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CLAUDIO JOSÉ PEREIRA
Proteção Jurídica Penal, Estado Democrático de Direito
e Bens Jurídicos Universais
DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS
PUC/SP
SÃO PAULO
2.006
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CLAUDIO JOSÉ PEREIRA
Proteção Jurídica Penal, Estado Democrático de Direito
e Bens Jurídicos Universais
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor em Direito
das Relações Sociais, com sub-área de concentração
em Direito Penal, sob a orientação do Professor
Doutor MARCO ANTONIO MARQUES DA
SILVA.
DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS
PUC/SP
SÃO PAULO
2.000
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BANCA EXAMINADORA:
Dedico esta obra à minha esposa Cláudia e à
minha filha Isabella, razões da minha vida,
expressões do amor, da compreensão, do carinho e
da fé que sustentam minha existência.
Agradeço a Deus, por me proporcionar a
oportunidade de provar o amor fraterno, a amizade
sincera e o companheirismo constante daqueles que,
durante todo o desenvolvimento desta obra,
estiveram ao meu lado orientando meus estudos,
indicando caminhos, acompanhando a jornada,
ouvindo minhas lamentações ou simplesmente
acreditando na minha pessoa, sem os quais jamais
teria alcançado este momento.
RESUMO
A proteção jurídica penal no Estado Democrático de Direito
foi objeto de um estudo destinado a analisar as bases legais do sistema penal e
processual penal brasileiro, em face dos novos riscos apresentados pela
sociedade pós-moderna.
As bases de constituição do Estado Social e Democrático de
Direito formam um conjunto instrumental que proporciona o estudo destes
novos riscos segundo as atuais alternativas de proteção jurídica penal,
aplicadas.
O estudo dos princípios que tutelam todo o sistema de
proteção jurídica orientou a abordagem sobre uma proteção eficaz de uma
nova modalidade de bens jurídicos.
Os critérios jurídicos de seleção de bens jurídicos individuais e
meta-individuais, com suas características estruturais e funcionais, foram
analisados sob a ótica do modelo constitucional do Estado brasileiro.
Os bens jurídicos universais exigem um sistema jurídico
próprio, orientado por teorias de verdade e justiça, buscando eficácia na
preservação de direitos e garantias individuais, superando os estreitos limites
do Direito Penal individual.
A tipificação de condutas lesivas à ordem jurídica, passa hoje
pelos riscos individuais e pelos riscos coletivos.
A insatisfação com atual modelo de Direito Penal, organizado
por construções típicas que utilizam o modelo de perigo abstrato como
fórmula, exigiu abordagens críticas do sistema, com a finalidade de alcançar
um modelo eficaz e adequado à proteção de bens jurídicos universais.
O estudo de alternativas e a apresentação de propostas foi o
principal objetivo deste trabalho.
ABSTRACT
The legal criminal protecion at the Democratic State of Law
was the purpose of study, bound for examine all the legal foundations about
brazilian system and procedure penal, in face of new risks introduced by post
modern society.
Constitucion´s bases of Social and Democratic State of Law
make an instrumental whole that supply these new risks´ study according to
the actual alternative legal protection, applied.
The study of principles which tutelaging all the legal
protection system guided the approach about an effective protection of a new
way of legal assets.
Legal criterians about the individual and metaindividual legal
assets, with yours features and function requirements, had been analized
under the brazilian State constitutional view.
The universal legal assets claim a legal peculiar system, guided
by many theorys of justice and truth, lookoing for some eficacy preservetion
about human rigths and constitutional guarantees, overcoming the straight
limits of individual criminal law.
The typification of damaging conducts to the legal order,
nowadays, goes trough individual and collective risks.
The dissatisfaction about the current criminal law model,
organized by tipical constructions, that take advantage of a dangerous model
like a formula, demanded critical broaching system, in order to reach an
efficient model and fitting to the protection of universal legal assets.
The alternative studies and the proposal introductions were the
mainly point of this work.
I
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................01
I - PROTEÇÃO JURÍDICA PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO.........................................................................................................11
1. Estado de Direito e Estado Democrático de Direito.............................12
2. Constituição Federal, princípios informadores do Estado Democrático
de Direito e dignidade da pessoa humana.............................................19
3. A missão do Direito Penal no Estado Democrático de Direito.............26
3.1. Sistema penal brasileiro e o sistema fechado.................................28
3.2. Argumentação sobre a construção jurídico-dogmática de um
sistema aberto........................................................................................32
3.3. O bem jurídico como limite ao direito de punir do Estado e as
funções empíricas do Direito Penal Contemporâneo............................37
II – BENS JURÍDICOS E DIREITO PENAL................................................49
1. Conceituação e constituição do Bem Jurídico e do Bem Jurídico-
Penal.....................................................................................................50
2. Constituição Federal e bens jurídico-penais.........................................59
2.1. Princípios fundamentais e proteção penal......................................61
2.2. Bem jurídico penal e direção restritiva constitucional...................65
3. Bens jurídicos universais e tutela penal................................................70
3.1. Ação delitiva e titularidade de bens universais frente aos interesses
penalmente protegidos..........................................................................84
3.2. Expectativa social e bens jurídicos universais...............................90
II
III – TIPICIDADE SEGUNDO A TEORIA GERAL DO DELITO..............97
1. Tipo e tipicidade definidos...................................................................99
1.1. O tipo penal segundo um conceito evolutivo............................101
1.1.2. Teoria causal e as fases da independência e do caráter
indiciário de antijuridicidade....................................................102
1.1.3. O neokantismo e a fase ratio essendi da
antijuridicidade.........................................................................105
1.1.4. A fase defensiva de Ernst von Beling.............................106
1.2. O tipo penal e o finalismo..........................................................107
1.2.1. A teoria da adequação social..........................................109
1.3. O tipo penal e o pós-finalismo...................................................110
1.3.1. O tipo penal segundo o funcionalismo teleológico........110
1.3.2. O tipo penal e o Direito Penal como ciência social.......114
2. Funções e concretização da tipicidade...............................................116
3. Materialização do tipo penal..............................................................118
3.1. Conformação técnica objetiva do tipo penal............................120
IV – PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA SELEÇÃO DE BENS
JURÍDICO-PENAIS UNIVERSAIS E TIPIFICAÇÃO PENAL.................123
1. Princípio da proteção exclusiva de bens jurídico-penais e tipificação de
bens jurídicos universais.....................................................................125
2. Princípio da Intervenção Penal Mínima e bens jurídicos universais..130
2.1. Justificativa constitucional........................................................134
2.2. A subsidiariedade e a fragmentariedade como princípios.........135
2.2.1. O princípio da subsidiariedade........................................136
2.2.2. O princípio da fragmentariedade....................................140
3. O princípio da culpabilidade e os bens jurídicos universais...............141
4. O princípio da proporcionalidade e os bens jurídicos universais........148
III
4.1. Princípio da proporcionalidade abstrata ou legislativa e da
proporcionalidade concreta ou judicial...............................................150
4.2. Princípio da proporcionalidade qualitativa e da proporcionalidade
quantitativa..........................................................................................152
4.3. Princípio da proporcionalidade externa ou por conexão e da
proporcionalidade interna...................................................................153
5. O princípio da legalidade e os bens jurídicos universais....................154
V - TIPICIDADE E CRIMES DE PERIGO.................................................159
1. Constituição do perigo.........................................................................160
2. Delitos de perigo concreto e delitos de perigo abstrato.......................162
3. Crimes de perigo e segurança jurídica.................................................165
4. Bens jurídicos universais e a tipificação penal de perigo abstrato......168
VI – CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS E ANÁLISES ALTERNATIVAS
SOBRE O DIREITO PENAL DA PÓS-MODERNIDADE E OS BENS
SUPRA-INDIVIDUAIS................................................................................173
1. A ampliação de espaços para um Direito Penal da insegurança........173
2. Administrativização, globalização e delitos de acumulação.............178
3. Questões sobre alternativas sistêmicas: “Direito de Intervenção”,
“Direito Penal de duas velocidades”, “Direito Penal do inimigo” e
“Sistema Penal de emergência”.........................................................186
3.1. “Direito de Intervenção”...........................................................186
3.2. “Direito Penal de duas velocidades”.........................................191
3.3. “Direito Penal do inimigo” e “Sistema Penal de emergência”..194
VII – A PESSOA JURÍDICA E A PROPOSTA PROCESSUAL................199
1. A responsabilização da pessoa jurídica nos crimes universais...........199
2. A proposta processual penal...............................................................204
IV
2.1. Críticas às propostas processuais penais...................................204
2.2. Enfrentamento da questão: uma solução processual penal
adequada..............................................................................................209
2.2.1. A verdade e a justiça.......................................................210
2.2.2. Fundamentos para um processo penal negociado como
alternativa para o problema da proteção justa e exata..............213
3. Um sistema alternativo de composição material e processual na solução
para a problemática da proteção de bens jurídicos
universais?...........................................................................................225
3.1. Idéias alternativas......................................................................231
CONCLUSÕES............................................................................................239
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................247
1
INTRODUÇÃO
O estudo da relevância e eficácia da proteção penal aos bens
jurídicos supra-individuais, indica uma necessidade atual da sociedade.
Reconhecer que com a revolução industrial iniciou-se uma nova
fase de preocupações sociais, agora ligadas ao ambiente de sustentação de vida,
cada vez mais atingido pelo esgotamento de recursos naturais, é obrigação do
legislador penal.
O aumento gradativo da expectativa de vida do ser humano,
principalmente nos países em desenvolvimento, a ausência de um conflito
mundial, pós-segunda guerra, e a conseqüente superpopulação mundial,
sustentaram a necessidade de reavaliação de prioridades na proteção social.
Assim, a doutrina do bem jurídico penalmente protegido exige
uma reavaliação em seu estudo.
Os bens jurídicos constitucionalmente relevantes e merecedores da
tutela penal não mais se restringem aos bens individualmente considerados.
O bem jurídico passa a ser considerado dentro de uma relação
social dialética, como forma de garantir o desenvolvimento do ser humano no
sistema político-social em que está inserido, servindo a Constituição desta
organização social como parâmetro no reconhecimento destes bens.
Esta nova identificação, não mais considerando apenas o caráter
puramente inter-pessoal dos bens penalmente protegidos, envolve agora em sua
2
análise interesses coletivos ou difusos, mas sempre decorrentes de um valor
atribuído pelo destinatário destes bens, a pessoa humana.
Com esta nova visão, a sociedade, em um primeiro aspecto,
distancia-se gradativamente do sistema administrativo-governamental da
proteção individual do cidadão, com a apresentação de teorias dignas da
sociedade livre, democrática e de risco, revelando preceitos informais de solução
de demandas, sem a interferência maciça do Estado na tutela penal, acolhendo
conceitos mais concretos de responsabilidade penal objetiva, e relevando delitos
insignificantes ou adequados socialmente.
Em um segundo ponto, a função administrativa do Estado começa
a destacar-se no Estado Democrático de Direito, com uma maior predisposição
da Administração Pública ao controle e manutenção da existência social, da vida
humana, disponibilizando meios e recursos para sua continuidade, com uma
maior liberdade para solução de conflitos sociais de menor gravidade pelos
próprios cidadãos, dedicando-se à criminalidade de alta periculosidade, bem
como à proteção da subsistência social, ou seja, à criminalidade difusa ou
coletiva.
É neste sentido que o Direito e a Sociedade visualizavam a
existência de uma lacuna, hoje preenchida pela proteção aos interesses coletivos
ou difusos, como o ambiente, as relações de consumo, os bens de valor artístico,
histórico ou paisagístico.
São direitos fundamentais, garantidos constitucionalmente, e que
possuem como destinatários ou fonte justificadora de existência a proteção ao ser
humano, sem distinção de qualquer natureza
1
.
Estes direitos possuem titulares indeterminados, ou trans-
individuais, ligados por circunstâncias de fato, que ultrapassam limites de
3
atuação pessoal, ou isoladamente considerados, atingindo dimensões
indivisíveis, configurando bens de caráter coletivo, não possuindo, assim, um
destinatário individuado ou específico.
A lesão de um destes bens acaba por constituir uma afronta à
sociedade, inviabilizada qualquer determinação de número específico de vítimas
ou lesionados.
Momento adequado para a diferenciação entre os interesses
difusos e os coletivos.
Nos interesses difusos não existe relação jurídica que sustenta a
interligação, mas uma situação de fato comum a todos os atingidos; envolve
direito pertencente a toda a sociedade, mas a ninguém em específico, como a
proteção ao ambiente.
Quando tratamos dos interesses coletivos, a determinação de seus
destinatários pode ser realizada, já que existe relação jurídica entre os titulares ou
entre estes e a parte contrária, mas sempre na forma de grupos sociais
representativos como, por exemplo, sindicatos de categoria.
Assim, perduram em ambas as espécies de direitos, a característica
de indivisibilidade do objeto protegido, mas no tocante aos interesses coletivos,
esta característica fica restrita a grupo ou classe determinados, onde a lesão a um
dos integrantes acaba por constituir lesão a todos indistintamente.
A proteção penal aos bens jurídicos supra-individuais deve ter por
base a tese de sua existência decorrer da necessidade de proteção ou preservação
dos meios inerentes à sobrevivência da espécie humana e, em assim sendo, de
1
Art. 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil.
4
proteção direta à vida e dignidade humana. Apesar de alguns doutrinadores
apontarem falhas neste conceito
2
.
Não há como sustentar a defesa e proteção destes bens, sem
justificar sua finalidade: preservação da espécie humana e de uma vida “mais
digna”.
Não reconhecer isto poderia indicar o reconhecimento de uma
proteção de um Estado que acolhe o ambiente como bem jurídico prioritário, em
relação à liberdade e aos direitos individuais dos seres humanos, com a
justificativa de sua manutenção ser essencial à vida na Terra, mas não
especificamente à vida humana.
A princípio, este pensamento não nos parece tão difícil de aceitar.
Todavia, quando questionamos o próprio significado da existência de um Estado
organizado, de regimes legais de vida em sociedade, e da própria sociedade
civilizada, observamos que a segregação da liberdade e os direitos de alguns
seres humanos, em razão da proteção ao ambiente, somente é justificada em
razão deste ambiente ser essencial à manutenção de vida humana adequada e
digna.
Assim, justificado o grande valor do questionamento sobre a
eficácia dos meios de proteção destes direitos.
O delito de perigo abstrato, de potencialidade ofensiva
questionada, e as reprimendas administrativas compartilham o mesmo espaço de
proteção, mas com conseqüências sociais diferentes em seu âmbito de aplicação,
atingindo liberdade individual e recursos financeiros de forma independente.
2
SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal
alemana. Tradução de Manuel Cancio Mellá, Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofía del
Derecho, Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1998, p. 21.
5
Neste contexto, surge dúvida sobre qual destes meios de repressão
produz maior eficácia para a proteção dos bens supra-individuais.
Não existe mais, na sociedade, a possibilidade ilimitada de utilizar
os bens jurídicos ambientais.
A base de relações sociais alterou-se com a evolução do acesso a
bens de consumo, em especial aos alimentos.
Perde-se, a cada dia, a ligação com as redes limitadas e de mútua
confiança, baseadas nos pequenos produtores e distribuidores. Desaparecem a
cada dia os pequenos fornecedores de carne, pão, verduras, dando lugar aos
grandes centros distribuidores, supermercados, grandes magazines.
Este caráter, longe de ser questionado em seu valor positivo na
evolução da sociedade, na verdade propicia uma nova vertente de proteção
jurídica: a dos bens de massa.
A repressão a eventuais delitos decorrentes da distribuição ilegal e
prejudicial de bens nestas redes, já não mais pode ser realizada através dos tipos
penais individuais (ex. homicídio, lesão corporal), com apuração de
responsabilidade objetiva.
Também a responsabilização administrativa não conseguiu atender
a todas as relações estabelecidas, apesar de não poder ser afastada diante de sua
eficácia, às vezes, muito maior que qualquer reprimenda penal individualizada.
Assim, a necessidade da tutela penal existe, mas sua prevalência
sobre a eficácia da proteção administrativa, em alguns aspectos, não é
verdadeira.
Os próprios exemplos decorrentes das infrações administrativas de
trânsito, com punições de multa, obtendo muito maior eficácia preventiva e
punitiva que a própria regulamentação penal, demonstram isto.
6
A disposição do artigo 51 do Código Penal, convertendo a pena de
multa não paga em dívida ativa da Fazenda Pública, com cobrança nos termos da
legislação de execução fiscal, questiona a efetividade da eficácia penal.
A interatividade entre institutos de âmbito administrativo e penal
como, por exemplo, nas causas de extinção de punibilidade propostas nas
legislações sobre sonegação fiscal, quando o acusado, realizando o pagamento
do imposto devido, acaba por solucionar a problemática penal da reprimenda,
extinguindo a punibilidade antes da denúncia, atingindo a satisfação do dano
provocado.
Como então executar uma seleção e configuração de bens
jurídicos coletivos que exigem proteção penal?
Através da ameaça (prevenção geral) de penas, do destaque a
delitos de mera desobediência ou, ainda, da proteção a sentimentos coletivos de
preservação ambiental e econômica, a manutenção do ambiente adequado de
vida humana estaria assegurada?
Ora, a vertente da responsabilidade individual na violação destes
bens jurídicos ainda é significativa.
Assim, em certo sentido, defender uma eventual redução da
aplicação do Direito Penal aos delitos de resultado
3
não parece conduzir à
conclusão de se tratar de um fracasso, no objetivo de proteger bens jurídicos na
sociedade moderna.
Na verdade, a execução de um Direito Penal mínimo ou, ainda de
um Direito Penal como ultima ratio indica que soluções mais eficazes de
proteção e manutenção dos bens jurídicos supra-individuais podem não estar nas
3
SCHÜNEMANN, Bernd. Op. cit. p. 33.
7
mãos dos legisladores penais, exigindo uma releitura do atual sistema regulador
de condutas lesivas a esta espécie de bens jurídicos.
A abordagem não precipita à conclusão de inexistir
responsabilidade individual ou coletiva, pelos resultados decorrentes da violação
da preservação de bens supra-individuais.
O que se pretende é determinar que a adoção do Direito Penal só
deva ocorrer quando alternativas de caráter administrativo ou civil, não sejam
reprimenda suficientes à satisfação do dano, ou não atingirem seu fim como
resposta social adequada.
A segurança social e o bem estar do cidadão é que se destacam
como objetivos desta proteção, mas se a aplicação do Direito Penal for
necessária, não se pode desconsiderar a responsabilização individuada do
garantidor destes bens.
A imprudência do garantidor deve ser analisada sob o aspecto do
conhecimento prévio de seu dever social, seja de proteger diretamente o bem de
violadores (dever administrativo ou funcional), seja de não violar ele próprio a
integridade destes bens (dever – supranacional - do cidadão proteger o meio que
habita ou que usufrui).
No campo deste dever supranacional, os perigos nucleares,
decorrentes principalmente da produção de detritos e sua dispersão, indicam a
fragilidade do ambiente frente à modernidade dos meios de sustentação social. A
intervenção do ser humano no ecossistema é justificável, mas necessita de
limites.
A questão da defesa dos interesses da infância e juventude,
também justifica esta discussão.
Cientes de que as formas de ação e culpabilidade podem ser
consideradas semelhantes nas pessoas físicas e jurídicas, a impossibilidade de
8
punibilidade penal das últimas, nos termos da atual doutrina da culpabilidade e
da individualização da pena, estimula a discussão sobre como estabelecer a
proteção eficaz e a responsabilização adequada da pessoa jurídica.
Destaca-se a responsabilização de grupos diretivos ou
representativos da pessoa jurídica, todavia enfrentando a problemática de
decisões com formas diferenciadas de unanimidade ou maioria.
O direito analisa o problema, ainda, sob outro aspecto.
É a questão da responsabilidade por omissão.
A quem responsabilizar pela omissão na criação de medidas de
prevenção a decisões que, por não serem unânimes, de acordo com o
regulamento de determinada pessoa jurídica, impedem a retirada do mercado,
por exemplo, de um produto lesivo à sociedade?
4
A divisão de deveres ou responsabilidades passa pela definição da
existência de um dano e sua autoria mediata, sendo sua solução, em um primeiro
momento, a responsabilização daquele que, em última instância, tomou ou
aceitou a decisão, e que podia impedi-la, e não daquele que esteve mais próximo
do ato danoso, ou mesmo que o produziu materialmente.
São questões substantivas, que exigem discussão mais
aprofundada.
As violações a direitos individuais que, na verdade, são punidos
em virtude de atingirem entes sociais ou coletivos, como etnias, populações civis
determinadas, grupos religiosos, também indica outro ponto do questionamento
sobre como concretizar, materializar ou tipificar condutas que afrontam bens
desta natureza.
4
HASSEMER, Winfried & CONDE, Francisco Muñoz. La responsabilidad por el producto em derecho penal.
Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, p. 173.
9
Os Direitos Humanos, reconhecidos como bens supra-individuais,
são resguardados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pela
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e assim assimilados
constitucionalmente nos países signatários.
Assim, enfrentamos aqui, também, a responsabilidade penal
individual quando das violações a estes direitos partem de um Estado ou de uma
Administração Organizada.
O reconhecimento do requisito da ilicitude de atos que violem os
parâmetros estabelecidos, em particular pelo direito internacional humanitário,
proporcionaram o reconhecimento mundial de delitos que extrapolam limites
territoriais e que, mesmo cometidos de forma individual ou contra uma vítima
em especial, visam ou possibilitam atingir toda uma coletividade.
Assim, a proteção penal desta modalidade supra-individual de
bem jurídico mantém a sistemática da preservação da vida digna do ser humano
como bem hierarquicamente superior, em função do qual surgem as necessárias
manutenções de tutelas de bens jurídicos sociais ou ambientais.
Responsabilidades inerentes a direitos considerados como naturais
do homem acabam por remontar ao necessário conceito geral de dignidade
humana, como conjunto de limites pessoais e sociais que impõe o respeito mútuo
entre os indivíduos, opondo-se a interferências indevidas do Estado nas relações
privadas, mas exigindo que o mesmo garanta o seu respeito atuando contra sua
violação.
Esta atuação estende-se à proteção da dignidade da pessoa
humana, como bem supra-individual garantido constitucionalmente
5
, na medida
5
Artigo 1
o
. da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.
10
em que exige de todos o respeito ao fundamento do Estado Democrático de
Direito, e por conseqüência aos direitos humanos.
Neste aspecto, a análise de efeitos jurídico-penais e necessidades
adequadas de previsão penal de infrações transcende barreiras políticas, exigindo
previsões que, mesmo que em legislações independentes, possibilitem a proteção
adequada a estes bens.
Assim, existe uma latente necessidade de identificar as atuais
conjunturas da proteção jurídica penal no Estado Social e Democrático de
Direito, analisando as formas de eleição de bens jurídico-penais e sua relação
com a própria teoria geral do delito, para uma abordagem sobre a atual definição
de bens jurídicos universais, ou supra-individuais, dignos de proteção penal.
Os princípios orientadores desta modalidade de proteção penal e a
formulação de tipos penais, especialmente tipos penais de perigo, enfrentam todo
um posicionamento doutrinário pós-moderno, que vem questionando as funções
do Direito Penal na proteção de bens jurídicos universais ou supra-individuais.
Este estudo acaba por encontrar alguns parâmetros de evolução
que superam em muito a possibilidade de regulamentação de condutas.
A avaliação da viabilidade de execução e materialização de
eventuais soluções penais reprovadoras apresenta um caminho novo e difícil de
ser desenvolvido, com implicações práticas e teóricas que demandam discussões
longe de serem concluídas.
Sob estes aspectos é que se justifica uma intervenção do
pesquisador e estudioso do direito, no intuito de prover a sociedade de elementos
de discussão passíveis de serem utilizados na busca de soluções mais adequadas
a uma proteção eficaz dos bens jurídicos universais, difusos e coletivos, ou
supra-individuais, produzindo novos espaços de discussão sobre o tema.
11
I - PROTEÇÃO JURÍDICA PENAL E ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Diante da definição estabelecida a respeito dos valores e
princípios instituidores do Estado Democrático de Direito, a questão envolvendo
a própria existência do Direito Penal e sua missão neste modelo social de Estado,
merece destaque, justificando a necessidade, mesmo que de forma minimizada,
de intervenção do Estado na sociedade, em especial, no tocante à liberdade de
seus integrantes.
Também é certo que a Lei não pode ser desconsiderada com
relação à sua função de instrumento racionalizador da vontade do Estado,
submetendo seus cidadãos à sua garantia, evitando a prevalência de um estado de
guerra
6
.
Assim o respeito à lei, em um Estado Democrático de Direito,
exige muito mais que uma orientação formalista de submissão do cidadão à força
do Estado. Mais que isto, indica que o estabelecimento de pólos de controle
social somente pode ser considerado como legítimo, em um Estado Democrático
de Direito, na medida em que pressupõe ou espera que exista um preceito
mínimo de respeito mútuo entre os integrantes desta sociedade.
6
BARRETO, Vicente. “Interpretação Constitucional e Estado Democrático de Direito”. In: Revista de Direito
Administrativo, volume 203 – janeiro/março, Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1996, p. 20 e ss.
12
É este respeito mútuo que, quando violado, em não encontrando
formas sociais de conciliação, exige um posicionamento institucionalizado que
mantenha a segurança jurídica das relações sociais, sem violar orientações
democráticas estabelecidas no modelo estatal.
Aliás, este modelo de proteção jurídica de caráter penal, não
obstante a indispensável eleição de um processo legal de aplicação e
desenvolvimento, exige para sua eficácia a adequação de preceitos orientadores e
de meios de realização e execução a uma indiscutível realidade social evolutiva.
1. Estado de Direito e Estado Democrático de Direito
A democracia deve ser entendida como o conceito fundamental do
Estado Democrático de Direito, na medida em que é materialização de valores
necessários à convivência em sociedade, como a igualdade, a liberdade, a
dignidade da pessoa humana
7
.
Assim, quando a Constituição Federal afirma que o Brasil é um
Estado Democrático de Direito
8
, não se trata apenas de um modelo legítimo
instituído de acordo com o Direito em sua forma de ser e atuar, mas um Estado
instaurado com base em valores sociais, decorrentes da livre manifestação
popular, afastando-se concepções de formalismo meramente legal, para acolher
princípios de justiça social. Um verdadeiro Estado de Direito e Justiça Social,
como denomina Miguel Reale
9
.
7
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 11
a
edição, São Paulo: Malheiros Editores,
1996, p. 113.
8
Artigo 1
o
, da Constituição da República Federativa do Brasil.
9
REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias, 2
a
. edição, São Paulo: , Editora
Saraiva, 1999, p. 2.
13
Para identificarmos as origens do Estado de Direito devemos
aceitá-lo como uma verdadeira delimitação regulamentadora de todas as funções
do poder, como expressão ou representação dos interesses dos cidadãos
10
.
Evidencia-se que podemos atribuir a Emmanuel Kant a concepção
primeira do Estado de Direito, com fundamento no jusnaturalismo iluminista,
como ente que estabelece regras delimitadoras das condutas a serem seguidas
pelo povo, para uma coexistência pacífica das liberdades individuais, que devem
ser garantidas pela não interferência no seu desenvolvimento.
Trata-se do reconhecimento da liberdade na participação dos
cidadãos na elaboração das normas diretivas, os quais prestam seu consentimento
e disponibilizam sua confiança ao Estado representativo
11
.
Existe neste conceito a identificação da situação jurídica dos
cidadãos com princípios de liberdade, igualdade e independência,
exclusivamente em decorrência da razão, definindo o Estado de Direito como um
Estado da razão, permitindo uma coexistência livre por meio do direito, a seus
membros, sempre em um caráter formal e racional, sem conteúdo político ou
ideológico quanto ao direito de liberdade.
Todavia, a evolução destes conceitos acabou por culminar com um
Estado ético, legitimado de forma absoluta, como um fim em si mesmo, com
direitos supremos em relação a seus componentes, convertendo-se em um Estado
de força. Limitado pelo poder do direito positivo e não mais pela razão, este
Estado de força eliminou o jusnaturalismo de suas concepções e acolheu o
10
SILVA, Marco Antonio Marques da. Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 6.
11
KANT, Emmanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, tradução Paulo Quintela, Lisboa: Edições 70,
1988.
14
formalismo positivista de Hans Kelsen
12
, definindo-se como um Estado Liberal
de Direito.
Uma nova concepção de Estado de Direito decorre então da
insatisfação social com o Estado Liberal de Direito
13
, de características ligadas a
um império da lei como conceito primário, emanado formalmente de
representantes do povo, além de uma separação lógica, independente e
harmônica de poderes que, sobretudo, estabelece e garante, apenas formalmente,
direitos individuais, mas que se tornou ineficiente para a sociedade, na medida
em que possibilitava conceituações formalistas e absolutas, indicando
possibilidades totalitárias e ditatoriais de Estado
14
.
A identificação de um modelo formalista, de conteúdo rígido e
legal, em uma concepção positivista de Estado de Direito, também pôde ser
reconhecida nestes conceitos destituídos de conteúdos sociais, tornando o Estado
Liberal de Direito um simples exemplo de regime legal, absoluto e centralizador
de organização da sociedade.
O caráter abstencionista desta modalidade de Estado assegurava
de forma individual a possibilidade de contestação do cidadão a um direito seu
que fosse violado, mas sem qualquer intenção de conduzir ao reconhecimento de
direitos e garantias individuais, já que estes eram apenas formalmente previstos,
sem qualquer intenção de efetivá-los.
Bastava a esta modalidade de Estado que aqueles que tivessem
condições materiais exercessem o acesso à Justiça, garantindo seus direitos
15
e
assegurando, desta forma, o princípio da legalidade, essência deste modelo.
12
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, tradução J. Baptista Machado, Coimbra: Armênio Amado Editora,
1962, v. 1 e 2.
13
Modelo ideológico consagrado nos séculos XVIII e XIX.
14
SILVA, José Afonso da. Curso..., p. 114.
15
SILVA, Marco Antonio Marques da. Acesso à Justiça Penal e Estado Democrático de Direito, São Paulo:
Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 75.
15
A lei era sempre considerada de forma generalizada, decorrendo
dela os fundamentos de liberdade, justiça e igualdade, mas sem qualquer base
para sustentação em um caso em concreto.
Os esquemas rígidos decorrentes de uma legalidade formal e
processual, em um império da lei, afastam deste Estado Liberal os desejados
valores de justiça social, acolhendo simplesmente conceitos de justiça material
definidos em seu sistema
16
.
Assim, o qualitativo “social” tornou-se exigência para uma
adequação do modelo de Estado de Direito às necessidades da comunidade de
verem satisfeitos ideais de paz e bem estar sociais, garantidores da vida humana,
principalmente diante da degradação de qualidade desta vida, na sociedade do
final do século XIX e início do século XX, com uma concentração de riquezas
em face de uma enorme classe trabalhadora empobrecida e desempregada, fruto
da revolução industrial.
A correção do individualismo, desejada com a instituição de uma
nova forma de Estado de Direito que substituísse o Liberal, não foi
suficientemente alcançada em razão das próprias distorções impostas ao conceito
de social.
Este novo modelo, o Estado Social de Direito, acabou por assumir
regimes antagônicos de governo, sob o equívoco de manter o social como
qualificador do Estado e não do Direito, possibilitando o convívio sob o manto
do Estado Social de Direito de sistemas ditadores de política de capital,
neofascistas, por exemplo, na mesma medida de sistemas democráticos.
O modelo anterior liberal, de predomínio da legalidade de
natureza formal e processual, é afastado pelo componente social, que impera de
16
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal – Revisitadas. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1999, p. 29.
16
forma absoluta, inclusive com um certo grau de desprezo ou distanciamento do
elemento jurídico
17
.
A indicação de direitos econômicos e sociais, expressamente nas
Cartas Constitucionais destes Estados Sociais de Direito, não é suficiente diante
das interpretações contraditórias que o caráter social proporciona, tornando
suspeita qualquer aceitação desta concepção de Estado.
A insegurança de seus componentes acaba por identificar no
conceito de Estado Social de Direito, falhas que impedem sua consideração
como eficaz aos reclamos de justiça social.
Assim, continuou faltando ao Estado de Direito um ingrediente
fundamental, que justificasse todo o equilíbrio desejado pela sociedade, sem que
pudéssemos supor que uma simples conjunção formal dos preceitos do Estado
Liberal e do Estado Social fosse suficiente.
Esta posição é válida, já que a própria origem das duas
modalidades de Estado de Direito, o Estado Liberal nasceu das lutas da
burguesia contra o Estado e o Estado Social do enfrentamento da sociedade
industrial contra este mesmo Estado, indica posições antagônicas de
abstencionismo e intervencionismo.
Diante disto, é fácil reconhecer a necessidade de um Estado de
Direito que, mesmo com um sistema rígido de legalidade, priorize os direitos, as
liberdades e as garantias individuais, utilizando-se de políticas sociais,
econômicas e culturais, na busca do respeito à personalidade individual, em uma
concepção mais adequada de Estado de Justiça
18
.
17
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões..., p. 30.
18
Jorge de Figueiredo Dias deixa bem claro que, na definição destes conceitos de equilíbrio e justiça social, não
se deve identificar um Estado de Juízes, antidemocrático e inaceitável, mas um Estado que prepondera por
acolher preceitos de Justiça. In: Questões Fundamentais do Direito Penal – Revisitadas. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1999, p. 34, nota 21.
17
O componente democrático, ou de soberania popular, como
garantia geral dos direitos do ser humano, qualifica o Estado que busca uma
nova condição de promotor de justiça social, institucionalizando um poder
popular, conservando a legalidade, mas agora diretamente destinada a princípios
de igualdade e justiça individual.
A democracia, como conceito histórico, não deve ser considerada
na formação do Estado de Direito como um elemento de natureza política, mas
como uma reafirmação dos direitos e garantias individuais que, por meio da
legalidade, o Estado institui atendendo à conquista da soberania popular. O poder
exercido de forma indireta, mas sempre através e em proveito do povo.
Não se trata de reconhecer este componente democrático como
uma ditadura das maiorias, mas o exercício do poder por meio de uma
representação e participação jurídica popular.
Com o governo emanando do povo, a sociedade política no Estado
Democrático de Direito exige uma constante busca de justiça social, não
tolerando a desigualdade entre seus cidadãos, em uma universalização de
prestações sociais; um processo dialético que, superando os demais modelos
contrários ao seu sistema, incorpora novos valores enquanto vence obstáculos
19
,
sem nunca alcançar uma concepção definitiva, o que, aliás, não deve ser o seu
objetivo, já que não é um modelo rígido, mas sempre em evolução.
Constitui-se então um modelo de Estado, como entidade de
variação constante, decorrente dos momentos históricos que a sociedade estiver
vivenciando, do povo que integra esta mesma sociedade e, ainda, da posição
global em que este Estado se encontrar.
19
SILVA, José Afonso da. Curso..., p. 129.
18
O Estado não é mais visto de forma independente ou unitária, mas
como realização material de ideais da sociedade.
Dentro destes conceitos os interesses defendidos pelo Estado
Democrático de Direito podem ser identificados em três pontos fundamentais, os
interesses públicos ou do próprio ente estatal, os interesses privados ou
individuais e, por fim, os interesses coletivos, ou seja, dos grupos sociais
identificados e formalizados na comunidade, com os mais variados objetivos
econômicos, culturais, políticos
20
.
No Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais são
conseqüência da própria soberania popular, na medida em que a lei é produto
desta vontade geral, identificando direitos e garantias em um Estado livre
composto de homens livres
21
. Deixa-se de lado um contexto de limite ao poder
estatal de atuar, que os direitos fundamentais sempre expressaram, para a
constituição de uma posição valorizada como instrumento político-jurídico de
controle das próprias atividades do Estado.
Assim, este conteúdo democrático mantido sob a égide de dois
princípios fundamentais, o primeiro de que o poder emana do povo, na forma da
soberania popular, e em segundo, o da participação efetiva, direta ou indireta, do
povo no poder, através de técnicas de eleição e representação popular, acaba por
instituir valores diferenciados de igualdade e liberdade, afastando-se de uma
idéia formalista e passando a um conjunto garantidor de direitos individuais,
através da efetivação de direitos políticos, econômicos e sociais, que sustentam a
20
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, 1
a
. edição, São Paulo:
Editora Celso Bastos, 1999, p. 28.
21
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique, Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución, 2ª. ed. Madrid:
Technos, 1986.
19
manutenção da liberdade como revalidação do objetivo de justiça social, que é
concretizado com a garantia destes valores
22
.
2. Constituição Federal, princípios informadores do Estado
Democrático de Direito e dignidade da pessoa humana.
No Brasil, a concretização do Estado Democrático de Direito,
possui pressupostos normativos próprios que identificam e caracterizam o
modelo vigente como uma democracia social, participativa e pluralista
23
.
Social, na medida em que prevê valores de igualdade e liberdade
no reconhecimento de seus cidadãos; participativa, quando adota modelos de
participação coletiva do cidadão no exercício do poder, através da representação
eletiva ou, ainda, através da participação direta na formação de atos de governo
com a iniciativa popular, o referendo, o plebiscito
24
; e pluralista enquanto
reconhecimento de uma sociedade heterogênea em sua composição, mas
homogênea em direitos e garantias assegurados pelo Estado, aceitando o
pluralismo político, social, partidário, econômico, cultural, ideológico.
Assim, na Constituição da República Federativa do Brasil ficou
delimitado um modelo de Estado Democrático de Direito através da
identificação de princípios orientadores de soberania popular, cidadania, garantia
da dignidade da pessoa humana. Reconhecendo valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa, acolhendo o pluralismo político e buscando justiça social por
meio da liberdade e igualdade em sua constituição
25
.
22
SILVA, José Afonso da. Curso..., p. 132.
23
Ibid., p.145.
24
Artigo 14, da Constituição da República Federativa do Brasil.
25
Artigos 1
o
. e 3
o
., da Constituição da República Federativa do Brasil.
20
A questão da soberania, identificando a independência do povo e
do Estado em relação a outros Estados, mais ainda, identificando uma
individualidade cultural, política e social, representa uma das notas distintivas do
Estado Democrático de Direito no Brasil.
Neste mesmo sentido, a cidadania como valor jurídico-político de
cada integrante do Estado brasileiro, assegura um conjunto de direitos e deveres,
resguardados, em especial, o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança,
à propriedade, acabando por expressar o conteúdo social e democrático dos
preceitos constitucionalmente adotados no Brasil
26
.
Esta cidadania, como referência do Estado Democrático de Direito
no Brasil, serve de base para a fixação de regras de valoração definidas no texto
constitucional, em especial o seu reconhecimento como ato de soberania popular,
delimitado pelos direitos sociais e individuais previstos no texto constitucional,
bem como pelos mecanismos disponíveis para a sua materialização
27
.
Outra característica marcante do Estado Democrático de Direito, o
princípio da legalidade (democrática) ou da constitucionalidade, em sua essência,
exige a subordinação dos integrantes do Estado ao regime regulador
fundamental, expresso na Constituição, decorrência da soberania e realização
popular, com objetivo de estabelecer o cumprimento dos valores democráticos
exigidos para este Estado de Justiça, sem jamais se limitar a um conceito formal
e estático de lei, mas, sobretudo, como exercício da função transformadora da
sociedade, garantindo uma efetivação dos direitos e garantias estabelecidos, sob
a égide de princípios informadores, mas decorrência de um processo legal e
regular de criação
28
.
26
REALE, Miguel. O Estado Democrático..., p. 3.
27
BARRETO, Vicente. “Interpretação Constitucional e Estado Democrático de Direito”..., p. 19 e ss.
28
SILVA, José Afonso da. Curso..., p. 121 e ss.
21
Além deste, podemos ilustrar a própria democracia como princípio
informativo
29
de caráter social, participativo e pluralista do Estado brasileiro; o
sistema garantidor dos direitos fundamentais de natureza individual, coletiva,
social e cultural
30
; o princípio da justiça social
31
, em um exercício da democracia
econômica, social e cultural
32
; os princípios da legalidade e da igualdade
33
; o
princípio da segurança jurídica
34
; o princípio da independência de poderes
35
.
É sob o manto desta discussão que o caráter social liberal da
Constituição Brasileira, que preserva valores sociais e de livre iniciativa, sempre
acaba por sujeitar-se ao princípio fundamental da liberdade individual, que
assume sua maior expressão nos direitos humanos e, em especial, no valor
representativo da pessoa humana.
29
Artigo 1
o
. da Constituição da República Federativa do Brasil.
30
Títulos II, VII e VIII, da Constituição da República Federativa do Brasil.
31
Artigos 3
o
., 170, caput, e 193, da Constituição da República Federativa do Brasil.
32
Estes princípios são interpretados por José Afonso da Silva, tendo em vista o que J.J. Gomes Canotilho, em sua
obra Direito Constitucional - 5
a
. ed., Coimbra: Almedina, 1991, p. 373 e ss. -, descreve como sendo princípios do
Estado Democrático português. Como o próprio José Afonso da Silva descreve, trata-se de uma adaptação destes
princípios ao modelo do Estado brasileiro. Deixa claro, todavia que no sistema brasileiro inexiste promessa de,
como no Estado português, ocorrer uma transição para o socialismo “mediante a realização da democracia
econômica, social e cultural”. Assim, afirma que o princípio da justiça social, que representa esta intenção
portuguesa, não existe em sua plenitude no Brasil, visto que aqui apenas possibilita a realização tímida da
democracia social e cultural, mas sem avanços significativos na democracia econômica. Este posicionamento,
decorrente da interpretação literal ou, pelo menos, sistemática do texto constitucional brasileiro e português, não
pode ser acolhido pela própria natureza do Estado Democrático de Direito que o Brasil assimilou. Com
características próprias, mas em constante mudança, o sistema brasileiro realmente não realiza promessas de
evolução socialista, até porque demonstra um caráter social liberal que jamais admitiria um conflito com a livre
iniciativa, ligada à liberdade do homem enquanto integrante da sociedade. Todavia, este modelo de valores
sociais dominantes atinge objetivos de justiça social, sob a égide da legalidade é evidente, não se afastando de
uma adaptação aos reclamos da sociedade que soberanamente mantém sua existência, possibilitando, mesmo em
sua condição rígida de regramentos (a Constituição de 1988, mantém esta característica, demonstrada por
exigências como a prevista no artigo 60 da C.F.) uma integração, através de processos interpretativos e
regulamentadores, às necessidades sociais, econômicas e culturais que a evolução das condições de vida de seus
cidadãos exigem, como é o caso da previsão dos direitos do consumidor, por exemplo. Fique claro que, em
momento algum esta percepção do modelo de Estado Democrático de Direito, adotado no Brasil, pretende
sustentar ou indicar alterações dos princípios básicos orientadores deste ideal de Estado, mas, antes de tudo,
justificar que estes valores fundamentais são cumpridos em razão da sua prevalência nos conflitos ideológicos
existentes em um Estado Livre e Democrático.
33
Artigo 5
o
., caput, I e II, da Constituição da República Federativa do Brasil.
34
Artigo 5
o
., XXXVI e LXXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil
35
Artigo 2
o
. da Constituição da República Federativa do Brasil.
22
Valor este que assume forma com a consciência sobre a
personalidade que o homem adquire em razão de reconhecer o valor da pessoa
humana como condição pré-existente, ou seja, da própria natureza do homem
36
.
Trata-se de valor imposto no artigo 1
o
, inciso III, da Constituição
da República Federativa do Brasil. Fundamento do Estado Democrático de
Direito, expresso no princípio da dignidade da pessoa humana.
Estabelece este princípio, base de todos os direitos humanos
previstos, a conexão entre o ser humano e suas ações como integrante da
sociedade, independentemente de quaisquer atributos de ordem pessoal, como
função, título ou cargo
37
.
A concretização deste princípio decorre da própria condição de
inter-relacionamento que a sociedade proporciona aos seus integrantes,
pautando-se pela ética comportamental, bem como pela intervenção do Estado,
somente como última opção, quando necessária para a preservação e respeito à
dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana, como princípio orientador, exige
um reconhecimento mútuo de direitos e deveres dos cidadãos e do Estado,
acolhendo um conceito ético-jurídico que a define como fruto das experiências
históricas do ser humano que conduziram à segregação de seus direitos
fundamentais e, via de conseqüência, à dimensão dos valores essenciais à
concretização destes direitos na sociedade
38
.
A sua condição como valor inerente à própria natureza do ser
humano identifica a dignidade como princípio absoluto, informador de todos os
36
REALE, Miguel. O Estado Democrático..., p. 106.
37
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. “Direitos Humanos e Direito Penal: limites da intervenção estatal no
Estado Democrático de Direito”. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (org.). Estudos Criminais em Homenagem a
Evandro Lins e Silva (criminalista do século), São Paulo: Editora Método, 2001, p. 74.
38
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo:
Editora Saraiva, 2.002, p. 48 e ss.
23
demais princípios instrutores do Estado Democrático de Direito, não podendo,
mesmo a título de argumentação, ser afastado com a justificativa de garantir
outro direito constitucionalmente previsto, já que este também decorre, em sua
essência, do supraprincípio
39
da dignidade da pessoa humana.
Cuida-se, assim, de um reconhecimento constitucional de limites
de esfera de proteção e intervenção do Estado na vida do cidadão, no âmbito do
poder de punir do Estado, determinando sua função judicial como expressão
relevante para conhecimento do alcance de direitos.
Assim o Estado Democrático de Direito não se satisfaz com uma
pura e simples interpretação a partir de uma norma, mas depende do
reconhecimento de direitos fundamentais que, preservando a dignidade da pessoa
humana, com interferência imediata nas esferas jurídicas, permitem a realização
destas pessoas, através de garantias estabelecidas apenas em razão do nexo que
possuem com estes direitos
40
.
Esta dignidade é inviolável e pressupõe direitos e garantias
fundamentais que estão acima de quaisquer ideologias políticas e, de certa
maneira, acima da própria Constituição apenas presente em sua redação em
decorrência do reconhecimento do constituinte sobre sua existência
41
.
Como valor supremo, a dignidade da pessoa humana assimila o
conteúdo de todos os denominados direitos fundamentais de ordem pessoal,
física e moral, social e, inclusive, econômica, definindo-se por características de
autonomia e especificidade inerentes ao próprio homem em razão de sua simples
pessoalidade.
39
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O Princípio Constitucional..., p.50
40
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. IV, 2
a
. edição, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p.
89.
41
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Poder Constituinte, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.
24
Trata-se então de fonte de todos os direitos humanos,
representando o limite de interferência que o próprio ser permite ao outro, em
seu inter-relacionamento social, priorizando o seu cumprimento como
responsabilidade pessoal de cada integrante da sociedade, exigindo a
participação efetiva e concreta de cada um para o desenvolvimento social, de
acordo com os valores definidos pelo próprio grupo
42
.
Para identificarmos o significado deste princípio, necessária a
consideração da pessoa com base no seu mundo de vida, interpretando os direitos
fundamentais de acordo com a valoração que cada um atribui em razão do grupo
social em que vive, respeitada a valoração das minorias, pretendendo a adoção
de uma igualdade na medida de suas desigualdades.
Podemos considerar a dignidade da pessoa como um personalismo
ético, atribuindo ao ser humano um valor em si mesmo, a ser respeitado por
todos os outros na sociedade, sem prejuízo à sua existência, da mesma forma em
que este está obrigado em relação a todos os demais. Um respeito mútuo em uma
comunidade jurídica de convivência, composta por uma reciprocidade de direitos
e deveres que compõe esta relação jurídica fundamental
43
.
Desta forma, a condenação jurídica, decorrente da violação de
norma limitadora social e historicamente aceita, jamais será sinônimo de
restrição, perda ou subtração do respeito à dignidade do ser humano.
O princípio supremo não fica sujeito à voluntariedade ou
arbitrariedade da repressão estatal, limitando-se o poder de intervenção no
Estado, impedindo quaisquer medidas que expropriem a condição de dignidade
do ser humano, que é de sua própria essência.
42
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. “Direitos Humanos e Direito Penal: limites da intervenção estatal no
Estado Democrático de Direito”..., p. 74.
43
LARENZ, Karl. Derecho Civil parte general, tradução Miguel Izquierdo y Macías-Picave, Madrid: Ed. Edersa,
1978, p. 44/46.
25
Assim, o homem, por sua própria condição como ser provido de
inteligência e com autonomia para o exercício de sua liberdade, se destaca como
pessoa diferenciada de todos os seres irracionais, independentemente de sua
condição social, raça ou crença, mas tão somente por existir como ser com
domínio de sua própria existência
44
.
A própria questão da contraposição ou do conflito de valores, em
especial quando falamos de direitos fundamentais envolvendo a dignidade da
pessoa humana e outro direito fundamental, acaba por conduzir a uma
tormentosa discussão.
É que, apesar das considerações a respeito do direito à vida,
sempre defendida como valor fundamental ou primário, é certo que a ponderação
de valores entre a sua prevalência e a prevalência do direito à dignidade
45
, acolhe
posições antagônicas que exigem um questionamento profundo quanto à própria
natureza dos conceitos biológicos e éticos de vida, sempre tendo por orientação a
discussão sobre a possibilidade da existência de vida sem dignidade
46
.
Para solucionar esta situação é necessário que a Constituição
Brasileira não seja interpretada de forma clássica, simplesmente sobre a figura da
limitação dos poderes do Estado em face dos direitos dos cidadãos, mas como
forma de regulação de entidades coletivas, que desenvolvem atividades políticas
e econômicas visando uma satisfação de interesses coletivos e, por conseqüência,
também atingindo os interesses individuais e públicos.
44
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Culpabilidade e Reprovação Penal, São Paulo: Sugestões Literárias, 1994,
p. 27/28.
45
Willis Santiago Guerra Filho, trata do tema e da conseqüente aplicação a estas hipóteses do princípio da
proporcionalidade in Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, 1
a
. edição, São Paulo: Editora Celso
Bastos, 1999.
46
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O Princípio Constitucional..., p. 52.
26
Problema este que não exige uma exaustiva regulamentação de
condutas no campo do legislativo e do executivo, mas um deslocamento do
centro de decisões para o campo do judiciário
47
.
Sem aprofundar ou estabelecer uma posição a respeito do assunto
que, ademais, não aponta até o momento para uma prevalência, já que os valores
em conflito são considerados como essenciais ao próprio Estado Democrático de
Direito, deve-se, por fim, reconhecer que toda a Constituição exige então um
método de interpretação próprio que leve em conta normas positivamente
definidas, mas analisadas sob a ótica dos valores democráticos defendidos neste
Estado, estabelecendo uma relação entre seus princípios orientadores e as
práticas constitucionais que possibilitam sua materialização
48
.
3. A missão do Direito Penal no Estado Democrático de Direito
Definir a missão do Direito Penal no Estado Democrático de
Direito, em verdade, está muito mais para estimular críticas à sua atual situação
do que, propriamente, esperar que seus objetivos sejam aceitos, compreendidos e
implementados, em uma sociedade que define o Direito Penal como uma amarga
necessidade em função da imperfeição de seus cidadãos.
Importante reconhecer que, na verdade, o Direito Penal tem uma
função predominantemente voltada a assegurar a existência de segurança jurídica
no Estado Democrático de Direito, muito mais que simplesmente regular
condutas e aplicar sanções.
47
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional..., p. 29.
48
BARRETO, Vicente. “Interpretação Constitucional e Estado Democrático de Direito”..., p. 14 e ss.
27
Sua característica marcante está na função de validação ou
revalidação de bens jurídicos eleitos pela sociedade, frente às diretrizes
orientadoras de um Estado Social e Democrático de Direito. Alias, tal
característica reforça seu caráter indiscutível de última alternativa legal – ultima
ratio, quando nenhuma outra forma de solução de conflitos, formal ou informal,
acaba por satisfazer uma questão.
A restrição do Direito Penal aos princípios regentes do Estado
Democrático de Direito, assegura que sua existência seja definida com base na
estabilidade social que visa manter e não, propriamente, em uma demonstração
de força ou de controle social do Estado.
O Direito Penal moderno, nesta concepção de Estado, deve acabar
por afastar-se de sua condição meramente formal, legalista, para estimular outras
opções de solução de conflitos, com uma maior tendência à inércia do Estado
intervencionista, implementando uma política de solução social alternativa como
prioritária.
Para reconhecer que não podemos aceitar afirmações de fracasso
dos meios de controle social informal com o fim de obter, como regra geral, o
controle social institucionalizado, é que a intervenção do Direito Penal no Estado
Democrático de Direito deve ser definida como mecanismo estimulante do
cumprimento dos princípios orientadores desta organização política e social, mas
exclusivamente quando os meios sociais de solução de conflitos não mais
surtirem os efeitos desejados.
Assim, sua função deve ser inteiramente orientada pelos princípios
que regulam o Estado Democrático de Direito, administrando atividades que este
define como passíveis de um controle social institucionalizado, por força da
28
legalidade
49
, mas sem perder de vista diretrizes de mínima intervenção, proteção
à dignidade da pessoa humana
50
, à liberdade, à igualdade, respeito ao ato jurídico
perfeito e ao direito adquirido
51
, exemplos constitucionais destes princípios
reguladores, estipulados como valores socialmente vigentes.
Diante destas concepções, lembramos que Claus Roxin afirma que
o Direito Penal deve atender, de forma simultânea, a uma função limitadora do
poder intervencionista do Estado na sociedade, bem como combater aquelas
condutas que este mesmo Estado define como inadequadas ou, melhor dizendo,
como violações a garantias institucionais
52
.
Assim, teríamos a missão do Direito Penal como a proteção e
afirmação da vigência de bens jurídicos, eleitos pela sociedade de determinada
época.
Para melhor delinearmos a missão do Direito Penal, importante
uma análise sobre as próprias orientações do modelo de Estado Democrático de
Direito em que ele deve atuar.
3.1. Sistema penal brasileiro e o sistema fechado
Uma abordagem moderna do Direito Penal só será possível se
considerarmos uma evolução contínua do sistema fechado para um sistema
aberto.
49
Artigo 5
o
, inciso II, da Constituição da República Federativa do Brasil.
50
Artigo 1
o
, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil.
51
Artigo 5
o
, inciso XXXVI, da Constituição da República Federativa do Brasil.
52
ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal, traduções de Ana Paula dos Santos Luís
Natscheradetz, Maria Fernanda Palma e Ana Isabel de Figueiredo, 3
a
. edição, Lisboa: Vega Universidade/Direito
e Ciência Jurídica, 1988, p. 76.
29
O atual sistema fechado com fundamento no positivismo jurídico
da dogmática penal, que adota a interpretação literal da norma como limite de
sua aplicabilidade, reportando suas decisões a uma postura pré-determinada com
base em argumentação de autoridade e imposição de decisões anteriores no
mesmo sentido, bloqueia a evolução social do sistema, o mantendo estático e
sem sentido.
No sistema acolhido pelo campo jurídico brasileiro, a submissão
do fato ao texto legal é considerada como constatação de eficácia do último,
limitando as construções jurídicas através do sentido da lei.
A lei surge como meio técnico que acaba contribuindo de forma
limitada para o jurista na solução dos conflitos sociais, já que sua aplicação
decorre simplesmente de uma interpretação de seus termos como suficiente para
obtenção de soluções, em uma lógica formal de apresentação prévia de decisões.
Dentro de uma dogmática positiva encontramos o direito aplicável
como mero procedimento dedutivo, sem consideração de fatores subjetivos de
análise do jurista, o que deveria ser entendido como superado para os padrões
que a atual sociedade exige do Direito Penal.
O Estado Democrático de Direito não mais pode aceitar a
concepção positivista de que a idéia de justiça, como fim último do direito, seja
afastada.
Imputar um sistema rígido de leis, como orientação básica para a
aplicação do direito, através da observação estática dos fatos sociais, aplicando a
lei como mera reação, não mais supre a necessidade social.
O delito como efeito de fatores psicológicos, físicos e sociais,
sujeito a uma reação própria de defesa social, constituída pela pena, sem
30
influências éticas, mas apenas orientada pelo legislador e aplicada pelo juízo, não
satisfaz os desejos de justiça social.
Considerar a norma como expressão de experiência concreta do
direito, pretendendo refletir e alcançar, de forma certa e segura, o que a vida
social apresenta, ordenando e corrigindo condutas de acordo com valores pré-
determinados, instaurando-se como medida de ordem, ato de decisão, buscando
responder ao já experimentado, em uma qualidade científica abstrata, rígida e
estritamente científica, demonstra o caráter fechado de operação do sistema
jurídico positivo.
A sociedade brasileira, em seus mais diversos segmentos
53
reconhece que este sistema fechado de dogmas impede posturas discrepantes de
um princípio de autoridade imposto pela lei, que elegeu valores pré-
determinados e imutáveis de orientação e, assim, por mais amplo que possamos
entender um espaço de intervenção interpretativa da lei, com conceitos elevados
e construções jurídicas diferenciadas, a matéria regulada por lei permanece longe
de ser abstraída ou discutida, impedindo uma integração do sistema a uma
realidade evolutiva social.
A adoção de um sistema aberto, norteado pelos princípios
orientadores do Estado Democrático de Direito
54
, possibilitando a discussão do
próprio sistema penal, quando da análise do fato violador das orientações sociais,
adequaria este mesmo sistema a uma solução político-criminal. Assim, impor-se-
53
O artigo de Carlos Alberto Di Franco, jornalista e professor, representante da Faculdade de Comunicação da
Universidade de Navarra no Brasil, destaca de forma clara este inconformismo social: “O formalismo jurídico,
marcado pela pura e simples aplicação das leis, não tem conseguido enfrentar problemas que ultrapassam as
balizas fixadas pelo positivismo que está por baixo de inúmeras decisões. Será que o Judiciário, refém de uma
estrutura obsoleta e morosa, está em condições de responder ao desafio dos novos crimes ecológicos, da
delinqüência infanto-juvenil, dos escândalos políticos, do financiamento ilegal de partidos, etc.? Penso que
não” (grifos nossos). In: “Dossiê, imprensa e Judiciário”, O Estado de São Paulo, caderno 1, São Paulo: 17 de
janeiro de 2.005, p. 2.
31
ia uma resposta penal adequada e proporcional a cada caso individuado,
demonstrando uma solução viável na busca da proteção dos bens juridicamente
relevantes.
Como define Antonio Luis Chaves Camargo
55
, o sistema fechado,
apoiado em um número limitado de fórmulas (axiomas), precursoras de todos os
enunciados através da “lógica dedutiva”, criou um modelo de ordenamento
prévio, obrigando nossa mente a acolher condutas e pensamento de acordo com
este ordenamento criado, limitando conceitos e posicionando um pragmatismo
sistemático em ordenamento jurídico organizado em forma de pirâmide, partindo
de uma interpretação da norma pré-posta, na qual a doutrina e a jurisprudência se
sustentam, mas sem encontrar soluções para problemas atuais mais complexos,
visto que soluções predeterminadas em uma base valorativa imutável são
escassas, já que o pensamento jurídico ocorre fora dos limites de uma lógica
formal, não sendo suficiente a simples automação da função dos juristas à
tomada uma premissa maior, a lei, com a subsunção de uma premissa menor, o
fato, a ela, para extrair-se uma solução coerente e ordenada.
Este modelo fechado tende a uma única consideração de
superação, diante da complexidade que com que a sociedade atual nos
proporciona problemas ou conflitos, aos quais o número limitado de dogmas, ou
de conceitos prévios imutáveis, não permite ao Direito Penal assimilar variações
históricas sociais evolutivas.
56
54
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação Objetiva e Direito Penal Brasileiro, São Paulo: Cultural
Paulista, 2.001, p. 125.
55
Idem, Sistema de Penas, Dogmática Jurídico-Penal e Política Criminal, São Paulo: Cultural Paulista, 2.002, p.
22 e ss.
56
Ibid., p. 25.
32
3.2. Argumentação sobre a construção jurídico-dogmática de
um sistema aberto
O reconhecimento da necessidade de uma reformulação do
sistema jurídico-dogmático penal brasileiro, com a adoção de uma modalidade
de tipos abertos, passa pela por uma indispensável identificação do significado
deste novo conceito jurídico, fruto do pensamento finalista de Hans Welzel
57
.
Seguindo as diretrizes construtivas de um sistema dogmático da
teoria do delito, eleitos os parâmetros de Jesús Maria Silva Sanchez
58
, esta
organização exigiria três fases de evolução.
Em um primeiro momento, ou primeira fase, seriam eleitas as
premissas valorativas que serviriam de orientação ao sistema, bem como
elaborado o conteúdo de todas as categorias básicas do mesmo. Com base nestas
premissas, descartando-se a possibilidade de uma construção tão somente a partir
de leis ou de estruturas lógico-objetivas, por exemplo, teríamos a elaboração de
um sistema penal tomando-se por base a discussão sobre os fins da pena, a qual
seria eleita como critério de referência para o próprio sistema.
Na hipótese de um sistema aberto, este primeiro nível exigiria uma
eleição de premissas valorativas, que serviriam de base para a construção do
sistema, possibilitando ao jurista operar em um panorama sem controle
excessivamente rígido, que poderia ser limitado ou, melhor dizendo, direcionado,
pelo conjunto de postulados político-criminais eleitos pela Constituição, sem
57
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal – Uma introdução à doutrina da ação finalista, tradução,
apresentação e notas de Luiz Regis Prado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
58
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación al Derecho Penal Contemporâneo, Barcelona: Jose Maria
Bosch Editor S.A., 1992, p. 172 e ss.
33
valores absolutos, mas com referências básicas, dentre as quais poderíamos
destacar os direitos humanos fundamentais
59
.
Neste primeiro ponto, ter-se-ia ampla liberdade na eleição de
premissas, com tomada de valores sem referência político-criminal direta, mas
direcionados a atender aos fins eleitos para o Direito Penal, considerando que as
categorias de um sistema dogmático do delito, seriam instrumentos para
realização destes fins.
Um segundo nível passaria pela construção de conceitos e
“categorias de abstração média”, representadas pelo erro e o dolo, pela
participação e a autoria, pela culpa e o dolo, pelas excludentes e o dolo, dentre
outras, assim definidas como uma análise lingüística (semântica e gramatical), de
preceitos legais.
E, por fim, um terceiro nível, sustentado pelas bases estabelecidas
nos dois níveis anteriores, definido este pela fundamentação na adoção de
soluções relacionadas a conceitos e estruturas problemáticas, com argumentos de
coerência interna, baseados em um novo sistema dogmático aplicado aos tipos
penais, e as conseqüências intra-sistemáticas de determinado princípio orientador
deste sistema no caso em concreto.
Em fim, teríamos um sistema orientado pelos fins a que se destina
o Direito Penal, concretizado através de premissas valorativas que, transmitidas a
enunciados penais estabelecidos por categorias, através de uma denominada
“derivação razoável”,
60
consistente na compatibilidade destes enunciados com
valorações correspondentes estabelecidas no primeiro nível construtivo,
59
Esta observação se faz com consciência do perigo da eleição de conceitos (princípios) absolutos ou imutáveis,
talvez até de caráter utilitarista-preventivo. Tal eleição, todavia, sempre exigirá um questionamento de legalidade
e legitimidade, sujeito à desconsideração de conceitos rígidos ou radicais que violem as diretrizes do Estado
Democrático de Direito.
60
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 174 e 175.
34
atribuiria a determinada categoria congregadora de enunciados uma concepção
valorativa.
Poderíamos resumir, segundo esta posição argumentativa
61
,
respeitada a complexidade do tema não esgotado neste momento, bem como
outras possíveis alternativas de construção lógico-jurídica, que:
1. Teríamos um primeiro controle decorrente de uma análise
sistemática dos preceitos legais que atingem um determinado conceito, levando-
se em conta uma interpretação segundo a Constituição, que seria um ponto
inicial para várias soluções possíveis, sem incidência concreta em níveis mais
específicos ou mais restritos, não havendo uma argumentação direta dela sobre
os níveis inferiores supramencionados;
2. Um controle sobre os limites ontológicos de adoção de
premissas valorativas do sistema definidas como referência, em conformidade
com a realidade em análise, proporcionando a construção sistemática de acordo
com as investigações empíricas em curso;
3. Também, e agora, um uso correto da linguagem na definição
das regras de controle, que possam atender satisfatoriamente às necessidades
decorrentes das conseqüências extra-sistemáticas que a política-criminal possa
produzir;
4. A coerência interna de uma determinada solução adotada dentre
as existentes, de forma generalizada, no sistema dogmático construído;
5. E, por fim, um último ponto de controle, representado pelas
soluções ou conseqüências político criminais intra-sistemáticas, decorrentes do
enunciado adotado em relação a outros princípios ou marcos orientadores
genéricos, proporcionando uma coerência interna entre o sistema dogmático
criado e as conseqüências que este mesmo sistema produz.
35
Apesar desta proposta, é importante ressaltar que, qualquer que
seja a opção construtiva adotada para um sistema aberto, a coerência sistemática,
ou seja, a eleição de um critério solucionador ou de conseqüências, nunca é
definitiva, devendo sempre ser considerada a possibilidade de ocorrer uma
necessária modificação do próprio sistema, para sanar uma imperfeição nele
existente ou criada a partir de uma nova realidade social, modificando-o para
adaptá-lo satisfatoriamente à solução dos conflitos postos em questionamento.
Assim teríamos sempre uma categoria valorativa que integra o
sistema em análise, concretizando-se com a definição de conflitos que,
proporcionando uma abertura do sistema, com a concepção ou o acolhimento de
novos conceitos, possibilitaria a modificação daqueles anteriormente adotados, o
que não impediria a ciência jurídico-penal de acompanhar a evolução da
sociedade.
62
Em definitivo surge uma modalidade mais adequada de legitimar a
existência do Direito Penal, como também de proporcionar a consecução dos fins
aos quais, em tese, este se destina.
Evidentemente que esta oposição argumentativa não esgota a
matéria, nem tão pouco atende a todas as questões envolvendo a criação de um
sistema valorativo. A discussão que se pretende estabelecer, na verdade,
justifica-se como mais uma preliminar para a compreensão de um Direito Penal
que vem fundamentado muito mais nos princípios orientadores do Estado
Democrático de Direito, do que na própria norma infraconstitucional, ora
superada em vários termos com a nova realidade social que diariamente se opera.
Ademais, saliente-se, a própria construção de tipos penais abertos,
neutros, sujeitos à atribuição valorativa, definem a real necessidade de uma
61
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 176 e 177.
62
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Sistema de Penas... , p. 28.
36
interpretação socialmente contextualizada, onde são analisados os elementos de
fato realizados dentro de um determinado contexto social, para só então tornar
possível uma valoração dos mesmos segundo o direito, em especial quanto a
uma norma proibitiva “incompleta” – o tipo penal aberto - que acaba por ser
perfeita através de um “juízo axiológico autônomo”
63
, que deve ser produzido
pelo julgador.
Assim, para a visualização do novo sentido delineado para o
Direito Penal e sua forma de execução, em especial quanto à proteção de bens
jurídicos supra-individuais ou universais, é importante ressaltar que a adoção e a
expansão de conceitos orientadores é indispensável à concretização de uma plena
eficácia na sociedade atual. E isto um sistema aberto proporciona.
Em sua concepção como estudo dogmático jurídico penal, o
sistema aberto acaba por interagir com os demais ramos da ciência
64
, assumindo
fundamentos filosóficos e sociológicos, além da lingüística, lógica e psicologia,
dentre outros, em uma interdisciplinaridade jurídica que busca atender às
diversidades valorativas regionais de um país continental, sem mais aceitar a
aplicação de um conteúdo “semântico apriorístico, universal e global”
65
.
Como relaciona Antonio Luis Chaves Camargo
66
, esta proposta de
sistema dinâmico e evolutivo exige do intérprete, dentre outras coisas, que além
da interpretação gramatical, histórica ou jurisprudencial, atendendo à finalidade
criadora do sistema, preencha espaços, lacunas, deixadas voluntariamente pelo
legislador, através de valores diversos, estabelecidos cada qual no contexto
social em que se operou o fato que será objeto de análise, adequando os termos
da lei às situações para as quais se busca a reprovação, podendo chegar a
63
JAKOBS, Günter. Derecho Penal – Parte general; fundamentos y teoria de la imputación. Tradução Joaquim
Cuello Contreras, José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 196 e ss.
64
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Sistema de Penas... , p. 171.
65
Ibid., p.179
37
aplicações proporcionais mais adequadas de uma pena ou, até mesmo, a uma
descriminalização de condutas, quando consideradas irrelevantes para
determinado grupo social. Tal posição retira o interprete de uma inadequada
submissão às normas genéricas, obrigando-o a satisfazer, com a realidade social
atual, a generalidade e abstração das normas jurídicas.
Não são abandonados os critérios dogmáticos legais de referência,
mas, na verdade, são estes adequados à análise da relevância penal dos fatos
investigados e submetidos à aplicação da norma.
Temos, então, uma atualização constante da norma, com a
adaptação de referenciais dogmáticos a categorias valorativas sempre em
evolução, permitindo assim que novos conceitos sejam estabelecidos a partir de
soluções de conflitos sociais, com a aplicação de conhecimentos científicos
decorrentes de outros ramos do saber, estabelecendo-se princípios de política
criminal no momento da norma penal ao caso em concreto
67
.
3.3. O bem jurídico como limite ao direito de punir do Estado
e as funções empíricas do Direito Penal Contemporâneo
A existência de direitos fundamentais constitucionalmente
garantidos justifica a exigência de uma resposta limitadora ao poder de punir do
Estado.
Não obstante o reconhecimento da indispensabilidade de um novo
sistema jurídico penal, a realidade atual da ciência penal clama por soluções para
a antinomia que se estabelece entre a interferência na vida privada, com a
66
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Sistema de Penas...,p.179.
67
Ibid., p.190
38
restrição da liberdade do cidadão e, por conseqüência, as garantias que o mesmo
Estado persecutor disponibiliza para os direitos individuais.
A compensação de culpas não é nem nunca foi suficiente a
individualizar uma pena.
A retribuição penal, como finalidade atribuída à atuação do Estado
na aplicação da pena, também não satisfaz os critérios indispensáveis à
delimitação do poder de punir do Estado.
Critérios totalitários ou absolutistas outros que, da mesma forma,
esperam encontrar na pena “um fim em si mesma”, sequer tocam as arestas dos
necessários limites ao poder de punir do Estado, não conseguindo satisfazer os
interesses da sociedade.
Acreditando que não existe poder de punir legítimo sem
limitações claras e precisas de seu campo de atuação, segundo a moderna ótica
do Estado Democrático de Direito, os princípios informadores e os conceitos de
política criminal deste modelo jurídico, como justificadores de uma política de
penas, se apresenta como alternativa responsável ao limite ao poder de punir do
Estado.
68
Desta forma, reconhecer o bem jurídico como limite ao direito de
punir do Estado é indicar que uma atuação repressiva na sociedade deve estar
sempre limitada às necessidades surgidas de conflitos sociais estabelecidos e não
resolvidos. Válida, então, a afirmativa de que a concretização de um sistema
valorativo de normas é muito mais adequada socialmente.
No âmbito da Proteção Jurídica Penal, verifica-se que este limite
de atuação deve pautar-se pela intervenção mínima.
Todavia esta intervenção mínima exige orientação, que só acaba
por ser satisfeita através da adoção de limites derivados do próprio Estado
39
Democrático de Direito, relacionados intimamente com bens jurídicos
protegidos, eleitos segundo um critério científico-social de um modelo jurídico
penal dinâmico.
Uma constante revisão de todo o processo de persecução penal e
do modo de intervenção do Direito Penal na sociedade, segundo o princípio da
proporcionalidade
69
, ou seja, da adequação da reprimenda penal a cada caso,
analisado de forma singular e individualizada, é pressuposto para a existência e
manutenção deste modelo jurídico penal dinâmico.
Assim, claramente concretiza-se a já declarada missão do Direito
Penal, no moderno Estado Democrático de Direito, de revalidação e reafirmação
de bens jurídicos, eleitos segundo este critério científico-social.
Aliás, a própria reafirmação do sistema jurídico penal acaba por
depender da revalidação ou confirmação de conceitos e valores sociais de época,
determinantes do critério científico-social de eleição de bens penalmente
protegidos, apesar da natural dificuldade técnica na delimitação destes conceitos
e valores.
Certos, também, que para a definição destes bens jurídicos é
preciso passar pelo estabelecimento de um discurso jurídico, uma comunicação
seletiva de valores, em um determinado grupo social, estabelecendo referenciais
próprios, criando conceitos valorativos sincrônicos
70
. Só assim surgem os bens
juridicamente protegidos.
Estes bens, produto de uma eleição consensual de valores
penalmente protegidos, indicam o delito como sendo um dissenso, uma violação
do discurso jurídico estabelecido em determinado grupo social.
68
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Culpabilidade... , p. 217 e ss.
69
Ibid., p.43 e ss.
70
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Sistema de Penas... , p. 172.
40
Daí porque da reprovação, através da persecução penal, a esta
violação de valores, com o intuito de reafirmação dos bens jurídicos eleitos em
um determinado grupo social, destaca-se em relação aos demais elementos
dogmáticos de sustentação da eficácia do Direito Penal.
Assim, impõe-se o bem jurídico como limite à aplicação do ius
puniendi do Estado como maior expressão da própria finalidade do Direito
Penal, qual seja, a exclusiva proteção de bens jurídicos
71
.
Um pensamento político-criminal, de natureza global, acaba por
posicionar o uso mais restritivo do Direito Penal como meta. O Direito Penal só
deve ser acionado quando de todo necessário e, assim, quando exigido na
proteção de bens jurídicos
72
. Certos de que nem todo o bem jurídico exige a
proteção penal; nem todo o bem jurídico social deve ser considerado como bem
jurídico penal.
Ademais, em termos descritivos, deve o Direito Penal dirigir-se a
atingir determinados fins, realizando algumas funções suficientes a reconhecer
sua legitimação perante a sociedade.
Um primado destas funções, que pode ser conceituado e
reconhecido quando da relação do Direito Penal com a sociedade como um
todo
73
merece destaque como objeto desta assertiva conjuntural
74
.
71
Neste sentido a doutrina tem declinado orientações lingüísticas específicas para explicar que, sob aspectos
terminológicos, quando queremos fazer referências à finalidade ou às metas relacionadas às conseqüências
desejadas, devemos utilizar a expressão missão, sendo que função deverá referir-se a conseqüências não
desejadas mais reais. In: HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia y
al derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989, p. 99.
72
MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal en el Estado Social y Democrático de Derecho, Barcelona: Editorial
Ariel S.A., 1994, p. 159 e ss.
73
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 299 e ss.
74
Tal consideração não pretende afastar ouros elementos empíricos de realização ou pretensão do Direito Penal,
como a prevenção especial e por conseqüência a repressão, através da aplicação das reprimendas e seu caráter
ressocializador, além da denominada função de reforço que se refere ao “etiquetamento” produzido pela própria
persecução penal, onde vale destaque, no modelo brasileiro, o instituto do indiciamento, que leva a uma
“marginalização” social, às vezes, sem precedentes.
41
Trata-se de uma perspectiva empírica do Direito Penal quanto às
suas funções em um contexto social.
Podemos definir como uma destas a função ético-social ou de
configuração de costumes sociais, indicadora de um conceito de legitimação
moral das relações jurídicas do Direito Penal.
Originada da estreita relação estabelecida entre a matéria penal e
os valores éticos fundamentais, pretende o reconhecimento da integração de um
“mínimo ético”
75
de consenso social à própria estrutura do Direito Penal,
decorrente das profundas convicções em geral compartilhadas pelos integrantes
de um mesmo grupo.
Isto quer dizer que, além de o Direito Penal pretender determinar o
comportamento externo dos integrantes da sociedade, possui este, também, um
caráter interno de conscientização destes mesmos integrantes, propiciando
fenômenos de adesão e fidelidade às suas delimitações legais,
independentemente da eficácia da aplicação da norma que, em ocorrendo, só
desponta como reforço à manutenção destas mesmas influências moralizadoras.
Com a separação entre a Moral e o Direito Penal, este novo
sentido adquirido pela função ético-social somente exige uma comprovação
sobre o caráter legitimador, visto que, praticamente indiscutível sua
concretização no Direito Penal atual, seja reforçando valores sociais adquiridos
pelos indivíduos no convívio em comunidade, seja em uma função estabilizadora
que pretende estender seus efeitos à própria aceitação de normas penais, como
expressão de reprovação moral-social a determinados comportamentos.
O exercício desta função ético-social do Direito Penal, por parte
do Estado, exige do ente jurídico um exercício de fomento de valores ético-
75
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 300.
42
sociais de ação, em uma função educativa
76
dos cidadãos, inculcando ações
internas favoráveis aos valores estabelecidos como adequados para o Direito, já
que nenhuma sociedade pode subsistir se apenas através do medo e do egoísmo o
Direito for respeitado, ainda que se questione não ser missão primária do Direito
Penal a proteção de valores ético-sociais das atitudes internas
77
.
Não obstante declaradas posições contrárias a uma função
educativa neste sentido
78
, a prática penal educativa, segundo uma evolução
histórico-social de seleção de bens jurídicos sujeitos a proteção penal, em
determinadas épocas, sempre exerceu funções informativas e de formação
pedagógica.
A caracterização de influências no âmbito de evolução social, bem
como uma ausência do reconhecimento da legitimidade de uma função
educadora neste sentido, não podem afastar a responsabilidade do Estado de
formar cidadãos responsáveis que autodeterminem os limites de suas liberdades,
através do estabelecimento de critérios mínimos de garantia de convivência
social e livre desenvolvimento da personalidade, sem abrir mão de uma educação
para a responsabilidade.
Assim, não se trata de afastar esta função ético-educadora do
Direito Penal, mas sim de limitar seus campos de atuação ao mínimo necessário
para o desenvolvimento social livre, mas responsável, das relações jurídicas,
sendo obrigação do Estado transmitir indicativos dos conteúdos morais mínimos
a serem respeitados, confortando uma política criminal liberal em um Direito de
Princípios Orientadores, que acabam por tomar forma em conceitos abertos de
76
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción..., p. 100 e ss.
77
KAUFMANN, Arthur. Strafrecht zwischen Gestern und Morgen, p. 92. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria.
Aproximación..., p. 302, nota 495.
78
Jesús-Maria Silva Sánchez sustenta que a ingerência estatal neste sentido, conduzindo ao estabelecimento de
um critério de valores específico na estrutura interna de valores do indivíduo, em uma expressa substituição de
valores pessoais por valores jurídicos do Ordenamento, tem um caráter negativo de influência nas atitudes
internas de cada cidadão. In: Aproximación..., p. 302.
43
um sistema de valores que, não restando imutáveis, sujeitam-se a uma constante
evolução, segundo a própria evolução da sociedade.
Cumprir esta função social em um âmbito diferente da esfera
persecutória penal seria, também, omitir-se em relação às responsabilidades de
um Direito de valores, que pretende intervir apenas quando nenhuma outra forma
de controle social possa solucionar o problema. Temos que determinados
comportamentos individuais antiéticos, ainda que não sejam penalmente
puníveis, encontram no Direito Penal de conceitos morais- valorativos, um
conjunto de normas orientadoras da linha ética que determinada sociedade de
época estabeleceu como parâmetro do ideal.
A variação de perspectivas éticas dos diversos modelos sociais
existentes seriam assim respeitadas, segundo um sistema aberto e evolutivo de
valores que, de acordo com o meio social, reprimiriam ou não determinados atos,
bem como conduziriam a uma educação ético-social interna quase que natural.
Uma perigosa tendência social a uma “deseducação” existe. Fruto
de um sistema “engessado” de um modelo tradicional de tipos penais fechados,
qualquer despenalização ou ausência de tipificação de um caso em concreto
realmente leva vários setores da sociedade à incapacidade de promoção de
reprovações morais àqueles que não são apenados, em um efeito desmoralizador.
Esta tendência inviabiliza um conceito pedagógico interno
profundo do Direito Penal, mas esta não é a intenção do sistema de funções
ético-sociais, senão uma função pedagógica interna orientada segundo critérios
valorativos gerais.
Não há como abandonar a função educadora interna, sob a
argumentação de que uma função externa é suficiente.
Existe a necessidade de conscientização de conceitos básicos de
valores fundamentais do Estado Social e Democrático de Direito que,
44
assegurados por norma penais garantidoras, surgem como meio de promoção de
uma conscientização pessoal de cada integrante da sociedade, não obstante
referendar valores e garantias já assegurados por outras searas do direito.
É lógico que os limites tipificadores de condutas, segundo bens
jurídicos eleitos como penalmente protegidos, não podem pretender ser
conscientizados sob o estigma do medo e da opressão. Devem sim ser
indicadores dos valores sociais, morais e éticos que a sociedade, em determinado
tempo e lugar vem elegendo como suscetíveis de reprovação e, assim, indicar
alguns dos limites adequados para as condutas individuais, certo de que estes
limites não serão satisfatórios, mas complementares aos demais meios formais e
informais de controle de conflitos sociais.
Uma segunda função, atribuída ao Direito Penal, é a função
simbólica
79
. Comum a todas as normas apresenta como característica a produção,
através de mandatos e proibições eficazes, bem como por meio de da aplicação
concreta aos delinqüentes, dos efeitos previstos para infrações penais, de um
convencimento, uma satisfação, na mente dos integrantes da sociedade, de que
algo está sendo feito e que o problema está sob controle.
Sua identificação retórica está na produção de impressões
tranqüilizadoras perante a opinião pública, identificando a existência de um
legislador atento, competente e interessado na solução de problemas.
A função simbólica jamais pode ser elevada à categoria de função
exclusiva, sob pena de inviabilizar a própria concretização da norma na
sociedade, em especial por não dar lugar à resolução direta dos conflitos penais e
à proteção de bens jurídicos, até porque estas outras funções estão ligadas à
função instrumental.
79
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 304.
45
A função simbólica, buscando a identificação da conduta
correspondente à qualificação de bem jurídico que pretende proteger o Direito
Penal, constitui verdadeira manifestação de um Direito de características
educativas.
Já sua legitimação como função concretizadora da missão do
Direito Penal só pode ser obtida através de um papel preventivo geral, que acaba
ausente nas atuais manifestações simbólicas do Direito moderno.
Em particular suas características de integração geral, ou de
grupos sociais específicos, buscam produzir, através das normas, uma condição
de tranqüilidade, restabelecendo a confiança no ordenamento jurídico, com o
retorno da consciência social a respeito da importância de determinado bem
jurídico protegido.
O problema desta função das normas jurídicas de caráter penal
está em sua eleição função exclusiva ou principal da norma. A falibilidade de
normas novas ou de aumentos de penas que, em um primeiro momento acabam
produzindo efeitos pacificadores sociais significativos, mas a médio e longo
prazo, diante da ineficácia em sua aplicação, acabam deteriorando a confiança no
Ordenamento Jurídico como um todo e, assim, bloqueando as funções
instrumentais deste mesmo Ordenamento, é clara e comprovada.
Assim, para produzir efeitos relevantes na consciência dos
cidadãos (em um verdadeiro efeito instrumental), a função simbólica das normas
penais somente pode ser vista como legítima quando atuando em conjunto com
uma função instrumental, ou seja, sob a influência de mandatos e proibições
eficazes de aplicação real na sociedade, conseqüências da violação de normas de
comportamento e que buscam a transformação de uma situação inicial, de acordo
com um objetivo concreto de proteção de bens jurídicos.
46
Não basta assim, à norma, um caráter simbólico pacificador, que
objetiva convencer a sociedade de que o legislador atua, de forma concreta, na
busca de soluções para a proteção mais adequada de bens jurídicos, se exige,
também, uma característica concreta de capacidade de aplicação e
instrumentalização de suas diretivas no caso em concreto, a fim de não ficarem
perdidos valores educativos promocionais de integração, que uma função
simbólica impõe à mente dos cidadãos.
Por fim, uma terceira função empírica do Direito Penal no
contexto social está na satisfação das necessidades psicológicas da coletividade.
Esta função, intimamente ligada ao próprio caráter (função)
simbólico das normas, busca uma satisfação de necessidades sociais de sanção,
na impressão de um “castigo” por parte do Direito Penal.
A problemática a respeito desta função está em reconhecer ou não
a necessidade de satisfação de desejos psico-sociais de determinada comunidade,
concretizados no Direito Penal através da aplicação da pena, como uma condição
legitimadora da intervenção penal na sociedade.
As tendências irracionais ou subconscientes da sociedade, que
manifestam, para determinados casos, uma necessidade de pena, não são, de
forma isolada, suficientes a legitimar a aplicação do Direito Penal.
Estas questões psicológicas de satisfação social, somente podem
ser consideradas quando identificadas em uma política de prevenção geral
positiva, que busca reforçar a consciência jurídica da sociedade e sua disposição
para cumprir as normas.
A pena, nesta função, em conjunto com o juízo de desvalor que a
precedeu, surge como formadora da consciência ética-valorativa da coletividade,
exercitando a confiança na norma, a fidelidade no Direito e a aceitação de suas
47
conseqüências, dentre elas a de caráter intimidador direcionado à proteção de
bens jurídicos da sociedade
80
.
A sanção penal como satisfação de uma necessidade psicológica
profunda da sociedade, em atenção a um subconsciente coletivo, acaba limitada
por princípios fundamentais de proporcionalidade, humanidade e justiça.
Ficam, desta forma, privilegiadas garantias individuais que
acabam tutelando a própria satisfação psicológica coletiva aos limites do justo e
adequado.
Não obstante posição crítica em contrário
81
, a resposta preventiva
geral desta função, devidamente limitada pelas garantias fundamentais, indica
muito mais uma complementação do raciocínio lógico jurídico de revalidação de
normas, com critérios de conscientização ético-social sobre os limites de
intervenção do Direito Penal, possibilitando a satisfação social mediante uma
resposta justa e adequada do Estado à infração penal.
Os anseios sociais de “justiça”, decorrentes de uma necessidade
psico-social de reprovação penal, acabam por completar um conjunto de funções
empíricas da norma penal que, aliada às funções pedagógica interna de caráter
ético-social e simbólica, caracterizam uma construção jurídico-dogmática
voltada a estender à coletividade as funções descritivas das normas penais,
segundo finalidades práticas que buscam obter.
Além desta perspectiva das funções do Direito Penal dentro de um
contexto social, cumpre fazer alusão, também, à sua função empírica em relação
ao delinqüente.
80
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 230.
81
Jesús Maria Silva Sanchez entende que uma função legitimadora, baseada em concepções irracionais,
subconscientes, da sociedade, manifestando determinada configuração de necessidade de aplicação de penas, não
pode reger os limites de intervenção do Direito Penal na sociedade. Entende o autor que um estudo das
conotações psico-sociais da pena deveria ter como finalidade um crítica à perspectiva de uma teoria legitimadora
neste sentido. In: Aproximación..., pp. 307/308.
48
Cuida-se, exatamente, da concretização de uma função repressora,
destinada a restringir direitos, inclusive de natureza fundamental, ligada à
privação de bens jurídicos, como meio de obtenção da finalidade preventiva
especial, quando não se apresentou suficiente a resposta preventiva geral
82
.
Sua caracterização como meio imprescindível para um fim
legitimador
83
, exige o respeito a limites da própria teoria da prevenção
84
.
Assim, é possível afirmar que, uma função intervencionista e
repressora, incidindo diretamente sobre o delinqüente, na forma da aplicação de
uma reprimenda penal como instrumento de intimidação e educação pessoal
85
,
acaba por completar um conjunto de elementos empíricos funcionais, destinados
a legitimar a intervenção do Direito Penal na sociedade, segundo sua pretensão
de efeitos práticos e concretos que possam atender à proteção de bens jurídicos,
em uma concepção moderna do Direito.
82
As teorias envolvendo a prevenção geral e a prevenção especial devem sempre estar direcionadas a um caráter
essocializador. Aliás, perdem sentido alternativas penais de caráter normativo que não encontrem fundamentação
em uma perspectiva ressocializadora ou socializadora. Tal assertiva decorre da indiscutível realidade de que
teorias retributivas e seu caráter absolutista não atendem ao caráter reconciliador que o Direito Penal pretende
impor, nem tão pouco se mostraram adequadas na medida em que não buscam aos efeitos empíricos da pena,
quais sejam o êxito da ressocialização e a efetiva intimidação. Neste sentido: HASSEMER, Winfried.
Fundamentos..., p. 347 e ss.
83
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 308.
84
As concepções retribucionistas e preventivas se contrapõe, na medida em que os primeiros acreditam que a
materialização do Direito Penal na pena representa um exercício, uma realização de Justiça, legitimada pela
retribuição de um mal individual com um mal institucional. De outro lada as teorias preventivas encontram na
pena, também representativa da intervenção do Direito Penal na sociedade, um castigo, uma resposta correcional
necessária em apenas em determinados casos, pretendendo evitar a delinqüência na medida do possível, e assim
combater o delito. In: MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal en el Estado Social y Democrático de Derecho,
Barcelona: Editorial Ariel S.A., 1994, p. 118 e ss.
85
Santiago Mir Puig destaca que Franz von Liszt já propusera, em 1833, três sentidos distintos de aplicação da
prevenção especial, segundo sua incidência no delinqüente: a advertência, a ressocialização e a inocuización
(tornar inócuo). A primeira forma refere-se ao delinqüente ocasional, para quem uma advertência, nos limites de
prevenção especial, restaria suficiente como resposta penal. A ressocialização, através da aplicação de um
tratamento destinado a obter correção, cumpriria a função preventiva especial de forma satisfatória para aqueles
delinqüentes não ocasionais, mas corrigíveis. Quanto ao delinqüente habitual incorrigível, torná-lo inócuo,
inofensivo, seria conseqüência desta modalidade de prevenção especial, por meio de uma internação, até mesmo
de caráter perpétuo. In: El Derecho Penal..., p. 122.
49
II - BENS JURÍDICOS E DIREITO PENAL
A correlação entre o Direito Penal e a Teoria do Bem Jurídico não
pode mais ser considerada como meramente subsidiária.
Aliás, o Direito Contemporâneo há muito já acolheu este
posicionamento, visto que o Direito Penal não pode e não deve ser reconhecido
fora de um contexto histórico, cultural, ético e social.
A própria criação de normas jurídico-penais, para determinada
sociedade, jamais pode ser entendida completamente sem a consideração destes
elementos.
Assim, para legitimar a relação entre a necessidade de uma
intervenção penal na sociedade e os demais meios de controle social existentes,
sabido que já definimos o Direito Penal como uma forma subsidiária de controle
social, existe uma necessidade de a ordem jurídica determinar o objeto do Direito
Penal, que deve ser constituído de um comportamento inadequado e suas
conseqüências jurídicas.
Nesta sistemática se faz necessário desenvolver um estudo sobre
os bens jurídicos, de características penais, e a concreta atribuição de uma
finalidade ao Direito Penal, constituída na garantia fundamental de proteção a
estes bens.
A própria referência à evolução da Teoria do Bem Jurídico, ilustra
que a doutrina teleológico-funcional, reconhecidamente, conduziu à conclusão
de que um conceito material de crime não pode ser melhor considerado senão
50
com base na própria função do Direito Penal de tutela subsidiária de bens
jurídico-penais, decorrentes de lesões consideradas como “dignas” de
repreensão.
86
Daí a indispensável relação justificadora do estudo do bem
jurídico penal como distinto de um conceito genérico de bem jurídico, visto que
nem todo o bem jurídico requer tutela penal e nem todo o bem jurídico há de ser
considerado ou mesmo convertido e um bem jurídico penal.
87
1. Conceituação e constituição do Bem Jurídico e do Bem
Jurídico-Penal
Segundo Luiz Régis Prado, tudo aquilo que, em um sentido amplo
de conceituação doutrinária, possuir importância para o ser humano como objeto
útil, apto para satisfazer suas necessidades, em um contexto de valoração
pessoal, estabelecendo uma relação entre um indivíduo e um objeto
88
deve ser
considerado como bem.
Já o bem jurídico pode ser entendido como um valor ideal,
proveniente da ordem social em vigor, juridicamente estabelecido e protegido,
em relação ao qual a sociedade tem interesse na segurança e manutenção, tendo
como titular tanto o particular como a própria coletividade.
Vale dizer, o bem jurídico envolve tanto objetos físicos como
qualidades de uma pessoa, tanto direitos como garantias, material e imaterial,
86
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas, São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1999, p. 62.
87
MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal..., p. 161.
88
PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. 3ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2.003, p. 21 e ss.
51
interesses e objetos vinculados por um conceito de valores sociais, que os
destaca como de grande ou significante valia.
Os comandos e as próprias proibições elencadas no Direito têm
sua origem nas denominadas normas de valoração, decorrentes de aprovações e
desaprovações, dentro dos valores pessoais daqueles que exigem quanto a aquilo
que exigem, dando-se preferência a determinados interesses considerados
sagrados ou intocáveis, até que um novo conceito social surja
89
.
É neste conceito social de proteção ou de valoração que se pode
observar a relação jurídica de proteção, ou de relevância, concretizada no bem
jurídico.
A idéia constitutiva de um conceito de bem jurídico é obra da
ilustração, do iluminismo, decorrente do pensamento de Paul Johann Anselm
Feuerbach
90
, que verdadeiramente empreendia a busca da limitação da repressão
penal Estatal, mesmo na caracterização de condutas de natureza delituosa que
não pudessem ser relacionadas de forma individual, sempre que recorria ao
direito subjetivo como forma de evitar uma aplicação arbitrária do Direito
Penal
91
.
O posicionamento de Paul Johann Anselm Feuerbach indicava
que, para a declaração de uma conduta como delituosa não bastava a suposta
infração de uma norma ética ou divina. Exigia-se a prova de que ocorreu uma
89
ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 7ª edição, tradução de J. Baptista Machado, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p.46 e ss.
90
A doutrina jurídica, em geral, praticamente de forma unânime, atribui a Paul Johann Anselm Feuerbach a
limitação do Direito Penal à proteção de direitos ou interesses subjetivos, afetos a determinado sujeito. Neste
sentido, dentre inúmeros outros: HASSEMER, Winfried. Fundamentos...; ROXIN, Claus. Problemas..., p. 27 e
ss.; MIR PUIG, Santiago, El Derecho Penal...; SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, Aproximación...; PRADO, Luiz
Régis, Bem-Jurídico Penal..., p. 28 e ss.
91
FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de derecho penal comúm vigente en Alemania,
tradução de Eugênio Raúl Zaffaroni e Irmã Hagemeier, 2ª edição, Buenos Aires: Hamurabi, 1989, p. 65 e ss.
52
lesão a interesses materiais de outras pessoas, ou seja, uma lesão a bens
jurídicos.
Neste sentido, e segundo Winfried Hassemer
92
, com a máxima de
que “a conduta humana somente pode ser um injusto punível se lesionar um bem
jurídico”, a teoria de Paul Johann Anselm Feuerbach proporcionou o
reaparecimento jurídico da figura da vítima, como justificativa ao castigo penal
por uma conduta indevida, visto que para a punição passou-se a exigir a
apresentação de uma vítima da conduta e da prova de que esta teve seus bens ou
interesses lesionados.
A penalidade decorrente da lesão a bens jurídicos protegidos,
desencadeada pelo fenômeno identificado como delito, deixa de ser uma mera
retribuição, objetivando legitimar uma função de resposta à violação de bens
jurídicos, atribuída ao Direito Penal.
93
Não se pode deixar de considerar, nesta assertiva, o
reconhecimento de outra grande parcela da doutrina
94
de que foi Johan Michael
Franz Birnbaum, o responsável pela superação da doutrina de direitos subjetivos
de caráter civil adotada no Direito Penal até a metade do século XIX
95
, criando
como clara expressão do jusnaturalismo o pensamento sobre a proteção de bens
jurídicos.
Apesar disto, o que realmente se pode observar é que, quando
Johan Michael Franz Birnbaum busca concretizar um bem jurídico que, mediante
92
HASSEMER, Winfried. Fundamentos..., p. 37 e ss.
93
FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado…, p. 63.
94
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción al Derecho Penal, 2ª edição, Santa Fé de Bogotá: Temis, 1994, p. 24;
MEZGER, Edmundo. Tratado de Derecho Penal. Tradução de José Arturo Rodrigues Muñoz, Madrid: Editorial
Revista de Derecho Privado, 1995, t.1, p. 402; JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal – parte
general. 4ª edição, tradução de José Luis Manzares Samaniego, Granada: Comares, 1993, p. 232; ZAFFARONI,
Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal- parte general. 6ª edição, Buenos Aires: Ediar, 1981, vol. III, p. 247.
95
Na própria teoria desenvolvida por Feuerbach, que via no crime uma ofensa ou violação de direitos subjetivos,
pode-se observar influências de natureza contratualista civil.
53
a intervenção do Estado, proteja a todos os integrantes da sociedade de forma
igual, constituindo-se o delito com base na lesão ou ameaça de lesão a este bem
jurídico, o que, na verdade, possibilitou, foi a concretização de um objeto de
proteção do Direito Penal, passando da figura dos direitos subjetivos para a do
bem jurídico, propriamente dito, materializado no objeto sobre o qual estes
direitos recaem
96
.
Nesta esteira de pensamento, a conceituação de bem jurídico de
passa, então do jusnaturalismo, para as mãos de Karl Binding, que acaba por
acomodar a “difusa” contextualização de bem jurídico de Birnbaum em um
panorama de natureza penal de características jurídico-positivas
97
, reconhecendo
sua dependência da própria norma
98
.
Para Karl Binding
99
cada norma jurídica leva em si seu próprio
bem jurídico, tratando-se de elementos inseparáveis, tendo o bem jurídico como
um conceito abstrato, manifestação e conseqüência da vontade do legislador,
onde a norma cria o bem jurídico, ao contrário de Birnbaum, para quem o bem
jurídico criava a norma
100
.
Este posicionamento, apesar de evolutivo, restou insatisfatório,
visto que proporcionou ao indivíduo uma situação de submissão ao Estado,
criando o risco de arbitrariedades, visto que desde a criação da norma, com a
seleção dos bens jurídicos tutelados até a execução da pena, acabaram como
96
CASTILLO, Gerardo Barbosa & PAVAJEAU, Carlos Arturo Gómez. “Bien jurídico y derechos
fundamentales: sobre um concepto de bien jurídico para Colômbia”, Monografías de Derecho Penal 12, Bogotá:
Universidade Externado de Colômbia, 1996, p. 21 e ss.
97
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción..., p. 25.
98
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado..., p. 232.
99
BINDING, Carlo. Compendio de diritto penaleparte generale, tradução de Adelmo Borettini, Roma:
Atheneum, 1927, p. 197 e ss.
100
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Op. Cit., p. 25.
54
projeções da política estatal, sendo o cidadão mero destinatário final da norma,
através de uma retribuição penal
101
.
Apesar de o bem jurídico, nesta concepção, não ser objeto de uma
construção social, mas de uma seleção legislativa, a teoria de Binding
proporcionou um caráter limitador, fragmentário, ao Direito Penal, indicando
que este não pode ficar sujeito à proteção de todos e quaisquer bens, mas apenas
àqueles escolhidos pelo legislador.
Não obstante seu caráter evolutivo restou a esta Teoria a norma
como barreira instransponível.
A superação da norma em direção à sociedade foi objeto da Teoria
de bem jurídico, de Franz von Liszt
102
, entendendo que na sociedade devem ser
identificados os bens jurídicos passíveis de serem protegidos penalmente, não se
tratando de criação do legislador, mas identificação deste como conseqüência das
relações sociais.
O legislador atua como identificador do bem passível de proteção,
dentro de uma sociedade, posteriormente o protegendo mediante a criação de
norma penal adequada.
A vida é quem acaba por gerar os interesses dignos de proteção
penal, segundo a teoria de Franz von Liszt, estando o bem jurídico muito além da
lógica jurídica abstrata, própria da dogmática, mas assumindo características de
centro de união de outras ciências, através de um caráter sócio-político criminal,
indicando que o direito surge em razão do ser humano.
103
101
HORMAZÁBAL MALARÉE, Hermán. Bien juridico y Estado Social y Democrático de Derecho: el objeto
protegido por la norma penal, Barcelona: PPU Derecho y Estado, 1991, p. 46.
102
LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal allemão. Tradução e comentários de José Hygino Duarte Pereira,
Rio de Janeiro: F. Briguiet & C., 1899, tomo I, p. 94 e ss.
103
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción..., p. 25.
55
Apesar desta evolução social, a Teoria do Bem Jurídico acabou
por sofrer com uma nova sistemática de interpretação meramente teleológica,
que acabou por proporcionar sua negação durante o domínio da escola nazista
alemã de Kiel
104
.
O neokantismo, como teoria complementar do positivismo
jurídico
105
, apesar de não constituir uma metodologia puramente formalista, visto
que tem como objetivo central a compreensão do conteúdo de fenômenos e
categorias jurídicas, além de sua definição formal, tomando por conta a
dimensão valorativa, apresentou uma noção de bem jurídico perfilada com a
dependência normativa
106
.
Assim, a negação crítica destrutiva do contexto de bem jurídico,
reduzindo sua contextualização às lesões ao dever, estas como conteúdo ou
sentido do próprio delito
107
, foi facilmente aplicada pelo pensamento nazista.
Suas características sociais só acabaram por ser parcialmente
recuperadas com Hanz Welzel
108
, que retoma o bem jurídico como “bem da
vida”, um verdadeiro estado social, sem natureza jurídico-positiva, mas sócio-
política, apesar de manter um caráter abstrato
109
.
Ocorre que para Hanz Welzel o primeiro interesse do Direito
devem ser os valores dos atos, de consciência de caráter ético-social, por meio
dos quais, só então, serão incluídos na sistemática jurídica os bens jurídicos.
104
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción..., p.25
105
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 55 e ss.
106
R. Honig e a Escola de Marburgo, representada por E. Schwinge e L. Zimmerl, via no bem jurídico e seu
conceito um princípio motriz para toda interpretação e constituição de conceitos, dentro do Direito Penal. Uma
dialética de conceitos pré-estabelecidos, segundo uma ordem normativa orientada pelos bens jurídicos eleitos.
Vide: BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Op. cit., p. 25/26 e nota 107.
107
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Op. cit., p. 26, nota 108.
108
WELZEL, Hanz. Derecho Penal alemán. 11ª edição, tradução de Juan Bustos Ramirez y S. Yáñez, Santiago:
Editora Jurídica de Chile, 1976, p. 15 e ss.
109
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Op. cit., p. 26.
56
Então, as normas jurídicas surgiriam em razão destes fatos (atos,
de consciência de caráter ético-social) e só, imediatamente, em virtude dos bens
jurídicos.
Apesar de cuidar de posicionamento ainda distante da sociologia
política de Franz von Liszt, foi a primeira manifestação doutrinária do
pensamento alemão pós-nazismo, a dedicar importância ao bem jurídico
110
.
Na atualidade das últimas grandes intervenções doutrinárias sobre
a teoria do bem jurídico, podemos destacar as visões de alguns outros
doutrinadores modernos.
Knut Amelung
111
apresenta um posicionamento sobre os bens
jurídicos como produtos da vida social, em um caráter funcional de sistema,
podendo qualquer coisa adquirir o caráter de bem jurídico.
A ausência de limites para a própria concretização e eleição de
bens jurídicos, por si só compromete esta visão.
Winfried Hassemer
112
, de outro lado, assume que uma visão
político-criminal geral deve tutelar os bens jurídicos, entendendo que a
necessidade de intervenção deve orientar a noção de bem jurídico, acolhendo
uma teoria do dano social.
Podemos ainda mencionar o funcionalismo de Günther Jakobs
113
,
discípulo de Hanz Welzel, que além de apenas imediatamente considerar o bem
jurídico, também indica que este reside na garantia de expectativas de bom
funcionamento da vida social, dentro de conjunturas exigidas e estabelecidas
110
BUSTOS RAMÍREZ, Introducción..., p. 26.
111
Ibid., mesma página.
112
HASSEMER, Winfried. Fundamentos..., p. 36 e ss.
113
JAKOBS, Günther. Derecho Penal- Parte general; fundamentos y teoria de la imputación. Tradução Joaquim
Cuello Contreras, José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 44 e ss; Fundamentos
del Derecho Penal. Tradução de Manuel Cancio Meliá e Enrique Peñaranda Ramos (Universidad Autónoma de
Madrid), Buenos Aires: Ad-Hoc S.R.L., 1996, p. 179 e ss.
57
legalmente, representando a própria validação fática da norma, em uma
valorização muito maior do sistema que dos próprios bens jurídicos que, em tese,
o justificariam.
Já para Juan Bustos Ramirez
114
o bem jurídico pode ser definido
como conseqüência de uma formulação normativa sintética concreta, decorrente
de uma relação social dinâmica determinada, tendo como base a posição de cada
indivíduo em relações sociais estabelecidas, segundo valores e objetos tutelados
e, por conseqüência, a interação que se opera entre eles.
Claus Roxin, seguindo uma mesma linha histórica social, assume
que, quando um conjunto de pressupostos imprescindíveis para a existência e
convivência, se concretizam em condições de valor, como vida, liberdade,
propriedade, observa-se a consecução de bens jurídicos que cabem ao Direito
Penal assegurar, quando violados em determinadas condições indispensáveis
para a manutenção da vida em sociedade
115
.
Com certa relutância, afastando alguns destes posicionamentos
pós-modernos, poderíamos partir de um parâmetro mais alinhado às idéias de
Franz von Liszt, quanto à conceituação e concretização de bem jurídico penal.
Apesar de posicionamentos em certa medida antagônicos, a
doutrina moderna parece ser unânime quando se trata de afirma que a
intervenção do Direito Penal na sociedade somente se justifica quando pretende a
proteção de bens jurídicos
116
.
Assim, convergência destes pensamentos modernos merece uma
condução um pouco diferenciada.
114
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción..., p. 28.
115
ROXIN, Claus. Problemas..., p. 27 e 28.
116
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação..., p. 125.
58
O bem jurídico deve posicionar-se segundo a realidade social,
formada dos conflitos estabelecidos entre as pessoas, decorrente de necessidades
particulares de satisfação de interesses diversos, indicando que os bens jurídicos
têm um caráter eminentemente pessoal, ligados às próprias condições de
existência individuada de cada ser humano em uma sociedade.
Desta forma, indicar que a missão do Direito Penal é a proteção de
bens jurídicos é afirmar que os valores de uma sociedade, pautada por suas
características de tempo e espaço, cultura e educação, devem ser considerados
segundo o panorama de vida de cada um dos integrantes desta mesma sociedade,
suas necessidades e seus valores.
Não teríamos desta forma, bens jurídicos pré-determinados,
decorrentes de conceitos previamente estabelecidos, mas, ao contrário,
decorrentes tão somente de valores, formalmente dispostos na norma, orientando
ações aceitáveis ou não, naquele contexto social, em uma materialização de
elementos motivadores de um processo de aprendizagem dinâmico e eficaz
117
.
Simplesmente encontrar em definições estáticas que englobam a
moral e a ética, como valores de manutenção de paz social, expressando um
conceito de bem jurídico penalmente protegido não satisfaz a moderna
concepção de proteção que o Direito Penal empresta à sociedade.
Para reconhecer o bem jurídico como legitimador de tutela penal é
necessário a consideração de uma orientação valorativa legal, fundada em
direitos fundamentais da pessoa humana, observados segundo um panorama de
necessidades individuais, pautado pelo modo de vida eleito por determinada
sociedade.
117
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação..., p.126
59
Neste sentido, o posicionamento Luiz Régis Prado, quando
reconheceu na noção de bem jurídico as necessidades do ser humano,
decorrentes da experiência concreta de vida, dentro de uma universidade e
generalidade que possibilitam sua delimitação racional e consensual, através de
postulados jurídicos
118
.
2. Constituição Federal e bens jurídico-penais
Conforme Antonio Luis Chaves Camargo, os direitos
fundamentais servem, e devem servir, também, como limitadores da tutela penal
e, por conseqüência, de um conceito valorativo de bem jurídico
119
.
Temos que a fórmula precisa e estática da lei penal não é
suficiente à extração de bens jurídicos dignos de proteção penal.
A subsunção destas normas à realidade social, bem como aos
interesses e valores eleitos, segundo direitos e garantias individuais previstos
constitucionalmente no Estado Democrático de Direito, indica a necessidade de
considerar o bem jurídico como um conceito relativo, que depende de um
sistema de valores sociais que o produza
120
.
Neste contexto social de valores não mais subsistem apenas
interesses determinados, individuados, mas sob uma ótica social globalizada
moderna, também interesses universais, onde a lesão ou o perigo de lesão
colocam em risco o próprio bem jurídico, segundo uma indeterminação de
vítimas.
118
PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal..., pp. 49 e 50.
119
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Culpabilidade..., p. 53.
120
Ibid., p. 54.
60
Alinhando-se com estas considerações a afirmação de que a
função do Direito Penal é de proteger valores e interesses que possuam
relevância constitucional, ou seja, juridicamente declarados como tal, explícita
ou implicitamente, em um critério limitador de intervenção mínima
121
, acaba por
fazer sentido.
Isto não quer dizer que o bem jurídico estará concreta e
explicitamente mencionado na norma constitucional, mas contido em um sistema
de valores composto por direitos fundamentais, direitos dos cidadãos de
determinada sociedade, pelos valores que emanam destes, os que são necessários
para assegurar sua efetividade, bem como aqueles que simplesmente decorrem
dos mesmos
122
.
Para possibilitar esta sistemática, é necessário entendermos que a
norma constitucional não é estática, mas dinâmica, sujeita a adequações e
mudanças sociais, através de seus sistemas de controle de constitucionalidade.
A possibilidade de auferir valores constitucionais capazes de
relacionar bens jurídicos penais está diretamente relacionada a existência de
princípios que inspiram ou orientam a Carta Constitucional
.
A possibilidade de auferir valores constitucionais capazes de
relacionar bens jurídicos penais está diretamente relacionada a existência de
princípios que inspiram ou orientam a Carta Constitucional.
No Estado Democrático de Direito, modernamente concebido com
base em uma orientação constitucional que alinha seus princípios diretores, além
de encontram-se bens jurídicos definidos segundo esta condição de valores
fundamentais, também encontramos prestações públicas e bens jurídicos, neste
121
CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Derecho penal: concepto y princípios constitucionales. 3ª Edición,
Valencia: tirant lo blanch, 1999, p. 33.
122
Ibid., p. 37.
61
contexto, são vistos como essenciais para a existência de condições de vida digna
e pacífica da personalidade humana.
123
Assim, a norma constitucional desponta como relação de valores
fundamentais, em um conjunto referencial que cabe ao legislador ordinário
observar quando da criação de normas de proteção penal, visto que acabam por
vinculá-lo, de certa forma, a bens jurídicos previamente determinados, com base
nos valores legitimadores da função social que estes pretendem proteger
124
.
2.1. Princípios fundamentais e proteção penal
Para existir uma adequada seleção de bens jurídicos que merecem
uma proteção penal, devemos extrair da Constituição Federal princípios
fundamentadores ou informadores do Direito Penal.
São estes princípios marcos vinculantes, verdadeiros referenciais,
daquilo que se pretende com a intervenção penal na sociedade. Condicionantes
de preceitos de validade e legitimação do próprio Estado Democrático de
Direito.
Evidentemente que expomos um posicionamento garantista, onde
a doutrina acaba por realizar uma seleção técnica das bases fundamentais do
sistema jurídico adotado pelo Estado Democrático de Direito, para nortear a
proteção penal de bens jurídicos.
Para melhor identificarmos esta análise construtiva, poderíamos,
então, destacar alguns dos princípios orientadores do Estado Democrático de
123
ROXIM, Claus. Problemas..., p.27 e 28.
124
PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal..., p. 64 e 65.
62
Direito, fundamentadores da tutela penal, como, por exemplo, a dignidade da
pessoa humana
125
; a inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da
segurança e da propriedade
126
; a responsabilidade penal pessoal
127
, a
individualização da pena
128
, a humanização das penas
129
, a legalidade
130
, a
reserva legal
131
.
Junto dos princípios de Direito Penal estão, também, os princípios
de Direito Processual Penal, que podem acabar violados caso a tutela penal
legislativa absorva elementos descompensadores dos valores fundamentais. Da
mesma forma, poderíamos destacar o devido processo legal
132
, a presunção de
inocência
133
, o contraditório e a ampla defesa
134
, a licitude das provas
135
.
Estes princípios não devem ser considerados como meros
instrumentos técnicos de solução de problemas penais, mas na verdade como
verdadeiros limites, margens, para a legislação penal e para a atuação judicial.
Isto exige uma relação harmônica, pois participantes de cada etapa do ius
puniendi, acabam por cooperar na delimitação das esferas de atuação do poder
estatal sobre a liberdade individual.
Daí porque devemos estipular como máxima que, na realização de
um sistema penal, é indispensável o reconhecimento da interdependência do
Direito Penal, do Direito Processual Penal e do Direito Constitucional.
125
Artigo 1
o
, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil.
126
Artigo 5°, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil.
127
Artigo 5°, inciso XLV, da Constituição da República Federativa do Brasil.
128
Artigo 5°, inciso XLVI, da Constituição da República Federativa do Brasil.
129
Artigo 5°, inciso XLVII, da Constituição da República Federativa do Brasil.
130
Artigo 5°, inciso II, da Constituição da República Federativa do Brasil.
131
Artigo 5°, inciso XXXIX, da Constituição da República Federativa do Brasil.
132
Artigo 5°, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil.
133
Artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil.
134
Artigo 5°, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil.
135
Artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil.
63
Importante salientar que, em se tratando dos princípios
orientadores da tutela penal, nem todos estão expressamente descritos na
Constituição Federal.
Quando destacamos, por exemplo, o princípio da culpabilidade
136
,
que pode ser tido como presente no sistema jurídico com uma clara base
constitucional implícita
137
, através do fundamento da pena e do próprio ius
puniendi, ou como limite de intervenção penal
138
.
A constatação de que estes princípios orientadores acabam
permeados entre previsões explícitas e implícitas, possibilita considerar que, de
forma mais ampla, quando a Carta Constitucional, estabelecida com base em
valores eleitos pelo Estado Democrático de Direito
139
, traz valores culturais,
sociais, políticos, jurídicos, administrativos, estabelecidos através de princípios
norteadores de garantias e condutas, forma o núcleo fundamentador da
Constituição, que também alimentam todo o sistema jurídico dela decorrente.
Assim, poderíamos acolher o posicionamento de Robert Alexy
140
,
segundo o qual os princípios devem ser considerados como normas que
determinam a realização de um projeto maior, envolvendo possibilidades
jurídicas e fáticas, como verdadeiros “mandados de otimização”, caracterizados
por serem cumpridos em diversos graus, segundo uma ponderação, que deve
incluí-los como orientadores e fundamentadores de decisões.
136
nullum crimen sine culpa
137
PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal..., p. 67.
138
Artigo 1°, inciso III; artigo 4°, inciso II; artigo 5°, caput e inciso XLVI, da Constituição da República
Federativa do Brasil.
139
Artigo 1°, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil.
140
ALEXY, Robert. Problemas de la teoria del discurso. Atas do “Congreso Internacional de Filosofia”,
Córdoba: Universidade de Córdoba, 1988, pp. 59/70.
64
Afastam-se aqui percepções de que a Constituição deveria ser
analisada sob a ótica de um rol exaustivo, expressamente determinado, de bens
jurídicos protegidos.
O que na verdade se pode observar é uma orientação motivadora
de valores fundamentais, previstos direta ou indiretamente na Constituição
Federal, decorrentes de todo um sistema jurídico e político eleito, o Estado
Democrático de Direito, e que possibilita a eleição, segundo suas diretrizes, de
bens jurídicos que exigem ou não proteção penal.
A dedução sistemática teleológica que se percebe necessária à
avaliação destes bens, segundo princípios constitucionais orientadores, envolve
tanto a preservação de elementos explícitos (direito à vida), implícitos (princípio
da culpabilidade) como também bens que suportem ou sustem a preservação e
manutenção de outros bens, ainda que não relacionados como preceitos ou
princípios fundamentais, como é o caso da moralidade e da fé pública, protegidas
segundo normas de conduta escorreita de funcionários públicos e de suas
instituições.
Como Santiago Mir Puig destaca, o Direito Penal de um Estado
Democrático de Direito deve ter por função assegurar a proteção efetiva de todos
aqueles que integram a sociedade, buscando prevenir a ocorrência de
comportamentos danosos para os bens jurídicos, segundo um chamado
constitucional para impor limites e garantias ao cidadão, satisfazendo a
consciência jurídica geral, através de uma re-afirmação de valores sociais
141
.
Buscar, desta forma, um conceito político-criminal de bem
jurídico que possa diferenciá-lo de valores meramente morais, situando-o no
141
MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal..., p. 37 e 38.
65
campo dos valores sociais, que constituem condições para funcionamento e
eficácia do sistema jurídico, traduzindo-se em uma concreta possibilidade de
tutela dos interesses individuais, é um ideal alinhado com um sistema jurídico
social e democrático
142
.
2.2. Bem jurídico penal e direção restritiva constitucional
Para que o bem jurídico, em um sentido amplo de consideração,
possa ser considerado um bem jurídico penal, em um sentido político-criminal,
as condições de importância social e de necessidade de proteção do Direito
Penal, em medidas proporcionalmente equivalentes.
Para imprimir em um determinado bem jurídico a proteção penal,
as violações a este bem devem ser suficientemente relevantes para a sociedade a
ponto de justificar esta intervenção extrema.
Assim, proibições e direitos fundamentais para a vida social, para
serem passíveis de consideração jurídica penal devem emergir de parâmetros
gerais de natureza constitucional, com capacidade para impor limitações à
criação da norma repressora penal
143
.
A função restritiva que deve ser desempenhada pelo bem jurídico
penal, diante do conteúdo liberal de seu conceito, exige do legislador ordinário a
observância de diretrizes e valores consagrados na Constituição Federal, quando
da criação de um tipo penal.
De outro lado, o Direito Penal exige um caráter subsidiário,
somente merecendo tutela penal lesões ou ameaças de lesões a bens jurídicos,
142
MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal..., p. 161.
143
PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal.., p. 90.
66
quando indispensáveis à vida social, visto que somente deve ser acionado
quando os meios alternativos de solução de conflitos sociais, como o direito
civil, não forem suficientes, sendo a reação mais forte da sociedade, somente
pode ser acionada em último lugar – ultima ratio
144
.
Não basta que um bem esteja dotado de suficiente importância
social para que a tutela penal seja necessária. Segundo um princípio de
fragmentariedade, é preciso, primeiramente, que outros meios de defesa social,
menos lesivos, como a intervenção administrativa ou o direito civil, não tenham
alcançado êxito na solução do problema, para só então reconhecer-se a
necessidade da intervenção jurídica penal, para a proteção do bem jurídico
145
.
As teorias constitucionais a respeito do bem jurídico, de uma
forma mais adequada às concepções de Estado Democrático de Direito, não
obstante constituírem uma forma garantista de assegurar orientações mais
“seguras” na eleição de bens jurídicos, isto quer dizer, manterem sob uma ótica
formalista legal, decorrente de norma legislativa máxima de um Estado, os
principados orientadores da repressão penal, também possibilita que os limites ao
próprio Direito Penal, quanto à sua interferência nos conflitos sociais, estejam
alinhados aos interesses deste modelo de sistema jurídico.
Fundamentar este caráter ideológico de bem jurídico, a princípio
parece ser simples, visto que envolve os próprios elementos que compõe a Carta
Magna, quais sejam os valores sociais, eleitos no modelo de Estado, bem como
as garantias para que estes valores estejam assegurados.
A tutela penal, então, acaba por surgir após a revelação
constitucional destes valores, o que acaba por indicar muito mais a estruturação
de uma política criminal segundo um sistema jurídico fundado no modelo de
144
ROXIN, Claus. Problemas..., p. 28.
145
MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal..., p. 166.
67
Estado Democrático de Direito, do que uma forma de seleção de bens jurídicos
dignos de tutela penal
146
.
Apesar desta concepção garantista e “segura”, encontramos alguns
questionamentos quando observamos que estas teorias, segundo suas fontes,
podem reconhecer na Constituição um caráter limitador negativo ou positivo
147
.
Quando reconhecida a Constituição como forma negativa de
limitação ao Direito Penal, temos que desde que as condutas criminalizadas, ou
melhor, desde que o processo de eleição de delitos não afronte diretamente
normas ou elementos acolhidos pela Constituição, mesmo que os bens
protegidos, por estes novos tipos penais, não possuam relevância fundamental,
ou proteção constitucional, esta tipificação estaria adequada e seria aceita pelo
ordenamento jurídico penal.
De outro lado, um caráter limitador positivo constitucional, como
aquele selecionado na abordagem sobre os princípios fundamentais no título
anterior, exigiria que, para existir uma intervenção penal estatal, o
reconhecimento de condutas criminosas ficasse restrito a violações ou atentados
contra valores fundamentais, ou essenciais, refletidos na norma constitucional,
segundo critérios sociais de eleição
148
.
Esta mútua relação limitadora penal/constitucional positiva,
conduz ao reconhecimento de um Direito Penal Mínimo, dirigido a bens
jurídicos próprios de um modelo de Estado Social e Democrático de Direito, por
conseqüência voltado para o desenvolvimento digno das potencialidades e a
satisfação das necessidades do ser humano, para uma vida em sociedades
organizadas segundo elementos políticos, culturais, econômicos, de tempo e
146
HORMAZÁBAL MALAREÉ, Hernan. Bien Jurídico..., p. 140.
147
PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2.003, p. 55 e ss.
148
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões..., p. 65 e ss.
68
espaço, assegurando um máximo de autonomia e liberdade de vida na sociedade,
com um mínimo de intervenção do Estado
149
.
O que se deve ter em mente, todavia, é que esta limitação de
cunho constitucional democrático, não aventa bens jurídicos penais concebidos
dentro de um âmbito restrito de leitura formal constitucional.
A referência axiológica constitucional, responde ao Direito Penal
com um bem jurídico eleito segundo uma política criminal social de ultima ratio,
em um quadro de referenciais jurídico-contitucionais de valores, explicita ou
implicitamente consagrados pela Constituição de um Estado Social e
Democrático de Direito, em um exercício de proporcionalidade de bens
150
, em
uma verdadeira direção restritiva constitucional.
As críticas tecidas às teorias constitucionalistas, envolvendo a
imprecisão de conceitos de correntes das normas constitucionais, bem como a
conseqüente impossibilidade de eleger um conceito formal material de bem
jurídico-penal, visto que os valores constitucionais confundem bens jurídicos e
direitos fundamentais e, ainda, que a limitação constitucional levaria a uma
limitação da realidade social como fonte primeira de eleição de bens
151
, na
verdade, partem muito mais da defesa de um sistema positivista formal, do que
da realidade que enfrenta uma leitura moderna destas teorias.
As teorias constitucionalistas, na verdade, conduzem aos
conceitos sociológico-funcionalistas de bem jurídicos, em uma apreciação de sua
concepção social, como condições para a ordem e paz na sociedade, segundo os
elementos fundamentais para uma vida digna do ser humano
152
.
149
PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal..., p. 107 e 108.
150
AGUADO CORREA, Teresa. El principio de proporcionalidade en derecho penal. Madrid: Editorial Edersa,
1999, p. 178 e ss.
151
Ibid., p. 183 e ss.
152
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 267.
69
Seguindo a proporcionalidade, como princípio onde a intervenção
do Direito Penal não deve ocorrer em áreas onde as condições fundamentais de
vida do ser humano não estiverem em perigo ou não forem violadas, bem como a
fragmentariedade, com o Direito Penal limitado ou restrito à proteção de bens
jurídicos, e a necessidade e a utilidade do Direito Penal, como intervenção
mínima, o que se busca é um conceito aberto, evolutivo e adequado a realidades
sociais de tempo e espaço.
Determinados bens jurídicos, decorrentes de princípios
fundamentais, como, por exemplo, o direito à vida não podem ser simplesmente
objeto do relativismo, mas sua proteção, como sabemos, enfrenta algumas
restrições: possibilidade de matar quando em legítima defesa ou em estado de
necessidade; aborto na hipótese de perigo para a vida da gestante; etc.
Assim, a evolução das necessidades sociais, bem como a
regionalização destas necessidades, exigem que um sistema flexível de
contextos, seguindo uma orientação de valores fundamentais, segundo uma
ordem constitucional, integrada a um sistema democrático e social de direito,
promova a eleição de bens jurídicos protegidos penalmente, através de
parâmetros e orientações constitucionais, e não de acordo com uma fixação
rígida de conceitos derivados de uma interpretação unilateral de previsões legais,
ainda que estas sejam constitucionais.
Além disto, a danosidade social
153
, como teoria de concepção de
bens jurídicos, também não pode ser abandonada, mas considerada inserta no
critério de correções de condutas, segundo a potencialidade lesiva ou ofensiva e
a seleção de delitos de dano e de perigo, concreto e abstrato
154
.
153
HASSEMER, Winfried. Fundamentos..., p. 38.
154
A questão dos delitos de perigo, intimamente ligada com a própria sistemática dos bens supra-individuais, é
objeto de assertiva em capítulo posterior. Ainda sobre os bens jurídico-penais e os crimes de perigo: SILVA,
70
Temos então que, como resposta adequada à problemática dos
bens jurídicos, uma intervenção do direito penal para tutela destes bens deve ser
considerada como ultima ratio. O posicionamento moderno de intervenção
mínima, tendo como fonte de legitimação material da reação punitiva estatal a
eleição de valores apreciados como fundamentais para o desenvolvimento de
uma vida pacífica na sociedade tem de ser reconhecido como mais adequado.
Uma visão participativa decorrente de um processo político de um Estado Social
e Democrático de Direito que, através dos direitos e garantias fundamentais,
previstos na Constituição Federal, produziu princípios orientadores das práticas
de reconhecimento e proteção da dignidade e da liberdade do ser humano, surge
como elemento orientador e legitimador da teoria do bem jurídico-penal
155
.
3. Bens jurídicos universais e tutela penal
O desencadeamento do processo de crise dos princípios
fundamentadores do Direito Penal, segundo sua formação clássica de proteção de
interesses individuais, foi iniciado, principalmente, pela proliferação no
reconhecimento dos denominados bens jurídicos difusos e coletivos.
A organização do homem em sociedade consolidou a existência de
certos interesses que não pertenciam a indivíduos determinados, mas a toda a
coletividade, de uma forma geral. Todavia foi a sociedade moderna quem os
evidenciou, em razão dos grandes conglomerados urbanos.
Ângelo Roberto Ilha da. Dos Crimes de Perigo Abstrato em Face da Constituição. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2003.
155
FERNANDEZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito. Teorías Actuales em el Derecho Pena – 75º
Aniversario del Código Penal. Buenos Ayres: Ad-Hoc S.R.L., 1998, p. 417 e 418.
71
Os efeitos da explosão demográfica, as relações econômicas trans-
nacionais, a produção e o consumo de massas, os meios de comunicação, dentre
outras atividades que escaparam do controle individual do ser humano, atingiram
sua qualidade de vida e precipitaram a necessidade de proteção jurídica
diferenciada.
Esta nova concepção jurídica iniciou também uma questão
terminológica a respeito. Primeiramente, uma definição de bens difusos e bens
coletivos que, inicialmente não possibilitava divergências quanto a serem
sinônimos, acabou por encerrar-se na problemática da definição dos interesses
difusos e coletivos, segundo a doutrina civil, como um todo.
A diferenciação que, alguns autores assumem
156
, envolve o
reconhecimento dos interesses difusos aqueles que envolvem um número
indeterminado de pessoas em razão de um mesmo fato em comum, enquanto que
os interesses coletivos seriam aqueles que se referem aos grupos ou categorias de
pessoas determinadas individualizadas segundo determinada categorização ou
projeção corporativa, conquanto possuam diferenças como, por exemplo, de
ordem quantitativa e qualitativa, todavia permanecendo como espécies do gênero
“meta-individual, supra-individual, universal”
157
.
Os interesses públicos, ou do Estado, também compõe este mesmo
grupo, relativamente à ordem pública, à segurança, à saúde pública, ainda que
dentro da perspectiva clássica do conflito de interesses entre o Estado e os
cidadãos
158
.
156
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos – Conceito e legitimação para agir. 5ª edição, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.000, p. 74 e ss.
157
Ibid., p. 77.
158
GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos interesses difusos. A tutela dos interesses difusos. São
Paulo: Editora Max Limonad Ltda., 1984, p. 30.
72
Neste sentido, ainda que tão somente a título organizacional,
poderíamos identificar, primeiramente, a questão do interesse jurídico como um
fator de relevância de ordem material ou instrumental, subjetivada ou não
subjetivada, conferida pelo direito positivo a determinadas situações respeitantes
ao indivíduo isolado, ao grupo ou à coletividade maior
159
.
Dentro deste contexto teríamos o interesse jurídico em sentido
substancial, correspondente a um núcleo de um direito subjetivo, como interesse
juridicamente protegido.
Alguns interesses jurídicos substanciais escapam a essa esfera de
subjetivação, cuja proteção não se atribui ao indivíduo, mas é conseqüência da
aplicação da própria ordem jurídica, do próprio direito objetivo.
Neste caso, teríamos os interesses jurídicos substanciais não
subjetivados; que não se individualizam que não se situam numa determinada
pessoa que, apenas reflexamente protegidos, acabam por representar
denominados interesses difusos
160
.
Alguns destes são denominados de interesses difusos; passíveis de
serem atraídos por atos da administração pública, embora pertinentes a uma
cadeia indeterminada de indivíduos (o que lhes confere a conotação de
metaindividualidade), simultaneamente mantém características de interesse
individual.
De outro lado temos interesses que acabam sendo identificados
como coletivos, pois incidem sobre o homem socialmente engajado, não
159
PRADE, Péricles. Conceito de Interesses Difusos. 2ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987,
p. 19 e ss.
160
Ibid., p. 20.
73
considerado como indivíduo isolado, mas, sim, como membro de comunidades
menores ou grupos que se perfilam entre o indivíduo e o Estado.
Esta modalidade de interesses acaba sendo perseguida através do
processo associativo, co-natural ao homem (família, corporação profissional,
empresa, sindicato).
Depreende-se a autonomia dos interesses coletivos do fato de
poderem estes entrar em conflito, seja com os interesses particulares dos co-
associados, seja com os interesses públicos próprios.
O interesse coletivo não envolve o homem-unidade, mas, tão-só,
como órgão integrante de associações ou corporações (uti socius); os interesses
coletivos também se submetem a regime jurídico próprio. Os interesses coletivos
são os pertinentes aos fins institucionais de determinada associação, corporação
ou grupo intermediário, decorrendo de um prévio vínculo jurídico que une os
associados, sujeitando-se a regime jurídico portador de características
peculiares
161
.
Para separarmos interesses difusos e coletivos, devemos
compreender que os interesses difusos representam interesses pertencentes de
forma idêntica a uma pluralidade de sujeitos, mais ou menos vasta, mais ou
menos determinada, não tendo qualquer a expressão de vínculo associativo,
pertencendo a uma série aberta de indivíduos, independentemente da existência
de qualquer associação ou agrupamento intermédio, podendo assim se distinguir
dos interesses coletivos.
161
PRADE, Péricles. Conceito..., p. 41.
74
Assim, enquanto que os interesses difusos abraçam uma série
indeterminada e aberta de indivíduos, sem se limitar a certos indivíduos, como
ocorre com os interesses coletivos.
Os titulares de interesses difusos se ligam apenas mediante
vínculos essencialmente fáticos, por mera identidade de situações, e, não, por
vínculos associativos e corporativos como nos interesses coletivos.
Temos que os interesses difusos são titularizados por uma cadeia
abstrata de pessoas, que estão ligadas por vínculos fáticos, surgidos de alguma
identidade de situação, possibilitando lesões disseminadas de forma pouco
circunscrita.
Já os interesses coletivos, sob a mira formal, são os pertinentes aos
fins institucionais de determinada associação, corporação ou grupo intermédio,
decorrendo necessariamente de um prévio vínculo jurídico que une os
associados, sujeitando-se a regime jurídico próprio.
Ficamos com características dos interesses difusos ligadas a uma
ausência de vínculo associativo, ao alcance de uma cadeia abstrata de pessoas, à
potencial e abrangente conflituosidade, à ocorrência de lesões disseminadas em
massa e à existência de vínculos fáticos ente os titulares dos interesses.
Mas, apesar destas definições, para identificar dentro desta órbita
os bens jurídico-penais, a opção por uma classificação segundo sua titularidade
acaba sendo exigida. Tal exigência surge da necessidade de posicionarmos o
direito penal segundo uma tutela individual e supra-individual.
Primeiramente teríamos a indicação de duas categorias ligadas aos
os denominados bens jurídico-penais individuais:
a. os bens jurídicos denominados personalíssimos, como a vida, a
integridade física, a liberdade, a honra; e
b. os bens pessoais, como o patrimônio.
75
De outro lado, entre os bens jurídico-penais supra-individuais ou
universais, teríamos:
a. os bens jurídicos institucionais, relativos às pessoas jurídicas
públicas ou estatais, evolvendo delitos contra a Administração Pública, a Fé-
Pública, a segurança do Estado, dentre outros;
b. os bens coletivos e difusos, afetando uma generalidade de
pessoas individuadas, unidas em razão de um elemento aglutinador factual,
como por exemplo a saúde pública, a segurança no trânsito, a segurança no
trabalho, o ambiente.
Diante deste quadro, necessário destacar que a legitimidade dos
bens jurídico-penais não acaba ligada apenas a uma divisão entre individuais e
supra-individuais, mas em especial a determinar se, dentro de um contexto de
proteção penal, os bens jurídicos devem ser concebidos como atribuições
jurídicas derivadas das funções do Estado, onde o indivíduo é um instrumento de
individualização de tais funções
162
, ou, muito pelo contrário, os bens jurídicos
devem ser constituídos segundo um panorama individual, sendo considerados
como legítimos apenas aqueles bens de caráter supra-individual segundo a
identificação de sua função para o ser individuado.
A questão que envolve o tema, diante da profusão de variações
doutrinárias e da própria evolução das teorias sobre o bem jurídico penal
163
, pode
ser mais bem definida com base em duas teorias alemãs, a do individualismo
monista de Winfried Hassemer
164
e a Escola de Frankfurt, bem como, aquela
162
JAKOBS, Günther. Fundamentos..., p. 179 e ss.
163
Em linhas gerais, de forma sintetizada, as teorias sobre os bens jurídico-penais, suas constituição e evolução,
forma objeto de estudo no capítulo 1. Conceituação e constituição do Bem Jurídico e do Bem Jurídico-Penal, do
título III - Bens Jurídicos e Direito Penal.
164
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia y al derecho penal.
Valencia: Tirant lo Blanch, 1989.
76
difundida por Günther Jakobs, denominada de teoria do funcionalismo de
sistemas
165
.
No campo do Direito Penal, sobre o tema, apesar de um
posicionamento crítico severo, uma abordagem interessante dos principais
aspectos e do virtual distanciamento entre ambas as teorias foi apresentada por
Bernd Schünemann
166
.
Segundo o citado Jurista Alemão, a Teoria Monista de Frankfurt
destaca um bem jurídico puramente pessoal, decorrente de uma concepção
moderna de Direito Penal, que cria novos tipos penais, destinados à proteção de
bens jurídicos universais ou supra-individuais, definidos de modo vago. Para
afastar a incerteza desta nova orientação criadora, devemos reconhecer o bem
jurídico apenas como um interesse humano necessitado de proteção jurídica
penal. Assim, a proteção jurídica de bens universais ou supra-individuais seria
levada a cabo, tão somente como interesse mediato do individuo afetado,
devendo ser delimitados segundo a proteção individuada de bens jurídicos
167
.
Para o individualismo monista o destaque para o Direito Penal
deve ser a proteção de indivíduos concretos e suas necessidades.
Teríamos, então, uma reorganização da teoria e do ordenamento,
quanto aos bens jurídico-penais, voltada para o indivíduo, como o principal
objeto e o valor máximo de proteção. Mais, ainda, os delitos de perigo abstrato
responderiam como melhor instrumento de proteção de bens jurídicos
universais
168
.
165
JAKOBS, Günther. Fundamentos..., 1996.
166
SCHÜNMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciência jurídico-penal
alemana. Tradução de Manuel Cancio Meliá, Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofia del
Derecho. Colômbia: Universidade Externado de Colombia, 1996.
167
Ibid., p. 18.
168
Ibid., p. 19.
77
Bernd Schünmann critica este posicionamento monista de caráter
individualista, entendendo que a concepção de bem jurídico não deve estar
centrada no objetivo de possibilitar e proteger a vida do indivíduo, em um
momento presente. Na verdade o objetivo concreto de proteção deve estar
voltado para a sobrevivência da espécie humana, representado assim como valor
supremo na constituição de bens universais
169
.
Surge, em um segundo plano, a proteção de um meio ambiente
adequado à vida humana, como sustentação do bem jurídico de preservação da
espécie que, em uma sociedade moderna, pós-revolução industrial, onde a
escassez de recursos remonta a uma redefinição da hierarquia de bens jurídicos
dignos de proteção, impõe que os bens individuais deixem de ocupar um plano
mais elevado de consideração, em consideração a esta modalidade universal de
bens jurídicos.
Quanto à Escola de Frankfurt, podemos destacar que, em relação à
abordagem sobre os bens jurídicos universais, quando tratam de meio ambiente,
existe uma tendência a remeter para o âmbito das infrações administrativas, os
delitos configurados pelas legislações penais.
Em um aspecto, tal consideração parece, a princípio, equivocada,
todavia quando nos deparamos com uma realidade legal envolvendo inúmeros
delitos de bagatela, senão meras violações administrativas
170
, seguindo uma
orientação acessória administrativa, levando esta modalidade de Direito Penal a
uma violação de princípios de igualdade e proporcionalidade, quando acaba por
encampar todas as condutas dentro de um mesmo panorama de relevância
169
SCHÜNMANN, Bernd. Consideraciones..., p. 21.
170
Luiz Régis Prado observa de forma eficaz que a lei brasileira (Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente – Lei
n° 9.605, de 12 de fevereiro de 1.998) acaba elevando à categoria de crime uma significativa quantidade de
comportamentos que, quando muito poderiam representar contravenções ou simplesmente violações
administrativas. PRADO, Luiz Régis. Crimes contra o ambiente, 2ª edição, São Paulo: editora Revista dos
Tribunais, 2.001, p. 32.
78
constitucional de bens jurídicos. O problema esta em limitar a tela penal
ambiental e não, como a Escola de Frankfurt acabou por defender, em adotar um
abandono em larga escala da resposta penal
171
.
Um segundo momento que merece destaque na Teoria Monista da
Escola de Frankfurt, refere-se à substituição dos riscos individuais pelos riscos
coletivos.
Em uma crítica aos delitos de perigo, parte para a teoria da
sociedade de riscos, onde dois elementos são considerados, um primeiro quanto à
diminuição dos riscos vitais do indivíduo na atualidade, em relação ao início da
sociedade moderna e, em segundo, quanto ao incremento das relações sociais,
decorrentes de uma sociedade industrializada, onde relações de consumo de
alimentos, medicamentos, bens e serviços, por exemplo, acabam por exigir um
panorama de proteção massificado, universalizado, superando as necessidades
individuais, onde apenas riscos intoleráveis são passíveis de repressão.
Apenas acaba por pecar quando postula um retorno do Direito
Penal a uma orientação de delitos de resultado, como solução mais adequada,
afastando-se do Direito Penal Moderno
172
.
Quanto à teoria monista-normativista de Günther Jakobs, o Direito
Penal Moderno como meio de evitar danos sociais, explicitando uma visão
funcionalista, é objeto de orientação tanto de Günther Jakobs, como da Escola de
Frankfurt.
171
SCHÜNMANN, Bernd. Consideraciones..., p. 25 e 26. Apesar desta consideração, merece certa ponderação a
crítica tecida por Schünmann, visto que o Direito Penal como ciência social, integrado ao denominado Direito de
Intervenção da Escola de Frankfurt, remete a considerações outras, segundo um enfoque de sistema aberto e
adequado, não apenas de caráter penal, mas de caráter jurídico-social, que será objeto de ponderações mais
ousadas no capítulo final deste estudo. Assim, por hora, tais afirmações podem ser conservadas dentro do
contexto eleito pelo tema em desenvolvimento.
172
Ibid., p. 33.
79
Assim, o distanciamento entre ambas as teorias sobre o bem
jurídico-penal, passa muito mais por figura de retórica do que, propriamente, por
uma contraposição lógica
173
.
Todavia neste método puramente normativista, são afastadas as
delimitações descritivas de conceitos dogmáticos, devendo estes ser
interpretados segundo uma funcionalidade para o sistema, este como Direito
Positivo, estabelecendo um circulo vicioso onde um conceito de culpabilidade
deve ser erigido à condição de resultado da imputação jurídica penal,
explicando-se uma pela outra
174
.
Daí a oposição que se observa em relação à Escola de Frankfurt,
para quem a proteção aos indivíduos em concreto decorre da adoção de conceitos
comuns, relacionados diretamente com a realidade social, em um significado
natural das palavras, opondo considerável resistência a uma interpretação
orientada segundo a finalidade da norma, afastando uma fácil integração destas
com o sistema.
Apesar da teoria de Günther Jakobs já ter sido objeto de
consideração
175
, cabe destacar, também em termos muito superficiais, que sua
orientação dirige-se a conceitos puramente normativos de delitos, afastando-se
de bens que pudessem ser relacionados sistematicamente segundo um referencial
natural, conduzindo a um Direito de decisões, onde não há qualquer dificuldade
em não relacionar o indivíduo como um ser social, incluindo-o como sujeito de
normas de imputação, quando autor de algum delito.
173
SCHÜNMANN, Bernd. Consideraciones...,, p. 42.
174
Ibid., p. 46. O princípio da culpabilidade, segundo o posicionamento teórico de Günther Jakobs, encontra
abordagem esclarecedora, neste sentido, dentre outras, em sua obra Fundamentos del Derecho Penal. Tradução
de Manuel Cancio Meliá e Enrique Peñaranda Ramos (Universidad Autónoma de Madrid), Buenos Aires: Ad-
Hoc S.R.L., 1996, p. 13 e ss.
175
Ainda que de forma superficial, a Teoria sobre bens jurídico-penais de Günther Jakobs, foi objeto de estudo no
início deste título.
80
Clara configuração desta orientação doutrinária está na definição
de que uma vida social não pode ser orientada através da integridade de bens
jurídicos. Deve-se buscar um sentido de autor de delitos que enfrenta limites em
seu status de cidadão, para antecipar a punibilidade, em reconhecimento de um
âmbito interno privado e não social, onde um conceito naturalista de sujeito
resulta insatisfatório, pois o que importa para a delimitação de um delinqüente
são os referenciais normativos
176
.
A teoria de Jakobs busca um bem jurídico-penal orientado para
garantir a própria identidade da norma, a própria Constituição e, assim, a
sociedade, em uma relativização da figura do indivíduo, que deverá ser medido
segundo a sociedade, orientada por normas derivadas do social, que levam o ser
humano a ser identificado segundo seu lugar na sociedade e não de forma
individual; da mesma forma o bem jurídico, que tem importância na mesma
medida em que importa para aquela sociedade
177
.
Com esta visão funcionalista, uma indesejável condução à
anulação da eficácia limitadora do bem jurídico, pode ser reconhecida, visto que
determinados valores unicamente morais, posicionamentos políticos e
econômicos podem acabar por ser entendidos como funcionais para uma
determinada sociedade. Acabaríamos por ter, praticamente, uma concepção de
que o bem jurídico é estabelecido segundo o interesse do sistema vigente,
praticamente reforçando relações normativas interdependentes em detrimento do
ser individuado.
Apesar destas discussões, em se tratando de uma adequada
concepção de bens jurídicos universais ou supra-individuais e sua proteção
penal, uma fundamentação do Direito Penal reconhecido com a função de tutelar
176
JAKOBS, Günther. Fundamentos..., p. 219 e ss.
81
o ser humano, é de caráter inafastável, se desejarmos tratar de um Direito
segundo a Constituição.
O âmbito de atuação do Direito Penal deve ser reconhecido
segundo um princípio de subsidiariedade que reconhece o ser humano como
centro dos interesses do ordenamento. O indivíduo como um ser social.
Desta forma, os pensamentos funcionais sistêmicos que buscam
referendar no ser humano a eficácia do sistema, esquecem que a real função das
instituições e do próprio sistema é atender às necessidades sociais e, assim, por
conseqüência, as necessidades individuais de cada componente esta mesma
sociedade.
Deve o Direito Penal assegurar os elementos pessoais, pois sua
função não é, em última instância, assegurar a segurança geral ou a diminuição
social do dano, mas a imputação de um fato a uma pessoa, com a
individualização social do dano. Assim, uma funcionalização de interesses
generalizados e do próprio Estado devem ser dirigidos ao indivíduo, reconhecido
de forma singular ou coletiva.
O reconhecimento do individuo coletivamente conduz a uma
consideração de bens jurídicos universais, somente quando estes correspondem
aos interesses conciliados dos indivíduos, assegurando as necessidades vitais do
ser humano
178
.
O campo de tensão entre o indivíduo e o Estado exige que, na
tutela de bens jurídicos, a proteção de instituições ou interesses difusos e
coletivos só seja considerada até o limite em que é necessária à concretização da
proteção dos seres humanos (preservação da espécie humana).
177
JAKOBS. Günther. Sociedad, norma y persona em uma teoria de um Derehco penal funcional. Tradução de
Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijó Sánchez, Madrid: Civitas, 1996, p. 15 e ss.
178
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., pp. 269/271.
82
Trata-se de uma ligação complementar, ainda que a prioridade
seja dada aos bens jurídicos individuais
179
.
Assim, seguindo esta orientação, a diferença entre os bens
jurídicos individuais e os bens jurídicos universais apenas compõe uma forma
alternativa de visualização, pois ambas as modalidades de bens estão a cargo da
proteção jurídica do Estado, traduzindo interesses dos cidadãos ou da sociedade,
esta como legítima procuradora dos direitos individuais, conduzindo a um
conceito unitário de bem jurídico individual e social.
Trata-se de uma tendência de conduzir o Direito Penal a uma
socialização de valores que, necessariamente, também o conduz a um enfoque
mais pessoal de seus posicionamentos.
Uma difícil identificação individuada dos bens universais,
também, pode inviabilizar sua concretiza como bens jurídicos penais, pois
deixariam de ter o pressuposto de personalidade para tanto
180
.
Existe uma natural condução à potencialização do indivíduo
perante a sociedade, que encontra uma valorização de seus direitos pessoais, bem
como de seus direitos perante os grupos sociais aos quais ele se integra ou
mesmo em relação à própria estrutura social a que pertence
181
.
Como se pode observar, neste contexto teórico, temos a evolução
da concretização da proteção dos bens jurídicos individuais, através de uma
expansão do âmbito de proteção do indivíduo, de forma progressiva, elevando o
diâmetro de proteção até obter uma sobre posição de direitos individuais de
mesma espécie e natureza, compondo assim um grupo homogêneo, que acaba
sendo protegido “universalmente” da mesma forma, através da tutela de um bem
179
PÉREZ ALVAREZ, Fernando. Protección penal del consumidor. Salud pública y alimentación. Barcelona:
Práxis, 1991, p. 51.
180
MIR PUIG, Santiago. Derecho penal, Parte General. Barcelona: PPU, 1996, p. 92.
181
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción..., p. 103 e ss.
83
jurídico que passa a ser supra-individual ou universal, sem perder de vista o
referencial do ser humano individuado como fonte e núcleo de fundamentação da
proteção jurídica penal destinada.
Não se trata de um “antropocentrismo”, mas de uma visão realista
onde a valoração de bens é realizada segundo um critério objeto de importância e
perigo para o bem estar do ser humano, o qual, não preenchido, afasta da tutela
penal determinados bens jurídicos, ainda que dentro de panoramas universais de
visualização.
A construção deste raciocínio, ainda que simplista, não é de ser
descartada como, por exemplo, a permissão de construção de hidroelétricas, que
acabam por afetar o meio ambiente, mas que, seguindo um programa de gestão e
impacto ambiental, aprovado pelos órgãos oficiais, pode ser realizada.
Entretanto, apesar de tal liberação ter em vista uma construção segundo
parâmetros de impacto ao meio ambiente, “aceitáveis” para a espécie humana, de
uma determinada sociedade, de tempo e espaço, esta não deixará de causar
danos, destruição de fauna, flora, ambientes sustentáveis de vida, criações
naturais, dentre outros.
O contato direto com o meio social e, por assim dizer, o conteúdo
social do bem jurídico só se vê sustentável como forma de proteção penal,
quando enquadrado segundo critério de conveniência e oportunidade, que podem
avaliar o anseio social de afastar determinadas condutas que colocam ou podem
colocar em risco a convivência social
182
.
Podemos, assim, considerar que uma independência total da
consideração e valoração dos bens jurídicos universais, sem o referencial
individual, seria perigoso, pois poderia conduzir todo o sistema a uma proteção
182
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Culpabilidade..., p. 55 e 56.
84
jurídica penal massificada, sem parâmetros de relação causa-feito ou mesmo,
ainda, de potencialidade lesiva.
A tutela penal dos bens jurídicos universais, desta forma, deve ser
orientada por uma relação de complementação à tutela penal dos bens jurídicos
individuais, onde a igualdade, a liberdade, a dignidade da pessoa humana, são
elementos de preservação para um funcionamento ideal do sistema jurídico-
político-social.
3.1 . Ação delitiva e titularidade de bens universais frente aos
interesses penalmente protegidos
A problemática envolvendo a uma nova dimensão sobre a
titularidade de bens, quando falamos de bens universais ou supra-individuais,
resultado da origem individualista do conceito de bem jurídico, acabou por
conduzir, também, à questão das diferenciações impostas a bens jurídicos
coletivos e a bens jurídicos difusos
183
.
Apesar das considerações a respeito da ausência de organização e
de identificação de pessoas dos bens difusos, o que não ocorreria com os
coletivos, não se pode acolher qualquer posicionamento sobre eventual
subsidiariedade da titularidade de bens difusos em relação aos coletivos por este
motivo.
183
Como já anteriormente assinalado, a subdivisão que a doutrina estabeleceu quando da conceituação dos bens
universais ou meta-individuais, envolvendo os denominados interesses difusos e os interesses coletivos, passam
por searas envolvendo um menor ou maior grau de organização e estabilidade dos interesses, onde os bens
coletivos possuiriam esta sistemática organizada, enquanto que os difusos careceriam desta base de organização,
decorrente da própria indeterminação de seus titulares, em uma massa de pessoas imprecisa e extensa.
85
Tal fator se tem como correto, pois o que é essencial para
caracterizar tanto os bens jurídico-penais difusos como os coletivos é a
identidade ou semelhança de situações em que se encontram os indivíduos que
os compartilham, bem como as análogas aspirações de proteção contra ataques
dirigidos a estes bens jurídicos identificados
184
.
Tanto em uma categoria como em outra, os sujeitos podem ser
substituídos uns pelos outros, sem que sejam afetados os bens jurídicos quanto à
sua existência, porque o que seleciona os titulares destes bens é a situação em
que o indivíduo se encontra.
Assim, só encontramos diferenças formais ou conjunturais entre
bens jurídico-penais difusos e coletivos, visto que ambos estão relacionados
como classes pertencentes aos bens universais ou supra-individuais, não
existindo qualquer diferenciação com relação a critérios de titularidade
185
.
Quanto a critérios de divisibilidade
186
, tal critério tem muito mais
relação com questões quanto ao objeto material dos bens jurídicos do que
propriamente quanto ao objeto jurídico, o que inviabiliza esta contextualização.
Diversas outras classificações, quanto à disposição e disciplina
diferenciada entre bens jurídicos difusos e bens jurídicos coletivos, poderiam ser
suscitadas
187
, todavia, quanto à questão da titularidade, merece menção a
referência de Klaus Tiedemann identificando os denominados “bienes jurídicos
supraindividuales intermedios”, que envolvem interesses que não poderiam ser
184
GONZALES RUS, Juan José. Los interesses econômicos de los consumidores. Madrid: Instituto Nacional del
Consumo, Ministério de Sanidad y Consumo, 1986, p. 83.
185
Ibid., p. 84 e 85.
186
Caso tenhamos bens divisíveis são coletivos e indivisíveis são difusos.
187
Vide: CRESTI, Marco. Contributo allo studio della tutela degli interessi diffusi. Milano: Dott. A. Giuffrè
Editore, 1992; GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos interesses difusos. A tutela dos interesses
difusos. São Paulo: Editora Max Limonad Ltda., 1984, p. 30; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses
Difusos – Conceito e legitimação para agir. 5ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.000; PÉREZ
ALVAREZ, Fernando. Protección penal del consumidor. Salud pública y alimentación. Barcelona: Práxis, 1991;
entre outros.
86
incluídos na categoria de interesses jurídicos associados ao Estado, nem tão
pouco como interesses referentes a um sujeito individual, considerado
economicamente, que intervêm nas relações econômicas. Seriam bens como, por
exemplo, o correto processamento de dados eletrônicos, a certificação eletrônica,
o bom andamento das finanças estatais
188
.
Alguns posicionamentos sobre uma aceitação do pensamento de
Klaus Tiedemann, seguem a orientação de que de lesões a esta modalidade de
bens, na realidade, estariam sob a ótica do perigo abstrato a um correlato bem
jurídico-penal individual, do qual os bens supraindividuales intermédios seriam
verdadeiras abstrações conceituais
189
.
Esta construção conceitual deve ser corretamente afastada por um
posicionamento centrado na consideração pessoal ou personalista dos bens
jurídicos universais.
Considerar a existência dos denominados de supra-individuais
intermediários como objeto de proteção jurídica, não é suficiente a justificar uma
resposta penal para qualquer ameaça quanto aos mesmos. Quando muito seria
adequada proteção extra-penal ou administrativa
190
ou, ainda, uma valorização
da técnica de tutela de bens jurídicos individuais, considerando o patrimônio ou a
livre disposição frente a condutas fraudulentas, como melhor solução
191
.
De outro lado, sob a ótica de que o núcleo de partida para a
configuração de uma proteção penal de bens jurídicos universais é o indivíduo
social, devemos entender que, no modelo atual de Estado Democrático de
188
TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho penal econômico (Comunitário, español, alemán). Barcelona:
PPU, 1993, p. 34 e 35.
189
MANTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho penal econômico – Parte general, Valencia: Tirant lo Blanch,
1998, p. 105.
190
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por el producto en derecho penal.
Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, p. 28 e ss.
191
SCHÜNEMANN, Bernd. “Ofrece la reforma del Derecho penal económico alemán um modelo o um
escarmiento?”, Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del milênio. Madrid: Editorial Tecnos,
2002, p. 185 e ss.
87
Direito, a consideração de que o conjunto social merece maior proteção jurídica
que os indivíduos é fruto de um pensamento do Estado Social autoritário
192
, que
deve ser entendido como inadequado.
Apesar de apresentar certo distanciamento da necessidade de
resultado, tendo em vista a importância dos interesses difusos ou coletivos, na
medida em que condicionem a vida dos indivíduos, fazendo com que o sistema
social esteja a serviço do cidadão e não o contrário, a exigência da comprovação
da danosidade que podem proporcionar determinadas condutas que os atinjam,
com o fim de proporcionar um critério de valoração destes bens quanto à
necessidade de sua conversão em um objeto do Direito Penal, ou não, existe
193
.
A exigência de uma determinada gravidade decorrente da
vulneração de um bem social, acompanhada da consciência de que nem todo o
interesse amplamente difundido socialmente, com relevância e consideração no
meio, será sujeito a uma proteção jurídica penal, quando não afetar de forma
significativa a cada indivíduo ou à maneira de vida social acolhida como
adequada.
Assim, medidas administrativas, por vezes, representam uma
solução mais adequada, do ponto de vista de determinada sociedade de tempo e
lugar, o que uma reprimenda penal.
A saúde pública acaba sendo objeto de proteção jurídica, mais que
adequada do Estado. Todavia os limites desta proteção acabam por atender a
certas variações que, não obstante o reconhecimento da existência de danosidade
social, os interesses desta mesma sociedade e os limites por ela reconhecidos
apontam diferentes medidas para situações que, de uma forma ou de outra,
atingem a saúde pública.
192
MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal..., p. 164.
193
Ibid., p. 165.
88
Graus de afetação e de implicação dos interesses juridicamente
protegidos
194
, então, acabam por ser estabelecidos, como no caso da limitação do
consumo de álcool e do tabaco, segundo tutelas administrativas e, de outro lado,
a proibição, inclusive penal, do consumo de entorpecentes
195
.
Entretanto, cabe considerar, também, que, por vezes, acaba
passando de forma inadvertida, nesta sistemática, a questão da desconsideração
da categoria de vítima destas modalidades delituosas.
As próprias limitações que, em um processo penal, são impostas à
vítima, surgem como forma de manter distante da legitimação qualquer tentativa
de imposição de uma vingança privada.
Nesta nova seara de discussão, envolvendo bens universais, a
figura da vítima nem mesmo fica limitada, ela praticamente é considerada côo
neutralizada do contexto, segundo uma visão “difusa” ou “meta-individual” da
identificação pessoal daqueles afetados pela lesão ou ameaça de lesão.
A tendência de considerar estes bens universais como produtos de
uma abstração, desvincula seu reconhecimento e sua identificação da figura da
vítima, que passa a representar tão somente o simbolismo, parte integrante desta
modalidade de proteção jurídica penal.
Esta tendência jurídica acaba conduzindo a uma nova modalidade
de Direito Penal, onde não se encontram mais os parâmetros de identificação no
binômio autor-vítima, mas em uma exclusão da vítima do contexto material de
Direito Penal, substituindo um direito de resultado por um direito de perigo, ou
seja, delitos de resultado por delitos de perigo, em uma a priorização dos bens
universais em relação aos bens jurídicos individuais. A Justiça Penal como
194
Segundo Péricles Prade, podemos definir, em uma forma unificadora que “interesse jurídico significa a
relevância de ordem material ou também instrumental, subjetivada ou não subjetivada, conferida pelo direito
positivo a determinadas situações respeitantes ao indivíduo isolado, ao grupo ou à coletividade maior”. In:
Conceito de Interesses Difusos. 2ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 18.
89
imposição de resposta severa a lesões dos interesses mais graves das pessoas,
acaba seguindo, cada vez mais, para uma conversão em instrumento de política
interna, afastando ainda mais o processo penal de qualquer influência
individual
196
.
Temos, enfim, que a tutela de bens jurídicos supra-individuais
acaba proporcionando dimensões mais participativas de pessoas interessadas, em
um processo penal conduzindo o formalismo judicial a uma orientação e um
controle destas mesmas pessoas
197
, todavia com o perigo de desconsiderar
direitos de vítimas individuais em favor de uma proteção de massas.
Assim, ações delitivas, decorrentes da proteção de bens jurídico-
penais universais, são caracterizadas, em sua maioria, por condutas sujeitas à
proteção jurídica antecipada. Levando a uma expansão das tutelas da ação e à
desconsideração dos conceitos de resultado.
Volta-se o Direito Penal para uma superação do resultado como
busca de juízo de valor, para encontrar na ação seu maior objetivo. Um Direito
em sentido expansivo, rumo à superação dos delitos dolosos que eram seu
núcleo, para encontrar nos delitos de imprudência ou de perigo uma visão
diferenciada do fator resultado, que somente acaba por ser considerado como
uma maior garantia de segurança jurídica, no momento de postular uma
persecução penal contra determinada pessoa, evitando-se estender os efeitos
desta persecução e a responsabilidade por este resultado a outras pessoas que,
mesmo violando a norma de cuidado, não produziram com suas ações qualquer
dano efetivo.
195
PRADE, Péricles. Conceito..., p. 166.
196
DÍEZ RIPOLLÉS, José Luiz. La contextualización del bien jurídico protegido en un Derecho Penal garantista.
Teorías Actuales em el Derecho Pena – 75º Aniversario del Código Penal. Buenos Ayres: Ad-Hoc S.R.L., 1998,
p.431 e ss.
197
JORI TOLOSA, José Luis. Problemática procesal de la proteción de los interesses difusos. Interesses difusos y
derecho penal. Madrid: Cuadernos de Derecho Judicial (XXXVI), 1995, p. 398; DE VITA, Alberto. La tutela
degli interessi difussi nel processo penale. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale (3), 1997, p. 838 e ss.
90
Nos delitos de perigo o elemento jurídico do resultado desaparece.
As condutas que envolvem o bem estar social é que estão em questão. A saúde
pública, a segurança, o meio ambiente, o tráfego de veículos, as relações de
consumo, acabam exigindo a análise de questões envolvendo a experiência e o
nível técnico das pessoas, segundo as condutas perigosas que se pretende punir,
sem que haja necessidade de produção de um resultado
198
.
3.2 . Expectativa social e bens jurídicos universais
Para a identificação de uma lesão ou ameaça de lesão a um bem
jurídico supra-individual não se faz imprescindível que realidade social, na qual
está inserido, simplesmente desapareça.
O bem jurídico com dimensões coletivas ou difusas deve estar
sujeito a diferenciações segundo elementos individuais que possam manifestar
concretamente sua realização.
A proteção jurídica e a própria inserção legal desta modalidade de
bens universais, ou seja, a legitimidade sobre a existência de proteção penal a
uma modalidade supra-individual de bens, seguindo a evolução sistemática
estabelecida neste estudo, é reflexo, evidentemente, dos preceitos desenvolvidos
no modelo de Estado de Direito Liberal, preocupado em preservar a ordem social
através de garantias formais de convivência em direção a um Estado Social que
198
MIR PUIG, Santiago. Derecho penal..., p. 281 e ss.
91
aspirava manter esta convivência pacificamente, através da garantia a todos os
cidadãos de pressupostos materiais mínimos de bem estar
199
.
Todavia, em regra as formulações legais de tutela de bens
jurídicos universais, são apoiadas em estruturas típicas de perigo, extremamente
genéricas e de fácil corrupção, decorrentes de uma condução legislativa
destinada a atender desejos sociais de momento, o clamor público, com
manifestações meramente simbólicas de Direito Penal, distantes da necessidade e
da produção de soluções efetivas
200
.
Um Direito Penal de fundo garantista, destinado a limitar a
aceitação desta modalidade de bens jurídico-penais apenas àqueles que possam
ser identificados segundo uma conotação individual, conduz a uma neutralização
de um fracassado conjunto de novas elaborações legislativas, destinadas muito
mais às necessidades da manutenção da sociedade democrática do que a atender
aos integrantes desta mesma comunidade.
As construções conceituais pouco precisas, que compõe os tipos
penais identificadores de bens universais, sob a alusão de uma sociedade de
risco, conduz muito mais a um Direito Penal expansivo, com imposição de penas
e repressão, em desrespeito aos princípios modernos da estrutura de persecução
penal e intervenção estatal, que se pretende manter e desenvolver.
A tarefa sempre presente de proporcionar uma colaboração e
integração das ciências sociais, em especial a sociologia e a política criminal,
conduz a uma formulação de bens jurídicos universais que sejam compatíveis
com uma adequada descrição empírica das realidades sociais, merecedoras de
199
DÍEZ RIPOLLÉS, José Luiz. La contextualización del bien jurídico protegido en un Derecho Penal
garantista..., p. 452.
200
HASSEMER, Winfried. Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Pena y Estado, Barcelona,
n° 1, 1991, pp. 23/36.
92
tutela penal, em uma verdadeira realização de uma das funções empíricas do
Direito Penal, segundo uma dogmática conceitual aceitável e de termos precisos.
Busca-se a elaboração de concretos conceitos de lesão material,
que possam indicar a danosidade social e individual que possa decorrer de uma
violação de determinado bem jurídico supra-individual, substituindo estruturas
típicas de perigo, muito generalizadas em relação a identificação de seu objeto,
com o fim de garantir uma eficácia no momento de aplicação da lei ao caso em
concreto.
De outro lado, a superação da natureza secundária, ou meramente
sancionatória imposta ao Direito Penal, não pode ser considerada como
adequada, pois a adoção de uma política envolvendo decisões de penalização
autônomas em relação aos demais setores jurídicos, sem importar-se se estas
condutas já são reprimidas alternativamente ou mesmo consideradas como
ilícitas em outra seara da legislação
201
.
Tal posicionamento resultaria em uma desconsideração dos
princípios de intervenção mínima e de ultima ratio, segundo uma orientação de
subsidiariedade, que exige a intervenção penal segundo funções valorativas
autônomas
202
.
Temos que o Direito Penal, em especial quanto à proteção de bens
jurídicos universais, segue um critério de valoração próprio e autônomo, até
porque seu caráter singular de tutela e repressão assim exigem, mas segundo uma
estrutura e uma motivação, abalizada por outros setores jurídicos da ordem
social.
201
A respeito das posições doutrinárias quanto à postura secundária do Direito Penal: CEREZO MIR, José. Curso
de Derecho Penal español. Parte General. 5ª edição, Madrid: Tecnos, 1996, v. I, p.p. 59 e 60.
202
DÍEZ RIPOLLÉS, José Luiz. La contextualización del bien jurídico protegido en un Derecho Penal
garantista..., p. 454 e 455.
93
Não se pode perder de vista, entretanto, que o interesse social
relevante para o indivíduo é que deve ser elevado à categoria de bem digno de
tutela jurídico-penal, segundo um juízo de valoração social que encontra na
gravidade das conseqüências das violações a estes bens jurídicos a justificativa
para uma resposta penal
203
.
Segundo a evolução do conteúdo dos direitos fundamentais, vista
sob a própria ótica evolutiva do Estado Liberal para o Estado Social e
Democrático de Direito, que proporcionou uma nova concepção para as garantias
individuais, com base na proteção de direitos sociais como o ambiente, a
economia, o patrimônio cultural, o Direito Penal foi conduzido a uma função
concretizadora da realidade social, visando assegurar o equilíbrio e o
desenvolvimento estrutural da própria sociedade. Com isto, deve ter em conta
que, uma proteção penal a bens supra-individuais não pode atingir ou mesmo
violar bens jurídicos individuais, sob pena de perder sua função.
Decididamente também existe o perigo de incorporar ao Direito
Penal uma função político-governamental.
A proteção de bens jurídicos universais, segundo critérios
genéricos, pouco concretos, como destacamos, em atenção a preceitos de clamor
público, indica uma função promocional do Direito Penal que não pode ser
aceita
204
.
A legitimidade de intervenção estatal na sociedade, passa por
critérios de política criminal
205
que não podem ser abandonados em favor de
203
PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal..., p. 104 e 105.
204
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões..., p. 73.
205
ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. Tradução e introdução de Francisco Muñoz
Conde, Barcelona: Casa Editorial Bosch, 1972.
94
ideologias promocionais inúteis à manutenção das garantias sociais de bem estar,
e que levam a uma desvalorização das normas penais.
Os bens jurídicos universais, supra-individuais, transindividuais,
meta-indivuais, coletivos ou difusos, eleitos segundo critérios de relevância
social e danosidade, na verdade acabam sofrendo os efeitos de uma realidade
social de medo e insegurança.
A sensação de insegurança pós-revolução industrial, decorrente de
novos riscos provenientes de uma abundância de recursos técnicos de exploração
e consumo, incrementados bela evolução de meios de comunicação e
informações desencontradas sobre critérios seguros de julgamento sobre o bom e
o ruim, criaram referências valorativas jurídicas diversas, não objetivas, em uma
sociedade de massas, de forma que o único meio de intermediação entre os
interesses individuais e a sociedade é o Direito
206
.
Quando tratamos de bens universais como a preservação do
ambiente, das relações de consumo e da saúde pública, por exemplo, uma busca
de segurança social acaba se convertendo em uma busca de tutela penal, em
virtude da preservação destes bens jurídicos ser necessária à subsistência pacífica
da espécie humana.
Diante de um conjunto de medos difusos, que conduz a esta
realidade social, em especial quando aqui tratamos de interesses supra-
individuais, vimos que os clássicos pensamentos de restrição e minimização do
Direito Penal retomam sua força, frente a um Direito que é cada vez mais
ampliado, sem parâmetros ou limites principiológicos, ou se os têm, são
206
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. A expansão do Direito Penal – Aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha da 2ª edição espanhola (Madrid: 2.001). São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 32/41.
95
desrespeitados ou flexibilizados, muito mais com o intuito de por fim àquela
angústia social de insegurança, do que de solucionar pendências jurídicas reais.
Criou-se a “indústria da criminalização” em uma busca obsessiva
de normas cada vez mais rígidas e amplas em matérias como, por exemplo, o
meio ambiente, a ordem econômica, as relações de consumo, a corrupção
pública, dentre outras
207
.
Trata-se da política de interesses, representada pela formulação de
argumentos científicos como instrumentos para finalidades outras que não a
persecução da verdade e da justiça
208
. Buscam-se fins estratégicos através de
argumentações pseudocientíficas, com finalidades políticas, aplicando critérios
de correção extremamente deficitários, em especial quando tratamos de bens
jurídico-penais de caráter universal.
Talvez, para iniciar uma nova concepção de realidade social frente
a uma nova sistemática jurídica que inclui a proteção penal de bens jurídicos
universais, melhor seria discutirmos metas para evolução do Direito Penal,
segundo uma linha de orientação reformista que poderia muito bem passar pela
própria Teoria da prevenção geral positiva
209
.
Neste sentido, desenvolver a confiança do povo em normas
adequadas e destinadas a promover justiça e paz, em uma construção de
consciência social sobre as normas, em especial quando destinadas a promover a
207
Seguindo a mesma linha de pensamento de Silva Sanchez: SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. A expansão do
Direito Penal..., p. 41.
208
SCHÜNMANN, Bernd. Consideraciones..., pp. 57/59.
209
Winfried Hassemer desenvolveu de forma clara em suas obras os parâmetros da Teoria da Prevenção Geral
Positiva: Crítica al derecho penal de hoy, Centro de Investigaciones de Derecho Penal y filosofía del Derecho,
Universidade Externado de Colombia, trad. Patricia S. Ziffer, Bogotá, 1998; La responsabilidad por el producto
en derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995; Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos.
Pena y Estado, Barcelona, n° 1, pp. 23/36, 1991; Introducción a la criminologia y al derecho penal. Valencia:
Tirant lo Blanch, 1989; A que metas pode a pena estatal visar? São Paulo: Justitia, ano 48, vol. 134, 1986, pp.
26/31; Fundamentos del Derecho Penal, Casa Editorial Bosh, trad. Francisco Muñoz Conde e Luis Arroyo
Zapatero, Barcelona, 1984.
96
proteção de bens fundamentais para a subsistência pacífica da espécie humana,
busca a construção de um Direito Penal integrado com as ciências sociais, parte
de um controle social dos desvios de conduta, concorrendo com instâncias
sociais e jurídicas outras, complementares a este modelo de controle
210
,
envolvendo uma socialização através de uma formalização adequada da
modalidade deste controle de conflitos e desvios, segundo uma preservação de
direitos universais ou supra-individuais, através de normas “vivas e válidas”, em
uma sociedade moderna, atendendo a uma expectativa social de justiça
211
.
210
No caso dos bens universais o Direito Administrativo Sancionador, como exemplo da influência e
participação, além de elementos de políticas públicas e privadas de educação e cultura, não menos significativos.
211
Segundo parâmetros próprios da Teoria da Prevenção Geral Positiva: HASSEMER, Winfried . A que metas
pode a pena estatal visar? Palestra proferida na Faculdade de Directo da Universidade de São Paulo, em 19 de
setembro de 1984, notas de Hugo Nigro Mazzilli, São Paulo: Justitia, ano 48, vol. 134, abr/jun. 1986, pp. 30 e 31.
97
III – TIPICIDADE SEGUNDO A TEORIA GERAL DO
DELITO
Envolvendo a dogmática penal, segundo a interpretação, o
desenvolvimento e a sistematização de preceitos legais e opiniões científicas,
para explicar uma teoria do tipo, necessário, primeiramente, uma breve
abordagem a respeito da Teoria Geral do Delito.
A dogmática jurídica possui a dimensão de elaborar conceitos e de
integrá-los a um sistema, todo ele dirigido à resolução de problemas jurídicos
segundo determinada orientação. Indica princípios jurídicos implícitos em um
ordenamento, expondo preceitos jurídicos diversos, como conseqüência destes
princípios, permitindo a compreensão do sentido concreto de determinadas
pretensões como expressão da estrutura de um mesmo sistema jurídico
212
.
A Teoria Geral do Delito, segundo a dogmática jurídica, explica e
sistematiza os elementos e os pressupostos gerais, indispensáveis para que
determinada conduta possa ser qualificada como um delito sujeito a sanções
213
.
Classificando e analisando múltiplas circunstâncias que podem
surgir no caso em concreto, a Teoria Geral do Delito indica soluções possíveis,
segundo uma interpretação sistemática de preceitos penais, sob a égide de
212
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 49.
98
princípios gerais de direito, em especial princípios de natureza penal,
submetendo as soluções eleitas a uma adequação segundo os princípios
fundamentais, inscritos na norma constitucional.
A partir disto temos que a implementação de uma Teoria Geral do
Delito está diretamente ligada à própria concretização de um conceito material
de delito, segundo uma orientação desejada pelo modelo de Estado Social e
Democrático de Direito, que ora se elegeu
214
.
Seguindo o posicionamento de que o Direito Penal se dirige a
proteção eficaz de bens jurídicos, sendo que sua aplicação fica sujeita apenas
àquelas condutas que representam ataques mais graves contra os bens jurídicos
considerados mais importantes, temos que para a identificação destas condutas
como delitos, devem passar por uma violação de um imperativo ou norma de
determinação, fundamentada de forma axiológica segundo uma outra norma de
valoração, que indica o bem jurídico selecionado pelo legislador
215
.
Esta conduta, então contrária ao ordenamento jurídico, será
antijurídica, ou seja, a expressão de um juízo de desvalor quanto ao fato
cometido.
Ao lado da antijuridicidade, posiciona-se a culpabilidade, segundo
a qual a exigência de responsabilidade pela conduta antijurídica, de um sujeito
com capacidade de compreensão e liberdade de atuação, proporciona um juízo
de desvalor quanto a este que será indicado como autor do fato delituoso.
Temos ainda, dentre todas as condutas antijurídicas possíveis,
aquelas que são consideradas como mais graves, são selecionadas segundo um
princípio de legalidade, consistente na adequação de um fato realizado a uma
213
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad e imputación objetiva. Mendonza: Ediciones Jurídicas
Cuyo, 1998, p. 20.
214
MIR PUIG. Santiago. El Derecho Penal..., p. 30 e ss.
215
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. op. cit., pp. 34 e 35.
99
suposta descrição normativa de conduta reprovável, identificada assim a
tipicidade.
Deste conjunto evolutivo dogmático, extrai-se um conceito
material de delito, envolvendo aquelas condutas, positivas ou negativas, com um
caráter antijurídico, típico e culpável, segundo uma subsunção de um fato
comprovado a uma descrição legal típica ou reprovável.
Assim, o posicionamento dualista sobre o delito como sendo
produto de um elemento objetivo ou material e de outro elemento moral ou
subjetivo, herança da Escola Clássica, fez-se suceder pela teoria tridimensional
compondo o delito de elementos segundo um fato típico, a culpabilidade e a
antijuridicidade
216
.
1. Tipo e tipicidade definidos
Para definirmos a eleição de bens jurídicos universais sujeitos à
tutela penal, bem como a própria identificação legal destes bens, se faz
indispensável uma análise de duas categorias integradas ao conceito de delito,
quais sejam, a tipicidade e o tipo penal, segundo um estrutura lógico dogmática.
O tipo aparece como a descrição externa de uma conduta, a qual
se relaciona com a pena e que, a partir deste instante acaba assumindo relevância
jurídico-penal.
217
216
MARQUES, José Frederico. Da tipicidade penal. Revista Forense. Rio de Janeiro, setembro de 1951, n° 19,
vol. CXXXVII, ano XLVII, fascículo 579, p. 47.
217
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad e imputación objetiva..., p. 62.
100
A conduta, então, assume um sentido semântico, tendo em conta o
valor de elementos de tempo e espaço, que levaram esta mesma conduta a uma
descrição na lei
218
.
Todavia, esta subsunção de uma sucessão de fatos reais a uma
descrição típica não é suficiente para acarretar conseqüências jurídicas, que
devem ser previstas pelo legislador no processo de imputação de um fato a seu
autor.
Assim, como instrumento de descrição normativa de elementos
fáticos, o tipo também exige uma natureza de norma ordenadora de interpretação
e exposição de relações jurídicas, dentro de um contexto científico e jurídico
219
.
A partir disto, como já havíamos exposto, para identificarmos uma
configuração concreta do tipo penal, necessária a indicação de determinada
conduta, realizada segundo um caráter ofensivo a um bem jurídico, onde se
estabeleçam duas situações sociais conflitantes, uma decorrente da identificação
normativa daquilo que se denomina de delito e outra segundo uma realidade
fática vivida pelo agente. Em estas situações sociais relacionando-se, ou seja,
subsumindo-se a realidade fática à identificação normativa, surge a adequação
típica ou a tipicidade
220
.
Poderíamos considerar, então, o tipo como uma descrição da
conduta proibida, levada a concretização através da expressão de uma hipótese
de fato na norma penal, enquanto que a tipicidade surge como a qualidade que se
atribui a determinado comportamento, subsumivel à hipótese normativa
infracional
221
.
218
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Tipo penal e linguagem. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 92.
219
LARENZ. Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2 edição. Tradução de José de Souza e Brito e de José
Antônio Veloso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969, pp. 524 e ss.
220
TAVAREZ, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2.000, p. 130.
221
MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Tradução e notas de Juarez Tavares e Luiz Régis Prado,
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 42.
101
1.1. O tipo penal segundo um conceito evolutivo
Como declarava Aníbal Bruno
222
, a importância da noção de tipo
como centro de toda a Teoria do Direito Penal é uma a afirmativa que ainda deve
ser considerada como valida, diante de uma concepção caótica de delito que se
apresentava antes de Ernest von Beling
223
.
A noção de tipo decorreu, segundo Juarez Tavarez, do Direito
Penal renascentista, com Tiberius Decianus
224
, como um exame da causa formal
do delito, ou do Direito Penal comum europeu, a cerca do corpo de delito, e da
obra de Christoph Carl Stübel
225
.
O Franz von Liszt
226
, seguindo a doutrina penal da época, apesar
de entender o tipo como o próprio delito, já que o visualizava como o conjunto
de elementos que possibilitavam a exigência de uma pena, para uma necessária
caracterização do delito, sustentando que este era composto pela ação, a
222
BRUNO, Aníbal. Sôbre o tipo no Direito Penal. Estudos de Direito e Processo Penal em homenagem a
Nelson Hungria. 1ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 1962, pp. 47/62.
223
Ibid., p. 47, nota 1. Sobre o assunto e, inclusive, para justificar a própria condução deste estudo, merece
transcrição alguns trechos de nota explicativa de Aníbal Bruno sobre a teoria do tipo penal: “A teoria do tipo teve
a sua origem na Alemanha, onde se tem processado todo o seu desenvolvimento (...) Em todo o caso,
universalmente acolhida na doutrina alemã, a noção do tipo vem sendo aceita por muitos penalistas estrangeiros,
que dela se servem para a explicação de problemas penais. Na Alemanha, porém é que se tem trabalhado toda a
sua teoria. Não se estranhará, portanto, que na pequena bibliografia citada figurem quase exclusivamente autores
alemães, que são justamente aqueles que se têm ocupado do assunto”. Daí a própria ilustração dos trabalhos
doutrinários a respeito do Direito Penal, do tipo e da tipicidade, que hoje, arraigados nos estudos alemães,
partindo para a doutrina espanhola e, posteriormente para sua inserção no campo sul-americano, acabam por
sustentar suas teorias,como no presente caso, em elementos doutrinários desta natureza.
224
DECIANUS, Tiberius. Tratactus criminalis, Livro II, capítulo II, n° 4, Frankfurt am Main, 1591. Apud
TAVAREZ, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2.000, p. 133, nota 198.
225
STÜBEL, Christoph Carl. Über den Tatbestand de Verbrechen nach gemeinen in Deutschland geltenden und
chursäschhsichen Rechten, Wittenberg, 1795, reimpressão Keip Verlag, 1997. Apud TAVAREZ, Juarez. Teoria
do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2.000, p. 133, nota 199.
226
LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal allemão. Tradução e comentários de José Hygino Duarte Pereira,
Rio de Janeiro: F. Briguiet & C., 1899, p. 183.
102
antijuridicidade, a culpabilidade e a punibilidade, não deixou de impulsionar o
reconhecimento do tipo como um elemento fundamentador do próprio delito
227
.
De outro lado, como já destacado, foi através de Ernest von
Beling, que a alteração desta conceituação de tipo, com uma nova abordagem a
respeito da doutrina do Tatbestand
228
, decorrente de conceito extraído do termo
inscrito no § 59 do Código Penal Alemão de 1871, que este rompeu com sua
função meramente descritiva da antijuridicidade e da culpabilidade, identificando
o tipo como um elemento autônomo.
Assim, segundo as teorias que impulsionaram a evolução dos
conceitos de tipo e tipicidade, podemos definir algumas fases deste processo
construtivo, segundo um momento histórico social de elaboração da Teoria do
Delito
229
.
1.1.2. Teoria causal e as fases da independência e do caráter
indiciário de antijuridicidade
Em 1906, em verdadeira contribuição da teoria causal, segundo
um modelo positivista jurídico de direito, através de um artigo, Ernest von
227
ZAFFARÓNI, Eugenio Raul. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 1981, p. 198.
228
A expressão Tatbestand surgiu na doutrina jurídica alemã entre o final do século XVIII e o início do século
XIX, na seara do direito processual criminal, envolvendo uma tradução da expressão latina corpus delicti,
segundo um panorama probatório de ingerência. Aparece, primeiramente, como elemento conceitual do Direito
Penal na obra de Feuerbach, segundo uma concepção liberal do Estado de Direito, seguindo por toda a doutrina
penal alemã do século XIX, todavia confundido como representação de toda a totalidade do delito, ou seja, quase
que seu sinônimo, senão a soma de todos os elementos e fatores que devem existir para que se possa aplicar a
pena como conseqüência do crime. In: LUISI, Luis. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1987, pp. 13 e ss.
229
Luiz Jimenéz Asua aponta fases evolutivas do conceito de tipo, como sendo: a fase da independência, a fase
do caráter indiciário, a fase da ratio essendi, a fase defensiva e a fase destrutiva (In: Luiz Jimenéz Asua. La ley y
el delito – Princípios de derecho penal. 2ª edição. Buenos Aires: Ed. Sulamericana, 1978, p. 237), enquanto que
Juarez Tavarez aponta para as influências da Teoria Causal, do Neokantismo, o Finalismo, a Teoria Social e o
Finalismo (In: Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2.000, p. 134 e ss.).
103
Beling
230
acabou por implementar uma conceituação de tipo, independente da
antijuridicidade e da culpabilidade, proporcionando a distinção entre a conduta e
sua previsão legal, e assim, também, a própria elaboração de um conceito de
ação
231
.
No modelo causal o tipo é compreendido como descrição objetiva
e neutra do desenvolvimento de uma conduta legalmente prevista, onde a
realidade causal, representada pela ação do agente, está interligada ao resultado,
parte integrante da própria ação causal, pois indispensável a todos os delitos.
Envolve um formalismo jurídico que reconhece o delito e a pena
como uma representação conceitual, segundo uma consideração técnico-jurídica,
desenvolvida em um sistema fechado, com preceitos concretos previstos em
lei
232
.
Segundo a teoria da causalidade deve o tipo penal estar formulado
em termos claros e precisos, em um firme limite para figura típica, tendo em uma
compreensão cada vez mais restrita de seus termos uma maior garantia para as
liberdades civis, limitando o julgador à linguagem do legislador, impedindo que
os termos dêem lugar a uma incerteza sobre quais fatos são considerados
vedados
233
.
Ernest von Beling
234
partiu de uma formulação dedutiva do
conceito de tipo, concebendo este como um conjunto de circunstâncias que
caracterizam abstratamente o delito conforme sua definição legal, em uma ação
punível objetivamente descrita.
230
BELING, Ernest von. Die Lehre vom Verbrechen, Tübingen, 1906, reimpressão Keip Vewrlag, 1997. Apud
TAVAREZ, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2.000, p. 135, nota 204.
231
TAVAREZ, Juarez. Teoria...., p. 134.
232
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 51.
233
BRUNO, Aníbal. Sôbre o tipo no Direito Penal..., p. 47 e ss.
234
BELING. Ernest von. Esquema de derecho penal: la doutrina del delito tipo. Tradução de Sebastian Soler.
Buenos Aires: Depalma, 1944, pp. 55 e ss.
104
O modelo de Ernest von Beling caracterizou-se de forma
significativa por dois elementos básicos envolvendo a objetividade, com a
exclusão do tipo dos critérios subjetivos de culpabilidade, bem como pela
ausência de valoração legal ou de conteúdo valorativo, em uma função
puramente descritiva e autônoma, distante da antijuridicidade
235
.
Em um segundo momento, ainda sob a égide causal, a tipicidade
passa a funcionar como indício objetivo da antijuridicidade.
Max Ernst Mayer
236
, impõe ao conceito causal de tipo, um indício
objetivo, um meio de conhecimento da antijuridicidade, com a pregação de que
desde que uma determinada ação possa ser identificada segundo uma descrição
típica legal, tal fato passa a constituir um indício objetivo da incidência da norma
proibitiva nesta mesma ação.
Os tipos penais, para Max Ernst Mayer contêm elementos
relacionados ao próprio autor do delito, elementos que podem ser identificados
como subjetivos, além de elementos normativos, o que demonstra a necessidade
de elementos valorativos no momento do julgamento do fato, segundo a norma
repressora.
Existe uma conservação da estrutura básica da teoria do
Tatbestand, mas com a presença de elementos normativos que conduzem a certa
obscuridade a respeito de limites entres tipicidade e antijuridicidade
237
.
235
ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tradução de Dirego Manuel Luzón Pena, Madrid: Civitas,
1997, v. I, p. 278. TAVAREZ, Juarez. Teoria..., p. 136.
236
MAYER, Max Ernst. Der Allgemeine Teil dês deutschen Strafrechts, 1ª edição, 1915, reimpressão da 2ª
edição, Heidelberg, 1923, Frankfurt am Main, 1997. Apud TAVAREZ, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2.000, p. 136, nota 205.
237
ROXIN, Claus. Op. cit., p. 62.
105
1.1.3. O neokantismo e a fase ratio essendi da antijuridicidade.
A doutrina de Max Ernst Mayer, posiciona-se influenciada pelo
pensamento neokantiano, que conduzia a um enriquecimento de elementos
normativos, sedentos de valoração para a compreensão de seu significado, bem
como de elementos subjetivos que afastavam a identificação da ação como uma
concepção meramente descritiva, introduzindo considerações axiológicas e
materiais
238
.
Ainda segundo este posicionamento, conseguiu demonstrar que o
tipo penal não é realmente neutro, mas que muitos deles contem expressões de
conotações axiológicas, assim valorativas
239
.
Sob a ótica desta alteração de perspectivas, influenciadas pelo
movimento neokantista é que desponta, de forma significativa, uma
sistematização e ampliação da matéria por Edmund Mezger
240
, tanto no que se
refere aos elementos subjetivos como aos elementos normativos do tipo, com a
identificação da razão de ser, ratio essendi, da antijuridicidade
241
.
Identifica a tipicidade como fundamento da antijuridicidade,
entendendo que a análise da tipicidade não se produz segundo uma análise
individuada, mas como base real da antijuridicidade
242
, considerado o delito
como um injusto culpável. O tipo de injusto, assim, seria, na verdade, uma
antijuridicidade tipificada, afastadas causas de justificação, dependente da
238
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., pp. 55/57.
239
LUISI, Luis. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris
Editor, 1987, p. 18.
240
MEZGER. Edmund. Derecho Penal: Parte General. 6ª edição. Tradução de Sebastian Soler. Buenos Aires:
Bibliográfica Argentina, 1944. Não obstante o destaque de Edmund Mezger, Juarez Tavarez bem aponta outros
precursores do neokantismo: Max Grünhut, August Hegler, Johannes Nagler. In: Teoria do Injusto Penal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2.000, p. 137.
241
LUISI, Luis. Op. cit., p. 19.
242
CAMARGO, Chaves. Tipo penal..., p. 09.
106
vontade do agente, em uma definição de delito como ação tipicamente
antijurídica e culpável
243
.
1.1.4. A fase defensiva de Ernst von Beling
Diante das concepções evolutivas trazidas pelo neokantismo, bem
como das severas críticas que sua teoria do tipo penal acabou por sofrer, em
1930 Ernst von Beling apresenta uma revisão de sua posição doutrinária
244
.
Passou a destacar duas modalidades no tipo penal: o delito-tipo e o tipo reitor.
O delito-tipo de Ernest von Beling, envolve um esquema unitário
segundo cada figura delitiva, vista de forma autônoma, ilustrado sempre de
forma normativa, transformando-se em um sistema regulador dos elementos do
delito, uma garantia indispensável mas sem se identificar com o próprio delito,
mas em estreita relação com o princípio da legalidade
245
.
De outro lado, o modelo reitor, de caráter eminentemente externo,
busca uma integração dos elementos do delito, sendo o correspondente abstrato e
conceitual do próprio delito-tipo.
O tipo de delito responderia pelas características relativas de cada
um dos delitos contidos na parte especial do estatuto penal, segundo
componentes objetivos e subjetivos, enquanto que o tipo reitor despontando
como elemento conceitual, seria um objeto primário de investigação,
complementar à análise dos demais tipos de delito
246
.
243
MEZGER. Edmund. Derecho Penal…, p. 145 e ss.
244
BELING. Ernest von. Die Lehre vom Tatbestand, Tübingen, 1930; Grundzüge des Strafrechts, 11ª edição,
Tübingen, 1930. Apud TAVAREZ, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2.000, p. 135, nota
204. BELING. Ernest von. Esquema de derecho penal: la doutrina del delito tipo. Tradução de Sebastian Soler.
Buenos Aires: Depalma, 1944.
245
CAMARGO, Chaves. Tipo penal..., p. 11.
246
TAVAREZ, Juarez. Op. cit., p. 136.
107
A revisão defensiva de Ernst von Beling não prevaleceu, tanto
que, posteriormente, o próprio autor assumiu posição diversa, entendendo que o
tipo como integrante da antijuridicidade, mas sem jamais apresentar
demonstração concreta
247
.
1.2. O tipo penal e o finalismo
Durante o período nazista, as teorias sobre o bem jurídico,
segundo a Escola de Kiel, acabaram por sofrer um processo de negação crítica
destrutiva, reduzindo sua contextualização a uma lesão ao dever
248
.
Superada a Segunda Guerra Mundial, com a queda do sistema
nazista, ocorre uma retomada da evolução dogmática jurídica, com base na
Teoria Finalista de bases ontológicas, decorrente de uma retomada evolutiva do
sistema neokantiano
249
.
A doutrina finalista
250
, segundo a qual o conceito de ação recebe o
paradigma da voluntariedade, enquanto que a culpabilidade assume um conteúdo
valorativo
251
, assume uma concepção de tipo penal como reflexo da própria
conceituação de ação final
252
.
A atividade humana como realidade é ordenada e organizada com
um contexto ontológico específico, mesmo antes de sua definição segundo a
norma, ou seja, a lei apenas limita-se à descrição de uma realidade pré-
247
TAVAREZ, Juarez.. Teoria..., p. 136.
248
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción..., p. 25 e. 26, nota 108.
249
TAVAREZ, Juarez. Op. cit., p. 139.
250
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal – Uma introdução à doutrina da ação finalista, tradução,
apresentação e notas de Luiz Regis Prado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
251
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação..., pp. 29/32.
252
TAVAREZ, Juarez. Op. cit., p. 139.
108
concebida, onde os conceitos não criam nem constróem objetos segundo uma
tutela jurídica, apenas decorrem de estruturas preexistentes ao conhecimento
253
.
O tipo penal aparece, por tanto, como uma descrição da realidade
ordenada e valorada da ação humana, ou seja, constituído da vontade de acolher
a ação com seus elementos como objeto de valoração jurídica, situando-se como
a descrição de uma conduta segundo uma matéria de proibição
254
.
O fim desejado pelo agente passa a fazer parte integrante da
estrutura do tipo penal, incluindo-se ai o dolo e a culpa, afastando-se do modelo
meramente objetivo, não valorativo, de tipo penal, adotado por Ernst von Beling;
apresentam-se elementos objetivos e subjetivos
255
.
As condutas dolosas são integradas de duas partes: os tipos
objetivos e os tipos subjetivos. Os objetivos são uma exteriorização da ação e os
subjetivos relacionados à tendência a que se destina esta ação. De outro lado a
culpabilidade aparece como juízo de valor, onde o crime doloso assume um
resultado danoso, consciente e voluntariamente produzido, enquanto que a culpa
o desvalor da própria ação é avaliado segundo uma perspectiva de um modelo
pré-estabelecido, hipoteticamente relacionado às realização ideais de prudência e
consciência
256
.
Por fim, dentro desta contextualização de tipo penal, quanto à
antijuridicidade, segundo o finalismo, o tipo penal assume uma posição de
indício de antijuridicidade.
257
Assim, a atividade humana aparece como exercício da
denominada “ação final”, assumindo o tipo penal tanto as condição objetivas de
253
LUISI, Luis. O tipo penal..., p. 37 e 39.
254
TAVAREZ, Juarez. Teoria..., p. 139.
255
LUISI, Luis. Op. cit, p. 42.
256
TAVAREZ, Juarez. Op. cit., p.142.
109
punibilidade quanto os elementos de culpabilidade e antijuridicidade; inclui-se o
dolo e a culpa como elementos do tipo, a antijuridicidade resta como contradição
entre a norma de proibição realizada na conduta típica e as orientações do
ordenamento jurídico, ficando a culpabilidade consignada como um juízo
normativo de valor
258
.
1.2.1. A teoria da adequação social
Hans Welzel conduziu uma evolução no pensamento a respeito de
ações que não poderiam configurar condutas antijurídicas
259
.
Apesar de modelo de conduta proibida, o tipo penal surge com
característica sociais na busca por uma vida ordenada segundo determinados
parâmetros de uma determinada comunidade. Assim, determinadas condutas,
embora sendo realizadas segundo os termos da definição legal, desenvolvem-se
dentro de um contexto socialmente admitido, ou melhor, dentro de um contexto
adequado segundo determinadas sociedades
260
.
Assim, a teoria da adequação social instrumentaliza a justificação
de um comportamento típico, com base na ordem moral, nas orientações ético-
sociais da vida em comunidade.
257
TAVAREZ, Juarez. Teoria..., p.143.
258
WELZEL, Hanz. Derecho Penal alemán. 4ª edição, tradução de Juan Bustos Ramirez y Sergio Yáñez Pérez.
Santiago: Editora Jurídica de Chile, 1997, p. 53 e ss.
259
BRUNO, Aníbal. Sôbre o tipo no Direito Penal..., p. 47 e ss.
260
WELZEL, Hanz. Op. cit., p. 66 e ss.
110
1.3. O tipo penal e o pós-finalismo
Em uma fase denominada de transição, a dogmática jurídico-penal
acabou por introduzir correntes de metodologia eclética
261
.
A característica desta nova fase encontra-se em suas referências
teleológicas, com uma maior ou menor normativização de conceitos jurídico-
penais, segundo categorias dirigidas à política criminal e sua intervenção no
Direito Penal
262
.
1.3.1. O tipo penal segundo o funcionalismo teleológico
Dentro destas novas concepções, um posicionamento dominante
das teorias funcionalistas, que buscam a construção de um sistema aberto, capaz
de permanentes remodelações segundo uma evolução social e diante de
conseqüências político-criminais, com a finalidade de proporcionar um modelo
mais representativo da realidade, na busca de uma aplicação mais fidedigna do
Direito Penal, com redução da intervenção estatal aos limites do estritamente
necessário, se faz destacar
263
.
Segundo estas características teleológico-funcionais, podemos
distinguir correntes moderadas e radicais
264
.
261
Jesús-María Silva Sánchez aponta para a metodologia espanhola de Rodríguez Muñoz como um de seus
exemplos. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación..,. p. 63.
262
Ibid., p. 64.
263
Ibid., mesma página.
264
Ibid., p. 68 e ss.
111
As teses moderadas, na busca da superação da contraposição entre
o dogmaticamente correto e o politicamente satisfatório, superando as barreiras
criadas entre o Direito Penal e a Política Criminal em busca de um sistema
adequado às necessidades sociais, diante dos fins a que se destina o Direito
Penal
265
.
Dentre os funcionalistas moderados, poderíamos destacar como
seu maior representante Claus Roxin
266
, não obstante seu posicionamento quanto
a ineficácia dos tipos penais abertos neutros para cumprirem uma função de
elemento fundamental da estrutura do delito
267
.
Claus Roxin abandona o conceito de ação final proposto por Hans
Welsel, buscando a sedimentação de um posicionamento onde a ação constitui
elemento de uma teoria de tipicidade, longe do ontologicamente previsto,
constituindo verdadeiro conceito jurídico-normativo, afastando a aplicação da lei
ao caso em concreto como legitimação do sistema jurídico penal, em substituição
a uma afirmação de que os fins político-criminais são os próprios fins da pena,
segundo um Estado Social e Democrático de Direito
268
.
Desenvolve-se um conceito funcional de ação, de acordo com a
exteriorização da personalidade do ser humano, caracterizador tanto de ações
dolosas como culposas, absorvendo os elementos do delito, com a constituição
de um tipo penal de considerações valorativas e jurídicas, com conteúdos sociais
limitadores das condutas finais, envolvendo todos os pressupostos positivos e
negativos da valoração do fato, em uma teoria da tipicidade com as
características sociais da ação
269
.
265
ROXIN, Claus. Política criminal..., p. 18 e ss.
266
Ibid., mesma página.
267
ROXIN, Claus. Teoria del tipo penal – Tipos abiertos y elementos del deber jurídico. Tradução de Enrique
Bacigalupo, Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1979, p. 265.
268
Idem, Problemas..., p. 53; 128 e ss; Derecho Penal..., p. 377 e ss.
269
Idem, Problemas..., p. 128 e ss.
112
Claus Roxin propõe um “tipo total”
270
, onde o tipo e a
antijuridicidade estão organizadas em uma formulação global de injusto, que
mantém um conteúdo da totalidade dos pressupostos substanciais para uma
apuração de um juízo de injusto, abarcando os elementos negativos e positivos,
expressos ou não, significativos para as ações comissivas ou omissivas
271
.
Este modelo de “tipo total”, que superaria o tradicional tipo penal
que só congrega prescrições elementares da Parte Especial
272
, pois resultaria de
posicionamentos sistemáticos, dogmáticos e práticos, compreenderia a totalidade
do juízo do injusto, com dedução de todas as suas circunstâncias descritivas e
determinantes, compreendidas no dever jurídico
273
.
Assim, à Parte Geral ficaria a tarefa de indicar princípios que
regem a ação típica e as relações entre sujeitos ativo e o resultado, ficando o tipo
subjetivo representado pelo dolo e demais elementos subjetivos, que
fundamentam e reforçam o juízo de desvalor social sobre o fato, que não
assumiria distinção entre injusto e culpabilidade
274
.
De outro lado, em uma concepção mais radical do funcionalismo
teleológico, poderíamos destacar o pensamento de Günther Jakobs, que se afasta
da preocupação prática de Claus Roxin, rumo a uma fundamentação
metodológica
275
.
Günther Jacobs segue por um pensamento funcionalista,
influenciado por Niklas Luhmann, com base na imputação objetiva e na
270
ROXIN, Claus. Teoria del tipo penal..., p. 273 e ss.
271
Ibid., p. 279.
272
Ibid., p. 294.
273
Suporta este conceito de tipo, segundo o próprio Claus Roxin que somente “o tipo total é realmente um tipo
‘fechado”, todavia isto não indica uma desconsideração, para o autor, dos tipos abertos, senão uma crítica ao
sistema tópico, pretendendo um sistema mais apto à solução de realidades, em um “sistema aberto” de orientação
teleológica. Vide: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación..., p. 69. Neste sentido a sustentação de que
para Roxin o modelo de tipos penais abertos, desenvolvido segundo Welzel, não satisfaz a Teoria do Delito. In:
Teoria del tipo penal..., p. 294 e nota 259.
274
ROXIN, Claus. Derecho Penal..., p. 311 e ss.
275
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Op. cit., p. 69 e ss.
113
imputação do resultado, levando a própria concepção do tipo penal, de modo não
muito esclarecedor, como sendo uma etapa da imputação
276
.
Pretende o reconhecimento do tipo do injusto como produção do
confronto entre a tipicidade e a antijuridicidade, sendo representado pelo
conjunto de características representativas de uma inaceitabilidade social de
determinada conduta, que somente pode ser afastada com a incidência de norma
permissiva
277
.
Segundo esta inaceitabilidade, o agente deve ser um indivíduo
integrado socialmente, com conhecimento dos comportamentos considerados
como inadequados ou ilícitos por esta comunidade, segundo suas expectativas de
vida digna e adequada
278
.
Günther Jakobs assume um tipo penal objetivo como sendo a
expressão da relevância social e, assim, a exteriorização do próprio delito e da
constatação da existência de efeitos externos de uma ação. Seu reconhecimento
como expressão do injusto, todavia, exige uma conjunção com o tipo subjetivo,
sob pena de tornar-se irrelevante
279
.
Fundamentado na imputação objetiva do comportamento
280
,
embora considerando o tipo penal como indício da antijuridicidade, o
funcionalismo de Günther Jakobs o reconhece como um conjunto de elementos
básicos, sem os quais um juízo de valor jurídico seria irrelevante
281
.
276
JAKOBS, Günter. Derecho Penal – Parte general; fundamentos y teoria de la imputación. Tradução Joaquim
Cuello Contreras, José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 9 e ss.
277
TAVAREZ, Juarez. Teoria do Injusto Penal..., p.145.
278
JAKOBS, Günter. Op. cit., p. 312.
279
Ibid., p. 223 e ss.
280
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação..., pp. 105/107.
281
JAKOBS, Günter. Op. cit., p. 192.
114
1.3.2. O tipo penal e o Direito Penal como ciência social
A Escola de Frankfurt busca o desenvolvimento de um Direito
Penal sob o enfoque de ciência social
282
, em um caráter humanista que propõe,
corretamente, que as experiências práticas assimiladas pelas ciências sociais são
imprescindíveis para uma Política Criminal no momento de reformas
legislativas, as quais devem sempre perseguir um Direito Penal segundo um
sistema que produza efeitos reais para a sociedade
283
.
O principal expositor das idéias da Escola de Frankfurt, Winfried
Hassemer, modernamente vem defendendo que tanto o Direito Penal prático
como o teórico dogmático exige o reconhecimento de transformações, que o tem
conduzido de um formalismo e de uma vinculação para a adoção de conceitos
valorativos.
A tipicidade para Winfried Hassemer deve surgir com uma função
crítica do sistema do fato punível, onde se podem reconhecer as grandes linhas
que tutelam o sistema jurídico penal entre a liberdade de um e a liberdade de
outro, caracterizando-se como o âmbito de liberdade de ação
284
.
Assim, as informações positivas oferecidas pela tipicidade
caracterizariam o setor do comportamento humano no qual o Direito Penal é
componente, determinando, ao mesmo tempo interesses humanos e bens
jurídicos penalmente protegidos, segundo critérios de valoração jurídica.
Para Wolfgang Naucke, outro expoente da Escola de Frankfurt, o
Direito Penal e a determinação dos fatos juridicamente relevantes, devem estar,
necessariamente, ligados a uma ameaça de pena de acordo com as
correspondentes necessidades da sociedade na elaboração dos fins do Direito
282
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação..., p. 34 e ss.
283
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación..., p. 86.
115
Penal, bem como dos controles dos resultados obtidos com o auxílio de
conceitos que estão comprometidos com a discussão da relação entre direito
penal e dignidade humana, em um direito penal como parte do controle social;
assinala para um direito penal comprometido com fins politicamente eficazes
285
.
No mesmo sentido, Klaus Lüderssen busca o reconhecimento de
uma teoria do delito voltada para a prevenção geral, esta precedida de
argumentos procedentes das ciências sociais, que tem por objeto os
comportamentos humanos, analisados como objetos de valoração na concepção
de um Direito Penal de cunho valorativo
286
.
Pode-se observar que o pensamento da Escola de Frankfurt, não
obstante não restar imune a críticas, envolve a concepção de um Direito Penal
valorativo, onde a adoção de valores e conceitos emana os desejos de uma
sociedade de tempo e lugar, alinhados a uma perspectiva de dignidade da pessoa
humana, elegem critérios de política criminal social como orientadores na
própria criminalização ou não de fatos jurídica e socialmente relevantes.
Trata-se da visualização do Direito Penal com características
próprias de absorção das idéias proferidas nas demais ciências sociais, não mais
utilizando destas ciências como auxiliares, mas deixando-se instruir por elas,
modificando criticamente seu próprio conteúdo, sem uma observação distante
dos efeitos produzidos pelo direito penal, mas um entrelaçamento da realidade
produzida por este direito, com o seu próprio processamento teórico, em um
processo de aprendizado constante e dinâmico
287
.
284
HASSEMER, Winfried. Fundamentos..., p. 261 e 262.
285
NAUCKE, Wolfgang; HASSEMER, Winfried; LÜDERSSEN, Klaus. Principales problemas de la prevención
general. Tradução de Gustavo Eduardo Aboso e Tea Löw, Coleción: Maestros del Derecho Penal, n° 14,
Montevideo - Buenos Aires: Editorial B.de F., 2004, p. 32 e ss.
286
Ibid., p. 83 e ss.
287
HASSEMER, Winfried; História das idéias penais na Alemanha do pós-guerra, tradução do original alemão
por Carlos Eduardo Vasconcelos, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, ano 2, n. 6, abril-junho – 1994, p.59.
116
Defende-se uma reestruturação de todo o sistema, mediante novos
critérios de racionalidade, correção, relevância e justificação, segundo uma teoria
do Direito Penal voltado para as conseqüências. Todavia, cabe salientar que esta
reestruturação teórica tem sido superada por um Direito Penal de segurança, com
um caráter eminentemente funcional que destroça as idéias anteriores
288
.
2. Funções e concretização da tipicidade
Segundo a análise moderna e integrada dos posicionamentos
colacionados, podemos assentir com um conceito de tipo de acordo com uma
descrição externa de determinada conduta, à qual se relaciona uma pena,
atribuindo-lhe relevância jurídico-penal
289
.
Entretanto, para a concretização de uma determinada conduta em
consonância com a descrição legal, ou seja, a afirmação da tipicidade da conduta
segue, como necessário, primeiramente, a subsunção do fato real e suas
conseqüências àquela descrição típica, em segundo lugar, uma análise subjetiva
da previsibilidade da ação e do desejo de sua realização, e, por fim, a correlação
entre tipo objetivo e tipo subjetivo, onde a ação dirigida produz o resultado
esperado
290
.
Quanto às fases seguintes, da eficácia daquilo que determinamos
como persecução penal, quais sejam, as delimitações da antijuridicidade, da
existência ou não de causas de justificação, e da culpabilidade como exigência da
responsabilidade penal do autor, devem ser observadas no atendimento a um
288
HASSEMER, Winfried; História das idéias penais na Alemanha do pós-guerra..., p. 59 e ss.
289
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad e imputación objetiva. Mendonza: Ediciones Jurídicas
Cuyo, 1998, p. 62.
290
Ibid., p. 62 e 63.
117
juízo de valor sobre as circunstâncias concretas de cada caso, para a apuração de
uma conduta delitiva ou não e, assim, alcançar a punibilidade com a aplicação de
uma sanção adequada.
Neste sentido, quando falamos do primeiro elemento do delito,
identificamos a tipicidade como uma derivação do princípio da legalidade, que
garante que somente condutas eleitas pelo legislador, segundo critérios de
intervenção mínima e identificadas na norma penal como delitos, é que acabam
sujeitas a uma reprimenda penal.
O controle dos conflitos sociais através da imposição de normas
limitadoras de condutas exige um elemento de ultima ratio, com a finalidade de
conseguir o respeito da norma como forma de adequação comportamental,
segundo aquilo que a sociedade entende como correto.
Assim a tipicidade pode ser entendida como uma expressão
genérica do primeiro conceito dogmático de delito, conforme características que
devem integrar determinada conduta para subsumir-se à norma, como uma
qualidade atribuída a um comportamento, em uma adequação do fato cometido
pelo homem, com a descrição que a lei penal faz deste mesmo fato
291
.
Desta forma, podemos identificar claramente algumas funções da
tipicidade.
Primeiramente uma função garantista, decorrente do princípio da
legalidade
292
. Em segundo uma função de seleção de condutas penalmente
relevantes, dentro de parâmetros de intervenção mínima. Em terceiro uma função
motivadora, com o intuito de orientar as condutas dos cidadãos de acordo com o
que a sociedade entende como correto. Por fim, em quarto, uma função indiciária
de antijuridicidade, pois não obstante de um ponto de vista objetivo, poder ser
291
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad..., p. 70.
292
ROXIN, Claus. Teoria del tipo pena..., p. 170.
118
considerada formalmente típica determinada conduta, esta somente será
considerada como proibida, caso não concorram quaisquer causas de justificação
que, em tese, possam converter o ato em algo lícito.
Com isso, possível afirmar, também, que apesar da seleção de
condutas proporcionada pela tipicidade ocorrer quanto a ações antijurídicas, não
se pode assegurar que toda a conduta típica, necessariamente seja antijurídica
293
.
3. Materialização do tipo penal
Para entender a própria materialização do tipo penal, necessário
conhecer sua estrutura interna básica.
Podemos identificar o tipo penal, segundo sua estrutura, como
composto de dois elementos básicos.
Primeiramente temos o denominado tipo objetivo que envolve a
descrição de uma ação externa, de acordo com a percepção do legislador.
Todavia este elemento, por si só, não é suficiente a identificar como típica uma
conduta.
A segunda parte do tipo, e assim complementar em sua estrutura,
envolve o tipo subjetivo. Uma reunião de elementos subjetivos que incidem
sobre a própria ação.
O tipo subjetivo, diferentemente do objetivo descritivo, é
composto de exigências como o conhecimento e a vontade de realizar a conduta
293
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad..., p. 71.
119
objetiva, assim identificado como dolo, o impulso ou animus de lucro, de
ofender, caracterizadores dos motivos e intenções do agente e também do fato
punível
294
.
Importante destacar que o próprio tipo objetivo, por sua
característica descritiva deve trazer presentes elementos suficientes a indicarem a
existência de um tipo subjetivo.
Para a identificação destes dois elementos, também indispensável
uma linguagem precisa e de fácil compreensão, que afaste interpretações
ambíguas ou contraditórias, recorrendo-se a uma metodologia descritiva e
delimitadora de comportamentos puníveis e não puníveis.
Esta metodologia, em uma ciência de pós-modernidade, exige uma
adequação e concepção de caráter evolutivo, ou seja, que acompanhe o momento
e o desenvolver social
295
.
Temos o tipo em geral composto de um núcleo que representa
ação ou omissão e o seu objeto, fundamentados na lesão a um bem jurídico, em
uma concretização de seu reconhecimento como uma norma de conduta
destinada a estabelecer os limites de intervenção estatal
296
. Como concretização
de uma idéia, assim, o tipo penal deve ser visto como projeção de uma conduta
comportamental, ou atividade humana
297
.
294
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad..., p. 75.
295
Destacamos o posicionamento sobre a adoção de um sistema aberto, onde as normas repressoras devem
acompanhar o contexto e a evolução da sociedade em que se encontram, sob pena de restarem injustas e inúteis.
296
TAVAREZ, Juarez. Teoria do Injusto Penal..., p. 175 e 176.
297
CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Tipo penal e tipo de culpabilidade. Estudos jurídicos em homenagem a
Manoel Pedro Pimentel. Coordenação de Rubens Prestes Barra e Ricardo Antunes Andreucci, São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1992, pp. 264/274.
120
3.1. Conformação técnica objetiva do tipo penal
Reconhecer a estrutura do tipo penal, segundo a percepção do
legislador, materializada na descrição normativa de uma ação externa, exige um
dimensionamento de seus elementos segundo critérios classificatórios de seus
elementos objetivos.
Estruturalmente, de acordo com a evolução da sociedade, os tipos
penais exigem o reconhecimento de componentes descritivos e normativos.
Os elementos descritivos envolvem a expressão de realidades
naturalísticas ou decorrentes de outras ciências sociais, como saúde, a morte,
dentre outros, enquanto que os elementos normativos ou valorativos
298
, exigem
uma análise de valor judicial do caso em concreto, como a insolvência, a
obscenidade. No último caso podemos apresentar destaque para conceitos
jurídicos indeterminados ou variáveis, de acordo com local e costumes, como a
moral, por exemplo.
299
Os elementos normativos não envolvem a ilicitude, mas a
valoração do objeto da ação delituosa, em conceitos axiológicos, já valorizados
em normas preexistentes ou a critério do interprete, pra um sentido a ser
aplicado, dentro de quadros culturais de época e lugar, para sua compreensão
300
.
Neste quadro de destaques, podemos elencar além destes
elementos descritivos e normativos, outros envolvendo os sujeitos do delito, a
conduta externa e o objeto material da ação, dentre outros elementos de
conotação axiológica, em juízos de interpretação no momento da aplicação da
298
ROXIN, Claus. Teoria del tipo penal ..., p. 59.
299
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad .., p. 78 e 79.
300
LUISI, Luis. O tipo penal..., p. 59 e 60.
121
norma jurídica penal. São alguns elementos comuns e necessários para sua
configuração, bem como específicos e singulares acessórios.
Assim, podemos destacar quanto aos elementos típicos de acordo
com os sujeitos, que podem ser comuns, onde qualquer pessoa aparece como
sujeito ativo; especiais ou próprios, onde uma qualidade, profissão ou função
caracteriza o sujeito ativo especial.
Os sujeitos próprios ou especiais, previstos na norma tipificadora
restringem a possibilidade de efetiva autoria, através de qualificações naturais ou
jurídicas, como sexo e função pública.
Existem, também, os denominados delitos de mão própria, quando
o sujeito ativo é figura precisa identificada no tipo.
301
Temos, ainda, o sujeito ativo primário, que realiza a ação típica e
o sujeito ativo secundário, que coopera para a concretização do delito, mas não
realiza ação propriamente dita
302
.
De acordo com o número de sujeito, podem ser unipessoais ou
monosubjetivos, bastando uma única pessoa para sua consumação, ou
pluripessoais, plurisubjetivos ou de concurso necessário, quando, como exemplo
nos delitos que envolvem o reconhecimento de quadrilha ou bando, adultério,
rixa, onde a presença de mais de mais pessoas é exigência para a configuração do
tipo penal, em uma multiplicidade de sujeitos como condituio sine qua non
303
.
Quanto à conduta, o tipo penal segue segundo uma ação ou
omissão, exigindo a realização de conduta determinada, positiva ou negativa,
dirigida a um resultado.
301
O infanticídio, onde apenas a mãe pode ser autora do delito é um exemplo eficaz desta modalidade. Artigo 123
do Código Penal Brasileiro.
302
LUISI, Luis, O tipo penal..., p. 44.
303
Ibid., p. 47.
122
No tocante à conduta, subscrevem-se, também tipos transitivos,
quando estes fazem referência ao objeto material do delito e, por vezes ao
próprio sujeito passivo, como no furto
304
, onde o objeto de ação é coisa alheia
móvel
305
, e os tipos intransitivos, que envolvem apenas a descrição da conduta
típica, como os delitos formais e de mera conduta; a conduta em si constitui a
própria consumação típica envolvendo desrespeito de diretivas de ordem.
De outro lado temos os chamados delitos omissivos propriamente
ditos, por exemplo, o legislador descreve a conduta devida, como na omissão de
socorro
306
.
Dentre outras classificações, merece destaque, ainda, a quanto à
consumação ou resultado, da ação típica, onde se encontram os delitos
instantâneos e os permanentes, segundo uma consumação imediata ou um
prolongamento do momento consumativo, enquanto a conduta típica se
posterga
307
.
Assim, o bem jurídico tutelado, apesar de alguns não o incluírem
como elemento do tipo penal
308
, aparece presente em sua estrutura, visto que os
próprios fins do Direito Penal, dirigido à proteção de bens jurídicos, justificam
sua consideração
309
.
Temos, então, segundo uma relação com o bem jurídico, os tipos
penais de lesão, onde o bem jurídico, geralmente indicado expressamente no tipo
penal, fica sujeito a uma lesão ou violação como requisito para a consumação do
delito, e os tipos penais de perigo, onde para a consumação da ação típica basta a
criação de uma situação de risco para o bem jurídico.
304
Artigo 155, do Código Penal brasileiro.
305
LUISI, Luis. O tipo penal..., p. 49.
306
Artigo 135, do Código Penal brasileiro.
307
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad ...., pp. 83 ess.
308
A exemplo Edmund Mezger. MEZGER. Edmund. Derecho Penal: Parte General. 6ª edição. Tradução de
Sebastian Soler. Buenos Aires: Bibliográfica Argentina, 1944.
309
LUISI, Luis. Op.cit., p. 50.
123
IV – PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA SELEÇÃO DE
BENS JURÍDICO-PENAIS UNIVERSAIS E TIPIFICAÇÃO PENAL
Existem certos pontos de discussão que, nas avaliações do
presente estudo já restam aclarados.
Os bens jurídicos, com o desenvolver da historia, acompanharam a
evolução da realidade social que se instalou.
O patrimônio, as relações sexuais, a saúde pública, as relações de
consumo, o meio-ambiente, traduziram concepções e interesses existentes que,
de um ponto de vista estrutural e funcional não podem ser protegidos senão de
acordo com os princípios em que se funda o sistema.
Assim, as alternativas que estão plantadas para a problemática da
proteção de bens universais passam, primeiramente, por uma tipificação desta
modalidade de bens, de acordo com dois critérios a escolher:
a. os bens jurídico-penais seriam eleitos orientados pelos
princípios fundamentais do Direito Penal em uma modalidade garantista ou;
b. para a seleção de bens jurídico-penais adotar-se-ia um modelo
de Direito Penal eficaz, caracterizado pela funcionalização dos princípios de
Direito Penal através de uma política criminal efetiva.
Existem críticas a este segundo posicionamento, muito mais pelo
fato de que os Estados Sociais e Democráticos atualmente têm adotado, sem
resultados convincentes, uma variação deste modelo, no qual se estabelecem
124
confusões entre as categorias de bens jurídicos e as razões de tutela penal, as
quais não constituem propriamente bens jurídicos. Tal linha equivocada de
pensamento está dirigida a substituir o conceito de bem jurídico por outros
instrumentos técnico-jurídicos, mais alinhados com uma visão expansiva de
Direito Penal, desconsiderando os atuais princípios orientadores da estrutura
sistemática de intervenção penal
310
.
A conseqüência deste posicionamento desvirtuado leva a
proliferação de objetos fictícios de tutela penal, avançando para a opção da
incriminação de condutas, com a finalidade de abandonar os princípios
fundamentadores do Direito penal, sob a justificativa de acompanhar um
progresso econômico, social ou cultural, em um verdadeiro abuso com o
incremento de bens jurídico-penais.
A doutrina destinada ao abuso de bens jurídico-penais, em
especial de bens supra-individuais, leva a uma ampliação arbitrária dos limites
de intervenção punitiva do Estado na sociedade
311
.
Ainda para encerrar a crítica, uma política criminal alinhada com
as orientações de um Direito Penal como ultima ratio, primeiramente se sustenta
em definir com precisão os bens jurídicos supra-individuais, sem que ocorra uma
supressão da figura dos bens jurídicos, como propõe, dentre outros, o
funcionalismo de Günther Jakobs
312
, ou mesmo um desmantelamento do sistema
jurídico de garantias penais. Ao contrário, o que se busca é um aprofundamento
destas garantias através da materialização de um conceito de bem jurídico-
310
HASSEMER, Winfried. Il bene giuridico nel raporto di tensione tra constituzione e diritto naturale. Dei deliti
e delle pene, n° 1, ano II, gennaio-aprile 1984, p. 275 e ss.
311
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. “Los bienes jurídicos colectivos”. Revista de la Facultad de Derecho de la
Universidad Complutense de Madrid, monográfico 11, 1986, pp. 153 e ss.
312
O funcionalismo de Jakobs propõe muito mais uma busca de um Direito Penal dirigido à reafirmação e
proteção das normas jurídicas, do que propriamente à proteção de bens jurídico-penais. JAKOBS, Günther.
Fundamentos..., p. 184 e ss.
125
penal
313
, o que se pode entender extensivo também aos princípios
fundamentadores do Direito Penal.
Na verdade, o que se observa é que, frente a todo este panorama
de discussão sobre a opção por um modelo garantista ou por um Direito eficaz,
nenhum destes dois modelos poderão se afastar da necessária condução de um
processo de seleção de bens jurídico-penais supra-individuais.
O que se apresenta, após o reconhecimento de que a proteção
penal, informada pelos princípios orientadores do Estado Democrático de
Direito, assumiu o bem jurídico como limite ao Direito de punir do Estado, é que
este exercício de resposta penal passa pela criação técnica do fato punível penal,
após um processo de seleção de bens jurídicos dignos de proteção.
Todavia, para atingir uma resposta equilibrada e adequada, em
ambos os modelos apresentados, este processo de seleção deverá ocorrer
segundo uma orientação de princípios fundamentais.
Inevitavelmente, assim, a opção por um Direito Penal de
princípios, conduz a adoção de um posicionamento segundo parâmetros de
proteção exclusiva, intervenção mínima, subsidiariedade, fragmentariedade,
proporcionalidade e legalidade.
1. Princípio da proteção exclusiva de bens jurídico-penais e
tipificação de bens jurídicos universais
Quando envolvemos o ambiente, a saúde, a tutela das relações de
consumo, o patrimônio histórico e cultural, encontramos bens jurídicos vagos,
313
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. “Los bienes jurídicos colectivos”..., p. 163 e 164.
126
difíceis de individualizar; existe o perigo de comprometer uma visão segura
quanto à validade dos princípios fundamentais do sistema jurídico penal.
Assim, de uma necessidade de que em todo o tipo penal venha
referida a lesão ou o perigo de lesão a um bem jurídico, pode-se extrair um
Princípio, fundamentador do Direito Penal, de Exclusiva Proteção de Bens
Jurídico-Penais
314
.
Em conjunto com o princípio da intervenção mínima, desponta
este princípio com grande relevância no tocante a bens supra-individuais, pois
subordina intervenção do Direito Penal, não àqueles bens considerados como
dignos de uma proteção e regulamentação segundo outros ramos do Direito, mas
tão somente a determinados e concretos bens jurídicos e formas de ataque, que
tenham sido introduzidos na esfera penal.
Um princípio de proteção exclusiva de bens jurídico-penais,
apesar de surgir como garantia fundamental do Direito Penal moderno
315
,
também encontra outras denominações como princípio de ofensividade ou de
lesividade
316
, ou mesmo em referência à danosidade social
317
, ou ainda uma
definição fora da categoria de princípio, mas como uma missão conjunta com a
prevenção, em um caráter instrumental na proteção de bens jurídicos
318
.
Discutir este princípio é reconhecer que ele traz algumas questões
de fundo importantes e problemáticas.
314
Este princípio desenvolve-se segundo um raciocínio de que nem todo o bem jurídico requer tutela penal, não
se convertendo em um bem jurídico-penal. In: MIR PUIG, Santiago. Bien jurídico y bien jurídico penal como
limite del ius puniendi. Estúdios de Derecho Penal y Criminologia (XIV), 1991, p. 205; SILVA SÁNCHEZ,
Jesús Maria. Aproximación..., p. 227.
315
HASSEMER, Winfried. Il bene giuridico..., pp. 104/113.
316
CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Derecho penal: concepto y princípios constitucionales. 3ª Edición,
Valencia: tirant lo blanch, 1999, p. 215.
317
HASSEMER, Winfried. Fundamentos..., p. 38.
318
MORILLAS CUEVA, Lorenzo. Curso de Derecho Penal español. Parte Geral, Mdrid: Marcial Pons, 1996,
pp. 23 e ss e 53.
127
Primeiramente exige uma delimitação das considerações de
dignidade do Estado, em relação a bens jurídicos a serem protegidos, em
segundo lugar se o legislador ordinário recebe uma orientação sobre os limites
desta dignidade e, objetivamente, quais bens se adequam a esta realidade ou fica
a cargo deste legislador sua seleção.
Na verdade estes questionamentos acabam orientados, em Estados
Sociais e Democráticos de Direito, por uma direção restritiva constitucional
dirigida à seleção e criação de determinados bens jurídico-penais, em especial
quando se tratam de bens universais ou supra-individuais.
De outro lado temos que a materialização deste princípio nos
âmbitos de atuação de caráter geral e em relação aos princípios fundamentadores
do Direito penal, se revelam segundo a dogmática penal e a própria política
criminal, através do cumprimento de funções intra-sistemáticas e extra-
sistemáticas.
Em uma função intra-sistemática, revelam-se as operações de
dogmática, onde o princípio da proteção exclusiva de bens jurídico-penais sugere
uma interpretação teleológica dos tipos penais, segundo sua classificação e
ordenamento, bem como dos limites de pena impostos, em um verdadeiro
princípio de dogmática penal.
Já em relação à política criminal, a concepção limitadora ou
restritiva constitucional surge, ficando o princípio da proteção exclusiva de bens
jurídico-penais com uma função fora do sistema, extra-sistemática, em conjunto
com os demais princípios fundamentadores do Direito Penal, afastando os tipos
penais que realmente não protegem bem jurídico-penal algum e destacando,
quando se coloca como necessária, a introdução de um novo bem jurídico no
sistema penal de proteção.
128
Assim não pode o legislador punir condutas, reprimindo sua
realização ou obrigando que se realizem, ainda que dirigidas a bens jurídicos
universais, se não houver uma vinculação a uma prova de que resultam lesivas
para um bem jurídico-penal
319
.
A exigência de um bem jurídico como pressuposto para a própria
existência da norma, conduz o princípio da proteção exclusiva de bens jurídico-
penais a uma condição de limitador do poder punitivo do Estado, atendendo aos
reclamos de legitimidade e valor deste bem jurídico como um bem jurídico-
penal.
Isto quer dizer que, para considerarmos o bem jurídico como
digno de tutela penal enfrentamos duas vertentes: uma dignidade formal e outra
material
320
.
No tocante à dignidade formal, poderíamos considerar que, para
uma adequada seleção de bens jurídico-penais, um encaminhamento segundo a
Constituição de Estado Social e Democrático de Direito, esta considerada como
norma valoradora e orientadora do sistema de valores a serem tutelados, já afasta
uma qualquer idéia de considerar como satisfatórias tão somente de razões éticas
e de valorações sociais previstas no ordenamento jurídico, decorrentes de uma
orientação do modelo de Estado Liberal. Isto quer dizer que para uma seleção de
bens jurídico-penais, estes critérios são insuficientes.
Uma necessária reformulação dos critérios de intervenção punitiva
no Estado Social e Democrático passa pela conscientização de que suas funções
não estão restritas à tutela de bens jurídicos estritamente individuais, procedentes
de valores próprios de um Estado Liberal, ligados à liberdade e à propriedade
321
.
319
CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Derecho penal..., p. 215.
320
Ibid., mesma página.
321
CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Op. cit., p. 216.
129
A prevenção de condutas delitivas de maior significado, em uma
consideração formal, na seleção de bens jurídico-penais, acolhendo critérios
constitucionais valorativos por excelência, supera os limites jusnaturalistas e os
valores ético-culturais, como elementos satisfatórios para o legislador nesta
seleção
322
.
De outro lado, uma dignidade material dos bens jurídico-penais
eleitos passa, necessariamente, pela assunção social de um determinado valor
que resta submetido a ataques e lesões, sendo colocado em grave perigo e sujeito
a tutela penal, visto que uma valoração constitucional, por si só não é suficiente
para a configuração desta necessária tutela penal, ainda que o legislador
constitucional tenha realizado previsões expressa como, por exemplo, nas
hipóteses de meio ambiente; relações de consumo; família, criança, adolescente e
idoso
323
.
Estas previsões constitucionais devem ser vistas como uma
exigência de atuação exclusiva do Estado, mas de acordo com um caráter
subsidiário e de intervenção mínima do Direito Penal.
Condutas consideradas imorais, antiéticas ou antiestéticas que, de
nenhum modo possam ser consideradas como atentados ou perigo a liberdades
alheias, coletivas ou difusas, incidem em uma violação do critério de dignidade
material e, por conseqüência, devem ser impedidas de uma tipificação ou de
consideração penal
324
.
Um princípio de exclusiva proteção de bens jurídico-penais, ou de
ofensividade, repousa na visão do delito como uma ação contrária à norma de
322
MIR PUIG, Santiago. Sobre el principio de intervención mínima Del Derecho Penal em la Reforma Penal.
Revista de la Faculdad de Derecho de la Universidad de Granada, n° 12, 1987, pp. 243 e ss.
323
Artigos 225; 5°, inciso XXXII e 170, inciso V; 226, 227 e 230, todos da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988.
324
CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Derecho penal..., p. 217.
130
valor e assim como um critério determinante na tipificação ou não de condutas,
em especial, no caso, quando tratamos de bens jurídicos supra-individuais.
2. Princípio da Intervenção Penal Mínima e bens jurídicos
universais
A denominação do princípio da intervenção mínima não é pacífica
na doutrina. Para o mesmo foco de atenção fundamental, têm sido utilizados
termos como: “princípio da subsidiariedade”, “ultima ratio”, “princípio da
fragmentariedade”, “princípio da utilidade e da intervenção penal”, “princípio de
economia penal” e até mesmo “princípio de oportunidade”.
Não obstante todas as denominações, o princípio da intervenção
mínima pode ser identificado como uma especificação do princípio da
subsidiariedade do Direito em geral
325
.
Quanto ao princípio da subsidiariedade, sua existência remonta à
antiguidade pré-cristiana, acolhendo a denominação atual através da Teoria do
Catolicismo Social
326
.
Uma adequada concepção de sua orientação se dirige à máxima da
construção de uma sociedade com tanta liberdade quanto possível para seus
integrantes e com tanta intervenção estatal quanto necessária, relacionando a
325
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal de los bienes jurídicos colectivos. Madrid: Editorial
Dykinson, 2000, p. 105.
326
A abordagem a respeito das origens do princípio da subsidiariedade, bem como sua evolução conceitual em
uma teoria do catolicismo social, recebe uma ampla abordagem por parte de Arthur Kaufmann, que destaca,
particularmente, a Encíclica “Quadragésimo anno”, do Papa Pio XI, como precursora desta denominação,
destacando a subsidiarieade como um princípio representativo do catolicismo social em uma sociedade
secularizada. In: “Subsidiaritätsprinzip und Strafrecht, Grundfragen der Gesamten Strafrechtswissenschaft”,
Festschrift für Heinrich Henkel, Berlin: W. de G., 1974, pp. 89 a 92. Apud SANTANA VEGA, Dulce Maria. La
protección penal..., pp. 105/107.
131
subsidiariedade como um critério global segundo uma regra de competência do
sistema social
327
.
A intervenção do Direito Penal somente quando imprescindível
para a manutenção da ordem pública, exigindo garantias jurídicas especiais,
apresenta uma descrição do princípio da intervenção penal mínima como forma
de redução da intervenção do Direito Penal àquilo que seja estritamente
necessário em termos de utilidade social geral
328
.
Orienta-se pelo principado de utilizar-se da sanção e aplicação
penal somente quando a efetiva intervenção de meios menos lesivos como, por
exemplo, as medidas estatais de política social, o Direito Civil, o Direito
Administrativo, não produzir efeitos preventivos concretos. Daí o caráter
subsidiário do Direito Penal que deve sempre esperar por efeitos preventivos
similares aos seus, por parte de soluções alternativas menos gravosas.
A existência da aplicação do Direito Penal deve responder a um
princípio de intervenção mínima do controle social sobre o cidadão,
incrementando seus valores de certeza na aplicação da lei e nos efeitos sociais e
individuais que ela produz.
Operando principalmente no momento da configuração de tipos
penais, de acordo com uma necessária análise dos momentos e fatos, o
principado de intervenção mínima surge onde é possível cumprir-se uma
prevenção geral mediante a introdução de mecanismos de renúncia à pena ou
prescindindo da incriminação de determinados fatos que podem, muito bem, ser
satisfatoriamente tutelados através de sanções administrativas ou reparatórias de
natureza civil
329
.
327
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal..., p. 90.
328
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 246.
329
Ibid., p. 248.
132
A orientação pela intervenção mínima, segundo elementos ou
critérios de subsisdiariedade do Direito Penal, pode refletir dois campos de
abordagem.
Primeiramente teríamos uma subsidiariedade lato sensu, melhor
delineada no terreno da vitimodogmática, onde o Direito Penal não se apresenta
como subsidiário tão somente em relação a outros ramos do Direito, mas também
com relação a medidas de autoproteção da vítima, em uma aplicação do princípio
da subsidiariedade para muito além da incriminação de condutas
330
.
Tal perspectiva envolve a distribuição de responsabilidades,
segundo critérios de competência, onde por um lado podemos visualizar uma
vítima que, através de seus atos antes e durante o desenvolver da ação criminosa
acaba por suportar certa responsabilidade pelo ocorrido
331
que, de um lado, pode
ser vista como uma sobrecarga de responsabilidade que não lhe pertence
332
e, por
outro lado, segundo uma percepção moderna respeito das teorias da
autocolocação da vítima em risco e da imputação objetiva
333
.
Trata-se de verdadeiro processo de limitação do âmbito de
proteção do bem jurídico tutelado pelo tipo penal, bem como da própria margem
de liberdade na disponibilização deste bem, por parte do sujeito a quem, em tese,
a proteção ao bem jurídico é destinada, em um verdadeiro “princípio de auto-
responsabilidade”
334
.
330
SILVA SANCHÉZ, Jesús-Maria. Perspectivas sobre la Política criminal moderna. Buenos Aires: Depalma,
1998, p. 143 e ss; p. 183 e ss.
331
Aqui podemos estacar a referência que a doutrina em geral faz aos casos de crimes contra os costumes, onde
mulheres, por exemplo, optando pelo uso de vestes provocante em locais ermos ou de trânsito costumeiramente
perigoso, estariam incrementando o risco da ocorrência de uma conduta delituosa, sem que isto importe em
falarmos de uma ausência de tipicidade. No mesmo sentido, delitos contra a pessoa, como o perigo de contágio
de moléstia grave nos casos de relações homossexuais.
332
SILVA SANCHÉZ, Jesús-Maria. Op. cit., p. 154 e ss.
333
Sobre o tema, importante destaque para a profunda obra de Alessandra Orcesi Pedro Greco: A autocolocação
da vítima em risco. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2.004.
334
BUSTOS RAMÍREZ, Juan; LARRAURI, Elena. Victimología: presente y futuro. Hacia un sistema penal de
alternativas. Barcelona: PPU, 1993, p. 26 e ss.
133
De outro lado temos o princípio da intervenção mínima,
acompanhando uma “subsidiariedade stricto sensu”, onde a intervenção penal
estatal se esgota na criminalização, ou não, de condutas, sem fundamentar
pretensões vitimodogmáticas, em especial no momento de aplicação dos tipos
penais
335
.
Sob este campo de visão stricto sensu, é que um Direito Penal
orientando pela intervenção mínima na tutela de interesses supra-individuais se
torna efetivo.
Toma-se o bem jurídico tutelado, segundo um exame individual da
norma penal regulamentadora e das sanções penais concretamente impostas, para
uma análise de acordo com a possibilidade do cumprimento de idêntica função
desempenhada pelo Direito Penal, caracterizada em especial pela função
preventiva geral, através da aplicação de uma pena menos severa, através da
introdução de elementos de renúncia à pena ou ao processo
336
ou, até mesmo,
prescindindo de uma criminalização do fato, na condução de sua tutela à esfera
das sanções administrativas reparatórias e indenizatórias civis
337
.
Assim, a cada alteração legal, com aumento dos limites de sanção
impostos a um delito, merece destaque, de acordo com o princípio da
intervenção mínima, um questionamento sobre sua necessidade, segundo esta
ótica de pensamento.
Em fim, não significa que, em especial em se tratando de bens
supra-individuais, devamos prescindir do Direito Penal. Não se trata de uma
concepção abolicionista, mas a defesa de um mínimo de intervenções possíveis
335
SILVA SANCHÉZ, Jesús-Maria. Perspectivas..., 1998, p. 161 e ss.
336
Uma solução procedimentalizada, segundo um pensamento moderno de um Direito Penal voltado para a
ciência social, envolvendo alternativas com características similares ou da mesma natureza daquelas envolvendo
a transação penal e a suspensão condicional do processo, previstas na Lei 9.099/95, são exemplos concretos de
um princípio de intervenção mínima através de uma solução alternativa de conflitos penais.
337
SILVA SANCHÉZ, Jesús-María. Aproximación..., p. 248.
134
para possibilitar uma tutela mais efetiva do máximo de bens jurídicos dignos,
necessitados e suscetíveis de proteção penal
338
.
2.1. Justificativa constitucional
O Direito Penal como ultima ratio, seja sustentado
constitucionalmente por uma derivação do princípio da proporcionalidade, como
elemento que administra quantitativamente e qualitativamente a existência de
penas, bem ainda como conseqüência do princípio da prevalência do status
libertatis
339
, aparece como representação de um preceito de liberdade, como
regra geral para todo o cidadão, e da sanção, restrição, prisão, como exceção ou
última opção.
Trata-se de considerar o princípio do in dúbio pro libertate, como
uma regra de não penalização de acordo com um máximo de liberdade possível,
ou uma criminalização de condutas somente dirigida àquelas socialmente
danosas
340
.
O princípio da intervenção mínima, reconhecendo um Direito
Penal segundo a subsidiariedade, busca a validação dos direitos fundamentais,
em especial da liberdade, com a restrição de normas jurídico-penais em uma
interpretação de acordo com a Constituição.
A preponderância da liberdade sobre a lei limitadora de liberdade,
resta demonstrada na necessidade de fundamentação e justificação da existência
338
CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Derecho penal..., p. 204.
339
Artigo 5°, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, como exemplo da liberdade destacada no
capítulo que regulamenta direitos e garantias fundamentais, apesar da expressão de seus respeito e proteção como
princípio basilar do Estado Social e Democrático de Direito aparecer em inúmeros outros dispositivos
constitucionais.
340
HASSEMER, Winfried. Fundamentos..., p. 39 e ss.
135
de um perigo, claro e indiscutível, à vida em comum, orientada pelos valores
constitucionalmente eleitos, onde, para a configuração de qualquer tipo penal
prevalece a interpretação da lei segundo um in dúbio pro libertate , que acolhe a
adequação social como orientação, no desenvolver do processo penal uma
produção de acordo com o princípio do indubio pro reo, e na fase de execução
penal, uma aplicação de pena com fundamento no princípio da ressocialização
341
.
Assim, afastar posicionamentos de que o princípio da
subsidiariedade do Direito Penal, no tocante à proteção de bens jurídicos, deva
ser visto como um elemento de política criminal
342
, pois deixaria amplas
margens para a atuação do legislador, se torna adequado, pois sua existência
como exigência constitucional derivada do direito fundamental à liberdade, em
um respeito ao conteúdo essencial da Constituição por parte das leis penais,
aparece como muito mais satisfatório e representativo dos valores fundamentais
eleitos pela sociedade do Estado Democrático de Direito.
2.2. A subsidiariedade e a fragmentariedade como princípios
A atuação punitiva e limitadora do Estado, apresentada em
consonância com um princípio de intervenção mínima, acabam por acolher duas
conseqüências para a configuração de bens jurídicos supra-individuais,
envolvendo a subsidiariedade e a fragmentariedade, quase que como sub-
princípios.
341
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal..., pp. 113 e 115.
342
ROXIN, Claus. Derecho Penal...,p. 25 e 26.
136
2.2.1. O princípio da subsidiariedade
A subsidiariedade surge como princípio orientador das atividades
do Estado em uma atuação punitiva, indicando que sua intervenção somente
deve ser aceita quando reconhecidos como ineficazes os demais meios de
contenção de ilícitos, em um critério decisivo para reduzir os tipos de crimes
343
.
Em uma concepção externa ou exteriorizada de subsidiariedade do
Direito Penal
344
, identificamos um roteiro adequado às medidas concretas de
intervenção do Estado.
Poderíamos destacar, primeiramente, a utilização de recursos do
Estado, destinados a políticas públicas de prevenção, educação e adequação
sócio-cultural-econômica, para combate a criminalidade de massas, como no
caso de combate aos entorpecentes, em uma política criminal preventiva.
Superada a instância, sem o sucesso esperado destas medidas,
buscam-se meios sancionatórios outros que não os penais localizados nos demais
ramos do direito, como as sanções administrativas e as medidas indenizatórias.
Restando, também, ineficazes estas alternativas, não assegurando
a estabilização do contexto social, só então o Direito Penal acaba legitimado
para intervir na sociedade, com a legitimação da necessidade social e da paz
pública
345
.
De outro lado, em uma subsidiariedade destacada pelo elemento
interno ou dirigida ao próprio Direito Penal, operacionalizada apenas quando
verifica a ineficácia dos meios alternativos de garantia de vida digna e paz social,
343
ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais..., p. 57 e ss.
344
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal...,p. 118 e ss.
345
ROXIN, Claus. Op. cit.,p. 28 e ss.
137
o processo de autocrítica, desencadeado pela limitação do princípio da
intervenção mínima, também ocorre.
Não se trata de um processo destrutivo do Direito penal, mas uma
revitalização de suas bases, segundo um Direito Penal voltado para o ser
humano, nunca um abolicionismo
346
.
Este processo interno de redimensionamento de bases importa na
adoção de instrumentos eficazes, na determinação expressa de condutas puníveis
e de castigos adequados.
Trata-se de limitar às hipóteses expressamente previstas na lei a
punição de condutas culposas, por exemplo.
Assim, qualquer aplicação de cláusulas genéricas de
criminalização de condutas culposas, que conduz o intérprete da lei a verificar a
possibilidade ou impossibilidade técnica de ações culposas em cada uma das
figuras típicas, resta afastada ou substituída por hipóteses expressamente
limitadas pelo legislador
347
.
Especificamente no tocante aos bens jurídico-penais de natureza
supra-individual, um desejo globalizado pela erradicação das condutas culposas,
tipicamente previstas na legislação penal, decorre do fato de estes tipos penais
ampliarem excessivamente a intervenção punitiva do Estado, muitas vezes para
evitar problemas de delimitação entre o que a doutrina denomina de culpa
consciente e dolo eventual
348
.
Outra vertente deste procedimento interno de subsidiariedade, diz
respeito à limitação, apenas aos casos expressamente previstos, das punições a
atos preparatórios.
346
SILVA SANCHÉZ, Jesús-María. Aproximación..., p. 18 e ss.
347
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal..., p. 126.
348
Ibid., p. 127.
138
A supressão de qualquer sistema de tipificação genérica de atos
preparatórios, envolvendo a instigação ao delito, a simples organização com a
finalidade de delinqüir, sem que nenhum efeito seja produzido, também pode ser
visto como uma representação de um controle de subsidiariedade interno do
Direito Penal.
Também a ausência de punição às condutas tentadas, no tocante
aos delitos envolvendo a proteção de bens jurídico-penais universais, ante um
critério de insignificância, também encontra guarida entre o grupo de
instrumentos ora declinado.
Ao lado destes elementos poderíamos destacar outros como a
incorporação de elementos subjetivos ao tipo penal, que surge como mecanismo
de retardação da intervenção penal, com a necessidade da realização de uma
parte subjetiva para a configuração do tipo penal
349
, e acaba por receber especial
significado em se tratando de bens jurídico-penais supra-individuais.
Ocorre que através dos elementos subjetivos do tipo o legislador
pode dosar os limites de intervenção penal, introduzindo especiais finalidades
para o perigo produzido pela ameaça aos bens jurídicos universais. Podemos
destacar hipóteses em que o objetivo destina-se a estabelecer crises no mercado
financeiro, como os crimes contra as finanças públicas, causar epidemias ou
situações de pânico na administração da saúde pública, como no envenenamento
de água potável, atingindo a paz pública e a moral, como nas hipóteses dos
crimes contra o respeito aos mortos.
A incorporação de condições objetivas de punibilidade e de
procedibilidade, também preenche o espaço destinado a este controle interno de
subsidiariedade.
349
MIR PUIG, Santiago. Derecho penal..., p. 261.
139
Quanto aos elementos objetivos de punibilidade destacaríamos
critérios de conveniência e política criminal, adotados pelos legisladores na
persecução penal específica de determinadas fatos, como a sentença declaratória
da falência no crime falimentar, o resultado morte ou lesão grave no delito de
induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio
350
.
Já em relação a condições de procedibilidade, a própria queixa-
crime e a representação, nos delitos de ação penal privada ou de ação penal
pública condicionada, respectivamente, convertem-se em opção de acesso ou
restrição de acesso à tutela penal do estado, ficando os interesses da sociedade
em geral, submetidos ao interesse da vítima, como representante maior do dano.
Outros instrumentos também merecem menção.
A presença de escusas absolutórias, isentando o agente de pena
por expressa determinação legal, como nas hipóteses de delitos patrimoniais
praticados em detrimento de parentes
351
. Razões de conveniência e solidariedade
para com a família aliadas há razões político-criminais, como a preservação dos
interesses públicos podem ser usadas para limitar a atuação do Direito Penal.
Podemos ainda citar os limites monetários e os limites de
maioridade penal. Os limites monetários conduzem o ilícito administrativo para
a esfera penal, ou seja, até certos limites financeiros o ilícito mantém-se na esfera
de sanção extrapenal. Atingindo de forma mais significativa, monetariamente, a
sociedade, passa ou pode passar aquela conduta a uma persecução de natureza
penal. Na mesma linha os limites de idade, em especial a maioridade ou
menoridade penal, que impede a aplicação da intervenção penal a menores de
dezoito anos, os quais, ainda assim, acabam por sofrer uma intervenção estatal,
mas na esfera da tutela de interesses da criança e do adolescente.
350
Artigo 122 do Código Penal brasileiro,em que a aplicação de pena fica condicionada a estes elementos.
351
Artigo 181, do Código Penal brasileiro.
140
2.2.2. O princípio da fragmentariedade
Respondendo por parcela da definição de um Direito Penal
segundo o princípio da intervenção mínima, o princípio (ou sub-princípio) da
fragmentariedade aparece como um produto para a seleção de bens jurídico-
penais
352
.
Segundo o princípio da fragmentariedade somente as modalidades
de ameaças e ataques mais graves aos bens jurídico-penais devem ser
consideradas como fatos penalmente relevantes
353
.
Concorrem junto a este princípio elementos de proporcionalidade
e de utilidade ou necessidade.
Tal fato permite concluir que uma despenalização de condutas,
com conseqüente condução a outro ramo do Direito, que não o Penal, para a sua
tutela, pode ser a resposta adequada a uma sanção penal inadequada,
desnecessária ou mesmo desproporcional.
Acaba desta forma, o princípio da fragmentariedade, ainda que
representante de um Direito Penal Mínimo, submetido a uma variante de tempo,
que envolve, por exemplo, na solução para a persecução penal de atentados a um
bem jurídico-penal, que não esteja em destaque ou com maior relevância no
âmbito de proteção jurídica penal, a criminalização somente de ações
consumadas na forma omissiva, por exemplo.
352
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal..., p. 137.
353
MIR PUIG, Santiago. Introducción a lãs bases Del Derecho penal. Concepto y Método, Barcelona: Bosch,
1976, p. 126 e ss.
141
Como expressão da adoção do Direito Penal como ultima ratio, o
princípio da fragmentariedade não é mais que um processo de seleção de bens
jurídicos e de condutas lesivas ou que possam lesar os mesmos, que
pretensamente poderiam ser consideradas no campo da proteção e repressão
penal.
Evidentemente que este processo de seleção conduz, também, à
criação de diferentes formas de proteção de bens jurídico-penais.
Poderíamos identificar a criação de tipos penais que não
estabelecem uma proteção completa do bem jurídico, distanciando-se da
tipificação de todas as condutas que ameacem este bem jurídico, proporcionando
a identificação de apenas algumas modalidades de condutas que mereceriam uma
repressão penal.
De outro lado, com relação ao próprio ordenamento jurídico, este
processo de fragmentariedade do Direito Penal surge com a identificação de que
somente uma pequena parcela da antijuridicidade constitui, verdadeiramente,
uma antijuridicidade penal
354
.
Esta pequena parcela envolve os casos de lesão patrimonial
decorrente, por exemplo, de um processo falimentar ocasionado por gestão
desleal, fraudes à execução e a credores, descumprimento de contratos onde a
princípio determinadas ações acabam isentas de qualquer pena.
Por fim, sobre um terceiro ângulo de visão, a fragmentariedade do
Direito Penal enfrenta a sua manifestação através de um processo de exclusão de
condutas consideradas meramente imorais, como a falta de educação e postura
moral e a utilização de mentiras, distanciando-as de qualquer tipo de apenação.
Com a fragmentariedade apresenta-se um rol de proteção penal
incompleto, mas jamais estanque.
142
Não obstante uma seleção de condutas, segundo critérios de
fragmentariedade, a eleição de condutas puníveis e de bens jurídico-penais passa
por uma conexão com a própria evolução social, afastando conceitos e valores
superados socialmente, sem impedir a assunção de novos, como na hipótese dos
bens jurídicos supra-individuais, em uma verdadeira exclusão daqueles bens que
deixaram de cumprir os pressupostos decorrentes do princípio da intervenção
mínima, em favor de novos bens e valores dignos de proteção penal
355
.
3. O princípio da culpabilidade e os bens jurídicos universais
Antevisto como norteador do próprio Direito Penal, como sendo
um de seus princípios orientadores, a culpabilidade aparece com concepções
diversas na doutrina.
Considerando-a como princípio que somente assume posição de
limitador das possibilidades de intervenção jurídica do Estado na sociedade,
através da incidência de outros princípios correlatos, de natureza político-
criminal, como a funcionalidade, ou de natureza jurídico-política, como a
proporcionalidade, a culpabilidade, dentro desta concepção, é vista como um
produto, uma síntese dos diversos objetivos a que se destina o Direito Penal
356
.
É sob esta ótica que podemos reconhecer, em sentido amplo, que o
princípio da culpabilidade aparece como um ponto básico na imposição da
reprovação penal, segundo uma política criminal que está diretamente ligada à
354
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal..., p. 137.
355
Ibid., mesma página.
356
SILVA SANCHÉZ, Jesús-María. Aproximación..., p.294.
143
missão do Direito Penal de proteção e revalidação de bens jurídicos penalmente
eleitos
357
.
Exige o reconhecimento da existência de um elemento subjetivo
do delito, apresentando que a ação, como fato ou comportamento humano
valorado, somente pode ser assim reconhecida se decorrente de uma decisão. E,
em assim sendo, estas ações somente poderiam estar sujeitas a uma reprovação
penal do Estado, quando identificada consciência e vontade de seus autores
dotados de capacidade de entendimento e liberdade de escolha
358
.
Neste sentido, como um princípio de política criminal, a
culpabilidade pode ser recebida como um limite claro à intervenção estatal,
diante de sua natureza informativa em um modelo de Estado Democrático e
Social de Direito, que é fundamentado pela dignidade da pessoa humana. A
determinação da reprovação penal ao autor de um fato típico e antijurídico é
elemento essencial na busca pela limitação do poder de punir do Estado. Trata-se
de uma clara demonstração de que, em determinadas ações antijurídicas, a
realização de condutas segundo um tipo penal merece a incriminação, bem como
a imposição de pena, com uma única justificativa plausível: a proteção do bem
jurídico-penal
359
.
A culpabilidade pode ser reconhecida, então, como um elemento
conceitual essencial, um juízo, para a justificação de uma reprovação penal e,
assim, para a própria legitimação do exercício do poder de punir do Estado.
Despontando do sentido clássico de dolo e culpa stricto sensu,
com uma função estritamente retributiva, a partir da adoção da teoria finalista do
357
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Culpabilidade..., p. 217.
358
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2002, p.
390.
359
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Op. cit., p. 225.
144
injusto penal
360
, com acolhimento de elementos subjetivos no tipo, o princípio da
culpabilidade acabou por acolher, primeiramente, uma forma indicadora de
pressupostos para a reprovação de uma conduta típica
361
.
Neste sentido aparece a culpabilidade vinculada a critérios de dolo
ou imprudência, em uma conexão do sujeito com o fato injusto, como um
mecanismo essencial para a formação de uma cultura jurídico-penal
362
.
Posteriormente, através de elementos decorrentes de uma visão
político-criminal, a culpabilidade alcançou segundo uma posição funcionalista
teleológica, uma função de prevenção
363
.
De acordo com um posicionamento funcionalista normativo
364
, a
culpabilidade pode ser estabelecida com uma finalidade preventiva geral, com a
missão de identificar qual a motivação do autor para agir contrariamente ao
Direito onde, ao não cumprimento da norma, é imputada uma culpabilidade
evidenciada na pena. Com uma função estabilizadora do ordenamento jurídico.
De qualquer forma, melhor considerarmos que a representação, ou
materialização da constatação, de que determinado agente deve e merece ser
reprovado por um fato reprovável que, em regra, pode ter desencadeado, é a
própria expressão do princípio da culpabilidade.
A reprovação de condutas típicas e antijurídicas indica uma
interiorização no sistema, da proteção de determinado bem jurídico que, na
ausência de culpabilidade destas condutas, como limite normativo do
reconhecimento da necessidade de uma pena, aparece como uma forma de
seleção da atuação penal do Estado
365
.
360
TAVAREZ, Juarez. Teoria do Injusto Penal..., 2.000.
361
Destacando o finalismo segundo Hans Welzel: CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação..., p. 114.
362
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal..., p. 152.
363
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação..., p. 114 - Destacando a política criminal de Claus Roxin.
364
Ibid., mesma página - Destacando o funcionalismo de Günther Jakobs.
365
MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal..., p. 171 e ss.
145
Assim, a prevalência do princípio da culpabilidade no Direito
Penal se projeta através da fundamentação constitucional, como já destacamos,
derivando de elementos de dignidade da pessoa humana e de segurança jurídica
na reprovação penal, onde a apresentação de um denominador comum entre estes
elementos, identificado na busca do valor fundamental da liberdade, surge como
justificativa aos ideais de paz social que são desejados.
Fortalecer com a maior proteção possível valores fundamentais,
com um mínimo de repressão e sacrifício da liberdade, deve ser considerado
como seu objetivo.
366
Uma conseqüência desta visão conceitual do princípio da
culpabilidade no Direito Penal, em especial conduzindo à discussão sobre a
proteção de bens jurídicos universais, é a indicação da opção da imputação
objetiva do resultado lesivo à determinada conduta perpetrada pelo denominado
sujeito ativo, como um pressuposto da culpabilidade, em um Direito Penal
motivado por esta nova modalidade de bens.
A explicação da causalidade e da periculosidade, agora dentro de
um contexto social, assume um processo de substituição desta relação de
causalidade pela imputação objetiva, destacada de concepções funcionalistas que
acreditam não ser possível o reconhecimento de uma causalidade em fenômenos
sociais, visto que envolvem basicamente relações de interação sem possibilidade
de estabelecimento de antecedentes e conseqüentes, senão de condutas
367
.
Seria ilógico pretender esgotar a questão da culpabilidade e da
imputação objetiva neste momento, até porque a expressão de sua manifestação
no Direito Penal como resposta limitadora no tocante aos bens jurídicos supra-
individuais passa primeiro pela sua característica definidora de afetação de uma
366
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal..., p. 147.
146
pluralidade de pessoas e, em segundo, de forma mais concreta, pela necessidade
de serem estabelecidos inúmeros vínculos causais entre agentes e objetos de
tutela para sua materialização
368
.
O que se busca, ao momento, é tão somente estabelecer que
existem parâmetros para a discussão dos efeitos de um estudo dirigido à
determinação da relação de causalidade na responsabilidade pelo produto, diante
de ações objetivas imputadas ao agente, bem como garantias outras derivadas da
concretização de uma efetiva tutela de bens jurídicos supra-individuais.
Portanto, uma concepção da relação entre a culpabilidade e a
imputação objetiva pode ser considerada segundo a possibilidade desta última de
verificar, ainda que de uma maneira limitada, a necessidade e a
proporcionalidade da reprovação a ser imposta, de acordo com princípios
orientadores de um Direito Penal moderno que busca a satisfação de expectativas
de determinado grupo social, com a reafirmação de valores vigentes em um
Estado Social e Democrático de Direito
369
.
Seguindo esta linha de pensamento, podemos destacar, no tocante
aos bens jurídicos universais, um especial enfoque onde, em materializando
nestes bens uma moderna parcela de proteção jurídico-penal, com uma
reprodução da realidade social atual, levando-se em consideração os valores
elementares e condicionadores de cada grupo, a culpabilidade aparece como
permissão de reprovação de condutas que se portam contrárias a estes valores
vigentes, em uma seleção de fatos juridicamente relevantes.
367
BUSTOS RAMIREZ, Juan. La imputación objetiva. Teorias actuales em el Derecho penal. Buenos Aires:
Ad-Hoc, 1998, p. 212.
368
A questão acaba abordada de forma mais eficaz, em especial em delitos que afetam a saúde pública, nos
estudos realizados em casos práticos, relacionados como responsabilidade pelo produto. In: HASSEMER,
Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., 1995.
369
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação ..., p. 116.
147
Para a proteção dos bens jurídicos supra-individuais, a verificação
da relevância penal dos fatos encontra no princípio da culpabilidade a
representação de um elemento fundamental para a materialização da reprovação,
bem como para todos os demais elementos do crime: a comprovação da
consciência da ilicitude
370
.
De forma natural destaca-se também na culpabilidade um caráter
normativo do fato.
Conotada pela relação de causalidade, pela imputabilidade e pela
intencionabilidade, resta composta exatamente por aqueles elementos
indispensáveis ao fato, para acabar ficar sujeito a um juízo de reprovabilidade,
indicando a responsabilidade de alguém que devia e podia ter atuado de outra
forma
371
.
Quanto ao estabelecimento da relação entre critérios de
culpabilidade e a proteção jurídica dos bens supra-individuais, seguindo esta
orientação normativa, encontramos um juízo deôntico da culpabilidade,
envolvendo a relação entre elementos objetivos e subjetivos do fato delituoso,
que não podem ser separados ou contrapostos.
Estes elementos definem a qualidade jurídica da ação e não de seu
autor, em uma conexão proporcionada pela culpabilidade, vista como uma
modalidade deôntica de conotações psicológicas.
Isto ocorre porque, como possibilidade de atuar e não de ser, esta
conexão não impede a responsabilização de uma conduta, restando a aferição dos
graus de responsabilidade de cada autor, ou melhor, de agir culpável, a uma
370
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação ..., p. 133.
371
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 399.
148
dedução de limites da culpabilidade, segundo, agora sim, elementos subjetivos
de moralidade, antecedentes, personalidade, dentre outros
372
.
Mantém a orientação a respeito da culpabilidade como elemento
do fato, alcançando assim sem maiores dificuldades a violação a bens universais,
segundo a possibilidade de ações ou omissões, imputadas à voluntariedade
materializada de uma intenção ou de um objetivo fático concreto.
Não se pode deixar de destacar os elementos negativos de
culpabilidade, ou excludentes, onde diametralmente opostos ao livre arbítrio do
agente, não existe a possibilidade da omissão ou recusa na ação, ou a não
exigibilidade, decorrente de uma impossibilidade de atuação diversa, em uma
“inexigibilidade do impossível”
373
, que na verdade deve ser considerada como
uma inexigibilidade “estatal” de conduta diversa.
4. O princípio da proporcionalidade e os bens jurídicos
universais
A otimização de uma abordagem sobre o princípio da
proporcionalidade emprega certa dificuldade.
Objeto de análises profundas
374
, ainda que tão somente sob seu
critério como condutor de política criminal, o princípio da proporcionalidade
372
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 400.
373
Apesar de extremada, esta expressão da tradução da obra de Ferrajoli nos conduz a uma boa idéia da
percepção que podemos ter das excludentes objetivas como o estado de necessidade, a legítima defesa e o estrito
cumprimento do dever legal. In: Ibid., p. 400.
374
Além de fazer constar como princípio obrigatório de abordagem em quase uma totalidade de obras que tratam
do Direito Penal como ciência aplicada, da pena e suas variantes ou, ainda, da reprimenda penal e da colisão de
direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade é também analisado inúmeras vezes de forma destacada
de uma contextualização mais ampla de Direito Penal, como no caso da obra de
149
assume um vínculo direto com a própria pena, em se considerando um caráter
estrito senso em sua abordagem.
Como manifestação do poder em um Estado Democrático, o
princípio da proporcionalidade surge como instrumento capaz de captar a
sensibilidade popular às violações de normas, bem como a valorização social
racional do próprio sentido das penas.
Neste sentido, aliás, a própria a Constituição Federal brasileira
375
quando no apropriado dimensionamento de tratamento mais ou menos severo a
determinadas infrações penais, segundo um grau de valorização de sua gravidade
ou de sua menor potencialidade, a adoção inequívoca da “reserva legal
proporcional”
376
.
A mitigação ou valorização de princípios de legalidade estrita ou
de disponibilidade, no exercício da ação penal, também são expressões
indiscutíveis do princípio da proporcionalidade como titular de uma orientação
de política criminal.
Assim, podemos encontrá-lo como um critério regulador de
caráter geral, que carrega uma postura de transcendência social
377
, buscando uma
moralidade socialmente útil, estabelecendo conceitos em termos de
preeminência, visando dirigir o Direito Penal para o que é socialmente danoso e
não para o que é moralmente reprovável.
Para obter uma determinação arraigada em valores e princípios,
afasta-se o limitado campo de atuação do positivismo jurídico, reconhecendo um
Mariângela Gama de Magalhães Gomes: O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal, São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2003.
375
Art. 5
o
, inciso XLIII, e art. 98, inciso I, ambos da Constituição da República Federativa do Brasil.
376
GRINOVER, Ada Pellegrini, et. alli. Juizados Especiais Criminais – comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995,
Editora Revista dos Tribunais, 3
a
. edição, São Paulo, 1999, p. 37.
377
MIR PUIG, Santiago. Introducción..., p. 158 e ss.
150
princípio de proporcionalidade como integrante de uma proposta de sistema
aberto, ou seja, presente, mesmo que indiretamente, em todo o ordenamento
jurídico, através do reconhecimento da existência de contraposições jurídicas
admissíveis, como regulador de conflitos na aplicação dos próprios princípios
inerentes ao Estado Democrático de Direito
378
.
Em relação aos bens jurídicos universais, o destaque dentro do
âmbito de atuação do princípio da proporcionalidade está diretamente ligado ao
seu caráter estrito de determinação de uma pena adequada e “proporcional”.
O princípio da proporcionalidade aparece com uma carga
regulatória de limites de tratamento e de interesses ressocializadores, a ele
integrados, ofuscando ou afastando uma ineficácia na curta ou na longa duração
de uma pena, por assim dizer, que poderia ser “desproporcional”.
Para dimensionar sua presença na determinação, seleção e
aplicação de penas no campo dos direitos universais, podemos assumir a
delimitação do princípio da proporcionalidade por classes de atuação
379
.
4.1. Princípio da proporcionalidade abstrata ou legislativa e
da proporcionalidade concreta ou judicial
No âmbito da proporcionalidade abstrata ou legislativa, teríamos o
princípio atua diretamente no momento da configuração do próprio tipo,
estabelecendo modalidade de reprimenda, penas entre máximos e mínimos
378
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional..., p. 80.
379
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal..., p. 182 e ss.
151
admitidos, sanções alternativas, sempre com base na devida necessidade de
equivalência entre o que seria antijurídico, culpável e punível.
Neste momento se estabelece a relação direta de intervenção, onde
o Direito Penal enfrenta a comparação de critérios de necessidade, eficácia e
validade, com relação a outras modalidades de Direito sancionador, como o
Administrativo, em uma valoração da gravidade dos fatos examinados, com o
objetivo de afastar excessos de tratamento penal de figuras cujo deslinde de seu
âmbito natural de soluções, são muito melhor identificados no âmbito extra-
penal, em verdadeira aplicação do princípio da ultima ratio
380
.
Já no campo da proporcionalidade judicial, o operador do direito,
na fase de individualização da pena ou reprimenda, procedendo à sua
concretização, obtém patamares adequados e satisfatórios para a imposição,
através de um critério de valores proporcionais, em uma proporcionalidade
concreta.
Podemos, então, definir que o equilíbrio na aplicação do princípio
da proporcionalidade, neste aspecto, está ligado diretamente a campos
específicos de criação e ingerência dentro sistema.
Um primeiro campo onde a proporcionalidade abstrata é dirigida
com um caráter mandatário diretamente aos cidadãos e a concreta ao sistema
judicial.
De outro lado, a abstrata atingindo fins de prevenção geral e a
concreta de prevenção especial.
E, por último, onde a proporcionalidade abstrata decorre de uma
ingerência direta a independente do Poder Legislativo, enquanto que a
proporcionalidade concreta impõe aos órgãos judiciais esta atuação.
380
ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais..., p. 28.
152
Ao legislador incumbiria uma tarefa de reconhecer uma proibição
de excesso na criminalização de condutas de escassa relevância, bem como uma
prerrogativa de valoração, com espectro de dever constitucional, na busca de
limites e meios adequados para alcançar êxito na imposição de reprimendas
381
.
De outro lado, à jurisprudência restaria a aplicabilidade adequada
destes limites ao caso em concreto.
4.2. Princípio da proporcionalidade qualitativa e da
proporcionalidade quantitativa
Em outros limites, encontraríamos uma proporcionalidade
qualitativa, onde na determinação da reprimenda impera uma análise seletiva de
bens ou classe de bens jurídicos dos quais seriam privados os infratores,
configurando a restrição à liberdade de ir e vir, de contratar, de dispor livremente
de seus bens, dentre outras.
O campo qualitativo da proporcionalidade indica um ramo de
política criminal, destinado a afastar excessos e imposições ineficazes, buscando
características reparadoras sociais, muito mais adequadas que simples
reprimendas sem seleção.
Com relação à proporcionalidade quantitativa, os limites de
quantidade em relação a uma maior ou menor gravidade da infração.
Surgem como dois elementos básicos da proporcionalidade
administrativa, onde primeiramente o legislador seleciona a sanção e
posteriormente seus limites máximos e mínimos.
381
ROXIN, Claus. Derecho Penal..., pp. 24 e 25.
153
4.3. Princípio da proporcionalidade externa ou por conexão e
da proporcionalidade interna
Podemos também identificar critérios classificatórios de
proporcionalidade externa e interna.
No campo interno de proporcionalidade, temos a necessidade de
estabelecimento e respeito a critérios de correlação, existentes entre ação ilícita e
reprimenda, na própria configuração do tipo, o que nos parece o critério lógico
de concepção e criação de tipos repressores.
Enfoque diferente cabe à proporcionalidade externa ou por
conexão.
Na proporcionalidade por conexão, o âmbito de atuação é
legislativo, onde se realiza a organização, segundo critérios de valoração, da
identificação de um tipo penal em concreto, com outros que possuam uma
mesma concepção de proteção jurídica, selecionando-os por capítulos, títulos ou
seções, em uma operação de ordenamento de importância e complexidade de
bens jurídicos tutelados.
Observados os parâmetros de importância destes bens jurídicos,
segundo critérios sociais de tempo e lugar, passando-se à identificação de
diferentes graus de ofensa a estes mesmos bens, após uma análise de
potencialidade lesiva, ou seja, uma análise do nível de dano a que ficam sujeitos
em razão da conduta identificada, poderá, então, definir uma espécie de
reprimenda. Em seguida, definida a reprimenda, esta sugere o estabelecimento de
limites máximos e mínimos, sempre considerando a ocorrência de consumação
ou tentativa, o grau de participação, a condução voluntária e consciente ou a
154
imprudência das ações, as circunstâncias individuais do autor, a participação da
vítima e a eventualidade do erro, tudo de forma a definir uma pena proporcional
ao dano causado.
5. O princípio da legalidade e os bens jurídicos universais
O princípio da legalidade e relação com a proteção de bens
jurídicos universais, deve ser analisado sob uma contextualização da lei como
fonte reguladora da matéria penal, determinante de uma singularidade e
independência do caráter eminentemente sancionador do Direito Penal,
identificando sua intervenção e atuação legitimada tão somente quando acordada
pela vontade dos representantes democráticos da soberania popular, ou seja,
através de um devido processo legislativo
382
.
Para entendermos a dinâmica da aplicabilidade do princípio da
legalidade em relação à proteção jurídica de bens universais, acolhemos,
primeiramente, que todo o tipo de natureza penal, identificado na parte especial
da legislação, necessariamente, para obter sentido e conseqüência jurídica, deve
ser relacionado com os dispositivos da parte geral. O tipo penal contém uma
proposição incompleta, que exige da parte geral o complemento para sua
eficácia
383
.
Quanto ao ponto de concentração de estudo e discussão do
princípio da legalidade, como orientador na configuração de bens jurídico-penais
universais, este complemento do tipo penal também deve ser visto em sua
382
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal..., p. 197.
155
relação direta com a necessidade de introdução de conceitos oriundos de outros
ramos do ordenamento jurídico, para uma descrição típica.
Todavia a conexão com disciplinas extra-penais, para a
configuração de bens jurídico-penais universais, encontra posicionamentos
distintos em teorias que justificam o processo de criação destes conceitos.
A Teoria Sancionadora do Direito Penal justifica que, para a
utilização de conceitos oriundos de outras disciplinas, na criação de tipos penais,
estes conceitos devem ser interpretados conforme suas próprias origens.
Desta forma a elaboração de tipos penais sobre bases autônomas,
tão somente contribuiria para gerar insegurança jurídica e confusão
terminológica, conduzindo o Direito Penal a uma sujeição ao ramo matriz do
direito que orienta este conceito e, por conseqüência a produção de uma
administrativização ou privatização.
Tal argumentação, decorrente da criação oriunda de Jean-Jacques
Rousseau
384
, que reconhece as leis criminais como muito mais que uma classe
particular de leis, na verdade seriam estas uma forma de sanção de todas as
demais leis, sustenta que quando um bem jurídico se transforma de civil,
administrativo ou trabalhista, por exemplo, em penal, o legislador ou considera
que os mecanismos da disciplina matriz não foram suficientes para uma
adequada proteção do bem, ou que a própria natureza/origem do bem assim o
exige.
Como Jesús Maria Silva Sanchez
385
expõe, uma concepção
puramente sancionadora do Direito Penal, conduziria a uma impossibilidade de
383
MIR PUIG, Santiago. Introducción..., p. 40.
384
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. trad. de Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix, 1971,
p. 69.
385
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 275.
156
limitação do Direito Penal, quando da seleção de quais ataques contra bens
jurídico-penais coletivos deveriam ficar sob tutela, visto que, na verdade, o que
faz “penal” uma determinada infração não é a sanção desta através de uma pena,
mas as características materiais da própria infração.
De outro lado temos a Teoria Autônoma Pura, que considera que
quando da utilização de conceitos extra-penais no Direito Penal, na descrição
típica, estes conceitos devem sofrer uma total reformulação e interpretação, onde
o Direito Penal, de forma autônoma, defina limites e parâmetros próprios
386
.
Assim, teríamos de um lado uma teoria sancionadora, que
identifica o Direito Penal como acessório, entendendo que uma unidade do
ordenamento jurídico produziria confusão terminológica e, por fim, conduzira o
Direito Penal a uma “privatização” ou “administrativização”, enquanto que, de
outro lado, uma teoria autônoma, que simplesmente conduz a uma negativa da
unidade do ordenamento jurídico, que somente seria concebível em termos
formais.
Para equilíbrio destes paradigmas, uma terceira teoria eclética
387
concebe a harmonização entre os diferentes ramos do ordenamento jurídico,
produzindo uma unidade, através do reconhecimento de que todos estes ramos
estão a serviço e submetidos a princípios e preceitos constitucionais que
orientam a própria proteção de bens jurídico-penais.
Em conseqüência, o princípio da legalidade, orientado segundo
uma teoria eclética, pauta a produção de tipos penais protetores de bens jurídico-
penais universais, através de sua adequação aos princípios fundamentadores do
386
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal, Parte Especial. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996, p. 234.
387
Ibid., p. 305 e 306.
157
Direito Penal, sem dispensar conceitos da disciplina matriz nem deixar de
adequá-los a uma interpretação segundo estes princípios.
Sem prejuízo de toda a argumentação, importante deixar
registrado que, em se tratando do instituto das “leis penais em branco”, onde o
tipo penal não repete a definição do comportamento proibido pela norma, mas
abre um “branco”, a ser preenchido por conteúdo existente em outras normas,
das mais diversas origens, a contextualização segundo uma orientação sob a
tutela dos princípios fundamentadores do Direito Penal não é afastada.
As normas extra-penais, na hipótese das leis penais em branco
aparecem como um complemento eficaz e capaz de modificações, sem que
impeça a sobrevivência ou exija a modificação da norma penal. Tal
complemento surge, em geral, justificado por questões técnicas, quando o ritmo
de evolução social é superior à atualização da legislação ou, ainda, quando a
própria evolução do Direito Penal assim exige
388
.
Na hipótese de evolução do Direito Penal, encontramos a proposta
de incorporação de uma modalidade mais complexa de bens jurídico-penais,
envolvendo criações de um Estado social e tecnológico moderno, onde a
tipicidade tradicional se torna insuficiente, dependendo, assim, de uma
complementação extra-penal como elemento substancial.
É exatamente o caso da identificação e constante evolução
conceitual dos denominados bens jurídicos difusos ou coletivos.
Temos assim que, sob o aspecto da legalidade, a convergência dos
bens jurídicos universais para a seara da proteção penal, deve atentar a
parâmetros equilibrados na adoção de conceitos próprios de um ordenamento
388
SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal..., pp. 212 e ss.
158
jurídico dinâmico e evolutivo que, ainda que produza constantemente novos
valores, novas dimensões de proteção e reconhecimento, em se tratando de
ampliação ou criação de um bem jurídico-penal, necessariamente serão
submetidos a uma adequação segundo os princípios orientadores do Direito
Penal, que introduzirão preceitos esclarecedores, de forma a obter uma
fisionomia típica própria.
159
V - TIPICIDADE E CRIMES DE PERIGO
A concepção da sociedade pós-moderna como uma sociedade de
risco, tem sido reconhecida na doutrina como expressão de um dos elementos
fundamentadores da expansão do Direito Penal, rumo à introdução de novos
tipos penais, como meio de controle social mais eficaz na tutela de bens jurídicos
difusos e coletivos.
389
A seleção jurídico-penal destes bens, como já salientado,
necessariamente passa pela adoção e subsunção a princípios orientadores do
próprio Direito Penal. Todavia sua proteção penal, frente ao risco potencial
produzido pelo próprio homem, através da evolução tecnológica da sociedade,
não é realizada por instrumentos satisfatórios.
Por envolver uma série de perigos potenciais de danos a bens que,
em tese, não são passíveis de recuperação imediata, estas atividades de manejo e
evolução tecnológica podem produzir lesões ao próprio ser humano que as
desencadeou
390
.
Fugindo, em geral, à capacidade analítica atual para prevenção de
riscos, esses novos perigos condicionados pela ciência e pela constante evolução
tecnológica, provocam uma maior insegurança, pois ultrapassam os limites da
esfera individual de proteção, alcançando panoramas coletivos e difusos, que
389
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., pp. 15 e 21.
390
Ibid., p. 23.
160
produzem percepções diferenciadas nos integrantes da sociedade e, assim, uma
insegurança jurídica aliada à ameaça constante do denominado perigo de dano
391
.
É com o intuito de tutelar esta situação, de forma mais efetiva, que
o Direito Penal tem se socorrido de legislações simbólicas e dos denominados
delitos de perigo, com o intuito de demonstrar ao cidadão que os interesses
essenciais da sociedade estão sendo protegidos pelo Estado; reafirmando que os
valores eleitos pelo sistema jurídico estão assegurados, ainda que esta
intervenção simbólica possa vir a representar ou demonstrar a inexistência de
uma política criminal adequada na repressão a estas lesões, ou a este perigo de
lesão
392
.
Esta forma de tipificação de perigo, ainda que insatisfatória, exige
atenção, diante da necessidade de sujeição da criação dos tipos penais aos
mesmos critérios de eleição de bens jurídico-penais, defendida no caso dos bens
supraindividuais.
1. Constituição do perigo
Invariavelmente os delitos de lesão ou de dano são o núcleo básico
dos códigos penais tradicionais.
Todavia o desenvolvimento da sociedade de risco exigiu a
intervenção penal em fases prévias, antes da constituição da lesão, diante da
gravidade dos prejuízos que poderiam advir de algumas condutas, em especial
para a vida e a saúde das pessoas, muitas vezes irreparáveis
393
.
391
HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 148.
392
BUSTOS RAMIREZ, Juan. Necessidad de la pena, función simbólica y bien jurídico meio ambiente. Pena y
Estado, n. 1, 1991, p. 109.
393
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad..., p. 84 e 85.
161
Os delitos de dano, então considerados como aqueles que
identificam fatos ou atos que acabam por lesionar o bem jurídico protegido pelo
tipo, acabam dando espaço para a criação dos denominados delitos de perigo,
que envolvem a consumação do tipo, através da concepção de uma situação de
perigo para o bem jurídico protegido.
Esta concepção traz uma antecipação progressiva da intervenção
penal, com o aumento da distância entre o bem jurídico protegido e o tipo penal,
gerando uma severa problemática na criação e aplicação destes tipos penais, em
especial, relacionada à insegurança jurídica produzida com uma maior
intervenção punitiva frente a um menor controle legal
394
.
Com a antijuridicidade ligada diretamente à colocação em perigo
dos bens jurídicos protegidos, a intenção do legislador acaba ficando sujeita a
elementos de política criminal, que identificam na natureza do perigo uma
característica irredutível da própria dimensão pragmática da linguagem, qual
seja, sua indeterminação
395
.
A insegurança jurídica criada acaba por exigir, de outro lado, uma
imprescindível situação que possibilite ao juiz a analise da conduta do agente, de
forma concreta, com verificação objetiva do perigo caracterizado pela ação, bem
como a própria existência de um risco não permitido, decorrente da mesma,
capaz de produzir dano relevante ao bem jurídico protegido.
Todavia, na criação desta situação, enfrentamos o problema de
que a sociedade moderna não dispõe de mecanismos para que o legislador,
antecipadamente, consiga prever todas as hipóteses de perigo à integridade de
394
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad..., p. 85.
395
COSTA, José Francisco Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Ed., 1992, p. 591 e ss.
162
bens jurídicos supraindividuais e, assim, determinar, de forma abstrata, todas as
possibilidades de riscos para os bens jurídicos em questão
396
.
Diante desta constatação, a doutrina assume uma posição
normativista, buscando uma teoria de perigo em que este acaba definido pela
idoneidade e capacidade de determinado ato causar lesão ao bem jurídico e, por
conseqüência, primeiramente, aparece como necessária a ocorrência da situação
de perigo objetivo; pressuposto e limite da própria incriminação e punição
397
.
Assim, é imprescindível a existência de um indício, uma situação
teórica que, insuficiente, exige o caso em concreto como instrumento para
obtenção de forma e conteúdo, suficiente à identificação da probabilidade de
lesão a um bem jurídico.
Resta, então, a determinação do resultado perigoso como parte de
um juízo tipicamente normativo, apresentando um conceito válido de perigo,
aplicável e constituído de um caráter objetivo, capaz de delimitar, em certa
perspectiva, a amplitude e a generalidade dos delitos de perigo
398
.
2. Delitos de perigo concreto e delitos de perigo abstrato
A doutrina tradicional tem manifestado duas modalidades distintas
de delitos de perigo, consideradas como aquelas de perigo abstrato e de perigo
concreto
399
.
396
SCHÜNMANN, Bernd. El sistema moderno del derecho penal: cuestiones fundamentales. Tradução Jesus-
Maria Silva Sánchez. Madrid: Tecnos, 1991, pp. 108 e ss. No mesmo sentido: JAKOBS, Günther. La imputación
objetiva em derecho penal. Tradução Manuel Cancio Mellia. Bogotá: Leyer, 1994, p. 19.
397
COSTA, José Francisco Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Ed., 1992, pp. 559/565
398
Ibid., mesma página.
399
PRADO, Luiz Régis. Crimes contra o ambiente..., p. 70 e ss. ROXIN, Claus. Derecho Penal..., p. 40.
163
Os delitos de perigo concreto constituiriam delitos de resultado em
que este se materializaria através da criação de um perigo efetivo para o bem
jurídico, fazendo a exigência da comprovação da efetiva ocorrência do perigo
parte do próprio tipo penal, como elemento normativo determinante da
consumação do delito
400
.
Assim o perigo não resta tão somente como motivação, mas
apresenta-se como elemento do próprio tipo.
Neste sentido o tipo penal não funciona somente como indício da
ilicitude, um parâmetro abstrato da conduta proibida. Traz o tipo penal no caso
dos crimes de perigo concreto uma carga selecionadora, afastando da realidade
comportamentos de cunho ideológico ou que se orientam segundo uma
determinada conduta socialmente aceita e conhecida, para indicar aquelas
condutas que realmente possuem uma carga socialmente danosa, capaz de
interferir na vontade e no entendimento do agente, em um conteúdo material de
ilegalidade, composto de um juízo ético-social e de um valor atribuído pelo
próprio tipo incriminador
401
.
Quanto aos delitos de perigo abstrato, estes envolveriam uma
categoria residual de delitos de mera atividade, onde o legislador selecionou e
tipificou determinadas condutas, através de critérios de gravidade implícita,
todavia sem que seja necessária a constatação, no caso em concreto, que a
conduta efetivamente colocou em perigo o bem jurídico protegido, em uma
presunção que não admite prova em contrário
402
.
400
MIR PUIG, Santiago. Derecho penal..., p. 208.
401
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5ª edição, São Paulo: Saraiva, 1994, p.
127.
402
Nesta hipótese, Paz Mercedes de Cuesta Aguado bem identifica a presença da presunção de periculosidade
iure et de iure. In: Tipicidad e imputación objetiva. Mendonza: Ediciones Jurídicas Cuyo, 1998, p. 86.
164
O perigo, nos crimes de perigo abstrato, aparece então não como
elemento constitutivo do tipo, mas como motivação
403
.
A periculosidade, assim, não reside como atributo de uma ação
individualmente considerada, mas na própria natureza da conduta, bastando a
existência de um risco genérico a determinados bens jurídicos para a
possibilidade de punibilidade
404
.
Assim a presunção de periculosidade da conduta, como adotada,
evidentemente não satisfaz requisitos mínimos de lesividade material, que
determinado ato deve reunir para que, sob a égide do Direito Penal, seja passível
de punição.
Esta modalidade de delito, diante da formulação típica antecipada
da lesão ao bem jurídico, acaba por produzir insatisfatórios efeitos limitadores de
intervenção punitiva, afrontando o próprio princípio da segurança jurídica,
permitindo uma intervenção quase que sem controle do poder de punir do
Estado, atingindo significativamente a esfera de tutela privada dos cidadãos
405
.
A construção normativa que se segue para evitar esta abrupta
violação envolve a concorrência de um conteúdo real de lesividade, adaptado às
exigências constitucionais dos Estados de direito, de forma a conduzir a
presunção para o caráter iuris tantum, admitindo-se prova em contrário.
Para isso se sustenta a coexistência de duas modalidades de delitos
de perigo abstrato, co-substanciados nos delitos de perigo abstrato formais e nos
delitos de perigo abstrato materiais
406
.
403
COSTA, José Francisco de Faria. O perigo..., pp. 620/621.
404
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado..., pp. 358/359.
405
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad..., p. 86.
406
Ibid., p. 87.
165
Os delitos de perigo abstrato formais consistiriam em violações de
condutas que, não obstante reprováveis, sob a égide do Direito Penal, não afetam
nenhum bem jurídico apto a ser penalmente protegido.
Teríamos, então, as violações de regras ético-sociais de
convivência, violações de condutas religiosas, desobediência de regras
administrativas, violações de deveres políticos, dentre outras, que, na concepção
da doutrina moderna, caso penalmente tipificadas, deveriam ser consideradas
como inconstitucionais, pois violadoras do princípio de segurança jurídica que
tutela os Estados de Direito
407
.
Em outro lado estão os delitos de perigo abstrato, onde a
periculosidade da conduta justifica a intervenção penal, sempre que esta, através
da via interpretativa, reste adequada aos princípios orientadores do Estado de
direito, sendo capaz, apta, idônea para a criação de um risco ou perigo proibido
pelo tipo penal. Estes os crimes de perigo abstrato material.
Os delitos de perigo abstrato material podem ser identificados nas
condutas de falso testemunho, abandono de menores, delitos contra a saúde
pública, dentre outros.
3. Crimes de perigo e segurança jurídica
Na constituição básica dos crimes de perigo temos, então, que nos
delitos de perigo concreto o tipo penal requer uma lesão real ao bem jurídico,
enquanto que nos delitos de perigo abstrato basta a periculosidade da conduta,
407
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad..., p. 87.
166
que supostamente é inerente ao ato, salvo em hipóteses onde, em uma análise do
caso em concreto, se possa verificar que esta periculosidade restou excluída
408
.
Ficando a questão da lesividade expressamente prevista no tipo
penal, no tocante aos delitos de perigo concreto, a problemática se volta para os
crimes de perigo abstrato, em especial quando envolvem bens jurídicos
supraindividuais, exigindo uma análise sob a ótica do risco, não podendo ser
admitida a pretensão de punição de situações que não possuem capacidade
comprovada de lesão ao bem jurídico protegido.
Existe uma necessidade de substituir a presunção de proteção
genérica, ou o parâmetro médio de sociedade, que a atual modalidade de delitos
de perigo abstrato adota, para um Direito Penal que exigir uma real
individualização da conduta e de seus efeitos, segundo o fato em concreto e seus
agentes, onde a efetividade do comportamento para alcançar uma lesão é
elemento determinante, como forma de reconhecer a possibilidade de punição de
violações a bens jurídicos supraindividuais.
Apesar disto, o que continua se observando nas hipóteses de
crimes de perigo abstrato é uma antecipação de proteção penal, que distancia o
tipo do bem jurídico protegido, assumindo a caracterização de um Direito Penal
de risco
409
, em que nas áreas difusas e coletivas, diante da novidade da
possibilidade de proteção penal desta modalidade de bens, o legislador atual se
afastou dos princípios de subsidiariedade e fragmentariedade, substituindo o
Direito Penal como ultima ratio para uma posição de primeira opção.
A antecipação de tutela penal afronta o princípio da segurança
jurídica, determinante dos Estados de direito, permitindo uma dimensão de
intervenção do poder de punir, quase que de forma globalizada, capaz de violar
408
MIR PUIG, Santiago. Derecho penal..., pp. 223/224.
409
ROXIN, Claus. Derecho Penal..., p. 61. SCHÜNMANN, Bernd. Consideraciones..., p. 29.
167
significativamente o campo de tutela privada dos cidadãos, podendo criar figuras
penais inconstitucionais, caso não se adaptem, através da utilização de critérios
de interpretação teleológica, aos princípios que orientam o Estado Democrático
de Direito.
410
Uma solução para os crimes de perigo abstrato, que equilibra,
ainda que parcialmente, a problemática da insegurança jurídica que sua
construção causa, passaria pela análise do próprio risco da conduta, onde
poderíamos adotar a mesma concepção dos delitos de imprudência.
Nos delitos de imprudência a conduta perpetrada até mesmo pode
ser típica, mas para ser considerada antijurídica é necessário analisar se o dever
de cuidado, no caso em concreto, foi violado, ocorrendo um risco de lesão além
daquele socialmente admitido.
Tal construção possibilita a identificação de um direcionamento
mais claro entre a própria ação e a possibilidade do resultado, caracterizado o
dever de cuidado como uma atuação prudente, naquelas situações consideradas
como de risco ou de perigo
411
.
O problema que se põe é que esta construção não se apresenta
como satisfatória, em todos os seus aspectos, quando tratamos de bens que
pertencem a um patamar tão elevado de abstração que, de forma globalizada, sua
proteção representa a proteção de outros bens, socialmente considerados como
mais importantes, como a própria vida, o bem estar social, a saúde, aqui
materializados através de uma nova e universal representação de interesses,
ainda que em certa medida vaga e imprecisa.
410
CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad..., p. 86.
411
ROXIN, Claus. Derecho Penal..., p. 408; JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado..., p. 797.
168
4. Bens jurídicos universais e a tipificação penal de perigo
abstrato
Winfried Hassemer sustenta que as características do Direito Penal
moderno passam pela proteção de bens jurídicos, pela prevenção e pela
orientação para as conseqüências
412
.
A prevenção, como destacada pelo jurista alemão, fica ligada a
uma característica de objetivo primário, segundo princípios de igualdade e
tratamento igualitário
413
.
A orientação para as conseqüências, também assume uma posição
prevalente, seguindo princípios de igualdade e justa retribuição, convertendo o
Direito Penal em um instrumento de “pedagogia social”
414
.
É neste campo pedagógico social que a proteção de bens jurídicos
universais, como o ambiente, a infância e juventude, o consumidor, através da
conversão desta proteção em um critério positivo para a criminalização de
condutas, instituiu um mandato de criminalização globalizada, ampliando ou
criando novos tipos penais difusos ou coletivos.
Todavia esta criação utilizou de uma formula que causa
insegurança jurídica, qual seja, a dos delitos de perigo abstrato, superando os
delitos de lesão e de perigo concreto, pois ao se prescindir do prejuízo se
prescinde, igualmente, de demonstrar e exigir a relação de causalidade, bastando
a ação típica, presumida perigosa, sem que ocorra um juízo de valor por parte do
magistrado
415
.
412
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 22.
413
Ibid., p. 24.
414
Ibid., p. 25.
415
Ibid., pp. 29/30.
169
Um evidente cerceamento de garantias e oportunidades de defesa,
bem como dos próprios pressupostos para a aplicação de uma retribuição penal,
se faz presente na utilização de delitos de perigo abstrato.
Quando enfrentamos a sistemática dos bens jurídicos universais, a
utilização dos delitos de perigo abstrato leva a considerações dramáticas,
envolvendo, por exemplo, delitos caracterizados pela ausência de vítimas
individualizadas. Delitos estes que não exigem dano, não restando como um
resultado cientificamente previsto para determinada ação.
Com isto, o Direito Penal assume um caráter ampliado, com
redução da importância de seu núcleo tradicional, deixando de ser considerado
como retribuição ou reação a lesões graves à liberdade dos cidadãos, assumindo
uma forma de instrumento de política de segurança, se afastando de sua atual
condição estrutural, no ordenamento jurídico, em uma perigosa aproximação do
direito civil e administrativo
416
.
Assume o Direito Penal “do perigo”, uma condição de “prima
ratio”, sempre intervindo quando seja interessante politicamente, afastando-se
das orientações de subsidiariedade, igualdade e proporcionalidade como
primárias.
Coloca-se como objetivo primário não uma resposta adequada ou
justa ao delito, mas que a reprimenda alcance a prevenção do delito futuro, em
uma substituição dos critérios eletivos do Direito Penal.
Com isto um déficit de realização surge com muita força,
indicando que o Direito Penal está fadado a perder suas funções reais, adquirindo
um caráter meramente simbólico, quando não só as Leis não funcionam, mas,
além disto, quando aplicadas produzem conseqüências injustas e arbitrárias.
416
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 31.
170
A utilização de delitos de perigo, neste moderno Direito Penal,
conduz a uma deterioração das diferenciações entre imputação objetiva e
subjetiva, onde as diferenças entre autoria e participação, tentativa e
consumação, dolo e culpa, quando não desaparecem passam a ser objeto de
conceitos secundários, abrindo espaço para uma ampliação das conseqüências do
delito e da arbitrariedade jurídica
417
.
Neste sentido o Direito Penal Econômico, o Direito Penal
ambiental, dentre outros, encontram na imputação individual tradicional um
obstáculo que exige superação. Com a redução dos pressupostos da imputação,
surgem danos irremediáveis ao Direito Penal, em busca de uma Política Criminal
eficaz, ainda que não justa, com uma criminalização mais ampla e superficial de
condutas perigosas, com flexibilidade significativa.
De outro lado, não menos grave se tornou a discussão sobre a
consideração ou desconsideração dos princípios clássicos orientadores do Direito
Processual Penal.
É certo que a introdução de alternativas de consenso e
oportunidade, aliadas à denominada negociação penal, por alguns doutrinadores
é vista como uma superação ou desconsideração da relevância de princípios
básicos do Direito Processual Penal
418
, todavia, como veremos mais adiante, tal
consideração, em alguns aspectos merece uma discussão mais ampliada
419
.
417
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 34.
418
Ibid., p. 36 e nota n.
o
25.
419
Cabe observar que estas considerações estabelecidas por Winfried Hassemer a respeito das alternativas
negociadas do Direito Processual Penal, levando-se em conta a abordagem do problema feita por Schumann,
quando enfrenta a questão da Administração da Justiça penal, em sua obra “Tratar com Justicia” – In:
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 36 e nota n. 26 -, deixou de
considerar aspectos de uma “teoria procedimental fundada materialmente na verdade e na justiça”, segundo bem
expõe Arthur Kaufmann, em sua obra La filosofía del Derecho em la posmodernidad, monografias jurídicas 77,
tradução de Luis Villar Borda, Santa Fé de Bogotá: Editorial Temis S.A., 1998. De outro lado, opções como a
“delação premiada” para crimes de potencial ofensivo significativo, como o tráfico de entorpecentes, onde em
uma negociação, por vezes, a impunidade supera qualquer aspecto de justiça, alcançando tão somente uma
171
Evidente que o principal problema que enfrenta o Direito Penal
moderno alinhado a uma tipificação de perigo, é sua distância entre sua
capacidade real e as expectativas de solução que acaba por gerar
420
, visto que
considerado como prima ratio, acaba por buscar ampliar quantitativamente e
qualitativamente seus campos de incidência através do Direito Processual Penal,
é neste aspecto que a doutrina critica uma negociação penal que supera ou
desconsidera os princípios básicos limitadores da atividade jurídica.
Daí a crítica de que esta ampliação leva em conta que um processo
penal, orientado segundo garantias do Estado Democrático de Direito é custoso e
demorado, ficando as opções negociadas como alternativas no aumento de uma
capacidade funcional, estabelecida segundo uma íntima relação entre um Direito
Penal de incriminações massificadas e um Direito Processual Penal também
massificado, provido de decisões vagas e amplas, criando um “problema de
Justiça”
421
.
Assim, nas searas do meio ambiente, dos entorpecentes, do crime
organizado, das violações contra a ordem econômica e da saúde pública, dentre
outras, uma resposta penal acaba por surgir como primeira opção no controle de
instabilidades, instituindo um Direito Penal aliado às políticas de segurança
pública, em um caráter eminentemente funcional, desconsiderando princípios
orientadores de um sistema penal ajustado ao conjunto de instrumentos legais
disponíveis para o controle de conflitos, em um abandono de um Direito Penal
do resultado ou das conseqüências
422
.
justificativa funcional, acabam por sustentar seu posicionamento quanto a um Direito Processual Penal moderno,
de caráter funcional.
420
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 36.
421
Ibid., p. 37.
422
HASSEMER, Winfried; História das idéias penais na Alemanha do pós-guerra, tradução do original alemão
por Carlos Eduardo Vasconcelos, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, ano 2, n. 6, abril-junho – 1994, pp. 62/63.
172
O princípio da proteção de bens jurídicos, como limitador da
criminalização, com enfoque voltado para as conseqüências, agora assume um
desgastante papel funcional, com um caráter criminalizador, ao indicar, nesta
nova leitura, que todo o bem jurídico (universal) merece proteção penal, como
um princípio dominante da cominação e imposição de penas, através da criação
de tipos que não exigem uma ameaça concreta, nem um dano a bem jurídico,
mas a simples prática de conduta considerada tipicamente perigosa
423
.
423
HASSEMER, Winfried; História das idéias penais na Alemanha do pós-guerra..., p. 64 e ss.
173
VI – CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS E ANÁLISES
ALTERNATIVAS SOBRE O DIREITO PENAL DA PÓS-
MODERNIDADE E OS BENS SUPRA-INDIVIDUAIS.
Promover o encaminhamento do sistema jurídico para um Direito
Penal pós-moderno, orientado pela da proteção da sociedade diante de novos
riscos decorrentes da evolução, constitui-se tarefa primária do jurista na seleção
de bens jurídico-penais.
A questão está em reconhecer que este encaminhamento, ainda
que sob o manto de uma eficiência na proteção de novos bens jurídicos difusos e
coletivos, com a elaboração de delitos de perigo abstrato, acaba por conduzir os
conflitos decorrentes da violação ou o atentado a esta espécie de bens para o
campo da intervenção máxima ou globalizada do Direito Penal.
Neste campo de expansão identificamos significativos conflitos de
valores.
1. A ampliação de espaços para um Direito Penal da
insegurança
Com a atual situação do Direito Penal, um dos acontecimentos que
bem demonstram a insegurança jurídico-social implantada decorrente da
174
criminalização sem precedentes que tomou conta dos Estados, por exemplo, é o
direito penal mínimo, defendido em especial pelos estudiosos da Escola de
Frankfurt, em contrapartida ao Direito Penal “máximo”, empregado pelo Estado
persecutor.
Decorrência do enfrentamento de um direito penal considerado
como opção fácil para a solução de problemas sociais e que evolui, deslocando
para mandados de otimização e ordem o que deveria ser objeto de soluções
instrumentais que, efetivamente, proporcionassem proteção, o Direito Penal
Mínimo como proposta restritiva do Direito Penal, acaba tomando por referência
os direitos humanos, bem como um Direito Penal “básico”, mantido sob a égide
das máximas garantias legais, materiais e processuais
424
, tudo isto como
conseqüência da insegurança jurídica criada com uma expansão ou ampliação do
âmbito de ingerência do Direito Penal.
Com a identificação de uma nova série de bens jurídico-penais
(supra-individuais), a ampliação de situações de riscos jurídicos relevantes,
proporcionada pela flexibilização das regras de seleção e imputação de condutas
com uma séria relativização dos princípios político-criminais que asseguravam a
estabilidade do sistema
425
, não encontramos elementos suficientes a acolher
como correta uma ampliação de espaços de atuação e intervenção do Estado,
através do recurso da força penal.
Não é sem motivo que, na busca permanente do Estado ao recurso
da legislação penal como solução primeira, no caso de novos riscos sociais,
acabou sendo criada uma nova e insustentável situação de insegurança jurídica
424
Jesús-María Silva-Sanchez bem aponta para esta tendência e para uma obra de referência do Instituto de
Ciências Criminales de Frankfurt (ed) (Área de Derecho Penal de la Universidad Pompeu Fabra – ed. Exp.), La
insostenible situación de derecho penal, Granada, 2.000. In: A expansão do Direito Penal – aspectos da política
criminal nas sociedades pós-industriais, 2
.
a
edição, tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha, São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 21 e nota 11,
425
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. Op. cit., p. 21 e ss.
175
na sociedade. Sua origem e seus motivos são objetos do questionamento da real
finalidade do Direito Penal.
A geração de novas realidades e novos riscos como, por exemplo,
a reconstrução do conceito de realidades abundantes e ricas em nossa sociedade,
como o meio ambiente, através da recomposição dos valores anteriormente a elas
atribuídos, tudo isto aliado a incrementos criativos como os conglomerados
econômicos e financeiros, causas prováveis da concepção de novos bens
jurídico-penais, voltam nossa atenção, também, para a sociedade de riscos de
Ulrich Beck, em especial pela consideração do manejo das aplicações e dos
avanços técnicos da sociedade, produzidos pelos integrantes da mesma, causando
ameaças aos demais integrantes desta e a eles próprios. Neste contexto existe
uma possibilidade de danos não delimitáveis, globais e freqüentes, com caráter
irreparável, decorrentes de decisões humanas que, por isso, causam insegurança
e a necessidade de medidas preventivas eficazes
426
.
Assim, as decisões humanas são destacadas não pelas
conseqüências que produzem, mas pela possibilidade de gerarem riscos e,
também, de aumentarem ou distribuírem estes riscos, criando um fenômeno
psicológico social da sensação de insegurança, ou multiplicação emocional do
risco existente
427
.
É neste campo de atuação que frutifica a opção pelo Direito Penal,
como solução a uma busca pelo fim da insegurança, pois a sociedade não aceita
ter de pagar o preço do risco (risco permitido) da evolução e da industrialização,
em uma ponderação de custos e benefícios, decorrentes da valoração prévia das
condutas
428
.
426
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 28 e ss.
427
Outro fator que colabora para a atual situação que se encontra esta sensação de insegurança são os meios de
comunicação de massa - SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. Op. cit., p. 30 e ss.
428
Ibid., p. 42.
176
A sociedade pós-moderna, de novos bens jurídico-penais
supraindividuais, supervalorizou a segurança em detrimento da liberdade de agir,
considerando esta como um perigo abstrato em sí mesma
429
, em uma restrição
progressiva dos campos onde a atuação estaria sob a égide do risco, permitido ou
desaprovado, resistindo a concepções de que, por exemplo, as relações de
consumo, por si só, ampliadas e totalmente reorganizadas, representam uma
estrutura de riscos permitidos
430
.
Podemos ainda reconhecer que nossa sociedade é uma sociedade
de vítimas, onde o Direito Penal responde a uma identificação social com os
sujeitos passivos dos delitos, muito mais que com os autores, em um claro e
exponencial crescimento da defesa dos direitos e garantias materiais e
processuais das vítimas
431
.
É neste panorama que a nova concepção de bens jurídico-penais
universais, como aqueles envolvendo a criminalidade organizada, ligada ao
terrorismo, narcotráfico e pornografia, bem como a denominada criminalidade
empresarial, ligada ao meio ambiente, aos delitos econômico-fiscais, às relações
de consumo, dentre outros que também podem envolver a corrupção político-
administrativa, encontra respaldo para um Direito Penal expansivo, bem recebido
em relação ao que a doutrina e a sociedade passa a reconhecer como uma
“criminalidade dos poderosos”
432
.
Trata-se de considerar que, em uma expansiva proteção de vítimas
e supostas vítimas, um Direito Penal mínimo não deve ser considerado adequado
429
GüNTHER, Klaus. La insostenible situación de derecho penal, Granada: Instituto de Ciências Criminales de
Frankfurt - Área de Derecho Penal de la Universidad Pompeu Fabra, 2.000, p. 503. No mesmo sentido, tratando
do problema da aplicação de normas no desenvolvimento da consciência moral, na obra Teoria da Argumentação
no Direito e na Moral: justificação e aplicação, tradução de Claudio Molz, São Paulo, Landy Edotira, 2.004, p.
121 e ss.
430
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 42 e ss.
431
Ibid., p. 51 e ss.
432
Ibid., mesmas páginas.
177
em um Estado Democrático de Direito, de máximas garantias, máximos
benefícios e máxima integração e participação social, convertendo-se um Estado-
Policial em um Estado-Preventivo, protetor ao máximo das garantias que propõe
defender.
O detalhe é que, contraditoriamente, para se fazer valer deste
caráter garantidor e previdente, o Direito Penal pós-moderno, caminha na defesa
de bens jurídicos supraindividuais, através da estrada da insegurança, acabando
por relativizar princípios garantidores, como da irretroatividade e da proibição de
analogia, bem como as próprias regras da imputação, quando se trata de tutelar
aquilo que denominamos de “criminalidade de poderosos”, subtraindo daqueles
que estejam sujeitos a esta tutela penal os mesmos diretos e garantias que, na
forma da “máxima expansão”, visa defender na forma de um Estado-
Previdência.
Uma indiscutível violação dos princípios de igualdade e isonomia,
em afronta a mais um princípio garantidor, sob a justificativa de manter a
“segurança social” e atender aos reclamos de paz e justiça. Uma política de “os
fins justificam os meios”. Trata-se de incrementar os instrumentos de controle
social em um enérgico Direito Penal da insegurança ou do perigo, em um
caminho para o que parte da doutrina denominou de “Direito Penal do
inimigo”
433
.
Neste contexto se atribuiu ao Direito Penal funções de gestor de
grandes riscos, gestor atípico da moral social, revitalizador da sociedade, em
uma responsabilidade de proteger e sustentar os interesses gerais das gerações
futuras, como no caso do meio ambiente, exatamente porque as instituições
433
Sobre o tema o trabalho de Günter Jakobs e Manuel Cancio Meliá: Derecho penal del enemigo, Madrid:
Civitas Ediciones, 2003 (edição brasileira: Direito Penal do Inimigo – noções e críticas, organização e tradução
André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005).
178
políticas e os grupos sociais não conseguiram resolver estas pendências,
resultando em um Direito Penal como instrumento de pedagogia político-social,
em evidente demonstração de que a sociedade vem perdendo seus referenciais
valorativos, em razão de uma atribuição desproporcional de responsabilidades
não lhe seriam naturais, sobrecarregando o mesmo e desvirtuando sua idéia
como última alternativa, em troca de uma verdadeira função promocional de sua
expansão.
2. Administrativização, globalização e delitos de acumulação.
Como maior expressão da nova situação imposta pelos bens
jurídicos supra-individuais, o Direito Penal teve modificada a própria estrutura
do conteúdo material dos tipos penais, através da combinação entre a introdução
de novos elementos de proteção e a forma antecipada de materialização da
mesma.
Aliás, esta expectativa penal criada, nem mesmo levou em
consideração elementos como o meio ambiente, onde a idéia de proteção penal
decorre da necessidade de manutenção das condições de sobrevivência humana,
que deve ser entendida segundo os âmbitos de proteção estabelecidos de acordo
com limites administrativos de proteção que, quando violados, provocam a
intervenção do Direito Penal. Nesta intervenção se processa na forma de
gerenciador de riscos de ordem coletiva, com um caráter de regulação, próximo
do intervencionismo expresso pelo direito administrativo
434
.
434
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 114 e ss.
179
A administrativização do Direito Penal de bens jurídicos
universais
435
leva ao rompimento de parâmetros limitadores, ou diferenciadores,
entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, até por que este
último, em sua concepção, reconhece que o poder sancionador da administração
deve ser exercido segundo princípios decorrentes da ordem penal, com um
suporte teórico na inexistência de diferenças ontológicas entre a pena e a sanção
administrativa, mas com um alerta ao fato de que as finalidades perseguidas pelo
Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador são diferentes
436
.
Enquanto o Direito Penal, em regra, persegue a proteção de bens
concretos, em casos concretos, segundo critérios de lesividade, periculosidade e
imputação individual do injusto, o Direito Administrativo Sancionador rende-se
à proteção de modelos de gestão setorial, sem análise de critérios de lesividade e
periculosidade concreta, em uma atenção à afetação geral e estatística, em uma
persecução sujeita a critérios de oportunidade, como verdadeiro reforço da
gestão administrativa
437
.
Assim, fica claro que no âmbito administrativo, este Direito
Sancionador tem interesse na manutenção do modelo global de gestão,
tipificando e sancionando sob o efeito de perspectivas gerais, segundo uma
orientação para a supressão de riscos determinados pelas políticas
macroeconômicas ou macrossociais, deixando de lado a necessidade de que a
conduta seja relevantemente perturbadora ou mesmo propensa à lesão de um
bem jurídico em concreto, orientando-se por critérios de oportunidade na
435
SCHÜNMANN, Bernd. Consideraciones..., p. 25 e ss.
436
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 116.
437
DOMÍNGUEZ VILA, Antonio. Constitución y Derecho Sancionador Administrativo, Madrid: Marcial Pons
Ediciones Jurídicas y Sociales S.A., 1997. Dominguez Vila, em sua obra, bem retrata as características do Direito
Administrativo Sancionador, quando traz suas características marcantes e orientadoras, sob o aspecto de sua
evolução histórica, em especial na Europa, culminando com uma abordagem profunda sobre seus princípios
orientadores e a ótica de sua visão evolutiva no Direito Espanhol.
180
repressão a perigos para a manutenção da ordem de um determinado setor de
atividades
438
.
É exatamente o que se pode observar das legislações penais de
proteção tributária, financeira e fiscal, de proteção do meio ambiente, de
proteção das relações de consumo, dentre outras.
Como um Direito de dano cumulativo, o Direito Administrativo
Sancionador, retira da possibilidade de repetição de condutas que, se realizadas
pelos participantes de determinado setor social, até mesmo por sua eventual
consideração como lícita, possibilitam uma expectativa estatística ou global de
limites de contenção, criando situações de perigo, determinante da restrição ou
sanção administrativa. Todavia este critério deve ser reconhecido como
inadmissível para a imputação penal de responsabilidade a uma pessoa
individuada, em razão de fato determinado ou isolado.
Esta modalidade de sanção não admite nem comporta elementos
de lesividade em concreto, seja a própria lesão ou perigo de lesão, pois acaba por
se valer de situação de perigo estatístico ou presumido.
Assim, podemos destacar como diferença significativa entre o que
se apresenta como Direito Penal e o que se apresenta como Direito
Administrativo Sancionador, que no primeiro as infrações restam
individualizadas e referentes a fatos concretos, em quanto que no caso do Direito
Sancionador, as infrações decorrem de um perigo global, geral, estatístico, de
probabilidade de consecutivas ações, no mesmo sentido, poderem produzir ou
risco de danos
439
.
438
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 117.
181
Jesús Maria Silva-Sanchez, destaca exemplo significativo para
esta diferenciação, tratando no campo ambiental da hipótese em que determinada
empresa superasse em muito os limites de toxidade em seus resíduos, limites
estes estipulados pela norma administrativa, mas em uma produção que ainda
não estabeleça perigo ao ecossistema. A intervenção do Direito Administrativo,
com sanções, pode ser considerada como adequada e pertinente, levando-se em
conta que, se todas as demais empresas desta natureza, em vendo a inação da
Administração, também começassem a produzir tal nível de toxidade, certamente
a cumulação produziria danos ao meio ambiente. A perspectiva de perigo que
existe, tem uma natureza estatística, global que, todavia, não permite, com a
individualização do caso em concreto, uma intervenção do Direito Penal
440
.
De outro lado, e na mesma linha de raciocínio, em casos
econômicos, de sonegação fiscal ou lavagem de capitais, para que um ato, por si
só alcance ou produza efetivo perigo à ordem econômica, necessário que este
tenha como referenciais valores significativos, pois em razão de uma
previsibilidade de lesão, em casos de cumulatividade, o perigo estatístico ou
global somente admitiria uma intervenção do Direito Administrativo. Para a
configuração da necessidade de intervenção do Direito Penal, tão somente a
violação normativa ou regulatória não seria suficiente, exigindo ou estes
referenciais de valores significativos ou sua integração à sistemática de atuação
de uma organização criminosa.
Nestes exemplos podemos identificar que a atual criminalização
de condutas, que põe em risco bens supraindividuais, vem enfrentando na
sociedade pós-moderna assimilando, em legislações penais próprias, uma
439
Estas hipóteses são bem estudadas, em se tratando da problemática da corrupção, por Afonso Sabán Godoy,
em sua obra El marco jurídico de la corrupción, Madrid: Editorial Civitas S.ª, 1991.
440
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 119.
182
tipificação de condutas com o fim de sistematizar a lesividade decorrente de
situações que tão somente globalizadas, ou com um caráter cumulativo,
efetivamente, produziriam um perigo concreto de dano.
Assim a administrativização do Direito Penal apresenta-se como
opção das atuais legislações.
Acabam totalmente desvirtuados os restritos limites de atuação do
Direito Penal, pois estas legislações acabam por avançar para um campo natural
do Direito Administrativo, constituindo uma formulação própria de gestão ou
gerenciamento de problemas sociais, com alcance e abrangência que não são
naturais ou cabíveis no campo da repressão penal
441
.
Temos, então, que a tipificação de condutas, segundo uma
potencialidade lesiva estatística, incerta e massificada ou cumulativa, em se
tratando de proteção a bens jurídicos supraindividuais, em uma contemplação
global de uma “causalidade cumulativa”, apenas conduz à criminalização de uma
hipótese ou perspectiva, muito distante do perigo concreto de dano.
Trata-se de verdadeira violação às limitações impostas pelo
princípio da culpabilidade, quando na tipificação desta modalidade de condutas,
vemos o legislador fundar a lesividade em uma possibilidade de a massificada
realização da mesma levar a um tumulto ou bloqueio no escorreito
funcionamento do sistema legal, como, por exemplo, nos casos de delitos contra
441
No direito pátrio, as legislações que contém crimes contra a ordem econômica e tributária, tipificam condutas
que, efetivamente, em sua individualidade não representariam perigo concreto suficiente a sua consideração
penal, conquanto esta situação é clara, quando a própria legislação econômica busca a alternativa da extinção da
punibilidade, com o pagamento do tributo, que hoje é acolhida nos tribunais superiores, inclusive após o trânsito
em julgado da sentença penal condenatória, como que reconhecendo fato novo superveniente, em uma espécie de
revisão criminal, que acaba por desconstituir a punição estabelecida, deixando claro que o único e principal
objetivo da repressão penal é estabelecer a ordem jurídica, com o pagamento do tributo, tarefa primária e natural
do Direito Administrativo e não do Direito Penal.
183
as relações de consumo ou, ainda, nas hipóteses em que se buscava a proibição
da venda regular de armas de fogo e munições
442
.
Os grandes riscos, que o Direito Penal na tutela de bens universais
busca controlar, não são problemas decorrentes de um atuar individual, mas do
próprio setor social envolvido, levando uma sanção de caráter penal, aplicada a
uma pessoa em um caso em concreto, a violar princípios como o da
proporcionalidade em sua aplicação, visto que a repressão não está unicamente
dirigida ao perigo em concreto produzido pela conduta, mas à probabilidade de
perigo, estatística ou global, que esta conduta poderia gerar, caso estimulasse, em
uma característica indiscutível de probabilidade, uma seqüência de ações
similares que aí, então, produziriam um perigo de dano.
Uma teoria busca atingir fins não importando os meios utilizados,
que utiliza da criminalização de perigos muito mais estatísticos, cumulativos ou
globais, do que efetivamente concretos, sob a ótica da prevenção, com a ameaça
de sanções a condutas que constituem pequenas parcelas de contribuição para
problemas sistêmicos ou setoriais, em uma antecipação dos problemas que, com
a modernização industrial e o crescimento populacional, serão considerados
muito mais significativos
443
, acolhida na sociedade moderna
444
, sob o argumento
442
A Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2.003, estipulou em seu artigo 35 e § 1.
o
, a proibição do comércio de
arma de fogo e munições, que somente entraria em vigor após submeter-se a plebiscito, em outubro de 2.005.
Não obstante a opção popular pela não entrada em vigor do dispositivo restritivo, caso o contrário ocorresse, o
Estado teria criado hipótese de criminalização de condutas que, por si só, diante da legalidade anterior, não se
apresentavam como de perigo, mas que agora, com inúmeros proprietários de armas regulares, sem acesso a
munição para seu efetivo funcionamento, poderiam recorrer a formas ilegais de aquisição, passando então a poder
figurar como criminosos, nos termos do artigo 14, da mesma lei, no mínimo por manter em depósito, receber ou
adquirir, munição de uso permitido, em desacordo com a determinação legal.
443
Consideremos aqui os problemas ambientais e das relações de consumo, como também do próprio tráfego de
veículos.
444
KUHLEN, Lothar. Cuestiones fundamentales de la responsabilidad penal por el producto. Responsabilidad
penal de las empresas y sus órganos y responsabilidad por el producto, coordenação Santiago Mir Puig &
Diego-Manuel Luzón Peña, Barcelona: José Maria Bosch Editor, S.L., 1996, p. 235.
184
de que o Direito Penal, introduzindo certos custos maiores, superando benefícios
individuais, é instrumento adequado e necessário aos problemas atuais
445
.
A desconsideração de princípios naturais do Direito Penal como a
culpabilidade e a proporcionalidade, já foram destacados e merecem reiteração
também sob este ponto, como desconsideração desta teoria como apropriada ao
Direito Penal como conhecemos.
No mesmo sentido, a força emprega a esta tese leva à
consideração de que a grandiosidade do problema, se enfrentado em seu caráter
cumulativo ou estatístico, no caso de imposição de uma pena grave a sujeitos
individuais, decorrentes da contribuição que suas condutas, também
individuadas, proporcionaram ao evento, evidentemente viola a
proporcionalidade, conquanto que suas condutas isoladas seriam consideradas
insignificantes para o problema que se pretende tutelar.
Se esta função, típica do Direito Administrativo Sancionador,
aportar como regra definitiva ao Direito Penal atual, então a alternativa da
segregação de liberdade não poderia ser considerada como opção, ante a própria
flexibilização que as funções do Direito Penal acabou por sofrer, sob pena de
passarmos para um Estado Policial puro.
Não se trata de considerarmos estas hipóteses como de autoria
acessória, visto que não são situações de co-autoria de um mesmo fato delituoso,
sobre o qual se identificariam várias contribuições individuais, mas a
constituição de um fenômeno globalizado, decorrente da ocorrência cumulativa
445
Jesús-María Silva Sanchez, sob esta ótica, também traz considerações críticas sobre as teorias defendidas por
Lothar Kuhlen, sobre os delitos de acumulação ou Kumulationsdoikte, em especial das obras Umweltstrafrecht –
auf der Scuhe nach einer neuen Dogmatik, ZStW, 105 (1993), p. 697 e ss., e Der Handlungserfolg der strafbaren
Gwasserverunreinigung (§ 324 StGB), GA, 1986, p. 389 e ss. In: SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A
expansão..., p. 121 e ss. e notas.
185
de inúmeras ações que, por si só, não constituiriam elementos suficientes a uma
criminalização, ante a ausência de elementos necessários de espaço e tempo
concomitantes e integrados, nesse comportamento eminentemente
massificado
446
.
Também não podemos deixar de reconhecer que a legislação atual,
em especial a legislação criminal pátria, aponta para inúmeros referencias típicos
desta natureza. O que não se pode aceitar é que a pena de prisão seja a opção
primária recepcionada, em um apelo populista nesta criminalização de condutas
que supostamente atentam contra bens universais
447
.
Esta expansão do Direito Penal para um estado de insegurança,
acolhendo características próprias de um sistema administrativo, proporciona
uma figura do Estado como um “Estado de Prevenção”, na verdade decorrente de
446
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 124.
447
Exemplos vários são encontrados nas legislações ambientais, de proteção à economia popular e relações de
consumo, contra a violação de regras fiscais, econômicas e tributárias, contra condutas violadoras de saúde
pública. Em especial o Código Penal traz título inteiro que bem exemplifica esta modalidade de criminalidade.
No Título VIII – Dos crimes contra a incolumidade pública, podemos destacar como exemplos, os delitos de
Perigo de inundação, no artigo 255; de Atentado contra a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo, ao
qual se impõe a pena de prisão (reclusão de 2 a 5 anos), de Arremesso de projétil, artigo 264; de Interrupção ou
perturbação de serviço telegráfico ou telefônico, do artigo 266, com imposição de pena de prisão (detenção de 1 a
3 anos); de Corrupção ou poluição de água potável, do artigo 271, com imposição de pena de prisão (reclusão de
2 a 5 anos); de Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou
medicinais, do artigo 273 e parágrafos, em especial as alterações impostas pela Lei 9.677, de 2 de julho de 1998,
que incluíram, por exemplo, agentes que, em qualquer das condutas de falsificação ou alteração, bem como de
importação, venda, manutenção ou distribuição, utilizaram de cosméticos ou saneantes, impondo-lhes uma
absurda pena de 10 (dez) a 15 (quinze) anos de reclusão. Estes alguns dos exemplos só do Código Penal.
Conquanto que, nas legislações especiais também se multiplicam estas hipóteses como, por exemplo, na Lei n
.
o
9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que tutela o meio ambiente, de onde uma construção fática pode levar a uma
pena de detenção de até 2 anos, como no caso do artigo 29, que trata das condutas de matar, perseguir, caçar,
apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou
autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida, que combinado com seu parágrafo 4
.
o
, se
identificarmos, por exemplo, a conduta de perseguição realizada em período noturno. No caso de crimes
econômicos, dentre outros, podemos citar o artigo 1
.
o
, da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, que atribui à
conduta de suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante, por exemplo, a
conduta de missão de informações, ou prestação de declaração falsa às autoridades fazendárias, a absurda pena de
2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão.
186
uma construção equivocada, pois violadora das próprias garantias individuais
que o modelo de Estado Social e Democrático de Direito dispõe.
3. Questões sobre alternativas sistêmicas: “Direito de
Intervenção”, “Direito Penal de duas velocidades”, “Direito Penal do
inimigo” e “Sistema Penal de emergência”.
Não obstante ser indiscutível, como demonstraremos, que as
soluções para a problemática instalada pela ampliação do Direito Penal moderno
na proteção de bens jurídicos universais, passam necessariamente pelo Direito
Processual Penal, já que o problema é sistêmico e não simplesmente de direito
material, uma abordagem primária sobre a proposta material se apresenta como
adequada, até porque, na defesa desta mesma proposta, as críticas a um Direito
Processual com alternativas de flexibilidade, são significativas
448
.
3.1.Direito de Intervenção”
Uma proposta pelo redimensionamento do Direito Penal passa,
inicialmente por um Direito Penal “básico”, liberal ou nuclear, formado pela
repressão às lesões e aos perigos graves de lesões dos bens jurídicos individuais,
em contra partida à pretensão atual de equiparação de medidas repressivas entre
estas lesões e aquelas produzidas contra os bens jurídicos institucionais
449
,
448
Sobre este ponto Winfried Hassemer In: HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La
responsabilidad..., p. 36 e ss.
449
Ibid., p. 42.
187
devendo qualquer medida neste sentido, partir da consideração da identificação e
precisão destes bens universais com base nos bens jurídicos individuais.
Não se trata, assim, de desconsiderar a real e significativa
importância, defendida neste estudo, da proteção dos bens jurídicos universais,
mas da incapacidade do Direito Penal de solucionar adequadamente os
problemas decorrentes da sociedade moderna, na proteção desta nova
modalidade de bens, essenciais à manutenção da vida e do bem estar social.
É nesta seara que se destaca a proposta do Direito de Intervenção,
que se dispõe a não enfrentar a limitação dos princípios básicos de Direito Penal,
como a culpabilidade, a proporcionalidade e o in dubio pro reo, além das
próprias garantias processuais penais, liberando responsabilidades inerentes à
proteção que essa nova modalidade de direitos exige.
Afastando do Direito Penal clássico os setores característicos de
“déficit de realização”, em especial os delitos de perigo abstrato e os acordos
processuais penais, buscando uma pureza do Direito Penal, para que este consiga
manter intactas suas funções e eficazes seus mandatos e suas proibições,
orientado por um sistema jurídico de respeito a princípios básicos, sem
sobrecarregar sua massa repressiva com situações modernas, que exigem
alternativas modernas, muito mais satisfatórias
450
.
A proposta de Winfried Hassemer, apesar de muito genérica para
a construção de todo um novo sistema
451
, o que pode também ter sido sua
450
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad ..., p. 44 e 45.
451
Isto fica claro pela abordagem da matéria em suas obras: La responsabilidad por el producto en derecho
penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, p. 43 e ss.; História das idéias penais na Alemanha do pós-guerra,
tradução do original alemão por Carlos Eduardo Vasconcelos, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 2, n. 6, abril-junho – 1994, p. 71; Perspectivas del derecho penal del
futuro. Tradução de Enrique Anarte Borrallo, in Revista Penal 1/40, enero, 1998.
188
intenção
452
, na verdade propõe uma transferência dos mecanismos que deseja o
Direito Penal moderno utilizar, mas que o faz em uma evidente violação de suas
orientações “principiológicas” básicas, ainda que se busque uma consideração
dos princípios de Direito Penal, em face da tutela penal de bens jurídicos
universais
453
.
Segundo o jurista alemão,
454
esta nova modalidade de sistema, o
Direito de Intervenção, estaria localizado entre o Direito Penal clássico e o
Direito Administrativo Sancionador, com determinados níveis de garantias e
formalidades processuais mais reduzidos, atribuindo sanções menos intensas, em
especial destacaríamos sanções alternativas à pena de prisão, afastando-se da
estrita legalidade, exigida pelo Direito Penal, em busca de um caráter fático de
adequação de medidas ao caso em concreto, afastando características de
compensação, retribuição e castigo, em favor da prevenção de danos, do controle
de riscos e na segurança de atividades institucionais.
Propondo um controle adequado das atividades perigosas, bem
como uma adequada reparação civil, quando apesar das medidas os danos
seguirem produzidos
455
, as observações de Winfried Hassemer, quando trata do
452
Em um ponto de vista muito particular, penso que a proposta de Hassemer desponta muito mais para uma
iniciativa para fomentar idéias alternativas para um sistema novo de repressão, com atenção voltada diretamente
para a proteção de bens jurídicos universais, desde sua criação e concepção, propondo instigar os doutrinadores e
pensadores do direito a proposição de novas idéias ou à adequação daquelas já existentes, em uma alternativa
voltada para um novo sistema, sem sobrecarregar o Direito Penal já em operação.
453
Ainda que se proponha a uma exposição da adequação dos princípios de direito penal na proteção jurídica de
bens universais, como apresentado no capítulo “V – Princípios orientadores da seleção de bens jurídico-penais
universais e tipificação penal”, evidente que uma linha tênue de sustentação, continuamente violada nos casos
concretos, com práticas particularmente abusivas para um Direito Penal clássico, é uma realidade.
454
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 46 e 47.
455
Apesar das considerações, indispensável observar nota de Francisco Muñoz Conde, na obra conjunta com
Winfried Hassemer - La responsabilidad por el producto en derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, p.
55, nota 8 – indicando que nestas hipóteses, não fica descartada a aplicação do Direito Penal, para sanção de
danos e riscos mais graves, aos bens jurídicos universais, mas sempre em segundo plano de intervenção, como
acessório, da mesma forma em que atua perante outros ramos do Direito. Todavia esta observação, no início de
desenvolvimento do sistema em questão, por si só já enfraquece sua consideração como solução alternativa
inquestionável.
189
“Direito Penal simbólico”, que atualmente cuida da proteção de bens jurídicos
universais, pode ser usada como espelho do que se prega para o Direito de
Intervenção.
Envolvendo uma antecipação do momento de atuação do direito
de repressão, para o castigo ao perigo abstrato de dano, bem como a
flexibilização dos pressupostos da punibilidade, com ampliação do dever de
cuidado, no âmbito empresarial, por exemplo, produzindo uma redução das
garantias e fases processuais, recorrendo a leis setoriais mais técnicas e a normas
penais em branco, deixando ampla margem de discricionariedade e arbítrio
judicial, em uma funcionalidade do sistema, de modo a atender às peculiaridades
dos casos concretos de violações a bens jurídicos difusos e coletivos
456
, o Direito
de Intervenção, assim concebido, responderia como o Direito Penal atualmente o
faz, mas sem os compromissos exigidos pelos princípios básicos orientadores de
sua atividade repressora.
Assim, estes conceitos acabam por concretizar um pouco mais a
visão sobre o Direito de Intervenção
457
.
Sua identificação, diante deste contexto, como uma opção “mais
radical”
458
não comporta acolhimento, visto que em uma análise pormenorizada
456
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad ..., p. 54.
457
Fica claro em nosso posicionamento que o Direito de Intervenção, proposto por Winfried Hassemer, acaba por
restar configurado por características que o próprio Hassemer critica existentes no Direito Penal, mas que
descaracterizam o mesmo, por desrespeitarem, ainda que parcialmente, seus princípios gerais orientadores, ou
decorrentes do que denominamos caráter simbólico do Direito Penal, o que todavia restaria especialmente
adequado a uma modalidade “alternativa” de sistema, adequada especificamente à proteção de bens jurídicos
universais, ou seja, criado para esta finalidade.
458
Renato de Mello Jorge Silveira, em sua obra Direito Penal Supra-individual – Interesses Difusos, São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 199, quando menciona o Direito de Intervenção, indica que com base
nesta orientação de Winfried Hassmer, poderíamos defender uma “brutal descriminalização de condutas”,
deixando que o Direito Civil ou o Direito Administrativo cuidasse desta proteção, o que realmente não existe.
Ocorre que a proposta construtivista não tem o condão de acolher apenas no Direito Civil ou no Direito
Administrativo as alternativas para este novo sistema, mas em uma visão muito mais ampla que isto, selecionar
medidas jurídicas destes sistemas, bem como atuantes no Direito Penal quando trata de direitos universais, para a
190
da obra que alicerça sua construção, podemos observar propostas construtivistas,
acolhedoras de medidas várias já existentes em nosso sistema jurídico como um
todo, já aplicadas aos bens jurídicos universais, mas que por questões de
semântica e oportunidade acabaram por serem introduzidas em sistemas já
existentes, mas inadequados para a tutela pretendida da forma como é, como
especificamente o caso do Direito Penal.
As críticas à sua condição de autoritário
459
ou até
descriminalizador
460
, não comportam uma aceitação imediata ou plena, até
porque, ainda que assim o seja, como conjectura ou plano de construção, o
Direito de Intervenção surge como alternativa viável, de vanguarda, ainda que
audaciosa, mas adequada e criativa, para uma problemática enfrentada pela
colisão entre um Direito Penal de princípios e a violação de seus elementos de
orientação por ele próprio, através de regras para a proteção de uma nova
modalidade de bens jurídicos institucionais, nele introduzidas muito mais em
razão de toda uma pressão pelo simbologismo que o Direito Penal comporta, do
que efetivamente pela produção de soluções satisfatórias, adequadas e eficazes.
Um novo sistema jurídico, com elementos de natureza penal,
todavia orientado em termos preventivos, renunciando à reprovação pessoal
como única forma de resposta penal, bem como à aplicação eminentemente de
penas privativas de liberdade, acolhendo assim o Direito de Intervenção uma
criação de um “novo sistema” sustentado por uma coletânea de idéias novas e velhas, mas atualizadas,
idealizadas e adequadas às novas necessidades da sociedade moderna de risco e de bens jurídicos universais.
459
MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Diritto penale ‘minimo’ e nuevo forme di criminalità. Rivista
Italiana di Diritto e Procedura Penale, 1999, p. 812.
460
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Op. cit., p. 204, nota 65 – onde o autor destaca posicionamento de
Winfried Hassemer, em “Perspectivas de uma moderna política criminal”, resumo de César Roberto Bittencourt,
Três temas de direito penal, Porto Alegre: Editora da Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do
Sul, 1993, p. 98.
191
forma aberta à recepção da imputação objetiva, como forma de
responsabilização.
3.2. “Direito Penal de duas velocidades”
Na pretensão de eximir-se da rota de colisão de críticas, que o
Direito de Intervenção produz, uma posição paralela, defendida por Silva
Sanchez
461
, com uma proposta pelo “Direito Penal de duas velocidades”, apesar
de tentadora, não escapa da problemática de flexibilização na consideração dos
princípios limitadores do Direito Penal, quando da adoção de medidas de
repressão e prevenção a lesões a bens jurídicos universais.
Na análise sobre o tema, Jesús-María Silva Sanchez busca sua
linha de sustentação, argumentando que os sistemas jurídicos, penal e
administrativo sancionador, não devem ter, necessariamente, apenas uma
modalidade de garantias, podendo estipular exigências diferentes segundo
conseqüências jurídicas diferentes
462
.
Com isto, empreende-se uma busca de consideração, no sentido de
que o Direito Penal possa estipular uma sistemática de graduação quanto às
regras de imputação e aos princípios garantidores e limitadores de sua aplicação,
sem exigir a criação de um novo sistema, como no caso da proposta do Direito
de Intervenção.
A defesa pela manutenção do sistema penal como suporte à
responsabilização por violações a bens jurídicos universais, neste
posicionamento, sofre uma primeira influência do caráter “neutro”,
461
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 136 e ss.
462
Ibid., p. 138.
192
“despolitizado” do Direito Penal, em relação ao próprio Direito Administrativo,
por exemplo.
Trataria de se conduzir uma nova concepção de Direito Penal que,
mantidas as garantias próprias como a prisão, abriria espaço para alternativas
pecuniárias e privativas de direitos, em busca da reparação, através de regras de
imputação, equalizando princípios e garantias segundo dois níveis de
consideração
463
, entendendo o Direito Penal como uma composição de diversos
âmbitos parciais de garantias e atuações, que não guardam relação vinculatória
uns com os outros, dispondo de estruturas típicas, regras de imputação,
princípios orientadores, sanções e procedimentos substancialmente distintos, mas
consolidados em um único Direito Penal, com características expansivas, sob um
caráter de múltiplas abordagens, segundo elementares bens jurídicos protegidos.
Tem-se, então, a proposta de que naquela seara de
responsabilização penal, onde a flexibilização dos princípios e garantias penais e
processuais penais vigore, as penas de prisão não sejam consideradas como
possíveis e, de outro lado, naquelas hipóteses onde a prisão seja a pena aplicável,
em especial com penas severas, severa seja, também, a exigência do respeito dos
princípios e regras básicas de apuração e responsabilização penal, exigindo o
estrito cumprimento, principalmente, das garantias processuais
464
.
Importante destacar na defesa de Silva Sanchez que o
enfrentamento desta dualidade de um Direito Penal moderno, é visto segundo
fatos e conseqüências jurídicas, em um direito que se constituiria de
significativos blocos de delitos, onde a prisão como sanção definiria um deles
enquanto que, no tocante ao outro, as demais sanções acabariam como
determinantes. Mantidas, assim, preservadas as regras de imputação e as
463
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão...,, p. 142.
464
Ibid., p. 143.
193
garantias processuais plenas de um Direito Penal liberal, restaria legitimada a
parte flexibilizada das garantias e princípios orientadores, através da recepção da
expansão do Direito Penal para novos bens jurídicos difusos e coletivos, como
uma conseqüência da exigência social possível de ser realizada
465
.
Característica, então, desta expansão legitimada do Direito Penal,
seriam a imparcialidade do juízo e a manutenção do simbólico status de “ilícito
penal”, sem que ocorra a condução a um modelo de “Direito Penal máximo”,
nem impondo o “Direito Penal mínimo”, mas sim de um modelo garantis e
funcional, ao mesmo tempo.
Em um sistema, assim concebido, o questionamento envolvendo o
sistema de imputação e culpabilidade, no tocante à pessoa jurídica, poderia ser
superado, com um abrandamento no modelo de imputação, exatamente porque as
penas privativas de direitos e ou pecuniárias não exigem uma afetação pessoal
direta, ou uma imputação individual, desde que a sanção mantivesse sua
imposição por uma instância judicial penal, em uma manutenção da
estigmatização social e da capacidade simbólica do Direito Penal
466
.
Teríamos desta forma um sistema priorizando a pena de prisão
para delitos que lesionam bens individuais, enquanto que as penas consideradas
como alternativas e de multa, restariam aplicadas aos delitos contra bens
universais. Uma “primeira velocidade” na prisão, asseguradas máximas garantias
penais e processuais, enquanto a “segunda velocidade” nas penas alternativas ou
pecuniárias, com o abrandamento das mesmas garantias.
Desta forma, o que se vê é um posicionamento tutelado pela pena
imposta, muito mais que pela conduta violadora, deixando de considerar as
demais variantes constituidoras da ilicitude, inclusive a valoração de bens e a
465
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 144.
466
Ibid., pp. 146/147.
194
afetação social, seja pela criminalização, seja pela flexibilização procedimental,
e assim podendo ser considerado como de caráter muito restritivo ou de
parâmetros muito limitados.
3.3. “Direito Penal do inimigo” e “Sistema Penal de
emergência”
Identificada com o fenômeno da globalização, parte da doutrina
encontrou refúgio em teorias que, ainda que de forma impactante, defendem um
Direito Penal “da prisão”, com uma flexibilização “máxima” das garantias penais
e processuais penais, para casos de delinqüência profissional ou reiterada,
envolvendo delitos patrimoniais, contra a liberdade sexual, o terrorismo, o tráfico
internacional, o crime organizado
467
.
O “Direito Penal do inimigo”, proposto para aqueles que, através
de suas atitudes na sociedade, sua ocupação profissional, sua vinculação a
organizações criminosas, abandonaram ou recusaram a sociedade de Direito em
que vive, acaba composto de critérios de antecipação da proteção penal, de
inadmissibilidade de reduções de penas, restrição de garantias processuais, que
demonstram ausência de mínima segurança para o convívio em sociedade.
A identificação do “inimigo”, sua concepção e individualização
decorre de critérios objetivos de apuração de reincidência, habitualidade,
profissionalismo nas atividades ilícitas, participação de organizações criminosas,
467
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo...., pp. 87/88.
195
identificando faticamente um contexto de periculosidade latente que, também,
justificaria o tratamento severo diferenciado.
Aliás, a periculosidade do agente passa a ser determinante da
proteção e prevenção penal, como, por exemplo, nos crimes contra o Estado, em
um verdadeiro “Direito Penal de emergência”
468
, decorrente da absoluta
necessidade da intervenção penal, de caráter subsidiário e eficaz.
Tratando-se de um verdadeiro Direito Penal tutelado pela figura
do autor e não conduzido pelo fato, determina sua punição com base no ser
humano que viola regras sociais e não nas violações causadas, punindo a
periculosidade e afastando a proporcionalidade como princípio definidor da pena
imposta sem o respeito e adoção de garantias penais e processuais, em um
caráter simbólico do direito, de cunho retributivo, buscando, inclusive a
antecipação de tutelas penais, em especial na modalidade de bens jurídicos
universais, com a finalidade muito mais de resposta imediata a reclamos sociais,
do que produto de uma busca de solução para a criminalidade organizada, por
exemplo.
O “Direito Penal do inimigo”, acolhe propostas que submetem o
sistema penal à desconsideração de cidadãos, criando uma determinada classe de
excluídos, que, mesmo sendo portadores de direitos na mesma medida dos
demais, segundo um modelo de Estado Social e Democrático de Direito,
enfrentam uma reação desigual deste mesmo o Estado, entendendo que, em
crimes como o terrorismo, como os agentes, em tese, não se sujeitam aos ideais
do Estado e da sociedade, não devem receber deste mesmo Estado a segurança
468
PÉREZ TORO, William Fredy; VANEGAS YEPES, Alba Lucía; e ÁLVAREZ MARTÍNEZ, Carlos
Mario. Estado de derecho y sistema penal. Medellín: Instituto de Estudios Políticos y Biblioteca Jurídica Diké,
1997, p. 19 e ss.
196
de terem seus direitos e garantias preservados da mesma forma dos demais
cidadãos.
Assim, propõe abertamente a identificação de duas categorias
distintas de integrantes da sociedade, uma contendo os cidadãos sujeitos às
garantias legais e a outra dos inimigos que, em razão de sua personalidade,
sujeitam-se a tratamento diferenciado.
O Estado pode proceder de modos diferentes com os delinqüentes,
segundo o cometimento de um erro, ou segundo aqueles que se portam contra a
segurança do Estado e das demais pessoas, integrantes da sociedade, tratando em
todos os sistemas de controle associados à realização de um delito, da
possibilidade de dizer que uma classificação como “inimigo” deriva de quaisquer
das condições que possam converter um cidadão em um “estranho à
comunidade”.
A doutrina funcional normativa de Günther Jakobs
469
conduz a
organização de um sistema segundo uma revalidação de normas, com redução da
importância do ser humano, que se incluído em determinadas condutas pode
passar a ser considerado “inimigo”, rompendo com o modelo de Estado que
propugnamos, mas defendendo a missão do Direito penal como a própria
estabilização do sistema, segundo a revalidação normativa, o que deve ser
garantido pela pena, para quem se afasta a função de proteção a bens jurídicos,
em favor da missão de manutenção das normas como modelos de orientação para
a organização social.
O radicalismo da proposta, em si mesmo reconhece as objeções à
sua aplicabilidade, em especial para bens jurídicos universais, principalmente
469
JAKOBS, Günther. Fundamentos..., p. 179 e ss.
197
porque não flexibiliza princípios, mas efetivamente os desrespeita, até porque o
delinqüente contumaz nem mais é considerado como verdadeiro cidadão de
direitos, por parte da sociedade e de um Direito Penal “de categorias”.
Podemos considerar que esta proposta de Jakobs acompanha uma
“Direito Penal de crises”, onde uma ruptura imprevista do funcionamento normal
do sistema jurídicos, impulsionando respostas rápidas, que possam fazer retornar
o sistema ao seu modo inicial de estabilidade, ou mesmo institucionalizar este
novo modo, acabam por conduzir a uma distância cada vez maior entre as
importantes características político-jurídicas que orientam todo este mesmo
sistema e as ações públicas, executivas, legislativas e judiciárias, em direção a
um fortalecimento e a uma operacionalidade repressiva, encontrando na “força”
uma fórmula de resposta satisfatória, mas sem dúvida que limita os institutos de
um sistema democrático de Estado Social
470
.
Em um sistema de emergência
471
, a crise do Direito Penal recebe
como resposta o próprio Direito Penal. A impunidade se combate com altas
doses de Direito Penal, fabricando-se categorias criminalizantes, como a questão
dos crimes de perigo abstrato, por exemplo, e mesmo opções negociadas de
recompensa por colaboração, destaque à denominada delação premiada,
470
PÉREZ TORO, William Fredy; VANEGAS YEPES, Alba Lucía; e ÁLVAREZ MARTÍNEZ, Carlos Mario.
Estado de derecho..., p. 35 e 36.
471
Importante salientar que parte da doutrina não considera como um “Direito Penal de emergência” a
instrumentalização coativa penal, como meio de repressão às ofensas à ordem tributária e econômica, na tutela de
bens jurídicos difusos e coletivos, indicando neste caso uma degradação extorsiva da lei penal, ou em outros
casos de proteção destes mesmos bens jurídicos uma banalização do Direito Penal rumo ao Direito
Administrativo, a administrativização. Apesar deste respeitável posicionamento, dele ousamos discordar. É que,
esta mesma doutrina defende como elementos fundamentais para a identificação de um Direito Penal de
“emergência”, a existência de fatos novos ou extraordinários, um apelo público-social para soluções imediatas e
repressoras a estes fatos, a utilização da lei penal, que nào soluciona o problema, mas com seu caráter simbólico
impõe a sensação de solução, através de regras especiais ou diferenciais, importando em certo rompimento com
os preceitos do Direito Penal clássico, o que efetivamente encontramos nas alternativas penais impostas à
criminalização de perigo abstrato na proteção de bens jurídicos universais, bem como na abordagem
extraordinária que se propõe com o “Direito Penal do inimigo”. Na doutrina o posicionamento contrário
quesitonado: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La creciente legislación penal y los discursos de emergencia. Teorías
actuales em el Derecho Penal - 75
.
o
aniversario del Código Penal, Buenos Aires: Ad-Hoc S.R.L., 1998, p. 617.
198
vulnerando garantias penais e processuais, em um típico sistema de
gerenciamento de crises.
Assim considerada a opção pela sistemática da crise, da
emergência e do inimigo, a evidente distância entre os princípios orientadores do
Estado Social e Democrático de Direito, contidos na Constituição formal, leva à
identificação de um Direito Penal que não mais se constitui ou se submete a
valores constitucionalmente declarados, mas a valores constitucionais não
declarados, provenientes de uma “Constituição real”, na eleição muito mais de
um verdadeiro instrumento de guerra do que em um sistema de ordenação
jurídico-social civilizada
472
.
472
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La creciente legislación penal y los discursos de emergencia. Teorías actuales
em el Derecho Penal - 75
.
o
aniversario del Código Penal, Buenos Aires: Ad-Hoc S.R.L., 1998, p. 123.
199
VII – A PESSOA JURÍDICA E A PROPOSTA
PROCESSUAL
1. A responsabilização da pessoa jurídica nos crimes
universais
A culpabilidade
473
é um dos elementos determinantes no
enfrentamento de situações envolvendo a responsabilização penal da pessoa
jurídica, em especial, no tocante aos bens universais.
Dentre as objeções da doutrina ao reconhecimento da
responsabilidade penal da pessoa jurídica, podemos destacar a ausência de
personalidade
474
, ou seja, a total falta de elementos volitivos e intelectivos
imprescindíveis à aplicação da pena
475
, e assim a não culpabilidade, uma
incapacidade nata de ação e a própria pena, como criação voltada para aplicação
ao ser humano, ser inadequada na espécie à aplicação às pessoas jurídicas.
Claus Roxin
476
, no mesmo sentido, repele a responsabilidade penal
da pessoa jurídica, diante da carência de elementos espirituais e psicológicos
capazes de sustentar a vontade livre e consciente de agir.
473
Uma abordagem mais profunda do tema: Item n.
o
3 do título “V – Princípios orientadores da seleção de bens
jurídico-penais universais e tipificação penal”.
474
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado..., p. 205.
475
CASTELO BRANCO, Fernando. A pessoa jurídica no processo penal, São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p.
62.
476
ROXIN, Claus. Derecho penal..., p. 258 e ss.
200
Apesar destes elementos, destacarem, de forma clara, que a
responsabilidade pessoal como princípio orientador da atividade penal advindo
da Revolução Francesa
477
, deve prevalecer no Direito Penal, na sociedade pós-
industrial (pós-moderna), a criação de novos riscos e a necessidade de proteção
de novos bens jurídicos, difusos e coletivos, segundo a experiência advinda do
próprio Código Penal Francês atual, em vigor desde 1.
o
, de março de 1994
478
,
uma responsabilidade “quase-penal” da pessoa jurídica não estaria, nem pode
estar, obstada
479
.
Tal fato destaca-se porque o Direito Penal fundamentado na
culpabilidade não se faz apresentar como instrumento suficientemente eficaz,
para combater a moderna criminalidade, em especial aquela envolvendo delitos
econômicos e ambientais
480
.
A necessidade absoluta da comprovação da fórmula tradicional da
conditio sine qua non, em lesões típicas resultantes de decisões coletivas,
produzidas por integrantes e responsáveis por pessoas jurídicas, indicaria uma
quase impossível identificação da relação de causalidade. Desta forma, para ser
eficaz sob a ótica da responsabilidade penal, esta comprovação exigiria uma
alternativa de exceção, sob pena de um inaceitável resultado de impunidade.
Aliás, neste sentido, em sendo a principal problemática do
reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica, o respeito aos
princípios orientadores do Direito Penal clássico, em especial quanto aos bens
jurídicos difusos e coletivos, a proposta do “Direito de Intervenção” de Winfried
477
CASTELO BRANCO, Fernando. A pessoa jurídica..., p. 63.
478
Artigo 121-2, Code pénale, édition 2.002, Juris Classeur, Paris: Litec – Groupe LexisNexis, 2002.
479
TIEDMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas em derecho comparado. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, n
.
o
11 jul/set, 1995, p. 21.
480
No Brasil, a Lei 9.605, de 13 de fevereiro de 1.998, acabou por normatizar, no campo do Direito Ambiental, a
responsabilidade penal da pessoa jurídica cumprindo a determinação constitucional dos artigos 173, § 5 e 225, §
3., que prevê a responsabilidade penal da pessoa jurídica nos casos de lesão ao meio ambiente, lesões à ordem
econômica e à economia popular. Vide também: CASTELO BRANCO, Fernando. Op. cit., p. 65.
201
Hassemer, que reconhece em uma modalidade nova de sistema de
responsabilização por violações a regras de conduta, mediante uma flexibilização
adequada e funcional de requisitos, pressupostos e princípios orientadores,
preservado o Direito Penal nuclear, passa a ser reconhecida como sustentável
alternativa, apesar de, como já demonstrado, carecer de elementos suficientes ao
seu reconhecimento como uma proposta concreta ou viabilizada.
Assim, indispensável destacar que a doutrina européia e por
conseqüência o direito europeu, têm dado amostras da necessidade de
reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica, em especial das
empresas e seus órgãos, decorrente dos produtos por elas produzidos ou
comercializados
481
, através da responsabilização daqueles integrantes de
empresas, responsáveis pelas decisões que, executadas, acabaram por produzir
danos a terceiros.
A sociedade de riscos pós-industriais, na responsabilização de
entes coletivos, em uma fórmula que visa acompanhar uma política criminal
voltada para a proteção de uma nova série de bens jurídicos, não pode render-se
a uma responsabilidade penal sem culpa, uma responsabilidade penal objetiva,
sob pena de violações inaceitáveis dos princípios orientadores do próprio
sistema.
É neste sentido que, então, acaba voltando-se para o
reconhecimento da vontade da pessoa jurídica como uma representação da
vontade pessoal de seus integrantes, representantes ou dirigentes onde, no caso
481
Dentre outras obras que abordam o tema no direito europeu: HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE,
Francisco. La responsabilidad por el producto en derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995; MIR PUIG,
Santiago & LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel,. Responsabilidad penal de las empresas y sus órganos y
responsabilidad por el producto, coordenação, Barcelona: José Maria Bosch Editor, S.L., 1996; TIEDMANN,
Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas em derecho comparado. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n
.
o
11 jul/set, 1995; PRADO, Luiz Régis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em
defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.001; CASTELO
BRANCO, Fernando. A pessoa jurídica no processo penal, São Paulo: Editora Saraiva, 2001.
202
de empresas, a responsabilidade penal por seus produtos, ou melhor, pelos danos
decorrentes de seus produtos, produzidos ou comercializados, unicamente poderá
ser levada em consideração, com relação aos membros individuais das
empresas
482
.
Nesta sistemática as decisões acabariam acolhendo dois momentos
em sua construção. Primeiramente determinando, no tocante ao julgamento da
“organização produtiva”, se seu comportamento danoso decorreu de uma ação ou
de uma omissão, se este comportamento deu causa às lesões de terceiros e se
existe ou se produziu um resultado contrário ao dever de cuidado, inerente à
própria atividade. De outro lado, em segundo lugar, reconhecido o vínculo entre
a ação/omissão e o dano, a responsabilidade será imputada a um ou mais
integrantes individuais da empresa, na medida em que compatível com uma
análise sobre a posição ocupada por estes integrantes e os limites de
responsabilidade a eles atribuídos
483
.
Ora, este posicionamento, bem destacado da jurisprudência
alemã
484
, acaba, por fim, considerando o comportamento da empresa como o
comportamento de uma pessoa física que atua como fabricante, através de atos
de ação ou omissão, sendo que, na medida em que os responsáveis pelas decisões
da empresa são processados, serão responsabilizados penalmente como pessoas
físicas e como responsáveis pelos atos de ação ou omissão da própria empresa,
ficando a posição de cada um deles constituída e limitada, em um âmbito de
competência e responsabilidade, impedindo que a responsabilidade penal se
482
KUHLEN, Lothar. Cuestiones..., p. 236.
483
Ibid., mesma página.
484
Lothar Kuhlen faz uma abordagem crítica das decisões dos Tribunais Supremos da Alemanha e da Espanha
em casos de responsabilização de empresas, por danos decorrentes de seus produtos, em especial decisão do
tribunal alemão: BGHSt 37, 106 – “Lederspray, BGH 1990” – spray para couro. In: Cuestiones fundamentales
de la responsabilidad penal por el producto. Responsabilidad penal de las empresas y sus órganos y
responsabilidad por el producto, coordenação Santiago Mir Puig & Diego-Manuel Luzón Peña, Barcelona: José
Maria Bosch Editor, S.L., 1996, p. 232 e ss., notas.
203
encerre no campo exclusivo da execução
485
. Com isto se leva em conta uma
maneira mais adequada de enfrentamento da nova realidade social pós-
moderna
486
.
Assim, a responsabilidade acaba continuando com seu caráter
pessoal, a partir da determinação do grau de participação subjetiva de cada um
dos distintos intervenientes do processo de criação e introdução de produtos na
sociedade, no caso da pessoa jurídica empresarial ou industrial, com a
determinação de suas cotas de responsabilidade, todavia orientando-se, sempre
por fins político-criminais de caráter preventivo, legitimados democraticamente,
com base nos princípios constitucionais orientadores do Direito Penal, que
exigem uma adaptação dos critérios funcionais e de eficácia
487
, sem deixar,
todavia, como já sustentado, que a responsabilidade penal se encerre na fase
final, ou seja, na execução, reconhecendo o que poderíamos denominar de uma
“imputação plurisubjetiva”
488
.
Apesar deste posicionamento ainda enfrentar uma fase inicial,
encontrando problemas tanto no campo da eficiência como da própria justiça de
sua aplicação, a necessidade de dotar os deveres penalmente relevantes das
pessoas jurídicas, com “contornos precisos”
489
, aparece como questão de
urgência desta nova modalidade de riscos da sociedade pós-moderna.
485
Naqueles que, por exemplo, colocam produtos nas prateleiras para venda ou que não retiram produtos das
prateleiras, fisicamente falando, empregados responsáveis pela execução direta de determinado posicionamento
decidido pela empresa.
486
KUHLEN, Lothar. Cuestiones...,, pp. 237/238.
487
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., pp. 52/53 e nota 6.
488
Winfried Hassemer, quando aborda a questão da culpabilidade, encerra o problema da imputação de
reponsabilidade, nos casos de pessoas jurídicas e bens jurídicos universais, com o reconhecimento de uma
necessária “imputação plurisubjetiva”. In: HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La
responsabilidad..., p. 170 e ss.
489
Ibid., p. 245.
204
2. A proposta processual penal
O Direito Penal de “crise”, que a sociedade pós-industrializada
enfrenta hoje, no tocante à tutela de bens jurídicos universais, pelo que se pode
observar, ainda não encontrou no direito material, soluções adequadas ou
suficientemente adequadas à preservação da segurança jurídica que o sistema
penal exige, caminhando para opções abstratas, que enfrentam perigos
estatísticos, por vezes até imprevisíveis, muito mais buscando atender a reclamos
da sociedade com uma finalidade simbólica do Direito Penal, do que a utilizar de
uma medida eficaz na proteção destes valores.
No processo penal, com sua conformação clássica voltada para a
pessoa física e para os bens jurídicos individuais, a nova sistemática envolvendo
pessoas jurídicas e bens jurídicos difusos e coletivos, naturalmente exigiu
alternativas para apuração de responsabilidades e, também, para o próprio
enfrentamento da crise que o Direito Penal, com características de “emergência”,
acabou suscitando na sociedade atual.
Todavia as alternativas, por vezes, contam com a flexibilização de
máximas penais, decorrentes de seus princípios clássicos orientadores, em busca
de efetividade, funcionalidade e, principalmente, justiça, de forma mais célere,
menos formal, acolhendo oralidade, oportunidade e economia processual como
orientação.
2.1. Críticas às propostas processuais penais
A evidente ampliação da capacidade de atuação do Direito Penal
atual, na proteção de bens jurídicos universais, acabou por introduzir, ou
reconhecer, o princípio da oportunidade, aplicado em um sistema processual
205
penal, como alternativa para solução de controvérsias envolvendo esta
modalidade de delitos, em um amplo uso da negociação penal.
A crítica a este uso amplo ou progressivo nos sistemas processuais
penais modernos, encontra elementos na produção de soluções desiguais e de
difícil controle, com a subtração, muitas vezes, do conflito propriamente dito ao
crivo da publicidade como princípio
490
.
Além desta denominada “quebra de garantia jurídica processual
penal”
491
, a supressão de instâncias da prática probatória, também em destaque,
leva a críticas severas de que estas opções negociadas levam a uma significativa
diminuição das garantias processuais tradicionais, advindas de um modelo de
Estado Social e Democrático de Direito
492
.
Assim, as incriminações massificadas do Direito Penal, acabariam
por produzir estratégias de atuação também massificadas no Direito Processual
Penal
493
, constituídas de um programa vago e amplo de decisões penais,
decorrentes dos denominados “acordos”, em uma busca de capacidade funcional
que desconsidera princípios e garantias, descaracterizando o processo penal
tradicional
494
.
Seguiria este modelo processual penal, segundo a crítica
495
, um
sistema de justiça negociada, que deixaria em segundo plano os valores
orientadores de “verdade” e “justiça”.
490
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 38.
491
Ibid., mesma página.
492
Bernd Schünmann critica a ciência alemã, diante da preocupação com os estudos sobre a negociação penal e
os acordos no processo penal, que deixaram de analisar e estudar a fundo as múltiplas ilegalidades decorrentes
destas práticas, rumo a um estudo das várias formas alternativas de compromisso que poderiam se estabelecer. In:
Consideraciones..., p. 60 e 62.
493
HASSEMER, Winfried. Crítica..., p. 89 e ss.
494
Sobre as considerações críticas da Escola de Frankfurt à descaracterização do Direito Processual Penal:
SCHÜNMANN, Bernd. Op. cit., p. 35 e ss.
495
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 69.
206
Acolhendo opções como o “pacto de imunidade”, promovidos
pelos promotores com certos imputados colaboradores
496
, bem como as mais
diversas formas de mediação
497
, estaríamos caminhando cada vez mais para uma
justiça casuística, uma justiça privada, contratual, em um verdadeiro desencargo
de responsabilidades, a parte de elementos valorativos, em uma gestão eficiente
de problemas
498
.
Traríamos, através da opção negociada penal, com uma ampla
aplicação dos critérios de oportunidade, um desprezo pela formalidade e pelo
conteúdo, em favor de instrumentos rápidos e eficazes, contornando os estreitos
atalhos definidos pelos princípios orientadores do Direito Processual Penal,
adequando soluções necessárias às realidades fáticas, sem vinculações externas,
afastando-se de uma “comunidade ideal de diálogo”, que somente um processo
formal, com as partes esforçando-se na busca da validez de suas teses, mediante
uma argumentação probatória ampla
499
.
As críticas, em questão, suscitam o surgimento de uma
manifestação administrativo-executiva, decorrente de um esvaziamento do
Direito Penal de seu conteúdo e pretensão de validade, decorrente muitas vezes
do colapso a que está sujeito o sistema judiciário, desformalizando e
privatizando o próprio sistema, em uma diminuição de garantias geradora de
déficits de legalidade e imparcialidade.
496
Trata-se da denominada “delação premiada”, acolhida no sistema pátrio, em diversos momentos de nossas
legislações penais: Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei n.
o
7.492/86, de 16 de junho de 1986
– alterada pela Lei 9.080, de 19 de junho de 1995 – que incluiu o § 2.
o
ao artigo 25) ; Lei de Crimes contra a
Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo (Lei n.
o
8.137/90, de 27 de dezembro de 1990 -
alterada pela Lei 9.080, de 19 de junho de 1995 – artigo 16, parágrafo único); Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº
8.072 de 25 de julho de 1990 - art. 8o § único); Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034 de 03 de maio de 1995 –
art.6º); Lei da Lavagem de Capitais (Lei nº 9.613 de 03 de março de 1998 – art. 1º, §5º); Lei de Proteção às
vítimas e testemunhas (Lei 9.807 de 13 de julho de 1999 – arts. 13 e 14); Nova Lei e Tóxicos (Lei n° 11.343, de
23 de agosto de 2.006 - art. 41); artigos 65, III, “b”; 66 e 159, § 4º, do Código Penal.
497
No Brasil, evidentemente, podemos mencionar e destacar a Transação Penal e a Suspensão condicional do
Processo, nos artigos 76 e 89, da Lei n
.
o
9.099/95.
498
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 70.
207
A certeza e a própria severidade do castigo acabam posicionando-
se em um patamar de questionamento, quando difundida uma desformalização,
em favor de soluções de “emergência”, o que acaba privando o ente público de
seu conteúdo simbólico
500
.
A negociação penal, em sentido amplo, reconhecida pela doutrina
crítica como um recurso a “soluções informais” nos trâmites processuais
501
, em
decorrência da criminalidade de massa e seu aumento cotidiano, acabou por se
converter em restrição prática importante ao princípio da legalidade
502
.
Tachado como “comércio da justiça”, por implicar na
possibilidade de antecipação de procedimentos, sem dispensa de sanção, os
procedimentos negociados afastam-se de um critério de igualdade em sua
aplicação, já que nem todo o acusado está em condições de oferecer algo que
possa sujeitá-lo a semelhante tratamento, além de acabar finalizando a causa sem
um controle público e um procedimento equilibrado, coordenado perante um
juiz, cumprindo um ordenamento processual regular.
Claus Roxin, quando aborda o tema, apresenta considerações
significativas sobre a problemática envolvendo a negociação penal no sistema
jurídico alemão
503
.
Admite o autor que o princípio da legalidade – obrigatoriedade –
que rege a ação penal pública é constituído de tantas exceções, em se tratando da
criminalidade leve e, em grande parte, também, da criminalidade média, que na
499
SILVA-SANCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 70 e nota 152.
500
Ibid., p. 73 e 74.
501
HASSEMER, Winfried. Crítica..., p. 89.
502
SCHÜNMANN, Bernd. Crisis del procedimiento penal? (marcha triunfal del procedimiento penal americano
em el mundo?). Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del milenio, Madrid: Editorial Tecnos,
2002, p. 288 e ss.
503
ROXIN, Claus. Derecho procesal penal, Buenos Aires: Editores del Puerto s.r.l., 2000, pp. 90 e ss.
208
prática a regência do sistema está a cargo, na verdade, do princípio da
oportunidade
504
.
Destacam-se nesta sistemática, aqueles fatos que são considerados
insignificantes, ou onde não existe interesse na persecução penal, bem como
aqueles onde o interesse de persecução penal pode ser satisfeito de outra forma,
alternativa.
Nestes casos a culpabilidade do autor é extremamente reduzida e o
fato em geral insignificante, ficando um procedimento complicado, em muitos
casos, como pouco conveniente e produtivo
505
.
Estas disposições práticas buscam um uso que permita por fim à
duração “apenas tolerável”, de alguns procedimentos penais, que assim poderiam
ser considerados desnecessários, constituindo então tais disposições instrumentos
eficazes na solução de casos de criminalidade leve.
Todavia, apesar das considerações sobre argumentos de eficácia,
Claus Roxin lembra que estas mesmas disposições, objeto de uma denominada
“lei de descongestionamento da administração da justiça”, criticadas sob o
argumento de constituírem uma “comercialização da administração da justiça
penal”, continuam mantendo as mesmas máculas criticadas quando de sua
projeção, envolvendo graves violações constitucionais quanto à incerteza das
causas e das condições de sobrestamento do processo, bem como também ao
princípio da independência de poderes, diante da execução destes acordos por
parte do fiscal (promotor de justiça), com distanciamento da sujeição ao crivo do
juízo. Ademais, considera, ainda, que a posição social do imputado pode
504
ROXIN, Claus. Derecho procesal penal..., p. 90.
505
Claus Roxin aborda as disposições dos parágrafos 153 e seguintes, do Estatuto Processual Penal Alemão
(StPO), que contam com as possibilidades de extinção da persecução penal, sobrestamento da persecução, em
casos onde a criminalidade ou o objeto do crime sejam insignificantes, ou ainda ausente o interesse do Estado em
promover a persecução penal; também nas hipóteses em que o imputado, “arrependido”, acaba por evitar um
maior perigo para o Estado com sua contribuição, como quando servir de testemunha do Estado “testigo de la
corona”. In: Derecho procesal penal..., p. 90 e ss.
209
favorecer, ainda que indiretamente, a opção negociada, diante de uma posição
defensiva mais qualificada
506
.
Para minimizar estes efeitos, acaba por propor uma ampliação dos
obstáculos legais à aplicação destas alternativas, dissolvendo a fórmula vazia da
ausência de interesse público, com critérios objetivos de aferição de danos,
caráter primário do imputado e ou sua situação social
507
.
O que se pode observar, de forma geral, é que as inúmeras críticas
à opção negociada gravitam muito mais em torno de sua constituição, em
aspectos formais, que por vezes negligencia direitos e garantias individuais, do
que propriamente por seus efeitos solucionadores.
Neste sentido, abre-se caminho para uma argumentação segundo
elementos de reafirmação e defesa da solução processual, como alternativa à
crise do Direito Penal pós-moderno e a tipificação de perigo abstrato dos bens
jurídicos supra-individuais.
2.2. Enfrentamento da questão: uma solução processual penal
adequada
O direito processual penal nas sociedades pós-modernas está
conduzido, segundo parâmetros ocidentais de comparação, basicamente por dois
modelos: o anglo-americano e o continental europeu.
É certo, também, que alguns elementos diferenciadores básicos em
ambos os sistemas, os mantém com certa distância e independência
508
.
506
ROXIN, Claus. Derecho procesal penal..., p. 92 e 93.
507
Ibid., mesmas páginas.
508
A própria origem do sistema americano, decorrente de um sistema de adversários, onde a apresentação de
provas fica a cargo das partes oponentes, perante, na maioria das vezes, um júri de leigos, mas com a aplicação da
210
Mas é no campo das soluções alternativas procedimentais que uma
importante transmissão ou importe de institutos, em especial em razão da
criminalidade massificada, da crise conjuntural de corrente da sobrecarga dos
tribunais e, também, do enfrentamento de novas questões da sociedade pós-
moderna, como a proteção de bens jurídicos difusos e coletivos e a
responsabilização penal da pessoa jurídica, acabou por conduzir a um sem
número de críticas a uma nova conformação do denominado modelo processual
continental europeu.
Esta questão crítica, já assistida e discutida
509
, concentra-se na
adoção dos acordos penais, comuns no direito processual penal americano, sob a
égide de direitos e garantias legais e processuais, decorrentes de um modelo de
Estado Social e Democrático de Direito.
Assim, para equacionar de forma adequada um processo penal
moderno às alternativas absorvidas de sistemas diferentes, envolvendo soluções
negociadas, em consonância com os princípios orientadores da persecução penal,
os institutos devem ser observados segundo uma nova ordem processual penal,
sendo reestruturados segundo estes mesmos princípios.
2.2.1. A verdade e a justiça
As teorias procedimentais, decorrentes da filosofia do direito que
se dirigem à formulação de um direito justo, buscando a veracidade das
propostas normativas, devem orientar a formação do próprio direito, não
reprimenda por um juízo togado, em contrapartida à origem do sistema penal europeu, decorrente do juízo
inquisitivo, onde o acusado era o principal, quando não o único objeto do processo de instrução, conduzido por
juízes togados, já dá a conotação de suas diferenças.
509
Item 2.1., deste capítulo.
211
segundo uma natureza preconcebida ou uma formulação geral abstrata de lei,
mas utilizar destas, como matéria prima para atos de formação processual, como
a jurisprudência e a atividade jurídica em geral, na concepção de um direito
concreto
510
.
Assim, poderíamos dizer que o direito se materializa unicamente
mediante sua concretização no processo, onde a idéia de consenso acaba por ser
vista como critério decisivo no alcance da verdade e da justiça.
Sob estes marcos fixamos que, o desenvolvimento das teorias
processuais da verdade e da justiça como modelos de pensar são eternamente
convenientes e úteis, na medida em que consideradas, segundo um valor
heurístico, como um sucedâneo comparativo da conditio sine qua non, que é
muito adequada para o contexto de confirmação ou não da causalidade, servindo
as teorias processuais para o controle de concordância e plausibilidade
511
.
As teorias processuais propõem que a verdade ou exatidão deve
emergir do normativo, não só através de processos, mas nos próprios processos,
como produtos dos sujeitos que conhecem e aplicam as normas.
Neste sentido, qualquer discurso normativo, segundo uma teoria
processual de verdade e justiça, exige um tema, configurador de seu conteúdo,
decorrente da experiência, em uma complementação de seus fins.
Desta forma, para que os enunciados processuais sejam
considerados devidamente fundamentados e verificados positivamente, devem
ficar sujeitos à prática e à experimentação, sob pena de contradizer as teorias que
os sustentam, no momento em que enfrentam fatos concretos
512
.
510
KAUFMANN, Arthur. La filosofia..., p.42.
511
Ibid., p. 53.
512
Ibid., p. 65.
212
Assim, para que uma teoria processual da verdade ou da exatidão
acabe sujeita a uma concepção correta, deve proporcionar que os sujeitos
processuais, entre si, alcancem com relação ao mesmo assunto (fato)
conhecimentos convergentes e objetivos.
O procedimento, então, assegura que a busca pela verdade e pela
justiça se materializem no caso em concreto.
Se assim fixado, podemos então dizer que cabem aos institutos
processuais uma aplicação do direito material, de forma individuada, caso a caso,
segundo necessidades particulares, promovendo um discurso de consenso entre
as partes envolvidas, de forma a proporcionar decisão ou solução que atenda aos
reclamos daquela demanda, possibilitando liberdade de agir e disponibilidade de
direitos, dentro do âmbito do que o sistema permita.
Todos estes elementos são importantes para fixar algumas
justificativas à adoção, nos sistemas jurídicos originados do modelo continental
europeu, de origem francesa, de opções do sistema anglo-americano, sem o
impacto violador de garantias fundamentais, em especial se nos voltamos para a
figura dos bens jurídicos universais e, de todo o modo, afastando-se da simples
idéia de um “sistema de emergência”, destinado a solucionar o problema da
“morosidade da justiça”, mas ao contrário, reconhecendo que as opções
negociadas, desde que devidamente adaptadas a uma realidade constitucional de
direitos e garantias, avançam rumo ao reconhecimento de eficácia justa e
segurança jurídica, na certeza de uma resposta reparadora ou educadora, e não
simplesmente retributiva ou rápida.
O enfrentamento de um sem número de críticas à adoção, perante
os sistemas processuais penais de origem continental européia, de opções
negociadas, se faz necessário quando reconhecemos que a adequação
213
procedimental, segundo experiências e materializações jurisprudenciais, em
verdadeira experimentação no sistema, tutela-se pela concretização dos
princípios orientadores do devido processo legal, em um Estado Social e
Democrático de Direito, e não por uma simples flexibilização dos mesmos.
O sistema acolhe a negociação penal adequada a uma busca de
soluções, mediante consenso, oportunidade, participação, alternativas à pena,
alternativas a um processo desgastante e estigmatizador, concretizando a
possibilidade de um diálogo fora do regime limitador de regras processuais
penais rígidas, que está muito mais orientado pela formalidade de atos do que
efetivamente, realmente, pela segurança de garantias constitucionais.
2.2.2. Fundamentos para um processo penal negociado como
alternativa para o problema da proteção justa e exata.
Os princípios de Direito Processual Penal podem e devem
configurar-se como modelos que possibilitam e assegura a compreensão dos
fatos, protegendo os imputados e demais partícipes do processo, construindo um
sistema de compreensão e comunicação, canalizando a violência que acompanha
a existência do próprio fato gerador da persecução, para um patamar de soluções
adequado
513
.
Este patamar exige o respeito a uma ordem jurídica orientada por
valores políticos e ideológicos, segundo momentos históricos, formando um
513
HASSEMER, Winfried. Fundamentos..., p. 214.
214
processo como ordenação comunitária, representante do interesse social e das
diretrizes básicas do sistema político vigente.
Assim, quaisquer normas processuais penais exigem uma
adequação aos princípios, garantias e direitos constitucionais, em uma
interpretação segundo o modelo de Estado adotado, eliminando normas que
desrespeitem os parâmetros deste modelo, em um verdadeiro uso da tutela
constitucional do processo, de forma que uma jurisdição constitucional das
liberdades, do acesso à justiça, do direito ao processo exato e justo, represente
um processo penal orientado pelos mandamentos nucleares de um sistema de
proteção organizado que reconhece bens e valores eleitos pela sociedade, como
dignos de proteção penal
514
.
A visão realista de que não se deve instaurar processos nem
proceder a aplicação de uma pena de prisão, em razão de todas as infrações
comunicadas às autoridade, em opção por uma maior atenção para delitos de
maior gravidade e para a criminalidade estruturada, já indica que a simplificação
de processos, eleitos parâmetros constitucionais (princípios, garantias e bens
jurídicos), em um rompimento com a obrigatoriedade (legalidade), destina-se a
obedecer a um tratamento individualizado, diferenciado, às diversas formas de
criminalidade, muito mais do que atender a um “estado de emergência”. A
finalidade de atender às necessidades fáticas, concretas, individuais de cada
demanda, atropela o formal, em busca de um consensual de garantias
constitucionais.
514
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, 3.
a
edição, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2.003, pp. 16/20.
215
Assim, duas situações se põem em relevo. O processo, como “pólo
metodológico do direito processual”
515
, deve estar sujeito às orientações
constitucionais, mas não a um intervencionismo estatal, que impõe o processo e
a jurisdição com incrementos de formalidade, como forma de assegurar as
garantias constitucionais, em especial uma igualdade formal de tratamento.
É equivocado adotar posicionamentos que sustentam que uma
opção procedimental diversa da tradicional amplamente formal é indevida ou
inconstitucional, em um apelo à possibilidade de igualdade de tratamento
processual.
A igualdade como princípio constitucional, aplicado ao Direito
Processual Penal, deve ser considerada segundo dimensões práticas de
experimentação e vivência, levando-se em conta desigualdades individuais, que
proporcionam diferentes capacidades reais de adquirir direitos e contrair
obrigações, nas situações jurídicas em que se colocam os imputados, em uma
proporcionalidade de diversidades, evitando o tratamento igual aos diferentes,
mas preservando a oportunidade de, segundo cada situação fática e pessoal,
analisada em concreto, todas as oportunidades processuais ficarem disponíveis.
Isto quer dizer que, para que um tratamento igualitário ocorra, as
diferenças devem ser consideras segundo o momento jurídico e fático em que o
indivíduo se encontre, possibilitando a qualquer um que se encontre nas mesmas
condições fáticas as mesmas oportunidades jurídicas.
O acesso à justiça criminal, ou o acesso às alternativas jurídicas
penais, decorrentes de uma disponibilidade econômica, técnica e física, de tempo
515
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional..., p. 31.
216
e espaço, são garantidas constitucionalmente
516
, na preservação do tratamento
igualitário.
A necessidade está em proporcionar oportunidades jurídicas
iguais, em um tratamento igualitário às pessoas que tenham se colocado em
iguais situações fáticas, sujeitas a uma tutela jurisdicional penal.
Se estas pessoas, em razão de suas condições pessoais de
conhecimento de situações, capacidade de cumprimento de obrigações ou
mesmo de vontade de sujeição a regras ou situações jurídicas disponibilizadas,
acabarão utilizando, por exemplo, uma opção negociada, na verdade cuida-se da
garantia de tratamento individuado ao caso em concreto, em um verdadeiro
“princípio da individualização” do processo penal.
A adoção de institutos novos por um sistema, em especial aqui a
adoção de institutos de negociação penal, decorrentes de modelos anglo-
americanos, pelos sistemas europeus continentais, exige muito mais que simples
introdução normativa legal, do instituto, no sistema jurídico pátrio.
Existem algumas necessidades básicas como a adaptação do
modelo negociado à realidade constitucional do país, bem como à
experimentação, através de um estudo de sua materialização jurídica
(jurisprudência), para a produção de compensações necessárias à uma sujeição
adequada aos princípios orientadores da atividade jurídica penal.
Se ocorrida a absorção, segundo uma adaptação jurídica
constitucional, mas com a experimentação se observa que os efeitos produzidos
são muito mais paleativos do que de uma alternativa garantidora efetiva e justa, é
indiscutível que seu funcionamento deve ser ampliado, restrito ou
516
Artigo 5.
o
, inciso LXXIV, da Constituição da República Federativa do Brasil.
217
redimensionado, segundo necessidades sociais de tempo e lugar, muito mais do
que acreditar em uma simples exclusão do sistema ou de uma recusa em sua
aceitação como alternativa viável.
Os problemas constatados na ineficácia formal ou material de
determinado instituto, estão muito mais ligados a uma realidade conjuntural do
Estado, da sociedade ou do sistema judiciário, quando de sua adoção ou
incorporação ao sistema jurídico, do que a um problema da própria natureza
deste mesmo instituto, como no caso da negociação penal.
Reconhecer que a negociação penal deve ser vista como uma
materialização das idéias de argumentação, convergência e consenso
517
, é
também defender a inexistência de uma violação à garantia ao procedimento
integral
518
.
Quando estabelecidos para o caso em concreto determinados
procedimentos, às partes deve ser garantido que o judiciário irá observar o
cumprimento em sua integralidade, segundo uma ordem cronológica coordenada,
vinculado a regras estabelecidas, sem supressão ou inversão de fases ou atos,
mesmo que com concordância das partes, sob pena de nulidade e violação ao
devido processo legal
519
.
Uma das críticas que se tece à negociação penal está exatamente
ligada à supressão de fases processuais, violando garantias de um procedimento
517
KAUFMANN, Arthur. La filosofia..., p. 54 e ss.
518
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional..., p. 114.
519
Um paralelo com as disposições contidas no “micro sistema” estabelecido pela Lei 9.099, de 26 de setembro
de 1995, que tutelam a negociação no campo penal, estabelecendo legalmente um processo que deve ser
respeitado – devido processo legal – serão adequadas à materialização das observações de uma adoção de
negociação penal segundo os princípios orientadores do Estado Democrático de Direito no Brasil. Quanto a uma
ordem procedimental; “Da competência e dos atos processuais” - artigos 63 e seguintes; “Da fase preliminar”-
artigos 69 e seguintes; “Do procedimento sumaríssimo”- artigo 77 e seguintes.
218
integral, produzindo celeridade e funcionalidade, em detrimento de verdade e
justiça
520
.
Ora, tal acontecimento se dá, única e exclusivamente, em razão de
um acolhimento desadaptado dos institutos negociados, bem como da
consideração diferenciada da necessidade de persecução penal segundo um grau
de gravidade no desvalor da ação
521
.
Se não vejamos. No caso do princípio da publicidade, não ocorre
a subtração de um amplo conflito de valores e posicionamentos, como defendem
os críticos.
No caso específico da negociação penal, a sua apresentação
perante o juízo, para validação, execução ou homologação de acordos, ou mesmo
seu desenvolvimento, necessariamente através de um órgão oficial do Estado, o
Ministério Público, no caso de ação pública, coloca todo o procedimento sob o
crivo da publicidade
522
.
Um amplo conflito sob o crivo da publicidade é substituído por
uma “ampla negociação”, trocando as técnicas de enfrentamento e colisão por
regras de argumentação e consenso
523
.
As instâncias não são suprimidas, mas reorganizadas segundo uma
limitação de recursos das decisões de execução ou homologação de acordos ou
negociações
524
, proferidas na primeira instância, sem jamais impedir a
possibilidade de reexame, diante do princípio da falibilidade, integrante,
juntamente com a argumentação e o consenso (convergência), como princípios
520
A esse respeito o item 2.1., deste capítulo.
521
“Do procedimento sumaríssimo”- artigo 77 e seguintes c.c. artigo 61 da Lei 9.099/95.
522
Artigos 60, 64, 72, 73, 74, 76 e parágrafos, artigo 89, § 1.
o
, todos da Lei 9.099/95.
523
Artigos 76 e 89 da Lei 9.099/95.
524
Artigos 82 e 83, da Lei 9.099/95.
219
integrantes do conhecimento racional de valor, em um sistema segundo uma
teoria processual de verdade e justiça
525
.
A prática probatória continua existindo, mas dentro de um importe
de consideração do necessário a cada espécie de negociação, evidentemente
sendo dispensada, não obstada, quando desnecessária ou quando não se fizer
obrigatória para um juízo prévio de subsunção à própria negociação
526
. Isto quer
dizer que a matéria probatória pode até existir e ficar sujeita a uma apreciação,
caso a negociação não se efetive, bem como deverá existir ao menos no estreito
limite do necessário à identificação de que existe uma situação que deverá ficar
sob o crivo do judiciário e que, eventualmente, fica sujeita a uma negociação
penal
527
.
O desprezo da formalidade não ocorre na opção negociada. O que
se observa, na verdade, é uma seleção de atos formais essenciais, dispensando
aqueles que não se prestam à indispensabilidade, mantidas regras procedimentais
básicas, segundo uma orientação normativa em um micro sistema organizado
528
.
A oficialidade das propostas negociadas, ou seja, sua execução
perante órgãos públicos, em atividade publica típica de persecução penal
529
,
descaracteriza as considerações sobre uma privatização do sistema.
A equivalência entre crime e castigo (proporcionalidade), ainda
que em alguns sistemas prévia a uma questão de responsabilidade
530
, são efetivas
525
KAUFMANN, Arthur. La filosofia..., p. 54.
526
Os requisitos mínimos, provas indiciárias, para a constatação da materialidade e de indícios suficientes de
autoria, indispensáveis à sujeição do fato à tutela do judiciário.
527
Artigo 69, da Lei 9.099/95.
528
A Lei 9.099/95 é um exemplo deste micro sistema e as regras contidas nos artigos 76 e 89, indicam a
necessidade de respeito a determinadas formalidade processuais para o reconhecimento de uma negociação
efetiva.
529
Artigos 60, 69 e 72, da Lei 9.099/95.
220
e levam em conta a gravidade do fato e as próprias condições do agente quando
de sua atribuição, ficando os próprios tribunais sujeitos à impugnação, por
exemplo, de propostas absurdas por parte de um negociador público (Ministério
Público), que vise tão somente atender um pressuposto formal de proposta de
alternativa negociada, sem realmente desejar obtê-la
531
.
Um sistema penal misto, com opções negociadas de oportunidade,
limitadas pelas imposições de obrigatoriedade (legalidade), importa em busca de
equilíbrio em alternativas que, de um lado ou de outro, por participarem de um
mesmo sistema jurídico, exigem adaptem-se aos princípios orientadores do
mesmo modelo de Estado, sob pena de serem consideradas inconstitucionais,
fazendo com que uma ampliação natural de limites, decorrentes da
experimentação de institutos negociados (jurisprudência), torne possível
configurar estas formas mitigadas de obrigatoriedade e oportunidade como
garantias processuais constitucionais.
O perfil instrumentalista do direito processual não pode ser
negligenciado em razão do formalismo, defendido como instrumento de garantia
de direitos constitucionais.
A sobrecarga de causas nos tribunais, com conseqüente
morosidade do judiciário, elevação dos custos processuais e restrição no acesso à
Justiça, são também indiscutíveis violações às garantias constitucionais do
Estado Democrático de Direito.
530
No caso da Transação Penal e da Suspensão Condicional do Processo, previstas nos artigos 76 e 89, da Lei
9.099/95, extinta a punibilidade pelo cumprimento das condições estabelecidas na proposta negociada, não
ficarão os imputados sujeitos aos efeitos da condenação - § 6
.
o
, do artigo 76.
531
No caso na Lei 9.099/95, o Ministério Público deve respeitar critérios de equivalência e proporcionalidade,
inclusive na proposta de pena alternativa, sob pena de revisão de seus termos, ou mesmo de intervenção do juízo,
sendo que a efetividade e a característica preventiva da alternativa negociada, vem com a extinção de
punibilidade decorrente do efetivo cumprimento do acordo – o que a experiência moldou, através da
jurisprudência, em conformidade com a teoria processual de verdade e justiça, observada a falibilidade e o
consenso.
221
O equilíbrio entre garantias produzidas por um sistema penal
arraigado no formalismo, com amplas oportunidades processuais de
manifestação, discussão e argumentação sobre os fatos, sujeitos à tutela do
Estado, e as necessidades sociais, também garantidas constitucionalmente, de
uma justiça célere, eficaz, justa e efetiva, é que deve ser buscado. Todavia, neste
contexto a cessão de espaços de ambos os lados é necessária.
O sistema precisa seguir prioridades, proporcionadas pela
experimentação das normas no caso concreto, com a conseqüente opção de
determinadas fórmulas em detrimento de outras, prevalecendo a preservação de
um princípio sobre outro
532
.
Um sistema de ponderação que considera os princípios como
mandados de otimização, determinantes influenciadores com relação às
possibilidades fáticas e jurídicas que surgem como expressão do princípio da
proporcionalidade, considera e acolhe valores em detrimento de outros valores,
mas nunca de forma definitiva, inflexível. Busca, isto sim, uma alteração
dinâmica, através de um processo argumentativo e probatório, segundo casos em
concreto que exigem uma nova consideração
533
. Assim possível estabelecer um
equilíbrio na convivência com institutos negociados em um sistema de plenas
garantias processuais.
A própria voluntariedade do imputado
534
para participação do
processo negociado, sob pena de seu afastamento e sujeição ao procedimento
532
ALEXY, Robert. La idea de una teoría procesal de la argumentación jurídica, in: Derecho y Filosofía, org.
E. Garzón Valdés, Barcelona-Caracas: Alfa, 1985, pp. 43-57; Problemas de la teoria del discurso, Actas del
Congreso Internacional de Filosofía, Argentina: Universidad de Córdoba, 1988, pp. 59-70; Sistema jurídico,
princípios jurídicos y razón prática, Doxa, n. 5, 1988, pp. 143 e ss.; Teoria de la argumentation jurídica,
tradução de Manuel Atienza, Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1989.
533
ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito – Teorias da Argumentação Jurídica, tradução de Maria Cristina
Guimarães Cupertino, São Paulo: Landy Editora, 2002, p. 268.
534
Princípio da liberdade, princípio da livre-iniciativa, princípio do livre arbítrio, liberdade de escolha, ou
qualquer outro nome que se queira estipular à capacidade do cidadão, em um Estado Social e Democrático de
222
comum, com reconhecimento de um direito subjetivo, preenchidos requisitos
legalmente exigidos
535
, surge como elemento determinante da existência da
negociação penal no caso em concreto. Diretamente ligada ao livre-arbítrio no
exercício das garantias, das opções e das alternativas, que um sistema social e
democrático prevê, podendo disponibilizar, até mesmo, garantias processuais
previstas para determinado procedimento penal, a voluntariedade na adoção a
garantias de celeridade, economia e uma prestação jurisdicional efetiva, eficaz e
justa, carreadas em uma modalidade procedimental negociada, é princípio
orientador no sistema processual penal moderno.
Forma-se, assim, um sistema jurídico arraigado em idéias
reguladoras de pretensões, adequadas para o caso em concreto
536
. Este um
modelo capaz de acolher a negociação penal com as características desejáveis do
Estado Social e Democrático de Direito.
Em um único ponto as críticas merecem acolhimento, ainda que
não de forma pacífica.
Trata-se da alternativa negociada, nas hipóteses de crimes de alto
grau de ofensividade, seja pelo desvalor da ação, violenta ou em afronta a
elementos de moral e bons costumes, seja na consolidação por meio de
organizações paralelas ao Estado (organizações criminosas).
Os acordos por impunidade, perdão judicial, redução de penas,
aplicação de reprimendas alternativas, que privilegiam as delações, comportam
Direito, quando o mesmo Estado disponibiliza esta oportunidade, escolher o caminho que melhor se adequar às
suas pretensões, ainda que seja um caminho de poucas garantias e grande eficácia. Errado para alguns certo para
outros, a responsabilidade por seus atos e suas escolhas, em uma sociedade de risco, é predicado para uma vida
em comunidade. A autodeterminação afasta do Estado a função de “grande irmão” (big brother).
535
Artigos 76 e 89, da Lei 9.099/95.
536
ATIENZA, Manuel, As Razões do Direito..., p. 269.
223
uma séria medida de instabilidade para um sistema processual penal, sustentado
pela verdade e justiça.
No sistema brasileiro, a negociação nos crimes de alto desvalor da
ação ou na criminalidade organizada, assumiu a denominação de “delação
premiada”
537
, que comporta vantagens pela delação de co-autores ou partícipes,
constituindo verdadeira troca utilitária do juízo de reprovação por informações
processuais úteis à solução do delito e à prisão de seus autores, da mesma forma
que surge como prevenção geral na repressão dos fenômenos criminais de maior
gravidade, diante de seu caráter que favorece uma desagregação de organizações
criminosas.
Apesar de contar com uma visão de que o acusado colaborador,
com a delação acaba por reconhecer seu crime e auxiliar a justiça, redimindo-se
de sua parcela de participação na infração penal, bem como surgindo para a
sociedade como uma alternativa para a coleta de provas para a captura de grupos
criminosos, se sentido, em parte, ressarcida com sua colaboração, a delação
premiada também amplia o espaço de provas duvidosas produzidas por
“supostos arrependidos”, que conservam o direito de mentir.
Além desta crítica, aliada àquelas que visualizam na negociação
apenas um componente na desobstrução da justiça penal, a delação como
acolhida rompe com o princípio da proporcionalidade da pena, possibilitando
537
Prevista em várias leis: Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei n.
o
7.492/86, de 16 de
junho de 1986 – alterada pela Lei 9.080, de 19 de junho de 1995 – que incluiu o § 2.
o
ao artigo 25) ; Lei de
Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo (Lei n.
o
8.137/90, de 27 de
dezembro de 1990 - alterada pela Lei 9.080, de 19 de junho de 1995 – artigo 16, parágrafo único); Lei dos
Crimes Hediondos (Lei nº 8.072 de 25 de julho de 1990 - art. 8o § único); Lei do Crime Organizado (Lei nº
9.034 de 03 de maio de 1995 – art.6º); Lei da Lavagem de Capitais (Lei nº 9.613 de 03 de março de 1998 –
art. 1º, §5º); Lei de Proteção às vítimas e testemunhas (Lei 9.807 de 13 de julho de 1999 – arts. 13 e 14);
Nova Lei de Tóxicos (Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2.006 - art. 41); artigos 65, III, “b”; 66 e 159, § 4º,
do Código Penal.
224
punições diferentes a pessoas com os mesmos graus de envolvimento no fato
delituoso, desrespeitando a culpabilidade, levando o direito a uma didática de
antivalores, corrompendo o sistema jurídico penal material e instrumental,
forjado, em tese, sobre teorias que preservam a exatidão e buscam o justo.
Neste compasso, apesar das circunstâncias, não há como negar a
presença e a manutenção desta modalidade de negociação, no moderno modelo
processual penal em vigor. Com algumas distorções, nos demais modelos
europeus continentais de processo penal, a negociação penal deste gênero,
também importada do sistema anglo-americano, permanece com os mesmos
problemas.
A solução que se avista mais rápida e eficaz, consiste no
acolhimento da proposta reparadora de Claus Roxin
538
, para quem, como já
destacado, estes institutos realmente maculam o processo penal com um caráter
funcional sem limites ou parâmetros democráticos e sociais adequados, e assim
exigem uma revisão legal, em um juízo alternativo e questionador de
represamento. Este juízo envolvendo a valorização de requisitos objetivos e
subjetivos para a concessão da oportunidade de acordos, pode se identificar
como próximo àquele utilizado no sistema brasileiro, trazendo, por exemplo,
para a figura do juiz a responsabilidade por aplicar ou não, determinar os
parâmetros e impor as medidas cabíveis, nas hipóteses de delação premiada,
538
ROXIN, Claus. Derecho procesal penal..., pp, 92 e 93 e Nota 505.
225
segundo parâmetros específicos previstos em lei
539
, bem como os requisitos
necessários à aplicação da suspensão condicional do processo
540
.
As críticas à sistemática de acordos, vistos por Bernd Schünemann
como conseqüência de uma absorção pelos sistemas continentais europeus de
“corpos estranhos”, vindos do sistema anglo-americano, como solução para uma
“crise do procedimento penal”, são profundas e significativas
541
, daí porque uma
necessidade de revisão do sistema ainda se põe como absoluta, diante da
evolução da sociedade pós-moderna. Isto quer dizer que as soluções, até o
momento, não são satisfatórias.
3. Um sistema alternativo de composição material e
processual na solução para a problemática da proteção de bens jurídicos
universais?
Cercados de uma insegurança sem precedentes, produzido por
iniciativas desproporcionais e decorrentes de uma doutrina muito mais voltada
para um Direito Penal do inimigo, o processo aparece como garantidor adjetivo
da própria atividade repressora e reparadora, destinada ao Direito Penal,
539
No Brasil, salvo na nova legislação destinada à repressão de entorpecentes (art. 41, da Lei n° 11.343, de 23 de
agosto de 2.006), ainda carente de experiências concretas, todas as demais previsões sobre delação premiada além
de contarem com diversas exigências objetivas e subjetivas para sua concretização, estas só se operam pelas mãos
do juiz, cabendo ao Ministério Público apenas a responsabilidade por eventual proposta ou opinando pela sua
concretização, quando os requisitos formais restarem cumpridos pelo “colaborador” (direito subjetivo).
540
Artigo 89, da Lei 9.099/95, que aponta a necessidade de que o delito sujeito, à suspensão, tenha pena mínima
igual ou inferior a um ano, bem como que seu acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado
por outro crime, bem como os requisitos do artigo 77, do Código Penal, que autorizam a suspensão condicional
da pena, quais sejam, que o imputado não seja reincidente em crime doloso; que a culpabilidade, os antecedentes,
a conduta social e a personalidade (subjetivos) do imputado, bem como os motivos e as circunstâncias autorizem
a medida. Exemplo este significativo da proposta de Claus Roxin.
541
SCHÜNMANN, Bernd. Crisis del procedimiento penal? (marcha triunfal del procedimiento penal americano
em el mundo?)...., p. 288 e ss.
226
construindo um caráter simbólico muito mais eficaz, no caso de proteção penal
de bens jurídicos meta-individuais, do que as alternativas materiais hoje
disponíveis.
Consolidada, assim, a necessidade de alternativas à crise do
Direito Penal pós-moderno e a tipificação de perigo abstrato dos bens jurídicos
supra-individuais, as críticas ao sistema processual penal consensual como sendo
um sistema de emergência, na verdade decorrem da falta de adequação dos
institutos de negociação a um sistema de garantias processuais penais amplas
como acima tratado.
No campo do Direito Processual Penal, a deformalização e a
delegalização, cunham opções por um processo moderno, mais simples, rápido e
econômico, com fácil acesso para a sociedade, capaz de enfrentamento, com
eficiência e exatidão, de determinados conflitos específicos na sociedade
moderna, aliado a alternativas pré-processuais, capazes de evitar seu início
através de uma prévia conciliação institucionalizada, estimulada pelo juízo, e até
mesmo a submissão, em determinados casos de pouca complexidade e baixo
desvalor de ação, a soluções extra-legais, com conciliações obtidas pelos
envolvidos, fora do processo
542
.
Aparte dos interesses universais cabe destacar que a integração da
vítima, participando ativamente da negociação, nos casos em que interesses
individuais foram afetados, também faz parte desta proposta modernizadora
543
.
542
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional..., pp. 198/199.
543
“A participação da vítima, no pensamento negociado, como modalidade alternativa de controle social,
pretende evitar a esfera penal de atuação, acolhendo solução de conflitos em uma forma desjudicializada ou
preliminar, mas não sem controle sistemático e regulado pelo Estado, já que suas propostas integram uma
participação dos representantes oficiais na sua realização. A vítima surge como parâmetro definidor de relevância
social do fato, bem como das exigências necessárias à resposta social para o conflito, visto que se torna fator de
aumento ou diminuição destas medidas, enquanto acolhe uma satisfação de anseios, através de uma negociação
reparadora, material ou moral. Não existe como dissociar a vítima do panorama de Justiça Penal Negociada,
fazendo parte integrante de todo o instrumento alternativo” – In: PEREIRA, Claudio José. Princípio da
oportunidade e justiça penal negociada, São Paulo; Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 174.
227
De outro lado, em se tratando de interesses difusos e coletivos,
como pudemos observar durante todo este estudo, alguns elementos singulares e
nevrálgicos, como a destacada insegurança da tipificação de perigo abstrato e o
significativo envolvimento de pessoas jurídicas nos pólos ativos do ilícito penal,
a discussão sobre uma criminalidade “sem vítimas” em uma especial
consideração para os delitos econômico-tributários e os delitos contra o meio
ambiente, passam a reconhecer uma alternativa sistêmica própria como solução.
A criminalidade de baixo desvalor moral, envolvendo delitos que
não comportem violência ou grave ameaça, aliados à delinqüência proveniente
da afronta à nova modalidade de bens jurídicos universais, é campo fecundo para
tratamentos processuais diferenciados.
No campo processual, quanto às infrações de “menor potencial
ofensivo”, os sistemas processuais têm buscado alternativas ao longo e
desgastante processo de conhecimento, que em geral não comporta o interesse de
persecução do Estado, em razão de baixos níveis de culpabilidade
544
ou do
diminuto, quando não ausente, clamor social, com agentes desprovidos de
personalidade criminal e perigosa, proporcionando alternativas únicas ao
sistema.
Quanto a bens universais, na hipótese em que, ainda que não se
identifique uma infração de menor potencial ofensivo, as alternativas negociadas
como o “termo de ajustamento de conduta”
545
, promovido na ação civil pública e
no juízo da infância e juventude, apesar de alcançar um arquivamento do
inquérito civil público, através da produção de um título extrajudicial ou mesmo
judicial, na hipótese de homologação do acordo perante o juízo, na prática
544
No âmbito brasileiro, o procedimento diferenciado da Lei 9.099/95, aliado às propostas de transação penal e
suspensão condicional do processo, são marcantes neste sentido.
545
Estatuto da criança e do adolescente – Lei 8.069/90. Lei da ação civil pública – Lei
7.347/95.
228
alcança, também, os significativos e esperados efeitos penais, já que o promotor
deixa de apresentar denúncia quando o dano restar reparado, mediante o acordo
firmado, com uma reeducação na promoção de condutas responsáveis tendo
efeito, em um verdadeiro caráter preventivo especial e geral educador, em um
contexto claro de alternativa processual viável, eficaz e justa.
Aliás, o termo de ajustamento de conduta, nas hipóteses de delitos
ambientais
546
, alcança precedentes significativos, também, como uma celeridade
e uma economia processuais, em hipóteses onde a reparação e a educação são
objetivos que não necessitam do processo longo e desgastante, nem mesmo da
pena restritiva de liberdade como meios de repressão preventiva integradora.
Assim, aliada aos instrumentos da transação penal e da suspensão
condicional do processo
547
, como solução alternativa de conflitos capaz, no
embate com direitos universais, também o “termo de ajustamento de conduta”
cumpre uma tarefa que o direito material de perigo não alcançou.
O retorno ao enfrentamento das mesmas problemáticas com
garantias constitucionais, que podem estar sendo superadas com estes acordos,
afastando a segurança jurídica que o Estado Democrático de Direito espera,
continuam a existir.
Daí, antes da eleição de uma linha de atuação de vanguarda,
evidentemente sujeita à mesmas críticas impostas ao Direito de Intervenção de
Winfried Hassemer
548
, necessário observar que, ao menos no direito brasileiro,
estas alternativas processuais acabaram distribuídas nas mais diversas leis
546
Gilberto Passos de Freitas, de forma destacada enfrenta a questão: Ilícito penal ambiental e reparação do
dano, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 85 e ss.
547
Nestas hipóteses, em razão de um receio na aplicação ampla destes institutos negociados, o legislador
restringiu seu campo de atuação utilizando de uma avaliação muito pouco adequada, que foi a limitação destes
institutos a crimes com determinadas penas. Na suspensão do processo – artigo 89, da Lei 9.099/95 -, por
exemplo, esta tem como um dos requisitos objetivos a aplicação apenas a delitos com pena máxima igual ou
inferior a dois anos.
548
Item 3.1. (“Direito de Intervenção”), do capítulo VII (Considerações críticas e análises alternativas sobre o
Direito Penal da pós-modernidade e os bens supra-individuais).
229
especiais, que tutelam direta ou indiretamente a proteção de bens jurídicos
universais, como no caso da Lei de Crimes Ambientais – Lei 9.605/98, no
Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90, na Lei de Ação Civil Pública –
Lei 7.347/85, no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90, na Lei de
Juizados Especiais Criminais – Lei 9.099/95, que podem ser destacadas como
exemplos, exatamente com a finalidade de garantir uma avaliação de seus efeitos
pontuais, inclusive nas garantias constitucionais.
O legislador brasileiro utilizou destas técnicas de inclusão de
alternativas negociadas na proteção de bens universais, pontualmente, em razão
de elementos de experimentação, que exigem uma evolução natural da aplicação
dos institutos, para a constatação de sua validade, eficiência e exatidão na
promoção do justo e adequado, bem como de tratamento diferenciado a cada
seara de proteção, apesar de institutos genéricos
549
que cada vez mais acabam
recebendo uma salutar ampliação, para aplicação em um maior número de
delitos, diante da produção de resultados satisfatórios neste campo de
experimentação, também existirem.
Cabe observar que, no campo das garantias e direitos
constitucionais ou do Estado de Direito, que estariam sendo violadas com a
adoção de alternativas negociadas, a discussão sobre a disponibilidade de bens
jurídicos individuais cairia como que viável, sob pena de sustentar que na
sociedade de risco atual, o ser humano que vive em comunidade deve ter em
mente que seus direitos e garantias individuais, em face de uma persecução penal
do Estado, poderão ser colocados sob a esfera da disponibilidade voluntária, no
549
Quando indico como genéricos, pretendo a representação das hipóteses da transação penal e da suspensão
condicional do processo, que tomaram por elementos identificadores de seu campo de atuação não a natureza do
ilícito, mas o quantum de pena aplicado, sendo que receberam uma ampliação deste campo, com a Lei 10.259/01,
que elevou o conceito de crimes de menor potencial ofensivo – artigo 61, da Lei 9.099/95 – do patamar de crimes
com penas máximas iguais ou inferiores a um ano, para penasximas iguais ou inferiores a dois anos, estejam
previsto no Código Penal ou em leis especiais.
230
caso da opção, também voluntária, por um meio alternativo de solução de
conflitos.
Quanto aos bens jurídicos universais, a sistemática continua a
mesma, pois a disponibilidade de garantias e direitos individuais, atinge àqueles
que ofendem os bens difusos e coletivos, nada obstando uma argumentação
sobre a disponibilidade, dentro de critérios de voluntariedade.
No campo da pessoa jurídica, considerada como capaz de afrontas
aos bens jurídicos universais, melhor se avizinha a solução negociada, diante da
já prévia existência de problemas com a individualização da pena e a
culpabilidade, muito mais ferozmente identificados em penas de encarceramento
do que se posta em hipóteses de acordos ou negociações, que visam muito mais
que alcançar a reprimenda, reparar o dano material, o dano moral e o dano social,
que o ilícito provocou, com fins reeducadores e reparadores. Alcançar uma
punição real individual não se presta aos fins a que se propõe o direito material e
processual nestes casos.
Em fim, a imagem de um Direito Processual Penal com uma única
visão orientadora, ou com um único campo de manifestação, tornou-se obscura,
visto que em realidade o processo penal está perdendo sua uniformidade,
requerendo, cada vez mais, questões de menor potencial ofensivo ou que tutelam
o envolvimento dos interesses difusos e coletivos, estruturas processuais
próprias
550
, micro-sistemas, que, todavia, para se afastem de um conceito de
“economia de mercado na administração da justiça penal”
551
, precisam e devem
estar acompanhados de garantias reais, exercidas durante todo o processo de
negociação.
550
TULKENS, Françoise. Justiça Negociada. Processos Penais da Europa, coord. Mireille Delmas-Marty,
tradução Fauzi Hassan Choukr, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 712.
231
3.1. Idéias alternativas
Se o sistema repressivo penal, material e processual, acaba por
ficar, em seus conceitos nucleares de segurança jurídica, decorrentes do respeito
e da defesa das garantias, dos direitos e dos princípios constitucionais
orientadores, fragilizado, em uma flexibilização de alternativas que o acaba
posicionando próximo do direito administrativo sancionador e, por assim dizer,
de soluções do direito civil, o problema não se pode afirmar que está nas
soluções negociadas propostas, que parecem adequadas e tem alcançado os fins a
que se destinam, ainda que em aspectos, em parte, funcionalistas.
O problema está na localização sistêmica destas opções
negociadas e a falta de instrumentalização de garantias próprias, que assegurem
sua execução segundo princípios constitucionais.
Da mesma forma que os delitos de perigo abstrato, construção
mais comum na tipificação de condutas objetivando proteger bens jurídicos
universais, as alternativas processuais negociadas acabaram por surgir em meio à
legislação especial, ainda que por vezes buscando uma ampliação de seu campo
de atuação para outras legislações, como no âmbito da delação premiada nas
hipóteses de crime organizado
552
, onde a legislação visa a tutela de qualquer
delito cometido através da organização ilícita de pessoas com este fim.
A proposta de um deslocamento desta proteção material,
juntamente com suas alternativas negociadas, no âmbito da defesa de interesses
551
TULKENS, Françoise. Justiça Negociada..., p. 717.
552
Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034 de 03 de maio de 1995 – art.6º).
232
universais, para um campo de “intervenção”, ou para uma “terceira via”, parece
muito mais tentadora do que real.
As dificuldades de criação de um novo sistema, que gravite entre o
penal e o administrativo sancionador, são tantas que mesmo Winfried Hassemer,
quando fala no “direito de intervenção” restringe-se, muito mais, quando não
unicamente, ao âmbito material, indicando propostas vagas e imprecisas, típicas
de uma construção simplesmente de bases.
Uma construção com conteúdo também processual, sob bases
teóricas de verdade e justiça, constituiria demanda ainda maior de organização,
sem contar a superação de teóricos, técnicos e práticos problemas de aceitação,
aliados à necessidade de reconstrução de sistemas que já agreguem as
alternativas penais e processuais que se pretende assumir, ou organizar, em um
único sistema.
De outro lado, o reconhecimento de que estas previsões materiais
de perigo e processuais de negociação, em sua natureza, já constituiriam uma
“terceira via”, daí porque, quando de sua criação, em qualquer legislação, ainda
que própria ou especial de uma determinada área de proteção como, por
exemplo, do meio ambiente, diante de suas características de especialidade e
conformidade com a proteção pretendida e a resposta desejada para a tutela de
bens universais, deveria necessariamente seguir parâmetros orientadores próprios
desta “terceira via”, sob pena de não serem aplicados ou serem considerados
“inconstitucionais” (violadores de princípios orientadores do Estado
Democrático de Direito), por parte da doutrina e da jurisprudência.
Os parâmetros orientadores daí, necessariamente, deveriam
integrar previsão genérica própria para proteção de bens supra-individuais,
próprio de uma orientação constitucional, que admitiria ou estivesse esperando
233
regulamentação em lei especial, assumindo parâmetros de penas alternativas ao
encarceramento (multas, restrições de direitos, obrigações de fazer ou de não
fazer,...), bem como alternativas processuais negociadas (acordos, termos de
ajustamento de conduta, transações,...), como principal meio de
instrumentalização da solução dos conflitos, sempre buscando evitar um
processo de conhecimento longo e desgastante.
Estas soluções, todavia, devem estar aparelhadas de requisitos,
principalmente objetivos, de represamento de aplicação, capazes de proporcionar
a negociação apta para hipóteses adequadas.
E, aqueles casos onde, apesar da identificação de uma tipicidade
de perigo, em tutela de bens universais, em razão da impossibilidade de
preenchimento de requisitos objetivos e subjetivos, necessários à
instrumentalização de uma ampla, ou mesmo limitada, negociação, poderiam
ficar sujeitos, ai sim, a um juízo processual de conhecimento e apuração de
responsabilidades, nos termos em que vimos hoje ocorrer no juízo penal, mas
com vistas a uma resposta do Estado limitada à reparação e à reeducação, com
produção de título executivo judicial, em caso de descumprimento, muito
próximo do que observamos, no direito pátrio, na alteração da pena de multa não
cumprida, que inscreve-se como dívida ativa da Fazenda Pública, para ser
cobrada no juízo fiscal
553
, sem necessidade de segregação de liberdade.
Poderiam ser produzidos, ainda, por exemplo, efeitos paralelos
como impedimento de atividades profissionais no mesmo campo de atuação da
origem da violação, restrições a créditos públicos, revogação de licenças e
registros (de marcas e patentes), penhoras “on line” em contas bancárias,
553
Artigo 51, do Código Penal Brasileiro.
234
impostos diretos ou indiretos, dentre outras medidas eficazes, adequadas e
alternativas.
A diminuição aceitável de garantias processuais e materiais, com
tipos estatísticos e de ajustamento de conduta, não comportariam, com um
campo de voluntariedade no âmbito da negociação, violações constitucionais
agregadas a núcleos do sistema penal, pois suas execuções, tuteladas pela lei e
um devido processo alternativo, dentro desta “terceira via”, representariam, com
o incremento de elementos de participação direta, voluntariedade e oportunidade,
uma capacitação no uso adequado de um livre-arbítrio.
Diante destes elementos básicos, podemos observar um início de
ensaio à construção de procedimento próprio, verdadeiro micro-sistema, que
seria adequado a uma proteção efetiva, exata e justa de bens jurídicos universais.
Na materialização deste ensaio, poderíamos aventar algumas
sugestões legais, que poderiam muito mais orientar uma materialização das
idéias aqui defendidas, do que, necessariamente, um projeto organizado.
A conformação legal poderia estabelecer parâmetros, segundo
uma estrutura de disposições gerais assim constituídas:
Art. 1.
º
São denominados interesses universais,
supra-individuais ou meta-individuais, os interesses difusos e
coletivos, assim entendidos aqueles que envolvem um número
indeterminado de pessoas, em razão de um mesmo fato em
comum, ou que se referem a grupos ou categorias de pessoas
determinadas individualizadas, segundo determinada
categorização ou projeção corporativa, conquanto possuam
diferenças ordem quantitativa e qualitativa, dentre eles o meio
235
ambiente, as relações tributárias e econômicas, as relações de
consumo, a saúde pública, etc.
Art. 2.
º
Esta lei orienta-se por critérios objetivos e
subjetivos, segundo princípios e valores do Estado Democrático
de Direito, dentre outros inclusive a oportunidade, a oficialidade,
a voluntariedade, a informalidade, a celeridade processual, a
oralidade, a economia, a participação social e a via negociada na
solução de conflitos de forma consensual.
Art. 3.
o
As sanções previstas nesta lei são
alternativas, comportando multa, restrição de direitos,
perdimento de bens, revogação de licenças e registros, proibição
de participação em concursos, licitações e concorrências
públicas, restrição no exercício de atividade profissional,
proibição de percebimento de financiamentos e incentivos fiscais
ou creditícios públicos, perda de títulos ou certificados, interdição
de bens e direitos patrimoniais, acompanhamento de atividades
por tempo determinado, prestação de contas pessoais e
empresariais, dentre outras de mesma natureza que não
ultrapassem os limites desta lei, sempre condicionada à
obrigatória reparação de danos.
Art. 4.
o
. Os procedimentos e as sanções previstas
nesta lei aplicam-se a pessoas físicas e a pessoas jurídicas, dentro
dos limites de sua capacidade e eficácia, respeitada a imputação
de responsabilidade aos limites dos atos praticados e da
responsabilidade pessoal ou contratual existente.
236
Art. 5
º
. Dentro da coletividade de vítimas,
alcançada a determinação de pessoa ou grupo afetado de forma
direta, serão chamados a participarem dos procedimentos
previstos nesta lei, com a finalidade de integração e colaboração
na conciliação e obtenção de solução reparadora e educadora,
necessária à demanda.
Art. 6.
o
. Na aplicação das sanções previstas nesta
lei, serão observadas a gravidade do dano, o perigo da conduta
ou o desvalor da ação, os limites dos prejuízos produzidos ou a
produzir, os antecedentes históricos dos agentes coletivos ou
individuados, a situação econômica e social dos imputados e a
capacidade de reparação.
Art. 7.
o
. Os procedimentos previstos nesta lei serão
orientados pela negociação e pelo consenso, presididos por
mediadores leigos ou oficiais, sujeitos à homologação de
autoridade judiciária, ficando as demandas sujeitas a
procedimento sumaríssimo, tão somente na hipótese de infrutífera
a negociação.
Art. 8.
o
. Ficam sujeitos às alterações materiais e
processuais previstas nesta lei os fatos que, não sendo realizados
com violência ou grave ameaça à pessoa, nem produzindo efeito
lesão corporal ou morte, tipificados no Código Penal nos artigos
(...); no Capítulo III – Dos crimes contra a saúde pública, do
Título VIII – Dos crimes contra a incolumidade pública (artigos
267 a 285), (...); nas leis 7.492, de 16 de junho de 1986; 8.078, de
237
11 de setembro de 1990; 8.137, de 27 de dezembro de 1990,
9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (...).
(...).
Assim, teríamos que destacar, ainda que de forma vaga e
imprecisa, seguindo a mesma linha argumentadora deste ensaio, que as normas
orientadoras do micro-sistema seriam aplicadas como discurso, com o fim de
resgatar um consenso racionalmente motivado, por meio de argumentos, em
processos de entendimento, nos quais, sob especiais condições de interação, os
participantes ingressam em um discurso negociado, buscando cooperativamente
a verdade e a justiça, excluídas na conciliação quaisquer coações exceto a dos
melhores argumentos
554
, retirando da esfera de proteção penal aqueles fatos que,
motivados pela proteção a bens jurídicos supra-individuais, em sua tutela exigem
elementos de flexibilidade, com utilização de novos elementos alternativos de
voluntariedade, oportunidade e consenso, que em um sistema repressivo penal
ficariam comprometidos ou constituiriam elementos violadores de garantias,
direitos e princípios, nucleares do direito penal.
Daí, então, delineadas algumas linhas iniciais de uma proposta
alternativa, uma “terceira via”, para uma atuação material e instrumental, apta à
demanda decorrente da proteção de bens jurídicos universais, construída segundo
as características marcantes destes próprios bens jurídicos, a necessidade de
elementos de consideração de aptidão na responsabilidade de pessoas jurídicas,
na recepção de construções materiais, agora extra-penais, de perigo, com a
utilização procedimental primária da negociação ampla, regulada por elementos
objetivos e subjetivos de represamento, com uma voluntariedade na recepção do
procedimento e a oportunidade da persecução de causas que apresentem como
554
GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação..., p. 75 e ss.
238
dignas de importância, em real afronta ou perigo de afronta aos bens protegidos,
sempre se sujeitando à adoção ou aplicação de sanções entre as quais nãos se
inclui a prisão.
Apenas a título de argumentação, as alternativas restariam
adequadas aos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito,
porquanto respeitariam a dignidade da pessoa humana, reprimindo mais
adequadamente as violações a determinada classe de bens, que não são aptos a
uma resposta penal exata, justa e eficaz, optando por elementos de oportunidade
e voluntariedade que, alinhados ao direito de escolha e participação ativa dos
envolvidos na própria produção de soluções argumentadas para os prejuízos ou o
perigo de prejuízos produzidos, manteriam intactas as próprias estruturas do
sistema penal de persecução e proteção, em uma segurança jurídica adequada aos
reclamos da sociedade atual.
239
CONCLUSÕES
1. A orientação jurídica penal na pós-modernidade, enfrenta
situações inusitadas de espaço e tempo, exigindo uma releitura dos institutos
tradicionais de repressão.
2. A atual sociedade é marcada por elementos de adequação social
e risco permitido, que enfrentam a teoria tradicional do delito.
3. A expansão do direito penal, rumo a uma criminalização de
condutas não é uma criação própria do sistema jurídico, mas uma resposta a
evolução da globalização das relações sociais.
4. Diante do efeito da sociedade pós-moderna, social, jurídica e
economicamente globalizada, a manutenção das condições de vida, segundo um
critério de paz social, desencadeou a necessidade de proteção jurídica
diferenciada a uma nova modalidade de bens: os bens jurídicos difusos e
coletivos.
5. O direito penal, acessado como sistema solucionador para a
proteção desta nova modalidade de bens jurídicos, assumiu no campo legislativo
e no campo judicial um caráter de prima ratio, superando padrões de
subsidiariedade, fragmentariedade e proporcionalidade, rumo a um Direto Penal
máximo, em uma expansão na gravidade de repressão e de campo de atuação.
240
6. Iniciou-se uma tipificação de condutas lesivas a bens jurídico-
penais supra-individuais, seguindo critérios tradicionalmente concebidos para
bens jurídicos individuais, não encontrando a eficácia pretendida pelo sistema.
7. As estruturações típicas se voltaram para uma modalidade de
perigo abstrato, sem consideração significativa da ação individuada, segundo os
riscos inerentes à conduta perpetrada pelo agente e o seu próprio desvalor.
8. A sistemática jurídica tem aceitado a tipificação de perigo
abstrato como adequada ao modelo constitucional vigente, sem atentar para
elementos de risco permitido, adequação social e imputação objetiva,
socializando situações de risco e afrontado os princípios orientadores do atual
modelo de Estado Democrático e Social de Direito adotado.
9. O legislador penal brasileiro optou pela criação de tipos penais
de perigo, na proteção de bens jurídicos universais, segundo a ótica de proteção
dos bens jurídicos individuais, desconsiderando princípios orientadores da
atividade jurídica que não podem ser superados.
10. A adoção de uma política criminal voltada a uma interpretação
do sistema jurídico penal, segundo princípios orientadores do Estado
Democrático de Direito, pode acolher, ainda que provisoriamente, soluções que
sustentem uma dogmática jurídica capaz de interpretar e aplicar adequadamente
a proteção penal, legitimando as instituições.
11. O simbolismo é marca do sistema jurídico-penal de proteção
de bens universais no Brasil, visto que atende de forma rápida e impactante aos
reclamos sociais, muitas vezes fomentados pela propaganda enganosa de
situações fáticas de crise de impunidade, fomentando o desconforto e o
inconformismo sociais como elementos de pressão para um legislador
241
despreparado, muito mais voltado para a expansão na criminalização de condutas
do que para a solução de conflitos.
12. As formulações destinadas a uma tutela penal de interesses
difusos e coletivos não atende às necessidades de proteção jurídica desta
modalidade de bens, buscando na antecipação da proteção penal uma solução
que, na verdade, não é eficaz, verdadeira ou justa.
13. Encontramos na atual formulação repressora penal de
infrações que atingem bens jurídicos supra-individuais, uma busca de atingir fins
não importando os meios utilizados. Acolhe-se uma tipificação de perigos
estatísticos, cumulativos ou globais, sob argumentos de prevenção, com a adoção
de sanções a condutas que constituem pequenas parcelas de contribuição para
problemas sistêmicos ou setoriais. A antecipação dos problemas decorrentes da
modernização industrial e do crescimento populacional, como argumentos de um
Direito Penal de custos maiores, que supera benefícios individuais, é o
instrumento utilizado para os atuais problemas de proteção de bens universais.
14. A idéia da restrição do Direito Penal a esferas de proteção
jurídica individual como regra, deve ser considerada como importante, restando
às condutas difusas e coletivas a repressão penal como ultima ratio, segundo os
princípios de um Direito Penal mínimo.
15. Para a concretização de um Direito Penal mínimo, ou como
ultima ratio, na proteção jurídica de bens universais, outros sistemas jurídicos de
proteção são necessários, a fim de ocuparem um campo de proteção
indispensável na atual sociedade pós-moderna.
16. A responsabilização individual e a responsabilização da pessoa
jurídica precisam compartilhar um mesmo sistema de proteção jurídica de bens
242
supra-individuais, que atenda a reclamos específicos dos princípios que orientam
a eleição desta modalidade de bens jurídicos.
17. A criação de um novo modelo jurídico, um Direito de
Intervenção, ainda carece de elementos estruturais satisfatórios, todavia
comporta uma concepção que não se mostra satisfeita por fórmulas outras
nascidas do Direito Penal, mas conduzidas a estados emergenciais ou pouco
isonômicos na garantia de direito e garantias fundamentais (Direito Penal de
duas velocidades; Direito Penal do inimigo; Direito Penal de emergência).
18. A administrativização do Direito Penal também não satisfaz as
necessidades de uma nova modalidade de proteção jurídica. O Direito
Administrativo Sancionador exercido segundo princípios decorrentes da ordem
penal, não é adequado, pois segue finalidades diferentes daquelas naturais do
Direito Penal.
19. O Direito Administrativo Sancionador busca a proteção de
modelos de gestão setorial, sem análise de critérios de lesividade e
periculosidade concreta, em uma atenção à afetação geral e estatística, em uma
persecução sujeita a critérios de oportunidade, como verdadeiro reforço da
gestão administrativa, o que verdadeiramente não atende plenamente aos
reclamos de proteção jurídica de bens difusos e coletivos.
20. Um direito repressor que não tenha características exclusivas
penais, mas que não deixe de considerar o Direito Penal como necessário em
situações extremas (ultima ratio), exige uma conformação alternativa,
constituída de elementos matérias e processuais adequados e próprios para uma
política orientada por uma teoria de justiça e verdade.
21. O enfrentamento da limitação imposta pela culpabilidade, pela
proporcionalidade e pelo in dubio pro reo, naturais do Direito Penal individual,
243
além das próprias garantias processuais penais, em um novo sistema jurídico
repressor, adequado à proteção de bens universais, exige a liberação do sistema
destas responsabilidades.
22. Aliado há determinados níveis de garantias e formalidades
processuais mais reduzidos, com sanções menos intensas, alternativas à pena de
prisão, e afastando-se da estrita legalidade natural do Direito Penal, um novo
sistema jurídico adequado buscaria um caráter fático de adequação de medidas
ao caso em concreto, com desconsideração de características de compensação,
retribuição e castigo, e adoção da prevenção de danos, do controle de riscos e da
segurança nas atividades institucionais como fundamentos.
23. Entretanto, para complementação de solução sistêmica pós-
moderna adequada à proteção de bens jurídico supra-individuais, a definição de
uma teoria que busca elementos de verdade e justiça em sua formulação, deve
passar, necessariamente, pela segurança da um caminho sólido, onde o respeito
aos direitos fundamentais seja seu principal objetivo.
24. O direito não pode pretender demonstrar apenas logicamente
qualquer tipo de verdade empírica. Seu dever está em buscar justificar
posicionamentos e decisões mediante a aceitação e o consenso sobre as mesmas.
25. O jurista deve utilizar-se de argumentos que sempre logrem
convencer e atender aos reclamos comuns, e não tão somente aos reclamos de
uma única vertente.
26. Trata-se de considerar que a criação de um novo sistema deve
basear-se na universalização, que implica em um discurso prático que muito
mais que do que o direito material pode dispor.
244
27. A exigência da participação efetiva do jurista, através de uma
interpretação segundo as necessidades da sociedade, em um discurso prático,
mas recorrente à justiça e à proteção e aplicação de um direito que atende às
realidades humanas concretas, se faz indispensável.
28. O ser humano deve ser o centro da imputação de um Direito
justo e eficaz, destacando-se o horizonte dos direitos fundamentais como
orientador de qualquer nova concepção de sistema de proteção jurídica.
29. Assim, um novo sistema jurídico somente restará legitimado
por meio de um reconhecimento pessoal dos direitos humanos fundamentais,
onde um discurso real que gere um Direito justo, sem abreviar regras e condições
que assegurem uma responsabilidade pelo produto de suas ações, gere uma
verdadeira teoria procedimental sustentada pelo personalismo, materializado em
um processo reconhecido como abrigo das relações jurídicas justas.
30. Reconhecido o processo como elemento constitutivo essencial,
ao lado do direito material, de qualquer novo sistema jurídico de proteção, um
caminho a ser percorrido na busca por um Direito justo, evidentemente que passa
por um processo judicial que não pode ser concebido como um processo
silogístico, limitado a concepções mecanicistas e normativistas, absolutas e
rígidas.
31. Ao processo exigi-se uma atividade interpretativa ajustada aos
moldes de uma sociedade de tempo e lugar, que clama por justiça através do
sacrifício de conteúdos materiais formais insatisfatórios.
32. Aos juízes não cabe desconhecer nem modificar as leis, sob
pena de desconsiderarem o novo paradigma do Estado Democrático de Direito,
desequilibrando a estrutura liberal da separação de poderes, todavia devem
245
interpretá-las segundo a equidade e os princípios gerais, em atenção ao
verdadeiro significado dos fatos cujo alcance jurídico tem que definir.
33. A construção de uma política processual a luz dos direitos
fundamentais, visando atender ao déficit jurídico-material que a tutela de bens
jurídicos universais enfrenta, trata exatamente de reconhecer a jurisdição como
uma atividade criadora do Direito, que não pode ser limitada à aplicação cega da
legalidade sob o pretexto de proteção à segurança jurídica.
34. Para uma teoria procedimental materializada segundo um
processo destinado à eficácia na solução de conflitos envolvendo bens jurídicos
universais podemos concluir:
a. que o processo venha se impor como instrumento público de
tutela de direitos substanciais e garantias constitucionais de ordem individual,
social, coletiva e supra-indvidual, adotando mecanismos modernos e efetivos na
busca da realização do princípio da instrumentalidade das formas, ou seja, que o
formalismo não é nem nunca será um fim em si mesmo, devendo ser suprimido
pela solução justa e adequada;
b. que o processo judicial assuma a condição de caminho dirigido
à solução de conflitos segundo a justiça como valor fundamental;
c. que o processo assuma uma adequação definitiva ao modelo de
Estado Social e Democrático de Direito, através da adoção precípua dos
fundamentos da Carta Constitucional como fonte justificadora do próprio
processo, na direção de um juiz criador do Direito que não está a serviço de um
modelo de Estado policial, garantista, ou simplesmente garantidor da ordem
jurídica, a ser superado de forma definitiva em nosso sistema.
246
d. o processo requer uma situação única, uma necessária
unificação e integração que supere o sistema tradicional de burocracia e escrita,
apegado à documentação excessiva e desnecessária, com a lentidão como
principal característica, para dar lugar à valorização na simplificação dos atos,
sem eliminar os meios probatórios de busca da verdade, observando-se os
princípios de isonomia e igualdade, oralidade, imediatidade e celeridade,
publicidade e concentração probatória, em um direito processual que não se
esgota nas formas.
e. um novo sistema jurídico processual necessita estar orientado
segundo princípios processuais como fatores de mudança social e recuperação de
uma teoria do processo fundada em direitos fundamentais e na estimativa de
justiça, sem sacrifício do pluralismo cultural e das numerosas opiniões do
modelo complexo de sociedade que enfrentamos.
35. A criação de um novo sistema jurídico adequado para a
proteção de bens jurídicos difusos e coletivos é uma necessidade da sociedade
pós-moderna, diante da atual crise criada pela inadequada expansão do Direito
Penal clássico, para a proteção destes bens jurídicos.
36. Este novo sistema jurídico exige a integração e a
interdependência material e processual como principado. Trata-se de uma
formula capaz de superar os déficits de eficácia que as atuais alternativas
jurídicas de proteção de bens jurídicos universais têm proporcionado.
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