeitos contratantes, a
livre manifestação de suas vontades corresponderá necessariamente ao exercício de ‘liberdades’
qualitativamente muito diversas. Aquele que se encontra num ‘estado de necessidade’ por não ter
alternativas contratuais ou que se acha numa situação de indiscutibilidade (ou de muito estrita
discutibilidade) dos termos contratuais, não exerce a sua liberdade ao contatar. (...) Isto é, a liberdade
de contratual é muito mais criação das condições materiais ao exercício dessa liberdade, entendida em
termos substanciais e não formais, do que não intervenção, alheamento de uma esfera de relações em
que essa liberdade actua”.
80
resolvidas unicamente pelo próprio direito privado, que não confere proteção
necessária aos particulares que travam relações com estes agentes poderosos
135
.
Sendo os direitos fundamentais construídos historicamente para proteger o
cidadão do poder, inicialmente do Estado, deve-se refletir se não são hábeis para
protegê-los, também, desses novos agentes particulares
136
poderosos, ampliando a
incidência dos direitos fundamentais unicamente das relações particular-Estado para
as relações jurídicas travadas entre particular-particular.
Todavia, não se trata, aqui, de admitir, unicamente, que os direitos
fundamentais vinculem aos particulares quando há uma relação de forças em
desequilíbrio e, sim, de afirmar que a aplicação do direito exige uma solução unívoca,
o que significa afirmar que onde há relação jurídica há vinculação aos direitos
fundamentais por parte dos particulares.
Trata-se de uma decorrência da unidade que se deve atribuir ao Direito e de
dizer que os efeitos jurídicos das constituições devem se espraiar por todo o sistema
jurídico, independentemente de se tratar de direito público ou privado.
Mesmo porque não faz sentido, logicamente, dizer que se adota a supremacia
da Constituição como dogma e, ao mesmo tempo, dizer que parcela do sistema
135
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares:
Análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletín oficial del Estado – Centro
de Estudos Políticos y Constitucionales, 1997, p. 243. “Los poderes privados constituyen hoy una
amenaza para el disfrute efectivo de los derechos fundamentales no menos inquietante que la
representada por el poder publico. Y esto no es retórica, como insinuam algunos. No solo son temibles
por su capacidad para imponer su própria voluntad en el marco de uma concreta relación jurídica, sino
que pueden resultar incluso más peligrosos que los públicos, ya que gozan em ocasiones de una relativa
impunidad, que se ve favorecida por las dificulatades existentes para articular un sistema incisivo de
control(basta pensar en la problemática fiscalización de la actividad interna de los partidos políticos o
sindicatos)”.
136
UBILLOS, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos
fundamentales?. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 301: “Son evidentes, em efecto, las analogias entre el
poder publico y el privado, un poder que aflora com tal en aquellas situaciones caracterizadas por una
‘disparidad sustancial entre las partes’ (Lombardi). Esta falta de ‘simetria’ permite que la parte que por
razones económicas o sociales se encuentra em ‘posicion dominante’ condicione la decisión de la parte
‘débil’. Lo que se ejerce em estos casos es un poder formalmente privado (en lo que concierne a su
fuente y a los sujetos implicados), pero que se ejerce con formas de coacción u autoridad asimilables
sustancialmente a las proprias de los poderes públicos. Las deciciones de estos poderes de supremacia
privada, a los que se atribuyen com frecuencia amplias faculdades de autotutela, son muchas veces tan
imperativas e inmediatamente ejecutivas como las adoptadas por um órgano administrativo. Se
produce, en suma, uma aproximación sustancial entre las relaciones públicas y privadas de
dominación”.
81
jurídico está protegida ou escondida dos efeitos jurídicos que produzem as normas
jurídicas constitucionais.
Por fim, faz-se necessário que se afirme que não se está a negar um amplo
espaço de liberdade aos particulares para se relacionarem juridicamente entre si, e,
sim, entende-se que o direito exige solução unívoca quanto à vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais e, ainda mais, afirma-se que, onde há sujeitos
privados com demasiada força jurídica ou mesmo força de fato, estes merecem ser
contidos quando travam relações jurídicas de direito privado com outros particulares
menos favorecidos
137
.
É o que passamos a fazer.
3.2. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais
Antes mesmo de buscar uma delimitação conceitual para o tema da vinculação
dos particulares aos direitos fundamentais, vale uma breve reflexão sobre o modo
como doutrina e jurisprudência tratam o tema.
Isso porque o mesmo assunto pode ser tratado como “vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais”, “eficácia dos direitos fundamentais nas
137
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentias na Constituição Portuguesa de 1976.
2ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 255. Em que pese uma posição um pouco restritiva quanto ao
alcance dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares e um não tão claro
posicionamento pela vinculação mediata dos particulares aos direitos fundamentais, como veremos
adiante, vale a transcrição da seguinte passagem: “Quanto a nós, para além dos casos já referenciados
em que a Constituição expressamente concebe os direitos perante privados, só deverá aceitar-se esta
transposição directa dos direitos fundamentais, enquanto direitos subjectivos, para as relações entre
particulares quando se trate de situações em que pessoas colectivas (ou, excepcionalmente, indivíduos)
disponham de poder especial de caráter privado sobre (outros) indivíduos. Em tais casos estamos
perante relações de poder – e não relações entre iguais – e justifica-se a proteção da liberdade dos
homens comuns que estejam em posição de vulnerabilidade. O poder em causa não terá de ser
necessariamente um poder jurídico, se for um poder de facto inequívoco e objectivamente
determinável, como aquele que existe em relações informais, por exemplo, numa situação de
monopólio de facto, de cartelização ou de oligopólio, pelo menos de bens essenciais. Não será
suficiente, em contrapartida, uma dependência psicológica subjetiva ou momentânea, embora essa
possa tornar-se relevante por outra via (por exemplo, se determinar um vício de vontade na celebração
de um negócio jurídico)”.
82
relações privadas”, “eficácia privada”, “efeitos dos direitos fundamentais contra
terceiros”, “efeitos horizontais dos direitos fundamentais”, entre outros
138
.
O que pretendemos enfrentar é o problema de se saber se em uma relação
jurídica sob o regime de direito privado, travada entre particulares, produzem os
direitos fundamentais efeitos jurídicos, mesmo se ausente o Estado de um dos pólos
dessa relação, ou se essa relação deve ser totalmente tutelada pelo direito privado,
deixando os direitos fundamentais somente para proteger o cidadão do próprio Estado.
Trata-se da tentativa de resolver, a partir da dogmática dos direitos
fundamentais, problemas práticos em que sujeitos privados, particulares como são
denominados no texto, têm seus direitos restringidos por acordos particulares, como a
restrição da liberdade de expressão dos empregados, decorrente de contrato com o
empregador, a veiculação de boicote econômico por particulares detentores de grande
poder econômico contra determinado setor, a negativa expressa de contratação de
empregados com determinada concepção religiosa, entre tantos outros exemplos
139
.
O problema terminológico da expressão nos parece meramente aparente, vez
que os resultados alcançados pelos autores são semelhantes. É claro que
cientificamente a tentativa de estabelecer conceitos tem por objetivo, entre outros, a
simplificação do discurso jurídico a partir da utilização majoritária de determinadas
expressões, para afastar ambigüidades ou confusões.
Contudo, o que nos parece relevante é definir o nosso posicionamento, em que
pesem os excelentes trabalhos desenvolvidos por autores já referidos para tentar
“decantar” a questão.
Assim, preferiremos a expressão “vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais” pela simplicidade e pela aproximação com o que se pretende tratar
mais adiante, vez que ela está apta para informar que não se está a tratar de relação
138
Há ótimas tentativas de buscar diferenciação entre estas, entre outros, em SARLET, Ingo Wolfgang.
Direitos Fundamentais e Direito: Algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang. A Constituição concretizada: Construindo pontes
com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 114; STEINMETZ, Wilson.
A Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp.54-
59.
139
Para outros exemplos interessantes, vf. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos
Fundamentias na Constituição Portuguesa de 1976. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, pp. 241 e 242.
83
com o Estado, mas “entre particulares
140
”, e, mais, quando e em que medida se dá
essa vinculação.
3.2.1. Uma aproximação conceitual
Para começar a tratar da relação entre os direitos fundamentais e o direito
privado, e, dentro deste, das relações jurídicas travadas entre particulares e os efeitos
jurídicos que os direitos fundamentais produzem sobre essas relações, impõe-se uma
reflexão sobre a admissibilidade de se ampliar função de proteção outorgada ao
cidadão pelos direitos fundamentais também para os casos em que não seja o Estado o
destinatário, ou aquele que produz um dano a um particular titular de direitos
fundamentais.
Trata-se de entender que o dano é causado por outro particular, ou seja, dois
titulares de direitos fundamentais a se lesionarem reciprocamente
141
, ou um deles a
lesionar outro, e em que medida a dogmática dos direitos fundamentais pode auxiliar
a solucionar eventuais problemas surgidos a partir dessas questões.
Por essa razão, o que deve ser pensado é se são ou devem ser os direitos
fundamentais os instrumentos de proteção dos particulares contra outros particulares
em posição de supremacia de forças a ponto de aquele em posição de supremacia
impor suas condições sem que possa o mais fragilizado se opor, por falta de poder de
barganha.
É dizer: devem os direitos fundamentais produzir efeitos sobre a relação
jurídica citada ou deve essa relação ser permeada, somente, pelo direito privado e
depender exclusivamente do legislador o modus de mitigar as forças existentes em
realidade, sendo a lei o único instrumento de “discriminação” admissível para tutelar
tais questões?
140
SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do Direito: Os Direitos Fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 54.
141
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos
Constitucionales, 1997, p. 511.
84
Assim, o que significa vinculação dos particulares aos direitos fundamentais?
É possível que se conceitue seu significado?
Ingo Von Munch diz que “la jurisprudencia y las doctrinas constitucional e
civil alemanas entienden por ‘Drittwirkung de derechos fundamentales’ la vigencia de
derechos fundamentales entre ciudadanos en el tráfico jurídico privado”
142
.
Assim, importa que a relação jurídica seja travada entre particulares, e não
com o próprio Estado, para que se possibilite a vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais, deixando claro que pouco importa que estes sejam pessoas
jurídicas ou físicas, e sim que esteja ausente o Estado
143
e que sejam os pactuantes
titulares de direitos fundamentais
144
.
Da ausência do Estado importa entender que também as entidades públicas,
quando a atuar em regime de direito privado, não fazem parte do problema da
“Drittwirkung der Grundrechte” e sim da “Fiskalgeltung der Grundrechte”, ou seja,
não importa, unicamente, se o regime jurídico é de direito privado. Importa, sim, que
esteja o Estado ausente da relação jurídica travada com o particular e que esta,
definitivamente, seja travada com outro particular
145
.
Passamos a tratar, adiante, e respectivamente, da corrente que nega a
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, e do modo como admitida a
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.
142
MÜNCH, Ingo Von. Drittwirkung de Derechos Fundamentales em Alemania. In: CODERCH, Pablo
Salvador. Asociaciones, derechos fundamentales y autonomia privada. Madrid: Cuadernos Civitas,
1997, p. 25.
143
Idem, ibidem, p. 27.
144
Idem, ibidem, p. 26.
145
Idem, ibidem, p. 29.
85
3.2.1.1. A negativa de vinculação aos direitos fundamentais, pelos particulares, nas
relações privadas
3.2.1.1.1. A doutrina da state action Norte-Americana
Entre as teorias apontadas para tentar responder ao problema da relação entre
direitos fundamentais e relações jurídicas entre particulares, a da negativa da
vinculação é a que produz maiores desvios, a nosso ver, para com a realidade.
Vejamos.
Sendo uma teoria norte-americana
146
, é a Constituição daquele país que
trabalha como o elo entre direitos fundamentais e a proteção dos cidadãos contra o
Estado.
Por conseguinte, o rol de direitos fundamentais da Constituição Federal Norte-
Americana, melhor dizendo de suas emendas, perfaz as características das declarações
de direitos liberais, ou seja, estipulando deveres de abstenção do Estado na vida
privada dos indivíduos
147
.
Isso quer dizer que, ao buscarem a ampliação de sua liberdade com referência
ao Estado, os cidadãos vêem, no Estado, um objeto a se distanciar, ou seja, não
esperam do Estado mais do que a instrumentalização da proteção de seus direitos,
sendo exemplos o direito de propriedade e a exigência de um aparato policial e
judicial para garanti-lo.
146
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares:
Análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletín oficial del Estado – Centro
de Estudos Políticos y Constitucionales, 1997.
147
Não se nega a existência dos direitos sociais no Direito Norte-Americano. Estes, dada a maior
autonomia que detêm os Estados-membros, estão previstos em grande parte das constituições estaduais.
Ainda mais porque a estruturação do federalismo clássico norte-americano vê nos Estados-membros o
fornecedor de serviços e bens sociais sendo essa, ao nosso ver, uma questão negligenciada entre os
autores que tão-somente verificam o texto constitucional federal e o comparam com o brasileiro para
dizer da estabilidade constitucional norte-americana, esquecendo que as constituições estaduais norte-
americanas verificam, seguidamente, processos de reforma para inscrever novos direitos, como os
direitos sociais. Vf. TARR, George Alan. Direitos Duplamente Protegidos: A Experiência dos Estados
Unidos e suas Implicações. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo: Método, n. 2, jul.-
dez. de 2003, p. 346.
86
Nesse diapasão, teriam os direitos fundamentais a função de defesa dos
cidadãos contra o Estado e seria a lei o elemento de conformação desses direitos.
É nessa perspectiva que se insere a doutrina das “State Actions” norte-
americana
148
.
Somente incidiriam os efeitos jurídicos dos direitos fundamentais nas relações
entre Estado e cidadão, em regra, sendo a exceção dada para os sujeitos que exercem
função “quase pública”, sendo exemplos os concessionários/permissionários de
serviços públicos, para aproximar a discussão do direito brasileiro.
Assim, os direitos fundamentais carregariam consigo a função de defesa e é
esta que dá a tônica na relação entre o cidadão e o Estado.
Por conseqüência, somente os poderes públicos se encontram diretamente
condicionados nas suas ações e decisões pelos direitos fundamentais e somente
podem os direitos fundamentais ser referência em demandas judiciais em que haja
uma ação estatal
149
.
Dada a inspiração liberal dos direitos fundamentais previstos na Constituição
Norte-americana, e nas suas emendas, e a tradição em proteger-se da figura do Estado
a partir do ideal de liberdade, a state action, no âmbito dessa discussão, pode ser
considerada por composta pelo seguinte conflito: a pretensão expansiva dos direitos
fundamentais e a autonomia privada dos particulares.
Sendo assim, o argumento preferencial para defender a vinculação única do
Estado, e não dos particulares, aos direitos fundamentais está na necessidade de
resguardo da autonomia privada dos particulares quando a travar relações jurídicas
com outros particulares
150
.
148
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares:
Análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletín oficial del Estado – Centro
de Estudos Políticos y Constitucionales, 1997.
149
STEINMETZ, Wilson. A Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros Editores, 2005, p. 178: “Em suma (para essa corrente), os direitos fundamentais tão-somente
vinculam os poderes públicos e só podem ser acionados judicialmente ante uma ação estatal”.
150
Segundo Tribe, apud SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 228: “(...) imunizando a ação privada do alcance das proibições
constitucionais (direitos fundamentais, interpretando extensivamente), impede-se que a Constituição
atinja a liberdade individual – denegando aos indivíduos a liberdade de fazer certas escolhas, como as
87
Trata-se de dizer que a state action, ao negar a vinculação aos direitos
fundamentais para as relações entre particulares, em prol da autonomia privada, acaba
por transformar a Constituição em documento que traz diretrizes apenas, sem uma
sanção, é dizer, um documento de uso facultativo. O que pode estar a querer dizer, no
limite, que o particular tem a liberdade de querer ou não respeitar a Constituição.
Historicamente, a teoria da State Action se inicia com casos de direitos civis
julgados pela Suprema Corte norte-americana em 1883 (os Civil Rights Cases), nos
quais foram julgadas cinco demandas, quatro casos de direito penal e um de direito
civil, de pessoas processadas por terem cerceado o acesso de negros a
estabelecimentos comerciais, já após o Civil Rights Act, de 1875, que, com
fundamento na 14ª Emenda, previa sanções civis e penais por discriminação racial em
lugares liberados ao acesso público.
Significa dizer que a Suprema Corte entendeu ser uma ampliação excessiva
dos poderes do Congresso Nacional criar lei como a referida e que, nos casos citados,
as ações dos particulares “estavam imunes da legislação do Congresso e das restrições
da 14ª emenda em razão de não envolverem ações estatais”
151
.
Nos casos referidos, é importante dizer que a Suprema Corte declarou ser
apenas de competência da União Federal a edição de normas que se referissem à
abolição da escravatura, prevista na 13ª emenda, e o Civil Rights Act não se prestaria a
fazê-lo
152
.
Trata-se de entendimento gerado a partir do federalismo dual norte-
americano
153
, em que aos Estados competia legislar sobre, e.g., direito penal, civil e
processual, já que isso não competia à União Federal, espécie de árbitro da federação,
de com que pessoas devem se associar, por exemplo. Essa liberdade é básica dentro de qualquer
concepção de liberdade, mas ela seria perdida se os indivíduos tivessem de conformar sua conduta às
exigências constitucionais”.
151
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, pp. 474-476.
152
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, pp. 475 e 477.
153
Interessante notar que já quando da formação da Confederação Norte-Americana, a competência
para legislar sobre direito civil e penal, por exemplo, fazia parte do rol de competência das ex-colônias,
cf. o artigo II dos Artigos da Confederação e da União Perpétua.
88
dada a conjugação das competências do Congresso Nacional previstas no artigo 1º,
seção 8, cumulada com a previsão da 10ª emenda, de 1791.
Essa conjugação reserva aos Estados-membros, e não à União Federal, dados
os poderes remanescentes em matéria de competência legislativa para os primeiros, a
competência para legislar, inclusive, sobre direito civil, por não restar expresso como
competência da União Federal.
Nesse sentido, a Constituição Norte-Americana unicamente protegia os
cidadãos contra os atos abusivos praticados pela União Federal e seus agentes, e não
contra ações dos Estados-Membros e seus agentes
154
, que dependiam de previsão nas
constituições ou leis estaduais.
Para a Suprema Corte, como a 14ª emenda estava voltada para os Estados, não
era de competência da União Federal, e do Congresso Nacional, regular relações entre
particulares, o que significaria uma expansão excessiva dos poderes da União
Federal
155
.
Por conseguinte, se se admitisse uma ampliação tão excessiva das
competências federais, estar-se-iam suprimindo competências remanescentes
estaduais, derivadas da 10ª emenda.
Faz-se importante notar, assim, que um dos argumentos dos defensores da
negação da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais é o próprio pacto
federativo.
Todavia, já há algum tempo esse pacto federativo vem sendo revisto pela
jurisprudência norte-americana, que, paulatina e conflituosamente, passou a admitir
essa ampliação das competências da União Federal no decorrer de todo o século XX,
154
RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. 2ª. ed. Tomo II/1899-1910.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 94: “Nesse ponto afastou-se sempre a jurisprudência da
nossa mais alta Corte da jurisprudência da Corte Suprema dos Estados Unidos que, até muito
recentemente, e ainda assim com votos vencidos –, não admitia que a Declaração de Direitos, ou o Bill
of Rights da Constituição Federal, fosse uma proteção não somente contra o Governo Federal, como
também contra os Estados. Só aos poucos foi se tornando vencedora a opinião defendida
principalmente pelo Ministro Hugo L. Black naquele sentido, podendo-se dizer, com Fred P. Graham,
que ‘o Bill of Rights foi virtualmente aplicado aos Estados in toto’”.
155
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, p. 475.
89
movimento iniciado a partir da crise de 1929 e da necessidade de uma intervenção
maior da União em assuntos dos Estados, inclusive em matéria de direitos sociais
156
.
A posição da Suprema Corte começa a ser alterada, verdadeiramente, na
década de 1940, quando aquela visão extremamente liberal e individualista foi alvo de
muitas críticas, e passou a Corte a esboçar algumas concessões.
A posição da Suprema Corte, a partir daí, passa a exigir que haja uma “ação
estatal suficiente” no sentido de aproximar a ação do particular agressor à da vítima,
em matéria de direitos fundamentais, se houver essa proximidade suficiente
157
.
Isso ocorreu com o que se passou a entender por public function theory,
segundo a qual, quando particulares agirem no exercício de atividades “tipicamente
estatais
158
”, estarão também sujeitos aos direitos fundamentais observados pelo
Estado, ou seja, se o particular desenvolve atividade estatal, por delegação, por
exemplo, deve estar sujeito à vinculação aos direitos fundamentais
159
.
Em Smith v. Allwright, a Corte entendeu que as eleições primárias
estabelecidas por um partido político não poderiam violar a 14ª e a 15ª emenda
(questão de raça), pois “o sistema eleitoral e a fixação de qualificações para os
156
ABRUCIO, Fernando Luiz; COSTA, Valeriano Mendes Ferreira da. Reforma do Estado e o
Contexto Federativo Brasileiro. São Paulo: Konrad Adenauer, 1999, p. 25-26: “De fato, pelo menos até
a década de 30, com a eleição de Franklin Roosevelt para seu primeiro mandato, o federalismo nos
EUA foi pouco a pouco se modificando. Ao longo do século XIX e começo deste, a experiência
americana estava caracterizada como um federalismo dual, ou seja, uma estrutura em que havia uma
rígida separação entre as atribuições dos estados e as da União. A Suprema Corte, guardiã do contrato
federativo presente na Constituição, proferia sentenças contrárias a qualquer aumento da interferência
do Governo Federal em esferas até então consideradas de competência estadual.
(...)
O cume desse processo se deu com o aumento do poder federal após a Grande Depressão. A
dramaticidade da crise dos anos 30 criou dificuldades econômicas que os estados não poderia resolver
por si sós. A intervenção dos Estado central se ampliou por diversas áreas, cresceram a estrutura
administrativa nacional, e houve ainda a tipificação das subvenções financeiras – as chamadas grants –
destinadas aos estados e municípios”.
157
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, p. 477.
158
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, pp. 478: “Essas são somente aquelas funções ou atividades estatais que estão tradicionalmente
associadas com a soberania do Estado, e que são operadas com quase exclusividade por entidades
estatais”. Assim, “a administração do sistema eleitoral, a administração de ‘cities’e ‘towns’ e, talvez, a
administração de aparentes ‘public facilities’, como parques, serão entendidas como funções públicas
reguladas pela Constituição”.
159
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, p. 478.
90
votantes era uma ‘public function’, e estaria submetida às limitações constitucionais
de quem atualmente conduzia e eleição”
160
.
Shelley v. Kraemer trata de um acordo entre proprietários privados de um
loteamento em que se comprometem a não vender seus lotes para negros. Shelley,
negro, compra seu lote de J. Fitzgerald, branca. Kraemer, outro proprietário, se opôs à
venda e obteve decisão favorável da Suprema Corte do Missouri. A Suprema Corte
entendeu que era sua obrigação, nesse caso, impor as restrições derivadas da 14ª
emenda ao citado contrato particular que proibia a contratação com negros
161
-
162
.
Já em Marsh v. Alabama, uma empresa privada (Gulf Shipbuilding Co.),
proprietária de área comercial e residencial, proibiu um particular, adepto dos
Testemunhas de Jeová, de se manter dentro da área citada e o proibiu de distribuir
folhetos. Entendeu a Suprema Corte que violadas estariam tanto a 1ª quanto a 14ª
emendas. Importa dizer que, no caso, não se verificava qualquer participação do
Estado e de agência sua. Isso porque o Estado admitiu que a empresa executasse todas
as funções típicas de uma Municipalidade
163
.
160
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, p. 478.
161
Apud TARR, Allan e ROSSUM, Ralph. American Constitutional Law. 3ª ed. Nova Iorque: San
Martin, 1991, p. 596-597. Transcrevemos passagem do julgado: “Notamos que decisões prévias dessa
Corte estabeleceram a posição de que ações de juízes não estão imunizadas à 14ª emenda simplesmente
porque levam em conta as políticas comuns dos Estados. Nem que a emenda é inefetiva simplesmente
porque o modo particular de discriminação, que os Estados julgaram, são definidos inicialmente pelos
termos de um acordo particular. State action, como a expressão é entendida nos objetivos da 14ª
emenda, refere-se aos abusos do poder público em todas as formas. E quando o efeito da ação é negar
direitos sujeitos à proteção da 14ª emenda, é obrigação desta Corte exigir respeito aos comandos
constitucionais”. Mais à frente: ‘O contexto histórico no qual a 14ª emenda passou a pertencer à
Constituição não pode ser esquecido. Ainda que quisessem mais os framers estipular, faz-se claro
entender que sua primeira intenção era o estabelecimento de uma igualdade quanto à fruição dos
direitos civis e políticos básicos e a preservação desses direitos da discriminação por ações dos Estados
baseadas na raça ou cor. Setenta e cinco anos atrás essa Corte afirmou que as disposições dessa emenda
deveriam ser entendidas com esse objetivo fundamental em mente. A partir de todas as considerações
desses casos os Estados agiram para negar aos autores a proteção igualitária do Direito garantidas pela
14ª emenda’”.
162
TRIBE, Laurence. Refocusing the “State Action” Inquiry: Separating State Acts from State Actors.
In: TRIBE, Laurence. Constitutional Choices. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1985, p. 264. O autor,
otimista, considera esse o caso mais importante em matéria de state action e afirma que, nele, “(...) a
Corte abriu a possibilidade de julgar o mérito das relações de poder e privilégio sobre as quais nós,
tradicionalmente, referimo-nos como direito ‘privado’:contratos, torts e propriedade”.
163
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, p. 479-480.
91
Evans v. Newton apresenta questão interessante. Por decorrência de testamento
do falecido Senador Bacon, que criava um parque em Macon, Geórgia, estava
proibida a entrada de negros em sua área. Verificando, após Brown v. Board of
Education, que a situação poderia ser alterada, no sentido de ser proibida a restrição
referida, a municipalidade delega a particulares a administração do parque. Mesmo
assim, a Suprema Corte entende que, por ser a administração de parques um serviço
tipicamente municipal, não poderia a Municipalidade delegar sua execução a
particulares para afastar a incidência da 14ª emenda
164
.
Entre 1968 e 1976 a corte julgou outros casos em que se verificava se dentro
de shopping centers poderia ser proibida a distribuição de informações de interesse
público, quando chegou à conclusão de que não se verificava, aí, qualquer public
function
165
.
Entre os casos julgados, em Jackson v. Edison Co., a Suprema Corte entendeu
que não se aplicava a cláusula do due process ao caso, pois não se estaria a falar em
state action quando uma empresa impediu o fornecimento de energia elétrica, função
derivada de licença estatal, sem ao menos decidir pedido anteriormente formulado
pela usuária, vez que essas atividades econômicas não são ações tipicamente
estatais
166
.
Em Boy Scouts of América v. Dale (2000), verificava-se que “no Estado de
New Jersey havia uma lei que proibia qualquer discriminação contra homossexuais.
Apesar disto, a Boy Scouts descobriu que Dale, um de seus integrantes, era
homossexual e, por isso, resolveu expulsá-los de seus quadros”
167
. A Suprema Corte,
mesmo com a existência da lei estadual, entendeu a sua aplicação inconstitucional,
porque “violava a liberdade de associação e expressão, prevista na 1ª emenda, por
obrigar que um grupo ligado por valores comuns – dentre as quais a rejeição aos
164
Idem, ibidem, pp. 480.
165
Idem, ibidem, pp. 480.
166
Idem, ibidem, pp. 483.
167
Cf. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 234.
92
homossexuais – fosse integrado por pessoa indesejada, e por isso rechaçou a ação de
Dale”
168
.
Reafirmando, então, a state action é apoiada, sobretudo, em dois argumentos:
“(a) ela protegeria a liberdade individual, a proteção da autonomia privada e a
liberdade individual, ‘definindo um espaço de conduta privada que não tem de se
adequar à Constituição e a (b) garantia da autonomia dos Estados no pacto federativo,
preservando sua plena competência para regular o comportamento privado”
169
-
170
.
Ambos os argumentos são falhos e não procedem nos dias de hoje. Para
Chemerinsky
171
, “afirmar que a doutrina da state action é desejável porque preserva a
autonomia e liberdade é olhar apenas para um dos lados da equação (...). De fato, de
acordo com a doutrina da state action, os direitos do violador privado são sempre
favorecidos em relação aos direitos das vítimas. Dessa forma, a state action
promove a liberdade se se considerar que a liberdade de violar a Constituição é
sempre mais importante do que os direitos individuais que são infringidos”.
Quanto ao pacto federativo, simplesmente afirmamos que este encontra sua
limitação na Constituição norte-americana, e não pode ser invocado contra ela.
O que se verifica dos julgados acima referidos é que não há um padrão
objetivo para entender onde há state action, e seria exigida a aplicação da 14ª emenda,
168
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 234.
169
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 235.
170
Trata-se da mesma posição tomada pela Suprema Corte quando tentou obstar os planos de
ampliação das competências do governo federal logo após a Grande Depressão, com o New Deal, cf.
ACKERMAN, Bruce. We the People – Transformations. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1998, p.
303: sobre a posição da Suprema Corte e o ímpeto liberal de seus posicionamentos, Ackerman afirma
que “ao mesmo tempo, a ‘antiga Corte’ (que se opôs ao New Deal) ajudou a ampliar o campo do
debate. Enquanto Roosevelt focou-o na necessidade de ganhar aceitação popular para uma dramática
expansão do poder do governo nacional, a decisão da Corte corretamente enfatizou que havia muito
mais em risco. Desde a Guerra Civil, os juízes (da Suprema Corte) ponderaram sobre os princípios
(direitos) de liberdade que limitavam os governos em todos os níveis – estaduais não menos que o
federal. Geralmente, esses princípios de contenção (direitos de defesa) apresentaram a propriedade
privada e a liberdade contratual como os protetores das liberdades individuais frente às maiorias
tirânicas. Mas tamanha crença no laissez-faire poderia frustrar sistematicamente as reformas estruturais
em andamento que a New Deal Democracy estaria a representar nas mentes dos (norte) americanos”
(grifos nossos).
171
Apud SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2004, p. 237-238.
93
e onde não há participação estatal suficiente para dizer com clareza que não se está a
falar em state action
172
.
Trata-se de uma análise frágil e sem contornos dogmáticos bastantes firmes
para informar os casos em que haveria ou não que se falar em state action, o que faz
com que concordemos que se trata de teoria confusa
173
e aleatória.
A própria Suprema Corte reconheceu a dificuldade em se utilizar de seus
julgados para compor uma teoria objetiva
174
.
Diante disso, parcela da doutrina contemporânea começa a propor a
eliminação da state action, que deveria ser substituída por um modelo de ponderação
(ou balanceamento
175
), modelo em que os tribunais, a cada caso, avaliariam o que
seria mais importante proteger, se o direito individual do particular ou os méritos da
prática atacada.
Vale dizer que deve o Poder Judiciário respeitar, se constitucional, as
preferências expostas pela ação do Poder Legislativo
176
.
Todavia, Nowak e Rotunda se referem a uma idéia com a qual não
concordamos. Trata-se de entender que sempre que um direito fundamental, tutelado
pela 14ª emenda, é violado, independentemente de uma ação estatal positiva, há, sim,
uma omissão no sistema jurídico e essa omissão deve ser imputada ao Estado.
É dizer, sempre que um ator privado pratica determinado comportamento que
viola direitos fundamentais de outro particular, e as leis ou as ações estatais não
172
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, p. 507.
173
Cf. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 237.
174
Cf. TRIBE, Laurence. Refocusing the “State Action” Inquiry: Separating State Acts from State
Actors. In: TRIBE, Laurence. Constitutional Choices. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1985, p. 247-
248: “(...) moldar e aplicar uma fórmula precisa para o reconhecimento de responsabilidade estatal a
partir da Equal Protection Clause é um ‘trabalho impossível’ (...) Somente verificando fatos e
sopesando circunstâncias é possível alcançar as situações em que não é obvio o envolvimento do
Estado em conduta privada, podendo ser atribuído seu verdadeiro significado”.
175
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, p. 508.
176
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, p. 509, nota 4.
94
coíbem esta conduta, existe uma falha omissiva do Estado na garantia daquelas
liberdades
177
.
Portanto, assim, seria sempre possível encontrar alguma ação estatal, nesse
novo pensamento, e o Estado passa então a ter o dever de fiscalizar os direitos
fundamentais nas relações jurídicas travadas entre particulares.
Todavia, não nos parece ser esse o melhor caminho a trilhar, vez que se trata
de verificar o Estado como um segurador universal
178
, como um ente capaz de sanar
quaisquer problemas havidos na seara particular pela simples razão de que deveria
tutelar toda e qualquer violação em razão, unicamente, de ser Estado.
Parece-nos aconselhável que a sociedade, e não o Estado, assuma os danos
pela violação que der causa. Sobre essas críticas, voltaremos, mais adiante, ao
apontarmos nossas opiniões sobre as teses de Schwabe e Canaris.
3.2.1.1.2. A posição de J. Schwabe
Segundo Munch
179
, a tese de Schwabe se resumiria a entender que a questão
da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais se faria um “problema
aparente”.
177
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. 5ª ed. St. Paul: West Publishing,
1995, p. 508.
178
Sobre o descompasso lógico desse raciocínio sobre o controle da omissão estatal, ficamos com a
posição MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 959: “É razoável e impositivo que o Estado responda objetivamente pelos danos
que causou. Mas só é razoável e impositivo que responda pelos danos que não causou quando estiver
de direito obrigado a impedi-los. É que, em princípio, cumpre ao Estado prover todos os interesses da
coletividade. Ante qualquer evento lesivo causado por terceiro, como um assalto em via pública, uma
enchente qualquer, uma agressão sofrida em local público, o lesado poderia sempre argüir que o
‘serviço não funcionou’. A admitir-se a responsabilidade objetiva nestas hipóteses, o Estado estaria
erigido em segurador universal!” (grifos nossos).
179
MÜNCH, Ingo Von. Drittwirkung de Derechos Fundamentales em Alemania. In: CODERCH, Pablo
Salvador. Asociaciones, derechos fundamentales y autonomia privada. Madrid: Cuadernos Civitas,
1997, p. 42-44.
95
Isso porque, ainda que não admitida a vinculação imediata, sempre estaria
envolvida a figura do Estado com um intermediário da aplicação dos direitos
fundamentais.
Schwabe entende que o dever de intermediar a aplicação dos direitos
fundamentais às relações entre particulares se dá a partir do legislador.
Assim, a omissão do legislador é que pode se desdobrar em uma violação aos
direitos fundamentais de um particular em uma relação jurídica travada com outro
particular, é dizer, não admite que um particular viole direitos fundamentais de
outro
180
.
Em decorrência disso, aquele que deve ressarcir o dano provocado ao
particular lesado é o Estado, e não um particular que com ele forme uma relação
jurídica.
É dizer, ainda que existente a violação a partir de um problema processual em
processo de demanda civil, sempre estarão envolvidos o legislador, a partir da lei,
mesmo que esta seja de direito privado.
O envolvimento da figuras do legislador se dá a partir de sua omissão em
proteger ao particular, cujos direitos fundamentais são violados, de outro particular.
Sendo o legislador figura nebulosa, é o Estado que deve arcar com os
prejuízos referidos.
Trata-se, a nosso ver, de dizer que, quando da formação do acordo, os
particulares não se encontram vinculados pelos direitos fundamentais, mas, havendo
dano decorrente dessa contratação, vem a figura do Estado, como um “segurador
universal”, ou aquele ente a quem pode se socorrer o particular dada violação a direito
seu oriundo de direções das mais variadas, ou de terceiros quaisquer.
Por conseguinte, demonstra uma visão excessivamente maximizadora do papel
do Estado na vida privada dos particulares, como um “pai grande”, que está à espreita,
180
SILVA, Virgílio Afonso da. Constitucionalização do Direito – Os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 104-105.
96
sempre, para solucionar todos os problemas dos particulares para os quais não teria
sido “eficiente” a ponto de prevê-los e antecipar-se à sua ocorrência.
Com isso, afasta uma função educativa dos direitos fundamentais entre os
particulares, a qual poderia ser resumida na necessidade de auto e hetero-contenção
dos particulares quando a firmarem acordos, sendo exigido, principalmente do mais
fortalecido, que se contenha no ímpeto de subjugar ao mais enfraquecido
181
.
No mais, verifica-se excessiva importância à figura do Estado na vida privada
do particular e uma hipossuficiência inconteste dos particulares para se
autodefenderem.
3.2.1.2. A vinculação mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas
Em que pesem algumas diferenças quanto à posição dos autores mais à frente
referidos, há um consenso para entendê-los partidários da vinculação mediata dos
direitos fundamentais às relações jurídicas travadas entre particulares: quando da
fixação do acordo de vontades entre particulares, mesmo que não se esteja a falar de
contrato, não se encontram esses particulares vinculados pelos direitos fundamentais
e, sim, pelas normas de direito privado.
A superação do dogma do monopólio do legislador como conformador sem
limitações dos direitos fundamentais, mediante o instrumento da lei, exige, também,
que um direito privado fechado em seus próprios limites deixe de ser aceito, exigindo
que a supremacia da Constituição imponha relações de reciprocidade entre os diversos
ramos do Direito.
Existe consenso de que os direitos fundamentais podem vir a deflagrar algum
tipo de efeitos jurídicos nas relações jurídicas entre particulares, mas dependem, para
181
MÜNCH, Ingo Von. Drittwirkung de Derechos Fundamentales em Alemania. In: CODERCH, Pablo
Salvador. Asociaciones, derechos fundamentales y autonomia privada. Madrid: Cuadernos Civitas,
1997, p. 43.
97
essa vinculação dos particulares, da intermediação do próprio Estado, tanto pelo
legislador quanto pelo Poder Judiciário.
Já que falaremos dos juízes mais à frente, iniciemos o raciocínio a partir do
legislador que cria normas de direito privado, ou o “legislador privado”.
A intermediação do legislador privado, que se dá a partir da legislação
infraconstitucional, é uma atividade que encontra, no próprio sistema jurídico,
restrições, sendo uma dessas restrições advindas dos próprios direitos fundamentais,
ou seja, a vinculação do legislador aos direitos fundamentais é imediata
182
.
Todavia, a legislação é que passa a vincular aos particulares nas relações
jurídicas particular-particular, e não os direitos fundamentais.
Como se verá, também mais adiante, cria-se, a partir dessa corrente, um
verdadeiro paradoxo da vinculação: está o particular, a partir da legislação
infraconstitucional criada pelo legislador, vinculado indiretamente aos direitos
fundamentais, mas o legislador privado, de outra banda, encontra-se vinculado
imediatamente aos direitos fundamentais.
Por conseguinte, havida a legislação infraconstitucional, o papel do intérprete
do direito privado é unicamente “reinterpretar”
183
o direito privado a partir dele
próprio, que por vezes está a depender da construção de normas a partir de enunciados
normativos como “função social do contrato”, “bons costumes”, “boa-fé objetiva”,
entre outros.
Para construir a norma jurídica da qual dependerá o deslinde do caso torna-se
necessária uma aproximação do conteúdo jurídico dos direitos fundamentais, como
um auxílio para a obtenção dos resultados a partir da interpretação
184
.
182
A esse tema voltaremos, mais adiante, quando a analisarmos a posição de Canaris, e a ela
atribuiremos uma crítica mais incisiva.
183
SILVA, Virgílio Afonso da. Constitucionalização do Direito – Os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 59.
184
Sobre a “eficácia mediata”, vf. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentias na
Constituição Portuguesa de 1976. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 243-244: “A força jurídica dos
preceitos constitucionais em relação aos particulares (terceiros) não se afirmaria de modo imediato,
mas apenas mediatamente, através dos princípios e normas próprios do direito privado. Quando muito,
os preceitos constitucionais serviriam como princípios de interpretação de cláusulas gerais e conceitos
indeterminados susceptíveis de concretização, clarificando-os (Wertverdeutlichung), acentuando ou
98
Essa “reinterpretação” ocorre em razão de não se admitir a vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais, mas, na prática, quando da busca do conteúdo
jurídico das normas do próprio direito privado que admitem um papel construtivo
maior do intérprete, tais as acima referidas, o mesmo intérprete se auxilia das normas
de direitos fundamentais para tanto.
É importante notar que as normas jurídicas que fundamentam a decisão são
aquelas do direito privado, é dizer, as normas de direitos fundamentais unicamente
auxiliam na construção do conteúdo das de direito privado, mas são as normas de
direito privado que operacionalizam as decisões.
Como exemplo, podermos referir-nos à expressão “função social do contrato”
(Código Civil, artigo 421), que depende, ao ser concretizada, de se saber a posição
jurídica dos contratantes (igualdade), seu poder de se sobrepor ao outro contratante, os
efeitos do próprio contrato que são produzidos para além das órbitas jurídicas dos
próprios contratantes etc.
Deve-se notar que o procedimento da ponderação pode ser aqui utilizado, o
que faz com que cheguemos à conclusão, óbvia, de que há normas de direito privado
veiculadas a partir de princípios jurídicos
185
.
Isso que dizer que são esses princípios os verdadeiros elos entre os direitos
fundamentais e o direito privado.
Contudo, não se admite que as normas veiculadas a partir de princípios de
direitos fundamentais fundamentem decisões e sim que, ao final, somente “auxiliem
as normas de direito privado.
desacentuando determinados elementos do seu conteúdo (Wertakzentuierung, Wertverscharfung), ou,
em casos extremos, colmatando as lacunas (Wertschutzluckenschliessung), mas sempre dentro do
‘espírito’ do direito privado”. Também do mesmo autor, p. 268: “Além disso, lembrar-se-á que as
normas de direito privado contêm cláusulas gerais que também permitem à jurisprudência graduar,
dentro de certos limites, a influência dos princípios constitucionais, ponderando, consoante as
circunstâncias concretas dos casos, numa perspectiva de adequação social, a medida em que o
sentimento jurídico comunitário exige a restrição da liberdade de cada indivíduo para a defesa da
liberdade e da dignidade dos outros homens. Fica, pois, aberta a possibilidade de o legislador ou o juiz
comprimirem a liberdade individual para a prevenção ou repressão de situações de injustiça a que o
abuso da liberdade por vezes conduz, quando sejam intoleráveis para o sentimento jurídico geral”.
185
Esse tema será debatido em trecho específico desse trabalho monográfico (item 4).
99
Pelo que se disse até o momento, pode-se afirmar que, quando do
estabelecimento de obrigações recíprocas entre particulares, devem ser respeitados
unicamente os ditames do direito privado, que, por sua vez, podem ter seu conteúdo
jurídico preenchido com o auxílio de normas de direitos fundamentais.
Assim, se na formação do acordo de vontades unicamente as normas de direito
privado, produzidas pelo legislador “privado”, estão a vincular aos particulares, o
papel de intermediário do Estado se faz patente.
O que se verifica, na verdade, é uma dependência muito grande de
participação do Estado como intermediário entre os direitos fundamentais e o direito
privado, que se dá, como referido, (a) pelo legislador, que se encontra vinculado, em
suas decisões aos direitos fundamentais, e também, (b) quando da aferição judicial de
lides privadas, pelos juízes.
Estando o juiz submetido ao Direito, entendido este como uma unidade, e não
somente ao direito privado, não pode deixar de aplicar todo o Direito.
Em situações como a referida, depende-se do Poder Judiciário para apontar um
imperativo de tutela, ou seja, para confirmar que há a necessidade de verificar, no
caso sob exame, a desigualdade de proteção entre os litigantes com o fito de dar
proteção ao mais enfraquecido.
Ou seja, cabe ao juiz verificar e aferir se há uma intervenção restritiva
demasiadamente incisiva no direito fundamental de um dos particulares, havida por
ação estatal ou privada tanto dada pela lei quanto por outra(s) decisão(ões)
judicial(ais) a ser(em) revista(s) mediante recurso.
Vê-se ser o próprio Estado o intermediário da vinculação dos particulares, o
que quer dizer que a vinculação é imediata quanto ao legislador ou ao judiciário, e
seriam estes que verificariam a intensidade excessiva das restrições aos direitos
fundamentais dos particulares nas relações jurídicas entre si travadas.
Parece-nos que a idéia da liberdade, e, principalmente, a liberdade contratual,
é o ponto de toque entre os defensores da teoria, e que admitir a vinculação imediata
seria, para os adeptos da teoria, destruir uma conquista histórica no campo dos
100
direitos fundamentais que entende a liberdade como um fator de desenvolvimento da
própria personalidade dos indivíduos.
Em que pesem a divergência entre as correntes da vinculação mediata e
imediata e o risco da obviedade da afirmação que se fará, há consenso de que o
Direito não se constrói com cortes entre ramos, mas é, obviamente, uno.
Assim, cria-se uma ficção bastante interessante para que os direitos
fundamentais produzam algum efeito jurídico nas relações particular-particular.
Essa ficção se resumiria ao seguinte: (a) nega-se a vinculação quando do
momento em que se trava, inicialmente a relação jurídica entre os particulares, mas
(b), ao mesmo tempo, no momento em que o juiz toca o caso, por estar, como agente
público, vinculados aos direitos fundamentais, passa a ser sua obrigação apontar, a
partir dos direitos fundamentais, a (i)licitude do acordo entre os particulares.
Passaremos, adiante, às duas melhores formulações do que, a nosso ver,
propugnam os defensores dessa teoria e, após, analisaremos alguns casos julgados
pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão.
Primeiramente, trataremos das idéias de Canaris e Hesse e, após, da
jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão.
3.2.1.2.1. A posição de Canaris
186
-
187
-
188
A nosso ver são estes os principais pontos trazidos pelo autor: a) haveria uma
eficácia imediata dos direitos fundamentais na atuação do legislador privado e do juiz;
186
Utilizamo-nos, neste ponto, de resenha que publicamos para explicitar a posição de Canaris, cf.
CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. Direitos Fundamentais e Direito Privado, Claus-Wilhelm Canaris.
Resenha. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo: ESDC, n. 5, jan./jun., 2005.
187
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e
Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, e CANARIS, Claus-Wilhem. A Influência dos Direitos
Fundamentais sobre o Direito Privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição,
Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, pp.223-243.
Como o primeiro texto é mais recente, daremos privilégio ao posterior no intento de aferir as opiniões
mais recentes do autor referido.
188
Neste trecho, diferentemente da metodologia utilizada anteriormente, faremos as citações no
decorrer do texto e não, como anteriormente, em notas de rodapé. Isso porque estamos a tratar da obra
de um autor, e unicamente de um autor, e não sobre as nossas posições sobre o tema, quando,
indiretamente, utilizamo-nos das opiniões e idéias de autor. Faremos, também, críticas às posições após
sua explicação.
101
b) essa eficácia se dá sob a forma de proibições de intervenções ou sob imperativos de
tutela; c) não são, em regra, imediatamente aplicáveis os direitos fundamentais em
caso de relações entre particulares, ou seja, não são eles destinatários dos direitos
fundamentais, não sendo esses direitos fundamentais vinculantes para as relações
jurídicas de direito privado. Em casos como esses, deve o Poder Judiciário, como
vinculado diretamente aos direitos fundamentais, proteger os sujeitos privados em
posição de dominação.
Esses parecem ser, a nosso ver, os pontos mais importantes da posição do
autor, os quais serão tratados a seguir.
3.2.1.2.1.1. Vinculação imediata exclusiva do legislador de direito privado e
do juiz aos direitos fundamentais
3.2.1.2.1.2. Direitos fundamentais e legislador privado
A partir dos artigos 1º, nº 3 e 93, nº 1, alínea 4, da Lei Fundamental, o autor
desenvolve a idéia de que o legislador privado está imediatamente vinculado aos
direitos fundamentais.
Haveria uma diferença entre essa vinculação na Lei Fundamental de Bonn e na
Constituição de Weimar, vez que, nesta, os direitos fundamentais estariam limitados à
programaticidade das normas que os veiculavam, enquanto naquela são declarados
imediatamente aplicáveis
189
em face dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Assim, além da declaração de imediata vinculação a partir da norma que se
retira do texto do artigo 1º, nº 3, também o artigo 93, nº 1, alínea 4, está a fortalecer
este argumento, vez que admite a utilização da queixa-constitucional
(Verfassungbuschwerde) contra violações diretas a direitos fundamentais dos cidadão.
189
Art. 1.3 da Lei Fundamental de Bonn.
102
Negar a vinculação imediata do legislador privado aos direitos fundamentais
dependeria de um reforço exaustivo de argumentação, o que o autor não vê possível,
chegando inclusive a dizer tratar-se de uma tentativa carente de “lógica jurídica”
190
.
A tentativa de impor uma eficácia mediata dos direitos fundamentais ao
legislador se faria desarrazoada, pois se estaria a controlar uma norma de direito
privado somente a partir de outra norma de direito privado, sendo que “estas duas
normas estarão, em termos de lógica normativa, situadas no mesmo nível, pelo que
uma não pode constituir a bitola de conformidade constitucional da outra, a qual
haverá, também necessariamente, de ter o estatuto de lex superior, e haverá, portanto,
de estar situada, na hierarquia das normas, num nível superior”
191
.
3.2.1.2.1.3. Direitos fundamentais e Poder Judiciário
Também o Poder Judiciário está imediatamente vinculado aos direitos
fundamentais quando do seu trabalho de “aplicar e desenvolver as normas de direito
privado”
192
no exercício de sua função judicante.
Essa imediata vinculação se dá a partir das funções “normais” de proibição de
intervenção e de imperativos de tutela
193
.
Para fundamentar a posição alcançada, recorre o autor ao instrumento de
defesa de direitos fundamentais outorgado pela Lei Fundamental ao cidadão em seu
artigo 93, nº 1, al. 4ª, a queixa-constitucional (Verfassungbuschwerde).
Isso porque as decisões judiciais podem ser entendidas como normas, e, assim
sendo, também são controláveis pelo Tribunal Constitucional Federal, dado, por
óbvio, a separação entre jurisdição ordinária e a jurisdição constitucional do Tribunal
Constitucional.
190
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e
Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p. 30.
191
Idem, ibidem, p.30.
192
Idem, ibidem, p.41.
193
Idem, ibidem, p.41.
103
Também, a partir da expressão “Poder Público”, entre aqueles que podem
veicular afrontas aos direitos fundamentais do cidadão, estaria o Poder Judiciário
incluído.
Por fim, para fortalecer a posição, o autor diz, a partir de um argumento
histórico, que a regra do artigo 93, nº 1, al. 4ª, foi incluída somente dez anos após a
sentença Luth, leading case do Tribunal sobre a vinculação mediata dos particulares
aos direitos fundamentais.
3.2.1.2.1.4. Comentários parciais
Sobre essa parcela da obra, vale dizer que tanto a Constituição Federal de
1988 (art. 5º, par. 1º), quanto a Lei Fundamental de Bonn, trazem, em seus textos,
dispositivos de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, diferenciando-se,
somente, em razão de a Constituição Federal brasileira não determinar a quem são
direcionados os direitos fundamentais.
Sendo o legislador e o juiz parcelas da figura do Estado, e sendo contra esse
Estado que nascem e se desenvolvem os direitos fundamentais
194
, não se haveria de
excluir o legislador de direito privado da obrigação de exercer suas funções sem
desconhecer das exigências que se lhe impõem, imediatamente, os direitos
fundamentais .
Uma crítica existente sobre a vinculação do Poder Judiciário
195
e a
possibilidade de o cidadão se utilizar da queixa-constitucional quando a norma
retirada da decisão da jurisdição ordinária afrontar direitos fundamentais é a
subversão do papel de Guardião da Constituição do Tribunal Constitucional Federal
para uma corte de super-revisão, a perder sua característica principal de instância de
interpretação decisiva da Lei Fundamental.
194
Claro que não se desconhece a faceta prestacional também convivente com a de defesa dos direitos
fundamentais. Contudo, não é disso que, por ora, se trata.
195
Que, como sabemos, estrutura-se, na Alemanha, a partir de uma jurisdição ordinária e outra
constitucional, leia-se Tribunal Constitucional Federal, as duas autônomas.
104
Isso porque as decisões da jurisdição ordinária, como normas, chegariam a ser
revistas pelo Tribunal Constitucional por suposta violação do direito fundamental do
cidadão ao devido processo, acabando por cumprir o Tribunal Constitucional o papel
de corte revisora
196
.
O argumento não deve prosperar, dado que as decisões judiciais podem, sim,
violar o conteúdo de direitos fundamentais, vez que estão a veicular normas, e, em
não sendo admitida tal saída protetora aos cidadãos, estaríamos a admitir que a
jurisdição ordinária se desvincularia da própria Constituição, olvidando do próprio
dogma da Supremacia da Constituição.
3.2.1.2.1.5. As funções dos direitos fundamentais de “proibição de
intervenção” e “imperativos de tutela”
Esta diferenciação perpassa todo o arrazoado que nos é trazido pelo autor e
demanda, também, certa reflexão.
Isso porque o autor impõe críticas à decisão Luth no sentido de que essas
funções deveriam ter sido levadas em conta em detrimento da utilização feita pelo
Tribunal Constitucional Federal da expressão “eficácia de irradiação” dos direitos
fundamentais
197
, termo este demasiadamente coloquial e enfraquecidamente
científico
198
.
196
BRAVO-FERRER, Miguel Rodríguez Piñeiro Y. El Tribunal Constitucional Español in Tribunales
constitucionales y defensa del orden constitucional. VVAA. Serie Doctrina Jurídica, n. 108. México:
2002, p. 24.
197
Voltaremos a tratar mais adiante, mas, para uma visão mais pormenorizada do Caso Luth, para
aqueles que também desconhecem o idioma alemão, vf. KOMMERS, Donald P. The Constitutional
Jurisprudence of the Federal Republic of Germany. Durham and London: Duke Univ. Press, 1997, pp.
361-369.
198
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e
Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p. 49.
105
3.2.1.2.1.6. Proibições de intervenção e proibição do excesso
A função dos direitos fundamentais como direitos de defesa nos é
compreensível, ainda que simplificadamente, no sentido de que são instrumentos de
defesa do cidadão, em regra, contra atos estatais que violem ou venham a violá-los.
Esses direitos podem sofrer restrições interventivas, mas estas devem estar
limitadas pela idéia da proibição do excesso.
Vale dizer, toda e qualquer intervenção em direitos fundamentais deve
respeitar certos limites para que não ultrapasse a possibilidade de restringi-los,
impondo-se, na verdade, uma violação, que pode se dar quando ultrapassada a idéia
da proibição do excesso.
Estando, algumas vezes, as normas de direito privado, como também as
normas de direito público
199
e as decisões judiciais, a restringir direitos fundamentais,
deve-se eleger a proibição do excesso como uma “bitola” de verificação dos limites
desta intervenção.
Assim, proibição de intervenção e proibição do excesso estão a conviver de
forma perene e interdependente, como modo de proteger o conteúdo dos direitos
fundamentais contra ações (atos) que poderiam violá-los e não só restringi-los.
3.2.1.2.1.7. Uma crítica parcial
Antes de prosseguir, vale dizer que nos parece demasiadamente patente que o
autor consegue verificar, a todo momento, o que são “normas de direito privado” e o
que são “normas de direito público”.
199
CANARIS, Claus-Wilhelm. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina,
2003, p.34.
106
Todavia, essa divisão, mais e mais, a nosso sentir, passa a ser dificultosa na
contemporaneidade, vez que a “publicização do direito privado” é concomitante à
“privatização do direito público”
200
, ou seja, as fronteiras entre um e outro são cada
vez mais tênues, no sentido de que se perde, já há algum tempo, essa garantia do
cidadão, que nos parece de espírito liberal, no sentido de que o princípio de legalidade
e o da autonomia privada já não mais subsistem com tamanha precisão quando
também sociedade e Estado não mais se diferenciam mutuamente como outrora.
Essa discussão perpassa toda a obra sem permitir que façamos, muitas vezes,
uma reflexão pressuposta, qual seja: é sempre possível verificar a separação entre
direito público e privado? Essa divisão pode ser havida somente a partir do
documento jurídico (e.g., o Código Civil) em que se inscreve? Não nos parece
201
.
3.2.1.2.1.8. Imperativos de tutela e proibição da insuficiência
A outra “face da moeda” do que se apontou está em casos em que não se
estaria a tratar de intervenções nos direitos fundamentais, e, sim, de possibilitar que
sua efetiva proteção fosse tutelada pela proibição da insuficiência.
Se o controle da intervenção no conteúdo dos direitos fundamentais deve se
dar pela idéia da proibição do excesso, o controle da proteção aos próprios direitos
200
Sobre questão, entre outros, vf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Civilização do Direito
Constitucional ou Constitucionalização do Direito Civil? A eficácia dos Direitos Fundamentais na
ordem jurídico-civil no contexto do Direito pós-Moderno. In: GRAU, Eros Roberto; FILHO, Willis
Santiago Guerra (coord.). Direito Constitucional: Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São
Paulo: Malheiros, 2001, p. 114.
201
Para que não se diga ser esta idéia tendenciosa ao direito público, e mais especificamente ao direito
constitucional, faço referência a essa dificuldade a partir das palavras de um civilista, cf.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 53: “A própria distinção entre direito privado e público está em crise. Esta
distinção, que já os Romanos tinham dificuldade em definir, se substancia ora na natureza pública e
privada dos interesses. Se, porém, em uma sociedade onde é precisa a distinção entre liberdade do
particular e autoridade do Estado, é possível distinguir a esfera do interesse dos particulares daquela do
interesse público, em uma sociedade como a atual, torna-se difícil individuar um interesse particular
que seja completamente autônomo, independente, isolado do interesse dito público. As dificuldades de
traçar as linhas de fronteira entre direito público e direito privado aumentam, também, por causa da
cada vez mais incisiva presença que assume a elaboração dos interesses coletivos como categoria
intermédia (tome-se, como exemplo, o interesse sindical ou das comunidades)”.
107
fundamentais deve ser verificado a partir da idéia da proibição da proteção
insuficiente, ou seja, deve-se verificar se estaria o Estado a protegê-los de forma
deficiente ou eficiente.
Essas duas fórmulas, a proibição demasiada da intervenção nos direitos
fundamentais (proibição do excesso) e a proteção deficiente aos direitos fundamentais
(proibição da insuficiência), seriam as limitações impostas pelo próprio sistema
jurídico para oferecer certa segurança de que esses direitos fundamentais
continuariam a ocupar posição privilegiada em sua estrutura e de que haveria um
dever do Estado em concretizá-los de forma otimizada, ou da melhor maneira
possível.
Assim, tantos os atos interventivos excessivos quanto os insuficientes, ao lado
das omissões danosas, estariam tutelados pelo sistema jurídico e mereceriam deste um
tratamento de reprovação.
Dessa forma, estariam os dois pólos dos direitos fundamentais protegidos da
ação excessiva e da ação deficiente.
3.2.1.2.1.9. A negativa da eficácia imediata dos direitos fundamentais às
relações jurídicas travadas entre sujeitos privados
Para chegar a negar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas
entre sujeitos privados, o autor se propõe três questões: a) quem são os destinatários
dos direitos fundamentais; b) quais comportamentos estão sujeitos ao controle dos
direitos fundamentais? c) em que funções devem ser utilizados os direitos
fundamentais?
Para responder à primeira questão o autor diz que admitir a eficácia imediata
dos direitos fundamentais seria admitir que “os direitos fundamentais não carecem,
assim, de quaisquer transformações para o sistema de regras do direito privado, antes
108
conduzindo, sem mais, a proibições de intervenção no tráfico jurídico-privado e a
direitos de defesa em face de outros sujeitos de direito privado”
202
.
Isso vedaria “em princípio” a restrição de direitos fundamentais por “negócio
jurídico”, o que criaria o problema de que “amplas partes do direito privado (contrato
e responsabilidade civil)” seriam “guindadas ao patamar do Direito
Constitucional”
203
.
Todavia, o autor faz uma ressalva à negativa de eficácia imediata dos direitos
fundamentais. Dá-se de modo imediato em casos nos quais “os direitos fundamentais
se dirigem imediatamente contra sujeitos de direito privado”
204
(art. 9º, nº 3, 2ª parte,
da Lei Fundamental).
A partir disto, conclui que os “destinatários das normas de direitos
fundamentais são, em princípio, apenas o Estado e os seus órgãos, mas não os sujeitos
de direito privado”
205
.
Outrossim, disso decorreria a resposta à questão sobre se o objeto do controle
a partir dos direitos fundamentais deve se ater às “regulações e atos estatais, isto é,
sobretudo leis e decisões judiciais”
206
, e não atos emanados dos sujeitos privados.
Assim, em que pese, segundo o autor, não produzir efeitos imediatos sobre as
relações privadas, os direitos fundamentais devem ser tutelados pelo e direcionados ao
próprio Estado, via Poder Judiciário e Legislativo.
Isso porque os dois Poderes do Estado teriam o dever de proteger os direitos
fundamentais a partir da verificação da necessidade de se eleger um imperativo de
tutela aos casos em que se decide problemas advindos das restrições a direitos
fundamentais.
Trata-se de um paradoxo!
202
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e
Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p. 53.
203
Idem, ibidem, p. 53-54.
204
Op. cit., p. 55.
205
Op. cit., p. 55.
206
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e
Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p. 55.
109
Isso porque, de um lado, está-se a negar que estejam vinculados aos direitos
fundamentais os particulares em uma relação de direito privado travada com outros
particulares.
Por outro, devem tanto o Poder Legislativo, quanto, e aqui mais ainda, o Poder
Judiciário, já que vinculados imediatamente pelos direitos fundamentais, reconhecê-
los como aplicáveis à relação jurídica travada entre os mesmos particulares acima
referidos, só que, no que toca ao Poder Judiciário, apenas quando a questão
conflituosa se tornar judicial.
Em síntese, não estão os sujeitos privados vinculados aos direitos
fundamentais quando da composição de seus interesses a partir de, por exemplo, um
contrato. Todavia, caso esse contrato seja levado ao conhecimento do Poder
Judiciário, via demanda judicial, caberá a esse mesmo Poder Judiciário conduzir a
relação jurídica travada a partir dos direitos fundamentais dos contratantes, sob os
quais incidiria um imperativo de tutela, ou seja, resolvendo a aplicação otimizada dos
direitos fundamentais dos contratantes.
3.2.1.2.1.10. Crítica parcial
Os resultados alcançados pela argumentação do autor em muito se
assemelham à tese que pretende afastar, da eficácia imediata dos direitos
fundamentais sobre as relações privadas.
Em que pese, segundo o autor, os sujeitos privados não estarem vinculados
imediatamente aos direitos fundamentais, a função de imperativo de tutela tão
decantada na obra impõe, ao final, que o Poder Judiciário, caso surja a dúvida do
desequilíbrio de forças em uma relação contratual, imponha os ditames conteudísticos
dos direitos fundamentais na mesma relação jurídica à qual se negava sua aplicação
inicialmente.
O resultado seria que se reforçaria, mais e mais, a participação do Poder
Judiciário na concretização dos direitos fundamentais, o que não se nega, muito pelo
110
contrário, vez que sabedores somos da necessidade de participar o Poder Judiciário da
realização da Constituição e de seu núcleo intransponível: os direitos fundamentais.
A posição do autor acaba por exigir que toda e qualquer dúvida se imponha ao
Poder Judiciário, sempre, em vez de fazer com que devam, os próprios particulares,
limitar suas ações, reciprocamente, quando a perfilar suas relações jurídicas, a partir
dos mesmos direitos fundamentais que deveriam estar a produzir efeitos por sobre
essas relações jurídicas.
Seria, aproximadamente, dizer que quando da formação do negócio jurídico
não há limitação recíproca dos direitos dos contratantes, vez que não incidem os
direitos fundamentais em uma relação jurídico-privada travada entre particulares,
mas, quando levada ao Poder Judiciário eventual lide surgida, aparecem, como que
em um toque de mágica, os direitos fundamentais, que passam, a partir daí, como um
Toque de Midas, a incidir como limitadores da relação jurídica entre os mesmos
particulares.
Não estariam, a priori, vinculados quando do delineamento do contrato, vez
que particulares não seriam destinatários dos direitos fundamentais, sendo
destinatário, assim, somente o Estado.
Contudo, contestado judicialmente o contrato, faz-se exigível que o Poder
Judiciário resolva o litígio a partir dos próprios direitos fundamentais dos contratantes
envolvidos.
Ainda, para fortalecer seus argumentos, chega o autor a dizer que “a exigência
do bem comum ou do interesse público não desempenha, em regra, qualquer papel
para a disciplina da relação entre sujeitos privados”
207
.
Não é o que nos parece.
A própria idéia de uma tendência expansiva dos direitos fundamentais deve
alcançar, sim, a proteção do hipossuficiente em face dos grandes atores privados
207
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e
Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p. 37.
111
detentores de poder de submeter àquele enfraquecido nas relações jurídicas entre
particulares.
Pergunta-se: isso se sustentaria quando se impusesse, como de fato se impõe,
ao Estado, de perfil social, também os deveres de prestar ao invés de somente se
abster, no tocante aos direitos fundamentais? Isso se aplica quando vivemos um
extremo fortalecimento dos atores privados, quando, e.g., o Estado outorga parcela de
seus serviços tipicamente públicos aos particulares? Quando Estado e sociedade não
se dividem claramente como no ideal do Estado Liberal? Quando direito público e
direito privado mais se aproximam, vide o exemplo do Direito da Concorrência, entre
outros?
O ideal da segurança jurídica dos contratos não pode fazer com que os mais
fragilizados a) sucumbam ao legislador privado, que, ainda que em regra o
representante legitimado democraticamente pelo “povo”, encontra-se, muitas vezes,
tão atento à influência dos grandes grupos econômicos ou outras grandes corporações,
e não somente aos desígnios imperativos das Constituições, ou b) devam aguardar ver
a demanda judicializada para que, assim, o Poder Judiciário venha a reconhecer a
eficácia dos direitos fundamentais, perfilando um imperativo de tutela desses mesmos
direitos fundamentais inaplicáveis quando da formação do contrato, e.g..
Não se trata, aqui, de defender a supressão do direito privado em detrimento
do direito constitucional, como a constitucionalizar toda e qualquer matéria. Trata-se,
sim, de garantir que a força normativa da Constituição não se esvaia segundo os
desígnios do legislador privado, este tão desatento aos desejos das minorias, por
exemplo, e que tenhamos, em vez da hetero-contenção necessária entre sujeitos de
direito privado fortalecida pela vinculação imediata aos direitos fundamentais, em que
os próprios sujeitos atentem para o excesso da limitação dos direitos um do outro, de
recorrermos, ou aguardarmos, sempre, a participação final de proteção dos direitos
fundamentais pelo Poder Judiciário
208
.
208
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
2ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 262: “Parece-nos que o problema da eficácia dos preceitos
constitucionais relativos aos direitos, liberdades e garantias começa aí, mas põe-se sobretudo a partir
daí. A ideia da aplicação mediata foi mal defendida, porque seus partidários não se libertaram do peso
das concepções liberais-individualistas e deixaram-se influenciar pela circunstância de terem sido o
direito civil e o direito penal, mas sua ancianidade, que primeiro regularam as relações privadas e
112
Essa hetero-contenção dos sujeitos privados pode indicar um “significado
educativo”
209
dos direitos fundamentais, no sentido de que, sabedores de que se
encontram vinculados aos direitos fundamentais, impor-se-á uma reflexão maior
quando do acorde de interesses, vez que a parte mais fortalecida, sabedora da
vinculação, não se utilizará, com tamanha intensidade, dos poderes que lhe cabem
decorrentes da superioridade de força perante o sujeito mais enfraquecido.
Trata-se de diminuir a participação do Estado como um “pai”, ou aquele que
decide pelos “filhos”, e fortalecer sua posição de “conselheiro”, no sentido de que, se
houver excessos de uma das partes, aí sim, deverá ser chamado a intervir com rigor.
3.2.1.2.2. A posição de Konrad Hesse
210
O autor começa a obra trabalhando com a perspectiva histórico-evolutiva dos
direitos fundamentais na Alemanha, desde as previsões liberais em que os direitos
fundamentais representavam muito pouco, vez que haveria uma liberdade
demasiadamente ampla ao legislador para construir seus conteúdos.
É a partir do reconhecimento da cláusula do Estado Social e dos seus efeitos
que isso acaba por produzir, no Direito Alemão, que passa a importar,
verdadeiramente, o relacionamento entre o Direito Público e o Direito Privado, vez
que passam a se interpenetrar.
Antes disso, com a liberdade total outorgada ao legislador, não se
reconheceria, por óbvio, nem mesmo a vinculação deste aos direitos fundamentais.
definiram os termos em que se assegurariam os direitos pessoais no âmbito dessas relações. É que a
essência dessa ideia respeita à necessidade de defesa de uma esfera de liberdade dos homens concretos
em face dos poderes públicos, mesmo quando estes pretendem actuar para protecção da liberdade e da
dignidade das pessoas”.
209
MÜNCH, Ingo Von. Drittwirkung de Derechos Fundamentales em Alemania. In, CODERCH, Pablo
Salvador. Asociaciones, derechos fundamentales y autonomia privada. Madrid: Cuadernos Civitas,
1997, p. 43. A expressão é do autor para a crítica que faz a Schwabe, que pode ser repetida para
Canaris.
210
Os apontamentos sobre a posição do autor adiante referido são baseados na seguinte obra: HESSE,
Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado. Tradução e introdução de Ignácio Gutiérrez
Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1995.
113
Seria como que admitir uma espécie de construção dos direitos fundamentais,
e, por conseguinte, da Constituição, a partir do direito privado e do legislador de
Direito Privado
211
.
Como “baluarte da liberdade burguesa”
212
, o direito privado só poderia ser
construído pelo legislador, outro ponto de referência do ideal liberal de sociedade e
Estado.
É a partir da Constituição de Weimar que começam a interpenetrar-se os
direitos público e privado, mas, com a conseqüente apropriação autoritário do Estado,
e do Direito, pelo nacional-socialismo
213
, o papel da Constituição deixou de importar
no campo da efetividade, sendo, por isso, natural dizer que é a Lei Fundamental de
Bonn e a jurisprudência dos direitos fundamentais construída pelo Tribunal
Constitucional Federal que fazem o debate reacender.
A força normativa da Lei Fundamental é propulsora da inserção do direito
constitucional no direito privado, não só pela disposição constitucional da aplicação
imediata dos direitos fundamentas (art. 1.3)
214
, mas, também, pela
“constitucionalização” de parcela do direito privado, como o matrimônio, o tema dos
filhos havidos fora do matrimônio, propriedade, herança, entre outros.
Sobre os filhos havidos fora do matrimônio e a igualdade de direitos entre
homens e mulheres alude o autor à sua eficácia imediata sobre as relações
particulares
215
.
Mais à frente, reflete sobre os direitos fundamentais “como ordem objetiva de
valores”
216
, entendendo que “este sistema de valores deve reger todos os âmbitos do
Direito; a legislação, a administração e a jurisprudência recebem dela diretrizes e
211
HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado. Tradução e introdução de Ignácio
Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1995, p. 35.
212
HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado. Tradução e introdução de Ignácio
Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1995, p. 37.
213
Op. cit., p. 53.
214
Curiosa a utilização da aplicação imediata dos direitos fundamentais pelo autor para dizer que, com
isto, “caducam as anteriores diferenciações entre direitos fundamentais atualmente aplicáveis e simples
princípios programáticos”. HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado. Tradução e
introdução de Ignácio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1995, p. 54.
215
Op. cit., p. 56.
216
Op. cit., p. 57.
114
impulsos”
217
, sendo que os “âmbitos dos direitos fundamentais são decisivos tanto
para a atividade do legislador como para a (atividade) das instâncias aplicadoras do
Direito. Todos eles devem ter em conta tal influência dos direitos fundamentais na
criação, interpretação e aplicação das normas jurídicas. Se não cumprem estas
tarefas, sua decisão infringe os direitos fundamentais e pode ser anulada pelo Tribunal
Constitucional” (grifos nossos)
218
.
Vê-se que o autor admite a importância do fenômeno de interpenetração entre
os direitos fundamentais e o direito privado sem, contudo, deixar de notar que as
normas de direitos fundamentais, por veiculadas a partir de “princípios jurídicos, além
de escassos, muito amplos e freqüentemente indeterminados”, acabam por atribuir
menor segurança jurídica ao direito privado.
O receio do autor é que se submetam os ganhos da construção histórica dos
direitos fundamentais como elementos de atribuição de um espaço de liberdade ao
indivíduo, em um espaço em que nem o Estado nem os demais indivíduos podem se
apropriar, em uma instância de submissão do próprio indivíduo aos interesses dos
demais, reduzindo o papel da liberdade no livre desenvolvimento da personalidade.
Acaba o autor, a nosso ver, em incorrer nos mesmos equívocos em que incorre
Canaris, quais sejam: a) entender que a eficácia imediata dos direitos fundamentais
acaba por reduzir a liberdade individual, e não em entender como protetores dos mais
fragilizados em detrimento dos mais poderosos; b) entender que o Estado, no papel de
legislador ou de juiz, deve sempre participar como intermediário da incidência de
direitos fundamentais entre particulares, não percebendo que se trata de uma visão
que outorga ao Estado o papel de “árbitro” único da proteção dos indivíduos, não
vislumbrando que, antes disso, são os próprios indivíduos que devem participar
ativamente da construção de sua liberdade, muitas vezes, e preferencialmente, sem
qualquer participação do Estado; e c) por decorrência do anterior, somente deve o
Estado intervir quando da impossibilidade de os próprios indivíduos, titulares de
direitos fundamentais, pactuarem, entre si, seus interesses.
217
Op. cit., p. 57.
218
Op. cit., p. 58.
115
No mais, repetimos, essa visão despreza o papel que os direitos fundamentais
devem desempenhar como instrumento de contenção dos mais poderosos e como
protetor dos mais enfraquecidos quando da pactuação entre particulares em situações
jurídicas de desigualdade. Para isso, entendemos por razoável que seja a participação
estatal subsidiária, ou seja, devem-se dar aos próprios particulares os instrumentos de
recíproca contenção (direitos fundamentais), em vez de sempre se exigir a intervenção
estatal (legislador ou judiciário) para proteger ao mais fraco em uma relação jurídica
entre particulares.
3.2.1.3. A jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão
219
(TCF)
As decisões proferidas, na matéria tratada, pelo Tribunal Constitucional
Federal Alemão, demonstram tendência pela vinculação mediata dos particulares aos
direitos fundamentais
220
.
O caso (a) Luth
221
, de 1958, leading case do tema, demonstra a primeira
formulação fixada pelo TCF, sob o principal argumento dos “efeitos de irradiação”
219
A inscrição da jurisprudência do TCF alemão no tópico da vinculação mediata demonstra a posição
sedimentada do tribunal. Todavia, para RIGAUX, trata-se de decisão em que o tribunal abandona a
eficácia mediata (apud UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente
a particulares: Análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletín oficial del
Estado – Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 1997, p. 311, nota 185). No citado julgado,
está a tratar o tribunal de indenização por danos imateriais em prol da ex-esposa do Cha do Irã contra o
Die Welt e um jornalista independente. Isso porque a Suprema Corte federal entendeu que haveria a
possibilidade de indenizá-la por danos imateriais, em que pese o Código Civil alemão proibir
indenizações pecuniárias em razão de danos imateriais. Em que pese o Tribunal Constitucional decidir
que os juízes têm um papel de atualizar o Direito, mesmo que não escrito, não admite o tribunal a
vinculação imediata dos particulares aos direitos fundamentais.
220
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares:
Análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletín oficial del Estado – Centro
de Estudos Políticos y Constitucionales, 1997, p. 312: “El TCF rechaza, pues, las soluciones
‘extremas’. Admite que los derechos fundamentales no operan sólo frente a los poderes públicos, pero
descarta la vigencia inmediata e incondicionada de éstos en las relaciones privadas. Se amplia el área
original de incidencia los derechos fundamentales, pero esa extensión se efectua en su dimensión de
valores, que el juez há de interiorizar, y no en sua calidad de derechos subjetivos”. E mais adiante
afirma que “los derechos fundamentales informarían la práctica judicial como simples parâmetros
interpretativos, a los que se açude, sobre todo, cuando existen lagunas que integrar o la ley está
redactada de forma imprecisa”.
221
Cf. KOMMERS, Donald P. The constitucional jurisprudence of the Federal Republic of Germany.
2ª ed. Durham and London: Duke University Press, 1997, p. 363 e ss.
116
dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares, tipificando-os, pela
primeira vez, como uma ordem objetiva de valores
222
.
Trata-se de caso em que um famoso produtor de filmes anti-semitas durante o
regime nazista, Veit Harlan, mesmo após o seu término, continuava a ser prestigiado
quando do lançamento de um novo filme seu, Immortal Lover. Erich Luth, produtor
conhecido de Hamburgo e ativista da causa da aproximação entre judeus e cristãos,
pregou, em encontro entre produtores e distribuidores de filmes, contra Harlan, um
boicote ao seu novo filme. O Tribunal Constitucional de Hamburgo, após provocação
de Harlan, expediu uma ordem para que Luth cessasse sua ação de buscar o boicote
do filme, restringindo sua liberdade de expressão. Mediante uma queixa-
constitucional (Verfassungbuschverden), obteve Luth a liberação de seu boicote pelo
TCF sob os argumentos abaixo transcritos, que são uma síntese do julgado:
“A prevalente função dos direitos fundamentais é salvaguardar as
liberdades individuais contra interferências de autoridade pública.
São direitos de defesa do indivíduo contra o Estado. Esse (objetivo)
decorre do desenvolvimento histórico do conceito de direitos
fundamentais e dos históricos desenvolvimentos que levaram-nos às
constituições de vários países. Isso corresponde ao significado dos
direitos fundamentais na Lei Fundamental e é provável pela
enumeração de direitos fundamentais da primeira seção da
Constituição, apoiando a primazia do ser humano e sua dignidade
sobre o poder do Estado. É por isso que o legislador admitiu o
remédio extraordinário (...) da queixa-constitucional ser trazido (à
Corte) somente contra atos do poder público.”
“É também verdade, entretanto, que a Lei Fundamental não é um
documento de valor neutro. A seção de direitos fundamentais
estabelece uma ordem objetiva de valores e essa ordem reforça
pesadamente o poder efetivo dos direitos fundamentais. Esse
sistema de valores, que se centra na dignidade da pessoa humana se
desenvolvendo, livremente, em uma comunidade social, deve ser
visto como uma decisão constitucional fundamental que afeta todas
as esferas do direito (público e privado. Serve como um critério para
medir e acessar todas as ações nas áreas de legislação,
administração pública e atividade judicante. Isso torna claro que os
direitos fundamentais também influenciam (o desenvolvimento do)
direito privado. Todas as provisões do direito privado devem ser
222
ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no
Estado Democrático de Direito, Revista de Direito Administrativo, n. 217. Rio de Janeiro: FGV,
jul./set. 1999, p. 70: “(...) umas das sentenças mais significativas da jurisdição constitucional alemã, de
colocar os trilhos básicos para a sua jurisprudência da ordem de valores que conduz a duas
conseqüências fundamentais para os direitos fundamentais: primeiro, à irradiação dos direitos
fundamentais sobre o sistema jurídico total e, segundo, à onipresença da ponderação” (grifos nossos).
117
compatíveis com o sistema de valores, e toda essas provisões devem
ser interpretadas com o seu espírito.”
“O conteúdo jurídico dos direitos fundamentais como normas
objetivas é desenvolvido no direito privado por meio das provisões
legais diretamente aplicáveis a essa área do Direito.”
“Ao trazer essa influência ao caso, as cortes devem invocar as
cláusulas gerais (abertas, do direito privado) que, como o artigo 826
do Código Civil, referem-se a standards alheios ao direito privado.
‘Bons costumes’ é um desses standards (o julgado fala, no mesmo
parágrafo, anteriormente, em ordem pública). Para dizer o que se é
requerido pelas normas sociais como essas, deve-se considerar,
primeiramente, o leque de valores que uma nação desenvolveu em
certos pontos de sua história cultural e intelectual e aproximá-lo da
constituição. É por isso que as cláusulas gerais são ditas como sendo
os pontos onde os direitos fundamentais entram no (domínio do)
direito privado.”
Outro caso importante é o do Boicote ao semanário Blinkfuer (b). Trata-se,
como em Luth, de boicote à publicação do informativo semanal Blinkfuer
223
, de
ideologia comunista, pela companhia jornalística de Axel Springer, que remeteu
circular aos donos de quiosques de venda de jornais para que não mais vendessem o
Blinkfuer, sob pena de não mais venderem o jornal de Springer. A diferença com Luth
reside na demonstração de poder econômico, e não unicamente ideológico, para
restringir as vendas de publicação semanal. Com fundamento no artigo 823 do Código
Civil Alemão, o Blinkfuer conseguiu ordem de obstar o boicote por parte de Springer
das cortes inferiores, mas, na Suprema Corte Federal de Justiça, viu suas pretensões
afrontadas, sob o argumento de que o boicote de Springer respeitava o artigo 5º da Lei
Fundamental quanto ao conteúdo jurídico da liberdade de expressão. Insatisfeito, o
Blinkfuer apelou ao Tribunal Constitucional Federal, mediante queixa-constitucional
(Verfassungbuschwerden) para obstar o boicote sob o fundamento de que se estaria a
violar sua liberdade de imprensa.
O TCF, fundamenta sua decisão no argumento de que “a ordem objetiva de
valores estabelecida na Lei Fundamental, na seção dos direitos fundamentais,
influencia a interpretação dessas regras [do Código Civil] no limite em que são
capazes de interpretação sob as luzes das normas constitucionais [o autor refere-se a
223
25 BVerfGE 256.
118
citação do caso Luth]. Com a ajuda da seção 823 (I) do Código Civil, o direito
constitucional é importante para estabelecer a ilegalidade do dano”.
224
Mais à frente alude que “o grande poder econômico do réu e a decisão de
pedir a suspensão entregas (do Blinkfuer) foram suficientes para reduzir diretamente a
possibilidade das pessoas exercerem seu direito de escolha”
225
. “O direito
fundamental à liberdade de expressão não protegerá um pedido de boicote quando não
baseado somente em argumentos intelectuais”
226
.
Verifica-se, no julgado, que o tribunal reconhece a violação ao direito de
imprensa do Blinkfuer, mas a decisão exige, como em Luth, que seja o direito privado
reinterpretado a partir do próprio direito privado, a partir da norma que se extrai do
artigo 823 (I) do Código Civil.
O TCF, assim, mantém seu posicionamento a respeito da vinculação mediata
dos particulares aos direitos fundamentais.
3.2.1.3.1. Breve análise da jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol e uma
reflexão
Não pretendemos, neste momento, desenvolver uma ampla análise da
jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol, vez que suas posições se
assemelham, em muito, às decisões do Tribunal Constitucional alemão.
Todavia, em que pese negar o acesso dos cidadãos, via recurso de amparo, que
têm direito fundamental seu lesado diretamente por obra de outro particular e, como
no alemão, exigir uma intervenção do Estado, na figura do Poder Judiciário, para que
224
KOMMERS, Donald P. The constitucional jurisprudence of the Federal Republic of Germany. 2ª
ed. Durham and London: Duke University Press, 1997, p. 372-373.
225
Idem, ibidem, p. 373.
226
KOMMERS, Donald P. The constitucional jurisprudence of the Federal Republic of Germany. 2ª
ed. Durham and London: Duke University Press, 1997, p. 373.
119
admita o acesso do cidadão à sua jurisdição, admite que haja uma lesão a direito
fundamental derivada de ato de particular
227
.
Apesar de não admitir seja fundamento de recurso de amparo a violação a
partir de ato de outro particular, ao menos admite que o particular seja violador de
direitos fundamentais, o que faz com passemos a uma reflexão importante.
Essa reflexão deve ser enfrentada a partir da questão de saber se se trata da
adesão à teoria da vinculação mediata de perspectiva material da questão, ou, dada a
separação entre jurisdição constitucional e ordinária nos dois países, de perspectiva
procedimental.
A perspectiva material a que nos referimos seria sintetizada na posição de
efetiva negativa da vinculação imediata, ou seja, na posição de que o direito privado
estaria apto a resolver os problemas derivados de relações jurídicas travadas entre
particulares, sem a necessidade de se recorrer, diretamente, aos direitos fundamentais
como fundamento das decisões.
De outra banda, se entendermos que a perspectiva é procedimental, ou seja,
que a adesão à teoria da vinculação mediata deriva da verificação de que a estrutura
do Poder Judiciário, com uma jurisdição ordinária independente da jurisdição
constitucional do Tribunal Constitucional, exige essa opção, em razão de somente o
tribunal constitucional aferir a constitucionalidade de atos do poder público, e as
relações entre particulares serem do monopólio da jurisdição ordinária, chegaremos à
conclusão de que pouco importa a adesão à tese da vinculação mediata ou imediata, já
que os resultados serão, sempre, os mesmos.
Se a última prevalecer, comprova-se o que afirmaremos mais adiante.
227
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares:
Análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletín oficial del Estado – Centro
de Estudos Políticos y Constitucionales, 1997, p. 166-167.
120
3.2.1.4. A vinculação imediata dos particulares aos direitos fundamentais
A terceira importante corrente em termos de vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais é a que vem recebendo, ultimamente, o maior número de
adesões, como veremos
228
.
Trata-se da admissão de que os particulares, quando a travar relação jurídica
com outros particulares, devem, sim, entender que os direitos fundamentais estão a
vinculá-los juridicamente
229
.
É dizer, independe de uma mediação a ser executada pelo legislador, mediante
lei, que contemple expressões abertas como boa-fé, função social etc., ou pelo juiz,
mediante o atendimento de um dever de proteção do mais enfraquecido naquela
relação jurídica, para que, finalmente, chegue-se à conclusão de que os direitos
fundamentais estão a vincular aos particulares.
Para os adeptos desta corrente toda e qualquer relação jurídica travada entre
particulares se encontra vinculada aos direitos fundamentais, sendo esses direitos
protetores imediatos não só dos particulares em posição de inferioridade, mas,
também, de todas as relações jurídicas travadas entre particulares, em razão de não
mais se admitir que a relação inter privatos somente a estes interessa, já que
transcende aos envolvidos diretamente na relação jurídica, sendo um problema da
sociedade a aplicação do Direito.
Assim, a vinculação da relação jurídica entre particulares aos direitos
fundamentais independe da participação do legislador ordinário como intermediador
entre a Constituição e seus direitos fundamentais e o negócio jurídico a ser celebrado.
228
Posição adotada por Bilbao Ubillos, Daniel Sarmento, Ingo Sarlet, entre outros. Também
STEINMETZ. Wilson. Principio da Autonomia Privada e Atos de Autonomia Privada. In: SILVA,
Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 25.
229
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares:
Análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletín oficial del Estado – Centro
de Estudos Políticos y Constitucionales, 1997, p. 325: “(...) defender la tesis de la eficacia inmediata
frente a terceros es afirmar la virtualidad directa, sin mediaciones concretizadoras, de los derechos
fundamentales, em tanto que derechos subjetivos reforzados por la garantía constitucional, frente a las
violaciones procedentes de sujetos privados”.
121
No momento mesmo da celebração do acordo, as partes devem respeitar o
conteúdo jurídico dos direitos fundamentais e se submeter a eles, sob a razão de que
também os particulares, ou especialmente estes, podem afrontar direitos
fundamentais, dada a posição de supremacia na qual se mantêm perante a parte
desprivilegiada ou a violação ao Direito que podem produzir, independentemente da
posição privilegiada que ostentam.
Funcionariam os direitos fundamentais como os “últimos nós de uma rede”
que tem por objetivo proteger o particular de abusos provindos de terceiros
claramente mais poderosos, independentemente de esses terceiros serem sujeitos
privados ou autoridades públicas
230
, e, também, como proteção de violações de
direitos fundamentais a partir de relações jurídicas travadas entre particulares.
Independe, para que se reconheça essa vinculação, da atuação do Poder
Judiciário, para que somente após a jurisdicização da demanda se entendam
vinculados os particulares aos direitos fundamentais, vez que o dever de aplicação
daqueles direitos pelo juiz fariam com que a relação jurídica antes não tutelada pelos
direitos fundamentais passe, como em um passe de mágica, a sê-lo.
Isso porque quando da celebração do negócio jurídico estão protegidos e
limitados os particulares pelos direitos fundamentais.
A construção parece, à primeira vista, bastante alentadora.
Todavia, por vezes não deixa de ter um conteúdo bastante simplificado e
incapaz de responder a algumas questões como: em que medida esses direitos
230
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares:
Análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletín oficial del Estado – Centro
de Estudos Políticos y Constitucionales, 1997, p. 328: “Puede decirse, con caráter general, que el
reconocimiento de la eficacia inmediata entre particulares es uma especie de cláusula de cierre del
sistema de protección de los derechos fundamentales. Lombardi llama la atención sobre la función de
‘clausura’ del sistema de libertades que cumple la aplicación inmediata de las garantías
constitucionales de libertad. Esta tutela derivada directamente del texto constitucional colmaría las
lagunas de la regulación legal, cubriendo supuestos no contemplados especificamente.
Y supliría también las limitaciones de los instrumentos de control proprios del Derecho Privado. Frente
a quienes sostienen que tales técnicas son suficientes para garantizar por si solas el respeto por los
particulares de los espacios de libertad tutelados constitucionalmente, la experiencia nos indica que los
dispositivos genuinamente privados ofrecen uma proteccíon ‘genérica’ y ‘fragmentaria’, por lo que se
hace necesario em no pocos casos acudir directamente a las garantias constitucionales”.
122
vinculam aos particulares? Como se verifica esta vinculação, dado que os direitos
fundamentais, em regra, são veiculados a partir de princípios jurídicos?
É claro que admitir a vinculação imediata dos particulares aos direitos
fundamentais não deixa de ter um conteúdo protetivo, principalmente quanto aos mais
enfraquecidos na relação jurídica
231
.
Contudo, importa refletir sobre a intensidade com que esses direitos
fundamentais vinculam aos particulares.
3.2.1.4.1. Do Fundamento Constitucional
As constituições do pós-guerra, em grande parte sucessoras de documentos
constitucionais de baixa eficácia, viram, implementados em seus textos, dispositivos
que impõem a aplicação imediata dos direitos fundamentais.
Algumas dessas Constituições dizem contra quem devem ser aplicados
enquanto outras, como a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
somente afirmam a aplicabilidade imediata
232
, sem dizer a quem são endereçados os
mandamentos desses direitos.
231
GRAU, María Venegas. Derechos Fundamentales y Derecho Privado: Los derechos fundamentales
en las relaciones entre particulares y el principio de autonomia privada. Madrid: Marcial Pons, 2004,
p. 197: “Los defensores de la Drittwirkung directa denuncian la igualdad meramente ficticia que en
estos casos rige la relación entre las partes, y que se funda em la ideia de que el consentimiento, fiel
reflejo de la voluntad de las partes, basta para impedir que éstas limiten de forma inaceptable su
libertad. Se presume que la libertad queda garantizada em la medida en que las partes han aceptado
esas limitaciones en el ejercicio de su voluntad autónoma. Sin embargo, replican estos autores, la
libertad contractual así concebida es una libertad meramente formal e ignora la realidad social, que
generalmente impone a aquellos que se encuentran em una situación de inferioridad ‘una dependencia
que contradice las ideias fundamentales de la Constitución” (grifos nossos).
232
São os exemplos das Constituições: a) brasileira de 1988 (art. 5º, par. 1º); Portuguesa de 1976 (art.
18, 1º); c) espanhola de 1978 (art. 53.1). Sobre a vinculação dos particulares, não há referência na Lei
Fundamental Alemã de 1949 (CF, art. 1.3.), como também na brasileira. Há referência expressa na
Constituição suíça (art. 35) e na portuguesa, mas, a nosso ver, de forma diferente, vez que a suíça
confere poder ao agente público para, se possível, verificar a vinculação, enquanto a portuguesa diz que
são “diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. A nosso ver, a última faz
uma opção clara pela vinculação direta. Já a primeira diz que “os direitos fundamentais devem ser
respeitados em toda a Ordem Jurídica” (35.1) e que “as autoridades cuidam para que os direitos
fundamentais, desde que aplicáveis, sejam eficazes também entre pessoas privadas” (35.3). A previsão
123
A estratégia tem por função superar a mera ineficácia das normas de direitos
fundamentais, para alguns sua mera programaticidade, para entender que, a partir do
momento em que o texto constitucional produz efeitos jurídicos, também os direitos
fundamentais estariam aptos a produzir tais efeitos por sobre todo o sistema jurídico.
Desloca-se o monopólio da conformação dos direitos fundamentais, assim, da
seara do legislador, que deveria regulamentar os temas não exauridos pelo poder
constituinte, para entender que os intérpretes passam, também, a concretizar tais
direitos fundamentais, via ato de criação que se admite na atividade de interpretação.
É dizer, como medida para fortalecer a eficácia das normas constitucionais,
entende-se que estas se aplicam imediatamente.
Essa estratégia é demasiadamente importante na medida em que não se
entende mais possível que o legislador se assenhore da conformação das
Constituições, como a entender que estes, sim, são também seus guardiães, para
entender que as constituições, elas mesmas, estão aptas a produzir efeitos jurídicos
independentemente, algumas vezes, da atuação do legislador.
Se se entendesse como sendo ainda monopólio do legislador a conformação da
Constituição e de seus direitos, decorreria de sua inércia a ineficácia do texto
constitucional, como que a subverter o dogma da supremacia da Constituição,
condicionando-o ao que o legislador diz ser, mediante lei, o conteúdo das normas
constitucionais.
Os dispositivos que veiculam a imediata aplicabilidade dos direitos
fundamentais servem para este fim.
Pergunta-se: a imediata aplicabilidade se aplica às relações jurídicas travadas
entre particulares?
suíça, a nosso ver, aponta três características interessantes: (a) são imediatamente vinculados os
particulares aos direitos fundamentais, cf. 35.1; (b) há um dever de proteção estatal aos direitos
fundamentais nas relações jurídicas entre particulares (35.3); (c) nem todos os direitos fundamentais
vinculam aos particulares. Com isso, a nosso ver, verifica-se a possibilidade de convivência entre as
diferentes correntes da vinculação imediata (35.1) e da mediata, que exige uma intervenção estatal
(35.3).
124
A resposta só pode ser afirmativa sem que, com isso, resolvamos um problema
maior mais adiante enfrentado, que é dizer com que intensidade isso ocorre
233
-
234
.
Negar a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, primeiro contra o
Estado e, após, em face dos particulares, dependeria de uma argumentação
severamente consistente, vez que a dúvida impõe o entendimento de que, quando a
Constituição diz serem imediatamente aplicáveis, quer dizer com isso que também
contra os particulares isso ocorre, pois, se assim não fosse, deveria estipulada uma
exceção.
Isso porque entre as regras da argumentação jurídica se situa aquela que impõe
maior ônus argumentativo àquele que se opõe a um texto que comporta clareza
exemplar
235
.
A nosso ver, nada impede que alguns entendam que não se aplicam
imediatamente os direitos fundamentais às relações entre particulares, mas, para isso,
exige-se uma argumentação forte, concreta, a qual não verificamos em nenhum
daqueles defensores da vinculação mediata cujas posições foram anteriormente
tratadas.
É importante notar que raramente existe previsão expressa de vinculação
imediata dos particulares aos direitos fundamentais, exceção feita, e.g, à Constituição
Portuguesa que em seu artigo 18º, 1, diz que “os preceitos constitucionais respeitantes
aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as
entidades públicas e privadas”.
233
Essa a posição do Ministro Gilmar Mendes no voto condutor proferido no RE 201819/RJ, em que
afirma “Em verdade, até mesmo disposições expressas, como aquela constante do art. 18, n. 1, da
Constituição de Portugal, que determina sejam os direitos fundamentais aplicados às entidades
privadas, ou do Projeto da Comissão Especial para revisão total da Constituição suíça (art. 25) –
Legislação e Jurisdição devem zelar pela aplicação dos direitos individuais às relações privadas –
Gesetzgebung und Rechtsprechung sorgen dafür, dass die Grundrechte sinngeimäss auch unter
Privaten wirksam werden [atualmente já incorporado à Constituição suíça, desde 2000, no art. 35 (3),
com a seguinte redação: ‘Die Behörden sorgen dafür, dass die Grundrechte, soweit sie sich dazu
eignen, auch unter Privaten wirksam werden.’], não parecem aptas para resolução do problema” (grifos
do original). Sobre a jurisprudência do STF, voltaremos mais adiante.
234
É também a posição de UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales
frente a particulares: Análisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletín oficial
del Estado – Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 1997, p. 849.
235
ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito –- teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy,
2003.
125
Todavia, ao interpretar direitos fundamentais, deve-se buscar otimizar sua
eficácia, ou seja, é importante que o intérprete entenda como necessária a ampliação
do seu campo de incidência como medida de proteção da própria convivência em
sociedade, ao entender que os direitos fundamentais são o instrumento de proteção
dos mais fragilizados socialmente perante as forças sociais mais fortalecidas.
Por isso entendemos que devem estar vinculados tamm os particulares aos
direitos fundamentais.
3.2.1.4.1.1. A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
Em que pese o tema já haver sido versado, de forma implícita, anteriormente,
somente há manifestação expressa sobre o tema em um único julgado, no RE
201819/RJ, julgado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em que figurou
como relator o Ministro Gilmar Mendes.
Isso quer dizer que não há manifestação do plenário do Supremo Tribunal
Federal sobre o tema.
Vale separar as posições dos Ministros em vencidos (Ellen Gracie e Carlos
Velloso) e vencedores (Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa e Celso de Mello).
A análise se faz parcial em razão de conhecermos, unicamente, o voto
condutor do Min. Gilmar Mendes, ao qual nos referiremos mais adiante, vez que os
demais votos não estão disponíveis para consulta
236
.
Trata-se de caso derivado da expulsão de associado da sociedade civil União
Brasileira de Compositores – UBC, sem que lhe fosse garantido oportunidade de
defesa, tudo em consonância com o Estatuto da associação, que admitia em seu artigo
16 que “a diretoria nomeará comissão de inquérito composta de três Sócios, a fim de
236
O voto do Min. Gilmar Mendes foi publicado no Informativo 405 do Supremo Tribunal Federal.
126
apurar indícios, atos ou fatos que tornem necessária a aplicação de penalidades aos
Sócios que contrariem os deveres prescritos no Capítulo IV destes Estatutos”.
A controvérsia se sustenta em saber se os direitos ao devido processo legal, ao
contraditório e à ampla defesa (art. 5°, LIV e LV, da CF) são aplicáveis ao caso, ou se
devem prevalecer as disposições do Estatuto Social, vez que se trata de pessoa
jurídica de direito privado, a qual deveria ter seus atos regulador unicamente pelo
direito privado.
Sustenta o relator
237
, a nosso ver corretamente, que seria de difícil justificação
jurídica admitir o direito privado como o único campo do Direito a tutelar problemas
como o referido, poderiam os particulares agir de forma a que estivessem livres de
alguma ingerência estatal, sendo que reconhece o relator que mesmo no direito civil
há uma série de “conflitos de interesses com repercussão nos direitos fundamentais”.
Mais à frente verifica-se que se discute o problema do direito à igualdade no
direito privado e sua relação com o direito fundamental à liberdade, mas o relator
afirma, com clareza, que nem mesmo nesse campo deve prevalecer o princípio do in
dubio pro libertate, ou seja, não há qualquer precedência condicionada de direitos
fundamentais, mesmo nas relações entre particulares, com o que também
concordamos.
Também se refere o relator, quando trata das particularidades do caso, que a
exclusão do associado lhe traria grande prejuízo econômico, vez que a recorrida é
quem lhe repassa valores de suas composições, ou seja, sua exclusão lhe traria danos
de ordem econômica.
Pondera que a recorrida (União Brasileira de Compositores – UBC) integra a
estrutura do ECAD, e é incontroverso que, no caso, ao restringir as possibilidades de
defesa do recorrido, “ela assume posição privilegiada para determinar,
237
“Um entendimento segundo o qual os direitos fundamentais atuam de forma unilateral na relação
entre o cidadão e o Estado acaba por legitimar a idéia de que haveria para o cidadão sempre um espaço
livre de qualquer ingerência estatal.
A adoção dessa orientação suscitaria problemas de difícil solução
tanto no plano teórico, como no plano prático. O próprio campo do Direito Civil está prenhe de
conflitos de interesses com repercussão no âmbito dos direitos fundamentais. O benefício concedido a
um cidadão configura, não raras vezes, a imposição de restrição a outrem”.
127
preponderantemente, a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seu
associado”.
Reconhece-se a posição de superioridade da recorrida ante o recorrente, vez
que não há que se falar no direito de se associar ou deixar associação
238
para impor
tamanho ônus ao recorrente, que inclusive limita demasiadamente “sua liberdade de
exercício profissional”.
E conclui, perfeitamente, dizendo que “as penalidades impostas pela
recorrente ao recorrido extrapolam, em muito, a liberdade do direito de associação e,
sobretudo, o de defesa. Conclusivamente, é imperiosa a observância das garantias
constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5°,
LIV e LV, da CF)”.
Todavia, ao final, afirma o relator: “afigura-se-me decisivo no caso em apreço,
tal como destacado, a singular situação da entidade associativa, integrante do sistema
ECAD, que, como se viu na ADI n° 2.054-DF, exerce uma atividade essencial na
cobrança de direitos autorais, que poderia até configurar um serviço público por
delegação legislativa”.
E termina por concluir, acerca desse pormenor, que “esse caráter público ou
geral da atividade parece decisivo aqui para legitimar a aplicação direta dos direitos
fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla
defesa (art. 5°, LIV e LV, da CF) ao processo de exclusão de sócio de entidade. Em
outras palavras, trata-se de entidade que se caracteriza por integrar aquilo que
poderíamos denominar como espaço público ainda que não-estatal”.
Acreditamos que esse último ponto merece uma reflexão maior.
238
“É certo que a associação tem autonomia para gerir a sua vida e a sua organização. É certo, ainda,
que, no direito de se associar, está incluída a faculdade de escolher com quem se associar, o que
implica poder de exclusão. O direito de associação, entretanto, não é absoluto e comporta restrições,
orientadas para o prestígio de outros direitos também fundamentais. A legitimidade dessas
interferências dependerá da ponderação a ser estabelecida entre os interesses constitucionais
confrontantes. A apreciação do fundamento dessas interferências, ainda, não pode prescindir de
variantes diversas, como o propósito que anima a existência da sociedade. Na jurisprudência da
Suprema Corte americana, há precedente distinguindo as sociedades voltadas para expressar um ponto
de vista – religioso ou ideológico – e outras, de cunho comercial, nonexpressive. Naquelas, a
interferência de outros interesses sobre a sua estrutura e gestão teria admissibilidade consideravelmente
mais restrita”.
128
Isso porque fica uma dúvida sobre se a decisão foi tomada unicamente em
razão de status da recorrida (“espaço público ainda que não estatal”) e, assim, se a
vinculação se daria pela proximidade da recorrida com o Estado, ou se se trata de
meio de auto-contenção do relator em não se adiantar sobre matéria que poderia a vir
julgar, caso suscitada questão da vinculação imediata dos particulares sem que haja
essa proximidade com o Estado.
Sobre a segunda, não podemos dizer mais do que nos colocarmos em dúvida.
A primeira, merece, sim, algumas reflexões, vez que acreditamos independer
de proximidade com o Estado para que se verifique a vinculação imediata dos
particulares aos direitos fundamentais.
Esses direitos são parte da Constituição e devem, com sua supremacia,
produzir efeitos em todo o Direito, e não unicamente nas relações particular – Estado,
ou nas relações particular – particular-quase-Estado.
Parece-nos que não se perfaz suficiente a afirmação referida sobre a
proximidade com o Estado.
Há outros julgados do STF que tangenciam a matéria sem se referir à questão
específica da vinculação dos particulares e as correntes de vinculação.
No RE n° 158.215-RS
239
, decidiu a 2ª Turma do STF questão parecida, em que
havia sido expulso membro de cooperativa de forma sumária sem que se respeitasse,
ao menos, o próprio estatuto da cooperativa. A diferença entre os julgados é que,
239
“DEFESA – DEVIDO PROCESSO LEGAL – INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS
CONSTITUCIONAIS – EXAME – LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito
constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a
insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o
conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal
Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada,
com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo,
partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois
princípios básicos em um Estado Democrático de Direito – o da legalidade e do devido processo legal,
com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais.
COOPERATIVA – EXCLUSÃO DE ASSOCIADO – CARÁTER PUNITIVO – DEVIDO
PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos
estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa.
Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair
adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa” (RE n°
158.215-RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 07.06.1996).
129
nesse caso, havia previsão estatutária para que a expulsão se desse a partir de um
processo em que se respeitasse o devido processo, o contraditório e a ampla defesa
(art. 5º, LIV e LV, da CF), mas foi desrespeitado em razão de haverem os expulsos
enfrentado a direção a ter a coragem de expulsá-los.
Merece transcrição trecho em que o Min. Marco Aurélio afirma que “a
exaltação de ânimos não é de molde a afastar a incidência do preceito constitucional
assegurador da plenitude da defesa nos processos em geral. Mais do que nunca, diante
do clima reinante, incumbia à Cooperativa, uma vez instaurado o processo, dar aos
acusados a oportunidade de defenderem-se e não excluí-los sumariamente do quadro
de associados”.
Mais à frente, afirma o relator que “uma coisa é a viabilização da defesa, e o
silêncio da parte interessada, algo diverso é o atropelo às normas próprias à espécie
julgando-se o caso sem a abertura de prazo para produção de defesa e feitura da prova
(...). Fulmino o ato da Assembléia da recorrida que implicou a exclusão dos
recorrentes do respectivo quadro social, reintegrando-os, assim, com os consectários
pertinentes e que estão previstos no estatuto da recorrida”.
Não se trata, assim, a nosso ver, de reconhecer vinculação imediata, mas, sim,
de aplicar o próprio estatuto, ou seja, não verificamos adesão à tese da aplicabilidade
imediata
240
.
O STF se manifesta pela tese da vinculação imediata no RE n° 161.243-DF
241
,
em que trabalhador brasileiro que desempenhou seus serviços durante trinta e cinco
240
Em posição contrária, admitindo expressar, o julgado, a tese da vinculação imediata: Min. Gilmar
Mendes, no RE 201.819/RJ, ao se referir ao julgado em seu voto-vista como a adotar a tese da
vinculação direta. Também BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Associações, Expulsão de Sócios e
Direitos Fundamentais, Direito Público v. 1, nº 2 (out./dez. 2003). Porto Alegre: Síntese; Brasília:
Instituto Brasiliense de Direito Público, 2003, p. 172, e SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e
Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 293.
241
“CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR
BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL
DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR
BRASILEIRO. CF, 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I – Ao recorrente, por não ser
francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do
Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao
empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: CF, 1967, art. 153, § 1º; CF,
1988, art. 5º, caput). II – A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou
extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional.
Precedente do STF: Ag 110.846 (AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III – Fatores que autorizariam
130
anos, pretende assumir direitos que lhe foram negados pelos Estatutos da Empresa Air
France, em decorrência de tais direitos serem unicamente titularizados por
trabalhadores com cidadania francesa.
O Min. Carlos Velloso, em seu voto, afirma que “deixou-se de aplicar, em
relação ao empregado, ora recorrente, o estatuto da empregadora, que concede
vantagens aos empregados (franceses), ao argumento puro e simples de que ele não
seria aplicável porque o empregado não era de nacionalidade francesa, mas brasileira.
Não se considerou, todavia, que o serviço era prestado no Brasil, sujeita a empresa às
leis brasileiras”.
Mais à frente, sobre a coincidência de atividades desenvolvidas, afirma que
“os empregador franceses não desempenhavam atividades típicas frente aos
brasileiros”.
No seu voto, o Ministro Maurício Corrêa diz que a empresa, ao receber
permissão para atuar no Brasil, deve se submeter às leis brasileiras. Todavia, não há
manifestação expressa sobre a questão de desempenhar serviço público por permissão
e aplicabilidade de direitos fundamentais.
Essas são, a nosso ver, decisões que tratam, de forma diferente, do tema
referido. Parece-nos que somente na primeira e na última há referência a uma
vinculação imediata dos particulares aos direitos fundamentais.
3.2.1.4.2. Sujeitos e destinatários de direitos fundamentais
A conhecida distinção entre sujeitos e destinatários de direitos fundamentais,
sendo admitida a vinculação imediata dos direitos fundamentais às relações jurídicas
travadas entre particulares, recebe um fluxo de renovação que merece ser brevemente
desenvolvido.
a desigualização não ocorrentes no caso. IV – RE conhecido e provido” (RE n° 161.243-DF, Rel. Min.
Carlos Velloso, DJ de 19.12.1997)
131
Tradicionalmente, a relação entre sujeito (pessoas físicas e jurídicas) e
destinatários de direitos fundamentais (Estado) não provoca maiores discussões, vez
que cada qual detém uma posição jurídica distinta, com contornos jurídicos próprios.
Destarte, os sujeitos de direitos fundamentais detêm certas posições jurídicas
para a proteção contra os destinatários desses direitos.
No caso de se admitir a vinculação imediata dos particulares aos direitos
fundamentais, esses particulares continuam a ser sujeitos de direitos fundamentais
sem que, contudo, deixem de ser, ao mesmo tempo, destinatários de direitos
fundamentais.
Ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais revelam um conteúdo de
proteção dos sujeitos de direitos, esses sujeitos se limitam, reciprocamente, a partir da
idéia de que também os direitos fundamentais lhes limitam as ações, como a contê-los
quando intencionados a submeter outro particular aos seus interesses de forma
desproporcional.
São, ao mesmo tempo, os direitos fundamentais protetores e limitadores dos
particulares.
3.2.1.4.3. Das funções que desempenham os direitos fundamentais nas relações entre
particulares
Entendendo os direitos fundamentais como protetores e limitadores das ações
ilícitas dos particulares quando a travar relação jurídica entre si, vale refletir sobre as
funções que desempenham em tais casos.
Vimos anteriormente que os direitos fundamentais desempenham funções
distintas, como direitos de defesa contra o Estado e direito à prestação por parte do
Estado, prestações essas endereçadas aos particulares.
E nas relações jurídicas entre particulares? Desempenham as mesmas funções?
132
3.2.1.4.3.1. Direitos fundamentais a prestação e particulares
A função de prestação continua a ser desempenhada, mas não com exclusividade, pelo
Estado.
Assim, é o Estado quem, primordialmente, deve prover educação, saúde,
previdência social, moradia etc. aos cidadãos.
Isso não quer dizer que os direitos fundamentais sociais não encontrem como
destinatários particulares, pois há determinados direitos fundamentais que são
destinados diretamente aos próprios particulares, por implicação lógica, como aqueles
previstos nos incisos V, VI, VIII, XI, XIII, XV, XVII do artigo 7º da Constituição
Federal brasileira, entre tantos outros
242
.
Verifica-se que existe a possibilidade de os particulares desempenharem
funções semelhantes às do Estado, tais as desempenhadas pelas ONGs (associações,
OSCIPs, OSs) etc., ou, na esteira da responsabilidade social do empresariado,
entender que também estes ocupam papel semelhante ao desempenhado pelo Estado.
Contudo, deve haver, quando não houver expressa previsão constitucional,
intermediação do legislador determinando que os particulares forneçam essas
benesses materiais a outros particulares.
Nesse momento pode-se afirmar, sim, que existe, eventualmente, um direito
subjetivo de um particular em exigir tais benesses diretamente de outro(s)
particula(res).
Assim, verifica-se, por um lado, que existe uma tendência de ocupação do
espaço estatal por particulares, como as ONGs pois, a uma, ao se falar em ONGs,
242
Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina,
2003, p. 54-55. Em que pese a negativa da vinculação imediata dos particulares aos direitos
fundamentais, o autor admite que há casos excepcionais, em que a própria Constituição estipula direitos
fundamentais direcionando-os, claramente, aos particulares, como no trecho que afirma que “em
conformidade, só deve falar-se de eficácia imediata em relação a terceiros se os direitos fundamentais
se dirigem imediatamente contra sujeitos de direito privado, como no caso do artigo 9º, no 3, 2ª frase,
da LF”.
133
estamos a falar em cooperação entre a sociedade civil e o Estado para executar
funções tipicamente outorgadas ao último, ou seja, trata-se de entender que o dever de
prestar unicamente se remete ao Estado. E mais ainda quando verificamos que para o
desempenho dessas funções as ONGs recebem, em grande parte das vezes, dinheiro
público para o fim a que direcionam, ou seja, não se trata, de forma alguma, de
relação simplificada de direito privado, no estrito âmbito da autonomia privada,
aquela travada entre particulares e as ONGs.
A duas, as empresas, no que toca à responsabilidade social, têm “deveres” que
decorrem de sua intenção de prover, e não de obrigação legal de fazê-lo, a se tratar,
ainda, de claro truísmo em prol da ampliação da distribuição de benesses materiais e,
é claro, em instrumento de conquista de lucros e a empatia da sociedade.
Todavia, há um dado que merece melhor reflexão. É inegável, por outro lado,
que pode o legislador impor aos particulares determinados deveres que se comparam
aos deveres do Estado à prestação.
Podemos citar o art. 398, § 1º,
243
da CLT, que dispõe que em empresas com
mais de 30 trabalhadoras com mais de 16 anos devem disponibilizar local adequado
para que as mães cuidem de seus filhos enquanto os estiver amamentando.
Contudo, para que esses deveres sejam impostos, há que haver, como
dissemos, decisão do legislador no sentido de impor um dever ao particular, ou, ao
menos, previsão como tal em convenção coletiva de trabalho.
Todavia, nesses casos, trata-se de exigir que haja imposição legal de dever.
Por todo o referido, não há que se negar a possibilidade da ocorrência de o
Estado transferir, ao particular, deveres que, em regra, são seus, nada mais se
verificando além da necessária cooperação entre Estado e Sociedade Civil para
cumprir os direitos, as metas e os objetivos traçados pela Constituição Federal
brasileira.
243
Art. 389 –“ Toda empresa é obrigada:
§ 1º – Os estabelecimentos em que trabalharem pelo menos 30 (trinta) mulheres com mais de 16
(dezesseis) anos de idade terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar sob
vigilância e assistência os seus filhos no período da amamentação”.
134
O que se verifica a partir do que afirmamos é que, quanto aos direitos à
prestação, deve haver interposição da Constituição, do legislador ordinário ou acordo
entre as partes, sendo, assim, assemelhada à corrente da vinculação mediata aos
direitos fundamentais dos particulares no que toca aos direitos à prestação, exceto
para aqueles expressamente direcionados, pela Constituição, aos particulares, como
acima referido.
3.2.1.4.3.2. Direitos de defesa e particulares
De outra banda, os direitos fundamentais desempenham, entre particulares, em
regra, a função de defesa. Isso porque ao se entender que particulares se posicionam,
mais e mais, como atores privados fortalecidos, em alguns casos mais que alguns
Estados Nacionais (grandes conglomerados econômicos, p.ex.), os direitos
fundamentais, em tais situações, exercem a função de proteger o mais fraco, o
incapacitado de travar uma relação jurídica em posição de igualdade, em posição de
barganhar pela proteção de seus interesses.
Os direitos fundamentais, assim, servem como instrumentos de elevação dos
interesses dos mais fragilizados, ou hipossuficientes, em detrimento da parte mais
forte
244
com quem o mais fragilizado não tem a possibilidade de negociar, nem
proximamente, em uma situação de recíproca contenção de interesses.
Como já afirmamos mais acima, não só são vinculantes imediatamente em
caso de desproporção de forças na negociação, ainda mais porque os contratos
244
CAUPERS, João. Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição. Lisboa: Coimbra,
1985, p. 159: “O reconhecimento desta dimensão objectiva dos direitos fundamentais não surgiu por
via de qualquer especulação teórica, antes tendo resultado da constatação do crescimento dos poderes
económicos e sociais e das dificuldades da lei em garantir contra eles a defesa dos direitos dos
cidadãos. O número de negócios jurídicos assentes numa base de efectiva desigualdade – com destaque
para os contractos de trabalho – cresceu enormemente. Continuar a defender intransigentemente a
autonomia negocial não seria já permitir que dois cidadãos violassem reciprocamente os respectivos
direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição mas, sim, que poderosos entes sociais e
económicos, como as grandes empresas, desrespeitassem reiteradamente os direitos fundamentais dos
cidadãos e trabalhadores com que outorgam contratos, e que nem sequer estão em posição de ‘retribuir’
tal desrespeito”.
135
também operam efeitos para além das partes envolvidas, dado o interesse da
sociedade de ver o Direito aplicado com racionalidade e com alguma homogeneidade.
Verifica-se como decorrência do raciocínio acima exposto que desempenha o
legislador papel essencial nesse processo de proteção dos mais enfraquecidos em uma
relação bipolarizada. Exemplo disso são a CLT e o Código de Defesa do Consumidor
que têm por objetivos igualar relações jurídicas travadas entre desiguais em poder de
barganha.
Todavia, negar a vinculação desses particulares aos direitos fundamentais,
ainda mais não havendo decisão legislativa, é admitir a supremacia de uma das partes
em uma relação jurídica bipolarizada em detrimento de uma igualdade que deve ser
preservada para manter os níveis de convivência social nos limites do razoável.
Mesmo havendo decisão legislativa, deve-se verificar se ela corresponde ao
mínimo necessário em uma sociedade plural, que deve, para manter uma convivência
pacífica, pretender não construir grandes fossos de poder entre os mais fortes e os
mais fracos, é dizer, a proteção aos direitos fundamentais dada pelo legislador deve
ser suficiente.
O Direito, assim, desempenha uma função de (a) prover segurança ao
particular em situação de submissão a outro particular, (b) de conter os excessos
advindos desse distanciamento de poder de barganha de um dos particulares no
negócio jurídico, ou seja, quando da composição dos interesses desses particulares, os
direitos fundamentais instrumentalizam esse provimento de proteção-contenção, e (c)
exigir que seja o Direito aplicado de forma homogênea, importando a toda a
sociedade essa racionalidade na aplicação, não se entendo mais o contrato como de
único interesse entre os contratantes, operando efeitos transcendentes.
Dessa forma, como veremos mais adiante, importa, mais que fixar a função
que desempenham os direitos fundamentais nas relações entre particulares, verificar
os limites das restrições dos direitos fundamentais em jogo.
136
3.2.1.4.4. Do modo pelo qual os direitos fundamentais vinculam os particulares:
questão de intensidade
Ultrapassadas algumas questões essenciais para desbravar o tema da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, como (a) entender que estes são
destinatários, além de titulares, dos direitos fundamentais, (b) que as funções que
podem desempenhar os direitos fundamentais nas relações entre particulares são tanto
de defesa quanto de prestação e (c) que os direitos fundamentais, por decorrência de
norma constitucional, têm afirmada sua aplicabilidade imediata, passamos ao ponto
mais complexo a versar sobre o tema.
As afirmações acima nos levam a concordar, pelo que se viu, com a corrente
da vinculação imediata dos direitos fundamentais às relações jurídicas particular –
particular na medida em que verificamos a necessidade de proteção dos particulares
contra outros particulares, principalmente.
Todavia, nada impede que seja o juiz ou, ainda mais, o legislador que
monitore essa vinculação, dado que se deve construir uma rede de proteção aos
desfavorecidos em poder nas relações jurídicas entre particulares.
Contudo, merece o tema o seguinte questionamento: com que intensidade se
aplicam os direitos fundamentais às relações jurídicas travadas entre particulares? É
semelhante à intensidade com que se aplicam à relação jurídica particular – Estado?
O que podemos afirmar com clareza é que não se admite afirmemos,
abstratamente, se devem ser mais ou menos “intensos” que contra o Estado, vez que
não se verifica, na dogmática dos direitos fundamentais, atualmente, modo de se
analisarem ocorrências tais que não a partir de casos concretos.
O problema da intensidade trata, a nosso ver
245
, do tema que merece uma
reflexão mais consistente, dado que informa o mecanismo de concretização dos
245
SILVA, Virgílio Afonso da. Constitucionalização do Direito – Os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.
137
direitos fundamentais nas relações entre particulares, mas somente a partir de casos
concretos.
O modo como são concretizados os direitos fundamentais nas relações entre
particulares exige desbravemos, mais, a estrutura das normas de direitos
fundamentais, vez que a intensidade da vinculação dos particulares deve envolver
graus de intensidade variáveis.
Assim, começaremos a tratar, neste momento, de algumas reflexões sobre o
tema, especificamente desenvolvendo alguns raciocínios sobre o tema da intensidade,
mas, ao mesmo tempo, informamos ao leitor que esse tema será tratado em toda a
parte final do trabalho, quando desenvolveremos o problema da estrutura das normas
de direitos fundamentais, sua densidade normativa e o modo como vemos possível
concretizar os direitos fundamentais nas relações entre particulares.
Por ora, trataremos de diferenciar a relação jurídica, que decorre dos direitos
fundamentais, existente nas relações particular-Estado e particular-particular.
3.2.1.4.4.1. As relações particular-particular e Estado-particular em tema de
direitos fundamentais: estipulando diferenças
Como pensados especificamente para proteger os particulares das ações
abusivas do Estado, os direitos fundamentais, como direitos de defesa, desempenham
papéis bastante conhecidos e já tratados anteriormente, repisando-se que são duas as
grandes funções dos direitos fundamentais nesta seara, é dizer, além de direitos de
defesa contra o Estado, desempenham a função de direitos à prestações materiais por
parte do Estado.
Essas duas funções não nascem conjuntamente, mas, sim, são resultado de um
acúmulo histórico provindo da ampliação dos desígnios dos particulares em face do
Estado: primeiro, os direitos de defesa liberais burgueses e, após e além destes, os
direitos à prestação material por parte do Estado aos que dele necessitam para uma
vida mais digna em questão de bem-estar.
138
Assim, na relação particular-Estado, são estas as funções que desempenham os
direitos fundamentais: defesa e prestação.
No que toca à intensidade de aplicação desses direitos, é importante dizer que
esta merece alguma reflexão.
É certo que a dogmática contemporânea dos direitos fundamentais, ao
fortalecer o estudo particular de casos em que se está a concretizar direitos em
detrimento de grandes discursos abstratos, acaba por entender, ainda que
indiretamente, que há uma variação de intensidade da concretização dos direitos
fundamentais aos casos sobre os quais se debruça.
Assim, ao entendermos que a liberdade de expressão sofre restrições conforme
o caso e que, por isso, em momentos históricos distintos as mesmas condutas
baseadas na liberdade de expressão podem receber tratamento diferenciado por parte
do Direito, acabamos por entender que há uma variação da intensidade na
concretização desses direitos fundamentais.
Em momento de plena garantia das liberdades democráticas e de pacífica
relação social, o direito à liberdade de expressão deve ser tratado como a atribuir, aos
particulares, grande poder de fiscalização e de manifestação de opiniões com o fim de
tratar das ações e omissões do Estado como algo público e publicizável.
Nessa esteira, o cidadão que descobre um plano governamental estratégico em
questão de segurança nacional deve ter garantido, pelas instituições, o direito de
participar livremente do debate democrático sobre a necessidade ou não de criação de
tal plano estratégico.
É certo, porém, que em momento conturbado, como de indisponibilização com
Estados vizinhos, se esse plano estratégico envolve ações ou omissões contra esses
vizinhos, o direito à liberdade de expressão do particular deverá sofrer restrições que
não sofreria no caso de convivência pacífica entre países vizinhos.
O que “dá o tom”, em casos como esses, é o momento histórico em que os
direitos serão concretizados, e não um conteúdo previamente fixado que independe do
momento em que se fala em concretizá-lo.
139
Isso é o que tratamos por intensidade na concretização dos direitos
fundamentais, ou seja, o mesmo direito terá seu conteúdo jurídico formatado
conforme o momento histórico em que se concretiza.
A concretização dos direitos fundamentais nas relações jurídicas travadas
entre particulares também merece esse tratamento, mas, aqui, com todas as suas
particularidades.
Quando as constituições elegem sistemas jurídico-econômicos de molde
capitalista-democrático-liberal estão a dizer que a regra nos negócios jurídicos é a
liberdade, tanto no seu sentido econômico quanto em seu sentido jurídico.
Isso quer dizer que toda e qualquer restrição a essa liberdade deve advir do
Direito, ou seja, sem que o direito restrinja o negócio jurídico, em regra por lei, mas
também pela própria Constituição, não se fala em limitação dos particulares, e, sim,
em ampla liberdade para travar negócios jurídicos com o fim de ampliar seus lucros a
partir do princípio da livre iniciativa.
O que não se admite é a liberdade absoluta que leve ao constrangimento de um
dos particulares, a ponto de impor-lhe uma conduta indigna ou ultrajante, por
exemplo.
Admite-se, por exemplo, que seja o direito à liberdade de expressão
restringido em contrato de trabalho, por exemplo, ou que não se permita ao
empregado divulgar informações havidas por decorrência de prestígio interno junto ao
empregador.
Contudo, essa liberdade de expressão não pode admitir que o empregado se
submeta a um controle demasiadamente forte em sua privacidade, como o controle de
suas ligações telefônicas, mensagens eletrônicas, sem que com isso, pelo menos, e
unicamente a título argumentativo, limite-se essa restrição ao momento ou
instrumentos de trabalho do empregado e aos objetivos do empregador.
É claro que haveria casos limítrofes, em que o conhecimento de informações
por parte do empregado, mesmo que a causar dano à empresa, levaria a sociedade a
uma situação de segurança, como quando descobre um dano ambiental possível,
140
comunica à empresa, que nada faz e, posteriormente, comunica às autoridades para
que o previnam.
É claro que em caso difíceis como esse não pode o empregado sofrer
retaliação da empresa com fundamento em contrato de trabalho que disponha sobre
proibição de veiculação de informações que causem danos à empresa contratante.
Trata-se da constatação de que mesmo relações entre particulares, travadas sob
o espectro da liberdade ampla, ou da autonomia privada, merecem a proteção e a
fiscalização do Direito, vez que há efeitos que se produzem para além das partes
contratantes.
Também há casos em que, mesmo não produzindo efeitos (danos) contra
terceiros alheios à relação contratual, a restrição dos direitos fundamentais de um dos
particulares é demasiada, ou seja, trata-se de violação, e leva, por exemplo, à violação
de sua dignidade, a ponto de ser necessário que o Direito tolha essa possibilidade não
só para prestigiar o particular envolvido, mas, também, para proibir que a mesma
prática seja instituída com regularidade
246
.
Exemplo interessante é, nesse caso, o tão citado caso francês do “arremesso de
anão”, em que se decidiu que, apesar de haver intenção de contratar tanto por parte de
casa de entretenimento, que oferecia como atração o arremesso de anão, quanto pelo
próprio anão, que daquilo obtinha seu sustento, negou-se a possibilidade de
manutenção de tal “show” em função da dignidade da pessoa humana que transcendia
as intenções dos diretamente envolvidos
247
.
246
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentias na Constituição Portuguesa de 1976.
2ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 266: “assim, por exemplo, nos casos de renúncia e, em geral, de
auto-restrição do titular do direito fundamental, que são aqueles em que mais longe se pode ir na
garantia da liberdade negocial, aceitamos (pressuposta sempre a igualdade dos sujeitos e a existência de
uma vontade livre e esclarecida) que ela exclua a aplicação do preceito constitucional, mas, ainda aí, só
se não atingir aquele mínimo de conteúdo do direito para além do qual o indivíduo se reduz à condição
de objeto ou de não-pessoa – nestes casos o bem jurídico deve ser considerado indisponível”.
247
Para uma análise pormenorizada do caso vf. BARBOSA, Joaquim. O Poder de Policia e o Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana na Jurisprudencia Francesa. Disponível em:
http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/publicacoes/joaquim_b_gomes/jg_1.html. Consultado em 15
de março de 2.006. Vale a referência à decisão do Conselho de Estado francês que formula a seguinte
argumentação para negar, com fundamento na dignidade da pessoa humana, o direito de o anão e da
empresa continuarem a proporcional tão bizarro show: “o respeito à dignidade da pessoa humana é um
dos componentes da (noção de) ordem pública; (que) a autoridade investida do poder de polícia
municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais específicas, interditar um espetáculo
atentatório à dignidade da pessoa humana”.
141
3.2.1.5. Uma tentativa de aproximação das correntes especificadas
Em que pese a tentativa da dogmática jurídica dos direitos fundamentais
buscar a fixação de diferentes correntes de aproximação do tema da vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais, vale dizer que, apesar nos aproximarmos da
corrente da eficácia imediata, não basta, unicamente, essa opção para enfrentarmos os
problemas advindos da questão.
Isso porque os resultados que alcançam, na prática, essas diferentes correntes,
em muito se assemelham
248
e as correntes acabam, para resolver casos práticos,
impondo-se relativizações ou mesmo confusões.
Isso ocorre, por exemplo, com a corrente da negativa da vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais, que entende ser o Estado responsável por
eventuais violações aos direitos fundamentais nas relações entre particulares
249
, ou
com a posição tomada pelo Tribunal do Trabalho Alemão, que desenvolve,
inicialmente, a tese da vinculação imediata, mas que a aplica somente após a
verificação da impossibilidade de o direito privado resolver a questão
250
.
A nosso ver, repisamos, o problema todo deve girar em torno da verificação da
intensidade com que os conteúdos jurídicos dos direitos fundamentais alcançam as
248
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1.997.
249
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2003.
250
STARCK, Christian. Derechos Fundamentales e Derecho Privado. Revista Española de Derecho
Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 68: “Em que pese a
afirmação histórica do Tribunal do Trabalho alemão pela vinculação imediata dos particulares aos
direitos fundamentais, afirma o autor que ‘el Tribunal del Trabajo no ha renunciado formalmente a su
aceptación de la eficacia inmedidata hacia terceros; pero en sus decisiones se traslada la visión de los
derechos fundamentales como expresión de um orden general de valores, que tiene vigencia en el
Derecho Privado y que influye em las cláusulas generales de este. Esto se expresa em el curso de la
argumentación: el Tribunal controla la situación jurídica primero a según el Derecho Civil y pondera
después si la solución encontrada a tenor del Derecho civil está en concordância com el orden de
valores de los derechos fundamentales”.
142
relações jurídicas havidas entre particulares, como dito mais acima, que deve variar
caso a caso
251
.
Não basta, unicamente, afirmar que os direitos fundamentais se inserem na
“seara” do direito privado a partir de mediações do juiz ou do legislador, ou, a partir
de cláusulas abertas do direito privado, como bons costumes, boa-fé, probidade etc.
Também não basta que se afirme que deve o Estado fiscalizar toda ação
privada em matéria de direitos fundamentais para, com isso, acabar por afirmar que
inexiste uma vinculação imediata.
Além disso, não satisfaz dizer que os particulares se vinculam imediatamente
aos direitos fundamentais nas relações jurídicas travadas com outros particulares sem
que se discuta qual a intensidade dessa vinculação.
A nosso ver, ao admitir que os direitos fundamentais têm uma perspectiva
objetiva além daquela subjetiva, não há como negar que o conteúdo jurídico dos
direitos fundamentais se espraia por todo o Direito, dada a conjugação dos princípios
da supremacia da Constituição e da unidade do Direito.
Isso porque admitir que uma parcela do Direito, no caso o direito privado,
torne-se inalcançável pela Constituição e seus direitos fundamentais seria impensável,
hoje, dados os avanços havidos na dogmática jurídico do século XX, principalmente
na sua segunda metade.
Entender isso não é crer que o direito privado se encontra desfavorecido ou
enfraquecido perante o Direito Constitucional nem qualquer outra tentativa
direcionada a prestigiar indevidamente o Direito Constitucional.
Trata-se, sim, de condicionar a análise realizada à evolução histórico-
dogmática dos direitos fundamentais no sentido de que são os grandes instrumentos
jurídicos de proteção dos particulares, particulares esses solitários ou associados a
outros, em grupos.
251
STEINMETZ. Wilson. Principio da Autonomia Privada e Atos de Autonomia Privada. In: SILVA,
Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 25: “A eficácia dos
direitos fundamentais entre particulares não é linear e absoluta. É uma eficácia diferenciada e
modulada”.
143
Além disso, negar sua aplicação ao direito privado exigiria mais que uma
argumentação consistente. Exigiria, na verdade, um retorno histórico ao período da
absoluta supremacia do legislador e a negativa de controle de suas decisões pelo juiz.
Ainda sobre a supremacia do legislador, reconhecemos, mesmo hoje, que é do
Poder Legislativo a primazia da conformação dos direitos fundamentais, dada sua
legitimidade democrática para tanto. Com isso, afirmamos que nem todos os casos em
que se reconhece uma colisão de direitos fundamentais devem ser resolvidos como se
a obrigar o intérprete a utilizar um método de decisão nesse sentido.
Quer dizer que quando existe uma colisão de direitos decorrentes de uma
relação jurídica entre particulares, é função do intérprete (a) verificar se o legislador
tratou da matéria (b) analisar o tratamento dado quanto à sua constitucionalidade sob
os aspectos da restrição excessiva e, (c) somente após, deve recorrer a outros métodos
de resolução de colisões de direitos fundamentais, como a ponderação, o princípio da
razoabilidade ou a regra da proporcionalidade.
Assim, entender o núcleo da discussão como sendo unicamente a opção por
determinada corrente de vinculação é negar duas questões mais importantes, ou se
afastar delas: (a) se os direitos fundamentais produzem efeitos jurídicos por todo o
Direito, qual a estrutura dessas normas de direitos fundamentais?, b) como aferir a
intensidade da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais nos casos
concretos?
Esses são os dois imprescindíveis questionamentos que merecerão nossa
atenção mais adiante e que exigem finquemos pé em alguns pontos acima discutidos.
São nossas posições: a) há uma evolução histórico-dogmática dos direitos
fundamentais que não pode ser negada; b) essa evolução, além de outras questões,
envolve entender que os direitos fundamentais, além do caráter subjetivo, têm caráter
objetivo; c) deve-se, sempre, verificar se existe uma conformação dos direitos
fundamentais levada a cabo pelo legislador, que detém a primazia na matéria pela sua
legitimação democrática; d) caso se verifique que inexiste ou é excessiva a
conformação levada a cabo pelo legislador, não se deve limitar a análise à adoção de
144
uma corrente de vinculação, vez que chegam, para solucionar casos práticos, em
muitos deles, aos mesmos resultados
252
; e) há que haver um modo de verificar, nos
casos concretos, se a intensidade da restrição de direitos fundamentais levada a cabo
em determinada relação jurídica entre particulares não impôs demasiado ônus para um
dos particulares em favor do outro e, se isso ocorrer, se o ônus suportado recebe apoio
do sistema jurídico.
Esse último passo exige que a verificação da intensidade das restrições de
direitos fundamentais nas relações entre particulares se utilize de um instrumental
jurídico habilitado para tanto, o que, a nosso perceber, exige a utilização da regra da
proporcionalidade, como veremos mais adiante.
Assim, os eixos da discussão dos problemas a serem enfrentados sob o tema
dos direitos fundamentais e, especificamente, da vinculação dos particulares a estes
giram, principalmente, em torno da perspectiva objetiva e da regra da
proporcionalidade, que instrumentalizam toda a discussão
253
.
252
Ao nosso ver, como será tratado adiante, somente devemos falar, quanto aos direitos fundamentais,
em proteção excessiva ou inexistente. Não nos utilizados da idéia da proteção insuficiente em razão de
entendermos que sempre que a proteção se dá de forma insufuciente para um direito fundamental há
uma proteção excessiva de um outro direito fundamental(sendo ele bem fundamental ou fim do
Estado). Trata-se de visualizar o mesmo fenômeno a partir de uma lente que se preocupa com o outro
pólo do objeto que se observa. Ao invés de focar a análise no que se deixou de proteger, essa deve se
situar nas razões que levaram à proteção insuficiente. Isso fica mais claro, como veremos, quando
tratarmos da aplicação da regra da proporcionalidade.
253
NOVAIS, Jorge Reis. As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizados pela
Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 66: “Neste sentido, o reconhecimento da dimensão
objetiva dos direitos fundamentais pôde ser assinalado, conjuntamente com a recepção do princípio da
proporcionalidade, como a inovação mais produtiva na dogmática dos direitos fundamentais do pós-
guerra”.
145
4. PROBLEMAS DE CONCRETIZAÇÃO DAS NORMAS DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES JURÍDICAS PARTICULAR-
PARTICULAR
Ao sustentarmos, anteriormente, que o grande desafio da concretização dos
direitos fundamentais se encontra mais na forma de sua verificação nos casos
particulares que na assimilação de uma das correntes de relacionamento entre o direito
privado e os direitos fundamentais (vinculação direta, indireta ou a própria negativa
de vinculação), afirmamos que há que se enfrentar o tema da estrutura das normas de
direitos fundamentais.
Isso porque é a partir da análise da estrutura das normas de direitos
fundamentais que se verifica o seu modo de aplicação, vez que nem todas as normas
que veiculam direitos fundamentais têm sua aplicação formalizada pelo mesmo modo,
como se verá.
4.1. Estrutura e densidade normativa das normas de direitos fundamentais
Como afirmado anteriormente, nossa intenção, por ora, é enfrentar o tema da
densidade normativa das normas de direitos fundamentais e o modo de sua aplicação
aos casos concretos.
Para isso, utilizamo-nos das lições de Robert Alexy. Isso porque nossa
concordância com a sua “Teoria dos Direitos Fundamentais” é quase total e, dessa
forma, pensamos poder atribuir mais coerência ao nosso discurso jurídico
254
.
254
Somente nos afastamos, como se verá, quando incluímos no exame da adequação, que se insere na
regra da proporcionalidade, o elemento legitimidade dos fins, não utilizado por Alexy.
146
Para isso, deixaremos de enfrentar outras teorias que não a de Robert Alexy,
pois, a nosso ver, este trabalho enfrenta uma questão de fundo que deve receber um
aporte mais concreto: como fazer com que se atribua alguma objetividade à
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais de outra forma que não,
somente, optando por uma das correntes acima citadas.
Trata-se de uma opção metodológica clara e intencional
255
.
4.2. Alguns pressupostos da teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy
Há que se frisar, inicialmente, que Alexy está a se referir a uma teoria jurídica
dos direitos fundamentais da Lei Fundamental de Bonn
256
, ou seja, trata-se de direitos
fundamentais positivados, e que não afirma ser uma teoria para toda e qualquer
Constituição Nacional, ou seja, trata-se de nossa opção “generalizar” sua teoria e são
nossos os erros advindos desta tentativa
257
.
Ao afirmar tratar de direito positivo, não negligencia o autor a
operacionalidade prática das decisões do Tribunal Constitucional Federal Alemão
(TCFA) na construção do conteúdo jurídico das normas de direitos fundamentais, uma
vez que o tribunal trabalha para eliminar a vagueza das normas de direitos
fundamentais
258
, o que denota que para ser de direito positivo essa teoria tem de ser
dogmática
259
.
255
Poderíamos, de algum modo, ampliar esse debate com a tentativa de aproximação com outras
teorias, como a de Dworkin, de Guastini, de Bockenforde, entre outras, mas pecaríamos pela confusão
e pela referência a autores com posições diversas, o que acabaria por atribuir inconsistência lógica aos
nossos raciocínios.
256
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997.
257
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 28. É importante dizer que o próprio autor admite sejam aportado
conhecimento derivado de outras ordens jurídicas nacionais que não a alemã e vice-versa.
258
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 31.
259
Idem, ibidem, p. 29.
147
É dizer, o autor dá ênfase bastante à participação do Tribunal Constitucional
na construção do direito positivo, não se limitando sua análise ao caráter textual ou
doutrinário do Direito.
Nesse sentido, o autor passa a enfrentar os três aspectos de sua teoria,
divididos em:
(a) analíticos, em que se estudam os “conceitos fundamentais”, como os
conceitos de norma, de direito subjetivo, de liberdade, de igualdade, além das
construções jurídicas, dentro destas a vinculação de particulares aos direitos
fundamentais, da estrutura do ordenamento jurídico etc.
260
;
(b) empíricos, em que são enfrentados os direitos positivamente válidos, é
dizer, tanto o direito legislado quanto o direito judicial, pois a tratar aqui com mais
afinco da questão da eficácia das normas de direitos fundamentais, no sentido do
instrumental oferecido pelo sistema jurídico para sua concretização;
(c) normativos, em que se voltam as idéias para a crítica da praxe jurídica,
principalmente da jurisprudência, na construção das decisões judiciais. Não se trata da
mera constatação das posições fincadas pela jurisprudência, mas sim da sua análise
crítica com o fim de racionalizar, objetivamente, as construções jurídicas levadas a
cabo no discurso jurídico.
4.3. Problemas conceituais das normas de direitos fundamentais
Quando nos utiliza no decorrer do trabalho da expressão norma (ou norma de
direito fundamental), afirmamos que norma e enunciado normativo diferem.
Essa concepção é utilizada por Alexy, ao afirmar que as normas são o
significado de um ou mais enunciados normativos
261
, ou seja, os enunciados são
260
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 30.
261
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 51.
148
referidos aos textos e as normas ao texto interpretado, sobre o qual já se construiu
algum sentido.
Assim, diz o autor, a partir do enunciado normativo “Nenhum alemão pode ser
extraditado ao estrangeiro (Art. 16, par. 2º, frase 1 da Lei Fundamental)” se constróem
as seguintes normas: (a) “está proibida a extradição de um alemão ao estrangeiro”
262
;
(b) “Os alemães não podem ser extraditados ao estrangeiro”; (c) “os alemães não
serão extraditados ao estrangeiro”.
Assim, é possível que um enunciado normativo de direito fundamental
produza mais que uma norma de direito fundamental e, por conseqüência, também é
possível que mais que um enunciado normativo produza uma norma só de direito
fundamental
263
.
Todavia, não se pode entender como positivadas unicamente as normas que
derivam de enunciados expressamente estatuídos nos textos constitucionais.
Há normas de direitos fundamentais que decorrem da própria sistematização
das demais normas, ou seja, há norma de direitos fundamentais “adscritas”
264
, ou
escondidas nos textos
265
-
266
, que dependem, para sua validade, de uma argumentação
262
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 51.
263
Imagine que a Lei Fundamental além da proibição da extradição de alemão dispusesse que “só os
alemães naturalizados podem ser extraditados”. Desses dois enunciados poderíamos construir uma
norma com o sentido de que “nenhum alemão será extraditado, exceto se naturalizado”.
264
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 70-71: “Las normas de derecho fundamental pueden, por ello, dividirse em
dos grupos: em las normas de derecho fundamental directamente estatuídas por la Constitución y las
normas de derecho a ellas adscriptas.
Naturalmente, con la cualificación de las normas adscriptas como normas de derecho fundamental se
abre la puerta a uma serie de problemas. A las normas directamente estatuidas por las disposiciones de
derecho fundamental está adscriptas normas muy diferentes. La discusión sobre derechos
fundamentales es, en gran parte, uma polémica acerca de cuáles normas están adscripras a normas de
derecho fundamental directamente estatuidas.
(...)
Uma normas adscripta vale y es normas de derecho fundamental si para sua adscripción a uma norma
de derecho fundamental estatuída directamente es posible dar una fundamentación iusfundamental
correcta”.
265
O enunciado normativo presente no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal brasileira é a construção
típica de direito positivo que admite a “entrada” de outros direitos fundamentais que decorrem do
próprio sistema. Exemplo, no Direito brasileiro, é a admissão do direito ao duplo grau de jurisdição
como direito fundamental, vez que não expresso no próprio texto.
266
Há normas que se encontram adscritas, ou escondidas, nos textos, como os princípios da segurança
jurídica, da certeza do direito, da confiança, entre outros. Não se trata, por isso, de entendê-las como
algo para além do direito positivo, vez que o próprio direito positivo as admite. No Brasil, é o artigo 5º,
149
consistente a ponto de atribuir-lhe espaço no sistema jurídico por derivação das
normas expressas.
4.4. A estrutura das normas de direitos fundamentais na “Teoria dos Direitos
Fundamentais” de Robert Alexy
A concretização das normas de direitos fundamentais nas relações inter
privatos, como dissemos anteriormente, é o foco da presente dissertação.
Para isso, é a partir da estrutura das normas de direitos fundamentais que se
constrói a dificuldade de sua concretização.
Nesse sentido, Alexy divide as normas de direitos fundamentais em princípios
e regras e aponta ser essa distinção “um dos pilares” de sua teoria dos direitos
fundamentais
267
.
4.4.1. Direitos fundamentais como princípios
Nossa intenção, a partir de agora, é buscar uma conceituação mais firme
quando se fala de princípios, vez que são tantas as possibilidades diferentes de
§ 2º, da Constituição Federal que assim o admite. Nesse sentido, em que pese discordarmos da
expressão constituição moderna e preferirmos constituição contemporânea, vale a passagem de
QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial – sobre a epistemologia da
construção constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 112-113: “A ‘constituição em sentido
moderno’ apresenta-se como uma ‘ordem constitucional textualizada’ o que significa, entre outras
coisas, a preclusão de regras de direito costumeiro de natureza pré-constitucional e a sua substituição
pelo ‘direito constitucional não escrito’, isto é, não textualizado, mas ‘implícito’ no texto a interpretar,
e inequivocamente objeto de uma ‘intenção’ e ‘decisão constituinte’”. E mais à frente: “Não obstante, o
‘direito constitucional não-escrito’, devido à sua função apenas complementar, jamais poderá surgir, e
muito menos manter-se, de forma livre e desvinculada, do direito constitucional escrito, antes se
posicionando em relação a este como seu ‘desenvolvimento’ e ‘aperfeiçoamento’”.
267
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 82.
150
conceituação que sua utilização pode acabar por causar severos problemas de ordem
lógica
268
.
Para isso, não entendemos superados ou equivocados outros conceitos ou
formas de utilização, mas, como trabalho científico, devemos fazer opções para
atingir o intento de minorar eventuais contradições lógicas em nosso discurso.
É importante frisar que, ao admitirmos os princípios, além das regras, como
normas jurídicas
269
de direitos fundamentais, está-se a abandonar a idéia de que os (i)
princípios são meros auxiliadores ou vetores interpretativos
270
da interpretação das
normas jurídicas
271
, porque também os princípios, assim, têm caráter autônomo de
normatividade, ou seja, dizem de um “dever ser”
272
e podem ser aplicados
independentemente da existência de uma regra.
268
CUNHA, Sérgio Sérvulo. O que é um Princípio. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo e GRAU, Eros
Roberto. Estudos de Direito Constitucional em Homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 261. O autor elenca 14 acepções diferentes para o termo princípio.
269
ALEXY, Robert. El Concepto de Derecho y La Validez del Derecho. Barcelona: 1997, p. 162.
270
Assim se posiciona o Supremo Tribunal Federal: “O repúdio ao terrorismo: um compromisso ético-
jurídico assumido pelo Brasil, quer em face de sua própria Constituição, quer perante a comunidade
internacional. Os atos delituosos de natureza terrorista, considerados os parâmetros consagrados pela
vigente Constituição da República, não se subsumem à noção de criminalidade política, pois a Lei
Fundamental proclamou o repúdio ao terrorismo como um dos princípios essenciais que devem reger
o Estado brasileiro em suas relações internacionais (CF, art. 4º, VIII), além de haver qualificado o
terrorismo, para efeito de repressão interna, como crime equiparável aos delitos hediondos, o que o
expõe, sob tal perspectiva, a tratamento jurídico impregnado de máximo rigor, tornando-o inafiançável
e insuscetível da clemência soberana do Estado e reduzindo-o, ainda, à dimensão ordinária dos crimes
meramente comuns (CF, art. 5º, XLIII). A Constituição da República, presentes tais vetores
interpretativos (CF, art. 4º, VIII, e art. 5º, XLIII), não autoriza que se outorgue, às práticas delituosas
de caráter terrorista, o mesmo tratamento benigno dispensado ao autor de crimes políticos ou de
opinião, impedindo, desse modo, que se venha a estabelecer, em torno do terrorista, um inadmissível
círculo de proteção que o faça imune ao poder extradicional do Estado brasileiro, notadamente se se
tiver em consideração a relevantíssima circunstância de que a Assembléia Nacional Constituinte
formulou um claro e inequívoco juízo de desvalor em relação a quaisquer atos delituosos revestidos de
índole terrorista, a estes não reconhecendo a dignidade de que muitas vezes se acha impregnada a
prática da criminalidade política” (Ext 855, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 01.07.2005 – grifos nossos).
271
Em que pese não concordarmos com o resultado do raciocínio, vale a referência a GUASTINI,
Ricardo. Das Fontes às Normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 185: “Além disso, na linguagem
comum dos juristas (fato próprio, ademais, do legislador: veja-se, por exemplo, a art. 177, par. 1 da
Constituição (Italiana)), costuma-se caracterizar os princípios em contraposição às normas. Contudo,
não parece possível traçar uma linha precisa de demarcação entre estes e aquelas”.
272
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 83.
151
É dizer, por óbvio, que se são normas jurídicas não podem ser meros
auxiliadores da interpretação de outras normas, as regras, pois, se se diferencia
princípio de norma jurídica, subentende-se que princípios não são normas
273
.
Também não adotamos a concepção de que os (ii) princípios são as partes
mais fundamentais do sistema jurídico
274
, ou as mais importantes, dado que, como
veremos, não se encontra nessa questão o fator de diferenciação entre as normas
jurídicas, sejam princípios ou regras.
Também não se está a falar de uma (iii) relação de grau em que as regras
apresentam um grau de generalidade baixo, enquanto os princípios um grau de
generalidade alto, resposta daqueles que a defender uma diferença fraca entre
princípios e regras
275
-
276
.
Ou, ainda, (iv) que as regras derivam dos princípios, que seriam, assim, os
alicerces do sistema jurídico
277
-
278
.
273
Essa parece ser a posição de KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 1986, p. 148, em que trava um debate sobre princípios com Josef Esser.
274
GUASTINI, Riccardo. Das Fontes às Normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 187.
275
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Notas em Torno ao Princípio da proporcionalidade. In:
MIRANDA, Jorge (org.). Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976. V. 1.
Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 250. O autor desenvolve uma interessante tentativa de
aproximação entre teorias. Utiliza-se, para isso, também, do caráter de abstração dos princípios para
diferenciá-los das regras.
276
ALEXY. ALEXY, Robert. Sistema Juridico, Princípios Jurídicos y Razón Practica, DOXA, n. 5,
1998, p. 141.
277
Novamente, devemos dizer que não acreditamos superadas outras posições. Trata-se de apontar por
um norte, uma escolha que atribua coerência ao que afirmamos. No sentido citado, contrário à nossa
posição, vide MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 78: “Algumas noções ou princípios são categoriais em relação a outros, de
significado mais restrito, porque abrangentes de alguns institutos apenas. Estes, a seu turno,
desempenham função categorial relativamente a outros mais particularizados que os anteriores. Assim
se processa uma cadeia descendente de princípios e categorias até os níveis mais específicos. Alguns
alicerçam todo os sistema; outros, destes derivados, dizem respeito ora a uns, ora a outros institutos,
interligando-se todos, não só no plano vertical, como horizontal, formando uma unidade, um complexo
lógico, a que chamamos regime; no caso em rela, regime administrativo”; e SUNDFELD, Carlos Ari.
Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 140.
278
BONAVIDES, Paulo. Soberania Constitucional, a soberania dos princípios. Teoria constitucional da
democracia participativa. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 301: “Hoje, como se vê, os princípios
valem mais porque as Constituições se jurisdicizaram. Hoje os princípios, sendo a essência da
constitucionalidade, ocupam o lugar mais alto e nobre na hierarquia dos ordenamentos jurídicos. As
regras se lhe sujeitam, conforme dissemos, e o Direito vive, de último, a grande idade do
constitucionalismo principiológico, como dantes já vivera a época milenar do jusprivatismo
romanista”.
152
Estamos a falar, sim, de uma relação qualitativa
279
, é dizer, há uma diferença
quanto à estrutura e aplicação
280
para diferenciar as normas-princípios das normas-
regras.
Não há, aqui, nenhuma opção por tratar os princípios como elementos mais
importantes do sistema jurídico
281
.
Assim, “princípios são normas que determinam que algo seja realizado na
maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas reais
existentes”
282
.
É dizer que, por isso, os princípios são “mandamentos de otimização”
283
, na
medida em que para que seja otimizada sua aplicação dependem da realidade fática e
jurídica atinentes ao caso concreto posto diante daquele que deve proferir uma decisão
jurídica, sendo os princípios e regras com outros colidentes elementos essenciais para
a construção de uma decisão jurídica.
A realidade jurídica se constrói a partir da colisão de princípios ou regras, ou
seja, são os princípios (a) ou regras (b) que colidem com o princípio (c) sob o qual se
debruça o interprete para decidir, construindo seu conteúdo jurídico, que conformam
as possibilidades jurídicas do princípio (c)
284
.
Todavia, a característica mais marcante das normas veiculadas a partir de
princípios está no modo como são aplicados, ou seja, é neste ponto que reside a
grande diferença para com as regras, que será mais à frente enfrentada
285
.
279
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 87.
280
SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais,. São Paulo: RT, v.
798, abr. 2002, p. 25.
281
SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e Regras: Mitos e Equívocos acerca de uma distinção.
Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais,. n. 1, São Paulo: Del Rey, 2003, p. 615: “Como
se percebe, o conceito de princípio, na teoria de Alexy, é um conceito axiologicamente neutro e seu uso
não expressa nenhuma opção por esta ou aquela disposição fundamental, nem por este ou aquele tipo
de Constituição”.
282
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 86.
283
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 162.
284
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 86.
285
SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v.
798, abr. 2002.
153
Isso porque a aplicação dos princípios exige a utilização de um meio distinto,
qual seja, o da ponderação
286
, em que se estabelecem relações de preferência
287
entre
princípios, ou seja, ao aplicar princípios, o intérprete passa a construir o conteúdo
jurídico do princípio a ser aplicado ao caso concreto, que se pretende ver resolvido.
Outrossim, é também a partir do caso concreto que se constrói o conteúdo
jurídico dos princípios, ou seja, somente os elementos fáticos e jurídicos do caso
concreto, as regras e os princípios colidentes, que permitem a construção do conteúdo
jurídico do princípio, o que informa que em caso diferente o mesmo princípio pode
ser construído com conteúdo jurídico diverso.
Assim, os princípios estipulam uma relação de precedência
288
referida
unicamente ao caso que se decide, ou seja, são as condições fáticas e jurídicas do caso
concreto e os princípios e regras em colisão que firmam a precedência de um
princípio sobre outro.
A referência ao caso concreto é imprescindível, pois nada impede que um caso
futuro a ser decidido a partir da colisão dos mesmos princípios seja decidido de forma
contrária, vez que não se fala em (a) criar uma relação de precedência fixa, perene,
entre os princípios em colisão e nem mesmo de (b) declarar a invalidade do princípio
preterido no caso concreto, e, sim, de, a partir da metáfora do peso, afirmar que um
deles merece, no caso concreto, a precedência sobre o outro
289
-
290
.
286
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 162.
287
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 133.
288
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 164.
289
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 92: “La solución de la colisión (entre princípios) consiste más bien em que,
teniendo en cuenta las circunstancias del caso, se estabelece entre los princípios una relación de
precedência condicionada. La determinación de la relación de precedencia condicionada consiste en
que, tomando en cuenta el caso, se indican condiciones bajo las cuales un principio precede al outro.
Bajo otras condiciones, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada inversamente”.
290
A nosso ver, trata-se, ainda que não utilizada por Alexy expressamente, da idéia da complexidade,
que atribui um caráter de movimento, de adequação dos princípios ao momento histórico-social em que
são aplicados, no sentido de que inexiste uma única decisão correta e, sim, aquela mais adequada ao
momento em que se decide. Assim, havendo mais de uma possibilidade de decisão (A, B e C), pode o
intérprete, hoje, tomar uma decisão (B), em detrimento de outras (A e C), sem que se impeça que mais
à frente, em caso semelhante, sejam as outras possibilidades as escolhidas (A ou C), vez que não há
declaração de invalidade (de A ou C), e sim a atribuição de maior peso ao princípio escolhido (B).
Trata-se, assim, do paradoxo entre aumento de minoração de complexidade nas decisões fundadas no
Direito contemporâneo. Isso foi também percebido por LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência
154
Trata-se de reconhecer, quando da aplicação dos princípios, que o intérprete
desenvolve atividade criativa
291
, ou seja, que depende de ato de vontade para construir
o conteúdo jurídico, tal como com as regras.
Além do referido, deve-se dizer que os princípios somente estipulam direitos e
deveres prima facie
292
. Dependem, para sua construção, dos elementos fáticos e
jurídicos dos casos concretos a partir dos quais têm seu conteúdo jurídico construídos
e da ponderação com os princípios colidentes no caso concreto.
Nada impede, contudo, que, ao se ponderar um princípio com outros
colidentes, em um caso concreto, um princípio prepondere totalmente sobre outro,
dadas suas condições fáticas e jurídicas, como, e.g., em caso de expedição de ordem
judicial com o fim de impedir qualquer manifestação de um sujeito A que,
corriqueiramente, profere impropérios contra outro sujeito X, que lhe causam
seguidos danos de ordem moral. Caso apreciada a questão a partir da colisão de
direitos fundamentais da liberdade de expressão de A com a proteção da honra de X,
verifica-se uma preponderância da proteção da honra que acaba por limitar
completamente a liberdade de expressão de A.
Vale dizer, ainda, que os princípios não se confundem com os valores. Estes,
na ordem do ontológico, carregam uma carga axiológica que implica optar pelo que é
melhor ou pior, bom ou mau, assim, sobrepondo-se ao próprio sistema jurídico,
Jurídica. 3ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997, p. 322-324. O autor se refere ao processo
de aumento e de minoração de complexidade a partir da dogmática jurídica, conforme aqui defendido.
291
KELSEN, Hans. Quem deve ser o Guardião da Constituição? Jurisdição Constitucional. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, pp. 262-263. É interessante a posição de Kelsen sobre os princípios e a restrição
do autor à sua utilização como referência para o controle de constitucionalidade: “Caso se deseje
restringir o poder dos tribunais, e, assim, o caráter político de sua função – tendência que sobressai
particularmente na monarquia constitucional, podendo, porém, ser observada também na república
democrática –, deve-se então limitar o máximo possível a margem de discricionariedade que as leis
concedem à utilização daquele poder. Além disso as normas constitucionais a serem aplicadas por um
tribunal constitucional, sobretudo as que definem o conteúdo de leis futuras – como as disposições
sobre direitos fundamentais e similares –, não devem ser formuladas em termos demasiado gerais, nem
devem operar com chavões vagos como ‘liberdade’, ‘igualdade’, ‘justiça’ etc. Do contrário, existe o
perigo de uma transferência de poder – não previsto pela Constituição e altamente inoportuno – do
Parlamento para uma instância externa a ele, ‘a qual pode tornar-se o expoente de forças políticas
totalmente distintas daquelas que se expressam no Parlamento”.
292
SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e Regras: Mitos e Equívocos acerca de uma distinção.
Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 1, São Paulo: Del Rey, 2003, p. 611.
155
enquanto os princípios estão na ordem do deontológico, a estipular um dever-ser, ou
seja, a partir deles se opta pelo que é lícito/ilícito
293
-
294
.
Ainda, revela-se interessante afirmar que os princípios, como normas jurídicas
que são, não estão apenas a tratar de direitos fundamentais, podendo, destarte,
também tratar de bens coletivos constitucionalmente protegidos. Podem ser
ponderados, também, bens coletivos
295
, como “segurança interna e externa,
prosperidade da economia, integridade do meio ambiente e o alto nível cultural”
296
.
Ainda assim, para simplificação, denominaremos também de direitos
fundamentais os bens coletivos adiante referidos, a tratar, da mesma forma, de
colisões de direitos fundamentais.
Exemplo interessante de princípios que veiculam normas de direitos
fundamentais (sejam direitos fundamentais propriamente ou bens coletivos) é a
colisão entre os princípios da (a) igualdade de acesso aos cargos públicos e (b) do
dever de o Estado selecionar, a partir de concursos públicos, os melhores candidatos.
Imaginemos dois casos em que determinados concursos públicos, que
pretendem selecionar policiais militares, exigem, no ato da inscrição, que o candidato
comprove medir, no mínimo, 1,60m, no primeiro, e 1,95.
293
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 165;
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 130.
294
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 147: “La diferencia entre princípios y valores se reduce a un ponto. Lo que
em el modelo de los valores es prima facie lo mejor es, en el modelo de los princípios, prima facie
debido; y lo que en el modelo de los valores es definitivamente lo mejor es, en el modelo de los
princípios, definitivamente debido. Así pues, los princípios y los valores se diferencian sólo em virtud
de su caráter deontologico y axiológico respectivamente”.
295
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 185: “En
la medida en que los derechos tienen el caráter de mandatos de optimización, no se trata en ellos de
derechos definitivos, sino de derechos prima facie que, cuando entran en colisión con bienes coletivos
o con derechos de otros, pueden ser restringidos”.
296
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 187. Além
de dependerem de positivação, um bem passa a ser um “bien colectivo de una clase de indivíduos
cuando conceptualmente, facticamente o juridicamente, es imposible dividirlo en partes y otorgarselas
a los indivíduos. Cuando tal es el caso, el bien tiene um caráter no distributivo. Los bienes colectivos
son bienes no-distributivos”. Vale lembrar que é, também, o caráter de mandamento definitivo ou dever
prima facie que informa ser o bem coletivo um princípio ou uma regra (p. 189).
156
Os dois concursos são impugnados junto ao Poder Judiciário sob a mesma
argumentação, é dizer, que estipulam um critério de discriminação excessivo, não
condizente com a realidade brasileira e com a finalidade do concurso público, que diz
respeito a ampliar o máximo possível o número de candidatos habilitados a exercer a
função de policial militar.
Para construir as decisões nos dois casos, alguns argumentos de ordem fática e
jurídica devem ser desbravados:
a) há justificativa plausível para que se exija altura mínima nos citados
concursos;
b) se não, os dois merecem a declaração da invalidade da cláusula de altura
mínima.
c) se sim:
a. por um lado, qual a altura que melhor acomodaria a exigência de a
administração pública contratar policiais militares que provoquem, por
essa razão, um sentimento de maior respeito por parte dos demais
cidadãos?
b. por outro, esta altura mínima condiz com a realidade brasileira? Com o
tamanho médio do homem brasileiro? Haveria discriminação
excessiva?
Para responder à questão da validade das disposições editalícias impugnadas,
essas e outras questões poderiam ser invocadas, ou seja, há que construir a decisão a
partir de elementos da realidade fática e verificar se são juridicamente admissíveis.
Neste sentido, parece-nos que dada a altura média do homem brasileiro, a
exigência de 1,95m é excessiva, vez que alija do concurso público um número
excessivo de candidatos que poderiam desempenhar, com eficiência, as funções de
policial militar, sendo violado, nesse caso, o princípio da igualdade de acesso aos
cargos públicos e da seleção dos melhores candidatos pela administração pública a
partir de concursos públicos.
157
De outra banda, a altura de 1,60m parece-nos condizente com a realidade
brasileira, ou seja, com o binômio maior número/melhores candidatos e amplo acesso
aos cargos públicos.
Todavia, não há razão para afirmar que daqui a 20 anos a altura não poderá ser
maior, dada a expectativa de crescimento dos seres humanos, não se admitindo a
vinculação desse caso concreto a outro surgido mais à frente, vez que não se está, em
um caso como o referido, em que se discute colisão de princípios, a condicionar o
futuro das ações, e, sim, a decidir o caso concreto a partir dos dados fáticos e jurídicos
aplicáveis.
É dizer, a construção do conteúdo jurídico do princípio, quando de sua
aplicação, exige que tanto os dados fáticos quanto os jurídicos sejam utilizados para a
atividade de decidir.
É interessante notar que os dois casos veiculam colisões idênticas, ou seja, os
princípios (a) do livre acesso aos cargos públicos e o (b) dever de a administração
selecionar o melhor conjunto de candidatos para ocupar cargo público, e, cada um,
recebe diferente decisão.
Por essa razão devemos fincar pé no sentido de que são os casos concretos que
informam as potencialidades dos princípios.
4.4.1.1. Colisões de princípios e a regra da proporcionalidade
Quando a decisão depende, no caso concreto, de se resolver se deve prevalecer
um ou outro princípio em colisão, devemos fazer uma opção por um instrumento
estruturado objetivamente para a decisão.
158
A nosso ver, é a regra da proporcionalidade o melhor instrumento para o
alcance desse fim, é dizer, para resolver, unicamente, a colisão entre princípios
297
.
Antes de enfrentá-la, vale dizer que a regra da proporcionalidade recebe
tratamento bastante diferente a partir dos distintos autores que sobre ela debruçaram,
sendo impossível conciliar essas posições, exceto entender que se refere a um
instrumento de reflexão sobre os meios utilizados para alcance do fim objetivado pelo
ato analisado.
Assim, para que mantenhamos coerência com o que pretendemos mais à frente
dizer, setorizaremos nosso discurso na teoria dos direitos fundamentais de Alexy e
naqueles que dela se utilizam para tratar do tema
298
.
Ponto essencial do que afirmamos é que se entenda que a regra da
proporcionalidade é um instrumento para resolver colisões de princípios, valendo
dizer que esta se subdivide, ou nela estão contidos, três sub-exames.
Esses três sub-exames são respectivos, ou seja, dependem, para que se alcance
o segundo, de o primeiro ser satisfeito e, por conseguinte, para que se alcance o
último, de os dois anteriores serem satisfeitos
299
.
Naquela ordem, são os sub-exames referidos: (a) adequação, (b) necessidade e
(c) da proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação
300
-
301
-
302
.
297
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 111-112.
298
Posição distinta, também, é utilizada pelo Direito francês, cf. EMILIOU, Nicholas. The Principle of
proporcionality in European Law – A comparative study. London: Kluwer Law International, 1996, p.
88: “Na maioria dos casos, o critério para a aplicação do princípio da proporcionalidade está baseado
em standards de lógica, ciências naturais etc., comumente aceitos. Há casos, entretanto, em que a
proporcionalidade da ação administrativa é estabelecida de acordo com standards estabelecidos pela lei
(e.g. a necessidade de outorgar poderes sobre a polícia aos prefeitos para a manutenção da ordem
pública). Ao se estabelecer uma relação entre vários fatos, todavia, é somente um aspecto da tomada de
decisão administrativa. A ação administrativa sempre envolve um complexo processo de junção e
sopesamento de fatos e a aplicação do direito a uma situação dada. Diferentes fatores devem ser
pesados, prioridades devem ser estabelecidas e conclusões legais alcançadas. Aqui o princípio da
proporcionalidade retorna à situação. De um modo amplo, esse princípio está ligado à administração, à
razoabilidade e a um procedimento justo. Esse conceito vago de proporcionalidade facilita sua
utilização pois acaba por criar um sentido amplo sem fronteiras claras”.
299
SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v.
798, abr. 2002, p. 34-35.
300
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 114.
159
4.4.1.1.1. Exame de adequação
Como dito acima, o exame da proporcionalidade tem por finalidade analisar a
relação meio-fim entre a medida adotada e o fim almejado.
O exame da adequação exige que se verifique se o meio adotado fomenta o
alcance do fim objetivado
303
e que esse fim, por sua parte, seja legítimo, o que
significa dizer que se deve verificar se não está proibido tanto expressa quanto
implicitamente pela Constituição
304
.
Parece-nos que o exame da adequação sem a verificação da legitimidade do
fim se faz enfraquecido, pois a quase qualquer medida poderia ser assim conferido o
selo de adequação
305
.
301
TRIDIMAS, Tarkis. Proportionality in Comunity Law: Searching for the Apropriate Standard of
Scrutinity. In: ELLIS, Evelin (org.). The principle of proportionality in the laws of Europe. Oxford:
Hart, 1999, p. 68. Diz o autor que há certa confusão na aplicação do “princípio da proporcionalidade”
ao direito comunitário, com um teste duplo e não triplo como defendemos, e, ainda, em uma confusão
entre os sub-exames: “O teste tripartite recebeu algum suporte judicial mas, na prática, a Corte não
distingue na sua análise entre o segundo e o terceiro sub-exame (necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito). Também, como se verá, em alguns casos, a Corte diz que um meio é compatível com a
proporcionalidade sem pesquisar por alternativas menos restritivas ou se, eventualmente, existem
alternativas. A característica essencial do princípio é que a Corte faz uso de uma exercício de
sopesamento entre os objetivos perseguidos pelo meio sob julgamento e seus efeitos sobre as
liberdades individuais”.
302
BOCKENFORDE, Ernst Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Baden-Baden: Nomos
Verlagsgesellschaft, 1993, p. 124: o autor fala de uma “proporcionalidad-adequacion” em confronto
com a “proporcionalidad clásica”, defendendo, que seja o terceiro exame (ponderação) refutado”. Essa
posição contrária de Bockenforde contra a juridicidade da ponderação é citada por SILVA, Virgílio
Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais,. São Paulo: RT, v. 798, abr. 2002, p.
35.
303
SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v.
798, abr. 2002, p. 36-37: “Adequado, então, não é somente o meio cuja utilização a realização de um
objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a realização de um objetivo é fomentada,
promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado. Há uma grande diferença entre
ambos os conceitos, que fica clara na definição de Martin Borowski, segundo a qual uma medida
estatal é adequada quando o seu emprego faz com que o ‘objetivo legítimo pretendido seja alcançado
ou pelo menos fomentado’. Dessa forma, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua
utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido”.
304
PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. Madrid:
Centros de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003, p. 690.
305
Com isso, apartamo-nos, ligeiramente, da análise de Alexy que não verifica na adequação a
necessidade de apontar-se a legitimidade do fim. Mesmo porque, com isso, altera-se uma a visão de
160
Há que se dizer que não se exige, para que sejam cumpridos os ditamos deste
exame, que o fim seja efetivamente alcançado
306
-
307
.
Basta que esteja o meio apto a fomentar o alcance, ou seja, que esse meio
tenha condições de alcançar e não que seja o fim alcançado obrigatoriamente, vez que
exigir o alcance efetivo impede que se entenda a interpretação do direito como algo
complexo e contingente, ou seja, que para o alcance de um fim legítimo há mais que
uma possibilidade e que é o momento da tomada da decisão que importa para a
escolha, sendo possível que em um futuro, entre as mesmas possibilidades
interpretativas, seja outra delas escolhida
308
.
Outrossim, trata-se de refletir sobre a falência da idéia da racionalidade
objetiva absoluta e da verificação de que o erro, eventualmente, pode fazer parte do
processo de escolha no Direito.
Ademais, nem os parlamentos, nem, muito menos, os tribunais, estão aptos,
por óbvio, a dar a resposta exata (única) para os problemas concretos, sendo de sua
alçada oferecer a melhor delas.
Trata-se do exame mais “leve” entre os que compõem a máxima da
proporcionalidade.
Alexy
309
esclarece a utilização da sub-regra da adequação com o caso do
barbeiro que, após instalar uma máquina de venda de tabaco, teve contra si imposta
uma sanção pela administração pública em decorrência da existência de lei que exigia,
que é um exame unicamente fático, ou seja, ao exigir tanto a legitimidade quanto o fomento do alcance
do fim, transforma-se em um exame híbrido, tanto fático (fomento) quanto jurídico (legitimidade).
306
BOROWSKI, Martin. La Estrucutura de los Derechos Fundamentales. Bogotá: Universidad
Externado de Colômbia, 2003, p. 130: “Una medida estatal es idónea si su adopción conduce a que se
alcance o favorezca la obtención del fín legítimo perseguido por el Estado. Un fin es legítimo si su
consecución está ordenada o en todo caso permitida constitucionalmente. Los fines ilegítimos son sólo
aquellos cuya obtención está prohibida por la Constitución”.
307
STEINMETZ, Wilson. A Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 212: diz o autor que o meio deve ser “apto, útil, idôneo ou apropriado para atingir
ou promover o fim pretendido”.
308
Trata-se, a nosso ver, dos conceitos de complexidade e contingências da teoria do sistemas
luhmanniana. Entre outros, vf. CAMPILONGO, Celso. O direito da sociedade complexa. São Paulo:
Max Limonad, 2000.
309
ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho
Constitucional, n. 66, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, set./dez. 2002, p. 27-28.
161
para a comercialização de tabaco, fosse comerciante “formado” ou de há muito
tempo, ou que passasse por uma prova especial para tanto (Meio: M).
Inconformado, recorreu o comerciante à jurisdição ordinária e, após, à
jurisdição constitucional do Tribunal Constitucional.
O Tribunal Constitucional Federal Alemão tratou de verificar o seguinte:
1) estaria posta uma colisão de princípios, tais os da (a) liberdade de profissão,
de um lado, e (b) a proteção dos consumidores (saúde) de outro lado;
2) fomentaria o Meio (M) o alcance do fim voltado para a proteção dos
consumidores, é dizer, exigir a comprovação de M fomentaria a efetiva proteção de
(b)?
Entendeu o tribunal que não, vez que exigir curso especial, aprovação em
prova especial ou ser comerciante há muito não alcança nem fomenta a proteção do
consumidor, dado que o dano à saúde dos consumidores não decorre disso e sim do
uso do próprio tabaco, tratando-se, assim, de meio inadequado para o fim objetivado.
4.4.1.1.2. Exame da necessidade
Ultrapassado o exame da adequação, alcança-se o da necessidade.
O exame da necessidade, fático, cuida de verificar se existe outra medida que
fomente o alcance do fim almejado com tamanha intensidade e que, por outro lado,
faça-o sem restringir tão intensamente um dos princípios que se encontra em colisão.
Isso quer dizer que, em se tratando de uma colisão entre dois princípios, deve
haver, além da medida tomada, outra que, ao dar prioridade a um dos princípios, não
limite com tamanha intensidade o princípio preterido
310
.
310
SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável, Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v.
798, abr. 2002, p. 39: Excelente a definição do autor para quem “um ato estatal que limita um direito
fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida,
162
Em síntese, busca-se que “de dos medios igualmente idóneos sea escogido el
más benigno con el derecho fundamental afectado”
311
.
Trata-se de exame que exige uma comparação entre possíveis medidas que
fomentem o alcance do fim almejado com a mesma intensidade, e, assim, que esse
meio seja o “mais suave”
312
.
Pode ocorrer, entretanto, que não disponha aquele que decide a colisão de
princípios de conhecimento científicos bastantes para optar por uma ou outra medida
possível, caso em que, havendo previsão legislativa sobre a questão, deve a medida
previamente escolhida e sob análise ser privilegiada
313
, se não se configurar
excessivamente restritiva.
Trata-se de “expresar la idea del óptimo de Pareto: una posición puede ser
mejorada, sin que otra empeore”
314
.
4.4.1.1.3. O exame da proporcionalidade em sentido estrito
315
Esse exame depende, como dissemos, do cumprimento e respeito do ato ou
medida sob análise aos dois anteriores exames: adequação e necessidade.
com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito, para
promover o objetivo O, o Estado adote a medida M1, que limita o direito D. Se houver uma medida M2
que, tanto quanto M1, seja adequada para promover com igual eficiência o objetivo O, mas limite o
direito fundamental D em menor intensidade, então a medida M1, utilizada pelo Estado, não é
necessária. A diferença entre o exame da necessidade e o da adequação é clara: o exame da necessidade
é um exame imprescindivelmente comparativo, enquanto o da adequação é um exame absoluto”.
311
ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales, Revista Española de Derecho
Constitucional, n. 66. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, set./dez. 2002, p. 28.
312
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituição. São Paulo: Celso Bastos
Editor, 2002, p. 85.
313
ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales, Revista Española de Derecho
Constitucional, n. 66, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, set./dez., 2002, p. 29-
30.
314
ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales, Revista Española de Derecho
Constitucional, n. 66, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, set./dez. 2002, p. 28.
315
O princípio da proporcionalidade em sentido estrito corresponde à própria verificação do núcleo
essencial dos direitos fundamentais, ou seja, é o exame jurídico que fixa o limite das restrições dos
direitos fundamentais, cf. ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1997, p. 290-291.
163
Ultrapassados aqueles, chega-se ao exame jurídico da ponderação ou da
proporcionalidade em sentido estrito.
Esse exame exige que se verifiquem os custos da restrição de um direito
fundamental veiculado a partir de princípio em favor da garantia ou preferência dada
a outro princípio com esse em colisão.
Por isso, estrutura-se “la ponderación al obligar a formular y fundamentar
enunciados sobre el grado de no realización y afetación como así también enunciados
sobre el grado de importância; aqui interessa todo argumento posible en la
argumentación jurídica”.
Trata-se da estruturar os argumentos em favor e contrários a cada princípio em
colisão, de forma que se verifique, ante o sistema jurídico, se a restrição de um dos
princípios em favor de outro é admitida pelo próprio sistema.
Para isso, deve-se verificar que “cuanto mayor es el grado de incumplimiento
o de afectación de un principio, tanto maior tiene que ser la importancia del
cumplimiento del otro”
316
.
Todavia, a “importância do cumprimento do outro” deve ser verificada a partir
da própria importância que o sistema jurídico dá aos princípios em colisão, e não ser
direcionada àquele que foi favorecido ou preterido na própria colisão.
É de se analisar, a partir do direito positivo, se a medida verificada e o fim
buscado respeitam o sentido que decorre do sistema jurídico para privilegiar um dos
princípios em detrimento de outro no caso concreto
317
.
Assim, podemos dividir os processo ponderativo em três passos, verificando:
a) o grau de afetação de um dos princípios; b) a importância da satisfação do princípio
316
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 206.
317
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 171: “Las
condiciones de precedencia estabelecidas em un sistema jurídico, es decir, las reglas que se
corresponden con la ley de colisión, proporcionan información acerda del peso relativo de los
principios. Desde luego, a causa de la posibilidad de nuevos casos con nuevas combinaciones de
caraceristicas que deben ser evaluadas, no es posible construir com su ayuda ningún orden que
establezca em cada caso justamente uma decisión. Pero, con todo, se abre la posibilidad de un
procedimiento de argumentación que no existiria sin los princípios”.
164
em colisão com o primeiro; c) se a importância da afetação a um dos princípios
justifica a satisfação do outro
318
.
Para estruturar esse processo construtivo, Alexy propõe que se formule uma
escala de três graus para cada princípio em colisão, no sentido de satisfação/não
satisfação de cada um deles
319
.
Para isso, Alexy cria a necessidade de que, além de se verificar o grau de
satisfação/não satisfação de cada princípio, se imponha seja classificado em: a) leve;
b) média; e c) grave a satisfação/não satisfação de cada qual.
Nesse sentido, utiliza-se do caso Titanic
320
para expor sua tese tripartite de
graus de satisfação/insatisfação que se inserem no sub-exame da proporcionalidade
em sentido estrito.
Trata-se de caso em que a revista satírica Titanic chamou de “assassino nato”
e, posteriormente, de “aleijado” um oficial da reserva que era paraplégico e que havia
sido convocado novamente à ativa para participar de um exercício militar. O tribunal
de Düsseldorf condenou a revista a uma indenização de 12.000 marcos levando em
conta as duas assertivas. Após isso, a revista recorreu ao Tribunal Constitucional
Federal, que conduziu uma ponderação relativa às circunstâncias do caso concreto.
Assim, a decisão analisada sob o prisma da regra da proporcionalidade é a
decisão do Tribunal de Düsseldorf.
Para chegar ao resultado final, o TCF, primeiramente, ponderou sobre a
intensidade ou peso da intervenção sobre os direitos envolvidos (liberdade de
expressão e honra), veiculados a partir de princípios.
Após seu exame a partir da regra da proporcionalidade, a condenação ao
pagamento da indenização decorrente do julgado do Tribunal de Düsseldorf foi
considerada como uma intervenção dura, grave, na liberdade de expressão, pois ter
chamado o autor da ação de “assassino nato” estava dentro das sátiras realizadas
318
ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales, Revista Española de Derecho
Constitucional, n. 66, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, set./dez. 2002, p. 32.
319
Idem, ibidem, p. 33.
320
Idem, Ibidem, pp. 33-36.
165
costumeiramente pela publicação, é dizer, seria costumeiro que uma revista satírica
assim se manifeste sobre pessoas.
Com isso, acabou por rever a decisão anteriormente referida, e considerou
uma lesão leve ao direito à honra, sendo que o TCF entendeu que, a condenação ao
pagamento da indenização, que é uma intervenção grave ao direito fundamental da
liberdade de expressão, estaria justificada, somente, se fosse configurada uma lesão
igualmente grave ao direito à honra.
Porém, quanto ao apelido de “aleijado”, o tribunal entendeu que castiga
gravemente o direito à honra do oficial da reserva, que era paraplégico, vez que
chamar de aleijada a uma pessoa portadora de deficiência física deve ser entendido
como uma humilhação e uma grande falta de respeito.
Desse modo, temos, à nossa frente, uma intervenção grave, decorrente da
indenização decidida com o fim de limitar o direito à livre expressão, que se faz
relevante dada a extrema importância de se proteger o direito à honra no caso
concreto.
Nesse sentido, no recurso interposto pela revista Titanic, foi dado provimento
somente em relação à indenização pelo uso do adjetivo “assassino nato”, indeferindo
o recurso quanto a injúria de “aleijado”, mantendo-se a condenação somente quanto a
essa última expressão.
Alexy admite ser discutível se o apelido “assassino nato” representa apenas
uma intervenção leve ou média ao direito à honra. Porém, o que interessa discutir é de
que forma chamar alguém de “aleijado” afeta de uma maneira intensa os princípios da
liberdade de expressão e a honra.
Ou seja, é a ponderação de quão grave é a lesão.
“Uma humilhação pública e uma falta de respeito semelhantes
afetam a dignidade do ex-militar. Não se trata então de uma lesão
grave, mas de uma lesão muito grave ou extraordinariamente
grave
321
.
321
Idem, Ibidem, pp. 34.
166
Alexy diz que, embora os direitos fundamentais, interpretados como
princípios, possuam gradações de limites no ato de ponderar, tais limites não podem
ser concebidos como “imóveis e livres da ponderação
322
, mas, sim, como pautas
fixas e claras, pois existem razões plausíveis que os corroboram
323
.
Nesse momento de exame jurídico a partir da ponderação deve o sistema
jurídico oferecer um norte para a decisão, pois se trata, a nosso ver, de aplicar método
parecido com o sistemático, tão conhecido e antigo, ainda que desprestigiado pelos
defensores da “nova interpretação constitucional”, que, a nosso ver, não é nova nem,
muito menos, especificamente constitucional, vez que raras vezes é utilizada sem que
seu objeto seja a legislação infraconstitucional
324
, além de não enfrentar o problema
da alteração do Direito como um todo e da própria dogmática jurídica cambiante.
No mais, a ponderação carrega consigo a necessidade de um intérprete que
participe mais do processo de construção do Direito e, quanto ao próprio Direito, um
avanço quanto à sua adaptabilidade. Isso porque nem sempre é possível que o
legislador tutele expressamente a resolução de todos os problemas, e nem deveria sê-
lo, vez que não dispõe mais do monopólio na construção do Direito.
Assim, a análise jurídica da ponderação exige que se tome como premissa que
o Direito positivo não oferece como um dado toda e qualquer decisão, mas se trata de
uma construção que se renova a caso concreto que se decide.
Transparente se torna após uma reflexão sobre o juízo de ponderação que este
não oferece a mesma certeza de resultado que os métodos hierárquico ou cronológico,
do raciocínio subsuntivo, por exemplo. Não se trata de um escudo à infalibilidade.
Mas, com isso, não se admite o chame de vazio
325
.
322
Idem, Ibidem, pp. 36
323
Idem, Ibidem, pp. 37.
324
Há críticas interessantes em SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional e Sincretismo
Metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação Constitucional. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 141, principalmente quanto ao conceito de sincretismo metodológico. Não
concordamos com o autor quando esse diz que há uma diferenciação entre a interpretação
constitucional e de outros ramos do Direito. Isso porque acreditamos que o que foi alterado,
principalmente, no século passado, foi toda a dogmática do direito e não somente a da constituição.
Trata-se, ao nosso ver, de observação parcial de um fenômeno global no Direito.
325
Em que pese trecho demasiadamente grande e a utilização de uma imprecisão da expressão normas
jurídicas e da confusão entre regra da proporcionalidade e ponderação, o raciocínio é interessante em
SANCHÍS, Luis Prieto. El Juicio de Ponderacion. In: SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia Constitucional y
167
Trata-se de verificar que são as conjugações jurídicas do caso concreto, quanto
à colisão de princípios, assimiladas ao papel construtivo do intérprete (decisor), que
fazem com que se a imponha como um método que atribui alguma contenção ao
intérprete, que deve disponibilizar àquele que se debruça para verificar sua decisão
uma argumentação a mais consistente possível.
Trata-se de oxigenar o direito com a realidade, em um movimento pendular
que oferece às duas partes (princípios) elementos de retro-alimentação.
Esperamos surja uma forma mais consistente de decidir, mas, ainda, não a
conhecemos.
4.4.1.2. O problema do excessivo recurso à ponderação
Afirmamos anteriormente que (a) não basta apenas a filiação a uma das
correntes de vinculação dos direitos fundamentais às relações particulares e que (b) se
veiculados esses direitos fundamentais a partir de princípios deve a regra da
proporcionalidade ser utilizada, mais especificamente, o exame da proporcionalidade
em sentido estrito ou da ponderação.
Derechos Fundamentales, Madrid: Editorial Trotta, 2003, pp. 190: “Se ha criticado que la máxima de
ponderación de Alexy es uma fórmula hueca, que no añade nada al acto mismo de pesar o de
comprobar el juego relativo de dos magnitudes escalares, mostrándose incapaz de explicar por qué
efectivamente un princípio pesa más que outro. Y, ciertamente, si lo que se espera de ella es que
resuelva el conflicto mediante la asignación de un peso próprio o independiente a cada principio, el
juego de la ponderación puede parecer decepcionante; la ‘cantidad’ de lesión o de frustración de un
principio (su peso) no es una magnitud autónoma, sino que depende de la satisfación o cumplimiento
del principio en pugna, y, a la inversa, el peso de este ultimo esta em función del grado de lesión de su
opuesto. Pero creo que esto tampoco significa que sea una formula hueca, sino que no es uma formula
‘infalible’, al modo como pretenden serlo los tradicionales critérios de resolución de antinomias; o
mejor dicho, que no es una fórmula em ningún sentido, sino um camino para alcanzarla, um camino
que no sería preciso recorrer si contáramos con normas de segundo grado que nos indicasen el peso de
cada razón y, con ello, la fórma de resolver el conflicto. Lamentablemente, no estamos em presencia de
um critério como el jerárquico o el cronológico, que tan sólo reclaman comprobar el rango formal o la
fecha de promúlgación de las normas. A mi juicio, la virtualidad de la ponderación reside
principalmente em estimular una interpretación donde la relación entre las normas constitucionales no
es una relación de independencia o jerárquica, sino de continuidad y efectos recíprocos, de manera que,
hablando por ejemplo de derechos, el perfil o delimitacíon de los mismos no viene dado en abastracto y
de modo definitivo por las fórmula habituales (orden público, derecho ajeno, etc.), sino que se decanta
em concreto a la luz de la necesidad y justificación de la tutela de otros derechos o princípios en
pugna”.
168
Com isso não podemos afirmar que todo e qualquer problema jurídico se
refere à remissão da colisão princípios.
Isso porque a “hipertrofia” da utilização desse método pode acabar em
superestimação do papel do Poder Judiciário na construção do Direito
326
.
Tornou-se usual a discussão sobre o “princípio da proporcionalidade” e, cada
vez mais, este recebe do Poder Judiciário adesão. Em alguns casos, irrestrita.
Ocorre que nem sempre esse “princípio” pode ser livremente utilizado, porque
há casos em que, apesar de se poder recorrer à ponderação de princípios, há, tamm,
para o mesmo caso a ser decidido, uma intermediação do legislador que, se suficiente,
deve prevalecer
Isso não quer dizer que há um afastamento da eficácia imediata
327
, porque os
direitos fundamentais não deixam de continuar a produzir efeitos jurídicos, mesmo se
houve intermediação do legislador ou do juiz. Há, sim, um fluxo constante de efeitos,
fluxo esse que é incessante.
Esse excessivo recurso à ponderação ficou bastante claro no julgamento do
HC nº 82.424, cujo paciente, Sigfried Elwanger, editava e escrevia livros com
conteúdo anti-semita.
Da análise de alguns votos, principalmente o voto do Min. Gilmar Mendes,
vê-se ser o princípio da proporcionalidade fundamento para a tomada de posição do
tribunal sobre o assunto.
326
Essa e algumas idéias adiante tratadas são fruto de reflexão sobre a posição adotada por SILVA,
Virgílio Afonso da. Constitucionalização do Direito – Os direitos fundamentais nas relações entre
particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 168.
327
Discordamos quanto ao afastamento da vinculação imediata em caso de intermediação legislativa,
mas, mesmo assim, concordamos com o final do raciocínio ao afirmar o autor que deve-se resolver o
caso concreto a partir da própria ponderação efetivada pelo legislador. STEINMETZ. Wilson. Principio
da Autonomia Privada e Atos de Autonomia Privada. In: SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação
Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 25: “Somente estará afastada a eficácia imediata quanto
houver regulações legislativas concretizadoras de direitos fundamentais que sejam constitucionalmente
possíveis ou conformes aos direitos fundamentais. Em tais casos o juiz não poderá sobrepor-se à
ponderação do legislador, sob pena de violação da separação de poderes (CF art. 2º.) e do princípio
democrático (CF, art. 1º, parágrafo único)”.
169
Como linha geral, os argumentos foram estruturados, quase que na totalidade,
referindo-se a uma colisão entre a liberdade de expressão e imprensa, de uma banda, e
honra e dignidade da pessoa humana, de outra
328
.
Assim, estruturar-se-ia a decisão a partir de uma ponderação, o que acaba por
conferir equívoco certo.
Isso porque, a nosso ver
329
, o próprio sistema jurídico pátrio já havia feito uma
opção legislativa, ou seja, já se manifestara o legislador pátrio, a partir da Lei
7716/89
330
e, conseqüentemente, nas Leis 8.081/90 e 9.459/97, no sentido de entender
que o ato de “praticar, induzir ou incitar a discriminação” deve sofrer as penalidades
das leis referidas.
É dizer, há que se aplicar a lei ou, se inconstitucional, assim declará-la. Para
isso, basta que a decisão se estruture a partir de um raciocínio subsuntivo, de ordem
dedutiva, como se estrutura a aplicação, de regras e não, como feito, a partir da
ponderação de princípios.
Repise-se: há uma escolha feita pelo legislador e ela deve receber preferência
no processo de argumentação e decisão jurídica, dada a legitimação democrática que
lhe caracteriza, exceto se excessiva.
Do contrário, buscaremos sempre nos princípios o modo de tomar decisões,
dessa forma fortalecendo desmesuradamente aquele que toma a decisão em
detrimento de toda a legitimidade democrática do legislador eleito a partir do voto dos
328
SILVA, Virgílio Afonso da. Constitucionalização do Direito – Os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 169.
329
O exemplo é de SILVA, Virgílio Afonso da. Constitucionalização do Direito – Os direitos
fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 168.
330
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15.05.1997)
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou
propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. (Redação
dada pela Lei nº 9.459, de 15.05.1997)
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação
social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15.05.1997)
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
170
cidadãos, fazendo prevalecer um direito que despreza o que o povo almeja, sob o risco
de alcançar um Direito de gabinetes, frio e amorfo.
4.4.1.3. Proporcionalidade e (ir)razoabilidade
Diferentemente da regra da proporcionalidade, o princípio da (ir)razoabilidade
nasce no direito inglês, ou seja, é derivado da tradição anglo-saxônica e, já que
nascido na Inglaterra
331
, influenciado pela doutrina da supremacia do parlamento.
Nesse direito inglês, o princípio da proporcionalidade vem recebendo,
recentemente, alguma aceitação, mais ainda quando se trata da aplicação do direito
comunitário.
Contudo, dois testes da (ir)razoabilidade se revelam característicos no direito
inglês: o Pure Wednesburry test e o Relative Wednesburry test.
O primeiro nasce da decisão de 1948, em que o citado teste define que é
irrazoável a decisão tomada por agente público, a qual não seria tomada por qualquer
outro em sã consciência
332
, é dizer, estrutura-se simplificadamente a partir da idéia
vaga, diríamos, da razão, ainda que sob uma perspectiva objetiva desta.
Verifica-se que se trata de intervenção do Judiciário em casos extremos em
que a medida adotada beira ao absurdo, ao extremo
333
.
Mais recentemente, admitiu-se que, em casos envolvendo direitos
fundamentais, o controle judicial deve ser mais acurado que em casos em que se
331
FILHO, Willis Santiago Guerra. Princípio da Proporcionalidade e Teoria do Direito. In: GRAU,
Eros Roberto; FILHO, Willis Santiago Guerra (coord.). Direito Constitucional: Estudos em
homenagem à Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 83.
332
CRAIG, Paul. Unreasonableness and proportionality in UK Law. In: ELLIS, Evelin (org.). The
principle of proportionality in the laws of Europe. Oxford: Hart, 1999, p. 95-96.
333
CRAIG, Paul. Unreasonableness and proportionality in UK Law. In: ELLIS, Evelin (org.). The
principle of proportionality in the laws of Europe. Oxford: Hart, 1999, p. 94. Entre outras opiniões,
vale a referida por Lord Greene que conjuga a idéia de irrazoabilidade com eventual decisão de demitir
uma professora por ser ruiva, ou a de Lord Diplock que afirma ser irrazoável uma decisão “que é tão
ultrajante em sua contradição à lógica ou a standards morais aceitos que qualquer pessoa sensível que
se ponha a refletir teria a alcançado tal conclusão”.
171
envolvam relações econômicas entre particulares, por exemplo. É o caso do chamado
de Relative Wednesburry test
334
.
Ainda que não tão estruturado como a regra da proporcionalidade, que carrega
consigo seus sub-exames, a relação entre (ir)razoabilidade e ato do poder estatal,
nesse segundo teste da irrazoabilidade, aponta uma evolução no sentido de se admitir
uma intervenção judicial mais forte.
Isso porque já não basta que seja tomada decisão que nenhuma outra pessoa
em sã consciência tomaria sob o ideal da razão, mas, no segundo teste Wednesburry,
exige-se que, quanto mais interferência haja nos direitos fundamentais restringidos,
mais intensas devem ser as razões justificadoras para a medida restritiva
335
.
Ainda que haja uma aproximação com a regra da proporcionalidade, é
inegável que o exame da proporcionalidade demanda maior rigor e esforço do
intérprete para a aferição dos fins e meios ante seus sub-exames que o princípio da
(ir)razoabilidade.
Assim, pode-se concluir que é mais aperfeiçoado o exame da
proporcionalidade.
Do que se disse, pode-se concluir que os princípios da proporcionalidade e
(ir)razoabilidade não se confundem
336
.
A nosso ver, por utilizarem duas análises distintas, não há como dizer que
esteja um contido no outro.
O que afirmamos é que o exame da proporcionalidade, com sua estrutura
tripartite, é mais exigente e impõe àquele que a decidir a exigência de argumentos
mais consistentes, vez que, além de veicular um perfil formal mais claro na sua
334
CRAIG, Paul. Unreasonableness and proportionality in UK Law. In: ELLIS, Evelin (org.). The
principle of proportionality in the laws of Europe. Oxford: Hart, 1999, p. 97.
335
CRAIG, Paul. Unreasonableness and proportionality in UK Law. In: ELLIS, Evelin (org.). The
principle of proportionality in the laws of Europe. Oxford: Hart, 1999, p. 98. Parece-nos ser essa a
posição de SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável, Revista dos Tribunais, São
Paulo: RT, v. 798, abr. 2002, p. 29.
336
NOVAIS, Jorge Reis. As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizados pela
Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 765. Aponta o autor ser comum a confusão entre
razoabilidade e proporcionalidade em sentido estrito.
172
divisão em três partes, a regra da proporcionalidade exige sejam expostos e
confrontados os argumentos contrários e favoráveis aos princípios em colisão,
princípios esses que não são exigências para a aplicação do exame da irrazoabilidade.
Nada impede, assim, que cheguemos à conclusão de casos em que se diga ser
razoável e, ao mesmo tempo, desproporcional, vez que o que afirmamos é que os
exames são distintos
337
.
4.4.2. Direitos fundamentais como regras
Diferentemente dos princípios, que exigem uma construção jurídica a partir de
ponderação com outros princípios, as regras exigem que o intérprete as aplique a
partir do conhecido método subsuntivo
338
.
O método subsuntivo é desenvolvido a partir de um raciocínio de ordem
dedutiva, ou seja, é a partir de uma premissa maior (a legislação) e de uma menor (o
caso concreto) que é alcançado um resultado final (conclusão).
Nesse sentido, pode-se dizer que as regras estipulam mandamentos definitivos,
em contradição com os princípios, que estipulam deveres prima facie, ou seja, estes
somente têm seu conteúdo jurídico construído após a devida ponderação com outros
princípios ou regra opostos.
Já as regras, ao estipular mandamentos definitivos, oferecem ao intérprete, no
momento da sua verificação no caso concreto, todas as possibilidades alcançáveis por
seu conteúdo.
Por essa razão as regras “son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si
una regla és válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni
337
SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável, Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v.
798, abr. 2002, p. 30.
338
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 162.
173
menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fática y
juridicamente posible”
339
.
Isso quer dizer que ou são aplicáveis, e nesse caso se reconhece sua validade,
ou não o são, no sentido de que, se houver conflito entre regras, há que haver, por
conseguinte, a obrigação do órgão decisor (intérprete) de declarar uma delas nula, vez
que se aplicam na medida do tudo ou nada
340
, ou, se possível, como veremos mais
adiante, estabelecer uma cláusula de exceção para que não haja a necessidade de
declaração de invalidade
341
.
Assim, do conflito de regras decorre a eliminação por invalidade de uma delas,
necessariamente, enquanto para os princípios, dada a utilização da metáfora do
peso
342
, conforme o caso concreto, haverá a opção por um princípio em detrimento de
outro, que, no caso a decidir, recebe uma idéia de “peso” menor que o escolhido.
Para exemplificar o que se disse, preferimos nos utilizar de exemplo de
Alexy
343
sobre o conflito entre uma lei de um Estado Membro que proíbe o comércio
às quartas-feiras, a partir das 13 horas e uma lei federal que estipula que, na mesma
quarta-feira, permite-se o comércio até às 19 horas.
339
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 87.
340
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 163. Em
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1997, p. 24: “A
diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é uma distinção lógica. Ambos os standards
apontam para uma decisão particular sobre obrigações jurídicas em circunstâncias particulares, mas
diferem quanto ao caráter de direção que oferecem. As regras são aplicadas na medida do tudo-ou-nada
(all or nothing fashion). Se os fatos tratados pela regra ocorrem, a regra é válida e a decisão que ela
oferece deve ser aceita ou, se não, ela não contribui em nada para a decisão”.
341
Em contrário CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre derecho y lenguaje. 4ª ed. Buenos Aires: Abeledo
Perrot, 1990, p. 226: “De lo expuesto se sigue que no existe la pretendida ‘diferencia lógica’entre las
reglas jurídicas y las pautas del tipo de la que expresa que a nadie debe permitírsele beneficiarse con su
própria transgresión (o que aqui denominamos princípios). No es cierto que las reglas son siempre
aplicables de la manera ‘todo o nada’. Tampoco es cierto que las reglas permiten, al menos en teoria,
enumerar de antemano todas sus excepciones. Para ello habría que imaginar de antemano todas sus
excepciones. Para ello habría que imaginar de antemano todas las circunstáncias posibles de aplicación
lo que, obviamente, és imposible. Por otra parte, los conflictos entre reglas no siempre se resuelven
negando la validez de uma de ellas; muchas vezes es menester fundar la decisión – que puede incluso
asumir la forma de um compromiso – en algo muy semejante al ‘peso’ relativo de una y otra pauta en el
contexto particular del caso que da lugar al conflicto. La dimensión de ‘peso’ no es propriedad
exclusiva de pautas como que la establece que a nadie debe permitírsele sacar ventajas de su
trangresión”.
342
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 93.
343
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 162-163.
174
A partir das normas construídas com base em cada lei, põem-se em conflito
duas regras: (a) a regra construída a partir da lei estadual que diz que é proibido ter
lojas de comércio abertas após às 13 horas às quartas-feiras; (b) a regra, construída a
partir da lei federal, que permite o comércio em lojas, às quartas-feiras, até às 19
horas.
Ora, como resolver este conflito? Veja que aqui não se fala em ponderação, ou
seja, não haverá preferência de uma das regras em detrimento da outra sem que se
atinja a declaração de invalidade de uma delas, como ocorre com os princípios, em
que não se mensura a possibilidade de um deles receber uma declaração de
invalidade.
Há que haver, em caso de conflito de regras, um critério que faça com que
uma delas receba a declaração de invalidade. Esse critério, utilizado pelo Tribunal
Constitucional Federal Alemão
344
, é o oferecido pela norma que se retira do
enunciado
345
do artigo 31 da Lei Fundamental, que diz que “o direito federal tem
privilégio sobre o estadual”.
Nesse sentido, só resta ao tribunal declarar a invalidade da lei estadual
apontada que veicula a regra de proibição acima tratada, fazendo com que sejam os
efeitos jurídicos da lei federal, que estipula a regra da permissão, mantidos como
norte na aplicação do caso concreto.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o conflito de regras é resolvido a partir de
dois modos bastante conhecidos pela dogmática jurídica: (a) se possível, a introdução
de uma cláusula de exceção, quando não há a necessidade de se declarar a invalidade
de uma das regras em conflito; (b) se não é possível introduzir uma cláusula de
exceção, há que se declarar a invalidade de umas das regras em conflito a partir dos
métodos da (b.1) lei posterior que revoga a anterior; (b.2) o método da especialidade,
em que a lei especial revoga a lei geral; e (b.3) o critério da lei superior que derroga a
lei inferior.
344
BVerfGE 1, 283(292 ss.) apuda ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2ª ed.
Barcelona: Gedisa, 1997, p. 163.
345
Art. 31: “O direito federal tem prioridade sobre o direito dos Estados federados”.
175
Para a primeira hipótese (a), os conflitos entre regras podem, também, ser
resolvidos a partir da estipulação de uma cláusula de exceção.
Quanto houver um conflito entre duas regras que exigem que (a) se proíba a
utilização de aparelhos de gravação nas aulas ministradas e (b) que permite que os
portadores de deficiência visual possam gravar as aulas, pode ser construída a
seguinte regra decisora: é proibida a gravação de aulas por alunos, exceto se esses
alunos são deficientes visuais. Trata-se de resolver conflito sem a necessidade de
declaração de invalidade de uma das regras
346
.
Os demais casos são demasiadamente conhecidos, sendo: (b.1) o caso da lei
anterior que é revogada, total ou parcialmente, em caso de lei posterior veicular a
mesma matéria, ainda que não determine a revogação expressa; (b.2.) o caso de leis
que tratam da mesma matéria, mas que uma delas é mais detalhada, específica, que a
outra, e merece o privilégio da manutenção, vez que recebeu, do legislador ou do
constituinte, uma especificação mais acurada, ou seja, um exercício mais responsável
e eficiente do que resulta de exercício de sua função típica de legislar; e (b.3) o caso
da lei de hierarquia inferior que deve obter fundamento de validade na norma
hierarquicamente superior.
4.5. Vinculação dos particulares às normas de direitos fundamentais: nossas
posições
Oferecida nossa adesão às idéias de Alexy sobre normas de direitos
fundamentais como princípios e regras, cabe-nos, agora, enfrentar o tema da sua
vinculação aos particulares.
346
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 88.
176
4.5.1. Vinculação dos particulares aos direitos fundamentais veiculados a partir de
regras
Por primeiro, vale salientar que nas regras de direitos fundamentais somente
são aplicáveis às relações entre particulares caso sejam endereçadas, diretamente, aos
particulares
347
.
Isso porque a construção das regras a partir dos enunciados normativos
previstos nos textos constitucionais não permite aduzir, exceto se de clareza peculiar,
que são aplicáveis aos particulares, vez que, na maior parte das vezes, claramente
voltadas a impor óbice à ação excessiva do Estado.
Na Constituição Federal brasileira verificamos que alguns direitos
fundamentais
348
são veiculados a partir de regras, ou seja, são regras de direitos
fundamentais.
É o caso da regra da anterioridade penal, que decorre dos enunciados
normativos presentes no artigo 5º, XXIX e XL, regra essa que pode ser construída da
seguinte forma:
“Não se admite que seja criado crime, ou majorada pena, após a prática de um
crime por X, e que se aplique a nova norma ao agente X.”
Trata-se de regra de direito fundamental que claramente não se aplica às
relações entre particulares, somente vinculando a relação entre Estado e particular.
O mesmo pode-se dizer da regra da anterioridade tributária, prevista no artigo
150, III, b.
347
Como já nos referimos anteriormente, inclusive quem defenda a vinculação mediata reconhece que
há direitos que são diretamente direcionados a particulares, cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos
Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2003, p. 54-55.
348
Aqui não mais nos utilizamos da célebre diferenciação entre direitos e garantias fundamentais, que
especifica os primeiros como declarações de proteção e as segundas como mecanismos de proteção dos
primeiros. Mesmo porque a definição encontra problemas insolúveis, como entender propriedade como
direito ou garantia.
177
Todavia, há casos em que a Constituição prevê direitos fundamentais,
veiculados a partir de regras, que têm como claro destino a vinculação dos
particulares em seu relacionamento. São exemplos, entre outros:
a) o direito a perceber um valor sempre superior ou igual ao salário mínimo
(art. 7º, VII);
b) décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da
aposentadoria (art. 7º, VIII);
c) licença à gestante de 120 dias (art. 7º, XVIII).
São esses direitos fundamentais dos trabalhadores veiculados a partir de
regras, ou seja, sua aplicação depende da utilização do raciocínio dedutivo
característico do método subsuntivo de aplicação de normas.
Não há que se falar, nos casos citados, em ponderação, como se veiculados,
tais direitos fundamentais, a partir de princípios.
É dizer, somente quando claramente direcionados aos particulares, caso dos
últimos três direitos fundamentais versados, é que as regras vinculam imediatamente
os particulares
349
.
Entretanto, como sabido, a maioria dos direitos fundamentais se encontra
veiculada a partir de normas que explicitam princípios e, aqui, reside a maior
dificuldade de resolver a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.
4.5.2. Vinculação dos particulares aos direitos fundamentais veiculados a partir de
princípios e a regra da proporcionalidade: enfrentando problemas práticos
Como afirmado, são os princípios mandamentos de otimização, ou seja,
devem ser otimizados quando de sua aplicação aos casos concretos sob sua
incidência.
349
Em que pesem as posições tratadas, admite isso inclusive CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos
Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2003, p. 53.
178
A construção dogmática que entende os princípios como mandamentos de
otimização já expressa uma gradualidade, ou seja, expressa um meio de atribuir
diferente intensidade aos direitos fundamentais a depender dos princípios e regras
com ele colidentes quando de sua aplicação ao caso concreto.
Isso porque otimizar, ou atribuir caráter ótimo aos princípios nos casos
concretos, já espelha uma idéia de gradação, de possibilidade de diferente incidência
conforme as condições do caso.
Destarte, a título de exemplo, buscaremos alguns direitos fundamentais
versados a partir de princípios na Constituição Federal brasileira e, após, tentaremos
polemizar sua aplicação à relações jurídicas travadas entre particulares.
Tomamos, inicialmente, como exemplos:
a) direito à privacidade (art. 5º, X);
b) liberdade de expressão (art. 5º, IV);
Quanto aos direitos fundamentais versados, vale dizer que dispensaremos
trecho para analisar a vinculação estatal aos citados direitos
350
.
Importa-nos saber se vinculam os particulares nas relações jurídicas travadas
entre si e, se positiva a resposta, em que medida isso ocorre, ou se dependem, para
que vinculem aos particulares de conformação do legislador.
Inicialmente, devemos pensar em hipóteses de restrição dos citados direitos
em função de contrato firmado entre particulares.
350
A questão da restrição dos direitos fundamentais veiculados a partir de princípios, tanto por
decorrência de uma lei ou outro ato legislativo, como mediante atos administrativos, decisões judiciais,
etc., não é nosso objeto nesse trabalho. Pretendemos, mais à frente, explorar o tema da utilização da
regra da proporcionalidade nas relações jurídicas particular-particular. Para a relação entre Estado-
particular existem trabalhos essenciais com os quais nos colocamos de acordo quase que na totalidade
das posições dos autores. Para citar apenas dois que são referência para esse trabalho, já que deles
retiramos o modo como aplicar a regra da proporcionalidade, vf. os tão citados ALEXY, Robert. Teoria
de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, e SILVA,
Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável, Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 798, abr.
2002, p. 23-50.
179
4.5.2.1. O caso da fiscalização de mensagens eletrônicas pelo empregador
351
Para isso (a), pensemos que, quando da admissão de empregado em
determinada empresa, no contrato de trabalho está prevista cláusula com os dizeres de
que “enquanto durar o contrato de trabalho, o contratado permitirá que a contratante
tenha acesso a todos as mensagens eletrônicas enviadas a partir dos computadores da
contratante. Caso ocorra de a contratante entender lesivo aos seus negócios algumas
mensagem eletrônica enviada pelo contratado, e isso possa violar seu direito de
propriedade, disso decorrerá o direito de a contratante demitir o contratado com justa
causa”.
Quando dizemos que a questão deve ser resolvida a partir de critério de
intensidade e que não basta, unicamente, se filie o intérprete às correntes da (1)
negativa da vinculação, (2) da vinculação mediata ou (3) imediata dos direitos
fundamentais às relações entre particulares, queremos dizer que nas duas primeiras,
por via oposta, podemos acabar por entender que haveria alguma vinculação, vez que
se poderia ser encontrar um dever do Estado em proteger a parte mais frágil.
Na última (3), a vinculação existiria de per se.
Na penúltima (2), a vinculação existiria a partir da judicialização do contrato,
quando o juiz teria a obrigação de tomar decisão baseada no Direito, ou seja, a
entender que os direitos fundamentais, como parte deste, devem ser aplicados ao caso
concreto.
Verifica-se, assim, que o grande problema é de intensidade, e não de escolha
de corrente, apesar de ficarmos com a corrente da vinculação imediata.
O problema a ser enfrentado, por conseguinte, é descobrir em que medida
essas restrições ao direito à privacidade do contratado podem acabar por alcançar
verdadeira violação, a merecer sanção de invalidação da citada cláusula.
351
Trata-se de adaptação de caso julgado pelo TST(RR 613/2000-013-10-00, DJ 10.06.2005, Proc. nº
TST-RR-613/2000-013-10-00.7), em que se aplica a regra da proporcionalidade sem qualquer padrão.
180
Importa frisar que, do contrato, decorre que remetidas mensagens a partir do
computador da contratante, tanto as mensagens eletrônicas pessoais, de contas
particulares, quanto as profissionais, enviadas a partir de conta que a contratante
disponibiliza ao contratado, sujeitam-se a controle por parte da contratante.
É bom frisar que a justificativa da contratante para tal restrição é da proteção
ao patrimônio (direito de propriedade – art. 5º, XXII), vez que mensagens enviadas
por contratado, quando em nome da contratante atue, que causem danos a terceiros
são de responsabilidade da contratante, o que acabaria por impor restrição ao seu
direito de propriedade, pois teria de arcar com os custos dos prejuízos causados pelo
contratado.
Como resolver o problema?
Inicialmente, precisamos verificar se há previsão legal expressa para resolver
o problema, vez que o método subsuntivo poderia resolver o problema.
A resposta é negativa.
Após, devemos apontar que estão os particulares vinculados aos direitos
fundamentais, já no momento da contratação, e verificar se há violação ao direito à
privacidade do contratante em face do contrato firmado, ou se a restrição levada a
cabo se mantém na ordem da constitucionalidade.
Pode-se argüir, para defender o contrato, que se trata de concretização do
princípio da autonomia da vontade (art. 5º, II
352
), ou seja, previram as partes o que
352
A nosso ver, o princípio da autonomia privada se encontra no direito brasileiro expressamente
previsto no texto constitucional, a se referir a vedadeiro direito fundamental de proteção do cidadão
contra a ação estatal, mas, também, da ação excessiva de sujeitos privados. Destarte, entendemos que
se trata de princípio ponderável. Também CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito
Privado. Coimbra: Almedina, 2003, p. 34, afirma ser a autonomia privada verdadeiro direito
fundamental: “Assim, o Tribunal Constitucional Federal afirmou, com razão ao meu ver, que a Lei de
Proteção contra os Despedimentos (Kundigungsschutzgesetz) visa satisfazer o imperativo, resultante do
artigo 12º da LF, de protecção do trabalhador contra a perda do seu posto de trabalho; mas
simultaneamente uma tal protecção contra os despedimentos constitui, por outro lado uma limitação
dos direitos fundamentais contrapostos do empregador, e em especial da sua autonomia privada
(grifos nossos). Também, ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos
Fundamentais no Estado Democrático de Direito, Revista de Direito Administrativo, n. 217, Rio de
Janeiro: FGV, jul./set. 1999, p. 71. Ao tratar do direito à igualdade entre particulares afirma que “se se
aplica a proibição de discriminação à ordem jurídica total, portanto, também ao direito privado, então
colisões entre a autonomia privada do empregador e o direito ao tratamento igual do empregado são
181
lhes interessava. Parece-nos bastante simplório o argumento, vez que é difícil
entender como iguais no momento da contratação empregador e empregado, ainda
mais em um país onde a taxa de desemprego alcança patamares incríveis, para não se
falar na explosão da informalidade nos últimos anos, nos ínfimos níveis de
escolaridade da população etc.
Assim, a primeira questão a ser enfrentada por quem assume a decisão sobre a
validade da cláusula contratual é a verificação de igualdade de poder de barganha
entre as partes quando da formação do contrato.
Se iguais, merece a cláusula uma proteção mais intensa por parte de quem está
a decidir sobre a validade da cláusula restritiva de direito fundamental, exigindo-se,
daquele que pretende sua invalidação, um ônus argumentativo mais eficiente.
Se desiguais, importa impor um ônus maior de argumentação ao contratante
mais forte, ou seja, há que se exigir deste uma argumentação bastante incisiva no
sentido de que o contrato é necessário para a preservação do seu direito de
propriedade e, por conseguinte, do princípio da autonomia privada
353
.
Para isso, deve o contratante expor, incisivamente, as razões pelas quais
restringe não só o direito à privacidade do contratado no que se refere às mensagens
eletrônicas profissionais quanto, mais ainda, no que se refere às mensagens
eletrônicas da conta particular do contratado.
A seguir, sabedor das razões do contratado, deve aquele que decide enfrentar o
modo pelo qual decidir questão tão complexa, veiculada a partir de princípios de
direitos fundamentais, quais sejam, os princípios da propriedade e autonomia privada,
de um lado, e o princípio da proteção da privacidade, de outro.
A nosso ver, é possível, também nos casos de vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais, a utilização da regra da proporcionalidade.
inevitáveis”. Em sentido contrário, SILVA, Virgílio Afonso da. Constitucionalização do Direito – Os
direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 164 e ss.
353
Sobre autonomia privada na contemporaneidade, já nos referimos à posição de PRATA, Ana. A
Tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra: Almedina, 1997, p. 77.
182
4.5.2.1.1. A regra da proporcionalidade como critério de decisão das colisões de
direitos fundamentais nas relações jurídica particular-particular
A máxima da proporcionalidade, aqui, pode também ser utilizada
354
, existindo
verdadeira inovação somente quanto ao instrumento de restrição, que, não sendo a lei,
ato administrativo ou decisão judicial, passa a ser o próprio contrato ou qualquer
disposição de vontade ainda que não formalizada
355
-
356
.
Já no que trata da função dos direitos fundamentais, no caso de contrato, estes
se referem à função de proteção ou defesa, semelhante à função que exercem perante
atos do poder público.
A primeira questão a ser respondida de refere ao exame da adequação. Como
visto, esse exame se limita a verificar se a medida (monitoramento de mensagens
eletrônicas enviadas a partir de computador da empresa) fomenta o alcance do fim
almejado (proteção do direito de propriedade) e se o fim é legítimo.
354
Em sentido contrário SILVA, Virgílio Afonso da. Constitucionalização do Direito – Os direitos
fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 160-164. Pela utilização
da proporcionalidade, mas sem desenvolver uma estruturação mais precisa vf. ANDRADE, José Carlos
Vieira de. Os Direitos Fundamentias na Constituição Portuguesa de 1976. 2ª ed. Coimbra: Almedina,
2001, p. 249 e 261, e CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais.
Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 199; STEINMETZ, Wilson. A Vinculação dos Particulares a
Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 216-220.
355
Essa colisão poderia ser, como efetivamente o é, convertida em dever de proteção por parte do
Estado, no caso em que a demanda fosse judicializada e o juiz, estando submetido aos direitos
fundamentais, devesse aplicá-los ao caso. No mais, se houvesse uma diferença entre jurisdição
ordinária e jurisdição constitucional, verificar-se-ia se a decisão que aferiu a constitucionalidade do
contrato aplicou corretamente os direitos fundamentais. Trata-se de observação do mesmo objeto a
partir de perspectiva diferente, a nosso ver, desnecessária.
356
Repetimos que não é nossa intenção verificar a aplicação da regra da proporcionalidade nas relações
Particular-Estado. O exemplo que aqui indicamos não prevê legislação ou outro ato estatal a
condicionar diretamente os particulares pactuantes. Por isso, pode-se ir diretamente à verificação da
própria colisão de direitos fundamentais entre particulares, já que não há lei, no caso, que aponte um
norte sobre decidir conflitos sobre a relação jurídica travada entre empregado e empregador. Caso
houvesse lei, como se verá, a colisão de direitos a partir do contrato só admitiria a aplicação da regra da
proporcionalidade em caso de restrição excessiva de direitos fundamentais dada pela própria lei, o que
a tornaria inconstitucional. Assim, podemos admitir, em tese, que há casos que demandam um duplo
exame da proporcionalidade, caso específico da verificação, pela regra da proporcionalidade, de que a
lei restringiu excessivamente um direito fundamental para a atingimento de um fim ou proteção de um
bem fundamental, p.ex.. Nesse caso, entendida como inconstitucional a referida lei, pode-se aplicar a
regra da proporcionalidade também à colisão de direitos fundamentais havida numa relação jurídica
particular-particular.
183
No caso concreto, o fim almejado pelo contrato, do qual deriva para o
contratado a restrição de seu direito à privacidade, é a proteção do patrimônio do
contratante, que se dá a partir do monitoramento das mensagens eletrônicas do
contratado enviado a partir do computador da empresa. Trata-se de fim legítimo.
Antes de seguir, deve-se verificar quais as implicações concretas do contrato.
São elas, desde que utilizados os computadores do empregador: (a) monitoramento de
mensagens profissionais enviadas por conta profissional; (b) monitoramento de
mensagens profissionais enviadas por conta particular; (c) monitoramento de
mensagens pessoais enviadas por conta pessoal; (d) monitoramento de mensagens
pessoais enviadas por conta profissional.
Assim, a cláusula contratual acaba por alcançar todas essas possibilidades.
Passamos a verificar se as medidas fomentam o alcance do fim legítimo
almejado.
A nosso ver, a restrição (c) não fomenta, de forma alguma, o fim almejado.
Isso porque não há um liame lógico entre proteção do patrimônio do
contratante e mensagens pessoais enviadas por conta particular de e-mail, vez que não
dizem respeito à perspectiva profissional do contratado, perspectiva essa que seria o
único objeto lícito de um contrato de trabalho
357
.
Todavia, seria impossível que pudesse o empregador saber a priori, ou seja,
sem ter acesso ao seu conteúdo, se as mensagens enviadas pela conta profissional são
ou não de conteúdo profissional ou particular (a) e (d).
Assim, somente as restrições (a), (b) e (d), neste primeiro exame, fomentam o
alcance do fim almejado, que é lícito, e são adequadas.
O exame da necessidade, ou do meio mais suave, exige que seja a medida
adotada aquela que fomenta o alcance do fim almejado de forma que não haja outra
357
Com isso, verificamos que restrições em contratos de trabalho a tratar da vida pessoal dos
empregados, como filhos, estado civil, religião, entre outras, são de difícil justificação a partir do
entendimento jurídico lançado.
184
que restrinja com menor intensidade os direitos fundamentais envolvidos e alcance ou
fomente o fim com mesma intensidade.
No caso, o direito fundamental à privacidade do contratado se encontra sob
restrição.
Haveria outro meio de se alcançar a proteção do patrimônio do contratante
sem que se restringisse, com tamanha intensidade, o direito do contratado?
Nas modalidades (b) e (c), sim, mas, como (c) não passou pelo exame da
adequação, não merece seja aferida sua necessidade.
Quanto a (b), continuamos o raciocínio afirmando que, hoje, é mais que
normal que as empresas não permitam o acesso a contas particulares dos empregados
nos computadores da empresa, com o fim de atribuir maior intensidade ao dever de
eficiência de seus empregados.
Ou seja, os empregados estão proibidos de acessar e-mail particular nos
computadores da empresa, o que permite que afirmemos que há outra medida que
fomenta o fim almejado com a mesma intensidade e restringindo o direito à
privacidade do empregado com menos intensidade.
Assim, (b) é desnecessária.
No que se refere a (a), trata-se de medida necessária, dado que não
conseguimos encontrar outra medida que fomente o alcance do fim almejado com a
mesma intensidade.
A medida (d) não encontra outro meio de alcance do fim sem que seja
necessária a restrição com tamanha intensidade do direito à privacidade do
empregado, dado que não se pode verificar o conteúdo de mensagem pessoal enviada
por conta profissional sem, por óbvio, ter acesso ao seu conteúdo.
Assim, (a) e (d) são, também, medidas necessárias.
O terceiro e último exame, da proporcionalidade em sentido estrito, que
depende da superação dos anteriores, como visto, exige que se verifique: a) o grau de
afetação de um dos princípios; b) a importância da satisfação do princípio em colisão
185
com o primeiro; c) se a importância da afetação a um dos princípios justifica a
satisfação do outro
358
.
Aqui, passamos a precisar de uma análise individualizada para as medidas (a)
e (d) pois as medidas (b) e (c) não passaram pelo sub-exames anteriores.
No caso (a), verifica-se que há uma intervenção média (m) no direito à
privacidade do empregado em razão de ser disponibilizado acesso ao conteúdo de
mensagem ligada à contratação.
Pode-se traçar um paralelo com a utilização de veículo da empresa para
atividades pessoais. Se este for disponibilizado para tanto, é inegável que não se trata
de uma obrigação e, sim, de uma benesse concedida pelo empregador, vez que o
veículo estaria voltado, unicamente, para a atividade profissional. E disso poucos
discordariam.
Ainda que haja uma intervenção média no direito à privacidade do empregado,
deve haver uma proteção intensa (i) no direito de propriedade do empregado, pois
mensagens que causem dano a terceiros enviadas por e-mail profissional impõem a
responsabilidade, de caráter objetivo, do empregador.
É dizer, independe de intenção de lesar do empregador para que seja
condenado ao pagamento de indenização a terceiros por ato ilícito de empregado, é
dizer, há que haver uma proteção intensa de seu patrimônio.
Acreditamos que a medida (a) cumpre com o sub-exame da proporcionalidade
em sentido estrito, pelo referido, e, assim, cumpre com os três sub-exames da regra da
proporcionalidade, sendo, assim, lícita.
Quanto a (d), devemos acreditar se tratar de uma intervenção intensa na
privacidade do empregado em razão de se tratar de fiscalização de conteúdo particular
em mensagens do empregado, ainda que a partir de conta profissional.
358
ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales, Revista Española de Derecho
Constitucional, n. 66, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, set./dez. 2002, p. 32.
186
Mas, por outro lado, devemos nos perguntar se há proibição do empregador
(contratual) para utilização de conta profissional para envio de mensagens pessoais.
Se sim, acreditamos possível sua análise, vez que há uma proibição de envio de
mensagens particulares a partir de conta profissional e a intenção do empregador não
é ter acesso a mensagens pessoais e, sim, a mensagens profissionais com o fim de
proteger seu patrimônio.
Aqui, vale outra analogia. É certo que quando um empregador disponibiliza
um veículo para um empregado o faz com o objetivo de eficientizar a atividade fim de
sua empresa. Todavia, imaginemos que o empregado, no horário de trabalho, trafega
pelas ruas com o veículo da empresa e, dentro, passa a carregar seus filhos para a
escola, para o clube, para cursos etc. e o empregador descobre a ocorrência.
Não há dúvida de que a educação dos filhos do empregado não se encontra no
núcleo do contrato de trabalho e que pertence à seara da privacidade do empregado,
não podendo o empregador lhe dar ordens sobre o assunto. Contudo, trata-se de
veículo do empregador, disponibilizado, unicamente, para atividades profissionais.
Haveria alguma invasão da privacidade nisso? A nosso ver, não, o que faz
com que verifiquemos que a situação é semelhante.
Trata-se, assim, de uma intervenção intensa, mas justificada, pois não se trata
de invadir a seara particular do empregado com a intenção de descobrir minúcias da
via privada do empregado, mas, sim, de fiscalizar sua atividade profissional e, por
decorrência disso, verificar a questão pessoal indiretamente.
Dessarte, trata-se, também, de medida proporcional.
No que se refere ao grau de importância de satisfação do direito à propriedade
do empregador, ele é intenso, em razão de ser a propriedade um princípio e sua
proteção um elemento de sua configuração jurídica. Trata-se, assim, de direito
fundamental do empregador que merece uma proteção intensa.
187
4.5.2.2. O caso da restrição da liberdade de expressão do empregado por ordem do
empregador: da inexistência de previsão contratual expressa
O caso anterior previa um contrato com a restrição de direito fundamental do
contratado.
Passemos, agora, a outra possibilidade, a vinculação dos particulares a direitos
fundamentais sem que exista previsão contratual expressa.
É mais que sabido que a relação entre empregador e empregado se constrói a
partir da relação de confiança e que, havendo quebra desta, cada parte deve arcar com
os prejuízos advindos disso, com os ônus mais voltados ao empregado: possibilidade
de ser demitido, com ou sem justa causa.
Afirmamos, mais acima, que a intensidade das restrições de direitos advindas
das relações entre particulares diferem daquela havida entre o particular e o Estado.
Pensemos na liberdade de expressão (art. 5º, X).
Como sabido, a liberdade de expressão somente pode ser restringida de forma
incisiva, pelo Estado, em situações que assim se impõem, como o Estado de Sítio
(arts. 138 e 139 da Constituição Federal), vez que se trata da possibilidade de
restringir direitos individuais em favor de bens coletivos, como a segurança nacional,
por exemplo, ou decisões judiciais que impedem alguém de veicular determinada
informação sob pena de pagamento de multa e tantas outras possibilidades que o
espaço não permite sejam tratadas.
Nesses casos, a liberdade de expressão, que entre suas funções positivas no
Estado Social e Democrático de Direito encontra a tutela e fiscalização das ações
estatais em prol do interesse público, pode vir a ser restringida.
Pergunta-se: e nas relações entre particulares? Pode ser restringida nos
mesmos moldes?
Por óbvio que admite restrições.
188
Imaginemos um caso em que o empregado descobre, a partir de informação
sigilosa obtida de colegas, que seu empregador pode vir a ser causador de enorme
prejuízo ambiental em um futuro bem próximo.
Sabedor disso procura o empregador, diz saber do ocorrido e afirma, por outro
lado, que ele deve prevenir a possibilidade, sob pena de que venha a divulgar a
terceiros o evento.
O empregador, sob o fundamento de que a divulgação da informação lhe
causaria prejuízos, é dizer, restrição ao seu direito de propriedade, dá ordem de ficar
calado o empregado, sob pena de demissão com justa causa com fundamento no art.
482, g, da CLT
359
, que determina que é passível de justa causa o empregado que
divulga informações sigilosas obtidas a partir de relação de emprego, ou que viola
“segredo da empresa”.
Sabedor da decisão do empregador, de se abster em resolver o problema, o
empregado recorre à imprensa e ao Ministério Público para que verifiquem a
possibilidade de ocorrência do dano e que o último o previna.
Informados imprensa e Ministério Público, recebe o empregado a decisão do
empregador de que sua demissão se deu com justa causa.
Pergunta-se: admite-se a possibilidade de demissão com justa causa?
A nosso ver, não.
Trazendo a discussão ao nosso objeto de trabalho, devemos verificar se há
direitos fundamentais em colisão e, para isso, afirmamos que sim, existem: os direitos
de propriedade do empregador (art. 5º, XXII) e a liberdade de expressão do
empregado (art. 5º, IX), os dois veiculados a partir de princípios constitucionais.
Pergunta-se, primeiramente: há legislação infraconstitucional aplicável ao
caso?
A nosso ver, como referido, sim: a alínea g do artigo 482 da CLT.
359
Art. 482. “Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:
g) violação de segredo da empresa”.
189
Pergunta-se, após: é necessária a ponderação entre os princípios em colisão?
A nosso ver não, vez que o processo subsuntivo resolve satisfatoriamente o
problema, ou seja, deve-se verificar, unicamente, se se aplica ao caso a norma que se
constrói a partir do artigo 482, g, da CLT.
A nossa resposta é negativa no sentido de que para resolver o caso dispensa-se
recorramos à regra da proporcionalidade.
Basta que nos empenhemos em construir argumentos firmes, mesmo no
processo dedutivo, do método subsuntivo de tomada de decisões.
Assim, a nosso ver não se aplica a norma construída a partir do enunciado
normativo do artigo 482, g, da CLT, e é, unicamente, A partir dela que tomamos a
decisão.
Isso porque a finalidade da norma construída a partir de seu enunciado
somente pode ser preservar a confiança do empregador para com o empregado e deve
pressupor má-fé do empregado, o que não ocorre no citado caso, vez que divulga
informação sigilosa para proteger um bem coletivo, o meio ambiente (art. 220 da
Constituição Federal), e não para receber dinheiro, favores ou qualquer outra benesse
em troca.
Não há se falar em ganho de ordem econômica por parte do empregado ou
locupletamento ilícito.
Para resolver o problema, deve-se, como visto, utilizar do mais que conhecido
método da análise da finalidade da lei
360
-
361
, que exige que essa seja interpretada a
360
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1947, p. 189: “Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por
isso mesma a sai interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o
fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um
conjunto de providências protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências
econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure
plenamente a tutela de interesses para a qual foi redigida”.
361
Em que pese voltada aos agentes públicos, vale a lição de MELLO, Celso Antônio Bandeira de.
Curso de Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 97: “O que explica, justifica e
confere sentido a uma norma é precisamente a finalidade que a anima. A partir dela é que se
compreende a racionalidade que lhe presidiu a edição. Logo, é na finalidade da lei que reside o critério
norteador de uma correta aplicação, pois é em nome de um dado objetivo que se confere competência
aos agentes da Administração”.
190
partir dos efeitos que pretende produzir no sistema jurídico, ou seja, revela um caráter
instrumental importante na produção de efeitos jurídicos das normas jurídicas que são
construídas a partir do texto da lei
362
.
Com isso, pretendemos enfrentar um novo problema que vem sendo criado
mais recentemente, que é o “fetichismo da ponderação”, é dizer, a verificação de que
todo e qualquer problema pode desembocar em um processo de decisão baseado na
ponderação, sem que verifiquemos, nisso, um problema sério, qual seja, o aumento
desarrazoado do papel do Poder Judiciário em detrimento das decisões do Poder
Legislativo, cuja legitimidade democrática é incontestável e, por isso, detém a
primazia da conformação dos direitos.
Trata-se de pensar, assim, que existe um processo de decisão fincado em uma
rede de possibilidades e que não está aquele que decide totalmente livre para escolher
o seu modo a partir daquele cipoal de possibilidades.
Se há decisões claras do legislador, como no caso em comento, devem estas
ser privilegiadas, pois apesar de entendermos a necessidade de enfrentarmos um
Direito mais fluido como o que atualmente observamos, não há que se esquecer que
há uma legitimidade democrática depositada no legislador que não deve ser
suprimida, em detrimento do princípio democrático que é corolário das constituições
contemporâneas (artigo 1º, par. único, da Constituição Federal).
362
Não queremos dizer, com isso, que se aplica unicamente o método finalístico, vez que não são
aplicados os métodos tradicionais (histórico, lógico, sistemático e finalístico) de forma isolada, mas,
sim, complementar.
191
5. CONCLUSÃO
5. Conclusão
Neste trecho, pretendemos, unicamente, repisar brevemente alguns pontos do
nosso trabalho, mesmo sob o risco de tornarmos a discussão mais simplificada do que
aquela desenvolvida durante todo o decorrer da exposição de nossas posições já
transcritas anteriormente.
Esperamos que não sejam essas conclusões analisadas sem que o texto todo
tenha sido analisado, pois haveria, aí, um risco de simplificação excessiva de nossas
posições, que entendemos terem ficado postas no texto anteriormente ofertado.
Pensamos que alguns aspectos merecem mais relevo, mesmo sem deixar de
ver outros, talvez, como também importantes.
Ao dizermos, anteriormente, que entendemos a atividade interpretativa como
uma atividade volitiva, quisemos dizer que é o interprete(leitor) quem escreve o seu
próprio texto a partir daquele que lê
363
, servindo, essa idéia, para toda e qualquer
interpretação de todo e qualquer objeto, inclusive, para esse trabalho.
363
Lembramos de algumas afirmações de ALVES, Rubem. Interpretar é Compreender. Folha de São
Paulo, 27/04/2004: “A interpretação, assim, se revela necessária para salvar o texto da incompetência
lingüística do autor... Os poetas são incompetentes verbais. Felizmente, com o uso dos recursos das
ciências da linguagem, salvamos o autor de sua confusão e o fazemos dizer o que ele realmente queria
dizer. Mas, se o texto interpretado é aquilo que o autor queria dizer, por que não ficar com a
interpretação e jogar o texto fora?
É claro que tudo o que eu disse é uma brincadeira verdadeira. É preciso compreender que o escritor
nunca quer dizer alguma coisa. Ele simplesmente diz. O que está escrito é o que ele queria dizer. Se me
perguntam "O que é que você queria dizer?", eu respondo: "Eu queria dizer o que disse. Se eu quisesse
dizer outra coisa, eu teria dito outra coisa, e não aquilo que eu disse".
(...)
192
Assim, passemos aos pontos principais de nosso trabalho.
Inicialmente, enfrentamos a discussão das relações entre Estado e direitos
fundamentais, dado que não há se falar ou discutir direitos fundamentais, ao nosso
ver, sem que se analise o perfil de Estado para o qual esses direitos estão referidos.
Para esse intento, entendemos por necessário enfrentar a questão a partir da
evolução histórico-dogmática dos direitos fundamentais, pois vemos na relação entre
história e dogmática jurídica um terreno fértil para visualizar essa evolução.
Como afirmado inicialmente, desprezamos a perspectiva única da análise
brasileira do tema, pois vemos uma semelhança no discurso, pelo menos, ocidental,
dos direitos fundamentais e, não sendo a questão da efetividade(eficácia social) objeto
de nosso trabalho, pudemos fazer essa opção.
O recorte histórico foi feito para entender nosso objeto inicial como sendo o
Estado forjado a partir das revoluções liberais do século XVIII, e, para esse Estado, os
direitos fundamentais que lhe são afetos na relação particular-Estado.
Denominado esse Estado de Liberal passamos a construir suas principais
características.
Começamos por dizer que algumas delas são os alicerces desse Estado.
Dentre esses fundamentos, a separação dos poderes, na perspectiva liberal,
exige que os Poderes do Estado tenham por divididas e separadas suas funções de
forma bastante clara, cada um deles a desempenhar suas funções típicas, não sendo a
sobreposição de funções uma de suas características essenciais.
A primeira e mais importante nota que merece relevo na perspectiva liberal da
separação dos Poderes é a construção do dogma da supremacia do legislador.
Octavio Paz diz que a resposta a um texto nunca deve ser uma interpretação. Deve ser um outro texto.
Assim, quando um professor lê um poema para os seus alunos, deve fazer-lhes uma provocação: "O
que é que esse poema lhes sugere? O que é que vocês vêem? Que imagens? Que associações?". Assim
o aluno, em vez de se entregar à duvidosa tarefa de descobrir o que o autor queria dizer, entrega-se à
criativa tarefa de produzir o seu próprio texto literário”.
193
Isso porque, como vimos, sendo a distribuição dos direitos políticos muito
seletiva quanto aos seus titulares, o Parlamento se faz demasiadamente homogêneo
em sua composição, sendo a figura do proprietário aquela mais presente quando
pensamos nessa casa legislativa.
Sendo homogêneo o Parlamento e sendo o legislador quem conforma o Direito
com exclusividade, somente os interesses desses titulares de direitos políticos se
tornam direitos, não se verificando com surpresa que os direitos fundamentais típicos
desse quadro desenhado sejam os direitos à propriedade, liberdade, não opressão por
parte do Estado e segurança.
É dizer, direitos de defesa contra o próprio Estado que, para esses titulares de
direitos fundamentais, não deveria passar de um ente tímido, pequeno, unicamente
garantidor dos direitos fundamentais citados, que somente deveria atuar quando
provocado por uma contenda entre titulares desses direitos ou quando do conflito
entre titulares e não titulares.
O dogma da supremacia do legislador, assim, carrega consigo, de forma
latente, outro dogma importante que delineia o Estado Liberal, que é a supremacia dos
proprietários.
Conseqüência desse perfil de Estado almejado pelo dogma liberal é que
grande parte dos problemas ocorridos no seio da sociedade deveria ser resolvida na
ordem do direito privado, é dizer, há uma necessidade patente de ser bastante vincada
a separação entre Estado e sociedade, cada qual com suas funções, e cada qual com
seu regime jurídico: para a sociedade, o regime da autonomia privada; para o Estado,
o regime da legalidade.
Nesse sentido, somente o Estado pode ser tido como destinatário de direitos
fundamentais.
Ainda sobre a separação dos Poderes no Estado Liberal, verificamos que as
funções executivas e judiciárias se poriam bem abaixo, em primazia, da função
194
legislativa, sendo o legislador o verdadeiro intérprete do Direito, restando aos demais
Poderes a subserviência ao legislador.
Com isso, limita-se o exercício das funções judiciárias e executivas a uma
atividade automática, quase que mecanicista, dado que o ideal da segurança jurídica
fincado na lei não transporia importantes ações aos demais Poderes que não o Poder
Legislativo, para os quais restaria a aplicação da lei no modelo dedutivo do raciocínio
subsuntivo.
Além disso, não havendo sido criada a possibilidade de controle das ações do
Parlamento, que em território europeu somente se afirma em meados do século XX,
todos os conflitos surgidos entre particulares seriam resolvidos pelo direito privado –
leia-se o Código ou legislação civil – sendo esse o único árbitro dessas disputas.
Ao nosso ver, somente se passa a verificar uma mudança nessas posições, que
denominamos de liberais, quando, mais e mais, o Parlamento, e quem lhe compunha,
passa a ser confrontado com novos atores que pretendiam fazer parte das decisões do
Estado.
Quando os trabalhadores, inicialmente, passam a enfrentar a construção liberal
de Estado e Direito, aquela acomodação de forças políticas do Estado Liberal passa
por provações e não resiste intacta, sendo, paulatinamente, feitas concessões cada vez
mais importantes aos trabalhadores para, ao final, reconhecê-los como titulares de
direitos fundamentais na sua integralidade e como agentes do jogo de decisões do
Estado.
Esse processo de ampliação do rol dos titulares de direitos fundamentais é
ampliado, após, para as mulheres, crianças, idosos, negros, etc, dada a perspectiva
expansionista característica dos direitos fundamentais.
Com isso, estipula-se um início de revisões das características da conformação
liberal acima estipulada, pois se outorga direitos fundamentais a particulares que não
tradicionalmente componentes das casas legislativas, fazendo com que o próprio
Estado altere seu perfil.
195
Isso porque para esses novos atores políticos(trabalhadores e sindicatos,
inicialmente) o Estado deveria ser ativo, no sentido de fornecer-lhes prestações de
ordem material e não mais se reduzir a uma instituição absenteísta, unicamente
voltada para a defesa dos direitos, mas, também, para a efetiva ação como fornecedor
de benesses materiais diretamente a esses particulares.
Esses interesses passam a fazer parte da agenda política dos trabalhadores e
demais sujeitos acima referidos até o momento em que são tidos como direitos, e
direitos fundamentais, como, por exemplo, os direitos à educação, saúde, moradia,
previdência social, direitos esses que exigem uma ação do Estado para provê-los aos
novos atores.
Ou seja, de Estado mínimo, tímido, absenteísta, passa o Estado a dever agir
com constância, a prover, a ser também um ator importante nesse novo jogo de forças
entre grupos distintos e antagônicos, como, p.ex., os proprietários e trabalhadores.
A esse Estado denominamos Estado Social.
Nessa nova feição do Estado, passa o Parlamento a ser cada vez mais
heterogêneo, passam os pólos de poder da sociedade, também, a ser cada vez mais
heterogêneos, sendo o Estado o árbitro desse novo ambiente conflitivo.
Com esse movimento, passa o Estado a ficar encarregado, cada vez mais, de
mais funções, é dizer, passa a ficar sobrecarregado dessas funções que
instrumentalizam os grandes objetivos traçados nas constituições sociais aos Estados.
Com isso, redescreve-se a separação das funções do Estado para que os
Poderes passem a exercer novas funções, admitindo-se com certa normalidade a
sobreposição de funções, sendo, mais e mais comum, que dois ou mais Poderes do
Estado exerçam funções semelhantes.
Não mais se verifica a clara divisão das funções estatais entre os Poderes, mas,
sim, dada a sobreposição de algumas funções, a necessidade de que esses Poderes
passem a cooperarem uns com os outros, para o alcance dos fins estipulados
constitucionalmente ao Estado, que nesse período são excessivamente incrementados
com programas de fins.
196
Renova-se, também, a relação entre Estado e Sociedade, dado que essa última
passa a perceber, com o tempo, que, dado o processo de superestimação do papel do
Estado, cada vez mais a ineficiência desse Estado assoberbado de funções é verificada
e exige um co-participante na busca daqueles fins referidos.
Com isso, há uma “devolução” de tarefas para a sociedade, ou, ao menos, um
auxílio dessa ao Estado para o alcance dos fins a que está obrigado. É nesse momento
que passamos a verificar a figura do Estado Social tardio, para alguns Estado Pós-
Social.
Há, em alguns setores da sociedade, um fortalecimento excessivo e desigual,
leia-se, por exemplo, (a) serviços públicos cada vez mais concedidos a particulares,
algumas vezes em regime de monopólio, (b) fortalecimento dos movimentos sociais,
(c) dos sindicatos, dentre outras ocorrências.
Nesse sentido, passam a convivem partidos, sindicatos, grandes
conglomerados econômicos e movimentos sociais como principais atores nesse novo
cenário que se coloca diante da relação entre Estado e Sociedade e acaba por
redesenhá-la.
Essa mistura entre Parlamento heterogêneo com dificuldades de compor
grandes consensos, movimentos sociais e grandes grupos econômicos fortalecidos faz
com que o Direito seja paulatinamente composto por normas não tão claras, de
dificultosa compreensão e aplicação.
Essa dificuldade na aplicação do Direito, concomitante à afirmação do dogma
da Supremacia da Constituição acaba por exigir um fortalecimento do Poder
Judiciário, dado que um número considerável de conflitos havidos e, algumas vezes,
resolvidos de forma inconsistente, nos Parlamentos ou na própria sociedade acabam
por serem transferidos `a seara judiciária.
Com isso, abre-se espaço para uma margem mais larga de decisões para o
Poder Judiciário.
Todavia, aquela redistribuição de funções entre Estado e Sociedade termina
por estabelecer uma assimetria de poder na própria sociedade, pois há particulares que
197
não são prestigiados por esse díade devolução-auxílio, sendo que esses passam a ficar
mais enfraquecidos nesse novo momento, quase que à sua margem.
Por conseguinte, exige-se que as relações jurídicas entre particulares
garantam, ao mais enfraquecido, uma proteção mais eficiente que a relação jurídica
baseada unicamente no direito privado e no dogma da autonomia privada. Nesse
sentido, são importantes os direitos fundamentais também nas relações entre
particulares para a sua proteção e, também, para que conformem a todo o Direito.
Não sendo unicamente o Estado quem oprime o particular nesse novo
momento, há que se transferir os mecanismos de proteção do particular contra o
Estado, antigo único destinatário das normas de direitos fundamentais, para, também,
proteger os particulares nas relações jurídicas travadas com outros particulares.
Todavia, trata-se de uma possível explicação para o fenômeno referido.
Isso porque inexiste, como já afirmado, a obrigação de uma supremacia de
forças entre os particulares em contenda para que se apliquem os direitos fundamentas
às suas relações jurídicas. Isso porque ao passar a ser objetivo do Estado e da
sociedade a aplicação devida dos direitos fundamentais, esses devem ser aplicados,
como vimos, de forma otimizada a toda e qualquer relação jurídica travada entre
particulares(função objetiva).
Isso porque tanto a Constituição, ao adquirir supremacia, quanto os direitos
fundamentais, mediante seu perfil objetivo, exigem que os seus efeitos jurtídicos
sejam direcionados a todo o sistema jurídico.
Como visto, e não poderia deixar de ser, a supremacia do legislador, com a
heterogeneização dos Parlamentos e dos atores políticos, passa a ser afrontada, sendo
substituída pela supremacia da Constituição.
Como visto também, dada a dificuldade de se alcançar grandes consensos
nesses Parlamentos heterogêneos, grande parte das matérias conflitivas vai acabar por
ser decidida pelo Poder Judiciário e a pergunta que nos colocamos com mais
incidência é a seguinte: a que Direito está esse Poder Judiciário vinculado?
198
Entendemos ter desenvolvido com mais acuidade esse ponto no decorrer do
trabalho, mas, o que merece destaque, nessa conclusão, é que se entenda que (a) sendo
a Constituição suprema no sistema jurídico e (b) sendo essa Constituição formulada
por normas jurídicas cuja aplicação se distingue, passamos a entender que (c) o
sistema jurídico é composto de normas que se aplicam mediante o processo dedutivo
da subsunção, que denominamos de regras, e normas jurídicas que são aplicadas
conforme a sua colisão com outras normas jurídicas, que denominados princípios,
dado que não admitem a utilização do processo subsuntivo de aplicação das normas
jurídicas, e sim um método de ponderação.
É sobre os princípios que entendemos necessária uma discussão mais
pormenorizada, pois ao entendermos: (a) a supremacia da Constituição e deflagração
de seu conteúdo por todo o sistema jurídico; (b) que dentre as normas jurídicas dessa
Constituição estão os direitos fundamentais; (c) que esses direitos fundamentais se
aplicam, também, nas relações particular-particular, passamos a enfrentar o problema
núcleo dessa pesquisa: como se aplicam esses direitos às relações jurídicas travadas
entre particulares?
Para isso, tentamos expor as correntes principais dessa relação entre direitos
fundamentais e a relação entre particulares e nos posicionamos mais próximos da
vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais.
Todavia, optar por essa posição não resolve outra questão importante: com que
intensidade essa vinculação ocorre?
Isso porque a mera escolha de uma corrente não nos fornece material para
resolvermos os problemas práticos advindos dessa questão.
Para isso, tentamos inserir nessa discussão, a partir daquela diferença entre
normas jurídicas acima citada, uma distinção: caso se verifique que a relação entre
particulares se dá a partir de uma colisão de princípios, deve-se utilizar a regra da
proporcionalidade, com os seus três sub-exame: adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito, ou ponderação.
199
Caso se verifique que as normas de direitos fundamentais se aplicam mediante
o processo subsuntivo das regras, não se deve aplicar a regra da proporcionalidade e
sim o método subsuntivo.
Afirmamos, ademais, que a regra da proporcionalidade não está apta a resolver
toda e qualquer disputa entre particulares.
O processo deve ser analisado a partir de alguns passos, sendo a utilização da
regra da proporcionalidade o último deles.
Sendo assim, deve verificar, inicialmente, se o legislador tratou de estipular
uma decisão que resolva o conflito, dada a legitimação democrática que carrega
consigo e que lhe outorga a primazia na criação do Direito.
Após, caso afirmativa a resposta, deve-se verificar se houve uma decisão
excessiva em matéria de direitos fundamentais por parte do legislador e, para isso,
pode eventualmente, também, ser utilizada a regra da proporcionalidade, admitindo-
se, caso verificada a violação da regra da proporcionalidade na relação Estado-
particular, partir para a aplicação da regra da proporcionalidade na relação particular-
particular, o que denominamos duplo exame da proporcionalidade.
Caso não se entende excessiva a restrição a direitos fundamentais havida pelo
legislador, deve-se respeitar a decisão do legislador, dada sua legitimidade
democrática mais saliente, como referida, sendo devida a aplicação dessa decisão, nào
se podendo falar em regra da proporcionalidade ou vinculação dos particulares a
direitos fundamentais.
Caso seja excessiva ou inexistente a atuação do legislador, deve-se, aí sim, se
reportar diretamente à Constituição e aos direitos fundamentais nela presentes,
expressa ou adscritamente, para resolver o conflito jurídico entre particulares.
A partir daí, deve-se verificar se as normas de direitos fundamentais que
devem resolver o conflito estão veiculadas a partir de regras ou de princípios.
Sendo veiculadas a partir de regras, conforme os exemplos dados no decorrer
do trabalho, resolve-se a questão a partir do método dedutivo da subsunção.
200
Caso veiculadas, essas normas de direitos fundamentais, a partir de princípios,
deve-se utilizar a regra de proporcionalidade.
É somente nesses casos em que a regra da proporcionalidade deve resolver tais
problemas advindos da colisão de direitos fundamentais entre particulares, é dizer,
somente quando sejam normas de direitos fundamentais veiculadas a partir de
princípios.
Com isso, pretendemos conferir à regra da proporcionalidade um caráter mais
objetivo e desfazer toda a mistificação que foi construída por sobre ela.
Esta confusão, vale salientar, foi tanto criada por (a) alguns de seus
defensores, que, como verificado, não se inscrevem em uma única corrente, vez que é
dado tratamento bastante distinto à idéia da proporcionalidade, como pelos (b)seus
críticos, que vêem na regra da proporcionalidade um “cheque em branco” para quem
profere uma decisão jurídica.
Esperamos tenhemos contribuído para essa discussão no sentido de que seja
entendida a regra da proporcionalidade como mais um dos instrumentos, ao nosso ver
o mais estruturado, pensados para enfrentar a dificuldade da aplicação dos direitos
fundamentais quando veiculados por princípios jurídicos.
201
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