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LÚCIO DELFINO
A TUTELA JURISDICIONAL NA RESPONSABILIDADE
CIVIL DAS INDÚSTRIAS DO TABACO POR DANOS
ADVINDOS DO TABAGISMO
PUC – SP
2006
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LÚCIO DELFINO
A TUTELA JURISDICIONAL NA RESPONSABILIDADE
CIVIL DAS INDÚSTRIAS DO TABACO POR DANOS
ADVINDOS DO TABAGISMO
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Direito,
área de concentração em Direito das
Relações Sociais (sub-área: Direito
Processual Civil), sob a orientação do
Professor Doutor Donaldo Armelin.
PUC – SP
2006
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LÚCIO DELFINO
A TUTELA JURISDICIONAL NA RESPONSABILIDADE
CIVIL DAS INDÚSTRIAS DO TABACO POR DANOS
ADVINDOS DO TABAGISMO
COMISSÃO JULGADORA
TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR
Presidente e Orientador Prof. Dr. Donaldo Armelin.
1º Titular.............................................................
2º Titular.............................................................
3º Titular.............................................................
4º Titular.............................................................
5º Titular.............................................................
6º Titular.............................................................
São Paulo, de de 2006.
Ao meu pai, Claudiovir Delfino, que com seus
estímulos, baseados na certeza de que a
educação é um dos pilares do desenvolvimento
humano, despertou em mim o amor pela
pesquisa científica.
À minha mãe, Alda Dias Delfino, por uma vida
dedicada exclusivamente ao bem estar de sua
família.
À Michelle Delfino, minha adorável esposa,
pelo amparo e paciência nos longos momentos
dedicados a esse trabalho.
Aos meus irmãos, Augusto César Delfino e
Ricardo Delfino, pela amizade sincera e alegria
de simplesmente existirem.
AGRADECIMENTOS
Ao estimado professor Donaldo Armelin, não só pelo
tempo doado e lições imprescindíveis ao desenvolvimento desse
trabalho e ao meu próprio aprimoramento intelectual, mas
principalmente pela forma carinhosa e amiga com que sempre me
tratou.
Ao amigo Dr. João Delfino, pelas conversas e lições
acertadas que muito contribuíram para o desenvolvimento dos
raciocínios descritos no trabalho.
A todos os amigos que, de algum modo, contribuíram
para a concretização desse projeto.
Aos professores de Direito da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
“Deixar de fumar é a coisa mais fácil
do mundo. Sei muito bem do que se
trata, já o fiz cinqüenta vezes.”
Mark Twain
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS.....................................................
RESUMO..................................................................................
ABSTRACT..............................................................................
INTRODUÇÃO.........................................................................
CAPÍTULO I – OS EFEITOS DELETÉRIOS DO TABACO
SOBRE A SAÚDE HUMANA....................................................
1 De remédio a pandemia: brevíssimo relato histórico sobre o
surgimento e disseminação do tabaco pelo mundo.........................
2 A composição do cigarro e as substâncias emanadas de sua
queima......................................................................................
3 Uma droga potentíssima chamada nicotina................................
4 A causalidade entre o tabagismo e diversas enfermidades...........
4.1 O tabagismo como doença crônica.........................................
4.2 O câncer no pulmão..............................................................
4.3 Doenças coronarianas...........................................................
4.4 Bronquite crônica e enfisema pulmonar..................................
4.5 Acidentes vasculares cerebrais..............................................
4.6 Doença de Buerger...............................................................
4.7 A impotência.......................................................................
4.8 Outras enfermidades associadas ao tabagismo.........................
5 A mulher e o tabaco................................................................
6 As crianças, os adolescentes e o tabagismo...............................
7 Os perigos à saúde decorrentes do tabagismo passivo.................
8 A deficiência de informações sobre os malefícios causados pelo
cigarro: uma primeira abordagem acerca da imperfeição extrínseca
do cigarro.................................................................................
9 Mais algumas estatísticas relacionadas ao tabagismo.................
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CAPÍTULO II – HISTÓRICO E NOÇÕES FUNDAMENTAIS À
ADEQUADA COMPREENSÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR........................................................................
1 Uma abordagem histórica do direito fundamental da defesa do
consumidor...............................................................................
2 Estabelecendo os contornos do consumidor brasileiro................
2.1 A influência do direito comparado na metodologia de
interpretação do Código de Defesa do Consumidor: uma
interferência restritiva aos contornos do consumidor brasileiro.........
2.1.1 Conformidade do conceito de consumidor, devidamente
positivado na ordem jurídica nacional, com as realidades política,
social, econômica e cultural do País: desnecessidade de utilização
do Direito Comparado................................................................
2.1.2 A utilização dos princípios da Lei consumerista como
instrumentos de interpretação destinados a superar omissões e
contradições legislativas............................................................
2.2 Definições de consumidor nos ordenamentos jurídicos
alienígenas................................................................................
2.3 A amplitude do termo consumidor na ordem jurídica nacional......
2.3.1 Divergências doutrinárias a influenciar o conceito de
consumidor padrão....................................................................
2.3.1.1 Significação da expressão destinatário final......................
2.3.1.2 São os intermediários consumidores no sentido legal?.......
2.3.1.3 São caracterizadas como consumidores as pessoas
jurídicas que adquirem produtos ou contratam serviços para
fomentar seu negócio?...............................................................
2.3.2 O primeiro conceito por equiparação legal: a coletividade de
pessoas equiparada ao consumidor..............................................
2.3.3 O segundo conceito por equiparação legal: as vítimas de
acidentes de consumo equiparadas aos consumidores....................
2.3.4 O terceiro conceito por equiparação legal: as vítimas de
práticas abusivas.......................................................................
3 Os interesses transindividuais..................................................
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3.1 Os interesses difusos............................................................
3.2 Os interesses coletivos em sentido estrito..............................
3.3 Os interesses individuais homogêneos...................................
4 O fornecedor de produtos e serviços.........................................
4.1 A figura do fornecedor aparente no Código de Defesa do
Consumidor...............................................................................
5 Conceito de produto e a expectativa do consumidor...................
6 Uma maior aproximação do microssistema consumerista:
apontamentos sobre o art. 1.º da Lei 8.078/90..............................
6.1 Esclarecimentos iniciais.......................................................
6.2 Um verdadeiro microssistema das relações de consumo...........
6.3 O caráter de ordem pública das normas entabuladas no Código
de Defesa do Consumidor...........................................................
6.4 A importância funcional do art. 1. º da Lei 8.078/90...............
6.4.1 Mitigação da autonomia da vontade e da liberdade de
contratar...................................................................................
6.4.2 A aplicação da Lei consumerista.........................................
6.4.3 A defesa do consumidor: cláusula pétrea.............................
6.4.4 O direito intertemporal e o Código de Defesa do
Consumidor...............................................................................
6.4.5 Conflitos entre o Código de Defesa do Consumidor e outras
legislações................................................................................
6.5 Conclusões..........................................................................
CAPÍTULO III – O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
APLICADO ÀS RELAÇÕES FIRMADAS ENTRE TABAGISTAS
E À INDÚSTRIA DE CIGARROS.............................................
1 Relações de consumo firmadas entre fumantes e empresas de
fumo.........................................................................................
2 O tabagista: um consumidor padrão facilmente identificável.......
3 A massa de consumidores fumantes acometida por doenças
tabaco-relacionadas...................................................................
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4 Um consumidor com características peculiares: o fumante
passivo, uma vítima de relações de consumo das quais não
participou.................................................................................
5 A publicidade de cigarros e a coletividade de pessoas exposta a
ela............................................................................................
6 A coletividade de pessoas vítima de vícios de informação
(ausência de informes adequados sobre a natureza do cigarro e os
riscos advindos do seu consumo)................................................
7 A indústria do tabaco..............................................................
8 Um produto mórbido e mortífero denominado cigarro................
CAPÍTULO IV – A RESPONSABILIDADE CIVIL....................
1 A vastidão do tema responsabilidade civil................................
2 Planos moral e jurídico...........................................................
3 Responsabilidades civil e penal...............................................
4 Esboço histórico....................................................................
4.1 Direito romano....................................................................
4.2 Idade Média........................................................................
4.3 Direito moderno e contemporâneo.........................................
5 Conceito de responsabilidade civil...........................................
6 Pressupostos da responsabilidade civil.....................................
6.1 Conduta violadora de um dever jurídico primário (com ou sem
culpa)......................................................................................
6.2 Danos.................................................................................
6.2.1 Danos patrimoniais...........................................................
6.2.2 Danos morais....................................................................
6.2.3 Danos estéticos.................................................................
6.3 Nexo causal.........................................................................
7 Excludentes de responsabilidade..............................................
7.1 Fato exclusivo da vítima.......................................................
7.2 Fato de terceiro....................................................................
7.3 Caso fortuito e força maior...................................................
8 Responsabilidade civil nas relações de consumo........................
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8.1 Dos pressupostos da responsabilidade civil por acidentes de
consumo...................................................................................
8.2 Excludentes de responsabilidade do fornecedor de produtos e
serviços....................................................................................
8.2.1 A não colocação do produto no mercado..............................
8.2.2 A prova da inexistência do defeito......................................
8.2.3 A culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro...................
8.2.4 A força maior....................................................................
CAPÍTULO V – DIREITO INTERTEMPORAL E O CÓDIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR..............................................
1 Identificação da denominação direito intertemporal...................
2 O direito intertemporal aplicado às relações de consumo............
3 O direito intertemporal aplicado ao tema em estudo...................
CAPÍTULO VI – TABAGISMO E RESPONSABILIDADE
CIVIL PELO FATO DO PRODUTO..........................................
1 Responsabilidade civil por acidentes de consumo e o
tabagismo.................................................................................
2 Segurança e saúde...................................................................
3 Produtos perigosos definidos no Código de Defesa do
Consumidor...............................................................................
3.1 Critério adotado pelo legislador para classificar o nível de
periculosidade dos produtos.......................................................
3.2 Seria o cigarro um produto cuja periculosidade lhe é
inerente?...................................................................................
3.2.1 Combatendo a idéia de que o cigarro seria um produto de
periculosidade inerente: uma análise voltada à sua natureza..........
3.2.2 Combatendo a idéia de que o cigarro seria um produto de
periculosidade inerente: uma análise voltada à sua
fruição............
3.3 É o cigarro um produto de alto grau de nocividade (art. 10),
ou um produto potencialmente nocivo à saúde (art. 9.º)?...............
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4 Tipologia das imperfeições dos produtos...................................
4.1 Defeito e vício.....................................................................
4.2 Produtos defeituosos............................................................
4.3 Defeitos juridicamente relevantes e juridicamente irrelevantes.......
4.3.1 Vícios/defeitos de criação..................................................
4.3.2 Vícios/defeitos de produção...............................................
4.3.3 Vícios/defeitos de informação............................................
5 A possibilidade de se responsabilizar civilmente a indústria do
tabaco pelos danos que o cigarro acarreta aos fumantes................
5.1 Vício/defeito de concepção...................................................
5.2 Vício/defeito de informação.................................................
6 Elementos determinantes da segurança dos produtos..................
6.1 A apresentação....................................................................
6.2 O uso e os riscos que o consumidor razoavelmente espera do
produto.....................................................................................
6.3 A época em que foi colocado em circulação............................
7 A Convenção-Quadro para o controle do tabaco e a
responsabilidade civil...............................................................
8 Análise da matéria à luz do Superior Tribunal de Justiça............
9 Pressupostos da responsabilidade civil por acidentes de
consumo aplicáveis ao tema em estudo........................................
CAPÍTULO VII – ABUSO DO DIREITO...................................
1 Introdução..............................................................................
2 Breve esboço histórico............................................................
3 Teorias..................................................................................
4 Natureza jurídica....................................................................
5 Aplicação da teoria no direito brasileiro e a sua recente
positivação pelo Código Civil de 2002........................................
6 A definição de abuso do direito e os seus critérios de
aplicabilidade............................................................................
7 A caracterização do abuso do direito perpetrado pela indústria
do tabaco..................................................................................
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7.1 Incidência do dever de boa-fé entre os contratantes mesmo
antes da edição do Código de Defesa do Consumidor....................
7.2 A postura adotada pela indústria do fumo para garantir a
comercialização de seus produtos: omissão intencional de
informações..............................................................................
7.3 A postura adotada pela indústria do fumo para garantir a
comercialização de seus produtos: oferta publicitária massiva e
insidiosa promovendo o consumo de cigarros...............................
8 Conclusões: A configuração do abuso do direito da indústria do
tabaco.......................................................................................
CAPÍTULO VIII – A PUBLICIDADE DE PRODUTOS
FUMÍGENOS E OS ACIDENTES DE CONSUMO.....................
1 Marketing, publicidade e propaganda.......................................
2 Descrição genérica dos elementos caracterizadores da
publicidade do cigarro...............................................................
3 A publicidade enganosa dos cigarros........................................
4 O cigarro e a publicidade enganosa por omissão........................
5 A publicidade abusiva do cigarro.............................................
6 O merchandising.....................................................................
CAPÍTULO IX – A INSUSTENTABILIDADE DOS PRINCIPAIS
ARGUMENTOS UTILIZADOS PELA INDÚSTRIA DO FUMO
EM SUAS DEFESAS JUDICIAIS..............................................
1 Introdução..............................................................................
2 A licitude da atividade exercida pela indústria do fumo.............
2.1 Considerações iniciais..........................................................
2.2 A obrigação de indenizar e o ilícito nas relações de
consumo...................................................................................
2.3 O ilícito gerador da responsabilidade civil da indústria do
fumo (defeito do produto)..........................................................
3 A hipotética notoriedade de informações acerca da natureza e
males causados pelo consumo de cigarros....................................
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3.1 Realmente há uma notoriedade pública sobre os males do
fumo?.......................................................................................
3.2 O jovem como alvo da indústria tabaqueira............................
3.3 A necessidade de se reforçar a informação hoje difundida
sobre os males do fumo..............................................................
3.4 Um reforço à tese que pugna pela ausência de uma notoriedade
pública de informações sobre os malefícios do
fumo.........................................................................................
4 O fumante e o livre-arbítrio.....................................................
4.1 Considerações iniciais..........................................................
4.2 Influências externas prejudiciais à idéia do livre-arbítrio........
4.3 Condicionamentos externos responsáveis pela decisão de
iniciar a prática do tabagismo.....................................................
4.4 A nicotina e o poder que exerce sobre a vontade do
fumante....................................................................................
4.4.1 Ainda sobre a nicotina.......................................................
CAPÍTULO X – ASPECTOS PROCESSUAIS............................
1 Justificativas que alicerçaram a construção do presente
Capítulo...................................................................................
2 Questões vinculadas à prova em ações de responsabilidade civil
movidas por fumantes (ou familiares desses) contra a indústria do
fumo.........................................................................................
2.1 A análise probatória envolvendo as relações de consumo.........
2.1.1 A prova de que o autor (ou sua família, em caso de
falecimento) consome/consumia cigarros fabricados pela indústria
do fumo inserida no pólo passivo da ação....................................
2.1.1.1 Fumantes cujo consumo englobou duas ou mais marcas de
cigarros, fabricadas por diversas fabricantes de cigarros...............
2.1.2 A prova dos danos (morte, enfermidades diversas, danos
morais).....................................................................................
2.1.3 A prova do nexo de causalidade entre o consumo de cigarros
e a(s) enfermidade(s).................................................................
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2.1.3.1 A teoria da equivalência dos antecedentes causais.............
2.1.3.2 A teoria da causalidade adequada.....................................
2.1.3.3 A teoria do dano causal direto e imediato.........................
2.1.3.4 Teorias sobre o nexo causal e sua aplicação no tema sob
análise......................................................................................
2.1.4 A manutenção da presunção do(s) defeito(s)........................
2.1.4.1 Necessidade de prova entre a(s) imperfeições(s) do cigarro
e a enfermidade acarretada ao fumante?.......................................
2.1.5 A inversão do ônus da prova..............................................
2.1.6 A publicidade enganosa e abusiva e a sua prova...................
3 A possibilidade jurídica do pedido objetivando ressarcimento
dos gastos com a compra de maços de cigarros.............................
4 As tutelas de urgência a serviço do consumidor fumante (ou de
seus familiares, em caso de falecimento).....................................
4.1 A morosidade da prestação jurisdicional e suas causas............
4.2 O fator tempo, sua ingerência na prestação da tutela
jurisdicional e as situações emergenciais.....................................
4.3 Tutelas de urgência..............................................................
4.3.1 Tutelas cautelares..............................................................
4.3.2 A antecipação de tutela......................................................
4.3.3 Fungibilidade das tutelas de urgência..................................
4.3.3.1 Ausência de descaracterização das tutelas cautelares e
antecipadas...............................................................................
4.3.3.2 Erros grosseiros e a aplicabilidade da fungibilidade de
tutelas de urgência.....................................................................
4.3.3.3 Aplicação da fungibilidade de tutelas de urgência em via
dúplice.....................................................................................
4.3.4 A tutela cautelar de antecipação de provas..........................
4.3.4.1 A tutela cautelar de antecipação de provas a serviço do
fumante....................................................................................
4.3.5 A tutela antecipada a serviço do fumante (ou de seus
familiares, em caso de morte).....................................................
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4.3.5.1 Situações facilitadores da concessão de tutela antecipada
em demandas envolvendo relações de consumo............................
4.3.5.2 Situações que comportam a tutela antecipada no tema em
análise......................................................................................
4.3.5.2.1 O procedimento da execução de antecipação de efeitos
da tutela para o pagamento de quantia.........................................
4.3.5.2.2 Meios executórios destinados a garantir a efetividade da
execução de tutelas antecipatórias de pagamento de soma em
dinheiro....................................................................................
4.3.5.2.2.1 As astreintes............................................................
4.3.5.2.2.2 A penhora on line.....................................................
4.3.5.2.2.3 A prisão...................................................................
4.3.5.2.3 A questão da irreversibilidade......................................
4.3.5.2.4 A possibilidade de audiência de justificação prévia para
demonstrar os requisitos autorizadores da tutela
antecipada.................................................................................
4.3.5.2.5 O momento da antecipação da tutela..............................
5 Procedimento de substituição da parte falecida: habilitação........
6 Prazo prescricional.................................................................
CONCLUSÕES.........................................................................
BIBLIOGRAFIA......................................................................
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LISTA DE ABREVIATURAS
ADESF – Associação de Defesa da Saúde do Fumante
Ajuris – Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul
ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
CC – Código Civil
CDC – Código de Defesa do Consumidor
CEPAJ – Centro de Estudos e Promoção ao Acesso à Justiça
CF – Constituição Federal de 1988
CID – Classificação Internacional de Doenças
CO – Monóxido de Carbono
CP – Código Penal
CPC – Código de Processo Civil
BACENJUD –
BAT – British American Tobacco
B&W – Brown and Williamson Tobacco Corporation
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCA – Instituto Nacional do Câncer
OMS – Organização Mundial da Saúde
RDC – Resolução da Diretoria Colegiada
REPRO – Revista de Processo
REsp – Recurso Especial
RF – Revista Forense
SERASA –
STJ – Superior Tribunal de Justiça
STF – Supremo Tribunal Federal
v.u. – votação unânime
RESUMO
Por meio desse trabalho, intitulado “A tutela jurisdicional na
responsabilidade civil da indústria do tabaco por danos advindos do
tabagismo”, procura-se demonstrar que o ordenamento jurídico pátrio
encontra-se apto para fundamentar condenações judiciais contra a
indústria do fumo, em ações movidas contra ela por fumantes (ou seus
familiares, em caso de morte) acometidos de doenças tabaco-relacionadas.
Para se atingir esse objetivo, as premissas do trabalho se pautaram na
coerência, consistência e não-contradição (método dedutivo), de modo
que algumas teorias (responsabilidade pelo fato do produto e teoria do
abuso do direito), já existentes no plano jurídico, foram trabalhadas e
aperfeiçoadas, sempre com o olhar voltado à temática sob exame. Uma
abundante pesquisa bibliográfica foi realizada, e diversos processos
metodológicos utilizados (estudos analítico-sintético, dialético,
dogmático-jurídico, descritivo, hermenêutico, histórico e preditivo), isso
com o intuito de evidenciar o predominante equívoco da jurisprudência
hodierna, caracterizada por decisões que, no mais das vezes, repugnam a
idéia de se responsabilizar a indústria do tabaco, mormente por exercer
ela uma atividade lícita, regulamentada pelo Governo Federal. Objetivou-
se provar o desajuste dessas decisões com o ordenamento jurídico pátrio e
com os rumos seguidos pela própria doutrina nacional. Especialmente com
relação ao estudo do direito processual civil, deu-se relevo às questões
processuais já surgidas e submetidas à apreciação dos tribunais nacionais
– e outras que certamente irão surgir –, e que dizem respeito ao tema
escolhido, sempre as trabalhando mediante um critério hermenêutico
alinhado às normas constitucionais, especialmente ao direito fundamental
da defesa do consumidor.
ABSTRACT
Through this work, entitled “The jurisdictional protection in the civil
responsibility of the industry of tobacco for damages caused by
tobaccoism”, there was an attempt to demonstrate that the national legal
system is capable of basing judicial condemnations against the industry
of tobacco, in actions moved against it by smokers (or their relatives, in
case of death) attacked of tobacco-related diseases. To reach that aim,
the premises of the work were ruled by the coherence, consistence and no-
contradiction (deductive method), so that some theories (responsibility
for the fact of the product and theory of the abuse of the right), already
existent in the juridical plan, were worked and improved, always caring
on to the theme under exam. An abundant bibliographical research was
accomplished, and several methodological processes were used
(synthetic-analytical, dialectical, juridical-dogmatic, descriptive,
hermeneutical, historical and predictive studies), with the intention of
evidencing the predominant misunderstanding of the modern
jurisprudence, characterized by decisions that, many times, oppose the
idea of making responsible the industry of tobacco, especially because it
exercises a lawful activity, regulated by the Federal Government. There
was an attempt to prove the maladjustment of those decisions with the
national legal system and with the directions followed by the national
doctrine. Especially regarding the study of the civil procedural right, the
procedural subjects were emphasized which already appeared and were
submitted to the appreciation of the national tribunals - and others that
certainly will appear -, which concern the chosen theme, always working
them through a hermeneutical criterion aligned to the constitutional
norms, especially to the fundamental right of the consumer's defense.
INTRODUÇÃO
Não é preciso escrever teses para se constatar que o homem
naturalmente evita o mal. Isso decorre de sua própria intenção e
necessidade de sobrevivência. Deve-se evitar o mal; freqüentemente deve-
se combatê-lo. Essa idéia elementar, suplementada pela própria
superioridade intelectual humana, vem garantindo a perpetuação da
espécie.
De tal sorte, é absolutamente incoerente pensar-se o tabagismo
num contexto em que a liberdade seria um valor absoluto. Ou, como
defende a indústria do tabaco: o homem sempre soube que o cigarro é
causa de diversos males, sendo o ato de fumar um mero hábito, advindo
de uma opção aberta e desembaraçada do próprio fumante, uma ação
consciente e voluntária, de modo que os efeitos deletérios causados à sua
saúde decorrem de sua exclusiva culpa.
Estar-se-á diante de um curioso paradoxo. De um lado, a
indiscutível constatação, inconscientemente aceita por todos, de que o ser
humano age de modo a esquivar-se – e, não raro, combater – o mal. De
outro, a absurda idéia – defendida pela indústria do tabaco – de que ele
vai ao encontro do mal, sempre que esse mal é representado pelo cigarro.
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A verdade é que essa contradição não se sustenta, mormente
porque um dos lados que a alimenta é oriundo de uma falácia – e esse
trabalho procura provar isso.
É mendaz a afirmação de que as pessoas possuíam, no período
em que o cigarro foi lançado no mercado, informações suficientemente
capazes de permitir-lhes uma escolha consciente entre fumar ou não
fumar. É espúria a propensa notoriedade pública de tais informações,
insistentemente pregada pela indústria do fumo em suas defesas judiciais.
Por outro lado, é autêntico o fato provado pelos famigerados
documentos secretos da indústria do fumo, de que ela, desde a década de
1950, possuía conhecimentos sobre a capacidade psicotrópica da nicotina.
É igualmente real a informação de que a indústria do tabaco, já na década
de 1960 – ou antes disso –, sabia que a fumaça dos cigarros era composta
de substâncias cancerígenas. Nada disso, porém, foi objeto de
esclarecimento ao consumidor. Ao contrário, requintadas publicidades
eram difundidas com a intenção única de fazer apologia do cigarro,
garantindo a disseminação de imagens, sons e escritos destinados a vender
uma idéia positiva desse perigoso produto.
Deveras, não é exagero afirmar que a humanidade foi vítima da
maior fraude pública já ocorrida em todo o globo, cuja importância se
sobreleva, notadamente porque os alvos atingidos dizem respeito aos
direitos fundamentais à vida e à saúde das pessoas.
Mediante uma estratégia sofisticadíssima, pautada na omissão
de informações acerca dos males do fumo, na negativa e ataque de
esclarecimentos científicos apontando esses males, e em técnicas
requintadas de marketing massivo, a indústria do fumo, astuciosamente,
estabeleceu uma aura positiva em torno do tabagismo, de modo que o
consumo de cigarros acabou sendo aceito socialmente, visto, por muitos,
como símbolo de status, riqueza, sucesso profissional, requinte e, até
mesmo, saúde.
Não só isso, contudo.
Hodiernamente, a medicina vem encarando o tabagismo como
sinônimo de doença. Ou seja, o tabagismo não só causa diversas doenças,
como ele próprio é uma doença (crônica).
22
Se comparada com a cocaína, heroína, maconha, álcool e outras
drogas, devido a sua maior toxidez e letalidade, capacidade de
desenvolver uma dependência mais intensa, por ser a mais difundida, e de
fácil acesso aos adolescentes, a nicotina classifica-se em primeiro lugar
1
.
Confira-se trecho de pesquisa elaborada por Antonio José
Pessoa Dórea e Clovis Botelho:
Cerca de 70% dos fumantes querem parar de fumar, mas poucos
conseguem ter sucesso, sem o apoio dos serviços de saúde.
Aproximadamente um terço deles tentam; porém, mais de 90%
destas tentativas são realizadas sem tratamento formal (aqueles
indivíduos que param de fumar por si próprios). Ao pararem de
fumar, um terço dos fumantes ficam em abstinência por dois
dias, enquanto 3 a 5% permanecem sem fumar por um ano e
podem ser considerados bem sucedidos. Muito embora quase
50% de todos os adultos que já fumaram conseguiram parar
com sucesso, a maior parte dos fumantes precisa de cinco a
sete tentativas antes que pare de fumar definitivamente. Estes
dados mostram claramente que a dependência à nicotina é uma
desordem complexa e difícil de ser ultrapassada.
Independentemente dos métodos utilizados para parar de
fumar, o sucesso destes dependerá da identificação dos fatores
dificultadores envolvidos. Portanto, torna-se importante
identificar grupos de indivíduos com alguns desses fatores
dificultadores, que estão associados com as recaídas dos
fumantes que tentam deixar o vício e com a manutenção da
dependência nicotínica
2
.
Então, o que a indústria do tabaco produz e comercializa é, nada
mais, do que uma grave enfermidade
3
. Para os tabagistas, é assaz difícil
abandonar o tabaco, justamente devido à dependência implantada em seus
organismos pelo consumo de nicotina. Há inúmeros registros indicando
que os desejosos em cessar a prática do tabagismo, valendo-se apenas
1
ROSEMBERG, José. Nicotina. Droga universal. São Paulo: SES/CVE, 2003. p. 96. Obra disponível na
íntegra em <http://200.222.74.250/tabagismo/publicacoes/nicotina.pdf>. Acessado em 20/03/2006.
2
DÓREA, Antonio José Pessoa; BOTELHO, Clóvis. Fatores dificultadores da cessação do tabagismo.
Disponível em <http://www.scielo.br>. Acessado em 20/03/2006.
3
Nas palavras da pneumologista Ana Maria B. Menezes: “O poderio econômico das indústrias do tabaco,
forjando evidências, e manipulando as emoções, supera a própria vontade do indivíduo e o induz a uma
das maiores drogadições da humanidade”. A médica defende que o tabagismo representa uma drogadição
mais intensa e poderosa que aquelas causadas pelo álcool, cocaína ou heroína. E conclui: “O uso crônico
da nicotina provoca alterações no cérebro com aumento do número de receptores nicotínicos e cada vez
necessidades maiores de nicotina. É de doença que está se falando, é de alterações fisiopatológicas
importantes. E é por tratar-se de doença que precisa ser tratada. Aconselhamento, reposição com nicotina
e uso de fármacos como um bupropion, elevam as taxas de abandono do vício do fumo em até 36%”.
(MENEZES, Ana Maria B. Fumo ou saúde/direitos ou deveres? Disponível em <http://www.scielo.br>.
Acessado em 20/03/2006).
23
desse desejo, quase sempre fracassam em suas empreitadas, essas que se
repetem por várias e várias vezes, sem alcançar o sucesso esperado
4
.
Ora, as escolhas sempre trazem consigo responsabilidades. Se
uma tal escolha é colocada em prática, alterações diversas serão
provocadas no mundo, e muitas delas, não raro, sequer poderão ser
desfeitas. Esse trabalho evidencia que a indústria do fumo colocou em
ação uma estratégia velada e ilegal, destinada a socializar um produto
nocivo, potencializando sua venda em todo o mundo, mesmo que em
atropelo à lealdade contratual e a alguns princípios fundamentais caros à
sociedade. Estratégia essa dotada de um refinamento ardiloso, na medida
em que não só tinha por fito iludir o consumidor, para que principiasse a
prática do fumo, isso mediante técnicas sofisticadas de marketing, como
também mirava atestar que aquele consumidor seria fiel ao produto,
transformando-o num verdadeiro viciado em nicotina, um doente crônico.
Certamente que um produto considerado pela Organização
Mundial da Saúde como a principal causa de morte evitável no mundo e
que mata a metade dos fumantes de longa data, deve merecer especial
atenção por parte do Direito. Afinal, é impressionante constatar que o
total de mortes devido ao uso do tabaco atingiu a cifra de 4,9 milhões de
morte anuais
5
, o que corresponde a 10 mil mortes por dia
6
. Só no Brasil,
4
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 95. Obra disponível na íntegra em <http://200.222.74.250/tabagismo/
publicacoes/nicotina.pdf>. Acessado em 20/03/2006.
5
Esses dados assustam, sobretudo quando se percebem os números da mortandade e morbidade causados
por outras doenças, responsáveis por verdadeiras tragédias já vivenciadas pelo homem. O tabagismo, em
seis anos, supera, em mortandade, quaisquer das pandemias citadas adiante. Vejam-se:
1) No século XIV (1347-1350), a peste negra devastou a população européia, uma doença transmitida
pela picada de pulgas de ratos doentes. Estes ratos chegavam à Europa nos porões dos navios vindos do
Oriente. Como as cidades medievais não tinham condições higiênicas adequadas, eles se espalharam
facilmente. A morte dos contaminados era certa, principalmente porque os conhecimentos médicos ainda
mostravam-se precários naquela época. (Informações disponíveis no site: <http://www.suapesquisa.
com/idademedia/>. Acessado em 10/06/2006). Calcula-se que a doença matou um terço da população da
Europa (25 milhões), vitimando proporções provavelmente semelhantes noutras regiões. (Informações
disponíveis no site: <http://pt.wikipedia.org/>. Acessado em 10/03/2006).
2) Em 1918, o mundo assistiu, estarrecido e impotente, à assustadora performance de uma avassaladora
máquina de matar: a gripe espanhola. Ela surgiu entre setembro e novembro daquele ano, espalhando-se
por todo o planeta e deixando mais de 20 milhões de mortos. (Informações obtidas no site:
<www.educaterra.terra.com.br/almanaque/ciencia/gripe_espanhola.htm>. Acessado em 09/03/2006). O
vírus da gripe espanhola era tão violento que provocava hemorragia nos pulmões e matava os doentes em
dois dias (ARAÚJO, Tarso. Quais são as pestes mais avassaladoras? Revista Super Interessante. Edição
227, jun./2006. p. 46).
3) A varíola dizimou, no período entre 1520 e 1521, 4 milhões de pessoas. Essa doença atingiu os astecas
com a invasão do espanhol Hernán Cortés. Conquanto já existisse na Europa, os espanhóis encontravam-
se devidamente imunizados, pois possuíam anticorpos para combatê-la. Mas os nativos não. Aí, quando o
24
estima-se que cerca de 200.000 mortes por ano são decorrentes do
tabagismo
7
.
Esse modesto trabalho se propõe a demonstrar que o
ordenamento jurídico nacional encontra-se apto a amparar pretensões
indenizatórias de fumantes (ou familiares deles, em caso de morte), cujos
danos suportados advêm de enfermidades (ou morte) contraídas pelo
consumo de tabaco. Abordar-se-ão, em dez capítulos, assuntos voltados a
formar uma sustentação firme acerca daquilo que aqui se defende,
destacando-se, como fundamentos mestres, a responsabilidade pelo fato
do produto e o abuso do direito. Dando fecho à tese, um rol de questões
processuais, diretamente vinculadas às discussões judiciais que vêm sendo
travadas no Judiciário brasileiro, é trabalhado, de modo a conferir-lhe um
aspecto ainda mais prático.
vírus da varíola chegou carregado pelos europeus, boa parte dos astecas acabou sendo infectada. Tanto
que, com a ajuda da epidemia, Cortés derrotou um exército de milhões com apenas 500 homens.
(ARAÚJO, op. cit., 2006. p. 46).
4) A intitulada doença do suor matou, entre 1485 e 1551, 3 milhões de pessoas na Inglaterra. Ainda hoje
ninguém sabe a causa da doença. Ela atacou na Inglaterra em 5 surtos durante 6 décadas. Cada um durou
apenas algumas semanas. Mas com uma intensidade digna de nota: os sintomas começavam com uma
sensação exagerada de calor, depois vinham dores de cabeça fortes, delírios, taquicardia e suor em bicas.
A morte vinha em 3 a 18 horas. Quem agüentasse um dia inteiro geralmente sobrevivia, só que não ficava
imune à doença. (Ibid., 2006. p.46).
5) Já a pandemia
da gripe asiática iniciou-se em fevereiro de 1957, no norte da China, tendo o primeiro
isolamento do vírus sido feito em Pequim
. Da China, a epidemia passou, em meados de abril, a Hong
Kong e Singapura, de onde se difundiu para a Índia e Austrália. Durante os meses de maio e junho, o
vírus
disseminou-se por todo o Oriente. Em julho e agosto, estendeu-se à África, atingindo a Europa nos
meses seguintes e os EUA
entre outubro e novembro. Assim, a doença atingiu a população mundial em
menos de 10 meses. (Informações obtidas do site: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Gripe_asi%C3%A1tica>.
Acessado em 10/03/2006). Estima-se que o número de mortos tenha atingido a cifra de 1 milhão.
(Informação obtida do site: <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT517001-1664,00.html>.
Acessado em 10/03/2006).
6) Ocorrida em 1968, a gripe de Hong Kong, acarretada por um novo subtipo de vírus, produziu em Hong
Kong, em meados de julho, uma pandemia de grande extensão, cuja origem parece ter sido a China, de
onde se propagou ao mundo, seguindo as mesmas linhas de difusão que a gripe asiática
. (Informações
disponíveis no site: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Gripe_de_Hong_Kong>. Acessado em 10/03/2006).
Acredita-se que o tal vírus tenha matado mais de 46 mil pessoas. (Informações obtidas no site:
<www.educaterra.terra.com.br/almanaque/ciencia/gripe_espanhola.htm>. Acessado em 09/03/2006).
7) Desde que foi descoberta, a AIDS já matou 25 milhões de humanos e 65 milhões estão infectados
pelo vírus HIV. Os grandes avanços da ciência e da tecnologia ainda não foram capazes de deter a
disseminação da AIDS. Alguns especialistas acham que uma vacina estará disponível em uma década;
outros, porém, não parecem tão otimistas. (Informação disponível em <http://www.enigmasonline.com/
htm/ciencia010202.htm>. Acessado em 10/06/2006).
6
Disponível em <www.inca.gov.br/tabagismo/dadosnum/mundo.htm>. Acessado em 15/03/2006.
7
Disponível em <www.inca.gov.br/tabagismo/dadosnum/brasil.htm>. Acessado em 15/03/2006.
25
Espera-se, sem qualquer aspiração maior, que esses escritos
colaborem, de alguma forma, para o amadurecimento da doutrina e
jurisprudência nacionais acerca do tema.
CAPÍTULO I
OS EFEITOS DELETÉRIOS DO TABACO SOBRE
A SAÚDE HUMANA
1 De remédio a pandemia: brevíssimo relato histórico sobre o
surgimento e disseminação do tabaco pelo mundo
É o tabaco originário da América Central, tendo sido descoberto
pelas sociedades indígenas, aproximadamente no ano de 1000 a.C. A erva
não só era utilizada em rituais mágico-religiosos para purificar, proteger e
fortalecer os ímpetos guerreiros, como também era habitualmente
empregada no tratamento de algumas enfermidades.
Romano Pene, companheiro de Cristóvão Colombo, de volta da
segunda viagem ao Novo Mundo, teria feito a primeira descrição da planta
de fumo. Em 1518, esse mesmo missionário espanhol enviou ao Imperador
Carlos V um punhado de sementes de tabaco, originando daí a primeira
plantação européia. De qualquer sorte, antes disso, alguns marinheiros da
esquadra de Cabral já haviam carregado para os navios os seus pedaços de
fumo. Alguns os usavam para curar feridas, mas a maioria preferia fumá-
los, minimizando o tédio das enfadonhas horas gastas em viagens
marítimas.
Teria sido Damião de Góis, já no século XVI, quem mostrou a
planta a Monsieur Jean Nicot, diplomata francês em Lisboa. Segundo
27
narra a história, Jean Nicot seria portador de uma úlcera na perna, até
então incurável. As propriedades medicinais da erva teriam cicatrizado
sua ferida, levando-o a considerá-la uma descoberta milagrosa.
Preocupado com a saúde de sua rainha, Maria Catarina de
Médicis, acometida de terríveis crises contínuas de enxaqueca, Jean Nicot
enviou-lhe folhas de tabaco para o tratamento com a inalação da fumaça.
O uso do tabaco feito pela própria rainha contribuiu com a crença de se
ter encontrado um precioso remédio. Logo, reputou-se à planta um forte
poder curativo, capaz de debelar diversos males, como as dores de cabeça,
os males do estômago e as úlceras. A rainha, além de cheirar o pó, pitava
pequenos cigarros, sendo acompanhada por boa parte de sua corte.
Jean Nicot é tido por muitos como o responsável pela
disseminação da erva por toda a Europa
8
. Seu nome acabou sendo
utilizado na nomenclatura científica da planta: nicotiana tabacum.
Já a expressão tabacum, tem origem controversa: Trinidad
Tobagum seria o nome dado a uma das terras recém-descobertas por
Colombo; por outro lado, tabaco era a denominação utilizada para se
referir a um cachimbo bifurcado, cujas duas pontas eram introduzidas no
nariz pelos nativos, isso para melhor aspirar a fumaça da planta
9
.
Vulgarmente, à erva eram atribuídas diversas denominações:
petum, erva-santa, erva-rainha, erva-medicéia, catarinária, erva-das-
Índias, erva-de-santa-cruz, etc.
8
Essa posição não é pacífica. Para muitos, a nicotina chegou à Europa por quatro caminhos: Espanha,
Portugal, França e Inglaterra. Veja-se uma transcrição da obra ‘Nicotina. Droga universal’: “Uma das
primeiras notícias foi levada à Espanha por Don Rodrigo de Jeres, capitão da tripulação das naves de
Colombo, levando para a Corte a planta e sementes de tabaco. A primeira referência impressa é de
1526, na História Natural de Lãs Índias de Don Gonzalo Fernandes. Para Portugal a primeira leva de
tabaco foi através de Luís de Góes, Donatário no Brasil em 1542, sendo cultivado pela Farmácia Real
em Lisboa. Para a França o tabaco chegou por dois caminhos; remetido em 1560, por Damião Góes, ex
embaixador na Flandres, a Jean Nicot, por sua vez embaixador da França em Portugal. Este atribuiu à
erva, então denominada petum, a cura de úlcera renitente que tinha na perna. Entusiasmado, enviou-a à
Rainha Catarina de Médicis, que informada de suas virtudes, usou-a em tizanas para melhorar sua
enxaqueca crônica. O petum passou então a ser chamado “erva da rainha”, “erva mediceia” ou
“catarinária”. Outro caminho para a França foi através de André Thevet, frade franciscano, que esteve
no Brasil como capelão da expedição francesa chefiada por Cologny. Thevet, em 1555, cultivou o petum
no jardim do seu mosteiro em Paris. Em 1565, o tabaco chegou a Inglaterra por meio de Sir Hawkins,
trazendo-o das plantações da colônia Virgínia e cultivando-o em Londres”. (ROSEMBERG, op. cit.,
2003. p. 3.
9
ENCICLOPÉDIA Luso-Brasileira de Cultura. Lisboa: Verbo, 1975. v. 17, p. 933.
28
Se é certo que o uso medicinal do tabaco não provocou grandes
repercussões, tal situação não se sucedeu com a sua utilização voltada ao
prazer, mediante a inalação da fumaça dele emanada.
Naquela época, alguns médicos afirmavam que o uso do tabaco
diminuía a virilidade, alertando que, em pouco tempo, os reis e governos
não teriam mancebos capazes para os seus exércitos
10
.
De início, tentou-se combater o seu consumo. Na Rússia, na
Turquia e por quase toda a Europa, os fumantes foram perseguidos, a
ponto de a legislação impor contra os reincidentes a pena de morte. A
Igreja, durante certo período, também condenou o uso do tabaco. No
entanto, o consumo desse produto alastrou-se de forma impressionante,
apesar de todas as perseguições e porque seu uso era visto como um
crime, equiparado ao adultério – por punição adotava-se, em alguns
países, o corte do próprio nariz do fumante.
A Europa foi o continente em que o tabagismo mais rapidamente
se expandiu
11
, seguido da África, onde o hábito teve grande incremento
após a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918). Já a Ásia é tida como o
continente que ofertou maior resistência.
Todavia, os governos, já conscientes da impossibilidade de
eliminarem o uso do tabaco, acabaram por tributá-lo fortemente
12
. Como
os malefícios acarretados pelo tabagismo tardam a manifestar, a pseudo-
impressão de que o vício não era prejudicial à maior parte dos seus
10
ENCICLOPÉDIA Luso-Brasileira de Cultura, op. cit., p. 933.
11
A título de curiosidade, cite-se outra passagem transcrita da obra ‘Nicotina. Droga universal’: “O tabaco
espalhou-se pela Europa como rastilho de pólvora. Cinqüenta anos após sua chegada, praticamente se
fumava cachimbo em todo o continente: nobres, plebeus, soldados e marinheiros. Para os ricos criaram-
se as “Tabagies”, onde homens e mulheres se reuniam em tertúlias, fumando longos cachimbos.
Rapidamente o tabaco integrou-se a todas as populações do mundo civilizado.” (ROSEMBERG, op.
cit., 2003. p. 3.
12
Sobre a tributação dos cigarros, colhe-se interessante curiosidade do site da empresa Souza Cruz S.A.:
“Controlado e tributado desde cedo no Brasil, o fumo e seus derivados só passaram a sofrer a
interferência direta do Estado pelo mundo afora no auge do período napoleônico, graças a um episódio
casual. Conta-se que, em sua festa de casamento com Maria Luiza, Napoleão ficou impressionado com a
exuberância dos trajes e jóias de uma senhora desconhecida que, no salão, ofuscava até mesmo a
rainha. Perguntou quem era e recebeu a resposta surpreendente: não era uma nobre, mas uma
burguesa, esposa de um riquíssimo fabricante de cigarros!” E mais: “O Imperador – que além de
excelente estrategista, era um administrador preocupado com a solidez do seu tesouro – considerou que
uma fonte tão espetacular de lucro não poderia ficar abandonada apenas nas mãos de particulares. E o
resultado da ostentação da bela senhora foi que, pouco depois, o monopólio da comercialização de
tabaco em toda a França passou para as mãos do Estado.” (Disponível em <http://www.souzacruz.
com.br>. Acessado em 08/04/2006).
29
usuários difundiu-se largamente. Admitiu-se, então, de maneira
generalizada, o consumo de tabaco em todo o mundo, decisão fortemente
escorada na truncada premissa de que a indústria do fumo beneficiava
uma grande multidão de agricultores, de operários, bem como toda
espécie de trabalhadores vinculados à sua industrialização e consumo,
além, obviamente, das grandiosas vantagens advindas de sua tributação.
Até o início do século XX, as folhas de tabaco eram
comercializadas sob a forma de fumo para cachimbo, rapé, tabaco para
mascar e charuto. Depois, iniciou-se sua industrialização na forma de
cigarros
13
. O consumo de cigarros alastrou-se de forma epidêmica por
todo o mundo, principalmente em razão do uso de técnicas sedutoras de
marketing. Porém, na Espanha, curiosamente já se fumava tabaco enrolado
em papel, cuja denominação atribuída ao produto foi papeletes. Numa
tapeçaria, desenhada por Goya em 1747, figuram dois jovens com cigarros
entre os dedos
14
.
Ao que parece, o termo cigarrillos, em espanhol, deriva de
cigarral, nome dado às hortas e plantações invadidas por cigarras. O
nome generalizou-se: cigarette em francês, inglês e algumas outras
línguas; zigarette em alemão; sigaretta em italiano; e cigarro em
português. Em várias línguas cigarro ou cigar refere-se ao charuto. Paris
foi invadida pelo cigarro em 1860. Nos Estados Unidos houve verdadeira
explosão do consumo de cigarros, na década de 1880, quando se inventou
13
Sobre a implantação de fábricas de produtos derivados de tabaco no Brasil, o site da empresa Souza Cruz
S.A. aponta algumas curiosidades interessantes: “No período colonial, o Brasil, como todas as
possessões portuguesas, estava terminantemente proibido de ter fábricas em seu território. Condenado à
produção da matéria-prima – e a consumir produtos manufaturados da metrópole –, o país teve que
aguardar até 1808 pela chegada da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro, antes de pensar em uma
indústria nacional. O alvará de D. João VI que tratava do tema, abriu caminho para o início do
desenvolvimento do setor. E as primeiras fábricas foram as de rapé.” E continua: “As primeiras fábricas
de rapé brasileiras de que se tem notícia foram as de Caetano Januário (1817) e Pedro José Bernardes
(1818), no Rio de Janeiro. Em 1850, o Rio era o grande produtor de rapé do país, com cinco fábricas
entre elas a de João Paulo Cordeiro, cuja indústria seria comprada, em 1910, pela Souza Cruz.” E
conclui: “A fábrica de João Paulo Cordeiro era a mais importante do território fluminense, com
produção de 100 mil libras e faturamento anual de 100 mil réis. Empregava 53 operários (49 escravos) e
era a concorrente direta da fábrica de Meuron, que na Bahia produzia 165 mil libras anuais de rapé,
com apenas 24 operários (18 escravos e 6 estrangeiros). Juntas, as cinco fábricas do Rio lançavam
anualmente no mercado 347 mil libras de rapé, empregando 110 operários (98 escravos, 11 estrangeiros
e 1 brasileiro). Mas a florescente indústria logo entrou em decadência. E o responsável foi aquele que se
transformaria na mais nova vedete dos salões: o charuto. (Disponível em <http://www.souzacruz.
com.br>. Acessado em 08/04/2006).
14
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 7.
30
a máquina que produzia duzentas unidades por minuto. Logo surgiram
máquinas produzindo centenas de milhões por dia. O cigarro teve sua
expansão, por ser mais econômico, mais cômodo de carregar e de usar
15
.
O consumo de cigarros generalizou-se pelo mundo por meio de
inusitada transculturação, e isso porque o tabaco, além de tema filosófico,
foi e tem sido incensado em todos os ramos da manifestação cultural.
Como exemplo, aponte-se o grande sucesso do “Balé do Tabaco”, na corte
de Savóia, já em 1650, ou ainda, a peça “Don Juan”, em que Molière, logo
no primeiro ato, apresenta um ditirambo sobre o tabaco, isso em 1665
16
.
De qualquer modo, a nicotina – a droga contida nas folhas de
tabaco – é, sem dúvida, a mola mestra responsável pela universalização
do tabaco. Estatísticas apontam que 99% das pessoas iniciam-se no
tabagismo ainda quando adolescentes, circunstância que conduz 90%
desses fumantes à dependência certa
17
. E, depois de terem se tornado
nicotino-dependentes, a aquisição de cigarros passa a ser uma verdadeira
necessidade para esses indivíduos – daí a ciência médica considerar
atualmente o tabagismo como uma doença crônica.
Consome-se anualmente no mundo, a fabulosa quantidade de
73.000 toneladas de nicotina, contida em 7 trilhões e 300 bilhões de
cigarros fumados por 1 bilhão e 200 milhões de tabagistas, dos quais 400
milhões vivem nos países industrializados e 800 milhões em países em
desenvolvimento
18
.
É de se ressaltar que a literatura especializada indica que o
primeiro relatório médico a retratar os efeitos danosos do tabaco à saúde é
datado de 1665, quando Samuel Pepys testemunhou um experimento da
Royal Society, no qual um gato morreu rapidamente, ao se lhe administrar
uma porção de óleo destilado de tabaco. Em 1791, o médico londrino John
Hill relatou casos em que a inalação da erva causou cânceres nasais. Não
15
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 7.
16
Ibid., p. 7.
17
Ibid., p. 7.
18
Ibid., p. 7.
31
foi antes do final dos anos 40, todavia, que as hipóteses científicas de que
o tabaco causa doenças começaram a se acumular rapidamente. Evidências
epidemiológicas e experimentais de que o fumo provoca câncer
conduziram ao temor do câncer nos anos 50 e, finalmente, ao Surgeon
General’s report de 1964 sobre fumo e saúde, esse que concluiu que o
cigarro leva aquela enfermidade
19
. Hoje, centenas de artigos científicos
são publicados, vinculando o consumo de fumígenos a diversas doenças,
embora tal conhecimento ainda não tenha atingido adequadamente todas
as camadas da sociedade.
Especialmente em relação à nicotina, é fato histórico que a
ciência oficial demorou muito a se convencer de que ela causa
dependência, não obstante pesquisas diversas já apontassem essa sua
especial característica. Apenas para se ter uma idéia, em 1964, o Comitê
Consultivo do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, com o
endosso do Surgeon General, declarou que “a nicotina causa apenas
hábito, não sendo droga que desenvolve dependência”. Já em 1979, o
relatório oficial do Departamento de Educação, Saúde e Assistência
Social dos Estados Unidos, abordando a temática nicotina, absteve-se de
pronunciar sobre sua característica mais evidente: a capacidade
psicotrópica dessa substância
20
.
19
KOOP, C. Everett; GLANTS, Stanton A.; SLADE, John; BERO, Lisa A.; HANAUER, Peter; BARNES
Deborah E. The cigarette papers. University of California, San Francisco, [s.d.]. p. 1. No original:
“Tobbaco has been controversial at least since its introduction into Europe shortly after Columbus
reported that North American natives used its dried leaves for pleasure. The first medical report of
tobacco’s ill effects dates to 1665, when Samuel Pepys witnessed a Royal Society experiment in which a
cat quickly expired when fed “a drop of distilled oil of tobacco.” In 1791 the London physician John hill
reported cases in which use of snuff caused nasal cancers. Not until the late 1940s, how-ever, did the
modern scientific case that tobacco causes disease begin to accumulate rapidly. Epidemiological and
experimental evidence that smoking causes cancer led to the “cancer scares” in the 1950s and,
ultimately, to the 1964 Surgeon General’s report on smoking and health, which concluded that smoking
causes lung cancer.” Em tradução livre: “O primeiro relatório médico retratando os efeitos danosos do
tabaco data de 1665, quando Samuel Pepys testemunhou um experimento da Royal Society no qual um
gato morreu rapidamente quando lhe foi administrado uma porção de óleo destilado de tabaco. Em
1791 o médico londrino John Hill relatou casos em que a sua inalação causou cânceres nasais. Não foi
antes do fim dos anos 40, entretanto, que as hipóteses científicas de que o tabaco causa doenças
começaram a se acumular rapidamente. Evidências epidemiológicas e experimentais de que o fumo
causa câncer conduziram ao temor do câncer nos anos 50 e, finalmente, ao Surgeon General’s report de
1964 sobre fumo e saúde, que concluiu que o cigarro causa câncer de pulmão”.
20
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 42.
32
Contudo, é também um fato histórico a descrição da estratégia
utilizada pela indústria do tabaco para esconder, por décadas e décadas, a
particular certeza de ser a nicotina uma droga psicoativa; daí a vasta e
pérfida campanha publicitária e a insistência na falaciosa afirmação de
que a substância não implicava dependência. Porém, secretamente
trabalhava na obtenção de cigarros com maiores teores de nicotina, isso
para tornar os fumantes ainda mais escravizados ao seu consumo. Desde a
década dos anos de 1950, a indústria tabaqueira já tinha plena convicção
da ação psicoativa da nicotina, conforme se depreende do pronunciamento
de H.R. Hammer, diretor de pesquisa da BAT, como consta da ata da
reunião de 14 de outubro de 1955: “Pode-se remover toda a nicotina do
tabaco, mas a experiência mostra que esses cigarros e charutos ficam
emasculados e ninguém tem satisfação de fumá-los”. Em 1962, numa
outra reunião envolvendo executivos da BAT, o executivo Charles Elis
afirmou: “fumar é conseqüência da dependência [...]. Nicotina é droga de
excelente qualidade”
21
.
Atualmente, o consumo de cigarros é considerado a mais
devastadora causa evitável
22
de doenças e mortes prematuras da história
da humanidade, sendo ele mesmo – o tabagismo – visto como uma doença
crônica, incluído na classificação internacional de doenças (ICD), sob a
sigla F17.2. O vício de fumar atingiu proporção pandêmica, sendo
responsável por, aproximadamente, 5 milhões de mortes prematuras
anuais em todo o mundo
23
.
Apesar da concreta demonstração dos malefícios à saúde, o
fumo, hodiernamente, é cultivado em quase todo o globo e, por
conseqüência, a nicotina é a droga mais consumida.
21
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 42-43.
22
Já em 1985, faleceram nos Estados Unidos, aproximadamente, 320 mil pessoas em razão de doenças
relacionadas ao tabagismo, número igual ao de soldados norte-americanos que perderam a vida durante a
Segunda Guerra Mundial. (Um hábito que mata. Mesmo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 1º jun.
1986. p. 1).
23
Tabagismo & saúde nos países em desenvolvimento. Documento organizado pela Comissão Européia em
colaboração com a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial para a Mesa Redonda de Alto
Nível sobre Controle do Tabagismo e Políticas de Desenvolvimento – Fev./2003. Tradução feita pelo
instituto Nacional de Câncer (INCA). Disponível em <http://www.inca.gov.br>. Acessado em
20/10/2005.
33
2 A composição do cigarro e as substâncias emanadas de sua queima
A fumaça do cigarro é uma mistura de aproximadamente 4.700
substâncias tóxicas diferentes. Ela se constitui de duas fases
fundamentais: as fases particulada e gasosa
24
.
Dentre os componentes da fase gasosa
25
encontram-se o
monóxido de carbono
26
, as cetonas, o formaldeído, a nicotina, o
acetaldeído e a acroleína. Já na fase particulada, a nicotina novamente se
revela, estando também presentes o alcatrão e mais 43 substâncias
cancerígenas, podendo-se citar exemplos: o arsênico, o níquel, o
benzopireno,
27
o cádimo,
28
o chumbo, e também substâncias radioativas,
29
tais quais o polônio 210, o carbono 14, o radio 226, o radio 228 e o
potássio 40.
Ressalte-se que a cada tragada o fumante absorve substâncias
como amônia,
30
benzeno,
31
acetona (solvente),
32
formol,
33
24
Disponível em <http://www.inca.gov.br>. Acessado em 07/04/2006.
25
Algumas empresas de cigarro, preocupadas com a grande quantidade de fumantes assustados e ariscos
com os malefícios provocados pelo tabagismo, têm investido em pesquisas para produzir cigarros menos
perigosos. A gigantesca Reynolds começou a testar, há alguns anos, o Eclipse, um cigarro que não
queima, permanecendo aquecido por um cilindro de carbono incandescente na sua extremidade. O
Eclipse emite menos fumaça que os cigarros comuns, contendo, ainda, 80% menos de substâncias
agressivas à saúde. A Philip Morris, seguindo o mesmo caminho, aposta no Accord, cigarro que terá um
dispositivo eletrônico semelhante a um acendedor automático de fogão. Ele acende quando é tragado,
apagando logo em seguida, o que diminui bastante a fumaça circulante. (BABTISTA, Cristiana. O
cigarro sem risco. Veja, ano 34, n. 7, ed. 1688, 21 de fev. 2001, p. 122-123).
26
O monóxido de carbono tem afinidade com a hemoglobina presente nos glóbulos vermelhos do sangue,
que transportam oxigênio para todos os órgãos do corpo. A ligação do CO com a hemoglobina forma o
composto chamado carboxihemoglobina, que dificulta a oxigenação do sangue, privando alguns órgãos
do oxigênio e causando doenças como a aterosclerose. (Disponível em <http://www.inca.gov.br>.
Acessado em 07/04/2006).
27
O benzopireno é uma substância derivada do petróleo e altamente cancerígena.
28
O Cádmio (Cd) é um metal altamente tóxico, utilizado em pilhas e baterias. Causa danos aos rins e ao
cérebro. Corrói o trato respiratório, provoca perda de olfato e edema pulmonar. A quantidade existente
nos cigarros, apesar de pequena, acumula-se no organismo, levando até 20 anos para ser expelida. Com o
tempo, o cádmio potencializa seus efeitos tóxicos.
29
Nos Estados Unidos já existem meios de medir a radioatividade dos produtos do fumo por amostras do
cabelo do fumante. Alguns cientistas afirmaram que a radioatividade seria a maior responsável pelo
desenvolvimento de câncer nos tabagistas.
30
A amônia (NH3) é utilizada para limpeza de pisos e azulejos. Pode cegar e até matar. Causa
dependência. No cigarro, ela é encontrada em pequenas quantidades e, segundo as indústrias fumígenas,
sua função seria a de acentuar o sabor do cigarro.
31
Utilizado na fabricação de DDT.
32
A acetona (C3H6O) é utilizada para remover esmaltes. Substância entorpecente e inflamável. Encontra-
se presente na fumaça do cigarro. Em pequenas quantidades irrita a pele e a garganta, provoca dor de
cabeça e tontura.
33
O formol (CH2O) é utilizado, basicamente, para conservação de cadáveres. Nos vivos causa câncer no
pulmão, problemas respiratórios e gastrintestinais.
34
propilenoglicol,
34
acetato de chumbo,
35
methoprene,
36
naftalina,
37
fósforo,
38
terebentina,
39
xileno,
40
butano
41
e muitos outros gases tóxicos e
partículas em suspensão
42
. Para que o papel queime de maneira uniforme e
a cinza não se fragmente, são ainda somados ao cigarro mais doze tipos de
venenos químicos. Nos cigarros light
43
– aqueles com baixos teores de
nicotina e alcatrão –, faz-se necessário adicionar outros dez tipos de
substâncias tóxicas.
34
O propilenoglicol (C3H8O2) é usado em desodorantes e “sprays”. Faz com que a nicotina chegue ao
cérebro. Utilizado como umectante para hidratar o tabaco já que 30% (trinta por cento) do cigarro é
formado por um composto de folhas baratas, resto de fumo e poeira.
35
O acetato de chumbo [Pb(CH3CO2)2] é uma substância cancerígena, cumulativa no corpo humano.
Quando inalado ou ingerido, atrapalha o crescimento de crianças e adolescentes. A exposição
prolongada ao produto causa câncer nos pulmões e nos rins. Provoca, ainda, anorexia e dor de cabeça.
36
O methoprene (mata-moscas) é uma das substâncias químicas liberadas na queima do cigarro. Provoca
irritação na pele e lesões no aparelho respiratório.
37
A naftalina (C10H8) é usada para matar baratas. É um gás venenoso sintetizado em forma de bolinhas o
qual provoca tosses, irritação na garganta, náuseas, transtornos gastrintestinais e anemias. Os níveis de
naftalina no cigarro são menores que a quantidade recomendada, mas o contato prolongado com a
substância ataca rins e olhos.
38
O fósforo (P4 ou P6) entra na preparação de veneno para ratazana, como Racumin. Venenoso e letal,
dependendo da porcentagem ingerida. As indústrias recusam-se a informar qual quantidade dessa
substância é adicionada aos cigarros.
39
A terebentina é uma substância tóxica extraída de resina de pinheiros e utilizada para diluir tintas a óleo
e limpar pincéis. A inalação irrita olhos, rins e mucosas. Provoca vertigens, desmaios e danos ao sistema
nervoso. A quantidade dessa substância existente no cigarro nunca foi revelada.
40
O xileno (C8H10) é uma substância inflamável e cancerígena presente nas tintas de caneta. Sua inalação
irrita os olhos, causa tontura, dor de cabeça e perda de consciência. Se ingerida provoca pneumonia. Por
causa dos riscos que oferece à saúde, as indústrias estão retirando o produto das canetas.
41
O butano (C4H10) é utilizado como gás de cozinha. É mortífero e altamente inflamável. Quando inalado
vai direto para os pulmões, toma o lugar do oxigênio e é bombeado para o sangue. Causa falta de ar,
problemas de visão e coriza. Cheirar butano é mais prejudicial que fumar crack.
42
São encontrados nos cigarros inúmeros metais, tais como: alumínio (Al), associado ao desenvolvimento
de enfisemas e hipertensão; cobre (Cu), associado ao desenvolvimento de enfermidades coronárias;
níquel (Ni), que relacionado com o monóxido de carbono forma um composto químico altamente
cancerígeno; cromo (Cr), associado ao desenvolvimento do câncer; dentre outros.
43
Muitos fumantes acreditam que os cigarros com baixos teores reduzem o risco de contrair enfermidades
a eles associadas. Entretanto, estudos revelam que estes cigarros são tão nocivos quanto os comuns. Isto
porque os tabagistas os fumam de maneira diferente, tragando mais vezes e com maior profundidade,
para obterem maiores quantidades de nicotina e alcatrão.
Esses artifícios são denominados de compensação e têm sido, extensivamente, documentados na
literatura médica, sendo conhecidos pela indústria do fumo há décadas. Testes demonstram que, em
condições de fumo realísticas, existe uma diferença muito pequena entre os cigarros denominados light e
os comuns. Na verdade, eles podem até produzir quantidades maiores de alcatrão, nicotina e monóxido
que os cigarros tradicionais testados.
Um estudo realizado na Inglaterra por KOZLOWSKI et al.(1999) demonstrou que 58% dos filtros de
cigarros examinados apresentavam sinais de bloqueio significativo e 19%, sinais de bloqueio total. Com
base nos resultados de uma pesquisa realizada em 1998, a ASH e a The Observer mostraram que os
cigarros com baixos teores podem propiciar os mesmos teores que um cigarro tradicional, caso o
fumante assim o queira e utilize apenas um dos mecanismos compensatórios antes citados. Assim, por
mais que a indústria de fumo afirme que realiza pesquisas visando ao desenvolvimento de produtos
alternativos, na verdade, ela estuda produtos e formas de distribuir a nicotina em dispositivos que
contenham menos teor de determinadas substâncias, como alcatrão, por exemplo, e mantendo a nicotina,
que causa dependência. Disponível em <http://www.inca.com.br>. Acessado em 20 de maio de 2001.
35
Afora disso, como a planta do fumo é muito suscetível ao ataque
de várias pragas, potentes agrotóxicos são utilizados na lavoura, o que
vem aumentar a quantidade de venenos aos quais ficam sujeitos os
fumantes (ativos e passivos) sempre que um cigarro é aceso.
3 Uma droga potentíssima chamada nicotina
O ato de fumar, como parte das empresas que integram a
indústria do tabaco insiste ainda hoje em defender, não é originado apenas
pela vontade dos fumantes. Pesquisas apontam que mais de 90% dos
fumantes iniciam o consumo de cigarros antes dos vinte anos de idade,
relacionando o desenvolvimento da dependência a diversos fatores:
situações sociais, aspectos da personalidade, fatores ambientais, aspectos
genéticos e, finalmente, propriedades psicotrópicas
44
da nicotina.
A nicotina,
45
de fórmula molecular conhecida desde 1843
(C10H14N2), foi produzida em laboratório no ano de 1904. É ela um
alcalóide vegetal e sua fonte principal é a planta do tabaco. É sintetizada
nas raízes, subindo pelo caule até as folhas – nas mais altas e nas áreas
próximas ao talo, armazenam-se as maiores concentrações. O conteúdo de
nicotina varia com os tipos da planta, podendo-se, por engenharia
genética, aumentar o teor de nicotina na planta
46
.
Essa substância é responsável pela dependência
47
e
vasoconstrição. Atua não só no cérebro, mas também em outros sistemas
do corpo, como o muscular, ósseo, cardíaco e vascular.
44
Segundo a definição constante na Portaria n. 344, de 12 de maio de 1998, da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária, o psicotrópico é aquela substância que pode determinar dependência física ou
psíquica e relacionada, como tal, nas listas aprovadas pela Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas,
reproduzidas nos anexos deste Regulamento Técnico. De fato, a nicotina é uma substância psicotrópica;
juridicamente, entretanto, ela não pode ser assim rotulada, na medida em que o Estado não a incluiu nas
listas específicas.
45
O papel da nicotina no gesto impulsivo de pegar o cigarro é idêntico ao da cocaína na mastigação
obsessiva das folhas de coca, concluiu Jack HENNINGFIELD, do Centro Nacional de Pesquisas de
Drogas dos Estados Unidos. Todos sabem dos riscos. Mas fumam. O Estado de São Paulo, São Paulo,
1º jun. 1986. p. 1.
46
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 8.
47
MILAGRES esclarece que: Tem-se preferido, atualmente, usar o termo drogadicto, ao invés de viciado
ou dependente químico, seja de qual droga estivermos falando. O termo adicção vem da época da
escravatura, quando um escravo ficava devendo algo ao feitor. Dizia-se que um cigarro aceso era algo
que tinha uma brasa numa ponta e um burro na outra. Hoje, reconhece-se, claramente, que um cigarro
aceso tem “uma brasa numa ponta e um escravo na outra”. (MILAGRES, Jorge Alexandre Sandes.
36
Aponta José Rosemberg que a Associação Americana de
Psiquiatria nos seus manuais publicados de 1980 a 1994, declarou a
nicotino-dependência como “desordem mental de uso de substância
psicoativa”. Já a Organização Mundial de Saúde, no ano de 1992, na
Classificação Internacional de Doenças, incluiu a síndrome da tabaco-
dependência no item F.17.2. Em 1999, a Diretora Geral desse órgão
internacional de saúde declarou: “O cigarro não deveria ser visto como
um produto, mas como um pacote. O produto é a nicotina. Pense no
cigarro como um distribuidor de uma dose de nicotina. Pense na tragada
como o veículo da nicotina”. Também fizeram declarações oficiais sobre
a nicotina como droga psicoativa causadora de dependência, instituições
científicas de renome internacional, dentre elas: a Associação Americana
de Psicologia, em 1988; a Sociedade Real do Canadá, em 1988; a
Associação Médica Americana, em 1993; e o Conselho Britânico de
Pesquisas Médicas, em 1994
48
.
Nos cigarros os efeitos da nicotina
49
são mais rápidos e
devastadores. Após uma tragada, ela chega ao cérebro em nove
segundos,
50
valendo dizer que, em média, traga-se dez vezes cada cigarro.
Quem fuma um maço de cigarros por dia, sofre, portanto, duzentos
impactos cerebrais de nicotina,
51
totalizando setenta e três mil impactos
por ano. Nenhuma outra droga age com esse volume e intensidade,
provocando malefícios e lesando praticamente todos os órgãos. Seu
Fumar pra quê, meninas e meninos? Disponível em <http://www.cigarro.med.br/>. Acessado em 20 de
maio de 2001).
48
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 48.
49
Uma empresa biofarmacêutica de Maryland conquistou a patente do que chama de vacina contra
nicotina. Segundo tal empresa, essa nova droga seria capaz de impedir a nicotina de chegar ao cérebro e
ativar as substâncias químicas que provocam sensação de bem-estar. (Jornal da Manhã. Uberaba/MG,
Saúde, quarta-feira, 30 de maio de 2001. p. 13).
50
Para se ter uma idéia, a cafeína contida numa xícara de café necessita de trinta minutos para fazer efeito.
51
Quando um psicotrópico chega ao cérebro, estimula a liberação de uma dose extra de um
neurotransmissor, provocando as sensações de prazer. À medida que o uso vai se prolongando, o
organismo do usuário tenta se ajustar a esse hábito. O cérebro adapta seu próprio metabolismo para
absorver os efeitos da droga. Cria-se, assim, uma tolerância ao tóxico. Desse modo, uma dose que
normalmente faria um estrago enorme torna-se, em pouco tempo, inócua. O usuário procura a mesma
sensação das doses anteriores e não acha. Por isso, acaba aumentando a dose. Fazendo isso, a tolerância
cresce e torna-se necessária uma quantidade ainda maior para obter o mesmo efeito. A dependência vai
assim se agravando continuamente. Como o psicotrópico imita a ação dos neurotransmissores, o cérebro
deixa de produzi-los. A droga se integra ao funcionamento normal do órgão. E quando falta o impostor
químico, o sistema nervoso fica abalado. É a síndrome da abstinência. (P. JÚNIOR, Roberto C. Vivemos
os últimos anos do juízo final. Disponível em <http://www.msantunes.com.br/juizo/drogas.htm
>.
Acessado em 20 de maio de 2001.
37
mecanismo farmacológico é semelhante ao da cocaína e heroína, e a
dependência
52
que provoca, costuma ser mais intensa que a dessas
últimas
53
.
Embora a sensação de prazer seja verdadeira, a impressão de
que o cigarro acalma, relaxa e funciona como estabilizador do humor é
tão falsa como uma nota de R$ 3,00, conforme ressalta o jornalista Mario
Cesar Carvalho
54
. Na verdade, a sensação de relaxamento ocorre porque a
nicotina agiu sobre um mecanismo produzido por ela própria: o da
dependência. Ao tragar um cigarro, o fumante acalma-se pois estava em
crise de abstinência. A nicotina que ele consumira já havia se dissipado
do organismo. Aí começaram os sintomas da falta da nicotina – uma
ansiedade que parece irritação, nervosismo e incapacidade de concentrar-
se. Quando se aspira o cigarro, a crise de abstinência é interrompida e
tem-se a sensação de relaxamento. Em resumo, a nicotina não acalma nem
estabiliza o humor. Ela só alivia os sintomas provocados por sua própria
falta; é a cura para um mal que ela própria criou
55
.
A nicotina encontra-se no tabaco, tanto em sua fase particulada,
como também na gasosa, consoante ensina José Rosemberg. Esta última é
absorvida mais facilmente pelo organismo e causa maior impacto nos
centros nervosos cerebrais. Por ser mais rapidamente absorvida,
intensifica o grau de dependência. Há anos a indústria tabaqueira
pesquisou a transposição da nicotina da fase particulada para a gasosa, de
modo que facilitasse a absorção desta substância pelo fumante. Dos 600
aditivos que a indústria emprega no tabaco, para torná-lo mais palatável,
52
Ocorre que a nicotina, em altas concentrações, favorece a atuação do sistema parassimpático,
bloqueando o simpático, dando a sensação de bem-estar ao fumante. Seu uso contínuo fará com que o
indivíduo habitue-se a essa situação, entrando em desconforto quando as cargas regulares da substância
são suspensas. O tabagista poderá, então, ficar irritado, ansioso, insone e até vomitar. Em casos mais
graves, a reação se caracteriza como síndrome de abstinência. O fumante deseja manter a concentração
habitual de nicotina no sangue, capaz de garantir sensações consideradas por ele como agradáveis, mas
essa é uma situação transitória, pois ela se decompõe no organismo, em média, entre 20 e 30 minutos,
quando, então, surge a vontade de acender outro cigarro.
53
Parecer solicitado pela Associação Cearense de Defesa da Saúde do Fumante e Ex-Fumante ao Prof. José
Rosemberg, Titular da cadeira de Tuberculose e Pneumologia da Faculdade de Ciências Médicas de
Sorocaba da Pontifícia Universidade Católica – PUC e Presidente do Comitê Coordenador do Controle
do Tabagismo no Brasil, considerado um dos maiores especialistas e estudiosos dos malefícios causados
pelo tabagismo na atualidade. Não publicado.
54
CARVALHO, Mario César. O cigarro. São Paulo: Publifolha, 2001. p. 59.
55
Ibid., p. 59.
38
vários têm por função liberar mais nicotina. Dentre eles destaca-se a
amônia, substância alcalina que eleva o pH da nicotina. E quanto mais
alto o pH – de 11 para cima –, maior a liberão da nicotina e sua difusão
orgânica, o que facilita sua penetração pelas membranas celulares nos
tecidos. Com o pH elevado a nicotina é mais retida no organismo
porquanto é mais facilmente reabsorvida pelos túbulos renais, diminuindo
sua eliminação, e com isso eleva-se sua concentração sanguínea. Por
intermédio de tal processo, a nicotino-dependência é intensificada. De
forma sintética, a amônia constitui o melhor aditivo por liberar mais
nicotina provocando maior impacto cerebral e causando um efeito
denominado “booster”. Com isso, há maior liberação de dopamina,
produzindo maior estado prazeroso e de euforia no tabagista que, em
conseqüência, consome mais cigarros. O notável êxito comercial da
Phillip Morris se deve ao fato de, há mais de 30 anos, ter incorporado
amônia no tabaco dos cigarros Marlboro, cujo consumo universalizou-se,
saltando essa companhia para o primeiro lugar em vendas, deixando a
British American Tobacco em segundo. Atualmente a tecnologia da
amônia é adotada por toda indústria tabaqueira
56
.
A inclusão da amônia no tabaco é, pois, prática corrente. Usa-se
amônia – parafraseando José Rosemberg – pura ou em forma de fosfato de
diamônia (DAP) ou hidróxido de amônia e ainda uréia. A amônia é
incorporada ao tabaco reconstituído, o qual é fabricado por vários
métodos, atingindo a quantidade de 25% do total do tabaco contido no
cigarro, sendo mais comum o seguinte: folhas, caules, resíduos e outros
detritos são misturados e tratados com solvente líquido para formar uma
pasta sobre a chapa de metal; o líquido é extraído por compressão. Quase
todos os cigarros têm tabaco reconstituído, em proporções diversas, e com
amônia
57
.
56
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 12.
57
Ibid., p. 12.
39
Afirme-se, ainda, que a dependência de nicotina
58
normalmente
se estabelece com grande rapidez, mais especificamente no período de um
a três meses. Estudo realizado em um grupo de adolescentes no Reino
Unido, demonstrou que as concentrações de cotinina
59
nas salivas,
aumentaram de forma progressiva entre fumantes jovens e iniciantes no
período de um ano (1986 a 1987) até alcançar níveis característicos dos
fumantes estabilizados
60
.
Em brilhante publicação científica, realizada pela Organização
Pan-Americana de Saúde com o Banco Mundial, intitulada Curbing the
Epidemic Governments and the Economics of Tabacco Control, realçou-se
a possibilidade de fumantes abandonarem, por completo, o vício, da
mesma forma que acontece com outras substâncias aditivas, esclarecendo,
no entanto, que, sem ajuda, as taxas individuais de êxito são baixas
61
.
Não bastasse isso, a substância, quando usada por longos
períodos, pode provocar o desenvolvimento de tolerância. O fumante,
então, tende a consumir um número cada vez maior de cigarros para sentir
os mesmos efeitos que originalmente eram produzidos por doses
menores
62
.
58
Uma pesquisa feita pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro para traçar o perfil do fumante
que procura ajuda na instituição, obteve alguns dados interessantes. Dos 538 pacientes ouvidos, 81,9%
disseram estar bastante motivados (50,7%) ou motivados (31,2%) a parar de fumar. Desse universo, 470
pessoas já haviam tentado limitar ou encerrar o hábito alguma vez na vida, mas só 77 conseguiram
deixar de fumar por mais de cinco dias, um percentual equivalente a apenas 16,3%. Os outros 21%
sequer passaram do primeiro dia de abstinência.
A pesquisa mostrou, ainda, que os principais sintomas da fase de abstinência são a ansiedade,
irritabilidade e inquietação. Segundo a psiquiatra Analice Gigliotti, chefe do Departamento de
Dependência de Nicotina da Santa Casa e coordenadora do estudo, os sintomas só começam a ser
superados no terceiro mês de tratamento. Nessa fase, sem o uso de chicletes de nicotina e remédios que
inibem a vontade de fumar, dificilmente o paciente conseguirá superar o vício. Acrescenta a psiquiatra
que a receita vale tanto para pessoas que consomem dois cigarros, quanto para os que fumam dois maços
por dia: Medir o vício de uma pessoa pela quantidade é uma lenda. Se não houver uso de medicamentos
complementares, o paciente terá uma recaída. (MELO, Murilo Fiúza de. Estudo revela que maioria quer
deixar de fumar. O Estado de São Paulo. A16 - Geral – Saúde – Sábado, 12 de maio de 2001).
59
A cotinina é o principal produto da decomposição da nicotina.
60
ORGANIZACIÓN Panamericana de la Salud, Banco Mundial. La epidemia de tabaquismo. Los
gobiernos y los aspectos económicos del control del tabaco. Publicación científica n. 577, [s.d.]. p. 23-24.
61
Sin embargo, muchos fumadores jóvenes subestiman el riesgo de convertirse en adictos. Entre la mitad y
las tres cuartas partes de los fumadores jóvenes de los Estados Unidos afirman haber tratado de dejar
de fumar al menos una vez y haber fracasado en el intento. Las encuestas efectuadas en los países de
ingreso alto indican que una proporción sustancial de fumadores de incluso tan solo 16 años lamentan
su hábito de fumar pero se sienten incapaces de abandonarlo. (Ibid., p. 23-24).
62
Um relatório americano de 1988, feito pelo U. S. Surgeon General, baseado em uma série de pesquisas,
concluiu: 1.) os cigarros e outras formas de tabaco são viciantes (aditivos); 2.) a nicotina é a droga no
40
A quantidade de nicotina existente em um cigarro está vinculada
a alguns fatores, tais quais: técnicas de plantio, tipo de tabaco utilizado,
métodos de industrialização e vários outros, incluindo a manipulação
genética
63
. Já a quantidade de nicotina absorvida pelo fumante varia
conforme a qualidade da substância existente no produto e de seu filtro,
da profundidade e número de tragadas, etc.
Segundo documentos confidenciais
64
da Indústria Brown &
Williamson Tobacco Corporation, enviados anonimamente ao professor
Stanton A. Glantz, da Universidade da Califórnia, os efeitos tóxicos e
farmacológicos da nicotina são conhecidos pela indústria fumageira
americana há mais de cinco décadas
65
.
tabaco que causa o vício e, 3.) processos farmacológicos que provocam o vício ao tabaco, são similares
às drogas, tais como, heroína e cocaína. (MILAGRES, op. cit., 2001).
Nos EUA, o cirurgião geral C. Everett Koop tornou público, em 16 de maio de 1998, resultados de uma
pesquisa sobre cigarros em que se comprovou os perigos da nicotina, como também, a qualidade viciante
desta substância.
63
O Y-1, uma espécie de planta de fumo geneticamente alterada e patenteada pela empresa fumageira
americana Brown & Williamson Tobacco Corporation, foi plantada no Brasil por sua filial Souza Cruz
S.A. e exportada para os Estados Unidos, onde no final da década de 80 e início dos anos 90 foi
comercializada e utilizada em cinco marcas de cigarros diferentes. (RAMOS, Miguel Antonio Silveira.
La responsabilidad civil de las empresas tabaqueras y deber de información. Disponível em
<http://www.ambito-juridico.com.br>. Acessado em 20 de maio de 2001).
64
Esses documentos são provenientes dos arquivos internos das indústrias de cigarros, e tornaram-se
públicos em razão das diversas demandas judiciais promovidas contra elas nos Estados Unidos. Eles
mostram a extensão e profundidade do conhecimento de tais indústrias em relação aos malefícios que o
cigarro provoca na saúde de seus consumidores, como também o poder de criar dependência da
nicotina. Além disso, tais documentos esclarecem as melhores estratégias de marketing para atrair os
jovens para o consumo; mostram a manipulação de resultados de pesquisas quando desfavoráveis à
indústria e, finalmente, evidenciam pesquisas experimentais feitas com a manipulação de componentes
do cigarro. (KOOP; GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., [s.d.].
65
Veja-se, nesse sentido, passagem constante do prefácio do livro The cigarette papers: “Many public
health workers and tobacco control professionals – including the authors of this book – have longo
suspected that the tobacco industry has known that smoking is dangerous and addictive. But proof to
substantiate this suspicion has not been available to the medical and scientific communities, much less
to the public. This situation changed dramatically in mid-1994, when an unsolicited box containing
several thousand pages of documents from the Brown and Williamson Tobacco Corporation (B&W)
arrived at Professor Stanton Glantz’s office at the University of California, San Francisco. Like the
Pentagon Papers, which revealed private doubts about the Vietnam War inside the government a
generation ago, these documents, combined with other material obtained from Brown and Willamson
by the House of Representatives Subcomitte on Health and the Environment, and some private papers
from a former research director at B&W’s parent, British American Tobacco (BAT), provide a candid,
private view of the tobacco industry’s thoughts and actions over the past thirty years. This view differs
dramatically from the public image presented by the industry during that time.” Em tradução livre:
“Muitos profissionais que trabalham na saúde pública e no controle de tabaco – incluindo os autores
deste livro – suspeitaram há muito que a indústria do tabaco sabia que fumar era perigoso e viciava.
Mas provas que substanciassem essa suspeita não estavam disponíveis às comunidades médica e
científica, muito menos ao público. Esta situação mudou drasticamente em meados de 1994, quando
uma caixa contendo alguns milhares de páginas de documentos da Brown and Williamson Tobacco
Corporation (B&w) enviada anonimamente ao escritório do professor Stanton Glantz na Universidade
da Califórnia, São Francisco. Como os papéis do Pentágono que revelavam dúvidas secretas dentro do
41
Curiosamente, porém, parte das empresas de cigarros negam,
ainda hoje, que a nicotina
66
possa causar dependência física, consoante se
pode observar nas defesas apresentadas em ações judiciais movidas contra
elas. Todavia, os estudos são unânimes em taxá-la de substância viciante,
muitos deles chegando a afirmar que, depois da morfina, a nicotina é a
droga que mais causa dependência
67
.
governo sobre a guerra do Vietnã uma geração atrás, estes documentos, combinados com outros
materiais obtidos da Brown and Williamson pela Casa de Representantes Subcomitê de Saúde e
Ambiente, e alguns papéis secretos de um ex-diretor de pesquisa da antecessora da B& W, British
American Tobacco (BAT), fornecem uma visão cândida e particular dos pensamentos e ações da
indústria do tabaco pelos últimos 30 anos. Esta visão difere dramaticamente da imagem pública
apresentada pela indústria durante aquele tempo”. (KOOP; GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER;
BARNES., op. cit., [s.d.].
66
Leciona José Rosemberg que no fumante que recebe nicotina durante anos, “seu efeito é completamente
prejudicial. Além da dependência física, destacam-se as ações deletérias nos sistemas nevoso e
cardiocirculatório e sobre quase todos órgãos, aparelhos e sistemas do organismo. Considere-se ainda
que a nicotina veicula através do tabaco milhares de substâncias lesivas, com elevado risco de morbi-
letalidade, que submerge algum eventual benefício que lhe é atribuído, sendo este, aliás muito
discutível. Isso porque os dados de experiências com a nicotina controlados cientificamente, não são
transferíveis aos tabagistas. Mesmo raras manifestações clínicas são suplantadas pela avalanche de
efeitos prejudiciais do tabaco. Os autores que consignaram relativa associação inversa do tabagismo
com certas doenças, são unânimes em ressaltar que suas observações são questionáveis e não
justificam o tabagismo por este ser um dos mais graves problemas de saúde pública do mundo.”
(ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 95.
67
Depois da morfina, a nicotina é a droga que mais causa dependência Por causa disso, poucos fumantes
conseguem abandonar o vício do cigarro – a taxa de sucesso dos tratamentos atuais é de apenas 25%,
em média. Quatro novos medicamentos prometem tornar a luta contra o tabaco mais efetiva e menos
penosa: comprimidos à base da substância verenicline, o Acomplia (nome comercial da substância
rimonabant) e as vacinas NicVax e T-Nic. “O grande trunfo do novo arsenal antifumo é fazer com que
o ato de fumar deixe de proporcionar prazer ao fumante”, diz a cardiologista Jaqueleine Scholz Issa,
diretora do ambulatório de tabagismo do Instituto do Coração, de São Paulo. É o contrário do
princípio das terapias tradicionais, que consistem no uso de antidepressivos ou na reposição de
nicotina, por meio de adesivo transdérmico, chiclete ou spray nasal. Todas elas buscam emular os
efeitos agradáveis do cigarro no organismo. O lançamento do Acomplia no Brasil está previsto para
2006. O remédio atua no mecanismo cerebral de recompensa, inibindo a sensação de prazer
proporcionada pela comida e pela nicotina. Dos pacientes tratados com o Acomplia, 40% se livraram
do cigarro. As vacinas, que estão em fase de testes, ainda não têm previsão de lançamento. Elas
também buscam dissociar o ato de fumar de sensações gratificantes. Quanto aos comprimidos de
varenicline, eles imitam a ação da nicotina no cérebro, satisfazendo a compulsão por cigarro. Todos os
anos 4 milhões de pessoas no mundo morrem vítimas de doenças associadas ao cigarro. O tabagismo
está entre os principais fatores de risco para infartos, derrames, diabetes e vários tipos de câncer, entre
outros males. Foi somente a partir do fim dos anos 80, no entanto, que o cerco ao tabagismo apertou,
com a criação das primeiras leis antitabagistas. Os primeiros sinais da cruzada contra o fumo já
começam a aparecer: no Brasil, o consumo anual de cigarros caiu 32% entre 1989 e 2002. Essa queda
foi registrada sobretudo nas classes mais altas. Por ser extremamente nocivo à saúde, fumar passou a
ser um ato socialmente condenável, associado a gente sem informação. Não é preconceito, não: pelas
contas do Ministério da Saúde, a maioria dos fumantes brasileiros tem menos de oito anos de
escolaridade. As campanhas contra o cigarro, portanto, deveriam ser direcionadas principalmente para
esse público. Além disso, seria interessante que o sistema de saúde facilitasse o acesso aos diversos
tratamentos – novos ou não – que combatem o tabagismo.” (NEIVA, Paula. Baforadas sem prazer.
Veja, São Paulo, Abril, ed. 1897, ano 38, n. 12, 23 de março de 2005).
42
4 A causalidade entre o tabagismo e diversas enfermidades
Estudos realizados por longos anos trouxeram dados
concludentes sobre a forma como o tabaco mata, lesa ou inabilita seu
consumidor.
O tabagismo é responsável, hoje, por 30% das mortes por
câncer, 90% das mortes por câncer no pulmão, 25% das mortes por
doenças coronarianas, 85% das mortes por doença pulmonar obstrutiva
crônica e 25% das mortes por doença cerebrovascular, além de estar
relacionado direta ou indiretamente com diversas outras moléstias
68
.
Em 1986, o hábito de fumar entre os americanos foi identificado
como a principal causa de morte evitável, responsável por mais de 300
mil mortes por ano, 135 mil delas por câncer no pulmão. Morriam na
época quase 800 pessoas por dia no País, vítimas do cigarro. Atualmente,
estima-se que os produtos fumígenos matam 420.000 (quatrocentos e vinte
mil) fumantes americanos e 53.000 (cinqüenta e três mil) não-fumantes,
todos anualmente, números esses que excedem os de mortes resultantes de
abuso de álcool, AIDS, acidentes de trânsito e suicídios combinados
69
. No
Brasil credita-se ao tabagismo cerca de 200 mil mortes por ano
70
.
A Sociedade Americana do Câncer esclarece que o fumo
acarreta as seguintes conseqüências ao organismo humano: enfisema,
câncer da laringe, câncer do pâncreas, câncer da bexiga, infarto do
miocárdio, úlcera péptica, câncer bucal, câncer do pulmão, câncer do
esôfago, problemas durante o parto e com o feto. Aliás, diga-se de
passagem, o câncer não é conseqüência do cigarro exclusivamente, mas do
fumo de uma maneira geral
71
. O Instituto Nacional do Câncer dos Estados
Unidos informou que o consumo de um charuto por dia, mesmo sem se
tragar a fumaça, dobra as chances de ocorrência de câncer no esôfago e na
68
SILVA, Vera Luiza da Costa e; GOLDFARB, Luisa Mercedes da Costa e Silva; CAVALCANTE, Tânia
Maria; FEITOSA, Tereza Maria Piccinini; MEIRELLES, Ricardo Henrique Sampaio. Falando sobre
tabagismo. 3. ed. Instituto Nacional do Câncer, 1998. p. 19.
69
Prefácio do Livro The cigarette papers. (KOOP; GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES,
op. cit., [s.d.]).
70
Disponível em <http://www.inca.gov.br>. Acessado em 07/04/2006.
71
P. JÚNIOR, op. cit., 2001.
43
boca; comparada à do cigarro, a fumaça do charuto emite 20 vezes mais
amônia, cádmio e outros agentes cancerígenos
72
.
Em 1997, um estudo divulgado nos Estados Unidos indicava que
mais de 40% dos casos de câncer do estômago estavam ligados ao fumo.
Também neste ano as próprias fabricantes de cigarro admitiram os
malefícios do fumo, ou foram forçadas a fazê-lo. Um dos sócios da
empresa de tabaco Ligget Group, em depoimento na Corte de Miami,
afirmou que “o cigarro causa câncer, doença cardíaca, enfisema e provoca
dependência em muitas pessoas”
73
.
A seguir proceder-se-á a uma breve análise dos males mais
comuns advindos do consumo de tabaco.
4.1 O tabagismo como doença crônica
O tabagismo não é apenas um fator de risco para diversas
enfermidades; ele mesmo é considerado uma enfermidade.
Atualmente, vê-se o tabagismo como uma doença crônica pela
enorme dificuldade para se eliminar o vício do fumante. Já se acreditou
que a força de vontade era suficiente para quem quisesse parar de fumar.
A ciência se encarregou de provar o contrário, ou seja, na prática, mesmo
querendo, é muito difícil abandonar o consumo de tabaco.
Especialistas no assunto opinam que o tabagista deve ser
submetido a um tratamento que dure por toda a sua vida. Assim como um
hipertenso não deve abandonar o exercício físico, que lhe traz benefícios
enormes, um ex-fumante também deverá adotar e manter hábitos ainda
mais saudáveis do que uma pessoa que jamais fumou. E, se necessário,
voltar a recorrer a algum tratamento químico e a programas psicológicos
para aprender a lidar com a falta de cigarro
74
.
Ensina José Rosemberg que quanto maior o consumo de tabaco,
maior é a nicotino-dependência e maior é a compulsão ao fumo. A
dependência tabágica é o melhor exemplo de doença crônica com
72
P. JÚNIOR, op. cit., 2001.
73
Ibid., 2001.
74
RIGOTTI, Nancy. Vontade não basta. (Entrevista). Revista Veja, Editora Abril. Ano 37, n. 23, 9 de
junho de 2004. p. 14-15.
44
remissões e recaídas periódicas. Tanto assim que a Organização Mundial
de Saúde, desde 1992, incluiu o tabagismo na Classificação Internacional
de Doenças, especificamente no Capítulo F17.2 (síndrome da tabaco-
dependência)
75
.
Hoje dúvidas não restam de que a nicotina contida no tabaco é a
responsável pelo desencadeamento da dependência químico-física do
tabagista. Se o tabaco não contivesse nicotina, o seu consumo não geraria
dependência, e fumar não passaria de um desagradável hábito que poderia
ser abandonado facilmente. É a nicotina que torna o fumante escravo do
tabaco
76
.
A droga-dependência é um processo associado à exposição
continuada a determinada substância psicoativa – no caso, a nicotina –; a
neuroadaptação conduz ao aumento do seu consumo para a produção do
mesmo efeito. Se esse ciclo é interrompido pela cessação do consumo da
droga, ou por efeito de uma substância antagonista, estabelece-se um
desequilíbrio exteriorizado pela denominada “síndrome de abstinência”,
com seus sintomas desagradáveis característicos (forte desejo de fumar,
inquietação, ansiedade, irritabilidade, agressividade, tristeza, distúrbios
do sono, dificuldade de concentração, dificuldade de decisão, distúrbios
de conduta psicomotora, suores, sede, dor de cabeça, constipação
intestinal, tonturas e vertigens). A readministração da droga produz alívio
imediato e sensação de bem-estar, isso pelo desaparecimento dos sintomas
adversos. O consumo de nicotina enquadra-se perfeitamente nesse
contexto, consoante evidencia o já citado mestre José Rosemberg
77
.
Ressalte-se, ademais, que a intensidade da dependência da
nicotina cresce com o tempo e o número de cigarros fumados. Todas as
formas de usar o tabaco geram dependência: cigarros, charutos,
cachimbos, fumo de mascar, rapé, etc. Aqueles que principiam a fumar
muito jovens, em torno dos 14 anos, por peculiaridades orgânicas,
desenvolvem altos graus de dependência da nicotina, tornando-se
verdadeiros escravos dela. A potencialidade psicotrópica da nicotina fica
75
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 27.
76
Ibid., p. 27.
77
Ibid., p. 30.
45
evidente com a constatação de que essa substância situa-se em primeiro
lugar, quando comparada com a cocaína, heroína, maconha, álcool e
outras drogas, devido a sua maior toxidez e letalidade, capacidade de
desenvolver dependência mais intensa e por ser a mais difundida e de
fácil acesso aos adolescentes
78
.
Conquanto no Brasil as decisões judiciais apontem que o
abandono do vício pelo fumo dependeria apenas e tão-somente de uma
decisão do próprio fumante, as evidências científicas sugerem uma idéia
diametralmente oposta, qual seja, a de que é extremamente difícil aos
tabagistas abandonarem o tabaco, justamente em função da dependência
pela nicotina. Há inúmeros registros de situações que envolvem os
desejosos de interromper o vício, fracassados nas tentativas, as quais
quase sempre se repetem por várias e várias vezes; daí a persistência na
ação de fumar
79
.
Consoante aponta a médica americana Nancy Rigotti, a
associação do abandono do vício exclusivamente à força de vontade não é
a forma correta de encarar a questão. Não bastasse a consciência de que o
fumo está agredindo a sua saúde, o fumante ainda se sente incapaz de
combatê-lo, e isso gera enorme frustração nas pessoas que não conseguem
se livrar do cigarro. Por tal motivo, os médicos que hoje atuam nessa
área, defendem a idéia de que esse é um trabalho que não requer apenas
força de vontade; afinal, o grande desafio é eliminar o vício pela nicotina,
e tal objetivo é alcançado, no mais das vezes, apenas com a ajuda de
remédios e terapia
80
.
Existem basicamente dois métodos de se tratar o tabagismo,
cuja eficácia se mostrou superior, segundo as evidências clínicas. Um
deles é o que faz uso de remédios à base de bupropiona, um
antidepressivo. O outro é o da reposição controlada de nicotina. Também
já está comprovado que as terapias comportamentais são muito eficientes.
Elas podem ser aplicadas em grupo, individualmente, ou até mesmo em
consultas por telefone. Os pacientes aprendem a entender por que fumam,
78
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 96.
79
Ibid., p. 95.
80
RIGOTTI, op. cit., p. 14-15.
46
a identificar as situações que os deixam mais ansiosos por um cigarro – se
no trabalho, depois das refeições, para relaxar, etc. Essa conscientização
os faz mudar de atitude, quebrando o circuito cerebral que leva à vontade
de fumar. Em outras palavras, eles aprendem a lidar com seus sentimentos
sem a ajuda do cigarro. Mas as terapias comportamentais são mais
eficientes quando associadas a remédios
81
.
Diante desse quadro – e de se dizer desde já –, visivelmente
antiquadas as decisões judiciais que seguem rumo à improcedência de
pedidos indenizatórios em prol de fumantes, acometidos por doenças
tabaco-relacionadas, decisões essas alicerçadas na falsa premissa do livre-
arbítrio – sugere-se que a interrupção do consumo de cigarros advém
simplesmente de uma mera decisão do próprio fumante. Tal argumento,
não bastasse sua simplicidade
82
, é alheio às evidências científicas e
contrário ao próprio bom senso...
4.2 Câncer no pulmão
A mais grave e fulminante das doenças associadas ao tabagismo
é, sem duvida, o câncer no pulmão
83
.
Essa enfermidade é uma neoplasia primária, originada nas vias
aéreas, nas quais as células epiteliais brônquicas tornam-se, de início,
citologicamente anormais; posteriormente, ocorrem alterações
carcinomatosas localizadas acima da membrana basal e assintomáticas. A
próxima alteração é a invasão epidérmica por células tumorais, seguida de
metástases tumorais. Tais tumores apresentam crescimento lento e
indolor. Com o avanço do crescimento do câncer, também ocorre aumento
na velocidade da disseminação tumoral
84
.
81
RIGOTTI, op. cit., p. 14-15.
82
A tese do livre-arbítrio, utilizada como fundamento de inúmeras decisões judiciais, será, em capítulo
próprio, refutada neste trabalho.
83
Um estudo publicado pela revista Saúde Pública apresentou uma estatística estarrecedora. Entre o início
da década de 60 e meados dos anos 80, o índice de mortes por câncer de pulmão nos Estados Unidos em
mulheres fumantes aumentou 500%, e entre homens fumantes 200%. Isso, apesar do atual predomínio
naquele país dos cigarros de baixos teores. (P. JÚNIOR, op. cit., 2001).
84
WYNGAARDEN, James B.; SMITH JR., Lloyd H. CECIL: tratado de medicina interna. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1990. v. 1. p. 405.
47
Quatro tipos de tumores constituem 95% de todos os processos
pulmonares malignos: células escamosas (epidermóide), adenocarcinoma
(incluindo célula alveolar), grandes células (também conhecido como
anaplásico de grandes células), e câncer pulmonar de pequenas células. O
câncer pulmonar de pequenas células é distinguido de outros tipos de
cânceres pulmonares porque amiúde existe uma resposta clínica à
quimioterapia
85
.
O carcinoma de células escamosas é a mais freqüente forma de
tumor (30% a 35% de todos os casos), seguida pelo adenocarcinoma,
carcinoma de grandes células e carcinoma de pequenas células
86
.
Em 98% dos tabagistas, são encontradas, na mucosa que reveste
os brônquios, alterações de células compatíveis com lesões pré-
cancerígenas, aumentando as chances de desenvolvimento de câncer, caso
o vício permaneça
87
.
O diagnóstico do câncer de pulmão é realizado mais facilmente
por meio de raios-X do tórax, complementado por uma tomografia
computadorizada. A broncoscopia (endoscopia respiratória) também deve
ser feita, isso para avaliar a árvore traquebrônquica e eventualmente
permitir a biópsia
88
.
Há três alternativas terapêuticas para se tratar o câncer de
pulmão: cirurgia, radioterapia e quimioterapia. Não raro, esses métodos
são associados visando à obtenção de melhores resultados. Tumores
restritos ao pulmão, nos estágios I e II, devem ser operados e removidos.
Nestes casos, a chance de cura é de até 70%. Nos outros estágios, a
associação de quimioterapia e radioterapia, com eventual resgate
cirúrgico, é a alternativa de melhores resultados; de qualquer forma, o
índice de cura não supera os 30%. Já no estágio VI, a quimioterapia é o
tratamento mais indicado, apesar de as chances de cura serem
extremamente reduzidas
89
.
85
WYNGAARDEN; SMITH JR., op. cit., 1990.
86
Ibid., 1990.
87
SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998. p. 25.
88
Disponível em <http://www.inca.gov.br>. Acessado em 07/04/2006.
89
Ibid., 2006.
48
Desde 1761 já existiam suspeitas de que o consumo de tabaco
pudesse acarretar câncer de pulmão. No início da década de 20, Fahr
suspeitava que o tabagismo era uma importante causa desse mal. Em
1927, Tylecote também apresentou sua contribuição sobre a matéria.
Ochsner e Debakey (1939) reconheceram o paralelo entre o aumento da
incidência da enfermidade e o crescimento do tabagismo. No início dos
anos 50, o Brtish Doctor´s Stundy confirmou o risco elevado de morte por
câncer de pulmão associado ao tabagismo. Um relato do Report of the
Surgeon General on Smoking and Health, em 1979, mostrou que o
consumo de cigarros é causa direta dessa moléstia
90
.
Em 1995, uma pesquisa realizada em doze países, por um
instituto francês de oncologia, apresentou uma informação assustadora:
nada menos que 97,5% dos casos de câncer no pulmão associavam-se ao
tabagismo
91
.
Cientistas americanos, em agosto de 1995, identificaram
mudanças genéticas no tecido pulmonar relacionadas ao vício de fumar,
capazes de conduzir ao desenvolvimento de um futuro câncer. Analisando
o DNA das lesões, eles descobriram alterações em genes já relacionadas
ao câncer do pulmão. Era a comprovação científica da relação cigarro-
câncer. Segundo esses pesquisadores, as lesões pré-cancerosas no trato
respiratório aumentam na mesma proporção do número de cigarros
fumados. Em outubro de 1996, os pesquisadores americanos explicaram,
detalhadamente, pela primeira vez, o mecanismo molecular que faz uma
substância presente no cigarro provocar tumores malignos no pulmão. Em
1997, o câncer no pulmão atribuído ao cigarro já era a principal causa de
morte de mulheres americanas que contraíam câncer
92
.
Hoje, não se pode duvidar que o cigarro representa o mais
importante agente etiológico do câncer no pulmão, como demonstrado no
trabalho de José Rosemberg e no último relatório confeccionado pela
Agência de Proteção Ambiental (EPA) do governo dos Estados Unidos
93
.
90
WYNGAARDEN; SMITH JR., op. cit., p. 405.
91
P. JÚNIOR, op. cit., 2001.
92
Ibid., 2001.
93
BETHLEM, Newton. Pneumologia. São Paulo: Atheneu, 1998. p. 511.
49
Outros dados extremamente importantes levantados pelo
Instituto Nacional do Câncer, em estudo realizado no Estado do Rio
Grande do Sul, demonstram o nexo causal existente entre o vício de fumar
e essa grave enfermidade
94
:
a) fumantes pesados (mais de vinte cigarros por dia) têm quinze
a vinte vezes mais chances de morrer de câncer no pulmão,
que os não-fumantes;
b) existe um intervalo de vinte e cinco a trinta anos entre
começar a fumar e diagnosticar a doença. Este espaço de
tempo varia de acordo com o número e o tipo de cigarro
fumado, com o tempo durante o qual o indivíduo fumou e a
profundidade das tragadas;
c) o consumo de cigarros e o número de mortes por câncer no
pulmão têm caminhado em paralelo: em 1945 houve
crescimento de consumo de cigarros no Brasil, que foi
acompanhado, 30 (trinta) anos depois (1975), pelo
crescimento da taxa de mortalidade por câncer de pulmão
entre homens (maiores consumidores de cigarros neste
período)
95
.
Deveras, o câncer de pulmão é o mais comum de todos os
tumores malignos, apresentando um aumento por ano de 2% na sua
incidência mundial. Em 90% dos casos diagnosticados, a enfermidade
encontra-se associada ao consumo de derivados de tabaco. Só no Brasil,
essa espécie de câncer foi responsável por 14.715 óbitos em 2000, sendo o
tipo de câncer que mais fez vítimas. Segundo a Estimativa de
94
WAYNE MCLAREN, o ator que protagonizou o famoso caubói da publicidade da marca Malboro,
morreu de câncer no pulmão em 1992.
95
SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998. p. 25.
50
Incidência de Câncer do INCA, o câncer de pulmão deverá atingir 27.170
brasileiros (17.850 homens e 9.320 mulheres) em 2006
96
.
4.3 Doenças coronarianas
A probabilidade dos tabagistas morrerem por doenças
coronarianas também é maior. O tabagismo é responsável por
aproximadamente 45% das mortes nos homens com menos de 65 anos de
idade, e por mais de 20% de todos os óbitos por doença coronariana nos
homens com idade superior a esta. Ademais, homens fumantes entre 45 e
54 anos de idade têm quase três vezes mais probabilidade de morrer de
infarto do que os não-fumantes da mesma faixa etária
97
.
Há três fatores de risco previsíveis para doença coronariana:
tabagismo, hipertensão arterial (pressão alta) e colesterol alterado
(elevação do colesterol-LDL e redução do colesterol-HDL). O tabagismo
isolado dobra a possibilidade de doença cardíaca. Quando associado à
alteração do colesterol ou à hipertensão, esse risco é multiplicado por
quatro. O risco torna-se oito vezes maior quando os três fatores estão
juntos. De mais a mais, o cigarro, por si só, por meio da nicotina,
aumenta a pressão arterial e possibilita um maior depósito de colesterol
nos vasos sangüíneos
98
.
O risco de infarto do miocárdio, embolia pulmonar e
tromboflebite em mulheres jovens que usam anticoncepcionais orais e
fumam, chega a ser dez vezes maior que o das que não fumam e usam este
método de controle da natalidade. Calcula-se que o tabagismo seja
responsável por 40% dos óbitos nas mulheres
99
com menos de 65 anos e
por 10% das mortes por doença coronariana nas mulheres de idade
superior a esta. Uma vez abandonado o cigarro, o risco de doença cardíaca
96
Disponível em <http://www.inca.gov.br>. Acessado em 07/04/2006.
97
SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998. p. 25.
98
Ibid., p. 23.
99
O cigarro bloqueia parte do efeito protetor que o hormônio feminino estrógeno tem sobre as artérias
coronárias das mulheres que estão em idade fértil e, com isso, aumenta os riscos de formação de placas
e de problemas cardíacos. Se a mulher já tem níveis elevados de colesterol, a situação é ainda mais
crítica. A nicotina do cigarro tem um efeito potencializador sobre os níveis elevados de colesterol no
organismo. (EFEITOS do fumo são piores em mulheres. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 abr. 1998,
Cotidiano 3, p. 9).
51
começa a decair. Após 1 ano, o risco se reduz à metade, e após 10 anos, é
o mesmo que o daqueles que nunca fumaram
100
.
Segundo a cardiologista Jaqueline Scholz Issa, do grupo de
prevenção do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da
USP, o estresse, a vida sedentária, o colesterol elevado, pressão alta e a
predisposição genética têm papel importante nas doenças do coração, mas
o cigarro é uma espécie de gatilho de todo esse processo. O cigarro
prejudica o coração e os vasos sangüíneos por meio de vários
mecanismos. Em primeiro lugar, ele lesa o endotélio (camada que reveste
os vasos). A fumaça oxida o LDL-colesterol, facilitando a incorporação
da gordura nas placas que estão se formando. O monóxido de carbono se
liga à hemoglobina – pigmento que transporta o oxigênio dentro dos
glóbulos vermelhos do sangue. Com isso, os tecidos do corpo recebem
menos oxigênio para manter o trabalho das suas células. Demais, o
cigarro funciona como um agregante plaquetário, ou seja, ele aumenta a
chance de um coágulo de sangue o qual pode obstruir, de vez, a passagem
de sangue por dentro de uma artéria. Componentes do cigarro
proporcionam à liberação de substâncias que aumentam a freqüência de
batimentos cardíacos e diminuem o calibre dos vasos de sangue,
provocando aumento da pressão arterial. O cigarro ainda é responsável
por arritmias cardíacas e morte súbita
101
.
4.4 Bronquite crônica e enfisema pulmonar
O tabaco também é a primeira causa de bronquite crônica e de
enfisema.
A doença broncopulmonar obstrutiva crônica (bronquite e
enfisema) é a forma mais comum de enfermidade crônica do aparelho
respiratório. Não possui cura, apenas tratamento contínuo para melhorar
os sintomas indesejáveis, tal como ocorre, por exemplo, com a pressão
alta e o diabetes.
100
SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998. p. 23.
101
CIGARRO dispara gatilho do infarto. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 abr. 1998, Cotidiano 3, p. 9.
52
Sabe-se que tal moléstia pode acometer cerca de 20% dos
fumantes. No Brasil, estima-se que mais de 30% da população seja
tabagista, o que equivaleria ao comprometimento de aproximadamente
oito milhões de pessoas. Ao longo de vários anos, tem sido a segunda
maior causa (após as pneumonias) de morte por doença pulmonar, bem
como tem aumentado o número de incapacitados, internações hospitalares,
benefícios e licenças de trabalho. É um mal que atinge os pulmões e
brônquios, caracterizado, principalmente, pela dificuldade de colocar o ar
fora dos pulmões sem comprometimento significativo de sua saída.
No enfisema, especificamente, ocorre a destruição das paredes
dos alvéolos (local dos pulmões em que acontece a troca de oxigênio e
dióxido de carbono, entre o ar atmosférico e o sangue), devido a um
desequilíbrio entre as proteases (enzimas proteolíticas) e antiproteases no
trato respiratório inferior, ocasionando diminuição da concentração
sangüínea de oxigênio.
Já a bronquite crônica caracteriza-se pela inflamação da mucosa
dos brônquios, com produção constante de catarro, muitas vezes infectado
(amarelo ou escuro) e que, também, conduz a uma dificuldade para
expulsar o ar de dentro dos pulmões (expiatória)
102
.
A mortalidade por doença pulmonar obstrutiva crônica é alta em
fumantes de ambos os sexos, e o aumento do risco diretamente
proporcional à quantidade de cigarros fumados
103
.
4.5 Acidentes vasculares cerebrais
O acidente vascular cerebral (AVC), chamado popularmente de
derrame cerebral, resulta de um sangramento dentro do cérebro, que
provoca a paralisia do corpo e, muitas vezes, o estado de coma e morte. É
mais corriqueiro nas mulheres. É, ainda, de duas a três vezes mais comum
102
Disponível em <http://www.santacasa.org.br/utilidade/pneumo.asp>. Acessado em 20 de maio de 2001.
103
Estudos realizados pelo Instituto Nacional do Câncer comprovam que jovens com até 30 anos de idade,
assintomáticos, fumantes, já apresentam redução da função pulmonar. Assim, fica claro que parar de
fumar é benéfico, em qualquer momento. Se o indivíduo parar de fumar, sem sintomas respiratórios, a
sua função pulmonar pode retornar ao normal.
53
em fumantes de ambos os sexos. As estimativas sugerem que 50% a 55%
dos AVCs sejam atribuídos diretamente ao tabagismo
104
.
Segundo dados do Instituto Nacional do Câncer, a morte por
acidentes vasculares cerebrais em mulheres é mais freqüente em fumantes,
elevando o risco com o aumento do número de cigarros consumidos. Tal
risco reduz drasticamente dentro de dois anos após a interrupção do
tabagismo, ficando ao nível das pessoas que nunca fumaram após cinco
anos de abstinência.
O tabagismo relacionado ao uso regular da pílula
anticoncepcional
105
também aumenta consideravelmente a incidência dos
acidentes vasculares cerebrais e de infarto do miocárdio, provavelmente
por atuar pelos mesmos mecanismos (diminuição das taxas de
lipoproteínas de alta densidade, favorecendo a arteriosclerose).
4.6 Doença de Buerger
Também denominada de tromboangeíte obliterante, a doença de
Buerger é caracterizada por uma obstrução das artérias e veias de pequeno
e de médio calibre. Afeta os vasos sanguíneos das mãos, braços, pernas e
pés, provocando o seu inchaço e impedindo a circulação do sangue
106
.
Acomete principalmente os homens asiáticos (japoneses,
coreanos, chineses, do sudeste asiático, indianos, turcos, do leste da
Europa, etc.) com idades entre 30 e 40 anos. As mulheres constituem-se
apenas 5% dos casos
107
.
O tabagismo encontra-se intimamente relacionado ao
aparecimento e desenvolvimento desta doença. Mesmo que a doença
acometa alguém que nunca fumou, provavelmente essa pessoa é, ou já
104
SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998. p. 27.
105
Mulheres que fumam e que usam anticoncepcional oral estão mais expostas a problemas de embolismo
pulmonar. O cardiologista Abrão Cury esclarece que, como o cigarro altera a irrigação dos ovários, a
mulher fumante pode entrar na menopausa antes do que a mulher que não fuma. A osteoporose também
é mais intensa. Além disso, durante a gravidez, como o cigarro altera a irrigação da placenta, ela pode
não dar conta de nutrir adequadamente o bebê, o que leva a maior risco de parto prematuro e de a criança
nascer com peso abaixo do normal. (EFEITOS do fumo são piores em mulheres. Folha de São Paulo,
São Paulo, 26 abr. 1998, Cotidiano 3, p. 9).
106
Disponível em <http://www.asahikawa-med-surgery.net/por/case-1.html>. Acessado em 07/04/2006.
107
Ibid., 2006.
54
tenha sido, um fumante passivo
108
. A esse respeito, confira-se a lição
colhida do Manual Merck:
A doença de Buerger (tromboangeíte obliterante) é a obstrução
de artérias e veias de pequeno e médio calibre por uma
inflamação causada pelo tabagismo. Esta doença afeta
predominantemente os indivíduos do sexo masculino,
tabagistas e com idade entre 20 e 40 anos. Apenas 5% dos
indivíduos afetados são do sexo feminino. Embora não se
conheça exatamente a causa dessa doença, apenas os tabagistas
são afetados e a persistência no vício agrava o quadro. O fato
de apenas um pequeno número de tabagistas apresentar a
doença de Buerger sugere que algumas pessoas são mais
suscetíveis. No entanto, não se sabe a razão pela qual, nem
como, o tabagismo causa esse problema
109
.
O diagnóstico também se encontra relacionado diretamente ao
tabagismo. Geralmente, suspeita-se estar diante de alguém que foi
acometido pela doença de Buerger, quando o paciente é um homem
asiático, com idade entre 30 e 40 anos, que fume 20 ou mais cigarros por
dia, e apresente os seguintes sintomas: a) dor e frio nos dedos dos pés e
mãos; e/ou b) aparecimento de úlceras e gangrena; e/ou c) a claudicação
intermitente na barriga da perna e nas plantas dos pés. Em tais casos, o
paciente deve ser submetido a testes para vários tipos de problemas
vasculares, incluindo uma arteriografia
110
.
Diagnosticada a doença, é o paciente orientado a abdicar-se do
fumo imediatamente. Conquanto o tabagismo esteja associado a inúmeras
doenças, não existe outra enfermidade, que não a doença de Buerger, que
reflita, de forma mais direta e contundente, as conseqüências advindas
dele
111
. Assim, a pessoa acometida de tal moléstia deve deixar de fumar;
caso contrário, o processo irá agravar-se de forma tão inexorável que a
única opção médica será a amputação
112
.
Essa relação direta da doença de Buerger com o tabagismo
certamente opera-se em prol de consumidores que, acometidos de do mal,
pretendam obter indenizações contra a indústria do fumo. Isso porque, a
108
Disponível em <http://www.asahikawa-med-surgery.net/por/case-1.html>. Acessado em 07/04/2006.
109
Disponível em <http://www.msd-brazil.com>. Acesso em 07/12/2006.
110
Disponível em <http://www.asahikawa-med-surgery.net/por/case-1.html>. Acessado em 07/04/2006.
111
Ibid., 2006.
112
Disponível em <http://www.manualmerck.net/artigos/?id=54&cn=670&ss=>. Acessado em 07/04/ 2006.
55
prova do nexo de causalidade entre o fumo e a enfermidade em tais casos
é presumida; afinal, a ciência apresenta sólidos argumentos conslusivos
de que apenas fumantes (ativos ou passivos) desenvolvem tal mal. Aliás,
essa foi a linha que conduziu a Desembargadora Marilene Bonzanini
Bernardi, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao proferir seu
voto em favor de um fumante portador de tromboangeíte obliterante, na
Apelação Civil n. 70012335311, julgamento esse que acabou por condenar
a empresa Souza Cruz S.A. ao pagamento de indenização por danos
materiais e morais.
4.7 A impotência
São várias as causas de impotência no homem. De qualquer
sorte, é consenso geral que a nicotina é agente direto causador desse mal,
consoante aponta José Rosemberg
113
.
Nos fumantes, a impotência surge quando o processo de
estreitamento da luz da artéria ocorre a partir da artéria ilíaca primitiva,
instalando-se na artéria pudenda interna e/ou artéria dorsal do pênis e
artérias cavernosas. O afluxo do sangue ao pênis diminui, o que dificulta,
ou mesmo impede, a ereção. Basta que a luz dos ramos da artéria
cavernosa diminua 25% para se instalar a impotência. Ratos e cães, sob o
efeito de dois cigarros, acusaram diminuição da circulação sanguínea
arterial no pênis. Injeções de nicotina em animais, ou de catecotaminas
liberados por ela, desencadearam arteriosclerose nas artérias do pênis.
Pela angiografia, provou-se a diminuição do fluxo sanguíneo na artéria
pudenda de tabagistas
114
.
Estudo realizado em uma clínica especializada apresentou
conclusão surpreendente. Nos homens que jamais fumaram, a prevalência
de impotentes foi de 2,2%, subindo a 37% nos tabagistas. Vários estudos
estatísticos constataram que dos impotentes, a prevalência de fumantes
variou de 51,4% a 62%. Uma das mais extensas análises epidemiológicas
e fisiopatológicas da impotência e disfunção erétil, publicada nos últimos
113
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 30.
114
Ibid., p. 30.
56
30 anos, em homens entre 40 e 70 anos de idade, concluiu que o
tabagismo é o maior agente dentre 14 causas arroladas
115
.
4.8 Outras enfermidades associadas ao tabagismo
Não bastassem as doenças acima referidas, diferentes tecidos
orgânicos sofrem com a exposição à fumaça do cigarro, sujeitando o
organismo humano a diversas outras enfermidades
116
.
O vício de fumar enfraquece o sistema imunológico, tornando o
corpo vulnerável a inúmeras doenças como a lupus erithematosus, que
provoca calvície.
Os olhos podem ser afetados pela fumaça do cigarro de duas
formas: uma simples irritação nas membranas sob as pálpebras, como
também, um efeito tóxico que prejudica certas células da visão dentro da
retina. Esta última ocorre em uma pequena minoria de fumantes, sendo
conhecida como ambiopia do fumo. O tabagista tem sua habilidade para
distinguir cores afetada pelo centro da visão, produzindo, também, visão
distorcida no ponto de foco.
O fumante se vê, ainda, prejudicado pela irritação que seu vício
causa nos delicados tecidos do nariz e na parte superior da faringe, tendo,
como resultado, seu olfato danificado.
Conseqüência comum do vício de fumar é tornar os órgãos do
paladar menos sensíveis. O fumante inveterado necessita de que sua
comida seja exageradamente temperada com pimenta, mostarda e outros
115
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 30.
116
O cirurgião plástico Altamiro da Rocha Oliveira, ao responder a pergunta de um leitor do jornal O
Globo, esclareceu que o paciente fumante, quando decide fazer uma plástica, necessita de cuidados
especiais antes da cirurgia, como também no pós-operatório. Segundo o cirurgião, existem médicos que
preferem não operar pacientes fumantes porque, mesmo adotando os cuidados necessários, podem
acontecer problemas no processo de cicatrização, principalmente nas cirurgias que necessitam de
amplos descolamentos, como a plástica de face ou de abdômen. Salienta ainda que outro aspecto muito
importante é que o paciente nem sempre segue as orientações determinadas antes da cirurgia e no pós-
operatório, o que também pode causar uma série de dificuldades. O paciente deve se conscientizar que,
decidindo se submeter a uma cirurgia, deverá seguir uma série de orientações que começam 15 (quinze)
dias antes da operação. O ideal, segundo o médico, é suspender o uso do cigarro. Como nem sempre
isso é possível, é preciso, pelo menos, diminuir seu consumo. Também é comum a indicação de um
vasodilatador (tipo bufedil de 200mg), devendo o paciente tomar um comprimido a cada 12 (doze)
horas, durante uma semana. Recomenda-se, ainda, a nebulização com fluimicil durante quatro dias, para
melhorar as condições respiratórias. Com estes cuidados, diminuem-se os riscos. (O Globo – Jornal da
Família – Domingo, 21 de jan. de 2001. p. 5).
57
condimentos, pois, de outra forma, seu alimento não lhe dará sensação de
sabor. Isso porque os corpúsculos gustativos tornam-se menos sensíveis
do que o normal.
O fumo obstrui os vasos sangüíneos e reduz o fluxo de sangue
para o ouvido. Por isso, o fumante começa a sofrer de perda de audição,
em média, 16 anos antes dos outros, além de se tornar mais suscetível a
infecções
117
.
Segundo um estudo feito em outubro de 1998, no Lawrence
Livermore National Laboratory, na Califórnia, fumantes adolescentes do
sexo masculino correm mais risco de experimentar problemas na produção
de esperma, fato que, no futuro, poderá acarretar anomalias genéticas em
seus filhos. A pesquisa, realizada com esperma coletado de jovens da
República Theca, mostrou mudanças significativas no cromossomo de
fumantes – com a média de dois maços diários de cigarros – e também em
consumidores de álcool. Os danos celulares dos fumantes incluem
duplicações anormais dos cromossomos que as crianças herdam dos
pais
118
.
Em estudo realizado no Instituto de Andrologia do Centro para
Medicina Reprodutiva em Lexington, comprovou-se que a qualidade da
relação sexual dos fumantes é pior do que a dos indivíduos que não
fumam. A conclusão da pesquisa é a de que fumar diminui o desejo sexual
dos homens e, diante da ausência de desejo, a freqüência de relações
também é menor com, inclusive, episódios de impotência
119
.
No Brasil, estudos realizados pela médica Jaqueline Scholz Issa,
do Serviço de Prevenção Cardiológica do Instituto do Coração de São
Paulo (SP), comprovaram que a fertilidade das mulheres fumantes é
menor do que a das mulheres não fumantes
120
.
A incidência de fraturas pós-menopausa cresce nas mulheres
fumantes – e são mais freqüentes as fraturas da ossatura da bacia. O maior
117
Disponível em <http://www.revistatrip.com.br/newscotina/autopsia.htm.>. Acessado em 20 de maio de
2001.
118
P. JÚNIOR, op. cit., 2001.
119
BLAT, Jorge. Cigarro prejudica performance na cama. Folha on-line. Disponível em <http://www.
uol.com.br/folha/equilibrio/index20000728.shtml>. Acessado em 20 de maio de 2001.
120
FERTILIDADE diminui na mulher. Folha on-line. Disponível em: <http://www.uol.com.br/folha/ equilibrio/
equi20000728_infertsex02.shtml>. Acessado em 20 de maio de 2001.
58
risco de osteoporose é na fase pós-menopáusica, na mulher tabagista. Tal
risco diminui em um quarto se a mulher deixa de fumar antes da
menopausa. Há evidências que nas fumantes a densidade óssea é
prejudicada, independentemente das condições de obesidade
121
.
O câncer na garganta é outra trágica enfermidade que o fumante
pode vir a desenvolver. Tal câncer, quando causado pelo efeito irritante
contínuo de agentes químicos existentes na fumaça do cigarro, muitas
vezes leva ao dilaceramento das cordas vocais do tabagista no ato da
cirurgia corretiva. O hábito de fumar responde por 80% dos tumores
cancerosos nas cordas vocais.
Um estudo clássico, realizado na cidade de Boston, em 1984,
definiu com precisão a influência do cigarro no aparecimento do câncer
na bexiga. Homens que consomem mais de dois maços de cigarros por dia,
têm cinco vezes mais chances de serem atingidos pela doença. Esse risco
é maior ainda nas mulheres fumantes. Indivíduos que se desvencilham do
vício, continuam com risco elevado; contudo, a propensão se atenua após
dez anos de abstinência. Hoje se sabe que muitos casos poderiam ser
evitados; afinal, o tabagismo é responsável por, nada menos que 40%
deles
122
.
Pesquisadores da Inglaterra, em trabalho publicado no Annals of
the Rheumatic Diseases, descobriram que o tabagismo está vinculado a
artrite reumatóide, uma espécie de inflamação das articulações. Os
consumidores que fumam vinte ou mais cigarros por dia, durante longo
período, correm maior risco de desenvolver a doença
123
.
O cigarro é responsável, ainda, pelo envelhecimento precoce
124
.
Conforme esclarece Helion Póvoa, precursor da medicina ortomolecular
no Brasil e um dos maiores especialistas na área de nutrição e bioquímica
do mundo, os agentes nocivos à saúde do homem são todos formadores de
121
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 74.
122
SROUGI, Miguel. Câncer de bexiga em dó menor. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 de out. de 2000,
Caderno A - Opinião, p. 3.
123
MAIS uma do cigarro. Revista Veja, ed. 1688. São Paulo, 21 fev. 2001, ano 34, n. 7, p. 134.
124
O cigarro envelhece a pele, deixa-a seca e enrugada. Sua nicotina inibe a produção de colágeno,
dificulta a assimilação de vitamina A, reduz a hidratação do corpo e retira proteínas que dão
elasticidade à epiderme. Fumantes de 40 anos costumam ostentar rugas que só aparecem nos não-
fumantes quando estão na casa dos 60. (Disponível em <http://www.revistatrip.com.br/newscotina/
autopsia.htm>. Acessado em 20 de maio de 2001).
59
radicais livres, sendo o cigarro exemplo clássico de fonte externa desses
radicais. Segundo ele “já está mais do que provado que o fumo faz mal
para a saúde e pode provocar câncer, entre outras doenças graves. Além
disso, o cigarro também envelhece”. E arremata esclarecendo que
todos estamos hoje expostos aos malefícios do cigarro,
fumando ou não. Muitos estudos comprovam que os não-
fumantes vêm sendo quase que tão prejudicados pela fumaça do
cigarro, quanto os fumantes. Cada baforada de um cigarro
contém cerca de 100 trilhões de radicais livres que, ao serem
inalados, vão provocar prejuízos ao organismo, é claro
125
.
No mesmo norte, a posição de José Rosemberg ao afirmar que
os
efeitos da nicotina provocando vasoconstrição, diminuindo o
fluxo sanguíneo na derme, produzem deterioração do colágeno,
tornando a pele mais seca e dura, “quebradiça”. A isso se soma
a diminuição da prostaciclina, favorecendo o processo da
deteriorização do colágeno na base da derme. Isso diferencia as
rugas dos tabagistas das naturais e fisiológicas. Esse
enrugamento é mais visível nas mulheres por terem pele mais
fina e é mais comum na raça branca
126
.
O cigarro já é considerado o principal causador de rugas
profundas no rosto, especialmente nas mulheres. Pesquisas recentes
apontam que a nicotina produz uma enzima que destrói as fibras que
formam o colágeno, substância protéica das fibras da pele. Um grupo de
pesquisadores da Universidade de Nagoya (Japão) verificou uma queda de
40% na produção do colágeno quando adicionada fumaça de cigarro a
fibroblastos (células da pele que produzem o colágeno). Sem ele, a pele
perde a elasticidade, acelerando o processo de envelhecimento precoce. A
nicotina também bloqueia as ligações cruzadas da elastina (proteína
fibrosa e elástica presente na pele), reduz a lubrificação cutânea e os
níveis de vitamina A (antioxidante que combate os radicais livres).
125
PÓVOA, Helion. A chave da longevidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 30.
126
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 64.
60
Também diminui o calibre dos vasos sanguíneos que irrigam o tecido
cutâneo, prejudicando a oxigenação das células
127
.
Na verdade, os mais insuspeitos problemas de saúde estão
relacionados ao hábito de fumar. O fumo enrijece a aorta, duplica a
chance de perda dos dentes,
128
retarda o desenvolvimento de dentes
permanentes em crianças expostas à fumaça, deixa o hálito com odor
fétido, provoca danos aos ossos,
129
deixa o cabelo branco mais cedo; nas
mulheres, acelera a menopausa
130
e aumenta o risco de fratura do quadril,
devido à redução do fluxo sangüíneo nos ossos.
O tabagismo é, ainda, fator de risco para o surgimento de
doenças como a psoríase,
131
úlcera no estômago
132
e duodeno, cáries,
133
127
COLLUCCI, Cláudia. Cigarro provoca ruga mais intensa que o sol. Disponível em <http://www.
tabacozero.net>. Acessado em 20 de maio de 2001.
128
Fumar amarela os dentes e contribui para a formação de tártaro, o que provoca cáries. A probabilidade
dos dentes de um fumante caírem é 150% maior que a de um não-fumante. (Disponível em:
<http://www.revistatrip.com.br/newscotina/autopsia.htm)
>. Acessado em 20 de maio de 2001.
129
O monóxido de carbono exalado pela fumaça dos cigarros e dos automóveis diminui a oxigenação do
sangue e reduz a densidade dos ossos, que passam a quebrar facilmente. Quem fuma um maço por dia
está mais propenso a sofrer dores nas costas. (Ibid., 2001).
130
Em estudo publicado no Journal of Clinical Epidemiology (1998, n. 51, p. 1271-1276), de dez. de 1998,
pesquisadores da Universidade de Nova Iorque demonstraram que mulheres tabagistas, de dez ou mais
cigarros por dia, têm maior chance de adiantar a menopausa e que as multíparas (três ou mais
gestações) apresentam um atraso na menopausa quando comparadas às nulíparas. (Disponível em
<http://194.235.129.80/cmv/print.asp?cod_artigo=19525>. Acessado em 20 de maio de 2001). José
Rosemberg leciona que o “consumo de nicotina pela mulher, causando desequilíbrio da função
estrogênica, provoca o apressamento da menopausa, expressando seu envelhecimento precoce. O
estudo patrocinado pelo Boston Collaborative Drug Surveillance Program, reuniu informações de
hospitais de Boston, Estados Unidos e de outros centros do Canadá, Escócia, Alemanha, Itália e Nova
Zelândia, referentes a 55.000 mulheres entre 44 e 45 anos de idade, enquanto nas consumidores de 10
a 20 cigarros por dia, o percentual subiu respectivamente a 34% e 49%. Estudo semelhante na
Inglaterra constatou que entre as abstêmias e fumantes de 46 e 47 anos, as mulheres com menopausa
eram respectivamente 11% e 27%. Vários outros estudos epidemológicos chegaram às mesmas
conclusões. Ampla revisão bibliográfica sintetizou que em média o apressamento da menopausa nas
mulheres tabagistas é de 0,8% a 1,7 anos e que é tanto mais precoce quanto maior o número de
cigarros consumidos diariamente e quanto mais cedo se começa a fumar.” (ROSEMBERG, op. cit.,
2003. p. 74).
131
Doença crônica que provoca escamas esbranquiçadas e manchas vermelhas na pele, principalmente nos
joelhos e no couro cabeludo. O fumante tem até três vezes mais chances de desenvolvê-la.
132
O cigarro diminui a resistência às bactérias que geram a úlcera de estômago. Se o paciente não parar de
fumar, o tratamento será difícil e raramente levará à cura. (Disponível em: <http://www.revistatrip.
com.br/newscotina/autopsia.htm>. Acessado em 20 de maio de 2001). José Rosemberg esclarece que
estudos “prospectivos e retrospectivos convergem seus dados de maior incidência e mortalidade por
úlceras pépticas (estômago e duodeno) nos tabagistas em cotejo com os não-fumantes. Nas populações
dos continentes europeu e americano, onde há mais estudos a respeito, estima-se que a incidência de
ulcera péptica seja de 10%, sendo que em 1980, nos Estados Unidos, cerca de 2,5 milhões tinham
diagnóstico desse mal. Vários estudos acusam nos portadores de úlcera péptica até 80% de fumantes.”
(ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 62).
133
As crianças pequenas expostas à fumaça dos cigarros apresentam um índice maior de cáries dentais que
as não expostas a ela, conforme aponta um relatório divulgado em dezembro de 2005 nos Estados
Unidos. Utilizando dado e exames médicos feitos em quatro mil crianças de idade entre 4 e 11 anos, a
61
osteoartrite, amigdalite, hipertensão, trombose cerebral, tuberculose,
diabetes mellitus, leucoplasia, periodontite, doença de Peyronie,
134
cânceres diversos (boca, faringe, laringe, reto, esôfago, estômago,
pâncreas, fígado, rins, pênis, etc) e até mesmo gripe.
5 A mulher e o tabaco
Os espaços crescentes que as mulheres vêm conquistando em
territórios antes quase que exclusivamente masculinos, apresentam
também o seu lado perverso. Efeito colateral das batalhas por direitos
iguais, o tabagismo é um mal que tem aumentado significativamente ao
longo dos últimos dez anos entre elas
135
.
Historicamente, as mulheres entraram em contato com o fumo
bem depois dos homens. A importância epidemiológica do tabagismo
entre elas acentuou-se a partir da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Até
então, fumavam pouco e principalmente nos grandes centros urbanos
136
.
De qualquer sorte, o número de mulheres fumantes na
atualidade,
137
se comparado aos dos homens, é relativamente pequeno. Os
conclusão obtida foi a de que as crianças têm maior risco de cáries se apresentam níveis altos de
cotinina, um derivado da nicotina que indica a exposição à fumaça dos cigarros. Pesquisas anteriores já
demonstravam que a nicotina promove o crescimento de bactérias que podem causar as cáries.
(Disponível em <http://www.tabacozero.net>. Acessado em 12/04/2006).
134
Doença que provoca a curvatura de até 90% no pênis durante a ereção. O professor Giuseppe La Pera,
chefe da equipe de urologistas do Hospital San Vincenzo, em Roma, apresentou um estudo em conjunto
com o Instituto Superior da Saúde Italizno provando que o cigarro pode ser um dos causadores da
doença de Peyronie.
135
Disponível em <http://www.fiomaravilha.com.br/assinaturas/sobreofumo.html>. Acessado em 12/04/2006.
136
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 58.
137
Um estudo, conduzido pela Universidade de Glasgow, na Escócia, destruiu, ao menos parcialmente, a
crença de que o fumo emagrece. Ficou provado que essa idéia não vale para aqueles que têm entre 16 e
24 anos. Com isso, elimina-se a falsa idéia que associa o fumo às mulheres esbeltas. Esse o teor da
reportagem escrita por Mario Cesar Carvalho: “Um levantamento feito com mil jovens nessa faixa
etária concluiu que os fumantes têm uma predisposição maior para ganhar peso ou se tornar obesos
quando comparados àqueles que não fumam. A tendência é maior entre as mulheres”. E continua: “A
cardiologista Jaqueline Scholz Issa, do Incor (Instituto do Coração) do Hospital das Clínicas de São
Paulo, diz que a conclusão da pesquisa é “uma grande novidade” médica: “Não havia estudo mostrando
que o fumante poderia ganhar mais peso do que o não-fumante”, afirma ela.” E mais: “Um dos autores
da pesquisa, o nutricionista Mike Lean, do departamento de nutrição humana da Universidade de
Glasgow, diz que a interação entre fumo, gordura e hormônios pode explicar por que as jovens ganham
peso ao fumar. Outra explicação, segundo ele, é que jovens têm uma predisposição maior para
desenvolver uma flacidez no diafragma em conseqüência do fumo.
O dano muscular, segundo o pesquisador, reduz a capacidade de queimar gorduras. A flacidez do
diafragma atinge mais o sexo feminino: enquanto 25% das meninas de 15 anos têm esse dano
muscular, nos meninos da mesma idade o índice cai para 14%.” Não só isso: “O estudo, publicado no
“International Journal of Obesity”, examinou o IMCndice de massa muscular) de 9.047 pessoas entre
62
percentuais de homens e mulheres fumantes são, respectivamente: a)
países desenvolvidos, 42% e 24%; países em desenvolvimento, 47% e 7%;
no mundo, 48% e 12%. O total de mulheres fumantes em todo o globo é
de 250 milhões
138
.
É inequívoco, porém, que o número de mulheres fumantes está
crescendo em todos os países, sobretudo na faixa etária em que se situa a
juventude
139
. Uma pesquisa realizada em 1989, envolvendo jovens de 10 a
18 anos de escolas de 1º e 2º graus, de 10 capitais brasileiras, registrou
que, em 7 destas, a prevalência de fumantes era mais elevada entre as
moças do que entre os rapazes. No município do Rio de Janeiro, no ano
2000, apurou-se que 20% das mulheres e 23% dos homens são fumantes
140
.
16 e 74 anos, que haviam sido examinadas pela Pesquisa Escocesa de Saúde em 1998. O IMC é
calculado dividindo-se o peso (em quilos) pela altura elevada ao quadrado (em metro). Os índices entre
25 e 29,9 indicam sobrepeso; acima de 30 apontam obesidade. Além do IMC, o levantamento mediu o
quadril e a cintura dos pesquisados”. Continua: “O resultado mostrou, ainda de acordo com Lean, que
os jovens de 16 a 24 anos de ambos os sexos têm uma tendência de ser mais pesados do que o grupo de
não-fumantes. Há outros índices que apontam ganho de peso. A cintura das adolescentes fumantes
cresce mais rapidamente do que a das não-fumantes. Em metade das adolescentes, o índice de massa
corporal era acima de 25, o que indica sobrepeso ou obesidade”. E mais: “A descarga de hormônio que
ocorre nessa faixa etária provoca aumento de peso em adolescentes, segundo Lean. A gordura no
abdômen enche o sistema circulatório com massa gordurosa e hormônios. Essa combinação é
inflamatória para os tecidos”. Continua: “A hipótese de que o ganho de peso poderia ser resultado do
consumo de bebida alcoólica ou de falta de exercícios não foi comprovada na pesquisa, afirma o
nutricionista. Mesmo quando esses fatores são ponderados, a diferença entre fumantes e não-fumantes
é “significante””. E conclui: “Para Lean, a única forma segura de perder peso é comer menos e fazer
mais exercícios”. (Disponível em <http://www.tabacozero.net>. Acessado em 07/06/2006).
138
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 58.
139
Interessantíssimo o texto apresentado por Luis Fernando Veríssimo, intitulado “Burrice”. Veja-se o seu
teor: “Que mulher é mais inteligente do que homem ninguém discute. Bom, talvez alguns homens, mas
só para provar como são menos inteligentes. Tem um fato, no entanto, que parece desmentir essa
superioridade feminina. Não sei se as estatísticas confirmam, mas é evidente que existem muito mais
novos fumantes entre as mulheres do que entre os homens. E quem começa a fumar, hoje, só pode ser
burro. No número total de fumantes no mundo, imagino que os homens ainda batam as mulheres. Mas
é muito mais comum ver-se meninas adolescentes fumando do que meninos. Talvez esta desproporção
já existisse e as meninas fumassem mais, mas escondidas. Hoje fumam abertamente, em toda parte, e
sem parar. E como são adolescentes, pertencem à primeira geração de fumantes que não pode ter
nenhuma dúvida sobre o mal que o cigarro faz. Outras gerações de adolescentes começavam a fumar
para imitar os adultos, para se sentirem adultos, para serem sofisticados e porque, pelo menos depois
dos primeiros acessos de tosse, era bom, e pouco ligavam à alegação careta e não provada de que podia
encurtar suas vidas. Hoje, que cigarro mata é não apenas uma certeza mas uma certeza universalmente
difundida e conhecida. E mesmo assim as meninas começam a fumar. Velhos fumantes não podem ser
chamados de burros. Quando se tornou insofismável que fumar dava câncer e matava de outras
maneiras terríveis, já estavam fisgados. Só podemos (nós que, sem sermos gênios, adivinhamos desde
cedo que aspirar fumaça não podia fazer bem) ser solidários com a sua luta contra o vício, ou com a sua
resignação. Mas quem começa a fumar sabendo tudo o que sabe, desculpe: é burro. No caso, burra.
Para não enveredarmos pela hipótese de que se trata de uma geração suicida”. (Disponível em:
<http://www.tabacozero.net>. Acessado em 10/04/2006).
140
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 58.
63
A partir de 1970, o tabagismo entre as mulheres adquiriu
conotação epidemiológica. Nos últimos tempos, mais de meio milhão de
mulheres morrem anualmente em conseqüência do tabaco.
141
Inúmeras
doenças associadas ao tabaco vêm crescendo entre as mulheres, tais como
alterações cardiocirculares, bronquite crônica, enfisema e câncer do
pulmão – esta última aumentou proporcionalmente mais no sexo feminino
que no masculino
142
.
A frase “a mulher que fuma como homem, morre como homem”
resume a constatação de que o tabagismo causa nas mulheres os mesmos
distúrbios à saúde acarretados nos homens. Entretanto, a mulher tabagista
ainda se encontra sujeita a diversos outros males que lhe são específicos,
como a precocidade da menopausa, a osteoporose, o câncer do colo do
útero e da mama e outros distúrbios
143
.
6 As crianças, os adolescentes e o tabagismo
São parcas as possibilidades de uma pessoa que nunca fumou
quando criança ou adolescente tornar-se fumante na vida adulta
144
. É fato
que a grande maioria dos fumantes principia-se no tabagismo antes dos 20
anos. Nos países desenvolvidos, oito de cada dez fumantes contraem o
vício ainda na adolescência.
As pessoas que começam a fumar quando jovens, tendem a
tornar-se grandes fumantes na idade adulta e, conseqüentemente, correm
maiores riscos de contraírem doenças associadas ao uso do tabaco em
etapas futuras de suas vidas
145
.
141
A incidência de câncer de pulmão entre as brasileiras aumentou 134% nos últimos vinte anos, quase três
vezes mais que nos homens. Isso ocorre não apenas porque mais mulheres fumam, mas também devido
à maior predisposição feminina para a doença (Disponível em: http://www.inca.gov.br).
142
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 58.
143
Ibid., p. 58.
144
Segundo dados do Ministério da Saúde, cerca de 90% dos fumantes ficam dependentes da nicotina entre
os cinco e os dezenove anos de idade.
145
A Organização Pan-Americana de Saúde calcula que a quantidade de crianças e adolescentes que
adquirem o hábito de fumar oscila entre 14.000 e 15.000 ao dia nos países desenvolvidos; já nos países
em desenvolvimento, a cifra varia entre 68.000 e 84.000. Isso significa que, a cada dia, entre 82.000 e
99.000 jovens em todo o mundo começam a fumar, correndo alto risco de adquirirem dependência pela
nicotina.
64
Nos Estados Unidos o consumo de cigarros cresceu
vertiginosamente no último século. Em 1930 foram vendidos 120 bilhões
de cigarros; em 1945, 267 bilhões; em 1988, 595 bilhões. Estima-se que
cerca de três mil crianças começam a fumar a cada dia no País.
De 1989 a 1993, o número de fumantes americanos com idade
entre 12 e 17 anos que compram o próprio cigarro subiu 62% de acordo
com o Centro de Prevenção e Controle de Doenças de Atlanta. Enquanto
existe uma tendência mundial de os velhos fumantes abandonarem o vício,
a prática de fumar não pára de crescer entre as crianças e adolescentes
americanos. Em 1991, 27% deles fumavam; seis anos depois, esse
contingente passou para 36%
146
. Segundo um relatório do Centro de
Controle de Doenças Infecciosas, hoje, nos Estados Unidos, mais de 4
milhões de adolescentes com menos de 18 anos são fumantes
147
.
Ainda nos Estados Unidos, uma pesquisa feita com 14.138
universitários, em 1999, revelou que, no ano anterior, 46% deles haviam
fumado cigarro, charuto ou produto semelhante. Descobriu-se que, nos
últimos 30 anos, 28% dos homens e mulheres haviam fumado cigarros,
8,5% declararam ter fumado um charuto, 3,7% haviam fumado outros
produtos derivados do tabaco e 1% cachimbo. Diante desses fatos, o
estudo concluiu que o consumo de cigarros teria aumentado em 22% em
1993 para 28% em 1997, e essa recente pesquisa mostra que o aumento
parece ter-se estabilizado. Já o consumo de charutos cresceu 50% entre
1993 e 1998, invertendo uma tendência de queda que durava 30 anos
148
.
No Canadá, 25% dos cidadãos acima de 15 anos fumam e o
hábito de fumar está crescendo no País: em 1990, 21% dos jovens entre 15
e 19 anos fumavam. Em 1999, essa porcentagem subiu para 28%
149
.
Na China, houve um aumento considerável, no período
correspondente entre 1984 e 1996, de jovens de 15 a 19 anos que
começaram a fumar. Em Cingapura, 5% dos habitantes com 18 ou 19 anos
146
P. JÚNIOR, op. cit., 2001.
147
ESTADOS UNIDOS querem reduzir fumo pela metade até 2010. O Estado de São Paulo, São Paulo, 10
de ago. 2000, Caderno A, p. 18.
148
HÁBITO de fumar cresce entre universitários, conforme estudo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 10
de ago. 2000, Caderno A, p. 18.
149
Disponível em: <http://www.inca.com.br>. Acessado em 20 de maio de 2001.
65
fumavam em 1987; em 1996 eram 15%. Em Taiwan, apenas 3% dos jovens
entre 15 e 17 anos tinham o hábito de fumar em 1985; em 1991 eram 20%.
Na Rússia, em 1997, metade dos jovens de 16 e 17 anos eram fumantes.
No Brasil,
150
embora a venda de cigarros para crianças e
adolescentes seja proibida,
151
um levantamento feito pelo Centro
Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, em escolas
públicas de dez capitais, constatou que o número de estudantes que dão as
primeiras tragadas na faixa etária dos dez aos doze anos dobrou em dez
anos
152
.
Em 2003, uma pesquisa nacional revelou que a nicotina é a
droga mais consumida no País por crianças e adolescentes entre 10 e 18
anos. Segundo o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
Psicotrópicas (Cebrid), da Universidade Federal de São Paulo, 44,5% dos
jovens consomem tabaco. A pesquisa foi realizada a pedido da Secretaria
Nacional Antidrogas e ouviu 2.807 pessoas nos 27 Estados do País. O
álcool ficou em segundo lugar (43%), seguido por solventes (28,7%),
maconha (25,4%) e cocaína e derivados (12,5%)
153
.
A Organização Mundial da Saúde estima que até 2025 o cigarro
matará 500 milhões de pessoas em todo o mundo. Desse total, 200
milhões serão crianças
154
e adolescentes que começaram a fumar na última
década.
150
Segundo o professor José Rosemberg, em seu livro – Tabagismo, sério problema de saúde pública, um
inquérito realizado no ano de 1972 em Bordeaux, na França, mostrou que 84% dos estudantes de 16 a
19 anos são fumantes, tendo a maioria se iniciado no tabagismo entre os 9 e 12 anos. (Aos 10 anos, o
início do vício. O começo do fim. O Estado de São Paulo, São Paulo, 17 de mar. 1981, p. 16).
Em reportagem divulgada pelo jornal O Estado de São Paulo em 17 de mar. de 1981, evidenciou-se a
pesquisa realizada pela professora Glacilda Telles de Menezes Stewien, da Faculdade de Saúde Pública
da USP, realizada com 1.102 alunos matriculados em classes da 5.
a
à 8.
a
séries do primeiro grau em
São Paulo. Entre alunos de 11 e 16 anos pesquisados, mais da metade era fumante e 13% deles
iniciaram o hábito de fumar dos 8 aos 9 anos. (Ibid., p. 16).
151
De acordo com a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), é proibida a venda à criança ou
ao adolescente de produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda
que por utilização indevida (art. 81, III). Já o art. 243 da mesma lei prescreve a pena de: detenção de
seis meses a dois anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave, para quem vender, fornecer
ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem
justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por
utilização indevida. No entanto, o que se percebe no Brasil é a venda indiscriminada de cigarros aos
jovens, sem nenhuma punição aos infratores.
152
P. JÚNIOR, op. cit., 2001.
153
Disponível em <http://www.tabacozero.net>. Acessado em 12/05/2005.
154
Entre as crianças de primeiro e segundo graus, 15% a 18% já são fumantes. (Disponível em <http://
www.revistatrip.com.br/newscotina/dados.htm>. Acessado em 20 de maio de 2001).
66
Esse crescimento contínuo no consumo de cigarros pela
população jovem não ocorre por acaso. Como se verá adiante, a indústria
do tabaco sempre teve, como público-alvo, as crianças e adolescentes,
utilizando-se, para incentivar e aumentar o consumo de seus produtos, de
publicidade pesada e insidiosa
155
. Isto porque, de acordo com a
155
Ressalte-se que no Brasil, depois da publicação da Lei n. 10.167, de 27/12/2000, a publicidade
comercial dos produtos fumígeros, derivados ou não do tabaco, só pode ser efetuada por meio de
pôsteres, painéis e cartazes, na parte interna dos locais de venda (art. 3º).
Mesmo diante da existência de tal legislação, o Brasil, no início do mês de abril do ano de 2003, foi
palco de mais uma demonstração de fraqueza estatal. Não só debilidade; mas, vergonha e desrespeito
também fizeram parte do circo amplamente divulgado pela mídia.
Uma Medida Provisória, editada em 04/04/2003, prorrogou para 31 de julho de 2005 a data a partir da
qual a publicidade de cigarros fica proscrita, atropelando determinação estampada em aplaudida
legislação antitabagista publicada no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – Lei Lei
n. 10.167.
O governo federal, atendendo a uma solicitação da Prefeitura de São Paulo e resguardando os
interesses de uma gigantesca emissora de TV, garantiu a permanência do Brasil no circuito de Fórmula
1, já que flexibilizou a propaganda de cigarros, permitindo que cinco das dez escuderias estampem em
seus carros publicidades de seus patrocinadores, as indústrias de cigarros.
Não bastasse o flagrante mau uso do instituto da medida provisória, a postura governamental chocou
pela ousadia e desprezo aos interesses da comunidade em favor de interesses econômicos,
considerados pelo Estado como superiores à própria saúde e dignidade dos indivíduos.
A afirmação de que os valores individuais mais caros ao cidadão cedem espaço, nesse país, às pressões
e interesses econômicos, não causa mais espanto a ninguém; todavia, as medidas adotadas pelo
Governo para satisfazer os mais endinheirados – como a que ora se narra –, certamente, ultrapassam a
criatividade e o bom senso, chegando a abalar os pilares do Estado Democrático de Direito.
Alterando o foco de análise para a seara jurídica, outra conclusão emerge dessa gravíssima situação: a
da visível responsabilidade do Estado pelos danos que o tabagismo causa aos consumidores de
produtos fumígenos.
A discussão da responsabilidade das indústrias do tabaco pelos danos que seus produtos causam aos
fumantes já se inclui, há algum tempo, na pauta dos Tribunais Nacionais, bem como já vem sendo
abordada – de maneira ainda tímida, é verdade – pela doutrina nacional. A tese ainda não vingou;
todavia, não se trata de matéria morta, importada dos EUA e sem nenhuma aplicação no Brasil. Não
mesmo!
Dentre as mais de 300 (trezentas) ações existentes no país em que se examinam a responsabilidade das
empresas fabricantes de tabaco, alguns juizes mais sensíveis às corriqueiras mudanças sociais e, por
conseqüência, desapegados do excessivo formalismo jurídico que o Direito do século passado
representou, manifestaram, por meio de suas decisões, apego ao tema. As Cortes Nacionais, porém,
cassaram grande parte das decisões nesse sentido; em várias das situações por falta de lastro probatório
a permitir que os direitos desses cidadãos fossem garantidos; noutras, por mero descrédito à tese. Vale,
contudo, relembrar aqui recentes acórdãos, da lavra do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul –
reconhecido pela sua coragem e inovação –, que deram provimento aos recursos de apelação movidos
por familiares de fumantes mortos em razão do tabagismo. Certamente, esse marco representará novo
norte aos fumantes debilitados pelas enfermidades causadas pelo fumo.
O que ainda não se tem conhecimento no País é de ação promovida por fumante instrumentalizada
para se questionar a responsabilidade do Estado pelos danos sofridos em razão do consumo de tabaco.
Ora, é ele, o Estado, quem permite a comercialização de produtos que matam, nada menos, que a
metade de seus consumidores diretos, acarretando, inclusive, prejuízos altíssimos aos cofres públicos.
É ele ainda quem autoriza a venda de uma substância incrivelmente viciante, um psicotrópico
denominado nicotina. Embora “tape os olhos” ao não reconhecer essa substância como droga – ilação
que se tira da análise da Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária, n. 22, de 15 de fevereiro de 2001 –, é sabedor de que ela provoca dependência física, tanto
que obrigou as empresas fumígenas a inserir em seus maços diversas advertências, dentre elas uma
alertando que a nicotina é droga e causa dependência. E, no Brasil, em razão de disposição legal
67
publicidade direta patrocinada – ou já patrocinada, porquanto em alguns
países a publicidade de produtos do tabaco encontra-se proibida ou
limitada – pela indústria de cigarros, e veiculada em jornais, revistas,
outdoors e televisão, o consumidor desse produto mortífero é sempre
visto como uma pessoa bela, saudável e bem-sucedida profissionalmente,
etc. Não bastasse isso, tal publicidade traiçoeira é veiculada de forma
indireta, mediante o patrocínio de eventos esportivos de diversas
naturezas. A criança e o adolescente, por serem naturalmente
inexperientes e inseguros, acabam seduzidos, o que, muitas vezes, os
levam a experimentar o fumo e a insistir nele, a ponto de se tornarem,
num futuro próximo, verdadeiros dependentes do produto.
7 Os perigos à saúde decorrentes do tabagismo passivo
Tabagismo passivo, tabagismo involuntário, exposição ao fumo
do tabaco no ambiente, Environmental Tobacco Smoke (ETS), exposição
tabágica ambiental são termos freqüentemente usados para descrever a
inalação passiva, por indivíduos não fumantes, dos produtos de combustão
do tabaco.
A constituição do fumo inalado pelos chamados fumantes ativos
e a do fumo do tabaco disperso no ambiente são diferentes, existindo, no
último, maior número de substâncias cancerígenas. Em média, a fumaça
expelida pelo tabagista após a tragada contém um sétimo das substâncias
voláteis e particuladas do total inalado. Contudo, a mais importante
colaboração para a poluição é a fumaça que se evola da ponta do cigarro
aceso; é a chamada “corrente secundária”, contendo praticamente todas as
expressa, não se pode comercializar produtos que acarretam a dependência física ou psíquica, sem
autorização legal ou regulamentar (art.12 da Lei 6.368/76).
Nesse lamentável episódio envolvendo a F-1, a responsabilidade estatal, outrossim, mostra-se
evidente. O Estado não é somente conivente com a atividade das empresas de cigarros, mas, também,
apresenta-se como ator essencial à sua manutenção. Não fosse assim, agiria com zelo e
responsabilidade fazendo cumprir a lei. Preferiu, entretanto, não correr riscos e evitar uma possível
exclusão da cidade de São Paulo do calendário da F-1, atropelando, para isso, legislação vigente
nascida a duras penas e representativa do respeito à saúde, à honra e à dignidade da pessoa humana.
Trata-se de um paradoxo insustentável: esse mesmo Estado que, por um lado, reconhece o potencial
danoso das publicidades de produtos fumígenos, restringindo-as por lei, noutra oportunidade, assume
posição oposta – e, nesta ocasião, mais condizente com seus interesses –, permitindo a veiculação de
tais peças publicitárias, negando, para tanto, vigência à própria lei.
68
substâncias do tabaco e, muitas delas, em maiores proporções que a
corrente principal
156
.
Essa “corrente secundária” é produzida durante 96% do tempo
total do consumo de um cigarro, contendo, em comparação com a
“corrente principal” – aquela expelida pelo fumante –, três vezes mais
nicotina, três a oito vezes mais monóxido de carbono, 47 vezes mais
amônia, quatro vezes mais benzopireno e 52 vezes mais dimetil,
nitrosamina, piridil, butanona, estes dois últimos, potentes
cancerígenos
157
. Essa fumaça tóxica espalha-se no ambiente, fazendo com
que as pessoas próximas inalem suas concentrações tóxicas
158
.
156
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 3.
157
Ibid., p. 3.
158
A indústria de tabaco financiou um grupo de pesquisadores brasileiros, na década de 90, com o objetivo
de confundir a opinião pública sobre os malefícios que o cigarro causa aos fumantes passivos. O grupo
era formado por três químicos e fez parte de uma rede mundial de pesquisadores recrutados pela Philip
Morris e pela British-American Tobacco para ajudá-los no debate sobre o tabagismo involuntário. Essa
vinculação entre os químicos brasileiros e a indústria do tabaco, assim como a natureza do projeto em
que eles se envolveram, é demonstrada pelos documentos arquivados pelas próprias indústrias
fumígenas e que se tornaram públicos nos processos movidos contra elas na justiça americana.
Os cientistas realizaram uma pesquisa sobre qualidade do ar em ambientes fechados em São Paulo e no
Rio de Janeiro na qual as conclusões do estudo minimizam sobremaneira a importância das substâncias
que o fumo libera no ambiente.
O estudo foi publicado em fevereiro de 1994 pela revista americana Environmental Science &
Technology. O grupo colheu amostras do ar em 12 restaurantes nas cidades pesquisadas. Os níveis de
nicotina que encontraram no ar foram desprezíveis. Eles concluíram que, em restaurantes com forno à
lenha, as substâncias liberadas pelo fumo são menos nocivas ao ambiente do que as produzidas na
cozinha.
Pela análise dos documentos que vieram a público, percebeu-se que o estudo foi monitorado o tempo
todo pelo escritório de advocacia Covington & Burling, sediado em Washington, contratado pelas
indústrias de cigarros. Segundo tais documentos o artigo com os resultados da pesquisa foi submetido à
apreciação dos advogados um mês antes da publicação.
O projeto em que os químicos brasileiros se viram envolvidos, nasceu numa época em que a indústria
do tabaco tinha perdido a batalha para desvincular o tabagismo de doenças como o câncer e enfrentava
uma nova ameaça aos seus negócios. Um número crescente de estudos demonstrava os males causados
aos não fumantes que respiram a fumaça do cigarro. Por causa deles, no mundo inteiro, os governos
passaram a impor restrições ao fumo em locais públicos.
As indústrias do tabaco então reagiram, unindo-se para financiar pesquisas que pudessem colocar em
dúvida os estudos sobre o fumo passivo, alimentar a controvérsia no mundo científico e deter leis
antitabagistas.
Em 1988, a indústria criou o Centro de Pesquisas do Ar em Ambientes Fechados (CIAR) para financiar
estudos, sem que a iniciativa das empresas fumígenas, por trás dos projetos, fosse percebida.
Com o dinheiro do CIAR, a indústria montou grupos de pesquisa na Europa, na Ásia e na América
Latina. Todos eles monitorados por advogados contratados pelas indústrias do tabaco.
Os documentos provam a intenção de a indústria confundir a opinião pública. Quando a Philip Morris
lançou o plano, a diretora de pesquisa e desenvolvimento da British-American Tobacco, Sharon Boyse
esclareceu a seus superiores que a idéia era promover a seleção, em todos os países possíveis, de um
grupo de cientistas tanto para rever criticamente a literatura científica sobre fumo passivo para
manter controvérsia, como para produzir pesquisas. (BALTHAZAR, Ricardo. Cigarro financiou
cientistas no Brasil. O Valor, 8 de ago. de 2000, A12.).
69
Veja-se alguns exemplos de níveis médios de nicotina e cotinina
em miligramas por metro cúbico de ar (mg/m3): nos lobbies de hotéis,
11.2; escritórios, 21.1; locais de trabalho em geral, 20.4; aviões, 4.7;
residências, 15; restaurantes, 70; e táxis, 40. Tais níveis são encontrados
após quatro horas de exposição aos fumantes; eles se elevam em
restaurantes e bares à noite e em boates e danceterias
159
.
Os resultados de um estudo do Worldwatch Institute
demonstraram que trabalhadores, tais como músicos ou garçons, ou quem
tem cônjuge tabagista, acabam inalando uma dose diária equivalente a
quatorze cigarros. Até mesmo as crianças em idade escolar, que passam
uma parte do dia em companhia dos pais fumantes, estão expostas ao
equivalente a oitenta cigarros por ano. Muitos desses não-fumantes
acabam morrendo de câncer pulmonar ou outras doenças provocadas pelo
tabaco, sem nunca terem fumado voluntariamente um único cigarro
160
.
Após uma manhã em recintos onde se fuma, os tabagistas
passivos podem ter concentrações de nicotina no sangue equivalentes aos
fumantes de três a cinco cigarros. Num estudo realizado com aeromoças
não-fumantes, trabalhando nos aviões com assentos reservados a
tabagistas, após oito horas de vôo, detectou-se nicotina no sangue e na
urina, em concentrações iguais aos que fumam um a dois cigarros
161
.
Já se sabe que a separação de fumantes e não-fumantes, em
qualquer recinto, possui apenas efeito psicológico, mesmo havendo no
local sistemas de renovação de ar. Assim é que todas as tentativas de
livrar a atmosfera ambiental da poluição nicotínica, nos prédios onde haja
recintos com fumantes, são infrutíferas: pouco adiantam as renovações
mecânicas de ventilação, processos de filtração e químicos. Os
fumódromos são igualmente ineficazes à medida que o ar poluído pelos
componentes do tabaco atravessa os corredores e atinge outras
dependências – o certo seria situar tais fumódromos fora dos prédios, em
lugares relativamente distantes
162
.
159
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 3.
160
APAGAR o cigarro. Essa é a ordem. O Estado de São Paulo, São Paulo, 1º jun. 1986. p. 1.
161
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 3.
162
Ibid., p. 3.
70
Os fumantes passivos sofrem os efeitos imediatos da poluição
ambiental,
163
tais como irritação nos olhos, manifestações nasais, tosse,
cefaléia (dor de cabeça), agravamento de alergias, notadamente
relacionadas às vias respiratórias, e aumento de problemas cardíacos,
principalmente elevação da pressão arterial e angina (dor no peito).
Outros efeitos, em médio e longo prazo, são a redução da capacidade
funcional respiratória, aumento do risco de ter arteriosclerose e aumento
do número de infecções respiratórias em crianças. Ademais, os fumantes
passivos morrem duas vezes mais por câncer no pulmão do que as pessoas
não submetidas à poluição tabagística ambiental
164
.
Vários estudos epidemológicos já demonstraram a existência de
um nexo causal entre o câncer do pulmão e a inalação passiva da fumaça
do tabaco. Um dos estudos pioneiros é o do Instituto de Pesquisas do
Centro Nacional de Câncer do Japão, realizado com mais de 100 mil
mulheres, que demonstrou que, nas mulheres não-fumantes com maridos
tabagistas, a incidência de câncer do pulmão é dobrada se comparada às
esposas de não-tabagistas
165
. No ano de 1986, dois relatórios em especial
causaram grande repercussão: o Surgeon General´s Report e o National
Research Council Report. Tais pesquisas concluíram, pela primeira vez na
história, que a inalação do tabaco por não-fumantes pode causar câncer no
pulmão, atribuindo-lhe, inclusive, responsabilidade por 2500 a 5000
mortes ocorridas em 1985, nos Estados Unidos
166
.
Um estudo elaborado pela Universidade de Auckland, Nova
Zelândia, em agosto de 1999, demonstrou que fumantes passivos têm 82%
a mais de probabilidade de sofrer um derrame do que os que não têm
contato com a fumaça do cigarro. Uma investigação realizada pelo Dr.
William P. Bennett, do National Medical Center de Los Angeles, em
dezembro de 1999, indicou que algumas mulheres não fumantes
163
A comissão encarregada do estudo de substâncias de trabalho nocivas à saúde, da Organização Alemã
de Pesquisas, apresentou, após cinco anos de estudo, um relatório intitulado Os fumantes passivos no
local de trabalho. Esse estudo apontou que a fumaça de cigarros inalada passivamente no local de
trabalho deve ser considerada como uma mistura de substâncias nocivas à saúde. A fumaça de cigarros
inalada passivamente deve ser igualada a outras substâncias de trabalho com efeitos cancerígenos. (UM
hábito que mata. Mesmo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 1º jun. 1986. p. 1).
164
SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998. p. 13.
165
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 3.
166
P. JÚNIOR, op. cit., 2001.
71
apresentam risco seis vezes maior de contrair câncer no pulmão, pelo
simples fato de conviverem com tabagistas
167
.
Em pesquisa publicada no American Journal of Public Health
(1999, 89:572-575) de abril de 1999, pesquisadores do National Stroke
Research Institute em Austin (Austrália) demonstraram que indivíduos
casados com fumantes apresentam duas vezes maior risco de acidente
vascular cerebral (ACV)
168
.
Outro estudo, este divulgado no New England Journal of
Medicine (1999, 340:920), revelou que fumar passivamente é fator de
risco para o desenvolvimento de doenças coronárias
169
. É farta a literatura
que aponta os efeitos da nicotina difundida no ar e sua ação sobre os
fumantes passivos, desencadeando o infarto do coração. Indivíduos que
nunca fumaram e convivem com tabagistas têm risco de morrer de morrer
de infarto aumentado em 30%
170
.
Na Escócia, em duas comunidades, estudou-se por 10 anos a
população exposta à poluição tabágica ambiental, concluindo-se: a
mortalidade por infarto do miocárdio foi de 128/100 mil, sendo de 101 as
taxas dos não expostos à referida poluição. Nos Estados Unidos, a
Associação Americana do Coração estima que os fumantes passivos
concorrem com 53 mil óbitos por ano devido ao infarto do coração. Uma
meta análise de 18 estudos epidemiológicos de vários países concluiu que
a mortalidade por infarto do coração nos expostos à poluição tabágica
ambiental foi de 17% a 32% a mais que nos não expostos – esse risco é o
mesmo quando a exposição à fumaça se dá nos locais de trabalho e nos
domicílios, variando de acordo com o grau e o tempo de exposição
171
.
167
Em apenas meia hora, uma sala com fumaça de cigarro pode enfraquecer as defesas dos não-fumantes
contra doenças do coração, segundo os resultados de um estudo publicado em maio de 1998, no jornal
Circulation, da Associação Americana de Cardiologia. Constatou-se que os fumantes passivos
perderam suas reservas antioxidantes. Essas substâncias neutralizam alguns radicais livres (moléculas
que se encontram na fumaça do tabaco), os quais podem combinar-se com o colesterol existente no
sangue e oxidá-lo. O colesterol fixa-se nas paredes dos vasos sangüíneos, criando coágulos que
provocam ataques cardíacos ou congestões cerebrais. (P. JÚNIOR, op. cit., 2001).
168
Disponível em <http://194.235.129.80/cmv/print.asp?> . Acessado em 20 de maio de 2001.
169
FRANKEN, Roberto. Risco da doença coronária no fumante passivo, uma metanálise. Disponível em
<http://www.vidasemcigarro.8m.com/cgi-bin/framed/3015/seminarios/fumantepassivo.htm
>. Acessado
em 20 de maio de 2001.
170
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 3.
171
Ibid. p. 3.
72
Um estudo realizado na Faculdade de Ciências Médicas da PUC
de São Paulo, abarcando mais de 20 mil crianças, de zero a um ano de
idade, de áreas rurais de Sorocaba e de bairros periféricos do município
de São Paulo, registradas em ambulatórios hospitalares, apurou a seguinte
incidência de infecções respiratórias baixas: 18% em domicílios onde não
se fumava; 28% nos domicílios em que havia um fumante; 41% em
domicílios com dois fumantes; 50% em domicílios com mais de dois
fumantes; 20% quando o pai era tabagista; 37% quando a mãe era
tabagista; 49% quando pai e mãe eram tabagistas
172
.
Outra questão preocupante diz respeito às conseqüências
geradas pelo tabagismo passivo à saúde do feto. Pesquisas demonstram
que mulheres gestantes não-fumantes, expostas à poluição tabágica
ambiental nos domicílios e/ou locais de trabalho, têm nicotina e cotinina
no sangue, no líquido amniótico e no cordão umbilical. O feto recebe
nicotina e seu metabolito, sendo, por isso, considerado um fumante
passivo de segunda linha
173
.
Num encontro sobre a síndrome do mal-de-berço, ocorrido na
França em abril de 1998, pesquisadores concluíram que a fumaça de
cigarro e temperaturas elevadas, no quarto de recém-nascidos entre quatro
e seis meses, aumentam as chances de morte súbita durante o sono
174
.
Investigações recentes demonstraram que na urina dos recém-
nascidos, filhos
175
de mães fumantes, contém um cancerígeno que somente
existe no fumo do tabaco
176
. Sabe-se, ainda, que as crianças
177
expostas à
fumaça do cigarro podem sofrer redução do desenvolvimento dos
pulmões, tornando-se mais suscetíveis a contrair doenças pulmonares.
172
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 3.
173
Ibid., p. 3.
174
P. JÚNIOR, op. cit., 2001.
175
As crianças, principalmente as de baixa idade, são prejudicadas em sua convivência involuntária com
fumantes. Há uma maior prevalência de problemas respiratórios (bronquite aguda, pneumonia,
bronquiolite) em crianças com até um ano de idade que vivem com fumantes, se relacionadas àquelas
cujos familiares não fumam. Observa-se que, quanto maior a incidência de fumantes no domicílio,
maior o percentual de infecções respiratórias, chegando a 50% nas crianças que vivem com mais de dois
fumantes em casa. (SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998.
p. 13).
176
ORGANIZACION Panamericana de la Salud; Banco Mundial. La epidemia de Tabaquismo. Publicacion
Científica n. 577, D.C., U.S.A., 1998.
177
A Organização Mundial da Saúde (OMS) apurou que, em 1998, havia no mundo, nada menos que 700
milhões de crianças fumantes passivas.
73
Estima-se que no mundo existam 700 milhões de crianças
vivendo em ambientes poluídos pelo tabaco. Nos Estados Unidos, 53% a
76% delas convivem, pelo menos, com um fumante em casa. Dados
apurados em 2001, registram os seguintes percentuais envolvendo
crianças fumantes passivas: 69% em Havana; 68% em Buenos Aires; 65%
em Montevidéu; 61% em Santiago; 67% na Polônia; 55% na Federação
Russa; 53% na China; e 54,5% no México
178
.
8 A deficiência de informações sobre os malefícios causados pelo
cigarro: uma primeira abordagem acerca da imperfeição extrínseca do
cigarro
Fator extremamente responsável para o início do vício de fumar
é a deficiência de informações do consumidor quanto aos males
acarretados pelo fumo. À primeira vista essa afirmação pode apresentar-se
exagerada, notadamente porque, há décadas, os mais diversos estudos vêm
alertando a sociedade quanto aos perigos que o fumo pode gerar à saúde
dos tabagistas e não-tabagistas.
Entretanto, tais estudos normalmente possuem publicidade
limitada, sendo conhecidos somente por aqueles que têm alguma afinidade
com o tema (médicos, cientistas, estudiosos e pesquisadores). Daí não ser
exagero afirmar que as pessoas não possuem conhecimento lúcido e firme
da carga mortífera e/ou debilitante que o cigarro carreia aos seus
organismos. Possuem, algumas delas, conhecimentos básicos e
superficiais; insuficientes, porém, para conduzi-las a uma escolha
consciente no sentido de iniciar ou não o hábito de fumar.
Como se não bastasse, em razão da grande maioria das
enfermidades causadas pelo vício, surgir, somente após vários anos,
muitos consumidores em potencial, e tabagistas inveterados, acabam por
subestimar a periculosidade do produto. Ainda quando o tabagismo
encontra-se disseminado em determinada população, os danos à saúde
pública podem não ser visíveis. Cita-se, como exemplo, a China, país no
178
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 3.
74
qual vive atualmente a quarta parte de todos os fumantes do mundo, e em
que o consumo de cigarro é tão alto quanto fora nos Estados Unidos
durante a década de cinqüenta – naqueles anos, a epidemia do tabagismo
foi responsável por 12% das mortes de pessoas em idade madura.
Quarenta anos após, momento em que o consumo de cigarro encontrava-se
em declínio nos EUA, o tabaco tornou-se responsável por cerca da terça
parte das mortes de pessoas em idade adulta.
Nos países cuja população esteve em contato direto com o
tabaco durante muitos anos,
179
decorreram, ao menos, quatro décadas
antes de surgir o quadro das enfermidades relacionadas ao seu consumo.
Isso sugestiona as pessoas a acreditarem que o cigarro não interfere na
saúde ou, ainda, que apenas alguns fumantes são acometidos por doenças
relacionadas ao tabagismo, o que, obviamente, não corresponde à verdade.
É incontestável que, nos países desenvolvidos
180
a consciência
das pessoas em relação aos malefícios causados pelo uso do tabaco
aumentou sobremaneira, isso ao longo dos quatro últimos decênios. Essa
consciência, contudo, ainda é insuficiente [...].
Estudos realizados nas duas últimas décadas ofereceram
conclusões diferentes sobre a exatidão das percepções individuais dos
riscos associados ao tabaco. Em alguns deles, foram encontradas pessoas
que superestimam os riscos; em outros, pessoas que o subestimam e,
ainda, em determinados países, indivíduos que possuem uma compreensão
correta de tais riscos. Os métodos utilizados em tais estudos, entretanto,
receberam críticas diversas. Contudo, pode-se dizer que, de uma maneira
179
O tempo necessário ao desenvolvimento de enfermidades tabaco-relacionadas, a ignorância dos
consumidores em relação aos malefícios causados pelo tabagismo, juntamente com a publicidade
abusiva e enganosa ofertada pela indústria do fumo, são fatores diretamente responsáveis pela incitação
do consumo e aceleramento das vendas dos produtos fabricados pelas indústrias do fumo.
180
Entre os norte-americanos com nível de escolaridade primária, mais de 60% dos homens adultos
fumam; entre aqueles que terminaram o curso secundário, são menos de 20% os que fumam, conforme
os resultados do estudo Worldwatch Institute. O fumante médio dos Estados Unidos, conforme
constatações do Wall Street Journal, tem menos dinheiro, um nível educacional menor e um emprego
pior do que o não-fumante médio norte-americano. Uma constatação semelhante foi obtida entre os
alemães pelo Ministério da Saúde: entre os alunos de 15 e 16 anos do curso médio, 60% já estão
fumando; mas apenas 6% do pessoal de primeiro grau fuma. Entre os funcionários públicos e os
assalariados com melhores rendimentos, segundo estatísticas de 1983, o consumo de cigarros diminui
2,3%; entre os assalariados de rendimentos médios, o consumo aumentou 4,9%; e, entre os aposentados
e os sustentados pelo serviço de bem-estar social, o consumo subiu ainda mais, 11,4%. (HOJE, um
problema de classe. O Estado de São Paulo, São Paulo, 1
o
jun. 1986. p. 1).
75
geral, concluiu-se que os fumantes dos países desenvolvidos são
conscientes dos riscos que o cigarro poderá causar à sua saúde, mas, em
comparação com os não fumantes, consideram que a magnitude dos riscos
é menor e que não estão bem estabelecidos. Ademais, ainda quando a
percepção dos riscos à saúde seja razoavelmente exata no plano
individual, os fumantes, como grupo, minimizam a importância subjetiva
desta informação, acreditando que o risco dos demais fumantes é maior do
que os seus próprios.
Provas obtidas por pesquisas realizadas em vários países
confirmam que poderia haver uma distorção na compreensão dos riscos
associados ao tabaco, se relacionados a outros riscos para a saúde. Por
exemplo, na Polônia, em 1995, os pesquisadores pediram aos adultos que
classificassem os fatores mais importantes que influíam na saúde humana.
O fator indicado com maior freqüência foi o meio ambiente, seguido dos
hábitos alimentares e dos modos de vida estressantes. O consumo de
tabaco somente ocupou o quarto lugar e foi mencionado por apenas 27%
dos adultos entrevistados. No entanto, o tabagismo é o responsável,
naquele País, por mais da terça parte do risco de morte prematura dos
homens polacos de idade adulta, na frente de quaisquer outros fatores de
risco
181
.
Demais e consoante o já afirmado Humberto Costa, em sua
gestão como Ministro da Saúde, “o cigarro está relacionado com a
pobreza”. E tal situação é constatada em todo o mundo.
Nos EUA, por exemplo, quase 33% dos adultos americanos que
vivem abaixo do nível de pobreza fumam, contra 22% dos que estão acima
desse nível
182
. Nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, a
situação é ainda pior. Em estudos realizados na China, no ano de 1996,
pela Organização Pan-Americana de Saúde e pelo Banco Mundial,
181
ORGANIZACION Panamericana de la Salud; Banco Mundial. La epidemia de Tabaquismo. Publicacion
Científica n. 577, D.C., U.S.A., 1998, p. 35.
182
FOX, Maggie. Saúde. Fumo afeta todo o corpo, alertam EUA. Folha de São Paulo, A14, sexta-feira, 28
de maio de 2004.
76
constatou-se que 61% dos fumantes adultos acreditavam que os cigarros
eram pouco ou nada perigosos
183
.
No Brasil
184
estatísticas demonstram que há um menor consumo
de cigarros nas classes de maior rendimento familiar per capta (renda de
mais de dois salários mínimos per capita por mês), o que certamente se
explica pelo fato de tais famílias serem mais conscientes, pois possuem
nível cultural mais elevado. Segundo dados do Ministério da Saúde, o
maior consumo de cigarros está na base da pirâmide econômica, com
25,4% dos indivíduos fumando
185
. Ademais, a baixa renda e grau de
educação insuficiente (ou inexistente) são fatores que impedem o próprio
combate ao consumo de tabaco, sobretudo porque as pessoas situadas em
tais condições são menos sensíveis às campanhas contra o cigarro
186
.
Por meio de dados também colhidos do Ministério da Saúde,
constata-se que no Brasil, famílias com orçamento igual a R$ 400,00
(quatrocentos reais) ou menor que isso, gastam cinco vezes mais da renda
familiar com tabaco do que as com renda acima de R$ 6.000,00 (seis mil
reais). Não só isso: famílias com orçamento menor ou igual a R$ 400,00
(quatrocentos reais), gastam duas vezes mais com cigarro do que com
educação
187
.
Outro dado que prova o vínculo direto entre o consumo de
cigarros e a desinformação refere-se à conclusão já obtida de que na zona
rural fuma-se mais do que na zona urbana
188
. Segundo dados do Ministério
183
ORGANIZACION Panamericana de la Salud; Banco Mundial. La epidemia de Tabaquismo. Publicacion
Científica n. 577, D.C., U.S.A., 1998, p. 15.
184
Um estudo feito no Rio Grande do Sul, sob a coordenação do médico gaúcho MÁRIO RIGATTO,
professor em 1981 da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em três escolas de Porto Alegre (1
o.
e 2.
o
graus) – em bairro pobre, médio e rico – mostrou que, na faixa de alunos de 12 a 16 anos, as
meninas fumam muito mais que os rapazes. Apontou, também, que as crianças da escola de bairro
pobre fumam o dobro de seus colegas de bairro rico. (AOS 10 anos, o início do vício. O começo do fim.
O Estado de São Paulo, São Paulo, 17 de mar. 1981, p. 16).
185
Entre a população de menor renda, uma grande parcela dos rendimentos é gasta com cigarros, em
detrimento de outros itens prioritários, como, por exemplo, a alimentação. Este consumo maior, somado
a outras condições às quais este grupo está submetido, como desnutrição, doenças infecciosas e do
trabalho, leva a um adoecimento mais freqüente. Convém considerar que os ambientes confinados das
pequenas moradias favorece, em muito, a inalação passiva das substâncias tóxicas por crianças,
gestantes e pessoas doentes. (Disponível em <http://www.inca.com.br>. Acessado em 20/10/2005.).
186
Disponível em <http://www.tabacozero.net>. Acessado em 20/10/2005.
187
O ESTADO DE SÃO PAULO, A10, Geral, Saúde. Números da epidemia. Terça-feira, 1 de junho de
2004.
188
Segundo o pneumologista João Antônio Pimenta de Carvalho, as pessoas fumam mais na zona rural por
falta de opção. Não têm como se divertir e ficam muito sós. Mas há também muita desinformação.
77
da Saúde, a proporção de fumantes na zona rural é maior que na zona
urbana em todas as faixas etárias. A prevalência de fumantes entre
crianças e adolescentes é de 5% na zona urbana contra 6% na zona rural.
Provavelmente essa diferença seja causada pelo acesso limitado ao
sistema de saúde, pelo baixo nível de informação da comunidade sobre os
malefícios do cigarro, associados à grande penetração das publicidades na
zona rural e à necessidade de copiar o estilo de vida urbano
189
.
Em curiosa pesquisa de marcas de cigarro, pesquisadores
constataram que as bitucas encontradas nos cinzeiros de restaurantes
sofisticados apresentaram comprimentos de 18mm. Os freqüentadores
destes locais foram capazes de se separar de seus cigarros 13mm antes de
eles chegarem ao fim, ao contrário dos visitantes de bordéis, que fumaram
os seus cigarros até o fim, ou seja, até um comprimento de cinco
milímetros. Esses últimos, conseqüentemente, acabaram inalando uma
porcentagem sensivelmente mais elevada de substâncias nocivas
190
.
Esses elementos apenas apontam que o cigarro é um produto
imperfeito extrinsecamente (vício de informação), na medida em que os
seus fornecedores não se adequaram ainda à legislação consumerista,
esquivando-se de apresentar informes sólidos e eficientes acerca do
produto por eles fabricado. Limitam-se a cumprir normas específicas a
eles destinadas, acreditando cinicamente que cumprem de maneira
adequada seu dever informativo; olvidam-se – ao que tudo indica,
propositadamente – de que há um direito básico do consumidor de ser
informado de maneira adequada e clara sobre os diferentes produtos e
serviços, com especificação correta de quantidade, características,
composição, qualidade e preço, bem como dos riscos que apresentam (art.
6, III, do CDC).
Ao menos no Brasil – e em vários outros países em
desenvolvimento –, essa deficiência de esclarecimentos do consumidor
mostra-se ainda mais agravada, notadamente em função do baixo nível
Ressalta, ainda, a existência de pessoas desinformadas que, quando alertadas sobre os riscos do fumo,
dizem: Fulano fumou a vida inteira e nunca teve nada. (População rural fuma mais. Estado de Minas, 1
de jun. de 2000, Saúde-Educação, p. 32).
189
SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998. p. 53.
190
HOJE, um problema de classe. O Estado de São Paulo, São Paulo, 1º jun. 1986, p. 1.
78
cultural da população. E esse baixo índice educacional é fator que cria
uma verdadeira barreira ao Governo, trazendo-lhe embaraços nos
momentos em que precisa se comunicar com a sociedade, principalmente
quando o assunto diz respeito a questões relativas à saúde. Afinal,
qualquer esclarecimento projetado por campanhas institucionais demora a
surtir o efeito esperado ou desejado; não raro, a informação não é
assimilada ou sequer levada a sério
191
.
É certo que Governo Federal tem investido em louváveis
medidas para superar essa deficiência informativa e garantir ao
consumidor a possibilidade de realizar escolhas conscientes de consumo;
mas muito há de ser feito ainda [...].
9 Diversas estatísticas relacionadas ao tabagismo
O cigarro é um produto consumido há tempos, embora o seu uso
tenha se alastrado com sua fabricação em série no século XIX. O
tabagismo, a partir daí, disseminou-se por todo o mundo de forma
expressiva, sendo que hoje, estatisticamente, de três adultos um é
fumante. Isso equivale dizer que 1 bilhão e 200 milhões de pessoas (entre
as quais 200 milhões de mulheres) fumam. Acredita-se, ainda, que 2
bilhões de não-fumantes, entre eles 700 milhões de crianças, vivem, de
alguma forma, expostos continuamente à poluição tabagística ambiental
(fumantes passivos).
Aproximadamente 47% de toda a população masculina e 12% da
população feminina no mundo fumam. Enquanto nos países em
desenvolvimento os fumantes constituem 48% da população masculina e
7% da população feminina, nos países desenvolvidos, a participação das
mulheres triplica: 42% dos homens e 24% das mulheres têm o hábito de
fumar.
191
Disponível em <http://www.tabacozero.net>. Acessado em 10/04/2006.
79
No Brasil,
192
cerca de 32,6% da população adulta fuma, sendo
11,2 milhões de mulheres e 16,7 milhões de homens.
O tabagismo é, atualmente, a principal causa de óbitos evitáveis
nas Américas. Mata, todos os anos, cerca de 625.000 pessoas (430.000
nos Estados Unidos, 150.000 na América Latina e na Região do Caribe,
45.000 no Canadá).
Em setembro de 1998, na abertura da 25ª Conferência Sanitária
Pan-Americana em Washington, promovida pela Organização Pan-
Americana de Saúde, a então diretora da Organização Mundial da Saúde,
afirmou que o tabaco está se convertendo rapidamente na principal causa
de morte na América Latina
193
.
A Organização Mundial da Saúde considera o tabagismo como
uma pandemia, pois causa a morte anualmente de quatro milhões de
indivíduos no mundo, ou seja, o equivalente a dez mil mortes por dia
194
. O
tabagismo, hoje, mata mais que a soma de óbitos por AIDS, cocaína,
heroína, álcool, suicídios e acidentes de trânsito
195
. E mais: se não se
modificarem os atuais padrões de consumo de cigarros, o número de
mortes no decênio de 2030 ascenderá a dez milhões de pessoas, dos quais
7 milhões pertencentes aos países em desenvolvimento. Ou seja, mais do
que o conjunto previsto de mortes por pneumonia, enfermidades
diarréicas, tuberculose e complicações obstétricas que ocorrerão naquele
ano.
192
No Brasil o tabaco tem importância cultural e econômica desde o século XVI, pois servia como moeda
no comércio de escravos, quando estes eram trocados por rolos de fumos. O brasão do país é prova
disso: até hoje, traz um ramo de tabaco em seu desenho.
O Brasil é hoje o quarto maior produtor de tabaco no mundo e o seu maior exportador; a folha de
tabaco produzida no País é conhecida internacionalmente como de boa qualidade e de baixo preço,
devido aos pequenos custos internos de sua produção.
193
P. JÚNIOR, op. cit., 2001.
194
Miguel Antonio Silveira Ramos em majestoso artigo intitulado La responsabilidad civil de las empresas
tabaqueras y deber de informacion, esclarecendo a relação de mortes com o consumo do tabaco,
ressalta que: la expectativa de vida en España es de 74,6 años para los hombres y 80,5 para lãs
mujeres. El numero de muertes por año relacionadas al tabaco es de 46.000 personas, siendo que
desde el año de 1995 hasta el 2000 fue hecha una estimativa de que morirán mas de 1.250.000
personas por el consumo o exposición al tabaco, de las cuales más de 700.000 con edad inferior a los
70 años. E arremata: De cada 1.000 muertes que se producen en España, a) 1 se da por el consumo de
drogas; b.) 2 por SIDA; c.) 20 por accidentes de tráfico; y d.) 133 por enfermedades relacionas al
tabaco. (RAMOS, op. cit., 2001).
195
SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998. p. 13.
80
Outra estatística assustadora é a de que após 20 anos como
fumante, 1 em cada 4 tabagistas morre prematuramente. Depois de 40
anos, 1 em cada 2. Nos anos 90, nos países desenvolvidos, os óbitos em
razão do consumo de cigarros constituíram 35% da mortalidade geral na
faixa dos 35 aos 69 anos de idade, com perda média de 22 anos de
esperança de vida. Cerca da metade da humanidade se expõe direta e
indiretamente aos efeitos nocivos do tabaco, constituindo essa, portanto, a
maior causa isolada e evitável de morbidade e morte
196
.
Conforme dados do Banco Mundial, o custo do fumo no mundo
atinge a extraordinária cifra de 200 bilhões de dólares anuais, em virtude
de perdas de vidas, gastos com tratamento de saúde, diminuição de
produtividade por doenças, etc
197
.
Caso as tendências atuais permaneçam, cerca de quinhentos
milhões de pessoas, hoje vivas, morrerão em decorrência do tabaco, e a
metade delas durante sua vida adulta, com uma perda individual
equivalente a 20 ou 25 anos de vida
198
.
196
ROSEMBERG, José. A luta contra o tabagismo. Folha de São Paulo, 1
o
de set. de 2000, A3.
197
Uma curiosa estatística informa que um fumante trabalha, em média, seis dias a menos por ano que o
não-fumante por conta das “paradinhas” para fumar. (P. JÚNIOR, op. cit., 2001).
198
Em uma cidade poluída, a concentração de materiais particulados na atmosfera é, em média, de 0,1
mg/m³. Considerando-se que o ser humano respira, em média, 20m³ de ar por dia, isto significa que
acabará inalando 2mg de particulados (0,1mg de poluição x 20m³ de ar por dia igual a 2mg de
poluição). Assim, quem fuma um maço de cigarros (20 cigarros), com média de 20mg de alcatrão por
cigarro, estará inalando 400mg de matéria particulada. Observe-se que 20mg em 20 cigarros
correspondem a 400mg de matéria particulada ou de poluição. Por esse cálculo o fumante leva aos
pulmões 200 vezes mais material particulado que o ar poluído da cidade. (ROSEMBERG, José;
ALBANESE, Mario. Poluição tabágica ambiental, sério problema de saúde pública. Revista Cipa, São
Paulo/SP, n. 161, 1993).
CAPÍTULO II
HISTÓRICO E NOÇÕES FUNDAMENTAIS À ADEQUADA
COMPREENSÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
1 Uma abordagem histórica do direito fundamental da defesa do
consumidor
No passado, a autonomia da vontade
199
e a liberdade de contratar
se sobrepunham à própria lei. Na concepção clássica do contrato, a lei
possuía papel secundário, destinado, unicamente, a permitir e a garantir a
199
A civilista Leite Novais esclarece que são tidas como as principais origens da autonomia da vontade o
Direito Canônico, a teoria do Direito Natural, a Revolução Francesa e, finalmente, as teorias
econômicas e o liberalismo.
No Direito Canônico, mediante a visão da sacralização dos contratos, o Direito se viu liberto do
formalismo exagerado imposto pelo Direito Romano. O simples pacto dava origem à obrigação moral e
jurídica para o indivíduo.
A Teoria do Direito Natural, por sua vez, foi a que mais contribuiu para o desenvolvimento e
consolidação do princípio da autonomia da vontade. Substituiu-se a idéia de direito divino pela de
liberdades naturais, fato que contribuiu para o entendimento do dogma da autonomia da vontade como
um princípio informativo do Direito Privado.
Na Revolução Francesa, com a formulação da teoria de Russeau, lançou-se a idéia do contrato social
como base da sociedade: a autoridade estatal, fundamentada no consentimento dos sujeitos direitos, os
cidadãos. Ademais, foi naquela época que se deu o nascimento do Code Napoleón, que traduzia o mais
puro e forte individualismo e voluntarismo, e enquadrava o princípio da autonomia da vontade como
um valor supremo de todo o sistema contratual.
Finalmente, ao analisar o quarto ponto de origem, isto é, as teorias econômicas e o liberalismo,
esclarece a autora que, no século XVII, surgiram diversas teorias econômicas, segundo as quais seria
basicamente necessária a livre circulação das riquezas na sociedade, o que deveria ocorrer por meio do
contrato. Diante desse fato, tais teorias econômicas pregavam a necessidade da plena liberdade
contratual como forma de proporcionar referida movimentação de riquezas na sociedade.
O auge do liberalismo, ocorrido no século XIX, foi marcado pela mínima intervenção estatal nas
relações entre particulares, o que fez surgir, daí, a visão tradicional do contrato, calcado no princípio
máximo da autonomia da vontade e na liberdade de contratar. (NOVAIS, Alinne Arquette Leite. A
teoria contratual e o código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 44-
47).
82
autonomia da vontade, a liberdade de contratar e também os efeitos
projetados pelos indivíduos no contrato
200
.
Naquela época, os contratos, em sua maioria, eram realizados
individualmente; os contratantes sentavam-se e negociavam seu conteúdo
e forma antes de redigi-los. Todas as cláusulas contratuais passavam,
necessariamente, pelo crivo de ambos os contratantes; a substância do
negócio era fruto da harmonia de interesses e entendimentos dos
indivíduos. Pouco interessavam, à vista disso, as situações econômica e
social dos contratantes ou quaisquer desigualdades entre eles existentes.
Importante, por outro lado, era garantir a vontade e a liberdade daqueles
que contratavam, porquanto qualquer intromissão maior do Estado nas
relações interprivadas ia de encontro à concepção liberal e voluntarista do
direito contratual. A grande maioria das normas, nesta matéria, constituía
apenas parâmetros para interpretação dos contratos ou regras supletivas
da vontade das partes
201
.
Ocorre que, com a Revolução Industrial, deu-se início a um
processo de estandardização dos contratos. Os fornecedores, ao se
utilizarem da tecnologia ascendente, desenvolveram a produção em série,
e atingiram, conseqüentemente, a distribuição e comercialização em
massa, com a redução dos custos de produção e a busca, cada vez mais, de
um maior número de consumidores aptos a adquirir produtos ou contratar
serviços
202
.
200
Nesse sentido, Claudia Lima Marques leciona: “Na concepção clássica, portanto, as regras contratuais
deveriam compor um quadro de normas supletivas, meramente interpretativas, para permitir e
assegurar a plena autonomia de vontade dos indivíduos, assim como a liberdade contratual”.
(MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações
contratuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 17).
201
NOVAIS, op. cit., 2001. p. 58.
202
Sérgio Cavalieri Filho, ao tratar da finalidade do direito do consumidor, ensina: “Quanto à finalidade, é
preciso ter em mente que o direito do consumidor foi concebido para eliminar as desigualdades criadas
nas relações de consumo pela Revolução Industrial – Revolução, essa, que aumentou, quase que ao
infinito, a capacidade produtiva do ser humano. Se antes a produção era manual, artesanal, mecânica,
circunscrita ao núcleo familiar ou a um pequeno número de pessoas, a partir dessa Revolução a
produção passou a ser em massa, em grande quantidade, até para fazer frente ao aumento da demanda
decorrente da explosão demográfica. Houve também modificação no processo de distribuição,
causando cisão entre a produção e a comercialização. Se antes era o próprio fabricante que se
encarregava da distribuição dos seus produtos, pelo quê tinha total domínio do processo produtivo –
sabia o que fabricava, o que vendia e a quem vendia –, a partir de um determinado momento essa
distribuição passou também a ser feita em massa, em cadeia, em grande quantidade, pelos mega-
atacadistas, de sorte que o comerciante e o consumidor passaram a receber os produtos fechados,
lacrados e embalados, sem nenhuma condição de conhecer o seu real conteúdo”. (CAVALIERI
FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 462.)
83
Aliados ao moderno sistema de produção e distribuição de
massa, métodos de contratação mais evoluídos passaram a ser
empregados, destacando-se, nesse ponto, os chamados contratos de
adesão. Os contratos paritários de regra passaram à exceção, existindo,
hoje, em número limitado e, notadamente, em relações que envolvem
particulares.
Os consumidores, então, em vez de negociar cláusulas, passaram
a aderir a elas. Os contratos tornaram-se padronizados, literalmente pré-
redigidos pelos fornecedores que, mediante tal técnica, adquiriram mais
segurança, eficiência, agilidade, economia e praticidade nas
negociações
203
.
Ademais, da necessidade de ampliação do contingente de consumidores
aptos a adquirir produtos e contratar serviços, nasceu um sistema
poderosíssimo de marketing, motivador e persuasivo, capaz de induzir e
controlar. A partir de então, o consumidor não só comprava visando
atender suas necessidades básicas, mas também com o objetivo de
consumir o que lhe foi imposto pelo marketing exacerbado.
Como resultante “desses dois processos – produtivo e
mercadológico – fez-se necessário o desenvolvimento de novas formas de
crédito, a fim de que o consumidor pudesse mais fácil e rapidamente
adquirir o produto”
204
.
O destinatário de todo esse sistema mercadológico deveria,
logicamente, figurar como o maior beneficiário das transformações
econômicas até então ocorridas, pois é ao consumidor que se destina toda
a produção e pensando nele que se aprimoram produtos e serviços; todo o
203
Mais uma vez, indispensável a citação dos ensinamentos do mestre Sérgio Cavalieri Filho: “Finalmente,
esse novo mecanismo de produção e distribuição fez surgir novos instrumentos jurídicos – os contratos
coletivos, contratos de massa, contratos por adesão –, cujas cláusulas gerais, sabemos todos, são
preestabelecidas unilateralmente pelo fornecedor, sem qualquer participação do consumidor.
Rapidamente, como dissemos, o direito material tradicional ficou ultrapassado; envelheceu aquele
direito concebido à luz dos princípios romanistas, tais como a autonomia da vontade, a liberdade de
contratar, o pacta sunt servanda e a própria responsabilidade fundada na culpa. Os remédios
contratuais clássicos também se revelaram ineficazes para dar proteção efetiva ao consumidor em face
das novas cláusulas engendradas peara os contratos em massa. E essa disciplina jurídica deficiente,
arcaica, ultrapassada, foi o clima propício para a proliferação de todas as práticas abusivas possíveis,
aí incluídas as cláusulas de não indenizar ou limitativas da responsabilidade, o controle do mercado, a
eliminação da concorrência, e assim por diante, gerando insuportáveis desigualdades econômicas e
jurídicas entre o fornecedor e o consumidor”. CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 462.)
204
VILLARPANDO, Hugo. Pessoa jurídica e o crédito bancáriodestinatário final. Disponível no site:
<http://www.infojus.com.br
>. Acessado em 22 fev. 2003.
84
lucro do fornecedor provém do consumidor. Todavia, esse processo
produtivo acabou por colocá-lo em situação de extrema fragilidade em
relação ao fornecedor.
A autonomia da vontade e a liberdade de contratar, em razão da
nova realidade socioeconômica do século XX, não mais serviam de
alicerces à segurança e igualdade dos contratantes. O sistema tradicional,
que não estabelecia limites ou regras às atividades dos fornecedores,
limitava-se a garantir a efetivação das negociações firmadas e anulava,
literalmente, o equilíbrio das relações ocorrentes no mercado de consumo,
porquanto totalmente desarmônico com a novel realidade a qual se
impunha a toda a comunidade. A destemperança entre o arcaico sistema
jurídico e as mudanças ocorridas na sociedade terminou por disseminar
injustiças diversas, sempre em desfavor da parte menos privilegiada e
mais vulnerável da relação: o consumidor.
Ante essa nova realidade, o Estado alterou sua postura
tradicional, com a intenção de eliminar a predominante isonomia aparente
que existia apenas na teoria, para atingir o modelo da igualdade efetiva e
real. Com esse objetivo, o Direito transmudou-se. Surgiu o Estado Social
para tutelar não só a igualdade e a liberdade dos indivíduos, mas ainda
assegurar seus direitos sociais. O Direito, ao perder a função de mero
coadjuvante, passou a funcionar como garante da harmonização e
equilíbrio das relações
205
. O Estado passou a intervir diretamente nas
relações, limitou a autonomia da vontade e a liberdade de contratar e
criou instruções (leia-se “normas”) de natureza cogente a serem, sempre e
205
O grande mestre processualista J. J. Calmon de Passos, referência de vivacidade, experiência, cultura e
coragem, ao proferir discurso aos formandos em Direito na Universidade Federal da Bahia, em que foi
devidamente homenageado como paraninfo, prolatou as seguintes palavras, dignas de reflexão: “A par
disso, e talvez sua mais grave conseqüência, debilitou-se a auto-limitação da liberdade, que é a
maneira mais segura de se tutelar a própria liberdade. Daí este nosso mundo de hoje, em que entoamos
hosanas à liberdade, mas temos correntes nos pés. Mundo em que se sucedem fulgurantes
proclamações formais ratificadoras da soberania das liberdades, enquanto a realidade do quotidiano é
de progressiva insegurança, alimentada pela progressiva conflituosidade de uma convivência social de
homens que perderam toda referência do “outro”, somente possível com a introjeção do dever como
valor. Assim descomprometidos com o dever e dele desvinculados, fizeram os homens de si mesmos, da
sua solidão sem solidariedade, o valor supremo. Ilharam-se mentalmente enquanto materialmente se
estruturava um mundo de sufocante interdependência”. (PASSOS, J. J. Calmon de. Aos que vão
prosseguir. Revista Prática Jurídica, n. 3. Brasília: Consulex, 2002. p. 8).
85
obrigatoriamente, observadas e respeitadas pelos contratantes
206
. De mero
espectador, passou o Estado a atuar no “papel principal” das contratações,
para garantir a justiça e a igualdade das relações entre particulares
207
.
Foi nesse cenário, donde se constatara a necessidade de se
adotar uma nova postura jurídica – e não meramente atualizar-se
pontualmente a lei –, capaz de permitir o delineamento de um novo
Direito, fundado em princípios modernos e eficazes, que, nos principais
países do mundo, após uma longa e criativa atuação jurisprudencial,
foram editadas leis específicas para disciplinar as relações de consumo
208
.
No Brasil, peculiarmente, mesmo após a segunda grande guerra,
em que se aprofundaram as transformações e levaram os Estados a
adotarem posturas voltadas ao social, a tendência de socialização do
Direito teve pouca influência legislativa.
Somente com a CF/88 é que a concepção tradicional do contrato
começou a ser desacreditada no País. A Magna Carta incluiu a defesa do
consumidor no plano da política constitucional; essa aparece no texto
maior, entre os direitos e garantias fundamentais (art. 5º, XXXII), e está
também elevada à categoria de princípio geral da atividade econômica
(art. 170, V)
209
e justaposta aos princípios basilares do modelo
político/econômico brasileiro, como o da soberania nacional, o da
propriedade privada e o da livre concorrência
210
.
206
Claudia Lima Marques ensina, com mestria, que as “leis de função social caracterizam-se por impor as
novas noções valorativas que devem orientar a sociedade e por isso optam, geralmente, por positivar
uma série de direitos assegurados ao grupo tutelado e impor uma série de novos deveres imputados a
outros agentes da sociedade, os quais, por sua profissão ou pelas benesses que recebem, considera o
legislador, que possam e devam suportar estes riscos. São leis, portanto, que nascem com a árdua
tarefa de transformar uma realidade social, de conduzir a sociedade a um novo patamar de harmonia e
respeito nas relações jurídicas. Para que possam cumprir sua função, o legislador costuma conceder a
essas novas leis um abrangente e interdisciplinar campo de aplicação.” (MARQUES, Cláudia Lima.
Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1993. p. 158-159).
207
Conforme muito bem ressalta o Ministro Marco Aurélio de Mello “[...] o único modo de se corrigir
desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado
desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual”. (MELLO,
Marco Aurélio de. Igualdade entre as raças. Síntese Jornal, ano 6, n. 61. p. 3-4, mar. 2002).
208
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 463.
209
Claudia Lima Marques assevera que, a partir de 1988, a defesa do consumidor incluiu-se na chamada ordem
pública econômica que legitima e instrumentaliza a crescente intervenção do Estado na atividade
econômica dos particulares. MARQUES, op. cit., 1993. p. 164).
210
MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1993. p. 29.
86
Nascida de um comando expresso na Carta Magna (art. 48 do
ADCT) e imbuída de valores constitucionais, a Lei 8.078/90 entabula
normas imperativas, as quais ganharam o campo antes dominado quase
totalmente pela autonomia da vontade, com a finalidade de tutelar o
consumidor, de modo que extirpe a situação de desequilíbrio em que se
encontra no mercado de consumo e, por conseqüência, busque uma
realidade social mais justa e real, em conformidade com o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana, um dos sustentáculos
mestres da ossatura do CDC.
2 Estabelecendo os contornos do consumidor brasileiro
A edificação do CDC teve por base a própria vulnerabilidade do
consumidor brasileiro, um ente inserido, até então, num contexto que o
colocava em situação de incrível desigualdade quando comparado aos
fornecedores de produtos e serviços.
Desigualdades essas advindas com a Revolução Industrial,
momento em que a capacidade produtiva do ser humano aumentou
sobremaneira. Se antes a produção era artesanal e circunscrita ao grupo
familiar, com essa Revolução a produção passou a ser massificada, em
grande quantidade, para defrontar-se com ao aumento da demanda
decorrente da explosão demográfica. De tal sorte, houve igualmente
modificação expressiva no processo de distribuição, o que gerou
verdadeira cisão entre a sistemática de produção e comercialização –
antes era o fabricante que se encarregava de distribuir seus produtos; a
partir de um determinado momento, essa distribuição passou a também ser
realizada em massa, em cadeia e em grande quantidade pelos
megaatacadistas. Novos mecanismos judicos se fizeram surgir (contratos
coletivos e de massa, contratos por adesão), cujas cláusulas são
preestabelecidas unilateralmente pelo fornecedor, sem nenhuma
participação do consumidor. Daí se perceber a ineficácia de um direito
material concebido à luz dos princípios romanistas (autonomia da
vontade, liberdade de contratar, pacta sunt servanda, responsabilidade
aquiliana, etc.) na proteção do consumidor. O direito material envelheceu
87
e isso criou uma situação de imenso desequilíbrio, cujo maior prejudicado
foi o próprio consumidor, mormente porque essa evolução na produção e
fornecimento de bens e serviços, descompassada com a evolução legal,
trouxe um clima propício para a proliferação de diversas práticas abusivas
– incluem-se, dentre elas, as cláusulas de não indenizar ou as limitativas
de responsabilidade, o controle do mercado, a eliminação da concorrência,
e outras várias
211
.
E não bastava apenas a mera alteração pontual de normas.
Exigia-se uma nova postura, mais ousada e destinada a imprimir a criação
de um novo direito, fundado em princípios modernos e eficazes,
212
que
eliminasse – ou, ao menos, minimizasse – a desigualdade que colocava um
verdadeiro abismo entre os atores principais das relações de consumo.
A ordem jurídica foi reestruturada com o surgimento do CDC,
talvez uma das leis mais democráticas já editadas no Brasil, a qual
ultrapassava várias outras legislações alienígenas referentes ao tema, no
que se refere ao âmbito de aplicabilidade, como também, à modernidade e
tecnicidade.
É inquestionável que a Lei n. 8.078/90 tenha sido concebida em
prol do consumidor brasileiro e destinada ao estabelecimento de seus
direitos como ainda dos deveres dos outros participantes do mercado de
consumo, para garantir-lhes a atuação e exercícios de seus interesses
numa realidade mais justa e igualitária.
Há contudo posições doutrinárias e jurisprudenciais vacilantes
em diversos temas açambarcados pelo CDC, situação que impõe um ofício
interpretativo constante a todos – juristas, juizes, promotores, advogados,
cidadãos –, de modo que garanta uma aplicação adequada e justa dessa
legislação.
Um dos pontos ainda polêmicos refere-se justamente ao próprio
conceito de consumidor, situação absolutamente inerente à aplicação da
Lei consumerista – afinal, se a legislação foi criada para proteger o
consumidor, ela somente deverá ser utilizada quando, num dos pólos da
211
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
p. 462.
212
Ibid., p. 463.
88
relação, este se situar (relação de consumo). Adiante-se que a criação da
figura do consumidor equiparado, apesar de ampliar propositadamente o
campo de incidência do CDC, também serviu para apimentar um pouco
mais tal controvérsia.
2.1 A influência do direito comparado na metodologia de
interpretação do código de defesa do consumidor: uma interferência
restritiva aos contornos do consumidor brasileiro
Ao que parece, parte dessa predisposição restritiva para
influenciar os delineamentos da figura do consumidor brasileiro, origina-
se de elementos advindos do direito estrangeiro. Noutras palavras, alguns
intérpretes validam idéias trabalhadas em outros países e oriundas da
moldura normativa dessas leis alienígenas, como se fossem perfeitamente
adequadas à realidade brasileira. Não há maiores preocupações com
possíveis e perigosas rejeições de tais idéias com a realidade legislativa e
social do País, o que proporciona verdadeiras amputações de direitos
àqueles que verdadeiramente possuem interesses merecedores de tutela na
ordem jurídica nacional.
É fato que a interpretação jurídica não deve maniatar-se,
restringir-se aos componentes e informações importados de ordenamentos
jurídicos externos. Se assim fosse, certamente o Direito distanciar-se-ia
das necessidades coletivas e da busca do bem comum, sobretudo porque as
realidades social, econômica, política e cultural não são uma constante
mundial, pois variam de Estado para Estado. Daí a necessidade de se
interpretar e aplicar as diversas normas jurídicas em consonância com
essas realidades, certamente influenciadoras do texto normativo prescrito
pelo legislador.
2.1.1 Conformidade do conceito de consumidor, devidamente
positivado na ordem jurídica nacional, com as realidades política,
social, econômica e cultural do país: desnecessidade de utilização do
Direito Comparado
89
É de inequívoca importância a utilização do direito comparado.
Mas todo cuidado é pouco. No entanto, deve-se aproveitar esse fator de
exegese com as necessárias cautelas, na medida em que a presunção de
acertar diminui quando entre os dois povos, cujo Direito se confronta, há
diversidade de regime político, organização social e cultura. Cumpre,
pois, comparar legislações de tendências análogas e respeitar o espírito
das disposições peculiares ao meio para que foram elaboradas – nesse
último caso, a interpretação teleológica terá maior valor para o
hermeneuta
213
.
É de todo impertinente e irresponsável delinear os contornos da
figura do consumidor brasileiro com base em uma matéria-prima
exclusivamente pautada no direito comparado e com negligência às
realidades que conduziram a idealização da lei. Nesse prisma, é insensato
ignorar os contornos das normas que apontam os elementos
caracterizadores do consumidor brasileiro, elaboradas e alicerçadas essas
nos contextos político, social, econômico e cultural do País, no qual se
encontra inserido e atuante o cidadão-consumidor.
Se houver, pois, no direito positivo, definição precisa de
consumidor e que albergue um conceito próprio induvidoso, não há
nenhum sentido lógico e jurídico pretender-se submetê-lo às teorias
jurídicas informadoras de sistemas alienígenas, teorias essas ora
textualmente recebidas pelo legislador, ora textualmente afastadas em
prol da elaboração de um sistema próprio
214
. Afinal, as especulações
doutrinárias, especialmente aquelas provenientes de outros países,
somente conservam seu valor enquanto inexiste um conceito legal de
consumidor, suficientemente apto e preciso, sobretudo porque presente tal
conceito encartado em lei, a opção política do legislador obviamente se
sobrepõe às construções da doutrina
215
.
E diante de palavras ou expressões imprecisas, antes de buscar
auxílio no Direito Comparado, acertada será a postura daquele intérprete
que solver o problema, com base na utilização de instrumentos
213
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 131.
214
MARINS, op. cit., 1993. p. 64.
215
Ibid., p. 64-65.
90
hermenêuticos voltados a considerar as realidades do País, com especial
atenção às particularidades do mercado de consumo brasileiro – mercado
este que inquestionavelmente guarda distinções substanciais daqueles de
outros países. Afinal, no Brasil, sobretudo em virtude da impunidade
irrefutável, a conduta dos fornecedores, não raras vezes, escapa à ética.
Assim é que o legislador percebeu a necessidade da adoção, como
imperativo de segurança social, de um microssistema jurídico, portador de
normas materiais e processuais, mais rigoroso no conteúdo e muito mais
abrangente quanto à gama de relações jurídicas
216
.
2.1.2 A utilização dos princípios da lei consumerista como
instrumentos de interpretação destinados a superar omissões e
contradições legislativas
A solução de inevitáveis contradições e omissões legislativas
deve-se pautar nos princípios, e não só naqueles de ordem constitucional,
mas também os institucionais, aqueles que alicerçam e conferem o retoque
necessário para garantir a aplicação da lei em conformidade com o seu
verdadeiro espírito.
Naquilo que se refere à problemática voltada para a adequada
interpretação do conceito de consumidor, o princípio da vulnerabilidade
tem especial importância.
Afirme-se que o consumidor é figura vulnerável da relação de
consumo. Adquiriu essa condição jurídica por meio da positivação do
princípio da vulnerabilidade do consumidor (art. 4.º, I, do CDC).
Verdadeiramente, sempre se situou em condição vulnerável nas transações
feitas com fornecedores. Era portador de uma vulnerabilidade fática,
alcançando, depois da publicação do CDC, o “status” de vulnerável
juridicamente.
Justifica-se esse direito a ser reconhecido como a parte
vulnerável da relação de consumo justamente pelo fato de que é “o
fornecedor que escolhe o quê, quando e de que maneira produzir, de sorte
216
MARINS, op. cit., 1993. p. 67.
91
que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido”
217
. A sua escolha
é reduzida desde a origem do produto ou serviço; afinal, “só poderá optar
por aquilo que existe e foi oferecido no mercado”
218
.
Para Paulo Valério Dal Pai Moraes, a vulnerabilidade é
o princípio pelo qual o sistema jurídico positivado brasileiro
reconhece a qualidade daquele ou daqueles sujeitos mais fracos
na relação de consumo, tendo em vista a possibilidade de que
venham a ser ofendidos ou feridos, na sua incolumidade física
ou psíquica, bem como no âmbito econômico, por parte do
sujeito mais potente da mesma relação
219
.
E conclui: “O princípio da vulnerabilidade decorre diretamente
do princípio da igualdade, com vistas ao estabelecimento de liberdade,
considerado [...] que somente pode ser reconhecido igual alguém que não
está subjugado por outrem”
220
.
Ressalte-se que a vulnerabilidade do consumidor não é
meramente econômica uma vez que ele se enfraquece nas práticas de
consumo em razão das várias facetas desta vulneração: técnica, jurídica,
política ou legislativa, biológica ou psíquica, social e ambiental.
Destarte, diante da imposição legal de tal princípio, o
consumidor sempre será a parte vulnerável das relações de consumo. Essa
é, pois, uma “qualidade intrínseca, ingênita, peculiar, imanente e
indissociável de todos que se colocam na posição de consumidor, em face
do conceito legal, pouco importando sua condição social, cultural ou
econômica, quer se trate de consumidor pessoa jurídica quer consumidor
pessoa física”
221
.
Por vezes, argumenta-se que esse ou aquele consumidor não é
vulnerável e, por tal razão, o CDC não seria aplicável ao caso concreto.
Desvirtua-se, por intermédio dessa interpretação inadequada, a real
217
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva,
2000. p. 106.
218
NUNES, op. cit., 2000. p. 106.
219
MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de defesa do consumidor. O princípio da vulnerabilidade. São
Paulo: Síntese, 1999. p. 96.
220
Ibid., p. 96-97.
221
MARINS, op. cit., 1993. p. 39.
92
importância do princípio da vulnerabilidade, bem assim o próprio espírito
normativo do CDC.
Não é crível obstaculizar a aplicação da Lei n. 8.078/90 sob a
égide do princípio da vulnerabilidade. Em verdade, o CDC deve ser
aplicado porque o consumidor é a parte vulnerável da relação de consumo,
qualidade essa adquirida justamente pela positivação do referido
princípio. Essa característica não há sequer de ser demonstrada; ela foi
normativamente reconhecida por um princípio. A legislação não exige que
o consumidor deva ser vulnerável, nada impõe a esse respeito; prescreve
expressamente que ele é reconhecido como tal. Basta ser consumidor para
na relação de consumo assim se situar. O reconhecimento de determinado
indivíduo, coletividade ou ente como consumidor, conduz, infalivelmente,
a tal admissão. A vulnerabilidade do consumidor é decorrência lógica e
jurídica de sua própria condição.
Sendo assim, a interpretação do verdadeiro sentido da expressão
consumidor, utilizada pelo legislador brasileiro, deverá inevitavelmente
levar em consideração também o princípio da vulnerabilidade. Deve o
intérprete partir da idéia de que tal princípio não foi elaborado com a
intenção de negar aplicabilidade ao CDC em determinadas situações
concretas. A sua função no direito das relações de consumo é bem outra, a
saber, possibilitar o reconhecimento de todo consumidor como parte
vulnerável das relações de mercado. Compreender de maneira diversa
seria desvirtuar o espírito e objetivos da lei.
2.2 Definições de consumidor nos ordenamentos jurídicos alienígenas
Numa análise fundada no Direito Comparado, uma importante
ilação que se obtém é a de que, apesar da variedade de definições
conferidas ao ente consumidor nos diversos sistemas jurídicos existentes
mundo afora, há elementos comuns presentes em todas elas. Mister
precisar quais são esses elementos comuns presentes nas definições
formatadas por legislações alienígenas, a fim de posteriormente, dissociar
de uma interpretação voltada, exclusivamente, a desenhar os contornos do
93
consumidor brasileiro, os elementos não açambarcados pelo ordenamento
jurídico nacional.
De início, aponte-se que o conceito de consumidor no mundo é
variante, vezes se escora na presença de uma relação de consumo, na
natureza do objeto, no ângulo dos sujeitos envolvidos, ora, ainda, na
própria finalidade de tal relação. Entretanto, algumas similitudes também
se encontram presentes, consoante se poderá observar.
Em seu art. 1º, a Lei sueca de proteção ao consumidor define
esse ator das relações de consumo como a pessoa privada que compra de
um comerciante uma mercadoria, principalmente destinada ao seu uso
particular, e a vende no âmbito da atividade profissional.
Já a Lei Geral para a defesa dos consumidores e usuários da
Espanha (1984) apresenta duas definições de consumidor: uma indica a
sua identidade e a outra diz quem não pode ser encarado como tal.
Destarte,
são consumidores ou usuários as pessoas físicas ou jurídicas
que adquirem, utilizam ou desfrutam, como destinatários
finais, bens móveis ou imóveis, produtos, serviços, atividades
ou funções, qualquer que seja a natureza, pública ou privada,
individual ou coletiva, de quem os produz, facilita, ministra ou
expede. Em sentido negativo, não serão considerados
consumidores e usuários quem, sem se constituir em
destinatário final, adquire, utiliza ou consome bens ou serviços
com o fim de integrá-los em processos de produção,
transformação, comercialização ou prestação a terceiros
222
.
A Lei de defesa do consumidor de Portugal considera
consumidor “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados
serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não
profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma
atividade econômica que vise à obtenção de benefícios”. (Art. 2.º da Lei
n. 24/96).
Na Colômbia, o Decreto 3.466, de 02/12/1982, define
consumidor como toda pessoa, natural ou jurídica, que contrate a
222
BENJAMIN, Antônio Herman V. O conceito jurídico de consumidor. In: Revista dos Tribunais. São
Paulo: RT, 1988. v. 628. p. 69-79.
94
aquisição, a utilização ou o desfrute de um bem ou a prestação de um
serviço determinado, para a satisfação de uma ou mais necessidades.
Consoante se percebe pela leitura do teor da Lei de Práticas
Comerciais da Austrália (1974), uma pessoa é considerada como um
consumidor apenas se os bens não são do tipo ordinariamente adquiridos
para uso ou consumo privados, e ela não os adquire com o propósito de
revenda.
Em Israel (Lei de Proteção ao Consumidor de 1981),
consumidor é a pessoa que compra um bem ou recebe um serviço de um
negociante no curso de seu negócio para uso pessoal, doméstico ou
familiar.
Na Noruega, a Lei de Vendas ao Consumidor prevê que, para a
sua aplicação, as aquisições devem ser feitas para o uso pessoal do
comprador, de sua família, amigos ou de qualquer outro modo, para fins
pessoais.
No México, a Lei competente define consumidor como aquele
que contrata, para sua utilização, a aquisição, o uso ou o desfrute de bens
ou de prestação de um serviço.
No direito estadunidense, embora não exista um conceito geral
de consumidor, ficando tal definição a cargo de cada legislação específica
contida nos diversos Estados autônomos, a posição majoritária é a de se
considerar consumidor o não-profissional que adquire bens, retirando-os
do mercado de consumo para efetiva e privada utilização.
Já no âmbito do MERCOSUL, o Protocolo de Santa Maria e seu
respectivo anexo definem o consumidor como toda pessoa, física ou
jurídica, que adquire ou utiliza produtos ou serviços como destinatário
final em uma relação de consumo, ou em função dela. E mais: não se
considera consumidor ou usuário aquele que, sem se constituir
destinatário final, adquire, armazena, utiliza ou consome produtos ou
serviços com o fim de integrá-los em processos de produção,
transformação, comercialização ou prestação de serviços.
Na Itália, o Codice del Consumo define o consumidor como “la
persona fisica che agisce per scopi estranei all'attività' imprenditoriale o
professionale eventualmente svolta”.
95
Apontadas essas definições colhidas no direito alienígena, é de
se dizer que, embora as diversas leis indicadas valham-se de abordagens
distintas para definir os contornos do consumidor, a maioria dessas
considerações apresentam elementos habituais ou idênticos. Nessa linha,
brilhante a conclusão de Antonio Herman V. Benjamin, esclarecendo que
a maioria dos conceitos de consumidor apresentadas pelas leis
internacionais tem
em comum um elemento subjetivo ativo no que toca à tutela
(consumidor é sempre uma pessoa), um elemento subjetivo
passivo contra quem a tutela é exercida (consumidor adquire
bens e serviços de produtor, distribuidor ou intermediário), um
elemento objetivo (consumidor de bens ou de serviços) e um
elemento teleológico ou finalístico (a destinação a ser dada aos
bens e serviços deve ser para uso pessoal ou privado dos
consumidores)
223
.
Parte da doutrina nacional (os minimalistas) utiliza-se do
elemento teleológico, também respaldado pelo legislador ao delinear os
contornos do consumidor brasileiro, como fundamento destinado a
minguar o âmbito de aplicação do CDC. Data venia, tal interpretação
restritiva não guarda relação alguma com o espírito do CDC, contrariando
os ideais que alicerçaram sua criação, conforme se verá oportunamente.
2.3 A amplitude do termo consumidor na ordem jurídica nacional
O trabalho doutrinário destinado a apresentar uma adequada
definição do consumidor brasileiro não encontra respaldo e justificativa
apenas na academia. Não se trata de pura e simples elucubração
acadêmica, sem nenhum cunho prático. Afinal, revelar quem é o
consumidor brasileiro significa conseqüentemente delimitar quais os
indivíduos, coletividades e entes serão efetivamente tutelados pelo CDC.
Em última análise, esse esforço também elucida os próprios limites de
aplicabilidade da mesma lei.
223
BENJAMIN, op. cit., p. 71.
96
E, consoante já disse Kennedy, “consumidores somos todos
nós”
224
. No Brasil, essa frase ecoa eloqüentemente [...].
O legislador optou por uma definição alargada do ente
consumidor, ampliando, por conseguinte, o próprio âmbito de incidência
do CDC. Assim, melhor adequou a legislação às concretas necessidades da
sociedade brasileira.
Com esse espírito, a Lei consumerista ofereceu um conceito
padrão de consumidor e mais três conceitos por equiparação legal. Eles
estão prescritos no art. 2º, no parágrafo único do art. 2º, no art. 17 e no
art. 29 do CDC:
Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que
adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de
pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas
relações de consumo.
[...]
Art. 17. Para os efeitos dessa seção, equiparam-se aos
consumidores todas as vítimas do evento.
[...]
Art. 29. Para os fins deste capítulo e do seguinte, equiparam-se
aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não,
expostas às práticas nele previstas.
A seguir, analisar-se-ão todos esses conceitos separadamente,
conforme sugere a boa técnica didática.
2.3.1 Divergências doutrinárias a influenciar o conceito de consumidor
padrão
Denomina-se consumidor padrão toda pessoa física ou jurídica
que adquire ou utiliza, produto ou serviço, como destinatário final. Em
outros termos, o consumidor padrão é aquele enquadrado na moldura
normativa do art. 2.º do CDC.
Ao desmembrar esse primeiro conceito, granjeiam-se três
distintos elementos, a saber: a) o elemento subjetivo (sujeitos): pessoas
224
Mensagem do Presidente John Kennedy ao Congresso Norte-Americano, em 1962, sobre o estado da
União, tida como o marco inicial da política de proteção ao consumidor.
97
físicas e jurídicas; b) o elemento objetivo (objetos): produtos ou serviços;
e c) o elemento teleológico (finalidade): destinação a ser conferida ao
produto ou ao serviço, a qual deverá ser finalística sempre, opondo-se,
pois, à comercialização e revenda
225
.
Quanto ao elemento subjetivo, a norma é inteligível:
enquadram-se no conceito de consumidor tanto as pessoas físicas como as
jurídicas. Quanto às últimas, por não impor a regra quaisquer distinções,
serão consumidores as microempresas, as multinacionais, as pessoas
jurídicas civis ou comerciais, as associações, fundações, etc
226
. Logo, as
pessoas jurídicas, quando adquirem ou utilizam produtos ou serviços
como destinatárias finais, também se encontram amparadas pelo CDC.
Ao aprofundar um pouco mais, agora com a abordagem de
aspectos mais relacionados ao elemento objetivo, consumidor é aquele
(pessoas físicas ou jurídicas) que adquire ou utiliza produto ou serviço.
Adquirir significa obter, comprar. Já o verbo utilizar denota usar, tirar
utilidade de, servir-se
227
. De tal sorte, nãoquem compra é consumidor.
Aquele que apenas utiliza produtos ou serviços, sem os ter adquirido ou
contratado, também poderá ser classificado como tal. Noutras linhas, para
o CDC são consumidores tanto aqueles que efetivamente adquirem (ou
contratam) produtos e serviços, como os que, mesmo não os tendo
adquirido (ou contratado), utiliza-se deles
228
.
O caput do art. 2.º do CDC finaliza seu enunciado com a
terminologia destinatário final. Tal expressão, responsável pela
caracterização do elemento teleológico do conceito de consumidor
padrão, é a responsável direta por problemas interpretativos de alto
calibre. E certamente isso se sucede porque o legislador pátrio, ao
apresentar a definição de consumidor padrão, valeu-se, como idéia
central, justamente desse elemento teleológico, devidamente caracterizado
pela nomenclatura destinatário final. Ou seja, o legislador condicionou a
caracterização de uma pessoa ou ente à condição de consumidor, à prática
225
DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor. Conceito e extensão. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1994. p. 66.
226
NUNES, op. cit., 2000. p. 78.
227
ALVES, Almeida. Novo dicionário ilustrado da língua portuguesa. Otto Pierre. [s.d.].
228
NUNES, op. cit., 2000. p. 78.
98
de um ato, qual seja, a aquisição ou a utilização do produto ou serviço,
que deverá ser sempre realizado tendo em vista a sua qualidade de
destinatário final
229
.
Adiante-se, já aqui, que essa expressão incerta, sem bem
interpretada, apenas realça o fato de que o consumidor que adquire ou
utiliza produtos e serviços, deve fazê-lo sem a intenção de revenda ou
comercialização, mas com a pretensão retirá-los do mercado, ultimando-o
da cadeia de produção.
2.3.1.1 O significado da expressão destinatário final
Para se chegar à idéia estampada no parágrafo anterior, mostra-
se necessário um exame mais acurado desta duvidosa terminologia –
destinatário final –, apontada como a grande responsável pelas
interpretações diversas, encampadas pela doutrina e jurisprudência
nacionais, acerca do alcance de incidência do CDC.
As dúvidas surgem porque tal expressão aparece solta no texto
normativo, fechando os dizeres do art. 2.º do CDC, e servindo-se como
instrumento definidor da figura consumidor, porém sem pistas que possam
esclarecer o seu real significado.
De início, duas correntes doutrinárias se despontaram na
tentativa de aclarar essa idéia. Os finalistas e maximalistas estabelecem,
cada qual à sua maneira, os limites de aplicação do CDC, apresentando
contornos menos ou mais alargados daquilo que consideram como um
destinatário final.
Para os finalistas, o consumidor seria aquele que adquire ou
utiliza um produto ou serviço para uso próprio e/ou de sua família. Como
a finalidade do CDC seria a de tutelar, de uma maneira especial, um grupo
da sociedade mais vulnerável, o consumidor seria apenas o não
profissional, excluídos, pois, os profissionais,
230
esses devidamente
protegidos por leis gerais. Para essa corrente, seriam destinatários finais
229
DONATO, op. cit., 1994. p. 65.
230
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código
de defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 84.
99
especialmente as pessoas físicas e algumas pessoas jurídicas; quanto às
últimas, somente as sem fins lucrativos, que façam uso privado do bem ou
serviço adquirido ou contratado.
Já os maximalistas realçam o CDC como um Código geral sobre
o consumo, um Código para a sociedade de consumo que institui normas a
todos os atores do mercado, os quais podem assumir papéis diversos, ora
atuando como fornecedores, ora como consumidores
231
. Nessa ótica, o
consumidor seria aquele que apenas retira o produto do mercado, pouco
importando a utilização que irá fazer dele. Seriam consumidores pessoas
físicas e jurídicas, mesmo aquelas com fins voltados exclusivamente ao
lucro. Destinatário final seria o que retirasse o bem do mercado, mesmo
que não colocasse fim à cadeia de produção e utilizasse o produto como
insumo desse processo produtivo.
A história evidencia que posições exageradas quase sempre se
mostram inadequadas. Acredita-se que nenhuma dessas correntes serve
convenientemente para elucidar o significado da expressão destinatário
final, bem assim desenhar os contornos do consumidor brasileiro. O meio
termo é o ponto ideal.
É certo que o CDC é uma norma cujo condão aponta rumo à
necessidade de equilibrar as relações de consumo, aquelas em que de um
lado se encontra vigoroso o fornecedor, e, de outro, a figura pálida e
vulnerável do consumidor.
Sendo assim, não haveria sentido lógico em se aceitar, de
maneira irrestrita, a posição maximalista, que confere a todos a qualidade
de consumidores, simplesmente porque adquirem produtos, mesmo que
não coloquem fim à cadeia produtiva e tais produtos sejam novamente
revendidos ou comercializados. E isso porque em tais casos aquele que
adquire não se trata propriamente de um leigo, acobertado pelo princípio
da vulnerabilidade. Se adquire para revender, ainda que a mercadoria
comprada seja transformada em produtos diversos, presumivelmente essa
pessoa (física ou jurídica) é um intermediário, conhecedor de sua
atividade; não se trata de um consumidor final.
231
MARQUES; BENJAMIN; MIRAGEM, op. cit., 2006. p. 84.
100
De igual forma, a corrente finalista não deve ser aceita sem
freios. E isso porque é ela exageradamente restritiva, proveniente de um
exame pautado no Direito Comparado, e cujas bases não se ajustam à
realidade brasileira. Para essa doutrina, o vulnerável seria apenas aquele
que adquire o produto para uso privado, situado nesse âmbito o uso
pessoal e aquele feito por sua família. Tal interpretação não convence.
A equiparação do destinatário final ao destinatário privado
(finalistas), por ser uma interpretação exageradamente restritiva,
apresenta-se incoerente com o texto legal, e cria situações
verdadeiramente estranhas, individualistas e intragáveis.
Veja-se, como exemplo, a figura de um advogado, profissional
liberal que ganha a vida com os frutos do seu ofício. Por outro lado,
coloque-se, também, no mesmo exemplo, um estudante de direito, cujos
objetivos são restritos ao estudo. O advogado, interessado em construir o
raciocínio necessário para ajuizar uma ação judicial em prol de um dos
seus clientes, adquire um livro jurídico. Esse livro será utilizado no
exercício e aprimoramento de seu trabalho, e pode, então, ser classificado
como bem de produção. Já o estudante, que visa ampliar seus
conhecimentos (uso pessoal, portanto), adquire o mesmo livro. Ora,
seguindo a corrente finalista, o estudante será considerado um consumidor
por fazer uso pessoal (privado) do livro, sem almejar fins lucrativos. Já o
advogado, ao contrário, não terá o amparo da Lei 8.078/90, pelo fato de
utilizá-lo para o implemento de sua atividade profissional. Qual a
diferença entre essas duas pessoas, estudante e advogado? Ambos estão
adquirindo o mesmo livro e, caso se constate, posteriormente, um vício de
qualidade (encadernação imperfeita, por exemplo), o estudante poderá
socorrer-se do CDC e o advogado, por sua vez, não.
No exemplo acima, surge uma situação idêntica que, segundo a
corrente finalista, deverá ser tratada por leis diversas, o que é
inadmissível. Ambos, estudante e advogado, adquiriram o produto sem
intenção de comercializá-lo, pois o livro não seria revendido a terceiros.
Não importa, portanto, o uso que cada um dê ao produto que adquiriu. O
que realmente importa é que aquele bem não será mais comercializado.
Tanto o advogado como o estudante são partes vulneráveis, pois, não
101
trabalham no comércio de livros, não são aptos a identificar, de prontidão,
vícios neles existentes; são, os dois, meros usuários, embora cada um
conferirá ao produto objetivos diferentes.
Hugo Villarpando, em excelente trabalho, destaca o equívoco
de se incluir, como requisito necessário para aplicação do CDC, a
inexistência de utilização profissional do bem adquirido. Argumenta que
essa
concerne à própria natureza dos agentes integrantes do
mercado de consumo, onde, em regra, todos desenvolvem
atividade profissional, inclusive pessoas físicas, como
condição de auferir receita e inserir-se no mercado de consumo
com poder de compra. Quem não exerce atividade profissional,
só excepcionalmente acessa o mercado de consumo, ficando
dele excluído.
Acrescenta, ainda que “o profissionalismo é requisito básico
para acessar esse mercado, não podendo, pois, ser elemento de exclusão,
pois excluiria tanto pessoas físicas como jurídicas”. E, finalmente,
conclui:
Perplexidades se extraem da visão sobre um profissional
humano, que necessitando de energia para seu corpo trabalhar,
adquire um prato de comida, consumindo-o. Pela tese
minimalista, o caráter profissional deveria excluir o
trabalhador, pois a comida seria um insumo
232
.
Por óbvio, não há como sustentar a equiparação do termo
destinatário final ao destinatário privado, como querem os
finalistas. Tal expressão deve ser interpretada sem se considerar
o uso que será feito do bem, privado ou profissional. O que não
se admite é a aquisição com foco num comércio futuro ou
revenda; somente isso.
João Batista de Almeida, com grande lucidez e acerto, ensina:
Por fim, resta analisar a tentativa de restrição que se coloca em
relação à finalidade da aquisição ou utilização. Diz Benjamin
que, “na França, o projeto de Código de Consumo, elaborado
sob a orientação do Prof. Jean Calais-Auloy, propõe que
consumidores “são as pessoas físicas ou jurídicas que obtêm ou
se utilizam de bens ou serviços para um uso não profissional
232
VILLARPANDO, op. cit., 2003.
102
(art. 3º)”. Ora, no Brasil, tal restrição não teria como vingar.
Pela definição legal de consumidor, basta que ele seja o
destinatário final dos produtos ou serviços (CDC, art. 2º),
incluindo aí não apenas aquilo que é adquirido ou utilizado
para uso pessoal, familiar ou doméstico, mas também o que é
adquirido para o desempenho de atividade ou profissão,
bastando, para tanto, que não haja finalidade de revenda”
233
.
Ao que parece, essa idéia hermenêutica vem ganhando cada vez
mais adeptos no STJ. Em várias situações, a mais alta Corte Nacional
preferiu escorar-se nessa posição doutrinária intermediária, de modo a
evitar os rigores defendidos por finalistas e maximalistas, e definir o
destinatário final como aquela pessoa que adquire e/ou utiliza produtos ou
contrata serviços sem a intenção de revenda, colocando fim à cadeia
produtiva. Daí, pois, para algumas turmas do STJ são consumidores: a
empresa farmacêutica com relação aos serviços que lhe foram prestados
por uma administradora de cartão de créditos (CComp 41056); a pessoa
jurídica com fins lucrativos com relação aos serviços de fornecimento de
energia elétrica, necessários à viabilização de sua própria atividade (REsp
661145); a empresa produtora de alimentos que se utiliza dos serviços de
software, manutenção e suporte, oferecidos por uma empresa
especializada (REsp. n. 488.274);
234
o produtor agrícola com relação ao
adubo que adquire para o preparo do plantio (REsp n. 208.793);
235
a
233
ALMEIDA, João Batista. A proteção jurídica do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994.
234
Nesse sentido o voto proferido pela Ministra Nancy Andrighi, do STJ, ao decidir se uma empresa que se
utiliza dos serviços prestados por outra, para implementar sua atividade, estaria inserida no conceito de
“destinatário final”. Estes alguns trechos do voto: “Extrai-se dos autos que a recorrente é qualificada
como destinatária final, já que se dedica à produção de alimentos e que se utiliza dos serviços de
software, manutenção e suporte oferecidos pela recorrida, apenas para controle interno de produção.
Deve-se, portanto, distinguir os produtos adquiridos pela empresa que são meros bens de utilização
interna da empresa daqueles que são, de fato, repassados aos consumidores”. [...] “Assim, ao se utilizar
dos serviços, a empresa produtora de alimentos o fez na qualidade de destinatário final, ou seja, para
fiscalizar a atividade interna da referida empresa, não sendo tais serviços, objetos de nenhuma
transformação. Na verdade, a contratação pelo serviço foi de caracterização final, pois não se vê como
possa existir necessidade em que se utiliza sistemas de informática para que se produz alimentos. Ao
contrário do destacado pelo acórdão recorrido, deve-se aplicar o Código de Defesa do Consumidor ao
processo em análise, já que não houve beneficiamento do serviço prestado para a venda do produto
oferecido pela recorrente”. (STJ, REsp. n. 488.274-MG, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em
22 de maio de 2003. Disponível em <www.stj.gov.br>).
235
Parte do voto do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito no REsp n. 208.793/MS, em que entendeu-se
que a “expressão “destinatário final”, constante da parte final do art. 2º do Código de Defesa do
Consumidor, alcança o produtor agrícola, que compra adubo para o preparo do plantio, à medida que
o bem adquirido foi utilizado pelo profissional, encerrando-se a cadeia produtiva respectiva, não sendo
objeto de transformação ou beneficiamento. [...] A meu sentir, esse cenário mostra que o agricultor
comprou o produto na qualidade de destinatário final, ou seja, para utiliza-lo no preparo de sua terra,
não sendo este adubo objeto de nenhuma transformação. Na verdade, a compra foi de mercadoria com
103
empresa de pescados com relação à fornecedora de águas (REsp n
263229/SP)
236
.
2.3.1.2 São os intermediários consumidores, no sentido legal?
Depois de definidos os limites do termo destinatário final,
problemas como esses, apontados no subtópico acima, mostram-se de fácil
solução.
Se destinatário final é aquele que efetivamente coloca fim à
cadeia de produção, pois não adquire produtos com a intenção de revenda,
obviamente, os intermediários não se enquadram nesse conceito. Afinal,
os intermediários realizam transações de intermediação; são comerciantes,
portanto.
James Marins advoga entendimento diverso. Ao tratar dessa
questão, escora-se no art. 17 do CDC, que equipara as vítimas do fato do
produto e do serviço a consumidores. Segundo o jurista, isso apenas
utilização final, ou seja, para o preparo da terra em que seriam plantadas as sementes de arroz
sequeiro. Como destacou o Acórdão recorrido, o “apelado adquiriu o adubo como consumidor final,
isto é, para utilizar o produto na adubação do solo”. O adubo é consumido pelo agricultor, não sendo
matéria-prima destinada a outro consumidor; não há beneficiamento do adubo para revenda. Não se
pode afirmar que o adubo seja incorporado ao produto agrícola. Na verdade, ele é, apenas, necessário
ao produtor para que seja feito plantio, tal e qual um veículo comprado pelo produtor é necessário ao
escoamento da produção e não é transformado ou beneficiado para revenda. Como assinala João
Batista de Almeida, a definição legal não inclui o intermediário que “é aquele que compra com o
objetivo de revender após montagem, beneficiamento ou industrialização. A operação de consumo deve
encerrar-se no consumidor, que utiliza ou permite que seja utilizado o bem ou serviço adquirido, sem
revenda”. [...] É o que ocorre neste feito: o agricultor utilizou o adubo para o preparo da terra, para
criar condições necessárias ao seu trabalho profissional como agricultor”. (STJ, Terceira Turma, REsp
n. 208.793/MS, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, decisão unânime. Disponível em
<http://www.stj.gov.br>).
236
O STJ decidiu existir relação de consumo entre concessionária de fornecimento de água e empresa que
comercializa pescados. A decisão de segundo grau entendeu inaplicáveis as normas do Código de Defesa
do Consumidor na hipótese, sob o fundamento de que a beneficiária do fornecimento não é destinatária
final, visto que utiliza o produto (água) unicamente em seu processo de industrialização. O STJ, em
recurso especial promovido pela empresa de pescados, de maneira diversa entendeu que o caso em tela
envolvia uma relação de consumo, porquanto a água não pode ser considerada um insumo ou matéria-
prima para transformação ou aperfeiçoamento dos produtos pesqueiros industrializados pela empresa
recorrente; ela é consumidora porque não utiliza a água como produto a ser integrado em qualquer
processo de produção, transformação ou comercialização de outro produto. Acentuou, ainda, o acórdão
que diferente seria se a água fornecida à recorrente incorporasse a qualquer processo químico de
transformação, passasse a integrar um outro produto, e ressaltou não haver relação de consumo quando a
água é utilizada como insumo para a fabricação de bebidas alcoólicas, remédios e outros produtos. (STJ,
Primeira Turma, REsp n 263229/SP, Relator Ministro José Delgado, data do julgamento em 14/11/2000.
Disponível em <http://www. stj.gov.br>).
104
significa estarem nessas condições o intermediário (comerciante) e outras
vítimas (terceiros), mesmo que não participem da relação de consumo
237
.
Data venia, essa não parece ser a melhor solução. Segundo o
art. 17 do CDC, para “os efeitos desta Seção (da responsabilidade pelo
fato do produto ou do serviço), equiparam-se aos consumidores todas as
vítimas do evento”. Ora, para que ocorra determinado evento, antes de
mais nada, deverá existir uma relação de consumo. O evento do
retroaludido artigo advém, assim, de uma relação de consumo
preexistente. Ele nasce dessa relação. O intermediário não participa de
relação de consumo alguma. Ele não retira o produto definitivamente do
mercado; não põe fim à cadeia de produção. Na verdade seu intuito é,
apenas, explorá-lo no comércio. Não há, em casos dessa natureza, como se
enquadrar o comerciante no conceito de consumidor.
Tome, para ilustrar, a construção civil de determinado prédio
que veio a causar lesões aos prédios vizinhos. Nesse exemplo,
primeiramente houve o evento da construção civil que nasceu em virtude
de uma relação de consumo entre o construtor e o dono da obra. Assim,
todas as vítimas (vizinhos) do evento (construção civil) poderão utilizar-
se da Lei 8.078/90 para pleitear ressarcimento de danos, pois são tidas
como verdadeiros consumidores, embora não tenham participado da
relação de consumo responsável pelos danos que vieram a sofrer.
Vale dizer, para antecipar um pouco o estudo, que os
intermediários somente serão concebidos como consumidores numa única
hipótese: quando enquadrados nos termos do art. 29 do CDC.
2.3.1.3 São caracterizadas como consumidoras as pessoas jurídicas que
adquirem produtos ou contratam serviços para fomentar seu negócio?
Sim, as pessoas jurídicas que se valem de produtos, serviços
adquiridos ou contratados para fomentar sua atividade, são caracterizadas
237
MARINS, op. cit., 1993. p. 70.
105
como consumidores, desde que coloquem fim à cadeia produtiva, e não
tenham por intenção a atividade de revenda.
Uma grande empresa, por exemplo, pode adquirir um
computador para implementar sua atividade, sem que isso a coloque em
situação desvantajosa em relação a um indivíduo que adquire o mesmo
produto para seu uso particular. Em caso de ocorrência de vícios ou
acidentes de consumo, ambos serão considerados consumidores, pois são
tecnicamente vulneráveis perante o fornecedor. Um e outro não teriam
como identificar o problema. O computador adquirido pela empresa,
embora utilizado para alcançar melhor desempenho profissional, não será
revendido; será, sim, utilizado por um destinatário final.
Via de conseqüência, pode-se afirmar que destinatário final é,
conforme já explanado, quem adquire ou usa produtos ou serviços sem
intenção de revenda ou comercialização – aí se engloba tanto as pessoas
físicas, quanto as jurídicas. Não há por que diferenciar casos tão
semelhantes, e beneficiar apenas alguns. A interpretação restritiva não
cabe em situações que a lei não prevê.
Semelhante posição é defendida por Sérgio Cavalieri Filho, ao
evidenciar a configuração de relações de consumo naqueles casos em que
os produtos ou serviços são necessários ao desenvolvimento da atividade
lucrativa, a exemplo das máquinas produtoras, instalações, mobiliários,
sistemas de computadores e todos os demais bens indispensáveis ao
funcionamento de uma empresa – são os chamados bens e serviços de
“consumo intermediário”
238
. Sustenta o talentoso jurista que nesses casos
haverá relação de consumo porque a pessoa jurídica utiliza bens e
serviços como destinatária final, e não como intermediária, o que permite
seu enquadramento no art. 2º do CDC; afinal, é inegável que tais bens e
serviços são utilizados no chamado consumo intermediário, e situam-se na
última etapa do processo produtivo, porquanto são retirados de
circulação para o uso privado da empresa, caso em que não age como
fornecedora, produtora ou intermediária – os custos de tais bens e
serviços são repassados ao público, mas não se destinam a ele
239
.
238
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 469.
239
Ibid., p. 469.
106
É certo, como se vê, que o CDC houve por bem afastar as
restrições da legislação alienígena, cuja influência limitou-se à sua
elaboração, e abraçou, conseqüentemente, todas as pessoas físicas ou
jurídicas que adquiram ou utilizem produtos ou serviços como
destinatários finais, mesmo que para o implemento de suas atividades
profissionais.
2.3.2 O primeiro conceito por equiparação legal: a coletividade de
pessoas equiparada ao consumidor
Ao analisar o conceito de consumidor padrão, concluiu-se que a
pessoa, seja ela física seja jurídica, que adquire ou usa produto ou
serviço, sem pretensão de revenda, tem a seu favor a proteção conferida
pelas normas insertas no CDC.
Entretanto, na atualidade, seria insuficiente que a tutela do
consumidor fosse delineada apenas com alicerce nos parâmetros
tradicionais, já ultrapassados em conseqüência das evoluções econômica e
tecnológica. É bem verdade que o nosso ordenamento positivo, civil e
processual civil, com raras exceções, foi sistematizado com o fito de
tutelar titulares devidamente individualizados, de modo que apenas eles
pudessem pleitear tal tutela
240
. Hoje, porém, não há mais que se tratar o
consumidor somente como um ente individual, ou grupos facilmente
identificáveis, a fim de pacificar os conflitos de interesses.
O legislador, atento à evolução social e às necessidades atuais
dos indivíduos, percebeu que os conflitos não mais seriam solucionados
seguindo o esquema clássico. Afinal, os problemas emergentes, não raras
vezes, envolvem a sociedade de massa, e obrigar o rompimento de parte
da estrutura vigente até pouco tempo atrás, para tutelar e assegurar
direitos a uma imensa gama de pessoas determináveis e não
determináveis. Assim, o CDC conferiu instrumentos processuais
adequados, e abriu possibilidade para que essa proteção pudesse ser
realizada de modo que tutelasse toda a coletividade.
240
DONATO, op. cit., 1994. p. 141.
107
O primeiro conceito de consumidor por equiparação legal,
encontra-se descrito no parágrafo único do art. 2.º do CDC. Esse
dispositivo deve ser interpretado em consonância com o caput do art. 2.º,
pois a ele está vinculado. Em decorrência disso, ao lado dos consumidores
individuais, a norma jurídica confere à coletividade de pessoas, ainda que
indetermináveis
241
e que hajam intervindo nas relações de consumo (art.
2º, parágrafo único, do CDC), a sua proteção, equiparando-a àquela
outorgada ao consumidor individualmente considerado (padrão). Nesse
viés, com base no conceito do consumidor coletivo, exarado no parágrafo
único do art. 2.º, reconhece-se à coletividade a garantia de proteção de
seus direitos, não mais individualmente, mas na sua universalidade, ou
seja, considera o conjunto de consumidores de produtos ou serviços, ou
mesmo o grupo, classe ou categoria deles
242
.
Exemplo recente, que bem caracteriza essa hipótese, é aquele
cuja envolvida é uma grande fornecedora de veículos: a General Motors.
Essa empresa comercializou, no ano de 1999, veículos da marca Corsa e
Tigra com defeitos no cinto de segurança, que foram responsáveis pela
morte de duas pessoas. A grande quantidade de clientes que adquiriram
tais marcas de veículos aumenta as chances de acidentes de consumo.
Dessa forma, com fundamento na norma legal ora sob análise, mediante a
substituição processual por aqueles entes legitimados, discriminados no
art. 82 do CDC, seria possível o ingresso em nome próprio, com ação
coletiva, para reparar os danos individualmente sofridos por essa
coletividade
243
.
Houve, pois, uma sensível ampliação do conceito padrão para
abrigar toda a coletividade, determinável ou não, desde que esta
intervenha na relação de consumo, considerando-a consumidora e,
241
O Código de Defesa do Consumidor protege tanto os interesses difusos quanto os coletivos. Nery Júnior
esclarece a diferença dessas duas figuras: De todo modo está praticamente encaminhado um critério de
discriminação entre as duas figuras, no sentido de considerar-se difuso aquele interesse que atinge
número indeterminado de pessoas, ligadas por relação meramente factual, enquanto que seriam
coletivos aqueles outros interesses pertencentes a um grupo ou categoria de pessoas determináveis,
ligadas por uma mesma relação jurídica base. Assim, a indeterminação dos titulares seria a
característica básica dos interesses difusos, enquanto que a determinação acusaria de coletivo o
interesse. (NERY JÚNIOR, op. cit., 1995. p. 626).
242
DONATO, op. cit., 1994. p. 142.
243
Informações obtidas e disponíveis no site Universo Jurídico <http://www.uj.com.br/online/noticias/
noticias_show.asp?id_noticia=4143>. Acessado em 30/01/2002.
108
portanto, colocada sob a proteção da Lei 8.078/90. A coletividade
equipara-se ao consumidor individual no que tange à tutela de seus
interesses comuns, sob a ótica da homogeneidade e origem.
Além disso, a coletividade ganhou, ao valer-se dos art. 81,
parágrafo único, e 82 da Lei 8.078/90, mecanismos para pleitear, por
intermédio de determinados entes também transcritos na própria
legislação, a prestação jurisdicional de interesses individuais de forma
coletiva, o que, sem dúvida, facilitará a tutela do direito do consumidor.
Vale, ainda, esclarecer que essa verdadeira equiparação legal da
coletividade ao consumidor individual deverá respeitar os demais
elementos do conceito analisado inicialmente, quais sejam, o elemento
objetivo (objeto) – produtos ou serviços –, e o elemento teleológico
(finalidade) – destinação final dos produtos e serviços. Afinal, estar-se-á
diante de um conceito que amplia somente o elemento subjetivo (sujeito
consumidor), e mantém intacto o restante da substância do conceito
prescrito no caput do art. 2º do CDC. Isso significa que permanece,
mesmo nesse conceito mais extenso, a figura contratual, seja ela direta
seja indireta. Afinal, a coletividade, determinável ou não, nesse caso,
deverá, para ser tutelada pela Lei 8.078/90, igualmente adquirir ou
utilizar produtos ou serviços como destinatária final.
2.3.3 O segundo conceito por equiparação legal: as vítimas de
acidentes de consumo equiparadas aos consumidores
De inquestionável importância a definição de consumidor por
equiparação legal, prescrita no art. 17 do CDC. Aqui, estar-se-á diante de
uma interessante inovação conferida pelo legislador, que outorga à vítima
envolvida num acidente de consumo a qualidade de consumidor, mesmo
que não tenha ela adquirido ou utilizado o produto ou serviço. Recorde-se
o teor da norma:
Art. 17. Para os efeitos dessa seção, equiparam-se aos
consumidores todas as vítimas do evento.
109
Nessa seara, pouco importa se o tutelado qualifica-se como
destinatário final do produto ou do serviço, ou mesmo se participou
efetivamente da relação de consumo. Como resultado, para efeito da
Seção II (Da Responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço), serão
tidos por consumidores todos aqueles que, de alguma forma, tornaram-se
vítimas do fato do produto ou do serviço. A redação do artigo é
clarividente, não deixa margens a dúvidas: consumidores são também
aqueles que não participaram da relação de consumo, mas acabaram como
vítimas dela; basta, pois, a existência do evento danoso, causado pelo fato
do produto (ou do serviço), decorrente de uma relação de consumo.
A existência de um acidente de consumo está condicionada à
ocorrência de determinada relação de consumo. Sem importância o fato de
a vítima não ter adquirido produtos ou contratado serviços para que seja
equiparada ao consumidor. Imprescindível apenas que tenha existido
anteriormente a relação de consumo, mesmo que a vítima a desconheça, e
que dela originem-se danos à sua incolumidade física ou psíquica.
Sublinhe-se que a existência de uma relação de consumo é imperativa;
dispensa-se, porém, que a vítima tenha dela participado.
Aponte-se que tal equiparação legal também é extensiva quanto
ao elemento subjetivo; afinal, todas as vítimas do evento equiparam-se
aos consumidores. Assim, consumidores, ainda segundo o art. 17, serão
tanto as pessoas físicas, as pessoas jurídicas, como até os entes
despersonalizados.
Contudo, essa norma não autoriza uma interpretação que
beneficie a figura do comerciante, verdadeiro intermediário de produtos.
Na equiparação legal feita pelo art. 17, sempre haverá uma relação de
consumo preexistente em curso, donde um terceiro, consumidor padrão,
despontar-se-á.
Tome-se, a título de exemplo, um intermediário (comerciante)
que compra produtos venenosos, com vícios de acondicionamento, e acaba
tendo prejuízo para sua saúde; ele não será considerado um consumidor. E
isso porque esse intermediário comprou tais produtos com a finalidade de
comercialização ou revenda; nem de longe é ele um destinatário final. Se
a aplicação do art. 17 encontra como pressuposto indissociável a
110
configuração de uma relação de consumo preexistente, no caso do
intermediário, essa relação inexiste. O comerciante, vítima do evento, não
participou de relação de consumo alguma nem foi mero espectador e
vítima desta quando realizada por outrem. Portanto, nesse caso específico,
o comerciante lesado não terá amparo no CDC.
Por outro lado, imagine-se uma aeronave que cai em área
urbana, atinge diversas casas e lesa várias pessoas. Ora, existiu aí uma
relação de consumo entre os passageiros e a empresa aérea (relação de
consumo preexistente) e, em função dela, adveio um acidente de consumo
responsável pelos danos sofridos, não somente pelos passageiros
(consumidores padrão), mas também por aqueles (consumidores por
equiparação legal) que sequer sabiam que sobrevoava um avião, naquele
momento, sobre suas cabeças. Houve, portanto, uma relação de consumo
anterior que, embora alheia aos terceiros lesados, é de suma importância
para equipará-los a consumidores, segundo o prescrito no art. 17 da Lei
8.078/90.
Eduardo Gabriel Saad, após delinear sua interpretação acerca do
art. 17 do CDC, apresenta outros exemplos pertinentes:
O art. 17 faz com que o manto protetor estendido pelo Código
sobre o consumidor alcance também aquele que – sem ter
participado da relação de consumo – vem a sofrer quaisquer
danos causados por defeitos de um produto. Se as crianças de
um grupo familiar são intoxicadas por produto adquirido por
outrem, ficam equiparadas ao consumidor para os efeitos do
Código sob comentário. Se várias pessoas são atropeladas e
feridas por um veículo que se desgovernou em virtude de
defeito em peça que o compõe, ficam elas autorizadas a fundar-
se neste Código para exigir a reparação necessária do
fabricante do veículo. Estes dois exemplos demonstram que o
art. 17 promoveu, de fato, a extensão do conceito de
consumidor para os efeitos do Código de Defesa do
Consumidor
244
.
Portanto, conforme assevera Antônio Herman de Vasconcellos e
Benjamin, são “as vítimas de que trata esse dispositivo legal, verdadeiros
“bystanders”, isto é, meros espectadores, que casualmente foram
atingidos pelo defeito provocador do acidente de consumo”
245
.
244
SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao código de defesa do consumidor. 5. ed. São Paulo: LTr, 2002.
p. 285.
245
BENJAMIN, op. cit., 1988. p. 8.
111
2.3.4 O terceiro conceito por equiparação legal: as vítimas de práticas
abusivas
Dando fecho ao rol de conceitos de consumidor por equiparação
legal, o art. 29 do CDC apresenta uma definição alargada, já que nivela a
consumidores todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas
previstas nos Capítulos V (Das Práticas Comerciais e VI (Da Proteção
Contratual) da Lei n. 8.078/90. Nessa ótica, o art. 29 é uma disposição
especial, aplicável às seções sobre oferta (art. 30 a 35), sobre publicidade
(arts. 36 a 38), práticas abusivas (arts. 39 a 41), cobrança de dívidas (art.
42), bancos de dados e cadastros de consumidores (arts. 43 e 44), e que se
diz aplicável também ao capítulo dedicado à “Proteção contratual”
(Capítulo VI)
246
.
Nessa seara, é desnecessário o respeito aos elementos
constitutivos do conceito de consumidor padrão (art. 2.º) e, muito menos,
à obrigatoriedade de ocorrência de algum dano a determinada vítima, a
par do que prevê o art. 17 do CDC. É suficiente, para nessa categoria se
enquadrar, a simples exposição do consumidor àquelas práticas citadas no
parágrafo anterior.
A esse respeito, esclarecedora a lição de Cláudia Lima Marques,
Antônio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem:
O art. 29 supera, portanto, os estritos limites da definição
jurídica de consumidor para imprimir uma definição de política
legislativa. Para harmonizar os interesses presentes no mercado
de consumo, para reprimir eficazmente os abusos do poder
econômico, para proteger os interesses econômicos dos
consumidores finais, o legislador colocou um poderoso
instrumento nas mãos daquelas pessoas (mesmo agentes
econômicos) expostas às práticas abusivas. Estas, mesmo não
sendo “consumidores stricto sensu”, poderão utilizar as normas
especiais do CDC, seus princípios, sua ética de
responsabilidade social no mercado, sua nova ordem pública,
para combater as práticas comerciais abusivas!
247
Ressalte-se que as pessoas referidas nesse artigo podem ser
determináveis ou não. É indiferente que estejam elas identificadas
246
MARQUES; BENJAMIN; MIRAGEM, op. cit., 2006. p. 451.
247
Ibid., p. 451.
112
individualmente, ou façam parte de uma coletividade indeterminada,
integrada por pessoas físicas, judicas ou ambas. A norma impõe um
único requisito para a equiparação: que tais pessoas estejam expostas às
práticas comerciais e contratuais abrangidas pelo Código
248
.
Ao contrário de outros dispositivos do mesmo Código, no caso
específico do art. 29, os intermediários ou comerciantes poderão ser
equiparados aos consumidores e, assim, se utilizarem, sempre que
expostos às práticas comerciais ou contratuais tratadas nos Capítulos V e
VI, das vantagens conferidas pelas normas consumeristas, quando
pleitearem a satisfação de seus direitos lesados. Aqui não há impedimento
algum para essa equiparação. O próprio art. 29 refere-se a “todas as
pessoas” e, dessa forma, agiu o legislador com o objetivo de coibir
determinados fenômenos do mercado que possuem enorme potencial
danoso.
Sem dúvida, esse é o conceito por equiparação legal mais
abrangente: atinge todos aqueles, pessoas determináveis ou
indetermináveis, que estejam simplesmente expostos às práticas
comerciais e/ou contratuais previstas no Código. Trata-se de um
entendimento cuja maior relevância se encontra situada no controle
preventivo e abstrato dessas práticas. Logo, o implementador (juízes,
representantes do Ministério Público e advogados) não deve aguardar a
efetiva contratação da relação de consumo, ou seu exaurimento, para, só
então, atuar. E isso por se estar diante de atividades que configuram
enorme potencial danoso, de caráter coletivo ou difuso. De tal sorte, mais
econômico e justo evitar que o gravame venha a se materializar, mediante
uma atuação preventiva imediata e eficaz
249
.
3 Os interesses transindividuais
Entre o interesse público e o interesse privado, situam-se os
denominados interesses transindividuais ou coletivos lato sensu, os quais
são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas. Eles
248
BENJAMIN, op. cit., 1988. p. 244.
249
Ibid., p. 224.
113
excedem o âmbito estritamente individual, mas não cheguam propriamente
a constituir interesses de caráter público
250
.
A defesa dos interesses dos consumidores em juízo poderá ser
exercida tanto de forma individual como a título coletivo. E isso porque
hoje se vive uma realidade francamente coletiva, distinta e bem mais
complexa do que aquela em que as ações individuais se ressaltavam,
simbolizadas na clássica relação entre Tício versus Caio, resolúveis em
termos de jurisdição singular
251
.
Consoante leciona Hugo Nigro Mazzilli, o CDC sistematizou e
distinguiu os interesses transindividuais segundo a sua origem: a) se o
que une interessados determináveis, com interesses divisíveis, é a origem
comum da lesão, estar-se-á diante dos interesses individuais homogêneos;
b) se o que une os interessados determináveis é a circunstância de
compartilharem a mesma relação jurídica indivisível, ter-se-ão interesses
coletivos stricto sensu; e c) se o que une interessados indetermináveis é a
mesma situação de fato mas o dano é individualmente indivisível, os
interesses serão tidos por difusos
252
.
Na mesma linha de raciocínio, o professor Kazuo Watanabe
ensina que a tutela coletiva dos consumidores abrange dois tipos de
interesses ou direitos:
253
a) os essencialmente coletivos, denominados de
“difusos”, definidos no inciso I do parágrafo único do art. 81 do CDC, e
os “coletivos” propriamente ditos, conceituados no inciso II daquela
mesma norma; e b) os de natureza coletiva apenas na forma em que são
tutelados, denominados de “individuais homogêneos” (art. 81, III, do
CDC)
254
.
250
MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 45-46.
251
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos e coletivos. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.
747, p. 69, jan. 1998.
252
MAZZILI, op. cit., 2003. p. 46.
253
Conforme ensina o mestre Rodolfo de Camargo Mancuso, não se trata de nenhuma
superfetação terminológica ou preciosismo jurídico, mas, ao contrário, trata-se da necessidade de
normatizar, diversamente, realidades efetivamente distintas, embora locadas no grande gênero
“interesses metaindividuais”, assim compreensivo das espécies “difuso”, “coletivo em sentido estrito”
e “individual homogêneo. (MANCUSO, op. cit., 1998. p. 70).
254
GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e; FINK, Roberto; FILOMENO,
José Geraldo Brito; WATANABE, Kazuo; NERY JÚNIOR, Nelson; DENARI, Zelmo. Código
brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. São Paulo e Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1999. p. 718.
114
Na realidade, da mesma forma que os chamados interesses
individuais comportam subespécies (“interesse simples ou de fato”,
“meras expectativas”, “interesses reflexamente protegidos”), também se
passa com os chamados interesses metaindividuais, supra-individuais ou
transindividuais, que igualmente se decompõem em alguns subtipos:
interesses difusos, coletivos em sentido estrito, e individuais homogêneos
(Lei 8.078/90, art. 81, I, II e III)
255
.
Decerto, a evolução aqui é visível. A submissão do direito
subjetivo a um titular determinado, ou ao menos determinável, impediu,
por muito tempo, que os interesses pertinentes a uma coletividade e a
cada um de seus membros, pudessem ser havidos por juridicamente
tuteláveis (interesses relacionados com o meio ambiente, com a saúde,
com a educação, com a qualidade de vida, etc.)
256
. Esse progresso
consolidou-se em razão da edição de leis ordinárias que objetivam o
amparo de interesses coletivos lato sensu, a exemplo da Lei 7.347/85, que
rege a ação civil pública.
Já a tutela da coletividade de consumidores veio de forma literal
no corpo normativo da Lei 8.078/90. O parágrafo único do art. 2º e o art.
29 trouxeram normas expressas a respeito disso, impondo que se
equiparam a consumidores todas aquelas pessoas, sejam determináveis ou
não, ou mesmo a coletividade de pessoas, que efetivamente hajam
intervindo nas relações de consumo ou estejam sujeitas às práticas
comerciais previstas nos Capítulos V e VI do CDC
257
.
Por serem interesses desprovidos de um titular específico e
possuírem enorme relevância social, exigem tratamento jurisdicional
diferenciado, cujas mais diversas particularidades devem ser levadas em
consideração.
255
MANCUSO, op. cit., 1998. p. 69.
256
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit.,
1999. p. 719.
257
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit.,
1999. p. 719.
115
3.1 Os interesses difusos
Prevê o inciso I do art. 81 do CDC serem interesses difusos “os
transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas
indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.
Os interesses difusos são aqueles que atingem categoria
praticamente indeterminável de indivíduos. De certa forma, são comuns a
toda uma categoria de pessoas não determináveis. Segundo Hugo Nigro
Mazzilli,
os interesses difusos compreendem grupos menos determinados
de pessoas (melhor do que pessoas indeterminadas, são antes
pessoas indetermináveis), entre as quais inexiste vínculo
jurídico ou fático preciso. São como um feixe ou conjunto de
interesses individuais, de pessoas indetermináveis, unidas por
pontos conexos
258
.
E continua:
Advirta-se, porém, que, embora o CDC se refira a ser uma
situação fática o elo comum entre os lesados que compartilham
o mesmo interesse difuso, é evidente que essa relação fática
como sempre ocorre, aliás, com qualquer relação dessa
natureza – subordina-se, também, a uma relação jurídica;
entretanto, no caso dos interesses difusos, a lesão ao grupo não
decorrerá da relação jurídica em si, mas sim da situação fática
resultante
259
.
Especialmente com relação ao interesse do consumidor, esse “
será verdadeiramente difuso se houver absoluta impossibilidade de se
identificarem as pessoas ligadas pelo mesmo laço fático ou jurídico,
decorrente da relação de consumo”
260
.
Diante de tais interesses, os entes relacionados no art. 82
poderão obter, por intermédio de um único processo, benefícios a
inúmeros consumidores lesados. A sentença proferida fará coisa julgada
erga omnes, conforme prescreve o art. 103 do CDC. Nesse sentido,
Rodolfo de Camargo Mancuso professa que
258
MAZZILI, op. cit., 2003. p. 48.
259
Ibid., p. 48.
260
Id., Interesses coletivos e difusos. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 668, p. 48, jun. 1991.
116
nos processos de tipo coletivo há um agente autorizado a
pleitear em proveito de coletividades mais ou menos vastas, ou
mesmo da comunidade como um todo, de sorte que os efeitos
da tutela judicial se projetarão ao longo da correspondente
extensão do interesse metaindividual objetivado difuso;
coletivo em sentido estrito; individual homogêneo, conforme a
espécie
261
.
Apontem-se alguns exemplos de interesses difusos: a)
publicidade enganosa ou abusiva, veiculada pela imprensa, e que afeta
uma multidão incalculável de pessoas, sem que entre elas exista qualquer
relação-base; b) lançamento no mercado de produtos com alto grau de
periculosidade à saúde ou à segurança dos consumidores, situação vedada
pelo art. 10 do CDC
262
; c) dano decorrente da contaminação de um curso
de água; o dano causado pela rotulagem irregular de alimentos ou
medicamentos; d) construção de um shopping center em determinado
bairro residencial, a qual traz dificuldades para o trânsito local; e) queima
de cana-de-açúcar, que produz não só o impacto ambiental, como a
perturbação da saúde das pessoas e ocasiona problemas respiratórios ou
sujeira em cidades
263
.
3.2 Os interesses coletivos em sentido estrito
Em sentido mais abrangente, a expressão interesses coletivos
atinge a todos os interesses transindividuais, de grupos, classes ou
categorias de pessoas. E é justamente nessa concepção alargada que a CF
se referiu a direitos coletivos, em seu Título II, ou a interesses coletivos,
no seu art. 129, III; também no mesmo ponto de vista é que o próprio
CDC disciplina a ação coletiva, que se presta à defesa de direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos
264
.
Nesse subtópico, contudo, cabe abordar uma das subespécies de
interesses coletivos, a saber, o interesse coletivo em sentido estrito,
também referido pelo CDC em seu art. 81, II.
261
MANCUSO, op. cit., 1998. p. 68.
262
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit., 1999.
p. 719.
263
LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 94-95.
264
MAZZILI, op. cit., 2003. p. 50.
117
O interesse ou direito coletivo stricto sensu é aquele que atinge
categoria determinada ou pelo menos determinável de indivíduos
265
,
ligados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.
Rodolfo de Camargo Mancuso, com peculiar clareza, esclarece:
Assim, é que nos difusos e nos coletivos em sentido estrito o
caráter coletivo lhes é imanente, lhes integra a própria
essência, já que pelos respectivos conceitos legais (incs. I e
II), se vê que o objeto se apresenta indivisível e os sujeitos
concernentes são, em princípio, indeterminados. A diferença
específica fica por conta de que, nos difusos, por se reportarem
a meras situações de fato, aquelas notas revelam-se absolutas
(sujeitos absolutamente indeterminados e objeto absolutamente
indivisível), ao passo que nos coletivos em sentido estrito elas
se relativizam, porque os sujeitos – pela circunstância de
estarem ligados entre si ou com a parte contrária por uma
relação jurídica base – já comportam certa visualização ao
interior de certos segmentos da sociedade civil, ou seja, em
grupos, categorias ou classes, na dicção legal
266
.
A sociedade mercantil, o condomínio, a família, os entes
profissionais e o sindicato, por exemplo, são entidades que dão margem
ao surgimento de interesses comuns, nascidos em função de uma relação
base que une os membros das respectivas comunidades, e que, não se
confundindo com os interesses estritamente individuais de cada sujeito,
permitem a sua identificação
267
. Apontem-se, para ilustrar, algumas
hipóteses que se caracterizam como de interesses coletivos em sentido
estrito: a) o aumento ilegal das prestações de um consórcio; b) o direito
dos alunos de certa escola de terem a mesma qualidade de ensino em
determinado curso; c) o aumento abusivo das mensalidades de planos de
saúde, relativamente aos contratantes que já assinaram contratos; d) o
dano causado a acionistas de uma mesma sociedade ou a membros de uma
mesma associação de classe
268
.
265
MANCUSO, op. cit., 1998. p. 48.
266
Ibid., p. 70.
267
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit., 1999.
p. 151.
268
LENZA, op. cit., 2003. p. 100.
118
3.3 Os interesses individuais homogêneos
Os interesses individuais homogêneos são aqueles decorrentes
de uma origem comum.
Conforme a literalidade da lei, possuem uma natureza
individual, embora apresentem em comum com as outras espécies
(interesses difusos e coletivos em sentido estrito),
notas da uniformidade e da larga expressão numérica dos
sujeitos concernentes. Mas, enquanto nos difusos e nos
coletivos em sentido estrito essa uniformidade decorre de sua
essência coletiva, já nos individuais homogêneos ela advém de
circunstância externa, contingencial ou episódica, qual seja o
fato deles decorrerem de uma origem comum. Assim, numa
palavra, os difusos e os coletivos em sentido estrito são
essencialmente coletivos, ao passo que os individuais
homogêneos recebem tratamento processual coletivo pelo modo
uniformizado como se exteriorizam, assim parecendo ao
legislador que sua tutela judicial seria mais adequada e
eficaz
269
.
Ressalte-se que tanto os interesses individuais homogêneos
quanto os difusos originam-se de circunstâncias de fato comuns. Todavia,
os titulares de interesses difusos são indetermináveis, e o objeto de seu
interesse é indivisível. Já os titulares de interesses individuais
homogêneos são determinados, ou determináveis, e o dano ou a
responsabilidade caracterizam-se por sua extensão divisível ou
individualmente variável entre os integrantes do grupo
270
.
Pedro Lenza apresenta uma série de exemplos de interesses
individuais homogêneos: a) os compradores de um lote de carros
defeituosos (vícios de fabricação), de modo que a ligação entre essas
pessoas determinadas é decorrente, em última análise, do fato de terem
adquirido produtos de idêntica marca com imperfeições; b) o caso da
explosão do Shopping de Osasco, em que inúmeras pessoas sofreram
danos; c) os danos decorrentes de consumo de alimento deteriorado, que
venham a gerar intoxicação em muitos consumidores; d) os danos sofridos
269
MANCUSO, op. cit., 1998. p. 70.
270
MAZZILI, op. cit., 2003. p. 51.
119
por vários consumidores em razão da diminuição da produção e vendas de
medicamentos de uso contínuo e obrigatório, para forçar o aumento de
seus preços (prática abusiva); e) os investidores em alguma modalidade de
aplicação financeira; f) as pessoas contaminadas com o vírus da AIDS, em
razão de transfusões de sangue realizadas num determinado hospital
público
271
.
4 O fornecedor de produtos e serviços
O fornecedor também goza de uma definição de larga
abrangência na Lei 8.078/90. É toda pessoa, seja ela física ou jurídica,
pública ou privada, nacional ou estrangeira, como também a figura dos
entes despersonalizados
272
.
No que se refere, especificamente, às pessoas jurídicas, a lei
não faz exclusão alguma. Nas palavras sempre precisas de Rizzatto
Nunes,
o CDC é genérico e busca atingir todo e qualquer modelo. São
fornecedores as pessoas jurídicas públicas ou privadas,
nacionais ou estrangeiras, com sede ou não no País, as
sociedades anônimas, as por quotas de responsabilidade
limitada, as sociedades civis, com ou sem fins lucrativos, as
fundações, as sociedades de economia mista, as empresas
públicas, as autarquias, os órgãos da Administração direta
etc
273
.
É inegável que hoje os fornecedores se organizam em cadeias,
isto é, são vários. Não se sabe quem é o responsável por este produto ou
serviço colocado ou disponibilizado no mercado de consumo. Então, a
saída foi ampliar o campo de aplicação e definir uma categoria nova de
fornecedor, em que ele não é um indivíduo, mas todo grupo também.
Assim, quando se utiliza, por exemplo, a expressão fornecedor de
serviços, está se referindo a todos eles, ou seja, é o médico que opera mas
também a operadora de planos privados que o credenciou; é o hospital que
271
LENZA, op. cit., 2003. p. 101.
272
O conceito de fornecedor atinge, inclusive, as fundações e sociedades sem fins lucrativos desde que
empenhadas em alguma atividade, habitual ou eventual, no mercado de consumo.
273
NUNES, op. cit., 2000. p. 90.
120
deu o lugar para ali acontecer a intervenção; é o grupo cirúrgico, sempre
em grande número – muitos deles não conveniados; é o fabricante do
remédio; enfim, todos que se organizaram com a finalidade de fomentar o
consumo
274
.
Entretanto, embora amplo, o conceito exige um requisito
essencial: a expressão atividade é, sem dúvida, a pedra de toque da
definição de fornecedor. Embora este possa ser qualquer pessoa ou ente,
275
somente será assim enquadrado na lei quando desenvolver alguma
atividade negocial no mercado de consumo, seja de maneira habitual ou
eventual. Diante disso, todo aquele que produz, monta, cria, constrói,
transforma, importa, exporta, distribui ou comercializa produtos ou presta
serviços, com certa habitualidade, visando a lucro, será considerado um
fornecedor. Tome, a título de ilustração, um médico que vende livros não
mais utilizados; ele não será considerado um fornecedor, porquanto não
pratica a atividade sequer eventualmente. Por outro lado, se o mesmo
médico fizer uso desta prática (venda de livros usados) rotineiramente ou,
ao menos, mantendo alguma habitualidade, será, induvidosamente, um
fornecedor.
Ainda importante esclarecer, para evitar equívocos
interpretativos, a intenção de o legislador utilizar, em normas diversas,
expressões distintas voltadas a identificar fornecedores também distintos.
Isto é, algumas vezes ele se valeu das palavras fabricante, produtor,
importador ou comerciante e, em outras, preferiu empregar unicamente o
termo fornecedor. Ao elucidar a questão, Rizzatto Nunes esclarece que o
termo fornecedor é gênero
do qual fabricante, produtor, construtor, importador e
comerciante são espécies. Ver-se-á que, quando a lei
consumerista quer que todos sejam obrigados e/ou
responsabilizados, usa o termo “fornecedor”. Quando quer
designar algum ente específico, utiliza-se de termo designativo
particular: fabricante, produtor, comerciante, etc
276
.
274
MARQUES, Cláudia Lima. Responsabilidade civil nas relações de consumo. In: Encontro Nacional de
Responsabilidade Civil, 30 mar./01abr. 2000, Recife/PE. Escola de Advocacia de Recife, 2000. p. 271-
277.
275
Rizzatto Nunes leciona que se enquadram na figura do ente despersonalizado a massa falida e as
pessoas jurídicas de fato, incluindo-se, nessas últimas, o camelô, quando, obviamente, não caracterizar
uma pessoa jurídica regular. (NUNES, op. cit., 2000. p. 93).
276
NUNES, op. cit., 2000. p. 94.
121
Dando fecho à idéia, o fornecedor caracteriza-se como toda
pessoa física, jurídica ou ente despersonalizado, que pratica atos
negociais, de modo a oferecer no mercado produtos ou serviços, de
maneira habitual ou eventual, atento a uma finalidade econômica.
4.1 A figura do fornecedor aparente no código de defesa do
consumidor
A análise literal do art. 3.º do CDC evidencia que o legislador
utilizou-se de uma definição expressa voltada, tão-somente, para o
chamado fornecedor real, isto é, aquele que participa do processo de
fabricação ou produção do produto acabado, de uma parte componente ou
de matéria-prima
277
.
Indaga-se, à vista disso, se o Código de Defesa do Consumidor
abarca aquele fornecedor que, embora não seja o real, é o responsável
pelo produto por se apresentar como tal, porquanto afixou nele um sinal
caracterizador de seu nome, razão social, identificação ou marca. Dever-
se-á, diante disso, equiparar o fornecedor aparente ao fornecedor real?
Não são poucas as empresas que se utilizam de produtos (bolsas,
cintos, sapatos, calças, blusas, gêneros alimentícios, etc.) fabricados ou
produzidos por terceiros – os quais quase sempre, permanecem anônimos
–, e afixam a eles, no final e quando acabados, sua marca ou
identificação. Cria-se na mente do consumidor uma aparência, uma idéia
de que, na realidade, aquele produto foi produzido ou fabricado pelo
fornecedor aparente.
Ao comercializar um produto sob a aparência de que o teria
fabricado, já que o identificou com a sua marca e, até mesmo,
incrementou a sua venda mediante a veiculação de publicidade, é óbvio
que o fornecedor aparente se torna responsável por quaisquer
imperfeições que ele, o produto, vier a apresentar. A confiança que essa
aparência cria no espírito do consumidor se apresenta como
277
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito
brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 75.
122
fundamentação suficiente para a equiparação do fornecedor real ao
aparente.
Ademais, não se pode olvidar, é o fornecedor aparente quem
mais lucra com a exploração do produto comercializado – não a pessoa,
física ou jurídica, que o fabricou. Logo, nada mais justo que seja ele
também responsável por eventuais imperfeições que tal produto venha a
apresentar, sobretudo naqueles casos em que elas acarretam danos aos
consumidores. Rizzatto Nunes, ao demonstrar ser o risco da atividade
característica fundamental da produção na sociedade capitalista do
sistema jurídico constitucional brasileiro, assevera que a
[...] Constituição Federal admite o livre exercício da atividade
econômica e, ao fazê-lo, impõe o risco ao empreendedor.
Aquele que quer promover algum negócio lícito pode fazê-lo,
mas deve saber que assume integralmente o risco de a
empreitada dar certo ou não. E o Código de Defesa do
Consumidor, corretamente, assimilou do texto constitucional
essa imposição
278
.
Para concluir, é importante lembrar que a responsabilidade no
Código de Defesa do Consumidor é solidária (art. 7º, parágrafo único e
art. 25, §1º). Não parece errado afirmar que o fornecedor aparente,
embora não tenha fabricado o produto, tem responsabilidade de certificar-
se que este, a ser por ele comercializado, é seguro, e não apresenta
imperfeições de qualidade ou quantidade, capazes, inclusive, de gerar
acidentes de consumo. Não basta, somente, colocá-lo no mercado; detém o
fornecedor, real ou aparente, o dever legal de garantir a sua qualidade e,
principalmente, evitar riscos à saúde e à segurança dos consumidores; se
assim não agir, será responsabilizado, independentemente de culpa pelos
danos suportados pelos consumidores (art. 6º, VI, do Código de Defesa do
Consumidor).
278
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Aplicação do CDC nos contratos de leasing. Revista Meio Jurídico n.
46, p. 22, jun. de 2001.
123
5 Conceito de produto e a expectativa do consumidor
A definição de produto, indicada pelo CDC, é amplíssima, e
abrange quaisquer bens, móveis ou imóveis, materiais ou imateriais.
Sérgio Cavalieri Filho – ao citar o Ministro José Augusto
Delgado –, acertadamente, leciona que o conceito de produto deve se
apresentar elastecido, entendendo-se como tal toda utilidade produzida;
ele designa os proveitos materiais tirados do solo e subsolo ou fornecidos
direta ou indiretamente por eles, como os que se fabricam ou são
manufaturados pela ação do homem, pela transformação de uma coisa em
outra e pelo trabalho, envolvendo, por conseqüência, as materiais e as
imateriais, as naturais e as industriais
279
.
O objetivo do produto é, obviamente, satisfazer necessidades e
desejos das pessoas. Segundo a definição dada por Philip Kotler, um
“produto é algo que pode ser oferecido para satisfazer a uma necessidade
ou desejo”
280
.
Em obra de peso, Fernando Gherardini Santos deixa claro que o
consumidor, ao adquirir determinado produto, não está, na verdade,
adquirindo, puramente, o produto em si. Ele busca o benefício que este
poderá trazer-lhe
281
. Por exemplo, compra-se um carro porque ele fornece
transporte e um forno microondas, pois proporciona cozimento rápido
282
.
Logo, as pessoas compram não o que o produto é, mas o que
elas querem que ele seja, isto é, adquirem um benefício consubstanciado
em um produto. Por isso, é ele sempre uma combinação de dois aspectos:
um tangível e um intangível, porquanto traduz-se a ser algo físico somado
à sua capacidade de satisfazer uma necessidade humana
283
.
279
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 470.
280
KOTLER, Philip. Administração de marketing: análise, planejamento, implementação e controle. 9. ed.
Tradução de Ailton Bomfim Brandão. São Paulo: Atlas, 1998. p. 28.
281
SANTOS, Fernando Gherardini. O direito do marketing. São Paulo: RT, 2000. p. 24.
282
KOTLER, op. cit., 1998. p. 28.
283
SANTOS, op. cit., 2000. p. 24-25.
124
6 Uma maior aproximação do microssistema consumerista:
apontamentos sobre o art. 1.º do CDC
284
6.1 Esclarecimentos iniciais
Uma leitura desavisada do art. 1º da Lei 8.078/90
285
poderá
conduzir o intérprete à falsa impressão de que o aludido texto normativo,
tão-só retrata um programa, ou melhor, revela uma exposição sumária do
objetivo maior do CDC.
Embora seja este um de seus papéis – enunciar que a Lei
8.078/90 estabelece preceitos de proteção e defesa do consumidor –, sua
serventia não se restringe a tal função. Ao contrário, a referida norma, se
bem compreendida, leva o leitor à concepção do motivo pelo qual o
Diploma consumerista foi criado e, por conseqüência, de sua real
importância para a sociedade moderna.
Mas não é só isso: o artigo em comento informa ao operador do
direito a natureza cogente da Lei 8.078/90; determina questões
diretamente relacionadas com sua aplicação no direito pátrio; define sua
obrigatoriedade e rigidez como norma imperativa; estabelece regra que
soluciona conflitos ocorrentes na esfera do direito intertemporal; e,
finalmente, regula, por meio de uma interpretação sistemática com o
próprio microssistema consumerista, problemáticas atinentes a conflitos
entre leis diversas e o CDC.
Revelar-se-á, neste tópico, o espírito normativo do art. 1º do
CDC, de modo que estabeleça, como resultado, sua importância
funcional
286
para o desvendar das diversas questões ocorrentes no âmbito
das relações de consumo.
284
Esse subtópico foi objeto de publicação na Revista de Direito do Consumidor n. 48, cujo título original
é “Reflexões acerca do art. 1.º do CDC”. Aqui, o texto encontra-se acrescido de novos entendimentos e
algumas alterações pontuais, e se justifica pela complementação e contribuição que traz ao presente
Capítulo.
285
“Art. 1º - O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública
e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inc. XXXII, 170, inc. V, da Constituição Federal e art. 48 de
suas Disposições Transitórias.”
286
As expressões “importância funcional” e “relevância funcional” serão aqui utilizadas como sinônimos
de “utilidade prática”. Busca-se, com tais termos, demonstrar que o art. 1º da Lei 8.078/90, longe de ser
uma norma aberta, sem aplicação prática instantânea, possui serventia concreta no ordenamento jurídico
pátrio.
125
6.2 Um verdadeiro microssistema das relações de consumo
As grandes codificações do século XX tiveram, à época, sua
razão de ser e existir. Conforme preleciona Orlando Gomes, os Códigos
traziam como ideal a formulação de um sistema de regras para reger,
durável e plenamente, a conduta setorial de sujeitos de direito. O mundo
dos Códigos – continua o citado jurista – foi o da segurança, quando os
valores do liberalismo podiam ser traduzidos numa seqüência ordenada de
artigos, para proteção das liberdades civis do indivíduo na sua vida
privada contra as indébitas ingerências do poder político. Dessa
necessidade de garantia – conclui o autor retroaludido, ao transcrever as
lições de Natalino Irti –, nasceu a idéia da imutabilidade da legislação
civil e da perenidade dos institutos jurídicos, principalmente a
propriedade e o contrato
287
.
Não possuem os Códigos, atualmente, a importância que
detiveram outrora. No mundo instável, inseguro e volúvel de hoje, a
resposta normativa não pode ser a transposição para um Código das
fórmulas conceituais habilmente elaboradas no século passado
288
. Como
forma de solucionar os problemas advindos desta novel realidade,
surgiram os chamados microssistemas, verdadeiros “universos
legislativos” de menor porte, com sua própria filosofia, enraizados em
solo irrigado com águas tratadas por outros critérios, influxos e métodos
distintos
289
.
Nessa trilha, o legislador brasileiro elegeu, para a proteção dos
direitos dos consumidores, a criação de um microssistema. É, pois, o CDC
uma Lei com valores e princípios próprios, de feição multidisciplinar, já
que se relaciona com todos os ramos do Direito – material e processual –,
“ao mesmo tempo em que atualiza e dá nova roupagem a antigos
institutos jurídicos”
290
.
287
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 68-70.
288
Ibid., p. 70.
289
GOMES, op. cit., 1995. p. 69.
290
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit., 1999.
p. 20.
126
6.3 O caráter de ordem pública das normas entabuladas no Código de
Defesa do Consumidor
Normas de ordem pública, também chamadas de coercitivas,
imperativas, taxativas ou cogentes, são aquelas que impõem ou proíbem
de maneira categórica
291
. Paulo Nader as conceitua como as que obrigam
independentemente da vontade das partes, isso por resguardarem os
interesses fundamentais da sociedade
292
.
As normas imperativas, ao contrário das chamadas dispositivas
– que se referem apenas aos interesses dos particulares, subordinando-se à
vontade expressa das partes interessadas –, são, portanto, criadas com o
intuito de se preservarem pilares essenciais da sociedade, motivo pelo
qual se aplicam obrigatoriamente às relações por elas reguladas, sendo,
ainda, inderrogáveis pela vontade dos contratantes.
Conforme visto, o CDC surgiu de uma necessidade social. A
manutenção das contratações baseada numa idéia liberal já, há tempos,
mostrava-se intolerável no País. A produção em série com a conseqüente
distribuição e comercialização em massa de produtos e serviços, mediante
contratos preestabelecidos (cláusulas impostas em bloco) pelo próprio
fornecedor, geraram desequilíbrio, desigualdade e injustiças irremediáveis
pela legislação anterior à promulgação da Lei 8.078/90. A imposição de
regras por parte dos mais fortes, de maneira unilateral e irreprimível pelo
Estado, obrigava os consumidores a aderir e aceitar determinadas
situações que, muitas vezes, eram responsáveis pela motivação de danos
irreparáveis, porquanto a legislação material, que antes regulava as
relações de consumo, apresentava um panorama de responsabilização civil
quase exclusivamente baseado na idéia da culpa.
As transformações sociais – que, de regra, sempre se sucedem
antes da evolução jurídica –, motivaram a inserção da defesa do
consumidor como garantia fundamental, e estimularam a própria criação
da Lei consumerista, como norma taxativa, imperativa de direitos e
deveres a serem respeitados pelos partícipes nas relações de consumo.
291
PAUPÉRIO, A. Machado. Introdução ao estudo do direito. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 133.
292
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p 102.
127
Destarte, quando a Lei 8.078/90 declara, por exemplo, ser
direito básico do consumidor “a informação adequada e clara sobre os
diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade,
características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos
que apresentem”, tal dispositivo deve ser, forçosamente, cumprido por
todos os fornecedores que exploram atividades no mercado de consumo,
haja vista tratar-se de um mandamento cogente, criado para preservação
da incolumidade física, moral e patrimonial do consumidor. Sua
inobservância, além de configurar infração penal, poderá gerar sanções
administrativas e, quiçá, responsabilidade civil para o fornecedor
inadimplente.
No que tange ao interesse social da norma, valem as palavras
bem colocadas de Filomeno, ao asseverar que a Lei 8.078/90
visa a resgatar a imensa coletividade de consumidores da
marginalização não apenas em face do poder econômico, como
também dotá-la de instrumentos adequados para o acesso à
justiça do ponto de vista individual e, sobretudo, coletivo
293
.
Em verdade, a expressão “interesse social” funciona como um
complemento, um reforço legislativo à proposição “ordem pública”.
Trata-se de uma maneira encontrada pelo legislador de robustecer a
importância e necessidade de aplicação do CDC a situações que envolvam
as chamadas relações de consumo
294
.
293
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit., 1999.
p. 26.
294
Segundo as lições sempre precisas de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, ser “de
interesse social significa, em termos práticos, que o MP terá participação obrigatória em todas as
ações coletivas sobre lides de consumo, encontrando-se legitimado para defender, em juízo, os direitos
individuais homogêneos (CDC 81, Par. Un. III) do consumidor, pois como são de interesse social ex
lege (CDC 1º), essa defesa atende a finalidade institucional do MP (CF 127 caput), como autorizado
pela CF 129 IX. V. Nery, DC 3/52. As ações coletivas (CDC 81, Par. Un.; 91 e ss; LACP) foram
criadas pela lei em razão do interesse público e social. A falta de previsão constitucional expressa para
a defesa coletiva, pelo MP, dos direitos individuais homogêneos (CF 129 III), ocorreu também porque a
categoria foi criada por lei posterior (CDC 81 Par. Un. III), mas a legitimação do MP está assegurada
pela autorização da CF 129 IX, que permite à lei federal, a atribuição ao MP de outras funções que
sejam compatíveis com sua finalidade institucional. Como a defesa coletiva de interesses sociais, como
o são os do consumidor (CDC 1º), é função institucional do MP (CF 127 caput), a legitimação dada ao
parquet pelo CDC 82, para a tutela em juízo dos direitos individuais homogêneos, está em perfeita
consonância com o sistema constitucional brasileiro.” (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria
de Andrade. Novo código civil e legislação extravagante anotados. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. p. 719.).
128
6.4 A importância funcional do art. 1.º da lei n. 8.078/90
Adiante, analisar-se-á o ponto nevrálgico do presente tópico,
qual seja, a tentativa de delimitar os aspectos funcionais do art. 1º da Lei
8.078/90, para, posteriormente, estudá-los um a um. Tais análises serão
divididas em subcapítulos próprios, a fim de evitar confusões textuais,
conforme propõe a melhor técnica didática.
Tendo em vista tal perspectiva, vislumbra-se, no texto
normativo em comento, relevância funcional no que se refere:
a) à imutabilidade das normas do CDC por ato volitivo dos
contratantes;
b) à aplicação da Lei 8.078/90;
c) à inviolabilidade do microssistema consumerista;
d) ao direito intertemporal; e
e) à superioridade da Lei 8.078/90, como norma
principiológica, quando em conflito com outras legislações.
6.4.1 Mitigação da autonomia da vontade e da liberdade de contratar
Em razão de sua natureza cogente (norma de ordem pública), a
Lei 8.078/90 deve ser observada e respeitada, de forma indeclinável, por
todos os partícipes da relação de consumo.
O Diploma consumerista se impõe sobre a própria vontade dos
contratantes; dita regras, estabelece obrigações imutáveis
295
excepcionados alguns aspectos de natureza patrimonial (arts. 107 e 51, I,
da Lei 8.078/90).
O CDC estabelece uma discriminação positiva, pois confere
privilégios aos consumidores, e trata com desigualdade os desiguais, tudo
295
“O caráter de norma pública atribuído ao Código de Defesa do consumidor derroga a liberdade
contratual para ajustá-la aos parâmetros da lei, impondo-se a redução da quantia a ser retida pela
promitente vendedora a patamar razoável, ainda que a cláusula tenha sido celebrada de modo
irretratável e irrevogável.” (Superior Tribunal de Justiça, REsp 292.942/MG, Quarta Turma, Relator
Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, data da decisão: 03/04/2001. Disponível em: <http://www.
stj.gov.br>).
129
no intuito de alcançar uma igualdade efetiva entre os que participam da
relação de consumo
296
.
Nesse passo, a retroaludida legislação nada mais faz do que
impor desigualdades de direito como maneira de afastar as desigualdades
de fato existentes entre fornecedores e consumidores e, por conseqüência,
promover a justiça social.
A natureza cogente da norma – e isso é importante –
impossibilita concessões legais, mesmo que expressas, do consumidor ao
fornecedor; os ditames impostos pela Lei 8.078/90 deverão ser,
inevitavelmente, observados, pois é essa a vontade do Estado, sob pena de
nulidade daqueles atos praticados em desconformidade com o estabelecido
pela norma de ordem pública e de função social
297
.
6.4.2 A aplicação da lei consumerista
O magistrado poderá aplicar as regras insertas no CDC ex
officio, isto é, independentemente do requerimento ou queixa das
partes
298, 299.
Tal ocorre em razão do caráter social da norma, alicerçada
num dos fundamentos da República Federativa do Brasil – a dignidade da
pessoa humana –, bem como numa cláusula pétrea e, ainda, no princípio
basilar constitucional da defesa do consumidor.
A saber, é perfeitamente aceitável que um juiz declare, de
ofício, nula cláusula de eleição de foro de determinado contrato, ao
fundamento de que estaria ela a dificultar o acesso do consumidor ao
Judiciário, e prejudicaria, assim, seu direito à ampla defesa. Isso ocorre
296
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. [s.l.]: Coimbra, 1998. p. 214. t. IV.
297
A expressão “lei de função social” foi utilizada por Claudia Lima Marques no trabalho intitulado “A
responsabilidade do Transportador Aéreo pelo fato do serviço e o Código de Defesa do consumidor –
Antinomia entre norma do CDC e de leis especiais”, in Revista de Direito do Consumidor, v. 3, p. 154.
Na segunda edição de sua aplaudida monografia, “Contratos no código de defesa do consumidor: o novo
regime das relações contratuais”, a renomada jurista, citando Portalis, leciona que “as leis de ordem
pública são aquelas que interessam mais diretamente à sociedade que aos particulares”. (MARQUES,
op. cit., 1993. p. 158).
298
Nesse sentido Nunes. (NUNES, op. cit., 2000. p. 76).
299
“Essa nulidade, por envolver matéria de ordem pública, pode ser argüida por meio de ação, exceção,
ou decretada de ofício pelo juiz ou tribunal, a qualquer tempo e grau de jurisdição, não estando
sujeita a prazos de prescrição ou decadência”. (Tribunal de Alçada do Distrito Federal, Terceira
Turma Cível, Apelação Cível n. 4.593.697, Relator Juiz Wellington Medeiros, decisão unânime,
publicada no Diário da Justiça do DF em 05/08/1998, p. 98).
130
porque o caráter de norma de ordem pública implica entender absoluta a
competência do foro do domicílio do consumidor
300, 301
.
De igual maneira, poderá o juiz, ou até mesmo o Tribunal,
antecipar os efeitos da tutela – se convencido da existência dos
pressupostos necessários para tanto –, em casos que envolvam interesses
amparados pela Lei 8.078/90, e isso independentemente de pedido
formulado pelo consumidor. Não é novidade que a antecipação, total ou
parcial da tutela, está vinculada ao requerimento da parte, em evidente
correlação com o princípio dispositivo
302, 303
.
Todavia, por ser o CDC uma
norma de ordem pública, o rigor do princípio dispositivo é atenuado em
casos que importam relação de consumo
304
, podendo o órgão judicante
pronunciar-se sem se sujeitar ao pedido
305
.
300
“A Segunda Seção deste Tribunal houve por bem definir a competência, em se tratando de contratos de
adesão, sob a disciplina do Código do Consumidor, como absoluta, e autorizar, conseqüentemente, o
pronunciamento de ofício do juiz perante o qual ajuizada a causa em primeiro grau, ao argumento da
prevalência da norma de ordem pública que protege o consumidor e garante sua defesa em juízo. No
caso, no entanto, de o próprio réu-devedor postular pela validade da cláusula de eleição do foro,
alegando que não terá dificuldades em sua defesa, deve a mesma prevalecer”. (Superior Tribunal de
Justiça, REsp 225.866/MS, Quarta Turma, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, data da
decisão: 09/11/1999. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>). Acessado em 22/02/2002.
301
“Conflito de competência. Cláusula eletiva de foro lançada em contrato de adesão. Nulidade com base
na dificuldade de acesso ao judiciário com prejuízo à ampla defesa do réu. Caráter de ordem pública
da norma que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. Inaplicabilidade do enunciado n. 33 da
súmula/STJ. Tratando-se de contrato de adesão, a declaração de nulidade da cláusula eletiva, ao
fundamento de que estaria ela a dificultar o acesso do réu ao Judiciário, com prejuízo para a sua
ampla defesa, torna absoluta a competência do foro do domicílio do réu, afastando a incidência do
enunciado n. 33 da súmula/STJ em tais casos”. (Superior Tribunal de Justiça, CC 20.826/RS, Segunda
Seção, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, data da decisão: 13/05/1998. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br>). Acessado em 22/02/2002.
302
Ver arts. 2º, 128 e 460 do Código de Processo Civil.
303
“O processo civil rege-se pelo princípio dispositivo (‘judex secundum allegata partium judicare
debet’), somente sendo admissível excepcionar sua aplicação quando razões de ordem pública e
igualitária o exijam, como, por exemplo, quando se esteja diante de causa que tenha por objeto direito
indisponível (ações de estado) ou quando o julgador, em face das provas produzidas, se encontre em
estado de perplexidade ou, ainda, quando haja significativa desproporção econômica ou sócio-cultural
entre as partes”. (RSTJ 78/268).
304
Essa posição também é defendida por Eduardo Cambi, em recente artigo. Leciona o jurista: “As
disposições do CDC são de ordem pública porque, para serem aplicadas pelo juiz, não dependem de
requerimento das partes e são de interesse social, uma vez que as relações de consumo, de um modo
geral, por envolverem contratos de adesão, atingem aspectos relevantes a toda sociedade (p.ex., os
transportes, o sistema bancário, planos de saúde etc), exigindo uma interpretação diversa daquelas
regras que se aplicam aos contratos clássicos, envolvendo duas ou mais pessoas, com ampla liberdade
para a discussão das cláusulas contratuais e para a manifestação da vontade”. E continua: “Se a Lei
8.078/90 contém disposições de ordem pública, nada mais correto que concluir que o magistrado
pode, mesmo ex officio, aplica-las, em detrimento do fornecedor que pretende, em face da ausência ou
da imperfeição da defesa processual, fazer valer as cláusulas abusivas, por ele regidas no contrato,
além das obrigações iníquas e as vantagens exageradas. Logo, o CDC se aplica mesmo contra a
vontade do fornecedor-demandante, ainda que o consumidor-demandado não tenha contatado a ação.
Por isto, no exemplo formulado acima, pode o órgão julgador, em qualquer tempo ou grau de
jurisdição, reduzir a multa de mora, constante de cláusula contratual, decorrente do inadimplemento
131
É interessante ainda observar que as normas de ordem pública
não são atingidas pela preclusão
306
.
Conforme ensina Cretella Neto, “preclusão é o perecimento da
pretensão de qualquer das partes à tutela jurisdicional, em virtude da
perda de uma faculdade, de um poder ou de um direito processual que lhe
caberia”
307
. Diante dela não poderá o órgão judicante decidir questões já
deliberadas nos autos, seja em decisões interlocutórias, seja na própria
sentença. Noutras palavras, ultrapassado o momento procedimental
próprio (fase procedimental) para a prática de determinado ato, ou tendo
esse já sido realizado, ou, ainda, sendo incompatível com outro
anteriormente consumado, diz-se que ocorreu a preclusão
308
.
Como as normas de ordem pública não são atingidas pela
preclusão – afinal, resguardam interesses fundamentais da sociedade –,
não estará o magistrado impossibilitado de decidir acerca das questões
reguladas pela Lei 8.078/90 não resolvidas em momento apropriado, isso
a acontecer, necessariamente, antes ou no momento de ser proferida a
sentença de mérito, visto que, cumprido o ofício jurisdicional (art. 463 do
da obrigação no seu termo, de 10% (dez por cento) do valor da prestação, para apenas 2% (dois por
cento), com fundamento no art. 52, §1º, do CDC. Aliás, o mesmo poderia ser dito com relação a
qualquer cláusula contratual considerada abusiva, evitando, sobretudo, que, em razão de obrigações
consideradas iníquas, abusivas, exageradas ou incompatíveis com a boa-fé e a equidade, o fornecedor
enriqueça indevidamente”. (CAMBI, Eduardo. A inexistência do ônus da impugnação específica para
o consumidor. Revista de direito processual n. 129. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 69-70).
305
Esse, ao que parece, também é o entendimento de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:
“Matérias de ordem pública. A regra da congruência (ou correlação) entre pedido e sentença
(CPC128 e 460) é decorrência do princípio dispositivo. Quando o juiz tiver de decidir
independentemente de pedido da parte ou interessado, o que ocorre, por exemplo, com as matérias de
ordem pública, não incide a regra da congruência. Isso que significar que não haverá julgamento
extra, infra ou ultra petita quando o juiz ou tribunal pronunciar-se de ofício sobre referidas matérias
de ordem pública. Alguns exemplos de matérias de ordem pública: a) substanciais: cláusulas
contratuais abusivas (CDC 1º e 51); cláusulas gerais (CC 2035 par. ún.) da função social do contrato
(CC 421), da função social da propriedade (CF 5º XXIII e 170 III e CC 1228 §1º), da função social da
empresa (CF 170; CC 421 e 981) e da boa-fé objetiva (CC 422; simulação de ato ou negócio jurídico
(CC 166 VII e 167); b) processuais: condições da ação e pressupostos processuais (CPC 3º, 267 IV e
V; 267 §3º; 301 X; 301 §4º); incompetência absoluta (CPC 113 §2º; impedimento do juiz (CPC 134 e
136); preliminares processuais alegáveis na contestação (CPC 301 e §4º); juízo de admissibilidade
dos recursos (CPC 518 par. ún. [...])”. (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade.
Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 7. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. p. 779).
306
“As questões de ordem pública decididas no saneador não são atingidas pela preclusão.” (Superior
Tribunal de Justiça, REsp 232187/SP, Relator Ministro José Delgado, data da decisão: 23/03/2000.
Disponível em <http://www.stj.gov.br>). Acessado em 22/02/2002.
307
CRETELLA NETO, José. Fundamentos principiológicos do processo civil. Rio de Janeiro: Forense,
2002. p. 284.
308
MARCATO, Antonio Carlos. Preclusões: limitação ao contraditório? Revista de Direito Processual n.
17, p. 106, 1980.
132
CPC), impossível é ao juiz o reexame do processo. De igual forma, é
crível que o órgão colegiado reexamine ex officio tais questões (atinentes
ao CDC), por não se sujeitar aos efeitos preclusivos das decisões
monocráticas, pouco importando haver ou não a parte interposto agravo
retido; poderá, ainda, examinar, independentemente de impulso dos
litigantes, matérias não deliberadas pelo juízo unipessoal.
6.4.3 A defesa do consumidor: cláusula pétrea
Em tempos não muito distantes, baixou-se no País Medida
Provisória destinada a afastar a incidência de artigos do CDC para o
fornecimento de serviço essencial de energia elétrica. Referido texto
normativo, no que toca à parte que buscava frustrar a aplicação da Lei
consumerista, foi, logo depois de sua publicação, tornado sem efeito, haja
vista as incessantes manifestações da opinião pública em desfavor da
verdadeira afronta à CF que ele representava
309
.
Uma rápida leitura do artigo inaugural do CDC induz o leitor à
inarredável conclusão de que esta Cartilha Legal está enraizada na CF,
verdadeiramente entrelaçada a ela.
É de se saber que a exegese de uma lei infraconstitucional deve,
indubitavelmente, ser executada com verticalidade, isto é, à luz dos
valores e princípios impostos pela Magna Carta, principalmente quando a
legislação a ser interpretada possui domicílio certo em cômodos –
privilegiados, diga-se – constitucionais.
309
A esse respeito é indispensável a leitura do ensaio jurídico intitulado “É inconstitucional qualquer
medida provisória que pretenda afastar o Código de Defesa do Consumidor“, de autoria do professor
Rizzatto Nunes. Veja-se uma das lições insertas nesta doutrina: “Não se pode olvidar que é também
cláusula pétrea como dever absoluto para o Estado a defesa do consumidor (CF, art.5.º, XXXII). Aliás,
só por isso, já não poderia o principal representante do Estado, o Presidente da República, baixar
Medida Provisória contra a lei de proteção ao consumidor. Resta ainda lembrar que a Constituição
Federal estabelece que o regime econômico brasileiro é capitalista, mas limitado (CF, art. 1.º, IV, c/c
art. 170 e s.): são fundamentos da República os valores sociais do trabalho e os valores sociais da livre
iniciativa (CF, art. 1.º, IV), e a defesa do consumidor é princípio fundamental da ordem econômica
(CF, art. 170, V). Ora, o Código de Defesa do Consumidor nada mais fez do que concretizar numa
norma infraconstitucional esses princípios e garantias constitucionais. Assim está previsto
expressamente no seu art. 1.º”. (NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. É inconstitucional qualquer medida
provisória que pretenda afastar o Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www.
saraivajur.com.br>. Acessado em 22/02/2002).
133
Com efeito, a defesa do consumidor foi erigida pela atual CF à
categoria de direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º, XXXII),
fator que garante sua condição de cláusula pétrea, conforme se depreende
da leitura do art. 60, § 4º, IV, do mesmo Diploma legislativo.
É clara, à vista disso, a preocupação do legislador constituinte
com as modernas relações de consumo e com a necessidade de proteção do
hipossuficiente
310
. Isto porque, estar entre o rol de direitos e garantias
fundamentais significa ter função valorativa, servindo-se como vetor para
soluções interpretativas; exprime, outrossim, o reconhecimento de valores
e motivações que serviram de inspiração às aspirações dos constituintes
originários
311
. Eis, aí, os motivos pelos quais o legislador constitucional
declarou, expressamente, que não será objeto de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Com tal
medida, o Poder Constituinte originário objetivou assegurar a inteireza da
Constituição, impossibilitando que futuras reformas em seu texto
comprometam ou fraturem sua ossatura normativa.
Nesse sentido, preleciona Gilmar Mendes – citado por Ives
Gandra Martins em trabalho de peso –, ao tratar do direito alemão, que as
chamadas cláusulas pétreas traduzem, em verdade,
um esforço do constituinte para assegurar a integridade da
Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a
destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança
de identidade. É que, como ensina Hesse, a Constituição
contribui para a continuidade da ordem jurídica fundamental,
na medida em que impede a efetivação de um suicídio do
Estado de Direito democrático sob a forma da legalidade
312
.
É importante observar: a limitação provém da própria CF, ou
seja, é ela que determina a impossibilidade de deliberação de propostas
tendentes a abolir quaisquer direitos e garantias individuais. Na melhor
interpretação, isso significa que seja qual for a “alteração”, ela implicará
310
MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo:
Jurídica Atlas, 2002.
311
NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. A proteção constitucional do consumidor. Rio de Janeiro: Forense,
2002. p. 131.
312
MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1995. 4. v, t. I, p. 355.
134
abolição do dispositivo reestruturado
313
. Portanto, quando se traz a
discussão para o campo do tema proposto neste subtópico, é impossível,
no ordenamento jurídico brasileiro, a instituição de textos normativos que
tenham por fim afastar ou impedir a aplicabilidade do CDC em questões
que envolvam relações de consumo – como, aliás, pretendeu-se com a
aludida Medida Provisória. Isto porque a Lei 8.078/90 nasceu de expressa
disposição constitucional, para dar concretude às regras e princípios
inerentes à defesa do consumidor preceituados na Carta Magna. Afastar a
aplicação da Lei consumerista – seja por meio de medidas provisórias,
leis, portarias, tratados ou convenções internacionais, etc. – é, pois, negar
vigência a uma cláusula pétrea: a da defesa do consumidor
314, 315
.
Daí
Cristiano Chaves de Farias afirmar que, por ser a proteção do consumidor
verdadeira garantia constitucional, sobreleva concluir que está fulminada
de morte, inquinada de inconstitucionalidade, qualquer norma ou situação
jurídica que viole, ou mesmo, apenas tenha a possibilidade de consistir
em óbice à defesa do consumidor
316
.
6.4.4 O direito intertemporal e o código de defesa do consumidor
Esse aspecto, especificamente por sua importância central no
tema em estudo, será abordado em capítulo próprio.
313
MARTINS, op. cit., 1995. p. 355.
314
Veja-se que o Código de Defesa do Consumidor está em perfeita sintonia com a Constituição. O art. 1.º
da Lei 8.078/90 prescreve, expressamente, que o presente Código estabelece normas de proteção e
defesa do consumidor, [...], nos termos dos arts. 5º, inc. XXXII, 170, inc. V, da Constituição Federal, e
art. 48 de suas Disposições Transitórias. Noutras palavras, o CDC está enraizado na Carta Magna; negar
vigência a ele é, automaticamente, empregar obstáculo à efetividade do princípio, direito e garantia da
defesa do consumidor. O conflito entre textos normativos e o Código de Defesa do Consumidor será,
oportunamente, abordado, com mais profundidade, neste trabalho.
315
Nesse sentido, especialmente interessante a observação de Maria da Glória Villaça Borin Gavião de
Almeida e Ricardo Morishita Wada: “Com relação ao art. 5º, XXXII, afirmamos tratar-se de direito e
garantia fundamental à defesa do consumidor, o que lhe confere status constitucional de direitos
fundamentais, apontando-se dois efeitos – prevalência, pois se trata de direitos humanos e portanto nos
eventuais conflitos normativos afirma-se sua prevalência, e segundo, goza da chamada estabilidade
constitucional, pois se inscreve nas disposições do art. 60, §4º, IV, da CF, tratando-se de cláusula
pétrea, não podendo ser abolida por emenda ou mesmo revisão constitucional.” (ALMEIDA, Borin
Gavião de; VILLAÇA, Maria da Glória; WADA; Ricardo Morishita. Os sistemas de responsabilidade
no código de defesa do consumidor – aspectos gerais. Revista de Direito do Consumidor, 41. São
Paulo: RT, 2002. p. 187).
316
FARIAS; Cristiano Chaves de. A proteção do consumidor na era da globalização. Revista de Direito do
Consumidor n. 41. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 91.
135
Já se pode adiantar, entretanto, que a previsão legal entalhada
no art. 1.º do CDC, permite uma exegese no sentido de que terão
significativa influência dessa legislação, aquelas situações não
definitivamente concluídas ou os efeitos presentes e futuros decorrentes
de fatos já consumados, sempre que envolverem relações de consumo
317
.
Em tais casos, a Lei consumerista, em razão de sua aplicabilidade
imediata, deverá ser obrigatoriamente utilizada.
6.4.5 Conflitos entre o código de defesa do consumidor e outras
legislações
318
Discussão tormentosa, ainda pouco explorada pela doutrina
nacional, versa sobre os múltiplos conflitos surgidos entre o CDC e as
leis contidas no sistema jurídico, sejam elas comuns ou especiais,
nacionais ou internacionais.
Vale dizer que a análise do contexto histórico que levou à
criação do CDC, feita alhures, reporta, necessariamente, ao estudo do
presente tema neste trabalho, sem, contudo, desconsiderar o necessário
exame do art. 7º do referido Diploma Legal, tendo em vista sua íntima
relação com o assunto ora em comento.
Não são raras as situações de conflitos que envolvem o CDC e
outras legislações. Citem-se algumas dessas legislações: a Lei n. 3.071/16
(revogada); a Lei n. 556/50 (revogada); a Lei n. 7.565/86 (Código
Brasileiro da Aeronáutica); a Convenção de Varsóvia, recebida pelo
317
Nesse sentido: “Consórcio – Publicidade enganosa – Teoria da confiança – Aplicação. Proteção ao
consumidor. Direito intertemporal. Código do Consumidor. Contratos concluídos antes de sua
vigência. Evolução da teoria contratual. Teoria da confiança. Responsabilidade da empresa que, em
enganosa publicidade, vinculou seu nome a consórcio administrado por empresa do mesmo grupo
econômico. Pessoa jurídica que acabaria em liquidação extrajudicial, sendo que o consumidor só
contratou devido à respeitabilidade da empresa oculta. I – O CDC contém normas de ordem pública,
portanto de aplicabilidade imediata. Quanto às relações contratuais em curso quando de sua entrada
em vigor, hão que se distinguir dois marcos: o momento pré-contratual será regido pela lei da época,
enquanto que os efeitos observados na vigência do Código deverão adequar-se a este diploma. [...]”.
(Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Apelação Cível n. 233.177, Relator Juiz Wander Marotta,
DJ/MG de 12/08/1997; Repertório IOB de Jurisprudência, 2
a
quinzena, set. 1997, n. 18/97, p. 356,
3/13592).
318
Sobre o tema, veja-se a profunda análise feita pela professora Claudia Lima Marques (MARQUES,
Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais.
4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002).
136
ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 20.704/31 e sua
posterior modificação no Protocolo de Haia, introduzido pelo Decreto
56.463/65
319
; a Lei n. 7.357/85 (Lei do Cheque); a Lei n. 8.245/91 (dispõe
sobre as locações dos imóveis urbanos)
320
; a Lei n. 4.591/64 (dispõe sobre
o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias); a Lei
4.595/64 (Lei do Sistema Financeiro Nacional); o Decreto-Lei 911/69
(dispõe sobre normas de processo sobre alienação fiduciária)
321
; dentre
outras.
Induvidosamente, trata-se de tema merecedor de trabalho
específico em razão de sua complexidade e importância. Complexidade
porque não é tarefa fácil compreender como uma legislação – a Lei
8.078/90 – possui um poder de ingerência tamanho, capaz, inclusive, de
afastar a aplicação de normas ou desestruturar, por completo, outras leis
ou microssistemas, elaborados com o fito de regular situações jurídicas
peculiares – isso apenas quando se estiver diante de um caso concreto que
abrange relação de consumo. Importância em função das adaptações legais
que o CDC imputa a outros diplomas normativos, quando faz esses
últimos se adaptem ou, até mesmo, se anulem em face dos princípios e
comandos impostos pelo primeiro.
A percepção da atual importância e supremacia da Lei
consumerista deve ser construída mediante bases sólidas, notadamente
319
“Responsabilidade Civil. Transportador. Limitação de Indenização. Código de Defesa do Consumidor.
Convenção de Varsórvia. Editada lei específica, em atenção à Constituição (Art. 5º, XXXII), destinada
a tutelar os direitos do consumidor, e mostrando-se irrecusável o reconhecimento da existência de
relação de consumo, suas disposições devem prevalecer. Havendo antinomia, o previsto em tratado
perde eficácia, prevalecendo a lei interna posterior que se revela com ele incompatível. Recurso
conhecido e não provido. (Superior Tribunal de Justiça, Terceira Turma, REsp 169000/RJ, Relator
Ministro Paulo Costa Leite, data da decisão: 04/04/2000).
320
“Locação - Lei 8.245/91 - Retenção e indenização por benfeitorias - Código de Defesa do Consumidor
- Lei 8.078/90 - Inaplicabilidade. 1. Não é nula, nos contratos de locação urbana, a cláusula que
estabelece a renúncia ao direito de retenção ou indenização por benfeitorias. 2. Não se aplica às
relações regidas pela Lei 8.245/91, porquanto lei específica, o Código do Consumidor. 3. Agravo
regimental não provido.” (Superior Tribunal de Justiça, Quinta Turma Cível, Relator Ministro Edson
Vidigal, data da decisão: 11/04/2000).
321
“Alienação fiduciária – Busca e apreensão – purgação da mora – limite – revogação – Código de
Defesa do Consumidor – Aplicabilidade.
- O §1º do art. 3º do Decreto-lei 911/69, que limita a purga da mora ao pagamento de 40% das
prestações, encontra-se revogado em vista das disposições contidas nos arts. 6, V e 53 do Código de
Defesa do Consumidor”. (Apelação Cível n 332.777-9, Relator Juiz Alvimar de Ávila, Belo Horizonte,
julgado em 25/04/2001. Disponível em: <http://www.ta.mg.gov.br
>. Acessado em 22/02/2003).
137
alicerçadas: a) na compreensão da evolução da visão individualista do
Direito para uma visão social deste; e b) na própria CF.
Conforme exposto alhures, os contratos, no século XIX, eram
formalizados sob a égide da autonomia da vontade. A liberdade de
contratar e a vontade dos contratantes prevaleciam sobre a própria lei,
pois se acreditava que o “contrato traria em si uma natural eqüidade,
proporcionaria a harmonia social e econômica, se fosse assegurada a
liberdade contratual”
322
.
A lei funcionava tão-somente como garantidora das relações
contratuais, ou seja, consentia e assegurava a plena satisfação das
vontades dos indivíduos nelas. Conforme a lição de Cláudia Lima
Marques,
a função das leis referentes a contratos era, portanto, somente
a de proteger esta vontade criadora e de assegurar a realização
dos efeitos queridos pelos contratantes. A tutela jurídica
limita-se a possibilitar a estruturação pelos indivíduos destas
relações jurídicas próprias assegurando uma teórica autonomia,
igualdade e liberdade no momento de contratar, e
desconsiderando por completo a situação econômica e social
dos contraentes
323
.
No entanto, em razão da evolução, a produção, distribuição e
contratação de produtos e serviços – antes individuados e personalizados
– passaram a operar de modo massificado e estandardizado; o consumidor,
diante dessa conjuntura, tornou-se um mero número. As relações
contratuais despersonalizaram-se, e se adaptaram à novel realidade de
mercado – alterada em virtude do desenvolvimento industrial e
tecnológico corrente –, o que fez nascer, daí, métodos de contratação
padronizados (contratos de adesão e condições gerais dos contratos).
Como resultado, considerada a recorrência das relações
econômicas nas sociedades de massa e a sua inserção nos mecanismos de
circulação de riquezas do mercado de consumo, revelou-se, mesmo sob
apreciação sumária, a indispensabilidade de uma intervenção hierárquica
para o fim de salvaguardar o equilíbrio social, dentro de condições
322
MARQUES, op. cit., 1992. p. 22.
323
Ibid., p. 17.
138
mínimas e/ou máximas
324
. Percebeu-se, nesse momento, que a concepção
tradicional do contrato não mais se adequava à nova realidade econômica.
Passaram, então, os estados de todo o mundo, uns com maior,
outros com menor intento, a intervir nas relações de consumo, com o
objetivo de regulá-las, isto é, de equilibrar as forças entre os partícipes de
tal relação e, como conseqüência, harmonizar o funcionamento econômico
na macroestrutura
325
. Deu-se um tratamento desigual aos desiguais, para
restabelecer a harmonia e o equilíbrio de forças entre os pólos da relação
de consumo.
No Brasil – conforme frisado em momento anterior –, a crise da
concepção clássica do contrato somente teve uma solução na década de
oitenta, mais especificamente com a edição da CF/88, que incluiu a defesa
do consumidor no plano da política constitucional
326
.
Tais considerações – feitas no início deste trabalho e agora
sumária e necessariamente repisadas –, além de realçarem o CDC como lei
incomum, delineiam diretamente seu âmbito de aplicabilidade.
Conforme já dito, a defesa do consumidor foi erigida pela atual
Carta Magna a princípio constitucional da atividade econômica (art. 170,
V); não bastasse isso, foi inserida no rol dos direitos e garantias
individuais do citado Diploma Legal (art. 5º, XXXII). A efetiva tutela do
consumidor brasileiro, por sua vez, é realizada por intermédio de uma
legislação – a Lei 8.078/90 – criada, outrossim, com base em um comando
constitucional (art. 48 do ADTC)
327
.
Destarte, é inquestionável que a Lei consumerista confere
grande efetividade ao princípio constitucional da defesa do consumidor.
324
VILLARPANDO, op. cit., 2003.
325
Ibid., 2003.
326
MARQUES, op. cit., 1992. p. 49.
327
Rizzatto Nunes, em ensaio jurídico intitulado “É inconstitucional qualquer Medida Provisória que
pretenda afastar o Código de Defesa do Consumidor”, publicado no site da editora Saraiva, esclarece
que “a Lei n. 8.078/90 é Código por determinação constitucional (conforme art. 48 do ADCT/CF), o
que mostra desde logo o primeiro elemento de ligação entre esse diploma e a Carta Magna.” E
continua: “Como lei principiológica entende-se aquela que ingressa no sistema jurídico, fazendo,
digamos assim, um corte horizontal, indo, no caso do CDC, atingir toda e qualquer relação jurídica
que possa ser caracterizada como de consumo e que esteja também regrada por outra norma jurídica
infraconstitucional. Assim, por exemplo, um contrato de seguro de automóvel continua regulado pelo
Código Civil e pelas demais normas editadas pelos órgãos governamentais que regulamentem o setor
(Susep, Instituto de Resseguros etc.), porém estão tangenciados por todos os princípios e regras da Lei
n. 8.078/90, de tal modo que, naquilo que com eles colidirem, perdem eficácia por tornarem-se nulos
de pleno direito.” (Disponível em: <http://www.saraivajur.com.br>. Acessado em 22. fev. 2003).
139
Negar a aplicação do CDC nas relações de consumo é, por conseqüência,
repudiar vigência a valores e princípios constitucionais expressos. Nesse
sentido, a expressão cunhada por Nery Júnior – norma principiológica –,
muito em voga atualmente
328
.
Em verdade, a Lei das relações de consumo fez um corte
horizontal em toda a extensão da ordem jurídica existente, permeando a
sua disciplina por todos os ramos do Direito – público e privado,
contratual e extracontratual, material e processual. Estabeleceu uma
disciplina única e uniforme para todas as relações de consumo, a qual
deve ser aplicada em toda e qualquer área do Direito em que elas
ocorrem
329
. Fazendo uso das lições certeiras de Antônio Herman V.
Benjamin, pode-se dizer que o CDC pertence àquela categoria de leis
denominadas horizontais, cujo campo de aplicação invade, por assim
dizer, a totalidade das disciplinas jurídicas: do Direito Bancário ao
Direito de Seguros, do Direito Imobiliário ao Direito Aeronáutico, do
Direito Penal ao Direito Processual Civil. São normas que têm por função
não regrar uma determinada matéria, mas proteger sujeitos particulares,
mesmo que estejam eles igualmente abrangidos por outros regimes
jurídicos. Daí o caráter especialíssimo do direito do consumidor
330
.
Se o intérprete deparar com situações concretas em que,
aparentemente, existam conflitos entre o CDC e outras leis (sejam elas
gerais ou especiais, nacionais ou provenientes da ordem
328
Claudia Lima Marques, em suas precisas lições, realça a importância dos valores estabelecidos na Carta
Magna: “O dinamismo e os interesses contraditórios presentes na atual sociedade de massas
desencadearam o aparecimento de um grande número de leis esparsas, leis especiais, em um fenômeno
que os alemães denominaram de “Estilhaçamento” do direito (Zersplitterung). Frente aos interesses
contraditórios defendidos pelas leis especiais, face a generalização excessiva dos Códigos dos sécs.
XVIII e XIX, a ciência do direito teve que buscar a segurança da lei máxima, da lei hierarquicamente
superior, para ali resguardar os valores que considerava mais importantes para aquela sociedade. A
Constituição toma assim o lugar da Codificação maior. É o fenômeno denominado por Hesse da
“Força normativa da Constituição” que leva a Constituição a guiar, com suas novas linhas mestras
tanto o direito público quanto o direito privado.” (MARQUES, op. cit., 1993. p. 163-164).
329
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 359.
330
BENJAMIN, Antônio Herman V. O transporte aéreo e o Código de Defesa do Consumidor. Ajuris, mar.
p. 509-510. Porto Alegre: Associação dos Juizes do Rio Grande do Sul, 1998.
140
internacional),
331, 332
deverá buscar a solução no próprio sistema normativo
consumerista, haja vista sua supremacia legal.
Destarte, em primeiro lugar, deve-se tentar, com harmonia,
adequar a lei supostamente conflitante ao microssistema das relações de
consumo; quando isso é possível, nenhum problema surgirá, porquanto tal
lei continuará em vigência naquele caso sob análise sendo, apenas,
complementada e melhorada pelos princípios, normas e novos valores
positivados pelo CDC, em conformidade com o prescrito no art. 7º da Lei
8.078/90. Como ensina o eminente Sérgio Cavalieri Filho, “os institutos e
contratos continuam regidos pelas normas e princípios que lhe são
próprios, mas sempre que gerarem relações de consumo, ficam também
331
Pouco importa, na solução de conflitos legais que envolvem o Código de Defesa do Consumidor, que as
leis com ele conflitantes sejam gerais ou especiais. A Lei 8.078/90 preponderará, inclusive, sobre as leis
especiais em função de sua origem constitucional (critério hierárquico), bem como em razão doseu
caráter de norma de ordem pública e interesse social. Frise-se: sempre que a matéria em conflito for
albergada pela Lei consumerista, aplicar-se-á essa Lei em desprezo a outra lei (geral ou especial) em
embate. É essa a vontade expressa do Estado ao caracterizar a Lei 8.078/90 como lei de ordem pública.
A liberdade de contratar e a autonomia da vontade tiveram sua importância reduzida, prevalecendo-se
sobre elas as normas imperativas ou obrigatórias impostas pelo Estado. Nesse viés, a opinião do
eminente Cavalieri Filho: “Em conclusão: é impertinente a regra lex posterior generalis non derrogat
priori speciali, porque, tratando-se de relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor é a lei
própria, específica e exclusiva; a lei que estabeleceu a Política Nacional das Relações de Consumo,
consolidando em um só diploma legal todos os princípios pertinentes à matéria, em razão de
competência que lhe foi atribuída pela própria Constituição Federal. E, na matéria de sua competência
específica, nenhuma outra lei pode a ele (Código) se sobrepor ou subsistir. Pode apenas coexistir
naquilo que com ele não for incompatível.” (CAVALIERI FILHO, op. cit., 2000. p. 236).
332
Cristiano Chaves de Farias, em excelente artigo, demonstra, com mestria, a supremacia da Constituição
Federal – e por conseqüência, da própria Lei 8.078/90 – quando em choque com tratados e convenções
internacionais. Com efeito, evidencia: “Tenha-se em mente que o desenvolvimento de atividades
mercantis globalizadas exige uma responsabilidade também globalizada dos fabricantes e demais
participantes do fornecimento. Ou seja, em vez de importar um enfraquecimento da proteção do
consumidor, a globalização exige uma defesa ainda mais ampla e segura, eis que os riscos de lesões às
relações consumeristas aumentam nitidamente.
Nessa trilha, não é possível qualquer restrição ao nosso eficaz sistema de proteção ao consumidor. Ao
revés, deve-se tentar ampliar a proteção consumerista, coadunando-se com a própria diretriz
constitucional.
Aliás, é certo e incontroverso que como colorário do conceito de soberania nacional, presente nos
estados democráticos de direito, apresenta-se a supremacia constitucional.
E é a partir dessa induvidosa supremacia da ordem constitucional que até mesmo convenções e
tratados internacionais devem se compatibilizar com a ordem (constitucional) interna para que possam
ter aplicabilidade. É que têm os tratados e convenções internacionais, assim como quaisquer
instrumentos normativos externos que pretendam ingressar em nosso Ordenamento, altitude
infraconstitucional, devendo obediência hierárquica ao Texto Mater.
Daí Maurício Andreiuolo Rodrigues afirmar com propriedade que, “ao menos no Brasil, o tratado
internacional não pode ultrapassar os limites impostos pela Constituição da República. E a razão para
tanto está na natureza estável do texto constitucional. A leitura dos arts. 59 e seguintes deixa ver que se
trata de uma Constituição rígida. E, como tal, os seus preceitos revestem-se de situação hierárquica
mais elevada. Porque se trata de conflito de normas de diferentes hierarquias – uma, constitucional, e
a outra, de natureza internacional, logo infraconstitucional – não tem valor a regra do monismo
moderado, ordinariamente utilizada, e de acordo com a qual lex posterior derrogat lex priori”.
(FARIAS, op. cit., 2002. p. 91).
141
sujeitos à disciplina do Código de Defesa do Consumidor”
333
. Essa é a
lógica da Lei 8.078/90: a compatibilização do microssistema consumerista
com a norma supostamente com ela conflitante, sempre que possível.
Por outro lado, diante de um caso concreto, se determinada
norma de uma lei realmente se contrapor à Lei 8.078/90 – ou, conforme
prefere Cláudia Lima Marques, se existir na situação sob análise uma
antinomia real –, aquela deverá, necessariamente, sucumbir perante esta.
Se possível, a lei conflitante não terá sua aplicação afastada no todo, mas,
apenas, naqueles preceitos nela inseridos que estiverem em desarmonia
com o CDC
334, 335
.
Convém ainda registrar: não é correto falar em revogação de
normas ou leis pelo CDC em se tratando de tema referente a conflitos de
legislações. Revogar é impedir a aplicação da norma no mundo jurídico; é
literalmente aniquilá-la, fulminando sua essência legal. A Lei 8.078/90
somente afasta o emprego de uma norma com ela conflitante no momento
da aplicação do direito para a solução de um caso concreto. Aquela norma
ou lei afastada da aplicação naquele caso concreto poderá, novamente, ser
utilizada em casos outros, em que se entender não caracterizada uma
relação de consumo ou não importar tutela de consumidores. Sua
existência e validade não serão afetadas mas, tão-somente, sua vigência
naquele caso específico sob análise
336
.
333
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 431.
334
Com acerto, Claudia Lima Marques leciona que na “maioria dos casos (...) a contradição existente é
apenas entre algumas disposições (normas) destas leis, continuando-se a aplicar ambas as leis (a
exceção das normas conflitantes) a um mesmo caso concreto. A regra geral é, justamente, da
continuidade das leis no sistema”. (MARQUES, op. cit., 1993. p. 167).
335
Claudia Lima Marques, em outro ponto de sua excelente monografia, assevera que “o conflito entre as
normas do Código de Defesa do Consumidor com as dos Códigos Civil e Comercial seria resolvido
pela aplicação da regra do §2º do art. 2º da LICC, segundo a qual a lei nova especial não revogará a
antiga lei geral, quando instituir normas especiais “a par das já existentes”. Assim, também, a noção
de vício dos arts. 18 e 25 do CDC é totalmente diferente da de vício redibitório do art. 1.101 do Código
Civil, os prazos de decadência do direito de reclamá-los também são novos, assim como a
impossibilidade de se exonerar contratualmente da responsabilidade; mas, nem por isso, os arts. 1.101
e ss. do Código Civil estão revogados, somente não serão mais utilizados quando se tratar de um
contrato de consumo. Na prática, os efeitos se aproximam, mas a sobrevivência das regras gerais é
importante porque nem todos podem ser sempre caracterizados como consumidores e nem o CDC
regulou toda matéria referente à existência, à validade e à eficácia dos contratos.” E conclui: “As
normas presentes nas leis especiais continuam válidas para regular todos os contratos civis ou
comerciais a que se destinam; tratando-se de contrato de consumo, sua aplicação será afastada
naquilo que incompatíveis com o espírito protetor do CDC”. (MARQUES, op. cit., 1993. p. 179).
336
“A revogação é, porém, a morte da norma jurídica, significa tirar a força obrigatória, a vigência de
uma norma, por incompatível com as novas normas impostas pelo legislador. O conflito de leis no
142
Desnecessário para o intérprete, em casos de conflitos
normativos, que uma lei especial reguladora de determinada matéria surja
após o CDC – ou mesmo que se trate de lei geral. A Lei 8.078/90 possui a
função única de regular as relações de consumo e tutelar um grupo
específico de entes – os consumidores –, e tem seu âmbito de aplicação
expressamente delimitado em seu texto normativo (arts. 2º, parágrafo
único, 3º, 17 e 29). Tudo que disser respeito à proteção dos consumidores
– sejam relações de origem administrativa, bancária, civil ou criminal –,
será, inevitavelmente, regulado pela Lei consumerista, pouco importando
existir norma especial
337
, nascida antes ou após o advento daquela,
dispondo de maneira diversa, sobre a matéria controvertida. Definida a
relação de consumo, suas regras deverão ser observadas, sem exceção
338
.
Ao cabo das considerações a que se procedeu e associadas às
louváveis expressões amoedadas pela professora Cláudia Lima Marques,
conclui-se que o CDC é uma lei especial-subjetiva, hierarquicamente
superior (ou principiológica), complementar a um mandamento
constitucional, e de ordem pública (Lei de função social).
339
Tais posturas
asseguram-lhe a robustez legal necessária ao cumprimento de sua função
de revitalizar as diversas situações ocorrentes no mercado de consumo
que envolvem consumidores e fornecedores. Dão-lhe, ainda, a autoridade
necessária para, se conflitante com outra legislação, impor-se a ela e,
tempo pode resolver-se pela revogação, se incompatíveis, como dispõe o art. 2º da LICC, mas a
tendência do direito é justamente a contrária, a da continuidade das leis. O exame da compatibilidade
das normas deve incluir não só os textos e as finalidades das normas, mas também analisar com
cuidado o campo de aplicação de cada norma, pois se os campos de aplicação material e subjetivo são
ora coincidentes ora não, não há interesse do sistema na decretação da perda de vigência de uma das
normas, ao contrário, a sobrevivência de ambas é essencial, ou estaremos criando uma lacuna não
querida no ordenamento jurídico.” (Ibid., p. 161).
337
Os Tratados internacionais, quando em conflito com o Código de Defesa do Consumidor, também terão
suas normas afastadas. Tal situação se deve à origem constitucional da Lei 8.078/90, que torna
inadmissível a supremacia de legislações contrárias aos ditames estabelecidos pela Lei Magna.
338
Tem-se especulado se o Novo Código Civil possui prevalência, mesmo nas relações tidas de consumo,
sobre o Código de Defesa do Consumidor. A resposta é negativa. Deve-se deixar claro que, em se
tratando de relações de consumo, a Lei consumerista deverá ser aplicada, com primazia, sempre. As
suas raízes constitucionais (norma principiológica) conferem a ela um verdadeiro privilégio de
aplicação e predominância sobre os demais textos normativos, gerais ou especiais. O Novo Código
Civil, a exemplo das demais leis, poderá, sim, ser aplicado conjuntamente com o Código de Defesa do
Consumidor no desato de problemas que envolvem relações de consumo; entretanto, se houver conflito
entre as duas leis, prevalecerá, indubitavelmente, o vigor da última.
339
MARQUES, op. cit., 1993. p. 167.
143
efetivamente, regular e desvendar o embate de interesses sob a apreciação
do Judiciário.
6.5 Conclusões
A interpretação do direito, longe de ser apenas uma atividade de
mera compreensão do texto normativo – a qual teria sentido,
principalmente, naqueles casos em que a lei fosse imprecisa ou ambígua –
, importa, outrossim, a exegese dos fatos de um caso concreto. Essa a
visão do professor Eros Grau na qual a atividade de interpretar e a de
aplicar o direito correspondem a uma só operação
340
.
Além de outras implicações, isso significa que todo trabalho
doutrinário que se propõe a interpretar textos normativos, deve partir,
sempre que possível, de exemplos práticos, ou ainda, de exemplos criados
– afinal, por vezes, o doutrinador adianta-se aos problemas que irão surgir
–, sob pena de se sujeitar a toda sorte de lacunas ou “buracos
doutrinários”, o que tornaria o feito menos prático do que superficial.
Pretendeu-se, especialmente nesta parte do trabalho, justamente
transmitir ao leitor uma exegese umbilicalmente jungida à sua aplicação
prática, e, para isso, foram utilizados casos colhidos na jurisprudência
pátria – inseridos em notas de rodapé, bem como no transcorrer de todo
corpo textual –, com o objetivo de conferir uma qualidade funcional ao
material apresentado.
Seguindo esse critério, evidenciou-se, nos comentários aqui
produzidos, o vigor normativo que possui a Lei consumerista, uma vez
que se apresenta inarredavelmente enraizada na CF. De todo o estudo,
concluiu-se que o artigo inaugural do CDC representa mais do que uma
declaração de seu objetivo – proteger o consumidor brasileiro. Em
verdade, a exata percepção de seu fim leva o intérprete a compreender os
motivos históricos que levaram à criação da Lei consumerista, além de
evidenciar principalmente sua robustez como texto normativo.
340
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros,
2002.
144
Destarte, percebeu-se que o CDC surgiu numa época em que a
autonomia da vontade e a liberdade de contratar, há tempos, não mais se
serviam à manutenção da segurança e igualdade das partes pactuantes. Os
valores do contrato tradicional criaram um abismo, quase intransponível,
impediente do alcance do consumidor ao fornecedor. Era como se somente
o último pudesse atingir o primeiro, por meio de uma ponte de via única.
Ditou o Estado, em razão dessa anterior realidade, e mediante a
Lei 8.078/90, normas de ordem pública – de obediência necessária e
obrigatória –, as quais estabeleciam limites à autonomia da vontade e à
liberdade de contratar dos partícipes das relações de consumo. Pretendeu-
se, com isso, garantir uma real igualdade – e não apenas aparente – entre
consumidor e fornecedor.
O Código consumerista, além da sua necessária e forçosa
observação pelos contratantes, possui certas particularidades em função
de sua origem constitucional, bem como pela sua expressa caracterização
como norma de ordem pública e interesse social.
À vista disso, sua aplicação independe do requerimento das
partes, podendo ser feita ex officio pelo magistrado ou Tribunal. Por ser a
Lei 8.078/90 derivada de uma cláusula pétrea (art. 5º, XXXII, CF), sua
aplicação não poderá ser afastada por outras legislações, isso sempre que
o intérprete estiver diante de uma relação de consumo. Possui, ainda, a
Lei consumerista aplicação imediata - e não retroativa – naquelas
situações não definitivamente concluídas ou nos efeitos presentes e
futuros decorrentes de fatos já consumados.
Ademais, por constituir-se numa Lei principiológica e de ordem
pública, goza de supremacia em relação a outras leis – sejam elas gerais
ou especiais, nacionais ou provenientes de ordem internacional – quando
conflitantes com ela no momento da interpretação e aplicação legislativa
para a solução de algum caso concreto. Com efeito, sempre que o
intérprete encontrar-se diante de situações tuteladas por duas leis
diversas, uma delas, a Lei 8.078/90 e, não sendo possível sua
compatibilização interpretativa (ou de seus textos normativos), deve
145
afastar a lei conflitante (ou, apenas, o texto normativo conflitante) com o
CDC, para a solução daquele caso concreto.
Ao que tudo indica, o já citado art. 7º reproduziu o espírito do
preceito imposto pelo § 2º, art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil:
“A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já
existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.” A regra geral, diante
disso, é a prevalência harmônica das diversas leis já existentes no
sistema, bem como daquelas a existir no futuro, com o CDC. O art. 7º
reproduz essa realidade. Deverá, pois, o intérprete, como primeiro critério
a ser adotado, procurar compatibilizar a Lei 8.078/90 com a legislação (ou
texto normativo) supostamente conflitante. Sendo possível a aplicação
conjunta de ambas as leis (ou texto normativo), o problema estará
solucionado e a regra geral será aplicada
341, 342
.
Evidente, pois, que o objetivo da Lei consumerista não é
revogar outras leis ou textos legais existentes no sistema jurídico. Sua
principal função é complementar, melhorar as legislações já existentes –
ou as que vierem a existir –, impor novos valores ao sistema jurídico
vigente, a fim de, com isso, proporcionar maior proteção aos direitos do
consumidor. Nesse passo, os princípios e normas regentes do CDC
deverão permear, integrar e aperfeiçoar a lei também aplicável àquela
341
O mestre Maximiliano, em brilhante lição, assevera: “Não raro, à primeira vista duas expressões se
contradizem; porém, se as examinarmos atentamente (subtili animo), descobrimos o nexo culto que as
concilia. É quase sempre possível integrar o sistema jurídico; descobrir a correlação entre as regras
aparentemente antinômicas. E conclui: “Sempre que se descobre uma contradição, deve o
hermeneuta desconfiar de si; presumir que não compreendeu bem o sentido de cada um dos trechos ao
parecer inconciliáveis, sobretudo se ambos se acham no mesmo repositório. Incumbe-lhe
preliminarmente fazer tentativa para harmonizar os textos; a este esforço ou arte os Estatutos da
Universidade de Coimbra, de 1772, denominavam Terapêutica Jurídica.” (MAXIMILIANO, op. cit.,
1994. p. 134).
342
Essencial se mostra, nesse ponto, as lições da professora Claudia Lima Marques ao esclarecer a
importância de se respeitar a regra do sistema consumerista imposta pelo artigo 7º: “Observe-se, por
exemplo, que o CDC é lei especial na sua face subjetiva, pois só impõe regras para relações
contratuais e extracontratuais envolvendo pessoas, que define como consumidores e fornecedores. De
outro lado, é lei geral, em grande parte de sua face material, pois trata de várias relações jurídicas
envolvendo consumidores e fornecedores, não tratando exaustivamente ou especificamente de nenhuma
espécie de contrato em especial, mas impondo novos patamares gerais de equilíbrio e de boa-fé a todas
as relações de consumo. O CDC é, por exemplo, lei especial em relação ao Código Civil de 1917, pois
só trata das relações envolvendo os que define (ou equipara) como consumidores. O CDC, porém, só
trata de alguns aspectos dos contratos de consumo (dever de informação, garantias, vícios de
prestação contratual, cláusulas abusivas, dever de redação dos contratos de adesão etc.), deixando a
maioria das regras sobre existência, validade e eficácia da relação para o Código Civil, logo, se o
CDC revoga-se uma norma que fosse o Código Civil criaria uma grande lacuna para todos os outros
tipos de contratos e para o seu próprio sistema, que não é exaustivo.” (MARQUES, op. cit., 1993. p.
175).
146
situação a ser solucionada; o espírito da Lei 8.078/90 entranhará no corpo
normativo da legislação também aplicável ao caso concreto, de maneira a
aperfeiçoá-la e adequá-la à tutela do consumidor. Somente quando tal
compatibilização não for possível (antinomia real), é que Lei 8.078/90,
em razão de sua supremacia – Lei principiológica e de ordem pública –,
afastará a aplicação do texto normativo ou legislação com ela conflitante
para dirimir embates num dado caso concreto. Afinal, é o CDC –
metaforicamente falando – um dos fios de ouro do emaranhado de leis que
constituem a teia do ordenamento jurídico do País.
CAPÍTULO III
O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR APLICADO ÀS
RELAÇÕES FIRMADAS ENTRE TABAGISTAS E À
INDÚSTRIA DE CIGARROS
1 Relações de consumo firmadas entre fumantes e empresas de fumo
No mundo, quatro milhões de indivíduos morrem anualmente em
função do consumo de cigarros – o equivalente a dez mil mortes por dia.
Especialmente no Brasil, credita-se ao tabagismo cerca de 200 mil mortes
anuais
343
.
Esses assustadores índices de mortandade têm por origem
peculiares relações de consumo, realizadas dia-a-dia em todo o globo.
Nos extremos de tais relações, situam-se o fumante (ativo ou passivo),
consumidor vulnerável e hiposuficiente, e a indústria do fumo,
caracterizada por diversas empresas, cujos objetivos focam-se na
fabricação de produtos fumígenos destinados à comercialização. São
milhões de pessoas adquirindo e/ou utilizando o mesmo produto – ou, ao
menos, expostos a sua fumaça tóxica. São milhares de indivíduos sujeitos
a sofrer acidentes de consumo.
343
Disponível em <http://www.inca.gov.br>. Acessado em 07/04/2006.
148
Tais relações de consumo nem sempre se apresentam com
contornos idênticos. Às vezes, a sua identificação se mostra um pouco
mais dificultosa, especialmente quando, num dos seus pólos, encontram-
se consumidores por equiparação legal.
De qualquer sorte, nesse momento, analisar-se-ão os tabagistas
ativos e passivos, e a própria coletividade de fumantes, essa sob ângulos
diversos, buscando demonstrar que todos eles são verdadeiramente
consumidores, tutelados pelo CDC.
2 O tabagista: um consumidor padrão facilmente identificável
Não há qualquer dificuldade em se reconhecer o fumante ativo
344
como um consumidor padrão. Seu enquadramento nessa classe advém
naturalmente da própria leitura do caput do art. 2.º do CDC.
Assim, o fumante ativo, considerado individualmente, é um
autêntico consumidor padrão, esse que adquire e/ou utiliza
345
um bem de
344
Millôr Fernandes, ao tratar do fumo, satiriza: Enorme percentual de fumantes disposto a continuar
fumando, apesar de ameaças de câncer, enfisemas e outras quizílias. O fumo é realmente um vício
idiota. Mas os fumantes que persistem em fumar têm um vício inda mais idiota – a liberdade. Provando
que nem só de pão, e de saúde, vive o ser humano. Além do fumo ele aspira também gastar a vida como
bem entende. Arruinando determinadamente seu corpo – um ato de loucura – o fumante ultrapassa a
pura e simples animalidade da sobrevivência sem graça. Em tempo; eu não fumo.
Se eu fosse governo, em vez de fazer como os americanos, que obrigam os cigarros a terem impressa a
frase: “Perigo para a saúde”, eu mandava botar apenas: “Vício idiota!” (FERNANDES, Millôr. A
bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM, 2000. p. 204).
345
Sérgio Cavalieri Filho, com a clareza que lhe é peculiar, evidencia o empenho de alguns autores em
tentar excluir do alcance do Código do Consumidor determinados segmentos do mercado de consumo –
bancos, instituições financeiras e de crédito. Para tanto – continua o citado mestre –, procuram dar ao
vocábulo consumo uma interpretação gramatical, sustentando tratar-se de algo que só ocorre quando
destruição de um bem pelo seu uso, tanto assim que os dicionários definem consumo como gasto,
destruição pelo uso, meio pelo qual se extinguem as coisas consumíveis – para esses juristas o verbo
consumir significa destruir pelo uso ou pela utilização de um bem ou serviço para atender a uma
necessidade. Essa a autorizada posição do autor: “Não obstante o respeito que merecem os que assim
sustentam, entendo não caber aqui interpretação gramatical, a mais pobre de todas, nem buscar o
sentido do vocábulo consumidor nos dicionários ou em vetustos institutos do Código Civil, porque o
Código do Consumidor [...], em seu art. 2º, §1º, tem conceito próprio, segundo o qual consumidor não é
quem consome, mas sim quem adquire ou utiliza produtos ou serviços como destinatário final. Tratando-
se de conceito legal, vale dizer, de interpretação autêntica, é vinculativo para o intérprete, sendo-lhe
vedado buscar outra inteligência para a norma que não seja aquela nela própria estabelecida.” E
conclui ele: “Utilizar não significa apenas gastar, extinguir, destruir, consumir, mas também usar,
utilizar, fruir, sem implicar em necessária destruição da própria substância do bem. Importa então em
dizer que haverá relação de consumo não só quando produtos e serviços são consumidor, mas também
quando deles usufrui o consumidor como destinatário final; não só quando o consumidor compra
gêneros alimentícios e medicamentos para si e sua família, mas também quando adquire livros,
eletrodomésticos, móveis, veículos, imóveis etc., como destinatário final. Mesmo no caso de aluguel de
bens imperecíveis, haverá relação de consumo”. (CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 471).
149
consumo imediato denominado cigarro. Adquire produtos não duráveis
(cigarros), em regra consumindo-os durante momentos diversos de um
único dia.
É facilmente perceptível a relação de consumo. O tabagista,
cujo objetivo é o de suprir suas necessidades advindas da dependência,
adquire e consome – às vezes apenas utiliza sem adquirir – o cigarro,
como destinatário final. A destinação final desse produto é mais do que
óbvia, mormente porque esse produto, pelas suas características próprias,
é literalmente destruído ao ser consumido.
De tal sorte, os três elementos da conceituação padrão
encontram-se presentes: a) o elemento subjetivo (o fumante); o elemento
objetivo (o cigarro); e o elemento teleológico (utilização como
destinatário final).
Evidente que o fumante, ao adquirir, ou meramente consumir um
cigarro, visando satisfazer seu vício ou buscando um pseudo-prazer, não
tem por interesse a comercialização ou revenda do produto – situação essa
que o excluiria da proteção conferida pela Lei 8.078/90. Aliás, mesmo
numa interpretação fundada com base na teoria finalista, não há como se
defender posição contrária; afinal, o fumante faz uso privado do cigarro,
tragando sua fumaça tóxica, destruindo o produto mediante o consumo.
De um lado, o consumidor padrão (tabagista) consumindo um
produto; de outro, a fornecedora desse produto, fabricando-o e lançando-o
no mercado (empresa do tabaco). Daí já se vislumbram, com
clarividência, os contornos da relação de consumo.
3 A massa de consumidores fumantes acometida por doenças tabaco-
relacionadas
Hodiernamente, a tutela ao consumidor não é conferida apenas à
pessoa física ou jurídica, individualmente esboçada. Atento a uma
necessidade surgida com o advento do desenvolvimento industrial e
tecnológico, o legislador, ao entabular as normas do CDC, também
conferiu proteção à coletividade de consumidores, atribuindo a ela o
direito de ter os seus interesses respeitados e tutelados, outorgando a
150
alguns entes legitimados os instrumentos processuais hábeis e necessários
para a concretização desse ideal.
Anteriormente, já se esclareceu que toda a coletividade,
determinada ou indeterminada, que efetivamente intervém nas relações de
consumo, equipara-se ao consumidor individual, consoante previsão
constante do parágrafo único do art. 2.º do CDC (“Equipara-se a
consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que
haja intervindo nas relações de consumo”). Intervir na relação de
consumo significa dela participar, adquirindo e/ou utilizando produtos e
serviços.
Logo, é inequívoco que a realidade normativa do CDC abraçou a
coletividade de fumantes atingida por doenças decorrentes do consumo de
cigarros. A regra, então, trouxe a possibilidade de os entes arrolados no
art. 82 do CDC ingressarem com ações unas, pleiteando ressarcimento de
danos a toda uma coletividade de fumantes, cujos interesses, nessa ótica,
são classificados como sendo individuais homogêneos (art. 81, I, da Lei
8.078/90).
A origem comum dos interesses dos fumantes, cuja saúde foi
acometida por enfermidades associadas ao tabagismo, é o próprio cigarro.
Portanto, é possível que o Ministério Público
346
, ou qualquer outro ente
legitimado, ingresse, em nome próprio, com ação civil pública ou
coletiva, objetivando a reparação de danos sofridos por cada um dos
indivíduos integrantes dessa coletividade de doentes. Obviamente, essa
técnica diferenciada de tutela privilegia os princípios da efetividade e
economia processual.
A esse respeito, é mister apontar o meritório trabalho
desenvolvido pela ADESF (Associação de Defesa da Saúde do Fumante)
no País. Trata-se de uma entidade não governamental, defensora da idéia
de que o fumante é um dependente do cigarro, além de uma vítima das
346
No que tange à legitimidade do Ministério Público para ingressar com ações objetivando tutelar os
interesses e direitos individuais homogêneos, concluiu-se no 5º Congresso Brasileiro de Direito do
Consumidor, realizado na cidade de Belo Horizonte que, em se tratando de direitos individuais, ainda
que homogêneos (direitos subjetivos com titularidade determinada ou determinável individualmente,
nascidos de origem comum) a legitimação do Ministério Público é restrita às hipóteses em que a tutela
dos referidos for de relevante interesse social. (Revista de direito do consumidor, n. 35. p. 255, São
Paulo: Revista dos Tribunais jul./set. 2000).
151
publicidades abusivas e enganosas, já difundidas pela indústria do tabaco.
Dentre as diversas ações judiciais patrocinadas por ela, vale destacar uma
ação coletiva em que foi postulada indenização por danos morais e
materiais aos fumantes do Estado de São Paulo, em razão dos danos a eles
causados pelo vício de informação do cigarro (ausência de informação
capaz de esclarecer adequadamente os consumidores e publicidade
ilícita). O processo foi julgado em primeiro grau de jurisdição, donde a
sentença de procedência condenou as rés, Souza Cruz S/A. e Philip
Morris Marketing S/A., ao pagamento de danos morais e materiais às
vítimas do cigarro (autos n. 95.523167-9, julgado pela magistrada Adaísa
Barnardi Isaac Halpern). O processo encontra-se, atualmente, em grau
recursal
347
.
347
O inteiro teor da sentença encontra-se no site <www.adesf.com.br>. Acessado em 15/06/2005.
Sobre o assunto, veja-se reportagem do jornalista Mario César Cavalho: “A indústria do cigarro sofreu
a mais grave derrota jurídica no Brasil. A juíza Adaísa Bernardi Isaac Halpern, da 19ª. Vara Cível de
São Paulo, decidiu que a Souza Cruz e a Philip Morris devem indenizar fumantes e ex-fumantes do
Estado (São Paulo) por omitirem informações sobre a periculosidade do fumo e veicularem
propaganda enganosa e abusiva.
As indenizações podem chegar a R$ 37,5 bilhões, segundo a Adesf (Associação em Defesa da Saúde do
Fumante), que moveu a ação.
A juíza determinou um prazo de 60 dias para que os fabricantes mudem a embalagem do cigarro e
passem a informar os dados técnicos do produto, a composição química do fumo, as precauções de uso,
a sua periculosidade e o responsável técnico. Halpern fixou uma multa diária de R$ 100 mil para a
fábrica que não cumprir a determinação.
A decisão da juíza paulista atende a uma ação coletiva impetrada em 1995 pela Adesf, uma
organização não-governamental, criada um ano antes, por advogados, ambientalistas e médicos.
Os fabricantes tentaram questionar a legitimidade dessa entidade, mas o STJ (Superior Tribunal de
Justiça) considerou a Adesf como legítima representante dos fumantes e ex-fumantes do Estado de São
Paulo.
O mesmo tribunal decidiu que a Philip Morris e a Souza Cruz devem provar que o tabaco não faz mal,
como alega a indústria.
“É uma decisão inédita no mund,o porque nunca um juiz havia determinado mudanças na embalagem
do cigarro”, diz o advogado Luiz Mônaco, diretor jurídico da Adesf. “Essa decisão de primeira
instância ao menos recoloca a verdade em seu devido lugar e ajuda a minar o lobby sujo da indústria”,
afirma Mário Albanese, presidente da entidade.
A juíza não trata de valores na sentença, mas diz que os fumantes devem ser indenizados “por danos
materiais e morais em valor a ser apurado em liquidação de sentença”.
Segundo Mônaco, “liquidação de sentença” é quando, em tese, se cria um fundo a ser gerenciado por
um juiz. De acordo com ele, “agora os fumantes não precisarão mais entrar com um processo novo”,
que há uma decisão favorável para todos os fumantes e ex-fumantes do Estado.
Se prevalecer essa tese, bastará provar ao juiz o tempo que fumou e ele arbitrará o valor da
indenização, acredita Mônaco. A Adesf estima que cada fumante poderá reivindicar R$ 1.500,00 por
ano que fumou. Se 2,5 milhões de fumantes fizerem essa reivindicação e a Justiça entender que a
decisão vale desde que o Código de Defesa do Consumidor foi aprovado, em 1990, as indenizações
alcançariam R$ 37,5 bilhões.
O exercício matemático é fictício porque a Philip Morris e a Souza Cruz já decidiram que vão recorrer
por julgarem que, depois de dez anos, não tiveram tempo para apresentar todas as provas sobre o
cigarro.
A juíza Halpern discorda dessa avaliação. Na sentença, escreveu que “não há necessidade de outras
provas e outras discussões, ainda mais porque nada de novo foi trazido pelas rés”.
152
4 Um consumidor com características peculiares: o fumante passivo,
uma vítima de relações de consumo das quais não participou
Consumidor não é só aquele que adquire e/ou utiliza produtos e
serviços. Esse rótulo não é conferido apenas aos participantes diretos das
relações de consumo. Naquilo que diz respeito à responsabilidade civil, a
Lei 8.078/90 avançou, equiparando aos consumidores aqueles que, embora
não tenham consumido produtos ou contratado serviços, acabaram vítimas
de eventos.
Parafraseando Eduardo Gabriel Saad, o art. 17 impõe que o
manto protetor estendido pelo CDC sobre o consumidor alcance também
aquele que, sem ter participado da relação de consumo, acaba suportando
Halpern entendeu que o cigarro é um produto sujeito às regras do Código de Defesa do Consumidor,
como pretendia a Adesf. Ao não tornar público todos os componentes químicos do cigarro, os
fabricantes, de acordo com a juíza, “incidiram na prática da publicidade enganosa, por omissão de
informações”.
Continua a juíza: “E ao ocultar informações que seriam negativas quanto ao cigarro e às substâncias
que o compõem, as requeridas incidiram na prática de propaganda abusiva (...). Ocultar quais os
componentes químicos do cigarro e a chance de levar o consumidor a sua dependência serve para
enganá-lo, confundi-lo e induzi-lo a comportar-se de forma prejudicial a sua saúde.” (CARVALHO,
Mario César. Folha de São Paulo, C1, Folha Cotidiano. Juíza manda indústria indenizar fumantes. Sexta-
feira, 13 de fevereiro de 2004).
Em outra notícia, produzida também por Mario Cesar Carvalho, descreve-se a opinião das rés,
condenadas na citada ação coletiva: “A Philip Morris e a Souza Cruz informaram, por meio de nota, que
vão recorrer da decisão da juíza Adaísa Bernardi Isaac Halpern. As duas companhias alegam que a
sentença contraria o princípio constitucional da ampla defesa, já que não tiveram tempo suficiente,
desde 1995, para apresentar as provas que comprovariam as suas alegações.
A Souza Cruz diz que a acusação de propaganda enganosa apresentada pela Adesf, e aceita pela juíza, é
infundada, já que não foi apontada “qual a peça publicitária dos fabricantes que estaria em desacordo
com a norma”.
A empresa acredita que a ação coletiva beneficia só os associados da Adesf e que eles terão de propor
novas ações judiciais, “majoritariamente rejeitadas pelo Judiciário”.
Nas contas da Souza Cruz, das 377 ações impetradas a partir de 1995, só oito resultaram em
condenações aos fabricantes, mas estão em fase de recurso. Em 176 delas, os juízes negaram
indenização. Em 80 das ações, as decisões foram favoráveis aos fabricantes, de acordo com a Souza
Cruz. A Folha não encontrou nenhuma fonte independente para confirmar os dados. Para a Sousa Cruz,
as normas sobre advertências nas embalagens são determinadas pela Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária) e sempre foram seguidas pela empresa.
As duas companhias criticaram o fato de a juíza ter aceito realizar o julgamento por decisão antecipada.
Segundo a Souza Cruz, isso inviabilizou a realização de perícias que demonstrariam que não havia
propaganda enganosa.
A decisão antecipada, de acordo com a Souza Cruz, também impediu que fossem apreciados recursos
que foram encaminhados ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça.
A Philip Morris entende que a decisão bloqueou o direito de as empresas apresentarem provas que já
haviam sido determinadas, “em flagrante violação à previsão constitucional do devido processo legal.”
Segundo a empresa, a decisão é incoerente com as mais de 130 decisões já proferidas em favor dos
fabricantes. “Ações como essas têm sido extintas, seja porque a manufatura e comercialização de
cigarros é atividade lícita e regulamentada no país, seja por se reconhecer que os fumantes têm
conhecimento dos malefícios causados pelo cigarro”, diz a nota.”(Ibid., 2004).
153
danos, sejam eles quais forem, causados por imperfeições em produtos e
serviços
348
. Logo, torna-se irrelevante o fato de a vítima não ter adquirido
produtos ou contratado serviços para que seja equiparada ao consumidor;
é imprescindível, apenas, que tenha existido uma relação de consumo
anterior, mesmo que a vítima a desconheça, gerando-se dela danos à sua
incolumidade física ou psíquica.
Imagine-se, a título de ilustração, um pai de família tabagista. A
esposa e a filha, por outro lado, nunca fumaram. Entretanto, sempre
estiveram em contato direto com a fumaça tóxica do produto, em razão da
convivência. Passados vários anos, o fumante, apresentando problemas em
sua saúde, resolve procurar um médico que, após a realização de alguns
exames, diagnostica câncer pulmonar provocado pelo tabagismo. Esse
tabagista enquadra-se perfeitamente no conceito entabulado no art. 2.º,
caput, do CDC; é, pois, um consumidor padrão.
Mas e se a malfadada doença acometesse a mulher do indivíduo
ou a sua filha, essas que são inequivocamente fumantes passivas?
349
Tais
pessoas poderiam utilizar-se do CDC para alicerçar eventuais pretensões
indenizatórias? Seriam elas também consumidoras? A resposta é positiva
para ambas as questões, mormente porque, segundo o art. 17 do CDC, elas
são consumidoras por equiparação legal. Afinal, foram vítimas de um
evento, mesmo não tendo participado diretamente das relações de
consumo firmadas entre o tabagista ativo e a(s) empresa(s) de fumo.
Os fumantes passivos são aqueles que, embora não possuam o
vício de fumar, convivem diretamente com fumantes, inalando, dia-a-dia,
a fumaça tóxica do cigarro. É certo que tais pessoas não se encaixam no
conceito de consumidor padrão. Não adquirem ou usam (por vontade
própria) o cigarro como destinatário final. No entanto, muitas vezes,
348
SAAD, op. cit., 2002. p. 285.
349
A Associação Médica Britânica lançou um ataque frontal contra a indústria do tabaco. O documento
chamado Smoke-Free World (mundo livre de fumaça), divulgado no mês de fevereiro de 2005, reúne
dados científicos e depoimentos favoráveis às leis contra o fumo, feitos por especialistas de oito países,
todos evidenciando ser essencial a publicação de legislações que restrinjam o fumo, em locais fechados,
para salvar vidas. Segundo o relatório, muitas toxinas aspiradas por fumantes passivos são invisíveis e
inodoras, não sendo removidas no ambiente com sistemas de ventilação e de filtragem do ar. Nessas
ambientes fechados, o nível de poluição alcançado pelo cigarro pode ser 30 vezes maior do que o nível
medido em um túnel por onde passam os carros. (AMORIM, Cristina. O Estado de São Paulo, Vida &,
A18, Britânicos lançam ataque ao tabaco. Domingo, 27 de fevereiro de 2005).
154
acabam por se tornar vítimas de uma relação de consumo na qual não
tiveram participação. Embora nunca tenham comprado um cigarro na vida,
foram vítimas do produto mortal, por inalarem sua fumaça tóxica, fato
que, evidentemente, as equipara (fumantes passivos) aos consumidores
350
.
5 A publicidade de cigarros e a coletividade de pessoas exposta a ela
Pela leitura do disposto no art. 29 do CDC, conclui-se que as
pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas publicitárias
ilegítimas, também se encontram equiparadas aos consumidores.
Certamente que a publicidade de cigarros pode levar a tal equiparação.
De início, esclareça-se que a problemática da publicidade de
cigarros poderá, dependendo das particularidades fáticas de cada caso
concreto, envolver tanto os interesses difusos,
351
quanto os individuais
homogêneos ou, ainda, aqueles meramente individuais.
Hoje, no Brasil, a publicidade de cigarros possui amarras fortes,
tendo sido limitada, ao extremo, por legislação específica. De qualquer
350
A Philip Morris e outras indústrias de cigarros americanas não foram responsabilizadas pela doença de
uma comissária de vôo veterana, que alegou ter contraído doença por ser fumante passiva. A decisão foi
de um júri de Miami, Flórida, segundo a Bloomberg News. Os seis jurados rejeitaram as alegações de
Marie Fontana, ex-comissária de vôo da Trans World Airlines, de que os fabricantes de cigarros
deveriam reembolsá-la em mais de US$ 1 milhão de custos médicos e renda perdida, além de
pagamentos adicionais por dores e sofrimento. O caso de Fontana foi o primeiro julgamento sobre
fumante passivo na Flórida desde que os fabricantes de cigarros pagaram quase US$ 350 milhões em
1997 para resolver uma ação popular. (Fumante passiva perde. Gazeta Mercantil, Legislação, A-12, de 6
de abril 2001).
351
Em novembro de 2004, a procuradora da República em São Paulo, Inês Virgínia Prado Soares, ajuizou
ação judicial, pretendendo a condenação da empresa Souza Cruz no valor de R$ 20 milhões – a ser
destinado ao Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos –, isso por ter difundido publicidade
irregular. A empresa colocava um cartão publicitário entre o maço de cigarros e a embalagem externa, de
maneira que cobrisse as fotos da campanha publicitária do Ministério da Saúde sobre as doenças
provocadas pelo fumo. Em outubro de 2002, a empresa acabou multada administrativamente em R$ 200
mil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pela irregularidade do material publicitário.
Legalmente – informa a matéria publicada no site Espaço Vital – “a propaganda de cigarros só pode ser
feita na parte interna dos estabelecimentos comerciais que vendem o produto. A denúncia ao Ministério
Público Federal foi feita por um cidadão, que anexou um maço – fechado – de cigarros da marca
“Free” como prova. A campanha do Ministério da Saúde chegou a causar polêmica quando foi lançada,
devido às imagens fortes que usava como a de doentes em estado grave, e de anunciar em linguagem
clara problemas de saúde decorrentes do hábito de fumar. Aos procuradores, a Souza Cruz alegou que
utilizou os cartões entre o maço e a embalagem de plástico desde 1995, para propaganda institucional.
Cita como exemplo a divulgação de eventos que eram patrocinados pela empresa, como o “Hollywood
Rock”, o “Free Jazz” e o “Carlton Arts”. A propaganda que causou a ação civil fazia menção às novas
embalagens da marca “Free”. O Ministério Público estimou o valor de R$ 20 milhões com base na alta
lucratividade do setor e levando em conta que a empresa admite, segundo a interpretação da promotora,
descumprir as restrições à propaganda de cigarros desde 1995.” (Disponível em: <www.espacovital.
com.br>. Acessado em 16/11/2004).
155
modo, nem sempre foi assim. Até pouco tempo atrás, se difundiam, ao que
tudo indica, sem qualquer critério sério de filtragem, as mais diversas
ofertas publicitárias, grande parte delas enganosas e abusivas, já que
faziam apologia do cigarro, um produto potencialmente perigoso,
vinculando-o a atributos nada íntimos ao seu consumo, como a saúde, o
sucesso profissional, o requinte, a beleza e a sensualidade.
Por ocasião de tal espécie de publicidade, toda uma coletividade
indeterminada de pessoas encontrava-se sujeita a sofrer danos futuros.
Eram peças publicitárias que mostravam o fumante como uma pessoa bem
sucedida profissionalmente, sedutora, bonita e saudável, sem, no entanto,
retratar a verdadeira face do produto, a saber, a morte prematura daqueles
que o consomem. Nesses casos, estar-se-ia diante dos chamados interesses
difusos, já analisados alhures.
Um interessante exemplo ocorrido no País bem retrata situações
envolvendo direitos difusos em razão de publicidades ilícitas difundidas
pela indústria do fumo. O Ministério Público do Distrito Federal ajuizou
ação coletiva objetivando o ressarcimento de danos morais acarretados a
uma coletividade indeterminada de pessoas, haja vista a veiculação de
oferta publicitária abusiva (processo n. 102028-0/2004). No pólo passivo
da relação jurídica processual encontram-se as empresas Souza Cruz S/A,
Standard Ogilvy & Mather Ltda (agência de publicidades) e a produtora
Conspiração Filmes e Entretenimento S/A. Segundo a petição inicial, as
rés uniram-se para criar e veicular publicidade antijurídica de tabaco,
usando mensagens subliminares e técnicas para atingir crianças e
adolescentes. O laudo, elaborado pelo Instituto de Criminalística do
Distrito Federal, depois de prévia análise, concluiu que “as imagens
revelam forte apelo e atratividade do público infanto-juvenil pela
propaganda do cigarro, sem prejuízo de alcance do público em geral, mas
o texto revela um contexto nítido de dedicação aos jovens”. O juiz
Robson Barbosa de Azevedo, da 4ª. Vara Cível de Brasília, julgou
procedente o pedido formulado nesse processo, condenando as rés
solidariamente ao pagamento de uma indenização por danos morais
difusos, no valor de R$ 14 milhões, numerário a ser destinado ao fundo de
156
que trata o art. 13 da Lei 7347/85, e à veiculação de contrapropaganda a
ser elaborada pelo Ministério da Saúde. Segundo a sentença, as rés não
lograram êxito na demonstração de que não visavam atingir o público
infanto-juvenil, limitando-se a explanar a respeito de técnicas de
marketing, quando se pretende vender produtos a jovens e/ou crianças.
Além disso – aponta a sentença –, o formato videoclipe utilizado
encontra-se nitidamente voltado para essa faixa etária; para o magistrado,
a abusividade também restou caracterizada pela utilização de mensagens
subliminares na publicidade
352
.
Os interesses individuais homogêneos, por outro lado, surgirão
quando a publicidade ilícita tiver contribuído para tornar efetiva uma
relação de consumo geradora de lesões aos interesses e direitos de
consumidores.
No caso do cigarro propriamente dito, a publicidade é utilizada
como meio indutivo, sedutor, condicionante, já que impele indivíduos a
formarem uma imagem errônea do ato de fumar. Muitas vezes, o fumante
inicia-se no caminho tortuoso da dependência por um vício de escolha,
que o levou a acreditar, até mesmo inconscientemente, que aquele produto
lhe traria algum benefício. Se a publicidade do cigarro foi meio
condicionante para uma coletividade fumar, e o cigarro acabou por gerar
danos à saúde de seus integrantes, estar-se-á diante dos interesses
individuais homogêneos que, conforme já esclarecido, permitem a
propositura de ação una pelos entes enumerados no art. 82 do CDC.
Finalmente, o fumante individual, caracterizado como
consumidor padrão, poderá ingressar com ação, objetivando ressarcir-se
dos danos materiais e/ou morais, quando influenciado pelas práticas
enganosas e/ou abusivas da publicidade de cigarros. Terá, por óbvio,
interesse de agir, não necessitando aguardar a propositura ou desfecho de
ações coletivas.
352
Disponível em: <http://www.espacovital.com.br>. Acessado em 24/04/2006.
157
6 A coletividade de pessoas vítima de vícios de informação (ausência
de informes adequados sobre a natureza do cigarro e os riscos
advindos do seu consumo)
Um dos direitos do consumidor, a ser obrigatoriamente
respeitado pelos fornecedores de produtos e serviços, é o de ser
informado, adequada e claramente, “sobre os diferentes produtos e
serviços, com especificação correta de quantidade, características,
composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que
apresentem” (art. 6º, III, da Lei 8.078/91).
Dependendo da ótica em que se analisa o desrespeito a esse
direito básico do consumidor, poder-se-á, também, estar diante de
interesses difusos, individuais homogêneos ou, ainda, individuais.
A mera carência de informações adequadas e claras acerca de
um produto ou serviço,
353
capaz de proporcionar prejuízos a uma gama de
pessoas indeterminadas, caracteriza o interesse ou direito difuso apto a
motivar ações – a serem ajuizadas pelos entes arrolados no art. 82 da Lei
8.078/91 – destinadas ao cumprimento de obrigação de fazer – no caso,
obrigação de informar (CPC, art. 461).
Interessante ação, ajuizada na comarca de Belo Horizonte, MG,
pela organização de sociedade civil e interesse público (OSCIP),
denominada Centro de Estudos e Promoção ao Acesso à Justiça (CEPAJ),
tem por base justamente a defesa de interesses e direitos difusos
vinculados à pobreza de informações veiculadas pela indústria do tabaco,
acerca dos malefícios advindos do uso do cigarro. Pretende-se que 4
(quatro) fabricantes do produto elaborem e incluam, nos maços de
cigarros que fabricam, prospectos – a exemplo das bulas de remédios –
que assegurem informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em
língua portuguesa sobre: a) todas as substâncias (composição química) – e
353
“Um tribunal de apelações de Washington, nos Estados Unidos, recusou anteontem um processo de
U$280 bilhões contra a indústria do fumo americana. O governo acusava as principais empresas do setor
de ocultar dos clientes os riscos relativos ao ato de fumar e de vender os produtos a menores. Também
se solicitava o ressarcimento pelos gastos governamentais com a assistência médica de vítimas do
cigarro. O processo, iniciado em 1999, foi paralisado porque o tribunal considerou que as leis federais
sobre o crime organizado não poderiam ser aplicadas neste caso. AFP.” (Vida &, Estado de São Paulo,
A15, Tribunal recusa ação contra a indústria do fumo. Domingo, 6 de fevereiro de 2005).
158
suas especificações e características – que compõem a mistura dos
cigarros que produzem; b) a quantidade de cada uma dessas substâncias
que compõem a mistura dos cigarros produzidos pelas rés; c) os
malefícios – ao menos os mais graves – que essas substâncias poderão
acarretar à saúde daqueles que as aspiram; d) o funcionamento do
mecanismo viciante da nicotina no organismo humano, de forma
compreensível aos leigos; e) a média de nicotina consumida a cada
tragada; f) a quantidade de nicotina necessária para tornar o fumante um
dependente; g) as mais perigosas substâncias (composição química) – e
suas especificações e características – emanadas da fumaça do cigarro –
mais de 4.700 substâncias tóxicas já foram identificadas na fumaça do
cigarro; h) os malefícios – ao menos os mais graves – que essas
substâncias emanadas da fumaça do cigarro poderão acarretar ao
organismo humano quando aspiradas; i) responsável químico pelo
produto; j) as precauções de uso; k) as contra-indicações e precauções, de
modo a indicar, inclusive, quais pessoas têm mais disposição para
adquirir doenças tabaco-relacionadas.
Sob outro ângulo, o desrespeito do direito elementar de
informação é induvidosamente responsável pela motivação de danos ao
consumidor, situação que, se concretizada, evidencia a configuração do
denominado defeito de informação (art. 12 da Lei 8.078/91). Em tais
hipóteses, estar-se-á diante de um interesse individual homogêneo,
propenso a dar ensejo a ações judiciais, a serem também movidas pelos
entes arrolados no art. 82 da Lei consumerista, com o intuito de reparar o
dano sofrido pela coletividade de pessoas atingidas por doenças-tabaco
relacionadas devidamente vinculadas à escassez ou completa falta de
informações acerca do cigarro (origem comum).
Finalmente, o consumidor individual, consciente de que
suportou lesões advindas de defeito de informação de um produto ou
serviço, é detentor de um interesse individual. Aqui, incontestavelmente,
poderá ele, sem a necessidade de aguardar o ajuizamento ou desfecho de
uma ação coletiva, promover ação judicial, visando obter o ressarcimento
pelos danos suportados. Diga-se, aliás, que um dos fundamentos basilares
159
de ações individuais, promovidas por fumantes contra as indústrias do
tabaco é, justamente, o defeito de informação.
7 A indústria do tabaco
No decorrer desse trabalho, as expressões indústria do fumo ou
indústria do tabaco, serão utilizadas com a intenção de se referir às
empresas fabricantes de produtos derivados do tabaco, e isso de uma
maneira generalizada. De qualquer modo, os argumentos utilizados na
elaboração de alguns capítulos – o que trata sobre a teoria do abuso do
direito, por exemplo –, não se aplicam a todas as empresas de fumo do
planeta, restringindo-se apenas àquelas que se inserirem no contexto dos
temas em destaque.
Logo, a terminologia indústria do tabaco abrange genericamente
todas aquelas empresas fabricantes de cigarros, a exemplo da gigantesca
Philip Morris, a maior empresa do setor, no mundo. As empresas R. J.
Reynolds Tobacco Holdings Inc., British American Tobacco PLC, Lowes
Corp. e Vector Goup também lucram com a atividade de fabricação e
comercialização de produtos derivados do tabaco.
No Brasil, a Souza Cruz S.A., controlada pelo grupo British
American Tobacco PLC e a Philip Morris do Brasil, destacam-se como as
maiores fabricantes do produto. Despontam também no País: Cibrasa
Indústria e Comércio de Tabacos Ltda., Cabofriense Indústria e Com. de
Cigarros Ltda., Sudamax Indústria e Comércio de Cigarros Ltda.,
Indústria de Tabaco Brasileira Ltda.
Não há maiores dificuldades em se situar tais empresas no
conceito de fornecedor esculpido pelo CDC. Afinal, são elas pessoas
jurídicas, cuja atividade habitual é a de fabricar e comercializar produtos
derivados do tabaco, e isso, obviamente, vislumbrando lucratividade.
160
8 Um produto mórbido e mortífero denominado cigarro
Já se disse que hodiernamente imputa-se ao consumo de cigarros
a mais devastadora causa evitável de doenças e mortes prematuras da
história da humanidade. O vício de fumar atingiu proporção pandêmica,
sendo responsável por, aproximadamente, 5 milhões de mortes prematuras
anuais em todo o mundo
354
. Contudo, curiosamente, o tabaco, em suas
diversas formas, tem circulação mais freqüente do que qualquer outro
artigo, excetuando-se, como é intuitivo, o dinheiro
355
.
É o cigarro uma invenção bastante sofisticada, cuja fumaça
contém milhares de substâncias tóxicas, desenhado para fazer viciar
aqueles que decidem por principiar o seu consumo. Sob o prisma
comercial, caracteriza-se por ser um produto formado por uma pequena
porção de fumo e mais inúmeras substâncias químicas, todas enroladas em
papel fino, acoplado em um dispositivo de filtragem, e cuja destinação é o
alcance do “prazer”, mediante o ato de aspirar a fumaça emanada de sua
queima.
Já sob o enfoque jurídico, o cigarro pode ser definido como um
produto não durável, potencialmente nocivo à saúde, e inseguro (propenso
a gerar acidentes de consumo) para todos os que dele fazem uso, ou que à
sua fumaça tóxica encontram-se expostos.
354
Tabagismo & saúde nos países em desenvolvimento. Documento organizado pela Comissão Européia
em colaboração com a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial para a Mesa Redonda de Alto
Nível sobre Controle do Tabagismo e Políticas de Desenvolvimento Fev/2003. Tradução feita pelo
instituto Nacional de Câncer (INCA). Disponível em <http://www.inca.gov.br>. Acessado em
20/10/2005.
355
Segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo publicada em 1981, o brasileiro, naquela época,
gastava mais com cigarro que com saúde e educação. De acordo com o levantamento feito pelo IBGE,
nas dez principais regiões metropolitanas no país, o fumante brasileiro aplicava, em média, 4,3% de sua
renda com cigarros – em São Paulo essa despesa chegava a 4,8%. Em outra pesquisa realizada no Rio de
Janeiro pela Fundação Getúlio Vargas e publicada na revista “Conjuntura Econômica”, em junho de
1974 e agosto de 1975, constatou-se que as despesas com o vício (incluindo fósforos, isqueiros e fluidos
ou gás) representavam 4,4% da renda recebida. (O custo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 17 mar.
1981. p. 16).
CAPÍTULO IV
RESPONSABILIDADE CIVIL
1 A vastidão do tema responsabilidade civil
Antes de ingressar no tema, abordando-o pelo foco da
responsabilidade objetiva, é de boa técnica resgatar algumas noções
históricas e conceituais, de modo a possibilitar uma melhor e mais
profunda compreensão do que se propõe nesse trabalho.
De início, vale dizer que refletir acerca da responsabilidade
civil é refletir sobre o Direito como um todo. Impressiona o número de
tentáculos do instituto que, além de alçarem a variedade de ramos do
Direito, reproduzem-se com o mesmo vigor despendido para o surgimento
de novos campos jurídicos. Seja qual for o assunto jurídico em estudo –
vinculado, por exemplo, aos direitos da informática, educação, do meio-
ambiente, espacial ou do consumidor –, certamente o estudioso haverá de
se deparar com a temática responsabilidade civil.
Esse fenômeno, caracterizado por uma abrangência contínua,
recebeu de Savatier a denominação de hipertrofia da responsabilidade
civil
356
. Não por outra razão, Maria Helena Diniz leciona ser apropriado
356
SAVATIER, René. Traité de la responsabilité civile em droit français, Paris: [s.c.p.], 1939. t. 1, p. 1.
162
tratar o instituto no âmbito da Teoria Geral do Direito
357
. Carvalho de
Mendonça, na mesma senda, adverte que não existe, em todo direito civil,
matéria mais vasta, mais confusa e de mais difícil sistematização do que a
da responsabilidade pelos atos ilícitos
358
.
Deveras, é lógica a necessidade de sedes seguras para abrigar o
instituto da responsabilidade civil em todos os ramos do Direito, uma vez
que o ilícito pode configurar-se e causar danos em situações concretas
vinculadas a todos eles. Nesse viés, ressalte-se, a observação do eminente
jurista, José Aguiar Dias, no sentido de que, havendo manifestação de
atividade humana, o problema da reparação de danos poderá vir a
surgir
359
.
2 Planos moral e jurídico
Lado outro, e conquanto seja realmente crível a afirmação,
uníssona entre os mestres, de que a responsabilidade corresponde a um
fenômeno vinculado a todos os domínios da vida social e, portanto, não
maniatado apenas e tão-somente à vida jurídica, há de se ter em mente que
a atividade do homem desenvolve-se em diferentes planos: o Moral e o
Jurídico
360
. Há, porém, de se avaliar se essa classificação apresenta
sentido prático no estudo ora desenvolvido.
Deve-se a Thomasius, cujas idéias foram desenvolvidas por
Kant, a distinção entre Direito e Moral. A ação humana, segundo esse
pensador, é distinta em dois momentos ou fases: uma interna,
caracterizada pela vida interior ou pelo plano da consciência; outra
externa, ou seja, aquela que se projeta para o exterior, criando relações
com outros membros da sociedade. Quando a ação se desenrola apenas no
plano da consciência, “o homem é o único juiz de sua conduta”. Esse é o
único foro a recorrer, o foro da Moral. Por outro lado, quando a ação se
exterioriza e provoca relações com outros indivíduos, a autoridade
357
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. v. 7, p. 4.
358
MENDONÇA, Manuel Inácio Carvalho de. Doutrina e prática das obrigações ou tratado geral dos
direitos de crédito. 4. ed. Aumentada e atualizada por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1956.
t. II, p. 436.
359
DIAS, José Aguiar. Da responsabilidade civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 1.
360
Ibid., p. 2-3.
163
superior, incumbida de harmonizar o agir de um com o agir dos demais,
poderá intervir. Esse foro externo seria aquele que toca ao Direito. Vê-se,
pois, o destaque dado por Thomasius ao critério da exterioridade como a
primeira nota distintiva entre os mundos Moral e Jurídico
361
.
Ademais, como nota complementar à doutrina da exterioridade,
Thomasius desenvolve o tema da coercibilidade, ainda intencionado a
demonstrar uma separação absolutamente visível entre Moral e Direito.
Considerou ele ser essa característica nota específica ao Direito; os
deveres morais não são coercíveis, em contraposição aos jurídicos, que os
são.
362
Para ele, apenas os atos de natureza exterior são passíveis de
interferência do Poder Público, “no sentido de exigir fidelidade a um
comportamento, ditado pela via em comum”
363
.
Essa distinção, todavia, não conduz à conclusão de que o
instituto da responsabilidade limita-se ao ilícito jurídico. Não mesmo.
Consoante leciona José Aguiar Dias,
a responsabilidade pode resultar da violação, a um só tempo,
das normas, tanto morais, como jurídicas, isto é, o fato em que
se concretiza a infração participa de caráter múltiplo, podendo
ser, por exemplo, proibido pela lei moral, religiosa, de
costumes ou pelo Direito. Isso põe de manifesto que não há
separação estanque entre as duas disciplinas. Seria infundado
sustentar uma Teoria do Direito estranha à Moral
364
.
É bem verdade que, didaticamente, essa visão separatista entre
os planos Moral e Jurídico revela-se interessante. Porém, tal cisão, se
levada aos extremos, não se sustenta – em verdade, a antítese
“exterioridade-interioridade”, utilizada para dividir os dois planos, deve
ser vista com reservas.
Obviamente que reparação de danos haverá, apenas, depois de
configurado o prejuízo. Nesse aspecto específico, o Direito realmente
incidirá somente depois da exteriorização da vontade geradora de
prejuízos. Todavia, advogar, hoje, a tese de que a coercibilidade somente
361
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 654.
362
GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução à ciência do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1960. p. 68.
363
REALE, op. cit., 2002. p. 655.
364
DIAS, op. cit., 1994. p. 4.
164
tem incidência depois de exteriorizada a conduta do agente, significa
fazer tábula rasa da norma constitucional que, expressamente, prevê que a
lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito (art. 5º, XXXV).
Quer-se dizer que a conhecida máxima cogitationis poenam
nemo patitur, formulada por Ulpiano, muito embora possa, para alguns,
ter força plena, hodiernamente, não se sustenta numa análise pouco mais
penetrante. Hoje, o Direito não cuida apenas da exteriorização da
vontade; hoje, pessoas podem sofrer conseqüências jurídicas pelo simples
ato de tencionar, arquitetar ou pretender – o pensamento é livre; a
intenção de concretizá-lo nem sempre o é. Assim, melhor é apoiar-se na
afirmação de Radbruch, no sentido de que a conduta interna só interessa
ao Direito quando anuncia ou aguarda uma conduta exterior
365
.
O dispositivo constitucional aludido linhas atrás demonstra o
acerto dessa afirmativa, de modo que, atualmente, é perfeitamente
possível pleitear-se tutela jurisdicional de natureza preventiva (ação de
conhecimento), destinada a impedir a prática, a repetição ou a
continuação de ilícito. Aliás, existe norma processual expressa
autorizando essas posturas (CPC, art. 461); não se olvide, ainda, da
possibilidade presente, no ordenamento jurídico, de ajuizamento de ações
cautelares, de nunciação de obra nova e do interdito proibitório (todas,
igualmente, de natureza preventiva).
A tutela inibitória surge, pois, como conseqüência necessária do
novo perfil do Estado e das novas situações de direito substancial
366
.
Leciona Luiz Guilherme Marinoni que a inexistência, no passado,
de uma ação de conhecimento dotada de meios executivos
idôneos à prevenção, além de relacionada à idéia de que os
direitos não necessitariam desse tipo de tutela, encontrava
apoio no temor de se dar poder ao juiz, especialmente poderes
executivos para atuar antes da violação do direito. Supunha-se
que a atuação do juiz, antes da violação da norma, poderia
comprimir os direitos de liberdade
367
.
365
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 58.
366
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória e tutela de remoção do ilícito. Disponível em: <www.jus.
com.br>. Acessado em 11/02/2006.
367
Ibid., 2006. No mesmo trabalho, o autor mostra ser curiosa a estrutura do CPC brasileiro, nos moldes
estabelecidos em 1973, porquanto, “ao mesmo tempo em que não permite a elaboração dogmática de
165
Por outro raciocínio, a investigação da intenção do agente,
depois de praticado o ato, também tem conseqüências jurídicas – nesse
prisma, os efeitos alcançam inclusive o âmbito da responsabilidade civil.
Concretizado o ato, exteriorizando-se ele daquela casca protetora – a
consciência humana – e ressurgindo como realidade evidente,
ontologicamente mostra-se insubsistente a tentativa de cisão que almeje
eliminar quaisquer pontos de contrato entre os mundos Interno e Externo.
O ato exteriorizado abrangerá, nas suas entranhas, aquele embrião nascido
no plano psíquico (a intenção de fazer realidade o ato). A natureza do ato
concretizado será uma, afinal – parafraseando Miguel Reale –, “sob certo
prisma, o pensamento já é um esboço de ação”
368
.
É de suma importância a investigação da intenção, por exemplo,
no Direito Penal. Afinal, lá, a punição por dolo é a regra; a sanção por
culpa é excepcional (CP, 18, parágrafo único) – a pena é proporcional ao
elemento subjetivo. Prescreve o art. 23 do CP não haver crime quando o
agente pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa e em
estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Essas hipóteses são chamadas de excludentes da antijuridicidade. A
investigação, aqui, do elemento intencional revela-se evidente. Sem o
exame da consciência, como se saber se verdadeiramente o réu roubou
para saciar a fome de seu recém-nascido rebento; ou se atacou
violentamente outrem visando se defender de um assalto igualmente
violento? Por outro lado – e isso também comprova a importância da
investigação da intenção no âmbito do Direito –, a mesma Cartilha legal
prescreve que o agente responderá, em qualquer das hipóteses previstas
no aludido art. 23, pelo excesso doloso ou culposo (CP, art. 23, parágrafo
único).
De semelhante mérito a análise do elemento intencional no
campo da responsabilidade civil. Basta notar a importância que se dá, no
uma ação de conhecimento preventiva atípica, renegando a função preventiva à ação cautelar, institui
dois procedimentos especiais que conferem toda a força necessária para o juiz conceder tutela
preventiva à posse e à propriedade, quais sejam, a nunciação de obra nova (art. 934, CPC) e o
interdito proibitório (art. 932, CPC). Isso, ao mesmo tempo em que revela a ideologia que inspirou o
CPC de 1973, dá sustentação à tese de que a ação de conhecimento atípica não podia exercer efetiva
função preventiva”.
368
REALE, op. cit., 2002. p. 668.
166
Direito, à conduta humana culposa, causadora de danos a outrem. Isto é,
em situações diversas, a censurabilidade da conduta praticada é requisito
inarredável ao êxito numa ação de ressarcimento de danos – referindo-se,
aqui, exclusivamente à responsabilidade aquiliana. A vontade – leciona
Sérgio Cavalieri Filho –, “como elemento subjetivo da conduta, é a carga
de energia psíquica que impele o agente; é o impulso causal do
comportamento humano”
369
. Sabe-se existirem condutas anti-sociais
desprovidas de intenção, como também existem aquelas impregnadas de
tal elemento. E, em grande parte dos casos, esse requisito (a culpa)
consubstancia-se em fator que não se pode dispensar, para a procedência
de pedidos indenizatórios formulados em ações judiciais. Em outras
situações, em que o elemento psíquico é afastado como requisito para
autorizar pretensões ressarcitórias (responsabilidade objetiva), ele tem
valia, por exemplo, no momento de se arbitrar eventual indenização por
danos morais.
3 Responsabilidades civil e penal
Há diferenças entre as responsabilidades civil e penal.
Possui a responsabilidade penal evidente cunho social, na
medida em que sua função é a de punir aqueles que descumprem
determinadas previsões legais construídas com o objetivo de preservar a
paz social. Afinada ao princípio nulla poena sine lege – o que, em última
análise, impõe maior exigência para o seu aperfeiçoamento –, se
concretizará sempre que a norma abstrata, positivada pelo legislador
como conduta a ser necessariamente seguida, for contrariada. Não há,
aqui, preocupação em ressarcir eventuais danos sofridos pelas vítimas. O
dano que se combate é o social, detendo a responsabilidade penal
manifesto efeito pedagógico – à sociedade e ao próprio ofensor – e
evidente caráter punitivo.
Na seara da responsabilidade civil há, igualmente, preocupação
com a manutenção da ordem social, muito embora alguns advoguem a tese
369
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 41.
167
oposta. Obviamente que qualquer ameaça ou lesão a um integrante da
sociedade configura-se também em ameaça ou lesão à própria sociedade;
afinal, a vítima é parte integrante dela, consoante argutamente leciona
José de Aguiar Dias
370
. É bem verdade que o escopo, aqui, é
imediatamente o ressarcimento de danos acarretados pela concretização
do ato danoso; busca-se a reparação de prejuízos. Mediatamente, porém,
possui o instituto da responsabilidade civil efeito pedagógico, atuando no
meio social de modo a alertar e educar a sociedade acerca das
conseqüências jurídicas que atos anti-sociais podem acarretar. Tal
realidade mostra-se ainda mais visível ao se pensar nos chamados direitos
coletivos lato sensu. Quando os interessados são muitos, às vezes pessoas
indeterminadas, ligadas apenas por circunstâncias de fato (interesses
difusos), dá-se, naturalmente, maior dimensão à situação concreta,
passando ela a interessar a um maior número de pessoas – afinal, os
danos, nesse caso, são maiores.
A diferença, ao que parece, reside principalmente no fato de que
a responsabilidade penal não se preocupa com o ressarcimento de danos
aos particulares ou à coletividade. Sua ação volta-se exclusivamente ao
restabelecimento do equilíbrio social afetado pelo ato ilícito. Ademais, o
exame da culpabilidade do agente é imprescindível à incidência da
responsabilidade penal. Em definição rigorosa – diz José de Aguiar Dias
–,
a responsabilidade penal consiste na declaração, pronunciada
pelo órgão jurisdicional estatal, de que em determinado
indivíduo se verificam, em concreto, as condições de
imputabilidade pela lei genericamente requeridas, e de que ele,
se é imputável, é obrigado efetivamente a sofrer as
conseqüências de um fato, como seu autor. A imputabilidade,
uma vez afirmada em forma de acusação concreta, é a
imputação; declarada como efetiva e real, constitui a
responsabilidade
371
.
Em síntese, a responsabilidade civil representa mecanismo
jurídico voltado ao ressarcimento de danos; a responsabilidade penal, por
seu turno, não se preocupa em restabelecer prejuízos, mas, sim, em
370
DIAS, op. cit., 1994. p. 7.
371
Ibid., p. 7.
168
restaurar a ordem social, mediante a imposição de uma pena ao agente. É
bem verdade que possuem, as duas vertentes da responsabilidade,
fundamento quase idêntico; as condições em que surgem é que são
diferentes, porque uma é mais exigente do que a outra quanto ao
aperfeiçoamento dos requisitos que devem coincidir para se efetivar
372
.
Noutras palavras, tratando-se de pena, atende-se ao princípio nulla poena
sine lege, diante do qual só exsurge a responsabilidade penal em sendo
lesada a norma compendiada na lei; a responsabilidade civil, por sua vez,
emerge do simples fato do prejuízo, que viola também o equilíbrio social,
mas que não exige as mesmas medidas no sentido de restabelecê-lo,
mesmo porque outra é a forma de consegui-lo
373
. A reparação civil
reintegra o prejudicado àquela situação patrimonial anterior – pelo menos
tanto quanto possível –; a sanção penal não oferece possibilidades de
recuperação ao prejudicado; sua finalidade é restituir a ordem social ao
estado anterior à turbação
374
.
4 Esboço histórico
4.1 Direito romano
O princípio consagrado no revogado art. 159 do CC de 1916 –
com redação semelhante ao art. 186 do atual CC – foi fruto de uma lenta
evolução dos conceitos jurídicos e, portanto, não proveniente da
consciência humana, instintivamente, como se poderia imaginar
375
. E, ao
discorrer sobre tal evolução, impossível seria não principiar o estudo pelo
direito romano, porquanto a teoria clássica da culpa recebeu do direito
justinianeu a celula mater, da qual nasceu o princípio genérico da
responsabilidade civil extracontratual, consolidado no art. 1.382 do
Código Civil de Napoleão
376
.
372
DIAS, op. cit., 1994. p. 8.
373
Ibid., p. 8.
374
Ibid., p. 8.
375
GARCEZ NETO, Martinho. Responsabilidade civil no direito comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
p. 22.
376
LIMA, Alvino. Culpa e risco. 2. ed. Revista e atualizada pelo professor Ovídio Rocha Barros Sandoval.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 19.
169
Nos primórdios da civilização humana, predominava a vingança
coletiva, que possuía, como característica, a reação conjunta do grupo
contra o agressor pela ofensa a um de seus componentes
377
– circunstância
essa comum a todas as nações, em suas origens. Evoluiu-se,
posteriormente, para uma reação individual em que os homens faziam
justiça por meio de suas próprias forças, ou seja, a chamada vingança
privada. Essa correspondia, na verdade, à faculdade de determinado
indivíduo, titular de um direito, perseguir, por seus próprios meios, o
respeito e/ou a execução daquele direito. A vítima do ato lesivo, portanto,
em verdadeira vindita descomedida, dispunha do poder de sanção pelas
próprias mãos
378
. Aqui, a responsabilidade, conquanto alheia ao âmbito
jurídico, era objetiva, porquanto absolutamente dissociada da noção de
culpa.
A denominada pena de Talião, da qual se encontram vestígios
na Lei das XII Tábuas, caracterizou-se em um marco evolutivo da
responsabilidade civil extracontratual. Ainda com relação a ela,
sintetizada nas fórmulas “olho por olho, dente por dente”, “quem com
ferro fere, com ferro será ferido”, o Poder Público, para evitar abusos,
somente interferia para declarar quando e como a vítima poderia ter o
direito de retaliação, produzindo na pessoa do lesante dano idêntico ao
que experimentou
379
. O legislador, literalmente, apropriou-se da iniciativa
particular, intervindo para declarar as situações em que teria a vítima o
direito de vingar-se
380
. Embora à primeira vista espelhasse barbaridade,
representou um avanço, porquanto se estabelecera uma rigorosa
adequação entre a ofensa – ou um dano sofrido – e a vingança a que seu
autor ficava exposto em razão da sua prática
381
– aqui, diferentemente do
que ocorreu nas fases aludidas linhas atrás, percebe-se que o Direito
passou a se preocupar com o dano, legalizando e regulamentando a
vingança privada.
377
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva,
1992. v. 7. p. 8.
378
FERREIRA, Henrique Felipe. Fundamentos da responsabilidade civil. Dano injusto e ato ilícito. Revista
de direito privado, n. 3, São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 2000. p. 111.
379
DINIZ, op. cit., 1992. p. 8.
380
DIAS, op. cit., 1994. p. 17.
381
GARCEZ NETO, op. cit., p. 22-23.
170
Empós, adveio o período da composição voluntária, em virtude
da observância de que seria mais conveniente acordar com o autor da
ofensa do que impor-lhe a retaliação. A reparação, aqui, se dava mediante
a prestação da poena (pagamento de certa quantia em dinheiro ou entrega
de objetos), preço que o ofensor pagava para esquivar-se da retaliação,
obtendo, por conseqüência, o direito ao perdão da vítima.
A composição generalizou-se e, por fenômeno análogo ao da
admissão do Talião, o legislador sancionou seu uso, vedando-se à vítima,
daí em diante, a realização da justiça pelas próprias mãos, impelindo-a a
aceitar a composição fixada pela autoridade
382
. Substituiu-se a vingança
pela composição a critério da vítima, subsistindo essa última como
fundamento ou forma de reintegração do dano sofrido
383
.
A este momento sucede o da composição tarifada, imposta pela
Lei das XII Tábuas, que estabelecia, em casos concretos, o valor da pena
a ser paga pelo ofensor – novamente é visível a reação contra a vingança
privada, que é assim abolida e substituída pela composição obrigatória.
Nota-se, ademais, a influência da inteligência social, compreendendo-se
que a regulamentação dos conflitos não é somente uma questão entre
particulares
384
.
Ao assumir a direção da composição dos pleitos, a Autoridade
começou, outrossim, a punir, substituindo-se o particular, na atribuição de
ferir o causador do dano
385
. Nesse viés, evoluiu-se da justiça punitiva
exclusiva, reservada aos ataques dirigidos diretamente contra a
Autoridade, para a justiça distributiva, porquanto se percebeu que,
mediatamente, era ela também atingida por certas lesões causadas por
particulares, já que perturbadoras da ordem que se empenhava em
manter
386
. Dividiram-se, então, os delitos em duas categorias: os públicos
(ofensas mais graves, de caráter perturbador da ordem – esses eram
reprimidos pela autoridade, como sujeito passivo atingido); e os privados
382
DIAS, op. cit., 1994. p. 17.
383
LIMA, op. cit., 1999. p. 20.
384
Ibid., p. 21. É importante notar-se a observação desse autor, quando leciona que a Lei das XII Tábuas,
que determinava o quantum para a composição obrigatória, regulava apenas casos concretos, não
prevendo nenhum princípio geral fixador da responsabilidade civil.
385
DIAS, op. cit., 1994. p. 17.
386
Ibid., p. 17.
171
(aqui, a autoridade intervinha apenas para fixar a composição, evitando
conflitos)
387
.
Surge, então, a afamada Lei Aquília, que além de emprestar seu
nome à nova designação da responsabilidade delitual, mostrou-se
essencial na construção da estrutura jurídica da responsabilidade
patrimonial
388
.
A Lex Aquilia, ao substituir o sistema que previa a imposição de
penas fixas por uma pena proporcional ao dano causado, cristalizou a
idéia de reparação pecuniária do dano, estabelecendo que o patrimônio
do ofensor suportasse o ônus da reparação, em razão do valor da res,
delineando a noção de culpa como fundamento da responsabilidade, de
modo que o agente estaria isento de qualquer responsabilidade, se essa
não se configurasse – a partir de então, atribuía-se o dano à conduta
culposa
389
. A culpa aquiliana – leciona Josserand – seria uma espécie de
pecado jurídico; quem não o comete não é responsável
390
.
São três os capítulos contidos na Lei Aquília. O primeiro
restringe-se a regulamentar os casos envolvendo mortes de escravos ou
quadrúpedes, da espécie dos que pastam em rebanho; o segundo regula o
dano causado por um credor acessório ao principal, que faz abatimento da
dívida com prejuízo do primeiro; o derradeiro foi dedicado ao trato do
dano por ferimento causado aos escravos e animais visados no primeiro
capítulo e à destruição ou deterioração de todas as outras coisas
corpóreas
391
. A Lei Aquília, embora se referisse, a exemplo da Lei das XII
Tábuas, a casos concretos, já encerrava um princípio de generalização,
regulando o damnum injuria datum – conquanto estivesse ainda longe de
fixar uma regra de conjunto, nos moldes dos preceitos do Direito
moderno
392
.
387
DIAS, op. cit., 1994. p. 17.
388
LIMA, op. cit., 1999. p. 21.
389
DINIZ, op.cit., 1992. p. 10.
390
JOSSERAND, Louis. Cours de droit civil positif français. 2. ed. [s.l.]: [s.c.p.], [s.d.]. v. II, p. 412-413.
391
LIMA, op. cit., 1999. p. 22.
392
Ibid., p. 22. Nesse ponto, o jurista esclarece o conceito de damnum injuria datum: “O damnum injuria
datum consistia na destruição ou deterioração da coisa alheia por fato ativo que tivesse atingido a coisa
corpore ete corpori, sem direito ou escusa legal (injuria). Concedida, a princípio, somente ao
proprietário da coisa lesada, é mais tarde, por influência da jurisprudência, concedida aos titulares de
direitos reais e aos possuidores, como a certos detentores, assim como aos peregrinos; estendera-se
também aos casos de ferimentos em homens livres, quando a lei se referia às coisas e ao escravo, assim
172
Indiscutivelmente, o último capítulo (damnum injuria datum)
ressalta-se como a porção mais importante da Lei, porquanto daí se
estabeleceu a noção de culpa
393
como fundamento da reparação de danos.
A partir dele, e por intermédio de sua aplicação cada vez mais extensiva,
os jurisconsultos do período clássico e os próprios pretores, ampliaram a
noção de dano, passando a considerar hipóteses de reparação não
previstas no corpo legislativo, edificando, destarte, a verdadeira doutrina
romana da responsabilidade extracontratual. Logo, inverteu-se a regra,
quedando-se na retaguarda a responsabilidade sem culpa, surgida nos
primórdios (vingança privada), para assumir, à dianteira, a
responsabilidade subjetiva.
4.2 Idade média
Na Idade Média, caracterizada pela pluralidade de sistemas
legislativos decorrente das conquistas e da atomização do poder,
prevaleceu os princípios do direito romano
394
.
A autonomia de algumas monarquias e a conseqüente
estruturação da figura e da doutrina do Estado, demarcando o fim do
período medieval, deram o impulso necessário à consolidação do direito
público, possibilitando, por resultado, o desenvolvimento da idéia de
responsabilização penal
395
. Na Idade Média, “com a estruturação da idéia
como às coisas imóveis e à destruição de um ato instrumentário (testamento, caução), desde que não
houvesse outro meio de prova”.
393
Há controvérsias sobre ter a Lei Aquília introduzido a noção de culpa como requisito essencial ao
direito de obter reparação civil. Júlio César dos Santos Esteves, citando alguns mestres, esclarece:
“Registre-se, todavia, a existência de alentado dissídio doutrinário sobre a necessidade de culpa como
pressuposto da geração de responsabilidade em face da Lex Aquilia, como assinala Wilson Melo da
Silva: “E se é certo que, para uma grande maioria, a Lex Aquilia tenha carreado um contingente de
espiritualização para a obrigação de indenizar, ao estribá-la no dolo ou na culpa, como consigna
Enoch D. Aguiar, não menos certo é, também, que, para muitos outros autores, tal assertiva careceria
de maior cunho de veracidade, uma vez que, segundo eles, de culpa não se cogitava ainda aí, nesse
diploma legal dos romanos, pelo menos no sentido subjetivo do vocábulo” (p. 42). E, por igual, Caio
Mário da Silva Pereira: “Enorme controvérsia, contudo, divide os autores, assinalada com toda
exatidão por Aguiar Dias: de um lado os que sustentam, com amparo nos textos, que a idéia de culpa
era estranha à Lei Aquilia, de outro os que defendem a sua presença como elementar na
responsabilidade civil, repetindo a parêmia célebre (e possivelmente devida a uma interpolação: In lege
Aquilia et levíssima culpa venit” (p.5).” (ESTEVES, Júlio César dos Santos. Responsabilidade civil do
Estado por ato legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 11).
394
Ibid., p. 13.
395
Ibid., p. 13.
173
de dolo e de culpa stricto sensu, seguida de uma elaboração da
dogmática da culpa, distinguiu-se a responsabilidade civil da penal”
396
.
4.3 Direito moderno e contemporâneo
Alvino Lima menciona a obra Le droit civil français - Livre
souvenir des journées du droit civil français, na qual foram publicados
diversos artigos de notáveis juristas, evidenciando a influência do direito
civil francês no Canadá, no Japão, nos Códigos civis suíço, irlandês,
argentino, mexicano, italiano, venezuelano e em outros mais
397
. Essa
concepção é indiscutível, na medida em que, aperfeiçoando pouco a pouco
as idéias românicas, o Direito francês acabou por fixar, nitidamente, um
princípio geral da responsabilidade civil (a culpa), abandonando o critério
de enumerar os casos de composição obrigatória
398
– resultado esse
repisado por diversas nações na confecção de suas leis, conforme
salientado alhures.
De tal sorte, surge o Código Napoleão que, visivelmente adepto
dos ensinamentos de Domat e Pothier, inseriu, dentre os seus inúmeros
dispositivos, os arts. 1382 e 1383, evidenciando o princípio, agora
vulgarizado, de que a responsabilidade civil deve fundar-se na culpa.
Tem-se, pois, a consagração inquestionável da culpa como fundamento da
responsabilidade civil.
Reservava-se, contudo, à teoria clássica da culpa o mais
intenso dos ataques doutrinários que talvez se tenha registrado na
evolução de um instituto jurídico; e isso porque as necessidades
prementes da vida, o surgir dos casos concretos, cuja solução não era
prevista na lei, ou não era satisfatoriamente amparada, levaram a
396
DINIZ, op. cit., 1992. p. 9.
397
LIMA, op. cit., 1999. p. 27. O modelo adotado para a confecção do Código civil brasileiro de 1916 foi o
BGB alemão (Bügerlisches Gesetzbuch), em vigor desde 1900, do qual Clóvis Beviláqua, notável jurista
que elaborou o anteprojeto do Código, era profundo conhecedor. Apesar disso, não se pode negar que,
no campo da responsabilidade civil, o Código de Napoleão foi suporte e modelo para o estatuto civil
brasileiro revogado. A culpa, como pressuposto da responsabilidade civil, acolhida no art. 159 do
Código Civil brasileiro de 1916, teve por inspiração o art. 1.383 do Estatuto francês. Já o atual Código
Civil afastou-se, em inúmeras passagens e até mesmo filosoficamente, do Código Civil francês.
(STOCO, Ruy. Responsabilidade civil no código civil francês e no código civil brasileiro (Estudos em
homenagem ao bicentenário do código civil francês). Revista dos Tribunais, n. 831, jan, 2005. p. 15-16).
398
DIAS, op. cit., 1994. p. 120.
174
jurisprudência a ampliar o conceito da culpa e acolher, em situações
excepcionais, as conclusões das novas tendências doutrinárias
399
. Daí
dizer-se que a evolução da responsabilidade civil deu-se também em
relação ao seu próprio fundamento – isto é, a razão por que alguém deve
ser obrigado a reparar um dano
400
.
A esse respeito, observe-se a precisa visão de Maria Helena
Diniz:
A insuficiência da culpa para cobrir todos os prejuízos, por
obrigar a perquirição do elemento subjetivo na ação, e a
crescente tecnização dos tempos modernos, caracterizada pela
introdução de máquinas, pela produção de bens em larga escala
e pela circulação de pessoas por meio de veículos automotores,
aumentando assim os perigos à vida e à saúde humana, levaram
a uma reformulação da teoria da responsabilidade civil dentro
de um processo de humanização. Este representa uma
objetivação da responsabilidade, sob a idéia de que todo risco
deve ser garantido, visando à proteção jurídica da pessoa
humana, em particular dos trabalhadores e das vítimas de
acidentes, contra a insegurança material, e todo dano deve ter
um responsável. A noção de risco prescinde da prova da culpa
do lesante, contentando-se com a simples causação externa,
bastando a prova de que o evento decorreu do exercício da
atividade, para que o prejuízo por ela criado seja indenizado.
Baseia-se no princípio do ubi emolumentum, ibi ius (ou ibi
onus), isto é, a pessoa que se aproveitar dos riscos ocasionados
deverá arcar com suas conseqüências
401
.
De início, diversas técnicas eram utilizadas para atender à
praticabilidade da responsabilidade: admissão fácil da existência da culpa
pela aplicação da teoria do abuso do direito e da culpa negativa; o
reconhecimento de presunções de culpa; a aceitação da teoria do risco; a
transformação da responsabilidade aquiliana em contratual
402
.
O movimento iniciado na França por Saleilles e Josserand, em
que se criticava a culpa como fundamento exclusivo para resolver o
problema da responsabilidade, pregara a reparação do dano decorrente,
exclusivamente, do fato ou do risco criado
403
. Tal tendência doutrinária
veio, certamente, a influenciar a jurisprudência e encontrou salvaguarda
399
LIMA, op. cit., 1999. p. 40.
400
DINIZ, op. cit., 1992. p. 9.
401
Ibid., p. 10.
402
LIMA, 1999. p. 40.
403
Ibid., p. 40.
175
numa legislação especial e de exceção, obrigando os defensores da teoria
clássica a ampliar o conceito da culpa
404
.
O referido movimento acentuou-se, no sentido de se desvirtuar a
noção clássica da culpa; estendê-la, objetiva-la, na verdade. Várias
teorias surgiram com tal intuito (presunção da culpa, responsabilidade
pelo fato da coisa, culpa anterior ou preexistente, culpa desconhecida ou
provável, culpa coletiva, etc.) e, com o decorrer dos anos – e muito
embora a teoria da culpa, inegavelmente responsável pela edificação do
instituto da responsabilidade civil, encontre guarida segura na maioria dos
ordenamentos jurídicos –, ganhou largo espaço outra teoria, a do risco, de
modo que essa última, hoje, ladeia aquela com idêntico prestígio.
5 Conceito de responsabilidade civil
Depois de revisitada a evolução da responsabilidade civil, faz-
se mister definir esse instituto, bem assim delinear os pressupostos
necessários a sua configuração
405
.
Leciona Maria Helena Diniz que o vocábulo responsabilidade é
oriundo do verbo latino respondere, designando o fato de ter alguém se
constituído garantidor de algo; contém a raiz latina spondeo, fórmula pela
qual se vinculava, no direito romano, o devedor nos contratos verbais.
Contudo – continua a precitada jurista –, a afirmação de que o
responsável será aquele que responde e que responsabilidade é a
obrigação do responsável, será insuficiente para solucionar o problema e
para conceituar a responsabilidade; afinal, se ele agir de conformidade
com a norma ou com seu dever, será supérfluo indagar da sua
responsabilidade, pois ele continuará responsável pelo procedimento, mas
não terá nenhuma obrigação traduzida em reparação de dano. O que
404
LIMA, op. cit., 1999. p. 40.
405
A importância do estudo da responsabilidade civil mostra-se evidente pela análise de uma única
situação: a incidência de casos envolvendo tal matéria no Judiciário. Veja-se o abalizado comentário de
Sérgio Cavalieri Filho: “[...] o campo de incidência da responsabilidade civil ampliou-se enormemente,
chegando a representar 50% ou mais dos casos que chegam ao Judiciário; este percentual é ainda
maior nos Juizados Especiais. Fala-se hoje numa indústria da responsabilidade civil, com o quê não
concordamos. Não há indústria sem matéria-prima, de sorte que, se hoje os casos judiciais envolvendo
responsabilidade civil são tão numerosos, é porque ainda mais numerosos são os casos de danos
injustos”. (CAVALIERI FILHO, op. cit., 2004. p. 473).
176
realmente interessa – conclui a mestre ao se referir à responsabilidade – é
a circunstância da infração da norma ou obrigação do agente; a
responsabilidade serve-se, pois, para revelar a posição daquele que não
executou o seu dever
406
.
Não é tarefa fácil conceituar responsabilidade civil. E muito
dessa dificuldade – nota Carvalho Mendonça – se deve às noções
incompletas e por demais restritas do direito romano, que têm feito cair
sobre o assunto densas nuvens que a veneração da posteridade não tem
querido espancar de vez; eis porque é esse um assunto sempre novo
407
.
Há aqueles que fundam a definição do instituto na culpa,
apegados demasiadamente à teoria clássica, sacrificando qualquer
tentativa de conceituação que foge aos lindes desse pressuposto – para
essa corrente, a responsabilidade civil configurar-se-ia num instituto
jurídico que obriga as pessoas a responderem pelas conseqüências lesivas
de suas ações. Outros, mais flexíveis, admitem uma avaliação do instituto
alheia à mera culpabilidade, mais voltada à reparação e condizente com o
irrefragável progresso responsável pela aparição de novas causas
produtoras de danos.
Deveras, não é equivocado visualizar o instituto da
responsabilidade civil por meio de duas faces: aquela clássica,
proveniente da culpa, e outra, de feições mais modernas, nascida do risco
criado.
Sérgio Cavalieri Filho, em magnífica obra sobre o tema, leciona
que a responsabilidade civil corresponde ao dever que alguém adquire de
reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico, ou
seja, seria um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano
decorrente da violação de um dever jurídico originário
408
.
É feliz a definição acima transcrita porque insere ela, numa
única idéia, as duas feições que fundamentam o instituto, hodiernamente.
Qualquer que seja a fundamentação adotada na análise de um caso
concreto – culpa ou risco – a verdade é que, ao se configurar a
406
DINIZ, op. cit., 1992. p. 28.
407
MENDONÇA, op. cit., 1956. p. 436.
408
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 22.
177
responsabilidade civil do agente, necessariamente terá havido a
transgressão de um dever jurídico. A culpa e o risco são fundamentos
que, conforme a situação, um ou outro será levado em consideração pelo
intérprete no momento de se julgar a causa. Sendo a culpa indispensável,
obviamente o juiz deverá examinar sua configuração antes de julgar
procedente o pedido; aplicando-se a teoria do risco, simplesmente o
magistrado irá desconsiderar a culpa, sendo-lhe lícito julgar procedente o
pedido, independentemente de sua ocorrência, desde que os demais
requisitos que ensejam a responsabilidade civil estejam presentes.
Nessa óptica, são absolutamente inadequadas aquelas definições
que abarcam em seu corpo a possibilidade de conduta lícita ou ilícita
como elementos da responsabilidade civil, sendo a primeira integrante do
conceito de responsabilidade objetiva e, a derradeira, atinente ao da
responsabilidade subjetiva. Essa a posição de Maria Helena Diniz, ao
defender que um dos requisitos da responsabilidade civil é, justamente, a
existência de uma ação, comissiva ou omissiva, qualificada juridicamente,
isto é, que se apresenta como um ato ilícito ou lícito, pois ao lado da
culpa, como fundamento da responsabilidade, ter-se-ia o risco. Segundo a
jurista, a regra básica é que a obrigação de indenizar, pela prática de atos
ilícitos, advém da culpa; porém, o dever de reparar pode deslocar-se para
aquele que procede de acordo com a lei, hipótese em que se desvincula o
ressarcimento do dano da idéia de culpa, deslocando a responsabilidade
nela fundada para o risco
409
. Ao revés desse entendimento, apenas haverá
dever de indenizar acaso o agente tenha descumprido um dever jurídico
primário, pouco importando se o caso concreto deve ser resolvido com os
olhos postos na teoria da responsabilidade aquiliana ou do risco. As
hipóteses de indenização por ato lícito – leciona Sérgio Cavalieri Filho –
são excepcionais, só tendo lugar nas situações expressamente previstas em
lei, como no caso de dano causado em estado de necessidade e outras
situações específicas;
410
em tais hipóteses, não há sequer como falar em
409
DINIZ, op. cit., 1992. p. 31.
410
Hipótese interessante de responsabilidade por ato lícito é aquela que ocorre no âmbito do processo, fundada
na teoria do risco processual. Noutras palavras, refere-se aqui sobre a intrincada questão referente aos
danos suportados por aquele que sofreu os efeitos de uma tutela de urgência executada e posteriormente
revogada. A estrutura das tutelas de urgência tem como uma de suas bases o seguinte pilar: assumindo o
178
responsabilidade em sentido técnico, justamente por inexistir violação de
dever jurídico, mas mera obrigação legal de indenizar por ato lícito (CC,
arts. 188, II, c/c arts. 929 e 930, 1.285, 1.289, 1.293, 1.385, §3º, etc)
411
.
6 Pressupostos da responsabilidade civil
De uma maneira geral – abordando tanto a responsabilidade
subjetiva como a teoria do risco –, são três os pressupostos necessários à
configuração da responsabilidade civil: a) conduta, comissiva ou
omissiva, violadora de dever jurídico primário (com ou sem culpa, em
conformidade com o exigido pela lei); b) dano; e c) o nexo de causalidade
entre os dois primeiros.
6.1 Conduta violadora de um dever jurídico primário (com ou sem
culpa)
O primeiro dos pressupostos necessários à configuração da
responsabilidade civil é a conduta (ação ou omissão) violadora de um
dever jurídico primário – é o que se denomina mais propriamente de ato
ilícito
412
. Genericamente, traduz-se conduta como sendo um
comportamento humano voluntário – advindo ou não de culpa – que se
risco processual e dele auferindo benefícios, o requerente da tutela de urgência atrai para si todos os
incômodos decorrentes de sua livre escolha, segundo o modelo exigente da responsabilidade objetiva ao
qual se orienta o Código de Processo Civil. Ao obter o deferimento e executar uma tutela de urgência, o
requerente não apenas arrisca-se a perder tudo aquilo que lhe foi benéfico durante a vigência do
provimento, mas também assume o justo ônus de eventualmente ter que indenizar o réu dos prejuízos
suportados, acaso aquela decisão seja futuramente revogada. Aqui não há como se falar em ato ilícito;
trata-se de exemplo evidente de responsabilidade civil por ato lícito.
411
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 30.
412
Sérgio Cavalieri Filho, em brilhante passagem, enquadra o ato ilícito em seu devido lugar ao tratar do
tema responsabilidade civil. Leciona o jurista: “O ato ilícito (...) é sempre um comportamento
voluntário que infringe um dever jurídico, e não que simplesmente prometa ou ameace infringi-lo, de
tal sorte que, desde o momento em que um ato ilícito foi praticado, está-se diante de um processo
executivo, e não diante de uma simples manifestação de vontade. Nem por isso, entretanto, o ato ilícito
dispensa uma manifestação de vontade. Antes, pelo contrário, por ser um ato de conduta, um
comportamento humano, é preciso que ele seja voluntário, como mais adiante será ressaltado. Em
conclusão, ato ilícito é o conjunto de pressupostos da responsabilidade”. E arremata: “Em sede de
responsabilidade subjetiva, a culpa integrará esses pressupostos, mas tratando-se de responsabilidade
objetiva bastará a ilicitude em sentido amplo, a violação de um dever jurídico preexistente por conduta
voluntária”. (Ibid., p. 33).
179
exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo conseqüências
jurídicas
413
.
A valer, o dever jurídico violado nem sempre advém da lei. O
ilícito – assevera Carvalho Mendonça – não é só aquele que se opõe a um
imperativo explícito ou implícito da lei positiva e sim também aquele que
se põe em oposição aos costumes, aos princípios gerais e filosóficos do
direito, às normas da equidade natural
414
.
Essa conduta antijurídica poderá ensejar responsabilidade de
cunho subjetivo ou objetivo, conforme se exija ou não a presença do
elemento culpa. Exigindo a lei a culpabilidade, ter-se-á a
responsabilidade civil por culpa provada ou presumida; prescindindo-se
da presença dele, diz-se ser a responsabilidade civil objetiva (fato de
outrem, fato do serviço, fato do produto, etc.).
Conquanto alguns defendam que a conduta, omissiva ou
comissiva, poder-se-á apresentar como um ato ilícito ou lícito, tendo-se
em vista a presença da culpa ou risco como fundamento, não parece ser
essa a melhor orientação. Em verdade, os que assim pensam não
conseguiram abstrair do conceito de ato ilícito o elemento culpa, de modo
que, para eles, é impossível falar-se sobre o primeiro sem o segundo.
Todavia, a responsabilidade civil sempre terá por base o
atropelo de um dever jurídico, postura, per se, antijurídica, seja ou não
perpetrada culposamente. Portanto, não há que se vincular o elemento
subjetivo ao conceito de ato ilícito, como se dele fosse indissociável. Ato
ilícito surgirá pelo mero descumprimento de um dever de conduta, tenha
isso ocorrido ou não por culpa do agente
415
.
No que diz respeito especificamente à culpa, ela é elemento
imprescindível para dar ensejo à responsabilidade civil subjetiva; é
413
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 42.
414
MENDONÇA, op. cit., 1956. p. 438.
415
É certo que o dever jurídico pode surgir da vontade dos indivíduos ou estar presente na ordem jurídica.
No primeiro caso, há por parte dos indivíduos expressa manifestação de vontade – unilateral ou bilateral
– que acarreta para eles deveres jurídicos advindos de obrigações contraídas em negócios jurídicos – as
partes elegem os efeitos pretendidos. Em havendo transgressão de deveres entabulados em referidos
negócios jurídicos, configura-se um ilícito contratual que dá margem ao que a doutrina denomina de
responsabilidade contratual. Na segunda hipótese, a imposição de respeito ao dever jurídico advém da
ordem jurídica. O desacato dessa espécie de dever gera um ilícito extracontratual, podendo acarretar
responsabilidade extracontratual.
180
verdadeiramente seu requisito nuclear. Logo, em tais casos, diz-se ser
pressuposto da responsabilidade civil a conduta culposa violadora de
dever jurídico preexistente, acrescendo ao pressuposto formal o requisito
psicológico (culpabilidade).
Esse requisito psíquico (culpa) – parafraseando Alvino Lima –,
num conceito que não abarca conceituações modernas surgidas com o
intento de alargar a idéia originária, corresponderia a “um erro de
conduta, moralmente imputável ao agente e que não seria cometido por
uma pessoa avisada, em iguais circunstâncias de fato”
416
. Há, aqui, dois
visíveis elementos: a) um objetivo, consistente na omissão de diligência
comum do bonus pater famílias; b) outro subjetivo, caracterizado pela
consciência do ato praticado, no poder querê-lo livremente, podendo ou
devendo prever as suas conseqüências
417
.
6.2 Danos
Não há que se falar em responsabilidade civil sem a real
ocorrência de danos. Afinal, são justamente eles, os danos, que serão
reparados; se nada houver para se reparar não há, logicamente,
responsabilidade de ressarcimento.
Hans Albrecht Fischer define o dano sob duas concepções: a)
vulgar: aquele prejuízo sofrido na alma, no corpo ou em relação aos
próprios bens, sem indagação de quem seja o autor dessa lesão; b)
jurídica: parte da mesma concepção fundamental, embora delimitado pelo
dever de indenizar, vindo a ser o prejuízo sofrido pelo sujeito de direitos
em conseqüência da violação destes por fato alheio
418
.
Maria Helena Diniz, baseando-se na definição formulada por
Lucio Bove, ensina que o dano pode ser “definido como a lesão
(diminuição ou destruição) que, devido a um certo evento, sofre uma
pessoa, contra sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico,
patrimonial ou moral”
419
.
416
LIMA, op. cit., 1999. p. 69.
417
Ibid., p. 67.
418
FISCHER, Hans Albrecht. Reparação dos danos no direito civil. Tradução de Antonio Arruda Férrer
Correia. São Paulo: Saraiva, 1938. p. 7-9.
419
BOVE, Lucio apud DINIZ, op. cit., 1992. p. 48.
181
Pouco importa para a ação do lesado – leciona Carvalho
Mendonça – se o ato ilícito que o prejudicou tenha danificado a sua
pessoa, seus bens, sua existência ou sua honra, uma vez que tenha
atingido um direito seu
420
. Isso porque o dano não se restringe à mera
concepção material, abarcando, igualmente, lesões de natureza psíquica
ou moral.
6.2.1 Danos patrimoniais
O dano patrimonial caracteriza-se pela lesão concreta, que afeta
interesse relativo ao patrimônio da vítima, consistente na perda ou
deterioração, total ou parcial, dos bens materiais que lhe pertencem,
sendo suscetível de avaliação pecuniária e de indenização pelo
responsável.
Clovis Bevilaqua, ao tratar do tema, esclarece que se
denominam perdas e danos ou perdas e interesses, os prejuízos ocorridos
à vítima, tanto os que efetivamente lhe diminuem o patrimônio (damnum
emergens), quanto os simplesmente previstos no momento de celebrar-se
o contrato (lucrum cessans)
421
.
Logo, constituem danos patrimoniais a privação do uso da coisa,
os estragos nela causados, a incapacitação do lesado para o trabalho, a
ofensa à sua reputação, quando tiver repercussão na sua vida profissional
ou nos negócios
422
. Abrangem tanto os danos emergentes, como os
chamados lucros cessantes
423
.
420
MENDONÇA, op. cit., 1956. p. 443.
421
BEVILAQUA, Clovis. Direito das obrigações. 7. ed. Revista e atualizada por Achilles Bevilaqua. Rio
de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1950. p. 141.
422
DINIZ, op. cit., 1992. p. 50.
423
Leciona Sérgio Cavalieri Filho: “O dano emergente, também chamado positivo, [...] importa efetiva e
imediata diminuição no patrimônio da vítima em razão do ato ilícito. O Código Civil, ao disciplinar a
matéria no seu art. 402 (reprodução fiel do art. 1.059 do Código de 1916), caracteriza o dano
emergente como sendo aquilo que a vítima efetivamente perdeu”. E continua o jurista: “Consiste [...] o
lucro cessante na perda do ganho esperável, na frustração da expectativa de lucro, na diminuição
potencial do patrimônio da vítima. Pode decorrer não só da paralisação da atividade lucrativa ou
produtiva da vítima, como, por exemplo, a cessação dos rendimentos que alguém já vinha obtendo da
sua profissão, como, também, da frustração daquilo que era razoavelmente esperado.” (CAVALIERI
FILHO, op. cit., 2002. p. 90).
182
O quantum a ser reparado varia, caso a caso, dependendo
sempre de prova, cujo ônus pertence originariamente ao lesado
424
.
6.2.2 Danos morais
É indiscutível, hoje, após o advento da CF/88, que os
padecimentos de natureza moral, como, por exemplo, a dor, a aflição
física ou espiritual, a angústia, a humilhação, a ofensa à honra
425
,
constituem evento de natureza danosa sendo, portanto, passíveis de
indenização, quando provocados por ato ilícito (art. 5.º, CF/88)
426
.
O eminente jurista João de Lima Teixeira Filho entende como
dano moral “o sofrimento humano provocado por ato ilícito de terceiro
que molesta bens imateriais ou magoa valores íntimos da pessoa, os quais
constituem o sustentáculo sobre o qual sua personalidade é moldada e sua
postura nas relações em sociedade é erigida”
427
.
Clayton Reis, em sua obra intitulada Avaliação do dano moral,
conceitua, com costumeira clareza, o dano moral:
[...] lesão que atinge valores físicos e espirituais, a honra,
nossas ideologias, a paz íntima, a vida nos seus múltiplos
aspectos, a personalidade da pessoa, enfim, aquela que afeta de
forma profunda não os bens patrimoniais, mas que causa
fissuras no âmago do ser, perturbando-lhe a paz de que todos
nós necessitamos para nos conduzir de forma equilibrada nos
tortuosos caminhos da existência
428
.
Qualquer afronta arquitetada para apequenar, humilhar e
espezinhar o semelhante agride seu íntimo e seu patrimônio imaterial
424
SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade médica civil, criminal e ética. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rei,
2001. p. 44.
425
REIS, Clayton. Avaliação do dano moral. 2. ed. São Paulo: Forense, 1999. p. 15.
426
É de se apontar que, já antes da publicação da Constituição Federal de 1988, havia entendimentos
seguros de que o dano moral poderia ser reclamado, isso como base no art. 159 do revogado Código
Civil. Veja-se ementa a esse respeito: “Responsabilidade civil. Dano moral. Fato anterior a 1988. É
devida a indenização por dano moral, ainda que o fato tenha ocorrido antes da promulgação da Carta
Política, pois o ordenamento jurídico já previa anteriormente a responsabilidade civil do causador do
dano extrapatrimonial (Art. 159 do Código Civil de 1916). Recurso especial conhecido e provido”.
(Superior Tribunal de Justiça, Quarta Turma, REsp n. 320.462-SP, Relator Ministro Barros Monteiro,
julgado em 15/09/2005. Disponível em: <www.stj.gov.br>).
427
TEIXEIRA FILHO, João de Lima. Instituições de direito do trabalho. 16. ed. Revista LTr, 1/620, São
Paulo, [s.d.].
428
REIS, op. cit., 1999. p. 15.
183
como um todo
429
. Este é formado por um conjunto de valores e riquezas
sociais amealhados com esmero e vagar ao longo da vida
430
. Não tem
maior expressão econômica, mas é de grande valia, porque encontra
correspondência no íntimo do portador, que o guarda como se cuida de um
tesouro
431
. Atentar contra essa fortuna imaterial, conspurcá-la ou atingi-la
injustamente, com desairosas acusações ou deslealdades outras,
desestabiliza e abate a estrutura do homem de bem, comprometendo-lhe a
vida e o sucesso profissional
432
.
A indenização extrapatrimonial ou imaterial tem três finalidades
concomitantes e indissociáveis, conforme ensina Jurandir Sebastião:
[...] de um lado, amenizar a dor da vítima (ou de seus
familiares, em caso de falecimento), mediante uma recompensa
financeira e, de outro, punir o agente. E, pelo prisma de
punição, além do desestímulo à repetição da conduta lesiva,
por parte do agente (réu), deflui a terceira finalidade, que é a
de exemplaridade social, alertando a todos a fim de que não
cometam o mesmo ou similar erro
433
.
Muitos danos, além de atingirem a integridade física e/ou
patrimonial da vítima, afetam igualmente sua incolumidade psíquica,
acarretando-lhe dissabores dos mais diversos como, por exemplo,
angústia, desgosto, humilhação e aflição espiritual.
A morte, por exemplo, acarreta, inegavelmente, danos morais
àquelas pessoas próximas ao de cujos. Nesse sentido, o magistério de
Arnaldo Marmitt:
A perda da vida, em si mesma considerada, é fato de enormes
conseqüências jurídicas, cujo tratamento autônomo se impõe, e
cuja reparação há de ser a mais ampla possível. Não seria
concebível negar indenização pela morte, e concedê-la para
danos menos graves, de simples ofensa à integridade física.
Ninguém tem o direito de desrespeitar a vida do próximo, de
banalizá-la, e de inferiorizá-la em relação aos demais direitos
da personalidade. O direito à vida é algo sagrado, muito
superior, que não pode ser subalternizado
434
.
429
MARMITT, Arnaldo. Dano moral. São Paulo: Aide, 1999. p. 15.
430
Ibid., p. 15.
431
Ibid., p. 15.
432
Ibid., p. 15.
433
SEBASTIÃO, op. cit., 2001. p. 46.
434
MARMITT, op. cit., 1999. p. 216.
184
Tais espécies de lesões são presumidas, não reclamando
nenhuma modalidade de prova, por se tratarem dos chamados danos
morais puros ou subjetivos. Ademais, a complexidade da natureza
humana, tanto quanto a subjetividade da personalidade de cada indivíduo,
torna inviável e dispensável a prova da dor sofrida. Cada pessoa sofre,
moral ou psiquicamente, de maneira diversa, conforme o grau de
sensibilidade que possui. A recompensa material a ser paga para a vítima
(ou aos seus familiares em caso de falecimento) não tem natureza
reparatória. A rigor, a reparação com assento na mensuração da dor,
advinda de sentimentos como tristeza, perda ou desfalque de ente querido,
é impossível
435
. A indenização auferida funciona como uma forma de
entretenimento, dando à vítima (ou a seus familiares em caso de
falecimento) maiores possibilidades de lazer, descanso, distração e
conforto, ajudando-a, conseqüentemente, a esquecer ou amenizar o trauma
sofrido.
O arbitramento do quantum do dano moral é questão tormentosa,
não aceita unanimemente na doutrina e jurisprudência. São três as
correntes de entendimento: a primeira defende ser obrigação do autor a
fixação do quantum a título de danos morais, fundamentando que o pedido
deverá ser, em regra, certo e determinado, e que somente o autor teria
condições de arbitrar o valor pretendido, uma vez que foi ele o ofendido
pelo dano; a segunda, por sua vez, adota o entendimento de que o pedido
deverá ser genérico, cabendo ao magistrado o arbitramento do quantum
devido, em conformidade com as condições específicas de cada caso; e a
última entende ser necessária a fixação do quantum pelo autor sem,
entretanto, esse pedido ter natureza certa e determinada, mas, sim,
servindo-se unicamente de parâmetro (pedido hipotético) para o juiz,
quando do arbitramento do valor devido.
Apesar da divergência existente, a tese mais adequada é a que
prega a utilização, na peça exordial, do pedido genérico para se postular
danos morais
436
. Caberá, portanto, ao juiz, arbitrar, em casos de
435
SEBASTIÃO, op. cit., 2001. p. 47.
436
A notável Ada Pellegrini Grinover, defendendo essa posição, acentua: Como já exposto, a possibilidade
de o autor deduzir pedido genérico com fulcro no inc. II do art. 286 do CPC, a rigor, não depende de
185
procedência do pedido, o dano moral, segundo seu prudente critério
judicante (como se legislador fosse, caso a caso)
437
, levando-se em conta
a natureza da ofensa, a repercussão social do dano, grau de culpa,
438
a
posição econômica do ofensor
439
, a capacidade do ofensor de incidir no
mesmo erro e, finalmente, as práticas de fato realizadas pelo lesante para
aplacar a dor da vítima.
Os tribunais não têm arbitrado de maneira coerente os pedidos
judiciais referentes ao dano moral. O aspecto punitivo
440
da indenização,
prova, mas se contenta com a simples alegação do autor, o que, no caso submetido a consulta, já seria
suficiente para demonstrar a incorreção da decisão que ordenou a emenda da petição inicial.
É que, da generalidade do pedido, nesse caso, não decorre qualquer prejuízo para o réu, desde que,
como ressaltado anteriormente, os critérios informativos da quantificação sejam objeto de adequado
debate, em contraditório, quer em processo de liquidação, quer na própria fase cognitiva condenatória,
no curso da respectiva instrução.
Mais ainda: se é certo, como demonstrado, que o pedido se dirige ao juiz, que é o destinatário do
pleito, mais ainda se evidencia a possibilidade de o demandante formular genericamente sua pretensão,
desde que, expondo adequadamente a causa petendi, indique o provimento (pedido imediato) e o bem
da vida (pedido mediato) que almeja.
E tudo isso, não resta dúvida, aplica-se com exatidão à hipótese de pleito indenizatório por dano
moral, em que o quantum inclusive não pode razoavelmente ser estabelecido, desde logo, pelo
demandante (que, repita-se, poderia, a rigor, deduzir o pedido genérico por sua simples afirmação),
porque a quantificação resultará dos elementos colhidos na instrução do feito, mediante amplo debate
em contraditório, que girará em torno dos critérios anteriormente examinados. (GRINOVER, Ada
Pelegrini. A marcha do processo. São Paulo: Forense Universitária, 2000. p. 156)
437
SEBASTIÃO, op. cit., 2001. p. 47.
438
A má-fé deverá ser, sempre, punida com maior intensidade. Em caso de responsabilidade civil por fato
do produto decorrente de lesões advindas do tabagismo, as indústrias do tabaco, há tempos, já detêm
conhecimento dos malefícios que seu produto gera à saúde dos que o consomem e, no entanto, além de
omitir tais informações, sempre negaram o vínculo entre o consumo de cigarros e as enfermidades que
acometem milhares de consumidores. Tal fato afronta o princípio basilar da boa-fé e, induvidosamente,
deverá ser apreciado pelo órgão julgador, no momento do arbitramento do dano moral.
Defendendo posição semelhante, o eminente jurista Jurandir Sebastião salienta que: “(...) quanto maior
a culpa, mais elevada deverá ser a condenação, tudo dentro dos limites do pedido e da contrariedade
processual. Se a conduta do agente transbordar para o dolo, é óbvio que o quantum da condenação
civil será mais acentuado.” (Ibid., 2001. p. 47).
439
O critério adotado hodiernamente de quantificação do dano, no sentido de se observar tanto a situação
financeira do ofensor, como a do próprio ofendido, visando evitar seu enriquecimento ilícito, não é
justo. Trata-se, na verdade, de critério discriminatório que atenta à própria dignidade da pessoa humana,
um dos fundamentos de nossa Carta Magna (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988). Em casos
concretos nos quais se utiliza desse critério, pessoas que sofrem danos idênticos acabam por receber
indenizações diferenciadas, somente pelo fato de estarem em situações econômicas opostas.
440
Vem ganhando força a doutrina brilhantemente defendida pelo professor Humberto Theodoro Júnior,
em que advoga o equívoco de se utilizar o “caráter punitivo” na fixação do dano moral. Segundo o
insigne jurista, a aplicação de uma sanção contra o culpado, visando desestimular a repetição de
situações semelhantes deve ser acolhida com adequação e moderação no campo da responsabilidade
civil, que é geneticamente de direito privado, e não de direito público, como se dá com o direito penal.
A este, e não ao direito privado, compete reprimir as condutas que, na ordem geral, se tornam nocivas
ao interesse coletivo. Urge, pois, respeitar-se a esfera de atuação de cada segmento do direito positivo,
sob pena de sujeitar-se o indivíduo a sofrer sanções repetidas e cumuladas por uma única infração. Um
dos princípios fundamentais da repressão pública aos delitos é justamente o que repele o bis in idem,
isto é, a imposição de duas condenações, em processos diferentes, pela mesma conduta ilícita.
Daí que o caráter repressivo da indenização por dano moral deve ser levado em conta pelo juiz cum
grano salis. A ele se deve recorrer apenas a título de critério secundário, e nunca como dado principal
186
na maioria das vezes, não tem sido levado em conta. Em conseqüência
disso, o quantum fixado não castiga os ofensores; de certa forma, até os
incentiva a persistir no ilícito.
6.2.3 Danos estéticos
O dano estético é aquele que implica quaisquer espécies de
alterações morfológicas, acarretando para a vítima, mesmo que em
patamares ínfimos, um afeamento em sua estética humana. Consiste em
aleijões, cicatrizes, marcas, defeitos e lesões, motivadores de desconforto,
desgosto, complexo de inferioridade, exercendo ou não influência na
capacidade laborativa dos lesados.
Discussão contagiante e ainda polêmica refere-se à
possibilidade de cumulação de danos morais com os danos de natureza
estética. Isso porque, para a grande maioria da doutrina, o dano estético
seria, nada mais, do que espécie de dano moral; o dano estético, nessa
perspectiva, sempre abrangerá o moral, o que impossibilitaria a
cumulação dos dois.
A expressão cumulação realmente é imprópria, na medida em
que, quando utilizada, dá a impressão de se referir a duas espécies
diferentes de danos. Melhor seria dizer que, ao arbitrar o dano moral, o
magistrado certamente deverá acrescer-lhe um adicional pecuniário, nas
hipóteses em que se configurar também o dano estético.
Realmente, o dano estético está enquadrado no conceito de dano
moral, porquanto sempre acarretará conseqüências de ordem psíquica à
vítima. Não se pode negar ser o homem um ser social, o que se traduz na
necessidade de contato permanente com seus semelhantes. Nesse ponto,
delineia-se a importância social da estética do ser humano, ou seja, na
vida e no trato diário com seus pares.
ou determinante do cálculo do arbitramento, sob pena de desvirtuar-se a responsabilidade civil e de
impregná-la de um cunho repressivo exorbitante e incompatível com sua natureza privada e reparativa
apenas da lesão individual. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano moral. São Paulo: Oliveira
Mendes, 1998. p. 39).
Igual entendimento foi sustentado pelo professor Arruda Alvim ao proferir palestra no Curso de
Extensão em responsabilidade civil por dano moral, realizado em 9 de junho de 2001, no Centro de
Ensino Nossa Senhora de Fátima, na cidade de São Paulo.
187
Não se apresenta correta, data venia, a afirmação de que “nem
sempre há cumulatividade do dano estético com o moral”, argumentando-
se que algumas lesões, muito embora atinjam o aspecto estético do lesado,
este acaba superando-as, sem que haja repercussão psíquica.
441
Dano,
segundo os léxicos, denota prejuízo moral ou material, mal, ofensa
pessoal, estrago, deterioração, danificação. Se a lesão estética que atingiu
a vítima não lhe causar prejuízos, obviamente não há se falar em danos.
Se a vítima de um acidente é submetida a uma cirurgia estética para
corrigir lesões sofridas e, em razão do procedimento, ficou mais bela do
que era, obviamente foi agraciada, não se configurando, em tal caso, dano
estético algum. Logo, ao referir-se a danos estéticos, necessariamente
estar-se-á aludindo àquelas situações em que a vítima teve um prejuízo e
não um benefício.
Em assim sendo, ao valorar o dano moral suportado pela vítima,
deverá o magistrado acrescer-lhe uma importância – também a ser
valorada – correspondente aos danos estéticos por ela suportados – danos
esses que tambémo de natureza moral e que, por sua gravidade, deverão
ser necessariamente levados em conta, pelo juízo, no momento de se
arbitrar o valor devido à vítima.
6.3 Nexo causal
É insuficiente a prática de conduta violadora de dever jurídico;
não basta, igualmente, a mera ocorrência de danos. É imprescindível que
os últimos sejam resultado da primeira. A essa relação de causa e efeito
denomina-se nexo causal.
Deveras, se o dever de indenizar o prejuízo causado denota uma
sanção imposta pela lei àquele responsável pelo ato ilícito, necessário se
torna que o dano seja conseqüência da conduta de quem o produziu
442
.
Situações existem em que as causas do dano são várias, o que
certamente dificulta o trabalho do julgador na aplicação da lei. Por ser o
nexo causal requisito indispensável à configuração do dever de indenizar,
441
DINIZ, op. cit., 1992. p. 61.
442
GOMES, Orlando. Obrigações. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 274.
188
a doutrina, visando minimizar o penoso trabalho do intérprete em
situações de causas múltiplas, construiu algumas teorias, baseadas em
critérios diversos. Algumas dessas teorias, por merecerem destaque, serão
abordadas futuramente, nesse trabalho.
7 Excludentes de responsabilidade
Sendo que a configuração da responsabilidade civil
necessariamente depende da presença do liame causal entre a violação de
um dever jurídico primário e os danos gerados à vítima, manifesta é a
conclusão de que ninguém será responsável por resultados que não lhe
podem ser imputáveis – excepcionando-se as raras situações em que a
responsabilidade funda-se no risco integral.
Daí a importância de se delimitar e estudar as excludentes de
responsabilidade, situações respeitantes a eliminação do nexo causal,
evidenciando que o dano efetivamente ocorreu por outra causa, ou de
circunstância que impedia o suposto agente de cumprir a obrigação à qual
estava vinculado.
Essas causas de exclusão de responsabilidade, de acordo com a
doutrina tradicional, surgem nas seguintes hipóteses: a) fato exclusivo da
vítima ou de terceiro, b) caso fortuito, e c) força maior.
7.1 Fato exclusivo da vítima
Veja-se o seguinte exemplo: um sujeito – policial militar,
devidamente fardado, armado e com uma bolsa a tiracolo –, intentando
ingressar em uma instituição financeira, deparou-se com uma porta
eletrônica de segurança, detentora de um moderno sistema de detecção de
metais. Mesmo havendo informações escritas orientando os consumidores
de que deveriam deixar seus objetos metálicos no guarda volume que se
encontrava ali, logo ao lado, o citado policial arriscou-se e tentou
transpor a porta. Seu acesso, por óbvio, foi obstaculizado, já que
visivelmente portava arma e, sabe-se lá o que mais, dentro de sua larga
bolsa. Nesse momento, um mecanismo de voz eletrônica foi acionado,
189
solicitando-lhe, de maneira educada, que depositasse o objeto causador do
bloqueio no armário guarda-volumes; solicitou-lhe, ainda, que novamente
retornasse ao detector de metais. O policial, contudo, sentiu-se ofendido
com aquela situação e preferiu diligenciar a confecção de um boletim de
ocorrência. Logo depois, ajuizou ação indenizatória contra a instituição
financeira, pleiteando valor astronômico a título de danos morais.
Posteriormente, já se encontrando o processo maduro para julgamento,
concluiu o magistrado, ao proferir sua sentença, por julgar improcedente
o pedido, evidenciando que, além de inexistir na espécie defeito de
prestação de serviço, eventuais constrangimentos advieram de conduta
exclusiva da vítima (fato exclusivo da vítima). Afinal, consoante
demonstravam as provas, dirigiu-se o autor a uma agência bancária
armado – fora de seu horário de serviço – e intentou ingressar ao banco,
como se ignorasse a existência do detector de metais lá instalado
Obviamente, sobretudo por ser policial militar, era inaceitável que não
soubesse que seria obstado pelo mecanismo de segurança; mas, mesmo
assim, insistiu em tentar.
Vê-se, claramente, no exemplo acima, que o suposto agente
(instituição financeira) funcionou apenas como instrumento para a
efetivação do dano. A porta eletrônica detectora de metais, conquanto
possa realmente ter constrangido a vítima, encontrava-se em perfeito
funcionamento e apenas obstou o seu ingresso ao interior da agência
porque ele se encontrava armado naquela ocasião. A porta de segurança
foi mero instrumento; o acidente de consumo se deu por conta exclusiva
de uma conduta da própria vítima.
Suprime-se, em tais casos, o próprio nexo causal, na medida em
que se demonstra que o dano não adveio do descumprimento, por parte do
suposto agente, de um dever jurídico primário, senão de uma postura
perpetrada pela própria vítima do evento. O problema desloca-se para o
terreno do nexo causal, e não da culpa
443
.
Importante acentuar – consoante adverte Sérgio Cavalieri Filho
– que o CC, em seus arts. 12, §3º, III, e 14, §3º, II, incluiu expressamente
443
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 83.
190
a culpa
444
exclusiva do consumidor entre as causas que elidem a
responsabilidade do fornecedor
445
.
7.2 Fato de terceiro
Mais um exemplo: determinado consumidor emitiu um cheque
“pós-datado” a um pintor que recentemente havia lhe prestado serviços.
Acordaram que aquele título apenas seria descontado naquela data futura,
devidamente inserida nele – na verdade, um mês após a sua emissão.
Ocorre que o cheque acabou sendo apresentado à câmara de compensação
no primeiro dia ulterior a sua emissão, sendo devolvido por insuficiência
de fundos. O título foi reapresentado e, por conseqüência, a conta do
consumidor encerrada e seu nome inserido no rol de inadimplentes
mantido pela SERASA. Revoltado, o consumidor ajuizou ação de
indenização contra a instituição financeira, pautando-se num suposto
defeito na prestação de serviços, uma vez que o cheque era pós-datado e,
portanto, apenas poderia ser descontado na data nele aprazada. Salientou
que tal defeito teria lhe causado danos de ordem moral. Ao julgar o caso,
atentou o magistrado para a circunstância de que a ação fora mal
direcionada. Na verdade, deveria ela ter sido endereçada contra o pintor
responsável pela transgressão do acordo – afinal, fora ele quem
descumprira o pacto e apresentara o cheque fora da data combinada.
Salientou ainda que, para as instituições financeiras, a emissão de cheque
com data posterior à efetiva emissão é considerada como se se tratasse de
ordem de pagamento à vista, pouco importando a data; qualquer cláusula
inserida no cheque com o objetivo de alterar essa sua essencial
característica é considerada não escrita e, portanto, ineficaz. Sendo assim,
o juiz decidiu pela improcedência do pedido, valendo-se da excludente de
responsabilidade denominada fato de terceiro.
444
Foi infeliz o legislador ao utilizar o termo culpa nesse ponto. Quis se referir ao fato exclusivo da vítima
ou de terceiro, não à culpa; afinal, em se tratando de responsabilidade objetiva, a análise da existência da
culpa mostra-se desnecessária.
445
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 83.
191
Aqui, igualmente, vislumbra-se uma quebra do nexo de
causalidade, na medida em que se evidencia inexistir vínculo entre a
conduta do suposto agente e os danos suportados pela vítima.
No exemplo narrado, agiu a instituição financeira no exercício
regular de um direito, ao devolver o aludido cheque por insuficiência de
fundos; posteriormente, na sua reapresentação, também agiu
legitimamente ao encerrar a conta do consumidor e inserir seu nome no
cadastro de inadimplentes. Em verdade, viu-se que o descumprimento do
dever jurídico primário não se deu por parte da instituição financeira,
mas, sim, em função de uma conduta praticada pelo terceiro contratante –
o pintor.
É mister salientar que o CDC também incluiu entre as causas de
exclusão da responsabilidade do fornecedor o fato de terceiro, mais
propriamente nos seus arts. 12, §3º, III, e 14 §3º, II – frise-se, desde já,
que a Lei consumerista refere-se ao fato exclusivo de terceiro.
7.3 Caso fortuito e força maior
As expressões caso fortuito e força maior quase sempre são
utilizadas conjuntamente, como se constituíssem um caso de sinonímia.
Essa circunstância se constata não só no direito alienígena; tal se dá
também no ordenamento civil pátrio. Veja-se, nesse viés, o teor do art.
393 e seu parágrafo único, do CC:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes
de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se
houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se
no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou
impedir
.
Deveras, sempre houve certa dificuldade em conceituar tais
locuções e, decerto, esse enquadramento legal sugerindo serem, o caso
fortuito e a força maior, idéias idênticas, só agrava a situação.
Caso fortuito (fortuito interno) e força maior não são expressões
sinônimas; ao contrário, denotam situações diversas. Saliente-se que
192
ambos também excluem o nexo causal por constituírem causa estranha à
conduta do aparente agente, que enseja diretamente o evento
446
.
Leciona Agostinho Alvim que a
distinção que modernamente a doutrina vem estabelecendo,
aquela que tem efeitos práticos e que já vai se introduzindo em
algumas leis, é a que vê no caso fortuito um impedimento
relacionado com a pessoa do devedor ou com a sua empresa,
enquanto que a força maior é um acontecimento externo
447
.
A força maior – continua Augustinho Alvim – é o fato externo
que não se liga à pessoa, ou à empresa, por nenhum laço de conexidade,
enquanto que o caso fortuito, propriamente, traduz a hipótese em que
existe aquele nexo de causalidade
448
. Noutros termos, força maior indica o
caráter invencível do obstáculo; caso fortuito, o caráter imprevisto
449
.
Frise-se: imprevisibilidade é aquela ocorrência específica,
relativa a um fato concreto, e não a ocorrência genérica ou abstrata,
porque se assim não for tudo passará a ser previsível
450
. Já a
inevitabilidade deve ser considerada dentro de certa relatividade, tendo-se
o acontecimento como inevitável em função do que seria razoável exigir-
se.
Essa distinção possibilita fixar algumas premissas com base no
fundamento da responsabilidade do devedor ou responsável. Assim, se
esta fundar-se na culpa (responsabilidade aquiliana), bastará o caso
fortuito para exonerá-lo; com maior razão o absolverá a força maior
451
.
Fundando sua responsabilidade no risco, o simples caso fortuito não o
exonerará; será mister a configuração da força maior – ou, como preferem
alguns autores, do caso fortuito externo
452
.
446
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 85.
447
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas conseqüências. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1972.
p. 330.
448
Ibid., p. 330.
449
Ibid., p. 330.
450
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 84-85.
451
ALVIM, op. cit., p. 330.
452
ALVIM, op. cit., 1972. p. 330.
193
Note-se que o CDC não se referiu expressamente
453
ao caso
fortuito e força maior como sendo excludentes de responsabilidade. Como
lá a regra é a da aplicação da responsabilidade fundada no risco, a força
maior, evidentemente, se configura como uma das causas que afastam o
dever de indenizar por parte do suposto agente, mesmo que o Código
tenha sido omisso quanto a isso.
8 Responsabilidade civil nas relações de consumo
Nem de longe é exagerada a afirmação proferida por Sérgio
Cavalieri Filho de que, atualmente, a responsabilidade civil pode ser
dividida em duas partes: a responsabilidade tradicional e a
responsabilidade nas relações de consumo
454
.
O atual diploma constitucional incluiu a defesa do consumidor
no plano da política constitucional. Essa aparece no texto constitucional,
entre os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5, XXXII), estando
também elevada à categoria de princípio geral da atividade econômica
(art. 170, V),
455
e justaposta aos princípios basilares do modelo
político/econômico brasileiro, como o da soberania nacional, da
propriedade privada e da livre concorrência
456
. Esse valioso embrião,
retratado no preceito que ordena a defesa do consumidor, deu origem à
Lei 8.078/90, principiada por um artigo que, expressamente, dispõe que as
normas lá entabuladas são de ordem pública e interesse social – preceito
esse que, se bem compreendido, dá ao intérprete noção ampla da robustez
do CDC, conforme já abordado alhures.
Bem se vê que, com o advento do Código consumerista, os
fornecedores se viram obrigados a assumir o risco de sua atividade –
453
Conquanto o Código de Defesa do Consumidor não tenha se referido expressamente à elidente de
responsabilidade denominada caso fortuito externo ou força maior, ao incluir nos elencos constantes nos
arts. 12, §3º, 14, §3º, a prova da inexistência do defeito, implicitamente abarcou aquela excludente.
Noutras palavras, se o fornecedor aufere êxito na prova da configuração do caso fortuito externo, por
tabela, terá, também, demonstrado a inexistência de defeito, circunstância que, decerto, irá favorecê-lo,
na medida em que tal evidência implicará na sua não responsabilização civil.
454
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 39.
455
Claudia Lima Marques assevera que, a partir de 1988, a defesa do consumidor incluiu-se na chamada
ordem pública econômica que legitima e instrumentaliza a crescente intervenção do Estado na
atividade econômica dos particulares. (MARQUES, op. cit., 1993. p. 164).
456
MARINS, op. cit., 1993. p. 29.
194
teoria do risco do empreendimento,
457
risco esse que, numa época
pretérita não muito distante, era, quase sempre, suportado pelo
consumidor. Chegava-se a falar em aventura de consumo; afinal, se o
consumidor fosse lesado por algum produto ou serviço, dificilmente
conseguiria demonstrar a culpa do fornecedor, tendo, por conseguinte, que
arcar com os danos sofridos. Com a situação invertida, cabe aos
fornecedores garantirem a solidez e segurança de seus produtos e
serviços, mormente porque, hodiernamente, nenhum consumidor que
buscar amparo no Judiciário deixará de ser indenizado por lesões sofridas
em acidentes de consumo, bem assim nenhum fornecedor se esquivará da
responsabilidade de indenizar aqueles danos causados por produtos ou
serviços imperfeitos de sua responsabilidade
458
.
Destarte, a Lei 8.078/91 estabeleceu uma responsabilidade civil
objetiva para quase a totalidade das relações de consumo, prescindindo-se
do elemento culpa para a configuração do dever de indenizar o agente. Em
verdade, a edificação da responsabilidade civil, no CDC, tomou por base
o dever de segurança do fornecedor, em relação aos produtos e serviços
459
457
Conforme leciona o insigne Sérgio Cavalieri Filho, todo aquele que se disponha a exercer alguma
atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens
e serviços fornecidos, independentemente de culpa. Este dever é imanente ao dever de obediência às
normas técnicas de segurança, bem como aos critérios de lealdade, quer perante os bens e serviços
ofertados, quer perante os destinatários dessas ofertas. A responsabilidade decorre do simples fato de
dispor-se alguém a realizar atividade de produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos ou
executar determinados serviços. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece
no mercado de consumo, respondendo pela qualidade e segurança deles. (CAVALIERI FILHO, op.
cit., 2000. p. 366).
458
O já citado Sérgio Cavalieri Filho, lecionando sobre a nova ordem da responsabilidade civil surgida
com o advento do Código de Defesa do Consumidor, esclarece: “O consumidor não pode assumir os
riscos das relações de consumo, não pode arcar sozinho com os prejuízos decorrentes dos acidentes de
consumo, ou ficar sem indenização. Tal como ocorre na responsabilidade do Estado, os riscos devem
ser socializados, repartidos entre todos, já que os benefícios são também para todos. E cabe ao
fornecedor, através dos mecanismos de preço, proceder a essa repartição de custos sociais dos danos.
É a justiça distributiva, que reparte equitativamente os riscos inerentes à sociedade de consumo entre
todos, através dos mecanismos de preços, repita-se, e dos seguros sociais, evitando, assim, despejar
esses enormes riscos nos ombros do consumidor individual.(Ibid., p. 475).
459
Em magnífico acórdão, o Superior Tribunal de Justiça evidenciou esse dever de segurança ínsito ao
fornecedor, ao condenar um hipermercado pelo assalto e tentativa de estupro de uma cliente dentro de
estacionamento de sua responsabilidade; a vítima acabou morta fora do estacionamento. Essa a ementa:
“Responsabilidade civil. Ação de conhecimento sob o rito ordinário. Assalto à mão armada iniciado
dentro de estacionamento coberto de hipermercado. Tentativa de estupro. Morte da vítima ocorrida
fora do estabelecimento, em ato contínuo. Relação de consumo. Fato do serviço. Força maior.
Hipermercado e shopping center. Prestação de segurança aos bens e à integridade física do
consumidor. Atividade inerente ao negócio. Excludente afastada. Danos materiais. Julgamento além
do pedido. Danos morais. Valor razoável. Fixação em salários-mínimos. Inadmissibilidade. Morte da
genitora. Filhos. Termo final da pensão por danos materiais. Vinte e quatro anos.
195
que disponibiliza no mercado de consumo, tendo-se por parâmetro a
verdade incontestável de que a culpa, se mantida como elemento
necessário à configuração do dever de indenizar, atuaria – como a
experiência efetivamente demonstrou – como uma blindagem quase
intransponível, que protegeria o fornecedor, tornando-o praticamente
irresponsável pelos danos causados ao consumidor.
Logo, em se tratando de relação de consumo, a responsabilidade
civil terá por pressuposto não a culpa do fornecedor, senão o
descumprimento de um dever jurídico primário de segurança. A
ilegalidade ou descumprimento de um dever jurídico de segurança – é
bom que se diga desde já – não diz respeito à licitude ou ilicitude da
atividade exercida pelo fornecedor, mas, sim, à presença de vícios ou
defeitos nos produtos e serviços oferecidos
460
.
A prestação de segurança aos bens e à integridade física do consumidor é inerente à atividade
comercial desenvolvida pelo hipermercado e pelo shopping center, porquanto a principal diferença
existente entre estes estabelecimentos e os centros comerciais tradicionais reside justamente na
criação de um ambiente seguro para a realização de compras e afins, capaz de induzir e conduzir o
consumidor a tais praças privilegiadas, de forma a incrementar o volume de vendas.
Por ser a prestação de segurança e o risco ínsitos à atividade dos hipermercados e shoppings centers,
a responsabilidade civil desses, por danos causados aos bens ou à integridade física do consumidor,
não admite a excludente de força maior derivada de assalto à mão armada ou qualquer outro meio
irresistível de violência.
A condenação por danos materiais e morais deve estar adstrita aos limites do pedido, sendo vedada a
fixação dos valores em salários-mínimos.
O termo final da pensão devida aos filhos por danos materiais advindos de morte do genitor deve ser a
data em que aqueles venham a completar 24 anos.
Primeiro e segundo recursos especiais parcialmente providos e terceiro recurso especial não
conhecido.” (Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 419.059-SP, Terceira Turma, Relatora Ministra
Nancy Andrighi, julgamento em 19 de outubro de 2004. Disponível em <www.stj.gov.br>).
460
Esse aspecto é de imprescindível compreensão para que se entenda o que aqui se propõe. A grande
maioria da jurisprudência que trata do tema funda suas decisões de improcedência – prejudicando os
fumantes, portanto – na falsa premissa de que a atividade exercida pelas indústrias fumígenas é lícita e,
portanto, não há que se falar em dever de indenizar. Data maxima venia, tal entendimento afasta-se do
próprio objetivo da Lei consumerista, qual seja, o de atrair, para o consumidor, maior segurança na
utilização de produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo. Isso porque as atividades
exercidas no mercado de consumo serão, sempre – ou quase sempre – legais. Produzir livros, calças,
sapatos, brinquedos, utensílios domésticos, telefones, computadores, televisores, alimentos, etc. são
atividades lícitas, por óbvio. O ato ilícito surgirá, se um desses produtos for lançado no mercado de
consumo acrescido de uma imperfeição (vício ou defeito) capaz de causar danos ao consumidor;
poderá advir também de forma extrínseca, haja vista a ocorrência de alguma imperfeição vinculada ao
dever de informação. Com efeito, adotar-se a conclusão de tais julgados como regra, no mercado de
consumo, seria o mesmo que obstar todo consumidor lesado, por produtos e serviços adquiridos ou
utilizados, de ser ressarcido, afinal, como dito, a grande maioria de atividades exercidas no mercado é
legítima. Mariano comprou uma calça e ela, por ser constituída de material defeituoso, rasgou-se em
plena sala de aula, causando-lhe constrangimentos em relação aos seus colegas de curso. Mariano não
teria o direito de ser indenizado, se adotado o entendimento dos julgados que elidem a responsabilidade
civil das indústrias de cigarro; afinal, fabricar calças representa uma atividade lícita [...].
196
8.1 Dos pressupostos da responsabilidade civil por acidentes de
consumo
Em função da novel realidade imposta à sociedade pelo advento
da Revolução Industrial e da explosão do irrefreável desenvolvimento
tecnológico e científico, o legislador estabeleceu um novo sistema de
responsabilidade civil para as relações de consumo, com fundamentos e
princípios novos, haja vista que a responsabilidade civil tradicional
revelara-se insuficiente para a tutela eficaz do consumidor
461
.
Conquanto a Lei consumerista estabeleça espécies diversas de
responsabilidade civil – a responsabilidade pelo fato do produto e do
serviço (por acidentes de consumo) e a responsabilidade pelo vício do
produto e do serviço –, em razão da limitação do tema abordado nesse
trabalho, tratar-se-á, aqui, apenas dos pressupostos necessários à
configuração da primeira – com ênfase na responsabilidade pelo fato do
produto.
Vozes da doutrina nacional, numa onda quase que unânime, vêm
proclamando a necessidade de três
462
pressupostos para a conclamação da
461
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 473.
462
Em brilhante obra, o jurista e Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Paulo de
Tarso Sanseverino, sugere a necessidade de se inserir um outro pressuposto, por ele denominado de
nexo de imputação. Corresponderia tal pressuposto ao vínculo que se estabelece entre o defeito do
produto ou do serviço e a atividade desenvolvida pelo fornecedor para a atribuição do dever de
indenizar os danos suportados pelo consumidor prejudicado. (SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira.
Responsabilidade civil no código do consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002. p.
112). Ressalta-se a importância de se incluir o nexo de imputação ao rol de pressupostos necessários à
responsabilização civil do fornecedor, justamente pela amplitude que se deu ao instituto da
solidariedade, no Código de Defesa do Consumidor (CDC, arts. 7º, parágrafo único, 18 e 25, §§1º e 2º),
alçado à categoria de princípio basilar dessa legislação. A rigor – esclarece o citado jurista gaúcho –, a
atribuição do dever de indenizar danos decorrentes de acidentes de consumo deveria recair apenas
sobre as pessoas físicas ou jurídicas vinculadas diretamente à defeituosidade do produto ou ao serviço
causador do dano. (Ibid., p. 157). A imputação, se assim fosse, restringir-se-ia aos responsáveis pela
criação desses produtos e serviços e por sua colocação no mercado, atingindo, tão-somente, o
fabricante, o construtor, o produtor ou o prestador de serviços. (Ibid., p. 158). Contudo, para viabilizar
uma proteção mais efetiva à vítima, o Código de Defesa do Consumidor ampliou o nexo de
imputabilidade, abrangendo outras pessoas, que, embora não tenham relação direta com o produto ou o
serviço no momento de sua criação, participam ativamente de sua circulação no mercado de consumo,
até chegar às mãos do consumidor; são exemplos dessa realidade o importador, o distribuidor, o
comerciante. (Ibid., p. 158). Logo, a Lei consumerista, ao valorizar a solidariedade dos responsáveis
pela causação do dano, alargou sobremaneira o seu âmbito de incidência, propiciando uma efetiva
prevenção e reparação de danos em prol dos atores vulneráveis da relação de consumo (CDC, art. 6º,
VI). Crê-se estar correta a arguta observação de Paulo de Tarso Sanseverino, sendo certo que a
importância do nexo de imputabilidade eleva-se nas situações que envolvam a figura dos responsáveis
presumidos e aparentes. Todavia, para os limites desse trabalho, tal pressuposto não será considerado,
mesmo porque o que aqui se pretende, de maneira preponderante, é demonstrar a possibilidade de se
197
responsabilidade civil do fornecedor: a) o(s) defeito(s); b) o(s) dano(s), e
o nexo de causalidade entre a utilização do produto (ou serviço); e c) os
danos suportados pelo consumidor.
Acerca dos danos e nexo de causalidade, algumas linhas mestras
já foram traçadas – e outras serão abordadas em momento posterior.
Acresça-se que tais pressupostos deverão ser necessariamente
demonstrados – o que não revela nenhuma novidade em comparação com o
sistema tradicional – para caracterizar o dever de o fornecedor ressarcir
os prejuízos causados. Não se olvide, contudo, da possibilidade de
deferimento da inversão do ônus da prova em benefício do consumidor
que, em ocorrendo, implicará a transposição do encargo probatório ao
fornecedor, de modo que deverá ele, para se eximir da responsabilidade,
provar a inexistência de configuração dos danos e/ou do nexo causal; o
consumidor, diante dessa hipótese, se libertará do ônus de provar, parcial
ou integralmente, os fatos constitutivos de seu direito (danos e liame
causal).
O defeito, fato gerador da responsabilidade civil por acidentes
de consumo, será examinado em capítulo posterior. Adiante-se, porém,
que ele se caracteriza por uma deficiência apresentada no produto ou
serviço prestado, indo contra aquele ideal de segurança naturalmente
esperado pelo consumidor. Por manifesta opção legislativa, tal
componente vem carregado de uma presunção em favor do consumidor,
competindo exclusivamente ao fornecedor a demonstração de sua
inexistência, para elidir-se da responsabilidade de indenizar. Daí se vê
que a distribuição do ônus probatório nas ações que envolvem relações de
consumo – assunto tratado adiante – caminha de mãos dadas com o
princípio da facilitação da defesa dos direitos do consumidor (CDC, art.
6º, VIII), representando, outrossim, fórmula inteligente de socialização
dos riscos.
responsabilizar as indústrias fumígenas – responsáveis reais, portanto – pelos danos que seus produtos
causam àqueles que os consomem ou a eles estão expostos. Noutras palavras, o vínculo entre as
imperfeições dos produtos fumígenos e a atividade das indústrias do tabaco é direto e notório, sendo
despiciente uma análise mais acurada do tema, no âmbito restrito dessa monografia.
198
8.2 Excludentes de responsabilidade do fornecedor de produtos e
serviços
Não há como se confundir a teoria do risco da atividade
(responsabilidade objetiva), um dos institutos que alicerçam o
microssistema consumerista, com a responsabilidade fundada no risco
integral. Não é escopo do CDC a imposição desmedida de indenizações a
todos os consumidores lesados por produtos e serviços ofertados no
mercado, sagrando-se como legislação nascida em benefício exclusivo da
vítima e, por tabela, destruidora do próprio mercado de consumo. A
destruição do fornecedor elimina, obviamente, o próprio mercado.
Portanto, não soa lógica tal conclusão.
Viu-se que a base legal para a responsabilização de
fornecedores envolvidos em acidentes de consumo é justamente o atentado
à legítima expectativa de segurança que o consumidor espera do produto
ou serviço disponibilizado no mercado, resultando em imperfeições
(defeitos) geradoras de danos a sua incolumidade física e/ou psíquica.
Muito embora o legislador tenha positivado uma inversão legal do ônus
da prova quanto à demonstração do defeito, de modo que o ônus de se
provar a inexistência dele pertence exclusivamente ao fornecedor, tal
situação não permite concluir que será ele sempre responsabilizado.
Afinal, mesmo que não lhe seja exigida a demonstração da inexistência do
defeito, há, em regra, ônus por parte do consumidor, de demonstrar os
danos e o próprio liame causal que os ligam ao produto ou serviço
defeituoso.
A mera necessidade da presença do nexo de causalidade, em
casos tais, já impõe a possibilidade de situações excludentes dele – e
demonstra não ser aqui caso de responsabilidade de risco integral –, que
verdadeiramente elide a responsabilidade do fornecedor. São as chamadas
excludentes de responsabilidade do fornecedor.
O CDC, expressamente, prescreve que o fabricante, o
construtor, o produtor ou importador e o fornecedor de serviços só não
serão responsabilizados quando provarem: a) a não colocação do produto
199
no mercado (CDC, art. 12, §3º, I); b) a inexistência do defeito no produto
ou serviço (CDC, art. 12, §3º, II, e art. 14, §3º, I); e c) a culpa exclusiva
do consumidor ou de terceiro (CDC, art. 12, §3º, III, e art. 14, §3º, II).
Talvez, por desnecessidade, o legislador tenha preferido não
incluir nesse rol a força maior (ou caso fortuito externo), elemento que,
devidamente demonstrado, indubitavelmente elide a responsabilidade
civil, em casos concretos em que a Lei consumerista é aplicável. Tendo-se
em vista a tendência positivista, muitas vezes exagerada, do operador do
direito nacional, melhor seria que o CDC retratasse, também, essa
hipótese; assim se evitariam discussões jurisprudenciais, não raras
atualmente, sobre a admissão ou não dessa excludente nas lides de
consumo.
8.2.1 A não colocação do produto no mercado
A demonstração de que o produto não foi colocado no mercado,
obviamente, elidirá a responsabilidade do fornecedor, pela singela razão
de que, em tais hipóteses, restará provada a não configuração do nexo
causal. Trata-se de prova a ser efetivada pelo fornecedor, por expressa
opção política do legislador – lembre-se do princípio da facilitação da
defesa dos direitos do consumidor (CDC, art. 6º, VIII). Há, aqui, uma
presunção, fortalecedora da posição do consumidor, na relação jurídica
processual, de que o produto causador do acidente de consumo foi
efetivamente inserido no mercado. A falsificação e o furto de produtos
são bons exemplos dessa excludente.
Sérgio Cavalieri Filho ressalta que, embora a Lei consumerista,
ao tratar dessa excludente, se refira apenas ao produto, nada impede, no
seu entender, que o fornecedor de serviço prove, para efeito de afastar a
sua responsabilidade, que efetivamente não o prestou
463
. Parece certa a
posição advogada pelo mestre, principalmente porque tal excludente
encontra-se, muitas vezes, associada ao fato exclusivo de terceiro, essa
última prevista expressamente como hipótese também responsável pela
463
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2000. p. 484.
200
eliminação da responsabilidade civil do fornecedor, tanto para os casos
que envolvem produtos, como para aqueles outros relacionados à
prestação de serviços
464
.
Ponto divergente na doutrina é o de se saber em que momento o
produto (ou serviço) será considerado introduzido no mercado de
consumo, haja vista que a Lei consumerista mostra-se silente a esse
respeito. A jurisprudência, por não ser abastada em julgados sobre o
assunto, não autoriza esclarecimentos precisos acerca do caminho que
vem perseguindo desde a publicação do CDC. A tendência, porém, parece
seguir o rumo de admitir esse momento como sendo aquele em que o
produto é encaminhado “ao distribuidor, ainda que a título experimental,
de propaganda ou de teste, como se costumava fazer com certos
medicamentos”
465
.
8.2.2 A prova da inexistência do defeito
O CDC, ao positivar essa excludente, abarca expressamente
tanto os produtos como os serviços.
Também aqui, como na hipótese tratada no tópico anterior, há
uma presunção legal (juris tantum) que beneficia o consumidor. Ou seja,
o consumidor, ao ajuizar determinada ação indenizatória relacionada a
acidentes de consumo, detém em seu favor não apenas o fato presumido
de que o produto ou serviço foi efetivamente colocado no mercado, mas,
também, a presunção de que o produto realmente é defeituoso. Afinal, a
indicação de que o fabricante, o construtor, o produtor, o importador ou o
prestador de serviços só não será responsabilizado se provar, dentre
outras hipóteses legais, que o defeito inexiste, origina-se da própria
legislação (CDC, §3º do art. 12 e §3º do art. 14).
A hipótese legal não suscita maiores dúvidas. Sendo o defeito
fato gerador da responsabilidade civil por acidentes de consumo, se acaso
demonstrada a inexistência dele, a pretensão indenizatória do consumidor
464
Nesse sentido, bem colocada é a observação de Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, no sentido de que “a
não-colocação do produto no mercado aparece, frequentemente, associada ao fato de terceiro (furto,
roubo)”. (SANSEVERINO, op. cit., 2002. p. 264).
465
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2000. p. 484.
201
cai por terra. Essa prova evidencia que, muito embora possa o dano ter
sido causado pelo produto ou serviço, não houve ilicitude por parte do
fornecedor – lesão à legítima expectativa de segurança que o consumidor
espera do produto ou serviço (defeito); quebra-se, pois, o próprio nexo de
causalidade.
São exemplos dessa excludente a prova de que o dano decorreu
de um desgaste natural do produto, advindo dos efeitos do tempo; ou,
ainda, a demonstração de que a má utilização do produto, por parte do
consumidor, foi a causa preponderante para a configuração da lesão.
8.2.3 A culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro
O que se disse alhures sobre a culpa da vítima ou do terceiro,
como sendo excludentes de responsabilidade civil, vale também para as
ações que envolvem supostos acidentes de consumo. Isto é, diante de tais
excludentes, encerra-se a responsabilidade pela prova da inexistência de
“relação de causalidade entre o defeito do produto e o evento danoso,
dissolvendo-se a própria relação de responsabilidade”
466
.
Complemente-se com a narrativa da lamúria de Sérgio Cavalieri
Filho, lecionando que o CDC, que tão técnico foi ao falar em fato do
produto e fato do serviço, tenha falado em culpa exclusiva do consumidor
ou de terceiro, em lugar de fato exclusivo deles. Esclarece o jurista que,
em sede de responsabilidade objetiva, é injustificável o equívoco
terminológico ocorrido; afinal, não há que se falar em culpa. Na
responsabilidade objetiva, tudo se resolve no plano do nexo de
causalidade, sendo irrelevante a culpa
467
.
Observe-se, ainda, que a Lei consumerista é expressa ao se
referir em exclusividade da culpa – leia-se fato – do consumidor ou de
terceiro como excludente da responsabilidade civil pelo fato do produto
ou serviço. O termo utilizado na letra da lei – exclusiva – não foi adotado
por mero capricho do acaso. Ao contrário, pretendeu o legislador pátrio
466
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit.,
1999. p. 166.
467
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2000. p. 485.
202
extirpar do âmbito das relações de consumo a excludente da
responsabilidade do fornecedor em função de concorrência de culpas, seja
por parte do consumidor, seja por parte de terceiro. Além disso, vale
frisar, essa orientação condiz, inarredavelmente, com o direito básico do
consumidor à efetiva reparação de danos patrimoniais e morais,
individuais, coletivos e difusos (art. 6º, VI, da Lei 8.078/90).
Noutro norte, não se pode olvidar que o terceiro a que a lei se
refere é pessoa absolutamente desconectada do fornecedor, alheia à cadeia
de fornecimento de produtos ou serviços, de modo que é manifestamente
equívoco incluirem-se nessa seara os comerciantes, os prepostos, os
empregados e os representantes.
8.2.4 A força maior
Consoante já apontado anteriormente, o CDC silenciou-se sobre
as excludentes de responsabilidade força maior e caso fortuito (interno).
Tal postura, muito embora racional e objetiva, deu margem a perigosas
controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, quiçá em razão do
exagerado apego do operador do direito à interpretação literal da lei.
O fortuito interno, como fato imprevisível e, por isso,
inevitável, ocorrido no momento da fabricação do produto ou realização
do serviço, não tem o condão de excluir a responsabilidade do fornecedor,
na medida em que integra sua atividade, ligando-se aos riscos do
empreendimento, submetendo-se à noção geral de defeito de concepção do
produto ou de formulação do serviço; se o defeito surge antes da
introdução do produto no mercado ou durante a prestação do serviço, é
irrelevante considerar o motivo que o determinou, porquanto o fornecedor
será sempre responsável pelas suas conseqüências, ainda que decorrente
de fato inevitável.
468
Por implicar um impedimento relacionado com a
pessoa do agente, não elide a responsabilidade, integrando o próprio risco
assumido pela exploração da atividade no mercado de consumo.
468
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 489.
203
Ao revés, a força maior, por não guardar relação alguma com a
atividade do fornecedor, denotando-se um fato absolutamente estranho ao
produto ou serviço, via de regra ocorrido posteriormente ao da sua
fabricação ou formulação, elide a responsabilidade do fornecedor, pela
inequívoca constatação de que o defeito alegado era verdadeiramente
inexistente
469
.
Sintetizando tudo o que foi dito: o imprevisível insere-se no
risco; o inevitável não.
469
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2002. p. 489.
CAPÍTULO V
DIREITO INTERTEMPORAL E O CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR
1 Identificação da denominação direito intertemporal
Algumas vezes, a colisão da lei nova com a anterior acarreta
problemas. Isso porque determinadas circunstâncias estabelecidas pela lei
antiga podem permanecer sob a vigência da nova lei; ou, por outro lado,
situações outras que foram criadas pela lei velha já não vão encontrar
guarida na novel legislação
470
. Destarte, conforme leciona Machado A.
Paupério, há que se estudar até que ponto a lei antiga pode gerar efeitos e
até que ponto a lei nova não pode impedir esses efeitos da lei antiga
471
.
Esse estudo, necessário para o desatar de problemas jurídicos de
apreço, recebe as denominações de conflito de leis no tempo,
retroatividade ou não-retroatividade das leis, aplicação do direito em
relação ao tempo, superveniência da lei no tempo, direito transitório e,
com tendência a prevalecer sobre as demais, direito intertemporal
472
.
470
Assim, conforme ensina Paulo Dourado Gusmão, o problema da retroatividade ou da irretroatividade
das leis só surge quando, para a mesma situação jurídica, existem duas leis incompatíveis entre si: a
derrogada e a vigente. (GUSMÃO, op. cit., 1960. p. 150).
471
PAUPÉRIO, op. cit., 1986. p. 282.
472
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 4. ed. São Paulo: Martins, 1973. v. 2, p.
152.
205
2 O direito intertemporal aplicado às relações de consumo
A problemática do conflito de leis no tempo possui duas facetas
igualmente relevantes.
Em primeiro plano, a admissão da retroatividade da lei,
473
como
princípio absoluto, geraria situações inaceitáveis, haja vista a atmosfera
de insegurança que pairaria na sociedade. Aceitando-se, sem restrição, tal
postura, situações anômalas ao atual regime democrático e mais
aproximadas à ditadura e ao despotismo propagar-se-iam no sistema
social, atentando contra a própria estabilidade jurídica. A confiança na lei
e em sua autoridade estariam prejudicadas; relações jurídicas já
concretizadas fragilizar-se-iam diante do perigo da publicação de novas
leis prontamente hábeis a alterá-las.
Por outro norte, é aceitável admitir que a preponderância do
interesse público sobre as conveniências dos cidadãos, como conseqüência
proveniente da soberania da lei, justifica, antes de qualquer consideração,
sua aplicação a todos os fatos por ela regulados. Para que a legislação
mais moderna possa realizar inteiramente sua finalidade benéfica, o
interesse social exige que seja aplicada tão completamente quanto
possível
474
. Nesse sentido, e parafraseando Paiva Pitta, se a lei nova tiver
de respeitar a sua razão de ser no passado, restringindo o seu império
somente ao que se fizer depois da sua promulgação, ver-se-á caminhar,
paralelamente, o pretérito com o presente, o desengano com a esperança, a
saudade com o gozo, a sombra com a luz, enfim, as velhas com as novas
instituições
475
.
Pergunta-se, pois, qual será a solução adequada aos problemas
de conflitos de lei no tempo. Dever-se-á dar privilégio à estabilidade
jurídica e à paz social, impedindo a lei nova de abraçar situações
concretamente abrangidas por leis anteriores ou, ao invés, evitar a
473
Ensina Machado A. Paupério que, segundo o princípio da retroatividade, “a lei nova pode abarcar
situações virtualmente abrangidas por leis anteriores. Pelo princípio da não-retroatividade, ao
contrário, a lei nova não pode abarcar as situações jurídicas abrangidas pela lei antiga”
(PAUPÉRIO, op. cit., p. 283).
474
FARIA, Bento de. Aplicação e retroatividade da lei. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Filho, 1934. p. 20.
475
Ibid., p. 21.
206
estagnação social, buscando, sempre, o progresso do legislativo ante a
aceitação da retrooperância da lei?
Não se pode duvidar de que a intenção da atual Carta Magna foi
adotar, como regra geral do sistema, o princípio da não-retroatividade da
lei, admitindo-se, por outro lado, a sua retroatividade como exceção.
Assim fez o legislador constitucional ao prescrever que “a lei não
prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”
(art. 5º, XXXVI). Não outro o sentido imposto pelo comando legal
constante do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil: “A lei terá
efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito
adquirido e a coisa julgada”.
Paul Roubier, talvez o maior defensor da teoria da não-
retroatividade, considera as três etapas do tempo (passado, presente e
futuro), entendendo que elas condicionam três possibilidades de aplicação
da lei: a) se a lei se aplica ao passado, diz-se que seu efeito é retroativo;
b) se a lei se aplica ao presente, diz-se imediato seu efeito; e c) se a lei se
aplica ao futuro, seu efeito será deferido
476
.
Como mencionado, a regra é a da irretroatividade da lei
477
. Isto
porque, no ordenamento jurídico brasileiro, a irretroatividade é preceito
constitucional (art. 5º, XXXVI),
478
aplicando-se, por tal motivo, como
norma imperativa, a todos os ramos do direito, a todas as espécies de
normas – leis, decretos, resoluções, portarias, etc. –, e a todas as esferas
do poder público, federal, estadual e municipal
479
. Trata-se de uma
conquista do mundo moderno contra a tirania de outrora.
476
PAUPÉRIO, op. cit., p. 293.
477
Como atesta Nery Junior, a doutrina brasileira enumera diversas garantias oriundas do princípio
constitucional do devido processo legal, dentre elas, o direito de não ser processado, julgado ou
condenado por alegada infração às leis ex post facto (NERY JÚNIOR, op. cit., p. 41). Além de
expressamente o legislador constitucional adotar o princípio da irretroatividade da lei como regra geral
do sistema, esse argumento (lesão ao princípio do devido processo legal) é mais um justificador do que
aqui se procura demonstrar.
478
Assevera Maria Helena Diniz, é “princípio fundamental de direito que as leis sejam aplicáveis a atos
anteriores à sua promulgação, contanto que tais atos não tenham sido objeto de demandas, que não
estejam sob o domínio da coisa julgada, nem configurem ato jurídico perfeito ou direito adquirido. Fácil
é perceber que entre a retroatividade e a irretroatividade existe uma situação intermediária, a da
aplicação imediata da nova norma às relações nascidas sob a vigência da anterior e que ainda não se
aperfeiçoaram. O requisito sine qua non para a imediata aplicação é o respeito ao direito adquirido, ao
ato jurídico perfeito e à coisa julgada”. (DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil
brasileiro interpretada. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 193).
479
MONTORO, op. cit., p. 155.
207
Conforme ensina Machado A. Paupério, a lei nova poderá,
entretanto, ser capaz de aplicar-se aos efeitos futuros das relações
jurídicas presentes e anteriores, originadas sob a égide e o império da lei
precedente, por ela revogada
480
. Nada obstante, não se deve desprezar que
os efeitos já produzidos pela antiga lei deverão ser preservados e
respeitados. Os novos efeitos é que serão submetidos à força da novel
legislação.
Nesse ponto, é de importância elementar a distinção entre efeito
retroativo e imediato da lei. E o próprio ordenamento jurídico brasileiro,
pelos precisos termos do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil,
discrimina-os, de modo capital, ao dispor: “A lei em vigor terá efeito
imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e
a coisa julgada”. Isso revela que não só as situações não definitivamente
constituídas (facta pendentia), como também os efeitos presentes e
futuros dos fatos já consumados (facta praeterita), serão abarcados pela
novel legislação. A aplicação da novel legislação, em tais hipóteses, não
autoriza rotulá-la de retroativa, restando evidenciado, apenas, o seu efeito
imediato
481
.
Machado A. Pauperio, em lição precisa, esclarece que nos
próprios contratos em curso, subordinados antes, até mesmo
para os efeitos futuros, à lei antiga, a não ser que a lei nova
estabelecesse o contrário, tem lugar o efeito imediato, que não
significa, sem dúvida alguma, efeito retroativo. Só aos
momentos anteriores de uma situação em curso é que não
poderia a lei nova aplicar-se sem retroatividade
482
.
Veja-se, como exemplo, uma situação que evidencia fielmente a
distinção entre o efeito retroativo e imediato: a Lei 9.032/95 extinguiu a
possibilidade de concessão de pensão às pessoas que foram designadas
como dependentes por segurados da previdência social. Há, porém, quem
sustente a existência de direito adquirido à pensão, para pessoas
480
PAUPÉRIO, op. cit., p. 294.
481
Veja-se essa linha de entendimento empregada na jurisprudência:
“[...[ as normas de direito econômico se aplicam imediatamente, alcançando os contratos em curso,
notadamente os de execução diferida ou de trato sucessivo, mercê do caráter de norma de ordem
pública que desfrutam”. (Superior Tribunal de Justiça, Quarta Turma, REsp n 2595 – SP, Relator
Ministro Sálvio de Figueiredo, data do julgamento em 28 de agosto de 1990).
482
PAUPÉRIO, op. cit., p. 296.
208
designadas até a data da Lei 9.032/95. Ocorre que somente há o direito à
pensão com o evento morte. Antes da morte do segurado, não há direito à
pensão, senão uma mera expectativa de direito. Poder-se-ia falar em fato
consumado se, antes da publicação da Lei 9.032/95, ocorresse a morte do
segurado. Nesse caso, estaria presente o direito adquirido, visto que todos
os requisitos para o recebimento da pensão foram satisfeitos (dependente
designado + morte antes da publicação da Lei 9.032/95), pouco
importando a falta de diligência do dependente em pleitear seu direito à
pensão, anos depois da publicação da referida Legislação. A Lei 9.032/95
não poderá, nesse caso, retroagir, alterando os fatos já concretizados e
perfeitamente consumados na vigência da lei anterior, sob pena de ferir
direito adquirido. Ao contrário, mesmo aquelas pessoas designadas
dependentes antes da publicação da Lei 9.032/95, não terão direito à
pensão, se o segurado veio a falecer em momento posterior à publicação
da retromencionada legislação, exatamente porque lhes falta um requisito
para sua aquisição: a morte do segurado na vigência da Lei anterior. A
Lei nova, nessa situação, aplicar-se-á imediatamente, já que não existe,
aqui, a figura do fato consumado ou do direito adquirido
483
.
Nesses termos, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, na
ocasião do julgamento do EREsp n. 190.193/RN, em 14/06/2000,
publicado em 07/08/2000:
O fato gerador para a concessão da pensão por morte é o óbito
do segurado instituidor do benefício. A pensão deve ser
concedida com base na legislação vigente à época da
ocorrência do óbito. Falecido o segurado, sob a égide da Lei
9.032/95, não há direito adquirido ao dependente designado
anteriormente
484
.
483
Caio Mario Pereira, trazendo à baila a teoria de Paul Roubier, evidencia ser forçoso distinguir dois
momentos sucessivos, no desenvolvimento de uma situação jurídica: “há situações jurídicas que se
constituem em um só momento, em conseqüência de um único fato (a morte de uma pessoa, o
abalroamento de um veículo) e há outras que supõem certo lapso de tempo, requerendo um estado de
fato contínuo (a prescrição aquisitiva pressupõe a posse contínua por um lapso prolongado), ou a
presença de elementos sucessivos (a sucessão testamentária requer, de um lado, um testamento válido
e, de outro, a morte do testador). No tocante às situações jurídicas que já se acham constituídas, a
regra é uma só: as leis que regulam a constituição de uma situação jurídica não podem atingir as
situações jurídicas já constituídas. (PEREIRA, Caio Mário. Instituições de direito civil. Rio de
Janeiro: Forense, 1974. p. 149).
484
Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acessado em 22 fev. 2003.
209
Outro exemplo elucida bem a questão da incidência imediata da
lei nova: discutiu-se, há algum tempo, se a Lei 8.009/90, a qual proibira a
incidência da penhora aos bens que guarnecem a residência do devedor,
teria efeito naquelas situações em que a penhora já se efetivara, antes do
nascimento da retroaludida legislação. A questão poderia ser colocada nos
seguintes termos: a penhora, ocorrida momentos antes da edição da Lei
8.009/90, corresponderia a um verdadeiro direito adquirido, sendo, pois,
regida pela Lei vigente ao tempo de sua ocorrência ou, ao contrário, o
Diploma novel, ao entrar em vigência, aplicar-se-ia imediatamente,
desconstituindo a penhora realizada anteriormente à sua publicação?
Acertadamente, pacificou-se na jurisprudência o entendimento de que a
Lei 8.009/90, ao entrar em vigência, produziu, de imediato, efeito sobre o
processo em andamento, cuja penhora é ato necessário. Isto é, admitindo-
se que a penhora é simplesmente um ato executivo (ato do processo de
execução), cuja finalidade é a individuação e preservação dos bens a
serem excutidos no processo de execução, a jurisprudência orientou-se
pela desconstituição da penhora ocorrida antes do nascimento da Lei
8.009/90. A penhora, portanto, não corresponde a um direito adquirido;
representa, sim, mera expectativa de direito. Ela não cria direito real. A
penhora não importa transferência de propriedade. Embora onerado, o
bem continua no patrimônio do devedor; é ato do processo de execução
que tende a obter a expropriação do bem do devedor com o objetivo de
efetuar o pagamento do credor. Particulariza-se, no patrimônio do
executado, o bem a ser futuramente alienado. A penhora é, pois, um ato
preparatório da expropriação do bem e do conseqüente pagamento do
credor. Como a penhora visa à futura alienação do bem, após a Lei
8.009/90, que estabeleceu que os bens móveis que guarnecem a residência
do devedor não responderão pela dívida; a alienação de tais bens torna-se
juridicamente impossível. Mesmo que se prosseguisse a execução,
mantendo-se a constrição que antecedeu a nova Lei, impossível seria, no
futuro, a alienação do bem penhorado, por absoluta proibição legal
485
. Tal
exemplo, como dito acima, refere-se à aplicação imediata da lei e não à
485
Lições retiradas do REsp 11.698 – MS, Terceira Turma, Relator Ministro Waldemar Zveiter, julgado
em 18/02/1992.
210
sua retroatividade, porquanto não atingiu situações já perfeitamente
acabadas e consumadas pela lei anterior vigente
486
.
No que diz respeito ao CDC, não restam dúvidas da sua
aplicação imediata naquelas situações não definitivamente concluídas ou
nos efeitos presentes e futuros decorrentes de fatos já consumados
487
.
Advirta-se mais uma vez: não se tratará, nessas hipóteses, de efeito
retroativo da lei, senão da imediata aplicação dela.
Despontam, todavia, as seguintes indagações: a legislação de
ordem pública, em função de sua natureza, enquadra-se nas hipóteses
excepcionais que permitem sua aplicação retroativa? O CDC, por ser uma
Lei de ordem pública (art. 1º), aplica-se retroativamente àquelas situações
já consumadas?
Bento de Faria, referindo-se às normas de ordem pública,
assenta que “na esfera do direito público há de sempre prevalecer a
vontade do Estado, orientada, é bem de ver, pelo menor sacrifício dos
direitos subjetivos”. O mesmo autor, escorando, agora, seu
posicionamento nas lições de Planiol, sustenta a aplicação retroativa e
integral das leis de direito público: “O princípio que torna aplicável a lei
nova a todos os fatos posteriores à sua promulgação rege, sem nenhuma
exceção nem reservas, todas as leis de direito público ou de caráter
público”
488
. Igual entendimento é adotado por Lafayette: “É um princípio
fundamental de direito – que as leis de administração e ordem pública
486
Veja-se mais um exemplo jurisprudencial que bem evidencia a aplicação imediata da lei: “Prescrição.
Rurícola. Superveniência da Emenda Constitucional nº 28, de 26-05-2000. Inaplicabilidade. 1.
Inconcebível, no ordenamento jurídico brasileiro, a aplicação retroativa de lei que importe infringência
ao direito adquirido da parte(CF/88, art. 5º, inc. XXXVI). 2. A Emenda Constitucional nº 28, de 26-05-
2000, não regula a prescrição se, quando passou a viger, apanhou o contrato de emprego do rurícola
já extinto e a ação já ajuizada. A lei nova não tem o condão de alcançar situações pretéritas, já
totalmente consolidadas segundo a regra prescricional vigente à época. A aplicação imediata da lei
nova alcança unicamente os efeitos futuros de fatos passados, mas não se compadece com a incidência
sobre fatos integralmente consumados no passado. "Esse princípio é a própria moral da legislação”
(GRENIER). Convicção robustecida mediante a aplicação analógica da Súmula nº 445 do E. STF. 3.
Inexistência de ofensa aos artigos 896 da CLT, 7º, inciso XXIX, da Constituição Federal e 462 do CPC.
Embargos de que não se conhece. Por unanimidade, não conhecer dos embargos.” (Tribunal Superior
do Trabalho, Embargos em Recurso de Revista, Relator Ministro João Oreste Dalazen, Subseção I,
Especializada em Dissídios Individuais, DJ 07/06/2002).
487
Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça ao concluir que as normas de ordem pública econômica
“implicam derrogação de cláusulas de contratos em curso”. (Superior Tribunal de Justiça, Quarta
Turma, REsp 7.904-ES, Relator Ministro Athos Carneiro, julgada em 12/03/1991. Disponível em
<http://www.stj.gov.br
>. Acessado em 22 fev. 2003).
488
FARIA, op. cit., p. 26.
211
têm efeito retroativo, isto é, são aplicáveis aos atos anteriores à sua
promulgação, contanto que esses atos não tenham sido objeto de
demandas e que não estejam sob o selo da coisa julgada”
489
. Maria
Helena Diniz, aduzindo posição semelhante, esclarece que os “direitos
adquiridos devem ceder ao interesse da ordem pública; logo, as normas
de ordem pública serão retroativas, desde que expressas e sem que haja
desequilíbrio jurídico-social”
490
.
Como se vê, a tese da retroatividade das normas de ordem
pública é fundamentada na prevalência dos interesses da coletividade na
ordem jurídica e social. Os particulares devem, segundo esse
entendimento, subordinar-se às mudanças legais reclamadas naquele
momento social, em razão de sua conveniência. Com efeito, tratando-se de
normas de ordem pública – argumentam os defensores da sua aplicação
retrooperante – seria ilícito pretender direitos, como irrevogavelmente
adquiridos, contrários a ela. A retroatividade, em tais casos, justificar-se-
ia pelo interesse essencial da sociedade, mas sem a possibilidade de
determinar perturbações de caráter geral, simplesmente porque importaria
ofensa à mesma ordem pública invocada como fundamento da retroação
491
.
É de se dizer, contudo, que os defensores da retroatividade da
lei olvidam-se de que a manutenção da ordem social também representa
um interesse coletivo. O raciocínio que opõe interesses coletivos a
interesses particulares com o intuito de defender a retrooperância da lei é
falho. Se é certo afirmar que os particulares devem ceder às alterações
legislativas necessárias num dado momento social, em razão de sua
conveniência para a ordem pública, mais sagaz e acertada é a afirmativa
de que os indivíduos não podem viver num ambiente de absoluta
insegurança social, sujeito a alterações constantes acarretadas pelo
simples surgir de novas leis. Decerto, a segurança jurídica e social é um
valor coletivo meritório, já que a própria CF optou por aboná-la (coisa
julgada, direito adquirido e ato jurídico perfeito) [...].
489
FARIA, op. cit., p. 27.
490
DINIZ, op. cit., p. 194.
491
FARIA, op. cit., p. 28.
212
Considera-se mais ajustado à realidade nacional o magistério do
mestre Caio Mário Pereira, ao indicar, com pena de ouro, o viés exegético
que deve guiar o intérprete, ao se deparar com problemas vinculados ao
direito intertemporal:
Costuma-se dizer que as leis de ordem pública são retroativas.
Há uma distorção de princípio nesta afirmativa. Quando a regra
da não-retroatividade é de mera política legislativa, sem
fundamento constitucional, o legislador, que tem o poder de
votar leis retroativas, não encontra limites ultralegais à sua
ação, e, portanto, tem a liberdade de estatuir o efeito
retrooperante para a norma de ordem pública, sob o
fundamento de que esta se sobrepõe ao interesse individual.
Mas, quando o princípio da não-retroatividade é dirigido ao
próprio legislador, marcando os confins da atividade
legislativa, é atentatória da constituição a lei que venha ferir
direitos adquiridos, ainda que sob inspiração da ordem pública.
A tese contrária encontra-se defendida por escritores franceses
ou italianos, precisamente porque, naqueles sistemas jurídicos,
o princípio da irretroatividade é dirigido ao juiz e não ao
legislador
492
.
A lei nova, seja ela de ordem pública ou não, sempre terá
aplicação imediata e geral. Como esclarecido alhures, aquelas situações
não definitivamente constituídas, bem como os efeitos presentes e futuros
dos fatos já consumados serão abarcados pela autoridade da nova lei. A
lei retroativa, ao contrário, é aquela que se aplica a situações já acabadas
e perfeitas
493
. O sistema jurídico brasileiro, por exemplo, admite a
aplicação retroativa da lei penal, sempre que esta beneficiar o réu, mas
isso em razão de expressa previsão constitucional (art. 5º, XL, da CF)
494
.
É apropriado insistir, uma vez mais, no fato de que a CF, ao
declarar, imperativamente, que a lei nova não atingirá o direito adquirido,
o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, optou por adotar o princípio da
não-retroatividade da lei como regra geral do ordenamento jurídico. E o
princípio da irretroatividade das leis, dependendo da forma em que é
posto e regulamentado num ordenamento jurídico, poderá permitir uma
492
PEREIRA, op. cit., p. 155.
493
O próprio significado literal da palavra ‘retroativo’ evidencia o que aqui se defende. Aurélio Buarque de
Holanda Ferreira define referido termo como aquilo relativo ao passado, que modifica o que está feito,
que afeta o passado, que retroage. (FERREIRA, Aurélio Buarque Holanda. Dicionário Novo Dicionário
Aurélio Eletrônico. Versão 3.0. MGB Informática, [s.d.]).
494
“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
213
exegese mais ou menos flexível, o que, por conseqüência, autorizará a sua
aplicação de maneira engessada ou aberta.
Nessa trilha, nos países em que é o legislador ordinário quem
proclama o princípio da irretroatividade das leis, tal prescrição é imposta
exclusivamente ao Poder Judiciário, de modo que se reserva ao legislador
o direito de abrir-lhe exceções, aparentemente justificadas pelos
invocados preceitos da moral e do direito filosófico, ou pelas exigências
da ordem social. Outra, porém, é a conclusão quando o princípio da
irretroatividade situar-se no rol das normas constitucionais – como é o
caso do Brasil. Em tais circunstâncias, o aludido preceito dirige-se não só
ao Poder Judiciário, mas também ao próprio legislador, de sorte que não
se poderão abrir-lhe exceções. O legislador fica preso, maniatado, não
sendo lícito atribuir legitimidade a sua intenção de dominar, mediante as
novas leis, os fatos pretéritos, já devidamente consumados. Os juízes,
ainda com maior razão, também se quedam obrigados a essa idéia
interpretativa, sendo-lhes vedado aplicar a lei nova retroativamente
àquelas situações consumadas na vigência da legislação anterior.
Assim, o CDC aplica-se, por exemplo, àqueles contratos
assinados antes de sua vigência, anulando cláusulas leoninas ou abusivas
cuja eficácia prática ocorreria agora, ou no futuro – os chamados
contratos de trato sucessivo
495
–, ferindo a nova ordem de valores imposta
pela legislação consumerista. Nesse ponto, não há lesão alguma ao
princípio da irretroatividade das leis, pelo simples fato de inexistir direito
adquirido ou ato jurídico perfeito. Não há que se falar aqui em
retroatividade da lei, mas, sim, em sua aplicação imediata, uma vez que a
cláusula passível de anulação não se consumou ou se exauriu antes da
publicação da Lei 8.078/90; embora constituído o contrato, algumas de
suas cláusulas, agora abusivas, não se consumaram
496
.
De tudo que foi dito, conclui-se que o CDC não tem efeito
retroativo pelo mero fato de ser uma norma de ordem pública. O texto
495
Tais situações atingem diversos contratos, a exemplo dos contratos de locação e promessa de venda e
compra.
496
“O Código de Defesa do Consumidor tem aplicação imediata aos contratos com eficácia duradoura,
conforme o art. 170 da Constituição Federal e art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil.” (9.
a
Conclusão do II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor).
214
constitucional, ao preceituar que a lei nova não prejudicará o ato jurídico
perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, não faz distinção entre
legislações de ordem pública e outras que não possuem essa natureza.
Quisesse o ordenamento jurídico nacional recepcionar a retroatividade das
leis de ordem pública, deveria, como fez com questões envolvendo a lei
penal benéfica ao réu, excepcionar, expressamente, tal situação na própria
CF. Com efeito, os fatos já consumados, perfeitamente concluídos na
vigência de normas anteriores à Lei consumerista, não são, de maneira
alguma, atingidos por sua força e autoridade legislativa. Poderão, por
outro lado, ter significativa influência do CDC (efeito imediato) aquelas
situações não definitivamente concluídas ou os efeitos presentes e futuros
decorrentes de fatos já consumados, sempre que disserem respeito a
relações de consumo
497
.
3 O direito intertemporal aplicado ao tema em estudo
O vício em cigarros gera o que se pode chamar de consumo
continuado. Surge no organismo do viciado uma nova necessidade criada
artificialmente pelo uso do produto: a necessidade de doses diárias de
nicotina.
O fumante, diante disso, dia-a-dia debilita sua saúde,
consumindo um cigarro após o outro. No entanto, os efeitos maléficos da
prática do tabagismo normalmente surgem após décadas de consumo do
produto. Isto significa que a maioria dos consumidores que hoje
apresentam enfermidades advindas do vício do cigarro iniciaram seu
consumo antes da publicação da Lei 8.078/90. Importa também reconhecer
que inexistiam restrições legais diretas à publicidade dos cigarros
497
Nesse sentido: “Consórcio – Publicidade enganosa – Teoria da confiança – Aplicação. Proteção ao
consumidor. Direito intertemporal. Código do Consumidor. Contratos concluídos antes de sua vigência.
Evolução da teoria contratual. Teoria da confiança. Responsabilidade da empresa que, em enganosa
publicidade, vinculou seu nome a consórcio administrado por empresa do mesmo grupo econômico.
Pessoa jurídica que acabaria em liquidação extrajudicial, sendo que o consumidor só contratou devido
à respeitabilidade da empresa oculta. I – O CDC contém normas de ordem pública, portanto de
aplicabilidade imediata. Quanto às relações contratuais em curso quando de sua entrada em vigor, hão
que se distinguir dois marcos: o momento pré-contratual será regido pela lei da época, enquanto que os
efeitos observados na vigência do Código deverão adequar-se a este diploma. [...] (Tribunal de Alçada
de Minas Gerais, Apelação Cível n. 233.177, Relator Juiz Wander Marotta, DJ/MG de 12/08/1997;
Repertório IOB de Jurisprudência, 2
a
quinzena set. 1997, n. 18/97, p. 356,3/13592).
215
veiculada há quinze, vinte ou trinta anos – aliás, nesses tempos, não era
dispensada à publicidade a importância que merecia.
É de se indagar: como, então, admitir-se a aplicação do CDC,
visando ao ressarcimento civil de pessoas enfermas (ou de seus familiares
em caso de falecimento), que se iniciaram no consumo de cigarros anos
antes da Lei consumerista entrar em vigor? Qual o fundamento para se
considerar uma publicidade como enganosa e/ou abusiva, numa época em
que a publicidade era ignorada pelo Direito, esse que não a reconhecia
como instrumento poderosíssimo de influência sobre o consumidor?
De início, esclareça-se que até março de 1991 não vigorava o
CDC, de modo que as entabuladas relações de consumo, àquela época,
eram reguladas pelos Códigos Civil de 1916 e Comercial de 1950.
Somente em 11 de setembro de 1990 foi promulgada a Lei 8.078/90, cujo
art. 118 preteriu sua entrada em vigor para 180 dias após a sua
publicação. Logo, apenas a partir de 11 de março de 1991 é que o
consumidor brasileiro passou a contar com a Lei consumerista, na busca
da tutela de seus direitos.
Na edição anterior desse trabalho, advogou-se a tese de que, em
havendo interesse social a exigir a imediata aplicação da lei nova, a
norma retroagirá, até porque a sucessão de problemas ou situações é que
finda por evidenciar a necessidade ou mesmo a urgência de novo preceito
cogente. Buscou-se a resposta no art. 1.º do CDC – dispositivo de suma
importância para a compreensão do microssistema consumerista,
consoante já visto alhures –, aceitando-se a idéia de que as normas de
natureza cogente detêm força retroativa. Todavia, tal inferência mostrou-
se equivocada [...].
Em verdade, naquela oportunidade, incidiu-se numa confusão
entre os conceitos referentes aos efeitos retroativos e imediatos. Tais
expressões, consoante visto no tópico anterior, encerram situações
diversas, cada qual com particularidades próprias.
Não é porque o art. 1º da Lei 8.078/90 a define como de ordem
pública e interesse social que poderá ela retroagir, atingindo situações já
consumadas na égide das leis imediatamente anteriores. Sem dúvida que
os direitos emergentes das relações de consumo possuem majorada
216
intensidade de interesse social envolvido, bastando, para assim concluir,
observar que a defesa do consumidor foi erigida a cânon constitucional,
ombro a ombro com o respeito aos direitos adquiridos, no mesmo art. 5º
em que estão arroladas as garantias individuais constitucionais.
Todavia, e consoante o já exposto, a CF ao preceituar que a lei
nova não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa
julgada, não faz distinção entre legislações de ordem pública e outras que
não possuem essa natureza. Destarte, a Carta Magna não recepcionou a
retroatividade das leis de ordem pública no ordenamento jurídico
nacional. Portanto, é absolutamente equivocada qualquer exegese que
aponte a possibilidade de retroatividade da Lei consumerista, de sorte a
permitir-lhe atingir situações pretéritas já devidamente acabadas.
Não diverge dessa conclusão o magistério de Arruda Alvim,
devidamente inserido em parecer não publicado e confeccionado em prol
da indústria do fumo, numa ação movida por um fumante acometido de
enfermidades oriundas do consumo de cigarros. Leciona o mestre que
“tendo o fato constitutivo de um direito ocorrido integralmente sob a
vigência de uma lei (o Código Civil), lei nova a ela não se poderá
aplicar, sob pena de retroatividade inadmissível”
498
.
Por outro lado, e conquanto a opinião exarada na primeira
edição desse trabalho, naquilo que toca especificamente ao tema retratado
nesse capítulo, tenha se alterado, a essência da conclusão a que se
chegou, naquela oportunidade, permanece inalterada. Isto é, insiste-se no
propósito de que o CDC é a lei aplicável em ações promovidas contra as
indústrias do fumo, em que se pleiteiam indenizações por doenças tabaco-
relacionadas. E mais importante: pouco importa que o tabagista tenha
iniciado seu vício anos antes da vigência da Lei 8.078/90; surgindo os
danos (enfermidades tabaco-relacionadas) após a data em que essa
legislação entrou em vigor (11 de março de 1991), será ela a aplicável,
com prevalência sobre qualquer outra, ao caso concreto.
498
Parecer da lavra de Arruda Alvim, solicitado pelo escritório Dinamarco, Rossi & Lucon, contratado por
uma indústria do tabaco para atuar na defesa de seus interesses em ações movidas contra ela. Tal parecer
encontra-se anexado em alguns processos movidos por fumantes contra indústrias do tabaco e não foi
objeto de publicação.
217
Constata-se que o fumante, hoje acometido por enfermidades
associadas ao tabaco (ou falecido em virtude do consumo de cigarros),
provavelmente principiou-se no tabagismo décadas antes da vigência do
CDC
499
. Verificando-se que os efeitos maléficos à sua saúde surgiram
depois da entrada em vigor do CDC, deverá esse Estatuto legal ser
utilizado na solução de conflitos envolvendo fumantes (ou familiares de
tabagistas falecidos) e indústrias do tabaco; afinal, naquelas situações que
nasceram sob o império de lei antiga, mas continuam a produzir seus
efeitos sob o da lei nova (efeitos futuros das situações jurídicas) – leciona
Caio Mario da Silva –, verifica-se que a lei novel aplica-se
imediatamente, mesmo aos efeitos futuros das situações nascidas sob o
império da lei anterior
500
.
Arruda Alvim, em posição exarada no já citado parecer, manteve
seu raciocínio nesse rumo, lecionando que os requisitos para eventual
caracterização da obrigação de indenizar das fabricantes de cigarros,
quando o dano narrado (doença ou simples vício) tenha ocorrido antes de
março de 1991 (na vigência do CC de 1916), serão os do art. 159 do CC
revogado. Por outro lado, se tais danos ocorreram depois de março de
1991, os requisitos serão os do CDC. De uma maneira simples, isso
apenas significa dizer que, se uma pessoa começou a fumar antes da
vigência da Lei consumerista, e o dano por ela narrado ocorreu depois de
março de 1991, será essa legislação, o CDC, a aplicável ao caso concreto.
Essa também a linha de argumentação utilizada pela aplaudida
jurista Claudia Lima Marques, ao afirmar que o CDC pode e deve ser
aplicado em ações indenizatórias ajuizadas por fumantes (ou seus
familiares) contra as indústrias do fumo, sempre que o momento de
concretização do dano surgir depois da publicação da referida legislação.
499
Sem embargo, mesmo que se admita, por amor ao debate, ser impossível submeter o efeito imediato às
disposições legais da Lei 8.078/90, em nada se altera a sua aplicação, em situações presentes, na
apuração da responsabilidade civil das indústrias do tabaco, em razão de danos causados pelo
tabagismo. O Código de Defesa do Consumidor possui mais de dez anos de vigência e, no entanto, as
imperfeições do cigarro persistem. Isto é, a publicação da Lei das relações de consumo não fez com que
as indústrias do fumo adequassem seus produtos às prerrogativas conquistadas pelo consumidor. As
imperfeições (vícios) do cigarro persistem ainda hoje. Isto, por si só, já motivaria o uso da Lei
consumerista na resolução de crises judiciais que envolvem questões relativas aos efeitos danosos do
cigarro à saúde de consumidores.
500
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 4. ed. São Paulo: Forense, [s.d.]. p. 145.
v. 1.
218
Suas idéias acerca do tema encontram-se descritas em brilhante e
substancioso parecer, encomendado pelo Dr. Miguel Wedy, patrono dos
integrantes da família de Eduardo Francisco da Silva, fumante morto em
razão do consumo inveterado de cigarros, responsáveis pelo ajuizamento
de uma ação de reparação de danos contra a Souza Cruz S.A. e a Philip
Morris do Brasil S.A
501
. Conquanto tal trabalho tenha sido encomendado
especificamente para ser utilizado numa das inúmeras ações ajuizadas
contra a indústria do fumo e encontre-se registrado sob insígnia ‘parecer’,
representa ele, verdadeiramente, um estudo de profundidade, imparcial e
realístico, abordando o tema em várias de suas polêmicas facetas. Nem de
longe é exagerado afirmar que o aludido ‘parecer’, pelo peso que possui a
sua autora, na comunidade jurídico-científica, representa mais um marco
na disputa judicial travada entre fumantes e a indústria do tabaco no
Brasil, servindo-se de robusto elemento a contribuir para a reviravolta
jurisprudencial – que não tardará a ocorrer, acredita-se – a beneficiar os
hipossuficientes da relação de consumo que envolve a comercialização de
cigarros.
É de se ressaltar, ainda, que a jurisprudência, apreciando casos
afetos ao tema em análise, agasalhou a tese da aplicação imediata da lei
novel (CDC) aos efeitos futuros de situações originadas sob a autoridade
da lei anterior (CC de 1916), sendo imprescindível fazer menção dos
substanciosos acórdãos de n.ºs 70007090798 e 70000144626, ambos
proferidos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tendo por
relatores, respectivamente, os Desembargadores Luiz Augusto Coelho
Braga e Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira
502
.
No que se refere à publicidade, o raciocínio a se seguir revela-
se idêntico. Ou seja, é perfeitamente possível ao intérprete valer-se do
CDC para conferir a uma publicidade o rótulo de enganosa e/ou abusiva,
501
MARQUES, Claudia Lima. Violação do dever de boa-fé de informar, corretamente, atos negociais
omissivos afetando o direito/liberdade de escolha. Nexo causal entre a falha/defeito de informação e
defeito de qualidade nos produtos de tabaco e o dano final morte. Responsabilidade do fabricante do
produto, direito a ressarcimento dos danos materiais e morais, sejam preventivos, reparatórios ou
satisfatórios. Revista dos Tribunais, n. 835. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 74-133.
502
No julgamento da Apelação Cível n. 70000144626 a Desembargadora Ana Lúcia Pinto Vieira acabou
vencida, na medida em que proferiu voto negando provimento ao recurso dos autores/recorrentes.
Ambos os acórdãos encontram-se disponíveis, em seu inteiro teor, no site <http://www.tj.rs.gov.br>.
Acessado em 28/06/2005.
219
mesmo que ela tenha sido difundida anos antes da publicação de tal
legislação.
Se antes, na vigência do CC de 1916, o legislador não conferia à
publicidade importância merecedora de regulamentação legal, após março
de 1991, com a entrada em vigor da Lei consumerista, essa situação
alterou-se, de modo que a publicidade ganhou, nesse microssistema,
regramento ampliado, que atinge as ordens material, processual e penal.
Publicidades elaboradas em desacordo com as normas previstas no CDC,
porém disseminadas antes de março de 1991, poderão ser tidas como
ilegítimas, bastando, para tanto, que as conseqüências negativas advindas
de sua apresentação tenham surgido agora, após a entrada em vigor da Lei
8.078/90.
A publicidade nada mais é do que um caminho eficaz de se
ofertar produtos e serviços. Indubitavelmente, seu maior escopo é o de
produzir, no íntimo do consumidor, o ideal de consumo, incutindo nele a
intenção de adquirir ou contratar. Tanto assim que a Lei consumerista
expressamente inseriu a oferta publicitária no contrato, sendo certo que
aquilo prometido por intermédio de uma publicidade deverá efetivamente
ser concretizado.
Se a promessa veiculada por meio de uma peça publicitária falsa
e insidiosa não foi cumprida por absoluta impossibilidade de
concretização prática, gerando, ao revés, danos à saúde física e psíquica
do consumidor, a Lei 8.078/90 será o Diploma legal aplicável se os tais
danos advieram depois de março de 1991; afinal são eles, nada mais, que
efeitos futuros originados de situações concretizadas numa época em que
leis anteriores regulavam as relações de consumo.
Ademais, seguindo outro raciocínio igualmente correto, as
publicidades do cigarro, por terem feito apologia de um produto perigoso,
vinculando-o a circunstâncias que dele verdadeiramente se excluem
(esportes, saúde, lazer, sucesso profissional, etc.), são consideradas
ilegais, mesmo sem um trabalho exegético destinado a garantir a
aplicação do CDC. Isso em razão do princípio da boa-fé objetiva,
aplicável mesmo antes da incidência no ordenamento jurídico nacional do
microssistema consumerista. A postura perpetrada pela indústria do
220
tabaco, ofertando cigarros por meio de uma publicidade absolutamente
insidiosa, revela por parte dela o exercício irregular de um direito,
conduzindo-a à ilegalidade, notadamente porque se valeu de expedientes
contrários à moral, boa-fé e bons costumes, para garantir a distribuição
em massa dos produtos perigosos que fabrica – e, obviamente, garantir
seus lucros –, mesmo ao dissabor da própria saúde daqueles que foram
alvo do engodo publicitário. A lesão ao dever de lealdade com o qual se
deve tratar o parceiro contratual, per se, motiva a conclusão de considerar
ilegais as várias publicidades patrocinadas pela indústria do fumo, com o
fito único de garantir a comercialização dos produtos que fabrica.
De tudo o que aqui foi trabalhado, arremate-se que, no desato de
demandas vinculadas ao tema em estudo, é pertinente, pois, a aplicação
imediata – e não retroativa – do CDC nas situações em que consumidores
adquiriram doenças associadas ao tabaco – ou ainda, vieram a falecer –,
após a publicação do citado Diploma legal, mesmo que tenham
principiado o vício tempos antes da vigência do referido Diploma legal
503
.
503
Conforme salienta José Geraldo Brito Filomeno, a orientação do Superior Tribunal de Justiça é no
sentido de que, em se tratando de normas de Direito Econômico, sua incidência é imediata,
alcançando, sim, os contratos em curso, notadamente os chamados “de trato sucessivo” ou de
“execução continuada”, em decorrência exatamente do caráter de normas de ordem pública. Como foi
o caso, por exemplo, das Leis n. 8.170/91 e 8.178/91, versando a primeira sobre reajustes de
mensalidades escolares, e a segunda sobre o plano econômico intentado pelo governo Collor,
notadamente no que diz respeito à criação da TR (taxa referencial de juros). (GRINOVER;
BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit., 1999. p. 25).
CAPÍTULO VI
TABAGISMO E RESPONSABILIDADE CIVIL
PELO FATO DO PRODUTO
1 A responsabilidade civil por acidentes de consumo e o
tabagismo
A responsabilidade civil das fabricantes de tabaco
504
em face
dos malefícios gerados pelo consumo de cigarros, encontra porto seguro
no art. 12 do CDC
505
:
504
A título de curiosidade, vale descrever algumas informações sobre o embate travado contra o tabagismo
nos EUA:
a) Em 23 de março de 1994, o Estado de Mississipi se torna o primeiro a processar a indústria do tabaco
por gastos em face do tratamento de doenças relacionadas ao fumo.
b) O grupo Liggett, o menor entre os fabricantes de cigarro dos EUA, em 13 de março de 1996,
concorda em pagar sua parte na ação coletiva movida por milhões de fumantes e ex-fumantes.
c) Em 20 de março de 1997, o grupo Liggett se compromete a pagar a 22 Estados US$ 750 milhões e se
torna a primeira indústria do tabaco a admitir que os cigarros viciam e causam câncer.
d) Na data de 19 de abril de 1997, advogados da indústria do tabaco e ativistas iniciam negociações, nas
quais as empresas deveriam pagar até US$ 300 bilhões ao longo de 25 anos, para que um fundo de
compensação a fumantes fosse formado e cessassem futuras ações.
e) Em 25 de abril de 1997, um juiz do Estado da Carolina do Norte decide que a FDA (agência norte-
americana responsável pela regulamentação dos medicamentos e dos alimentos) pode controlar o
comércio de cigarros, mas fica proibida de interferir na sua publicidade.
f) Em 21 de junho de 1997, negociadores da indústria e do grupo antitabagista firmam um acordo para o
pagamento de US$ 360 bilhões, ao longo de 25 anos, e US$ 10 bilhões anuais, depois disso.
g) Na data de 3 de julho, a indústria do tabaco aceita pagar US$ 3 bilhões, num acordo com o Estado do
Mississipi.
h) Na data de 25 de agosto, o governador do Estado da Flórida, Lawton Chiles, anuncia um acordo de
US$ 11,3 bilhões com os fabricantes de cigarro.
222
O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro,
e o importador respondem, independentemente da existência de
culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por
defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção,
montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos, bem como por informações
insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
§1º O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que
dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as
circunstâncias relevantes, entre as quais:
I – sua apresentação;
II – o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III – a época em que foi colocado em circulação.
§2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro
de melhor qualidade ter sido colocado no mercado.
§3º O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não
será responsabilizado quando provar:
I – que não colocou o produto no mercado;
II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito
inexiste;
III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Tal norma é uma das bases legais capazes de conduzir ao
julgamento de ações, cujo mérito abarca a responsabilidade civil pelo fato
do produto, envolvendo fumantes e a indústria do fumo.
i) Em 16 de janeiro de 1998, o Estado do Texas firma um acordo de US$ 15,3 bilhões com a indústria do
tabaco.
j) Na data de 6 de fevereiro de 1998, fabricantes de cigarro concordam em pagar US$ 349 milhões por
uma ação movida em nome de 60 mil comissários de bordo não fumantes. O dinheiro é usado para criar
uma fundação, e ninguém é indenizado.
l) Em 8 de maio de 1998, indústrias do tabaco concordam em pagar US$ 6 bilhões, ao longo de 25 anos,
num acordo com o Estado de Minessota.
m) Em 6 de julho de 1998, começa, na Flórida, uma seleção de jurados para a ação coletiva que
representa 500 mil fumantes doentes.
n) Na data de 16 de novembro de 1998, é realizado um dos maiores acordos da história, no qual a
indústria se compromete a pagar US$ 206 bilhões pela maioria das ações movidas por Estados e pelo
Distrito de Colúmbia.
o) Na data de 30 de março de 1999, a Philip Morris é obrigada a pagar US$ 81 milhões por danos
causados à família de um fumante de Portland, morto por causa de câncer no pulmão.
p) Em 7 de julho de 1999, o júri da Flórida considera que a indústria do tabaco foi negligente ao fazer
marketing de um produto perigoso e afirma que os fabricantes podem ser punidos.
q) Em 7 de abril de 2000, os jurados da Flórida concedem uma indenização de quase US$ 13 milhões a
três fumantes, na primeira ação coletiva do país a ser julgada. O veredicto em relação a um deles,
entretanto, foi anulado por sua reivindicação exceder o estatuto de limitações.
r) Finalmente, em 14 de julho, o júri da Flórida condenou várias indústrias do fumo ao pagamento de
US$ 145 bilhões, em uma ação coletiva de aproximadamente 700 mil fumantes. (Fumantes ganham ação
de US$ 145 bi. Folha de São Paulo. Folha Mundo. p. A 12, São Paulo, sábado, 15 de jul. de 2000).
505
Sobre o assunto: NUNES, op. cit., 2000; MARINS, op. cit., 1993. v. 5; ROCHA, Silvio Luís Ferreira
da. Responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000; GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR;
DENARI, op. cit., 1999; MARÇAL, Sérgio Pinheiro. Código de defesa do consumidor: definições,
princípios e o tratamento da responsabilidade civil. Revista de direito do consumidor, n. 6, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1993. p. 98-108; GRINBERG, Rosana. Fato do produto ou do serviço: acidentes
de consumo. Revista de direito do consumidor, n. 35, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 132-
141; CAVALIERI FILHO, op. cit., 2000.
223
Fato do produto e acidente de consumo correspondem à mesma
idéia básica, a saber, acontecimento externo no mundo fenomênico,
alavancador de danos materiais e/ou morais ao consumidor, decorrentes
de imperfeições de um produto.
O fato gerador da responsabilidade civil por acidentes de
consumo vincula-se justamente a essas imperfeições, sejam elas
intrínsecas ou extrínsecas ao próprio produto, mas que o contaminam e,
por resultado, são capazes de engendrar lesões à esfera material e/ou
psíquica do consumidor.
Não há como se falar, aqui, em culpa – por isso, a lei refere-se
a tal responsabilidade civil como sendo decorrente de fato do produto.
Logo, trata-se de espécie de responsabilidade civil a ser analisada com
desprendimento do sistema tradicional, na medida em que pouco importa a
conduta – se culposa ou não – adotada pelo agente. Importa, sim, que o
produto seja imperfeito sob a ótica jurídica, não oferecendo a segurança
que dele legitimamente espera o consumidor.
Nesse ponto – ressalte-se desde já –, reside um dos maiores
equívocos contidos em fundamentações de julgados que beneficiam a
indústria do tabaco, em ações contra ela promovidas por fumantes (ou
seus familiares). Refere-se aqui à premissa insustentável, no mais das
vezes utilizada como alicerce de tais julgados, fundada na idéia de que a
licitude da atividade da indústria do fumo conduziria a um raciocínio por
meio do qual se poderia concluir ser ela absolutamente irresponsável
pelos danos que os cigarros acarretam aos seus consumidores. Nada mais
ilógico, data venia.
Tal idéia, fragilizada mesmo que por uma análise rasa do tema,
apenas vem a comprovar que, ainda hoje, o CDC não é uma legislação
adequadamente compreendida pelos operadores do direito.
Ora, não há que se levar em conta, em ações de responsabilidade
civil envolvendo relações de consumo, a legalidade ou ilegalidade da
atividade exercida pelo fornecedor. Apenas para assinalar o absurdo de tal
tese – já que essa questão será, no futuro, melhor trabalhada –, não se
224
olvide que, em regra, todas as atividades exercidas no mercado de
consumo são lícitas, motivo pelo qual é certeiro afirmar que a adoção
desse raciocínio apenas tornaria letra morta os dispositivos da Lei
8.078/90, especialmente aqueles que regulam a responsabilidade civil,
estabelecendo um ambiente de total irresponsabilidade dos fornecedores
de produtos e serviços. A situação de outrora, vigorante antes do
surgimento da Lei consumerista, em que se mostrava extremamente
dificultosa a obtenção de decisões de procedência em ações indenizatórias
contra aqueles que abastecem o mercado de consumo – afinal, havia
necessidade de o consumidor demonstrar a culpa do fornecedor –, seria
lembrada com saudades [...].
Não se há, pois, que buscar a responsabilização civil de
fornecedores de produtos, em situações que implicam relação de consumo,
com base na ilicitude de suas atividades. A análise é mais complexa, mais
profunda. A ilegalidade capaz de decretar a procedência de pedidos
indenizatórios, formulados em ações movidas em razão de acidentes de
consumo, encontra-se intimamente vinculada ao dever de segurança
imputado ao fornecedor pela Lei 8.078/90. Desrespeitando-se tal dever e,
mesmo que inseguros, produtos forem disponibilizados no mercado de
consumo, causando danos materiais e/ou morais ao consumidor, surgirá a
obrigação de indenizar. Repita-se: o fato gerador não corresponde à
ilicitude da atividade, senão aquelas imperfeições rotuladas pelo CDC de
vícios/defeitos
506
.
Deveras, a indústria de fumo é responsável civilmente pelos
danos que os cigarros acarretam àqueles que o consomem, simplesmente
porque tais produtos contêm imperfeições. Sem importância, pois, o fato
506
Deve-se pensar o vício como um germe existente em todos os defeitos. Não há como se pensar em
defeitos, produtos ou serviços inseguros, sem se levar em consideração os vícios. O defeito, obviamente,
surge de uma imperfeição no produto ou serviço, decorre de um vício previamente existente. Sempre que
a incolumidade física, psíquica e patrimonial do consumidor for atingida, situações essas que extrapolam
a mera inadequação de uso do produto ou serviço, estar-se-á diante de um defeito, um acidente de
consumo, que teve por origem um vício de insegurança. Portanto, não é equivocado afirmar-se que todo
acidente de consumo teve por origem uma imperfeição, um vício que tornou o produto ou serviço
absolutamente inseguro para a sua destinação.
225
de serem lícitas as atividades de desenvolvimento, produção, e
comercialização de cigarros.
2 Segurança e saúde
Contrariando o fornecedor aquele dever de segurança que lhe é
imposto pelo CDC, e tal ilícito implicar numa agressão ao patrimônio
material e/ou moral do consumidor (acidente de consumo), estará
concretizado o fundamento fático-jurídico necessário a imputar ao
primeiro responsabilidade civil em prol do último.
Isto porque o produto ou serviço disponibilizado no mercado
será considerado defeituoso, na medida em que não oferecer a segurança
legitimamente esperada pelo consumidor, causando-lhe prejuízos na sua
esfera física, patrimonial e/ou psíquica. Consoante o autorizado
magistério de Sérgio Cavalieri Filho, trata-se de uma garantia de
idoneidade, um dever especial de segurança do produto (ou serviço)
legitimamente esperado – dever esse imposto ao fornecedor, repita-se
507
.
Tal dever de segurança, de idoneidade, é afeto a algo maior, ao
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, garantia
fundamental que ilumina todos os demais princípios e normas e que, por
isso, devem a ele respeito, dentro do sistema constitucional soberano
brasileiro
508
.
507
O mesmo autor, em passagem de sua magnífica obra, esclarece que a noção de segurança depende do
casamento de dois elementos: “a desconformidade com uma expectativa legítima do consumidor e a
capacidade de causar acidente de consumo. Resulta, daí, que a noção de segurança tem uma certa
relatividade, pois não há produto ou serviço totalmente seguro. As regras de experiência comum
evidenciam que os bens de consumo sempre têm um resíduo de insegurança, que pode não merecer a
atenção do legislador. O Direito atua quando a insegurança ultrapassar o patamar da normalidade e da
previsibilidade [...]. Pondera o insigne Herman Benjamin que “o Código não estabelece um sistema de
segurança absoluta para os produtos e serviços. O que se quer é uma segurança dentro dos padrões da
expectativa legítima dos consumidores. E esta não é aquela do consumidor-vítima. O padrão não é
estabelecido tendo por base a concepção individual do consumidor, mas, muito ao contrário, a
concepção coletiva da sociedade de consumo”. [..]) O art. 8º do Código de Defesa do Consumidor é
claro neste ponto, ao dispor: “Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não
acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e
previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição”. Por esses riscos normais e previsíveis o
fornecedor só responderá se faltar com o seu dever de informar (arts. 9º e 8º, in fine).” (CAVALIERI
FILHO, op. cit., 2004. p. 477).
508
NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 123.
226
E o princípio da dignidade humana – leciona com precisão o
professor Rizzatto Nunes – não é uma espécie de enfeite, um valor
abstrato de difícil capacitação. Bem ao contrário, trata-se de “princípio
vivo, real, pleno e está em vigor como deve ser levado em contra sempre,
em qualquer situação”
509
. O citado jurista, valendo-se dos ensinamentos
de Celso Antonio Pacheco Fiorillo, acentua que há um piso vital mínimo
imposto pela Carta Magna como garantia da possibilidade de realização
histórica e real da dignidade da pessoa humana no meio social. Para se
principiar o respeito à dignidade da pessoa humana, devem-se assegurar
concretamente os direitos sociais previstos no art. 6º da CF (educação,
saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à
maternidade e à infância e a assistência aos desamparados), dispositivo
esse que se encontra atrelado ao caput do art. 225 (direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado). A isso, acrescentem-se os demais
direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à intimidade, à
vida privada, à honra, etc
510
.
Daí se percebe a extensão do conceito de segurança. Ao rotular
de inseguro aquele produto que não oferece a segurança legitimamente
esperada pelo consumidor, o CDC impõe um ônus legal ao fornecedor, de
sorte que, se esse disponibilizar, no mercado de consumo, produto
imperfeito/inseguro e, por conseqüência, consumidores se virem
prejudicados por situação que atinge outros bens seus (saúde, vida,
patrimônio material ou moral), que não o próprio produto em si, surge o
seu dever indenizatório, fincado no art. 12 do citado Diploma legal. A
lesão ao dever de segurança implica a real possibilidade de se atingir o
patrimônio jurídico do consumidor em sua mais ampla acepção,
notadamente naquilo que se refere a sua saúde e própria vida.
Atualmente, a saúde insere-se no rol de direitos sociais
privilegiados por previsão constitucional expressa, envolvendo não apenas
a carência de enfermidades, senão o absoluto bem-estar físico, mental e
social. O art. 196 da Carta Magna prescreve ser a saúde direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
509
NUNES, op. cit., 2002. p .51.
510
Ibid., p. 51.
227
visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação. Consoante leciona Cíntia Lucena, “o direito à saúde é, a um
só tempo, um direito subjetivo, individual, fundamental, social,
transindividual, de quarta e quinta gerações, em constante
transformação, posto que imbricado na hipercomplexidade social onde
cresce e se desenvolve”
511
.
A Lei 8.078/90, seguindo os ditames constitucionais,
expressamente instituiu, como um dos direitos básicos do consumidor, “a
proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por
práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos
ou nocivos”. (Art. 6º, I). Saúde e vida são conceitos umbilicalmente
jungidos, de modo que, ao se referir à proteção do primeiro, não raras
vezes estar-se-á se reportando ao resguardo do segundo, patrimônio maior
pertencente ao ser humano. Nesse sentido,
a vida não pode ser compreendida apenas como dado biológico,
mas em todos os seus aspectos materiais (físicos e psíquicos) e
imateriais (espirituais). Daí que, se a vida é direito primário
do cidadão, o direito à existência também segue a mesma linha,
pois consiste no exercício do indivíduo em lutar pelo viver, de
defender a própria vida, de estar vivo, de permanecer vivo
512
.
O microssistema consumerista é constituído por uma parte
introdutória e outra dispositiva. A primeira estabelece os conceitos
basilares referentes às relações de consumo, os diversos direitos do
consumidor, além dos princípios e instrumentos que constituem a
chamada Política Nacional de Relações de Consumo. A derradeira
disciplina os aspectos civis, administrativos, penais e processuais das
relações de consumo. O art. 8º inaugura a parte dispositiva, tratando,
juntamente com os arts. 9º e 10, da proteção da saúde e da segurança do
consumidor.
511
LUCENA, Cíntia. Direito à saúde no constitucionalismo contemporâneo. Direito à vida digna. Coordenação
de Cármen Lúcia Antunes Rocha. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 246.
512
Ibid., p. 260.
228
O tema do presente trabalho está intimamente vinculado à saúde
e à vida do consumidor, porquanto são esses os preciosos bens mais
atingidos pelo consumo (direto ou indireto
513
) de cigarros.
3 Produtos perigosos definidos no código de defesa do consumidor
3.1 Critério adotado pelo legislador para classificar o nível de
periculosidade dos produtos
O legislador brasileiro adotou um critério que define o produto
segundo seu nível de periculosidade ou nocividade. Assim, para se
determinar as imperfeições do cigarro, é importante situá-lo em uma das
espécies de produtos arrolados no Capítulo IV do CDC.
Buscando alcançar esse desiderato, é possível delimitar três
espécies de produtos, com distinção variável, conforme sua periculosidade
ou nocividade. São eles:
1 produtos de riscos considerados normais e previsíveis em
decorrência de sua natureza e fruição (art. 8º da Lei 8.078/90);
2 produtos potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou
segurança (art. 9º da Lei 8.078/90); e
3 produtos que apresentam alto grau de nocividade ou
periculosidade à saúde ou segurança (art. 10 da Lei 8.078/90).
513
Em estudo publicado no British Medical Journal, demonstrou-se que as crianças, expostas à fumaça de
cigarro em casa, têm uma probabilidade muito maior de desenvolver câncer no pulmão na vida adulta do
que as crianças que vivem em casas de não-fumantes. Os menores que ficam muitas horas em contato
com a fumaça, diariamente, são os mais vulneráveis; o risco que eles correm de contrair a doença é 3,63
vezes maior do que aqueles que vivem em ambientes livres de fumaça. Constatou-se, também, que as
crianças consideradas fumantes passivas, mas que inalam fumaça poucas vezes por semana, têm uma
probabilidade 1,45 vezes maior de desenvolver câncer no pulmão. Mais de 300 mil voluntários de várias
partes da Europa participaram do estudo, considerado um dos mais amplos já realizados sobre fumantes
passivos. Alguns dos participantes nunca haviam fumado, e outros já tinham abandonado o hábito pelo
menos dez anos antes da pesquisa. Cerca de um terço deles forneceram informações sobre o fumo
passivo, e os pesquisadores buscaram informações sobre seu estado de saúde durante sete anos. O estudo
concluiu ainda que ex-fumantes enfrentaram um risco duas vezes maior de desenvolver doenças
respiratórias por causa do fumo passivo do que os que nunca fumaram, situação que, segundo os
especialistas, pode ser relacionada ao fato de seus pulmões já estarem danificados. (Saúde, Jornal de
Uberaba, B2, Filho de fumante teria maior risco de contrair câncer no pulmão. Sábado, 29 de janeiro de
2005).
229
3.2 Seria o cigarro um produto cuja periculosidade lhe é inerente?
O art. 8º do CDC prescreve que os produtos colocados no
mercado de consumo não poderão acarretar riscos à saúde ou segurança
dos consumidores. Entretanto, o mesmo dispositivo estabelece uma
exceção, em casos de produtos que apresentam riscos considerados
normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição,
permitindo sejam eles disponibilizados no mercado, desde que os
fornecedores ofereçam informações necessárias e adequadas a seu
respeito.
Trata-se da chamada periculosidade inerente, ou seja, aquela
que é indissociável do produto, sem relação alguma com a periculosidade
adquirida ao longo do processo de consumo. Nesses casos, não há o que
se falar em vícios de concepção ou de produção, pois é a própria
periculosidade a maior virtude do produto. A qualidade do produto
“decorre, justamente, de sua inafastável periculosidade”
514
.
Como exemplos, pode-se citar um bisturi que possui como
característica principal o fato de realizar incisões; um palito de fósforo
que tem como propriedade a capacidade de inflamar-se; um veneno para
exterminar baratas, que somente será eficiente se contiver substâncias
químicas capazes de eliminar os tais insetos.
É de se observar que, mesmo nesses casos, a Lei obriga o
fornecedor a prestar, em qualquer hipótese, informações necessárias e
adequadas sobre os possíveis riscos que poderão advir do uso desses
produtos, tamanha é a importância dada pelo legislador ao direito básico à
informação (6º, III, da Lei 8.078/90). Assim, o fornecedor não responderá
pelas conseqüências da utilização desses produtos, desde que comunique
adequadamente aos consumidores, mediante advertências contidas nos
próprios produtos, alertando, também, sobre os riscos que os encerram
515
.
514
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit.,
1999. p. 144.
515
Destarte, mesmo aqueles que vêem no cigarro uma periculosidade inerente, fundamentando sua
existência jurídica no art. 8º da Lei consumerista – interpretação com a qual não se concorda, registre-se
–, não poderão negar ser defensável a tese da existência de vício de informação em tal produto. Noutras
palavras, não é porque um produto de periculosidade inerente possua legitimidade para ser fabricado e
comercializado que ele não podeacarretar acidentes de consumo advindos de vícios de informação.
230
E quanto ao cigarro?
516
Esse produto enquadrar-se-ia no
contexto legal do artigo em análise? Poder-se-á classificá-lo como um
produto de riscos considerados normais e previsíveis em decorrência de
sua natureza e fruição? Conforme se verá, a resposta é negativa.
3.2.1 Combatendo a idéia de que o cigarro seria um produto de
periculosidade inerente: uma análise voltada à sua natureza
Na esteira do que já foi exposto no capítulo primeiro desse
trabalho, descreveram-se, mesmo que sinteticamente, os riscos que a
prática do tabagismo poderá acarretar ao organismo de fumantes e não-
fumantes. A capacidade de o produto provocar cânceres de todas as
espécies, doenças coronarianas, enfermidades relacionadas com o
aparelho respiratório, acidentes vasculares cerebrais e cegueira, retrata
apenas alguns poucos exemplos do que o consumo de cigarros
proporciona.
Não se podem considerar tais riscos normais em decorrência da
natureza e fruição do cigarro. Em primeiro lugar, a natureza do cigarro,
vista como conjunto de substâncias que o compõem e que dele emanam
quando aceso, é desconhecida pelo consumidor de inteligência mediana
517
.
Só para se ter uma idéia, são quase cinco mil substâncias
518
lançadas ao ar
com a fumaça do cigarro, dentre elas substâncias tóxicas, cancerígenas e,
Os produtos de periculosidade inerente não excluem os vícios de informação; em verdade, em tais
situações, os fornecedores devem se precaver, diligenciar com cautela as informações adequadas para
elucidar aos consumidores acerca dos riscos que o consumo daquele produto poderá gerar a sua saúde.
516
Defendendo-se judicialmente, algumas indústrias do tabaco afirmam que o cigarro enquadra-se entre os
produtos que apresentam periculosidade inerente (art. 8 do Código de Defesa do Consumidor),
considerados, portanto, normais e previsíveis, em decorrência de sua natureza e fruição, não ensejando,
diante disso, o dever de indenizar.
517
Em 2002, o IBGE apresentou estatística indicando que, àquela época, no Brasil, havia 14,6 milhões de
pessoas analfabetas ou 11,8% da população de 15 anos ou mais de idade; constatou-se, ainda, haver 32,1
milhões de analfabetos funcionais ou 26% da população de 15 anos ou mais de idade. Diante de tais
evidências, é difícil admitir que o consumidor brasileiro tenha conhecimento real da natureza do cigarro.
Disponível em <www.ibge.gov.br>. Acessado em 02/05/2005.
518
Alerte-se: antes da primeira edição desta obra, a informação de que emanam da fumaça do cigarro mais
de 4.700 substâncias tóxicas não era divulgada pelas indústrias do fumo. Tratava-se de informação
extremamente técnica, de conhecimento de alguns, normalmente estudiosos do assunto. As indústrias do
tabaco restringiam-se em apresentar informes superficiais acerca nos níveis de nicotina, alcatrão e
monóxido de carbono. Informavam também e genericamente sobre os “ingredientes básicos” do cigarro,
indicando serem eles: mistura de fumos, açúcares, papel de cigarros, extratos vegetais e agentes de
sabor.
231
até mesmo, radioativas
519
. Além disso, até hoje, inúmeras doenças vêm
sendo relacionadas ao tabagismo, o que demonstra inexistir conhecimento
sedimentado sobre a natureza do cigarro e os riscos que ele acarreta à
saúde dos que o consomem ou encontram-se expostos a sua fumaça tóxica.
Como se falar em natureza, quando essa natureza é, propositadamente,
520
omitida do conhecimento do consumidor?
521
Seria incoerente negar que a qualidade da informação veiculada
sobre os cigarros elevou-se. Hoje, mensagens de alerta e imagens fortes
são obrigatoriamente inseridas nos maços. O Estado, a quem cumpre o
dever de garantir a todos o direito à saúde, vem implementando políticas
voltadas à proteção da massa de consumidores sujeita aos males do fumo,
519
A constatação de que o cigarro nacional contém metais radioativos foi obtida pela pesquisadora do
Departamento de Radioproteção Ambiental do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen),
Ana Cláudia Peres. A pesquisa realizada, defendida como dissertação de mestrado, evidenciou que todas
as plantas apresentam chumbo e polônio radioativos, em decorrência da absorção de urânio presente no
solo (radioatividade natural). No dia-a-dia, as pessoas absorvem naturalmente pequenas doses radiativas,
por meio dos alimentos. O vício do cigarro, entretanto, aumenta a exposição das pessoas aos níveis da
radioatividade natural. A literatura científica discrimina que 20% do polônio e 10% do chumbo presentes
nas plantas de tabacos passam para o organismo humano. A planta de tabaco é a que mais concentra
chumbo e polônio radioativos, segundo informações disponíveis aos pesquisadores. A conseqüência da
inalação destas substâncias é o aumento da incidência de câncer de pulmão, na medida em que elas
emitem radiação alfa, que provoca a destruição do tecido ao redor da irradiação. O fumante primário tem
um agravante maior: o reabastecimento dos elementos radioativos no pulmão, formando uma espécie de
estoque desses produtos. No Brasil, cerca de 80 mil pessoas morrem, por ano, por causa do cigarro e
90% dos casos de câncer do pulmão são conseqüência do fumo. (Disponível em <www.radiobras.
gov.br/ct/2000/matéria_050500_6htm>. Acessado em 02/05/2006).
520
A conclusão de que a indústria do tabaco omitiu informações acerca da natureza e riscos do cigarro
intencionalmente foi obtida depois que se deu publicidade aos arquivos secretos da indústria do tabaco,
hoje inseridos na internet. A jurisprudência de ponta já percebeu tal realidade, consoante se pode
observar no trecho do voto proferido pelo ilustre Desembargador Adão Sergio do Nascimento, membro
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar, em 29 de outubro de 2003, a Apelação Cível n.º
70000144626 (disponível no site <www.tj.rs.gov.br>. Acessado em 02/05/2006): “A indústria de
tabaco em geral sempre soube e teve pleno conhecimento e consciência de todos os males que o
consumo de fumo causa aos seres humanos, de modo que, nessas circunstâncias, a conduta das
empresas é evidentemente dolosa, como bem demonstram os arquivos secretos dessas empresas, entre
elas a própria antecessora da ora ré, R. J. Reynolds. Ditos arquivos foram revelados nos Estados
Unidos, em uma ação judicial movida por estados norte-americanos contra grandes empresas
transnacionais de tabaco. Demonstram, tais arquivos secretos, por um lado, o posicionamento público
das empresas – posicionamento falso, doloso, para enganar o público – e comprovam, por outro lado, o
real posicionamento
das empresas, revelado na orientação, apenas para efeitos internos, das
organizações fabricantes de cigarros, no sentido de que elas desde sempre tiveram o pleno
conhecimento e a consciência de todos os males causados pelo fumo, arquivos esses dos quais adiante
se transcrevem excertos, a título de demonstração exemplificativa.”
521
É inegável que o nível de informação elevou-se sobremodo. A tendência, pelo que se vê, é o
desaparecimento do vício de informação que ainda hoje atinge o cigarro. Porém, isso não significa, nem
de longe, que aqueles consumidores acometidos de doenças tabaco-relacionadas, anos antes do início
dos trabalhos efetivados pelo Governo Federal para educar a comunidade acerca dos malefícios do
fumo, não possam pleitear seus direitos judicialmente. Não mesmo. O ato de remediar ou sanar as
imperfeições do produto defeituoso não implica em exclusão de responsabilidade com relação àqueles
que foram atingidos pelo ilícito (defeito de informação).
232
notadamente obrigando a divulgação de informes mais adequados e
tutelando os direitos daqueles que, embora não sejam adeptos do
tabagismo, acabam expostos à fumaça do cigarro (proibição do fumo em
ambientes públicos).
Todavia, o que se fez até aqui, conquanto louvável, não é
suficiente à adequação plena da realidade à lei (respeito ao direito básico
do consumidor à informação), mormente quando se percebe que o cigarro,
cuja fumaça contém milhares de substâncias tóxicas, é um produto
sofisticado, desenhado para fazer viciar aqueles que decidem por
principiar o seu consumo
522
.
Além disso, tenha-se em mente que a análise da adequação da
informação deve ser conduzida com os olhos no contexto econômico,
social e cultural do Brasil. As estatísticas demonstram que as camadas
mais pobres da população tendem a fumar em maior quantidade. Para se
ter uma idéia da gravidade da situação, uma reportagem publicada no
Jornal O Estado de São Paulo, escorada em dados fornecidos pelo
Ministério da Saúde, aponta que o jovem brasileiro começa a fumar entre
10 a 12 anos, sendo que a proporção de fumantes é duas vezes maior entre
grupos com menor escolaridade. A mesma reportagem trouxe a informação
de que no Brasil, famílias com orçamento igual ou menor que R$ 400,00
(quatrocentos reais), gastam cinco vezes mais da renda familiar com
tabaco do que as com renda acima de R$ 6.000,00 (seis mil reais). Não só
isso: famílias com orçamento menor ou igual a R$ 400,00 (quatrocentos
reais) gastam duas vezes mais com cigarro do que com educação
523
. Tal
522
Num estudo chefiado pelo epidemiologista Marion Dietrich, da Universidade da Califórnia, publicado
pelo jornal americano Nutrition and Cancer, demonstrou-se que a Vitamina C pode ajudar a prevenir os
danos causados pelo cigarro à saúde dos fumantes passivos. Na ocasião, avaliou-se a concentração de
radicais livres liberados pelo tabaco em 67 não-fumantes expostos à fumaça. Naqueles que ingeriram
500 mg de Vitamina C por dia, a concentração desses compostos nocivos foi menor. A ação nociva dos
radicais livres se compara à oxidação dos metais. No estudo, Dietrich e sua equipe analisaram os níveis
de F2-isoprostanos no sangue, radicais que danificam a membrana das células e podem formar placas
que entopem as artérias. Dividiram-se os 67 voluntários, todos não-fumantes expostos à fumaça do
cigarro, em três grupos. O primeiro recebeu uma dose diária de 500 mg de Vitamina C. O segundo,
Vitamina C, Vitamina E e ácido alfa-lipóico. O terceiro, placebo. Depois de dois meses, os níveis de
radicais livres F@-isoprostanos no sangue do primeiro grupo caíram 11,4%. No segundo grupo, a queda
foi ligeiramente maior: 12%. (Saúde, Jornal de Uberaba, B2, Vitamina C protege organismo de fumante
passivo, diz estudo. Sábado, 29 de janeiro de 2005).
523
Confiram-se, por completo, os números esclarecedores trazidos pela aludida reportagem: 10 mil pessoas
morrem diariamente no mundo por causa do cigarro; 200 mil pessoas morrem no Brasil, anualmente, por
doenças ligadas ao fumo; 10 milhões de mortes serão registradas por ano, segundo a OMS, em 2030; 10
233
panorama, logicamente, evidencia uma real necessidade de se reforçar os
informes para atingir todo e qualquer integrante da sociedade,
notadamente a classe menos abastada (econômica e culturalmente).
Dirão os defensores da indústria do tabaco: a natureza maléfica
do cigarro e os riscos que tal produto acarreta à saúde daqueles que o
consomem, ou se expõem a sua fumaça tóxica, são e sempre foram
notórios, motivo pelo qual informações nesse sentido seriam
absolutamente desnecessárias. Ou seja, a notoriedade acerca de fatos
indicando os malefícios do cigarro seria suficiente para imputar a tal
produto uma periculosidade inerente, eximindo seus fabricantes de
qualquer responsabilidade advinda de eventuais danos suportados por
fumantes ativos e passivos.
Ocorre que essa argumentação, que aponta uma suposta
notoriedade de informações sobre a natureza e os males acarretados pelo
cigarro, constantemente utilizada nas defesas judiciais da indústria do
fumo, não passa de mais uma técnica velada, inteligentemente perpetrada
para desviar o julgador do exame concreto de questões que realmente
interessam no tema. Veja-se, em tal sentido, trecho de parecer
confeccionado pela jurista Claudia Lima Marques, ao defender a ausência
da alegada notoriedade de informações para aqueles consumidores que
principiaram a prática do tabagismo décadas atrás:
O leigo consumidor, quando começou a fumar, há 40 anos
(aproximadamente 1955!) podia até ter alguma desconfiança
natural sobre se determinado produto fazia mal à saúde ou
mesmo viciava, mas são considerações do campo das
suposições, ao que se acrescenta uma série de outras
informações (publicidade massiva, na televisão, cinema, out-
dooors, nos esportes etc.) contraditórias, organizadas pelo
fabricante, de forma a nunca realmente permitir que o
consumidor detenha esta informação. Importante ressaltar, que
em 1954, nos Estados Unidos da América, o diretor da Phillip
Morris, George Wissman, desmentia que essas informações
eram notórias e afirmava, frente à Pioneer Press, que ele
mesmo não sabia destes riscos e se soubesse, que sairia da
a 12 anos é a idade em que o jovem brasileiro começa a fumar; a proporção de fumantes é 2 vezes maior
entre grupos com menor escolaridade; no Brasil, famílias com orçamento igual ou menor que R$ 400
gastam cinco vezes mais da renda familiar com tabaco do que as com renda acima de R$ 6 mil; famílias
com orçamento menor ou igual a R$ 400 gastam duas vezes mais com cigarro do que com educação;
anualmente, governos têm um prejuízo relacionado ao cigarro estimado entre R$ 25 bilhões e U$ 30
bilhões. (SAÚDE. O Estado de São Paulo, A10, Geral. Números da epidemia. Terça-feira, 1 de junho de
2004).
234
indústria do tabaco se existisse qualquer prova ou mesmo
indício que provasse que o tabaco fazia mal à saúde! Outros
fabricantes de tabaco, na investigação realizada pelo congresso
norte-americano já em 1964, repetiram estas afirmações e
voltaram a repeti-las até 1986! Também no setor público e
governamental (nos Estados Unidos e no Brasil) estas
informações eram desconhecidas (ou negadas veemente, o que
é o contrário da notoriedade ou conhecimento público!), pois
como comprovam Jacobson e Wasserman, com o aumento da
popularidade do fumar depois da segunda guerra mundial e dos
indícios médicos ligando o cigarro ao câncer, desde a década
de 40 e especialmente de 50, foi somente em 1964, que o
primeiro estudo médico oficial e completo (Surgen General’s
Reporto n Smoking and Health) concluiu que fumar causava
câncer de pulmão, bronquite crônica e aumentava os riscos de
morte por enfisema e doenças coronárias e, como resposta,
somente em 1964, o congresso norte-americano criou a lei
sobre informação nas embalagens de cigarro e na publicidade
(1965 Cigarette Labeling and Advertising Act) e, em 1969,
proibiu a publicidade de cigarros na televisão e rádio (1969
Public Health Cigarette Smoking Act)
524
.
Não havia – e, ainda hoje, não há – notoriedade de informações
acerca da natureza do cigarro e dos riscos que ele encerra à saúde
daqueles que a ele estão, direta ou indiretamente, expostos. Destaque-se –
caminhando-se na mesma linha contextual de Claudia Lima Marques – que
as defesas judiciais apresentadas pela indústria do tabaco, nesse sentido,
contrariam a postura assumida por ela até 1986, nos Estados Unidos da
América, quando negava a existência de evidências que vinculassem, de
modo conclusivo, o consumo de cigarros a doenças. Observem-se as
declarações de Bownman Gray e Gerald H. Long, ambos diretores da
fabricante R.J. Reynolds:
Se for provado que cigarros são danosos, nós queremos fazer
algo sobre isto, não porque alguém nos diga o que devemos
fazer. E nós faremos o nosso melhor. É uma questão de
humanidade. (Bownman Gray, cuja afirmação transcrita foi
dada em 1964)
525
.
Se eu tivesse ou pensasse que há uma prova/evidência sequer
que conclusivamente prove que, por qualquer meio, o tabaco
causa mal para as pessoas, e eu acredito isto de todo o meu
coração e alma, então eu iria sair do negócio e não ia querer
me envolver nisso. Honestamente, eu nunca vi nenhuma
evidência qualquer que [...] totalmente diga que fumar causa
524
MARQUES, op. cit., 2005. p. 93-94.
525
Ibid., p. 93.
235
ou cria isto (doenças/mal). (Gerald H. Long, cuja declaração
transcrita ocorreu em 1986)
526
.
Os documentos secretos da Brown and Williamson Tobacco
Corporation (B&W) e British American Tobacco (BAT), hoje tornados
públicos e disponíveis, inclusive pela internet, provam justamente o
contrário daquilo que foi dito nas declarações acima, a saber, que a
indústria do tabaco, desde 1953, já detinha informações vinculando o
tabagismo a doenças. Leia-se, a tal respeito, trecho do livro O cigarro, de
autoria de Mario Cesar Carvalho:
Há dois gêneros de documentos: os científicos e os
memorandos do alto escalão da indústria. O mais antigo dos
textos científicos revelados é de fevereiro de 1953, oito meses
antes de a pesquisa com os ratos pintados com nicotina ter sido
apresentada pela primeira vez. Assinado por Claude Teague,
um pesquisador da R. J. Reynolds, o texto associa com câncer
o uso de cigarros por períodos longos: “Estudos de dados
clínicos tendem a confirmar a relação entre o uso prolongado
de tabaco e a incidência de câncer no pulmão” Logo em
seguida, o pesquisador descreve quais são os agentes
cancerígenos do cigarro: “compostos aromáticos plinucleares
ocorrem nos produtos pirológicos [ou seja, que queimam] do
tabaco. Benzopireno e N-benzopireno, ambos cancerígenos,
foram identificados
527
.
Essa atuação contraditória perpetrada pela indústria do fumo,
negando existir evidências que vinculassem o consumo de cigarros a
enfermidades, bem assim, bombardeando a massa de consumidores com
publicidades que faziam apologia do produto perigoso, já que o
vinculavam a situações alheias a sua real natureza, e, finalmente,
afirmando, agora, em suas defesas judiciais, a existência de uma
notoriedade quanto à natureza e malefícios causados pelo consumo do
cigarro, o que, em tese, a eximiria do dever informativo, certamente
evidencia o contrário do que afirma a indústria, ou seja, não havia e
ainda não há tal notoriedade de informações – nos EUA tal notoriedade
pode ter sido conquistada, mas aqui, no Brasil, ela ainda não foi
alcançada.
526
MARQUES, op. cit., 2005. p. 93-94.
527
CARVALHO, op. cit., 2001. p. 16-17.
236
Mesmo que, de uma forma generalizada, se pudesse saber que o
tabagismo poderia ser letal, plenamente capaz de acarretar ao fumante
diversas doenças mortíferas, como o próprio câncer de pulmão, a presteza
dessas informações seria desprezível. E isso pelo fato de que a indústria
do tabaco sempre trabalhou com o intuito de evitar tal notoriedade,
difundindo publicidades insidiosas que aliavam o fumo à saúde, ao lazer,
aos esportes, ao bem estar social e profissional, etc.
3.2.2 Combatendo a idéia de que o cigarro seria um produto de
periculosidade inerente: uma análise voltada à sua fruição
Sob outro prisma, mesmo considerando – e isso apenas para dar
sabor ao debate – que o tabagista conhecesse por inteiro a natureza do
produto, estando ciente dos riscos que ele é capaz de lhe causar,
528
não se
poderia enquadrar o cigarro no contexto do art. 8º da Lei 8.078/90, em
razão do termo fruição, inserido também nesse dispositivo legal.
Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, fruir significa
gozar, desfrutar
529
.
Quem fuma não tem como pretensão desfrutar, no futuro, um
câncer no pulmão ou uma diminuição do desejo sexual. Não pretende,
logicamente, perder grande parte da sensibilidade de seu paladar ou,
ainda, gozar um envelhecimento precoce. Não existe no fumante o desejo
de, ao adquirir um maço de cigarros, depreciar sua saúde ou de buscar sua
morte prematura. Considerar esses fatos como verdadeiros seria o mesmo
528
Um estudo conduzido por cientistas do Massachussetts Institute of Technology e da Sociedade
Americana de Câncer, publicado no British Medical Journal, confirma o que os especialistas já
suspeitavam: os cigarros de baixo teor de alcatrão não trazem risco menor de câncer de pulmão do que
os outros. Concluiu-se que não há cigarro inócuo, porque os fumantes dos mais suaves compensam
isso inalando mais fumaça e fumando com mais freqüência; no fim do dia, o resultado é que acabam
consumindo tanto alcatrão quanto as pessoas que consomem cigarros mais fortes. Examinou-se a
ligação entre o teor de alcatrão do cigarro consumido e o número de mortes por câncer pulmonar entre
1982 e 1988. A pesquisa avaliou um universo de 940.774 americanos com mais de 30 anos, que nunca
fumaram, eram ex-fumantes ou fumantes. Aqueles que fumavam cigarros sem filtro apresentaram
maior risco de câncer pulmonar do que os que consumiam cigarros com filtro convencionais.
Entretanto, não houve diferença na taxa de mortalidade entre esse segundo grupo e os que fumavam
cigarros mais fracos. (REVISTA CÉU AZUL, Grupo Editorial Spagat, n. 14. Pesquisa prova risco de
cigarro de baixo teor. p. 17).
529
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI, dicionário da língua portuguesa.
3. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1999.
237
que admitir a premissa insustentável de existir no mundo mais de um
bilhão de suicidas.
Embora a maior característica do cigarro seja a de matar ou
debilitar seus consumidores, essa não é a expectativa de quem o está
adquirindo ou utilizando. Logo, também por esse ângulo, é despropositado
defender-se ser o cigarro um produto de periculosidade inerente.
3.3 É o cigarro um produto de alto grau de nocividade (art. 10), ou
um produto potencialmente nocivo à saúde (art. 9.º)?
Eliminada a primeira hipótese, cabe definir em qual das duas
alternativas legais melhor se enquadra o cigarro. Analisar-se-ão, então, os
arts. 9º e 10 da Lei 8.078/90:
Art. 9º – O fornecedor de produtos e serviços potencialmente
nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de
maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou
periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas
cabíveis em cada caso concreto.
Art. 10 – O fornecedor não poderá colocar no mercado de
consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber
apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde
ou segurança.
§1º – O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente
à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento
da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato
imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores,
mediante anúncios publicitários.
§2º – Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo
anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às
expensas do fornecedor do produto ou serviço.
§3º – Sempre que tiverem conhecimento de periculosidade de
produtos ou serviços à saúde ou segurança dos consumidores, a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão
informá-los a respeito
.
O legislador utilizou-se de palavras de significado vago –
potencialmente e alto – que dificultam, sobremaneira, o trabalho do
intérprete. Conforme assevera Zelmo Denari, em termos de linguagem,
essas expressões situam-se na zona de penumbra das referências
semânticas, sede dos signos imprecisos
530
.
530
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit.,
1999. p. 148.
238
Mas em qual dessas normas o cigarro se enquadra mais
perfeitamente?
O problema surgido aqui é que uma das normas (art. 9º) faz
alusão aos produtos que podem ser colocados no mercado de consumo,
apesar de potencialmente perigosos ou nocivos à saúde dos consumidores.
Por outro lado, o outro dispositivo (art.10) proíbe a colocação no mercado
de consumo de produtos que apresentem alto grau de nocividade ou
periculosidade. Obviamente, o legislador conferiu uma diferença entre
produtos potencialmente perigosos ou nocivos e produtos de alto grau de
nocividade ou periculosidade, sem, no entanto, esclarecer, de forma clara,
qual seria essa distinção.
O cigarro poderia, perfeitamente, integrar o rol de produtos que
apresentam alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde, por ser o
único produto que, se utilizado conforme orientação de seus
fornecedores, mata a metade dos que o consomem. Aliás, essa parece ser a
posição do renomado processualista Luiz Guilherme Marinoni, ao afirmar
que, se hoje a ciência e o Estado reconhecem a dimensão da nocividade do
tabaco, não haveria alternativa, a não ser proibir a sua comercialização
531
.
531
Muito embora não concordemos com a conclusão do mestre MARINONI, no sentido de que o Estado
deveria suspender a comercialização dos cigarros, é de inegável coerência e valor as ponderações por
ele suscitadas. Veja-se: “[...] No que diz respeito ao tabaco, a nocividade não advém da forma do
consumo, mas sim do próprio consumo. O cigarro, diz o Ministério da Saúde, é causador de Câncer,
gera impotência sexual etc. Isso quer dizer que o Estado já reconheceu de maneira expressa a
nocividade do tabaco. Perceba-se que o Estado, ao prestar informações ao consumidor, não diz apenas
– e nem poderia – que o uso imoderado do cigarro pode ser prejudicial à saúde.
Há, para dizer o mínimo, uma gritante contradição entre o dever do Estado proteger a saúde e a
informação de que o cigarro causa câncer de pulmão. Diante da obviedade de que o Estado tem o
dever de proteger a saúde, as informações de que o cigarro provoca câncer, inseridas de maneira
títmida nos comerciais em que os produtores de tabaco procuram seduzir o consumidor, somente
podem ser vistas como um escárnio aos direitos básicos da população.
Na verdade, se a Administração Pública reconhecer a alta periculosidade ou a alta nocividade de um
produto, e ainda assim permitir a sua venda, sem que esse perigo ou nocividade seja legitimado por
estar tutelando outro bem digno de proteção, o ato da Administração Pública carece de
fundamentação, e assim não precisa ser acatado pelo juiz, que então fica com a possibilidade de proibir
a venda do produto. Isso por uma razão simples: o dever de proteção é incumbência do Estado, e,
portanto, também do juiz, que não pode ficar em uma posição de assistente dos desvios e das omissões
da Administração. Quando essa reconhecer a alta nocividade do produto, é completamente irracional a
autorização do seu consumo sem que a proteção de outro bem possa justificá-la, certamente de acordo
com os valores que importam à sociedade.
Seria possível argumentar que, se o art. 220, §4º, da Constituição Federal afirmou que a propaganda
de tabaco deve conter advertências sobre os malefícios decorrentes de seu uso, a sua comercialização
estaria admitida pela própria constituição. Acontece que nenhuma norma que faz juízo técnico pode
deixar de se submeter à questão do desenvolvimento da tecnologia. Se o Estado, hoje, concluiu que o
cigarro provoca câncer de pulmão, é evidente que, ainda que tal norma afirmasse que o cigarro não é
nocivo à saúde, ela não poderia permanecer de pé. De qualquer forma, a norma constitucional antes
239
Sem dúvida, a questão é de alta complexidade. E isso mormente
porque, ao se aprofundar no estudo do tabagismo e das características
particulares do cigarro, a conclusão que desponta é a de que o CDC não
possui uma norma peculiarmente adequada para regular a industrialização,
comercialização e consumo desse produto – nem o CDC nem qualquer
outra legislação.
Ademais, trata-se de um produto já inserido na realidade social
e cultural do País, por longos e longos anos. Se, de um lado, mata
milhares de pessoas anualmente, por outro, é responsável pela
subsistência de outros milhares de brasileiros.
Salvo melhor juízo, e partindo-se de uma análise sistemática,
que levará em conta não só o aspecto jurídico, senão a realidade social do
País, a proibição da industrialização, comercialização e consumo de
tabaco não se apresenta como a melhor solução.
O imortal mestre Carlos Maximiliano, ao tratar das qualidades
do hermeneuta, professa, com sensibilidade, que toda
inclinação, simpática ou antipática, enfraquece a capacidade do
intelecto para reconhecer a verdade, torna-o parcialmente cego.
descrita não disse que o cigarro não é altamente nocivo, mas sim que a sua propaganda deve conter
advertências sobre o seu uso. Ou seja, a Constituição não afirmou – e evidentemente não teria como
fazê-lo – que o cigarro, ainda que gerador de câncer, pode ser comercializado, e que a sua propaganda
deve informar ao consumidor que o seu uso pode abreviar a sua vida. Ora, é pouco mais do que
evidente que o Estado não pode liberar a comercialização de produto que sabe que irá matar o
consumidor.
Quando o art. 220, §4º da Constituição Federal regulamentou a propaganda do cigarro, impondo
informações ao consumidor, ele obviamente teve a intenção de dar proteção à população, exatamente
porque não havia “certeza científica” quanto ao seu grau de nocividade. Aliás, considerando-se o
princípio da precaução, é certo concluir que nesse momento a comercialização do cigarro foi
privilegiada em relação à saúde do consumidor.
Atualmente, reconhecida pela ciência e pelo Estado a nocividade do tabaco, não há outra alternativa a
não ser proibir a sua comercialização. A menos que o Estado se negue a proteger o consumidor, ou
melhor, suponha que é melhor arrecadar impostos com a comercialização do cigarro do que proteger a
saúde das pessoas. Aliás, é preciso frisar que existem estudos que demonstram que tal arrecadação é
ilusória, diante dos gastos públicos com doenças provocadas pelo consumo de cigarro.
E não se diga que é preciso considerar uma norma constitucional que admitiu a comercialização do
cigarro. Ao contrário, essa norma, diante de determinado momento do desenvolvimento científico,
apenas impôs deveres ao produtor em relação à propaganda de cigarro. Se o passar do tempo
demonstrou que o cigarro provoca câncer etc. não há necessidade de se combater a norma
constitucional, uma vez que essa não disse que o cigarro pode ser vendido ainda que cause câncer, mas
apenas que a propaganda de cigarro deve sofrer restrições. Ou seja, não há incompatibilidade entre a
norma que, em determinado momento do desenvolvimento da ciência, impõe restrições à propaganda
de um produto e deveres de informação ao seu produtor, e a norma que, em outro estágio do
desenvolvimento da tecnologia, veda a sua comercialização diante da conclusão técnica de que o
produto é “altamente nocivo”. Note-se que tais normas se apóiam em situações fáticas completamente
distintas”. (MARINONI, op. cit., 2006).
240
A ausência de paixão constitui um pré-requisito de todo
pensamento científico. Em verdade, o trabalho do intérprete
pode ser viciado, não só pelas causas apontadas, como também
por qualquer prevenção, ou simpatia, que o domine, sem ele o
perceber talvez, relativamente à parte, por sua classe social,
profissão, nacionalidade ou residência, idéias religiosas e
políticas. O homem é levado à solidariedade com outro, ou à
ojeriza deste, pelos sentimentos imperceptíveis que lhe
despertam a tradição histórica, a hereditariedade, o meio
familiar ou escolar em que foi educado. Por isso é
condescendente, ou severo demais, sem o saber
532
.
É, sem dúvida, tentadora a possibilidade de se defender a
posição de que o cigarro é um produto de alto grau de nocividade à saúde
(art. 10, da Lei n. 8.078/90) e, por tal conseqüência, também advogar a
tese voltada à proibição da industrialização e consumo do produto no
País. Afinal, inarredavelmente, um produto que mata a metade de seus
consumidores diretos é, numa análise literal, de alto grau de nocividade à
saúde. Entretanto, a interpretação literal vem sendo corroída com o passar
dos tempos, e, isoladamente, não é a ideal para se resolver questões
jurídicas, sobretudo àquelas de elevada complexidade.
Defender-se a tese da proibição do cigarro, no País, não seria
tarefa árdua, notadamente pela robustez das normas do CDC. Porém, se
assim seguisse o rumo do texto, certamente que se estariam atropelando
pontos importantes, prevalecendo a paixão do autor pelo tema e seu
manifesto desprezo à postura desleal e criminosa de grande parte das
empresas que exploram o comércio fumígeno. E a ciência não admite
parcialidade [...].
Num primeiro passo, aponte-se que a própria Carta Magna, num
dispositivo inusitado, admite indiretamente a comercialização dos
produtos derivados do tabaco, consoante se verá logo adiante.
Ainda nessa linha, a crença de que a previsão inserida no art. 10
da legislação em comento, teve por intenção proibir a venda de cigarros
no País, não parece ser o caminho exegético mais adequado, data venia. E
isto porque, interditar a produção e comercialização de produtos
fumígenos, depois de todos esses anos em que o seu consumo foi
legitimado pelo Estado, e adotado por muitos, iria, inarredavelmente,
532
MAXIMILIANO, op. cit., 1994. p. 103-104.
241
gerar conflitos de grande proporção, sem falar no provável surgimento de
um mercado contrabandista ainda maior – lembre-se, o direito é um
fenômeno social e não meramente técnico.
Não seria crível copiar-se a postura adotada pelo pequeno Reino
do Butão – postura essa isolada em todo o mundo –, em que, desde 17 de
dezembro de 2004, a venda de tabaco e qualquer atividade a ele
relacionada, encontram-se proibidas. Talvez, pela sua reduzida extensão
territorial e por suas características políticas, sociais, culturais e
econômicas, a pequena nação budista tenha êxito com a implantação da
medida restritiva
533
. De todo o modo, é de se apontar que a ninguém será
permitido negar a coragem daqueles que efetivamente implantaram tal
proibição, garantindo o respeito ao maior patrimônio de todo o cidadão –
a sua vida.
533
O Jornal Hoje em Dia publicou: “NOVA DELHI – O reino de Butão será, a partir de 17 de dezembro, o
primeiro país no mundo a proibir totalmente a venda de tabaco e qualquer atividade neste sentido. Este
exemplo está sendo acompanhado pelo governo britânico, que anunciou, na última terça-feira, uma
legislação que proibirá o fumo em locais públicos. Se aprovada, a lei será adotada por etapas. Butão,
uma pequena nação budista de 734 mil habitantes no Himalaia, entre a China e a Índia, proclamou que
esta medida tem como objetivo conseguir a felicidade nacional bruta [...]. A Assembléia Nacional de
Butão votou, em julho, uma lei que proíbe a venda de tabaco em todo o país e estabelece um imposto de
100% sobre os cigarros importados para consumo particular. Esta lei já está em vigor em quase todo
território nacional desde meados do ano. Atualmente, vai se estender a Thimpu, a capital, onde também
será proibido fumar em público, como no resto do país. Todas as pessoas que forem surpreendidas
vendendo tabaco no Butão depois de 17 de dezembro deverão pagar uma multa de 225 dólares. A renda
mensal média do reino é de 16 dólares. O reino do Butão sempre rejeitou a modernidade. A entrada de
visitantes estrangeiros no país não era autorizada até os anos 70. Atualmente, estes devem pagar 200
dólares por dia de permanência no país. A televisão só chegou há cinco anos.” (Reino do Butão proíbe
venda de cigarros. Jornal Hoje Em Dia, Belo Horizonte, MG, Brasil, sexta-feira, 19/11/2004. Disponível
em <www.hojeemdia.com.br>. Acessado em 19/11/2004).
242
No Brasil, salvo melhor juízo, social e juridicamente
534
, mais
adequada será a interpretação sistemática, adequada a guiar o intérprete a
outra solução, que não a tentativa de conduzir o tabaco à ilegalidade –
lembre-se que a própria experiência da humanidade com as drogas
demonstra ser improvável que se consiga, algum dia, banir o uso do
tabaco e álcool do mundo; essa meta não vingou nem mesmo quando, em
certos países, esses produtos foram declarados ilegais
535
.
De mais a mais, não se olvide que a atividade fumígena possui
uma representativa importância social no País – o que não deixa de ser um
lastimável contra-senso, diga-se. Sua notabilidade é perceptível,
inclusive, nas armas da República, em que um ramo de folha de tabaco se
entrelaça ao de guaraná. Para se ter uma idéia, só nos Estados do Sul, na
safra de 2004, o número de fumicultores chegou a 190.270 (cento e
noventa mil e duzentos e setenta), que retiram do tabaco o próprio
sustento e o de toda a sua família. Considere-se, ainda, que a atividade
fumígena vai além do produtor, envolvendo uma cadeia responsável por
cerca de 1 milhão de empregos diretos. No ano de 2003, a lavoura
empregou mais de 900 mil pessoas; a indústria respondeu por 40 mil
postos de trabalho; e a contratação sazonal na época de colheita atingiu
190 mil pessoas, sem falar no 1,5 milhão de empregos indiretos gerados
534
Veja-se, por exemplo, a situação vivenciada na cidade de Santa Cruz do Sul, no Vale do Sol, região de
colonização alemã, a 155 quilômetros de Porto Alegre, RS – terra da apresentadora de TV e modelo Ana
Hickmann. A cidade concentra três fábricas de cigarros da Philip Morris, uma de beneficiamento de
fumo da Souza Cruz, subsidiária da British American Tobacco, e unidades de preparação do fumo da
Universal Leaf Tabacos, Meridional de Tabacos, Dimon do Brasil Tabacos e Associated Tobacco
Company Brasil. Lá, as publicidades da Philip Morris e da Souza Cruz encontram-se por toda parte: das
placas de nome de rua aos cartazes da Oktoberfest. E isso porque a cidade deve seu alto padrão de vida –
renda per capita de R$ 21.173 anuais, o dobro da média do Estado – ao fato de 80% de sua economia
vincular-se diretamente às plantações de fumo. Empresários e políticos locais participam de uma guerra
em defesa desse privilégio, tendo como inimigo comum o movimento anti-tabagista internacional que
tem como aliada a certeza de que, a cada ano, o cigarro mata 5 milhões de pessoas em todo o mundo;
200 mil no Brasil. Na zona rural, os agricultores plantam e colhem fumo; na cidade, essa matéria-prima
é usada em fábricas das duas maiores empresas de cigarros do País, a Souza Cruz e a Philip Morris.
(Vida &, O Estado de São Paulo, A13, Uma cidade que torce para que todos fumem. Terça-feira, 19 de
outubro de 2004). Uma eventual proibição da produção de produtos do tabaco no País – circunstância
pouco provável, acredita-se – poderia afetar não apenas a vida das pessoas da pequena cidade de Santa
Cruz do Sul, mas milhares de outras, na medida em que o Brasil é o segundo maior produtor de fumo do
mundo e o líder nas exportações. Regulamentar, conscientizar a sociedade e indenizar aqueles que
vierem a sofrer prejuízos em decorrência do uso, direto ou indireto, do tabaco, sim; proibir sua produção
e comercialização, não.
535
A proibição de consumo de produtos fumígenos poderia alavancar um desastre para a própria segurança
pública, a exemplo do que ocorreu quando a Lei Seca foi aplicada nos EUA, entre 1919 e 1933.
243
pela atividade. Em termos de exportação, são 600 toneladas embarcadas
por ano, gerando US$ 1 bilhão em divisas
536
.
Difícil, pois, negar legalidade à atividade de produzir,
industrializar e comercializar cigarros, sendo certo haver várias normas
regulando o uso e a publicidade motivadora do consumo de produtos
fumígenos – a própria CF segue esse viés (art. 220, §4º)
537
. Deveras,
estar-se-á diante de um estranho paradoxo. A mesma indústria que mata e
debilita milhares de consumidores anualmente, de igual maneira emprega
e garante o sustento de outros milhares de trabalhadores. Um paradoxo
curioso a revelar uma das destorcidas paisagens que compõem a realidade
dos tempos modernos.
Se compete à lei federal restringir legalmente a publicidade
comercial do tabaco, consoante afirma a citada norma constitucional, é
óbvio que tal oferta publicitária é permitida – mesmo que restrita como
hodiernamente ocorre. Se a publicidade de tabaco é permitida,
intuitivamente se conclui que a sua venda também o é. Diante disso, quer-
se crer que, não é sob o fundamento de que o cigarro, após a publicação
da Lei 8.078/90, perdeu seu campo de fabricação e comercialização no
País, que o consumidor logrará êxito em ações indenizatórias ajuizadas
contra a indústria do fumo, em face dos danos que o cigarro lhe causou.
Descartada a possibilidade inserta no art. 10, resta, tão-somente,
uma hipótese a ser admitida: o legislador, com o art. 9º, procurou regular
– mesmo que ainda inadequadamente – aqueles produtos e serviços que,
536
GRALOW, Hainsi. Folha de São Paulo, OPINIÃO, A3, Controle do tabaco, sim. Erradicação, não.
Segunda-feira, 27 de setembro de 2004.
537
No passado, países chegaram a incentivar suas populações a fumar, pois cigarros representavam uma
polpuda fonte de receita em impostos. Contudo, cresceu a percepção do mal que o tabaco provoca à
saúde e os Estados tiveram de refazer suas contas. Mesmo considerando que fumantes pagam impostos,
eles ainda assim representam prejuízo, se levados em conta os custos dos tratamentos médicos a que são
submetidos ao longo de toda a vida. Essa mudança de paradigma tem levado países a adotar posições
que podem parecer contraditórias. De um lado, permitem a atividade da indústria do tabaco e ainda se
beneficiam dos impostos que incidem sobre o produto; de outro, aprovam leis que restringem a
propaganda do fumo e limitam os locais em que é permitido fumar. A lógica do interesse público até
recomendaria que o tabaco fosse proibido de vez, mas ninguém cogita seriamente dessa hipótese. Além
de talvez ferir direitos individuais, ela poderia provocar um desastre para a segurança pública, como foi
a aplicação da Lei Seca nos EUA entre 1919 e 1933. A tendência que se firma nos Estados democráticos
é a de tolerar comportamentos destrutivos, como o uso de tabaco, álcool e drogas, desde que essa seja
uma escolha consciente de cada cidadão. Daí a posição de admitir-se o uso e, ao mesmo tempo, procurar
coibi-lo. São contradições das sociedades modernas. E elas são certamente preferíveis tanto à liberdade
total para a indústria do tabaco quanto à proibição do fumo.
244
apesar de potencialmente nocivos, podem ser colocados no mercado, a
exemplo das bebidas alcoólicas e do fumo.
Ao que parece, a tendência, nos Estados democráticos, é a de se
tolerar comportamentos destrutivos, como o uso do tabaco e álcool (em
alguns países, várias outras drogas são liberadas ao consumo), desde que
tal conduta advenha de uma escolha consciente de cada cidadão. Daí a
extrema importância da informação [...].
Ressalte-se que a jurisprudência vem, aos poucos,
recepcionando esse posicionamento, podendo-se citar, como exemplo,
trecho do brilhante e substancioso voto do Desembargador do Tribunal do
Rio Grande do Sul, Arthur Arnildo Ludwig:
Assim, no meu ponto de vista, o cigarro integra aquela
classificação prevista no art. 9º, do CDC, ou seja, trata-se de
um produto potencialmente nocivo ou perigoso à saúde dos
consumidores, por isso, a fabricante de cigarros deve informar
nos rótulos e mensagens publicitárias de maneira ostensiva e
adequada a respeito da sua nocividade ou periculosidade
538
.
O cigarro é, portanto, um produto potencialmente nocivo ou
perigoso à saúde de seus consumidores, sendo sua fabricação e
comercialização admitidas, desde que seus fornecedores informem,
539
de
maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou
periculosidade, dever que, ao contrário de alguns posicionamentos
doutrinários e jurisprudenciais, ainda não foi convenientemente cumprido
pela indústria do fumo, conforme se constatará futuramente.
4 Tipologia das imperfeições dos produtos
Cumpre, agora, verificar quais imperfeições o cigarro possui
para, após, demonstrar a possibilidade de responsabilização civil de seus
fabricantes.
538
TRIBUNAL de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação cível n. 70000840264, Relator Desembargador
José Conrado de Souza Júnior, julgado em 02 de junho de 2004. Disponível em <www.tj.rs.gov.br>.
Acessado em 02/05/2006.
539
Como se verá adiante, o cigarro não apresenta apenas defeitos de informação, mas também o chamado vício
de concepção ou criação.
245
Para isso, torna-se imperioso distinguir, a princípio, vício de
defeito. Em momento posterior, analisar-se-á, de maneira pormenorizada,
cada uma das imperfeições que atingem o cigarro, de modo a evidenciar
os fundamentos que levarão à responsabilização das indústrias do fumo.
4.1 Defeito e vício
Já se disse que o fato gerador da responsabilidade civil por
acidentes de consumo escora-se nas imperfeições porventura contidas em
produtos e serviços, capazes de subtrair a segurança que o consumidor
legitimamente espera deles, acarretando-lhe danos não conectados apenas
à inadequação (vício de qualidade ou quantidade), mas atingindo também
seu patrimônio jurídico mais amplo.
Ocorre que o CDC basicamente adotou dois sistemas de
responsabilidade civil: a) por vícios de qualidade e de quantidade (art. 18
e ss.); e b) por danos causados aos consumidores, ditos acidentes de
consumo (art. 12 e ss.).
No tratamento do tema responsabilidade civil, ora a Lei
8.078/90 faz referência a vícios, ora a defeitos, circunstância que indica a
necessidade de diferenciação de tais conceitos jurídicos, de sorte a evitar
equívocos interpretativos que poderiam prejudicar a compreensão
adequada do sistema encampado pelo CDC.
Rizzatto Nunes, em definição precisa, esclarece que são
considerados vícios as características de qualidade ou
quantidade que tornem os produtos ou serviços impróprios ou
inadequados ao consumo a que se destinam e também lhes
diminuam o valor. Da mesma forma, são considerados vícios os
decorrentes da disparidade havida em relação às indicações
constantes do recipiente, embalagem, rotulagem, oferta ou
mensagem publicitária
540
.
Classificam-se os vícios em aparentes e ocultos. Os primeiros
são evidentes, fácil e brevemente constatados pela mera observação, uso
ou consumo primário do produto ou serviço. Os derradeiros, ao revés, por
540
NUNES, op. cit., 2004. p. 166.
246
não se apresentarem visíveis e acessíveis ao consumidor, surgem apenas
depois de algum tempo de uso do produto ou serviço.
Ao definir a imperfeição tecnicamente rotulada pela Lei
consumerista de defeito, leciona o ilustre jurista compreender ele
o vício acrescido de um problema extra, alguma coisa
extrínseca ao produto ou serviço, que causa um dano maior que
simplesmente o mau funcionamento, o não-funcionamento, a
quantidade errada, a perda do valor pago – já que o produto ou
serviço não cumpriram o fim ao qual se destinavam
.
E continua: “O defeito causa, além desse dano do vício, outro
ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral e/ou estético
e/ou à imagem do consumidor”
541
.
Os defeitos carregam consigo uma bagagem extra, já que
causam danos à saúde ou segurança do consumidor. Noutros termos, o
defeito traz em si a idéia de resultado gravoso, sempre proveniente de um
vício, mas com conseqüências mais avassaladoras, por não se limitar à
própria inadequação de uso do produto ou serviço
542
. Daí porque sempre
que o consumidor for lesado em sua incolumidade física, psíquica e/ou em
sua esfera patrimonial,
543
danos esses não jungidos apenas à mera
inutilidade ou inadequação de produtos e serviços, o fato gerador
responsável pelo ocorrido será sempre um defeito.
541
NUNES, op. cit., 2004. p. 166-167.
542
William Santos Ferreira aponta, com invejável precisão, que os vícios de qualidade por insegurança
serão assim considerados enquanto não houver ocorrência de acidente de consumo, de fato lesivo à
incolumidade físico-psíquica do consumidor, que, com sua ocorrência, origina a responsabilidade do
fornecedor por fato do produto ou serviço. (FERREIRA, William Santos. Prescrição e decadência no
código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor n. 10. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1994. p. 77-96).
543
Conforme leciona Silvio Luís Ferreira da Rocha: proteção não é restrita apenas à integridade pessoal
do consumidor. Abrange também a proteção patrimonial, que poderá ser direta, quando não houver
violação à incolumidade físico-psíquica do consumidor, mas violação aos bens de sua propriedade, ou
reflexa, quando em decorrência da violação da incolumidade físico-psíquica ocorrer danos
patrimoniais. Entretanto, cumpre fazer uma distinção. As lesões patrimoniais originárias do não
funcionamento do bem ou de sua inadequação com a finalidade legitimamente esperada estão
protegidas pela seção que cuida da responsabilidade por vícios de qualidade por inadequação.
Portanto, a responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto se caracteriza por ser uma
responsabilidade por falta de segurança dos produtos, enquanto a clássica garantia por vícios se
traduz na responsabilidade do vendedor por falta de conformidade ou qualidade da coisa, tendo, por
isso, objetivos diferentes: aquela visa proteger a integridade pessoal do consumidor e dos seus bens;
esta, o interesse (da equivalência entre a prestação e a contraprestação) subjacente ao cumprimento
perfeito. A primeira está disciplinada nos arts. 12 a 17, enquanto a segunda está disciplinada nos arts.
18 a 21. (ROCHA, op. cit., 2000. p. 66).
247
Logo, o vício
pertence ao próprio produto ou serviço, jamais atingindo a
pessoa do consumidor ou outros bens seus. O defeito vai além
do produto ou do serviço para atingir o consumidor em seu
patrimônio jurídico, seja moral e/ou material. Por isso,
somente se fala propriamente em acidente, e, no caso, acidente
de consumo, na hipótese de defeito, pois é aí que o consumidor
é atingido
544
.
Deve-se ter em mente que a idéia de defeito está sempre
associada à de vício. Não há defeito sem vício; o vício é condição
inexorável de todo e qualquer defeito. A expressão defeito equivale a
acidente de consumo; são expressões sinonímias. Destarte, o defeito – ou
acidente de consumo – representa a somatória de um(ns) vício(s) com o(s)
dano(s) por ele(s) acarretado(s), esses que superam a mera inadequação de
uso do produto ou serviço, para atingir a esfera patrimonial e/ou moral do
consumidor. Logo, na linguagem técnica, soa melhor afirmar que o
produto possui um vício, sempre que se quiser fazer menção à existência
de uma imperfeição jurídica nele existente, antes da ocorrência do
acidente de consumo. Se efetivamente o acidente de consumo já ocorreu,
aí sim, é correto falar-se na concretização de um defeito.
Deveras, e sem necessidade de maiores delongas, o fumante é
vítima de defeitos. Afinal, é ele, no mais das vezes, atingido na sua
incolumidade física, psíquica e patrimonial, na medida em que o produto
nocivo debilita sua saúde ou aniquila sua própria vida.
A imperfeição do cigarro transpassa o âmbito afeto a sua mera
impropriedade de uso ou diminuição de seu valor. É o único produto que,
se utilizado conforme instruem seus fornecedores, mata a metade dos que
o consomem. E, se mata ou agride a saúde dos consumidores, o estudo da
responsabilidade civil deve ser conduzido tendo-se por base a possível
caracterização de defeitos, causadores do acidente de consumo.
4.2 Produtos defeituosos
544
NUNES, op. cit., 2004. p. 166-167.
248
Advém da própria legislação a idéia de que o produto defeituoso
é aquele que acarreta danos aos consumidores por não oferecer a
segurança que dele legitimamente eles podem esperar, levando-se em
consideração sua apresentação, o seu uso e os riscos, bem como a época
em que foi colocado no mercado (art. 12, §1º, I, II e III da Lei 8.078/90).
A apresentação do produto, o uso e os riscos que razoavelmente
dele se esperam e a época em que foi colocado no mercado, servem-se
como um termômetro de segurança, instrumento por meio do qual o
magistrado terá condições de valorar o nível de insegurança de
determinado produto e, assim, identificar nele a existência ou não de
defeitos.
4.3 Defeitos juridicamente relevantes e juridicamente irrelevantes
A doutrina delimitou duas grandes categorias referentes aos
defeitos. São eles os chamados defeitos juridicamente relevantes e
defeitos juridicamente irrelevantes.
Os últimos são aqueles não constantes do elenco do caput do
art. 12 da Lei consumerista, ou seja, defeitos que não decorram do
projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação,
apresentação ou acondicionamento dos produtos, assim como os que não
advenham de informações insuficientes, inadequadas ou inexistentes sobre
a sua utilização e risco
545
. Por outro lado, os defeitos juridicamente
relevantes encontram-se devidamente entabulados no caput do art. 12 da
Lei 8.078/90.
Essa categoria – defeitos juridicamente relevantes – subdivide-
se, segundo critério adotado pela melhor doutrina, em três categorias
menores:
a) vícios/defeitos de criação (projeto e fórmula);
b) vícios/defeitos de produção (fabricação, construção,
montagem, manipulação, acondicionamento); e
545
MARINS, op. cit., 1993. p. 110.
249
c) vícios/defeitos de informação (apresentação, informação
insuficiente ou inadequada, publicidade).
4.3.1 Vícios/defeitos de criação
Os vícios/defeitos de criação (ou concepção) resultam de erro
nos projetos, fórmulas ou na escolha de material inadequado ou
componente orgânico ou inorgânico nocivo à saúde, não suficientemente
testado.
Essa tipologia de vício/defeito ocorre na fase da execução do
projeto ou da fórmula, comprometendo a integralidade da produção ou, ao
menos, todos os produtos de uma mesma série. Mesmo as mais modernas
técnicas de controle da qualidade dos produtos não evitam sua ocorrência
e, por isso, essa modalidade de vícios/defeitos costuma ser a mais temida
pelos fabricantes que, de certo modo, aceitam o risco criado
546
.
Exemplos de tais imperfeições se encontram num medicamento,
cujo componente químico utilizado não tenha sido investigado
adequadamente, vindo a causar danos às pessoas portadoras de diabetes;
ou ainda, nos casos das balas “soft”, capazes de sufocar uma pessoa que a
engula por acaso
547
.
4.3.2 Vícios/defeitos de produção
Já os vícios/defeitos de produção (fabricação, montagem,
construção, manipulação ou acondicionamento) ocorrem na fase de
elaboração, montagem ou controle, atingindo apenas alguns exemplares do
produto, sendo oriundos do trabalho humano ou de falhas previsíveis em
equipamentos.
Entre as características mais marcantes desta modalidade de
vício/defeito pode-se assinalar a sua inevitabilidade. Eles escapam a
546
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, 1999. p.
160.
547
GRINBERG, op. cit., 2000. p. 151.
250
qualquer controle e surgem por obra do acaso, como parte integrante do
risco do negócio
548
.
Tal categoria de imperfeição jurídica foi responsável pelo
incêndio de alguns carros importados da marca “Tipo”, circunstância que
causou ferimentos a diversos consumidores
549
.
4.3.3 Defeitos de informação
Com o advento da Lei 8.078/90, restou solidificado o direito de
o consumidor ser informado, adequada e claramente, “sobre os diferentes
produtos e serviços, com especificação correta de quantidade,
característica, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos
que apresentem” (art. 6º, III).
Atente-se, porém, ao fato de que, ao contrário do que querem
fazer crer alguns, tal dever informativo já existia antes da entrada em
vigor da Lei 8.078/90, cujo fundamento se pautava, principalmente no
princípio da boa-fé, na lealdade de condutas e no comportamento ético
que sempre se pregou nas relações envolvendo profissionais (experts) e
consumidores (leigos). Essa a posição brilhantemente defendida pela
jurista Claudia Lima Marques, escorando-se em Clóvis do Couto e Silva,
ao elaborar parecer favorável ao julgamento de procedência, em uma ação
indenizatória, ajuizada pela família de um fumante – tabagista desde 1950
–, contra duas fabricantes de cigarros
550
.
O CDC apenas veio reforçar vigorosamente o dever de informar
do fornecedor, situação facilmente constatável, mesmo que por uma
leitura desavisada dessa legislação, tendo-se em vista a detalhada atenção
dispensada pelo legislador ao binômio educação/informação.
Por conseqüência, é ilegítima – e assim sempre foi, repita-se – a
conduta daquele fornecedor que faltar com a verdade naquilo que informa.
548
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, 1999. p.
161.
549
GRINBERG, op. cit., 2000. p. 151.
550
MARQUES, op. cit., 2005. p. 75-133.
251
É absolutamente vedado a ele desinformar (ofertas publicitárias abusivas
e enganosas) ou não informar.
É, pois, um ônus do fornecedor ater-se ao princípio da
veracidade, sempre que prestar informações de qualquer natureza, sobre
produtos ou serviços
551
. Não bastasse isso, vincula-se ele a outro
princípio, o da transparência, encartado no caput do art. 4º do CDC,
segundo o qual detém o fornecedor a obrigação legal de dar ao
consumidor a oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do
contrato que lhe está sendo apresentado
552
.
Assim, surgirá o chamado vício/defeito de informação, sempre
que essa não for ofertada ou, sendo ela prestada, tal se der de maneira
ineficiente ou inadequada, no que tange às características, utilização e
riscos do produto fornecido. Nesse sentido, o disposto nos arts. 8º,
parágrafo único, 9º, 12, caput, e 37, §§ 1º e 2º, da Lei 8.078/90.
Conforme já salientado, o defeito de um produto está
relacionado à segurança que o consumidor possa dele legitimamente
esperar. O legislador pátrio estabeleceu uma relação imediata entre a
informação fornecida ao consumidor e à segurança dos produtos. Logo,
quanto mais claro e eficiente se mostrarem os informes ofertados ao
consumidor, sobre as características, qualidade, utilização e riscos do
produto, mais seguro, no sentido jurídico e fático da palavra, esse produto
será.
Ressalte-se, ainda, que as categorias de vícios/defeitos referidas
alhures têm como característica o fato de se tratarem de imperfeições
materiais ou intrínsecas ao produto. Os vícios/defeitos de informação, por
sua vez, dizem respeito a um aspecto formal, relacionado ao modo de
colocação do produto no mercado
553
– são extrínsecos, portanto.
5 A possibilidade de se responsabilizar civilmente a indústria do
tabaco pelos danos que o cigarro acarreta aos fumantes
551
MARINS, op. cit., 1993. p. 52.
552
NUNES, op. cit., 2000. p. 114.
553
MARINS, op. cit., 1993. p. 114-115.
252
Arnaldo Rizzardo, em obra de profundidade sobre o instituto da
responsabilidade civil, apresenta, num de seus capítulos, sua análise
acerca do tema em estudo
554
.
Para o jurista, as ações que têm surgido no Brasil, buscando
indenizações pelos malefícios resultantes do tabagismo, são oriundas do
plágio de prática vigorante em outros países. Esclarece, ainda, que se
deve ter em mente que, nem tudo o que se adota ou se aceita em outros
sistemas jurídicos é adequado ao sistema nacional ou impõe-se que aqui
se aceite, a fim de que não se cometam disparates absurdos, como os
ocorridos, em diversas ocasiões, nos Estados Unidos da América do
Norte. Para o mestre, o tema “responsabilidade civil da indústria do
fumo”, diz mais com lógica e bom senso, do que com os tratados
jurídicos
555
. Sua posição basicamente escora-se numa construção pautada
na licitude da atividade, liberdade de opção, adequação de informações
prestadas pelas fabricantes, inexistência de defeitos e risco inerente afeto
ao cigarro, argumentos esses que já foram ou serão rebatidos no decorrer
desse trabalho.
É de se dizer, porém, que a lógica e o bom senso apenas
ancoram a tese da irresponsabilidade civil da indústria do fumo, acaso se
adote uma interpretação rasa do sistema jurídico nacional,
descompromissada com os princípios regentes do CDC, com a teoria do
abuso do direito, e alheia a alguns direitos constitucionais fundamentais,
data maxima venia.
Ressalte-se que o ordenamento jurídico pátrio mostra-se
perfeitamente adequado a autorizar indenizações proferidas contra a
indústria do tabaco, em razão de danos que o consumo do cigarro acarreta
aos seus consumidores. Não se há, para tanto, que se trabalhar o
pensamento em construções falsas, adaptando institutos jurídicos não
afetos à responsabilidade civil, consoante intenta fazer crer outro autor,
em ensaio jurídico sobre o assunto
556
.
554
RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 865-874
555
Ibid., p. 867.
556
COUTO, Paulo Rogério Brandão. Indenização movida por filhos alegando morte da mãe por câncer de
pulmão decorrente de tabagismo. Revista de Direito Mercantil, n. 129. São Paulo: Malheiros, 2003.
p. 223.
253
A postura adotada pela indústria do tabaco, no decorrer de
décadas e décadas, não só no Brasil, como na maioria dos países em que
os seus produtos encontram-se disponíveis no mercado, denota uma
prática irregular do direito de produção e comercialização de cigarros,
na medida em que foi ela responsável pela criação de uma atmosfera
artificial de dúvidas e ceticismo acerca da natureza do cigarro e dos
riscos à saúde advindos de seu consumo. Essa deslealdade na relação de
consumo, capitaneada não só pela omissão intencional de informações
necessárias ao esclarecimento da sociedade acerca dos possíveis
malefícios gerados pela prática do tabagismo e da própria natureza do
cigarro, mas também pela divulgação de publicidade insidiosa e ilegítima,
resulta numa circunstância de evidente abuso do direito, suficientemente
capaz de encampar a tese aqui defendia
557
.
De mais a mais, um exame do tema, com os olhos voltados
exclusivamente no CDC, é perfeitamente idôneo no sentido de conferir ao
julgador elementos abalizadores suficientes para espancar a tese da
irresponsabilidade civil da indústria do fumo, bem assim apto a
fundamentar sua obrigação de indenizar os malefícios acarretados pelo
uso do produto nocivo que fabrica.
É de se lembrar que na sistemática da Lei 8.078/90 revela-se
pouco relevante o fato de ser a atividade do fornecedor desenvolvida de
forma lícita ou ilícita, para lhe conferir, judicialmente, o dever
indenizatório, mesmo porque, em regra, será ela, a atividade, sempre
legítima.
Não haveria sentido em apenas validar indenizações contra
fornecedores que praticam atividades ilegais no mercado de consumo,
porquanto, se assim fosse, estar-se-ia verdadeiramente conferindo a todos
eles um atestado de irresponsabilidade, que apenas iria contribuir para o
descrédito dos direitos mais comezinhos e basilares do
cidadão/consumidor. A responsabilidade civil encampada pelo CDC se
pauta numa ilegalidade baseada não na própria atividade do fornecedor,
mas inerente ao próprio produto ou serviço disponibilizado no mercado.
557
A tese do abuso do direito, focada ao tema em análise, será melhor desenvolvida no próximo Capítulo.
254
Em termos de responsabilidade civil pelo fato do produto, advirá o dever
indenizatório sempre que o produto em si for considerado defeituoso
(defeitos de criação, fabricação ou informação) e, em decorrência de tal
condição, provocar danos ao patrimônio material e/ou moral do
consumidor.
Outra tese, bastante utilizada pela indústria do fumo em ações
judiciais ajuizadas contra ela, também carece de maior sustentação.
Embora engendrado com inteligência e até mesmo capaz de seduzir os
mais desavisados, é truncado o argumento que se ancora numa propensa
liberdade de opção por parte do consumidor, de sorte que seria ele o
único responsável pelas decisões que adota, podendo investir no vício ou
não, e até mesmo abandoná-lo, sempre que sua vontade assim determinar.
Ora, já se viu, no primeiro capítulo desse trabalho, que muitas
pessoas que hoje são fumantes inveteradas ou amargam os efeitos
deletérios à saúde provenientes do consumo de cigarros, principiaram o
vício – e isso no mundo todo – ainda jovens, muitas delas crianças,
mormente porque atingidas pela insidiosa publicidade difundida pela
indústria do fumo, que vincula o cigarro a situações alheias à própria
natureza, seduzindo-as, principalmente aquelas incapazes – pela ausência
de maturidade e/ou de informações eficazes – de concretizar uma escolha
consciente entre fumar e não fumar
558
.
Especialmente no Brasil, dados do Ministério da Saúde indicam
que o jovem brasileiro principia-se no tabagismo entre 10 a 12 anos,
sendo que a proporção de fumantes é duas vezes maior entre grupos com
menor escolaridade. Deveras, não há como se aceitar a tese da prevalência
absoluta da liberdade de opção, num contexto em que grande parte da
gama de fumantes é composta por crianças, jovens e analfabetos (ou
558
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), 50% dos jovens que experimentam derivados
do tabaco (cigarro, cigarro de Bali, charuto, cachimbo) se tornam fumantes na vida adulta. Os
adolescentes são um dos alvos dos esforços da OMS para controlar o tabagismo no mundo, pois
pesquisas comprovam que 90% dos adultos fumantes começaram a fumar antes dos 19 anos, sem
perceber os efeitos da nicotina. Em geral, os adolescentes saem da fase de experimentação para a de
dependência em um ano ou até menos. Pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre
Drogas Psicotrópicas (Cebride) concluiu que houve um significativo aumento da experimentação do
cigarro entre os adolescentes, na faixa entre 10 e 18 anos, principalmente entre as meninas. A pesquisa
do Cebride foi realizada entre 1987 e 1997, e abrangeu 20 mil adolescentes, em dez capitais brasileiras.
(Notícia disponível em <http://portalweb05.saude.gov.br/portal/aplicacoes/busca/buscar.cfm
>. Acessado
em 11/07/2005).
255
analfabetos funcionais), imaturos, desinformados e seduzidos por
publicidades absolutamente dissimuladas.
Como defender uma suposta liberdade de opção, quando o
consumidor não detém o inventário de informações – e grande parte da
massa de consumidores ainda não as detém! – necessárias a realizar uma
escolha consciente e bem trabalhada, em relação a iniciar-se ou não no
tabagismo? Lembre-se que o cenário hodierno, em que a indústria do fumo
tende a informar mais e mais acerca de seus produtos – notadamente em
razão de determinações legais expressas obrigando-as a adotar tal conduta
–, não corresponde à realidade de outrora. Àquela época, alguns
consumidores até poderiam saber, genericamente, acerca dos malefícios
do fumo à saúde. Todavia, a postura da indústria do tabaco, promovendo
publicidades que faziam apologia do produto perigoso, certamente
implicava uma desorientação do consumidor, influenciando a sua
concepção sobre assunto.
É obvio que a publicidade tem por finalidade convencer o
consumidor e dirigir sua vontade à utilização de um determinado produto
(ou serviço), razão pela qual os fornecedores, sabendo desse enorme
potencial angariador, gastam, com ela, milhões e milhões anualmente. A
indústria do tabaco é o maior exemplo disso. Hoje se sabe, inclusive, que
188 (cento e oitenta e oito) atores e diretores cinematográficos receberam
pagamento das empresas do fumo, entre os anos de 1978 a 1988, para que
imagens de cigarro fossem divulgadas. É exemplo de tal merchandising a
cena em que a personagem Betty Boop vende maços de cigarros no filme
“Uma cilada para Roger Rabbit”, de Robert Zemeckis
559
. E se especialistas
afirmam que o ator fumando em cena pode ter uma poderosa influência
nas pessoas, há que se indagar se a difusão dessas ofertas publicitárias,
em filmes direcionados a crianças e adolescentes – e mesmo a adultos –,
retratam uma postura pautada na lealdade e boa-fé.
Não se olvide, ainda, que o fumante é um doente, já que vítima
da nicotina. Ou seja, o tabagismo não só causa doenças como também é
uma doença. A medicina já vê o tabagismo como uma doença crônica,
559
DÁVILA, Sérgio. Atores receberam para fumar em filmes. Saúde. A11. Folha de São Paulo, [s.d.].
256
mormente porque a maioria dos fumantes necessita de ajuda, além da
força de vontade, para abandonar o vício. Tal ajuda pode vir na forma de
antidepressivos, implantes, chicletes ou pirulitos de nicotina ou terapias
comportamentais, cuja eficácia clínica já está comprovada.
E isso é extremamente significativo. Afinal, doenças devem ser
tratadas, não bastando a simples vontade ou opção do enfermo para
expurgá-la de seu organismo, ao menos na maioria dos casos. Tal idéia,
se bem compreendida, devasta por completo a defectiva tese da liberdade
de opção, sempre escorada em meras conjecturas.
Ademais, o vício certamente anuvia as decisões do fumante,
impedindo-o, muitas vezes, de adotar posição mais condizente com a sua
saúde. Não basta querer subtrair-se ao vício; pesquisas demonstram que a
grande maioria dos fumantes que tentaram abandonar o cigarro quedaram-
se desgostosos pelo fracasso
560
. Pesquisas também apontam que o
fumante, de uma maneira geral, apenas terá o sucesso esperado,
abandonando o vício, quando lhe for conferida ajuda profissional.
É a própria medicina que diz não bastar a própria força de
vontade do fumante para fazê-lo deixar o vício do fumo. É a própria
ciência médica, através de estudos sérios e bem trabalhados, que indica
que o fumante, para se ver livre de sua doença (tabagismo), necessita de
auxílio, sendo que, em muitos casos, o uso de medicamentos é
imprescindível. Tais afirmações não são conjecturas, mas, sim, resultado
de estudos e pesquisas respeitados no mundo acadêmico. Basta, aqui, a
referência a um estudo desenvolvido pelo Centro de Controle e Prevenção
de Doenças dos Estados Unidos, em que foram analisadas entrevistas com
32.000 homens e mulheres, constatando-se, dentre outras interessantes
conclusões, que as mulheres possuem maior dificuldade para abandonar o
vício. Isso porque o organismo da mulher é mais resistente às terapias
antitabaco e mais vulnerável aos sintomas de abstinência, como crises de
ansiedade e depressão. Somam-se a isso fatores psicossociais, como o
560
Ronaldo Laranjeira e Analice Gigliotti esclarecem: “[...] Mas a dependência da nicotina é um comportamento
tão virulento que embora 70% dos fumantes desejem parar de fumar, apenas 5% destes conseguem fazê-
lo por si mesmos.” (LARANJEIRA, Ronaldo; GIGLIOTTI, Analice. Tratamento da dependência da
nicotina. Disponível em <www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/atu1_02.htm>. Acessado em 02/05/2006).
257
medo de engordar e a forte associação do cigarro a poder e
independência
561
.
Data venia, não há como abalizar a tese da liberdade de opção
defronte a esse ambiente, sofisticadíssimo e peculiar, em que o fumante e
a indústria do tabaco encontram-se inseridos. É questão de lógica e bom
senso [...].
De tudo o que aqui foi dito, é de se concluir pela presença de
um vício extrínseco no cigarro, o chamado vício de informação; no futuro
se perceberá, contudo, que tal produto não padece apenas dessa
imperfeição. Logo, a razão não ampara aqueles que vêem no cigarro um
produto cujo risco é normal e previsível, em decorrência de sua própria
natureza e fruição (risco inerente; art. 8º da Lei 8.078/90) – linhas atrás
já se demonstrou a impropriedade de tal tese.
De sorte a enriquecer o que se defendeu anteriormente, ressalte-
se que o julgador, por intermédio de um estudo um pouco mais penetrante
sobre o cigarro e suas conseqüências à saúde, perceberá, de logo, a
irracionalidade de se advogar possuir esse produto o que a doutrina
denomina risco inerente. Para se ter uma idéia, recentemente o
Departamento de Saúde dos Estados Unidos divulgou que os efeitos
nocivos do tabaco são muito maiores do que se imaginava. O fumo
prejudica praticamente todos os órgãos do corpo, causando doenças sobre
as quais sequer havia suspeita de relação com o tabagismo, como a
catarata e cânceres cervicais, renais, do pâncreas e do estômago
562
. Como
afirmar que o risco de fumar é normal e previsível, em razão da própria
natureza e fruição do cigarro, se, ainda hoje, a medicina não sabe dizer,
com exatidão, a extensão dos danos que o tabagismo poderá causar ao
tabagista?
É de se assentar que tais argumentos – melhor construídos no
desenvolver desse trabalho –, além de patentear a complexidade do tema
em estudo, revelam a insuficiência de se utilizar idéias pautadas numa
lógica aparente, nascidas de uma impressão imediata, sem reflexão mais
561
NEIVA, Paula. Homens e ricos têm mais chance. Saúde. Revista Veja. 14 de agosto de 2002. p. 60.
562
RIGOTTI, op. cit., 2004. p. 15
258
detida, para conduzir, seguramente, o julgador, no exame de casos
concretos que envolvem questões atinentes ao tabagismo. O tema, pela
sua importância (estar-se-á falando de um produto que mata a metade de
seus consumidores diretos!), merece maiores atenção e respeito, data
venia.
5.1 Vício/defeito de concepção do cigarro
O cigarro é um produto de fabricação e comercialização
permitidas, desde que seus fornecedores informem, de maneira ostensiva e
adequada, a respeito de sua nocividade ou periculosidade. É o que reza o
art. 9º da Lei 8.078/90, numa interpretação dirigida exclusivamente a tal
produto.
Insista-se no fato de que a licitude em se planejar, produzir e
comercializar um produto, em nada obsta a responsabilização civil de seus
fornecedores, por danos oriundos do seu consumo, notadamente porque o
sistema legal, construído pelo legislador nacional e representado pelo
arcabouço de normas que formam o CDC, não se encontra afeto à
demonstração de que aquela atividade exercida pelo fornecedor é
ilegítima.
Obviamente, o foco da ilegalidade (ou do descumprimento de
um dever jurídico primário), capaz de conferir responsabilidade
indenizatória ao fornecedor, teve que ser outro, sob pena de se
comprometer parcela meritória da Lei consumerista – justamente aquela
voltada à responsabilidade civil. As atividades exercidas pelos
fornecedores de produtos e serviços no mercado de consumo são, em
regra, lícitas, sendo irrelevante tal conclusão no aferimento de um
atestado de absoluta irresponsabilidade desses no mercado de consumo.
Em matérias afetas à Lei 8.078/90, o julgador deve aprofundar-
se mais detidamente na análise daquele caso concreto em que se postule
indenização pela suposta ocorrência de um acidente de consumo,
buscando escorar a motivação de uma decisão de procedência, na presença
de imperfeições no produto ou serviço lançado no mercado. Tais
259
imperfeições denotam o fato gerador da responsabilidade civil pelo fato
do produto (ou serviço); a ilegalidade capaz de abrigar uma decisão
judicial favorável ao consumidor, não se endereça, pois, à atividade
exercida pelo fornecedor em si mesma, mas, sim, na presença de
vícios/defeitos no produto (ou serviço) colocado à disposição do
consumidor. Ao disponibilizar produtos (ou serviços) defeituosos no
mercado de consumo, o fornecedor estará descumprindo um dever
primário que lhe cumpria, um dever de segurança, circunstância
plenamente conveniente a obrigá-lo a indenizar consumidores lesados.
Reza o art. 12 do CDC que o fabricante responde,
independentemente de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção,
montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de
seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas
sobre sua utilização e riscos. Recorde-se que o produto defeituoso é
aquele que não oferece a segurança que dele legitimamente se espera,
levando-se em consideração, essencialmente, sua apresentação, o seu uso
e riscos e a época em que foi colocado em circulação.
Conquanto, estranha e curiosamente, a indústria do tabaco
possua autorização legal para molestar a saúde da comunidade, matando a
metade daqueles que diretamente consomem seus produtos, tal não
implica aceitar-se a absurda idéia de uma total irresponsabilidade civil
por parte dela. O cigarro, cujas atividades de desenvolvimento, fabricação
e comercialização mostram-se lícitas, apresenta imperfeições,
vícios/defeitos perfeitamente capazes de motivar julgamentos de
procedência, em ações de reparação de danos direcionadas contra a
indústria do fumo. O vício/defeito de criação é um deles.
Todo cigarro possui em sua composição um vício/defeito de
criação gravíssimo, e isso desde a época em que foi desenhado e
disponibilizado ao consumidor.
Lembre-se que o tabagismo não apenas é um comportamento que
dá origem a doenças; atualmente, ele mesmo é considerado uma doença. E
essa grave enfermidade (o vício de fumar) tem por origem o consumo de
260
nicotina, substância inerente ao tabaco, contida em doses variáveis nos
cigarros comercializados pelo mundo.
José Rosemberg, um dos mais conceituados especialistas do
assunto, apresenta sua visão acerca da nicotina e de suas propriedade
psicoativas:
Nicotina é um alcalóide (substância orgânica nitrogenada
existente nas plantas e em alguns fungos), encontrado nas
folhas do tabaco (Nicotiana tabacum), planta originária das
Américas. Absorvida por via oral ou pulmonar, chega ao
cérebro em segundos e depois, dissolvida no sangue, vai sendo
excretada rapidamente. Quando os neurônios percebem que ela
está escapando dos receptores, provocam um grau de ansiedade
que só quem foi fumante sabe o que representa. É a crise de
abstinência. Entre as mais de 4.700 substâncias nocivas
presentes no cigarro, a nicotina é a responsável pela
dependência, que é maior do que a de drogas como a cocaína e
a heroína. As primeiras tragadas que o indivíduo dá na vida,
em geral, são acompanhadas de tontura, enjôo, mal-estar.
Depois, trazem sensação de prazer fugidio e, em curto espaço
de tempo, alterações de humor causadas pela privação da
droga. Assim, cigarro após cigarro, o organismo do fumante e
do não-fumante que convive no mesmo ambiente, vai sendo
minado e a saúde dos dois seriamente comprometida
563
.
Causa perplexidade a informação de que o Estado não reconhece
a nicotina como sendo uma das substâncias que necessite de controle
especial, especialmente porque a própria ciência perfilha a idéia de que
ela é uma droga potentíssima, capaz de engendrar dependência física, para
muitos mais forte do que aquela causada por psicotrópicos como a cocaína
e heroína
564
.
Numa de suas resoluções, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária confere à nicotina a insígnia de psicotrópico, obrigando a
indústria do fumo a prestar informações em seus maços e publicidades
563
Disponível em <www.drauziovarella.com.br/entrevistas/nicotina.asp>.
564
Reitere-se a respeitada opinião do professor José Rosemberg, cuja autoridade no assunto é inquestionável:
“Entre as mais de 4.700 substâncias nocivas presentes no cigarro, a nicotina é a responsável pela
dependência, que é maior do que a de drogas com a cocaína e a heroína”. (Disponível em
<www.drauziovarella.com.br/entrevistas/nicotina.asp>. Veja-se, também, as informações trazidas no
ensaio científico de autoria de Ronaldo Laranjeira e Analice Gigliotti: “O tabagismo é a maior causa
proveniente de morbidade e de mortalidade em muitos países. Mas a dependência da nicotina é um
comportamento tão virulento que, embora 70% dos fumantes desejem parar de fumar, apenas 5%
destes conseguem fazê-lo por si mesmos. Isso ocorre porque o comportamento do fumar não apenas
causa doenças mas é, ele mesmo, uma doença: a dependência da nicotina.” (LARANJEIRA, Ronaldo;
GIGLIOTTI, Analice. Tratamento da dependência da nicotina. Revista jovem médico. São Paulo: Grupo
Editorial Moreira Júnior, v. 6, fev./mar. de 2001. p. 28).
261
acerca disso; em outra, justamente naquela responsável por definir o rol
de substâncias psicotrópicas sujeitas a controle especial, não há qualquer
menção sobre a nicotina.
Tal contra-senso comporta uma análise mais detida!
A Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária, considerando o disposto na Lei 9.782/99, que determina a
regulamentação, o controle e a fiscalização dos produtos e serviços que
envolvam risco à saúde pública, adotou a Resolução de Diretoria
Colegiada (RDC) n. 104, de 31 de maio de 2001, estabelecendo que os
produtos fumígenos derivados do tabaco conterão, na embalagem e na
propaganda, advertência ao consumidor, sobre os malefícios decorrentes
do uso destes produtos . Uma dessas advertências, que hoje se encontra
estampada em milhares de maços de cigarros e propagandas do produto, é
a de que “a nicotina é droga e causa dependência” (art. 2.º da citada
RDC).
Por outro lado, a mesma Diretoria Colegiada da Agência de
Vigilância Sanitária insiste em não inserir a nicotina no rol de substâncias
psicotrópicas, sujeitas a controle especial, conforme se pode constatar
pelo exame da RDC n. 254, de 17 de setembro de 2003. Sabendo-se que o
cigarro ceifa, aproximadamente, 5 milhões de vidas no mundo, de modo
que o tabagismo inclusive encontra-se enquadrado na Classificação
Internacional de Doenças como uma enfermidade (“desordem mental e de
comportamento, decorrente da síndrome de abstinência
565
à nicotina”; CID
10ªF17.2), é no mínimo curiosa a conclusão de que, para o Estado, a
nicotina não merece controle especial [...].
De todo modo, não se pode negar que o Estado, a partir de 31 de
maio de 2001, com a edição da RDC n.104, reconheceu publicamente que
a nicotina é uma droga. Um resvalo de olhar nos maços de cigarros
atualmente comercializados é suficiente para se aceitar tal assertiva.
565
Vejam-se algumas informações sobre a ‘síndrome da abstinência’: “Implantada a dependência,
faltando o aporte de nicotina aos centros nervosos, surge disforia e um quadro clínico de sintomas
desagradáveis denominado “síndrome da abstinência”. No tabagista que cessa de fumar, esse quadro
caracteriza-se por forte desejo de fumar, ansiedade, inquietação, irritabilidadee, distúrbios do sono,
dificuldade de concentração, além de outros sintomas.” (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 29).
262
Em seu site (www.philipmorris.com), a própria Philip Morris,
maior fornecedora de cigarros do mundo, admitiu publicamente que “não
existe cigarro seguro” e que “fumar cigarro é um vício”, muito embora
tenha ela passado décadas e décadas contestando as pesquisas que
afirmavam que tal substância causa dependência e que o fumo contribui
para problemas de saúde – mesmo já conhecendo a essência malévola do
cigarro
566
.
A nicotina é uma substância com características jurídicas
incomuns. Mesmo admitindo-se ser ela um poderoso psicotrópico – e o
próprio Estado aceita essa idéia, repita-se –, permite-se no País o plantio,
a cultura, a colheita e a exploração, por particulares, da planta de onde é
extraída, o que, aparentemente, contraria o disposto no art. 2º, caput, da
Lei 6.368/76. Veja-se, nesse sentido, a integralidade do disposto no art.
2º, §§ 1º, 2º e 3º da citada legislação:
Art. 2º. Ficam proibidos em todo o território brasileiro o
plantio, a cultura, a colheita e a exploração, por particulares,
de todas as plantas das quais possa ser extraída substância
entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.
§1º As plantas dessa natureza, nativas ou cultivadas, existentes
no território nacional, serão destruídas pelas autoridades
policiais, ressalvados os casos previstos no parágrafo seguinte.
§2º A cultura dessas plantas com fins terapêuticos ou
científicos só será permitida mediante prévia autorização das
autoridades competentes.
§3º Para extrair, produzir, fabricar, transformar, preparar,
possuir, importar, exportar, remeter, transportar, expor,
oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir para
qualquer fim substância entorpecente ou que determine
dependência física ou psíquica, ou matéria-prima destinada à
sua preparação, é indispensável licença da autoridade sanitária
competente, observadas as demais exigências legais.
566
Essa estratégia de informar os males do cigarro em sites não foi utilizada apenas pela Philip Morris. A
BAT, uma subsidiária americana da empresa fabricante de cigarros Brown & Williamson, lançou uma
página na Internet onde reconheceu alguns dos riscos do tabagismo à saúde. Esta página divulga alguns
conselhos para quem quer parar de fumar, assim como alguns estudos que contrariam a tese de que os
cigarros com baixo índice de alcatrão são menos prejudiciais que os cigarros comuns. A Brown &
Williamson não admite, contudo, qualquer dano aos fumantes passivos ou dependentes de nicotina.
Alguns defensores do controle do tabagismo acreditam que a página da Internet é um esforço para
reduzir futuras responsabilidades da empresa, pois aqueles que fumam cigarros da marca Brown &
Williamson terão, assim, um argumento a menos para se apoiarem. Um exame crítico da página da
Brown & Williamson pode ser encontrado na página do Advocacy Institute's - WebSite:
<http://www.advocacy.org/alerts/bwwebsite.htm> [SCARC].(BAT WEBSITE admite os perigos do
tabagismo. Disponível em: <http://www.inca.gov.br/atualidades/ano8/bat.html
>. Acessado em: 22/07/
2005).
263
Ressalte-se que, para os fins da Lei n. 6.368/76, serão
consideradas substâncias entorpecentes, ou capazes de determinar
dependência física ou psíquica, aquelas que assim forem especificadas em
lei, ou catalogadas pelo órgão competente do Ministério da Saúde (art.
36). A nicotina não se insere nesse contexto!
Acrescente-se que o art. 12 da Lei 6.368/76 imputa como
criminosa a conduta daquele que
importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar,
adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que
gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo,
guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma,
a consumo substância entorpecente ou que determine
dependência física ou psíquica, sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Nessa senda, dispõe o Decreto-lei n. 78.992, de 21 de dezembro
de 1976, que somente o Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e
Farmácia (SNFMF) poderá conceder licença para o plantio, cultivo e
colheita de plantas mencionadas no art. 2º, da Lei n. 6.368, de 21 de
outubro de 1976 (art. 10, caput), ressaltando, ademais, que a licença para
as atividades previstas neste artigo só poderá ser concedida às pessoas
jurídicas de direito público que tenham por objetivo, devidamente
comprovado, a extração ou exploração dos princípios ativos das plantas
referidas nesse artigo, para fins terapêuticos ou científicos (art. 10, §1º).
Salvo melhor juízo, a conclusão que se obtém através de uma
análise de tais dispositivos legais, voltada à situação específica da
nicotina no País, é a de que, embora o Estado reconheça essa substância
como sendo um psicotrópico, a ela não se aplicam as disposições da Lei
de Tóxicos (Lei n. 6.368/76). E isso notadamente pelo fato de que só se
consideram substâncias entorpecentes ou capazes de determinar
dependência física ou psíquica, para os efeitos de tal legislação, aquelas
que, previamente, constarem em lei ou forem elencadas em portaria ou
resolução do órgão competente do Ministério da Saúde (art. 36).
No mundo – esclarece o Ministro José Arnaldo da Fonseca –
existem dois sistemas jurídicos para se verificar se uma determinada
substância é ou não entorpecente: a) sistema pericial (fazendo-se uma
264
perícia em cada caso concreto, com a comprovação efetiva de que a
substância causa dependência física ou psíquica); b) sistema da
enumeração legal das substâncias entorpecentes, por órgãos competentes.
Desde 1976, o sistema jurídico brasileiro aderiu ao segundo modelo, como
se depreende da leitura do já citado art. 36 da Lei n. 6.368/76. A teor
desse dispositivo legal, somente podem ser consideradas “substâncias
entorpecentes ou capazes de determinar dependência física ou psíquica”
aquelas que, previamente, assim forem especificadas em lei ou
relacionadas em portaria ou resolução do órgão competente do Ministério
da Saúde, que hoje é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária –
ANVISA. Disso resulta que as Resoluções da ANVISA, no Brasil, em
matéria de drogas, têm o mesmo valor de uma lei penal, pois o
complemento da lei penal, segundo doutrina hoje absolutamente pacífica,
também tem natureza penal, estando sujeito, inclusive, ao regime da
sucessão de leis penais: proibição da retroatividade da norma
criminalizadora e imposição da retroatividade da norma ou disposição
descriminalizadora (art. 5º, XI, da CF)
567
.
Sob o aspecto exclusivamente criminal, a nicotina pode ser
designada como uma droga lícita. Sua situação, salvo melhor juízo,
equipara-se àquela em que se encontra o álcool. São substâncias que,
apesar de suas características psicotrópicas, podem ser produzidas e
comercializadas, sobretudo porque não estão sujeitas às sanções previstas
pela Lei de Tóxicos. Todavia, tal premissa não autoriza a inferência de
que a indústria do fumo encontra-se plenamente resguardada também na
esfera cível.
Recorde-se que os vícios/defeitos de criação (ou concepção)
resultam de erro nos projetos, fórmulas ou na escolha de material
inadequado ou componente orgânico ou inorgânico nocivo à saúde, não
suficientemente testado. Essa tipologia ocorre na fase de execução do
projeto ou da fórmula, comprometendo a integralidade da produção ou,
até mesmo, todos os produtos de uma mesma série
568
.
567
Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 299.659, Quinta Turma, Relator Ministro José Arnaldo da
Fonseca, publicado em 18/03/2002. Disponível em <http://www.stj.gov.br>.
568
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit.,
1999. p. 160.
265
Do modo que foi desenhado, o cigarro jamais poderia ter sido
colocado no mercado de consumo – e o foi por um acidente histórico.
Afinal, além de ser nada mais que um veneno, cuja fumaça tóxica contém
milhares de substâncias nocivas à saúde, em sua composição se encontra
um potente psicotrópico capaz de instalar, em poucos dias, a dependência
física no organismo do fumante
569
.
A tabacomania atinge todo o mundo, uma doença à qual se
atribui ser a maior causa proveniente de morbidade e mortalidade em
muitos países. Sem dúvida, a grande vilã, responsável pela doença do
tabagismo, é a nicotina.
Produto algum deveria conter uma substância capaz de viciar o
usuário em poucos dias de consumo, tornando-o um escravo dela.
Atualmente é despicienda qualquer tentativa voltada a desclassificar a
nicotina como uma droga, porquanto os dados científicos são unânimes
em afirmar suas poderosas características psicotrópicas. Essa situação
implica – acredita-se – a conclusão de que o cigarro, desde a sua
concepção, abriga um vício/defeito de criação gravíssimo.
Fazendo um paralelo, mencionem-se alguns casos famosos que
evidenciam vícios/defeitos de concepção detectados em medicamentos. O
famoso caso da Talidomida Contergam, um sedativo grandemente
utilizado entre 1958 e 1962, principalmente por gestantes. Esse
medicamento foi retirado do mercado porque provocou deformidade em
milhares de nascituros. Nos Estados Unidos, entre 1960 e 1962, um outro
medicamento anticolesterol, chamado MER-29, provocou graves defeitos
visuais em milhares de pessoas – mais de cinco mil –, inclusive cegueira,
e, por isso, foi também retirado do mercado. A vacina Salk, criada para
combater a poliomielite, por um defeito de concepção, acabou provocando
a doença em centenas de crianças na Califórnia. Na França, em 1972, o
Talco MORHANGE causou intoxicação em centenas de crianças, levando
569
Acerca do assunto, interessante mencionar algumas informações colhidas de obra específica. O pássaro
ao ser tocado com um bastonete umedecido com nicotina morrerá quase que instantaneamente.
Colocando-se duas gotas de nicotina na língua de um cão, matam-no dentro de poucos segundos.
Conhecem-se casos de morte e intoxicação de contrabandistas que levavam folhas de tabaco ocultas,
debaixo da roupa do corpo, apegadas à pele. (BALBACH, Alfons. O fumo e a saúde. 25. ed.
Itaquaquecetuba: Edificação do Lar, [s.d.]. p. 38-40).
266
algumas delas à morte, também em decorrência de um defeito de
concepção
570
.
É de se indagar por que tais situações se distinguem das
hipóteses referentes a fumantes. Atualmente, vê-se o tabagismo como uma
doença crônica, pela enorme dificuldade de se eliminar o vício do
organismo do fumante. Especialistas no assunto opinam que o tabagista
deve ser submetido a um tratamento que dure por toda a sua vida. Assim
como um hipertenso não deve abandonar o exercício físico, que lhe traz
benefícios enormes, um ex-fumante também deverá adotar e manter
hábitos ainda mais saudáveis do que uma pessoa que jamais fumou; se
necessário, voltar a recorrer a algum tratamento químico e a programas
psicológicos para aprender a lidar com a falta de cigarro
571
.
Ao que parece, não há por que tratar tais situações – aquela
voltada aos medicamentos e essa ligada ao fumo – de maneiras diversas, o
que leva a concluir que, efetivamente, a nicotina representa uma
imperfeição jurídica capaz de imputar responsabilidade civil à indústria
do tabaco. Talvez essa idéia, relacionada à ilegalidade da nicotina, tenha
contribuído para que a Liggett Group, o quinto maior fabricante de
cigarros dos EUA, investisse na criação de um fumo sem nicotina,
geneticamente modificado e ideal para aqueles que pretendam deixar o
vício. Aliás, a Philip Morris, nos anos 80, criou um cigarro similar,
retirando o alcalóide das folhas do fumo através de um processo
semelhante ao usado para tirar a cafeína do café. Acabou desistindo da
empreitada, depois que os fumantes reclamaram do sabor do novo cigarro
[...]
572
.
Não há como silenciar-se ao fato de que a indústria do tabaco,
ao menos desde 1963, já conhecia as capacidades psicotrópicas da
nicotina, muito embora atacasse violentamente qualquer um que se
arriscasse a vincular tal substância à dependência física. Os famigerados
documentos secretos da indústria do fumo – hoje públicos – revelam isso.
Mario Cesar Carvalho aponta os dizeres contidos em um desses
570
CAVALIERI FILHO, op. cit., 1999. p. 55.
571
RIGOTTI, op. cit., 2004. p. 14-15.
572
EUA testam o cigarro sem nicotina. Jornal do Brasil. Disponível em: <http://orbita.starmedia.com/~
meustrabalhos/ meiotabaco.htm>. Acessado em 02/05/2006.
267
documentos, datado de 1963: “Nosso negócio é vender nicotina, uma
droga viciante que é eficaz no relaxamento dos mecanismos do estresse.”
Tal frase é atribuída a Addison Yeaman, à época, presidente do conselho
da Brown &Williamson. O mesmo autor indica um outro memorando, de
autoria do pesquisador Ron Tamol, esse datado de 1965, proveniente da
Philip Morris, produtora do cigarro mais vendido do mundo, o Marlboro,
em que se constata a seguinte anotação: “Determinar o mínimo de
nicotina para manter o fumante normal ‘viciado’”
573
. Inarredavelmente,
essas informações representam importante matéria prima a contribuir para
o desenvolvimento da tese da responsabilidade civil da indústria do fumo,
pelos danos causados pelo tabagismo, servindo-se, outrossim, ao
delineamento da idéia de que há, no cigarro, uma outra imperfeição, essa
voltada à deficiência de informações – conforme se verá no próximo
tópico.
Embora o vício/defeito de concepção (nicotina) atinja de frente
o cigarro, é absolutamente improvável que tal produto seja retirado do
mercado, especialmente porque seu consumo já se encontra arraigado no
seio social. Juridicamente, entretanto, tal postura não se mostraria
radical; afinal, se hoje já se demonstrou que a nicotina é o fator
preponderante para tornar o consumidor de cigarros um tabagista crônico,
um doente, nada mais crível do que eliminar o mal pela raiz.
Política e socialmente, contudo, o panorama é outro. Para se
evitar revoltas sociais, capitaneadas pela bandeira da liberdade de se
adotar posturas destrutivas, melhor que o Estado se posicione no sentido
de educar a sociedade, como, aliás, tem sido feito no Brasil. Lembre-se
que o cigarro encontra-se arraigado em nichos diversos da sociedade,
defendido e consumido por muitos. Não seria crível implantar no País
situação assemelhada àquela ocorrida quando a Lei Seca foi publicada nos
EUA. Não bastasse isso, ressalte-se que o Brasil é, atualmente, o maior
produtor de fumo no mundo, de modo que a atividade de produção e
comercialização de cigarros é responsável pela criação, direta ou indireta,
de milhares de empregos.
573
CARVALHO, op. cit., 2001. p. 18.
268
Seria, sim, aconselhável ao Estado, que regulamentasse o uso da
nicotina no País, conferindo-lhe expressamente o status de droga lícita,
impondo àqueles que se dedicam à atividade de produção e
comercialização de tal substância, regras mais claras e específicas,
notadamente no sentido de educar a comunidade. Essa droga deve ser
controlada de perto, sobretudo para evitar situações ainda mais
prejudiciais ao consumidor, a exemplo da manipulação transgênica do
nível de nicotina nas plantas de fumo,
574
ou da utilização de níveis cada
vez maiores de amônia nos cigarros,
575
com o objetivo de potencializar a
absorção de nicotina pelo cérebro, aumentando a dependência do fumante.
De qualquer modo, mesmo que tal vício/defeito de concepção
venha a desaparecer no futuro, justamente em função de uma provável
implementação legal voltada a isso, aqueles que ao tabagismo devem o
fato de se encontrarem enfermos, detêm contra a indústria do fumo
mecanismos judiciais para buscar ressarcimento civil, pelos danos que
lhes foram acarretados.
5.2 Vícios/defeito de informação do cigarro
574
“O governo dos EUA encontrou a prova da manipulação num texto escrito em português, descoberto
por uma bibliotecária da Food and Drugs Administration (FDA, a agência que controla remédios e
comida). O texto era um pedido de patente da Brown & Williamson, empresa irmã da Souza Cruz, para
“uma variedade de fumo geneticamente estável”. O pedido era de 1992. Mesmo sem saber português, a
bibliotecária, Carol Knoth, reparou num número: 6%. E uma dúvida persistia: por que o texto fora
escrito em português?” (CARVALHO, op. cit., 2001. p. 19).
Um estudo publicado nos EUA concluiu que a nicotina de algumas marcas de cigarros é mais forte do
que a de outras, lançando a suspeita de que a indústria mistura, deliberadamente, o tabaco, para
aumentar a dependência. Investigadores de uma universidade de Oregon analisaram o fumo de 11
marcas de cigarros para detectar uma forma específica de nicotina chamada “base livre”, que passa
rapidamente para a corrente sangüínea ao ser inalada. A forma “base livre” da nicotina ocorre
naturalmente, mas algumas variedades de tabaco a contêm mais do que outras. O estudo reforça
suspeitas anteriores de que os fabricantes de cigarros misturam variedades de tabaco para manipular a
potência da nicotina, aumentar a dependência e as vendas, como afirmam alguns críticos”. (Disponível
em: <http://nagalera.cidadeinternet.com.br/plu_saude2.php?id=5>. Acessado em 22/07/2005).
575
“Assim como acontece em outros países, o tabaco está sendo perigosamente manipulado no Brasil
pelos fabricantes de cigarros. Eles utilizam amônia em níveis cada vez maiores, com o objetivo de
potencializar a absorção de nicotina pelo cérebro e, assim, aumentar a dependência do fumante. Há
quatro anos, uma pesquisa do Instituto Nacional de Câncer (INCA) revelou que os teores de amônia
encontrados nos cigarros brasileiros estavam acima dos usados em outros países. Enquanto no Brasil
se usam em média 14 mg por cigarro, no Canadá o teor é de 8,8 mg. (Fabricantes de cigarros utilizam
amônia em níveis cada vez maiores, com o objetivo de aumentar a dependência do fumante”.
Disponível em <http://www.inca.gov.br/atualidades/ano9/nicotina.html>. Acessado em 22/07/2005).
269
O ato ilícito não se situa na atividade de produção e
comercialização de cigarros em si, mas, sim, na existência de um
componente viciante nele, responsável pela instalação da dependência
física, no organismo do fumante. Noutros termos: o ilícito não resulta da
produção ou comercialização de cigarros; assenta-se, sim, numa
imperfeição contida no próprio cigarro (a nicotina).
Com base nessa argumentação, todo cigarro, sem exceções,
apresenta um defeito de concepção. Talvez isso soe ilógico! Mas como se
aceitar a irresponsabilidade civil daqueles que, dissimuladamente, vêm
produzindo e comercializando uma droga – que, para alguns estudiosos, é
potencialmente mais agressiva que a cocaína e heroína –, capaz de
instalar a dependência física no organismo do consumidor, num período
de um a três meses? Como rotular de ilibada a conduta daqueles que
ganham dinheiro com o sofrimento alheio, maniatando quimicamente o
fumante ao produto danoso, não raras vezes até o fim de uma vida
mórbida e tormentosa? Como se aceitar legítima a postura daqueles que
vendem uma doença (o tabagismo), incurável para, pelo menos, 5% dos
fumantes?
576
Quem sabe as respostas a tais indagações tornem mais
palatável a idéia de que o cigarro é um produto defeituoso por origem,
notadamente porque se inclui em sua composição um psicotrópico
poderoso [...].
De mais a mais, mesmo que não se aceite um posicionamento
favorável à tese de haver no cigarro um vício de origem, a
responsabilidade civil da indústria do fumo permanece, sobretudo porque
há, no produto, outra imperfeição não menos grave: o vício/defeito de
informação. Aqui talvez resida a mais robusta fundamentação utilizada
por fumantes (ou seus familiares), em ações judiciais ajuizadas contra a
indústria do fumo, postulando indenizações pelos danos advindos em
decorrência do tabagismo.
É induvidosa – e de triste constatação – a importância
econômica e social das indústrias do fumo. Só nos Estados do Sul, na
safra de 2004, o número de fumicultores chegou a 190.270 (cento e
576
José Rosemberg é taxativo, ao afirmar que não há tratamento para 5% dos fumantes com dependência
muito forte à nicotina. Segundo o especialista, esses estão fadados a morrer fumando. Disponível em:
<http://www.drauziovarella.com.br/entrevistas/nicotina5.asp >. Acessado em 02/05/2006.
270
noventa mil e duzentos e setenta), que retiram do tabaco o próprio
sustento e o de toda a sua família. A atividade fumígena vai além do
produtor, envolvendo uma cadeia responsável por cerca de 1 milhão de
empregos diretos
577
.
Contudo, o cigarro se apresenta como um dos produtos mais
perigosos e inseguros da atualidade, responsável pela morte de milhares
de consumidores em todo o mundo. Todo o benefício imediatamente
obtido pelo Estado, por meio de impostos, acaba sendo utilizado no
tratamento médico-hospitalar dos cidadãos
578
que sofrem, de algum modo,
os efeitos malignos do consumo do cigarro ou da exposição a ele
579
. Na
verdade, para cada dólar arrecadado no Brasil pela produção de cigarro, o
governo gasta entre 1,5 a 2 dólares com tratamentos de saúde
580
.
A publicação do CDC obrigou os fornecedores a reforçar a
adequação de seus produtos e serviços ao binômio segurança/qualidade,
atendendo, concretamente, aos objetivos da Política Nacional das
Relações de Consumo, inseridos no caput do art. 4º e consistentes no
atendimento das necessidades dos consumidores, com respeito à sua
577
GRALOW, op. cit., 2004.
578
Sabe-se que os danos causados pelo tabaco não se limitam à saúde. Atingem também os cofres públicos.
O fumo causa um prejuízo mensal de R$ 9 milhões para o Governo do Distrito Federal. Por mês, R$ 12
milhões são gastos no tratamento médico-hospitalar de fumantes. A arrecadação tributária para esta
finalidade, entretanto, se restringe a R$ 3 milhões. (Fumantes custam R$ 12 milhões. Disponível em
<http://www.idcesa.com.br>. Acessado em 17/01/2005).
579
RAMOS, Miguel Antonio Silveira. La responsabilidad civil de las empresas tabaqueras y deber de información.
Âmbito Jurídico. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/aj/dconsu0016. html>. Acessado
em 22/04/2004.
580
LEMOS, Fabiana. Secretário considera fumo droga ilícita. Estado de Minas Gerais. Saúde/Educação,
p. 32, 1
o
de jun. de 2000. A Philip Morris, decidida a desmentir o governo, que costuma reclamar dos
altos gastos públicos com o tratamento de doenças provocadas pelo cigarro, ultrapassou os limites do
bom senso. Distribuiu, em 16 de julho de 2001, um relatório no qual ressalta os benefícios econômicos
do cigarro para as finanças públicas da República Tcheca. A pesquisa, encomendada à empresa de
consultoria Arthur D. Little Internacional e divulgada pelo jornal econômico The Wall Street Journal,
concluiu que a morte prematura de fumantes ajuda a reduzir as despesas médicas. A morte precoce de
fumantes, segundo o mesmo estudo, ajudou o governo Tcheco a economizar U$ 30 milhões em gastos
na área da saúde, em cuidados geriátricos e no sistema de pensão e previdenciário no ano de 1999. O
documento reconhece que os cofres públicos perdem em arrecadação de impostos com a morte do
viciado. Mas contrapõe que o lugar do morto pode ser preenchido por um desempregado – e aí o poder
público economiza com os encargos sociais do auxílio-desemprego. Em resumo, a maior fabricante de
cigarros do mundo tenta provar que seu produto, embora nocivo à comunidade, é bom para a economia.
Os antitabagistas explicam que as falhas do documento vão além da insanidade dos argumentos. As
contas não consideraram, por exemplo, o fato de que, quando adoecem ou são submetidos a uma
cirurgia, os fumantes têm de fazer exames mais custosos e passam por tratamentos mais longos. Outra
falha do trabalho foi desconsiderar que a maioria dos óbitos de fumantes é registrada entre os 35 e 69
anos, quando as pessoas estão no auge de sua capacidade produtiva. (BUCHALLA, Anna Paula. Veja,
ed. 1710, ano 34, n. 29, 25 de jul. de 2001. p. 95).
271
dignidade, saúde e segurança, à proteção de seus interesses econômicos e
à melhoria da sua qualidade de vida
581
.
A informação obteve tratamento diferenciado na Lei 8.078/90,
situando-se no elenco dos princípios da Política das Relações de
Consumo (art. 4º, IV, da Lei 8.078/90), como também no rol dos direitos
básicos do consumidor (art. 6º, III, da Lei 8.078/90). Isso porque, muitas
vezes, o consumidor envolve-se em situações que atingem, diretamente,
sua saúde, segurança e, até mesmo, sua própria vida, em decorrência de
informações inadequadas, insuficientes ou, ainda, pela total inexistência
delas, sobre a utilização e riscos de determinados produtos ou serviços.
Nesse viés, a “informação adequada e clara sobre os diferentes
produtos e serviços, com especificação correta de quantidade,
característica, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos
que apresentem” (art. 6º, inciso III, da Lei 8.078/90), inclui-se no
catálogo legal de direitos básicos do consumidor. O art. 9º do CDC,
intensificando esse direito básico, determina que o fornecedor somente
poderá explorar os produtos potencialmente nocivos, se respeitar o dever
de informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito de sua
nocividade ou periculosidade.
Não destoa dessa linha de raciocínio, a orientação prevista no
parágrafo único do art. 8º da Lei 8.078/90, que também reforça o direito
básico à informação do consumidor, obrigando o fabricante a instruir,
mediante impressos apropriados que deverão acompanhar o produto
industrializado
582
.
Finalmente, o art. 31 do mesmo Diploma Legal reza que a oferta
e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar, em língua
portuguesa, informações corretas, claras, precisas, ostensivas sobre suas
características, qualidades, quantidades, composição, preço, garantia,
prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os
riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.
581
MARINS, op. cit., 1993. p. 41.
582
Embora esse texto esteja inserido em parágrafo, como complemento do art. 8.º, deve-se interpretá-lo
extensivamente e entendê-lo como aplicável aos casos regulados pelo art. 9º. Na verdade, trata-se de um
erro técnico, visto que esse parágrafo único deveria situar-se em artigo próprio.
272
Logo se vê que o direito à informação representa uma das
prerrogativas básicas e fundamentais do consumidor, resultante do
princípio da boa-fé – que deve prevalecer em todas as relações de
consumo –, do princípio da transparência – pelo qual o consumidor deve
ter um exato conhecimento dos componentes e riscos da utilização dos
produtos –, e do princípio da isonomia das relações entre o fornecedor e
o consumidor – uma vez que esse se encontra em um grau de
vulnerabilidade maior do que aquele, ao figurar em uma relação de
consumo
583
.
Não foi a casualidade que levou o legislador consumerista, ao
tratar da qualidade da informação a ser prestada pelo fornecedor, a se
valer dos termos adequadas, claras, ostensivas, precisas e corretas. Não
se mostra suficiente aquela informação básica, elementar; ela deve ser
ofertada, por expressa determinação legal, de maneira eficiente, precisa e
verdadeira, de sorte que atinja e influencie diretamente a capacidade de
discernimento do consumidor, no momento em que ele participar de uma
relação de consumo. A informação ofertada deve ser socialmente eficaz!
Conforme ensina Fernando Gerardini Santos, a Lei 8.078/90
criou – na verdade, reforçou – um dever de informação ao fornecedor,
estabelecendo o respectivo direito conferido ao consumidor, o qual deve
ser exercido pela apresentação, contida em qualquer das práticas de
marketing disponíveis ao fornecedor, e constituindo uma das espécies de
oferta previstas pelo CDC. Seus requisitos encontram-se, precipuamente,
no art. 31 do supracitado Diploma Legal, mas são informados por dois
princípios maiores, quais sejam: o princípio da informação, e, seu
colorário, o princípio da veracidade
584
.
O CDC, ao incluir a educação como um dos princípios da
Política Nacional das Relações de Consumo, a biparte nos seguintes
desdobramentos: de um lado, impõe a educação dos consumidores como
norma de conteúdo programático, dirigido ao Estado, por ser esse o órgão
regulamentador da educação no País; de outro, estabelece o dever de
informar o fornecedor, para que o consumidor comum, pessoa leiga e
583
RAMOS, op. cit., 2004.
584
SANTOS, op. cit., 2000. p. 168-169
273
vulnerável que é, tenha como atuar, numa relação de consumo, em
condição próxima de igualdade com aquele, manifestando,
conseqüentemente, sua real vontade de consumo
585
.
Apesar do reforço normativo conferido ao direito/dever de
informação, a indústria de tabaco contraria as expectativas, negando-se a
cumprir adequadamente o que a Lei 8.078/90, genericamente, impõe a
todos os fornecedores de produtos e serviços.
Diante da complexidade e sofisticação do cigarro, é pouco
provável que não se perceba que, ainda hoje, a indústria do fumo oculta
do consumidor informações relevantes sobre a natureza de tal produto e
dos danos provocados pelo seu consumo
586
–; afinal, estar-se-á se
referindo a um produto cuja queima gera uma fumaça composta de mais
de 4.700 substâncias tóxicas [...].
A inadequação de informações, obviamente, acaba prejudicando
o consumidor, estorvando-o a optar conscientemente quanto a aderir ou
não ao consumo de cigarros. E isso porque não é informado de maneira
adequada, clara e ostensiva a respeito de sua nocividade e, muito menos,
da especificação correta, quanto à quantidade, características,
composição, qualidade e, tampouco, dos riscos a que estará sujeito ao
consumir – ou se expor – àquele produto.
Veja-se que os ingredientes do cigarro são informados nos
maços basicamente da seguinte forma:
Ingredientes básicos:
Mistura de fumos
Açúcares
Papel de cigarros
Extratos vegetais
Agentes de sabor.
Num tempo não muito remoto, os maços continham apenas
informações elementares sobre os níveis de nicotina, alcatrão e monóxido
585
Ibid., p. 169.
586
Essa fundamentação foi utilizada por três Estados (Pará, Paraná e Rondônia) e onze municípios
brasileiros (Rio de Janeiro, Belford Roxo, Belo Horizonte, Carapicuíba, Duque de Caxias, João Pessoa,
Jundiaí, Magé, Nilópolis, Nova Iguaçu e São Bernardo do Campo) que ingressaram, em 8 de maio de
2001, na Justiça de Miami, com processos contra empresas tabagistas dos Estados Unidos, entre elas a
Phillip Morris e a R.J. Reynolds. Trata-se de processos bilionários que pedem o reembolso dos gastos
com os tratamentos de fumantes, pagos pelos serviços de saúde pública. Segundo os autores, as
empresas fumígenas ocultaram o conhecimento que detêm sobre os danos do tabagismo.
274
de carbono, presentes nos cigarros. Atualmente, outras informações são
difundidas nos mesmos maços e publicidade do produto, alertando o
consumidor acerca da presença de determinadas substâncias contidas no
mesmo produto, e dos malefícios que elas poderão acarretar-lhe. Não
basta, contudo!
Consoante leciona o professor José Rosemberg, o público leigo
– e até alguns médicos – acreditam que o fumo contém apenas nicotina e
alcatrão. Em verdade, são milhares as substâncias tóxicas emanadas da
fumaça do cigarro, das quais 4.720 (quatro mil setecentos e vinte)
encontram-se classificadas nas quatorze famílias químicas. Quando o
fumante traga, prazerosamente, um cigarro, a fumaça penetra até no
último de seus alvéolos, carregando, pelo menos, 2.500 (duas mil e
quinhentas) substâncias tóxicas
587
.
Mesmo sendo inegável que a qualidade da informação sobre a
natureza e riscos gerados pelo consumo do produto elevou-se, também é
inegável que a complexidade do produto conduz à idéia de que o dever
informativo deve ser majorado. A indústria do fumo omite do consumidor
fatos que influenciariam, sobremaneira, em sua decisão consciente sobre
principiar-se, ou não, no vício. Não mencionam, por exemplo, que o
cádmio (Cd) é altamente tóxico e corrói o trato respiratório, provocando
perda de olfato e edema pulmonar; que o acetato de chumbo
([Pb(CH3CO2)2]) é uma substância cancerígena que se acumula no corpo
humano e, quando inalada por crianças, atrapalha seu crescimento; ou
ainda, que o butano (C4H10) é mortífero e sua inalação tem como
conseqüências a falta de ar, coriza e problemas de visão – substâncias
essas que compõem a fumaça tóxica do cigarro, consoante o já salientado
noutra oportunidade. Além disso, as outras quase cinco mil substâncias
tóxicas contidas na fumaça oriunda da queima do cigarro, bem como a
quantidade delas que o consumidor inala ao tragar o produto ou ao se
expor a ele, sequer são mencionadas pela indústria tabaqueira.
Deveras, o consumidor apenas terá condições de realizar uma
adequada e consciente escolha de consumo, voltada à possibilidade de
587
Entrevista disponível em: <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=21711&cat= Cartas>.
Acessado em 02/05/2006.
275
principiar-se no tabagismo, se lhe forem conferidas informações claras e
precisas sobre todas as substâncias nocivas contidas no cigarro e
emanadas da sua combustão, bem como acerca dos riscos a que está
sujeito ao consumi-lo. A exemplo daquilo que se vê nos remédios, os
quais são sempre acompanhados de bulas, apresentando todos os seus
componentes, indicações, contra-indicações, forma de utilização e demais
dados necessários para um consumo seguro, os cigarros também deveriam
vir acompanhados de impressos similares.
Sempre é bom lembrar que os informes ofertados sobre os
malefícios ocasionados pelo consumo de cigarros, inseridos nos maços
vendidos no Brasil, e na própria publicidade do produto, decorrem de
expressa previsão legal nesse sentido, mais especificamente, advêm do
dever do Estado de adotar medidas com a finalidade de preservar a saúde
da comunidade, como também da obrigação de conscientizar a população
sobre os agravos à saúde gerados pelo consumo de tabaco e seus
derivados. As advertências são claras e expressas: “O MINISTÉRIO DA
SAÚDE ADVERTE ...”.
588
Essas advertências, de modo algum, eximem a
indústria do fumo do seu dever informativo. Não é porque ela, a indústria
tabaqueira, cumpre as determinações legais que lhe são impostas pelo
Ministério da Saúde, que estaria isenta de cumprir o estabelecido na Lei
consumerista.
Não basta que a indústria do fumo siga à risca as determinações
do Ministério da Saúde e da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância
Sanitária), acerca das advertências que devem constar nas embalagens de
cigarros. É evidente que a postura do Estado, ao criar regulamentações
aplicáveis aos fornecedores de cigarros, não exclui o dever desses em
respeitar criteriosamente as normas consumeristas. Estado e fornecedores
devem atuam conjuntamente visando difundir informações eficientes para
588
Segundo as indústrias fumígenas, o produto que comercializam não possui defeito de informação. Isto
porque, desde 1988, são veiculadas, nos maços e na publicidade de seus cigarros, informações relativas
aos riscos à saúde associados ao seu consumo. Argumentam, diante disso, que os consumidores são
devidamente informados acerca dos malefícios causados pelo cigarro. Finalmente, alegam que, não
obstante a veiculação dessas informações terem se tornado obrigatórias somente em 1988, o público, em
geral, já possuía pleno conhecimento dos referidos riscos.
276
consumidor, a fim de dar-lhe condições de realizar opções de consumo
seguras e conscientes.
Repita-se uma vez mais que tais advertências ainda são
insuficientes. Conforme visto, é espantoso o número de enfermidades
causadas pelo consumo de cigarros, sendo que, até hoje, novas doenças
vêm sendo associadas ao seu uso
589
. Não são meras frases, contidas em
nada mais que três linhas, que vão esclarecer eficiente e adequadamente o
consumidor, auxiliando-o no momento de proceder a sua escolha entre
uma vida saudável e a degradação de sua saúde em conseqüência do uso
do tabaco.
No mais, a obrigação de inserir as advertências criadas pelo
Ministério da Saúde surgiu há pouco mais de dez anos. A maior parte de
fumantes e não-fumantes, que apresentam hoje problemas de saúde pelo
uso, direto ou indireto, do cigarro, esteve em contato com ele bem antes
da existência de tais informes, o que, per se, é motivo suficiente para
rechaçar as argumentações das indústrias do tabaco de que as informações
referentes à sua nocividade sempre foram devidamente fornecidas.
Por outro lado, é incontestável que a Lei 8.078/90 possui como
objetivo maior a proteção e defesa do consumidor brasileiro.
Consequentemente, a realidade econômica, social e cultural da
comunidade nacional deve ser considerada no momento de sua
interpretação. Em 2002 o IBGE apresentou estatística indicando que no
Brasil, há 14,6 milhões de pessoas analfabetas ou 11,8% da população de
15 anos ou mais de idade; constatou-se, ainda, haver 32,1 milhões de
589
Numa reportagem publicada pelo Jornal Folha de São Paulo, em 28 de maio de 2004, deu-se ênfase a
uma situação alarmente. O fumo causa uma série de doenças que nunca antes se suspeitou fossem
ligadas a ele. Dentre elas encontram-se a catarata, a leucemia mielóide aguda e os cânceres cervicais,
renais, do pâncreas e do estômago. Essa informação foi prestada pelo Secretário da Saúde dos EUA,
Richard Camona. Disse ele, num recente relatório sobre tabagismo do Departamento da Saúde
americano, que o fumo afeta praticamente todos os órgãos do corpo. Declarou Carmona: “Sabemos há
décadas que fumar faz mal à saúde, mas esse relatório mostra que os danos são ainda piores do que
imaginávamos. As toxinas da fumaça do cigarro vão para todos os lugares para onde flui o sangue.
Espero que essa nova informação ajude a motivar as pessoas a parar de fumar e a convencer os jovens
a nem sequer começar.” O relatório coincide com um estudo do Centro de Prevenção e Controle de
Doenças dos EUA (CDC), segundo o qual, em 2002, 22,5% dos adultos americanos se descreveram
como fumantes, uma diminuição pequena em relação a 2001. Para o CDC, essa redução não será
suficiente para fazer o índice nacional de fumantes decrescer para 12%, meta fixada para 2010 pelo
Departamento da Saúde. (FOX, Maggie. Folha de São Paulo, Saúde. Fumo afeta todo o corpo, alertam
EUA. A14, sexta-feira, 28 de maio de 2004).
277
analfabetos funcionais ou 26% da população de 15 anos ou mais de
idade
590
.
Na primeira edição desse trabalho, afirmou-se que, no caso do
cigarro, seus fabricantes deveriam inserir nos maços imagens de pulmões
cancerígenos debilitados ou de pessoas enfermas com pernas ou braços
amputados. Registrou-se, ainda, que o símbolo do veneno (caveira) seria
igualmente uma forma clara de informação para grande parte dos
consumidores brasileiros. E isso porque em um país com deficiências
econômicas, sociais e culturais como o Brasil, somente com a utilização
de imagens fortes e trágicas poder-se-ia cumprir parte da determinação
legal que obriga os fornecedores de cigarros a informar de modo eficiente
e adequado. Ainda na oportunidade da primeira edição, esforços foram
empreendidos com a intenção de esclarecer que a baixa instrução e
excessiva ignorância que imperam no País agravam o defeito de
informação. Ora, se é a Lei que diz que o produto é defeituoso quando
não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, não seria
exagerado concluir que quanto mais ignorante um povo, menos
consciência dos males do cigarro ele, evidentemente, terá. Esse fato é
comprovado por dados apresentados pelo Ministério da Saúde, segundo os
quais se constatou que, no Brasil, o maior consumo de cigarros está na
classe sem nenhum rendimento, com 25,4 % dos indivíduos fumando.
Diante da constatação de que os lucros advindos da tributação
do cigarro são ilusórios, bem como em razão de uma política pública
vinculada aos ideais da dignidade e saúde humanas, o Governo Federal,
reproduzindo a idéia outrora já utilizada por alguns países europeus, a
exemplo da Suécia, no dia 25 de maio de 2001, reeditou e alterou
disposições da Medida Provisória n. 2.134-30, obrigando as empresas de
tabaco a apresentarem imagens dos males provocados pelo consumo do
produto. Sem dúvida, a medida foi louvável, porém, ainda insuficiente
para garantir uma informação nos moldes exigidos pelo CDC, na medida
em que a maioria das imagens tinha por figurantes atores contratados, e
não pessoas com doenças tabaco-relacionadas; eram amistosas demais
590
Disponível em <www.ibge.gov.br>. Acessado em 12/05/2000.
278
para o fim a que se prestavam. Tanto assim que, depois da publicação da
primeira edição desse trabalho – e não se sabe se por alguma influência
dele –, novas frases e imagens – essas sim mais agressivas e fúnebres –
foram elaboradas pelo Ministério da Saúde, sendo, atualmente, exibidas
no corpo dos maços de cigarros comercializados no País
591
.
Vê-se, pois, um aperfeiçoamento substancioso na qualidade das
informações prestadas pelas fabricantes de cigarros – frise-se:
informações essas oferecidas por exigência do Governo Federal, através
de regras específicas incidentes sobre as fornecedoras de tabaco, já que a
experiência mostra uma resistência por parte das últimas em esclarecer,
espontaneamente, a sociedade, sobre os riscos que o consumo do cigarro
acarreta.
Contudo, deve-se avançar mais. É lógica a conclusão de que a
informação deficiente associada à miséria econômica, social e cultural de
grande parte da população brasileira, contribui, indiscutivelmente, para a
ocorrência de acidentes de consumo gerados pelo tabagismo – tal
constatação evidencia a gravidade do vício/defeito de informação dos
591
“O Ministério da Saúde apresentou ontem as novas imagens de advertência que deverão ser impressas
nas embalagens de cigarro, com o objetivo de reduzir o consumo de tabaco, “responsável por 200 mil
mortes por ano no Brasil” – segundo estatística oficial do País. A indústria tabagista terá um prazo de
pouco mais de nove meses para imprimir as novas ilustrações, bem mais impactantes do que as
imagens em vigor – como a que mostra um homem com as pernas amputadas, com a frase “Ele é uma
vítima do tabaco. Fumar causa doença vascular que pode levar à amputação.” A resolução da ANVISA
(Agência Nacional de Vigilância Sanitária) obriga também que todas as imagens tenham o fundo de cor
preta. Os novos visuais deverão estar, todos, implantados a partir de 1º de agosto de 2004. As futuras
novas frases também foram divulgadas: “Essa necrose foi causada pelo consumo de tabaco”, “Ao
fumar você inala arsênico e naftalina, também usados contra ratos e baratas, “Fumar causa câncer de
boca e perda dos dentes”. As embalagens devem também agora conter o aviso “Venda proibida a
menores de 18 anos”, além de alertas: “Este produto contém mais de 4.700 substâncias tóxicas, e
nicotina causa dependência física ou psíquica. Não existem níveis seguros para consumo dessas
substâncias.” Os fabricantes também serão obrigados a colocar nos maços o número do serviço
“Disque Pare de Fumar (0800-7037033) em forma mais ampliada, facilitando sua visualização. As
novas frases do cigarro: “Essa necrose foi causada pelo consumo de tabaco”; “O tabaco provoca
impotência sexual”; “Crianças que convivem com fumantes têm mais asma, pneumonia, sinusite e
alergia”; “Fumar causa aborto espontâneo”; “Ele é uma vítima do tabaco”; Fumar causa doença
vascular que pode levar à amputação”; “Fumar causa câncer de laringe”; “Fumar causa câncer de
boca e perda dos dentes”; “Em gestantes, o uso do tabaco provoca partos prematuros e o nascimento
de crianças abaixo do peso”; “Fumar causa câncer de pulmão”; “Ao fumar você inala arsênico e
naftalina, também usados contra ratos e baratas””. (Disponível em <http://www.espacovital.com.br>.
Acessado em 23/10/2003).
279
produtos fumígenos, bem assim dá uma idéia cristalina da severidade com
que a questão deve ser tratada para se eliminar essa imperfeição
592
.
Defronte à significativa importância dada pelo legislador
consumerista ao direito básico do consumidor à informação, acredita-se
que os maços deveriam vir acompanhados de prospectos – a exemplo das
bulas de remédios – esclarecendo aos consumidores quais as substâncias
tóxicas ao organismo humano que compõem o cigarro, quais são emanadas
de sua combustão, a quantidade delas existente em cada unidade do
produto, a origem do fumo utilizado na sua confecção, advertir-los dos
inúmeros malefícios que o produto nocivo poderá gerar à sua saúde e,
finalmente, sugerir um número de cigarros que poderá ser consumido,
diariamente, sem acarretar-lhes maiores danos – sugestão essa também já
oferecida na primeira edição dessa obra. O CDC, sendo adequadamente
observado e respeitado pela indústria do tabaco, leva à concretização
dessa idéia. Todavia, já se sabe que a indústria do tabaco só age em prol
do consumidor, informando-o, apenas quando normas dirigidas
especificamente a ela são editadas. Assim, seria crível que o Estado
obrigasse a indústria, de maneira expressa, a fornecer tais prospectos,
garantindo ao consumidor informes e alertas adequados, possibilitando-
lhe uma escolha consciente entre o consumo ou não de cigarros.
É mister ressaltar que algumas associações, num trabalho
meritório voltado a garantir a adequada aplicação do CDC, já postularam
judicialmente a condenação de indústrias do tabaco a fornecerem
prospectos nos maços, informando e alertando adequadamente o
592
Recentemente um júri de Los Angeles ordenou que a Philip Morris pagasse mais de US$ 3 bilhões a
um paciente de 56 anos, com câncer. A indenização inclui US$ 3 bilhões em punição por danos e mais
US$ 5,5 milhões de compensação.
A fabricante de cigarros informou que apelará imediatamente da decisão, alegando que o beneficiado,
Richard Boeken, havia ignorado as advertências sobre os riscos à saúde ao ter fumado, ao longo de
cerca de 40 anos, dois maços de cigarro Marlboro por dia.
Boeken, que sofre de câncer no cérebro e no pulmão, pretendia receber uma compensação de US$ 12,37
milhões e até US$ 10 bilhões como punição à empresa. Ele acusou a companhia de fraude, conspiração
e negligência.
Obviamente estamos desapontados com o veredicto, disse Maury Leiter, advogado da Philip Morris.
Reconhecemos que a Philip Morris é uma empresa impopular que fabrica um produto perigoso. Mas
não acreditamos que as evidências desse caso dêem sustentação a tal veredicto.
Boeken afirmou durante o julgamento que começou a fumar quando tinha 13 anos e que só ficou
sabendo dos riscos do hábito em meados dos anos 90. Advogados da empresa disseram, entretanto, que
Boeken sabia do perigo e continuou a fumar. As provas mostraram que Boeken ignorou as informações
apresentadas pela comunidade médica sobre os riscos do fumo', disse o advogado Leiter. (Disponível
em <www.sintese.com>. Acessado em 20/05/2000).
280
consumidor acerca da natureza e males do fumo. O julgamento de uma
ação coletiva, ajuizada na Comarca de São Paulo, pela Associação de
Defesa da Saúde do Fumante (ADESF), contra as empresas Philip Morris
e Souza Cruz S.A. (autos n. 95.523167-9), conferiu aos fumantes uma
vitória inédita, marcante na história do embate travado no País entre a
indústria do fumo e os tabagistas. Convencida da existência de um defeito
de informação no cigarro, a Juíza Adaíde Bernadi Isaac Halpern condenou
as aludidas empresas ao pagamento de danos morais e materiais a todos os
fumantes brasileiros acometidos de doenças tabaco-relacionadas, bem
assim a obrigação de fazer, de sorte que as obrigou a adequarem suas
embalagens e publicidade ao que determinam os arts. 31, 9°, 6°, III e 36
da Lei 8.078/90, para cumprimento da Política Nacional de Relações de
Consumo (art. 4°, CDC), informando os dados técnicos de seu produto, o
cigarro, como sua composição química, precauções de uso, responsável
técnico, a preciosidade ou nocividade que apresenta, em até 60 dias, sob
pena de pagamento de multa diária de R$100.000,00 (cem mil reais),
conforme o art. 461 CPC, sem prejuízo do que é previsto pelos parágrafos
5° e 6°, do artigo citado
593
. Outra associação, denominada Centro de
Estudos e Promoção ao Acesso à Justiça (CEPAJ), promovendo uma ação
similar, na Comarca de Belo Horizonte, MG, contra as fabricantes de
cigarros Cibrasa Indústria e Comércio de Tabacos Ltda., Cabofriense
Indústria e Com. de Cigarros Ltda., Sudamax Indústria e Comércio de
Cigarros Ltda., Itaba Indústria de Tabaco Brasileira Ltda., tem por
pretensão a obtenção de uma decisão judicial que obrigue as Rés a
elaborarem e incluírem nos maços de cigarros – ou embalagens – que
fabricam, prospectos – a exemplo das bulas de remédios – que assegurem
informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa
sobre:
a) todas as substâncias (composição química) – e suas
especificações e características – que compõem a mistura dos
cigarros que produzem;
593
Inteiro teor da sentença disponível no site <www.adesf.com.br>. Acessado em 12/12/2005.
281
b) a quantidade de cada uma dessas substâncias que compõem a
mistura dos cigarros produzidos pelas Rés;
c) os malefícios – ao menos os mais graves – que essas
substâncias poderão acarretar à saúde daqueles que as aspiram;
d) o funcionamento do mecanismo viciante da nicotina no
organismo humano, de forma compreensível aos leigos;
e) a média de nicotina consumida a cada tragada;
f) a quantidade de nicotina necessária para tornar o fumante um
dependente;
g) as mais perigosas substâncias (composição química) – e suas
especificações e características – emanadas da fumaça do
cigarro – mais de 4.700 substâncias tóxicas já foram
identificadas na fumaça do cigarro; h) os malefícios – ao menos
os mais graves – que essas substâncias emanadas da fumaça do
cigarro poderão acarretar ao organismo humano quando
aspiradas;
i) responsável químico pelo produto;
j) as precauções de uso;
k) as contra-indicações e precauções, de modo a indicar,
inclusive, quais pessoas têm mais disposição para adquirir
doenças tabaco-relacionadas.
Noutro norte, deve o Governo Federal insistir na difusão de
campanhas anti-fumo, sempre com a preocupação de utilizar-se de
enfoques apropriados a atingir todas as camadas da sociedade, sobretudo
aquelas mais pobres, por se encontrarem mais suscetíveis de sofrerem
danos advindos do consumo de cigarros.
Dando fecho a esse tópico, é de se salientar que as expectativas
são as melhores possíveis. Afinal, vê-se hodiernamente um trabalho do
Governo Federal direcionado a educar o consumidor brasileiro,
eliminando, de uma vez por todas, o vício/defeito de informação do
cigarro. Ao que tudo indica, esse objetivo será conquistado. Contudo,
mesmo que isso ocorra, tal não significará que aqueles já atingidos pelos
282
males do cigarro, vítimas diretas do aludido defeito informativo, se
encontrarão em situação de desamparo jurídico. Esses ainda poderão se
valer de ações judiciais plenamente capazes de conferir-lhes a reparação
devida.
6 Elementos determinantes da segurança dos produtos
O §1º, do art. 12 da Lei 8.078/90, ao apresentar a definição de
produto defeituoso, arrola alguns critérios que deverão, necessariamente,
ser levados em consideração pelo juiz, no momento de determinar se um
produto é ou não seguro. São eles: a) sua apresentação; b) o uso e os
riscos que razoavelmente dele se esperam; c) a época em que foi colocado
em circulação.
6.1 A apresentação
A utilização do vocábulo apresentação no CDC, feita de forma
diferencial aos termos oferta, publicidade e, até mesmo, informação, ao
que tudo indica, é fruto de equívoco do legislador.
Na verdade, a apresentação
594
nada mais é do que a própria
informação. Denota toda e qualquer informação que cerca o produto, seja
ela proveniente de publicidades, ofertas, embalagens, instruções técnicas,
bulas, etc.
A apresentação do produto refere-se, portanto, aos meios
utilizados pelo fornecedor para cumprir seu dever legal de informar, como
também, às formas criadas para incrementar sua comercialização
(publicidade, oferta, etc.).
O inciso I do § 1º, do art. 12 da Lei 8.078/90 chega a ser uma
repetição do caput, sendo, portanto, dispensável. De qualquer forma,
deve-se ver tal dispositivo como um reforço normativo, justificável pela
594
Segundo leciona Sílvio Luís Ferreira da Rocha, na apresentação do produto inclui-se o modo de
comercialização e a publicidade, que, muitas vezes, por intermédio de declarações genéricas, induzem a
erro o consumidor sobre as verdadeiras qualidades do produto ou omitem advertências sobre os riscos
que derivam do seu uso. (ROCHA, op. cit., 2000. p. 99).
283
importância vital da informação adequada e eficaz para o consumidor
brasileiro, em grande parte, carecedor de recursos financeiros e detentor
de um nível cultural que beira à mediocridade.
Conforme salientado, o CDC é expresso ao prescrever que a
apresentação dos produtos deve
assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e
em língua portuguesa sobre suas características, qualidades,
quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e
origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que
apresentam à saúde e segurança dos consumidores (art. 31).
Há, pois, por parte dos fornecedores, obrigatoriedade expressa
de respeitar algumas características prescritas no artigo supracitado quais
sejam:
a) Corretismo: essa particularidade corresponde, tão-somente, à
aplicação do princípio da veracidade, em que todas as
informações prestadas pelo fornecedor deverão corresponder à
realidade, sendo irrepreensíveis e isentas de erros.
b) Clareza: toda informação fornecida será, obrigatoriamente,
inteligível, de fácil compreensão para o consumidor comum.
c) Precisão: as informações prestadas ao consumidor deverão,
ainda, ser mencionadas de maneira particularizada e específica,
de forma que se evitem confusões interpretativas por parte dos
consumidores.
d) Ostensão: toda e qualquer informação fornecida deverá ser
exibida de forma evidente, de preferência com realces de cor,
letras maiores e, obviamente, em local de fácil percepção para o
consumidor. Não basta, portanto, prestar as informações; elas
deverão, necessariamente, ser vistas pelos consumidores.
e) Vernaculidade: finalmente, o CDC obriga, objetivando o
respeito à clareza da informação, que toda a apresentação seja
fornecida na língua portuguesa.
Todas essas características referem-se a determinados
elementos, também transcritos no art. 31 do CDC. Ou seja, toda a
284
informação do produto, obrigatoriamente correta, clara, precisa, ostensiva
e fornecida em língua portuguesa, será respeitante às suas características,
qualidade, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade,
origem, entre outros dados, assim como aos riscos que apresentam à
saúde e segurança dos consumidores.
Destarte, o dever de informar sempre irá existir, variando sua
complexidade e extensão de acordo com o produto disponibilizado no
mercado de consumo. Em outras linhas, todo produto deverá conter
informações de um ou até de todos os elementos da apresentação, em
conformidade, obviamente, com a sua natureza específica. Um lápis, por
exemplo, não necessita de informações sobre sua composição, garantia e
prazo de validade. Os alimentos e medicamentos deverão vir, obviamente,
acompanhados de tais instruções.
A indústria do tabaco lança seus produtos no mercado sem
observar integralmente o seu dever de informar. Desconsidera várias
peculiaridades da apresentação (clareza, precisão, ostensão, etc.),
omitindo informes absolutamente necessários ao consumidor, referentes
às características do cigarro, qualidade, quantidade, composição, garantia,
prazos de validade, modo de uso, origem e, principalmente, em relação
aos riscos que apresenta à saúde e segurança dos consumidores.
Restringe-se a respeitar normas específicas endereçadas a ela,
apresentando um breve e insuficiente rol de informações.
Deveria a indústria do fumo informar aos consumidores quais
são as substâncias tóxicas ao organismo humano que compõem o cigarro,
a quantidade delas existente em cada unidade do produto, a origem do
fumo utilizado na sua confecção, advertir dos inúmeros malefícios que o
produto nocivo poderá gerar à sua saúde e, finalmente, sugerir um número
de cigarros que poderá ser consumido, diariamente, sem acarretar-lhes
maiores danos. Essas informações deveriam figurar em um prospecto que
acompanharia o maço de cigarros, similar às bulas existentes junto aos
medicamentos
595
.
595
Conforme já salientado alhures, mesmo existindo tais informações, elas seriam insuficientes, em razão
das características econômico-culturais do país. A utilização de imagens é, sem dúvida, indispensável
para informar de maneira adequada e eficiente os consumidores brasileiros.
285
Esquiva-se a indústria do tabaco de respeitar o seu dever de
apresentar as informações sobre o cigarro, em conformidade com o que
prevê o CDC. Tais informes relacionam-se diretamente com a segurança
do consumidor, repercutindo em seus bens jurídicos mais preciosos (saúde
e vida). Obviamente, tal circunstância reforça a existência de
imperfeições no cigarro (de concepção e informação), plenamente capazes
de conferir responsabilidade civil pelos danos oriundos do tabagismo.
6.2 O uso e os riscos que o consumidor razoavelmente espera do
produto
No meio científico, é certo que o consumo de cigarros é fator
preponderante ou, ao menos, coadjuvante para o desenvolvimento de
diversas doenças. Ademais, já se disse que uma corrente mais moderna da
ciência médica vem defendendo a idéia de que o tabagismo, além de ser
responsável por diversas doenças, é ele mesmo uma doença, visão essa
que vem revolucionando as formas de tratamento da dependência dos
fumantes.
Mas, o que os consumidores brasileiros razoavelmente esperam
em relação ao uso e os riscos do cigarro? Será que possuem uma noção, ao
menos razoável, sobre os males que o cigarro gera? Detêm aqueles que se
iniciam no tabagismo a real consciência de que, provavelmente, tornar-se-
ão dependentes de um poderoso psicotrópico e, certamente, terão enorme
dificuldade de se livrarem de tal dependência, se assim um dia
desejarem?
596
596
José Rosemberg, em entrevista conduzida por Drauzio Varela, esclarece: “O grau de dependência varia
de acordo com as características genéticas, coisa que não se sabia até alguns anos atrás. A
metabolização da nicotina ocorre no fígado, num sistema chamado citocromo 450. Normalmente, 80%
dela são metabolizados em 15 minutos. Entretanto, até alguns anos atrás não se sabia que a
metabolização cai quando no DNA um dos 20 alelos, isto é, das 20 variantes do gene CYP2A6 é
heterozigoto ou nulo. Há indivíduos que têm dez desses alelos geneticamente heterozigóticos e, embora
metabolizem menos nicotina e tenham menos propensão para criar dependência, fumam mais. Já se
descobriu, também, que o gene DRD2, quando heterozitótico, confere ao portador compulsão enorme
para o consumo de tabaco e de qualquer outra droga. Indivíduos que têm o gene CYP2A6 consomem
grande quantidade de tabaco e têm no sangue grande quantidade de cotinina, o primeiro metabolito da
composição da nicotina. Quando metabolizam pouca nicotina, têm muita nicotina no sangue e pouca
cotinina, porque, apesar de circular pelo sangue, a nicotina não alcança os outros órgãos. Se a ação da
nicotina for muito forte, há uma pausa negativa na resposta dos centros cerebrais, principalmente do
núcleo acumbens e dos centros dopamínicos (a dopamina é responsável pela sensação e prazer maior).
286
Não acompanham os maços um manual instruindo o consumidor
a fumar
597
. Como se saber a quantidade de cigarros a se fumar ao dia sem
maiores conseqüências à saúde? – se é que isso é possível. Um
medicamento, por menos nocivo que seja, apresenta informes indicando a
psicologia, reações adversas, interações medicamentosas, informações
técnicas, indicações, contra-indicações, precauções e advertências, etc.
Por qual razão um produto sofisticado e complexo como o cigarro, de cuja
fumaça se inalam quase 5.000 (cinco mil) substâncias tóxicas, dentre elas
algumas radioativas, estaria isento de vir acompanhado de tais
informações?
Obviamente, a utilização do produto nocivo fica a critério
exclusivo de seu consumidor, que irá consumi-lo em menor ou maior
número, em conformidade com o estágio de sua dependência.
E o uso que deverá ser o considerado correto para o produto,
para efeitos de valorar sua segurança, é exatamente aquele que infere de
toda informação que o cerca, especialmente a publicitária, destinada a
influenciar o convencimento do consumidor. O risco razoável dependerá,
também, das informações preventivas que devem, obrigatoriamente,
acompanhar o produto perigoso
598
.
Logo, é acertada a idéia de existir um inegável vínculo entre as
informações fornecidas sobre a utilização e riscos de determinado produto
e a segurança desse mesmo produto. E a indústria do fumo não cumpre
adequadamente seu dever legal de informar, restringindo-se a honrar
normas específicas confeccionadas para ela. Não basta, porém, o respeito
Como isso aumenta a vontade de fumar e a ansiedade, a pessoa precisa fumar de novo para compensar
as unidades que foram sideradas. Há mais de cem anos, o grande poeta e escritor Oscar Wilde definiu o
cigarro como objeto do prazer requintado, mas que deixa descontente. Hoje, conhecemos a explicação
genética desses efeitos: a queda da dopamina provocada pela fase negativa dos centros nervosos faz
com que o fumante se sinta mal e precise fumar outra vez.” (Disponível em: <www.drauziovarella.com.
br/entrevistas/nicotina2.asp>. Acessado em 02/05/2006).
597
O respeitável jurista Silvio Luís Ferreira da Rocha assevera, acertadamente, que, nos defeitos de
informação os produtos apresentam uma defeituosidade formal, porque o defeito não é intrínseco ao
produto, mas é insuficiente ou errônea a informação sobre o uso adequado do produto. Os defeitos de
informação são, pois, vícios extrínsecos, não ínsitos ao produto. O fornecedor deve apresentar, de forma
explícita, clara e sucinta, as advertências e instruções exigíveis segundo o uso razoavelmente previsível
do produto. As advertências e instruções devem ser dadas, obrigatoriamente, no idioma das pessoas a
que se destinam os produtos, em linguagem simples e compreensível para o grande público e devem
esclarecer cabalmente o que fazer e o que não fazer quanto ao seu emprego, chamando a atenção para o
eventual perigo resultante de um mau uso. (ROCHA, op. cit., 2000. p. 103).
598
MARINS, op. cit., 1993. p. 125-126.
287
a tais normas específicas; as normas gerais, entabuladas pelo CDC,
também devem ser observadas, de sorte a conferir ao consumidor um
catálogo de informações suficientemente preciso, para outorgar-lhe a
possibilidade de realizar escolhas conscientes, entre fumar e não fumar,
tornar-se um dependente de nicotina ou não, ter uma vida mórbida ou
saudável.
Faz-se mister trazer à memória que o Direito é uma ciência
construída para a manutenção da paz social, cujas interpretação e
aplicabilidade deverão sempre considerar a situação social, econômica e
cultural da população à qual as normas legais se aplicam. Nesse viés, a
Fundação Getúlio Vargas, em 2001, apresentou um estudo, evidenciando
que, no Brasil, 50 milhões de pessoas vivem com menos de R$ 80,00
(oitenta reais) por mês. Cerca de 45% (quarenta e cinco por cento) desses
indigentes têm menos de 15 anos de idade, o que representa um exército
de 22,5 milhões de jovens miseráveis, segundo um levantamento feito no
mesmo estudo
599
.
Logicamente que essa miséria em que se encontra grande parte
da população nacional deve ser observada por aqueles responsáveis pela
aplicação do Direito. E, diante de tal infeliz realidade, não há como se
advogar, com sucesso, a tese de que, no Brasil, o consumidor,
genericamente considerado, teria plena consciência sobre a natureza do
cigarro e os riscos à saúde que seu consumo acarreta.
Recorde-se que as estatísticas demonstram que as camadas mais
pobres da população tendem a fumar em maior quantidade. Uma
reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, escorada em
dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, aponta que o jovem brasileiro
começa a fumar entre 10 a 12 anos, sendo que a proporção de fumantes é
duas vezes maior entre grupos com menor escolaridade. A mesma
reportagem trouxe a informação de que, no Brasil, famílias com
orçamento igual ou inferior a R$ 400,00 (quatrocentos reais), gastam
cinco vezes mais da renda familiar com tabaco, do que as com renda
acima de R$ 6.000,00 (seis mil reais). E mais: famílias com orçamento
599
Disponível em <www.uj.com.br>. Acessado em 02/05/2006.
288
inferior ou igual a R$ 400,00 (quatrocentos reais) gastam duas vezes mais
com cigarro do que com educação
600
.
Tal panorama, por certo, evidencia uma real necessidade de se
reforçar os informes para atingir todo e qualquer integrante da sociedade,
notadamente a classe menos abastada econômica e culturalmente, sendo
ilusória a crença de que o consumidor brasileiro, em geral, possui amplo
conhecimento acerca da natureza, uso e riscos a que está sujeito ao
consumir cigarros. As imagens, hoje inseridas nos maços, retratando os
males do fumo, são uma conquista óbvia. Mas não bastam para garantir a
informação adequada e eficiente acerca do consumo do produto nocivo.
Na comparação com a insidiosa e falsa publicidade antes
difundida pela mídia, que atingia diariamente milhões de pessoas, a
verdade sobre o fumo praticamente ficava sem eco, restrita a um público
extremamente limitado e circunscrito aos congressos, simpósios,
palestras, etc
601
.
O consumidor, ao adquirir um produto, objetiva
primordialmente os benefícios que ele poderá lhe proporcionar,
justamente aqueles benefícios difundidos por meio da apresentação do
produto, através de ofertas publicitárias ou outras técnicas informativas.
No caso do cigarro, não parece ser equivocado afirmar que o
consumidor também busca, no início de uma longa vida vinculada ao
tabaco, mesmo que inconscientemente, aquelas qualidades, situações ou
estilos de vida já retratados pela publicidade comercial do cigarro
602
, que
ainda hoje permanecem no subconsciente de muitos indivíduos.
Evidentemente, tais benefícios são meramente fictícios, criados com o fito
exclusivo de seduzir consumidores e engordar as contas bancárias da
indústria do fumo, e, em nada, se assemelham aos verdadeiros rumos a
que o consumo do cigarro levará o fumante: a uma vida mórbida ou a
provável mortalidade.
600
SAÚDE. O Estado de São Paulo, A10, Geral, Números da epidemia. Terça-feira, 1 de junho de 2004.
601
TABAGISMO. A Epidemia do Século. Revista Jovem Médico, v. 6, São Paulo: Grupo Editorial Moreira
Jr., fev./mar. 2001. p. 7.
602
Os efeitos da restrição à publicidade, no Brasil, já se mostram visíveis. Em 2001, a Souza Cruz vendeu
87 bilhões de cigarros. No ano de 2004, foram 74 bilhões, ou seja, menos 13 bilhões de cigarros. O lucro
líquido apresentou queda nos últimos dois anos. Caiu de R$ 960 milhões em 2002, contra R$ 732
milhões em 2004. (TEICH, Daniel. Fumo amarga a falta de publicidade. Economia. B10. O Estado de
S.Paulo. Domingo, 5 de junho de 2005).
289
Não se olvide, ainda, que a indústria do fumo, na divulgação de
seus produtos, não se limitou a divulgar publicidades diretas. Valeu-se,
outrossim, de técnicas publicitárias sutis e muito sedutoras. Hoje já se
sabe, por exemplo, que diretores e atores de cinema receberam cachês da
indústria do tabaco, num plano de publicidade para aumentar as vendas
de seus produtos. A informação é de um estudo publicado numa das
edições da revista “Tobacco Control”, vinculada à British Medical
Association, baseado em 1.500 documentos reservados da indústria do
tabaco, que foram tornados públicos em 1998, depois do acordo do setor
com o Departamento de Saúde norte-americano. Como exemplo, cite-se a
cena em que a personagem Betty Boop vende maços de cigarros no filme
“Uma Cilada para Roger Rabbit”, de Robert Zemeckis; ou, ainda, a cena
em que Sean Connery, na pele de James Bond, acende um cigarro com
prazer em “007 – Nunca Mais Outra Vez”. O mesmo fizeram Paul Hogan
em “Crocodilo Dundee”, Bruce Willis, no primeiro “Duro de Matar” e
vários personagens de “Grease – Nos Tempos da Brilhantina” e “Wall
Strett. A lista inclui, nada menos, que 188 atores e diretores que
receberam pagamento da indústria do fumo entre, pelo menos, 1978 e
1988. Só a Philip Morris teve a divulgação de seus produtos em 191
filmes no período. O acordo era interrompido se os cigarros não fossem
mostrados de forma positiva. O plano previa, aind, medidas menos
explícitas e mais prosaicas, como o envio de pacotes de cigarro para a
casa ou o set de filmagem de notórios atores fumantes como Jerry Lewis e
Liv Ullmann e diretores como John Cassavetes, na esperança de que eles
fumassem em cena ou aparecessem na imprensa com um cigarro. É bom
que se diga: não há provas de que a indústria do tabaco tenha abandonado
o acordo feito com o governo americano no começo dos anos 90, segundo
o qual se comprometeu a não mais pagar por merchandising de seus
produtos em filmes e na TV
603
.
603
DÁVILA, Sérgio. Atores receberam para fumar em filmes. Saúde. Mundo. Folha de S.Paulo, quarta-
feira, 13 de março de 2002. A11. “Uma pesquisa realizada pelo Centro de Câncer de Norris Cotton
(EUA) demonstrou que a proposta, firmada voluntariamente pela indústria do cigarro, em 1989, de
não veicular imagens de celebridades de Hollywood fumando em produções cinematográficas, jamais
foi respeitada. Especialistas afirmam que a associação do cigarro com imagens atraentes de aventura
e glamour é um poderoso estímulo para o seu consumo, sobretudo entre o público jovem, que se
identifica com situações dessa natureza, por estar em fase de formação de personalidade. Foram
290
No esporte, a indústria de cigarros sempre encontrou uma forma
eficaz de formar e consolidar sua imagem. Uma das mais famosas relações
entre publicidade tabagista e esporte no Brasil aconteceu na década de 70.
O tricampeão mundial Gerson imortalizou o slogan “Você também gosta
de levar vantagem em tudo, certo?” e acabou gerando a famigerada “lei
de Gérson”. A fabricante dos cigarros Vila Rica, dos quais era garoto-
propaganda, certamente alegrou-se com o sucesso. Atletas ligados ao
futebol também ajudaram a difundir o cigarro, mas apenas pelo uso. Uma
listagem rápida contabiliza o holandês Cruyff, o inglês Gascoigne, o
francês Platini, o dinamarquês Elkjaer-Larsen, o italiano Riva, os
argentinos Ardiles e Passarella e o brasileiro Sócrates. Eles não só
assumiam o vício como se deixavam fotografar com cigarros entre os
dedos. O maior símbolo de ligação esporte-tabaco, no entanto, está na F-
1. Dezenas de pilotos já colocaram sua imagem a serviço das empresas,
também patrocinadoras de suas equipes e eventos da modalidade. A Philip
Morris, fabricante do cigarro Marlboro, por exemplo, já patrocinou
Emerson Fittipaldi,
604
Ayrton Senna, Raul Boesel e Rubens Barrichello,
entre os brasileiros. Em outras categorias do automobilismo aparecem Gil
de Ferran, Hélio Castro Neves, Tony Kanaan etc. Fittipaldi chegou até a
fazer lobby no Congresso pela não proibição da publicidade tabagista
[...]
605
.
Ainda se referindo à forte relação entre esporte e publicidade
tabagista, interessante mencionar o exemplo de Liu Xiang, atleta que
surpreendeu o mundo em Atenas ao triunfar nos 110 metros com barreiras
analisados os 25 filmes de maior audiência entre 1988 e 1997. Desses, cerca de 85% continham cenas
de tabagismo, o que representa quase a mesma proporção registrada antes do acordo. O estudo ainda
indica que a veiculação das marcas é quase tão freqüente nos filmes adolescentes quanto nos voltados
para o público adulto. Nos filmes infantis, o índice é de 20%.” (Multinacionais do cigarro e cinema
hollywoodiano continuam associados. Disponível em <http://www.inca.gov.br/atualidades/ano10_1/
multinacionais.html>. Acessado em 22/07/2005).
604
O bicampeão mundial de Fórmula-1 e campeão da Indy, Emerson Fittipaldi, virou marca de charuto. Foi
lançado em Miami o “Fittipaldi Cigar”. Trata-se de um empreendimento de Fittipaldi em conjunto com
uma loja especializada no assunto, a Macabi Cigar Store, líder do setor no sul da Flórida. Um fato
curioso é que, mesmo sem fumar, Emerson foi patrocinado, na Fórmula I, por mais de 20 anos, pelos
cigarros Malboro, fabricados pela Phillip Morris. No entanto, nunca foi fotografado com um cigarro nas
mãos. Agora, Fittipaldi decidiu seguir outra linha e posou fumando um dos charutos que levam o seu
nome. (Emerson vira marca de charuto. Disponível em: <http://www.inca.gov.br/atualidades/ano6_2/
emerson.html
>. Acessado em: 22/07/2005).
605
Atletas ajudam empresas a forjar imagem e marca. Folha de S.Paulo. Esporte. Sexta-feira, 22 de outubro de
2004. D2.
291
e igualar o recorde mundial – 12s91. Com o ouro no peito, virou
celebridade na China e sinônimo de sucesso. A indústria do tabaco não
perdeu tempo. Atualmente, o jovem encontra-se a serviço do cigarro. Na
contramão do movimento que tenta desvincular a imagem do tabaco da
prática esportiva, o corredor assinou contrato para ser garoto-propaganda
do grupo Baisha, a principal companhia de cigarros da China
606
.
Obviamente que toda essa técnica publicitária, verdadeiramente
insidiosa, abusiva e enganosa, difundida pela indústria do fumo anos e
anos a fio, prejudica, ainda hoje, o consumidor brasileiro, criando dúvidas
em seu subconsciente, induzindo-o a subestimar os malefícios gerados
pelo consumo de cigarros.
Embora há décadas a comunidade científica venha alertando
sobre a gravidade do problema, a publicidade do cigarro nunca refletiu
essa realidade. Ao contrário, intencionalmente, retratava o produto como
um ingresso à vida adulta, um passaporte ao sucesso, ou ainda, um meio
de irradiar sexualidade. Por mais que o consumidor tivesse ciência de que
o cigarro causasse danos à saúde, a divulgação de tais publicidades
acabava por iludi-lo, fazendo-o colocar em dúvida essa nocividade; o
consumidor sempre era levado a acreditar que o cigarro não era tão
prejudicial
607
. Os efeitos deletérios da bomba publicitária armada e
detonada no País serão, ainda por algum tempo, sentidos pela sociedade.
606
Herói chinês rema contra onda e vai vender cigarro. Folha de S.Paulo. Esporte. Sexta-feira, 22 de
outubro de 2004. D2.
607
“Uma das questões que merece atenção especial dos países em desenvolvimento é a tática de marketing
utilizada pela indústria do tabaco. No Brasil, como em outros países, a publicidade dos derivados do
tabaco associa o fumar a imagens de rebeldia, aventura, bom desempenho sexual e esportivo, sucesso,
beleza, independência e liberdade, com o intuito de fazer com que o público, sobretudo o jovem,
identifique-se com tais mensagens. Sob a alegação de estarem desenvolvendo campanhas para apoiar
a legislação que proíbe a venda do cigarro para menores de 18 anos, as indústrias lançam campanhas
publicitárias, associadas à cidadania, com mensagens de duplo sentido, para despertar na população
jovem o desejo de fumar. Esse tipo de estratégia foi implementada no Brasil, em 1998, junto às escolas
do Paraná e do Distrito Federal, onde foram distribuídos folhetos explicativos, cartazes e adesivos com
os dizeres: Para comprar cigarros, tem que ter 18 anos - Isso é legal / Fumar é uma decisão adulta. /
Carteira de cigarro só com carteira de identidade. / Cigarros: Adultos podem escolher. Jovens devem
esperar. A ambigüidade destas frases é clara, pois a mesma mensagem que diz ser proibida a venda de
cigarros para adolescentes com menos de 18 anos, também quer dizer que poder comprar um maço de
cigarros a partir desta idade é um ato de independência, uma decisão adulta. Isto incentiva o consumo
de cigarros, na medida que provoca no jovem o desejo de auto-afirmação. Outra estratégia da
indústria do fumo é o patrocínio de eventos culturais (sobretudo os de música), esportivos e de
programas escolares, como Hortas Escolares e Clube da Árvore, desenvolvidos na Região Sul, onde
ocorrem 96% do plantio do tabaco no Brasil. Somente o programa Hortas Escolares, no ano de 1999,
envolveu 3.700 escolas no meio rural, com 120 mil alunos, 5 mil professores, abrangendo 269
292
Não é à toa que a indústria do tabaco gasta, anualmente,
milhões de dólares em publicidade, que tem como objetivo levar aos
fumantes, e possíveis fumantes, seus produtos, com o fim de manter e
captar novos clientes – isso ainda hoje, depois de restringida legalmente a
divulgação de informes publicitários de cigarros. Esta é a finalidade
inegável da publicidade, como também é inarredável seu poder de
persuasão em relação aos consumidores, tanto que hoje o direito começa a
olhar, com mais cuidado, as práticas publicitárias, disciplinando a
atividade
608
.
A publicidade, hoje, controla a economia, induzindo, muitas
vezes, inclusive o mais esclarecido dos consumidores a comprar ou
realizar alguma modalidade de contrato que não quer ou que não pensa em
fazer. A publicidade trabalha com a massa e tem um efeito perverso na
economia: troca a necessidade do objeto pela necessidade do consumo, e o
consumidor não tem mais soberania sobre seus atos, que passam a ser
moldados de acordo com os interesses das empresas
609
.
Decerto, todo esse contexto, integrado pela ausência de
informações – verdadeiras, precisas, ostensivas e eficazes –, informes
falsos divulgados por meio de sofisticadas técnicas publicitárias e o nível
social, econômico e cultural da sociedade brasileira, deve ser levado em
consideração, para se determinar a intensidade do conhecimento do
consumidor quanto ao uso e riscos do cigarro. E – acredita-se – a
conclusão mais coerente com essa realidade é a de que o consumidor
ainda não se encontra suficientemente esclarecido acerca da natureza, uso
e riscos gerados pelo consumo de cigarros
610
.
municípios. Para enfrentar as ações da indústria do tabaco, os valores socioculturais e de
comportamento de nossa sociedade devem ser revistos. Isto só será possível se estimularmos o senso
crítico da população em geral, sobretudo dos jovens para que, desse modo, as estratégias de marketing
das companhias de tabaco possam ser neutralizadas”. (Marketing garante o sucesso do cigarro.
Disponível em <http://www.inca.gov.br/atualidades/ano8/marketing.html>. Acessado em 22/07/2005).
608
RAMOS, op. cit., 2005.
609
Ibid., 2005.
610
E no caso daqueles que fumam há anos e, sem dúvida, possuem um conhecimento percuciente a respeito
dos males do cigarro, a exemplo de alguns médicos tabagistas? Existiria, mesmo assim, um dever de as
indústrias do tabaco indenizá-los? A resposta é positiva. Dados estatísticos comprovam que a maioria
dos fumantes começou a fumar quando criança ou adolescente. Assim, mesmo que na vida adulta e,
após anos de estudos, determinado indivíduo, fumante desde a adolescência, venha a se tornar o mais
conceituado pneumologista, sua manifestação de vontade estaria tolhida, como resultado da
dependência causada pela nicotina. Além disso, não se pode perder de vista que a nicotina, se
293
6.3 A época em que foi colocado em circulação
Há, segundo os termos do inciso II do art. 12 da Lei 8.078/90,
que se observar, para avaliar a segurança de um produto, a época em que
foi colocado em circulação.
Trata o Código, nesse momento, da teoria dos riscos em
desenvolvimento, isto é, “daqueles riscos que correm os fornecedores por
defeitos que somente se tornam conhecidos em decorrência dos avanços
científicos posteriores à colocação do produto ou serviço no mercado de
consumo”
611
.
James Marins ensina que, levando-se em conta a época em que o
produto foi colocado no mercado, não poderá haver legítima expectativa
de segurança que vá além da ciência existente; ou seja, qualquer
expectativa de segurança somente será legítima se não pretender que o
produto possa superar o próprio grau de conhecimento científico existente
no momento em que se deu sua introdução no mercado
612
.
Pode-se afirmar que o CDC não adotou a teoria dos riscos de
desenvolvimento, sendo esses considerados defeitos juridicamente
irrelevantes, servindo-se, portanto, de excludentes de responsabilidade do
fornecedor
613
.
No que se refere ao tema em destaque, a indústria do tabaco
certamente não auferiria êxito ao tentar se valer de tal excludente, em
ações indenizatórias promovidas contra ela. Isso porque com o surgimento
dos famigerados documentos secretos, restou evidente que a indústria do
fumo, já há mais de quatro décadas, detém conhecimentos sobre a
capacidade psicotrópica da nicotina e do fato de que o tabagismo acarreta
câncer.
Nesse prisma, em detendo a indústria do fumo conhecimentos
sobre a capacidade mórbida e mortífera de seu produto, décadas e décadas
demonstrada sua condição de substância psicotrópica, configurará um defeito de concepção, o que, por
si, já é motivo suficiente para responsabilização civil das indústrias do fumo.
611
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit., 1999.
p. 163.
612
MARINS, op. cit., 1993. p. 136.
613
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit., 1999.
p. 137.
294
atrás, decerto que qualquer tentativa de se obter uma decisão elidindo a
sua responsabilidade, com base no inciso III do art. 12 da lei n. 8.078/90,
seria absolutamente inócua.
7 A convenção-quadro para o controle do tabaco e a responsabilidade
civil
Por unanimidade, foi aprovada, em 21/05/2003, pelos 192
Estados membros da Organização Mundial de Saúde, em Genebra, Suíça, a
Convenção-Quadro para o controle do tabaco (Framework Convention on
Tobacco Control). Trata-se do primeiro tratado internacional de saúde
pública já elaborado, constituindo-se em estágio avançado de um
processo, iniciado há algum tempo pela Organização Mundial de Saúde,
no sentido de se buscar conceder um tratamento internacional a um
problema global
614
.
Durante a negociação do texto, alguns temas logo se revelaram
mais polêmicos e demandaram um trabalho de negociação mais exaustivo,
com a finalidade de se obter consenso, destacando-se, entre eles: a)
publicidade, promoção e patrocínio de produtos derivados de tabaco; b)
política de taxação de cigarros; c) empacotamento e embalagem dos
produtos derivados do tabaco; d) comércio ilícito; e) recursos financeiros;
f) relação entre comércio e saúde; e g) responsabilidade civil e
indenização dos fumantes acometidos por doenças relacionadas ao
fumo
615
.
São esclarecedores os comentários de Amanda Flávio de
Oliveira sobre a Convenção-Quadro, especialmente naquilo que respeita à
responsabilidade civil:
Outro aspecto em que pôde ser verificada muita dificuldade em
se obter consenso, é o tema da responsabilidade das empresas.
Antes de qualquer outro comentário, é preciso que se verifique
que a mera discussão sobre a inserção ou não, do tema, no
texto do tratado, nada mais representa que o reconhecimento,
614
OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Controle internacional do tabagismo – a celebração da convenção-quadro para
o controle do tabaco. Revista de Direito do Consumidor, n. 56. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
p. 12.
615
Ibid., p. 14.
295
pelos Estados e pela OMS, da importância da responsabilidade
(e das indenizações) como medida de controle do tabagismo,
muito embora ações judiciais nesse sentido somente tenham
resultados expressivos nos Estados Unidos. Para subsidiar as
discussões sobre o assunto, o item então denominado
“Responsabilidade e Indenização” foi objeto, em abril de 2001,
de uma reunião especial, entre especialistas. Muitos países
advogavam a tese de que o tema deveria ser descartado do
texto do tratado, argumentando tratar-se de uma questão de
direito privado sendo inserida em um contexto de direito
público. O resultado final foi um texto enfraquecido pela
redação repleta de ressalvas, principalmente se comparado ao
texto do Presidente apresentado na 5ª. Sessão do OIN. Além
disso, a expressão “Indenizações” foi eliminada do título da
Parte VI e do art. 19, que tratam do assunto. Entretanto, sua
mera inserção no texto final é significativa e pode ser
interpretada como reconhecimento, pelos Estados, da
importância dos litígios como instrumento para o controle do
tabagismo.
Esse o teor do art. 19, I, da Convenção:
Para fins de controle do tabagismo, as Partes adotarão medidas
legislativas ou promoverão suas leis vigentes, quando seja
necessário, para tratar da responsabilidade penal e civil,
inclusive a indenização, quando pertinente
.
Conquanto tímida a normatização acerca da responsabilidade
civil, inserida no corpo da Convenção-Quadro para o controle do tabaco,
não houve nela, evidentemente, abono à absurda tese da
irresponsabilidade da indústria do tabaco. Ao contrário, a Convenção
deixou “as portas abertas”, aceitando a possibilidade de indenizações a
fumantes acometidos por doenças tabaco-relacionadas.
E, no que diz respeito ao Brasil, sequer haverá necessidade de
se promulgar novas legislações destinadas a regulamentar a matéria,
mormente porque o ordenamento jurídico encontra-se devidamente
aparelhado para o enfrentamento justo de questões indenizatórias
envolvendo fumantes e a indústria do tabaco, seja com base na
responsabilidade pelo fato do produto, seja ainda tendo por alicerce a
teoria do abuso do direito.
296
8 Análise da matéria à luz do Superior Tribunal de Justiça
Nem a doutrina, nem a jurisprudência, se pacificaram acerca do
tema defendido nesse trabalho – as divergências são várias. E isso
especialmente por razões vinculadas ao direito intertemporal. Afinal, a
grande maioria dos consumidores, hoje vítimas de doenças tabaco-
relacionadas, iniciaram-se no tabagismo décadas atrás, bem antes da
publicação do CDC. Discute-se se, em ações envolvendo fumantes (ou
seus familiares) e a indústria do fumo, a Lei n. 8.078/90 é aplicável e, por
conseqüência, se é também aplicável a norma pertinente à
responsabilidade pelo fato do produto.
O Superior Tribunal de Justiça, contudo, já teve oportunidade
de se manifestar acerca do tema. Na ocasião, discutiu-se qual seria o
prazo prescricional a incidir numa ação indenizatória promovida por um
fumante contra a Souza Cruz S/A., se aquele estabelecido no art. 27 do
CDC (cinco anos), ou se aquele outro, prescrito no art. 177 do CC de
1916 (vinte anos). Prevaleceu a prescrição prevista no CDC.
O Ministro Humberto Gomes de Barros, relator do recurso
especial n. 304.724-RJ, afirmou categoricamente, referindo-se ao caso sob
sua apreciação, que a responsabilidade por fato do produto é de natureza
consumerista, havendo regulamentação própria e específica desse vício na
relação de consumo, de modo que a ação de reparação, seja material ou
moral, prescreve em cinco anos, na forma do art. 27 do CDC.
Na mesma seara, o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito
esclareceu:
[...] Neste feito, especificamente, sob todas as luzes, trata-se
de indenização por fato do produto e, se é por fato do produto,
evidentemente não se pode aplicar a prescrição do direito
comum; aplica-se a prescrição do Código de Defesa do
Consumidor, no caso, a prescrição do art. 27
616
.
Deveras, esse julgado não tratou apenas do tema prescrição.
Conquanto tenha sido esse o seu objeto central, seu alcance é bem mais
616
Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 304.724-RJ, 3ª. Turma, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, j.
24/05/2005. Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acessado em 06/02/2006.
297
largo, na medida em que, por reflexo, a mais alta Corte do País acabou
por aceitar a tese de que a relação estabelecida entre fumantes e a
indústria do fumo é verdadeiramente uma relação de consumo, e que,
portanto, as ações de indenização movidas pelos primeiros contra a última
deverão ser apreciadas, com base na teoria da responsabilidade civil pelo
fato do produto.
Em outros termos, o Superior Tribunal de Justiça acatou a tese
defendida nesse Capítulo, aceitando a possibilidade de julgamentos de
procedência em prol de fumantes acometidos por enfermidades advindas
do consumo do tabaco, sob um fundamento exclusivamente pautado em
normas consumeristas.
9 Pressupostos da responsabilidade civil por acidentes de consumo
aplicáveis ao tema em estudo
De modo a concluir esse Capítulo, reforce-se a idéia de que a
Lei n. 8.078/90 é a legislação aplicável na solução de crises judiciais
envolvendo consumidores e a indústria do tabaco, pelos danos gerados aos
primeiros em razão do tabagismo – o próprio Superior Tribunal de Justiça
já se manifestou nesse sentido.
O ato ilícito motivador da responsabilidade civil da indústria do
fumo reside nas imperfeições, intrínsecas e extrínsecas, do cigarro, muito
embora a doutrina e jurisprudência ainda venham analisando
cautelosamente o assunto.
As provas do(s) dano(s) e do nexo causal entre o(s) dano(s) e o
consumo de cigarros, em regra, pertencem ao consumidor (ativo, passivo,
ou familiares, em caso de morte).
Estará o promovente dispensado de demonstrar a existência de
defeitos no produto nocivo para obter sucesso numa ação indenizatória
dessa natureza, porquanto a prova da sua inexistência, por expressa
determinação legal, caberá sempre ao fornecedor que pretenda se ver
eximido da responsabilidade reparatória. Há de se constatar haver uma
presunção legal de existência do defeito, essa que favorece o consumidor
na tutela de seus direitos. Ao consumidor caberá, pois, alegar a presença
298
do defeito de concepção do cigarro; à indústria do fumo competirá a
efetiva demonstração da inexistência de tal defeito. Interessante notar
que, aqui, será estéril a tentativa de se provar que a nicotina não é uma
substância viciante, isso com o fito de descaracterizar a existência do
defeito de concepção. E isso porque a ciência oficial e a própria indústria
do tabaco têm a questão por solucionada. É de se dizer que a discussão
sobre a nicotina ser ou não caracterizada como uma imperfeição jurídica
existente nos cigarros, permanecerá no plano do Direito, e não no dos
fatos. Nada há de se provar, por ser notória a capacidade psicotrópica da
nicotina.
Já com relação ao defeito de informação, deverá a indústria do
tabaco demonstrar, cabalmente, que o consumidor/fumante exerceu uma
escolha consciente ao iniciar-se no consumo de cigarros, já que detinha
ele o catálogo de informações essenciais para assim agir. Prova
extremamente dificultosa, sobretudo em razão do passado negro da
indústria do fumo (omissão de informações, publicidades sedutoras e
insidiosas, bombardeando, dia-a-dia, o consumidor, etc.).
CAPÍTULO VII
ABUSO DE DIREITO
617
1 Introdução
Para aqueles que entendem como inaplicáveis as normas do
CDC em demandas envolvendo postulações indenizatórias, formuladas por
fumantes (ativos ou passivos) – ou familiares desses, ou entidades
legitimadas para tanto –, em função dos danos a eles causados pelas
doenças oriundas do consumo, direto ou indireto, do tabaco – o que se
entende inaceitável, diga-se –, uma outra fundamentação também se
mostra perfeitamente adequada para se impingir à indústria do fumo
responsabilidade civil
618
.
A elaboração desse novo capítulo nasceu da necessidade de se
alicerçar, de maneira ainda mais sólida, a tese de que a indústria do
tabaco é, realmente, responsável pelos danos que seus produtos causam
617
Esse capítulo não se refere às fabricantes de cigarros de um modo geral. Em verdade, envolve apenas
aquelas cujas condutas foram desmistificadas pelos famigerados documentos secretos da indústria do
fumo.
618
É de se dizer que, mesmo que se entenda aplicável o Código de Defesa do Consumidor, nada impede a
utilização de outras legislações para fundamentar pretensões indenizatórias, servindo elas como
complemento aos dispositivos contidos na Lei consumerista, argumento esse que se aplica, obviamente,
também ao Código Civil de 2002. Para melhor compreender a relação entre o Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil de 2002, é de imprescindível leitura o brilhante trabalho de Cláudia Lima
MARQUES, intitulado “Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de
coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002”, publicado na Revista
de Direito do Consumidor n. 51, São Paulo: Revista dos Tribunais, [s.d.].
300
àqueles que os consomem, ou se expõem a sua fumaça tóxica. Esse novo
labor doutrinário mostrou-se imprescindível, notadamente porque algumas
vozes, valendo-se de teses respeitadas, insistem em pregar a
imprestabilidade do CDC para regular as relações entre a indústria do
tabaco e os fumantes. E, para tanto, fundam-se praticamente no fato de
que os tabagistas (ou fumantes passivos) principiaram o vício (ou estavam
expostos à fumaça nociva do cigarro) anos antes da publicação dessa
magnífica legislação. Vale lembrar que já se defendeu, especificamente
no capítulo V desse trabalho, a aplicação imediata do CDC em ações
ajuizadas por fumantes (passivos ou ativos) – ou seus familiares ou
entidades legitimadas – contra a indústria do tabaco, objetivando,
justamente, o ressarcimento civil pelas lesões advindas do consumo de
produtos fumígenos. Pouco importaria, nessa ótica, que o CDC tenha sido
publicado tempos depois de o vício pelo fumo ter se instalado no
organismo do fumante – o que realmente mostra-se relevante é o fato de a
doença tabaco-relacionada ter sido descoberta após a publicação da Lei
consumerista.
O Direito não se enquadra no rol das ciências exatas. Nele, a
dialética encontra porto seguro. Daí a conveniência de se criarem novas
argumentações voltadas a rechaçar teses que, na ótica do pensador,
parece-lhe intolerável. Seriam como pequenas sementes semeadas no solo
fértil da ordem jurídica, essas que depois de aguadas e adubadas,
certamente produzirão germinações de grande valia à sociedade.
Tratar-se-á, aqui, da teoria do abuso de direito. Decerto se
perceberá ser ela capaz de estear, de maneira firme – talvez até mais
firme do que aquelas razões fundadas exclusivamente na Lei consumerista
–, pretensões de ressarcimento civil endereçadas às empresas do tabaco.
2 Breve esboço histórico
A doutrina do abus du droit é velha nas suas origens,
encontrando em vários textos do direito romano o fundamento de sua
afirmação. Entretanto, tais textos muitas vezes se contradizem, afirmando
uns o princípio de um absolutismo sem peias no exercício dos direitos
301
(concepção individualista do direito), sendo que outros representam a
consagração dos princípios modernos da relatividade dos direitos, do seu
exercício social (teoria medieval da aemulatio)
619
.
Conquanto controvertida a questão de se saber se no direito
romano vigorava a proibição do ato emulativo, prevalece a opinião
segundo a qual, já naquela época, se observava um desenvolvimento
gradual para se limitar o uso abusivo do direito de propriedade,
notadamente quando o seu exercício pautava-se no ânimo de lesar alguém
sem qualquer utilidade própria para o agente – esse o escólio, dentre
outros, de Josserand
620
e Alexandre Augusto de Castro Corrêa.
621
Destarte,
predomina o entendimento de que, já no direito romano, havia germes de
uma teoria geral do abuso do direito, na medida em que não se permitia o
exercício de direitos, quando pautado numa intenção manifesta de se lesar
alguém.
A teoria do aemulatio – segundo a qual o ato praticado com
intenção maligna de lesar e sem uma utilidade própria acarretava
responsabilidade ao agente – encontrou seu maior desenvolvimento no
direito medieval, alastrando-se não só às matérias de direitos reais, senão
às relações obrigacionais. Em verdade – esclarece Leonardo Mattietto,
citando Ugo Gualazzini –, foi somente na Idade Média que o problema do
abuso do direito começou a se delinear, nos moldes de uma teoria voltada
a definir os limites do uso do próprio direito, de modo e forma que não
resultem dano ou moléstia a outrem, sem uma própria vantagem real ou
concreta
622
.
A doutrina que pregava a proibição dos atos emulativos acabou
se alargando, para alcançar não apenas aqueles atos praticados com
animus aemulandi, devidamente provados; em várias circunstâncias,
admitiu-se uma série arbitrária e indefinida de presunções diretas para
demonstrar a existência do mesmo animus aemulandi, deduzindo-o da
619
LIMA, op. cit., 1999. p. 207.
620
JOSSERAND, Louis. De l’esprit des droits et de leur relativité: théorie dite de l’abus des droits. Paris:
Dalloz, 1927.
621
CORRÊA, Alexandre Augusto de Castro. Abuso de direito (direito Romano). In: Enciclopédia Saraiva
do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 2.
622
MATTIETTO, Leonardo. Do abuso de direito: perfil histórico da teoria. Disponível em
<http://www2.eu rj.br/~direito/publicacoes/mais_artigos/do_abuso_de_direito.html>. Acessado em
22/03/2005.
302
existência ou não de um interesse legítimo no cumprimento do ato que se
desejava impedir. Desta forma, incluíram-se entre os atos emulativos
aqueles que denunciavam um mínimo interesse relativamente ao ato que
se desejava impedir
623
.
Modernamente, foram pioneiros os textos legislativos do Código
Civil da Prússia (1974), estabelecendo, de maneira clara e precisa, um
princípio genérico proibindo o abuso do direito, extensivo a todos os
direitos em geral. Ademais, referido Código limitava o exercício do
direito de propriedade, dentro do mesmo critério de proibição dos atos
emulativos – ressalte-se que foi principalmente nas relações entre
proprietários, nos direitos de vizinhança, que a proibição do ato emulativo
teve numerosas aplicações
624
.
O Código de Napoleão, criado sob o fundamento de igualdade
perante a lei e sob uma concepção individualista, representa um sistema
de direitos absolutos. O direito, então, seria um poder que emana da lei,
como vontade geral, ou da vontade particular, nas suas múltiplas
manifestações em atos jurídicos. Exercê-lo em toda a sua amplitude, ainda
que violando terceiros, é prerrogativa amparada por lei – muito embora
vigorassem dispositivos esparsos proibindo a prática de atos emulativos.
Dentro desta concepção atomística da sociedade, elevando o indivíduo
como um ser abstrato, isolado, senhor irrestrito dos seus direitos, não se
enquadrava um princípio genérico de restrição do exercício dos
direitos
625
.
A jurisprudência amotinou-se contra a rigidez dos princípios
individualistas do Código de Napoleão, agitando-se rapidamente contra o
exercício intencionalmente malicioso, anormal, contra a finalidade dos
direitos subjetivos, adotando o rumo abandonado pelo legislador.
Apontam os escritores um sem-número de arestos que consagraram os
princípios da teoria moderna do abuso do direito, em todas as relações
jurídicas, não se atendo este movimento jurisprudencial à doutrina da
aemulatio. Acabou condenando o exercício do direito, quando o seu
623
LIMA, op. cit., 1999. p. 210.
624
Ibid., p. 211.
625
Ibid., p. 211.
303
titular não tinha legítimo interesse na sua ação, desviando o direito de sua
finalidade social e econômica
626
.
Tal movimento jurisprudencial também surgiu na Bélgica, na
Itália e na Espanha.
3 Teorias
É praticamente uníssona a idéia de que a responsabilidade civil
pode resultar do exercício abusivo do direito – circunstância reforçada no
País principalmente depois da publicação do CC de 2002, donde restou
positivado o abuso do direito como espécie de ato ilícito.
Entretanto, o atual estágio de desenvolvimento da teoria se deve
a uma constante batalha travada entre aqueles que a negavam por
completo, e aqueles outros que a admitiam, divergindo apenas quanto ao
fundamento dela.
A primeira teoria, negando a idéia de abuso do direito,
esclarecia que essa expressão encerra uma logomaquia – teoria essa
sustentada por juristas do calibre de Planiol, Duguit, Baudry-
Lacantinerie, Esmein, Barassi. Afinal – diziam seus defensores –, quando
alguém se vale de um direito que lhe pertença, seu ato é lícito, e quando
ele é ilícito, estar-se-á ultrapassando o próprio direito, passando-se a agir,
a partir daí, sem direito. Defendia-se, pois, que todo ato abusivo, só por
ser ilícito, não representa exercício de um direito; o abuso do direito,
portanto, não seria uma categoria distinta do ato ilícito. Alguns,
sintonizados a esse entendimento, chegavam a negar que o próprio
exercício de um direito, com a intenção lesiva, pudesse acarretar a
responsabilidade.
Sob outro norte, a tradicional teoria subjetiva pode ser divisada
em duas principais correntes: para a primeira, o abuso ocorre quando o
titular do direito o utiliza com o intuito específico de prejudicar outrem.
Já para a segunda corrente, a caracterização do abuso ocorreria quando o
titular utiliza-se de seu direito com negligência, imprudência ou imperícia
626
LIMA, op. cit., 1999. p. 212.
304
em alto grau; sem esta “gravidade” no exercício do direito, o ato não se
deslocaria da seara do lícito
627
. De qualquer modo, para os que se escoram
nessas diretrizes teóricas, o abuso do direito encontra-se umbilicalmente
vinculado ao conceito de culpa, de sorte que, sem ela, a tese mostra-se
absolutamente inaceitável.
Parafraseando Rui Stoco, quando se fala em teoria subjetiva do
abuso do direito, estar-se-á indicando a presença do elemento intencional,
ou seja, impõe-se que o agente tenha consciência de que o seu direito,
inicialmente legítimo e secundum legis, ao ser exercitado, desbordou para
o excesso ou abuso, de sorte a lesionar ou ferir o direito de outrem. O
elemento subjetivo é a reprovabilidade, a consciência de que algum mal
poderá ser acionado, assumindo esse risco ou deixando de prevê-lo
quando devia
628
.
É precisa a lição de Camila Lemos Azi, ao afirmar que tais
teorias [...] não se coadunam com as tendências atuais do
direito, que buscam conferir aos institutos a máxima
operabilidade. Sempre que se torna necessário perquirir o
ânimo do sujeito, a aplicação da norma resta dificultada, sendo
mais proveitoso que se busquem critérios objetivos para
garantir esta aplicação
629
.
Talvez tenha sido a compreensão dessa idéia que levou alguns
doutrinadores a delinearem teorias objetivas do abuso do direito,
estruturando formas que autorizassem o julgador a prescindir da
verificação da intenção do agente para precisá-lo. Josserand, citado por
Alvino Lima, dá uma noção clara do núcleo dessas teorias.
Leciona o jurista que as faculdades objetivas são conferidas aos
homens pelo poder público, tendo em vista a satisfação de seus interesses,
mas não de quaisquer interesses, e sim de interesses legítimos. Se o
titular de um direito o executa fora de todo o interesse, ou para a
consecução de um interesse ilegítimo, ele abusa de seu direito, não
merecendo a proteção legal. O exercício contrário à destinação econômica
627
AZI, Camila Lemos. A lesão como forma de abuso de direito. Revista dos Tribunais n. 826. São Paulo:
Revista dos Tribunais, [s.d.]. 205. (p. 39-57). p. 42.
628
STOCO, Rui. Abuso do direito e má-fé processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 68.
629
AZI, op. cit., p. 42.
305
do direito, um verdadeiro contra-senso econômico, estabelece esta
concepção de ordem econômica
630
.
Porém – continua o mestre –, este critério econômico não
abrange todos os direitos. É imperioso levar-se em conta outro meio de se
proceder a uma adequada avaliação, a saber, o desvio do direito da sua
função social. Somente através do critério finalista (função social) é que
se mostra possível atingir-se a verdade integral; é por meio dele que se
busca a finalidade dos direitos, sua função própria a cumprir. Cada um
dos direitos deve realizar-se em conformidade com o espírito da
instituição; os pretensos direitos subjetivos são direitos-funções, os quais
devem permanecer no plano da função a ser por eles desempenhada, senão
seu titular comete um desvio, um abuso do direito. O ato abusivo é o ato
contrário ao fim da instituição, adverso ao seu espírito ou sua
finalidade
631
.
Nessa ótica, e mesmo considerando a diversidade de teorias
objetivas surgidas para explicar o abuso do direito, pode-se reuni-las na
seguinte conclusão: sempre que o ato não for guiado por um motivo
legítimo, desequilibrando os interesses em jogo, o exercício do direito
será abusivo, mesmo que praticado sem qualquer intenção de prejudicar
alguém. A teoria objetiva impõe como abusivo o exercício anormal do
direito, sempre que sua finalidade social e econômica for contrariada, e,
por conseqüência, sempre que os limites impostos pela boa fé e bons
costumes forem transpassados, pouco importando a configuração da
intenção malévola de se prejudicar outrem.
4 Natureza jurídica
Há aqueles que sequer admitem falar-se em abuso do direito,
negando por completo tal teoria. Outros, porém, a aceitam, mas como uma
variedade do ato ilícito. Há, também, doutrinadores que vêem a teoria do
abuso do direito situada num terreno reservado, apartado da
responsabilidade civil.
630
LIMA, op. cit., 1999. p. 225.
631
Ibid., p. 225.
306
Ao que parece, o problema situa-se realmente na seara da
responsabilidade civil, de modo que se deve considerar um alargamento
na definição de ato ilícito para abarcar também o abuso do direito.
Praticando-se um ato no exercício irregular de um direito, mesmo
pautando-se nos limites objetivos desse, o ilícito se configura, porquanto
se notabiliza uma conduta lesiva a um dever jurídico primário afeto à
boa-fé, bons costumes e aos fins sociais e econômicos do próprio direito.
Lembre-se, aqui, a lição de Carvalho Mendonça ao asseverar
que o ilícito não é só aquele que se opõe a um imperativo explícito ou
implícito da lei positiva, e sim também aquele que se põe em oposição aos
costumes, aos princípios gerais e filosóficos do direito, às normas da
equidade natural
632
. Josserand, citado por Alvino Lima, elucida que os
direitos não se realizam rumo a uma direção qualquer, mas em um
ambiente social, em função de sua missão e de conformidade com os
princípios gerais subjacentes à legalidade, um direito natural de conteúdo
variável, uma superlegalidade
633
.
Diga-se, ademais, que o enquadramento do abuso do direito
como espécie de ato ilícito foi a concepção adotada e positivada pelo CC
de 2002 – consoante se verá adiante –, espancando-se, ao menos no
ordenamento jurídico nacional, quaisquer dúvidas a respeito do assunto.
5 A aplicação da teoria no direito brasileiro e sua recente positivação
pelo Código Civil de 2002
É quase instintiva a conclusão de que o CC de 1916 não teria
recepcionado a teoria do abuso do direito. Afinal, quando da publicação
daquela legislação, ela, a teoria, ainda se encontrava em estruturação.
Todavia, não faltaram vozes buscando um suporte legal para a
aplicação do abuso do direito no País. A maioria entendia que essa teoria
encontrava sustentáculo no art. 160, I, do CC de 1916, que, literalmente,
previa: “Não constituem atos ilícitos: Os praticados em legítima defesa
ou no exercício regular de um direito reconhecido”. Uma conclusão
632
MENDONÇA, op. cit., 1956. p. 438.
633
LIMA, op. cit., 1999. p. 216.
307
fundada na análise invertida dos dizeres do artigo citado levou à dedução
de que os atos praticados no exercício irregular de um direito
reconhecido certamente configurar-se-iam ilícitos. Outros, porém,
pugnavam pela aplicação do abuso do direito com base no art. 100 do
mesmo Diploma legal; também havia aqueles que preferiram alicerçar o
emprego da teoria no art. 5º da Lei de Introdução ao CC.
A esse respeito, veja-se a abalizada lição de Maria Helena
Diniz:
Todavia, há no ordenamento jurídico brasileiro normas que,
implicitamente, são contrárias ao exercício anormal de certos
direitos. O art. 100 do Código Civil, ao prescrever que “não se
considera coação a ameaça do exercício normal de um direito
[...]”, está considerando como coação a ameaça do exercício
anormal de um direito, para extorquir de alguém uma
declaração de vontade, logo, com maior razão está reprovando
o efetivo exercício anormal desse direito. No art. 160, ao
arrolar as causas excludentes da ilicitude, dispõe, dentre
outros, que “não constituem atos ilícitos [...] os praticados [...]
no exercício regular de um direito reconhecido”, de forma que
a contrario senso serão atos ilícitos os praticados no exercício
irregular de qualquer direito. Nos arts. 554 e 564, p. ex., há
uma reação contra o exercício abusivo dos poderes do titular
do domínio, tais como o mau uso da propriedade, prejudicando
a segurança, o sossego ou a saúde do vizinho; o desvio de
águas de seu curso normal para utilizá-las em prédio que lhe
pertença, onerando com o escoamento delas o dono do prédio
inferiormente situado. No mesmo teor de idéias o art. 1530,
que comina sanções ao credor que cometer a irregularidade de
demandar o devedor antes do vencimento da dívida, fora dos
casos permitidos em lei, caso em que ficará obrigado a esperar
o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros
correspondentes, embora estipulados, e a pagar as custas em
dobro. Ter-se-á aqui a questão do excesso de pedido, em que o
autor, movendo ação de cobrança de dívida, pede mais do que
aquilo a que faz jus. Por isso, o demandante de má fé deverá
aguardar o tempo que falta para o vencimento, descontar os
juros correspondentes e pagar as custas em dobro. Se agiu de
boa fé, deverá pagar tão-somente as custas vencidas na ação de
cobrança de que decairá, por ser intempestiva. Tal não ocorre
se se tratar de hipóteses em que se tem o vencimento
antecipado das obrigações (CC, arts. 762 e 954; Lei de
Falências, art. 25; Lei n. 6.024/74, art. 18, b). O mesmo se
diga do art. 1.531 do Código Civil, que aplica sanções ao
credor que demandar o devedor por dívida já solvida, no todo
ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais
do que for devido, pois ficará obrigado a pagar ao devedor, no
primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o
equivalente do que dele exigir, salvo se, por lhe estar prescrito
o direito, decair da ação
634
.
634
DINIZ, op. cit., 1992. p. 394.
308
Destarte, a teoria do abuso do direito passou a ser empregada no
Brasil mesmo na ausência de positivação lúcida e expressa a respeito.
Inicialmente, foi utilizada para coibir o chamado dolo processual,
reconhecido pelo CPC de 1939. Mais tarde, foi empregada como medida
nos contratos de locação de imóveis urbanos, quando o locatário abusava
de suas prerrogativas legais. A teoria também tinha serventia na solução
de problemas de vizinhança, tendo sido também aplicada no âmbito do
direito administrativo, a fim de declarar a nulidade de atos praticados com
desvio de sua finalidade
635
.
Não se olvide, ainda, que a Lei consumerista, expressamente,
positivou a teoria, referindo-se a ela em várias oportunidades. Nesse viés,
tem-se contato com o abuso do direito já no art. 4º, VI, da citada
legislação, momento em que se trata dos objetivos e princípios da Política
Nacional das Relações de Consumo, sendo um deles a “coibição e
repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de
consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de
inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos
distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores”. Ademais,
incluiu-se, dentre os direitos do consumidor, a proteção contra a
publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou
desleais, bem como contra as práticas e cláusulas abusivas ou impostas
no fornecimento de produtos e serviços. Noutra parte, agora já na Seção V
do Capítulo IV, especificamente no art. 28, encontra-se expressamente
previsto que o juiz “poderá desconsiderar a personalidade jurídica da
sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de
direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação
dos estatutos ou contrato social”. A Seção IV do Capítulo V, por sua vez,
foi destinada ao tratamento das “Práticas Abusivas”, estabelecendo o
legislador um extenso rol exemplificativo de atos abusivos. A Seção II,
do Capítulo VI, trata das “Cláusulas Abusivas”; são várias situações –
também previstas de forma exemplificativa – as quais, se constantes em
635
AZI, op. cit., [s.d.]. p. 44.
309
contratos relacionados ao fornecimento de produtos (ou serviços), serão
nulas de pleno direito, podendo o juiz, de ofício, decretar tal nulidade.
Hodiernamente, a teoria do abuso do direito ganhou positivação
expressa também no âmbito civil. O CC de 2002 preleciona que cometerá
ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede os limites
impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes (art. 187)
636
. Se dúvidas com relação à aplicação da teoria do
abuso do direito no Brasil, ou quanto a sua natureza, pudessem ainda
restar pendentes, depois da publicação do novo CC todas elas foram
incondicionalmente espancadas.
6 A definição de abuso do direito e os seus critérios de aplicabilidade
O legislador não é um ente supremo, um super-humano, um ser
onisciente incapaz de cometer erros. Ao revés, a imprecisão das
legislações produzidas é deveras demasiada. É atividade mental
meramente utópica imaginar que as leis ainda poderão sintetizar, de
maneira absolutamente inequívoca, as diretrizes a serem seguidas no
exercício dos direitos, não deixando margem a dúvidas ou lacunas. É
também pueril crer ser possível solver os problemas surgidos no seio
social pela mera aplicação das leis positivadas, restringindo-se o papel do
juiz ao de um autômato, uma máquina destinada a vomitar palavras
previamente estabelecidas pelo legislador, conforme outrora já se
acreditou.
O poder de interpretação e aplicação da lei pelo juiz sempre
existiu. As necessidades sociais, múltiplas e tortuosas, não se suprem na
palavra fria e rígida da lei, fazendo-se mister a presença de um
intermediário que tenha condições de adaptar a formula às situações
concretas postas em julgamento. Ripert, com toda razão, já disse que “o
636
O mestre Ruy Rosado de Aguiar Júnior, em trabalho acerca do projeto que deu origem ao novo Código
Civil, teceu os seguintes comentários acerca da cláusula que dera origem ao art. 187: “Essa talvez seja,
do ponto de vista do Direito Obrigacional, a cláusula mais rica do Projeto. Reúne, em um único
dispositivo, os quatro princípios básicos que presidem o sistema: o abuso do direito, o fim social, a boa-
fé e os bons costumes. Bastaria acrescentar a ordem pública para tê-los todos à vista.” (AGUIAR
JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do código civil – as obrigações e os contratos. Revista dos Tribunais,
775. São Paulo: Revista dos Tribunais, [s.d.]. p. 23).
310
juiz é o legislador dos casos particulares”
637
. À legislação cabe o papel de
apresentar os contornos do desenho legal; ao juiz compete preenchê-lo,
dar-lhe o colorido necessário à definição ideal do caso concreto.
A admissão da teoria do abuso do direito certamente leva em
consideração tal realidade. Ademais, quase sempre não se mostra possível
estabelecer os limites objetivos da norma positiva, de uma maneira
hermética. Aliás, hoje, a tendência legislativa é a de se criarem normas
abertas, passíveis de atualização no tempo e espaço, em conformidade
com o período histórico vivenciado e em observância às situações
concretas postas em julgamento. Logo, cabe ao Judiciário o ofício de
definir quais atos excederam o exercício regular de um direito, situação
cuja solução, evidentemente, transfere à doutrina e jurisprudência o
trabalho de elaboração de bases conceituais firmes acerca do conceito de
abuso do direito e dos critérios a serem adotados para a aplicação efetiva
da teoria na realidade forense.
Evidente haver um direito de se impingirem lesões a outrem.
Muitas vezes, essa lesão é inevitável e fortemente amparada por lei, a
exemplo do que ocorre na execução civil, em que o devedor ou
responsável, muito embora amparado pelos princípios da dignidade
humana e da menor onerosidade possível, certamente se verá obrigado a
suportar os transtornos ocasionados pelos atos executivos de sub-rogação
e/ou de coerção destinados à satisfação do crédito exeqüendo.
Cite-se um outro exemplo – agora se pautando no direito
material – de que a lesão ao direito alheio nem sempre conduz à
responsabilidade. Ênio Santarelli Zuliani, Desembargador do Tribunal de
Justiça de São Paulo, em brilhante ensaio científico, relata que numa
palestra proferida no Seminário da Sociedade Interamericana de Prensa,
realizado em São Paulo, no mês de agosto de 2003, o palestrante, Juiz da
Vara Federal para o Estado de Maryland Peter J. Messitte, citou que no
ano de 1962, a Suprema Corte decidiu o caso New York Times
vc. Sullivan, com base na Primeira Emenda Constitucional, e,
imediatamente, se tornou obrigatória a todas as demais cortes
federais ou estaduais. O tribunal decidiu que, quando está
637
LIMA, op. cit., 1999. p. 235.
311
envolvida uma figura pública, a mídia não será responsável por
danos civis, mesmo por publicação de informações falsas,
desde que a informação não tenha sido veiculada com o
conhecimento de sua falsidade, ou com grosseiro
desconhecimento da verdade. É o conhecido padrão do actual
malice, i.e., efetiva má-fé. Por um princípio constitucional,
não há responsabilidade civil se a mídia foi simplesmente
negligente nas informações que publicou sobre figuras
públicas
638
.
Conquanto a questão seja controvertida, esclarece o
Desembargador Ênio Santarelli Zuliani – com toda a razão, acredita-se –
que o sistema jurídico brasileiro segue as mesmas diretrizes. Ou seja,
“haverá sempre a supremacia do direito de informação, desde que a
divulgação seja do interesse da preservação da estrutura do poder
democrático”. O jurista vai além, defendendo a possibilidade de
divulgação de informações obtidas por meio de provas ilícitas (escuta
telefônica e escuta ambiental),
639
quando necessárias ao esclarecimento
coletivo de situações que envolvam pessoas públicas em escândalos ou
situações de improbidade; há, aí, um interesse social relevante, a saber, o
de comunicar à sociedade fatos comprometedores da ética e da
malversação de receitas públicas, embora descobertos por intermédio de
provas clandestinas. Em tais casos, o dano à personalidade pública se
justificaria, mesmo que a mídia se valha de informações colhidas
ilicitamente. Conclui o jurista:
A gravação ambiental não é ilícita. A interceptação telefônica
não autorizada, embora ilícita e inservível para um processo
justo, é uma fonte da qual a imprensa poderá se valer para
denunciar a corrupção e atos de improbidades de agentes
públicos, respondendo pelos excessos que derivarem de sua má
utilização. O Judiciário não é censor prévio do exercício dessa
atividade; atua para reparar as conseqüências de excesso, dolo
ou má-fé da utilização de fontes clandestinas. Liminares
restritivas impediriam reformas sociais que são conquistadas
devido à publicidade de esquemas sigilosos que são indignos
de uma sociedade democrática. A causa-fim do direito de
638
ZULIANI, Ênio Santarelli. A questão da liberdade da imprensa de veicular matéria jornalística obtida
de forma ilícita. COAD. Advocacia Dinâmica. Informativo. Ano 25, Boletim Semanal n. 07. p. 116,
2005.
639
“A doutrina esclarece que a gravação de conversa entre duas ou mais pessoas denomina-se “escuta
ambiental”, que poderá ser clandestina ou consentida. Chama-se “escuta telefônica” quando o diálogo
telefônico é gravado por um dos interlocutores, com ou sem conhecimento do outro”. (Ibid., p. 116).
312
comunicação prepondera para justificativa dos meios
empregados
640
.
Todavia, transpostos os limites objetivos da norma positiva de
direito, estará o agente sujeito a ser responsabilizado civilmente pela ação
ou omissão geradora do exercício irregular do direito. Mas como se
definir até onde pode ir o agente no exercício de seu direito? Quais os
critérios que deverão orientar o julgador no caminho a ser percorrido para
se concluir se houve ou não exercício irregular ou arbitrário de um
direito?
A doutrina tradicional, basicamente, definiu três critérios
válidos a serem utilizados para se responsabilizar alguém por abuso do
direito: a) intenção de lesar outrem, ou seja, o exercício de um direito
com o intuito exclusivo de prejudicar – circunstância que deverá ser
provada por quem o alega; b) ausência de interesse sério e legítimo; c)
exercício do direito fora de sua finalidade econômica e social
641
.
A dificuldade de se estabelecer uma fórmula única para se
definir o abuso do direito acabou superada com a publicação do CC de
2002. O art. 187 desse Diploma legal denota uma opção manifesta do
legislador pelo último critério, esse oriundo de um movimento doutrinário
surgido para expandir o conceito de abuso do direito, antes meramente
ligado à proibição do ato emulativo e responsável pela demasiada
circunscrição da aplicação dessa interessante e polêmica teoria.
Destarte, mesmo no exercício daquelas prerrogativas que a lei
confere às pessoas, suas ações podem ferir interesses, lesar terceiros,
produzir desequilíbrio social. Esta lesão dos direitos de terceiros poderá
gerar responsabilidade, quando o agente negligencia certos ditames
fundamentais da polícia jurídica, ordenados pela própria natureza das
instituições jurídicas. O simples fato de alguém se proclamar titular de
um direito, nos termos objetivos da norma de direito positivo, não
dispensa uma vontade honesta; a consciência moral não pode jamais ser
posta à margem, haja vista o fato de que há deveres em relação a outrem
640
ZULIANI, op. cit., p. 116.
641
DINIZ, op. cit., 1992. p. 396.
313
que nenhum direito permite violar
642
. Se o direito é o justo poder de agir,
observando na ação os limites fixados na lei ou na estipulação consentida,
urge – afirma Chironi – que essa ação se conduza dentro da finalidade do
próprio direito conferido, da sua distinção econômica e social
643
.
Aquele que age com submissão apenas aos limites objetivos da
lei, mas que, no exercício do direito que lhe confere o preceito legal,
ofende os princípios da finalidade econômica e social do mesmo direito,
e, por conseqüência, as diretrizes da boa-fé e bons costumes
644
, dando
origem ao desequilíbrio entre os interesses individuais e os da
coletividade, abusa de seu direito, mesmo que não tenha tido a intenção
de lesar – independe, pois, de dolo ou culpa.
O fundamento principal do abuso do direito – leciona Sérgio
Cavalieri Filho e Carlos Alberto Menezes Direito – é impedir que o
direito sirva à opressão, evitar que o titular do direito utilize seu poder
com finalidade distinta daquela a que se destina. O ato é formalmente
legal, mas o titular do direito desvia-se de sua finalidade, transformando-
o em ato substancialmente ilícito. A conduta encontra-se em harmonia
com a letra da lei, mas em rota de colisão com os seus valores éticos,
sociais e econômicos, enfim, em confronto com o conteúdo axiológico da
norma legal. A letra da lei não pode estar distanciada dos valores
presentes na sociedade a que se destina
645
.
A teoria do abuso do direito – esclarece Rui Stoco – se apóia no
princípio da convivência, sendo imperioso conciliar-se a utilização do
direito respeitando-se, sempre, a esfera jurídica alheia, fixando-lhe, pois,
um limite. Destarte, o indivíduo, para exercitar o direito que lhe foi
outorgado ou posto à disposição, deve conter-se dentro de uma limitação
ética, além da qual desborda do lícito para o ilícito e do exercício regular
para o exercício abusivo
646
.
642
LIMA, op. cit., 1999. p. 205.
643
Ibid., p. 205.
644
É de se dizer que toda a finalidade, seja econômica ou social, de um direito deve necessariamente resultar
também de um respeito às diretrizes da boa-fé e bons costumes. Defender um direito cujo escopo foge a
tais diretrizes parece pouco indicado.
645
DIREITO, Carlos Alberto Menezes; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao novo código civil.
Da responsabilidade civil. Das preferências e privilégios creditórios. Arts. 927 a 965. Rio de Janeiro:
Forense, 2004. v. XIII, p.127.
646
STOCO, op. cit., 2002. p. 58-59.
314
É o art. 187
647
do CC de 2002 uma norma aberta, na medida em
que seria impossível ao legislador cristalizar, de forma rígida, numa única
fórmula, a finalidade social e econômica do exercício dos direitos. Tal
dispositivo representa a moralização do direito, uma evidência vivaz da
relatividade dos direitos, apregoando a infalibilidade das idéias que
pregavam direitos subjetivos absolutos, oriundas do fetichismo da lei, da
já anunciada infalibilidade e onisciência do legislador, e da ausência de
lacuna na lei, princípios insustentáveis e desmoralizados
648
.
Não se deslembre, ainda, da importante lição de Nelson Nery
Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, ao esclarecerem que, para o
reconhecimento da ilicitude do ato do titular de direito, que o exerce
ultrapassando a fronteira prescrita no art. 187 do CC de 2002, devem
também ser observadas duas regras basilares: a) a liberdade de contratar
será exercida em razão e nos limites da função social do contrato (CC,
art. 421); b) os contratantes são obrigados a observar, assim na conclusão
do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
(CC, art. 422)
649
.
7 A caracterização do abuso do direito perpetrado pela indústria do
tabaco
Realizada a leitura das linhas traçadas até aqui, são quase
automáticas as seguintes indagações: quão diferente seria o mundo, se há
40 ou 50 anos, a indústria do tabaco tivesse revelado suas pesquisas e
conhecimento ao público mundial, esclarecendo acerca das moléstias que
o ato de fumar pode acarretar à saúde do consumidor e sobre a natureza
viciante da nicotina? A pandemia gerada pelo tabagismo, responsável por
10 mil mortes diárias no mundo, teria tomado forma se a indústria do
fumo agisse, naquele tempo, nos moldes impostos pelo princípio geral da
boa-fé e bons costumes?
647
Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery lecionam que essa regra teve como fonte direta o
Código Civil português (art. 334), do qual é praticamente cópia ippsis litteris. A norma portuguesa, por sua
vez, tivera como inspiração o Código Civil grego (art. 281). (NERY JUNIOR; NERY, op. cit., 2003. p. 255).
648
LIMA, op. cit., 1999. p. 217.
649
NERY JUNIOR; NERY, op. cit., 2003. p.255.
315
A teoria do abuso do direito origina-se de uma concepção
relativista do direito subjetivo, limitando sua atuação pelo repudio ao
caráter individualista que já o consagrou como absoluto. É um movimento
repressivo à ultrapassada idéia liberalista, que valorizava o interesse
particular egoisticamente praticado em detrimento do próprio interesse da
coletividade.
Consoante a bem posta lição de Fábio Pallaretti Calcini,
o direito subjetivo há de ser vislumbrado por sua missão
social, não podendo ser empregado em qualquer direção, não
sendo, portanto, um direito-poder, mas um direito-função, que
tem o indivíduo para auferir as benesses legais, sem,
entretanto, atuar em prejuízo do interesse social
650
.
Estaria a indústria do tabaco imunizada diante dessa realidade?
Obviamente que não.
A inferência de que a indústria do tabaco agiu – e ainda age –
no exercício abusivo de um direito, tem por base a solução das seguintes
questões: a) havia um dever de informar, um dever de lealdade, de boa-fé,
para com o parceiro contratual antes da publicação do CDC?; b) sendo
positiva a resposta à primeira questão, a postura adotada pela indústria do
fumo, desde o momento em que seu produto foi lançado no mercado,
harmonizar-se-ia com tais deveres vinculados à lealdade e boa-fé?
7.1 A incidência do dever de boa-fé entre os contratantes, mesmo
antes da publicação do Código de Defesa do Consumidor
Em brilhante parecer
651
, a professora Cláudia Lima Marques
analisa os parâmetros legais do dever de boa-fé contratual e
extracontratual, nos últimos 40 anos no Brasil, de sorte a construir a
fundamentação jurídica necessária a evidenciar o dever de lealdade da
indústria do fumo para com os seus consumidores, bem assim, a
conseqüente responsabilidade civil da primeira em razão dos danos
650
CALCINI, Fábio Pallaretti. Abuso de direito e o novo código civil. Revista dos Tribunais, 830. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p. 30.
651
MARQUES, op. cit., 2005. p. 74-133.
316
acarretados aos últimos, considerando a publicidade insidiosa que
difundiu massivamente e a omissão intencional de informações
importantes acerca dos males gerados pelo consumo de cigarros.
Tal parecer, encomendado pelo Dr. Miguel Wedy, advogado da
família de Eduardo Francisco da Silva – fumante morto em razão do
consumo inveterado de cigarros –, e responsável pelo ajuizamento de uma
ação de reparação de danos contra a Souza Cruz S.A. e a Philip Morris do
Brasil S.A., representa uma das bases centrais na estruturação e
desenvolvimento das idéias constantes desse capítulo.
Mister esclarecer que muito embora tal trabalho tenha sido
encomendado especificamente para ser utilizado num dos inúmeros
processos existentes contra a indústria do fumo, e encontre-se registrado
sob insígnia ‘parecer’, representa ele, verdadeiramente, um estudo de
profundidade, imparcial e realístico, abordando o tema em várias de suas
polêmicas facetas. Nem de longe é exagerado afirmar – repita-se – que o
aludido ‘parecer’, pelo peso que possui a sua autora na comunidade
jurídico-científica, representa mais um marco na disputa judicial travada
entre fumantes e a indústria do tabaco no Brasil, servindo-se de robusto
elemento a contribuir para a reviravolta jurisprudencial – que não tardará
a ocorrer, acredita-se – a beneficiar os hipossuficientes da relação de
consumo que envolve comercialização de cigarros.
Assevera a brilhante jurista que o princípio da boa-fé, ou o
paradigma de conduta (objetivo) conforme as exigências da boa-fé,
amolda-se como sendo o fundamento jurídico do dever de lealdade
(conduta) na sociedade brasileira, isso já bem antes da publicação da Lei
n. 8.078/90. Sua análise e conclusão pautam-se no CC (1916), Código
Comercial (1850) e na própria CF (1988)
652
. É de se enumerar alguns dos
pontuais ensinamentos ministrados pela professora Cláudia Lima
Marques:
1) É correto afirmar que o princípio da boa-fé encontra-se
inserido no ordenamento brasileiro desde 1850, notadamente naquilo que
652
MARQUES, op. cit., 2005. p. 80.
317
se refere ao dever informativo do profissional/fabricante ao
consumidor/leigo. O princípio da boa-fé, já a esta época, influenciava
todo o direito das obrigações no Brasil
653
.
2) A regra de conduta da sociedade brasileira, notadamente nas
relações entre profissionais (fabricantes de cigarros) e leigos
(consumidores-fumantes), sempre foi e deve ser a da boa-fé e lealdade
informacional!
654
3) O princípio da boa-fé já vigorava no ordenamento jurídico
brasileiro, por influência direta dos ensinamentos do Direito Romano. “A
atividade criadora dos magistrados romanos [...] – segundo o magistério
de Clóvis Couto e Silva, em sua tese de 1964, intitulada ‘A obrigação
como processo’ – valorizava grandemente o comportamento ético das
partes, o que se expressava, sobretudo nas ‘actiones ex fide bona’, nas
quais o arbítrio do ‘iudex’ se ampliava para que pudesse considerar, na
sentença, a retidão e a lisura do procedimento dos litigantes, quando da
celebração do negócio jurídico
655
.
4) Obviamente, uma sociedade não pode se organizar com base
na má-fé, não pode aceitar a má-fé subjetiva, seja no contrato, nos
direitos reais ou, igualmente, na relação extracontratual (ou pré-
contratual), donde a segurança e a confiança naquilo que foi afirmado
deve ser a regra a evitar o dano futuro
656
.
5) Desde Roma, a confiança despertada pelos atos e palavras
daquele que age na sociedade, nutrindo expectativas nos outros, é
juridicamente importante e valorada, levando à criação e à transformação
das relações jurídicas. Cita ensinamentos de Amélia Castresana:
A fides supõe, pois, ‘fazer o que se afirmou’, ‘cumprir o que se afirma ou
promete’, ‘ter palavra’, como uma certa condição que, mantida ou prolongada nas
653
MARQUES, op. cit., 2005. p. 82.
654
Ibid., p. 81.
655
Ibid., p. 81.
656
Ibid., p. 81.
318
relações entre os homens, gera uma confiança, um estado de confiança’ em relação ao
sujeito, titular da ‘fides’, e, por ele, ‘homem de palavra’, ‘cumpridor de seus
compromissos’
657
.
6) Apesar de não haver menção expressa no CC de 1916, Clóvis
Couto e Silva identificava a presença e incidência do princípio da boa-fé
no ordenamento jurídico brasileiro, desde 1850, notadamente no Código
Comercial, em seu art. 131, I
658
. A jurista destaca a importância desse
ensinamento para o caso examinado no parecer por ela desenvolvido, haja
vista que o Código Comercial de 1850 já vigorava à época em que o
consumidor/vítima iniciou-se no tabagismo
659
.
7) As normas de conduta aplicáveis às relações mistas, logo,
para os atos mistos, como as relações entre comerciantes e civis, hoje
denominadas de relações de consumo, encontravam-se inseridas no
Código Comercial de 1850 e, subsidiariamente, no CC de 1916
660
.
8) No tráfico jurídico, a boa-fé impõe uma conduta leal e
cooperativa, em que a realização da liberdade negocial, ou verdadeira
autonomia de vontade e de decisão de um leigo (no caso, consumidor),
depende das informações, atos e omissões de um profissional (no caso,
fabricante de cigarros), conduzindo-se lealmente. O grau de intensidade
de tais deveres varia conforme o contato social (contrato, negócio jurídico
etc.), os costumes morais da época; todavia, serão sempre os bons
costumes e a lei o limite: nada pode ser de acordo com a boa-fé se é
contrário aos bons costumes ou é contrário à atuação esperada de um
homem médio diligente
661
.
9) A boa fé não é um paradigma apenas contratual, mas pré-
contratual e extra-contratual, e tem intensidades diferentes conforme o
tipo de contato social (contrato, publicidade, embalagem, marca, delito
657
MARQUES, op. cit., 2005. p. 81.
658
Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras
sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: I - A inteligência simples e adequada, que for mais
conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à
rigorosa e restrita significação das palavras.”
659
MARQUES, op. cit., 2005. p. 81-82.
660
Ibid., p. 82.
661
Ibid., p. 83.
319
etc.) e também conforme os sujeitos da relação (profissionais, leigos,
crianças, idosos, pessoa determinada, pessoa indeterminada etc.). Quando
se escolhe um parceiro contratual, deve-se com ele cooperar leal e
fortemente. Quando se organiza e se veicula publicidade, sabe-se – num
país como o Brasil – que ela será vista por pobres e ricos, letrados e
iletrados, atingirá e criará ou não confiança em pessoas informadas e
mediamente informadas. O contrato firmado com outro profissional, que é
expert no produto comprado, não obriga o fornecedor a informar ou
esclarecer todos os detalhes, mas quando o contrato é feito com um leigo,
informações e alertas simples podem ser importantes
662
.
10) Citando Clóvis Couto e Silva, leciona não bastar a mera
informação, sendo imprescindível alertar e esclarecer, pois um é expert/
profissional e detém a informação, o outro é leigo/consumidor e não
possui a informação por inteiro
663
.
11) Ainda com Clóvis Couto e Silva, assevera terem sido a boa-
fé, e os deveres de conduta por ela criados, que diminuíram a importância
da summa divisio entre responsabilidades contratual e extracontratual,
impondo um paradigma de boa-fé a todos os contatos sociais
664
.
12) Cita a posição de Jhering acerca da culpa in contrahendo,
essa que lança luzes sobre a existência destes deveres de cooperação, de
informação, lealdade e segurança, mesmo quando o contrato ou relação
principal apresenta-se como nulo ou já cumprido. A teoria de Jhering da
culpa in contrahendo – continua a jurista citando Johannes Koëndgen –
nada mais é que considerar a existência de deveres de boa-fé nas
aproximações negociais para vender (incluindo as práticas de publicidade
e a informação prestada pelos representantes, fornecedores diretos),
aceitar estes deveres acrescidos e o regime quase-contratual ou contratual
deste momento pré-negocial e daí retirar a imposição de conduta leal
662
MARQUES, op. cit., 2005. p. 83.
663
Ibid., p. 84.
664
Ibid., p. 84.
320
(valorando a ação e omissão in contrahendo segundo a boa-fé!). Se a boa-
fé objetiva (conduta) ou subjetiva (conhecimento negado ao alter) não
existir, configurar-se-á uma ‘valoração’ da culpa daquele que in
contrahendo, direta ou indiretamente, omitiu e criou aparência diferente
da realidade – por ele conhecida – para assim vender e mais lucrar,
despertando confiança e criando expectativas inexistentes
665
.
13) Muito embora a indústria de fumo não contrate diretamente
com o consumidor, a publicidade massiva por ela veiculada possui
indiscutível potencial indutor e negocial, um quase-contrato, um ato
unilateral negocial, direcionado para vender uma imagem de saúde,
liberdade e livre escolha que faz parte dos atos e omissões negociais
daquele que fabrica cigarros
666
.
De tais linhas, é de se perceber a incoerência da tese que pugna
pela não incidência de um dever de informar antes da vigência do CDC,
mormente porque tal obrigação junge-se ao princípio maior da boa-fé, de
observação imprescindível, hoje e outrora, em especial nas aproximações
negociais destinadas à venda e contratação de produtos e serviços – tidos
por potencialmente perigosos.
Logo, aquele que se predispôs a exercer o papel de fornecedor e,
intencionalmente, deixa de informar o parceiro contratual leigo acerca dos
riscos a que ele está sujeito ao consumir o produto que disponibilizou no
mercado, agiu contrariamente aos ditames impostos pela boa-fé, já
presentes no ordenamento jurídico, bem antes da publicação do CDC.
Igualmente censurável é a postura daquele que, mesmo
compreendendo a natureza maléfica do produto que forneceu ao mercado,
valeu-se de expedientes publicitários contrários a essa realidade,
sugerindo um contexto de idéias positivas em nada afeto ao verdadeiro
resultado do seu consumo, a saber, a morbidade e mortalidade em massa
de consumidores.
665
MARQUES, op. cit., 2005. p. 85-86.
666
Ibid., p. 85.
321
De tal panorama, já é possível vislumbrar-se a configuração do
ilícito perpetrado pela indústria do fumo, fincado num evidente abuso do
direito de desenvolver, fabricar e comercializar cigarros.
7.2 A postura adotada pela indústria do fumo para garantir a
comercialização de seus produtos: omissão intencional de informações
Não há – acredita-se – como negar ser a atividade desenvolvida
pela indústria do tabaco lícita. O Estado, por mais incrível que possa
parecer, conferiu às fornecedoras de cigarro uma verdadeira licença para
matar. Só no Brasil, nada menos que 200 (duzentos) mil indivíduos vão a
óbito, anualmente, por razões vinculadas ao fumo. Já se disse que a
Organização Mundial da Saúde considera o tabagismo uma pandemia,
pois, todo ano, tira a vida de quase 5 milhões de indivíduos no mundo,
667
ou seja, o equivalente a mais de 13 mil mortes/dia. O tabagismo, hoje,
mata mais que a soma das mortes por AIDS, cocaína, heroína, álcool,
suicídios e acidentes de trânsito
668
.
Consoante visto no tópico anterior, o fato de a indústria do
tabaco ser detentora do direito de produzir, fabricar e comercializar
cigarros, não a desobriga de fazê-lo em cumprimento de deveres morais e
jurídicos intransponíveis, a saber, informando o consumidor
adequadamente acerca das características do cigarro e dos riscos aos
quais está sujeito ao usar ou expor-se a esse produto. E isso décadas e
décadas antes da vigência do CDC.
Nessa linha de raciocínio a observação de Chironi, citado por
Alvino Lima, no sentido de que o “simples fato de nos proclamarmos
titulares de um direito, nos termos objetivos da norma de direito positivo,
não dispensa uma vontade honesta; a consciência moral não pode jamais
ser posta à margem, visto como há deveres em relação a outrem que
667
Tabagismo & Saúde nos Países em Desenvolvimento. Documento organizado pela Comissão Européia
em colaboração com a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial para a Mesa Redonda de Alto
Nível sobre Controle do Tabagismo e Políticas de Desenvolvimento – Fevereiro/2003. Tradução
realizada pelo Instituto Nacional de Câncer e Ministério da Saúde do Brasil. Disponível em:
<www.inca.gov.br>.
668
SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998. p.13.
322
nenhum direito permite violar”
669
. Sem dúvida que o direito à vida
deveria encabeçar esse rol de direitos invioláveis; contudo, o imenso
poderio da indústria do tabaco permitiu a abertura de uma brecha na
legislação constitucional, relativizando – pasme-se – o direito à própria
vida e a dignidade da pessoa humana.
Mesmo diante dessa infeliz constatação, é inaceitável o
argumento – não raro utilizado pelos órgãos do Judiciário nacional – de
que as empresas do tabaco, por realizarem atividade lícita, não poderiam
ser responsabilizadas por eventuais prejuízos sofridos em razão do
consumo de seus produtos. Conhece-se a surrada tese adotada por essas
empresas no sentido de que “agem no exercício regular de um direito”. O
raciocínio, data venia, é truncado, limitado a resolver questão tão
complexa.
Primeiro, porque, muito embora a atividade seja lícita,
extrinsecamente a indústria do tabaco se porta, ainda presentemente, de
modo inadequado, à margem da legalidade, já que mantém em seus
produtos um gravíssimo vício de informação – consoante visto em
capítulo próprio. Afirmou-se que as atividades exercidas no mercado de
consumo são, em regra, todas lícitas, de modo que a ilicitude não se
concentra nas atividades em si, senão em características, intrínsecas ou
extrínsecas, afetas ao próprio produto em circulação no mercado. No caso
específico da indústria do tabaco, um dos cenários que identificam a
ilicitude, plenamente capaz de responsabilizá-la pelos danos oriundos do
consumo de seus produtos, situa-se justamente em sua postura,
caracterizada pela sonegação de informações ao consumidor.
Em segundo lugar – e aqui se encaixa como uma luva a teoria do
abuso do direito –, muito embora exerça a indústria do tabaco atividade
lícita, sempre agiu no exercício irregular de seu direito de produzir e
comercializar produtos fumígenos, seguindo na contramão da finalidade
de tal direito, da sua destinação econômica e social. No mesmo viés,
insiste numa postura antiquada, se confrontada aos bons costumes e à
boa-fé.
669
LIMA, op. cit., 1999. p. 205.
323
A história evidencia que a indústria do tabaco sempre operou
egoisticamente, tendo por escopo maior seus interesses econômicos, sendo
desimportantes a ela as conseqüências nefastas que o uso de seus produtos
acarreta aos consumidores, sobretudo porque não só omitiu da sociedade –
e isso no mundo todo – informes preciosos acerca dos malefícios do
cigarro, mas também se valeu de expedientes publicitários desleais,
fazendo apologia do produto perigoso, com o intuito de confundir, seduzir
e aliciar mais e mais adeptos ao fumo.
A literatura especializada assinala uma série de imposturas
adotadas pela indústria do tabaco, intentadas exclusivamente a manter e
fomentar o seu lucrativo negócio – anualmente algo em torno de 300
bilhões no mundo. No Brasil, a esse respeito, destaca-se a notável obra
intitulada “O cigarro”, de autoria do jornalista Mario Cesar Carvalho.
A hipocrisia perpetrada pelas fabricantes de cigarros tornou-se
pública a partir de 1994, quando uma caixa contendo alguns milhares de
páginas de documentos da Brown and Williamson Tobacco Corporation
(B&W), acabou sendo enviada, anonimamente, ao escritório do professor
Stanton Glantz, na Universidade da Califórnia, São Francisco.
A partir daí, uma radiografia da indústria do fumo foi
produzida, revelando-a por dentro, notadamente naquilo que diz respeito
a sua contumaz estratégia de incitar controvérsia e dúvida para
minimizar os efeitos deletérios do cigarro. Ressalte-se que esses
documentos encontram-se, atualmente, à disposição do público para
consulta, no site http://www.library.ucsf.edu/tobacco”, e na obra “The
Cigarrette Papers” – ainda sem tradução no Brasil –, de autoria de
Stanton A. Glantz, John Slade, Lisa A. Bero, Peter Hanauer e Deborah E.
Barnes.
Diga-se, ademais, que o desmantelamento da arquitetônica
edificação fraudulenta levantada pela indústria do tabaco teve também
como colaboradores alguns dos funcionários atuantes nas empresas de
fumo, nos Estados Unidos. Esses acabaram denunciando o que sabiam,
incentivados pela verdadeira guerra travada contra o cigarro, sendo o mais
célebre deles o bioquímico da Brown Williamson, Jeffrey Wigand, cuja
história acabou virando um filme de grande repercussão mundial – O
324
Informante. Foi em função de revelações desse jaez que as fabricantes
tiveram que capitular e pagar, a todos os 50 Estados americanos, uma
indenização no importe de 256 milhões de dólares, para compensar os
gastos com a saúde pública
670
.
Mario Cesar Carvalho esclarece que a sucessão de fraudes da
indústria do cigarro teve início para combater um pesquisador que
vinculou o consumo de cigarros ao câncer. Em 1953, o médico Ernst
Wynder (1922-1999), um judeu alemão que fugira do nazismo e se
estabelecera nos Estados Unidos, experimentou pincelar o dorso de 86
ratos de laboratório com uma substância obtida da condensação da fumaça
do cigarro Lucky Strike
671
. Cada ratinho recebeu semanalmente, por dois
anos, 40 gramas de alcatrão destilado, mais ou menos a mesma quantidade
constante em um maço de cigarros. O resultado: dos 62 que chegaram ao
final do experimento, 58% desenvolveram tumores cancerígenos. Nos 20
meses seguintes, 90% dos ratos haviam perecido. Num grupo de roedores
que não tinham recebido a substância, 58% sobreviveram
672
.
Por óbvio que as descobertas de Wynder não foram bem
recebidas pela indústria do tabaco. Era a primeira vez que um estudo
realizado, sob condições rigorosas, comprovava a relação umbilical entre
o fumo e o câncer. Amplamente divulgada pela mídia na época, a
descoberta foi responsável por uma queda de 10% no consumo de cigarros
per capita nos Estados Unidos, entre 1953 e 1954
673
.
Acuadas – relata o jornalista Mario Cesar Carvalho –, as
fabricantes de cigarros investiram pesado para garantirem a neutralização
do ataque – e a força de seu poderio econômico surtiu efeitos quase
imediatos
674
.
Sua primeira providência foi contratar a Hill & Knowlton, uma
das maiores empresas de relações públicas dos Estados Unidos. Num
anúncio, publicado em nada menos que 448 jornais, em 1954, a indústria
golpeou as descobertas do alemão, afirmando que ele não possuía
670
SARMATZ, Leandro. Ernst Wynder. Super Interessante, Abril, ed. 174, p. 23, mar. 2002.
671
CARVALHO, op. cit., 2001. p. 14.
672
SARMATZ, op. cit., p. 23.
673
Ibid., p. 23.
674
CARVALHO, op. cit., 2001. p. 15.
325
evidências científicas. Categoricamente afirmava-se que não havia provas
científicas de que o cigarro causasse câncer; os bioestatísticos poderiam
apontar como causa qualquer outro fator ligado à vida moderna, como a
poluição de carros e fábricas ou a alimentação industrializada. Dizia o
texto, assinado pelo recém-criado Comitê de Pesquisas da Indústria do
Tabaco (Tobacco Industry Research Committee)
675
: “Acreditamos que os
nossos produtos não fazem mal à saúde .” Ao final do anúncio, o referido
Comitê fazia uma promessa no sentido de que a indústria aceitava como
responsabilidade básica o interesse pela saúde das pessoas, acima de todas
as outras considerações de seu negócio – e para provar que ela estava
“interessada” em pesquisar o impacto do fumo sobre a saúde, estava lá o
tal Comitê de Pesquisas, financiado pelas fabricantes de cigarros
676
.
A ofensiva não parou por aí, vindo de muitos flancos:
“cientistas”, defensores da indústria tabagista, apareciam em programas
de TV e escreviam artigos em jornais (muitos desses espaços
descaradamente comprados) contestando as descobertas do alemão.
Wynder, uma voz solitária que a todo o momento necessitava demonstrar
que suas pesquisas haviam sido feitas com rigor, foi visto com
desconfiança, até mesmo por alguns órgãos do governo americano
677
.
Outra estratégia da qual se valeu a indústria de tabaco foi a
criação maciça de novos tipos de cigarros, a exemplo daqueles com filtro,
nos anos 50, e os low-tar (baixa concentração de alcatrão), a partir dos
anos 60. Um dos memorandos, esse escrito por Ernest Pepples, vice-
presidente e advogado geral da B&W, evidencia que a primeira reação da
indústria do tabaco à crescente preocupação pública com os efeitos
675
O Tobacco Industry Research Committee surgiu como parte da reação da indústria às evidências ligando
o fumo a várias doenças. A indústria do tabaco argumentou que o TIRC, como era conhecido o tal
Comitê, representava uma organização independente, criada para determinar a verdade sobre os efeitos
do cigarro na saúde humana. Entretanto, os documentos secretos mostram que o TIRC foi originalmente
criado para propósitos de relações públicas, para convencer o público de que havia uma “controvérsia”
sobre o fumo ser perigoso ou não. (GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 26).
676
CARVALHO, op. cit., 2001. p. 15.
677
SARMATZ, op. cit., p. 23. O artigo publicado na Revista Super Interessante informa ainda: “Apesar de
ter suas investigações no laboratório enxovalhadas diante de milhões de americanos, de ser
ridicularizado por fumantes e ver sua seriedade posta em dúvida, Wynder não se abalou. Sua “luta
solitária” (como certa vez resumiu um colega de laboratório) culminou com a fundação, em 1969, da
American Health Foundation, instituição que, entre outras coisas, é um bastião na pesquisa sobre os
males do cigarro e que provou, além de qualquer dúvida, que as conclusões de Wynder estavam
corretas. Apenas um dos legados do pioneiro da luta antitabagista”.
326
danosos do cigarro foi a de “produzir mais marcas com filtro e marcas
com baixos índices de alcatrão” – segundo Pepples, a fatia do mercado
dos cigarros com filtro cresceu rapidamente durante os anos 50 e 60,
criando uma atmosfera de competição feroz que ficou conhecida como a
“corrida do alcatrão” (empresas competindo para baixar o alcatrão dos
cigarros). Os documentos secretos mostram, entretanto, que essas novas
marcas não eram exatamente mais saudáveis que as antigas. Em verdade,
essas marcas foram desenvolvidas com propósitos de marketing, para que
as empresas de tabaco pudessem declarar em seus anúncios que sua marca
tinha “menos alcatrão” que as outras – o próprio Pepples assinala, no tal
memorando citado alhures, que os filtros não faziam os cigarros mais
saudáveis, apenas davam aos fumantes a ilusão de fumar um produto mais
saudável.
678
A esse respeito, os cientistas da BAT fizeram uma distinção
entre os cigarros “orientados à saúde”, que incorporavam avanços
tecnológicos que foram testados e sabia-se que reduziam os riscos, e
cigarros “de imagem saudável”, que eram projetados para dar aos
fumantes a ilusão de estarem consumindo um produto mais seguro
679
.
Em 12 de maio de 1994, a indústria sofreu um súbito e
inesperado baque. Nessa data, em razão do surgimento dos documentos
secretos da indústria do fumo
680
, comprovou-se que o discurso por ela
elaborado e difundido entre os anos 50 e 90 era absolutamente cínico e
fraudulento. Referidos documentos, enviados anonimamente ao escritório
678
Em tradução livre, esses os dizeres do memorando: “As novas marcas com filtro visando a um pedaço
do mercado crescente fizeram anúncios extraordinários. Havia um esforço urgente para destacar e
diferenciar uma marca das outras já no mercado. Era importante ter mais filtros. Alguns anunciaram
ter as menores taxas de alcatrão. Em muitos casos, porém, o fumante de um cigarro com filtro estava
consumindo tanto alcatrão e nicotina quanto estaria se fumasse um cigarro comum.” No original: “The
new filter brands vying for a piece of the growing filter market made extraordinary claims. There was an
urgente effort to highlight and differentiate one brand from the others already on the market. It was
important to have the most filter traps. Some claimed to possess the least tars. In most cases, however,
the smoker of a filter cigarette was getting as much or more nicotine and tar as be would have gotten
from a regular cigarette. He had abandoned the regular cigarette, however, on the ground of reduced
risk to health [emphasis added]. {2205.0I, p.2}.” (GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op.
cit., 1996. p. 27).
679
Ibid., p. 26.
680
Esses documentos consistem primariamente em memorandos internos, cartas e relatórios de pesquisas
relacionados à B&W e à BAT. Muitos deles trazem a marca de “confidencial” ou “produto do trabalho
de advogados”, sugerindo que os autores nunca esperaram que eles fossem mostrados fora da
companhia, nem mesmo para procedimentos legais. Esses documentos demonstram que a indústria do
tabaco em geral, e a Brown & Williamson em particular, esteve empenhada em enganar o público, pelo
menos, 30 anos. (Ibid., p. 3).
327
do professor Stanton Glantz, na Universidade da Califórnia, combinados
com outros obtidos da B&W, pela House of Representatives Subcomittee
on Health and the Environment, e alguns papéis secretos de um ex-diretor
de pesquisa da BAT, fornecem uma visão cândida e particular dos
pensamentos e ações da indústria do tabaco, durante a última metade do
século XX
681
. Isso porque espelham evidências de que a indústria conhecia
os fatos de que o cigarro provoca câncer e de que a nicotina é uma droga
capaz de acarretar dependência, muito embora a imagem pública
apresentada por ela, naquele tempo, sobre a praga marrom, fosse outra
bem diferente
682
.
681
GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 2.
682
Veja-se, nesse sentido, esclarecedor trecho da monumental obra de José Rosemberg: “Desde os idos de
1950 a indústria tabaqueira vem desenvolvendo pesquisas que lhe forneceram a certeza de que a
nicotina é geradora de dependência físico-química, assim como estudos para sua maior liberação e
absorção pelo organismo e inclusive estudos genéticos objetivando desenvolver planta de tabaco
hipernicotinado. A indústria tabaqueira, ciente das propriedades psico-ativas da nicotina geradora de
dependência, sempre negou a existência dessas qualidades farmacológicas. É edificante o episódio
ocorrido no início de 1980, quando a Phillip Morris obrigou seu cientista Vitor de Noble a retirar o
artigo que havia entregado para publicação no Journal of Psychopharmacology, no qual relatava suas
investigações comprovadoras de que ratos recebendo nicotina desenvolviam dependência físico-
química. Isso tudo veio a lume com os documentos secretos que se tornaram públicos. Entretanto, a
indústria tabaqueira continuamente pronunciou-se com ênfase, negando essas propriedades da
nicotina.” (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 42). E mais: “Não obstante a exaustiva documentação
acumulada de que a nicotina é droga geradora de dependência químico-física e da existência de fatores
genéticos que ditam a reação orgânica com vasto polimorfismo (...), é de interesse ressaltar o fato
histórico de que a ciência oficial demorou muito para se convencer dessa certeza, enquanto a indústria
tabaqueira já tinha disso conhecimento de longa data. É também fato histórico edificante, como as
multinacionais do tabaco esconderam por tanto tempo a certeza que tinham de a nicotina ser droga
psicoativa, promovendo vasta propaganda enganosa, afirmando que ela não causa dependência,
enquanto secretamente trabalharam para a obtenção de cigarros com teores mais altos de nicotina para
tornar os fumantes mais escravizados ao seu consumo. É impressionante que em 1979 o relatório oficial
do Departamento de Educação, Saúde e Assistência Social, dos Estados Unidos, abordando a temática
da nicotina, não se pronunciou sobre a sua característica de gerar dependência. Mais inexplicável é
que, ainda em 1964, o Comitê Consultivo do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, com o
endosso do Surgeon General, tenha declarado que “a nicotina causa apenas hábito, não sendo droga
que desenvolve dependência”. Entretanto, a indústria tabaqueira, que vinha, desde 1950, promovendo
pesquisas sofisticadas sobre a farmacodinâmica da nicotina, havia chegado à conclusão de que ela era
droga geradora de dependência orgânica. Assim em março de 1963, um ano antes do acima citado
relatório do órgão oficial da saúde pública dos Estados Unidos, negando que a nicotina causa
dependência, a Brown and Williamson, na reunião de seus dirigentes face às pesquisas de seus técnicos
concluiu pela propriedade da nicotina causar dependência. A companhia tabaqueira Brown and
Williamson, sediada nos Estados Unidos, é subsidiária da British American Tobacco (BAT) assim como
a Souza Cruz do Brasil. Nessa reunião, o vice-presidente, Addison Yeaman, afirmou: “além do mais, a
nicotina causa dependência. Nós estamos, portanto, num negócio de vender nicotina que é uma droga
que causa dependência, eficaz para anular os mecanismos de estresse.” Aliás, desde a década dos anos
1950, a indústria tabaqueira já tinha a convicção da ação psico-ativa da nicotina, conforme se
depreende do pronunciamento de H.R. Hammer, diretor de pesquisa da British American Tobacco,
como consta da ata da reunião de 14 de outubro de 1955: “Pode-se remover toda a nicotina do tabaco,
mas a experiência mostra que esses cigarros e charutos ficam emasculados e ninguém tem satisfação de
fumá-los”. Em 1962, em outra reunião da Britixh American Tobacco, o executivo Charles Ellis afirmou:
328
É de se dizer que naquela data – em 12 de maio de 1994 –,
Stanton A. Glantz, professor da Divisão de Cardiologia da Universidade
da Califórnia, São Francisco, Estados Unidos, ativo militante contra o
tabagismo, recebeu de um missivista ocultado sob o pseudônimo Mr.
Butts, aproximadamente 4 mil páginas de memorandos, relatórios, cartas,
cópias de atas, que correspondem a um período de 30 anos de atividade da
BAT e de sua subsidiária nos Estados Unidos, a B&W. Ulteriormente,
Merry Williams, ex-técnico da B&W, forneceu ao Prof. Glantz grande
número de documentos referentes às atividades dessa companhia de
cigarros. Os documentos foram repassados ao Sub-Comitê de Saúde e
Ambiente do Congresso Norte-americano. Além de sua publicação em
periódicos científicos, foram publicados numa série de artigos do New
York Times. Após vários recursos dos fabricantes de cigarros alegando
interferência na sua privacidade, a Corte Superior do Estado da Califórnia
reconheceu sua legitimidade, decidindo que esses documentos deveriam
ser do domínio público
683
.
Em 8 de maio de 1998, as companhias de tabaco propuseram um
acordo com o Estado do Minnesota, numa ação instaurada pelo Promotor
Geral do Estado de Minnesota, Estados Unidos, e a Blue Cross Shield
desse Estado. Nas cláusulas do acordo constou a obrigatoriedade de a
indústria tabaqueira abrir o acesso ao público aos seus documentos
internos constantes de atas, memoriais, cartas, relatórios, planos de
administração, e toda a correspondência referente às suas atividades
técnicas, científicas e comerciais. Em inúmeros desses documentos
constam pronunciamentos de técnicos, cientistas, consultantes, assessores
e advogados. Toda essa documentação refere-se a sete empresas
fabricantes de cigarros e duas organizações a estas filiadas, em atividade
nos Estados Unidos: Phillip Morris Incorporated, RJ Reynolds Tobacco
Company, British American Tobacco, Brown and Williamson, Lorillard
Tobacco Company, American Tobacco Company, Liggett Group, Tobacco
Institute e o Center for Tobacco Research. Nessa ocasião, tomou-se
“fumar é conseqüência da dependência [...]. Nicotina é droga de excelente qualidade”.
(ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 42-43).
683
Ibid., p. 43.
329
conhecimento dos documentos que o ex-técnico da Brown and Williamson
havia entregado ao Prof. Glantz. Ao todo, são 5 milhões de documentos,
com 40 milhões de páginas, que podem ser consultados pela internet,
estando também à disposição no arquivo oficial de Minnesota, e em
Guilford Surrey nos arredores de Londres
684
, ou no livro intitulado The
Cigarette Papers.
Apenas para se ter uma idéia – já que não é o objetivo desse
trabalho compilar todas as importantes informações colocadas sob
domínio público, por intermédio do livro The Cigarette Papers e pela
internet –, os aludidos documentos demonstram que a nicotina era
rotineiramente vista pela indústria do fumo como viciante, sendo sempre
tratada como o agente farmacologicamente ativo no tabaco. Evidenciam,
outrossim, que a professada busca da verdade, pela indústria, acerca dos
efeitos do fumo na saúde humana, foi, verdadeiramente, uma fraude. Sua
pretensa vontade de se engajar e disseminar pesquisas relacionadas à
saúde era, na verdade, sempre subserviente a considerações comerciais e
litigiosas. Inicialmente, os pesquisadores das companhias tentaram
descobrir os elementos tóxicos na fumaça do cigarro para que um cigarro
“seguro”, que contivesse apenas nicotina e não substâncias tóxicas,
pudesse ser desenvolvido. Quando restou provado que tal objetivo era
inexeqüível, principalmente em razão do número de toxinas envolvidas, as
decisões a respeito da saúde passaram exclusivamente para os advogados.
Os documentos mostram que os advogados da B&W, e de outras
companhias de tabaco, desempenharam um papel central nas decisões das
pesquisas, todas em conjunto com a B&W e a BAT, e também em
organizações de pesquisas financiadas pela indústria
685
.
O principal alvo deste esforço de pesquisa controlada por
advogados não era melhorar o entendimento público ou científico
existente acerca dos efeitos do fumo na saúde, mas, sim, minimizar a
exposição da indústria a litígios por responsabilidade e regulação
684
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 43.
685
GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 3.
330
adicional do governo
686
. Quando as metas de determinar e disseminar a
686
Interessante reportagem fora publicada no Jornal Folha de São Paulo acerca do assunto: “Em 15 de
dezembro de 1953, os presidentes de várias das maiores empresas de cigarro dos EUA se reuniram no
Hotel Plaza, em Nova York, num encontro incomum. A questão em pauta eram as crescentes
preocupações médicas com os riscos do cigarro à saúde. Cinco estudos já haviam sugerido a existência
de vínculos entre o cigarro e o câncer – e a imprensa estava tomando nota do assunto.
Numa das salas de reuniões do hotel, os presidentes da American Tobacco, da Benson & Hedges, da
Philip Morris e da US Tobacco deram o primeiro passo para criar o que viria a tornar-se uma
estratégia unificada para passar ao público a mensagem tranqüilizadora de que não havia evidências
de que o cigarro fizesse mal à saúde.
Ao longo dos 50 anos seguintes, as empresas de cigarro americanas iriam conspirar para fraudar os
consumidores, negando os perigos do fumo e da fumaça inalada por não fumantes. Iriam financiar
cientistas solidários com elas para que conduzissem pesquisas que semeassem a confusão em torno da
questão. Iriam manipular os níveis de nicotina para criar dependência entre os fumantes e iriam
propositalmente difundir o cigarro entre os jovens. Porém, em boa parte desse tempo, elas sabiam que
existia um vínculo causal entre o cigarro e a doença.
Isso tudo, ao menos, é o que o Departamento de Justiça americano tentará provar, numa ação que
começará a ser julgada no próximo dia 21. Os depoimentos das primeiras testemunhas do governo
deverão ser divulgados nesta segunda-feira. A ação talvez se torne o maior ataque na Justiça já
lançado por um governo contra uma indústria legal. O argumento essencial é similar ao das ações
movidas por Estados americanos e das movidas por fumantes. Mas o julgamento em questão será
diferente de tudo já visto nas cortes do Mississippi ou do Alabama.
De um lado, está o Departamento de Justiça, que, usando documentos incriminadores vazados desde o
interior das empresas ou descobertos em processos anteriores ou ainda por meio de suas próprias
investigações, passou cinco anos montando os mais abrangentes argumentos já preparados no combate
à indústria do tabaco. De outro lado, estão os recursos somados das maiores empresas do ramo e suas
fileiras de advogados de primeira linha.
O governo dos EUA afirma que os réus devem restituir US$ 280 bilhões em “lucros indevidos” – um
valor mais do que suficiente para levar as empresas à falência. Para conseguir isso, porém, terá de
provar – não a um júri, mas a uma juíza única – que as empresas de cigarros foram culpadas de fraude
no passado e que existe a probabilidade de que continuem a fazê-lo no futuro. Não será um
empreendimento fácil. O governo também terá de justificar sua exigência de US$ 280 bilhões.
A razão é que não se trata de um processo de indenização por falha de um produto, alegando que os
artigos feitos pela indústria prejudicaram um fumante ou grupo de fumantes específicos, como os que o
setor dos cigarros já está acostumado a combater. Em lugar disso, a ação é movida sob a Lei de
Organizações Corruptas e Influenciadas por Fraudadores (Rico), de 1970, promulgada para combater
o crime organizado.
“O argumento principal do governo é que a indústria americana do cigarro foi um empreendimento
ilegal, como a máfia”, diz Marin Feldman, analista da Merill Lynch para o setor do tabaco.
A indústria nega ter cometido fraudes no passado e afirma achar que o governo não conseguirá
convencer a juíza Gladys Kessler, que presidirá o processo, de que há a probabilidade de que as
empresas violem a Rico no futuro.
Ademais, diz o setor, as restrições à propaganda de cigarros que o governo está pedindo, ao lado da
restituição de US$ 280 bilhões, em grande medida duplicam as que já estão em vigor com o acordo de
1998 conhecido como Master Settlement Agreement. Foi o acordo pelo qual as empresas de cigarros
concordaram em pagar US$ 246 bilhões a 50 Estados americanos ao longo de 25 anos. Isso pôs fim aos
processos litigiosos movidos pelos Estados e inspirou o governo federal a iniciar sua própria investida
legal.
“Quando a ação do governo foi aberta, em 1999, dissemos achar que ela estava equivocada com base
na lei, nos fatos e na política. Nada mudou desde então”, diz William Ohlemeyer, um dos advogados da
Philip Morris, a maior fabricante de cigarros dos EUA.
A Philip Morris é uma das seis rés. As outras são a RJ Reynolds, segunda maior empresa de tabaco nos
EUA; a Brown & Williams, terceira maior; a Lorillard; a Liggett; e a filial local da British American
Tobacco. Também são rés no processo duas associações do setor que já deixaram de existir.
As alegações contidas nas últimas constatações de fatos, divulgadas em julho, são extremamente
graves: “As empresas de cigarros vêm praticando e executando há 50 anos – e continuam a praticar e
executar – um esquema maciço de fraude do público.
Trabalhando com as duas organizações do setor, o Instituto do Tabaco e o Conselho de Pesquisas do
Tabaco, elas teriam feito uma campanha de relações públicas para desmentir os males causados pelo
331
verdade entravam em conflito com a meta de minimizar a
responsabilidade da B&W, a última prevalecia consistentemente. Em
particular, mesmo após a pesquisa da B&W ter mostrado que cigarros
causam doenças e são viciantes, sob a direção de seus advogados, a B&W
pretendia evitar a geração de quaisquer outros novos resultados
confirmando essas evidências. Essa empresa também empreendeu esforços
para impedir a disseminação ou revelação desses resultados, tanto
judicialmente como em qualquer foro público – aparentemente ao ponto
de remover alguns documentos relevantes de seus arquivos e mandá-los
para longe
687
.
cigarro e gerar controvérsias em torno das pesquisas científicas. A campanha teria começado pouco
após a reunião no Hotel Plaza, com a Declaração Franca aos Fumantes, um anúncio assinado de
página inteira publicado pelas empresas em 448 jornais dos EUA. “Acreditamos que os produtos que
fabricamos não são nocivos à saúde”, afirmou a declaração que, porém, prometia que seriam
conduzidas pesquisas para descobrir a verdade.
A indústria do cigarro rejeita todas as acusações, dizendo que não houve fraude. Um dos argumentos
centrais da defesa será que, desde 1966, dois anos após um relatório do diretor nacional de saúde dos
EUA ter afirmado inequivocamente que o cigarro causa câncer, os maços de cigarros trazem um aviso
de saúde, obrigatório por medida federal, informando que o produto pode fazer mal à saúde. Então,
como as empresas poderiam ter enganado alguém?
“Quando foi constatado o vínculo entre cigarros e câncer, o Congresso precisou decidir se proibia os
cigarros ou se fornecia avisos e informações para que as pessoas pudessem tomar uma decisão com
base em informações corretas”, afirma o advogado William Ohlemeyer. “A decisão tomada foi não
proibir o cigarro mas fornecer avisos, completou.
Para as empresas, não houve conspiração. A reunião no hotel que teria dado origem ao plano todo nem
sequer foi secreta: o Departamento de Justiça foi avisado com antecedência, para que as empresas
pudessem evitar o perigo de violar um decreto antitruste que proibia reuniões entre as empresas, e a
reunião foi noticiada em diversos jornais. A subseqüente Declaração Franca aos Fumantes teria
refletido o consenso científico vigente na época.
A composição do setor do cigarro também mudou radicalmente nos últimos 50 anos, algo que, segundo
as empresas, reflete a existência de uma concorrência dinâmica que não condiz com a idéia de
conspiração. A indústria de cigarros poderá ainda partir para a ofensiva, destacando os vínculos de
longa data entre o Estado americano e as empresas – sem falar nos bilhões de dólares que os governos
ganham em impostos sobre produtos à base de tabaco.
Os fabricantes de cigarro estão confiantes nas chances de vitória de sua defesa, que já foi burilada em
dezenas de outras ações.
Dick Daynar, adversário de longa data do setor e presidente do Projeto de Responsabilidade dos
Produtos à Base de Tabaco da Universidade Northeastern, que incentiva a abertura de processos
contra empresas de cigarro, argumenta, porém, que os júris decidiram, em alguns casos, que as
indústrias do setor haviam cometido atos ilegais, mas que não podiam ser responsabilizadas pela
decisão de fumar tomada por um indivíduo. Só que desta vez, afirma, não será preciso encontrar
nenhum vínculo desse tipo, já que o argumento legal só diz respeito à conduta das empresas. E ainda os
documentos mais condenatórios serão apresentados à corte.
O governo terá também de convencer a juíza de que as empresas continuarão a cometer fraudes. A
indústria do cigarro argumenta que as restrições implantadas pelo acordo de 1998 já praticamente
impossibilitam qualquer violação futura. Daynard discorda disso.
O maior desafio do governo, no entanto, talvez seja convencer o tribunal de que apenas o pagamento
da restituição no valor de US$ 280 bilhões impedirá o setor de voltar a cometer violações.”
(BUCKLEY, Neil. Tradução de Clara Allain. Folha de São Paulo, Especial, A6, Para EUA, setor do
cigarro age com máfia. Sábado, 18 de setembro de 2004).
687
GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 4.
332
Muitos dos documentos são correspondências entre advogados
de companhias do tabaco. Esses profissionais pareciam ter aceitado as
hipóteses de que o ato de fumar vicia e causa doenças. Os documentos dos
anos 70 e 80, em que advogados especificavam o que poderia ou não ser
alegado nas relações públicas e anúncios da indústria do tabaco,
evidenciam que alguns deles consideravam tais hipóteses tão bem
estabelecidas, que não tinham como ser negadas diretamente, sem o risco
de responsabilidade
688
.
Os documentos também mostram que, nos anos 60, a indústria
do tabaco em geral – a B&W e a BAT em particular – havia provado, em
seus próprios laboratórios, que o alcatrão do cigarro causa câncer em
animais
689
. Além disso, no início dessa década, os cientistas da BAT (e os
advogados da B&W) já trabalhavam com a idéia de que a nicotina motiva
a dependência. A BAT respondeu tentando criar secretamente um cigarro
“seguro” que minimizaria os elementos perigosos existentes na sua
fumaça. Entretanto, publicamente, essas empresas mantiveram a posição
de que o cigarro não era prejudicial e muito menos viciante. A meta
primária da indústria do tabaco era a de se manter como um grande nicho
comercial, protegendo-se de processos judiciais e regulação dos governos.
Até hoje, apesar de irrefutáveis evidências científicas e relatórios
governamentais oficiais, algumas fabricantes de cigarros insistem em
sustentar que os produtos do tabaco não são viciantes e que não causam
doenças; colocam-se por detrás de uma parede de negativas, construída
com o fim único de criar controvérsias e dúvidas acerca daquilo que já se
provou sobre os malefícios do tabagismo no curso dos anos
690
– basta,
para constatar essa realidade, uma breve análise nas defesas apresentadas
pelas fabricantes de cigarros em ações judiciais que sofrem no Brasil.
688
GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 4.
689
Vejam-se, a esse respeito, as informações de Mario Cesar Carvalho: “Há dois gêneros de documentos:
os científicos e os memorandos do alto escalão da indústria. O mais antigo dos textos científicos
revelados é de fevereiro de 1953, oito meses antes de a pesquisa com os ratos pintados com nicotina ter
sido apresentada pela primeira vez. Assinado por Claude Teague, um pesquisador da R.J. Reynolds, o
texto associa com câncer o uso de cigarros por períodos longos: “Estudos de dados clínicos tendem a
confirmar a relação entre o uso prolongado de tabaco e a incidência de câncer no pulmão.” Logo em
seguida, o pesquisador descreve quais são os agentes cancerígenos do cigarro: “compostos aromáticos
plinucleares ocorrem nos produtos pirológicos [ou seja, que queimam] do tabaco. Benzopireno e N-
benzopireno, ambos cancerígenos, foram identificados”. (CARVALHO, op. cit., 2001. p. 16-17).
690
GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 4-5.
333
Imprescindível, nesse ponto, a transcrição das importantes
constatações anotadas pelo jornalista Mario Cesar Carvalho:
Os memorandos dos altos executivos são ainda mais
reveladores, principalmente pelo teor de cinismo que carregam
quando confrontados com o discurso público. Oficialmente, os
fabricantes de cigarro rejeitam ferozmente que o produto que
vendem seja classificado como droga. Na correspondência
interna, a conversa é outra
691
.
E continua:
Um desses documentos, de 1963, trata, numa só frase, dos dois
maiores tabus para os fabricantes de cigarro – ele fala em
droga e em dependência. “Nosso negócio é vender nicotina,
uma droga viciante que é eficaz no relaxamento dos
mecanismos do estresse”, escreveu Addison Yeaman,
presidente do conselho da Brown & Williamson.
Em 1961, a Ligget & Myers, uma fábrica dos EUA,
encomendou uma pesquisa sobre os componentes da fumaça do
cigarro. O texto com o resultado da pesquisa, desenvolvida
pela empresa Arthur D. Little, começava assim: “Há materiais
biológicos ativos na fumaça do tabaco do cigarro. Eles são: a)
causadores de câncer; b) promotores de câncer; e) tóxicos; d)
estimulantes e prazerosos”
692
.
E conclui:
Outros textos menos contundentes mostravam que a indústria
fazia campanhas publicitárias para atingir adolescentes e
manipulava o nível de nicotina no cigarro. Um memorando de
1965, do pesquisador Ron Tamol, da Philip Morris, produtora
do cigarro mais vendido no mundo, o Marlboro, trazia a
seguinte anotação: “Determinar o mínimo de nicotina para
manter o fumante normal ‘viciado’”
693
.
691
CARVALHO, op. cit., 2001. p. 18.
692
Ibid., p. 18.
693
Ibid., p. 18. Mario Cesar Carvalho informa que a manipulação do nível de nicotina era tema proibido.
Se essa prática fosse provada, demonstrar-se-ia que a indústria alterava os ingredientes de seu produto
como se este fosse uma droga – e aí a venda de cigarros poderia sofrer limitações. Complementa o
jornalista: “O governo dos EUA encontrou a prova da manipulação num texto escrito em português,
descoberto por uma bibliotecária da Food and Drugs Administration (FKA, a agência que controla
remédios e comida). O texto era um pedido de patente da Brown & Williamson, empresa irmã da Souza
Cruz, para “uma variedade de fumo geneticamente estável”. O pedido era de 1992. Mesmo sem saber
português, a bibliotecária, Carol Knoth, reparou num número: 6%. E uma dúvida persistia: por que o
texto fora escrito em português?
Primeiro, a FDA descobriu que o número referia-se ao percentual de nicotina produzido pela planta
transgênica. Era praticamente o dobro dos níveis de nicotina encontrados no fumo, sem manipulação
genática, que variam de 2,5% a 3,5%. O porquê de o texto ter sido escrito em português seria revelado
com a ajuda de Janis Bravo, uma funcionária da DNA Plant Technology, empresa que produzira a
planta geneticamente modificada (com o nome futurista de U1). Janis contou que tinham sido enviadas
ao Brasil sementes suficientes para produzir mil toneladas de fumo. Uma pesquisa nos arquivos
334
José Rosemberg, referindo-se exclusivamente à nicotina,
assevera que, com os documentos secretos da indústria do tabaco,
revelou-se, em suma: a) as pesquisas conduzidas sobre a nicotina foram
mais avançadas que as das comunidades médico-científicas; b) de longa
data, a indústria tabaqueira, clara e comprovadamente, detém
conhecimentos de que a nicotina é droga, causadora de dependência
físico-química, agindo de forma deletéria sobre os centros nervosos
cerebrais; e c) as pesquisas foram conduzidas com o objetivo de melhor
esclarecer a neuro-farmacologia da nicotina, a sua natureza, suas formas
de presença no tabaco, sua mais fácil liberação e maior ação sobre o
cérebro, a elevação do seu teor no tabaco, e a intensificação da
dependência
694
.
alfandegários nos EUA revelou que a Brown & Williamson despachara 1 milhão de quilos de sementes
do fumo geneticamente modificado Y1 para a Souza Cruz Overseas. O roteiro das sementes era o
mesmo dos negócios escusos: iam para as ilhas Cayman e depois para o Brasil.
O Brasil fora escolhido porque a indústria fez nos EUA um acordo de cavalheiros para não elevar os
níveis de nicotina. Do contrário, haveria uma espécie de jogo sujo que viciaria de tal forma o
consumidor que isso praticamente eliminaria a concorrência entre marcas. Cultivando o Y1 no Brasil,
onde as sementes foram plantadas no Rio Grande do Sul, a Brown & Williamson, segundo sua visão
particular de ética, não estava violando o acordo. Um empregado da Brown & Williamson também
decidiu abrir a boca. Contou à FDA que a empresa estocara nos EUA entre 125 e 250 toneladas de
fumo Y1.
Por causa do processo aberto nos EUA contra a Brown &Williamson, a Souza Cruz interrompeu a
produção do Y1 no Brasil.
A engenharia genética era a forma mais sofisticada de alterar o nível de nicotina do cigarro, mas não
era a única. Um manual de mistura de fumos da Brown & Williamson ensinava outro método – a
adição de amônia. “Um cigarro que incorpore a tecnologia da amônia vai distribuir mais compostos de
sabor na fumaça, inclusive nicotina, do que um sem nada.” A técnica é simples: a amônia reage com os
sais da nicotina e eleva o nível de liberação da mesma nicotina. As fábricas brasileiras também
recorreram ao método da amônia, segundo o Instituto Nacional do Câncer.
É mais um ingrediente para engrossar a lista de cerca de 600 compostos que são adicionados ao
cigarro, conforme a própria indústria.” (CARVALHO, op. cit., 2001. p. 18-20).
694
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 44. José Rosemberg, na mesma obra, esclarece que o elenco e a
variedade das investigações em animais e em humanos são difíceis de resumir, porém os itens mais
marcantes são: “Estudos neuro-endocrínicos da ação da nicotina sobre os vários centros cerebrais.
Regulação da função da glândula pituitária. Liberação mais rápida da nicotina e seu maior impacto
sobre o cérebro. Controle da nicotina sobre o estresse e efeito tranqüilizante. Liberação de hormônios
psico-ativos pela ação da nicotina sobre os centros nervosos cerebrais. Transposição da nicotina presa
em nicotina livre objetivando sua maior ação. Transposição da nicotina da fase particulada para a fase
gasosa, mais ativa. Fenômeno de tolerância dos centros nervosos nicotínicos. Graus da dependência à
nicotina no tabaco através do tabaco reconstituído.” Continua o estudioso, evidenciando que essas e
outras linhas de pesquisa conduziram a vários conhecimentos sendo os essenciais: “A ação neuro-
farmacológica da nicotina é de proeminente importância para as pessoas fumarem. Substâncias, como
a amônia elevando o pH do tabaco, liberam mais nicotina. Exploração de métodos de enriquecimento
de nicotina no tabaco: o tabaco reconstituído e engenharia genética. Eletroencelografia como meio de
medição dos graus de intensidade da nicotino-dependência. Ajustamento dos tabagistas nas maneiras
de fumar, para obter níveis mais adequados de nicotina no sangue, proporcionando maior
“satisfação”. Elevação do índice de absorção orgânica da nicotina, em geral na média de 11% para
40%. Conseguir tabacos que farmacologicamente desencadeiam maior sensação prazerosa no fumante.
Cigarros que liberam menos de 0,7 mg de nicotina não são vantajosos comercialmente. É urgente a
335
Apesar de as conclusões
695
extraídas dos documentos secretos
terem certo grau de limitação – os próprios autores do livro The Cigarette
Papers admitem isso –, elas se mostram mais que suficientes para o fecho
deste capítulo, qual seja, o de que a indústria do fumo agiu no exercício
irregular de um direito, abusando dele, produzindo e comercializando
cigarros sem informar adequadamente o consumidor – mesmo detendo
informações de que o fumo é prejudicial à saúde – e, o que talvez seja
pior, fazendo apologia do produto perigoso por meio de insidiosas
publicidades
696
.
7.3 A postura adotada pela indústria do fumo para garantir a
comercialização de seus produtos: oferta publicitária insidiosa
promovendo o consumo de cigarros
confeccção de cigarros com maior nível de liberação de nicotina. Para os futuros produtos, é
imprescindível a maior liberação de nicotina. Por isso, além dos procedimentos pesquisados, impõe-se
a cooperação da engenharia genética para obtenção de tabco mais rico de nicotina. (ROSEMBERG,
op. cit., 2003. p. 44-45.
695
Note-se importante trecho do livro The cigarette papers, em tradução livre: “Durante os anos 50
apareceram pesquisas ligando o cigarro a efeitos adversos à saúde. A indústria do tabaco respondeu à
crescente preocupação pública sobre os efeitos do cigarro à saúde, promovendo cigarros de filtro e
formando o comitê de pesquisa da indústria do tabaco. Embora a indústria tenha alegado publicamente
que ambas as ações estavam sendo tomadas nos interesses da saúde pública, os documentos indicam
que a real motivação por trás delas era convencer o público de que não havia provas de que o cigarro
realmente acarretava perigos à saúde. A publicação do US Surgeon General, Smoking and Health,
criou uma crise na indústria. O advogado geral da B&W aconselhou que a companhia deveria tentar
desenvolver um cigarro “mais seguro”, em parte para se proteger de processos judiciais. Como
discutido nos Capítulos 3 e 4, durante os anos 60 e 70, a indústria conduziu pesquisas para entender a
nicotina e identificar e remover elementos danosos da fumaça do tabaco. Até agora, porém, não
conseguiu produzir um cigarro mais seguro.” No original: “During the 1950s research linking
cigarette smoking to adverse health effects was reported. The tobacco industry responded to the
growing public concern over the health effects of smoking by promoting filter cigarettes and by forming
the Tobacco Industry Research Committee. Although the industry claimed publicly that both of these
actions were being taken in the interests of the public health, the documents indicate that the true
motivation behind them was to convince the public that the health hazards of smoking had not been
proven. The release of the 1964 report of the US Surgeon General, Smoking and Health, created a crisis
within the industry. The general counsel of B&W advised that the company should attempt to develop a
“safer” cigarette, in part to protect itself against lawsuits. As discussed in chapters 3 and 4, during the
1960s and 1970s, the industry conducted research to understand nicotine and to identify and remove
harmful elements from tobacco smoke. Ultimately, however, the industry failed to make a safer
cigarette.” (GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 56).
696
A esse respeito, importante citar a conclusão do Desembargador Adão Sérgio do Nascimento Cassiano,
ao decidir um caso envolvendo a matéria abordada no presente trabalho: “Essas as inegáveis verdades
que os fabricantes de cigarro de todo o mundo sempre souberam e tiveram consciência, e que sempre
tentaram ocultar. Portanto, a indústria de cigarro sempre soube, no mínimo desde o início da década
de 50, que seu produto causa dependência química e psíquica e que mata, entre outras doenças, por
câncer e enfisema pulmonar”. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n.
7000144626, Relatora Desembargadora Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira, apelação provida por maioria,
julgado em 29 de outubro de 2003. Disponível em: <http://www.tjrs.gov.br>).
336
Num raciocínio embasado nas informações até aqui colocadas,
não se mostra dificultosa a conclusão de que a indústria do fumo adotou
estratégia destinada a desacreditar a ciência legítima, somando esforços
para incitar controvérsias e dúvidas sobre estudos divulgados desde o
início dos anos 50
697
, que vinculavam a prática do tabagismo aos prejuízos
à saúde humana. A publicidade massiva e insidiosa, veiculada pela
indústria do fumo, é peça fundamental desse complexo quebra-cabeças.
Mesmo antes que as evidências científicas começassem a
apontar a ligação entre o consumo de cigarros e diversas doenças, as
companhias de tabaco, nos EUA, já promoviam anúncios publicitários
insinuando que algumas marcas eram ‘mais saudáveis’ ou ‘menos
irritantes’ que outras, consoante demonstra os documentos secretos da
indústria do fumo.
Um dos documentos simplesmente lista os slogans de
publicidades de várias marcas de cigarro dos anos 20 até os 50, incluindo
Kool, Camel, Lucky Strike, Old Gold e Viceroy.
698
Vejam-se algumas
dessas ofertas publicitárias:
a) “É torrado. Sem irritação da garganta – sem tosse.” (Lucky
Strike, em 1928).
b) “20.679 médicos confirmaram o fato de que Lucky Strike é
menos irritante à garganta que outros cigarros.” (Lucky Strike, em
1929).
c) “Pelo bem de sua garganta, mude dos ‘Quentes’ para
Kools.” (Kools, nos anos 30 e 40).
d) “O novo filtro guarda-saúde faz Viceroy melhor para a sua
saúde do que qualquer outro cigarro líder!” (Viceroy, nos anos 50,
quando o público se encontrava mais apreensivo em razão dos informes
divulgados na imprensa, de que o tabagismo causaria riscos à saúde. Em
697
O cientista britânico sir Richard Doll, a primeira pessoa a estabelecer uma ligação clara entre fumar e
câncer de pulmão, morreu recentemente, dia 24 de julho de 2005, aos 92 anos, em Oxford, na Grã-
Bretanha. Uma pesquisa publicada em 1950, escrita com seu colega Austin Bradford Hill, foi a primeira
evidência científica de que o hábito afeta negativamente e de forma crescente a saúde humana. Na
época, 80% dos britânicos fumavam; hoje, são 26%. (Vida &. O Estado de S.Paulo. A.13. Cientista que
ligou cigarro ao câncer morre aos 92 anos).
698
GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 28.
337
tal época, a indústria promoveu maciçamente os cigarros com filtro e fez
anúncios de menos alcatrão).
e) “Apesar de muitos filtros ajudarem a remover os teores do
tabaco, análises de laboratório provaram que a fumaça de outros
cigarros com filtro líderes contêm até 110,5% mais nicotina do que
Viceroy.” (Viceroy, em 1952).
f) “Por que os homens e mulheres das faculdades fumam mais
Viceroy que qualquer outro cigarro? Porque só Viceroy dá a você 20.000
proteções de filtro em cada um deles, feitas de uma substância natural
pura – a celulose – encontrada em deliciosas frutas e outros alimentos!
Além de não ser mineral e atóxico, esse filtro de acetato de celulose
nunca quebra ou deforma.” (Viceroy, em 1955).
g) “Não há outro filtro como Viceroy! Sem algodão! Sem papel!
Sem asbestos! Sem carvão mineral! Sem nenhum tipo de substância
estranha!” (Viceroy, em 1955, numa publicidade divulgada em revista)
699
.
Estudiosos dos documentos secretos da indústria do fumo
esclarecem que esses slogans, juntamente com o memorando escrito por
Ernest Pepples, referindo-se à ‘corrida do alcatrão’, indicam que a
indústria do fumo começou a promover os cigarros de filtro e de baixos
teores durante os anos 50, sobretudo para acalmar a animosidade pública,
surgida em razão de estudos vinculando o cigarro a várias doenças.
Embora os anúncios da época sugerissem que os novos cigarros eram
‘mais saudáveis’, não havia nenhuma evidência real de que isso era
realmente uma verdade. Depois de vinte anos, em 1977, evidências
699
No original a transcrição de tais slogans (The cigarette papers [...]. p. 28-29):
a) “It’s toasted. No Throat Irritation – No Cough.”
b) “20.679 physicians have confirmed the fact that Lucky Strike is less irritating to the throat than other
cigarettes.”
c) “For your Throat’s sake Switch from ‘Hots’ to Kools.”
d) “New HEALTH-GUARD Filter Makes VICEROY Better For Your Health Than Any Other Leading
Cigarette!”
e) “Although most filters help to remove tobacco tars, laboratory analysis proved that smoke from other
leading filter-tip cigarettes contain up to 110,5% more nicotine than VICEROY.”
f) “Why do more college men and women smoke VICEROYS than any other filter cigarette? Because
only VICEROY gives you 20.000 filter traps in every filter tip, made from a pure natural substance –
cellulose – found in delicious fruits and other edibles! Besides being non-mineral and no-toxic, this
cellulose acetate filter never shreds or crumbles.”
g) “No other filter like VICEROY! No cotton no paper! No asbestos! No charcoal! No foreign
substances of any king!
338
surgiram, mas no sentido de que a diminuição de teores e a utilização de
filtros tinham apenas um efeito modesto na redução do risco enorme
representado pelo consumo de cigarros
700
.
Hoje, o discurso de muitas fabricantes de fumo mudou. Segundo
elas, a comercialização de cigarros de filtros e ‘low-tar’ mantêm-se por
causa da demanda do público, e não porque se acredita que esses produtos
são mais seguros. Ressalte-se, contudo, que foram as próprias empresas
de tabaco, por meio de massiva campanha publicitária, que ajudaram a
criar a ilusão de que esses produtos seriam menos perigosos [...]
701
.
Com o passar dos anos, a publicidade ofertada pela indústria do
tabaco foi se tornando mais e mais sofisticada e incisiva, fosse para
garantir uma gorda fatia do competitivo mercado, fosse ainda para incitar
controvérsias e dúvidas nos estudos que vinham se assomando com maior
freqüência, evidenciando uma ligação direta do consumo de cigarros a
varias enfermidades.
No próximo capítulo, se verá que a publicidade de cigarros
jamais teve cunho informativo e esclarecedor. Sempre foi promovida com
o objetivo de criar uma necessidade artificial de consumo e manter na
sociedade uma ambientação constante do produto nocivo. A motivação do
consumidor era buscada mediante a aproximação de modos de ser e viver
ao produto anunciado. Assim, relacionavam-se os cigarros a atividades
esportivas, sociabilidade, saúde, requinte, sucesso profissional, etc.
Refletia-se a idéia de que fumar era algo prazeroso, hábito de pessoas
inteligentes, produtivas e livres. Tal estratégia publicitária, hoje proibida
no Brasil, objetivava primordialmente a persuasão, já que tinha por
matéria prima sons e imagens sedutores, voltados a incitar a prática do
tabagismo, tática bastante eficiente, principalmente quando endereçada a
crianças e adolescentes
702
, pessoas naturalmente imaturas, ou inseridas
700
GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 30.
701
Ibid., p. 30.
702
Sobre a importância da idade em que se começa a fumar para desenvolvimento mais intenso da
dependência da nicotina, mister citar-se passagem da obra de José Rosemberg: “Os que se iniciam no
tabagismo em torno dos 14 anos de idade, cerca de 90% estão dependentes aos 19 anos. Tem-se
comprovado que os que começam a fumar entre os 14 a 16 anos desenvolvem muito maior dependência
da nicotina, em comparação com aqueles que fumaram o primeiro cigarro depois dos 20 anos de idade.
Nos adolescentes a nicotina provoca ação imediata sobre a função colinérgica, com alterações
persistentes refletindo-se na dependência, aprendizado e memória. O adolescente é mais vulnerável
339
num contexto de mudanças psicológicas e hormonais próprias da
adolescência.
Essa a linha de raciocínio de Cláudia Lima Marques, ao lecionar
que
[...] não somente as empresas [do tabaco] desinformaram
voluntariamente seus milhares de consumidores, como
enviaram mensagens que – para estes leigos – eram aceitáveis e
acreditáveis. Em outras palavras, a informação publicitária
(imagens, induções, sons, risos, frases, personagens, situações
de esporte, lazer, prazer etc.) é recebida e processada por um
leigo, o consumidor brasileiro, que nela acredita, de forma
totalmente escusável
!
De maneira a evitar argumentos repetitivos acerca do ilegítimo
estratagema publicitário, do qual se valeu a indústria do tabaco décadas e
décadas no Brasil – argumentos esses já abordados e a serem traçados
com mais profundidade no próximo capítulo deste trabalho –, apenas se
fará referência a uma importante prova técnica que comprovou o potencial
lesivo de um material publicitário veiculado pela empresa Souza Cruz S.A
as frases e conclusões transcritas a seguir foram retiradas do aludido
trabalho técnico, que não foi objeto de publicação.
No ano de 2000, atendendo a requisição do Promotor de Justiça,
Dr. Guilherme Fernandes Neto, da Quarta Promotoria de Justiça de Defesa
dos Direitos do Consumidor do Distrito Federal, o Instituto de Medicina
para a disfunção colinérgica quando submetido à ação da nicotina. A nicotina, no adolescent,e produz
rápida alteração no sistema noradrenérgico e dopaminérgico dos centros nervosos cerebrais. A
vulnerabilidade dos adolescentes à nicotina deriva da circunstância de que o cérebro ainda não está
completamente desenvolvido. Experimentalmente constatou-se que a instilação de nicotina em ratos
jovens exerce extensa ação sobre os receptores acetilcolínicos, o que não ocorre nos ratos adultos.
Além disso, verifica-se que em ratos mais jovens, a nicotina provoca maiores prejuízos funcionais no
sistema de recompensa, que em ratos adultos. Estudos em humanos indicam que o cérebro de
adolescentes é particularmente vulnerável à nicotina, e que a dependência é mais intensa, razão porque
a interrupção de sua administração, por deixar de fumar, apresenta maiores perturbações da função
neurológica, com maior freqüência de depressão. Estudo de mais de 30 mil homens e cerca de 19 mil
mulheres, ambos adolescentes, demonstrou que os iniciados no tabagism, desenvolveram intensa
dependência, traduzida pelo aumento de consumo de cigarros, quando na idade adulta. Os que
começaram a fumar antes de 14 anos, 19,6%, quando adultos consumiam 41 ou mais cigarros por dia,
comparados com 10,3%, quando começaram a fumar aos 20 ou mais anos de idade. O consumo foi um
pouco inferior no sexo feminino. Outro estudo demonstrou que adolescentes fumantes têm duas vezes
mais dificuldade de deixar de fumar que os tornados tabagistas, depois de 20 anos. Em suma, é farta a
documentação evidenciando que a dependência da nicotina processa-se mais rapidamente e é mais
forte, nos que ingressam no tabagismo em torno dos 14 anos, sendo mais difícil de superá-la, obrigando
a consumir maior quantidade de cigarros continuamente, com sérias conseqüências à saúde.
(ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 28-29).
340
Legal da Coordenação de Polícia Técnica da Polícia Civil do Distrito
Federal, nas pessoas dos psicólogos Drs. Patrícia de Oliveira, Rita
Elizabeth da Mota Britto Rocha, Álvaro Pereira da Silva Júnior, realizou a
análise psicológica da publicidade de cigarro “Free”, intitulada “Artista
Plástico II”, elaborado pela Agência de Publicidade Standart Ogilvy &
Mater.
Abaixo, o monólogo do citado material publicitário,
pronunciado por pessoa do sexo masculino, passando a idéia de um jovem
multifacetário, do ponto de vista intelecto-profissional:
Meu nome é Daniel Zanage. Eu trabalho com luz, computador,
arte, filmes, sombra, letras, imagens, pessoas.
Vejo as coisas assim: certo ou errado, só vou
Saber depois que eu fiz.
Eu não vou passar pela vida sem um arranhão.
Eu vou deixar minha marca.
Segundo os três psicólogos responsáveis pelo laudo técnico,
algumas frases possuem uma entonação incisiva e algo irresponsável, na
medida em que o interlocutor deixa clara sua vontade de agir
impulsivamente diante de conflitos: “Vejo as coisas assim: certo ou
errado, só vou saber depois que fiz”. Ademais, afirmam que parece não
haver preocupação com as conseqüências de sua decisão: “Eu não vou
passar pela vida sem nem um arranhão”. Apontam, também, sinais de
postura individualista, com conotação de status e poder: “Eu vou deixar a
minha marca”.
Nas palavras dos profissionais:
O comportamento e a linguagem utilizada pelo protagonista da
publicidade atingem em cheio as dificuldades vivenciadas por
pré-adolescentes e adolescentes e, considerando este aspecto,
são grandes as chances de haver um processo de identificação
entre o público pertencente às referidas faixas etárias e o
padrão verbal e comportamental utilizado no monólogo, o que
associado a outras variáveis pode compor um quadro
facilitador de acesso ao produto veiculado, especialmente para
o público citado acima
.
Não só isso, porém. Concluíram os psicólogos que o material
apresentado contém recursos considerados como subliminares, ou seja,
341
atingem o cérebro do público alvo abaixo do limite de sua percepção
(consciência), mas são plenamente capazes de influenciar
comportamentos. Salientam que todas as imagens com poder de
penetração subliminar (com o tempo de exposição em centésimos de
segundos) são dotadas ou de conteúdos influenciadores, ou de algum tipo
de estímulo que provoca alterações do psiquismo, em especial a senso-
percepção. Com efeito, tal publicidade – ainda segundo relato dos
profissionais – é potencialmente capaz de influenciar condutas futuras,
sobretudo em crianças e adolescentes, além de ser capaz de imprimir em
seus telespectadores a sensação de alterações psíquicas (ilusão,
hiperestesia com aumento da intensidade numérica das sensações,
alucinações visuais, etc).
Aponta o laudo que, teoricamente, o adulto possui condições de
perceber e avaliar os riscos e benefícios das situações apresentadas pela
publicidade. Já o adolescente percebe, mas ao dimensionar as
conseqüências do seu ato, o sentimento de onipotência prevalece, o que é
comum nessa fase do desenvolvimento. Tal sentimento de onipotência é
caracterizado pela crença de que vale a pena correr riscos; afinal, nada irá
se reverter contra ele. O personagem central da publicidade sugere, por
meio da palavra, padrões de comportamentos que podem servir como
modelo de identificação a ser seguido.
A conclusão final entabulada no laudo psicológico foi a de que,
em tal publicidade, houve a utilização de técnica específica para
transmitir mensagens contendo estimulação subliminar que, somando ao
tempo de exposição, distribuição cromática e espacial de escala,
impossibilita uma leitura consciente por parte do receptor. Quando isso
ocorre, as inserções de imagens, palavras ou idéias não podem ser
percebidas pelo consumidor em um nível normal de consciência; portanto,
não lhe é dada a opção de aceitar ou rejeitar a mensagem.
Ao responderem os quesitos formulados pelo representante do
Ministério Público, os psicólogos foram taxativos em responder:
a) existem na publicidade frases que estimulam o
comportamento inconseqüente por parte da criança e/ou adolescente,
342
comportamento esse que poderá ser, direta ou indiretamente, de alguma
forma prejudicial à saúde.
b) As imagens da publicidade podem levar uma criança e/ou
adolescente a associar o fumo com o sucesso, circunstância que, por
conseqüência, também poderá levar ao consumo de cigarros.
c) Os estímulos visuais e sonoros utilizados na publicidade
podem despertar o interesse de crianças e adolescentes pelo produto
veiculado.
O brilhante trabalho capitaneado pelo promotor Dr. Guilherme
Fernandes Neto teve resultado positivo para os consumidores: a Souza
Cruz S.A. aceitou retirar do ar a tal publicidade do cigarro Free, de modo
que foram canceladas 240 veiculações do comercial.
8 Conclusões: a configuração do abuso do direito da indústria do
tabaco
O Direito, numa ótica mais restrita, consubstancia-se num
conjunto de normas destinadas a manter, na medida do possível, o bem
comum, servindo-se de meio destinado a evitar as incompatibilidades que,
volta e meia, surgem no seio social, isso em razão dos ilimitados anseios,
necessidades e imperfeições dos homens. Já se foi o tempo em que a
autonomia privada possuía status de intocável, de sorte que o Direito é
responsável pelo desenho do círculo dentro do qual as pessoas podem agir
livremente, articulando-se e concretizando as mais diversas relações
jurídicas que a sua criatividade permitir.
Não raro, porém, esse espaço reservado à vontade tem seus
limites ultrapassados, ainda que não traçados expressamente pelo
ordenamento jurídico, atingindo interesses alheios
703
. Então – leciona
Rosalice Fidalgo Pinheiro –, o próprio Direito parte na busca da
estipulação de limites aos poderes que concedeu ao sujeito, surgindo, daí,
a figura do abuso do direito como mecanismo para a limitação da
703
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O abuso do direito e as relações contratuais: primeiras aproximações.
Disponível em <http://200.160.20.172/publicacoes/direito/01/D.PDF>.
343
liberdade,
704
restringindo-se o exercício dos direitos subjetivos,
relativizando-os, de maneira a garantir respeito aos valores sociais,
morais e éticos sagrados pelo ordenamento jurídico. Nas palavras de
Voltaire:“Un droit porté trop loin devient une injustice
705
.
E a indústria do tabaco literalmente atropelou
maquiavelicamente os limites estabelecidos pelo Direito, no que tange ao
exercício de sua autonomia de vontade, valendo-se de estratégias tão
ardilosas quanto hediondas, para garantir o sucesso de vendas dos
produtos que fabrica. E tamanho foi seu êxito que, no início da década de
90, cerca de 1,1 bilhão de indivíduos usavam o tabaco no mundo; em
1998, esse número já atingia a cifra de 1,25 bilhão
706
.
Contudo, esse triunfo teve um preço avassalador: segundo a
Organização Mundial de Saúde (OMS), a cada ano, morrem cerca de 5
milhões de pessoas em todo o mundo, devido ao consumo de tabaco,
sendo que, no Brasil, são estimadas mais de 200 mil mortes/ano
decorrentes do tabagismo
707
.
Mas onde exatamente se situaria o limite ultrapassado pela
indústria do fumo, a abalizar a conclusão de que agiu ela no exercício
abusivo de seu direito? A resposta atualmente é de fácil solução,
mormente em razão do que se descobriu com a publicação de milhões de
páginas de documentos de circulação interna de grandes transnacionais de
tabaco, como resultado de um acordo judicial entre Estados americanos
contra a indústria do tabaco – grande parte de tais documentos encontra-
se à disposição do público, na internet.
A análise de tais documentos propicia um entendimento
translúcido sobre o pensamento estratégico da indústria do fumo, visando
difundir seus produtos no mercado de consumo mundial. Se hoje a
nicotina é a segunda droga mais usada entre os jovens, e isso no Brasil
como em todo o globo, tal se deve provavelmente à forma pela qual o seu
704
Ibid., [s.d.].
705
Em tradução livre: “um direito levado longe demais se torna uma injustiça”. Trecho citado no trabalho
de Leonardo Mattieto (Do abuso de direito: perfil histórico da teoria. Disponível em
<www2.uerj.br/~direito/ publicações/mais_artigos/do_abuso_de_direito.html>).
706
Ação global para o controle do tabaco. 1º Tratado Internacional de Saúde Pública. 3. ed. Criação do
Instituto Nacional de Câncer (INCA), 2004. p. 6. Disponível em <http://www.inca.gov.br>.
707
Ibid., p. 6.
344
consumo foi historicamente inserido na sociedade
708
. Fatores que facilitam
a obtenção de cigarros, como o baixo custo, somados a atividades de
promoção e publicidade, associando-os a imagens de beleza, sucesso,
liberdade, poder, inteligência e outros atributos desejados especialmente
pelos jovens, criaram, durante anos, uma aura de aceitação social e de
imagem positiva do comportamento de fumar – a glória dessas estratégias
pode ser traduzida no fato de que 90% dos fumantes principiam-se a
fumar antes de alcançar os 19 anos de idade
709
.
É fato que as ações propostas para o controle do tabagismo, ao
longo dos anos, têm surtido efeito positivo, de modo que, na maioria dos
países desenvolvidos, o consumo de cigarros diminuiu razoavelmente,
circunstância que, certamente, acarretará uma diminuição no número de
adoecimentos e mortes causados por doenças tabaco-relacionadas.
Numa análise global, porém, a situação é bem outra. O
tabagismo vem crescendo dia-a-dia, e isso, tanto em decorrência do
reflexo das estratégias arquitetadas pela indústria do fumo para direcionar
o mercado de cigarros aos países em desenvolvimento, como por outras
estratégias, essas voltadas ao estímulo do consumo, especialmente
dirigidas a seguimentos sociais mais vulneráveis, como o das crianças e
adolescentes. E é aqui, na sede de tais estratégias arquitetadas pela
indústria do tabaco, que se encontra sustentáculo jurídico para abrigar a
incidência da teoria do abuso do direito.
Em trabalho de peso, produzido e editado pelo Instituto
Nacional de Câncer (INCA), órgão do Ministério da Saúde, intitulado
‘Ação global para o controle do tabaco – 1º Tratado Internacional de
Saúde Pública’, acessível a todos pela internet, no site
<http://www.inca.gov.br>, vários documentos internos da indústria do
fumo são analisados, de sorte a evidenciar, de maneira lúcida, parte do
pensamento e estratégia da indústria do tabaco. Veja-se a transcrição de
alguns desses documentos, quando comparados ao posicionamento da
indústria do tabaco perante o público:
708
Ação global para o controle do tabaco. Tratado Internacional de Sdeblica. 3. ed. Criação do Instituto
Nacional de Câncer (INCA), 2004. p. 6. Disponível em: <http://www.inca.gov.br>.
709
Ibid., p. 6.
345
1) Posicionamento da indústria perante o público:
“A propaganda não é dirigida aos jovens”.
O que os documentos mostram:
“Eles representam o negócio de cigarros do amanhã. À medida
que o grupo etário de 14 a 24 anos amadurece, ele se tornará a parte chave
do volume total de cigarros, no mínimo pelos próximos 25 anos” (J.W.
Hind, R.J. Reynolds Tobacco, internal memorandum, January 23, 1975).
2) Posicionamento da indústria perante o público:
“A pressão dos amigos é o fator mais importante para o
tabagismo infantil.”
“A propaganda de cigarros afeta meramente a demanda dentro
da categoria de produtos, através do fortalecimento da lealdade à marca
ou criando mudanças de marca, mas não é dirigida para aumentar o
consumo total às custas de não fumantes.”
O que os documentos mostram:
“Atingir o jovem pode ser mais eficiente mesmo que o custo
para atingi-los seja maior, porque eles estão desejando experimentar, eles
têm mais influência sobre os outros da sua idade do que eles terão mais
tarde, e porque eles são muito mais leais a sua primeira marca.” (Escrito
por um executivo da Philip Morris em 1957).
3) Posicionamento da indústria perante o público:
“A Souza Cruz fabrica cigarros para o consumo exclusivo de
adultos, baseada nos melhores mecanismos e meios de produção.”
(<www.souzacruz.com.br/2002>).
O que os documentos mostram:
“[...] um cigarro para o iniciante é um ato simbólico. Eu não sou
mais a criança da minha mãe, eu sou forte, eu sou um aventureiro, eu não
sou quadrado [...]. À medida em que a força do simbolismo psicológico
346
diminui, o efeito farmacológico assume o papel de manter o hábito.”
(Rascunho de relatório do Quadro de Diretores da Philip Morris, 1969).
“É importante saber tanto quanto possível sobre os padrões de
tabagismo dos adolescentes. Os adolescentes de hoje são os potenciais
consumidores regulares de amanhã, e a grande maioria dos fumantes
começa a fumar na sua adolescência [...]. Devido ao grande espaço que
ocupa no mercado entre os fumantes mais jovens, a Philip Morris sofrerá
mais do que qualquer outra companhia com o declínio do número de
adolescentes fumantes” (Memorando enviado por um pesquisador da
Philip Morris, Myron E. Johnston para Robert B. Seligman, Vice
Presidente de pesquisa e desenvolvimento da Philip Morris, 1981).
4) Posicionamento público:
“Nicotina é importante para dar sabor ou aroma – não para a
dependência.”
“Aqueles que definem fumar como uma dependência, o fazem
por razões ideológicas e não científicas”. (Posição da Philip Morris em
1996).
“Em 1994, durante uma audiência no Congresso Americano sete
altos executivos de escritórios de companhias de tabaco americanas deram
testemunhos de que a nicotina não causa dependência: Nós não ocultamos
antes, nem ocultamos agora, nem nunca ocultaremos [...] nós não temos
nenhuma pesquisa interna que prove que fumar [...] é aditivo.” (Martin
Broughton, Chief Executive BAT).
“Entrevista para uma revista – John Carlisle da Tobacco
Marketing Associaton (UK, 1998): Pergunta – A nicotina causa
dependência? Carlisle – “A definição de dependência é ampla e variada.
Pessoas são dependentes de Internet. Outras são dependentes de shopping,
sexo, chá e café. A linha que eu consideraria é a de que o tabaco não
causa dependência e sim de que é formador de hábito.”
“Posicionamento sobre dependência de nicotina, homepage da
Souza Cruz, 2002: “A nicotina é um componente natural do fumo e
apresenta propriedades farmacológicas que contribuem para o prazer.
Mesmo sendo uma parte importante da experiência de fumar, a nicotina
347
não é a única razão para fumar. Aspectos culturais e sociais, entre outros,
estão envolvidos no ato de fumar, que é uma escolha da caráter puramente
individual. Certamente é difícil deixar de fumar para alguns fumantes,
mas não existe nada em nossos produtos que retire do fumante a sua
capacidade de parar de fumar.” (<www.souzacruz.com.br>).
O que os documentos mostram:
“Nicotina causa dependência. Nós estamos, portanto, no ramo
de vender nicotina, uma droga que causa dependência.” (Addison Yeaman
from Brown and Williamson B&W, 1963).
“A nicotina tem a propriedade de uma droga de abuso. Ela tem
propriedade de droga de adição... Estes (os resultados) são completamente
contraditórios com a posição da indústria de que a nicotina está nos
cigarros para dar sabor. Nós sabemos que eles (os camundongos)
pressionavam a alavanca devido aos efeitos da droga nos cérebros dos
animais. Nós também sabemos, a partir de estudos, que se a droga fosse
cocaína ou morfina ou álcool os camundongos continuariam a pressionar a
alavanca. Nós encontramos o mesmo com a nicotina.” (Informações do
cientista Victor DeNoble da Philip Morris sobre experimentos em
camundongos nos quais injetou nicotina diretamente no coração – Philip
Morris, quoted on Dispatches, Channel 4, 1996).
“A BAT deveria aprender a se ver mais como uma companhia de
droga do que como uma companhia de tabaco.” (Memorando escrito por
cientistas da BAT, 1980).
“Nós também achamos que se deve considerar a hipótese de que
os altos lucros adicionais associados com a indústria do tabaco estão
diretamente relacionados ao fato do consumidor ser dependente do
produto... Olhando de outra forma, não procede que o produto X,
enquanto alternativa futura, mantenha um nível de lucro acima da maioria
das outras atividades do ramo de produtos, a não ser que, como o tabaco,
seja associado à dependência.” (BAT, 1979).
“Tem sido sugerido que a fumaça do cigarro é a droga mais
aditiva. Certamente, um grande número de pessoas continuará a fumar
porque eles não conseguem deixar. Se eles pudessem, eles o fariam. Não
348
se pode mais dizer que eles fizeram uma escolha adulta.” (Dr. Green,
funcionário da BAT, 1980).
5) Posicionamento público:
“Posicionamento sobre riscos do consumo de tabaco, homepage
da Souza Cruz, 2002: Importante destacar, entretanto, que a ciência ainda
não é capaz de explicar os mecanismos causais entre o ato de fumar e
doenças, nem qual a probabilidade de um determinado fumante
desenvolver ou não uma doença relacionada ao ato de fumar. Os riscos
variam de uma doença para outra, de uma população para outra e com o
número de cigarros fumados, e as doenças associadas têm natureza
multifatorial.
(<www.souzacruz.com.br/frame_left.asp?n=posicionamentos, 2002>).
O que os documentos mostram:
“Quanto aos carcinógenos da fumaça do tabaco, esta contém não
apenas um carcinógeno mas uma galáxia deles... A eliminação do
carcinógeno não parece factível [...]. Do meu ponto de vista, portanto, é
pouco provável que dentro do escopo da criação de cigarros aceitáveis se
torne possível reduzir substancialmente o risco de doenças associadas ao
tabagismo no futuro.” (BAT, 1986 – extraído da análise documental
apresentada por Stella Aguinaga, no Fórum sobre Mídia em Tabaco,
2000).
“Nunca foi possível que as pesquisas que permitiram a produção
de um cigarro não cancerígeno também produzissem um cigarro que
atendesse ao gosto dos consumidores e ao mesmo tempo fosse livre dos
riscos para a saúde, particularmente os relacionados a doenças
cardiovasculares e a doenças pulmonares obstrutivas crônicas.” (BAT,
1993 – extraído da análise documental apresentada por Stela Aguinaga, no
Fórum sobre Mídia em Tabaco, 2000).
6) Posicionamento público:
“Muitas pessoas têm sido levadas a crer que a fumaça ambiental
do cigarro (FAC) é fato de risco ou causa de doenças em não-fumantes.
349
As pesquisas científicas analisadas, em conjunto, não são suficientes e
conclusivas para afirmar que a FAC esteja associada a uma maior
incidência de doenças respiratórias e cardíacas ou câncer de pulmão.”
(<http://www.souzacruz.com.br>).
“O estudo sobre câncer de pulmão em fumantes passivos não
encontrou nenhum aumento estatístico significativo em termos de riscos
[...]. Vamos comparar isso com resultados recentes do Instituto do Câncer
dos Estados Unidos. Investigando fatores de riscos da dieta alimentar,
eles encontraram casos em que os riscos de câncer de pulmão aumentam
mais do que no caso de fumo no ambiente. Por exemplo, em frituras de
carnes há um aumento de 57% no risco. Para produtos de laticínio é muito
maior [...]. Lamentavelmente, concluo que ainda não sabemos, com
exatidão, qual o nível da exposição à fumaça dos cigarros que aumenta os
riscos de doenças coronarianas, ou se essa exposição realmente apresenta
riscos.” (Christopher Proctor – director da Science & Regulation BAT,
Reino Unido – em apresentação no Brasil – Anais do Seminário
Internacional sobre Fraudes no setor de cigarros – agosto 2001).
O que os documentos mostram:
“Uma outra questão importante que afeta a aceitação (de fumar)
é o tabagismo passivo. Nossa atual iniciativa é desafiar toda a área com o
“baixo risco epidemiológico”. Existem experts externos de reputação que
acreditam que essa é uma ciência altamente imprecisa e nós estamos
encontrando meios de exprimir essas preocupações.” (BAT, 1986).
“Objetivos da campanha da Philip Morris dirigida a
pesquisadores, à mídia e ao governo para se contrapor ao estudo do
International Agency on Research on Cancer (IARC) sobre os riscos do
tabagismo passivo. Objetivos: Retardar o progresso e/ou a liberação do
estudo; interferir nas suas conclusões e declarações oficiais de seus
resultados; neutralizar possíveis resultados negativos do estudo,
particularmente o seu uso como um instrumento regulatório; contrapor-se
ao potencial impacto do estudo na política governamental, opinião pública
e ações por empregados e patrões.” (Philip Morris, 1993).
350
7) Posicionamento público:
“O contrabando prejudica nossos negócios. Faríamos mais
dinheiro a longo prazo se ele pudesse ser eliminado. Gostaríamos que
todos os mercados estivessem totalmente livres do contrabando.”
(Resposta da Souza Cruz à matéria do Jornal Valor Econômico,
09/05/2002).
O que os documentos mostram:
“Como se sabe, os cigarros contrabandeados (devido aos
exorbitantes níveis tributários) representam quase 30% do total das
vendas no Canadá, e este nível segue aumentando. Ainda que tenham
acordado em apoiar o Governo Federal, para reduzir o contrabando,
limitando nossas exportações aos EUA, nossos competidores não o
fizeram. Por isso, decidimos eliminar os limites às exportações, para
recuperar a nossa participação entre os fumantes canadenses. Fazer o
contrário colocaria em perigo o bem-estar, no longo prazo, de nossas
marcas registradas no mercado nacional. Até que se resolva a questão do
contrabando, será exportado um volume cada vez maior de produtos do
Canadá, que depois entrarão novamente por contrabando para a venda.”
(BAT, 1993).
8) Posicionamento público:
“A SOUZA Cruz fabrica cigarros para o consumo exclusivo de
adultos.” (<http://www.souzacruz.com.br>).
“A companhia contribui de forma significativa para combater o
fumo antes da idade adulta.” (Souza Cruz, ofício enviado ao INCA,
novembro de 2001).
“A empresa vende e divulga seus produtos de uma maneira
responsável, incluindo todos os recursos e materiais usados na
publicidade e nas operações de venda e distribuição.” (Souza Cruz, ofício
enviado ao INCA, novembro de 2001).
O que os documentos mostram:
351
“Nosso objetivo é comunicar que a indústria do tabaco não está
interessada em que os jovens fumem e posicionar a indústria como uma
“corporação cidadã responsável”, num esforço para repelir novos ataques
pelo movimento anti-tabaco.” (Philip Morris – América Latina: Campanha
dirigida ao Jovem da América Latina, 1993).
“O programa juvenil e suas partes individuais apóiam o objetivo
do Instituto de Tabaco de dissuadir as restrições injustas e
contraproducentes, nos níveis federal, estadual e local, contra a
publicidade de cigarros através das seguintes medidas: reforçar a crença
de que a pressão dos pares e não a publicidade é o fator causal para os
jovens fumarem; atingir o centro político e pressionar a um extremo os
que estão contra o tabaco.
A estratégia é bastante simples: fomentar intensamente a
oposição da indústria em relação ao tabagismo entre jovens; alinhar a
indústria com uma visão mais ampla e sofisticada do programa, ou seja,
com a incapacidade paterna de se contrapor à pressão dos colegas dos
seus filhos; colaborar com profissionais e educadores de boa reputação e
que lidam com o bem estar infantil, para abordar o “problema”; provocar
as forças contra o tabaco para que critiquem os esforços da indústria.
Concentrar a atenção em extremismos das posturas contra o tabaco.
Adiantar-se para abrandar os pontos mais fortes dos oponentes;
estabelecer a idéia de um programa bem recebido, em crescimento,
alimentando-o com uma proliferação de projetos pequenos locais e
parcerias com outros aliados. Evitar depender de uma única organização
[...]” (Tobacco Institute, 1991).
O mesmo trabalho identifica o pensamento expansionista do
mercado de cigarros, direcionado aos países em desenvolvimento, bem
assim noticia como a indústria do tabaco tem se organizado para minar as
políticas de controle do tabagismo no mundo inteiro e para contra-atacar e
desacreditar órgãos envolvidos no controle do tabagismo. A estratégia de
lobby e aliança envolvendo diferentes setores sociais, como agricultura,
mídia, governos e congressos nacionais dos países, também se encontra
352
explicitamente mencionada nos documentos internos da indústria do fumo.
Veja-se:
1) “O consumo de tabaco nas nações desenvolvidas seguirá uma
tendência de redução até o final do século, ao passo que nos países em
desenvolvimento o consumo poderia aumentar em cerca de 3% ao ano! Um
quadro verdadeiramente promissor! Não haverá uma sociedade sem
fumantes, e sim um crescimento mantido para a indústria do tabaco.”
(Tobacco Reporter, 1989).
2) “Temos que encontrar uma maneira de alimentar os monstros
que foram citados. Praticamente, a única que restou, foi procurar
aumentar as vendas em países em desenvolvimento.” (Tobacco Reporter,
1991).
3) Não deveríamos estar deprimidos só porque o mercado total
do mundo livre parece diminuir. Dentro do mercado total, existem áreas
de sólido crescimento, particularmente na Ásia e na África; se abrem
novos mercados às nossas exportações, tais como nos países da Indo-
China e do Comecon; e existem grandes oportunidades de aumentar nossa
participação no mercado de algumas regiões da Europa [...]. Esta indústria
é sistematicamente rentável. E existem oportunidades de aumentar ainda
mais essa rentabilidade.” (BAT, 1990).
4) Este é um mercado com um enorme potencial. O índice de
crescimento demográfico é 2,2% ao ano e 40% da população é menor de
18 anos.” (Philip Morris Turquia, 1997),
5) Pensar nas estatísticas de consumo de cigarros na China é
como pensar nos limites do espaço.” (Rothmans, 1992).
6) “O mercado de cigarros chinês é três vezes maior que o
mercado nos Estados Unidos e representa mais de 30% das 5,4 bilhões de
unidades consumidas no mundo. Como o segmento internacional total
353
aumenta a menos de 1% deste enorme mercado, temos um lugar amplo
para um crescimento extraordinário.” (Philip Morris, 1993).
7) “Não é prudente pressupor um crescimento substancial
considerável nos países em desenvolvimento, em vista da rápida
intensificação das pressões internacionais que as organizações contra o
tabaco exercem sobre os governos e sobre os consumidores [...]. Para
podermos maximizar o crescimento, no longo prazo, nos países em
desenvolvimento, devemos procurar neutralizar a pressão contra o tabaco
dando a impressão de que: atuamos de forma responsável, tendo em vista
a quantidade de opiniões acerca dos efeitos de fumar sobre a saúde.
Preparamos nossos métodos de comercialização para demonstrar esta
responsabilidade; somos um hóspede aceitável no país anfitrião, onde
nossa presença gera benefícios econômicos consideráveis; somos
contribuintes, e não exploradores.” (BAT, 1980).
8) “Diretriz estratégica global da Philip Morris Latin América
Inc.: “Dar suporte às mossas subsidiárias através de programas que
procurem obter/manter a liberdade de preço e uma taxação justa, e ao
mesmo tempo promover uma maior sensibilidade e tolerância por parte
dos governos e do público, no que se refere ao tabagismo e a sua
publicidade. Obter apoio da comunidade de mídia e de publicidade para
oposição às restrições. Promover/fortalecer alianças com a comunidade de
publicidade para oposição ao banimento da propaganda (em andamento).
Organizar uma série de simpósios para promover a liberdade de discurso
comercial e aumentar o apoio contra a restrição (em andamento).” (Philip
Morris – Plano Estratégico 1994-1996).
9) “Dar assistência as suas afiliadas para evitar a aprovação da
legislação para banir ou restringir o tabagismo em ambientes públicos e
privados.” (Philip Morris, Objetivos para a América Latina 1993).
10) “A Philip Morris assumiu um papel de liderança na Câmara
de Comércio Filipina. Prestamos assistência na visita altamente produtiva
da presidenta Aquino aos Estados Unidos. O pessoal da Philip Morris
354
Internacional ocupa atualmente postos chave em uma ampla variedade de
organizações internacionais, o que pode nos ajudar nos próximos anos.”
(Philip Morris, 1986).
11) “Os aliados: seguiremos formando nossos executivos como
porta-vozes públicos eficazes, e buscaremos as oportunidades para que
possam difundir nossas mensagens. Recrutaremos e ativaremos outras
‘vozes/aliados’ com quem possamos contar para divulgar nossas opiniões
de forma criativa.” (Philip Morris, 1989).
12) “Identificar aqueles membros dentro do Congresso que,
devido a sua antiguidade, cargo de liderança etc., tenham uma maior
chance de vir a ser parte da próxima geração de líderes do Congresso...
Deveríamos refinar os programas atuais para ampliar nossa presença ante
estes membros, como reuniões, jantares e eventos para arrecadar fundos,
além das necessidades de financiamento especiais destes membros.”
(Tobacco Institute, 1982).
13) “Devemos desacreditar o grupo dos “anti”... Temos sido
advertidos para adotar uma mentalidade de sítio. E temos ouvido alguns
comentários interessantes que questionam se é correto, como se diz no
exército, disparar em tudo que se move. Porém, ao desenvolver contra-
medidas, creio que não devemos duvidar de que há um estado de guerra.”
(Tobacco Institute, 1979).
14) “Devemos tratar de deter os programas voltados para obter
um compromisso do terceiro Mundo contra o tabaco. Devemos tratar de
conseguir que todos ou pelo menos uma grande parte dos países do
Terceiro Mundo se comprometam com a nossa causa. Devemos tratar de
influenciar a política oficial da FAO e da UNCTAD,para que adotem uma
postura a favor do tabaco. Devemos tratar de mitigar o impacto da OMS,
forçando-a a adotar uma postura mais objetiva e neutra.” (BAT, 1979).
355
15) “Nosso objetivo continua sendo desenvolver e mobilizar os
recursos necessários – aliados internos da Philip Morris, entidades e
consultores externos, as associações de comercialização nacionais da
indústria e todos os aliados possíveis – para combater as iniciativas
sociais e legislativas contra o tabaco [...]. Especificaremos
cuidadosamente nossos oponentes. Identificaremos, vigiaremos,
isolaremos e responderemos cuidadosamente a indivíduos e organizações
chave.” (Philip Morris, 1989).
16) “RJ Reynolds está planejando se contrapor ao crescente
número de cruzadas nacionais lançando sua própria campanha “direitos
dos fumantes”. (Tobacco Repórter, 1976).
17) “Atacar a OMS e dividir a FAO/OMS: criticar o manejo dos
recursos financeiros, abordar as prioridades da saúde, expor a chantagem
dos recursos, ressaltar as falhas regionais, atacar o “conducionismo”.
Refutar em matéria de assuntos públicos, desacreditar as credenciais dos
ativistas, fazer uma guerra de estatísticas, inverter as relações de
imprensa, demonstrar o impacto dessas organizações “pouco
convencionais”. (INFOTAB, 1989).
18) “[...] empreender uma iniciativa de longo prazo para se
contrapor à agressiva campanha global contra o tabaco, desenvolvida pela
OMS, e introduzir um debate público a respeito de uma redefinição do
mandato da OMS.” (BAT, 1989).
19) “Adjunto a este memorial uma cópia de uma fatura de meus
honorários mensais de consultor de 01 de junho de 1992 até 30 de
setembro de 1992 [...]. Meu trabalho no Conselho da Organização
Panamericana de Saúde continua através de meus esforços de reordenar
suas prioridades para o controle de enfermidades em lugar de controle de
estilos de vida.” (Memo BAT, 1992 – escrito por Paul Dietrich, consultor
da BAT que também fazia parte da Comissão sobre Desenvolvimento da
Organização Panamericana de Saúde).
356
20) “Paul (Dietrich) conseguiu persuadir a OPS a remover o
tabaco de sua lista de prioridades este ano.” (Memo BAT, 1991 – escrito
por Sharon Boyse da BAT).
É de se transcrever, ainda, o conteúdo de mais alguns
documentos, registrados na obra ‘Ação global para o controle do tabaco –
1º Tratado Internacional de Saúde Pública’, apontando outras vertentes do
pensamento manipulador da indústria do fumo:
1) “Aumentar a incidência de tabagismo entre mulheres jovens
servirá para manter a incidência de iniciação... As taxas de cessação de
fumar não aumentarão, uma vez que a manutenção dos fumantes existentes
será garantida pelo crescimento das marcas de baixos teores de alcatrão.”
(BAT, 1979 “Year 2000”).
2) “Naturalmente nos interessa mais saber como captar as
fumantes adultas jovens emergentes do que as fumantes mais velhas.
(Philip Morris, 1989).
3) “As mulheres apresentam uma probabilidade de aumentar a
percentagem total. As mulheres eso adotando papéis mais dominantes na
sociedade; elas têm aumentado o poder de consumo; elas vivem mais do
que os homens. E de acordo com o que um recente relatório oficial
mostrou, elas parecem ser menos influenciadas por campanhas contra o
tabagismo do que os homens. Tudo isso faz das mulheres um alvo de
primeira. Dessa forma, apesar das dúvidas anteriores, nós podemos deixar
de considerar agora um ataque mais definido sobre esse importante
segmento de mercado representado por fumantes do sexo feminino?”
(Tobacco Reporte, 1982).
4) “[...] a forma de fumar dos seres humanos é diferente da
forma simulada pelas máquinas de fumar quanto a freqüência das
tragadas, a intensidade das baforadas, e isto varia de pessoa a pessoa.”
(Canadian Tobacco Industry, 1969) In: <http://www. ash.org.uk/>.
357
5) “Quaisquer que sejam as características dos cigarros
determinadas por máquinas de fumar, o fumante ajusta seu padrão para
atender suas próprias necessidades de nicotina.” (British American
Tobacco – subsidiária alemã – Research Conference, 1974). In:
<http://www.ash.org.uk/>.
6) “Algumas observações não são esperadas no que se refere ao
comportamento do fumante e o alcatrão e a nicotina. Geralmente as
pessoas fumam de tal forma que elas obtêm mais do que o previsto pelas
máquinas de fumar. Isso é especialmente verdadeiro para a diluição dos
cigarros (isto é, baixo nível de alcatrão e baixo nível de nicotina) [...]. O
teste padronizado pelo FTC – Federal Trade Commission – deve ser
mantido: ele fornece níveis baixos.” (Philip Morris, docs. internos, 1974).
In: <http://www.ash.org.uk/>.
7) “Dados sobre o perfil do fumante relatados anteriormente
indicam que os cigarros “Marlboro lights” não são fumados como os
“Marlboro regulares”. De fato, 875 fumantes de “Marlboro” deste estudo
não conseguiram qualquer redução na inalação da fumaça ao fumar um
cigarro “Marlboro lights”. (Philip Morris, doc. interno assinado por L.
Meyer, 1975). In: <http://www.ash.org.uk/>.
8) “[...] é difícil ignorar as advertências das autoridades de
saúde que advertem aos fumantes para que deixem de fumar ou para que
mudem para uma marca de baixo teor. Mas existem, atualmente,
evidências suficientes para questionar essa advertência de mudar para
uma marca de baixo teor, pelo menos no curto prazo. Em geral, a maioria
dos fumantes habituais compensa a alteração dos teores, se eles mudam
para uma marca de teor mais baixo.” (Creighton, D.E. Compensation for
changed delivery. British American Tobacco Company. June 27, 1978.
Minnesota Trial Exhibit 11.089, citado por Kozlowski, 2001).
358
9) “Sem dúvida, é possível que o efeito de mudar para cigarros
com baixos teores de alcatrão seja o de aumentar e não diminuir os riscos
de se fumar.” (Tobacco Advisory Council, 1979). In:
<http://www.ash.org.uk/>.
10 “Devido à grande variedade de carcinógenos produzidos
durante o processo de pirólise (reação química produzida pela queima de
matérias orgânicas) é pouco provável que se possa chegar a uma forma
completamente segura de fumar tabaco.” (BAT, sem data). In:
<http://www.ash.org.uk/>.
11) “Todo trabalho nessa área (comunicação) deveria ser em
direção a tranqüilizar o consumidor acerca dos cigarros e do hábito de
fumar [...] através da divulgação dos baixos teores, estimulando a
percepção de baixas emissões e de “suavidade”. Além do mais, a
propaganda dos baixos teores ou das marcas tradicionais deveria ser
construída de forma a não provocar ansiedade a respeito de questões de
saúde, mas para aliviá-la e permitir que o fumante sinta-se tranqüilo a
respeito do seu hábito e confiante em mantê-lo durante algum tempo.”
(Short, P. L. Smoking & Health item 7: The effect on marketing. British
American Tobacco Co., Ltd., April 14, 1977 [030, Minnesota Litigation]
citado por Pollay & Dewhirst, 2001).
12) “Os fumantes necessitavam de marcas light por razões
tangíveis, práticas e lógicas [...]. É útil considerar os “light” como uma
terceira alternativa à cessação de fumar e à redução do consumo – uma
hibridização do produto com as tentativas infrutíferas dos fumantes para
modificar seus hábitos por eles mesmos.” (BAT, Research &
development/marketing conference. Circa 1985. [081,PSC 60] citado por
Pollay & Dewhirst, 2001).
13) “Salem criou um completo e novo sentido para o mentol. A
partir da herança que o mentol traz como solução para os problemas
negativos do fumar, o mentol quase que instantaneamente tornou-se uma
359
sensação positiva para o fumar. O mentol na forma de filtro na
propaganda do Salem foi uma experiência de sabor “refrescante”. Ele
pode ser visto como uma forte estratégia tranqüilizadora para as
preocupações pessoais. Indubitavelmente, a conotação medicinal do
mentol trouxe o aspecto terapêutico, mas como um benefício de sabor
positivo.” (Cunningham and Walsh. [Advertising] Kool: 1993-1980. A
retrospective view of Kool).
14) “Psicologicamente a maioria dos fumantes se sente
aprisionada. Eles estão preocupados a respeito da saúde e da dependência.
Os fumantes se preocupam com o que os comerciais dizem a respeito
deles. A propaganda pode ajudar a reduzir a ansiedade e a culpa [...]. A
imagem do usuário da marca pode ser crítica para influenciar a mudança
de lealdade de marca.” (Oxtoby-Smith, Inc. A psychological map of
cigarette worl. Prepared for the Ted Bates advertising agency and Brown
& Williamson, August, 1967. [005,K0107] citado por Pollay & Dewhirst,
2001).
15) “[…] qualquer cigarro saudável deve estabelecer um
compromisso entre implicações para a saúde por um lado e sabor e
nicotina por outro... sabor e nicotina são ambos necessários para vender
um cigarro. Um cigarro que não fornece nicotina não pode satisfazer o
fumante dependente e não pode levar a dependência e certamente
falharia.” (Johnston, M. E. Market potential of a healt cigarette. Special
Report n.º 248 Philip Morris, June 1966. [004, K0126] citado por Pollay
& Dewhirst, 2001).
16) “A mobilização do setor agrícola da indústria do tabaco,
especialmente em países em desenvolvimento, é um dos pontos de pressão
mais viáveis para responder à Organização Mundial de Saúde.” (RJ.
Reynolds, 1981).
17) “[...] comunicar de forma indireta aos dirigentes da
Organização Mundial da Saúde (OMS) dos países do Terceiro Mundo para
360
sugerir que uma posição extrema contra o tabaco por parte da OMS
poderia ser prejudicial para o bem estar econômico de seus países.”
(Internacional Council on Smoking Issues, ICOSI, 1979).
18) “[...] recrutaremos e capacitaremos um Gerente de Assuntos
Corporativos. Esta pessoa se concentrará inicialmente em identificar e
desenvolver relações com os líderes – desde a semente até o mercado – da
indústria do tabaco turca, conhecer o processo de tomada de decisões do
governo, fomentar as relações com os responsáveis pela tomada de
decisões e buscar oportunidades para cultivar discretamente uma imagem
corporativa da Philip Morris. Prestará particularmente a atenção no
fomento das relações com líderes dos fumicultores.” (Philip Morris na
Turquia, 1987).
A leitura de tais transcritos é suficiente para se ter uma idéia
nítida do comportamento e artifícios implementados pela indústria do
tabaco, desde a inserção dos cigarros no mercado mundial, visando
garantir o sucesso de venda dos produtos que fabrica. Tanto quanto
lastimável, é também atemorizador perceber como o poder de
manipulação, de persuasão, pode ser utilizado em favor daqueles
abastados, que agem egoisticamente, menos preocupados com o bem estar
dos indivíduos – e, portanto, desinteressados de garantir a lealdade
negocial –, do que com a glória e conseqüente rentabilidade de seu
negócio.
Já se disse que a teoria do abuso do direito representa um
instrumento garantidor da limitação da liberdade, evidenciando a não
existência de direitos absolutos e, por resultado, restringindo o exercício
dos direitos subjetivos, relativizando-os, de sorte a garantir respeito aos
valores sociais, morais e éticos sagrados pelo ordenamento jurídico. De
forma sintética, caracteriza-se abusivo o exercício anormal do direito,
sempre que sua finalidade social e econômica for contrariada, o que
certamente abrange o respeito aos limites impostos pela boa-fé (objetiva)
e bons costumes.
361
Inicie-se o raciocínio pela boa-fé e bons costumes. A civilista
Judith Martins-Costa, com sua costumeira clareza, esclarece que ao
conceito de boa-fé objetiva encontram-se subjacentes as idéias e ideais
que animam a boa-fé germânica, a saber, a boa fé como regra de conduta,
fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na
consideração para com os interesses do ‘alter’, visto como um membro do
conjunto social que é juridicamente tutelado. Qualifica-se a boa-fé
objetiva como uma norma de comportamento. Aí se insere a consideração
para com as expectativas legitimamente geradas, pela própria conduta,
nos demais membros da comunidade, especialmente no outro pólo da
relação obrigacional
710
. Ínsito ao conceito de boa-fé objetiva, que se
reveste de feições diversas, insere-se também a idéia de bons costumes
711
.
Quem, em juízo perfeito, diria que aqueles que aliciam crianças
e adolescentes, com o objetivo de garantir, para agora e futuramente, o
consumo de seus produtos mortíferos e viciantes (“Eles representam o
negócio de amanhã”), valendo-se, para tanto, de expedientes publicitários
insidiosos, voltados a estabelecer uma quase inquebrantável aura artificial
do produto, vinculada a estilos de vida, esportes, lazer, sociabilidade,
sedução, requinte, saúde, etc., estariam agindo em conformidade com as
diretrizes da boa-fé e bons costumes? Apresenta-se em harmonia com tais
valores a postura daqueles que, detendo conhecimento sólido acerca da
natureza psicotrópica de um dos componentes de seus produtos, não se
limitam apenas a omitir tal informão aos consumidores, mas também
negam e questionam, dissimuladamente, dados científicos que apontam em
tal rumo, tudo para garantir o maior número possível de dependentes de
nicotina e, por resultado, de consumidores de cigarros? Agem de acordo
com os parâmetros da boa-fé objetiva aqueles que astuciosamente obram,
criando controvérsias sobre o potencial mórbido e mortífero de seus
produtos, mesmo já estando familiarizados com o fato de que a fumaça do
710
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p.
412.
711
Nesse sentido, Carlos Alberto Menezes Direito e Sérgio Cavalieri Filho asseveram que a boa-fé e bons
costumes “andam sempre juntos, como irmãos siameses, pois assim como se espera de um homem de
boa-fé conduta honesta e leal, a recíproca é verdadeira: má-fé se casa com imoralidade, desonestidade
e traição.” (DIREITO; CAVALIERI FILHO, op. cit., 2004. p.143-144).
362
tabaco contém não apenas um carcinógeno, mas toda uma galáxia deles? É
aceitável, jurídica e moralmente, o direcionamento da expansão do
mercado de produtos fumígenos aos países em desenvolvimento, haja
vista a maior facilidade encontrada ali para garantir o sucesso desse
objetivo (menos – ou nenhuma – legislações anti-tabagistas e um maior
contingente de consumidores desinformados, notadamente pela carência
educacional)? Será honesta e leal a postura daqueles que auferem lucros
com a doença alheia (o tabagismo), sem sequer esclarecer adequadamente
sobre os malefícios que aqueles que consumirem tabaco certamente
sofrerão?
Conquanto a nicotina seja considerada uma droga pelo
Ministério da Saúde, bem assim pela própria Organização Mundial de
Saúde, e por todos aqueles estudiosos que examinaram com seriedade o
assunto, a indústria de fumo, não raras vezes, ainda insiste na tese
contrária, negando essa qualidade a tal substância. Para se ter uma idéia
lúcida a esse respeito, ressalte-se que a Philip Morris Marketing S/A., ao
apresentar sua defesa numa ação coletiva de responsabilidade por danos
individuais homogêneos, ajuizada pela Associação de Defesa da Saúde dos
Fumantes (ADESF), negou a capacidade psicotrópica da nicotina,
refutando todas as evidências nacionais e internacionais que seguem rumo
diametralmente oposto (Processo n. 95.523167-9, ajuizado na Comarca de
São Paulo no ano de 1995). Essa negativa resultou numa discussão
judicial – que acabou desembocando no Superior Tribunal de Justiça
(REsp n. 140097) – voltada ao estabelecimento do ônus da prova,
destinada a definir quem realmente estaria obrigado a demonstrar que a
nicotina possui a capacidade de causar dependência, se a autora ou a ré.
Ora, atualmente – e isso já foi esclarecido – o tabagismo tem sido tratado
como verdadeira doença crônica, justamente pela dificuldade que os
fumantes, em sua grande maioria, possuem de abandonar o vício pela
nicotina. Ademais, a própria Philip Morris, décadas antes do ajuizamento
dessa ação coletiva, já detinha conhecimento sólido acerca da capacidade
viciante da nicotina, consoante demonstram os documentos secretos da
363
indústria do fumo (<http://www.library.ucsf.edu/tobacco>). Esse
comportamento, engajado numa estratégia de sempre criar contradições e
dúvidas
712
, mesmo defronte a discussões judiciais, alinha-se às diretrizes
da boa-fé e bons costumes?
Se é correta a premissa de que “um direito levado longe demais
pode levar a uma injustiça”, certamente que a resposta a esses
questionamentos, e outros tantos que podem ser formulados através de um
mero resvalo de olhar nos documentos transcritos alhures, é única: a
indústria do tabaco transpassou o limite que lhe foi outorgado para
produzir e comercializar seus produtos, indo na contra-mão do que reza a
boa-fé objetiva e os bons costumes, abusando conscientemente de seu
direito, sendo ela responsável por uma pandemia, que muito embora lhe
traga benefícios financeiros, lesa maciçamente parcela considerável da
população mundial.
Noutro foco, sabe-se que o consumo de produtos derivados de
tabaco, além de abrolhar diversos malefícios à saúde humana e ao meio
ambiente, causa grandes perdas para a economia dos países
713
. O Banco
Mundial estima que o consumo de produtos do tabaco gera no mundo uma
perda bruta de U$ 200 bilhões por ano, sendo que a metade dessa perda
está concentrada nos países em desenvolvimento
714
. Tal constatação fez o
Banco Mundial concluir que, do ponto de vista econômico, não faz
sentido financiar projetos da área de tabaco
715
.
Para a avaliação dos custos relacionados ao tabagismo, devem
ser considerados todos os custos para a sociedade, e não apenas aqueles
relacionados ao tratamento de pacientes acometidos por doenças tabaco-
relacionadas. Incluam-se, aí, por exemplo, os custos incorridos no sistema
previdenciário (aposentadoria por invalidez, auxílio-doença e pensões por
712
Consoante leciona Cláudia Lima Marques, “o comunicado/informado é uma forma de responsabilidade
(Verantwortung). A informação leva à imputação (Zurechnung) de um agente da sociedade. Isto é, este
agente, que informa ou intencionalmente desinforma com sua omissão e publicidade massiva, deve
assegurar e proteger as expectativas legítimas por ele despertadas no grupo coletivo de seus
‘expectadores’, daí do direito impor garantias jurídicas mínimas (Rahmengarantien)”. (MARQUES, op.
cit., 2005. p. 98).
713
Ação global para o controle do tabaco. Tratado Internacional de Sdeblica. 3. ed. Criação do Instituto
Nacional de Câncer (INCA), 2004. p. 6. Disponível em: <http://www.inca.gov.br>.
714
Ibid., p. 6.
715
Ibid., p. 6.
364
viuvez), a perda de produção (em termos de força de trabalho), devido a
morte e adoecimento, perdas econômicas atribuídas à poluição,
degradação ambiental, incêndios e acidentes
716
. Vejam-se algumas das
conclusões obtidas pelo Banco Mundial, devidamente registradas na obra
‘Ação global para o controle do tabaco’
717
:
1) Nos países de alta renda, calcula-se que o gasto anual com
assistência à saúde, devido às doenças causadas pelo tabagismo, varia de
6% a 15% do custo total com saúde. Nos países de baixa e média renda, o
custo anual da atenção à saúde com doenças decorrentes do tabagismo é
inferior, conforme indicam estudos do Banco. Em parte, isto se deve ao
fato de que, nesses países, as doenças decorrentes da epidemia de
tabagismo ainda não atingiram os patamares observados atualmente em
países desenvolvidos, onde o consumo de tabaco tem mais tempo de
evolução. Também contribuem para esse quadro outros fatores, tais como,
as dificuldades na identificação da prevalência de doenças relacionadas ao
tabagismo nos países em desenvolvimento.
2) Do ponto de vista da produtividade, o Banco Mundial estima
que, num ambiente de trabalho, um fumante custa mais caro para os
empregadores. Estes custos incluem: maior índice de absenteísmo,
redução da produtividade, aposentadoria precoce devido aos problemas de
saúde, gastos anuais mais elevados com saúde e com seguro-saúde,
maiores gastos com manutenção e limpeza, maiores riscos de incêndio e
prêmios de seguro contra incêndio mais elevados. No Canadá, um estudo
mostrou que, para o empregador, o custo anual de um fumante é da ordem
de US$ 3.022,00. Outro estudo sobre o tabagismo em ambientes de
trabalho, na Escócia, mostrou que o país perde U$ 60 milhões com
absenteísmo, US$ 675 milhões com perda de produtividade e US$ 6
milhões com incêndios.
716
Ibid., p. 6.
717
Ibid., p. 6.
365
É de se ver que também por um viés voltado exclusivamente à
finalidade econômica, não se mostra razoável defender-se a prática do
exercício regular de um direito pela indústria do fumo.
Mas não se encerre a análise aí.
Restringindo-se a uma interpretação puramente fincada na
finalidade social do direito de a indústria do fumo produzir e
comercializar produtos derivados do tabaco, seria crível advogar a tese de
que ela exerceria um papel social importante na sociedade? Esse papel
seria suficientemente imponente, ao ponto de conduzir à ilação de que a
indústria do tabaco efetivamente agiu no exercício regular de seu direito?
De início, aponte-se que falar em finalidade social de empresas
que matam, nada menos, que a metade de seus consumidores diretos, é
algo que soa praticamente insustentável, data maxima venia. Ocorre que
atualmente um amplo mutirão social mobiliza o setor fumageiro,
promovendo avanços nas áreas de saúde, educação, bem-estar social, meio
ambiente, entre outros setores. Contudo, até para os mais despercebidos,
não deixa de ser curioso o fato de que uma indústria, que contribui
diretamente para a morbidade e mortalidade de milhares de pessoas
anualmente, sendo responsável por uma verdadeira pandemia mundial,
articule-se para desenvolver uma gama de programas para tornar a vida
mais saudável. Deveras, não se pode acusar de incrédulo aquele que,
estudioso dos documentos secretos da indústria do tabaco, não se regozija
com a notícia, refletindo uma desconfiança perfeitamente defensável, que
segue rumo à conclusão de que essa mesma indústria, em verdade,
descobriu uma nova estratégia de divulgar seus produtos e mantê-los no
mercado, garantindo, por conseqüência, seus vultuosos lucros, mesmo
diante da onda anti-tabagista que atinge o setor.
Muito embora a indústria do tabaco, hodiernamente, garanta o
sustento de inúmeros trabalhadores e venha manifestando uma novel
preocupação em se envolver com projetos sociais, isso não lhe outorga a
chancela referendada àquelas empresas cujos compromissos são
legitimamente sociais. Não seria exagerado afirmar que nunca existiu
uma finalidade social naquele direito conferido à indústria do tabaco de
366
produzir e comercializar produtos fumígenos, bastando para sacramentar
essa conclusão uma breve análise nos registros da Organização Mundial
da Saúde, apontando para os prejuízos sociais, econômicos e ambientais
causados pelo consumo de cigarros.
O que se conclui é que a indústria do tabaco, efetivamente,
fraudou a saúde pública, enganou, dissimuladamente, à sociedade,
utilizando-se de artifícios contrários à finalidade econômica e social do
direito que lhe fora conferido – bem assim, transpassando os limites
impostos pela boa-fé objetiva e bons costumes –, sendo responsável por
uma verdadeira tragédia mundial, representada pela morte de
aproximadamente 5 milhões de pessoas por ano (uma pandemia para
muitos), tudo isso tendo por objetivo, unicamente, a extensão de seus
lucros. Ao longo de várias décadas, a indústria do fumo, titular do direito
de produzir e comercializar produtos fumígenos, o exerceu de maneira
manifestamente abusiva, atuando em desconformidade com a lealdade e
confiança desejáveis.
Agiu assim porque sabia que tais expedientes ilegítimos
atrairiam uma gama imensa de consumidores inclinados a utilizar seus
produtos, sendo absolutamente despicientes argumentações no sentido de
que a sociedade sempre revelou um conhecimento firme acerca da
natureza maléfica dos cigarros, como se houvesse uma notoriedade quanto
aos riscos de se fumar. Nesse sentido, também é precisa a lição de
Cláudia Lima Marques, pontuando que o
leigo-consumidor, quando começou a fumar, há 40 anos [...]
podia até ter alguma desconfiança natural sobre se determinado
produto fazia mal à saúde ou mesmo viciava, mas são
considerações do campo das suposições, ao que se acrescenta
uma série de outras informações (publicidade massiva, na
televisão, cinema, outdoors, nos esportes, etc.) contraditórias,
organizadas pelo fabricante, de forma a nunca realmente
permitir que o consumidor detenha esta informação. Importante
ressaltar, que em 1954, nos Estados Unidos da América, o
diretor da Philip Morris, George Weissman, desmentia que
estas informações eram notórias e afirmava, frente à Pioneer
Press, que ele mesmo não sabia destes riscos e se soubesse,
que sairia da indústria do tabaco se existisse qualquer prova ou
mesmo indício que provasse que o tabaco fazia mal à saúde!
Outros fabricantes de tabaco, na investigação realizada pelo
Congresso norte-americano, já em 1964, repetiram estas
367
afirmações e voltaram a repeti-las até 1986! Também no setor
público e governamental (nos Estados Unidos e no Brasil) estas
informações eram desconhecidas (ou negadas veementemente,
o que é o contrário da notoriedade ou conhecimento público!),
pois como comprovam Jacobson e Wasserman, com o aumento
da popularidade do fumar depois da segunda guerra mundial e
dos indícios médicos ligando o cigarro ao câncer desde a
década de 40 e especialmente de 50, foi somente em 1964, que
o primeiro estudo médico oficial e completo (Surgen General’s
Report Smoking and Health) concluiu que fumar causava
câncer de pulmão, bronquite crônica e aumentava os riscos de
morte por enfisema e doenças coronárias e, como resposta,
somente em 1965, o congresso norte-americano criou a lei
sobre informação nas embalagens de cigarro e na publicidade
(1965 Cigarette Labeling and Advertising Act) e, em 1969,
proibiu a publicidade de cigarros na televisão e rádio (1969
Public Health Cigarette Smoking Act)
718
.
O exercício abusivo aqui retratado fica ainda mais patente com
o novo discurso, construído e difundido pela indústria do tabaco, que
atualmente vem se engajando numa caríssima estratégia de relações
públicas, isso para se mostrar como uma indústria renovada, preocupada
com o social. Tal postura apenas evidencia o seu erro, o transpasse dos
limites do direito que lhe foi outorgado, de produzir e comercializar
produtos derivados do tabaco. É de se citar que o Comitê de Saúde da
Casa dos Comuns da Inglaterra, depois de analisar as novas posturas
assumidas pelas principais multinacionais do tabaco, manifestou a
seguinte conclusão:
Para nós, parece que as companhias procuravam esconder o
consenso científico até que, de repente, tal posição pareceu
ridícula. Então, as companhias agora geralmente aceitam que
fumar é perigoso (mas colocam a seguir argumentos para
sugerir que a epidemiologia não é uma ciência exata, e que os
números de mortes por tabagismo podem ser exagerados); são
ambíguas sobre a dependência da nicotina; e são ainda tentadas
a esconder os argumentos de que o fumo passivo é perigoso
719
.
Saliente-se que a tese desenvolvida nesse capítulo foi utilizada,
em recente acórdão, como uma das bases para a condenação da indústria
do fumo. Em substancioso voto, o Desembargador Adão Sérgio do
718
MARQUES, op. cit., 2005. p. 93-94.
719
The Tobacco Industry and the Health Risks of Smoking, Comitê de Saúde da Casa dos Comuns, Inglaterra,
Relatório da Segunda Sessão, 1999-2000, in Trust Us: We’re the tobacco industry, Campaign for
Tobacco Kids – Action on Smoking and Health – UK. Disponível no site <www.inca.gov.br
>, no
documento intitulado de “A indústria do tabaco: como ela atua e argumenta”.
368
Nascimento Cassiano, com pena de ouro, deixou assentado para os anais
da história os seguintes dizeres:
Assim, mesmo que seja lícita a atividade, não pode aquele que
a exerce, abusando de seu direito, por omissão, ocultar as
conseqüências do uso do produto, como a causação de
dependência e de câncer, e, ao contrário, promover propaganda
ligando o uso do produto a situações de sucesso, riqueza, bem
estar, vida saudável, etc., situações exatamente contrárias
àquelas que decorrem e que são conseqüências do uso do
produto.
Evidentemente, se uma empresa fabrica e comercializa um
produto que, além de viciar, ainda mata por câncer e enfisema
pulmonar, desimporta se sua atividade é lícita. Ao colocar tal
produto no mercado, com tamanho potencial de malefício e
destruição, não há como negar que tal empresa é responsável
pelo risco e pelo perigo que criou. E se não impede as
conseqüências desastrosas do uso de tal produto – ainda que o
uso fosse completamente voluntário, e não houvesse
dependência e ardiloso apelo publicitário – sendo uma dessas
conseqüências, certamente a mais trágica, a morte, não pode
restar dúvida sobre a evidente responsabilidade do fabricante
em arcar com a indenização correspondente.
Por tudo o que foi exposto, tenho que, definitivamente, não é
pelo fato de uma atividade ou produto serem considerados
lícitos pelas leis do Estado, que os cidadãos-consumidores, que
forem vítimas de malefícios ou prejuízos causados por tal
atividade ou produto, devam ficar, esses cidadãos,
desamparados juridicamente, e nem tampouco esse fato, da
licitude da atividade ou do produto, torna, os promotores da
atividade ou produtores do bem, isentos de qualquer
responsabilidade.
É verdade que, se se entender que a ordem jurídica permite que
alguém fabrique e coloque no mercado um produto que mata, e
que esse alguém não tem nenhuma responsabilidade pela morte
ou outros males causados às pessoas, então a conclusão há de
ser a de que a demandada não deve ser condenada no caso
destes autos’
720
.
720
Veja-se a transcrição da ementa na íntegra:
369
“Apelação cível. Responsabilidade civil. Danos materiais e morais. Tabagismo. Ação de indenização
ajuizada pela família. Resultado danoso atribuído a empresas fumageiras em virtude da colocação no
mercado de produto sabidamente nocivo, instigando e propiciando seu consumo, por meio de
propaganda enganosa. Ilegitimidade passiva, no caso concreto, de uma das co-rés. Caracterização do
nexo causal quanto à outra co-demandada. Culpa. Responsabilidade civil subjetiva decorrente de
omissão e negligência, caracterizando-se a omissão na ação. Aplicação, também, do cdc,
caracterizando-se, ainda, a responsabilidade objetiva. Indenização devida. A prova dos autos revela
que a vítima falecida teria fumado durante 40 anos, cerca de 40 cigarros por dia, tendo adquirido
enfisema e câncer pulmonar que lhe acarretaram a morte. Não havendo comprovação de que o de
cujus consumisse os cigarros fabricados pela co-ré Souza Cruz, impõe-se, no caso concreto,
reconhecer ilegitimidade passiva desta. É fato notório, cientificamente demonstrado, inclusive
reconhecido de forma oficial pelo próprio Governo Federal, que o fumo traz inúmeros malefícios à
saúde, tanto à do fumante como à do não-fumante, sendo, por tais razões, de ordem médico-científica,
inegável que a nicotina vicia, por isso que gera dependência química e psíquica, e causa câncer de
pulmão, enfisema pulmonar, infarto do coração entre outras doenças igualmente graves e fatais. A
indústria de tabaco, em todo o mundo, desde a década de 1950, já conhecia os males que o consumo do
fumo causa aos seres humanos, de modo que, nessas circunstâncias, a conduta das empresas em omitir
a informação é evidentemente dolosa, como bem demonstram os arquivos secretos dessas empresas,
revelados nos Estados Unidos em ação judicial movida por estados norte-americanos contra grandes
empresas transnacionais de tabaco, arquivos esses que se contrapõem e desmentem o posicionamento
público das empresas – revelando-o falso e doloso, pois divulgado apenas para enganar o público – e
demonstrando a real orientação das empresas, adotada internamente, no sentido de que sempre
tiveram pleno conhecimento e consciência de todos os males causados pelo fumo. E tal posicionamento
público, falso e doloso, sempre foi historicamente sustentado por maciça propaganda enganosa, que
reiteradamente associou o fumo a imagens de beleza, sucesso, liberdade, poder, riqueza e inteligência,
omitindo, reiteradamente, ciência aos usuários dos malefícios do uso, sem tomar qualquer atitude para
minimizar tais malefícios e, pelo contrário, trabalhando no sentido da desinformação, aliciando, em
particular os jovens, em estratégia dolosa para com o público, consumidor ou não. O nexo de
causalidade restou comprovado nos autos, inclusive pelo julgamento dos embargos infringentes
anteriormente manejados, em que se entendeu pela desnecessidade de outras provas, porquanto fato
notório que a nicotina causa dependência química e psicológica e que o hábito de fumar provoca
diversos danos à saúde, entre os quais o câncer e o enfisema pulmonar, males de que foi acometido o
falecido, não comprovando, a ré, qualquer fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito dos
autores (art. 333, II, do CPC). O agir culposo da demandada evidencia-se na omissão e na negligência,
caracterizando-se a omissão na ação
. O art. 159 do CCB/1916 já previa o ressarcimento dos prejuízos
causados a outrem, decorrentes de omissão e negligência, sendo que o criador de um risco tem o dever
de evitar o resultado, exatamente porque, não o fazendo, comete a omissão caracterizadora da culpa, a
chamada omissão na ação
conceituada na doutrina do preclaro Cunha Gonçalves, a qual é
convergente com as lições de Sergio Cavalieri Filho e Pontes de Miranda, sendo a conduta da
demandada violadora dos deveres consubstanciados nos brocardos latinos do neminem laeder, suum
cuique tribuere e no próprio princípio da boa-fé objetiva existente desde sempre no Direito Brasileiro.
A conduta anterior criadora do risco enseja o dever, decorrente dos princípios gerais de direito, de
evitar o dano, o qual, se não evitado, caracteriza a culpa por omissão. Como acentua a doutrina, esse
dever pode nascer de uma conduta anterior e dos princípios gerais de direito, não sendo necessário que
esteja concretamente previsto em lei, bastando apenas que contrarie o seu espírito. Não obstante ser
lícita a atividade da indústria fumageira, a par de altamente lucrativa, esta mesma indústria, desde o
princípio, sempre teve ciência e consciência de que o cigarro vicia e causa câncer, estando
cientificamente comprovado que o fumo causa dependência química e psíquica, câncer, enfisema
pulmonar, além de outros males, de forma que a omissão da indústria beira as fronteiras do dolo. A
ocultação dos fatos, mascarada por publicidade enganosa, massificante, cooptante e aliciante, além da
dependência química e psíquica, não permitia e não permite ao indivíduo a faculdade da livre opção,
pois sempre houve publicidade apelativa, sobretudo em relação aos jovens, sendo necessário um
verdadeiro clamor público mundial para frear a ganância da indústria e obrigar o Poder Público à
adoção de medidas de prevenção a partir de determinações emanadas de órgãos governamentais.
Ainda que se considere que a propaganda e a dependência não anulem a vontade, o fato é que a
voluntariedade no uso e a licitude da atividade da indústria não afastam o dever de indenizar.
Desimporta a licitude da atividade perante as leis do Estado e é irrelevante a dependência ou
voluntariedade no uso ou consumo para afastar a responsabilidade. E assim é porque simplesmente o
ordenamento jurídico não convive com a iniqüidade e não permite que alguém cause doença ou mate
370
Sérgio Cavalieri Filho e Carlos Alberto Menezes Direito
lecionam que os jurisconsultos romanos defendiam que quem exerce um
direito não comete falta, não estando sujeito a nenhuma responsabilidade
(neminem laedit qui jure suo utitur). Embora aparentemente correta, essa
idéia, na realidade, constitui uma contra-verdade. Os direitos são
concedidos para serem exercidos de maneira justa, social e legítima, e não
para que seu uso seja feito discricionariamente. Só pelo fato de ser titular
de um direito, uma pessoa não pode exercitá-lo de forma absoluta, sem se
preocupar com os outros
721
. Conquanto as fabricantes de cigarro defendam
seu semelhante sem que por isso tenha responsabilidade. A licitude da atividade e o uso ou consumo
voluntário não podem levar à impunidade do fabricante ou comerciante de produto que causa
malefícios às pessoas, inclusive a morte. Sempre que um produto ou bem – seja alimentício, seja
medicamento, seja agrotóxico, seja à base de álcool, seja transgênico, seja o próprio cigarro – acarrete
mal às pessoas, quem o fabricou ou colocou no mercado responde pelos prejuízos decorrentes. Ante as
conseqüências desastrosas do produto, como é o caso dos autos, que levam, mais tragicamente, à
morte, não pode o fabricante esquivar-se de arcar com as indenizações correspondentes. Mesmo que
seja lícita a atividade, não pode aquele que a exerce, cometendo abuso de seu direito, por omissão,
ocultar as conseqüências do uso do produto e safar-se da responsabilidade de indenizar, especialmente
se, entre essas conseqüências, estão a causação de dependência e de câncer, que levaram a vítima à
morte. E também não pode esquivar-se da responsabilidade porque sempre promoveu propaganda
ligando o uso do produto a situações de sucesso, riqueza, bem estar, vida saudável, entre outras,
situações exatamente contrárias àquelas que decorrem e que são conseqüências do uso de um produto
como o cigarro. Ademais, aplica-se também ao caso dos autos o Código de Defesa do Consumidor,
porquanto a ocorrência do resultado danoso se deu em plena vigência do Regramento Consumerista,
que é norma de ordem pública e de interesse social (art. 1º do CDC), e por isso de aplicação imediata.
O cigarro é produto altamente perigoso, não só aos fumantes como também aos não-fumantes
(fumantes passivos ou bystanders), caracterizando-se como defeituoso, uma vez que não oferece a
segurança que dele se pode esperar, considerando-se a apresentação, o uso e os riscos que
razoavelmente dele se esperam (art. 12, § 1º, do CDC), situação que importa na responsabilidade
objetiva do fabricante, que apenas se exime provando que não colocou o produto no mercado, ou que,
embora o haja colocado, o defeito inexiste ou que o mal não foi causado, ou, por fim, que a culpa é
exclusiva do consumidor ou de terceiro, o que aqui não se caracteriza porque o ato voluntário do uso
ou consumo não induz culpa e, na verdade, no caso, sequer há opção livre de fumar ou não fumar, em
decorrência da dependência química e psíquica e diante da propaganda massiva e aliciante, que
sempre ocultou os malefícios do cigarro, o que afasta em definitivo qualquer alegação de culpa
concorrente ou exclusiva da vítima. A indenização pelos danos materiais deverá ressarcir a venda de
imóvel e de bovinos, despesas médicas e hospitalares comprovadas, hospedagem de acompanhantes
durante a internação e gastos com o funeral. Também são indenizáveis os prejuízos decorrentes do
fechamento do mini-mercado da vítima, desde a época da constatação da doença até a data em que o
falecido completaria 70 anos de idade, conforme a expectativa de vida dos gaúchos, valor a ser
apurado de acordo com a média de lucro dos últimos 12 meses de funcionamento anteriores à
constatação da doença. As demais pretensões indenizatórias impõem-se indeferidas, porquanto não
comprovados os prejuízos (art. 333, I, do CPC). A título de danos morais, tem-se como razoável,
prudente e suficiente a fixação da quantia de 600 salários mínimos nacionais para a esposa, de 500
para cada um dos quatro filhos e de 300 para cada um dos genros, totalizando, a indenização a esse
título, 3.200 salários mínimos nacionais, diante das peculiaridades do caso e da necessidade de atender
o caráter sancionatório-punitivo e a finalidade reparatório-compensatória da verba, sem implicar
enriquecimento indevido dos demandantes. Apelação parcialmente provida por maioria.” (Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n. 7000144626, Relatora Desembargadora Ana Lúcia
Carvalho Pinto Vieira, apelação provida por maioria, julgado em 29 de outubro de 2003. Disponível
em <www.tjrs.gov.br>).
721
DIREITO; CAVALIERI FILHO, op. cit., 2004. p.127.
371
serem detentoras de uma proteção quase mágica – já que jurídica ela não é
–, como se alheias estivessem às normas jurídicas e morais impostas a
todos os mortais, sua postura harmoniza-se com a definição de abuso do
direito, revelando o ilícito necessário a sua responsabilização civil pelos
danos que seus produtos acarretam aos consumidores de cigarros. É de se
lembrar sempre que “não há liberdade sem responsabilidade e a liberdade
comercial não pode ser maior do que a garantia de saúde e qualidade de
vida de uma nação”
722
.
722
Ação global para o controle do tabaco. Tratado Internacional de Sdeblica. 3. ed. Criação do Instituto
Nacional de Câncer (INCA), 2004. p. 6. Disponível em: <http://www.inca.gov.br>. Acessado em:
14/03/2006.
CAPÍTULO VIII
A PUBLICIDADE DE PRODUTOS FUMÍGENOS
E OS ACIDENTES DE CONSUMO
723
Um sucesso, A decisão inteligente, Um raro prazer, Mais pelo
seu dinheiro, Para quem sabe o que quer, Para quem tem bom gosto.
Parecem slogans de um bom plano de saúde, ou de um belo carro, ou,
ainda, de um requintado restaurante. Ocorre que esses slogans são, ou já
foram, em algum momento, utilizados em publicidade de marcas de
cigarros.
Segundo os publicitários, cada marca de cigarro tem o seu
estilo, a sua personalidade. A luta pela participação no mercado deve ser,
sempre, objeto de estudo minucioso objetivando o sucesso do produto. Os
apelos são os mais variados, reforçando o status, a juventude, a alegria de
viver, o glamour, o sucesso profissional, as horas de lazer, o vínculo com
esportes e a beleza.
Publicidades dessa natureza encontram espaço na atualidade
apenas nos países subdesenvolvidos e naqueles ainda em
desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Aqui, somente entre os anos
723
Não se pretende aqui analisar a constitucionalidade da Lei Serra recentemente publicada. Serão
abordados, tão-somente, os fatores que evidenciam a ilicitude da publicidade do cigarro, veiculada há
anos, tendo em vista as normas contidas no Código de Defesa do Consumidor.
373
de 1985 e 1994, os investimentos em publicidade feitos pela indústria
tabagista tiveram um acréscimo de 74,3%, conforme comprovam os dados
do Ministério da Saúde.
Nos Estados Unidos os anúncios de cigarro na TV foram
banidos há mais de vinte anos. Como se não bastasse, o rigor das leis
americanas impede o tabagismo em restaurantes, cinemas, elevadores e
lojas, punindo aqueles que se aventurarem na infração, com pagamento de
multa pesada. Isso significa que lá, tal qual em países com leis
semelhantes, tornou-se difícil vender cigarro. A solução encontrada pelas
indústrias fumígenas foi simples e eficiente: voltar sua artilharia para
países onde inexistem legislações sérias, com intuito preventivo de
problemas relacionados ao uso do tabaco.
O Brasil convive com o problema da publicidade criminosa das
indústrias fumígenas há muito tempo. A situação parece estar mudando,
mas muito ainda será discutido.
Um projeto de lei proibindo a publicidade do cigarro, após anos
de tramitação, foi aprovado transformando-se em lei. Verdadeiramente,
esse fato representou uma vitória para a comunidade...
No entanto, a maior arma contra a publicidade dos cigarros no
Brasil surgiu há dez anos, com a publicação do CDC. Até então, a
publicidade era ignorada pelo Direito nacional, que não a reconhecia
como instrumento poderosíssimo de influência do consumidor,
responsável por um papel fundamental, seja do ponto de vista sócio-
econômico-cultural, seja de uma perspectiva jurídica, já que é influente
ferramenta de formação do consentimento do consumidor
724
.
O Direito reconheceu, então, a importância de uma
regulamentação legal do marketing, não o proibindo, mas fixando limites.
O marketing é fenômeno de massa, atingindo e influenciando uma enorme
gama de consumidores, podendo, quando utilizado de forma indevida,
724
BENJAMIN, Antônio Herman V. O controle jurídico da publicidade. Revista de Direito do
Consumidor, n. 9, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 26.
374
causar danos a toda coletividade a ele exposta. Seus riscos são sociais;
seus danos em série
725
.
1 Marketing, publicidade e propaganda
Convêm explicitar que a publicidade que interessa ao presente
estudo é a vinculada às relações de consumo, mais especificamente, a
utilizada para incrementar a comercialização do cigarro. Não se pretende,
portanto, uma análise dos aspectos concernentes às infrações penais e
administrativas típicas da publicidade, tampouco o exame de todos os
outros campos de interesse jurídico da publicidade apartados das relações
de consumo.
Diante disso, o estudo estará restrito à chamada publicidade
comercial que tem função preponderante na motivação para a circulação
de produtos e no estímulo para prestação de serviços.
É importante, antes de qualquer coisa, conceituar algumas
atividades que, embora se confundam às vezes, apresentam características
distintas. São elas o marketing, a propaganda e a própria publicidade.
O marketing pode ser definido como o conjunto de atividades
humanas que tem por objetivo facilitar e consumar relações de troca, as
quais, por sua vez, visam satisfazer necessidades humanas situadas dentro
de determinado momento histórico, pois, tais necessidades variam desde
as mais básicas de subsistência até aquelas ligadas ao lucro ou a meras
atividades de lazer
726
. É uma orientação da administração baseada no
entendimento de que a tarefa primordial da organização é determinar as
necessidades, desejos e valores de um mercado, visando adaptar esta
estrutura a fim de promover as satisfações desejadas de modo mais efetivo
e eficiente que os seus concorrentes. Conquistar e manter clientes é o
papel do marketing
727
.
O marketing não se confunde com a publicidade. Ele é gênero
do qual publicidade é espécie. Publicidade corresponde
725
BENJAMIN, op. cit., p. 29.
726
SANTOS, op. cit., 2000. p. 20.
727
MINADEO, Roberto. 1000 perguntas - marketing. Rio de Janeiro: Thex, 1996. p. 1.
375
a toda comunicação de entidades públicas ou privadas,
inclusive as não personalizadas, feita através de qualquer
meio, destinada a influenciar o público em favor, direta ou
indiretamente, de produtos ou serviços, com ou sem finalidade
lucrativa
728
. É praticada com auxílio da mídia (rádio, televisão,
jornal, revista, outdoor, etc.), pressupondo, normalmente, a
intervenção de três sujeitos: o anunciante, que busca vender
seu produto ou serviço; a agência de publicidade, que cria e
produz o anúncio; e o veículo, que o transmite
729
.
São, portanto, quatro os elementos básicos na publicidade: a)
difusão, b) informação, c) intenção de promoção, e d) objetivo comercial.
Cabe a ela aproximar o fornecedor anônimo do consumidor
anônimo; cabe-lhe, igualmente, por em sintonia o produto ou serviço
anônimo com uma necessidade também anônima. Sua função maior é
influir, decisivamente, na formação do consentimento do consumidor.
Nesse ponto reside sua relevância para o Direito
730
.
Já a propaganda é uma manifestação pública de idéias
políticas.
731
Possui visível escopo político, ideológico, filosófico, ético ou
religioso, com finalidade de angariar adeptos. Apesar das diferenças
doutrinárias entre os termos publicidade e propaganda, o legislador os
vem utilizando como sinônimos ao longo dos anos.
2 Descrição genérica dos elementos caracterizadores da publicidade
do cigarro
A publicidade do cigarro nunca teve o condão informativo,
mesmo porque se assim fosse, ninguém, em sã consciência, compraria o
produto e, conseqüentemente, as indústrias do tabaco estariam fadadas à
falência.
728
PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no código de defesa do
consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 25.
729
BENJAMIN, op. cit., 1994. p. 31.
730
Ibid., p. 29.
731
PASQUALOTTO, op. cit., 1997. p. 26.
376
Esse tipo de publicidade sempre foi promovida com o objetivo
de criar uma necessidade artificial de consumo
732
, bem como manter uma
ambientação constante do produto nocivo.
A motivação do consumidor é buscada mediante a aproximação
de um determinado modo de ser e viver ao produto anunciado. Algumas
pessoas, inconscientemente, acabam por acreditar que tais produtos têm
relação com sua maneira de viver, ou ainda, tornar-lhes-ão mais fortes,
eficientes e determinadas, em conformidade com os apelos utilizados na
publicidade.
Alguns anúncios publicitários do cigarro exploram as atividades
esportivas. Vinculam esse produto a determinadas práticas de esportes,
tais como patinação, escalação, pára-quedismo, automobilismo, etc. Os
modelos utilizados são sempre jovens e bonitos, demonstrando satisfação
pessoal em seus momentos de lazer.
A sociabilidade é outro aspecto explorado pelas peças
publicitárias do cigarro. Os modelos procuram sempre atividades em
grupo de amigos, a exemplo da prática de danças, comemorações em
bares, etc
733
.
Outros anúncios apresentam como característica uma
ambientação mais voltada a questões de reflexão sobre valores e atitudes.
A descontração, nesses casos, nem sempre está presente. Os modelos,
igualmente jovens, demonstram introspectividade e, ao mesmo tempo, se
apresentam decididos e felizes. Em geral, estão envolvidos com atividades
profissionais artísticas e aproveitam as folgas para organizar a casa,
recuperar a pintura do apartamento ou afirmar alguma verdade essencial
sobre a vida. Nesses anúncios, predomina o isolamento. O encontro de
amigos nunca é numeroso e a idéia de introspecção é sempre reforçada:
“cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”
734
.
732
Nos anos 30, Albert Lasker transformou, pela primeira vez, uma marca de cigarro – a Lucky Strike – num
fenômeno de vendas com o slogan “pegue um Lucky em vez de uma bala”. (BLECHER, Nelson.
Choque de realidade. O que a polêmica do cigarro ensina ao mundo contemporâneo. Exame. ed. 721,
ano 34, n. 17, 23 de ago. de 2000, Abril, p. 30.)
733
Parecer formulado por Fábio Ulhoa Coelho e extraído dos autos de Agravo de Instrumento n. 321.643-
1, da comarca de Belo Horizonte, julgado em 8.11.2000, sendo Agravante a empresa Souza Cruz S.A. e
Agravado o Sr. Eduardo Ventura. Não publicado.
734
Ibid., 2000.
377
Existem, ainda, aquelas marcas associadas à sofisticação, como
é o caso da Carlton e Carlton Low Tar. A enunciação da publicidade –
“um raro prazer” – sugere algo de especial e requintado.
Praticamente todas as indústrias de produtos fumígenos
aderiram aos cigarros de baixos teores. A publicidade utilizada para
divulgação de produtos com essa característica, por sua vez, associa-os a
melhor qualidade de vida e saúde, como se tais cigarros fossem mais
seguros.
Ademais, as grandes marcas de cigarro são responsáveis pela
promoção de eventos de grande repercussão mundial. A Hollywood, por
exemplo, promove espetáculos de rock e competições esportivas. A marca
Free está associada ao evento cultural denominado Free Jazz Festival e a
Carlton, por sua vez, patrocina um dos mais importantes espetáculos de
dança do mundo: o Carlton Dance. Todas as realizações patrocinadas
pelas indústrias do tabaco trazem consigo características das marcas de
cigarro apresentadas na publicidade.
3 A publicidade enganosa dos cigarros
Fábio Ulhoa Coelho defende ser legal a publicidade que
apresenta em seu conteúdo a falsidade. Argumenta que
costuma haver sempre algo de fantasioso (e, portanto, de falso)
nas mensagens publicitárias. Nenhuma lingerie é usada por
mulheres feias; nenhum cigarro é consumido por doentes;
nenhum produto é relacionado seriamente com o fracasso
pessoal ou profissional
735
.
Entende mencionado jurista não ser a simples vinculação de
informações, total ou parcialmente falsas, elemento configurador da
ilicitude (publicidade enganosa), citando como exemplo a publicidade de
certa marca de dropes, em que o casal, após consumi-lo, acaba por levitar.
735
COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor: o cálculo empresarial na
interpretação do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 247.
378
Segundo ele, a enganosidade somente se manifestará quando houver na
publicidade efetivo potencial de indução dos consumidores ao erro
736
.
Data venia, a lição esposada pelo aplaudido jurista, inclusive
muito bem fundamentada em parecer solicitado pela empresa Souza Cruz
S.A., ao que parece, não corresponde ao objetivo colimado pela Lei
8.078/90.
O art. 37, §1º do CDC profere ser enganosa
qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter
publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer
outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o
consumidor a respeito da natureza, características, qualidade,
quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros
dados sobre produtos e serviços
.
Percebe-se pelo texto do artigo acima descrito que a indução ao
erro não é o elemento essencial para configuração da enganosidade. A
conjunção “ou” indica alternativa,
737
isto é, a publicidade será enganosa
quando for inteira ou parcialmente falsa ou, por outro lado, for capaz, por
qualquer outro modo, de induzir o consumidor em erro. Assim, a
publicidade enganosa nem sempre é falsa; já a publicidade falsa sempre
será enganosa.
A publicidade deverá seguir criteriosamente os princípios da
veracidade e da transparência. Segundo a Lei 8.078/90 a oferta e a
apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações
corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas
características, qualidade, origem, entre outros dados, bem como sobre os
riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores
738
.
Mais adiante, o CDC caracteriza como infração penal fazer
afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a
736
Ibid., 1994.
737
Aurélio Buarque de Holanda define o que vem a ser conjunção alternativa: Conjunção coordenativa que
liga dois termos ou duas orações de sentido diferente, e indica que, verificando-se o que se diz em uma
delas, deixa de verificar-se o que se diz na outra: ou; ou [...]. ou; ora [...]. ora; já [...]. já; quer [....] quer;
etc. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI, o dicionário da língua
portuguesa. 3. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1999).
738
Art. 31 do Código de Defesa do Consumidor.
379
natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho,
durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços”
739
. Fica claro,
portanto, a intenção do legislador pátrio em coibir a publicidade falsa.
No âmbito constitucional, tanto no art. 37, quanto no capítulo
da comunicação social, a Carta Magna protege a ética; e para fins de
publicidade o valor ético fundamental é o da verdade
740
.
Ao contrário do que entende Fábio Ulhoa Coelho, a criatividade
dos publicitários não será sacrificada ao se entender que a publicidade
falsa é necessariamente enganosa. É possível criar sem ir contra a lei,
porquanto a criatividade do homem, até onde se sabe, é ilimitada.
A Lei 8.078/90 repudia a publicidade falsa, ao contrário do que
se percebe em outros sistemas jurídicos. Assim, o anúncio publicitário
não poderá faltar com a verdade naquilo que anuncia, quer seja por
afirmação, quer por omissão. Sequer poderá manipular frases, sons e
imagens para, de maneira confusa ou ambígua, iludir o destinatário do
anúncio.
741
Isto porque a falsidade publicitária atinge diversas categorias
de pessoas (crianças, adolescentes, idosos, doentes, etc.) de diferentes
maneiras. O standard de enganosidade não é fixo, variando de categoria
para categoria de consumidores
742
.
Ademais, mesmo que se admita ser essencial o caráter de
indução ao erro, conforme defende magistralmente o professor Fábio
Ulhoa Coelho, não importando, nessa ótica, a falsidade da publicidade, o
que se admite para dar sabor ao debate, não se pode ter em mente, ao
pretender classificar uma determinada publicidade como enganosa, o
critério do consumidor médio, isto é, aquela pessoa que carrega consigo
um mínimo de espírito crítico, inteligência e discernimento. A
publicidade enganosa pode induzir ao erro determinada categoria de
consumidores e, por outro lado, provocar risos em outra. Adotar tal
critério é atentar contra um dos princípios constitucionais fundamentais –
739
Ibid., Art. 66.
740
NUNES, op. cit., 2000. p. 400.
741
NUNES, op. cit., 2000.
742
GRINOVER; BENJAMIN; FINK; FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit.,
1995. p. 284.
380
a dignidade da pessoa humana –, assim como aceitar um modelo
discriminatório como verdade real.
A realidade mostra que um elevado nível de informação
corresponde a um baixo índice de influência da publicidade; influência
esta que cresce à medida em que diminui a sagacidade do consumidor,
justamente a faixa em que há maior necessidade de proteção legal
743
.
Conforme assevera Adalberto Pasqualotto,
o critério do consumidor médio revela-se, assim, seletivo,
devendo ser substituído por outro referencial, o do consumidor
típico, que leve em consideração o menos consciencioso e
informado, por conseqüência aquele mais exposto aos efeitos
de publicidades enganosas
744
.
Como já salientado alhures, o fumante normalmente começa a
fumar quando criança ou adolescente. Os efeitos drásticos em sua saúde
só se tornarão evidentes décadas depois. Deve-se, portanto, levar em
consideração a situação cultural (que tem vínculo direto com a idade do
consumidor) e econômica dos fumantes à época em que se iniciaram no
tabagismo, objetivando definir o grau de logro da publicidade do cigarro,
ao analisar um caso concreto. Deve-se, ainda, considerar que, para
aferição da natureza abusiva ou enganosa da publicidade, não é necessário
que ocorra de fato um dano ao consumidor, bastando que haja perigo, ou a
possibilidade de ocorrer o dano, uma violação ou ofensa
745
. Como
esclarece Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin,
o legislador brasileiro, na avaliação do que seja publicidade
enganosa (e no seu regramento civil), enxerga mais o anúncio
do que propriamente a mente da pessoa que o produziu ou dele
se aproveitou. O erro real, consumado, é um mero exaurimento
que, para fins da caracterização da enganosidade é
irrelevante
746
.
743
PASQUALOTTO, op. cit., 1997. p. 124.
744
PASQUALOTTO, op. cit., 1997. p. 124.
745
NUNES, op. cit., 2000. p. 460.
746
BENJAMIN, op. cit., 1995. p. 287.
381
Somente assim poderá obter uma dimensão correta da
capacidade de indução ao erro da mensagem publicitária do cigarro.
A capacidade de indução ao erro das publicidades do tabaco é
evidente; inexiste nelas qualquer aspecto informativo que permite ao
consumidor fazer um juízo perfeito daquele produto. A única
característica predominante é a persuasão, e isto por uma razão simples: a
informação verídica sobre o cigarro não é economicamente viável.
4 O cigarro e a publicidade enganosa por omissão
Se o consumidor tivesse tido conhecimento de determinada
característica do produto antes de adquiri-lo, teria, mesmo assim,
concretizado o negócio? Essa indagação é a pedra de toque para
evidenciar a publicidade enganosa por omissão.
Segundo o §3º do art. 37 da Lei 8.078/90, a publicidade poderá
ser igualmente enganosa quando nada diz. Quando o produto ou serviço
apresentar dados essenciais, o fornecedor que veicular publicidade
deverá, necessariamente, informá-los. A publicidade não poderá omitir
dado essencial do consumidor.
O fundamental nesse tipo de ilícito é que a parcela omitida
tenha o condão de influenciar na decisão do consumidor
747
.
Segundo Antônio Herman e Benjamin, o dado essencial é
aquele que tem o poder de fazer com que o consumidor não
materialize o negócio de consumo, caso o conheça. Três
famílias principais de dados, sem exclusão de outras, estão
normalmente associadas com a publicidade enganosa por
omissão: adequação (inexistência de vício de qualidade por
inadequação), preço e segurança
748
.
Existem dados essenciais no cigarro que necessariamente
deveriam ser informados nos anúncios publicitários? Se a resposta é
positiva, quais seriam esses dados?
747
BENJAMIN, op. cit., 1995. p. 293.
748
Ibid., p. 204-205.
382
Compõem o cigarro inúmeras substâncias tóxicas ao homem,
responsáveis por diversas doenças; ao que tudo indica, a nicotina é uma
droga. Estudos recentes informam existir no cigarro um nível perigoso de
radioatividade
749
. Esses fatos e outros mais já analisados no Capítulo
Primeiro do presente trabalho, são dados essenciais que se fossem
devidamente explicitados nos anúncios publicitários induvidosamente
interfeririam na decisão do consumidor quanto a iniciar ou não a prática
do tabagismo.
A corrente que defende posição contrária sustenta que todos
esses dados são de conhecimento geral, incapazes, portanto, de
influenciar no discernimento do consumidor médio.
O critério do consumidor médio é seletivo e discriminante; não
é o ideal conforme esclarecido anteriormente. Deve-se observar a
realidade do Brasil e a verdadeira face daqueles que o integram. Grande
parte da população sequer é alfabetizada, vivendo em situação de grande
miséria econômica e cultural. Se a publicidade dos cigarros respeitasse a
Lei, informando dados essenciais diretamente vinculados à saúde do
próprio fumante, não há dúvidas de que consumidor típico de cigarros ao
menos repensaria seu vício, e aquele que não se iniciou no tabagismo,
evitaria o consumo, com consciência.
Vale esclarecer que esses dados essenciais, vinculados ao
próprio risco que o produto apresenta à saúde dos que o consomem, na
grande maioria das vezes não interferirão na opção do tabagista por
continuar a fumar. Tal fato, no entanto, não retira a essencialidade de tais
informações por uma razão muito simples: o fumante, na maior parte das
vezes, é incapaz de inverter sua escolha pelo consumo do produto porque
é um viciado. A nicotina faz parte de sua vida, tornando sua própria
vontade insubsistente.
Ademais, mesmo aqueles denominados consumidores médios,
possuidores, em tese, de um nível cultural razoável, somente conhecem
dados superficiais do cigarro. Apenas possuem uma noção de que aquele
749
O físico nuclear do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, João Arruda Neto, demonstrou a
presença de urânio, tório e plutônio na fumaça do cigarro. Disponível em: <http//www.cigarro.med.Br/
cap.20.htm>.
383
produto não lhes é benéfico, mas, quase sempre, subestimam sua
periculosidade por desconhecimento técnico-científico mais aprofundado.
Diante disso, a publicidade do cigarro é também enganosa por
suprimir dados essenciais do produto que, se fossem de conhecimento
daquele consumidor que pretende iniciar-se no tabagismo, interfeririam
em sua decisão de consumo, por aumentarem seu discernimento quanto
aos malefícios provocados pelo tabaco.
5 A publicidade abusiva e o cigarro
Segundo a Lei das relações de consumo, a publicidade abusiva é
aquela
discriminatória de qualquer natureza, a que incite a violência,
explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de
julgamento e experiência da criança, desrespeite valores
ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se
comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou
segurança
750
.
A publicidade do cigarro não tem finalidade informativa, com
propósito de esclarecer os consumidores do produto a optarem por esta ou
aquela marca. Seu objetivo é não só atrair novos consumidores, em
especial aqueles com pouca ou nenhuma instrução, mas ainda persuadir
crianças e adolescentes a aderirem ao tabagismo, sempre fazendo apologia
de um produto nocivo á saúde.
Não é por acaso que as indústrias do tabaco procuram ampliar
seu mercado em países do Terceiro Mundo. A desinformação e ignorância
dos consumidores significam maiores chances de expansão da
comercialização do produto tóxico. A informação adequada, verdadeira e
bem propagada, por outro lado, traduz-se na dificuldade de venda do
produto, haja visto que a persuasão da publicidade acaba por ter seus
efeitos minimizados.
750
§ 2º, do art. 37, do Código de Defesa do Consumidor.
384
O fato de a publicidade de cigarro fazer apologia de um produto
o qual acarreta danos à saúde, traduz seu caráter abusivo. O discurso
utilizado em tais publicidades segue um contra-senso de associar o
cigarro a atividades de lazer incomuns, esportes radicais, sucesso
profissional, glamour, juventude, prazer e saúde. Associação essa que soa
como uma justificativa para se utilizar o cigarro. As pessoas acabam
iludidas, aderindo-se ao tabagismo e, posteriormente, tornando-se
dependentes do produto
751
.
O mesmo ocorre com crianças e adolescentes
752
expostos a esse
tipo de publicidade. Quando se fala em infância, logo vem à mente termos
como ingenuidade e simplicidade. A criança, logicamente, é mais
propensa de ser induzida a erro, visto que possui deficiência de
julgamento em razão das carências de informações e experiência. O
adolescente
753
, de igual forma, também está inclinado à persuasão. As
mudanças corporais e psicológicas são características cientificamente
constatadas na adolescência; a necessidade de auto-afirmar-se é enorme, e
o cigarro funciona para eles, em virtude, principalmente, dos efeitos
negativos da publicidade veiculada há tempos na mídia, como uma ponte
milagrosa à vida adulta.
A questão não deixa de ser óbvia. A publicidade de produtos
potencialmente perigosos jamais poderá ter características persuasivas.
Isso porque, dando ênfase à persuasão, o produto acaba por aparentar-se
751
A Indicator, uma empresa de pesquisa, avaliou o impacto de mais de 1500 comerciais de diferentes
categorias nos últimos cinco anos. Descobriu que as mensagens das peças publicitárias de cigarros são
lembradas por 82 de cada 100 consumidores. Mais de 60 “gostam muito” e os consideram “divertidos”.
(BLECHER, op. cit., 2000. p. 30).
752
Segundo uma pesquisa do instituto Vox Populli, apresentada na abertura das comemorações do Dia
Mundial Sem Tabaco, em 2000, a mensagem captada pelos jovens ao assistirem as peças publicitárias
engendradas pelas indústrias do tabaco é: Fume! Tenha liberdade de escolha! Segundo a pesquisa, na
opinião dos jovens fumantes entrevistados pelo Vox Populli, a publicidade visa despertar no não-
fumante o interesse pelo produto por meio da mensagem subjacente: Seja como nós, fume! Ainda de
acordo com a pesquisa, os principais fatores que favorecem o hábito de fumar no jovem são: a
curiosidade pelo produto, a imitação do comportamento do adulto, a necessidade de auto-afirmação e o
encorajamento proporcionado pela publicidade.
753
Um estudo divulgado pela Universidade da Pensilvânia concluiu que as indústrias de cigarro tem como
público alvo de seus anúncios os adolescentes. Foram ouvidos 2.600 jovens entre 14 a 22 anos, e o
resultado é que a maioria ainda pensa que fumar é garantia de ser popular entre os amigos, além de ser
divertido e relaxante. O conceito vem principalmente de anúncios. Segundo a mesma pesquisa, 60% dos
jovens ouvidos acreditam erroneamente que há mais mortes no mundo causadas por drogas ilegais e
pelo uso de álcool do que em decorrência do fumo. (Indústria de cigarro mantém alvo em jovens, apesar
de proibição. Folha de São Paulo. Folhateen. p. 8. Segunda-feira, 18 de jun. de 2001).
385
pouco ou nada perigoso e sua capacidade de aniquilar a saúde dos
consumidores é colocada em segundo plano, mesmo com algumas
informações apresentadas pelo Ministério da Saúde a respeito de sua
periculosidade, ao final da publicidade. Em decorrência disso, vários
consumidores acabam estimulados a utilizar o produto, desconsiderando
sua própria saúde e segurança.
A ninguém se obriga veicular publicidade, mas assim optando, a
fabricante de cigarros deverá, tão-somente, informar o consumidor. É
evidente que tal procedimento acabaria por desestruturar as bases
econômicas das indústrias do tabaco, pois todas informações sobre o
cigarro acarretariam o desestímulo de seu consumo.
Vale ainda frisar que não existe impedimento legal no fato de se
considerar uma publicidade ao mesmo tempo enganosa e abusiva. São
questões distintas, capazes de figurar conjuntamente em uma mesma peça
publicitária. Basta que o produto ou serviço, dentro das condições
anunciadas, não corresponda à verdade e que o anúncio preencha o
conteúdo proibido de abusividade
754
.
Assim, a publicidade dos cigarros é, em sua maioria, abusiva
por fazer apologia de produto potencialmente perigoso, valendo-se da
hipossuficiência cultural de alguns consumidores, da própria inocência da
criança e das mudanças psicológicas e hormonais do adolescente,
induzindo-os a consumir produto prejudicial à saúde.
6 O merchandising
É usual a técnica publicitária de veiculação de produtos e
serviços indiretamente, de forma que o consumidor não possa identificá-la
como tal. Essa prática, utilizada em programas televisivos, novelas e
filmes, também é utilizada pelas indústrias do tabaco.
Após o advento do CDC, o fornecedor, optando por veicular
publicidade de seu produto ou serviço, deverá fazê-lo “de tal forma que o
consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal”
755
.
754
NUNES, op. cit., 2000. p. 460.
755
Art. 36 do Código de Defesa do Consumidor.
386
Diante disso, o merchandising praticado obscuramente,
ocultando do consumidor seu objetivo, está proibido. Ele se traduz numa
técnica de ocultação que não permite a avaliação crítica do consumidor
756
.
Imagine-se, por exemplo, um caubói, personagem de um filme
de ação, com características fascinantes: jovem, bonito, forte,
galanteador, aventureiro, com espírito heróico e, finalmente, utente de
uma determinada marca de cigarro. Referido personagem, com todas essas
características marcantes e sedutoras, agradará, com certa facilidade, o
público. Ora, o consumidor deslumbrado com a virilidade do personagem
fictício, acaba por se afeiçoar ao hábito tabagista do caubói, sem
perceber, no entanto, que tudo aquilo é mera ficção. Conforme salienta
Luiz Antonio Rizzatto Nunes, o consumidor “toma a ficção por realidade,
perde o senso crítico e a capacidade de escolha”
757
.
A liberdade de escolha do consumidor acaba tolhida. O produto
não passará por uma análise crítica de sua parte, pois não o avaliará como
um apelo de vendas. O engodo é patente e proibido pelo CDC
758
.
756
NUNES, op. cit., 2000. p. 436.
757
NUNES, op. cit., 2000. p. 437.
758
Embora o merchandising do cigarro seja proibido, ele poderá ser veiculado, na divulgação de
outros produtos, se esclarecer devidamente o consumidor de sua utilização. Não basta, no entanto,
informações prestadas no início ou final de programas, filmes ou novelas. Solução eficiente seria a
inclusão de legendas no momento em que a técnica do merchandising estiver sendo utilizada. Assim,
aqueles que acabaram de ligar a TV, ou de mudar o canal, terão acesso à informação de que o produto
está sendo mostrado com a finalidade de divulgação e comercialização.
CAPÍTULO IX
A INSUSTENTABILIDADE DE ALGUNS DOS
ARGUMENTOS UTILIZADOS PELA INDÚSTRIA DO
FUMO EM SUAS DEFESAS JUDICIAIS
1 Introdução
Uma breve pesquisa no repertório jurisprudencial do País é
suficiente para se constatar o sucesso das teses suscitadas pela indústria
do tabaco, em ações indenizatórias promovidas contra ela, por fumantes
ou seus familiares. Entretanto, esse sucesso não surpreende [...].
Para se ter uma idéia, nos EUA, as primeiras demandas contra a
indústria do tabaco surgiram em 1954. Até 1992, foram abertos 813
processos contra essas empresas, sendo que, dos 23 que chegaram a
julgamento, só dois deles foram favoráveis, em primeira instância, aos
fumantes e, ainda assim, acabaram reformados nos tribunais superiores.
Esse panorama apenas sofreu uma reviravolta em junho de 1997.
Atormentadas por ações, não mais de indivíduos, mas de estados
americanos que tentavam recuperar o dinheiro gasto pelo sistema de saúde
para tratar fumantes, as indústrias concordaram em pagar a maior
indenização da história: U$ 246 bilhões durante 25 anos. Em troca, os 50
388
estados americanos desistiriam dos processos que moviam por fraude
contra a saúde pública
759
.
No Brasil, a indústria tabaqueira apenas passou a ser alvo de
ações judiciais há pouco mais de uma década. Induvidosamente, tal
circunstância serve-se a explicar – ao menos em parte – o motivo pelo
qual se vê, hodiernamente, uma verdadeira avalanche de decisões
judiciais contrárias aos interesses indenizatórios de fumantes (ou de seus
familiares, em caso de falecimento), acometidos de enfermidades
advindas do consumo de tabaco. Deveras, doutrinária e
jurisprudencialmente, o tema não alcançou sequer a puberdade [...].
Muitas dessas decisões mostram ceticismo, absoluto descrédito
quanto às argumentações apresentadas pelos autores de tais ações
indenizatórias. E tal resultado, fruto da novidade que o tema representa
para os operadores do direito, tem também por alavanca a excelente
qualidade dos trabalhos desenvolvidos pelos advogados da indústria do
fumo, esses que se valem de argumentos sedutores, bem elaborados,
sempre escorados em pareceres aparentemente sólidos, elaborados por
medalhões do mundo jurídico nacional.
Esse novo capítulo surgiu com o escopo de confrontar algumas
dessas teses adotadas pela indústria do tabaco, de forma a romper com a
suposta solidez que as alicerça, apontando rumos outros, talvez até mais
sedutores, já que dotados de uma base, fática e jurídica, mais concreta.
2 A licitude da atividade exercida pela indústria do fumo
2.1 Considerações iniciais
Sem delongas, enfrente-se o primeiro dos sub-temas aqui
propostos, qual seja, a licitude da atividade da indústria de fumo
(produção e comercialização de produtos fumígenos) como óbice à sua
responsabilização civil. Transforme-se a assertiva numa indagação: a
759
CARVALHO, op. cit., p. 59.
389
legitimidade da atividade exercida pela indústria do tabaco realmente
constitui empecilho à sua responsabilização civil?
É quase um modismo na jurisprudência nacional o emprego do
argumento de que, por ser lícita a atividade da indústria do fumo, não
haveria de se falar em indenização, haja vista que o dano, que traduz a
obrigação de reparar, deve originar-se de um ato ilícito.
Inquestionável que a obrigação de indenizar deve resultar de um
ato ilícito – salvo parcas exceções. Contudo, é imperioso não se vincular,
de maneira absoluta e inquebrantável, atividade lícita com ato lícito. E
isso porque, não raras vezes, o ilícito nem sempre se encontra inserido na
própria atividade profissional em si, surgindo, em várias ocasiões, do
exercício ou resultado dessa atividade.
A valer, o ilícito que dá margem a indenizações pelo fato ou
vício do produto ou serviço, no âmbito das relações de consumo, não se
vincula a uma suposta ilicitude da atividade exercida pelo fornecedor,
mas, sim, a imperfeições jungidas ao próprio produto ou serviço lançado
no mercado.
2.2 A obrigação de indenizar e o ilícito nas relações de consumo
Para ilustrar a atual linha jurisprudencial sobre o tema, vejam-
se alguns trechos de um acórdão da lavra do extinto Tribunal de Alçada
de Minas Gerais (Apelação Cível n. 360.841-5), julgado em 29 de maio de
2002. A Relatora, em seu voto, decidira que “[...] é importante ressaltar
que a atividade da apelada é lícita, sendo que as restrições à publicidade
dos cigarros, têm sido observadas nos termos regulamentados pelo
Ministério da Saúde”. Comungando com o voto da ilustre Relatora, o Juiz
Revisor exteriorizou seu entendimento: “[...] a responsabilidade dos
fabricantes de cigarros em razão dos malefícios advindos com o consumo
do produto, não pode por si só gerar a obrigação indenizatória, eis que o
dano ensejador da indenização deve ter origem em um ato ilícito, o que
não é o caso sub judice, visto que a atividade de fabrico de cigarros,
trata-se de atividade lícita [...]. Por fim, o Juiz Vogal, também
acompanhando o voto condutor, esclareceu:
390
Na verdade adiro ao voto da ilustre Relatora na consideração
de que entendo que empresa que tem autorização plena e que
está dentro dos princípios da legalidade, sem ferir qualquer
norma de ordem pública, jamais pode ser responsabilizada por
supostos males que venham a causar a terceiros,
principalmente quando se trata de mera indústria que depende,
até mesmo, para distribuição de seu produto, de pessoas que
diretamente se relacionam com os consumidores. [...] Neste
caso, sendo lícita a atividade, nenhuma responsabilidade lhe
causa enquanto permanecer este estado de coisas
760
.
Data maxima venia, e mesmo considerando a boa origem deste
acórdão, é de se ousar a discordar da conclusão a que ele foi conduzido. A
aplicação do direito ali, bem assim em várias outras decisões atinentes ao
tema, com todo respeito aos seus prolatores, foi feita mediante uma
interpretação superficial, extremamente rasa. E, vale dizer, essa cognição
pouco aprofundada – nascida, é bem verdade, da boa qualidade dos
trabalhos produzidos pelos advogados e pareceristas que atuam em prol da
indústria do tabaco – gera, infelizmente, um verdadeiro efeito dominó nos
tribunais nacionais, porquanto esses entendimentos, agora imortalizados
em sentenças ou acórdãos, servirão de paradigmas a outros casos
semelhantes a serem, futuramente, julgados pelo Judiciário.
Ao que parece, uma análise pouco mais penetrante é
suficientemente capaz de arruinar a tese ofertada pela indústria tabaqueira
e prontamente agasalhada pelo acórdão aludido. Para comprovar essa
afirmação, inicie-se o raciocínio mediante a transcrição de alguns
exemplos:
a.) Por intermédio da mídia, em meados de 1999, noticiou-se
nacionalmente uma situação curiosa envolvendo uma grande fabricante de
veículos, a General Motors. Essa empresa disponibilizou no mercado
veículos da marca Corsa e Tigra com imperfeições nos cintos de
segurança, que foram responsáveis pela morte de, ao menos, duas pessoas.
b.) Uma determinada consumidora, residente em Minas Gerais,
adquiriu um botijão de gás junto à empresa Supergasbrás S/A. Ao
conectá-lo em seu fogão, principiou-se dali um vazamento de gás,
760
Disponível em: <http://www.tamg.gov.br>. Acessado em 05/12/2003.
391
culminando num incêndio de grandes proporções em sua residência. Os
danos foram diversos [...].
c.) Numa ação possivelmente sem precedentes no Judiciário
brasileiro, uma consumidora, da cidade de Lajeado, recebeu indenização
por dano moral, da microempresa responsável pela fabricação dos sutiãs
Intimitá. A consumidora, após fazer ginástica numa academia, constatou
que sua blusa estava manchada de sangue. Verificou, então, que seus
mamilos estavam esfolados. Diante disso, procurou imediatamente
atendimento médico, atestando-se que “o sangramento nos dois mamilos
foi provocado por escoriações do atrito do sutiã, durante exercício
físico”. O acórdão da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, modificando a sentença de primeiro grau, reconheceu o
defeito do produto, condenando a empresa ao pagamento de 30 (trinta)
salários mínimos a título de danos morais, com juros retroagindo à data
do fato, além de honorários advocatícios arbitrados em 20% do valor da
causa.
Ninguém poderá negar existir permissão, no País, para se
produzir e comercializar veículos. Igualmente, inexiste impedimento para
se produzir e comercializar botijões de gás e sutiãs. Portanto, impõe-se
reconhecer que referidas atividades – produção e comercialização de
veículos, botijões de gás e sutiãs – são todas lícitas.
Então, é de se perguntar: essa legalidade das atividades retro-
mencionadas eximiria aqueles que a exercem de indenizar consumidores
lesados por acidentes de consumo, provenientes dos produtos explorados?
A resposta, por certo, é negativa.
Ora, em sendo assim, o juiz, no exercício da cognição judicial
que lhe compete, não haverá de se prender, em casos tais, ao exame da
licitude ou ilicitude da atividade. E isso simplesmente porque a questão
central não é, nem de longe, essa.
Deveras, o que importa é o exame das particularidades do
produto colocado no mercado – investigação que deverá ser efetivada
392
tanto no plano interno como no externo
761
. Perceba-se: no primeiro
exemplo, a obrigatoriedade de indenizar surge da deficiência existente
nos cintos de segurança dos veículos produzidos. Já na segunda passagem,
um vício de fabricação
762
no botijão de gás foi o responsável pelo
incêndio ocorrido. Na derradeira menção, uma incorreção num sutiã
originou os danos no corpo da citada consumidora. As atividades são
todas lícitas; por outro lado, as imperfeições existentes nos produtos não
o são. Toda a plenitude dessa realidade encontra-se evidenciada no
próprio rótulo atribuído à Seção II do CDC, intitulada de “Da
Responsabilidade pelo fato do produto [...]”. “Fato do produto” denota
acidentes ocorridos com produtos, enfatiza o elemento material causador
da responsabilidade. A presença do elemento ilicitude está subentendida
na própria imperfeição do produto – ou da oferta que o cerca –, isto é, na
idéia de vício/defeito.
Aliada a esta corrente, observe-se a precisa lição de Paulo de
Tarso Vieira Sanseverino, Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, contida em obra valorosa, publicada pela editora Saraiva,
intitulada “Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do
fornecedor”. Preleciona o jurista que, na hipótese específica da
“responsabilidade por acidentes de consumo, a ilicitude da atividade do
fornecedor está contida no conceito de defeito do produto ou do serviço,
761
Conforme leciona Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, os “danos causados ao consumidor não
decorrem apenas de defeitos em si do produto ou serviço, visto que, muitas vezes, estes não apresentam,
materialmente, qualquer falha. A defeituosidade situa-se num plano externo em relação ao produto ou
serviço, resultando de informações deficientes sobre sua correta utilização ou da falta de advertência
sobre os riscos por eles ensejados. Apresenta-se como uma modalidade especial do defeito de projeto. O
defeito formal ou de informação caracteriza-se exatamente pela falta ou insuficiência de instruções
sobre a correta utilização do produto ou do serviço, bem como sobre os riscos por ele ensejados. A
compreensão do defeito de informação exige que se observe a importância conferida ao dever de
informação no direito privado moderno, bem como a sua repercussão concreta sobre a responsabilidade
do fornecedor.” (SANSEVERINO, op. cit., 2002. p. 139).
762
Deve-se ter em mente que a idéia de defeito está sempre vinculada à de vício. Não há defeito sem vício;
o vício é condição inexorável de todo e qualquer defeito. Isso porque a expressão defeito equivale a
acidente de consumo – são expressões sinônimas. Destarte, o defeito ou acidente de consumo representa a
somatória de um(ns) vício(s) com o(s) dano(s) por ele(s) acarretado(s), esses que superam a mera
inadequação de uso do produto ou serviço, para atingir a esfera patrimonial e/ou moral do consumidor.
Logo, na linguagem técnica, soa melhor afirmar que o produto possui um vício, sempre que se quiser
fazer menção à existência de uma imperfeição jurídica nele existente, antes da ocorrência do acidente de
consumo. Se, efetivamente, o acidente de consumo já ocorreu, aí, sim, será correto falar-se na
concretização de um defeito.
393
uma vez que a prioridade é a reparação do prejuízo sofrido pelo
consumidor”
763
.
À vista disso, o art. 8º da Lei 8.078/90 prevê, expressamente:
“Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não
acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores [...]”. Na
mesma trilha, sinalizam os arts. 12, 14, 18, 19 e 20 do CDC, ao
evidenciarem a antijuridicidade dos vícios e defeitos. Assim, a Lei
consumerista criou para o fornecedor um dever de segurança, obrigação
esta de não lançar, no mercado, produto inseguro. Se o lançar e sobrevier
o acidente de consumo, por ele responderá, independentemente de
culpa
764
.
Pensar de outra forma seria quase dizer que o consumidor,
jamais ou quase nunca, seria indenizado por produtos defeituosos –
desprezando-se, assim, a máxima constitucional da defesa do consumidor
–, haja vista que as atividades exercidas pelos fornecedores no mercado
de consumo são lícitas, muitas delas, inclusive, regulamentadas e, até
mesmo, inspecionadas por órgãos governamentais.
2.3 O ilícito gerador da responsabilidade civil da indústria do fumo
(defeito do produto)
Com o cigarro – e com os produtos derivados do tabaco em
geral – a situação é exatamente esta. Salvo melhor juízo, seria incoerente
negar que a atividade exercida pela indústria do fumo seja lícita
765
– a
763
SANSEVERINO, op. cit., 2002. p. 148. O mesmo jurista, complementando seu raciocínio, ressalta: “No
defeito, não se discute o elemento subjetivo da conduta do fornecedor. Basta a ocorrência objetiva de
defeito no produto ou no serviço para o surgimento da obrigação de indenizar. É suficiente que o
produto apresente uma falha que lhe retire a segurança legitimamente esperada para que seja
considerado defeituoso, não se exigindo qualquer participação ou colaboração subjetiva do fornecedor
ou seus prepostos na sua ocorrência.” E arremata: “Ainda que não tenha havido uma conduta
negligente de parte do fornecedor ou dos seus prepostos, constatado o defeito do produto ou do serviço,
aquele será responsabilizado pelo danos sofridos pelo consumidor.” (SANSEVERINO, op. cit., 2002.
p. 148).
764
Consoante leciona Agustín Viguri Perea, “la razón subyacente radica en que quien introduce un
producto en el mercado, beneficiándose del mismo, tiene que responder de las consecuencias derivadas
de tal situación.” (PEREA, Agustín Viguri. La responsabilidad civil derivada del consumo de tabaco.
Granada: Editorial Comares, S.L., 2001. p. 218).
765
Não se pode negar que se mostra questionável, sob uma análise constitucional, a afirmação de que a
atividade exercida pela indústria do tabaco seja lícita. Se usarmos como parâmetro aqueles direitos
constitucionais mais caros ao cidadão, como, por exemplo, o da dignidade e da vida, certamente, e ao
394
própria CF, num dispositivo inusitado, refere-se à publicidade do
tabaco
766
. Entretanto, é crível advogar-se a tese de que o cigarro é
verdadeiramente um produto imperfeito, sob o ponto de vista jurídico, ou
seja, contém vícios, mais especificamente, aqueles denominados de
concepção e de informação, prontamente capazes de gerar acidentes de
consumo.
Logo, sendo o produto imperfeito, poderá gerar acidentes de
consumo e, conseqüentemente, acarretar danos, de toda espécie, àqueles
que dele fazem uso. É neste ponto que se apresenta a fundamentação da
responsabilidade civil da indústria tabaqueira. O art. 12 da Lei
consumerista prevê, expressamente, que o
fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e
o importador respondem, independentemente da existência de
culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por
menos em tese, a idéia de licitude da atividade dos fornecedores de tabaco, mesmo que regulamentadas,
sofreria abalos. Não obstante isso, os homens vivem numa realidade muitas vezes alheia às belas teorias
ou bem intencionadas legislações. Essa realidade, não raro, sinaliza-se em prol de interesses outros – os
de ordem econômica, por exemplo –, de importância diametralmente inferior quando comparados
àqueles, agora há pouco citados. Explicações diversas e fecundas acabam por surgir em favor dessa
realidade distorcida e evidentemente prejudicial ao próprio homem que nela se insere.
Nessa vereda, e partindo-se da premissa de que a atividade de se produzir e comercializar produtos
fumígenos seja realmente legítima, deve-se atentar para as características, intrínsecas e extrínsecas, de
tais produtos. Não é porque uma atividade empresarial ou comercial mostra-se lícita, que o fornecedor
pode violar deveres seus, juridicamente preexistentes. Mesmo antes da publicação do Código de Defesa
do Consumidor, era possível vislumbrar princípios que deviam – e ainda hoje devem – ser respeitados
pelos contratantes numa relação de consumo, ou em outra relação qualquer, a exemplo do
presentemente difundido princípio da boa-fé objetiva. O ato ilícito, então, pode surgir, não da atividade
exercida em si mesma, mas, sim, em face da violação de uma norma ou obrigação diante da qual se
encontrava obrigado o agente. Daí a importância em se analisar as particularidades dos produtos (ou
serviços) colocados no mercado de consumo, tanto pelo plano externo, como pelo interno, isso para se
tentar identificar o ato ilícito.
No caso específico do cigarro, se verá adiante, constata-se uma verdadeira omissão culposa – quiçá
dolosa – por parte de suas fornecedoras, uma vez que, mesmo detendo conhecimentos lúcidos a respeito
dos males que os componentes do produto maléfico acarretam àqueles que a ele se expõem, valeram-se
de uma política voltada ao econômico apenas, negligenciando ao consumidor informes essenciais à sua
escolha consciente sobre fumar ou não fumar (vício de informação). Não bastasse a omissão voluntária
de informações, as fornecedoras de tabaco lançaram mão de publicidades abusivas e enganosas, hoje
criminosas, para incitar o vício e seduzir a sociedade ao consumo de seus produtos, distorcendo
publicamente os verdadeiros efeitos causados pelo uso do cigarro, para vinculá-lo ao prazer, bem estar,
sucesso, beleza, requinte e, até mesmo, à saúde.
766
Trata-se do art. 220, §4º, da Constituição Federal. Esse o seu teor: “A propaganda comercial de tabaco,
bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do
inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios
decorrentes de seu uso.” Da leitura desse dispositivo, uma ilação surge: se a publicidade do tabaco pode
sofrer restrições – e, hoje, efetivamente isso ocorre –, ela não se mostra ilícita – desde que respeite,
obviamente, os limites estabelecidos pela lei competente. Então, se a publicidade de tabaco é permitida,
por conseqüência, a fabricação e a venda dos produtos fumígenos também o são. Acredita-se, diante de
tal consideração, que é frágil a tese fincada na idéia de que, após a publicação da Lei 8.078/90, a
fabricação de cigarros no País teria se tornado ilegal.
395
defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção,
montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos, bem como por informações
insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos
.
No que se refere ao art. 12, percebe-se, com certa facilidade,
que o CDC não motiva a responsabilidade civil fundada no risco da
atividade na própria atividade do fornecedor. O fato gerador da
responsabilidade civil do fornecedor situa-se na idéia de defeito/acidente
de consumo, naquela imperfeição jurídica contida no produto, motivadora
de um acontecimento externo, causador de danos material e/ou moral ao
consumidor.
Daí porque pouco importar a licitude da atividade de cultivo,
industrialização e comercialização de fumo, na imputação da
responsabilidade civil às empresas do tabaco, nos casos atinentes à
problemática objeto de exame. Se é possível responsabilizar-se uma
montadora de veículos por danos advindos de uma imperfeição de peça
instalada num automóvel por ela fabricado, ou, ainda, condenar-se uma
fornecedora de alimentos por danos sofridos em decorrência do consumo
de maionese deteriorada por ela produzida, da mesma forma apresenta-se
legítimo responsabilizar-se as empresas de fumo pelos danos acarretados
pelo consumo de produtos fumígenos dotados de imperfeições jurídicas. A
ilicitude, portanto, reside na imperfeição do produto (extrínseca ou
intrínseca), e não na atividade necessária à sua produção e
comercialização.
De modo a reforçar esse posicionamento, afirme-se que, mesmo
para aqueles que repudiam a utilização do CDC, como instrumento hábil
ao acertamento de situações concretas, postas sob o crivo do Judiciário,
envolvendo tabagistas – ou familiares desses – e a indústria do fumo, a
tese da irresponsabilidade dessa última, pautada na licitude da atividade
que exerce, também não há de prosperar.
É fato que a indústria do tabaco, maquiavelicamente, atropelou
os limites estabelecidos pelo direito, no que tange ao exercício de sua
atividade, valendo-se de ardilosas estratégias para garantir o sucesso de
vendas dos produtos que fabrica.
396
Os famigerados documentos secretos são clarividentes ao
indicar que a indústria do tabaco agiu no exercício abusivo de seu direito
de produzir e comercializar cigarros. Conquanto, há décadas, já detivesse
conhecimentos sólidos acerca dos malefícios gerados à saúde pela prática
do tabagismo e da qualidade psicotrópica da nicotina, além de não tornar
públicos tais informes, trabalhou incansavelmente para lançar dúvidas
sobre a validade das investigações de órgãos médico-científicos,
comprovadoras dessas realidades, veiculando, ademais, publicidades
insidiosas, fazendo apologia de um produto (cigarro) potencialmente
nocivo à saúde
767
. Parafraseando José Rosemberg, o que veio à tona com a
análise dos documentos secretos é suficiente para avaliar como as
multinacionais tabaqueiras vêm, há anos, trabalhando contra a saúde
pública mundial, enquanto acumulam lucros astronômicos, sendo certo
que novas e edificantes comprovações dessa atividade criminosa serão,
ainda, conhecidas, à proporção que os demais documentos forem
estudados
768
.
Portanto, em se optando por uma abordagem afunilada à tese do
abuso do direito, certamente que o julgador também não deverá se apegar
à idéia da legitimidade da atividade exercida pela indústria do tabaco,
como fator inerente à sua irresponsabilidade civil. Nessa seara, o que
verdadeiramente importa é o exame de sua atividade interna, aquela
praticada com o fim de fraudar a saúde pública e garantir lucros intensos
ao seu negócio. A atividade de produção e comercialização de cigarros é
lícita; contudo, é notoriamente ilegítimo omitir, intencionalmente,
informações absolutamente necessárias àqueles que se predispõem a
consumir produtos, sejam eles de que natureza forem. Configura-se,
ainda, ato ilícito, a divulgação de publicidades inverídicas, sedutoras e
irresponsáveis, destinadas apenas a forjar uma atmosfera irreal, capaz de
atrair milhares e milhares de consumidores.
767
A esse respeito, ver abordagem mais profunda no capítulo VII desse trabalho.
768
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 43.
397
3 A hipotética notoriedade de informações acerca da natureza e males
causados pelo consumo de cigarros
3.1. Realmente há uma notoriedade pública sobre os males do fumo?
Será que o consumidor brasileiro, realmente, possui
conhecimentos sedimentados a respeito da natureza e riscos do cigarro?
As informações que detém seriam suficientes para lhe dar condições de
proceder a uma escolha entre fumar e não fumar, de maneira consciente e
responsável?
A deficiência de informações do consumidor, quanto aos males
originados do tabagismo, tem íntima relação com as primeiras
experiências de consumo do cigarro e, conseqüentemente, com a
deflagração do vício causada por esse produto. Essa afirmação, à primeira
vista, pode aparentar-se falaciosa, sem consistência real. Afinal, há
décadas, os mais diversos estudos vêm sendo elaborados e publicados,
alertando para os malefícios acarretados pela prática do tabagismo.
Todavia, essa pesquisa científica, corroborando para uma segura
e ampla compreensão de que o consumo de tabaco realmente é uma prática
de risco, encontra-se, ainda hoje, verdadeiramente restrita a uma parcela
de pessoas, notadamente aqueles que possuem um interesse peculiar no
estudo do tabagismo, como os cientistas e médicos.
Ademais, a certeza de que o consumo de tabaco é uma prática de
risco tardou a se estruturar, mormente pela ação contrária perpetrada pela
própria indústria do fumo, que defendeu, com todas as suas forças, o
produto por ela fabricado. Para se ter uma idéia, é interessante notar que a
ciência oficial demorou muito para se convencer da certeza de que a
nicotina, realmente, é um psicotrópico poderosíssimo. E, enquanto a
ciência oficial mantinha esse quadro de incertezas, a indústria tabaqueira
já detinha tal conhecimento de longa data, obrando para escondê-lo por
meio de uma complexa e desorientadora estratégia de marketing,
inculcada para confundir e seduzir o espírito daqueles já fumantes ou
propensos a principiar-se no tabagismo. É impressionante que, em 1979, o
relatório oficial do Departamento de Educação, Saúde e Assistência
398
Social dos Estados Unidos, abordando a temática da nicotina, não tenha se
pronunciado sobre a sua característica de gerar dependência. Mais
inexplicável é que, em 1964, o Comitê Consultivo do Serviço de Saúde
Pública dos Estados Unidos, com o endosso do Surgeon General, tenha
declarado que “a nicotina causa apenas hábito, não sendo droga que
desenvolve dependência”
769
. Daí já se constata o equívoco daqueles que
insistem em afirmar a presença de uma notoriedade pública, sempre
presente, acerca dos malefícios do cigarro. Se lá, naquele país, onde o
embate contra a indústria do tabaco teve início, foi assim, o que se dizer
da realidade brasileira?
No Brasil, é de se lembrar que, até pouco tempo atrás,
permitiam-se abertamente, publicidades de produtos oriundos do tabaco,
grande parte delas absolutamente pérfidas, criadas tanto para manter os
fumantes fiéis a uma marca, como também para atrair novos adeptos,
principalmente aqueles mais jovens, garantindo um mercado futuro de
viciados em nicotina.
As medidas incrementadas no País, para garantir à população
algumas informações sobre os malefícios que o fumo acarreta à saúde,
advieram recentemente. Antes disso, as únicas informações contidas nos
maços referiam-se aos níveis de nicotina, alcatrão e monóxido de carbono
dos cigarros. Não havia informes nem imagens apontando para a
qualidade mórbida e mortífera do produto. Nem mesmo a publicação do
CDC serviu para motivar uma postura mais adequada por parte da
indústria do fumo. Isso só veio a ocorrer depois que textos legislativos
específicos foram criados para esse fim.
Diante dessa realidade, não causa espanto a afirmação de que
muitos brasileiros, ainda hoje, não possuem conhecimento lúcido e firme
acerca da carga mortífera que o cigarro carreia aos seus organismos.
Atualmente, possuem vários deles – especialmente pela incisiva atuação
do Poder Público –, conhecimentos genéricos e superficiais; insuficientes,
porém, para conduzi-los a uma escolha consciente, no sentido de iniciar-
se ou não no tabagismo.
769
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 42-43.
399
Sob esse prisma, nunca é demais lembrar que, no Brasil, há 14,6
milhões de analfabetos, ou 11,8% da população de 15 anos ou mais de
idade; também já se constatou haver 32,1 milhões de analfabetos
funcionais ou 26% da população de 15 anos ou mais de idade, conforme
estatística apresentada pelo IBGE, no ano de 2002
770
. E, seguindo essa
linha de raciocínio, aponte-se que o tabagismo, e o peso das doenças a ele
relacionadas, tendem a seguir um gradiente. Isto é, os mais pobres
encontram-se propensos a usar mais produtos derivados do tabaco. E as
estatísticas seguem esse rumo – indicando haver um menor consumo de
cigarros nas classes de maior rendimento familiar per capta – pelo fato de
que as famílias economicamente mais estruturadas, em regra, apresentam
um nível educacional também mais elevado. Segundo dados do Ministério
da Saúde, o maior consumo de cigarros está na base da pirâmide
econômica, com 25,4% dos indivíduos fumando
771
.
Aliás, padrões semelhantes existem com respeito a níveis de
educação e condição sócio-econômica. Na China, por exemplo, pessoas
sem escolaridade tinham probabilidade 6,9 vezes maior de fumar que
pessoas com formação universitária, ao passo que adultos sem
escolaridade e no Brasil apresentavam probabilidade 5 vezes maior de
fumar que aqueles com pelo menos educação secundária
772
.
Não é difícil perceber que a socialização da informação,
obviamente, enfrenta uma barreira maciça, quando as pessoas a serem
esclarecidas estão entre aquelas culturalmente ignorantes, cuja capacidade
cognitiva não se mostra capaz de assimilar, de forma conveniente, os
dados científicos necessários a possibilitar-lhes a realização de uma
escolha consciente entre fumar ou não. Muitas delas sequer possuem
770
Disponível em: <www.ibge.gov.br>.
771
Entre a população de menor renda, uma grande parcela dos rendimentos é gasta com cigarros, em
detrimento de outros itens prioritários, como, por exemplo, a alimentação. Este consumo maior, somado
a outras condições às quais este grupo está submetido, como desnutrição, doenças infecciosas e do
trabalho, leva a um adoecimento mais freqüente. Convém considerar que os ambientes confinados das
pequenas moradias favorece, em muito, a inalação passiva das substâncias tóxicas por crianças,
gestantes e pessoas doentes. (Disponível em <http://www.inca.com.br>). Acessado em 05/12/2003.
772
Tabagismo e saúde nos países em desenvolvimento. Documento organizado pela Comissão Européia em
colaboração com a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial para a Mesa Redonda de Alto
Nível sobre controle do tabagismo e políticas de desenvolvimento/2003. Disponível em <http://www.
inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=publicacoes&link=tabagismo_saude.pdf>. Acessado em 09 de
setembro de 2005.
400
capacidade de leitura, sendo conscientizadas apenas por intermédio de
imagens lançadas nos maços – que se tornaram obrigatórias apenas em
tempos recentes –, essas que, por mais dramáticas e verdadeiras que
sejam, ainda não se mostraram capazes de esclarecer adequadamente o
consumidor acerca da natureza e riscos de um produto sofisticadíssimo
como o cigarro.
3.2 O jovem como alvo da indústria tabaqueira
Num outro viés, não se deve esquecer de que o marketing de
produtos derivados do tabaco, junto ao público jovem, é componente
indispensável para que a indústria do fumo consiga manter e expandir
suas vendas.
O tabaco é a segunda droga mais consumida entre os jovens, no
mundo e no Brasil. E isso se deve às facilidades e estímulos para
obtenção do produto, entre eles o baixo custo. A essa realidade se somam
complexas e sofisticadas técnicas de marketing, criadas com o fito de
associar o tabaco às imagens de beleza, sucesso, liberdade, poder,
inteligência e outros atributos, desejados especialmente pelos jovens. A
divulgação dessas idéias, ao longo dos anos, tornou o “hábito” de fumar
um comportamento socialmente aceitável e até positivo. A prova disso é
que 90% dos fumantes começam a fumar antes dos 19 anos de idade
773
.
A sedução de jovens integra a sofisticada estratégia adotada
pela indústria do tabaco. O restabelecimento da fileira dos fumantes,
desfalcada por aqueles que deixam de fumar, ou morrem, depende dessa
tática publicitária, plenamente capaz de garantir os fumantes regulares de
amanhã. Nos
arquivos secretos, oriundos de documentos internos de
grandes empresas transnacionais do tabaco, finalmente revelados durante
uma ação judicial movida contra elas por estados norte-americanos,
crianças e jovens são descritos como “reservas de reabastecimento” e um
dos principais alvos estratégicos, devendo se tornar dependentes do
cigarro, ainda cedo. Além disso, os documentos comprovam que, apesar
773
Disponível em <http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=jovem&link=namira.htm>. Acessado
em 09 de setembro de 2005.
401
de a indústria do tabaco se posicionar publicamente de uma forma, suas
verdadeiras intenções são completamente opostas
774
.
Após a divulgação desses documentos e, principalmente, diante
dos recentes avanços alcançados pela saúde pública no controle do
tabagismo, a indústria tabaqueira passou a adotar um discurso conciliador,
visando reconstruir sua imagem. Essa nova estratégia inclui o
reconhecimento, em parte, dos riscos associados com o tabagismo, o
desejo de diálogo, a abertura para regulamentações “racionais” e o
envolvimento com projetos sociais para transmitir ao público a idéia de
empenho pelas causas sociais, como o combate à pobreza, ao trabalho
infantil e ao analfabetismo, além da defesa do meio ambiente. Em 2003, a
Souza Cruz foi premiada pela Câmara Municipal de São Paulo por sua
“atuação socialmente responsável”. Por esses esforços, fica a impressão
de que a indústria do tabaco é contra o consumo do tabaco entre os
jovens, e promove medidas supostamente dirigidas a prevenir o tabagismo
entre menores de idade, criando campanhas e utilizando a idéia de que
fumar é para adultos. Porém, na verdade, ao apresentar o cigarro
vinculado com os rótulos “adulto” e “proibido”, essas companhias buscam
colocar sutilmente um importante ingrediente para reforçar o
comportamento rebelde do adolescente: entre as principais motivações
para o adolescente fumar encontram-se o desejo de se afirmar como
adulto, sua rebeldia e a rejeição dos valores de seus pais. E essas
estratégias funcionam de forma favorável aos interesses econômicos da
indústria do tabaco. São estratégias contraditórias, pois não mudam o
interesse dos jovens em consumir cigarros, nem reduzem o consumo do
tabaco entre eles e, ao mesmo tempo, beneficiam o setor tabaqueiro
775
.
O Estudo Global do Tabagismo entre os Jovens, realizado pela
Organização Mundial de Saúde, em 46 países, revelou um quadro
alarmante de dependência prematura. Em algumas áreas da Polônia, de
Zimbabue e da China, crianças de 10 anos de idade já estão dependentes
do tabaco. Os adolescentes globalizados em Nova Iorque, Lagos e Pequim
774
Ibid., 2005.
775
Disponível em <http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=jovem&link=namira.htm>. Acessado
em 09 de setembro de 2005.
402
são vistos como alvos fáceis pelas multinacionais do tabaco. Tendo em
vista que as marcas globais são veiculadas na publicidade como um estilo
de vida a ser almejado, elas tendem a ser consumidas em larga escala,
levando metade de seus usuários habituais à morte
776
.
No Brasil, uma pesquisa semelhante foi realizada entre
escolares de 12 capitais brasileiras, nos anos de 2002 e 2003, encontrando
uma prevalência de experimentação, variando de 36 a 58% no sexo
masculino e de 31 a 55% no sexo feminino, entre as cidades. De acordo
com os dados obtidos, a prevalência de escolares fumantes atuais variou
de 11 a 27% no sexo masculino e 9 a 24% no feminino
777
.
E não é por obra do acaso que a maioria dos fumantes inicia-se
na prática do tabagismo ainda quando crianças ou adolescentes. Não é
casual a constatação de que a nicotina se apresenta como a segunda droga
mais consumida entre os jovens. As crianças e adolescentes, ainda
evoluindo os contornos de sua personalidade, têm a experimentação como
parte do processo de auto-conhecimento; não raras vezes, vêem o
consumo de cigarros, mesmo que inconscientemente, como um rito de
passagem para a vida adulta, servindo-se dele ainda como forma de
desafio da autoridade que lhes é naturalmente imposta por seus pais, e de
busca de identificação com seus pares e ídolos. E a indústria de tabaco,
conhecendo a fragilidade e natural imaturidade dos jovens, arma-lhes
verdadeira arapuca, já que incentiva, por meio de requintadas técnicas de
marketing, o consumo de cigarros, conduzindo-os a dependência quase
certa pela nicotina.
Mesmo nos dias de hoje, em que se encontra restrita no Brasil a
difusão de materiais publicitários direcionados à divulgação de produtos
fumígenos, aquela aura sedutora – incutida na sociedade antes disso, por
meio da insistente e penetrante divulgação massiva de publicidades
vinculando os cigarros a aspectos positivos da vida humana (saúde,
beleza, esportes, sucesso profissional, lazer, etc.) – ainda permanece,
apesar de um pouco arranhada pelas atuais manifestações anti-tabagistas
776
Ibid., 2005.
777
Disponível em <http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=jovem&link=namira.htm>. Acessado
em 09 de setembro de 2005.
403
do Poder Público. Afinal, gastaram-se muito tempo e dinheiro para se
estruturar uma imagem positiva dos cigarros, de modo que mais tempo e
dinheiro necessariamente deverão ser despendidos para implodir a ficção
maquiavélica e maléfica construída pela indústria do fumo.
3.3 A necessidade de se reforçar a informação hoje difundida sobre os
males do fumo
Como se não bastasse, em razão da grande maioria das
enfermidades causadas pelo tabaco despontarem somente após vários
anos, muitos consumidores em potencial, bem como tabagistas
inveterados, acabam por subestimar a periculosidade do produto. Mesmo
quando o vício de fumar se encontra disseminado em determinada
população, os danos à saúde pública podem não ser visíveis. Nos países
cuja população esteve em contato direto com o tabaco, durante muitos
anos, decorreram ao menos quatro décadas antes de surgir o quadro das
enfermidades relacionadas ao seu consumo. Isso induza as pessoas a
acreditarem que o cigarro não interfere na saúde ou, ainda, que apenas
alguns fumantes são acometidos por doenças relacionadas ao tabagismo, o
que, obviamente, não corresponde à verdade.
Não obstante as importantes iniciativas adotadas recentemente
pelo Poder Público, com o intuito de melhor informar o consumidor
acerca dos males gerados pelo consumo de tabaco, outra conquista deve
ser buscada. Como já dito alhures, quase 5.000 (cinco mil) compostos são
produzidos pela queima do tabaco. Na verdade, o cigarro pode ser
dividido em duas fases: uma gasosa e outra particulada. A fase gasosa é
composta de substâncias, tais como: monóxido de carbono, cetonas,
formaldeído, nicotina, acetaldeído e acroleína. Já na fase particulada, em
que também se encontra a nicotina, estão presentes o alcatrão – esse
responsável pelo amarelamento dos dedos e dentes dos fumantes –, e mais
quarenta e três substâncias cancerígenas, podendo-se citar como
exemplos: o arsênico, níquel, benzopireno (substância derivada do
petróleo e altamente cancerígena), cádmio, chumbo, além de substâncias
radioativas, como o polônio 210, o carbono 14, rádio 226, rádio 228 e
404
potássio 40. Ademais, a cada tragada, o fumante introduz no seu
organismo substâncias como amônia, benzeno, acetona (solvente), formol,
propilenoglicol, acetato de chumbo, methoprene, naftalina, fósforo,
terebentina, xileno, butano e muitos outros gases tóxicos e partículas em
suspensão. Para que o papel queime de maneira uniforme, e a cinza não se
fragmente, são, ainda, somados ao cigarro, mais doze tipos de venenos
químicos [...].
Tais substâncias, quando em contato com o organismo humano,
acarretam inúmeros efeitos maléficos já conhecidos: a) provocam tosse,
irritação na garganta e náuseas; b) afetam o trato respiratório; c)
provocam a perda do olfato; d) geram problemas gastrintestinais; e)
irritam a pele, os olhos e as mucosas; f) provocam anorexia; g) causam
cegueira; h) acarretam cânceres de toda espécie, notadamente de pulmão,
garganta, bexiga, rins, dentre vários outros.
Diante desse contexto de idéias e evidências, não é exagerado
concluir que a grande maioria da população brasileira não possui noção
exata da natureza do cigarro e, menos ainda, dos riscos a que está sujeita,
ao consumir produtos derivados do tabaco – ou a ele se expor. Não se
pode negar que muitos consumidores sabem que ele faz mal à saúde;
contudo, durante todas as suas vidas, foram levados a subestimar os riscos
inerentes ao consumo do cigarro, seja pela carência de informações a
respeito deles, seja ainda por influência da insidiosa publicidade
difundida pelas indústrias do tabaco, que os induziram, até mesmo
inconscientemente, a minimizar a periculosidade do produto mortal.
É por tal razão, que os maços de cigarro deveriam, outrossim,
vir acompanhados, a exemplo das bulas de remédios, de prospectos
informando o consumidor sobre a verdadeira natureza do produto tóxico, a
quantidade de substâncias tóxicas existentes em cada unidade, a origem
do fumo utilizado na sua confecção, advertir acerca dos inúmeros
malefícios que o produto nocivo poderá gerar à saúde daqueles que o
consomem, além de outros esclarecimentos necessários e imprescindíveis
à real conscientização do consumidor brasileiro. A informação, pois, só
será socialmente eficaz, no País, com a adoção de duas formas de
informação: a imagem real e clara a respeito dos danos que os
405
consumidores poderão vir a sofrer, e um prospecto informativo que
acompanharia os maços de cigarros – isso tudo somado ao incessante
trabalho governamental visando ao esclarecimento das pessoas,
notadamente aquelas situadas na base da pirâmide cultural e econômica.
É mister ressaltar que algumas associações, num trabalho
meritório voltado a garantir a adequada aplicação do CDC, já postularam
judicialmente a condenação de empresas de tabaco para que apresentem
prospectos nos maços disponibilizados no mercado, informando e
alertando, adequadamente, o consumidor, acerca da natureza e males do
fumo. O julgamento de uma ação coletiva, ajuizada na Comarca de São
Paulo, pela Associação de Defesa da Saúde do Fumante (ADESF), contra
as empresas Philip Morris e Souza Cruz S.A. (autos n. 95.523167-9),
conferiu aos fumantes uma vitória inédita, marcante na história do embate
travado no País entre a indústria do fumo e os tabagistas. Convencida da
existência de um vício de informação no cigarro, a Juíza Adaíde Bernadi
Isaac Halpern condenou as aludidas empresas ao pagamento de danos
morais e materiais a todos os fumantes brasileiros acometidos de doenças
tabaco-relacionadas, bem assim à obrigação de fazer, de sorte que as
obrigou a adequarem suas embalagens e publicidades ao que determinam
os arts. 31, 9°, 6°, III e 36 da Lei 8.078/90, para cumprimento da Política
Nacional de Relações de Consumo (art. 4°, CDC). As empresas, então,
deverão informar sobre os dados técnicos de suas marcas de cigarros,
como sua composição química, precauções de uso, responsável técnico, a
preciosidade ou nocividade que apresentam, em até 60 dias, sob pena de
pagamento de multa diária de R$100.000,00 (cem mil reais), com base no
art. 461 CPC, sem prejuízo do que previsto pelos parágrafos 5° e 6°, do
artigo citado
778
. Outra associação, denominada Centro de Estudos e
Promoção ao Acesso à Justiça (CEPAJ), promovendo uma ação similar, e
isso na Comarca de Belo Horizonte, MG, contra as fabricantes de cigarros
Cibrasa Indústria e Comércio de Tabacos Ltda., Cabofriense Indústria e
Com. de Cigarros Ltda., Sudamax Indústria e Comércio de Cigarros Ltda.,
Itaba Indústria de Tabaco Brasileira Ltda., tem por pretensão a obtenção
778
Inteiro teor da sentença disponível no site: <www.adesf.com.br>.
406
de uma decisão judicial que obrigue as rés a elaborarem e incluírem nos
maços de cigarros – ou embalagens – que fabricam, prospectos – a
exemplo das bulas de remédios – que assegurem informações corretas,
claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre: a) todas as
substâncias (composição química) – e suas especificações e
características – que compõem a mistura dos cigarros que produzem; b) a
quantidade de cada uma dessas substâncias que compõem a mistura dos
cigarros produzidos pelas rés; c) os malefícios – ao menos os mais graves
– que essas substâncias poderão acarretar à saúde daqueles que as
aspiram; d) o funcionamento do mecanismo viciante da nicotina no
organismo humano, de forma compreensível aos leigos; e) a média de
nicotina consumida a cada tragada; f) a quantidade de nicotina necessária
para tornar o fumante um dependente; g) as mais perigosas substâncias
(composição química) – e suas especificações e características –
emanadas da fumaça do cigarro; h) os malefícios – ao menos os mais
graves – que essas substâncias emanadas da fumaça do cigarro poderão
acarretar ao organismo humano, quando aspiradas; i) responsável químico
pelo produto; j) as precauções de uso; k) as contra-indicações e
precauções, de modo a indicar, inclusive, quais pessoas têm mais
disposição para adquirir doenças tabaco-relacionadas.
3.4 Um reforço à tese que pugna pela ausência de uma notoriedade
pública de informações sobre os malefícios do fumo
Apesar do brilho de sua inteligência e da profundidade dos
trabalhos científicos que produz, não impressiona a lição da jurista Judith
Martins-Costa, ao apontar que
para caracterizar a utilidade da informação, no tocante à
formação do consentimento, não é necessário estar de posse de
informações técnicas detalhadas acerca dos possíveis
malefícios do tabagismo, até porque esses malefícios estão
associados a um complexo variável de fatores e nem foram
todos conhecidos, pela ciência médica, num mesmo momento,
como um “bloco de informações” que se dá por inteiro e
definitivamente: também é processual a ciência acerca das
especificidades e da extensão dos malefícios do fumo.
Portanto, basta, para a higidez do consentimento a ciência
407
genérica de que o cigarro faz mal à saúde. E essa é,
incontroversamente, de há muito, uma informação notória
779
.
A construção desse argumento teve por finalidade demonstrar
que, por ser notório o conhecimento do público sobre os malefícios
causados pelo tabagismo, não haveria obrigatoriedade de se esclarecer o
consumidor antes da publicação do CDC.
Admitindo-se, apenas para dar sabor ao debate, que a sociedade,
como um todo, soubesse, de maneira genérica e sem maiores
detalhamentos, dos malefícios que o consumo de tabaco causa à saúde,
isso desde o momento em que os cigarros foram inseridos no mercado, tal
argumento não seria suficiente para desobrigar a indústria tabaqueira a
informar. Ora, o raciocínio que conduziu a essa idéia não considerou
outras premissas, sendo formulado de maneira absolutamente isolada,
situação que, certamente, lhe confere descrédito.
A estratégia adotada pela indústria do fumo – identificada
depois que se deu publicidade aos famigerados documentos secretos – não
se limitou à omissão das informações que ela detinha acerca dos
malefícios do fumo à saúde, e sobre a qualidade psicotrópica da nicotina.
Valeu-se a indústria de manobras voltadas a desacreditar estudos e dados
científicos sérios, esses que jungiam o consumo de cigarros a várias
enfermidades. Contratou atores cinematográficos, esportistas e outras
celebridades para que divulgassem seus produtos. Utilizou-se de massiva
publicidade insidiosa, mirando o aliciamento de crianças e adolescentes
para experimentarem cigarros, transformando-os em dependentes de
nicotina. Essa estratégia, em que a omissão de informações é apenas uma
de suas vertentes, foi edificada com o intuito de se estabelecer um
ambiente propício ao fumante, uma atmosfera socialmente positiva a
pairar sobre o tabagista. A indústria do fumo não apenas omitiu o que
sabia, mas foi bem mais adiante, obrando esforços para garantir essa
atmosfera socialmente positiva, incutindo na mente dos consumidores
controvérsias e dúvidas, literalmente desinformando-os, mediante uma
prática publicitária hipócrita e sedutora.
779
MARTINS-COSTA, Judith. Ação indenizatória – Dever de informar do fabricante sobre os riscos do
tabagismo. Revista dos Tribunais, 812. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 87.
408
Essa realidade, dentre outras conclusões, aponta rumo à idéia de
que, mesmo se a sociedade soubesse, de maneira genérica e sem maiores
detalhamentos, que o consumo de cigarros era prejudicial à saúde, a
postura da indústria do tabaco, direcionada a criar uma atmosfera
socialmente positiva e aceitável ao tabagismo, obscureceu a razão dos
consumidores, levando-os a crer que o consumo de cigarros não era
assim tão prejudicial. Não é lógico imaginar que alguém, em perfeito
estado de juízo, irá aderir ao consumo de um produto na certeza de que
sua saúde restará futuramente prejudicada.
Além de informar o que sabia à sociedade, deveria a indústria
do tabaco suspender imediatamente publicidades responsáveis por fazer
apologia do produto perigoso, engendrando esforços para melhorar a
qualidade de seus produtos.
E nem se queira dizer que essa obrigação de informar não
existia há 30, 40 ou 50 (cinqüenta) anos, circunstância que desobrigaria a
indústria de assim agir. Um dos sustentáculos do ordenamento jurídico – e
isso não só hodiernamente – é representado pelo princípio da boa-fé
objetiva,
uma norma de conduta que impõe aos participantes do tráfego
negocial uma atuação pautada pela colaboração intersubjetiva,
pela lealdade, correção e consideração aos interesses do alter.
Da boa-fé, assim considerada, decorrem diferentes
funcionalidades: a boa-fé atua como cânone de interpretação,
como fonte produtora de deveres jurídicos e como limite ao
exercício de direitos subjetivos e potestativos. Nessa tríplice
direção, adquire função de otimização do comportamento
contratual e de reequilíbrio de seu conteúdo
780
.
Obviamente que a postura adotada pela indústria do tabaco,
visando garantir o sucesso de seus produtos, é incondicionalmente
desleal; e deslealdade é deslealdade em qualquer época, possuindo o
direito, como um de seus papéis, justamente o de evitá-la e puni-la.
A propensa notoriedade de informações sobre os males do
tabagismo, argumento utilizado frequentemente pela indústria tabaqueira
em suas defesas judiciais, será, ao que tudo indica, alcançada num futuro
780
MARTINS-COSTA, op. cit., 2003. p. 78.
409
próximo, notadamente em função do profícuo trabalho recentemente
efetivado pelo Poder Público e organizações privadas. Entretanto, essa
ainda não é a realidade hodierna.
E mesmo depois que toda a comunidade encontrar-se
adequadamente esclarecida acerca dos malefícios do cigarro e, por
conseqüência, o vício de informação, hoje ainda existente nos produtos
derivados do tabaco, se esvaecer, aqueles que foram enganados pela
política maligna, desleal e desnorteante, implementada pela indústria do
fumo, poderão se socorrer no Judiciário. Afinal, o engodo perpetrado pela
indústria do tabaco, anos atrás, influenciou essas pessoas a praticarem o
tabagismo, prática essa que os tornou dependentes de nicotina – uma
doença crônica, como se verá adiante. E, depois de inseridos na categoria
de dependentes de nicotina, a informação, isoladamente considerada, nem
sempre será eficiente para salvá-los do mal que os atinge.
4 O fumante e o livre-arbítrio
4.1 Considerações iniciais
Um dos argumentos da indústria do fumo mais validados pela
jurisprudência funda-se na idéia do livre-arbítrio
781
. Para a indústria, o
781
Para ilustrar, é de bom alvitre transcrever alguns trechos de decisões nesse sentido:
“Evidente que há culpa exclusiva do consumidor, que assumiu voluntariamente o risco de desenvolver
doenças pulmonares e/ou outras moléstias a partir do hábito de fumar.” (Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, Apelação cível n. 70000144626, Relatora Desembargadora Ana Lúcia Carvalho Pinto
Vieira, Nona Câmara Cível, julgado em 29 de outubro de 2003. Disponível em <www.tjrs.gov.br>.
Acessado em 08/02/2006).
“Quebra-se o nexo de causalidade, pois o dano não advém diretamente do produto, senão do vício
incontrolável do de cujus, que preferiu o prazer a contê-lo e, quiçá, desenvolver hábitos mais saudáveis,
os quais poderiam obstaculizar ou estancar o desenvolvimento de doenças.” (Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, Apelação cível n. 70000144626, Relatora Desembargadora Ana Lúcia Carvalho Pinto
Vieira, Nona Câmara Cível, julgado em 29 de outubro de 2003. Disponível em <www.tjrs.gov.br>.
Acessado em 08/02/2006).
“A atividade de fumar é daquelas que tem início e continuidade mediante livre arbítrio do cidadão, não
raro na adolescência, não se podendo reconhecer que a atividade de fumar tenha início e se dê tão
somente por força de propaganda veiculada pela indústria fabricante de cigarros.” (Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, Apelação civil n. 700091204290, Relator Desembargador Paulo Antônio
Kretzmann, Quinta Turma Cível, julgado em 17 de dezembro de 2004. Disponível em
<www.tjrs.gov.br>. Acessado em 08/02/2006).
“Também é certo afirmar que eventual vício contraído pelo usuário do fumo não é permanente e
irreversível, já que a cessação da atividade de fumar é um fato notório e que depende única e
exclusivamente do usuário, não estando jungida à vontade da empresa fabricante.” (Tribunal de Justiça
410
ato de fumar representa um mero hábito e, como tal, advém
incondicionalmente de uma opção aberta e desembaraçada do próprio
fumante, uma ação absolutamente voluntária, de forma que os efeitos
deletérios, porventura acarretados àquele que assim decidiu agir, jamais
do Rio Grande do Sul, Apelação civil n. 700091204290, Relator Desembargador Paulo Antônio
Kretzmann, Quinta Turma Cível, julgado em 17 de dezembro de 2004. Disponível em
<www.tjrs.gov.br>. Acessado em 08/02/2006).
“Sabe-se que a decisão de usar cigarros, de experimentar, como também a decisão de continuar
fumando, muitas vezes por anos e anos, é tão somente do fumante, que em lugar de pensar nos
malefícios que o cigarro traz, somente pensa em seus “benefícios”, jamais abrindo mão do prazer que o
cigarro proporciona.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação civil n. 700091204290,
Relator Desembargador Paulo Antônio Kretzmann, Quinta Turma Cível, julgado em 17 de dezembro de
2004. Disponível em <www.tjrs.gov.br>. Acessado em 08/02/2006).
“Nesse ponto, pondero que a alegação do vício causado pela nicotina, a justificar a dependência ao
cigarro, não pode ser considerada da forma como colocada pelo autor. A nicotina pode até causar
dependência física e psíquica, mas não a ponto de retirar do fumante sua autodeterminação. A decisão
pessoal de iniciar e continuar a fumar é fruto da escolha consciente do fumante, e sendo cediço que
inúmeras pessoas largam o hábito querendo decidem fazê-lo, necessitando apenas de força de vontade
para persistir nessa decisão.” (Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Apelação cível n.
1999011048788-9, Relatora Desembargadora Adelith de Carvalho Lopes, Segunda Turma Cível, julgado
em 20 de junho de 2002. Disponível em <www.tjrs.gov.br>. Acessado em 08/02/2006).
“Quanto à alegada imposição do consumo de cigarros, certo é que quem fuma conhece exatamente,
ainda que intuitivamente, as conseqüências do vício, conforme muito bem destacado pela jurisprudência
pátria [...]” (Extinto Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Apelação cível n. 360.841-5, Relatora Juíza
Eulina do Carmo Almeida, Quinta Câmara Cível, julgado em 29 de maio de 2002. Disponível em
<www.tjmg.gov.br>. Acessado em 08/02/2006).
“Saliente-se, inicialmente, que os malefícios que o fumo causa à saúde é fato público e notório e que
vem sendo alardeado diuturnamente desde a década de 60, quando já existiam leis municipais que
proibiam o fumo nos elevadores, cinemas e coletivos, sendo opção do indivíduo a utilização ou não do
cigarro, uma vez que conhece as conseqüências de seu uso.” (Extinto Tribunal de Alçada de Minas
Gerais, Apelação cível n. 483.606-1, Relatora Juíza Teresa Cristina da Cunha Peixoto, Décima Primeira
Câmara Cível, julgamento em 22 de abril de 2005. Disponível em <www.tjmg.gov.br. Acessado em
08/02/2006).
“Com efeito, a população brasileira tem consciência ampla e já de longo tempo que o cigarro é um
vício e faz mal à saúde. Essa consciência vem se alargando nas últimas décadas, em razão da difusão
das informações de natureza médico-científica através dos meios de comunicação. Portanto, o que já
era senso comum, veio adquirir uma conotação ainda mais abrangente, de cunho eminentemente social:
quem fuma ou fumou conhece exatamente as conseqüências maléficas do vício, não só porque essas
conseqüências são inclusive, sensitivas, mas, também, pelo fato de existir desde há muito uma
consciência social quanto aos males do cigarro.” (Extinto Tribunal de Alçada de Minas Gerais,
Apelação cível n. 483.606-1, Relatora Juíza Teresa Cristina da Cunha Peixoto, Décima Primeira Câmara
Cível, julgamento em 22 de abril de 2005. Disponível em <www.tjmg.gov.br. Acessado em
08/02/2006).
“Portanto, não há que se dizer que o autor, ora segundo apelante, não sabia que o cigarro fazia mal à
saúde, porquanto é uma afirmação que não seria crível, em face dos padrões da razoabilidade. Não é
possível que o segundo apelante nunca tenha lido na imprensa escrita ou ouvido através dos meios de
comunicação a notícia dos danos que o cigarro provoca à saúde. Não é possível supor que o autor não
tenha sido alertado por seus médicos, familiares, amigos, acerca dos malefícios causados pelo cigarro.
Esses são fatos vivenciados por cada um de nós, fumantes ou não, porquanto se formou uma
consciência social, principalmente a partir da década de 80, por força da vasta informação científica
posta a disposição da sociedade. É necessário afirmar que quem fuma conhece exatamente as
conseqüências do vício, não só porque essas são físicas, mas, também, pelas informações a respeito do
assunto, ao que se acresce o fato de que, ao longo dos tempos, o Estado foi intervindo, restringindo
através de leis e atos administrativos a utilização do fumo em determinadas circunstâncias e a própria
propaganda do cigarro.” (Extinto Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Apelação cível n. 483.606-1,
Relatora Juíza Teresa Cristina da Cunha Peixoto, Décima Primeira Câmara Cível, julgamento em 22 de
abril de 2005. Disponível em <www.tjmg.gov.br>. Acessado em 08/02/2006).
411
poderiam ser impingidos às fornecedoras de cigarros, mas, sim, e
exclusivamente, ao próprio tabagista. Com essa linha de raciocínio,
suscita-se a excludente de responsabilidade fundada na culpa exclusiva da
vítima.
Essa análise deve ser trilhada sob duas perspectivas.
Inicialmente, é de se indagar se o consumidor, decidindo-se por iniciar a
prática do tabagismo, realmente age livremente, sem qualquer
interferência externa. E, para dar fecho à reflexão, mister examinar se, ao
tabagista, bastaria a sua livre manifestação de vontade, uma mera opção,
para se abdicar do vício de fumar, considerando-se, outrossim, a
existência, ou não, de algum estímulo externo, atuando contra tal
intenção.
Esse raciocínio, direcionado a alicerçar a tese da culpa
exclusiva da vítima, tão-somente possui sentido lógico, se conectado à
idéia de que o consumidor detém todo um rol de informações necessárias
a possibilitar-lhe uma opção consciente, no sentido de dar início à prática
do tabagismo, situação bastante controvertida, e que apenas será admitida
em alguns pontos da temática aqui abordada, para propiciar o
desenvolvimento científico daquilo que se pretende demonstrar.
4.2 Influências externas prejudiciais à idéia do livre-arbítrio
A insistência no exame de possíveis interferências externas na
manifestação de vontade do consumidor, já fumante ou propenso a fumar,
tem sua razão de ser. Afinal, o livre-arbítrio apenas haverá de se
configurar, acaso influências exteriores, capazes de conduzir o
consumidor a uma escolha pré-determinada por alguns, sejam isoladas das
hipóteses ora analisadas. Percebidas tais ingerências, e dependendo do seu
grau de atuação, a independência do consumidor restará comprometida,
quiçá completamente, porquanto seria um contra-senso falar-se em livre-
arbítrio sem liberdade de decisão.
E essa idéia provém do próprio conceito de livre-arbítrio.
Colhe-se do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa que
livre-arbítrio denota a “possibilidade de decidir, escolher em função da
412
própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa
determinante”
782
. O liberum arbitrium é faculdade própria do homem que,
pelo fato de possuir a razão, ou pela capacidade de ser racional, é capaz
de escolher entre várias possibilidades
783
. É o poder de agir de
determinada forma, ou deixar de agir, sem nenhuma razão para tal
escolha a não ser o próprio alvedrio; é a escolha dirigida pela vontade,
de sorte que o indivíduo age de certa maneira, porque assim quer e sente-
se responsável pelo ato praticado
784
. Para que o livre-arbítrio seja
exercido plenamente, não deve haver impedimentos externos ao
movimento
785
, porquanto, nessa hipótese, a margem de atuação do alvedrio
é eliminada ou, ao menos, reduzida.
A esfera do não-eu é percebida pela consciência, a partir dos
órgãos dos sentidos; toda a realidade é concebida a partir da
experiência. No seu cotidiano, o homem é bombardeado, direta e
indiretamente, por excitações exteriores, muitas delas responsáveis pela
moldura de seu próprio caráter. Igualmente, grande parte dos hábitos,
vícios e prazeres, se originam desse contato com as determinações
provenientes do exterior, sejam quais forem suas naturezas. Um sujeito,
por exemplo, é mais ou menos extrovertido, não apenas em decorrência de
suas características hereditárias, também influindo nisso o meio social em
que ele vive ou viveu (família, grupos de amigos, cultura na qual está
inserido, esporte que pratica, clima, etc.) e as próprias experiências
pessoais vivenciadas.
Deveras, a vontade humana não apresenta cunho invariável ou
inatingível, podendo ser conduzida e transformada por estímulos externos,
advindos de uma realidade obtida pela experiência vivenciada no mundo
sensível. Daí porque – insista-se nessa idéia –, sempre que se pretender
alicerçar um ponto de vista com base no livre-arbítrio, será absolutamente
necessário exercitar o raciocínio, visando investigar possíveis inferências
782
HOUAISS, Antônio Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa. Versão 1.0.7, set. 2004, Instituto
Antônio Houaiss. Produzido e difundido pela Editora Objetiva Ltda.
783
Trecho colhido da Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., disponível em: <http:// geocities.
yahoo.com.br/edterranova/raven079.htm>. Acessado em 04/09/2006.
784
Ibid., 2006.
785
Ibid., 2006.
413
externas motivadoras de um agir específico. Presentes tais inferências,
obviamente que a liberdade de ação restará comprometida, já que o
agente atuou, não por sua própria e exclusiva vontade, mas motivado,
instigado por uma força exterior condicionante do seu agir.
4.3 Condicionamentos externos responsáveis pela decisão de iniciar a
prática do tabagismo
De início, é de se afirmar que as decisões de iniciar a prática do
tabagismo, e a de mantê-la viva no cotidiano, advêm de um ou alguns
estímulos externos. São excitações exteriores que, de algum modo,
influenciam a vontade do indivíduo, conduzindo a sua ação em direção ao
consumo inicial e contínuo de tabaco. Sendo esse argumento verdadeiro –
e ele efetivamente o é – certamente cairá por terra a tese do livre-arbítrio
do fumante, sobretudo porque não haveria sentido em se defender uma
propensa liberdade de agir, quando a vontade do indivíduo foi maculada,
já que pastoreada para um determinado caminho por fatores outros que
não a sua própria consciência.
E são vários os fatores responsáveis por conduzir as pessoas a
experimentar o cigarro. A curiosidade pelo produto, seu baixo custo, a
imitação do comportamento dos adultos pelos jovens e a necessidade
desses últimos de se auto-afirmarem são apenas algumas dessas
determinantes externas. Contudo, e no mais das vezes, essas
determinantes são meros coadjuvantes, atuando em auxílio a uma força
mestra poderosíssima e, às vezes, imperceptível, cunhada artificialmente
em prol do estímulo ao tabagismo.
Mediante uma estratégia sofisticadíssima, pautada na omissão
de informações acerca dos males do fumo, na negativa e ataque de
esclarecimentos científicos apontando esses males, e em técnicas
requintadas de marketing massivo, a indústria do fumo, astuciosamente,
estabeleceu uma áurea positiva em torno do tabagismo, de modo que o
consumo de cigarros acabou sendo aceito socialmente, visto, por muitos,
como símbolo de status, riqueza, sucesso profissional, requinte e, até
mesmo, saúde. Esse o principal fator externo a condicionar as pessoas,
414
principalmente os mais jovens, a experimentar o cigarro: a aura positiva,
essa atmosfera de aceitação social de um produto potencialmente
perigoso à saúde daqueles que o consomem direta e indiretamente, cuja
edificação teve por matéria prima blocos de ganância e embustes,
pavimentados com uma incrível falsidade, direcionada apenas a garantir
o sucesso de vendas e a conseqüente obtenção de vultosos lucros.
Aliás, se é verídica aquela estatística a apontar que 90% dos
fumantes habituais iniciam-se no tabagismo antes dos 19 anos
786
, isso se
deve, obviamente, ao êxito da estratégia de vendas perpetrada pela
indústria do fumo. De igual maneira, esse êxito fenomenal é confirmado
pelo fato de existirem hoje, e em todo o globo, 1 bilhão e 200 milhões de
fumantes, que conferem às fornecedoras de tabaco um lucro anual
estrondoso, que gira em torno de 300 bilhões de dólares
787
.
E nem se queira impingir a essas afirmações a insígnia de vazias
ou lacunosas. Afinal, depois que se deu publicidade aos famosos
documentos secretos da indústria do fumo, o véu que encobria a estratégia
por ela desenhada, isso para assegurar o sucesso de vendas de seus
produtos, foi parcialmente erguido, permitindo-se uma visão peculiar e
extensa do conjunto de idéias que já fizeram parte da estrutura do seu
pensamento.
Com o surgimento dos aludidos documentos secretos, sofreu a
indústria do fumo um súbito e inesperado baque, notadamente porque
restou evidente que o discurso que elaborou e difundiu, entre os anos 50 e
90, era absolutamente cínico e fraudulento. Isso por espelharem
786
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 28. Mister a citação de um trecho da obra do citado autor:
“Recentemente verificou-se mais aprofundadamente a importância da idade em que se começa a fumar,
no desenvolvimento mais intenso da dependência da nicotina. Os que se iniciam no tabagismo em torno
dos 14 anos de idade, cerca de 90% estão dependentes aos 19 anos. Tem-se comprovado que os que
começam a fumar entre os 14 a 16 anos, desenvolvem muito maior dependência da nicotina, em
comparação com aqueles que fumaram o primeiro cigarro depois dos 20 anos.
Nos adolescentes a nicotina provoca ação imediata sobre a função colinérgica, com alterações
persistentes refletindo-se na dependência, aprendizado e memória. O adolescente é mais vulnerável
para a disfunção colinérgica quando submetido à ação da nicotina. A nicotina no adolescente produz
rápida alteração no sistema noradrenérgico e dopaminérgico dos centros nervosos cerebrais. A
vulnerabilidade dos adolescentes à nicotina deriva da circunstância de que o cérebro ainda não está
completamente desenvolvido. Experimentalmente constatou-se que a instilação de nicotina em ratos
jovens exerce extensa ação sobre os receptores acetilcolínicos, o que não ocorre nos ratos adultos.
Além disso, verifica-se que em ratos mais jovens, a nicotina provoca maiores prejuízos funcionais no
sistema de recompensa, que em ratos adultos.”
787
Informação disponível no site: <www.inca.gov.br>. Acessado em 24/02/2006.
415
evidências de que a indústria tabaqueira, muito embora conhecesse os
fatos de que o cigarro provoca câncer e de que a nicotina é uma droga
poderosíssima, utilizou-se, naquele tempo, de uma imagem pública com
tonalidades bem distintas, para promover a praga marrom
788
.
Em 12 de maio de 1994, Stanton A. Glantz, professor da Divisão
de Cardiologia da Universidade da Califórnia, São Francisco, Estados
Unidos, ativo militante contra o tabagismo, recebeu de um missivista,
ocultado sob o pseudônimo Mr. Butts, aproximadamente 4 mil páginas de
memorandos, relatórios, cartas, cópias de atas, que correspondem a um
período de 30 anos de atividade da British American Tobacco e de sua
subsidiária nos Estados Unidos, a Brown and Williamson Tobacco
788
Veja-se, nesse sentido, esclarecedor trecho da monumental obra de José Rosemberg: “Desde os idos de
1950, a indústria tabaqueira vem desenvolvendo pesquisas que lhe forneceram a certeza de que a
nicotina é geradora de dependência físico-química, assim como estudos para sua maior liberação e
absorção pelo organismo e inclusive estudos genéticos objetivando desenvolver planta de tabaco
hipernicotinado. A indústria tabaqueira, ciente das propriedades psico-ativas da nicotina geradora de
dependência, sempre negou a existência dessas qualidades farmacológicas. É edificante o episódio
ocorrido no início de 1980, quando a Phillip Morris obrigou seu cientista Vitor de Noble a retirar o
artigo que havia entregado para publicação no Journal of Psychopharmacology, no qual relatava suas
investigações comprovadoras de que ratos recebendo nicotina desenvolviam dependência físico-
química. Isso tudo veio a lume com os documentos secretos que se tornaram públicos. Entretanto, a
indústria tabaqueira continuamente pronunciou-se com ênfase, negando essas propriedades da
nicotina.” (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 42). E mais: “Não obstante a exaustiva documentação
acumulada de que a nicotina é droga geradora de dependência químico-física e da existência de fatores
genéticos que ditam a reação orgânica com vasto polimorfismo [...], é de interesse ressaltar o fato
histórico de que a ciência oficial demorou muito para se convencer dessa certeza, enquanto a indústria
tabaqueira já tinha disso conhecimento de longa data. É também fato histórico edificante, como as
multinacionais do tabaco esconderam por tanto tempo a certeza que tinham da nicotina ser droga
psicoativa, promovendo vasta propaganda enganosa, afirmando que ela não causa dependência,
enquanto secretamente trabalhou para a obtenção de cigarros com teores mais altos de nicotina para
tornar os fumantes mais escravizados ao seu consumo. É impressionante que em 1979 o relatório oficial
do Departamento de Educação, Saúde e Assistência Social, dos Estados Unidos, abordando a temática
da nicotina, não se pronunciou sobre a sua característica de gerar dependência. Mais inexplicável é
que, ainda em 1964, o Comitê Consultivo do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, com o
endosso do Surgeon General, tenha declarado que “a nicotina causa apenas hábito, não sendo droga
que desenvolve dependência”. Entretanto, a indústria tabaqueira, que vinha, desde 1950, promovendo
pesquisas sofisticadas sobre a farmacodinâmica da nicotina, havia chegado À conclusão de que ela era
droga geradora de dependência orgânica. Assim, em março de 1963, um ano antes do acima citado
relatório do órgão oficial da saúde pública dos Estados Unidos, negando que a nicotina causa
dependência, a Brown and Williamson, na reunião de seus dirigentes face às pesquisas de seus técnicos,
concluiu pela propriedade da nicotina de causar dependência. A companhia tabaqueira Brown and
Williamson, sediada nos Estados Unidos, é subsidiária da British American Tobacco (BAT), assim como
a Souza Cruz do Brasil. Nessa reunião, o vice-presidente, Addison Yeaman, afirmou: “além do mais, a
nicotina causa dependência. Nós estamos, portanto, num negócio de vender nicotina, que é uma droga
que causa dependência, eficaz para anular os mecanismos de estresse.” Aliás, desde a década dos anos
1950,. a indústria tabaqueira já tinha a convicção da ação psico-ativa da nicotina, conforme se
depreende do pronunciamento de H.R. Hammer, diretor de pesquisa da British American Tobacco,
como consta da ata da reunião de 14 de outubro de 1955: “Pode-se remover toda a nicotina do tabaco,
mas a experiência mostra que esses cigarros e charutos ficam emasculados e ninguém tem satisfação de
fumá-los”. Em 1962 em outra reunião da British American Tobacco, o executivo Charles Ellis afirmou:
“fumar é conseqüência da dependência [...]. Nicotina é droga de excelente qualidade.” (Ibid., p. 42-43).
416
Corporation. Ulteriormente, Merry Williams, ex-técnico da Brown and
Williamson, forneceu ao Prof. Glantz grande número de documentos
referentes às atividades dessa companhia de cigarros. Os documentos
foram repassados ao Sub-Comitê de Saúde e Ambiente do Congresso
Norte-Americano. Além de sua publicação em periódicos científicos,
foram divulgados numa série de artigos do New York Times. Após vários
recursos das fabricantes de cigarros, alegando interferência na sua
privacidade, a Corte Superior do Estado da Califórnia reconheceu sua
legitimidade, decidindo que esses documentos deveriam ser do domínio
público
789
.
Em 8 de maio de 1998, as companhias de tabaco propuseram um
acordo com o Estado de Minnesota, numa ação instaurada pelo Promotor
Geral do Estado de Minnesota, Estados Unidos, e pela Blue Cross Shield.
Nas cláusulas do acordo, constou a obrigatoriedade de a indústria
tabaqueira possibilitar o acesso ao público aos seus documentos internos
(atas, memoriais, cartas, relatórios, planos de administração), e de toda a
correspondência referente às suas atividades técnicas, científicas e
comerciais. Em inúmeros desses documentos, constam pronunciamentos
de técnicos, cientistas, consultantes, assessores e advogados. Toda essa
documentação refere-se a sete empresas fabricantes de cigarros e duas
organizações a estas filiadas, em atividade nos Estados Unidos: Phillip
Morris Incorporated, RJ Reynolds Tobacco Company, British American
Tobacco, Brown and Williamson, Lorillard Tobacco Company, American
Tobacco Company, Liggett Group, Tobacco Institute e o Center for
Tobacco Research. E foi justamente nessa época que se tomou
conhecimento dos documentos que o ex-técnico da Brown and Williamson
havia entregado ao Prof. Glantz. Ao todo, são 5 milhões de documentos,
com 40 milhões de páginas, que podem ser consultadas pela internet
(<http://www.library.ucsf.edu/tobacco/>), encontrando-se, ainda, à
disposição, no arquivo oficial de Minnesota e em Guilford Surrey nos
arredores de Londres
790
.
789
ROSEMBERG, 2003. p. 43.
790
Ibid., p. 43.
417
Apenas para se ter uma idéia, os aludidos documentos
demonstram que, já nos anos 60, a indústria do tabaco em geral – a Brown
and Williamson e a British American Tobacco em particular – havia
provado em seus próprios laboratórios que o alcatrão do cigarro causa
câncer em animais
791
. Além disso, no início dessa década, os cientistas da
British American Tobacco (e os advogados da Brown and Williamson) já
trabalhavam com a idéia de que a nicotina motivava a dependência. A
British American Tobacco respondeu, tentando criar secretamente um
cigarro “seguro” que minimizaria os elementos perigosos existentes na
sua fumaça. Entretanto, publicamente, essas empresas mantiveram a
posição de que o cigarro não era prejudicial e muito menos viciante. A
meta primária da indústria do tabaco era a de se manter como um grande
nicho comercial, protegendo-se de processos judiciais e regulação dos
governos. Até hoje, apesar de irrefutáveis evidências científicas e
relatórios governamentais oficiais, algumas fabricantes de cigarros
insistem em sustentar que os produtos do tabaco não são viciantes e
igualmente não causam doenças, colocando-se por detrás de uma “parede
de negativas”, construída com o fim único de criar controvérsias e
dúvidas acerca das evidências técnico-científicas dos malefícios do
consumo de cigarros obtidas no curso dos anos
792
. Para se constatar essa
realidade, basta uma breve análise nas defesas apresentadas pelas
fabricantes de cigarros, em ações judiciais que sofrem no Brasil.
Em sua aplaudida obra, Mario Cesar Carvalho faz referência às
informações obtidas pelo exame de tais documentos, agora se referindo
exclusivamente à empresa tabaqueira Philip Morris e a seu cigarro
Marlboro, o mais vendido do mundo:
791
Vejam-se, a esse respeito, as informações de Mario Cesar Carvalho: “Há dois gêneros de documentos:
os científicos e os memorandos do alto escalão da indústria. O mais antigo dos textos científicos
revelados é de fevereiro de 1953, oito meses antes de a pesquisa com os ratos pintados com nicotina ter
sido apresentada pela primeira vez. Assinado por Claude Teague, um pesquisador da R.J. Reynolds, o
texto associa com câncer o uso de cigarros por períodos longos: “Estudos de dados clínicos tendem a
confirmar a relação entre o uso prolongado de tabaco e a incidência de câncer no pulmão” Logo em
seguida, o pesquisador descreve quais são os agentes cancerígenos do cigarro: “compostos aromáticos
plinucleares ocorrem nos produtos pirológicos [ou seja, que queimam] do tabaco. Benzopireno e N-
benzopireno, ambos cancerígenos, foram identificados.”. (CARVALHO, op. cit., 2001. p. 16-17).
792
GLANTS, Stanton A.; SLADE, John; BERO, Lisa A.; HANAUER, Peter; BARNES, Deborah E. The
cigarette papers. University of California Press, 1996. p. 4-5.
418
Outros textos menos contundentes mostravam que a indústria
fazia campanhas publicitárias para atingir adolescentes e
manipulava o nível de nicotina no cigarro. Um memorando de
1965, do pesquisador Ron Tamol, da Philip Morris, produtora
do cigarro mais vendido no mundo, o Marlboro, trazia a
seguinte anotação: “Determinar o mínimo de nicotina para
manter o fumante normal ‘viciado’”
793
.
Já José Rosemberg, numa análise focada unicamente à nicotina,
sintetiza as revelações obtidas pelo exame dos entabulados documentos
secretos: a) as pesquisas conduzidas pela indústria tabaqueira sobre a
nicotina foram mais avançadas que as das comunidades médico-
científicas; b) de longa data, a indústria tabaqueira, clara e
comprovadamente, detém conhecimentos de que a nicotina é droga,
causadora de dependência físico-química, agindo de forma deletéria sobre
os centros nervosos cerebrais; e c) as pesquisas foram conduzidas com o
objetivo de melhor esclarecer a neuro-farmacologia da nicotina, a sua
793
CARVALHO, op. cit., 2001. p. 18. Mario Cesar Carvalho informa que a manipulação do nível de
nicotina era tema proibido. Se essa prática fosse provada, demonstrar-se-ia que a indústria alterava os
ingredientes de seu produto, como se este fosse uma droga – e aí a venda de cigarros poderia sofrer
limitações. Complementa o jornalista: “O governo dos EUA encontrou a prova da manipulação, num
texto escrito em português, descoberto por uma bibliotecária da Food and Drugs Administration (FDA,
a agência que controla remédios e comida). O texto era um pedido de patente da Brown & Williamson,
empresa irmã da Souza Cruz, para “uma variedade de fumo geneticamente estável”. O pedido era de
1992. Mesmo sem saber português, a bibliotecária, Carol Knoth, reparou num número: 6%. E uma
dúvida persistia: por que o texto fora escrito em português?
Primeiro, a FDA descobriu que o número referia-se ao percentual de nicotina produzido pela planta
transgênica. Era praticamente o dobro dos níveis de nicotina encontrados no fumo sem manipulação
genética, que variam de 2,5% a 3,5%. O porquê de o texto ter sido escrito em português seria revelado
com a ajuda de Janis Bravo, uma funcionária da DNA Plant Technology, empresa que produzira a
planta geneticamente modificada (com o nome futurista de Y1). Janis contou que tinham sido enviadas
ao Brasil sementes suficientes para produzir mil toneladas de fumo. Uma pesquisa nos arquivos
alfandegários dos EUA revelou que a Brown & Williamson despachara 1 milhão de quilos de sementes
do fumo geneticamente modificado Y1 para a Souza Cruz Overseas. O roteiro das sementes era o
mesmo dos negócios escusos: iam para as ilhas Cayman e depois para o Brasil.
O Brasil fora escolhido porque a indústria fez nos EUA um acordo de cavalheiros para não elevar os
níveis de nicotina. Do contrário, haveria uma espécie de jogo sujo que viciaria, de tal forma, o
consumidor, que isso praticamente eliminaria a concorrência entre marcas. Cultivando o Y1 no Brasil,
onde as sementes foram plantadas no Rio Grande do Sul, a Brown & Williamson, segundo sua visão
particular de ética, não estava violando o acordo. Um empregado da Brown & Williamson também
decidiu abrir a boca. Contou à FDA que a empresa estocara, nos EUA, entre 125 e 250 toneladas de
fumo Y1.
Por causa do processo aberto nos EUA contra a Brown &Williamson, a Souza Cruz interrompeu a
produção do Y1 no Brasil.
A engenharia genética era a forma mais sofisticada de alterar o nível de nicotina do cigarro, mas não
era a única. Um manual de mistura de fumos da Brown & Williamson ensinava outro métodos – a
adição de amônia. “Um cigarro que incorpore a tecnologia da amônia vai distribuir mais compostos de
sabor na fumaça, inclusive nicotina, do que um sem nada.” A técnica é simples: a amônia reage com os
sais da nicotina e eleva o nível de liberação da mesma nicotina. As fábricas brasileiras também
recorreram ao método da amônia, segundo o Instituto Nacional do Câncer.
É mais um ingrediente para engrossar a lista de cerca de 600 compostos que são adicionados ao
cigarro, conforme a própria indústria.” (Ibid., 2001. p. 18-20).
419
natureza, suas formas de presença no tabaco, sua mais fácil liberação e
maior ação sobre o cérebro, a elevação do seu teor no tabaco, e a
intensificação da dependência
794
.
Como se vê, não há como ignorar o caráter pérfido da postura
assumida pela indústria do tabaco, omitindo e negando conhecimentos que
possuía sobre os malefícios do tabagismo: pior que isso, apenas a sua
estratégia marqueteira. Afinal, adotou manobras voltadas a difundir
massivamente publicidades insidiosas, e a fazer apologia do cigarro, um
produto potencialmente nocivo à saúde. A frieza e o egoísmo dos
responsáveis pelas decisões estratégicas de venda e publicidade, também
acabaram aflorando com o surgimento dos documentos secretos [...].
A indústria do fumo adotou estratégia destinada a desacreditar a
ciência legítima, somando esforços para incitar controvérsias e dúvidas
sobre estudos divulgados desde o início dos anos 50
795
, que vinculavam a
prática do tabagismo aos prejuízos à saúde humana. A publicidade
massiva e insidiosa veiculada pela indústria do fumo é peça fundamental
desse complexo quebra-cabeças, peça chave para a edificação daquela
atmosfera socialmente favorável ao tabagismo apontada alhures.
794
ROSEMBERG, 2003. p. 44. José Rosemberg, na mesma obra, esclarece que o elenco e a variedade das
investigações em animais e em humanos são difíceis de resumir, porém os itens mais marcantes são:
“Estudos neuro-endocrínicos da ação da nicotina sobre os vários centros cerebrais. Regulação da
função da glândula pituitária. Liberação mais rápida da nicotina e seu maior impacto sobre o cérebro.
Controle da nicotina sobre o estresse e efeito tranqüilizante. Liberação de hormônios psico-ativos pela
ação da nicotina sobre os centros nervosos cerebrais. Transposição da nicotina presa em nicotina livre,
objetivando sua maior ação. Transposição da nicotina da fase particulada para a fase gasosa, mais
ativa. Fenômeno de tolerância dos centros nervosos nicotínicos. Graus da dependência à nicotina no
tabaco através do tabaco reconstituído.” Continua o estudioso, evidenciando que essas e outras linhas
de pesquisa conduziram a vários conhecimentos, sendo os essenciais: “A ação neuro-farmacológica da
nicotina é de proeminente importância para as pessoas fumarem. Substâncias como a amônia, elevando
o pH do tabaco, liberam mais nicotina. Exploração de métodos de enriqucimento de nicotina no
tabaco: o tabaco reconstituído e engenharia genética. Eletroencelografia como meio de medição dos
graus de intensidade da nicotino-dependência. Ajustamento dos tabagistas nas maneiras de fumar, para
obter níveis mais adequados de nicotina no sangue, proporcionando maior “satisfação”. Elevação do
índice de absorção orgânica da nicotina, em geral na média de 11% para 40%. Conseguir tabacos que
farmacologicamente desencadeiam maior sensação prazerosa no fumante. Cigarros que liberam menos
de 0,7 mg de nicotina não são vantajosos comercialmente. É urgente a confecção de cigarros com
maior nível de liberação de nicotina. Para os futuros produtos é imprescindível a maior liberação de
nicotina. Por isso, além dos procedimentos pesquisados, impõe-se a cooperação da engenharia
genética para obtenção de tabaco mais rico de nicotina.” (Ibid., p. 44-45).
795
O cientista britânico, sir Richard Doll, a primeira pessoa a estabelecer uma ligação clara entre fumar e
câncer de pulmão, morreu recentemente, dia 24 de julho de 2005, aos 92 anos, em Oxford, na Grã-
Bretanha. Uma pesquisa publicada em 1950, escrita com seu colega Austin Bradford Hill, foi a primeira
evidência científica de que o hábito afeta negativamente, e de forma crescente, a saúde humana. Na
época, 80% dos britânicos fumavam; hoje, são 26%. (VIDA &. O Estado de S. Paulo, A. 13. Cientista
que ligou cigarro ao câncer morre aos 92 anos).
420
Mesmo antes que as evidências científicas começassem a
apontar a ligação entre o consumo de cigarros e diversas doenças, as
companhias de tabaco, nos EUA, já promoviam anúncios publicitários
insinuando que algumas marcas eram ‘mais saudáveis’, ou ‘menos
irritantes’, que outras.
Estudiosos dos documentos secretos esclarecem que esses
slogans, juntamente com o memorando escrito por Ernest Pepples,
referindo-se à ‘corrida do alcatrão’
796
, indicam que a indústria do fumo
começou a promover os cigarros de filtro e de baixos teores durante os
anos 50, primeiramente para acalmar a animosidade pública surgida em
razão de estudos publicados vinculando o cigarro a várias doenças.
Embora os anúncios da época sugerissem que os novos cigarros eram
‘mais saudáveis’, não havia nenhuma evidência real de que isso era
verdade. Quando as evidências finalmente começaram a aparecer (depois
de vinte anos, em 1977), concluiu-se que a diminuição de teores e a
utilização de filtros tinham apenas um efeito modesto, na redução do risco
enorme representado pelo consumo de cigarros
797
.
Com o passar dos anos, a publicidade ofertada pela indústria do
tabaco foi se tornando mais e mais sofisticada e incisiva, fosse para
garantir uma gorda fatia do competitivo mercado, fosse ainda para incitar
controvérsias e dúvidas quanto aos estudos que vinham assomando com
maior freqüência, evidenciando uma ligação direta do consumo de
cigarros a varias enfermidades.
796
Um dos memorandos internos, esse escrito por Ernest Pepples, vice-presidente e advogado geral da
Brown & Williamson, evidencia que a primeira reação da indústria do tabaco à crescente preocupação
pública com os efeitos danosos do cigarro, foi a de “produzir mais marcas com filtro e marcas com
baixos índices de alcatrão” Segundo Pepples, a fatia do mercado dos cigarros com filtro cresceu
rapidamente durante os anos 50 e 60, criando uma atmosfera de competição feroz que ficou conhecida
como a “corrida do alcatrão” (empresas competindo para baixar o alcatrão dos cigarros). Os
documentos secretos mostram, entretanto, que essas novas marcas não eram exatamente mais saudáveis
que as antigas. Em verdade, essas marcas foram desenvolvidas com propósitos de marketing, para que as
empresas de tabaco pudessem declarar em seus anúncios que sua marca tinha “menos alcatrão” que as
outras – o próprio Pepples assinala, no tal memorando citado alhures, que os filtros não faziam os
cigarros mais saudáveis, apenas davam aos fumantes a ilusão de fumar um produto mais saudável
796
. A
esse respeito, os cientistas da British American Tobacco fizeram uma distinção entre os cigarros
“orientados à saúde”, que incorporavam avanços tecnológicos que foram testados e sabia-se que
reduziam os riscos, e cigarros “de imagem saudável”, que eram projetados para dar aos fumantes a
ilusão de estarem consumindo um produto mais seguro.
797
GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 30.
421
Ressalte-se que no Brasil – e acredita-se, em todo o mundo –
essa publicidade jamais teve cunho informativo e esclarecedor. Sempre
foi promovida com o objetivo de criar uma necessidade artificial de
consumo e manter uma ambientação constante do produto nocivo, na
sociedade. A motivação do consumidor era buscada mediante a
aproximação de modos de ser e viver ao produto anunciado. Assim,
relacionavam-se os cigarros com atividades esportivas, sociabilidade,
saúde, requinte, sucesso profissional, etc. Refletia-se a idéia de que fumar
era algo prazeroso, “hábito” de pessoas inteligentes, produtivas e livres.
Tal estratégia publicitária, hoje proibida no Brasil, objetivava
primordialmente a persuasão, já que tinha por matéria prima sons e
imagens sedutores, voltados a incitar a prática do tabagismo, tática
absolutamente funcional, principalmente quando endereçada a crianças e
jovens,
798
pessoas ou normalmente imaturas, ou inseridas num contexto
de mudanças psicológicas e hormonais próprias da adolescência.
Consoante pondera a festejada professora Cláudia Lima
Marques:
798
Sobre a importância da idade em que se começa a fumar para desenvolvimento mais intenso da
dependência da nicotina, mister citar-se passagem da obra de José Rosemberg: “Os que se iniciam no
tabagismo em torno dos 14 anos de idade, cerca de 90% estão dependentes aos 19 anos. Tem-se
comprovado que os que começam a fumar entre os 14 a 16 anos desenvolvem muito maior dependência
da nicotina, em comparação com aqueles que fumaram o primeiro cigarro depois dos 20 anos de idade.
Nos adolescentes, a nicotina provoca ação imediata sobre a função colinérgica, com alterações
persistentes refletindo-se na dependência, aprendizado e memória. O adolescente é mais vulnerável
para a disfunção colinérgica quando submetido à ação da nicotina. A nicotina no adolescente produz
rápida alteração no sistema noradrenérgico e dopaminérgico dos centros nervosos cerebrais. A
vulnerabilidade dos adolescentes à nicotina deriva da circunstância de que o cérebro ainda não está
completamente desenvolvido. Experimentalmente, constatou-se que a instilação de nicotina em ratos
jovens exerce extensa ação sobre os receptores acetilcolínicos, o que não ocorre nos ratos adultos.
Além disso, verifica-se que em ratos mais jovens, a nicotina provoca maiores prejuízos funcionais no
sistema de recompensa, que em ratos adultos. Estudos em humanos indicam que o cérebro de
adolescentes é particularmente vulnerável à nicotina, e que a dependência é mais intensa, razão porque
a interrupção de sua administração, por deixar de fumar, apresenta maiores perturbações da função
neurológica, com maior freqüência de depressão. Estudo de mais de 30 mil homens e cerca de 19 mil
mulheres, ambos adolescentes, demonstrou que os iniciados no tabagismo desenvolveram intensa
dependência, traduzida pelo aumento de consumo de cigarros quando na idade adulta. Os que
começaram a fumar antes de 14 anos, 19,6% quando adultos consumiam 41 ou mais cigarros por dia,
comparados com 10,3% quando começaram a fumar aos 20 ou mais anos de idade. O consumo foi um
pouco inferior, no sexo feminino. Outro estudo demonstrou que adolescentes fumantes têm duas vezes
mais dificuldade de deixar de fumar que os tornados tabagistas, depois de 20 anos. Em suma, é farta a
documentação evidenciando que a dependência da nicotina processa-se mais rapidamente e é mais
forte, nos que ingressam no tabagismo em torno dos 14 anos, sendo mais difícil de superá-la, obrigando
a consumir maior quantidade de cigarros continuamente, com sérias conseqüências à saúde.
(ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 28-29).
422
[...] não somente as empresas [do tabaco] desinformaram
voluntariamente seus milhares de consumidores, como
enviaram mensagens que – para estes leigos – eram aceitáveis e
acreditáveis. Em outras palavras, a informação publicitária
(imagens, induções, sons, risos, frases, personagens, situações
de esporte, lazer, prazer etc.) é recebida e processada por um
leigo, o consumidor brasileiro, que nela acredita, de forma
totalmente escusável!
799
Exemplo que bem ilustra a estratégia – adotada ainda hoje pela
indústria do fumo em muitos países – ocorreu recentemente na China. Em
2004, a principal companhia de cigarros daquele País, a Baisha, contratou
o jovem Liu Xiang como garoto propaganda. Liu Xiang ganhou fama após
surpreender o mundo nas Olimpíadas de Atenas, onde triunfou nos 110
metros com barreiras, obtendo a medalha de ouro por ter igualado o
recorde mundial. Naquele País, ainda se permite o vínculo do tabaco às
práticas esportivas, manobra essa que certamente contribuirá para que a
citada empresa continue no ápice, em vendas de cigarros, notadamente
porque milhares de pessoas – sobretudo os jovens – serão seduzidas a
iniciar a prática do tabagismo
800
.
Daí se vê a presença irretorquível de estímulos externos, em sua
grande maioria perpetrados pela própria indústria do fumo, engendrados
com o intuito de motivar o consumo de cigarros, isso mediante a
construção pensada de uma atmosfera socialmente favorável ao
tabagismo, cuja influência atinge principalmente os mais jovens, pessoas
ainda em formação física e mental, presas fáceis dessa estratégia
assustadoramente comprovada em vários dos documentos secretos,
especialmente aqueles a indicar serem eles, os jovens, que “representam o
negócio de cigarros do amanhã”
801
.
É imprescindível aos que se debruçam sobre o tema, em especial
os julgadores responsáveis por dirimir controvérsias entre fumantes e a
indústria do fumo, o aprofundamento do estudo dos aspectos aqui
799
MARQUES, op. cit., 2005. p. 93-94.
800
Herói chinês rema contra onda e vai vender cigarro. Folha de S. Paulo. Esporte. Sexta-feira, 22 de
outubro de 2004. D2.
801
Veja-se o inteiro teor de tal documento: “Eles representam o negócio de cigarros do amanhã. À
medida que o grupo etário de 14 a 24 anos amadurece, ele se tornará a parte chave do volume total de
cigarros, no mínimo pelos próximos 25 anos.” (J. W. Hind, R. J. Reynolds Tobacco, internal
memorandum, January 23, 1975). (Ação global para o controle do tabaco. 1º Tratado Internacional de
Saúde Pública. 3. ed. Criação do Instituto Nacional de Câncer (INCA), 2004. p. 9. Disponível em:
<http://www.inca.gov.br>).
423
delineados, retratados com clareza em muitos dos documentos secretos.
Só assim, poderão perceber a ilegitimidade da postura adotada pelas
fabricantes de tabaco para garantir o sucesso de venda dos cigarros por
elas produzidos. Essa análise permitirá ao estudioso a compreensão da
estratégia, elaborada e colocada em prática pela indústria do fumo, para
ambientalizar seus produtos nas sociedades de todo o mundo, garantindo
o estímulo necessário a conduzir as pessoas – principalmente os mais
jovens – a os experimentarem e deles se tornarem dependentes. Trata-se
de prática ilícita a se enquadrar perfeitamente na teoria do abuso do
direito.
4.4 A nicotina e o poder que exerce sobre a vontade do fumante
Mas o raciocínio deve se alongar um pouco mais. Examine-se a
idéia à mostra em algumas frases vazias, muito em voga nas decisões
proferidas em favor da indústria do fumo. Transcrevam-se duas dessas
frases, cujo propósito é único: “a cessação da atividade de fumar é um
fato notório e que depende única e exclusivamente do usuário [...]”; e
“sabe-se que a decisão de experimentar, como também a decisão de
continuar fumando [...], é tão-somente do fumante [...]”.
Tais frases deixam transparecer que a manutenção do tabagismo
decorreria, única e exclusivamente, de uma opção do próprio fumante, de
maneira que teria ele condições de abdicar da prática, quando bem
entendesse – a vontade seria a única alavanca a ser movida pelo
tabagista, para garantir-lhe a renúncia certa ao consumo de tabaco. Data
venia, essa idéia apenas demonstra desconhecimento científico acerca do
tema, já que segue na contramão dos estudos desenvolvidos pela ciência,
representando uma forma cômoda de solução dos litígios envolvendo
consumidores fumantes e a indústria do tabaco.
Já se disse que, hodiernamente, a ciência encara o tabagismo
como sendo uma doença-crônica. De tal sorte, do mesmo modo que um
hipertenso necessita adotar novos hábitos, sem abrir mão do auxílio de
remédios, a maioria dos fumantes também necessita de ajuda, não
424
bastando apenas sua força de vontade para que abdique do vício do
cigarro. Numa única frase: o tabagismo não só causa doenças como
também é uma doença.
Aliás, a Organização Mundial de Saúde, desde 1992, cataloga o
tabagismo na Classificação Internacional de Doenças – Capítulo F12.2,
síndrome da tabaco-dependência. Na mesma senda, afirme-se que a
Associação Americana de Psiquiatria vê a nicotino-dependência como
uma desordem mental pelo uso de substância psicoativa.
A nicotino-dependência foi bem definida nas conclusões do
relatório do Surgeon General, do Departamento de Saúde e Serviços
Humanos dos Estados Unidos: a) a nicotina é droga que causa
dependência, é psicoativa; é reforçadora da motivação de fumar; com a
repetição do uso desenvolve-se tolerância, exigindo doses
progressivamente maiores para desencadear o mesmo efeito; b) a nicotina
liga-se a receptores específicos do sistema nervoso; no cérebro, interage
com todos os centros, alterando o metabolismo energético cerebral; as
interações incluem ativação elétrica, relaxação muscular e efeitos sobre o
sistema cardiovascular e endocrínico; c) o processo famacológico
determinador da dependência é similar aos desenvolvidos em outras
drogas, como cocaína e heroína; d) a supressão do uso da nicotina é
acompanhada por sintomas desagradáveis, quase sempre insuportáveis,
que desaparecem prontamente com nova dose de nicotina
802
.
A médica americana Nancy Rigotti, especialista no assunto, é
categórica ao afirmar que, em sendo o tabagismo um problema crônico, o
seu tratamento deve ser conduzido por toda a vida. Um fumante deve
adotar e manter hábitos ainda mais saudáveis do que uma pessoa que
jamais fumou e, se necessário, voltar a recorrer a algum tratamento
químico e a programas psicológicos para aprender a lidar com a falta do
cigarro. Segundo a médica, associar-se o abandono do vício
exclusivamente à força de vontade, não é a forma correta de encarar a
questão. Afinal, não bastasse ter a consciência de que o fumo está
agredindo a sua saúde, o fumante ainda se sente incapaz de combatê-lo,
802
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 30-31.
425
circunstância que apenas o desestimula ainda mais. Por tal razão, os
médicos que hoje atuam nessa área seguem rumo à idéia de que esse
trabalho não requer só força de vontade. O grande desafio é eliminar o
vício da nicotina, e isso se consegue através de remédios e terapias
803
.
Para José Rosemberg, a “nicotino-dependência, ou seja, a
dependência tabágica é o melhor exemplo de doença crônica com
remissões e recaídas periódicas”
804
. Segundo o estudioso, a
nicotina tem características neurobiológicas; é droga psico-
estimulante. O processo farmacológico da nicotino-
dependência é semelhante ao da cocaína e heroína. Estas
drogas, como a nicotina e opiáceos em geral, liberam dopamina
e aumentam a produção de norepinefrina. Aliás, as drogas
psicoativas, como a nicotina especialmente, agem sobre os
centros mesolímbicos, dopaminérgicos colinérgicos, nucleus
acumbens, provocando o aumento e a liberação de dopamina e
outros hormônios psicoativos, levando à dependência pelas
propriedades euforizantes e ansiolíticas. Isso é facilmente
demonstrável administrando essas drogas endovenosamene.
Outros estimulantes podem agir da mesma forma e o
mecanismo é fundamental para a criação da dependência
805
.
Implantada a dependência, e faltando o aporte de nicotina nos
centros nervosos, surge disforia e um quadro clínico de sintomas
desagradáveis, denominado “síndrome de abstinência” – quadro esse
caracterizado por um forte desejo de fumar, ansiedade, inquietação,
irritabilidade, distúrbios do sono, dificuldade de concentração, além de
outros sintomas. A intensidade da síndrome de abstinência varia com o
grau da dependência
806
.
Sintetizando, a dependência ao tabaco é caracterizada como um
transtorno de longa duração – uma verdadeira doença crônica –, com altas
taxas reincidentes
807
; são constantes os cuidados exigidos. O tratamento
803
BUCHALLA, Ana. Vontade não basta. Entrevista Nancy Rigotti. Revista Veja, 9 de junho de 2004. p.
11-15.
804
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 27.
805
Ibid., p. 27.
806
Ibid., p. 28.
807
Em alguns indivíduos – esclarecem Antonio Fosé Pessoa Dórea e Clovis Botelho – a síndrome de
abstinência pode “ser observada por 30 dias ou mais, mas os sintomas de compulsão pelo fumo podem
durar por muitos meses ou anos. É interessante notar que a abstinência lenta pode resultar em sintomas
de compulsão mais intensos que a interrupção brusca, fenômeno que não é observado com a maioria
das outras drogas. Reduzindo a dose, ao invés de uma interrupção brusca, os sintomas persistem por
mais tempo e este fato pode estar associado a nível maior de recidiva. Isso talvez explique porque a
426
inclui – isoladamente ou em combinação – intervenções comportamentais
e farmacológicas
808
, como aconselhamento, suporte psicológico intensivo
e administração de medicamentos que contribuam para a redução ou
superação da dependência pelo tabaco
809
.
É a nicotina, pois, a grande vilã responsável pelo
desencadeamento da dependência químico-física do tabagista. Se tal
substância não fizesse parte da composição do produto perigoso, o seu
consumo seria considerado unicamente um hábito, podendo ser
abandonado sem maiores dificuldades
810
. Aponte-se, ainda, a constatação
de que são suficientes algumas tragadas de fumo, ou mesmo a
administração de nicotina por qualquer via, para que os sintomas
desagradáveis desapareçam, voltando a euforia, isso unicamente para
reforçar a compreensão de que é, sim, a nicotina a substância responsável
pelos distúrbios que surgem ao cessar de fumar (síndrome de
abstinência)
811
.
Se comparada com a cocaína, heroína, maconha, álcool, e outras
drogas, devido a sua maior toxidez e letalidade, capacidade de
desenvolver uma dependência mais intensa, por ser a mais difundida, e de
fácil acesso aos adolescentes, a nicotina classifica-se em primeiro
lugar
812
. Sem qualquer exagero, a nicotina torna o fumante um escravo do
cigarro
813
.
maioria dos usuários que tem sucesso ao parar de fumar o faz de maneira brusca.” (DÓREA;
BOTELHO, op. cit., 2006).
808
Os medicamentos disponíveis na atualidade para o tratamento de fumantes podem ser divididos em
nicotínicos e não nicotínicos. Os primeiros contêm nicotina, constituindo a chamada terapêutica da
reposição da nicotina (TRN); existem 7 (sete) formas: a transdêmica, pela aplicação de adesivos (pach);
a via oral, com a goma-nicotina de mascar; por inalação; por aerossol; por tabletes; pastilhas; e os
pseudo-cigarros (PREPs), surgidos mais recentemente. Os medicamentos não nicotínicos são,
preferencialmente, os antidepressivos. Entre esses, destaca-se a bupropiona. (ROSEMBERG, op. cit.,
2003. p. 100).
809
Tabagismo & saúde nos países em desenvolvimento. Documento organizado pela Comissão Européia
em colaboração com a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial para a Mesa Redonda de Alto
Nível sobre Controle do Tabagismo e Políticas de Desenvolvimento. Tradução: Instituto Nacional de
Câncer/Ministério da Saúde do Brasil. Disponível em <http://www.inca.gov.br>. Acessado em 10 de
setembro de 2005.
810
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 96.
811
Ibid., p. 28.
812
Ibid., p. 96. Esclarece José Rosemberg que a “intensidade da dependência da nicotina cresce com o tempo
e o número de cigarros fumados. Todas as formas de usar o tabaco geram dependência: cigarros,
charutos, cachimbos, fumo de mascar, rapé etc. Os que começam a fumar muito jovens, em torno dos 14
anos, por peculiaridades orgânicas, desenvolvem altos graus de dependência da nicotina, escravizando-
427
A situação é tão séria que especialistas afirmam não haver
tratamento para 5% dos fumantes com dependência muito forte a nicotina;
esses estariam fadados a morrer fumando
814
.
Precisamente por tais razões é que o tratamento se mostra
indispensável. Para os tabagistas, é assaz difícil abandonar o tabaco,
justamente devido à dependência implantada em seus organismos pelo
consumo de nicotina. Há inúmeros registros indicando que os desejosos
em cessar a prática do tabagismo, valendo-se apenas desse desejo, quase
sempre fracassam em suas empreitadas, essas que se repetem por várias e
várias vezes, sem alcançar o sucesso esperado
815
.
Portanto, é, no mínimo curiosa, a afirmativa de que ao tabagista
bastaria uma decisão sua para abandonar o cigarro. Se, para o doente,
fosse suficiente apenas a sua vontade de se curar, o problema mundial
envolvendo a saúde pública estaria resolvido. Não haveria mais enfermos
no mundo, simplesmente porque ninguém, em boas condições mentais,
pretende permanecer num estado de morbidade. É, pois, mais do que óbvia
a constatação de que é insuficiente a mera intenção do doente para que se
restabeleça. É indispensável fornecer-lhe tratamento
816
adequado, voltado
a debelar, ou, ao menos, minimizar a sua enfermidade.
os ao consumo do tabaco, e quando adultos consomem maiores quantidades de cigarro”. (Ibid., p. 95-
96).
813
A complexidade do assunto envolvendo a ‘nicotina’ levou o professor José Rosemberg a escrever um
verdadeiro tratado sobre o assunto, a obra intitulada ‘Nicotina. Droga universal’, à disposição de todos
pela internet. Obra de peso, cuja bibliografia, contendo nada menos que 1.111 obras, impressiona até
mesmo o mais cuidadoso dos cientistas. Àqueles envolvidos no estudo do tema abordado nesse trabalho
é indispensável o conhecimento da obra citada, haja vista a sua seriedade e a riqueza de informações que
proporciona ao leitor.
814
Informação obtida em entrevista feita com o professor José Rosemberg. Disponível em: <http://www.
drauziovarella.com.br/entrevistas/nicotina5.asp>.
815
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 95.
816
Consoante leciona José Rosemberg, os “métodos de cessação de fumar podem ser diretos e indiretos. Os
primeiros são procedimentos clínicos de avaliação do grau de dependência da nicotina, psicoterapia,
esclarecimentos, aconselhamento, aplicação de medicamentos e acompanhamento; os segundos,
constituem ações anti-tabágicas integradas na atenção primária da rede de saúde pública, campanhas
educativas atingindo, desde a infância, os diversos seguimentos da população, proibição de fumar em
locais públicos, elevação dos impostos sobre os preços dos cigarros, advertências nos invólucros dos
produtos do tabaco. Os métodos diretos são de custo “per capita” mais elevados e, embora obtenham
maior número de resultados positivos na cessação de fumar, atingem menores contingentes de fumantes.
Por outro lado, os métodos indiretos com menores resultados individuais de tabagistas para
abandonarem o tabaco, exercem maior impacto na epidemia tabágica, por englobar a população como
um todo”. (Ibid., p. 97).
428
E se o tabagismo realmente é uma doença – e a ciência o vem
encarando como tal –, salta à vista que a grande maioria dos fumantes
apenas terá condições de renunciar ao tabaco, se submetida a tratamentos
eficientes, capazes de aliviá-la de seu mal.
4.4.1 Ainda sobre a nicotina
Nas precisas palavras de João Batista Herkenhoff, o juiz há de
ser também um homem aberto ao mundo, aberto a interesses múltiplos,
informado sobre todas as coisas, não devendo se fechar no código e no
exoterismo lógico-formal
817
. É intuitiva a necessidade, por parte daqueles
juizes responsáveis pelo julgamento de casos concretos envolvendo
fumantes e a indústria do fumo, de se aprofundarem no estudo da ciência
médica, notadamente naquilo que se refere a substância denominada
nicotina. Afinal, em sendo o juiz um “homem do mundo”, não haverá de
se contentar com frases populares vazias, carentes de profundidade
técnica, oriundas de uma visão curta, equivocada e sem qualquer
sustentação científica.
Aqueles julgamentos que seguem rumo à improcedência de
pedidos indenizatórios, formulados por fumantes contra a indústria do
fumo, cujo argumento central cinge-se à afirmativa de que “a vontade do
fumante seria suficiente para que ele abdicasse do consumo de cigarros”,
apenas evidenciam a pouca intimidade por parte do julgador com o tema
nicotina. Pior, tais decisões atentam contra um direito constitucional, na
medida em que a vaguidade da idéia que as alicerça, tecnicamente não
pode ser rotulada de fundamentação.
A fundamentação é característica essencial a toda decisão
judicial. Num Estado Democrático de Direito, ela se mostra
imprescindível, porquanto além de demonstrar as razões da decisão,
permitindo que seja atacada de forma mais precisa e eficiente, garante que
os atos judiciais não se apresentem arbitrários e descompromissados com
a razão e a lógica. Ora, aquela decisão, cujo embasamento se limita à
817
HERKENHOFF, João Batista. Como aplicar o direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 118.
429
afirmativa de que “bastaria a mera decisão do fumante para que
abandonasse o tabagismo”, sem os devidos esclarecimentos sobre os
caminhos lógicos percorridos para se chegar a tal conclusão, apresenta-se
carente de fundamentação, data maxima venia.
Destarte, é de se ver que o argumento pautado no livre-arbítrio
do fumante, como arma direcionada a excluir a responsabilidade civil da
indústria do fumo, também cai por terra, sob uma análise voltada
exclusivamente para a nicotina, substância psicotrópica responsável pela
dependência do fumante. Essa dependência, implantada no organismo do
fumante, pelo mero consumo de tabaco, apresenta-se como uma fortíssima
influência externa, a mantê-lo na condição de tabagista, já que macula a
sua vontade, impedindo-o de abdicar do fumo espontaneamente, por meio
apenas de sua vontade.
Alberto Magno já dizia que “era livre o homem que é causa de
si e que não é coagido pelo poder de outro”
818
. Nessa perspectiva, o
tabagista não pode ser considerado um homem livre, já que coagido pelo
poder psicotrópico da nicotina, substância que o torna nada mais que um
doente-crônico, passivo e submerso numa grave dependência, quase
sempre impossibilitado de superar seu mal sem auxílio médico adequado
[...].
818
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes,
2000. p. 606.
CAPÍTULO X
ASPECTOS PROCESSUAIS
1 Justificativas que alicerçaram a construção do presente capítulo
Inquestionavelmente, o tema ora abordado encontra-se distante
da serenidade, despertando polêmica, acirrando diversos debates. Talvez a
explicação para tamanha intranqüilidade se situe, justamente, na novidade
de seu trato no País, vinculada ao conceito de que é o cigarro um produto
socialmente aceito, cujas atividades de fabricação, comercialização e
consumo são lícitas.
Alguns poderiam até questionar a utilidade de um Capítulo
voltado exclusivamente à tratativa de temas ligados ao direito processual
civil, sobretudo tendo-se em vista a idéia de que, talvez, se estaria apenas
a gastar papel; a doutrina de vanguarda e a própria jurisprudência
nacional poderão seguir rumo oposto ao defendido no trabalho. Se, no
âmbito do direito material, concluir-se ser absolutamente impossível
indenizarem-se fumantes (ou seus familiares) por danos advindos do
consumo de cigarros, qual, então, a finalidade de se discorrer acerca de
temáticas processuais? Se prevalecer a idéia de que a indústria tabaqueira
sempre agiu no exercício regular de um direito, jamais lesando deveres
431
jurídicos alheios, será realmente inoportuno – ou, ao menos, utópico –
dissertar, aqui, sobre temas exclusivamente voltados à seara processual.
Entretanto, há de se correr o risco. Afinal, não seria aceitável
que tal realidade – a possibilidade de a jurisprudência pacificar
entendimento em sentido diametralmente oposto ao defendido nesse
trabalho – emperrasse o desenvolvimento de um trabalho científico.
Àquele que produz a monografia, a comodidade talvez soasse como
atrativo; para a academia, porém, tal idéia jamais seria palatável.
Alerte-se, ainda, que nada há de errado em escrever sobre temas
novéis, ainda pouco enfrentados pela doutrina e jurisprudência. Aliás,
teses assim certamente contribuíram e contribuem para o desenvolvimento
de idéias e alcance de ideais.
É de se dizer, contudo, que as questões a serem tratadas nesse
capítulo não se baseiam exclusivamente nas conjecturas do monografista.
Isso porque, muitas delas já vêm sendo enfrentadas pela jurisprudência
pátria, malgrado a forte permanência da discórdia, no que tange ao direito
material. Sem dúvida que são assuntos que conduzem à polêmica – talvez
não tanto quanto aqueles referentes ao direito material –, alguns já
lapidarmente enfrentados por pareceristas renomados – em sua maioria
opinando em prol dos interesses da indústria do fumo.
Em sendo assim, é induvidosa a necessidade de se enfrentar os
aspectos processuais atinentes às ações de responsabilidade civil,
envolvendo fumantes e a indústria do tabaco. Jamais com o intuito de
esgotar a temática – diretriz assaz ousada, tendo-se em vista o objetivo
dessa monografia –, mas apenas pretendendo contribuir para o
amadurecimento da doutrina e jurisprudência nacionais.
2 Questões vinculadas à prova em ações de responsabilidade civil
movidas por fumantes (ou familiares desses) contra a indústria do
fumo
A prova representa um dos importantes elementos
indispensáveis à formação da convicção do magistrado, no momento de
proferir decisões – daí porque Carnelutti lecionar que a “prova é o
432
coração do processo”
819
. Não só a prova, mas todo o mecanismo de
distribuição do ônus probatório auxilia o julgador em sua laboriosa
atividade.
E esse mecanismo não se apresenta mediante características
rijas. É, aliás, bem flexível, maleável, justamente para garantir o
tratamento igualitário das partes no processo, oscilando o ponteiro do
onus probandi em consonância com a relação jurídica ou a natureza do
Direito material objeto do caso concreto, notadamente em demandas cujo
tema central é a responsabilidade civil (os direitos do consumidor,
administrativo e civil apresentam, cada qual, peculiaridades específicas
na distribuição do onus probandi).
Ademais, a importância da prova é variável em conformidade
com as circunstâncias processuais, especialmente em face da petição
inicial e da defesa do réu. Assim, havendo ausência de contestação ou
situação análoga (revelia; reconhecimento da procedência do pedido;
confissão; silêncio puro; matéria puramente de Direito), logicamente que
o instituto da prova, em princípio, terá o seu relevo diminuído
820
.
Aqui, o objetivo é pensar-se na distribuição do ônus da prova,
tendo por foco exclusivo a responsabilidade civil pelo fato do produto e
as normas constitucionais e infraconstitucionais que tutelem os direitos
do consumidor.
2.1 A análise probatória envolvendo as relações de consumo
Num exame focado no CDC, o ato ilícito motivador da
responsabilidade civil da indústria do fumo reside nas imperfeições,
intrínsecas e extrínsecas, do cigarro. Esses vícios evidenciam o
descumprimento, por parte da indústria do tabaco, de um dever jurídico
de segurança que lhe cumpre respeitar.
819
CARNELUTTI apud DUARTE, Bento Herculano. Elementos de teoria geral da prova. Processo civil.
Aspectos relevantes. São Paulo: Método, 2005. p. 14.
820
Ibid., p.14.
433
Sumariamente, os requisitos que ensejam a responsabilidade
civil da indústria do fumo, sob um enfoque exclusivamente voltado a Lei
n. 8.078/90, são:
a) a prova de que o autor (ou o falecido, em sendo a família
desse quem ajuizou a ação) consome/consumia cigarros
fabricados pela indústria do fumo, ré na ação;
b) a prova dos danos (morte, enfermidades diversas, danos
morais);
c) a prova do nexo de causalidade entre o consumo de cigarros e
a(s) enfermidade(s) (ou morte do consumidor); e
d) a manutenção da presunção do(s) defeito(s) (presunção essa
que milita em favor do consumidor).
Ressalte-se que pertence ao(s) autor(es) o ônus de provar os
requisitos a, b e c acima delimitados, excetuando-se a hipótese de o juiz
deferir a inversão do ônus probatório. O consumidor, em função de
peculiaridade própria da Lei n. 8.078/90, encontra-se dispensado de
demonstrar a existência de defeito(s) – item d – no produto
disponibilizado no mercado, obrando em seu favor a presunção de que ele
efetivamente concretizou-se.
Obviamente que outras questões poderão surgir em razão das
características peculiares de cada caso concreto. De qualquer modo, essas,
enumeradas acima, são as essenciais, ou seja, as que, efetivamente, hão de
ser trabalhadas em basicamente todas as demandas relacionadas ao tema.
2.1.1 A prova de que o fumante consome/consumia cigarros fabricados
pela indústria do fumo inserida no pólo passivo da ação
O autor-consumidor deverá demonstrar sua condição de
tabagista (ou que já esteve em tal condição); em sendo os familiares os
autores da ação, será deles o ônus de se provar que o “de cujus” era
efetivamente um fumante.
434
A prova da utilização do produto é deveras essencial. No caso,
esse uso, por ser alavancado pela nicotina, normalmente é contínuo,
ininterrupto. A essencialidade dessa prova está justamente na idéia de que
apenas poder-se-á pensar em uma condenação, tendo por alicerce a
responsabilidade pelo fato do produto, se, obviamente, tal produto tiver
sido utilizado pelo consumidor e, por conseguinte, acarretar-lhe danos (a
ele ou a sua família).
Todavia, há um caso hipotético – pelo menos no Brasil, onde
ainda não há precedentes – em que a prova do consumo direto de tabaco
será dispensada ao(s) autor(es) da demanda. Tratando-se o enfermo (ou
morto) de um tabagista passivo, não haveria como se defender a exigência
de tal prova; afinal, não é (ou era) um viciado, não consumia cigarros
ininterruptamente, para garantir o suprimento de níveis momentâneos de
nicotina. Em casos tais, a prova a ser produzida seria a de que a vítima,
de fato, foi um fumante passivo, já que vivia em ambientes onde era
comum a prática do tabagismo.
Igualmente essencial se mostra a demonstração da(s) marca(s)
de cigarros consumidos diariamente pelo fumante. Na medida em que são
muitas as empresas que exploram a atividade de produção e fabricação de
produtos do tabaco, a prova da marca consumida tem por fito a
comprovação de que a ação foi corretamente direcionada. Ou seja, essa
prova encontra-se intimamente associada à própria legitimidade passiva
ad causam, de modo que, não sendo ela produzida, restarão insubsistentes
quaisquer outras discussões respeitantes a matéria de fundo da demanda.
E tal prova não se mostra, de modo algum, impraticável. Aliás,
no mais das vezes, é bastante simples e será produzida por meio de
testemunhas, pessoas que, por anos a fio, conviveram com o fumante e,
por tal razão, têm condições de afirmar, categoricamente, a preferência
dele com relação a uma ou outra marca de cigarros.
Prevalece, aqui, a regra geral de distribuição do ônus
probatório, inserta no art. 333 do CPC. Destarte, competirá ao(s) autor(es)
a prova do fato constitutivo de seu direito, aqui especificamente no que
tange à demonstração de que a vítima é (ou era) praticante do tabagismo,
consumindo determinada(s) marca(s) de cigarros.
435
2.1.1.1 Fumantes cujo consumo englobou duas ou mais marcas de
cigarros, fabricadas por diversas fabricantes de cigarros
Certamente que situações nem um pouco atípicas surgirão.
Imagine-se um fumante que, no decorrer de toda a sua existência,
consumiu quatro ou cinco marcas diferentes de cigarros, essas produzidas
por diversas fabricantes. De igual modo, tenha-se em mente a hipótese
que envolve um fumante passivo, o qual convive diariamente com
diversos tabagistas, esses que fumam, cada um, marcas distintas de
cigarros, fabricados por distintas fabricantes.
Se acaso um desses indivíduos (o fumante ativo e o passivo)
desenvolverem uma doença tabaco-relacionada, a primeira questão a ser
enfrentada, antes de se ajuizar uma ação de indenização, é a de se
desvendar contra qual(is) fabricante(s) de tabaco a ação deverá ser
endereçada.
E a resposta para esse problema está na idéia de obrigação
solidária. Se todas as marcas de cigarros contribuíram para o
desenvolvimento da enfermidade que atingiu a vítima, salta à vista que a
solução coerente será a de se responsabilizar qualquer uma das empresas
(ou mesmo todas elas) detentoras dos direitos de fabricar as tais marcas.
Solução essa não só afeta à lógica, como também alicerçada em sólida
base jurídica.
Não se pode olvidar que, dentro do microssistema consumerista,
a solidariedade surge como um verdadeiro princípio, juntamente com
outros tantos existentes e voltados à proteção efetiva do consumidor
brasileiro.
Trata-se de solidariedade legal, positivada não apenas no
parágrafo único do art. 7º, mas também robustecida pelos arts. 18, 19,
§§1º e 2º do art. 25, §3º do art. 28 e art. 34, todos do CDC. Vê-se, dessa
insistente repetição, evidente preocupação do legislador com a eficaz
compensação de danos suportados pelo consumidor, não se podendo calcar
tal comportamento de inexato, senão de técnica preventiva intentada a
limitar discussões jurídicas que possam vir a surgir a respeito do tema.
Essa opção legislativa – aquela de se repisar, em vários artigos da lei, a
436
idéia instituída pelo parágrafo único do art. 7º do CDC –, garante à
solidariedade seu lugar como princípio na Lei consumerista, reforçando
sua importância, sempre que se estiver diante de situações concretas
envolvendo o pólo naturalmente mais vulnerável das relações de consumo.
A Lei n. 8.078/90, expressamente, prevê, como direito básico
dos consumidores, a efetiva reparação de danos por eles sofridos –
patrimoniais, morais, individuais, coletivos e difusos. A solidariedade
surge, então, como decorrência natural desse direito, facilitando,
sobremaneira, a defesa dos interesses do consumidor lesado, vez que
poderá ele optar contra qual ou quais integrantes da cadeia de consumo
provocará o exercício da tutela jurisdicional. Tal poder de escolha
representa instrumento importante e eficaz, mormente numa sociedade de
consumo em manifesto desenvolvimento e onde, muitas vezes, se
encontram fornecedores sem lastro patrimonial suficiente a garantir
prejuízos causados em decorrência de imperfeições de produtos e
serviços
821
.
2.1.2 A prova dos danos (morte, enfermidades diversas, danos morais)
No Capítulo IV desse trabalho, já se tratou de delinear os
contornos do dano, elemento essencial para que se caracterize a
responsabilidade civil do agente, seja qual for a natureza dessa. Afinal,
nada havendo a ser reparado, ilógica será qualquer argumentação pautada
no instituto da responsabilidade civil.
Constituem danos patrimoniais a privação do uso da coisa, os
estragos nela causados, a incapacitação do lesado para o trabalho, a
ofensa à sua reputação, quando tiver repercussão na sua vida profissional
ou nos negócios
822
. Enquadram-se, aí, tanto os danos emergentes como os
chamados lucros cessantes (art. 402 do novo CC).
No caso de ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das
despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença,
821
A norma, contudo, comporta exceções ou, ao menos, mitigações, a exemplo do que ocorre na hipótese
prevista no art. 13 do CDC.
822
DINIZ, op. cit., 1992. p. 50.
437
além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido (art. 949
do atual CC)
823
. Se, por outro lado, a ofensa à saúde resultar em lesão pela
qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou mesmo
lhe diminuir a capacidade do trabalho, a indenização, além das despesas
do tratamento e lucros cessantes até o fim da convalescença, incluirá uma
pensão correspondente à importância do trabalho, para o qual se
inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu – nesse caso, poderá o
ofendido, se quiser, exigir que a indenização seja arbitrada e paga de uma
só vez (art. 950, parágrafo único, do atual CC).
Se o tabagismo, entretanto, acarretar a morte do consumidor, a
indenização consistirá no pagamento das despesas com o tratamento da
vítima, seu funeral, luto da família, como também na prestação de
alimentos a quem o falecido os devia, por todo o período de sobrevida
presumido e fixado na sentença
824
(art. 948 do atual CC).
Noutro rumo, muitos danos, além de atingirem a integridade
física e/ou patrimonial da vítima, afetam igualmente sua incolumidade
psíquica, acarretando-lhe dissabores dos mais diversos como, por
exemplo, angústia, desgosto, humilhação e aflição espiritual – esses são
os chamados danos morais. A morte, por exemplo, motiva, inegavelmente,
danos morais àquelas pessoas próximas ao de cujos. De tal sorte, os
chamados danos morais, acaso devidos, poderão ser cumulados com os
danos materiais (Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça).
Já se afirmou que tais espécies de lesões são presumidas, não
reclamando nenhuma modalidade de prova, por se tratarem dos chamados
danos morais puros ou subjetivos. Ademais, a complexidade da natureza
humana, tanto quanto a subjetividade da personalidade de cada indivíduo,
823
O Código Civil e outras legislações ordinárias, tratados ou convenções internacionais poderão ser
aplicados nas relações de consumo, desde que não limitem os direitos dos consumidores previstos na Lei
8.078/90. É o que prescreve o art. 7º do Código de Defesa do Consumidor: “Os direitos previstos neste
Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja
signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades
administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia,
costumes e equidade”.
824
Conforme assevera o estudioso juiz e escritor Jurandir Sebastião, atualmente a “expectativa de
sobrevida tem sido fixada na sentença. Hoje a expectativa de sobrevida tem sido fixada pelos Tribunais
em 65 anos de idade. Mas como as perspectivas de longevidade estão paulatinamente aumentando –
graças aos avanços da Geriatria -, nada impede que o juiz a fixe em 68 ou 70 anos, com base nos novos
dados estatísticos.” (SEBASTIÃO, op. cit., 2001. p. 45).
438
torna inviável e dispensável a prova da dor sofrida. Cada pessoa sofre,
moral ou psiquicamente, de maneira diversa, conforme o grau de
sensibilidade que possui. A recompensa material a ser paga para a vítima
(ou aos seus familiares, em caso de falecimento) não tem natureza
reparatória. A rigor, a reparação com assento na mensuração da dor,
advinda de sentimentos como tristeza, perda ou desfalque de ente querido,
é impossível
825
. A indenização auferida funciona como uma forma de
entretenimento, uma compensação, dando à vítima (ou a seus familiares
em caso de falecimento) maiores possibilidades de lazer, descanso,
distração e conforto, ajudando-a, conseqüentemente, a esquecer ou
amenizar o trauma sofrido.
Naquilo que se refere ao arbitramento do dano moral, as
questões são ainda tormentosas. Um dos problemas cujo trato se revelava
quase insolúvel, principalmente pela diversidade de entendimentos
doutrinários e jurisprudenciais, era aquele vinculado a um aspecto formal:
o pedido formulado pelo autor deveria ser certo e determinado ou, ao
contrário, ser construído de forma genérica?
Eram três as principais correntes de entendimento: a) a primeira
defendia ser obrigação do autor a fixação do quantum a título de danos
morais, fundamentando que o pedido deverá ser, em regra, certo e
determinado, e que somente o autor teria condições de arbitrar o valor
pretendido, uma vez que foi ele o ofendido pelo dano; b) a segunda, por
sua vez, adotava o entendimento de que o pedido deverá ser genérico,
cabendo ao magistrado o arbitramento do quantum devido, em
conformidade com as condições específicas de cada caso; c) e a última
entendia ser necessária a fixação do quantum pelo autor sem, entretanto,
esse pedido ter natureza certa e determinada, mas, sim, servindo-se
unicamente de parâmetro (pedido hipotético) para o juiz, quando do
arbitramento do valor devido.
Não se tratava de discussão meramente acadêmica, pois tinha
forte repercussão prática. Se o autor formulasse o pedido genericamente,
o juiz, acaso tivesse entendimento diverso, poderia ordenar a emenda da
825
SEBASTIÃO, op. cit., 2001. p. 47.
439
inicial para que um valor certo e determinado fosse apontado. Emendando
a inicial, ou, já de início, formulando um pedido certo e determinado, o
autor corria o risco de não ter toda a sua pretensão deferida e obter uma
condenação inferior aquela postulada, o que lhe geraria uma sucumbência
recíproca, cujo valor poderia ultrapassar a própria condenação principal.
Deveras, a situação do autor era demasiadamente fragilizada [...].
Entretanto, esse transtorno, salvo melhor juízo, acabou
resolvido recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, com a edição da
Súmula 326, que reza: “Na ação de indenização por dano moral, a
condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica
sucumbência recíproca”.
Logo, a conclusão que se infere é a de que o autor poderá optar
entre formular pedidos genéricos ou certos e determinados, sendo que a
última opção não lhe acarretará prejuízos, uma vez que tal pedido será
tido pelo Judiciário como meramente estimativo, não carreando-lhe
sucumbência recíproca acaso o juiz condene o réu em valor inferior
aquele postulado na inicial.
É de se dizer, ainda: ao juiz – e isso é indiscutível – cabe o
arbitramento, em casos de procedência do pedido, do dano moral, segundo
seu prudente critério judicante (como se legislador fosse, caso a caso),
826
levando-se em conta a natureza da ofensa, a repercussão social do dano,
grau de culpa, a posição econômica do ofensor, a capacidade de o ofensor
incidir no mesmo erro e, finalmente, as práticas de fato realizadas pelo
agente para aplacar a dor da vítima
827
.
Também já se afirmou que dano estético é aquele que implica
quaisquer espécies de alterações morfológicas, acarretando para a vítima,
mesmo que em patamares ínfimos, um afeamento em sua estética humana.
Tal dano consiste em aleijões, cicatrizes, marcas, defeitos e lesões,
motivadores de desconforto, desgosto, complexo de inferioridade,
exercendo ou não influência na capacidade laborativa dos lesados.
826
SEBASTIÃO, op. cit., 2001. p. 47.
827
Acredita-se que os tribunais não têm arbitrado, de maneira coerente, os pedidos judiciais referentes ao
dano moral. O aspecto punitivo da indenização, na maioria das vezes, não tem sido levado em conta; em
conseqüência disso, o quantum fixado não castiga os ofensores mas, de certa forma, até os incentiva a
persistir no ilícito.
440
Não há de se falar em cumulação de danos morais e estéticos.
Aliás, aqui, a expressão cumulação é imprópria, na medida em que,
quando utilizada, dá a impressão de se referir a duas espécies diferentes
de danos. E, verdadeiramente, o dano estético nada mais é do que espécie
de dano moral. Melhor seria dizer que, ao arbitrar o dano moral, o
magistrado deverá acrescer-lhe um adicional pecuniário, nas hipóteses em
que se configurar também lesões de natureza estética.
Realmente, o dano estético está enquadrado no conceito de dano
moral, porquanto sempre acarretará conseqüências de ordem psíquica à
vítima. Não se pode negar ser o homem um ser social, o que se traduz na
necessidade de contato permanente com seus semelhantes. Nesse ponto,
delineia-se a importância social da estética do ser humano, ou seja, na
vida e no trato diário com seus pares.
Deveras, ao valorar o dano moral suportado pela vítima, deverá
o magistrado acrescer-lhe uma importância – também a ser valorada –
correspondente aos danos estéticos por ela suportados – danos esses que
também são de natureza moral e que, por sua gravidade, deverão ser,
necessariamente, levados em conta pelo órgão julgador, no momento de se
arbitrar o valor devido à vítima.
2.1.3 A prova do nexo de causalidade entre o consumo de cigarros e
a(s) enfermidade(s)
O liame existente entre o fato danoso e os prejuízos sofridos e
devidamente comprovados é o que se denomina de nexo de causalidade.
O CDC adotou o regime da responsabilidade objetiva,
atribuindo ao fornecedor o ônus de demonstrar a inexistência do(s)
defeito(s), caso queira eximir-se do encargo de indenizar. Diante disso,
cabe ao consumidor simplesmente alegar a existência de defeito no
produto (ou serviço); o fornecedor, por outro lado, buscará demonstrar
que tal defeito é insubsistente.
Apesar de o defeito ser presumido, o mesmo não se dá com o
nexo de causalidade entre a utilização do produto (ou serviço) e os danos.
441
É certo que algumas vozes da doutrina adotam uma posição mais
radical. Afirmam que a Lei 8.078/90 evidenciou, também quanto ao nexo
causal, a inversão obrigatória do ônus da prova em favor do consumidor,
quando se tratar de relações que envolvam responsabilidade pelo fato do
produto ou do serviço (art. 12 e 14).
Tal posição é comprovada – segundo tal corrente doutrinária –
pela análise do §3º do art. 12 do CDC ao impor que o “fabricante, o
construtor, o produtor ou importador não será responsabilizado quando
provar: I – que não colocou o produto no mercado; II – que, embora haja
colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III – a culpa exclusiva
do consumidor ou de terceiro”. Essas excludentes seriam, ainda de acordo
com o entendimento ressaltado acima, as únicas possibilidades de os
fornecedores se livrarem da responsabilidade decorrente de fato do
produto ou do serviço
828
. Essa seria uma segunda hipótese de inversão
legal do onus probandi
829
.
Apesar de inteligente o raciocínio, o nexo causal entre o fato
danoso e os danos efetivos não é presumido. Tal posicionamento, além de
pautado numa interpretação exclusivamente literal, levaria a uma situação
extrema: o nexo causal seria conseqüência obrigatória da Lei, sem
possibilidade de prova em contrário. Ora, se o §3º do art. 12 nada
especificou em relação ao nexo causal, seria igualmente correto afirmar
que a demonstração de sua inexistência em nada auxiliaria o fornecedor, o
que, data venia, é inadmissível
830
.
828
Adotando tal posicionamento, Raimundo Gomes de Barros defende que: todos os doutrinadores são
acordes em que se trata de mera faculdade do juiz, excepcionando-se apenas a hipótese contemplada
no art 38 do Código de Defesa do Consumidor, pois que ali há uma situação em que a prova da
veracidade e correção da informação publicitária é sempre de quem a patrocina. Única hipótese de
inversão obrigatória do ônus da prova? Não. Embora os manuais jurisprudenciais e doutrinários disso
não cuidem, o certo é que na responsabilidade pelo fato do produto e do serviço (arts. 12 e 14 do CDC)
também está evidente uma hipótese de inversão obrigatória do ônus da prova em favor do consumidor.
Tal se afirma porque o §3.º, do artigo 12 é claríssimo quando impõe que o fornecedor só não será
responsabilizado quando provar: que não colocou o produto no mercado; que o defeito inexiste; que a
culpa é exclusiva do consumidor ou de terceiro. De observar, pois, que o ônus da prova é
obrigatoriamente do fornecedor, a quem cabe demonstrar a inexistência do nexo causal. (BARROS,
Raimundo Gomes. Relação de causalidade e o dever de indenizar. Revista de direito do consumidor n.
34. p.137, [s.d.]).
829
A primeira delas, conforme se verá adiante, ocorre em função do prescrito no art. 38 do Código de
Defesa do Consumidor.
830
Na verdade, as hipóteses enumeradas no § 3º do art. 12 da Lei 8.078/90, correspondem às causas
excludentes do nexo de causalidade. Tais causas, quando provadas, rompem com o nexo causal
existente entre o fato e o dano, elidindo, assim, a responsabilidade dos fornecedores de indenizar.
442
Com efeito, em princípio cabe ao consumidor (ou seus
familiares, em caso de morte desse) o ônus de provar o nexo de
causalidade entre o fato danoso (utilização do produto) e os danos por ele
suportados. Especificamente com relação ao tema em análise, isso
significa que a prova da enfermidade adquirida pelo tabagista (ou sua
morte), bem como o vínculo entre ela e o ato de fumar, ou entre ela e a
exposição ao cigarro (fato danoso), são de importância elementar, e
pertencem ao(s) autor(es) da demanda.
Apesar de não se tratar de prova impossível, a dificuldade na
demonstração do nexo de causalidade entre o tabagismo e determinadas
enfermidades (ou morte), vem sendo um dos maiores embaraços
encontrados pelos consumidores (ou familiares, em caso de morte desses)
nos processos judiciais referentes ao tema em estudo.
Talvez um dos problemas responsáveis por essa dificuldade
situe-se na própria variedade de teorias criadas para explicar a figura do
nexo de causalidade. Tal circunstância provoca perceptíveis confusões
interpretativas, donde, não raro, misturam-se, em julgados, bases teóricas
de duas ou mais teorias, renunciando-se, assim, à precisão científica que
deveria conduzir o intérprete.
Essa conclusão foi obtida por Gisela Sampaio da Cruz, em obra
de peso, denominada “O problema do nexo causal na responsabilidade
civil”. Lá, a jurista aponta a existência de, ao menos, oito teorias, a saber:
teoria da equivalência dos antecedentes causais, teoria da causa próxima,
teoria da causa eficiente, teoria da causa preponderante, teoria da
causalidade adequada, teoria do escopo da norma jurídica violada, teoria
da ação humana, teoria do dano causal direto e imediato, e causalidade e
imputação objetiva. Depois de magistralmente apontar os contornos
essenciais de cada uma dessas teorias, enfrenta tortuosa pesquisa
jurisprudencial, conduzindo sua análise perante todos os tribunais do País
para, finalmente, concluir pela predominância de uma visível confusão de
teorias na jurisprudência nacional, de sorte que a verificação do nexo
causal é feita de forma intuitiva e atécnica, ora sob a influência de uma
escola, ora de outra
831
.
831
CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. São Paulo: Renovar,
2005. p. 122.
443
Em vôo raso, examinem-se as teorias, de uma forma ou de outra,
mais invocadas para a solução de problemas envolvendo o nexo causal em
demandas alicerçadas no instituto da responsabilidade civil. São três: a)
teoria da equivalência dos antecedentes causais; b) teoria da causalidade
adequada; e c) teoria do dano causal direto e imediato.
2.1.3.1 A teoria da equivalência dos antecedentes causais
Quanto à teoria da equivalência dos antecedentes causais –
também denominada teoria da equivalência das condições, teoria objetiva
de causalidade ou da conditio sine qua non –, sua autoria é atribuída ao
penalista alemão Maximiliano von Buri, autor da obra “Über kausalität
und derem veranwortung”. A origem dessa teoria remonta aos estudos de
John Stuart Mill, especialmente de sua obra “A system of logic”, onde
afirmava que “todas as condições eram igualmente indispensáveis para a
produção do conseqüente e o estabelecimento da causa é incompleto se
não introduzirmos, de uma ou outra forma, todas elas”
832
.
Essa teoria não distingue entre causas e condições
833
. Todo
antecedente para a realização do evento é imprescindível a sua
verificação, sendo dele causa, por ser conditio sine qua non do resultado.
De sorte a reconhecer se uma condição é causa do resultado, o processo
utilizado é o da eliminação hipotética (von Thyrén), segundo o qual a
mente humana julga que um fenômeno é condição de outro toda vez que,
ao suprimi-lo mentalmente, torna-se impossível conceber o segundo
fenômeno
834
. Nas palavras de Gisela Sampaio da Cruz, “todo efeito tem
uma multiplicidade de condições causais e cada uma delas é necessária
para a produção do resultado”
835
.
832
CRUZ, op. cit., 2005. p. 36.
833
Fernando Noronha aponta a diferença entre condições e causas: “Condições, assim, são todos os fatores
que estão na origem de um dano, são todos os elementos sem os quais ele não teria sido produzido, são
todas as circunstâncias de que não se pode abstrair, sem mudar o resultado danoso. Causas do dano
são apenas aquelas condições consideradas efetivamente determinantes desse resultado”. (NORONHA,
Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1, p. 588).
834
SILVA, Danielle Souza de Andrade e. Causalidade e direito penal. Disponível em: <http://www.luta.
pelajustica.nom.br/Textos/Artigo13.pdf >. Acessado em 30/11/2005.
835
CRUZ, op. cit., 2005. p. 37.
444
Essa idéia de que um fenômeno é condição de outro, quando o
primeiro não puder ser suprimido mentalmente, sem que o resultado
desapareça em sua forma particular
836
, se utilizada como fórmula para
remediar situações concretas, alicerçadas no instituto da responsabilidade
civil, acaba por gerar situações estranhíssimas e injustas, sobretudo em
razão de sua amplitude. E essa amplitude advém, principalmente, em
função de a teoria da equivalência dos antecedentes causais dar especial
relevância a todas as possíveis condições que deram origem ao evento
danoso, não possuindo qualquer relevância o fato dessa relação de causa e
efeito vincular-se apenas às ciências naturais (causalidade natural), e não
propriamente ao Direito, como fundamento jurídico suficiente para a
imputação de conseqüências jurídicas.
De tal sorte, seria crível responsabilizar-se civilmente
fabricantes de automóveis de uma determinada marca, apenas porque um
dos proprietários dos veículos por ela produzidos acidentou-se, seja em
que circunstância for. A fabricante de automóveis seria responsável
civilmente simplesmente porque fabricou e comercializou o veículo à
vítima, contribuindo para o sinistro; afinal, se o veículo não existisse, tal
sinistro também não teria se concretizado. Igualmente, se o marido agride
sua esposa, essa última poderia responsabilizar civilmente uma instituição
financeira qualquer, sempre que a desavença desencadeada tiver por
origem dívidas onerosas lá mantidas pelo casal. De igual maneira, o pai
seria responsável civilmente pela morte de um filho, envolvido em um
sinistro qualquer, simplesmente porque teve participação imprescindível
na concepção da criança [...].
2.1.3.2 A teoria da causalidade adequada
Das reiteradas tentativas de evitar os exageros da teoria da
equivalência dos antecedentes causais, derivou-se a distinção entre as
diversas concausas, de modo a não mais se reconhecer como causa toda
836
CRUZ, op. cit., 2005. p. 39.
445
conditio sine qua non do dano, senão apenas uma determinada, a ser
individualizada conforme o critério particular que se adote
837
.
A teoria da causalidade adequada nasceu justamente com o
escopo de limitar a causalidade natural, mediante a utilização de
princípios juridicamente aceitáveis. Tal teoria foi formulada em 1871,
também na Alemanha, por Ludwig von Bar, e mais detidamente
desenvolvida pelo fisiólogo alemão Johannes von Kries, por volta de
1888.
Considera-se causa a condição idônea, tipicamente adequada à
determinação do fenômeno, de sorte que se estabelece verdadeiramente
uma especialização dos antecedentes causais, não mais se incluindo na
cadeia causal condições demasiado remotas e naturais. Algumas condições
são objetivamente adequadas a produzir resultados juridicamente
proibidos e tendem a produzi-los, segundo “a experiência da vida”
838
.
Isso significa dizer – parafraseando Gisela Sampaio da Cruz –
“que a ação tem que ser idônea para produzir o resultado”, e, para que
se verifique a adequação da causa, necessário é a realização de um juízo
restrospectivo de probabilidade que, no âmbito doutrinário, é denominado
“prognose póstuma”, cuja fórmula resume-se na seguinte indagação: a
ação ou omissão que se julga era, per se, apta ou adequada para produzir
normalmente essa conseqüência?
839
Assim, havendo multiplicidade de concausas, bastaria, em tese,
indagar-se qual delas poderia ser considerada apta a causar o resultado;
afinal, para essa teoria, quanto maior a probabilidade com que
determinada causa se apresente para gerar um dano, tanto mais adequada
será em relação a esse dano. Respondida essa pergunta, outro
questionamento necessariamente deveria ser solucionado, isso para saber
se essa causa, capaz de causar o dano, é também hábil segundo as leis
naturais. Em síntese, não basta que um fato seja condição de um evento,
sendo absolutamente necessário que se trate de uma condição tal que,
normal ou regularmente, provoque o mesmo resultado – é o chamado juízo
837
CRUZ, op. cit., 2005. p. 52.
838
SILVA, Danielle [...], op. cit., 2005.
839
CRUZ, op. cit., 2005. p. 64.
446
de probabilidade, realizado em abstrato, cujo objetivo é responder se a
ação ou omissão do sujeito era, por si só, capaz de provocar normalmente
o dano
840
.
Consoante leciona Gisela Sampaio da Cruz,
ao contrário da teoria da equivalência dos antecedentes
causais, na teoria da causalidade adequada a ‘causa’ deve ser
estabelecida em abstrato, segundo a ordem natural das coisas e
a experiência da vida, e não em concreto, a considerar os fatos
tal como se deram, já que, em tais circunstâncias, as condições
são mesmo equivalentes
841
.
2.1.3.3 A teoria do dano causal direto e imediato
Finalmente, é importante apontar alguns traços da teoria do
dano causal direto e imediato.
A essência dessa teoria encontra-se no sentido e alcance da
expressão “direto e imediato”, aliás, prevista no art. 1060 do CC de 1916,
e repetida no art. 403 do CC de 2002. Dentre as várias teorias e subteorias
que tentaram explicar o significado da expressão “direto e imediato”,
desponta a da necessariedade da causa, criada por Dumoulin e Pothier,
contando com o apoio de Colin et Capitant, Huc, Giorgi, Polacco,
Chironi e Gabba. Esclareça-se: a escola da necessariedade afirma que o
dever de reparação advém apenas quando o evento danoso revela-se como
um efeito necessário de determinada causa
842
.
Para a subteoria da necessariedade, a expressão “direto e
imediato” sempre deverá ser interpretada conjuntamente com o
significado de “necessário”. Assim, ainda que a inexecução resulte de
840
CRUZ, op. cit., 2005. p. 65.
841
Ibid., p. 67. A jurista aponta, ainda, que, conquanto esta “teoria tenha o mérito de estabelecer uma
limitação à infinita série dos antecedentes causais, é criticada por ser muito filosófica, o que dificulta
sua aplicação prática. O conceito de causa adequada é algo fluídico e que admite distinções várias, de
acordo com esse ou aquele autor. Decerto, se, por um lado, a Teoria da Equivalência dos Antecedentes
Causais não dá margem para que o juiz aprecie bem os fatos; por outro, a Teoria da Causalidade
Adequada depende muito do arbítrio do julgador para ser aplicada em concreto. Mas o fato é que quase
todas as teorias dependem, por assim dizer, de um certo arbítrio do magistrado. Seja como for, apesar
das críticas, a Teoria da Causalidade Adequada tem prevalecido em vários ordenamentos e é, também,
uma das teorias mais invocadas no Brasil, onde doutrina e jurisprudência se dividem entre essa e a
Teoria do Dano Direto e Imediato [...]”. (Ibid., p. 82-85).
842
Ibid., p. 100.
447
dolo do agente, esse apenas responderá pelos danos que efetivamente se
mostrarem como sendo conseqüência necessária do inadimplemento, mas
não pelos originados de outras conseqüências não necessárias, de mera
ocasião
843
.
Nesse rumo, a lição de Agostinho Alvim:
A expressão direto e imediato significa o nexo causal
necessário. Esta é a interpretação do criador desta teoria
(Dumoulin), do seu apologista e divulgador (Pothier), dos
expositores do Código de Napoleão (o primeiro diploma que a
acolheu) e de Códigos posteriores, alguns dos quais adotaram a
expressão necessário ou necessariamente, para substituir a
locução direto e imediato
844
.
Com efeito, embora possam ser vários os fatores que
contribuíram para a produção do dano, nem por isso todos eles podem ser
denominados causas, mas, tão-somente, aqueles que forem capazes de
ligarem-se ao dano, numa relação de necessariedade, a romper o
equilíbrio existente entre as outras condições. Ademais, nem sempre a
causa direta e imediata será aquela mais próxima do dano, senão a que
necessariamente o ensejou. É condição necessária aquela que, se acaso
ausente, o dano não teria se concretizado.
É de se salientar – novamente alicerçado em Gisela Sampaio da
Cruz – a causa necessária não precisa ser aquela que “sozinha” era idônea
para produzir o resultado danoso, por não existir outra que explique o
mesmo fenômeno com exclusividade. Importante é ter a convicção de que
a causa que produz o dano é realmente necessária, independentemente das
condições que cercam o evento danoso, sendo evidente que duas causas
necessárias podem, efetivamente, concorrer para a produção do dano
(fenômeno da concorrência de causas). E isso tanto em se tratando de
causas necessárias concorrentes
845
, como também de causas necessárias
843
CRUZ, op. cit., 2005. p. 100-101.
844
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas conseqüências. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
1955. p. 384.
845
Verifica-se a configuração de causas concorrentes (ou cumulativas) quando uma das causas teria,
isoladamente, produzido o resultado.
448
complementares
846
– afinal, em se descaracterizando a fórmula da
necessariedade em situações que envolvem causas complementares,
certamente que haveria uma restrição exarcebada do dever de reparação
do prejuízo
847
.
2.1.3.4 Teorias sobre o nexo causal e sua aplicação no tema sob análise
No que se refere, especificamente, à demonstração de causa e
efeito entre a enfermidade (ou morte) e o consumo de cigarros (ou
exposição a sua fumaça tóxica), a indústria do tabaco tem argumentado
tratar-se de prova impossível. Vale-se de tal discurso notadamente
naquelas situações em que a inversão do ônus probatório é objeto de
requerimento; advoga a tese de que, inverter o encargo probatório em tais
casos, seria fadá-la ao insucesso, uma vez que essa prova seria
diabólica
848
.
Ocorre, data venia, que não se trata de prova diabólica, mas,
sim, de questão eminentemente de ordem técnica. Ademais, mesmo
admitindo que, em alguns casos, não se possa aferir, com absoluta
certeza, que o cigarro foi o causador, ou teve participação preponderante
no desenvolvimento da enfermidade ou na morte de um consumidor, é
perfeitamente possível chegar-se, mediante a análise de todo o conjunto
probatório, a um juízo de presunção
849
sobre a responsabilidade que o
tabagismo (ou exposição ao cigarro) teve num determinado acidente de
consumo.
846
Verifica-se a configuração de causas complementares naqueles casos em que, duas ou mais causas,
concorrem para a produção do evento danoso, evento esse que só se verificou pela pluralidade de
causas. São também denominadas de concausas.
847
CRUZ, op. cit., 2005. p. 109-110.
848
Prova diabólica seria aquela relacionada a fatos indefinidos e indeterminados que, conseqüentemente,
não poderão ser demonstrados. No entanto, conforme esclarece Humberto Theodoro Júnior “sempre que
for possível transformar a proposição negativa em uma afirmativa contrária ter-se-á superado a
dificuldade da prova negativa. Demonstra-se, então, o fato positivo do qual se extrai a verdade do fato
negativo”. (THEODORO JÚNIOR, op. cit., 2000. p. 135).
849
As presunções símplices, conforme esclarece Francisco Augusto das Neves e Castro, são aquelas que o
julgador deduz de um fato conhecido, para firmar um desconhecido, ou que se acham estabelecidas na
lei. A nossa legislação concede ao juiz um maior arbítrio, dando-lhe a faculdade de contentar-se com um
número tal de presunções, e de tal força, que possa tranqüilizar sua consciência. Muitas vezes, uma só
presunção pode valer mais que outras muitas reunidas; deve-se, porém, escolher as graves, precisas e
concordantes. (CASTRO, Francisco Augusto das Neves e. Teoria das provas e suas aplicações aos atos
civis. Campinas: Servanda, 2000).
449
Vale lembrar, antes de tudo, que o direito civil brasileiro
acolheu a teoria do dano causal direto e imediato, não obstante a
constatação de que a jurisprudência vacila a tal respeito. Consoante visto
linhas atrás, apenas será(ão) considerada(s) causa(s) do evento danoso
aquela(s) capaz(es) de se ligar(em) a ele numa relação de necessariedade,
mesmo que não seja(m) essa(s) causa(s) a(s) mais próxima(s) do dano, ou
a(s) única(s) que o ensejou.
Certamente, nem sempre será tarefa fácil demonstrar que o
tabagismo (ou a exposição à fumaça tóxica) é, efetivamente, a causa
necessária à qual se pode imputar o evento danoso (enfermidade ou
morte). E tal estorvo reside essencialmente no fato de que muitas das
enfermidades associadas ao tabagismo apresentam mais de um fator de
risco, a exemplo da doença coronariana – adiante se constatará que a
multiplicidade de etiologias de uma enfermidade nem sempre será
justificativa plausível para elidir a responsabilidade da indústria do
fumo
850
.
A teoria do dano direto e imediato não se apresenta como um
obstáculo a demonstração do nexo causal entre o consumo de cigarros (ou
exposição a eles) e as moléstias (ou mortes) que assaltaram a saúde do
consumidor. Inarredavelmente, uma perícia bem trabalhada, aliada às
demais provas e elementos contidos nos autos, permitirão ao julgador, se
não a conclusão evidente acerca do vínculo causal entre a enfermidade
(ou morte) e o tabagismo, ao menos alcançar um forte juízo de presunção,
suficientemente capaz de permitir-lhe decidir em prol da pretensão do
fumante (ou de seus familiares). É perfeitamente plausível ao magistrado,
através de uma análise de todo o conjunto probatório constante dos autos,
determinar, mediante tal juízo de presunção, qual a causa necessária, ou
decisivamente responsável (mesmo que concorrente ou complementar),
pelo desenvolvimento de uma enfermidade no consumidor (ou de sua
morte).
850
Consoante já afirmado, há três fatores de risco previsíveis para essa moléstia: tabagismo, hipertensão
arterial (pressão alta) e colesterol alterado (elevação do colesterol-LDL e redução do colesterol-HDL).
O tabagismo, isolado, dobra a possibilidade de doença cardíaca. Quando associado à alteração do
colesterol ou à hipertensão, multiplica esse risco por quatro. O risco torna-se oito vezes maior quando os
três fatores estão juntos. Além disso, o cigarro, por si só, por meio da nicotina, aumenta a pressão
arterial e leva a um maior depósito de colesterol nos vasos sangüíneos.
450
Advirta-se: nada há nada de errado em permitir ao juiz decidir
por meio de um critério pautado em presunções, sobretudo diante de casos
complexos envolvendo pluralidade de causas e condições, em que a
relação envolvida é eminentemente de consumo. Obviamente que o bom
senso e razoabilidade irão servir de farol ao juiz. Todavia, deve o
intérprete estar atento ao princípio constitucional da defesa do
consumidor (art. 5.º, XXXII, CF/88) e aos princípios da facilitação da
defesa dos direitos do consumidor (art. 6.º, VIII, Lei n. 8.078/90) e da
efetiva reparação de danos suportados pelo consumidor (art. 6.º, VI, Lei
n. 8.078/90), todos importantes pilares que alicerçam a Lei consumerista.
Não seria crível aceitar a cômoda posição jurisprudencial,
apegada, exclusivamente, numa prova pericial que indicasse não ser
possível afirmar-se, de maneira concreta e absoluta, se, efetivamente, foi
o tabagismo o responsável pela doença (ou morte) que agrediu o
consumidor, tendo-se em vista a presença de outros fatores de risco
capazes de favorecer o desenvolvimento da tal doença. O fato de doenças
tabaco-relacionadas terem outras etiologias plenamente hábeis de
concorrerem para o dano, não tem por conseqüência, necessariamente, a
prolação de uma sentença de improcedência. Em tais casos, o magistrado
deverá, sempre imbuído da idéia de que a defesa do consumidor é um
direito fundamental, se valer de outras provas aptas, se aliadas a todo o
conjunto probatório, a formação do seu convencimento.
É louvável, por exemplo, que médicos, especialistas na área de
conhecimento referente à enfermidade que atingiu o fumante, sejam
arrolados como testemunhas, de modo a ampliar as informações que
orientarão a formação do convencimento do juiz.
Outra ferramenta importante a serviço do juiz é a doutrina
médica. É ela capaz de orientar a sua decisão, em conformidade com as
especificidades de cada enfermidade. Aliás, é importante frisar: algumas
enfermidades têm como principal fator de risco o tabagismo, o que
facilitará, sobremaneira, a conclusão do magistrado – daí já se constata a
importância de se examinar a doutrina médica. Já se constatou, por
exemplo, que 90% dos cânceres de pulmão são causados pelo
451
tabagismo
851
. A tromboangeíte obliterante é uma outra doença que,
segundo a literatura médica, manifesta-se apenas em fumantes, de modo
que se pode concluir ser o tabagismo causa necessária ao seu
desenvolvimento
852
. Em casos tais, em razão das constatações científicas,
não é audaz a afirmação de que, ao consumidor, é conferida verdadeira
presunção do liame causal entre o uso do cigarro (ou exposição à sua
fumaça) e a enfermidade que o atingiu. Haveria, aí, inversão do ônus
probatório acarretada pela própria experiência da vida, comprovada por
estudos e dados científicos de origem inquestionável.
Em verdade, a atividade do magistrado encontra-se traçada
pelos princípios alhures citados; isso apenas evidencia o imperativo de o
juiz arraigar esforços significativos para tentar cumprir os ideais impostos
pela Carta Magna e pelo CDC. Deve intentar obter fundamentos que
abalizem uma possível decisão de procedência, sempre pautado nos
critérios do bom senso e razoabilidade, mas intencionado a seguir o
caminho traçado pelos princípios anteriormente aludidos, porquanto,
somente assim, conseguirá obter o equilíbrio da relação processual,
naturalmente desequilibrada pela concentração técnica e econômica
apenas num dos pólos do processo. Não se trata de tornar inoperante a
atuação do fornecedor em juízo, mas, sim, de permitir ao consumidor uma
desenvoltura judicial apta a lhe propiciar boas chances de êxito na sua
pretensão, escopo que outrora, antes da publicação do CDC, mostrava-se
bastante penoso.
851
SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA, op. cit., 1998. p. 19.
852
Veja-se lição colhida no Manual Merck: “A doença de Buerger (tromboangeíte obliterante) é a
obstrução de artérias e veias de pequeno e médio calibre, por uma inflamação causada pelo tabagismo.
Esta doença afeta predominantemente os indivíduos do sexo masculino, tabagistas e com idade entre 20
e 40 anos. Apenas 5% dos indivíduos afetados são do sexo feminino. Embora não se conheça
exatamente a causa dessa doença, apenas os tabagistas são afetados e a persistência no vício agrava o
quadro. O fato de apenas um pequeno número de tabagistas apresentar a doença de Buerger sugere
que algumas pessoas são mais suscetíveis. No entanto, não se sabe a razão pela qual nem como o
tabagismo causa esse problema.” (Disponível em URL: <http://www.msd-brazil.com>. Acesso em
01/12/2005). É de se apontar que essa doutrina médica foi utilizada pela Desembargadora Marilene
Bonzanini Bernardi, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, como um dos fundamentos que
alicerçaram a condução de seu voto na Apelação Civil n. 70012335311, julgamento esse que acabou por
condenar a empresa Souza Cruz S.A. ao pagamento de indenização a um ex-tabagista portador da
enfermidade tromboangeíte obliterante. (Acórdão disponível em <www.tj.rs.gov.br>. Acessado em
01/12/2005).
452
Ressalte-se o que já se afirmou alhures: a causa necessária não
precisa ser aquela que isoladamente era idônea para produzir o resultado
danoso. A causa não há, sempre, de ser exclusiva. Nada há, pois, que
impeça o juiz de proferir um julgamento de procedência, se concluir que,
além do tabagismo, outras causas concorreram para o dano. Essencial,
realmente, é que a causa seja necessária à produção do dano,
independentemente das demais condições que o cercam, de sorte que duas
ou mais causas podem efetivamente contribuir para o desencadeamento do
resultado danoso, seja de maneira complementar ou concorrente.
Ademais, essa técnica interpretativa, em certa medida inclinada
à obtenção de um resultado jurisdicional favorável ao consumidor,
mostra-se conveniente, não só por se estar trabalhando em terreno próprio
às relações de consumo, senão pelo fato de que o próprio labor
jurisprudencial e doutrinário já concluiu que a questão vinculada ao nexo
causal é insolúvel à base teórica, e que ninguém, sejam juristas nacionais
ou alienígenas, jamais conseguiu esboçar uma teoria, em termos
juridicamente satisfatórios, aplicável a todos os casos concretos, capaz de
explicar o problema do nexo causal. Sobre a difícil questão de até onde
chega o nexo causal, já lecionava Enneccerus que não se pode resolver
“nunca de uma manera plenamente satisfactoria mediante reglas
abstractas, sino que em los casos de duda ha de resolverse por el juez
según su libre convicción, ponderando todas las circunstancias”
853
.
2.1.4 A manutenção da presunção do(s) defeito(s)
Em se tratando de relação de consumo, a responsabilidade civil
terá por pressuposto não a culpa do fornecedor, senão o descumprimento
de um dever jurídico primário de segurança. E o descumprimento desse
dever jurídico de segurança não diz respeito à licitude ou ilicitude da
atividade exercida pelo fornecedor, mas, sim, à presença de imperfeições
853
ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLF, Martin. Tratado de derecho civil: derecho de
obligaciones. Trad. De Blas Pérez Gonzalez e José Alguer da 35. ed. Alemã. 2. ed. Barcelona: Casa
Editorial Bosch, 1954. t. II, p. 67.
453
(vício/defeito) nos produtos e serviços oferecidos no mercado de
consumo.
Já se afirmou que o CDC adotou o regime da responsabilidade
objetiva, atribuindo ao fornecedor o ônus de demonstrar a inexistência
do(s) defeito(s), caso queira eximir-se do encargo de indenizar. Deveras,
o legislador, em sede de relações de consumo, filiou-se, como não poderia
deixar de ser, à idéia de que os fornecedores devem assumir o risco de
sua atividade (teoria do risco do empreendimento).
Interessante notar que o legislador, ao impor que caberá ao
fornecedor, para eximir-se da responsabilidade indenizatória, demonstrar
que o defeito inexiste, expressamente inverteu o ônus probatório,
favorecendo a atuação do consumidor em juízo. Trata-se de uma inversão
legal do ônus da prova.
De tal sorte, ao consumidor caberá simplesmente argüir sobre a
existência de defeito no produto (ou serviço); o fornecedor, por outro
lado, sempre buscará demonstrar a ausência de tal defeito. O insucesso do
fornecedor em provar que o defeito inexiste poderá carrear-lhe uma
condenação, isso se, efetivamente, também não lograr êxito em
demonstrar as outras excludentes de responsabilidade, e o consumidor
obtiver sucesso na prova dos fatos que efetivamente lhe couber.
Portanto, para o consumidor, a situação em juízo é mais
cômoda, pois não precisará se preocupar em comprovar as imperfeições
do produto ou serviço responsáveis pelo evento danoso. Sequer
necessitará apontar especificamente essa imperfeição, bastando suscitá-la
de modo genérico.
Especificamente com relação ao tema em estudo, deverá o
consumidor apenas indicar, argüir sobre a presença de imperfeições
(vícios/defeitos) nos cigarros consumidos. À indústria do tabaco
responsável pela fabricação da marca consumida caberá a tentativa de
provar a insubsistência de tais imperfeições. Esclareça-se, contudo, que,
no mais das vezes, não haverá, em ações indenizatórias alicerçadas na
tese ora defendida, provas a serem produzidas por parte da indústria de
fumo, visando desabonar os argumentos do fumante. A análise do
magistrado, quase sempre e a esse respeito especificamente, se limitará à
454
análise de alegações das partes e doutrinas científicas; tratar-se-ão de
questões de direito verdadeiramente, e não questões de fato.
Soaria estranha, por exemplo, a tentativa, empreendida por parte
de uma empresa tabaqueira qualquer, de demonstrar que a nicotina não é
um produto psicotrópico, com alta capacidade viciante. E isso porque,
atualmente, é notória a compreensão das características dessa substância,
especialmente sobre o meio através do qual ela age no organismo humano;
estudos diversos, cuja seriedade é inquestionável, já evidenciaram o poder
que possui de tornar o consumidor um escravo do cigarro. Aliás, o próprio
Ministério da Saúde, e algumas fabricantes, admitem essa realidade,
afirmando que a nicotina é, sim, uma droga. Diante disso, por ser notório
esse fato, ele independe de prova (art. 334, I, do CPC).
Assim, ao magistrado seria aconselhável indeferir pretensões
probatórias direcionadas a comprovar que a nicotina não é uma droga,
sustentando-se, justamente, no argumento de que esse fato é notório. Com
isso, ganharia o processo em celeridade, economia processual e
efetividade. A atividade cognitiva se basearia nas argumentações das
partes – e na idéia de que a nicotina, efetivamente, é um psicotrópico –,
cada qual tencionando fazer prevalecer seus interesses, cabendo ao juiz a
conclusão sobre a presença, ou não, de um defeito de concepção no
cigarro.
Já quanto àquela imperfeição do cigarro relacionada à
informação, a matéria comporta certa margem probatória. Poderá a
indústria do tabaco, por exemplo, intentar demonstrar que o fumante, ao
principiar a fumar, detinha todo o conhecimento necessário acerca dos
malefícios que o produto poderia acarretar-lhe, conhecendo, inclusive, a
capacidade psicotrópica da nicotina. Em caso de êxito, a indústria
demonstraria que a enfermidade (ou morte) do fumante deu-se
exclusivamente por fato da própria vítima, essa que assumiu
conscientemente o risco de consumir produtos fumígenos. De qualquer
modo, a formação do juízo do magistrado dependerá, também com relação
à existência de uma imperfeição jurídica no cigarro relacionada à
informação, de uma cognição amplamente voltada aos argumentos das
partes, mormente por se tratar de questão de alta complexidade.
455
2.1.4.1 Há necessidade de se provar o nexo entre a(s) imperfeição(ões)
do cigarro e a enfermidade acarretada ao fumante?
Não raro, observa-se certa confusão doutrinária quanto à prova
do nexo causal em ações indenizatórias envolvendo acidentes de consumo.
Em alguns momentos, se aponta a necessidade de se demonstrar o liame
causal entre o defeito do produto (ou serviço) e o resultado danoso;
noutros, doutrinadores indicam a necessidade de se provar o liame causal
entre a utilização do produto (ou serviço) e o resultado danoso.
Conforme visto alhures, o defeito corresponde à idéia de
resultado ou conseqüência, sempre proveniente de um vício. Equivale à
idéia de acidente de consumo; ocorre sempre que o consumidor for lesado
em sua incolumidade física, psíquica e/ou, conforme o caso, patrimonial.
Noutras palavras, encontra-se embutido no conceito de defeito o vínculo
de causa e efeito entre um vício e os danos suportados pela vítima. Por
tal razão, os defeitos carregam consigo uma bagagem extra, sendo
“capazes de causar danos à saúde ou segurança do consumidor”
854
.
Deveras, o defeito traz em si a idéia de resultado gravoso,
sempre proveniente de um vício, mas com conseqüências mais
avassaladoras, por não se limitar à própria inadequação de uso do produto
ou serviço. Daí porque, sempre que o consumidor for lesado em sua
incolumidade física, psíquica e/ou em sua esfera patrimonial, danos esses
não jungidos apenas à mera inutilidade ou inadequação de produtos e
serviços, o fato gerador responsável pelo ocorrido será sempre um
defeito.
Nesse rumo, o fornecedor interessado em se exonerar da
responsabilidade de indenizar deverá demonstrar a inexistência de
defeitos no produto que fabrica. Isso implica dizer que caberá também a
ele eventual demonstração de que, mesmo existindo vícios no produto, os
danos ocorreram por causa alheia a eles, seja por fato exclusivo da vítima
ou de terceiro, seja em decorrência de força maior.
854
MARINS, op. cit., 1993. p. 110.
456
Justamente pela hipossuficiência técnica, que caracteriza a
grande maioria de consumidores, não seria crível impingir a eles o ônus
de demonstrarem, especificamente, qual a imperfeição que atinge aquele
produto (ou serviço), bem assim de provarem o próprio nexo causal entre
essa mesma imperfeição e o resultado danoso.
Repita-se: ao consumidor caberá apenas argüir a respeito da
existência do defeito – ou seja, em prol do consumidor vigem as
presunções de que o produto (ou serviço) é imperfeito e, em função de tal
imperfeição, danos atingiram sua incolumidade material e/ou moral. O
fornecedor, buscando exonerar-se da responsabilidade indenizatória,
intentará evidenciar que tal defeito, efetivamente, é imaginário, falso.
2.1.5 A inversão do ônus da prova
O CDC possibilitou a quebra da regra do art. 333, I, do CPC.
Embora a inversão do ônus da prova não seja nenhuma novidade, pois já
era prevista no próprio CPC (art. 331, parágrafo único), a Lei 8.078/90 a
incluiu no rol dos direitos básicos do consumidor, mais especificamente,
no inciso VIII do art. 6º do citado Diploma Legal.
Vale dizer que a regra da inversão do onus probandi não é
compulsória
855
. Ou seja, não é porque uma pessoa figura como
consumidora em determinada relação que ela, conseqüentemente, deverá
ter por invertido seu ônus probatório.
O próprio legislador estabeleceu critérios para sua admissão.
Isto é, apenas será lícito ao juiz manejar a inversão do ônus da prova, se
fundado no critério da verossimilhança das alegações, ou no da
855
Como dito, a inversão do ônus probatório não é compulsória, mas sim quase compulsória. É impossível
analisar o critério da hipossuficiência somente pelo aspecto econômico. Deve-se analisá-la,
principalmente, sob o aspecto técnico. E, não é presunçoso afirmar, que a maioria esmagadora de
consumidores, seja de que produto ou serviço for, é tecnicamente hipossuficiente. Conforme leciona o
mestre Luiz Antonio Rizzatto Nunes, “o consumidor não participa do ciclo de produção, e na medida
em que não participa, não tem acesso aos meios de produção, não tendo, portanto, como controlar
aquilo que ele compra de produtos e serviços; não tem como fazê-lo, daí precisar de proteção”.
(NUNES, op. cit., 2001. p. 18-26.)
457
hipossuficiência do consumidor, sob pena de configurar-se ato abusivo,
com quebra do devido processo legal
856
.
Diante disso, a inversão do ônus probatório subordina-se aos
pressupostos inseridos na Lei, e sua adoção somente pode ocorrer
mediante decisão interlocutória fundamentada, em que o magistrado
assente sua deliberação
857
.
O insigne jurista, Humberto Theodoro Júnior, esclarece que a
verossimilhança é juízo de probabilidade extraída de material
probatório de feitio indiciário, do qual se consegue formar a
opinião de ser provavelmente verdadeira a versão do
consumidor. Diz o CDC que esse juízo de verossimilhança
haverá de ser feito “segundo as regras ordinárias da
experiência (art. 6º, VIII). Deve o raciocínio, portanto, partir
de dados concretos que, como indícios, autorizem ser muito
provável a veracidade da versão do consumidor. Quanto à
hipossuficiência, trata-se de impotência do consumidor, seja de
origem econômica, seja de outra natureza, para apurar e
demonstrar a causa do dano cuja responsabilidade é imputada
ao fornecedor. Pressupõe uma situação em que concretamente
se estabeleça uma dificuldade muito grande para o consumidor
de desincumbir-se de seu natural onus probandi, estando o
fornecedor em melhores condições para dilucidar o evento
danoso
858
.
Vislumbra-se, no presente estudo, a possibilidade de inversão
do onus probandi, em duas situações específicas: a) na demonstração da
enfermidade manifestada no consumidor (dano); b) na prova de que esta
enfermidade (ou morte) relaciona-se ao tabagismo
859
.
Entendendo o juiz, no caso concreto, estar presente um dos
pressupostos transcritos na Lei (verossimilhança ou hipossuficiência),
deverá, obrigatoriamente, e mediante fundamentação clara e expressa,
inverter o ônus da prova, isso sempre no despacho saneador
860
, em
respeito ao princípio da ampla defesa e do contraditório.
856
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor. A busca de um ponto de equilíbrio entre as
garantias do Código de defesa do consumidor e os princípios gerais do direito civil e do direito
processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 134.
857
Ibid. p. 135.
858
Ibid., 2000.
859
Em caso de morte do consumidor, as indústrias do tabaco, com a inversão do ônus da prova, deverão
demonstrar inexistir a enfermidade alegada na demanda ou provar que a causa da morte do consumidor
não se relacionou com o consumo de cigarros.
860
Essa posição não está sedimentada na doutrina e jurisprudência. Existem aqueles que entendem que o
juiz deverá inverter o ônus da prova, quando recebe a petição inicial. Outra corrente defende a posição
458
Diante da ocorrência da inversão do onus probandi, a fabricante
de cigarros deverá, pois: a) comprovar inexistir a enfermidade adquirida e
alegada pelo consumidor na demanda; e b) provar que não foi o consumo
de cigarros o responsável pela enfermidade (ou morte) do tabagista.
2.1.6 A publicidade enganosa e abusiva e a sua prova
de que, somente no momento de proferir a sentença, o juiz deverá, conforme o caso, inverter o onus
probandi.
Corroborando com o entendimento de que o ônus da prova é regra de juízo e a oportunidade de sua
aplicação é o momento da sentença, o juiz do Tribunal de Alçada Mineiro, Ernane Fidélis, ao proferir
seu voto no Agravo de Instrumento n. 332.317-3 assevera:
“Sr. Presidente, devo, de antemão, mais uma vez, manifestar-me no sentido dessa errônea e até
prejudicial interpretação que se dá ao Código do Consumidor, com relação ao problema processual do
ônus da prova. Ninguém vem ao processo para que o outro não prove. O processo estabelece
exatamente a necessidade, a obrigatoriedade de o juiz pesquisar, para chegar ao conhecimento da
prova, dos fatos e, de acordo com os fatos, decidir.
Essa inserção dessa regra de inversão do ônus da prova não é nova no processo brasileiro. Isso já
existia no Código de 39, quando dizia que os fatos poderiam ser provados por indícios e circunstâncias
e a má-fé também poderia ser provada por circunstâncias. Isso não é novo. O que ocorre é que o Juiz,
frente a um determinado fato, e observando as particularidades de cada um, verifica se as
circunstâncias o aconselham a tomar essa ou aquela posição relacionada à prova. O Código do
Consumidor não foi para isso, ele não veio para salvar ninguém, veio, sim, para estabelecer equilíbrio.
O cidadão compra um par de sapatos e ele está rasgado, ele vai ter que provar, de imediato, que a
culpa foi do vendedor? Não. O sapato é novo. A circunstância indica que o vendedor é que deve provar.
Isso é que significa. Não existe nada de mais, nada de bonito, nada de diferente, nada de protetivo ao
consumidor, porque o contrato continuará sendo sempre contrato e o julgamento continuará sempre
julgamento. Ninguém vem aos autos para que o outro não prove. Eu venho aos autos para provar aquilo
que me compete.
Nós estamos infelizes caminhando para uma situação em que, daqui a alguns dias, vamos ter um
processo como uma verdadeira luta de espada. Só vai vencer aquele que duelar melhor. O advogado
mais hábil, mais habilidoso ou, às vezes, até menos escrupuloso, vai ter condição de vencer a luta
exclusivamente baseado nessas picuinhas processuais, não na lei, mas que os intérpretes procuram
trazer para o Código.
Na verdade, o caso dos autos é um exemplo típico. Não existe como, numa situação como essa, como se
sabe que a fabricação de cigarro é uma atividade lícita, pelo menos não é ilícita e que não há nada que
indique que a fábrica de cigarros tenha feito qualquer ato de coação para que a pessoa fume ou para
que a mesma deixe de fumar, eu mesmo fumei 25 anos e ninguém nunca me obrigou a fumar, mas
também quando larguei ninguém falou que eu estava errado, então, é uma situação que está pendente
de entendimento. E a verossimilhança é isso. Nós ainda estamos indagando se há, de fato, possibilidade
de se responsabilizar fábricas de cigarro por doenças causadas em fumantes. Não é possível que o juiz,
de pronto, de imediato, sem qualquer resquício probatório, inclusive quanto aos aspectos médicos
legais, vá mandando a companhia de cigarro pagar uma indenização só porque é rica ou é companhia
de cigarro.
Infelizmente, está ocorrendo no sistema brasileiro, tribunais têm dado esse tipo de liminar que,
infelizmente, com base nessa noção falsa de instrumentalidade de processo, nós estamos trocando
zabumba por pistom, estão tocando em instrumento errado. Realmente, não é possível um caso como
esse aplicar a medida como antecipação de tutela numa hipótese em que nada ainda está esclarecido e
nem convencido.
Por esses fundamentos, estou acompanhando o Relator e dando provimento ao agravo.” (Tribunal de
Alçada de Minas Gerais, Quinta Câmara Civil, Agravo de Instrumento n. 332.317-3, Relator Brandão
Teixeira, sendo Agravante Souza Cruz S.A. e Agravado Marcos Pereira Ribeiro, julgado em 24 de maio
de 2001).
459
Nesse ponto, não há que se falar em inversão do ônus da prova.
A Lei, expressamente, declara que o onus probandi respeitante à
demonstração da veracidade e correção da informação ou comunicação
publicitária cabe a quem as patrocina
861
. Como assevera o professor Luiz
Antônio Rizzatto Nunes, em qualquer “disputa na qual se ponha em
dúvida ou se alegue enganosidade ou abusividade do anúncio, caberá ao
anunciante o ônus de provar o inverso, sob pena de dar validade ao outro
argumento”
862
.
Na edição anterior desse trabalho, defendeu-se o entendimento
segundo o qual caberia aos autores-consumidores a indicação precisa de
quais peças publicitárias considerariam como enganosas ou abusivas.
Naquela oportunidade, acreditou-se que, quando as argüições permanecem
no plano das afirmações genéricas, isso implicaria uma desvantagem
processual manifesta ao adversário, impedindo-o de fazer prova que lhe
favorecesse. O aprofundamento do estudo demonstrou o equívoco dessa
tese.
Em verdade, a idéia de se sujeitar o consumidor à precisa
indicação de quais peças publicitárias foram as responsáveis por
incentivá-lo à prática do tabagismo, é entendimento ilegítimo,
notadamente porque, também nessa seara, o fumante possui uma
vulnerabilidade qualificada – é hipossuficiente e não será capaz de levar
aos autos um rol de peças publicitárias que o influenciaram.
Não haveria como o fumante (ou seus familiares, em caso de
morte) apontar, uma a uma, as ofertas publicitárias responsáveis, ou
coadjuvantes, pelo seu vício. E isso, sobretudo, porque a estratégia
adotada pela indústria do fumo é de alta complexidade e refinamento. Não
se trata apenas de inúmeras publicidades diretas, ofertadas
insistentemente ao consumidor no curso do seu dia-a-dia, décadas atrás. A
861
Conforme ensina Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, o prescrito no art. 38 do Código de Defesa
do Consumidor refere-se ao princípio da inversão do ônus da prova que informa a matéria publicitária.
A inversão aqui prevista, ao contrário daquela fixada no art. 6., VIII, não está na esfera de
discricionariedade do juiz. É obrigatória. Refere-se a dois aspectos da publicidade: a veracidade e a
correção. A veracidade tem a ver com a prova de adequação ao princípio da veracidade. A correção,
diversamente, abrange, a um só tempo, os princípios da não-abusividade, da identificação da mensagem
publicitária e da transparência da fundamentação publicitária. (GRINOVER; BENJAMIN; FINK;
FILOMENO; WATANABE; NERY JÚNIOR; DENARI, op. cit., 1999. p. 304).
862
NUNES, op. cit., 2000. p. 475.
460
indústria do fumo – consoante já se afirmou alhures –, não só no Brasil,
como na maioria dos países em que os seus produtos encontram-se
disponíveis no mercado, é responsável exclusiva pela criação de uma
atmosfera artificial de sedução, dúvidas e ceticismo acerca da natureza do
cigarro e dos riscos à saúde advindos de seu consumo. Essa deslealdade
visível na relação de consumo foi capitaneada, não só pela divulgação de
publicidade insidiosa e ilegítima, mas também: a) pela omissão
intencional de informações necessárias ao esclarecimento da sociedade
acerca dos possíveis malefícios gerados pela prática do tabagismo e da
própria natureza do cigarro; b) utilização do cinema para divulgação de
seus produtos, por meio da técnica do merchandising; c) contratação de
atletas, também visando à divulgação de seus produtos; d) contratação de
empresas de relações públicas e especialistas diversos para se
contraporem à idéia de que o cigarro é um produto danoso à saúde; e e)
estratégias direcionadas ao aliciamento de crianças e adolescentes.
Repita-se: não se trata apenas de várias publicidades insidiosas
ofertadas insistentemente com a intenção de seduzir o consumidor. O
complexo estratagema adotado pela indústria do fumo possui vários
flancos, todos voltados ao estabelecimento de uma aura artificial e
sedutora em torno do cigarro, cuja matéria prima mestra é a mentira, o
desrespeito à lealdade negocial e o desprezo à própria vida do
consumidor, seu patrimônio mais valoroso.
Portanto, não haveria sentido em imputar ao consumidor a
demonstração dessa estratégia de marketing, pois ela já se mostra
evidente, mormente depois do surgimento e publicação dos documentos
secretos da indústria do fumo. À indústria envolvida na demanda, caberá
apenas a tentativa de demonstrar sua possível não participação nesse
engodo publicitário, responsável pela fraude da saúde pública mundial.
3 A possibilidade jurídica do pedido, objetivando ressarcimento dos
gastos com a compra de maços de cigarros
Muitas das ações indenizatórias ajuizadas por fumantes contra a
indústria do fumo, objetivando o ressarcimento de danos surgidos por
461
doenças tabaco-relacionadas, albergam, em seu bojo, uma pretensão
especial, voltada ao ressarcimento de todas as despesas efetivamente
contraídas para a manutenção do vício nicotínico. Postulam os tabagistas
a compensação pelos gastos com a compra de maços de cigarros durante
toda uma vida de dependência.
A indústria do tabaco revolta-se contra pretensões dessa
natureza, advogando a tese da impossibilidade jurídica do pedido,
notadamente pelo fato de o direito repulsar o enriquecimento sem causa.
Em parecer encomendado à jurista Ada Pellegrini Grinover, essa postura
fica evidente:
Ora, esse pedido [...] é juridicamente impossível, sendo ilícito
seu objeto, por levar, se atendido, ao enriquecimento sem
causa: ao patrimônio dos fumantes acresceria, além dos
próprios cigarros – bens fungíveis já consumidos –, o próprio
dinheiro utilizado na compra. Os consumidores de cigarro
fizeram uso do produto, adquirido em função da compra e
venda, dele extraíram sua utilidade, justificando-se o preço que
por ele pagaram
863
.
Ao que parece, parte do problema situa-se no conceito de dano.
É de se lembrar somente ser possível falar-se em responsabilidade civil
quando algum dano tenha se concretizado. Aliás, o escopo da
responsabilidade civil é, de fato, o ressarcimento/compensação dos danos
suportados pela vítima.
Se se estivesse tratando, por exemplo, de um aparelho
telefônico, cuja deficiência impedisse o consumidor de auferir a utilidade
que dele se espera, induvidosa seria a possibilidade de que o mesmo
consumidor optasse, por intermédio de uma ação judicial, pela restituição
imediata da quantia paga (art. 18, §1º, II, da Lei n. 8.078/90). O problema
assentar-se-ia na seara da responsabilidade pelo vício do produto, em que
uma imperfeição qualitativa autorizaria o consumidor a postular o
ressarcimento judicial da quantia efetivamente paga na aquisição do
produto. Na medida em que o consumidor encontra-se impossibilitado de
863
Parecer, não publicado, encomendado à jurista Ada Pellegrini Grinover, pelos advogados da indústria
Souza Cruz S.A., para ser juntado aos autos de ação coletiva promovida pela Associação de Defesa da
Saúde do fumante (ADESF).
462
usufruir do aparelho adquirido, acaba sendo fácil constatar-se o dano
emergente.
Deve-se, contudo, ponderar se seria acertado concluir que os
gastos com a aquisição de um produto não durável, consumido durante o
uso, poderiam realmente ser considerados como danos, mesmo que se
viesse a constatar, no futuro, ser ele detentor de imperfeições jurídicas
(vício/defeito).
Pense-se, então, numa situação envolvendo intoxicação
alimentar. Um consumidor adquire enlatado de determinada marca, cujo
prazo de validade ainda não se excedeu. Minutos depois de consumir o
alimento, sente-se mal, sendo imediatamente conduzido ao hospital. O
médico de plantão diagnostica intoxicação alimentar. Decerto que o
consumidor poderia ajuizar uma ação judicial visando ao ressarcimento
dos danos suportados em função do consumo de um alimento deteriorado
– ação essa a ser endereçada contra a fabricante do alimento indigesto. Já
aqui, o caso retrata verdadeiro acidente de consumo, na medida em que a
situação concreta superou aquela respeitante à mera inadequação de uso
do produto, atingindo diretamente a própria incolumidade física e
psíquica do consumidor. Seria crível julgar-se procedente um pedido
indenizatório voltado ao ressarcimento dos gastos efetivados com a
compra do alimento, sendo que ele acabou sendo consumido pela vítima?
A resposta só poderia ser positiva. Afinal, o preço pago pelo produto não
se justificou, e isso porque o consumidor não extraiu dele a utilidade que
esperava – ao contrário, teve apenas sua saúde violentada
864
.
864
Veja-se a ementa de um acórdão que retrata tal situação: “Acidente de consumo. Vazamento de lata de
tinta de dezoito litros no porta-malas do veículo do autor. Defeito de segurança da embalagem do
produto. Responsabilidade solidária do comerciante que acomodou a lata no porta-malas do veículo do
autor por descumprimento do dever de informação. Não tendo sido recomendado ao autor a adoção de
nenhuma cautela especial para o transporte da lata de tinta e outra de massa corrida, não constando do
invólucro do produto tampouco qualquer advertência nesse sentido, não podem as rés pretender eximir-
se do dever de indenização decorrente do defeito de segurança do produto e do descumprimento do
dever de informar. Comprovados os danos materiais decorrentes do conserto no veículo e do produto
perdido, de se acolher parcialmente o pedido deduzido na inicial. Recurso parcialmente provido.”
(Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Primeira Turma Cível, Apelação cível n. 71000587972,
Relator Desembargador Ricardo Torres Hermann, julgado em 11/11/2004. Disponível em <www.tj.
rs.gov.br>. Acessado em 14/02/2006).
No corpo do acórdão, o ilustre Relator aponta que a condenação deve também albergar o produto
perdido, haja vista sua perda parcial no acidente. Confira-se: “Assim é que, apresentando o produto o
risco de vazamento no transporte e não tendo tal risco sido claramente alertado ao consumidor, seja
463
Focando-se o raciocínio nos acidentes de consumo oriundos do
tabagismo, não parece ser correta a tese advogada no sentido de que seria
ilícito pretender o ressarcimento dos gastos com cigarros fumados, apenas
porque o produto foi utilizado, literalmente destruído no ato de consumo.
Contudo, não se pode negar que a questão apresenta boa margem de
complexidade. Aliás, o cigarro é um produto polêmico por natureza, de
sorte que os temas jurídicos que abordam situações a ele afetas acabam
suscitando interessantes debates.
Em conformidade com o que se defende nesse trabalho,
apresenta-se desimportante o fato de o cigarro ser um produto fungível,
rapidamente consumido com o uso. Outrossim, pouco importa a idéia de
que, ao patrimônio do consumidor acrescer-se-ia, além dos cigarros já
consumidos, o próprio dinheiro utilizado na sua compra.
E isso porquanto o tabagista não fuma simplesmente porque
assim deseja. Tecnicamente, fuma para garantir doses nicotínicas em seu
organismo, suficientemente capazes de evitar uma desagradável crise de
abstinência. Deveras, a sensação de relaxamento, prazer, ocorre porque a
nicotina agiu sobre um mecanismo produzido por ela própria: o da
dependência. Ao tragar um cigarro, o fumante acalma-se porque estava em
crise de abstinência. A nicotina que ele consumira já havia se dissipado
do organismo. Aí começaram os sintomas da falta da nicotina – uma
ansiedade que parece irritação, nervosismo e incapacidade de concentrar-
se. Quando se aspira o cigarro, a crise de abstinência é interrompida e
tem-se a sensação de relaxamento. Em resumo, a nicotina não acalma nem
estabiliza o humor. Ela só alivia os sintomas provocados por sua própria
falta; é a cura para um mal que ela própria criou
865
.
Anteriormente, já se apontou a questionável estratégia adotada
pela indústria do fumo para garantir o sucesso de seus produtos, omitindo
pelo Fabricante, seja pelo Comerciante, respondem ambos pelos prejuízos provocados, em atenção ao
disposto no art. 7º, § único, do Código de Defesa do Consumidor.
Os danos verificados, em razão do acidente de consumo, consistem na perda do produto, eis que não
reposto na forma como adquirido pelo recorrente e na despesa necessária para substituição das peças
do veículo que ficaram manchadas pela tinta, pois o autor conseguiu apenas remover o odor da tinta,
mas não as marcas por ela deixadas, consoante se vê às fls. 21 a 27. Portanto, além do montante de R$
193,65, relativo ao galão de tinta, de se acolher também o orçamento de fl. 29 – não impugnado – , no
valor de R$ 3.435,48, referente ao conserto do veículo.”
865
CARVALHO, op. cit., 2001. p. 59.
464
informes, maximizando o poder viciante da nicotina mediante a utilização
de amônia nos cigarros, ofertando publicidades insidiosas e valendo-se de
outros poderosos instrumentos de marketing, tudo com o fito de
incentivar, seduzir o consumidor – notadamente os mais jovens – a
experimentar os cigarros
866
.
Não bastasse isso, os consumidores, ao aderirem à prática,
tornam-se doentes, dependentes de doses contínuas de nicotina. Afirmou-
se alhures: atualmente, o tabagismo não é visto apenas como um produto
responsável por diversas enfermidades; ele mesmo é considerado uma
enfermidade. E isso justamente pela enorme dificuldade de se eliminar o
vício do organismo do fumante. Já se acreditou que a força de vontade era
suficiente para quem quisesse parar de fumar. A ciência se encarregou de
provar o contrário, ou seja, na prática, mesmo querendo, é muito difícil
abandonar o consumo de tabaco. Tanto assim que a Organização Mundial
de Saúde, desde 1992, incluiu o tabagismo na Classificação Internacional
de Doenças, especificamente no Capítulo F17.2 (síndrome da tabaco-
dependência)
867
.
Diante desse contexto, não seria crível considerar-se danos os
gastos efetuados com a compra de cigarros, na medida em que o fumante,
além de induzido/seduzido a fumar, torna-se um doente crônico, já que
dependente de nicotina? Se seu arbítrio fosse suficiente para liberá-lo do
consumo, certamente que não haveria de se falar em danos. Mas a
dependência o transforma num escravo da nicotina, fazendo-o adquirir,
dia-a-dia, maços e maços de cigarros, precisamente para alimentar sua
dependência.
866
Já se afirmou que a postura adotada pela indústria do tabaco, no decorrer de décadas e décadas, não só
no Brasil, como na maioria dos países em que os seus produtos encontram-se disponíveis, denota uma
prática irregular do direito de produção e comercialização de cigarros. Isso porque a indústria de
cigarros foi responsável pela criação de uma atmosfera artificial de dúvidas e ceticismo acerca da
natureza do cigarro e dos riscos à saúde advindos de seu consumo, tudo com o fito de promover seus
produtos, incentivando, a qualquer custo, o consumo deles. Essa deslealdade foi capitaneada não só pela
ausência de informações necessárias ao esclarecimento da sociedade acerca dos possíveis malefícios
gerados pela prática do tabagismo e da própria natureza do cigarro – muitas dessas informações que a
indústria do tabaco conhecia já na década de 50 –, mas também pela divulgação de publicidade insidiosa
e ilegítima. Certamente que essa estratégia maquiavélica de consumo arrebanhou vários consumidores,
hoje fumantes inveterados.
867
ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 27.
465
Se, efetivamente, não fosse dependente, lógico que, sob o
aspecto jurídico, os danos não se caracterizariam, pois, se comprasse um
cigarro, o faria não em razão de um impulso químico-físico gerado pelo
uso de uma substância psicotrópica, mas em decorrência de sua própria
vontade. Todavia, em sendo um dependente, suas opções são limitadas. O
vício conduz o consumidor à compra de cigarros, decrescendo seu
patrimônio, tornando-o mais pobre, tanto monetariamente, como, também,
em relação a sua própria saúde.
Não se deve esquecer de que o problema situa-se na seara da
responsabilidade civil por acidente de consumo, mesmo que numa análise
focada exclusivamente na pretensão de ressarcimento dos gastos tidos
com a compra de cigarros. E isso porque, alguns meses após o consumo de
fumígenos, a maioria dos tabagistas já serão doentes crônicos,
dependentes de nicotina. Não se trata, aqui, da mera inutilidade do
produto, a impedir o consumidor de fazer uso dele. A saúde do fumante
foi açoitada; dinheiro acabou sendo gasto para garantir a manutenção do
vício. Em atingindo o produto a incolumidade física, patrimonial e moral
do consumidor, estar-se-á diante de problema que envolve a
responsabilidade pelo fato do produto.
Assim, o fumante sequer estaria obrigado a demonstrar que era
dependente de nicotina. O mero fato de ser tabagista anos a fio já cria
uma presunção em seu favor – porém, a condição de tabagista deverá ser
provada pelo autor da ação. Ressalte-se, ainda, que pelo mecanismo
instituído pelo CDC, o defeito presume-se concretizado, presumindo-se
existente inclusive o liame causal entre a imperfeição jurídica (substância
psicotrópica no produto) e os danos acarretados. Caberia, então, ao
consumidor, apenas alegar o defeito do produto, apontando – e aqui
provando, mesmo estimativamente – o dano material advindo com a
aquisição de cigarros. À fabricante restaria a tentativa de evidenciar que o
consumidor, embora fumante, não era dependente da nicotina [...].
Questão a ser trabalhada é a de se saber se seria possível
condenar a indústria à devolução de todo o valor monetário gasto com a
compra de cigarros, desde o momento em que o fumante iniciou a prática
do tabagismo. Estaria o juiz autorizado a deferir pedido condenatório
466
favorável àquele fumante que se principiou no tabagismo 30 (trinta) ou 40
(quarenta) anos atrás?
Ao defender-se a aplicação do CDC em casos envolvendo a
indústria do fumo e fumantes, é coerente que a análise de questões afetas
ao tema sempre ocorra com base nessa legislação. Outras legislações
certamente podem ser aplicadas em tais casos, mas apenas
subsidiariamente. Havendo previsão expressa no CDC a regular
determinada situação, essa norma será a aplicável, com preponderância
sobre qualquer outra – excetuando-se as de origem constitucional, por
óbvio.
E o art. 27 da Lei n. 8.078/90 é expresso, ao mencionar que
prescreve, em cinco anos, a pretensão pelos danos causados por fato do
produto ou do serviço. Logo, seria lícito, apenas, o deferimento de
condenação das despesas gastas com a compra de cigarros que albergasse,
tão-somente, os últimos cinco anos, imediatamente anteriores à data da
propositura da ação, haja vista a incidência manifesta da prescrição, em
relação a pretensão indenizatória referente ao restante do período.
Em síntese, as despesas com cigarros advêm de um estado de
dependência, estabelecido no organismo do fumante simplesmente por
praticar o tabagismo. A indústria do tabaco produz e comercializa um
produto cuja primeira qualidade é a de tornar seu consumidor um doente
crônico, um dependente de nicotina. Se o consumidor passa a adquirir
determinado produto compulsivamente, não por problemas emocionais ou
outros quaisquer, senão em função de uma dependência química instalada
em seu organismo pelo próprio consumo de tal produto, certamente que a
fabricante (desse produto) é responsável pelos gastos despendidos na sua
compra. De tal sorte – e data venia entendimentos em contrário –, é
juridicamente possível o pedido objetivando a compensação de gastos
efetuados com a compra de cigarros, desde que limitados aos últimos
cinco anos imediatamente anteriores à propositura da ação, isso com base
na notória constatação de que os fumantes, em sua grande maioria,
praticam o tabagismo motivados por uma dependência química fortíssima
– dependência essa nascida do próprio consumo do produto –, que os
conduz à compra e consumo constantes de cigarros.
467
4 As tutelas de urgência a serviço do consumidor fumante (ou de seus
familiares, em caso de falecimento)
4.1 A morosidade da prestação jurisdicional e suas causas
Não é nenhuma novidade que o mundo, dia-a-dia, transmuda-se;
o estático não lhe é característico. O Direito, por sua vez, quase sempre
atua no palco social como um acompanhante de tais transformações. A
sociedade transfigura-se e o Direito amadurece, adquirindo novas feições.
O processo civil, como instrumental necessário à realização do direito
material pretendido, seguramente não deve afastar-se dessa realidade.
Daí as constantes mudanças legislativas, e diversificadas
propostas legais, surgidas no âmbito do processo civil nos últimos anos.
Procura-se, principalmente, amenizar os efeitos aterrorizadores da
prestação jurisdicional tardia e injusta. Obviamente – e não há como
negar isso – a legislação obsoleta, desraigada do espírito de efetividade
que move a atividade jurisdicional atual, possui sua parcela de culpa.
Meritória, destarte, a atividade daqueles cientistas que trabalham
arduamente na busca de soluções legislativas que possam trazer alguma
esperança ao consumidor do serviço judiciário. Tarefa difícil num País
quase que desprovido de dados estatísticos que poderiam levar a
resultados necessários à descoberta das falhas existentes nas leis vigentes.
Ademais, não bastasse a carência desses elementos informativos a
facilitar a vida de tais juristas, a criação de soluções legislativas, fruto de
reflexão profunda objetivada a incutir resultados de sua experiência no
ordenamento jurídico, demanda trabalho espinhoso e lento. Nesse sentido,
já alertava o saudoso mestre mineiro, Ronaldo Cunha Campos, lecionando
que a meditação “conduz ao lento trabalho de decantação. Por isto a
rapidez nem sempre é compatível com a pesquisa no campo do Direito. As
soluções adequadas para os problemas jurídicos resultam, via de regra,
de um demorado processo de amadurecimento”
868.
868
CAMPOS, Ronaldo Cunha. O direito processual na atualidade. Uberaba: Vitória, 1978. p. 25-26.
468
Além desse fator, é inegável que as causas responsáveis pelo
retardo da prestação jurisdicional relacionam-se mais propriamente a uma
questão estrutural inerente ao próprio Judiciário do que com problemas
vinculados a leis antiquadas – e a mera experiência forense e a
observação dos mais argutos constatam essa realidade. Isto porque, cada
vez mais, arraiga-se no sistema jurídico nacional a utilização de uma
interpretação da lei voltada ao social, descartando-se, por conseguinte,
aquela outra pautada na mera frieza normativa (literal). O juiz não é mais
visto apenas como a boca que dita os termos da lei
869
; sua função hodierna
ultrapassa os limites de um mero repetidor de ditames legais, atingindo
um alcance que o permite ir além da própria norma, complementando-a
com princípios de significação aberta e atualizável em conformidade com
a época em que é interpretada (v.g., princípios da boa-fé objetiva e da
função social do contrato). Por exemplo, está ele, o magistrado,
autorizado, em algumas situações, a adaptar, verdadeiramente integrar
cláusulas contratuais (art. 51, §2º, da Lei n. 8.078/90); poderá ainda se
voltar contra o estabelecido no próprio texto normativo, sempre que letra
da lei contrariar ditames constitucionais. Essa ampliação hermenêutica
demonstra que a jurisprudência avança ao estabelecido na lei, superando
problemas que poderiam surgir – e que efetivamente surgem – em
decorrência de uma lei desgastada e desatualizada ainda em vigor.
869
Interessante notícia foi divulgada no site “Espaço Vital”, em 03/03/2006: “Julgar - muito - é possível,
mas é necessário estar organizado e trabalhar. Tal se depreende da performance de Rogério Gesta Leal,
desembargador do TJRS, onde chegou em setembro de 2002. O campeão ocupa vaga que foi destinada,
pelo quinto constitucional, à Advocacia. O relatório oficial revela que, em 2005, o magistrado -
prestando jurisdição na 3ª e 14ª Câmaras Cíveis - recebeu 5.546 processos e levou 5.455 a julgamento.
Trata-se de um recorde na história do TJ gaúcho e, possivelmente, nacional. Essa conjunção também
sinaliza que o sistema de competências privilegia, com menor volume, todas as câmaras criminais e
algumas câmaras cíveis do TJRS, cujos integrantes chegam a receber - e julgar - bem menos do que a
metade desses números. Gesta Leal, 41 anos de idade, admite que “talvez tenha que se pensar em uma
nova redistribuição de competências”. A uma pergunta do Espaço Vital sobre "os desembargadores que
julgam muito menos”, Gesta Leal responde cauteloso, evitando comparações, que "a decisão judicial
não é algo mecânico ou possível de se medir apenas quantitativamente, porque cada processo tem suas
particularidades, especificidades e diferenças em face de outros feitos, assim como cada magistrado tem
um estilo e metodologia de trabalho, não cabendo comparações simples". Ele afirma que não existem
fórmulas mágicas para alcançar números expressivos, mas explica que "organizei o trabalho junto à
equipe e procuro julgar os processos que ingressam na semana, sem deixar resíduos para a próxima,
além do que dou prioridade aos agravos e às medidas de urgência”. A equipe do gabinete é formada por
quatro servidores e um estagiário. Cada um se ocupa de alguns temas preferencialmente, fazendo
projetos de votos principalmente nas matérias mais recorrentes. “Mas a rotina, mesmo, é trabalho, muito
trabalho e isso não é segredo” – diz o desembargador.” (Campeão de julgamentos: 5.546 processos em
um ano. Disponível em: <www.espacovital.com.br>. Acessado em 03/03/2006).
469
Esse embaraço estrutural, infelizmente, independe do ofício e
boa vontade dos juízes e cientistas do Direito. Trata-se de problemática
sabidamente ligada à política. Grande parte das estruturas físicas onde o
Judiciário atua é desconfortável e precária; a quantidade de juízes no País
é desproporcional ao número de habitantes
870
;
a mão-de-obra é reduzida
871
;
os servidores que atuam a serviço da Justiça, muitas vezes, não são
devidamente remunerados; há manifesta carência de tecnologia [...]
872
.
870
Para se ter uma idéia, com 176,5 milhões de habitantes, o Brasil tem atualmente 1 juiz para cada grupo
de cerca de 14 mil pessoas. A relação representa a metade da média internacional, que é de 1 juiz para
cada 7 mil habitantes. Se forem levados em conta só os magistrados estaduais, a proporção muda para 1
juiz por aproximadamente 28 mil pessoas. A Alemanha, que se encontra em situação diversa, possui 1
juiz para cada 3,5 habitantes. A Argentina também encontra-se em situação superior ao Brasil, com 1
juiz para cada 17 mil habitantes. (GALLUCCI, Mariângela. Brasil tem 1 juiz para cada 14 mil pessoas.
O Estado de São Paulo. Nacional, A7, Domingo, 18 de maio de 2003).
871
Em reportagem veiculada no Jornal O Estado de São Paulo, a carência de mão-de-obra no Judiciário e a
insatisfação daqueles que lá exercem seu ofício é bem retratada. Veja-se trecho da reportagem:
“Magistrados de primeira instância e de alguns tribunais até que se desdobram para encerrar os feitos
no prazo legal ou razoável. Abnegados, trabalham duro em gabinetes sem luxo, desconfortáveis,
estrutura precária. Nas varas judiciais a mão-de-obra é reduzida, os quadros estão desfalcados. No
balcão da secretaria de uma Vara Federal em São Paulo, o aviso: “Fazemos o possível, mágica só
para os mágicos.” Em outro canto, um relatório pregado na parede oferece um raio X do setor:
“Situação atual: número insuficiente de servidores para a execução das tarefas; vagas não preenchidas
pela administração da Justiça Federal. Grau de satisfação dos servidores: ruim. Carga excessiva de
trabalho, pressão para evitar a prescrição dos processos”. (Uma Justiça arcaica como a toga. O Estado
de São Paulo. Nacional, A7, Domingo, 18 de maio de 2003).
872
O processualista mineiro, Humberto Theodoro Júnior, ensina, em ensaio de peso, que os maiores obstáculos
à efetividade processual são as etapas mortas do processo: “Que adianta fixar a lei processual um
prazo de três ou cinco dias para determinado ato da parte, se, na prática a secretaria do juízo gastará
um mês ou dois (e até mais) para promover a respectiva publicação no diário oficial? Que adianta a lei
prever o prazo de noventa dias para encerramento do feito de rito sumário se a audiência só vem a ser
designada para seis meses após o aforamento da causa, e se interposto o recurso de apelação, só nos
atos burocráticos que antecedem a distribuição ao relator serão consumidos vários meses ou até
anos?” E continua: “O que retarda intoleravelmente a solução dos processos são as etapas mortas, isto
é, o tempo consumido pelos agentes do Judiciário para resolver a praticar os atos que lhes competem.
O processo demora é pela inércia e não pela exigência legal de longas diligências.” No mesmo
trabalho, o jurista rememora a lição de Nicelo Alcalá-Zamara y Castillo, apontando que celeridade
“somente se consegue evitando as etapas mortas, ou seja, a inatividade processual durante o qual os
autos ou expedientes forenses permanecem paralisados nos escaninhos forenses.” O saudoso Edson
Prata não é esquecido em seu trabalho: "são as etapas mortas e não os prazos previstos em lei que
retardam a marcha dos processos a ponto de exasperarem partes, advogados, interessados, com graves
prejuízos para o bom nome da justiça e do próprio Estado”. Humberto Theodoro Júnior refere-se,
ainda, aos ensinamentos de Giuseppe Tarzia: “Os problemas mais graves da Justiça Civil, pelo menos
na Itália, dizem respeito, de outra parte, não à estrutura, mas à duração do processo, dizem respeito
aos tempos de espera, aos tempos mortos, muito mais que aos tempos de desenvolvimento efetivo do
juízo. A sua solução depende, portanto, em grande parte. da organização das estruturas judiciárias e
não das normas do Código de Processo Civil”. (Celeridade e efetividade da prestação jurisdicional.
Insuficiência da reforma das leis processuais. Revista de Processo. São Paulo, n. 30, julho/2005. p. 61-
77). O insigne professor José Maria Tesheiner, após mencionar os trechos do artigo acima citado,
apresenta sua própria colaboração:Trata-se de verdade tão óbvia que chega a ser esquecida. Como
pode ser rápido um processo, se uma intimação leva três meses para ser publicada no diário oficial?
Como pode haver celeridade na prestação jurisdicional, sendo o juiz obrigado a designar audiências
para daí dez meses? O advogado tem de apelar em quinze dias, mas o julgamento de sua apelação pode
demorar anos! Um processo pode durar uma década, sem merecer, dos órgãos jurisdicionais, tempo
superior a 10 horas. Para diminuir as etapas mortas do processo, impõem-se medidas de diferente
470
Por certo, a reforma do Judiciário será bem-vinda; contudo, os
problemas de envergadura política, como os ora citados, e outros mais,
que se vinculam diretamente ao impedimento de uma tutela jurisdicional
eficaz, justa e tempestiva, deverão ser incluídos em sua pauta e levados
em consideração, acima de qualquer outra mudança
873
.
4.2 O fator tempo, sua ingerência na prestação da tutela jurisdicional
e as situações emergenciais
Exato é que a prestação da tutela jurisdicional não pode seguir,
invariavelmente, um procedimento uníssono, como se todos os anseios
sociais fossem idênticos. Daí a importância de se utilizar um sistema
caracterizado por tutelas diferenciadas, criadas em conformidade com o
direito material a ser tutelado e, por essa razão, mais aptas a solucionar,
de maneira efetiva e útil, as crises jurídicas postas em julgamento.
Nada obstante – e reproduzindo a lição do insigne mestre
paulista, Prof. Donaldo Armelin –, uma advertência, desde já, se faz
necessária:
natureza: algumas, de natureza administrativa, como as que dizem respeito ao tempo para que se
efetive uma publicação; outras, de natureza tipicamente processual, como as destinadas a expungir do
processo atos dispensáveis (cada ato do processo é uma causa de possível paralisação!). Finalmente, o
mais difícil: como compatibilizar o número de juízes e servidores com o das demandas? Há, envolvidos,
problemas ideológicos (cabem medidas para reprimir a demanda?); problemas de custo (se temos, um
Sistema de Saúde deficiente, como pretender um Judiciário eficiente?), problemas de vencimentos
(pode-se ter mais juízes, mas com menor remuneração), problemas de qualificação (como os que
decorrem da substituição de um juiz concursado, por um juiz leigo), etc. Sem uma abordagem desses
temas, alguns dos quais transcendem o saber dos juristas, as reformas processuais tenderão a ser
cosméticas, como pertinentemente qualificadas, algumas, por Araken de Assis”. (TESHEINER, José
Maria. Etapas mortas do processo. Disponível em <http://www.tex.pro.br>. Acessado em 17/02/2006).
873
Nesse sentido, Bedaque adverte: “Além do aprimoramento da técnica processual, adequando-a à
realidade substancial, outras providências são igualmente imprescindíveis.” E continua o jurista: “Em
primeiro lugar, enquanto não se destinar ao Poder Judiciário percentual razoável do orçamento
estatal, a fim de que ele possa fazer frente às suas necessidades, qualquer outra medida corre sério
risco de não alcançar os objetivos desejados. É preciso examinar dados estatísticos de países onde a
Justiça se mostre eficiente, para verificar as causas da morosidade do processo brasileiro. Sabe-se, por
exemplo, que o número de juízes no Brasil é muito inferior aos padrões ideais”. [...] “Também são
necessárias alterações estruturais no Poder Judiciário, principalmente no tocante à distribuição de
competência. Não são raros os casos de juízes com quantidade muito pequena de serviço, enquanto
outros encontram-se assoberbados, sem as mínimas condições de apresentar tempestivamente a tutela
jurisdicional. Caótica, também, é a situação dos Tribunais, especialmente na Justiça Federal, no
Estado de São Paulo, além do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.”
(BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de
urgência (tentativa de sistematização). 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p.16.
471
A adoção de tipos de tutela diferenciada tende a favorecer o
pólo ativo da relação processual, na medida em que são eles
concebidos precipuamente com o propósito de acelerar a
prestação jurisdicional. Por isso mesmo, indispensável se torna
ter cautela na sua adoção, para se evitar a violação do
tratamento isonômico das partes litigantes e a vulneração do
princípio assegurador da paridade das armas no processo
874
.
Dentre as técnicas diferenciadas de tutela subsistentes no
ordenamento jurídico nacional, encontram-se as denominadas urgentes
que, consoante a doutrina, se subdividem em tutelas cautelar e
antecipada. Antes de ingressar na análise de cada uma delas, algumas
considerações se fazem ainda importantes.
Nesse passo, além dos empecilhos à efetividade da atividade
jurisdicional agorapouco referidos (legislações ultrapassadas e
deletérias e a própria deficiência estrutural do Judiciário), outro estorvo –
e desse não se pode fugir – igualmente contribui para aprofundar o abismo
existente entre a prestação jurisdicional adequada e os anseios dos
consumidores do serviço judiciário: o tempo, figura indispensável ao
desenvolvimento e realização dos atos necessários à consciente e
maturada prestação jurisdicional.
O Estado, ao tomar para si o monopólio da jurisdição, vetando
conseqüentemente a autotutela – que em tempos de imperfeição da
atividade jurisdicional tende a revelar-se com mais constância –, obrigou-
se não só a dizer o Direito, mas, também, a concretizá-lo. Por
conseguinte, o desrespeito às normas substanciais por ele impostas gerará
ao recalcitrante, após uma atividade rigorosamente técnica e dialética –
ou, em outros casos, pelo mero descumprimento de obrigações
estabelecidas em títulos executivos extrajudiciais que dispensam a
cognição prévia –, uma sanção, particularmente intitulada de sanção
executiva.
Como qualquer atividade humana, a jurisdição, que se vale de
um instrumento intitulado de processo
875
, necessita de lapso temporal
874
ARMELIN, Donaldo. Tutelas diferenciadas. Revista de processo n. 65. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1992. p. 46.
875
A idéia de processo vem sofrendo mutações de tempos em tempos. Atualmente, ganha corpo a
definição advinda do direito administrativo, consoante leciona Cândido Rangel Dinamarco: “Nem é
antigo, na doutrina, o emprego do vocábulo processo, fora do âmbito do direito processual stricto
sensu. O mais usual é reservá-lo para designar o processo jurisdicional. O processualista tem o hábito
472
essencial à sua conclusão. Tal ínterim alonga-se ainda mais em razão do
objetivo-mor da atividade jurisdicional, a saber, a busca do bem-estar
social, escopo esse que, para ser alcançado, induz à outorga de
oportunidades de defesa ao demandado
876
, característica instituída como
princípio constitucional elementar, imprescindível num Estado
Democrático de Direito. Somente permitindo-se a resistência da parte
contra a qual a jurisdição foi acionada, se poderá verdadeiramente atingir
um resultado justo, útil e eficiente – tanto para as partes, como para a
própria sociedade que o utilizará como paradigma
877
.
de considerá-lo exclusivamente sua, deixando à jurisdição voluntária e ao direito administrativo, não
sem desdém, o uso do nome procedimento (freqüentemente acompanhado do adjetivo mero: “mero
procedimento”), como se o processo não fosse também, antes de tudo e substancialmente, um
procedimento. Curiosamente, é do direito administrativo que veio a mais clara das idéias acerca do
conceito de processo, hoje alvo de crescente aceitação na doutrina dos processualistas: procedimento
com a participação dos sujeitos interessados (ou seja, daqueles que receberão a eficácia direta do ato
final esperado), eis o conceito de processo na ciência moderna.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A
instrumentalidade do processo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 83).
876
É particularmente interessante a visão do professor Carlos Alberto Álvaro de Oliveira sobre o princípio
do contraditório: “[...] inadmissível sejam os litigantes surpreendidos por decisão que se apóie, em
ponto fundamental, numa visão jurídica de que não se tenham apercebido. O tribunal deve, portanto,
dar conhecimento prévio de qual direção o direito subjetivo corre perigo, permitindo-se o
aproveitamento na sentença apenas dos fatos sobre os quais as partes tenham tomado posição,
possibilitando-as assim melhor defender seu direito e influenciar a decisão judicial. Dentro da mesma
orientação, a liberdade concedida ao julgador na eleição da norma a aplicar, independentemente de
sua invocação pela parte interessada, consubstanciada no brocardo iuria novit curia, não dispensa a
prévia ouvida das partes sobre os novos rumos a serem imprimidos ao litígio, em homenagem ao
princípio do contraditório. A hipótese não se exibe rara porque freqüentes os empecilhos enfrentados
pelo operador do direito, nem sempre de fácil solução, dificuldade geralmente agravada pela posição
necessariamente parcializada do litigante, a contribuir para empecer visão clara a respeito dos rumos
futuros do processo. Aliás, a problemática não diz respeito apenas ao interesse das partes, mas
conecta-se intimamente com o próprio interesse público, na medida em que qualquer surpresa,
qualquer acontecimento inesperado, só faz diminuir a fé do cidadão na administração da justiça. O
diálogo judicial torna-se, no fundo, dentro dessa perspectiva, autêntica garantia de democratização do
processo, a impedir que o poder do órgão judicial e a aplicação da regra iura novit curia redundem em
instrumento de opressão e autoritarismo, servindo às vezes a um mal explicado tecnicismo, com
obstrução à efetiva e correta aplicação do direito e à justiça do caso.” (OLIVEIRA, Carlos Alberto
Alvaro de. A garantia do contraditório. Disponível em <www.mundojuridico.adv.br>. Acessado em
02/03/2006).
877
Cândido Rangel Dinamarco enumera os princípios e estruturas fundamentais a prevalecer em todo o
direito processual, principalmente o jurisdicional, da seguinte forma: “No tocante ao processo
jurisdicional, têm-se esses compromissos e limitações assim distribuídos e coordenados com a idéia
central: a) o Estado promete proceder ao exame, em via jurisdicional, de toda lamentação que lhe seja
trazida com a alegação de moléstia causada a direitos ou interesses juridicamente protegidos (garantia
da inafastabilidade do controle jurisdicional em matéria não-penal); b) promete abster-se da
autotutela, submetendo-se também ele próprio à ordem processual (seja em matéria repressiva, seja
para satisfação de interesses próprios não protegidos pelo princípio da auto-executoriedade); c)
considera-se condicionado ao ajuizamento de uma demanda do interessado, para poder dar início ao
exercício da jurisdição em cada caso (daí o valor da ação, como instituto processual); d) no exercício
da jurisdição, reprime a si próprio a emissão de atos imperativos (provimentos) sem ter dado
suficientes oportunidades de defesa ao demandado, para equilíbrio entre a situação deste e a do autor
da demanda; e) institui e observa normas para o exercício da jurisdição e, com isso, dá realce ao valor
473
O Judiciário, destarte, não age de modo instantâneo; entre o
pedido e a entrega efetiva da tutela jurisdicional decorrerá,
necessariamente, um razoável espaço de tempo, por mais sumário que seja
o rito procedimental e por mais eficientes que se mostrem os serviços
judiciários
878
.
Contudo, situações existem em que a resposta jurisdicional deve
ser concedida com agilidade, porquanto assombradas pela ameaça de
perigo iminente, apta, em alguns casos mais graves, a, inclusive, assolar o
próprio direito material pretendido
879
. Aqui não há como respeitar, ao
menos inicialmente, as fases padronizadas e lógicas entabuladas na lei
adjetiva, fazendo-se necessária a utilização de técnica própria a garantir a
processo, ao procedimento e ao contraditório que legitima os atos imperativos impostos.” (OLIVEIRA,
op. cit., p. 98).
878
Superior Tribunal de Justiça, 3
a
. Seção, MC 3245-PB, Rel. Min. Edson Vidigal (decisão monocrática),
j. 26/10/2000, DJU 08/11/2000). Na mesma decisão ficou evidenciado que esse lapso temporal
indissociavelmente necessário à entrega da prestação jurisdicional possui relevantes conseqüências
práticas. “Em primeiro lugar, impõe ao postulante, que se afirma titular do direito, o inconveniente de
não poder dispor desse direito desde logo, já que deve aguardar o lapso temporal em que se desenvolve
o processo para sua certificação; e essa espera nem sempre é compatível com a natureza do direito
afirmado, sobretudo quando ele deve ser usufruído imediatamente, sob pena de perecimento ou dano
grave. Isso também pode ocorrer com a Ação Rescisória, pois que às vezes, os fundamentos levantados
são ponderabilíssimos, e pode mesmo existir a possível irreversibilidade da execução, caso seja levada
a termo. Teríamos, então, uma Ação Rescisória, que provavelmente seria julgada procedente, e apesar
disso, não teria nenhum resultado prático, porque exaurida a execução. Nesse passo, a mencionada
regra do CPC, art. 489, deve ceder em hipóteses excepcionais para que, em caso de procedência do
pedido rescisório, tenha o mesmo utilidade”.
879
A respeito da tensão existente entre os valores constitucionais segurança e efetividade, bem assim
sobre a criação de mecanismos próprios, intencionados a harmonizá-los, mister a citação das lições de
Guilherme Tanger Jardim: “Ao contrário da assertiva machadiana de ser o tempo escultor vagaroso
que não acaba logo e vai polindo ao passar dos longos dias, mais parece ser o nosso tempo rato roedor
de coisas, a que se referia o bruxo do Cosme Velho. Roedor implacável e ligeiro, que não se contenta
na espera de momento próprio e previsto. E se o tempo é de urgência, o que dela dizer quando a
matéria estudada é o Direito, onde a norma jurídica mantém em sua palavra a placidez de um tempo
sem pressa?” E continua: “Na seara do processo civil, o problema da afetação pelo tempo remonta ao
Direito Romano e vem perpetuando seus efeitos através dos séculos. Isso porque, pelo fenômeno da
universalização do procedimento ordinário, o momento próprio para a entrega da prestação
jurisdicional àquele que busca a Justiça Estatal ocorre, em regra, ao final do processo, após o
desenvolvimento de toda a atividade cognitiva. Entre a propositura da ação e a efetiva resposta do juiz
aos seus reclames, à parte só resta o aguardo. Esta situação assume contorno ainda mais hermético
pelas garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, contidas no artigo 5.º, LIV
e LV, da Lex Matter de 1988.” Segue o jurista afirmando: “Porém, a mesma Carta Política, em seu
artigo 5.º, XXXV, consagra o princípio do “acesso à justiça”, que exige não só a criação de
instrumentos que viabilizem a chegada das pretensões das partes à autoridade judicante, mas, também,
que, uma vez lá, elas recebam a prestação jurisdicional de modo pleno e no tempo adequado.”
Finalmente, esclarece: “Diante da flagrante tensão: segurança versus efetividade, o legislador
processual vem desenvolvendo instrumentos para harmonizar os direitos fundamentais a elas
(segurança e efetividade) vinculados. Tais mecanismos, a doutrina chama de “tutelas de urgência”.
(JARDIM, Guilherme Tanger. Unificação dos requisitos à antecipação da tutela. Visões críticas do
processo civil brasileiro, uma homenagem ao prof. Dr. José Maria Rosa Tesheiner. Coordenadores:
Gulherme Rizzo Amaral e Márcio Louzada Carpena. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p.103-
105).
474
serventia e eficácia do processo (ou futuro processo) em que se resolverá
a pendenga de direito material que envolve os litigantes, ou, ainda, a
satisfazer provisoriamente, de modo parcial ou integral, a pretensão
aclamada pelo postulante. Logo, autoriza-se a concessão de decisão
liminar, sem audiência da parte contrária, para, só depois, permitir a ela
opor-se à aspiração motivadora da ação judicial. Prescinde-se, em
princípio, da certeza e segurança inerentes ao contraditório, em prol da
utilidade e eficiência da própria atividade jurisdicional. É a análise feita
caso a caso que guiará o juízo, permitindo-lhe decidir se a efetividade
deve realmente preponderar naquele momento – e isso já no limiar do
processo –, em detrimento de valores outros, igualmente importantes, mas
menos relevantes diante do periculum in mora que atemoriza o próprio
direito material pretendido.
Em síntese, o processo opera transformações de modo
demasiado lento. Algumas situações, em decorrência do imediatismo da
necessidade da tutela, sujeitas aos perigos que a demora acarreta, exigem
remédios mais ligeiros; a receita tem de ser outra que não aquela
primitiva, caracterizada pela segurança e certeza da decisão. Nesse ponto,
surge a importância das tutelas cautelar e antecipada, a seguir analisadas
com mais pormenores.
4.3 Tutelas de urgência
Já se afirmou, linhas atrás, que as tutelas de urgência são
formas diferenciadas de tutelas jurisdicionais, essas que, consoante a
doutrina mais autorizada, subdividem-se em tutelas cautelares e tutelas
antecipadas. Logo, a expressão tutelas de urgência refere-se ao gênero,
do qual são espécies as tutelas cautelares e antecipadas.
Mesmo que sumariamente, faz-se necessário traçar algumas
linhas mestras sobre cada uma dessas espécies de tutelas de urgência.
4.3.1 Tutelas cautelares
475
A perspectiva da doutrina italiana a respeito da tutela cautelar,
desenvolvida pelos estudos de Giuseppe Chiovenda, Piero Calamandrei e
Francesco Carnelutti, foi acolhida no plano jurídico interno,
apresentando-se como um tertium genus de processo
880
, de caráter
instrumental e provisório, e destinado a, por meio de cognição sumária,
afastar um dano (periculum in mora) capaz de comprometer a utilidade da
prestação jurisdicional a ser realizada noutro processo, intitulado de
principal
881
.
Atuando de maneira autônoma, objetiva a tutela cautelar
imunizar provisoriamente o direito material perseguido (seja num
processo de conhecimento ou execução) dos perigos que possam surgir
(periculum in mora) da inafastável atuação do tempo para a conclusão da
atividade jurisdicional. De modo a evitar que alterações no estado de fato
das coisas, provas ou pessoas venham a prejudicar o resultado útil, eficaz
e justo da tutela jurisdicional final, opera a tutela cautelar como refratária
das moléstias capazes de atingi-la, males nascidos pela influência da
necessária detença
882
ao desenvolvimento e remate de todo e qualquer
processo.
Embora possível questionar-se a autonomia procedimental do
processo cautelar, mormente em razão do previsto no art. 797 e, mais
880
Araken de Assis, embasado em lição sólida de José Carlos Barbosa Moreira, questiona a caracterização
do processo cautelar como um tertium genus: “Finalmente, coroando as críticas à arquitetura
legislativa, que baralhou estrutura e função, há outro dado inquestionável: as funções de conhecimento
e executiva não se situam, verdadeiramente, em plano idêntico e simétrico à cautelar. Divisou tal
característica, em primeira mão, José Carlos Barbosa Moreira: “A meu ver, aliás, talvez não seja muito
exato contrapor-se o processo cautelar, como um terceiro gênero, a esses dois antes mencionados.
Creio que ele mais verdadeiramente se contrapõe ao processo de conhecimento e ao de execução
considerados em conjunto, já que um e outro têm natureza satisfativa, visando, portanto, à tutela
jurisdicional imediata, ao passo que o processo cautelar se distingue precisamente por constituir uma
tutela mediata, uma tutela de segundo grau”. E, em parágrafo seguinte, prossegue o jurista: “Após
admitir que, na função cautelar, convivem cognição, conquanto sumária, e execução, Liebman defendeu
a estrutura unitária do procedimento cautelar, contrapondo-o como tertium genus aos demais, em
virtude de seu caráter instrumental e auxiliar relativamente ao processo principal. A toda evidência,
não há resquício algum de coerência na conclusão: a partir da natureza instrumental, a lógica
recomendaria distinguir, então, o processo que satisfaz daquele em que a atividade judiciária se cinge a
assegurar a utilidade de outros”. (ASSIS, Araken. Fungibilidade das medidas inominadas cautelares e
satisfativas. Revista de processo n. 100. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 38-39).
881
CARPENA, Márcio Louzada. Do processo cautelar moderno. Rio de Janeiro : Forense, 2003. p. 21.
882
Conforme anota Marcelo Lima Guerra, valendo-se de expressões de Proto Pisani, essa duração temporal
não se trata, necessariamente, de uma duração “patológica”, mas antes aquela que bem pode ser
chamada de “fisiológica”. Duração, portanto, ineliminável, pois decorrente das garantias fundamentais
com as quais se pretende assegurar a justiça do resultado final a ser alcançado através do processo.”
(GUERRA, Marcelo Lima. Estudos sobre o processo cautelar. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 14).
476
recentemente, §7º do art. 273, ambos do CPC, não se pode negar uma
autonomia em relação ao seu objetivo, incontestavelmente diverso dos
fins colimados pelos processos de conhecimento e execução. Afinal, não
se servem as tutelas cautelares à resolução da crise de direito material ou
à sua satisfação, mas, sim, meramente a assegurar o resultado útil e
eficiente do processo em que esse direito material é discutido ou se tenta
sua satisfação. Daí despontar outra característica do processo cautelar, a
saber, assessorar, ou melhor, servir, acautelar (instrumentalizar) outra
pretensão – esse atributo, a instrumentalidade, talvez seja seu aspecto
mais peculiar.
Ademais, mesmo numa análise fincada no aspecto puramente
procedimental, o arquétipo, ainda hoje, é o da independência do modelo
motivador da tutela cautelar, a ser pleiteada por meio de uma ação
(cautelar), mediante o estímulo do órgão jurisdicional, por uma petição
inicial, instrumento da demanda. A possibilidade de o jurisdicionado
valer-se da tutela cautelar, independentemente de ação ou processo
cautelares, funcionaria no sistema processual nacional ainda como um
desvio da regra geral
883
, mesmo admitindo-se que provavelmente as ações
cautelares incidentais tendem a ter seu uso abreviado, haja vista a
facilidade ofertada pelo novo mecanismo legislativo: a fungibilidade de
tutelas de urgência.
De outra sorte, em sendo a tutela cautelar uma medida
excepcional, no mais das vezes qualificada por restringir direitos ou pela
constrição de bens, está ela sujeita ao respeito a alguns requisitos
específicos, quais sejam, o fumus boni juris e o periculum in mora.
Prevalece o entendimento de que o fumus boni juris implicaria a
exigência de se demonstrar ao órgão jurisdicional a plausibilidade da
existência do direito material, discutido – ou que será discutido – ou a ser
satisfeito no processo principal. Segundo essa corrente, o postulante
883
Não se há que confundir “tutela” cautelar com “processo” cautelar. A “tutela” representa o provimento
jurisdicional que se busca obter – ou que se obtém – por meio do instrumento denominado “processo”.
Perceba-se, a esse respeito, que o §7º do art. 273 é bastante expressivo ao se valer das unidades
gramaticais “providência” de natureza cautelar e “medida” cautelar. Ora alguma se refere ao “processo”
cautelar. Logo, o autor requer “providência” cautelar; o juiz, convencido da presença dos pressupostos
exigidos, defere “medida” cautelar – ou “tutela” cautelar. Com efeito, é perfeitamente lícito o
entendimento de que, hodiernamente, pode-se postular “tutela” cautelar no bojo do processo de
conhecimento ou de execução.
477
deverá levar ao conhecimento do órgão julgador elementos que
evidenciem a plausibilidade da pretensão alegada no processo, ao qual a
tutela cautelar busca assegurar um resultado útil
884
.
Outra posição também é sustentada com sucesso. Para alguns, o
processo cautelar principia-se e falece em função de um outro processo –
e não propriamente em razão do direito material perseguido nesse
processo. Isto é, apresenta ele, como peculiaridade fundamental, a
instrumentalidade – voltada ao processo e não ao direito material. O que
se buscaria, então, seria a garantia de que a tutela a ser prestada nesse
outro processo, o principal, será útil e eficiente – e, conseqüentemente,
justa – mesmo que contrária à pretensão daquele que obteve a medida
cautelar. Não se pretenderia, imediatamente, o acautelamento de um
direito hipotético daquele que busca a cautela, mas, sim, a proteção do
instrumento por meio do qual a tutela satisfativa será concebida. Ora, se o
que se busca é a proteção do processo principal, porque então se
demonstrar a aparência ou possibilidade de êxito do que lá se reivindica?
Por qual motivo se deve provar a plausibilidade do direito material
invocado, se o que se pretende acautelar, de modo imediato, é justamente
o instrumento e não o eventual direito da parte postulante que dele poderá
se originar?
Nessa linha de entendimento, a orientação defendida por
Ronaldo Cunha Campos, questionada há tempos, mas, ainda hoje, capaz
de arrebanhar adeptos
885
. Segundo o mestre, ao definir o fumus boni iuris,
deve-se levar em consideração apenas o direito à obtenção de um
julgamento de mérito no processo principal, seja ele favorável à sua
pretensão ou não. A natureza da decisão no processo cautelar reconhece o
direito de ação, assegurando a possibilidade de obtenção de uma decisão
exeqüível, e nunca favorável. A problemática situa-se no plano da decisão
exeqüível, e não no campo da decisão favorável
886
. Com efeito, o fumus
884
Em oportunidade anterior (REPRO n. 122), sustentamos o entendimento de que o fumus boni juris se
resumiria na demonstração de que o postulante possui o direito à ação principal. Nosso posicionamento
foi alterado. Realmente acreditamos agora que a melhor posição acerca da definição do fumus boni juris
é aquela que o vincula à probabilidade do direito material pretendido no processo principal.
885
Dentre os juristas defensores da tese do saudoso professor Ronaldo Cunha Campos, encontram-se,
dentre outros, Humberto Theodoro Júnior, Marcelo Lima Guerra e Joaquim Felipe Spadoni.
886
CAMPOS, op. cit., p. 134.
478
boni iuris corresponderia, ainda nessa ótica, não propriamente à
probabilidade de existência do direito material, senão à verificação de
que o postulante dispõe do direito de ação – direito ao processo principal
– a ser tutelado
887
.
Salvo melhor juízo, a primeira posição merece prosperar. Em
verdade, a tutela cautelar serve imediatamente não ao processo principal,
mas, sim, à pretensão de direito material que, por meio dele, se persegue.
O processo é apenas o veículo, o meio de se alcançar a tutela jurisdicional
final. Não se pode negar, contudo, que, protegendo-se o resultado, estar-
se-á também garantindo a efetividade do próprio processo. Noutro viés,
nada há de suspeito em se acautelar pretensões de direitos. Afinal, se é
lícito executar títulos executivos provisórios (execução provisória), razão
inexiste para negar-se a possibilidade de acautelamento de direitos
materiais ainda não chancelados pela qualidade de coisa julgada material
– se é possível executar um direito provável, por qual razão não seria
lícita a pretensão de acautelá-lo?
Já a definição do periculum in mora mostra-se mais tranqüila. O
deferimento da tutela cautelar prende-se à demonstração do fundado
receio de que, enquanto se espera a solução da tutela pretendida no
processo principal – antes ou depois de sua propositura –, surjam fatos
desfavoráveis ao seu alcance ideal. Consoante assevera Humberto
Theodoro Júnior, citando Carlo Calvosa, isso pode ocorrer quando haja o
risco de perecimento, destruição, desvio, deterioração, ou de qualquer
mutação das pessoas, bens ou provas necessários à perfeita e eficaz
atuação do provimento final do processo principal
888
.
A idéia de periculum in mora, analisada sob uma ótica focada
na tutela cautelar, prende-se à possibilidade de dano a prejudicar a justa
composição ou satisfação buscada com o processo principal. O dano que
se pretende imediatamente evitar é ao suposto direito material da parte
que invoca a tutela cautelar, acautelando-se, por tabela, o próprio
processo, já que sua utilidade será assegurada.
887
Ibid., p. 132.
888
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo cautelar. 20
a
. ed. São Paulo : Leud, 2002. p.83.
479
A demonstração que se faz imprescindível é a de possibilidade
de dano. Demonstrar-se-á a potencialidade de um dano irreparável ou de
difícil reparação ao resultado justo do processo principal e não o próprio
prejuízo efetivo. Em regra, a lesão apenas encontra-se na iminência de
surgir – por isso fala-se em perigo de dano. Ele despontará depois de
surgido o próprio direito; ou deve corresponder – parafraseando Ovídio
Batista da Silva – a um agravamento da situação perigosa preexistente,
ou, ainda, sendo anterior à constituição da pretensão, era de tal natureza
que o pretendente à segurança não o poderia razoavelmente conhecer
889
.
Diante desse apego da tutela cautelar à tutela de direito material
perseguida, da qual ela é serva, desponta-se outra característica inerente
às tutelas cautelares: a temporariedade. Sinteticamente, tal propriedade
revela-se justamente diante da instrumentalidade inerente à tutela
cautelar. Isto é, se a tutela cautelar visa à garantia da pretensão de direito
material, em regra resistida ou insatisfeita em outro processo, de modo a
permitir a sua efetividade e utilidade, somente se pode conceber sua
importância diante da existência de fundado receio de dano irreparável ou
de difícil reparação a essa última. Afastada a ameaça, encontrando-se a
salvo a pretensão resistida ou insatisfeita no processo principal, resta à
medida cautelar sua imediata revogação, porquanto perde ela sua razão de
existência. Noutras palavras, nasce a tutela cautelar para um fim
específico; cumprida sua destinação, ela simplesmente desaparece, não
sendo substituída por outra providência de mesma natureza ou
conteúdo
890
.
São, outrossim, características da tutela cautelar a
modificabilidade e a revogabilidade. Consoante leciona Marcelo Lima
889
SILVA, Ovídio Batista da. As ações cautelares e o novo processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: [s.c.p.],
1974. p. 69.
890
É importante diferenciar provisoriedade de temporariedade, mormente porque tal exercício mental
conduz a conclusão de que apenas a última integra o rol de características da tutela cautelar. Essa
diferenciação também se mostra necessária para que se consiga visualizar a assimetria existente entre
tutelas cautelar e antecipatória. Temporal é aquilo que possui duração limitada no tempo, duração essa
vinculada a determinada ‘situação’. Provisório é tudo aquilo destinado a durar por um determinado
tempo, e que, ao final, não se extingue, sendo substituído por uma situação definitiva de igual conteúdo.
A tutela cautelar seria temporária na medida em que depende da duração do periculum in mora ou do
fumus boni iuris; desaparecendo uma dessas situações, a tutela cautelar também desaparece. As tutelas
antecipadas seriam provisórias, afinal poderão ser substituídas por um provimento definitivo de igual
conteúdo ou natureza.
480
Guerra, tais qualidades decorrem também da instrumentalidade da tutela
cautelar, porém no sentido específico de que cada medida cautelar deve
ser proporcional ao periculum in mora que ela visa eliminar. Destarte,
a revogabilidade e a modificabilidade da tutela cautelar
consistem na sua necessária adequação ao periculum in mora,
de sorte que, tendo este se modificado ou sido definitivamente
eliminado, deve ser, respectivamente, modificada ou revogada
a medida cautelar correspondente
891
.
Quanto à natureza da decisão proferida no processo cautelar –
interlocutória
892
ou sentença –, diz-se ser ela mandamental. O órgão
julgador, após a verificação dos requisitos específicos exigidos para a
concessão da cautela, num procedimento pautado pela sumariedade,
profere uma ordem com o escopo de afastar a periclitância apontada pela
parte postulante, capaz de prejudicar o resultado útil e efetivo do
processo principal. De tal mandamento origina-se a expedição de um
mandado para o cumprimento da medida, que pode – e deve – vir
acompanhado de consignações específicas sobre os meios de cumprimento
eficazes
893
. Não raro, a decisão cautelar emana também eficácia executiva
lato sensu, o que, certamente, garante-lhe maior credibilidade e certeza de
cumprimento.
Logo se vê que, no processo cautelar, a cognição necessária ao
deferimento da medida acautelatória e a sua própria execução ocorrem
dentro de uma mesma unidade. Noutros termos, não há que se dissociar
conhecimento de execução em sede cautelar, como se fossem essenciais
dois processos diversos e distintos para dar efetividade à cautela deferida.
Consoante ensina Humberto Theodoro Júnior, na maioria dos casos, “a
891
GUERRA, op. cit., p. 22.
892
Não é comum ver-se ações cautelares carentes de pedido liminar, consoante permite o artigo 804 do
Código de Processo Civil. Diante da urgência de tais ações, e mesmo sendo o procedimento cautelar
mais exíguo, o pedido liminar é quase inerente a elas. Ernane Fidélis dos Santos, por exemplo, adota o
entendimento de que o arresto se caracteriza por ser medida de extrema urgência, com necessidade de
rápida execução, de tal forma que deverá a cautela nele pretendida sempre ser deferida liminarmente.
Segundo o jurista, não estaria o juiz autorizado a receber a petição inicial de arresto, determinando
simplesmente a citação do requerido, para, depois, conceder a medida em sentença final. Se porventura
os requisitos que ensejam a concessão da medida não forem produzidos satisfatoriamente, leciona o
mestre que o juiz não apenas deverá negar a liminar, como também indeferir o pedido. (SANTOS,
Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. 2. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 349).
893
CARPENA, op. cit., p. 48-49.
481
estrutura do procedimento é tal que a atuação da medida é parte do
procedimento e que a fase de cognição não se separa da fase de
execução”
894
. A ordem emanada é, portanto, auto-executável.
4.3.2 A antecipação de tutela
Consoante os ensinamentos precisos do professor Cândido
Rangel Dinamarco, “a principal inovação trazida pela Reforma em tema
de tutela de urgência foi a institucionalização de um poder geral de
antecipação, paralelo e estreitamente análogo ao poder geral de cautela
emergente do art. 798 do Código de Processo Civil”
895
. Sabe-se que o
tema tutela antecipada não configura novidade no sistema processual
brasileiro, porquanto já se conheciam formas típicas de antecipação, a
saber, as liminares em processo possessório, no mandado de segurança, na
ação popular, na ação civil pública, dentre outras. Em verdade, o
legislador promoveu verdadeira vulgarização da tutela antecipada – por
essa razão, Cândido Rangel Dinamarco se refere a ela como “poder geral
de antecipação” –, permitindo-se o adiantamento dos efeitos da tutela
jurisdicional pretendida, sempre que se configurarem os requisitos
previstos em lei; a grande inovação trazida com a Reforma foi, portanto, a
possibilidade de se utilizar a tutela antecipada de maneira generalizada.
A importância do instituto é incontestável e, certamente, o
legislador merece aplausos. Afinal, habitualmente se atribui à certeza uma
condição quase que absoluta e necessária a qualquer decisão judicial,
olvidando-se, às vezes, que valores outros não menos importantes, a
exemplo da igualdade real e efetividade, outrossim, merecem destaque no
estudo do processo.
As decisões judiciais decerto devem se pautar na segurança e
certeza, mas, também, mister que sejam justas, qualidade essa somente
conquistada quando o processo dá àquele que detém um direito, tudo
aquilo e exatamente aquilo que ele tem o direito de obter, sem ainda
prejudicar o autor que tem razão, conforme já ensinava Chiovenda. Nesta
894
THEODORO JÚNIOR, op. cit., 2002. p.186.
895
DINAMARCO, Cândido Rangel. Regime jurídico das medidas urgentes. CD Juris Síntese Milennium,
Legislação, Jurisprudência, Doutrina e Prática Processual, 39, [s.d.].
482
trilha, o processo, em função do inevitável lapso temporal necessário à
sua consecução, parte de premissa desigual aos litigantes, impondo o ônus
do tempo àquele que estimulou a tutela jurisdicional. Tal realidade é
facilmente verificada diante de uma análise sistemática do processo civil.
Basta lembrar que, em regra, ao autor lhe será entregue seu direito
somente após obter, antecedentemente e através de procedimento
complexo de cognição, o reconhecimento dele por meio de uma sentença –
obviamente se o postulante não detiver um título executivo extrajudicial.
Essa primeira fase, muitas vezeso dotada de palpável satisfatividade
(sentenças condenatórias, apenas) – a não ser nos casos pouco comuns em
que a sentença é cumprida espontaneamente – será procedida por outra, a
de execução, necessária à autêntica satisfação do direito do autor, agora
credor, momento em que o Estado-juiz fará uso da força estatal para
cumprir a regra sancionatória definida no título executivo judicial. De
ordinário, o incitante da máquina judiciária arcará com a árdua
incumbência de carregar nas costas os efeitos do tempo sobre o processo;
dá-se preferência à segurança e certeza, em detrimento da efetividade da
tutela jurisdicional. Essa a lógica natural do sistema processual, notada
também pela distribuição do ônus probatório – o ônus da prova, em regra,
cabe ao autor quanto ao fato constitutivo do seu direito; ao réu, quanto à
existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do
autor (art. 333, I, II, do CPC).
Se o fardo daquele que pretende se valer da jurisdição já é
excessivo, ele se torna quase – ou realmente – intolerável diante dos
problemas extraprocessuais – já citados alhures – que atingem
diretamente o processo, prejudicando o seu caminhar, já lento por
natureza. Como esclarecido anteriormente, a solução de tais embaraços
extraprocessuais prende-se mais propriamente à política do que a
alterações legislativas, por mais bem intencionadas que sejam essas.
Por outro lado, algumas circunstâncias podem realmente ser
resolvidas – ou ao menos ter sua gravidade atenuada – por
implementações legislativas ou, na falta dessas, pela própria criatividade
do intérprete e aplicador maior da lei. Viu-se tal engenho humano
concretizar-se, numa época em que inexistia a possibilidade de se
483
satisfazer liminarmente – salvo algumas exceções específicas – a
pretensão do jurisdicionado, imerso numa demanda cognitiva, sem que
antes fosse transposta toda aquela fase procedimental necessária a dar às
partes, e à sociedade, a segurança e certeza imprescindíveis à decisão
jurisdicional. Inexistia, àquela época, texto normativo que autorizasse a
antecipação dos efeitos da sentença de forma genérica, motivo pelo qual
vários casos de urgência ficavam literalmente desamparados legalmente.
Diante de tal realidade, a jurisprudência fecundou a denominada “ação
cautelar satisfativa”
896
, que de cautelar detinha apenas o nome e
procedimento, uma vez que servia não ao acautelamento do resultado útil
e efetivo de outro processo, mas à outorga do adiantamento liminar
daqueles efeitos emanados da sentença de procedência pretendida pelo
consumidor da máquina judiciária.
Consoante ensina o mestre Bedaque, adotou-se esse mecanismo
(“ação cautelar satisfativa”) de forma genérica, possibilitando-se a
entrega da prestação jurisdicional antes do momento adequado, sem a
segurança apropriada e necessária, só adquirida no processo de cognição.
A par de instrumentos previstos no sistema (sumarização formal,
ampliação dos títulos executivos extrajudiciais, procedimento monitório,
etc.), aceitava-se o desvirtuamento do processo cautelar, para abreviar a
concessão da tutela satisfativa. E, não raras vezes, isso acabava ocorrendo
896
Sobre o assunto, José Carlos Barbosa Moreira, em brilhante lição, esclarece: “Não é de surpreender
que, diante da carência legislativa, os interessados em obter proteção urgente hajam procurado vias
por assim dizer heterodoxas para alcançar o objetivo. A trilhada com maior freqüência foi a da
utilização da forma do processo cautelar para veicular pretensões que em substância manifestamente
excediam os lindes da cautelaridade. E o expediente favorito consistiu em invocar o chamado “poder
geral de cautela”, consagrado no art. 798 do Código de Processo Civil. Essa tática encontrou
receptividade nos tribunais, sensíveis à necessidade de acudir a situações merecedoras de tutela, para
as quais se mostrava improfícua a consulta à farmacopéia clássica.” E complementa: “Acontece que,
não raro, a concessão da providência requerida a título cautelar na verdade exauria toda a proteção
que se podia dispensar ao requerente. Para grande consternação de parte da doutrina, que enxergava
na expressão verdadeira contradição nos termos, difundiu-se na prática judicial o emprego das
chamadas “cautelares satisfativas” Já se lembrou, no começo desta palestra, o exemplo sugestivo das
ordens de liberação dos ativos financeiros bloqueados pelo “Plano Collor”. Sacada a importância de
que precisava, o interessado havia obtido, com isso, tudo que pretendia, e só nominalmente a título
provisório, dada a impossibilidade de reversão ao status quo”. (MOREIRA, José Carlos Barbosa.
Temas de direito processual. 8ª Série. Tutela de urgência e efetividade do direito. São Paulo: Saraiva,
2004. p. 100).
484
sem os cuidados necessários, acarretando a invasão da esfera jurídica da
outra parte, que sequer era ouvida
897
.
Contudo, após a Lei n. 8.952, de 13/12/1994, a lacuna foi
preenchida, criando-se o instituto da tutela antecipada, inserindo-se no
sistema processual a nova redação dos arts. 273 e 461, §3º
898
. A partir de
então, vozes respeitadas da doutrina bradaram pela desvalorização da
“tutela cautelar satisfativa”, porquanto sua utilização, antes justificada,
não mais possuía sentido, já que a legislação agasalhara instituto moderno
e ideal para a antecipação dos efeitos da tutela pretendida, entabulando,
inclusive, requisitos distintos daqueles exigidos para a concessão da
tutela cautelar. A jurisprudência, em grande parte, desviou-se do
entendimento originário que aceitava a “tutela cautelar satisfativa”, para
adotar posição oposta, negando-a agora, porquanto presentes no
ordenamento jurídico preceitos autorizadores da antecipação genérica da
tutela.
A tutela antecipada é, pois, técnica que importa em satisfação,
mesmo que não definitiva e às vezes parcial, do direito a que se pretende
obter por meio do processo. Na precisa lição de Teori Albino Zavascki,
antecipar a tutela [...] nada mais significa que antecipar
providências executórias que podem decorrer da futura
sentença de procedência. Efetiva-se antecipação mediante atos
tipicamente executivos, vale dizer, atos que importam
modificações no status quo, seja provocando, seja impedindo
alterações no plano dos fatos
899
.
Sem dúvida, a cautelaridade está presente nela; porém, de
forma menos incisiva, mediata, na verdade
900
– afinal, o deferimento do
897
BEDAQUE, op. cit., p. 199.
898
Antes de se inserir o art. 461, §3º, no Código de Processo Civil, já se encontrava em plena vigência o
art. 84, §3º, do Código de Defesa do Consumidor, de redação praticamente idêntica ao primeiro
dispositivo citado. É de se lembrar, contudo, que o último texto normativo apenas se destinava às
chamadas relações de consumo; tinha aplicação limitada, portanto.
899
ZAVASCKI, Teoria Albino. Antecipação da tutela. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 71.
900
Lembre-se que as tutelas antecipada satisfativa e cautelar inserem-se num mesmo grupo, fazem parte de
um gênero único, o das tutelas de urgência. Em sendo assim, inquestionável a afirmação de que possuem
elas diversos pontos de contato. A esse respeito lecionam Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato
Correia de Almeida e Eduardo Talamini, afirmando que se aplicam à tutela antecipada as normas sobre a
tutela cautelar – e vice versa –, relativamente a todos os pontos em que as características de uma e de
outra são as mesmas. Por exemplo, a regra da responsabilidade objetiva do requerente da medida
485
pedido antecipatório satisfativo também resguarda o resultado útil e
eficaz do processo, na medida em que, se a aludida pretensão não fosse
atendida, o direito material poderia perecer e, por conseqüência, o
processo restaria infrutífero, mesmo diante de uma sentença de
procedência.
A imediatidade da tutela antecipada, por outro lado, se revela
pela necessidade preeminente (periculum in mora) de se alcançar os
efeitos da tutela reclamada, visto que a delonga, em tais casos, exporá o
direito material buscado à periclitância capaz de fulminá-lo. A tutela
antecipada, conforme ensina Ovídio A. Batista da Silva, ao se referir à
ação de busca e apreensão, prevista no Decreto-Lei n. 911, insere-se na
categoria execução para segurança e não apenas segurança de uma
execução futura. Aqui não se está adotando, preventivamente,
alguma medida para segurança de uma execução que haverá de
ocorrer em momento subseqüente, senão que – ante a iminência
do dano decorrente do retardamento da tutela satisfativa –
satisfaz-se desde logo, executando para segurança
901
.
Nessa vereda, o juiz deverá, segundo prevê o art. 273, I e II, do
CPC, em regra a requerimento da parte
902
, antecipar, total ou
parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, sempre
que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da
cautelar (art. 811) aplica-se à tutela antecipada. Já a regra que prevê que a medida cautelar perde a
eficácia se a ação principal não for proposta em trinta dias (arts. 806 e 808, I) não é, obviamente,
aplicável à tutela antecipada dos arts. 273 e 461, §3º, uma vez que essa, no regime vigente, não opera
através de processo preparatório. (WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de;
TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
p. 36).
901
SILVA, op. cit., 1974. p. 64-65.
902
Já tivemos oportunidade de defender que a antecipação de tutela, embora necessite, em regra, de pedido
expresso da parte interessada para ser determinada, pode ser concedida de ofício pelo juiz quando a
matéria relacionar-se às relações de consumo. Naquele momento, esclarecemos: “De igual maneira,
poderá o juiz, ou até mesmo o tribunal, conceder antecipação de tutela – se convencido da existência
dos pressupostos necessários para tanto –, em casos que envolvam interesses amparados pela Lei
8.078/90, independentemente de pedido formulado pelo consumidor. Não é novidade que a antecipação,
total ou parcial da tutela, está vinculada ao requerimento da parte, em evidente correlação com o
princípio dispositivo. Ocorre que, por ser o Código de Defesa do Consumidor uma norma de ordem
pública, o princípio dispositivo é excetuado daqueles casos que importam relação de consumo, podendo
o órgão judicante pronunciar-se sem se sujeitar ao pedido.” (DELFINO, Lúcio. Reflexões acerca do art.
1º do código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, 48. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. p.171).
486
alegação e haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil
reparação, ou fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o
manifesto propósito protelatório do réu. Entretanto, e conforme opina
Joaquim Felipe Spadoni, somente quando se depara com a tutela
antecipada fundada no perigo de dano irreparável ou de difícil reparação,
se está defronte a uma situação em que a antecipação é fundamental para
a efetividade e adequação da tutela jurisdicional pleiteada, sendo apenas
esta a hipótese que se enquadra como tutela de urgência no que se refere
ao art. 273
903
.
A tutela específica (obrigações de fazer, não fazer e dar) pode
também ser adiantada, sobretudo por força da previsão contida nos arts.
461, §3º, 461-A, §3º, todos do CPC. Em tais hipóteses, o legislador impõe
como requisitos a necessidade de que seja relevante o fundamento da
demanda e que haja justificado receio de ineficácia do provimento final.
Diante da diversidade de terminologias, seria crível aceitar-se a idéia de
que, para a concessão da aceleração de pretensões, em ações
condenatórias de obrigação de fazer, não fazer e de dar, a lei exigiria
menos do que para a mesma providência na ação de conhecimento tout
court (art. 273). Para muitos, o deferimento da antecipação da tutela
específica exigiria, como primeiro requisito, apenas a demonstração da
mera probabilidade, isto é, a relevância do fundamento da demanda, ao
passo que o art. 273 reclamaria prova suficientemente capaz de convencer
o juiz acerca da verossimilhança da alegação
904
. Se numa interpretação
gramatical esse entendimento é coerente, teologicamente ele não o é.
É brilhante o ensinamento de Guilherme Tanger Jardim, ao
esclarecer que, tanto o art. 273, como o art. 461, §3.º (também aplicável
ao art. 461-A), tratam, igualmente, de hipóteses referentes à antecipação
de tutela. De tal sorte, a unidade conceitual deve, para o hermeneuta,
aproximá-los e não distanciá-los, garantindo-se, assim, a coesão do
903
SPADONI, Joaquim Felipe. Fungibilidade das tutelas de urgência. Inovações sobre o direito processual
civil: tutelas de urgência. Coordenadores: Arruda Alvim e Eduardo Arruda Alvim. [s.l.]: [s.c.p.], 2003.
p. 303.
904
NERY JUNIOR; NERY, op. cit., 2003. p. 782.
487
sistema
905
. Acredita-se – na mesma linha de entendimento de Guilherme
Tanger Jardim – que, atualmente, esta unidade entre a antecipação geral e
a especial (arts. 273, 461, §3.º, e 461-A) sequer pode ser contestada,
notadamente porque o próprio legislador a reconhece. A alteração do teor
do §3.º do art. 273 do CPC, pela Lei n. 10.444/2002, é prova disso.
Noutras palavras, o legislador viabilizou idênticos meios de execução
para todas as hipóteses de tutelas antecipadas (gerais ou específicas),
impondo que a “efetivação da tutela antecipada observará, no que couber
e conforme a sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§4.º
e 5.º, e 461-A”
906
.
Portanto, os requisitos necessários ao deferimento da tutela
antecipada, fundada no art. 273 do CPC, são idênticos àqueles exigidos
para o deferimento de tutela antecipada, cujos provimentos pretendidos
representam obrigações de fazer, não fazer e de dar coisa.
Ressalte-se, ademais: não há, conforme já se percebeu, que se
confundir provimentos de urgência de natureza cautelar com os
905
O autor esclarece, ainda: “Em segundo lugar – e partindo-se da premissa de que o art. 273 traz (por
força do parágrafo único do art. 272 do CPC) regra geral à antecipação de tutela e o art. 461, §3.º,
traz regra especial ao mesmo “telos” antecipativo – deve-se fazer uma necessária justaposição de seus
conteúdos. Realizar esta operação equivale a integrar. Ao lado da interpretação, encontramos a
integração do direito, a inserção no mundo da ordem jurídica, desse microcosmo que é a lei, o contrato
e o testamento. Portanto, toda tarefa interpretativa pressupõe trabalho de relacionar a parte com o
todo.” E continua: “Em terceiro lugar, após esta justaposição, devem ser preenchidas as lacunas do
sistema e afastadas as antinomias.” (JARDIM, op. cit., 2005. p. 116-117).
906
Leciona Guilherme Tanger Jardim: “Esta unidade entre a antecipação geral e a especial não pode mais
ser contestada. O próprio legislador a reconhece. A alteração do teor do §3.º do art. 273 do CPC, pela
Lei 10.444/2002, é prova disso. Antes do advento deste diploma legal, a redação do aludido parágrafo
referia que a execução da medida antecipadamente deferida haveria de observar o disposto no art. 588,
II e III, do CPC. Com isso, se não havia diferença na essência antecipativa, nem nos pressupostos ou
hipóteses de cabimento (tutela antecipatória preventiva e punitiva), esta se fazia presente na efetivação
da tutela deferida antecipadamente. Quando o fosse pela força do art. 461 do CPC, poder-se-ia aplicar
a multa prevista em seu §4.º e as medidas sub-rogatórias do §5.º. Já quando a antecipação fosse
aplicada pela regra do art. 273, apenas as tradicionais medidas executivas poderiam ser empregadas à
sua efetivação. A multa e as medidas sub-rogatórias não.” Esclarece, ainda, o autor que, em sua nova
redação, o §3.º do art. 273 do CPC, evidencia que o legislador [...] reconhece a unidade entre a tutela
antecipada à luz do art. 273, 461 e 461-A. Tanto assim que passou a viabilizar idênticos meios de
efetivação para todas as hipóteses. A multa prevista no §4.º, do art. 461, as medidas sub-rogatórias e
de coerção estatuídas no §5.º do mesmo dispositivo, bem como as medidas previstas no §2.º do art. 461-
A, passaram a ser incorporadas ao regime geral da antecipação da tutela, que não está mais
escravizado aos consagrados – e, muitas vezes, ineficazes – meios executivos à obtenção do direito
material. Claro, porém, que tais mecanismos não serão aplicáveis indistintamente. Deverão variar a
sua incidência de acordo com a natureza da obrigação pretendida, seu objeto, etc., consagrando-se a
aplicação tópica dos institutos aqui tratados. Sempre, porém, para emprestar a maior eficiência ao
processo e atingir o seu verdadeiro propósito: ser mecanismo seguro e eficaz para se obter a tutela
jurisdicional.” (JARDIM, op. cit., 2005. p.121-122).
488
antecipatórios satisfativos
907
. Embora parcela autorizada da doutrina,
quiçá influenciada pelo direito europeu, defenda a desnecessidade da
diferenciação jurídica das aludidas tutelas, a verdade é que elas possuem
identificadores peculiares. O ordenamento jurídico pátrio delineia, de
maneira distinta, as tutelas cautelares e antecipadas, concedendo-lhes
finalidades e requisitos próprios, muito embora inseridas num mesmo
gênero
908
.
4.3.3 Fungibilidade das tutelas de urgência
Em tempos recentes, as dúvidas – que ainda hoje permanecem
havidas acerca da natureza de determinados provimentos de urgência, se
cautelares ou satisfativos antecipatórios, colocavam o advogado – e, por
conseqüência, o próprio jurisdicionado – em situação de extrema
fragilidade, já que subordinado ao talante do órgão julgador.
Não raro, ingressava-se com ações cautelares que acabavam
extintas, sem apreciação de mérito, porquanto o entendimento do
magistrado (ou tribunal) destoava daquele talhado na petição inicial;
acreditava o julgador que se tratava, aquele pedido, de antecipação de
tutela e não propriamente um acautelamento. A situação inversa também
não era incomum.
Longe de se imputar deméritos ao advogado prejudicado com tal
linha de pensamento – como queriam fazer crer alguns –, situações
907
O jurista mineiro, Ernane Fidelis dos Santos, esclarece, com precisão, a diferenciação entre tutela
antecipada satisfativa e tutela cautelar: “A antecipação, na verdade, não se confunde com a medida
cautelar. A cautela, que tem sentido publicista, por garantir, em primeiro plano, a própria eficácia do
processo, é de natureza instrumental e não se identifica com a medida satisfativa solicitada no processo
acautelado; apreende-se o bem, por exemplo, para evitar sua danificação, não para entregá-lo
antecipadamente a quem o reivindica. Já a medida antecipada tem, qualitativamente, reflexos do
mesmo conteúdo do que se pretende no pedido, através de julgamento definitivo. Por tais razões,
requisito próprio da medida cautelar é apenas o fumus boni iuris, isto é, a simples possibilidade de bom
êxito do que se almeja com o pedido feito ou a se fazer, enquanto na antecipação, embora provisório o
provimento, exige-se prova que, por sua própria estrutura, gere convicção plena dos fatos e juízo de
certeza da definição jurídica respectiva.” (SANTOS, Ernane Fidelis dos. Novos perfis do processo civil
brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 24). Muito embora o professor Ernane Fidelis apresente
com clareza incontestável a diferenciação das duas tutelas de urgência, discordamos de sua definição
acerca do pressuposto fumus boni iuris, como se poderá constatar na leitura do presente artigo.
908
Sobre o assunto: THEODORO JUNIOR, Humberto Theodoro. Fungibilidade entre medida cautelar e
medida antecipatória. Direito processual. Inovações e perspectivas. Estudos em homenagem ao
Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Coordenadores Eliana Calmon e Uadi Lammêgo Bulos. São
Paulo: Saraiva, 2003.
489
realmente existem em que posicionamentos doutrinários e
jurisprudenciais, da mais alta estirpe, divergem quanto à verdadeira
identidade de alguns provimentos. Não se trata simplesmente de dizer que
faltaram ao advogado melhores apreciação e acuidade antes de ajuizar a
demanda. Certamente que exemplos assim ocorrem; todavia, não se podem
colocar todos os episódios no interior de um mesmo compartimento,
bastando, para assim concluir, observar as discussões travadas na doutrina
hodierna. A esse título, vale lembrar o embate que se vivencia quanto à
natureza da decisão judicial de sustação de protesto: apresentaria ela
características acautelatórias ou, ao contrário, configurar-se-ia numa
tutela satisfativa antecipada?
Em tais casos – não seria exagero afirmar – o jurisdicionado
efetivamente participava de verdadeiro jogo de azar, como se estivesse se
entretendo em um passatempo, desejando avidamente que os “números
sorteados” correspondessem ao “bilhete” retratado em sua petição inicial.
Se infortunado o jogador, apenas outra tentativa lhe restaria, devendo
adquirir – e, em regra, pagar por ela (despesas com o processo e
honorários advocatícios) – nova possibilidade de jogo, rogando, agora,
por melhor sorte.
Isto porque o entendimento predominante era o de que estaria o
juízo impedido de conceder tutela urgente, diferentemente daquela
pleiteada, uma vez que se mantinha vinculado ao princípio da
congruência, encontrando-se, pois, autorizado somente a conceder ou
repudiar (no todo ou em parte) a exata providência rogada; nada além
(ultra petita) ou diverso (extra petita).
Não obstante essa realidade, a jurisprudência mais consciente e
desapegada do formalismo exacerbado, vinha adotando posicionamento
coerente com o verdadeiro espírito da tutela de urgência (impedir a
configuração do dano), e com manifesta deferência à parte postulante –
que geralmente se encontra nesses casos, numa situação de perigo
iminente –, bem assim ao próprio causídico, responsável pela confecção
do pedido. Para ilustrar tal postura, faz-se mister a transcrição de trecho
do voto do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, ao julgar, em meados
do ano de 1999, o Recurso Especial n. 213.580, em que, acompanhando o
490
voto do Relator num julgamento em que se discutia a natureza da medida
que buscava sustar os efeitos dos registros em cadastros de devedores,
entendeu preponderar, no caso, o aspecto da antecipação de tutela sobre a
tutela cautelar, asseverando, contudo:
Mesmo que assim não fosse, todavia, entendo que seria de
deferir a medida, considerando que, não obstante as duas
figuras sejam bem distintas [cautelar e antecipação de tutela],
a evolução científica tem caminhado no sentido de admitir a
fungibilidade em se tratando de tutela de urgência, quando
presentes os requisitos, sem embargo da rigidez do sistema
adotado no Código de 1973 quanto às cautelares
909
.
A necessidade de superar definitivamente o problema levou o
legislador pátrio a incluir, por meio da Lei n. 10.444, o §7º ao art. 273 do
CPC. A iniciativa, além de louvável, incrementou o espírito de
instrumentalidade que abraça a ciência processual hodierna, destacando,
por assim dizer, a supremacia da carga, quando comparada ao veículo.
Entrementes, o novel dispositivo fez-se acompanhar de
questionamentos – situação, em tais casos, assaz normal – que, se não
propriamente solucionados, serão responsáveis por embaraços práticos
depreciadores da real intenção legislativa – a busca de uma maior
efetividade –, bem como pelo menoscabo a princípios caros ao
ordenamento nacional, a exemplo do preceito constitucional instituidor do
direito ao contraditório.
Ao instituir-se o §7º ao art. 273 do CPC, positivou-se no
sistema processual o que a doutrina denominou de fungibilidade de tutelas
de urgência. Esse o teor do dispositivo: “Se o autor, a título de
antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá
o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida
cautelar em caráter incidental do processo ajuizado”.
Com a adoção desse novo mecanismo, já utilizado
independentemente de previsão legal pela jurisprudência de vanguarda, o
legislador, além de enaltecer o princípio da economia processual,
909
Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 213.580, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 05
de agosto de 1999. Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acessado em 07/06/2004.
491
incrementou a idéia de efetividade e a mentalidade instrumentalista que
contagia o estudo do processo hodiernamente.
Entretanto, algumas observações sobre a inovação retroaludida
se fazem importantes.
4.3.3.1 Ausência de descaracterização das tutelas cautelares e
antecipadas
Num primeiro momento, mister ressaltar que a regra inserta no
§7º do art. 273 do CPC não descaracterizou os provimentos cautelares e
antecipatórios. Não os transformou numa única espécie. Em verdade,
outorgou-se ao órgão julgador o poder de valer-se do remédio mais
adequado ao caso concreto, desde que presentes os requisitos que
autorizem a tutela a ser deferida, independentemente da roupagem dada a
ela no pedido.
Ou seja, para o deferimento de medida cautelar requerida a
título de antecipação de tutela, é imprescindível a presença dos requisitos
autorizadores da primeira; ao revés, se em ação cautelar requer-se
antecipação de tutela, essencial a presença das condições necessárias para
o deferimento da última – como se constatará adiante, a melhor
interpretação é aquela que admite a fungibilidade em dupla mão de
direção. Noutras palavras, a novidade legislativa não nasceu com o
intento de unificar as espécies de tutelas de urgência; seus delineamentos
mantêm-se intactos, já que para o deferimento da medida adequada deve o
juízo atentar-se para os pressupostos específicos de cada uma delas. A
inovação encontra-se apenas no aspecto formal e não na essência.
Essa a precisa lição de Humberto Theodoro Júnior:
O que não pode deixar de ser observado é o atendimento dos
pressupostos justificadores da providência de urgência. Assim,
mesmo que veiculado o pedido por via procedimental
imprópria, o exame de sua admissibilidade terá de levar em
conta não o procedimento eleito mas a natureza mesma da
medida. Se, por exemplo, se requereu medida satisfativa dentro
do procedimento próprio da ação cautelar atípica, o provimento
492
preventivo somente será deferido se presentes os requisitos do
art. 273, e não apenas os do art. 798 do CPC
910
.
4.3.3.2 Erros grosseiros e a aplicabilidade da fungibilidade de tutelas
de urgência
A analogia do tema ora discutido à fungibilidade recursal é
inevitável. Destarte, e valendo-se do raciocínio de Joaquim Felipe
Spadoni, o
primeiro questionamento que se coloca é se, mesmo diante de
erro grosseiro do autor, mesmo diante de inexistência de
qualquer dúvida na doutrina e na jurisprudência a respeito da
medida urgente cabível ao caso concreto, pode o magistrado
aplicar, ainda assim, a fungibilidade entre elas, concedendo a
cautelar que não foi pedida
911
.
Poderá, então, o órgão julgador, mesmo defronte a um erro
grosseiro, aplicar a fungibilidade de tutelas em ação cautelar com pedido
antecipatório satisfativo – ou vice versa?
912
O mesmo autor citado, ao que parece partindo de uma
interpretação analógica entre a fungibilidade de tutelas e fungibilidade
recursal, conclui que à primeira deve-se aplicar o posicionamento de que
é condição de sua efetivação a existência de dúvida objetiva ou carência
de erro grosseiro na escolha da medida ajuizada, tal qual ocorre na
aplicação da segunda. Noutros termos, entende o talentoso doutrinador
que, muito embora a lei seja silente acerca da necessidade de haver
dúvida objetiva que possa justificar a tutela de urgência postulada, a
demonstração desse requisito se imporia, sob pena de se permitir o uso
abusivo e de má-fé da fungibilidade de tutelas
913
.
910
THEODORO JÚNIOR, op. cit., 2003. p. 282.
911
SPADONI, op. cit., p. 310.
912
Os erros surgem em processos de conhecimento com pedidos liminares antecipatórios satisfativos; o
pedido liminar é feito como se antecipação de tutela fosse; porém, tratar-se-á verdadeiramente de
pretensão cautelar. Os equívocos podem aparecer, outrossim, na outra mão de direção, ou seja, quando
em ação cautelar, se o que se pretende é uma antecipação de tutela.
913
SPADONI, op. cit., p. 311.
493
Data venia, tal posicionamento destoa dos objetivos do art. 273,
§7º, do CPC, contrapondo-se aos valores da efetividade, economia e
instrumentalidade processuais. Muito embora seja louvável a intenção de
se evitar requerimentos pautados em má-fé, não se pode partir da premissa
de que todo e qualquer postulante estaria imbuído de tal motivação,
simplesmente por ter cometido erro grosseiro – ou por não haver dúvida
objetiva que justifique aquele equívoco. A esse respeito, vale lembrar,
mais uma vez, das famigeradas “ações cautelares satisfativas”, isto é,
ações que, embora seguindo rito cautelar, possuem em seu bojo pedido
liminar eminentemente antecipatório satisfativo. Tal “técnica” ainda hoje
se encontra disseminada na mente de advogados, juízes e tribunais,
mesmo após a inclusão no CPC do art. 273. A fungibilidade de tutelas
veio justamente para regularizar essas e outras situações que causavam
dúvidas e desconforto ao operador do Direito, adequando, de uma maneira
mais condizente com a visão instrumentalista do processo, as tutelas de
urgência, caso a caso.
Não se pode esquecer, ainda, de que a boa-fé sempre se
presume. Trata-se de presunção relativa (juris tantum). Tanto é assim que
aquele que alegar má-fé da parte contrária é que tem o ônus de provar
essa circunstância
914
. Logo, em caso de erro grosseiro ou inexistência de
dúvida objetiva na postulação de tutela de urgência em rito equivocado,
deverá o órgão julgador, mesmo assim, aplicar a fungibilidade de tutelas,
visando acertar a confusão. Não há, no art. 273, §7º, do CPC, intenção de
prevenir abuso de direito ou má-fé por parte daqueles que postulam
tutelas de urgência, senão desejo evidente de desburocratizar e
flexibilizar o processo.
Noutro norte, o fato de a lei ser silente quanto à necessidade de
dúvida objetiva para se aplicar a fungibilidade de tutelas, somente vem
fortalecer o posicionamento ora defendido. Quando o texto dispõe de
modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a
todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral
prevista explicitamente
915
. Não há, pois, que se restringir a aplicação do
914
NERY JUNIOR; NERY, op. cit., p. 365.
915
MAXIMILIANO, op. cit., 1994. p. 72
494
art. 273, §7º, do CPC àquelas situações de dúvida objetiva, afinal, ubi lex
non distinguit nec nos distinguere debemus (onde a lei não distingue, não
pode o intérprete fazer distinções).
Partindo desse posicionamento, é de se ressaltar, ademais, que
as ações cautelares incidentais tendem a ter o seu uso minimizado, uma
vez que, a partir da Lei n. 10.444/2002, é lícito ao autor pleitear tutela
cautelar no bojo do processo principal, sempre que presentes os
pressupostos permissivos para tanto. E tal artifício pode ser utilizado
tanto para postular medidas cautelares atípicas, como também as típicas.
No caso das últimas, pouco importa que tenham seu procedimento
regulamentado no CPC; lembre-se que o art. 273, §7º, do CPC se refere à
providência de natureza cautelar, o que não significa que o rito cautelar
deve ser também observado. Isto é, o dispositivo autoriza o deferimento
de tutela cautelar genericamente (inominadas ou nominadas),
desprezando-se os próprios procedimentos regulados no Livro III.
Obviamente que embora se despreze o procedimento enxuto das
cautelares
916
, o mesmo não se dará com as hipóteses de cabimento e
requisitos específicos previstos para as medidas cautelares típicas; esses
devem obediência à lei.
4.3.3.3 Aplicação da fungibilidade de tutelas de urgência em via
dúplice
Duas hipóteses de aplicação do art. 273, §7º, do CPC podem ser
sugeridas e, portanto, devem ser examinadas em separado, mormente em
função dos embaraços que a diferenciação de procedimentos relativos aos
processos de conhecimento e cautelar poderá suscitar.
Na primeira delas, e consoante texto expressamente adotado
pelo CPC, o juiz está autorizado – e ao que parece seria mais um dever do
que mera faculdade – a deferir medida cautelar, quando esta for requerida
a título de antecipação de tutela, obviamente se os requisitos permissivos
estiverem presentes.
916
Não parece equivocado dizer que o processo de conhecimento, detentor de cognição exauriente, pode
“absorver” o procedimento cautelar, este de cognição sumária. Não haverá aí prejuízo ao réu; deferida a
tutela cautelar no bojo do processo de conhecimento, e dela discordando o réu, poderá ele se valer dos
mecanismos processuais disponíveis para se voltar contra aquela decisão.
495
Márcio Louzada Carpena, pretendendo solução que acomode os
diferentes procedimentos, defende a aplicação da fungibilidade em termos
razoáveis, ou seja, respeitando-se a natureza de cada tutela de urgência e,
principalmente, seu aspecto formal (rito), já que isso, ainda segundo sua
opinião, permitiria uma melhor prestação jurisdicional. Pontifica o
jurista:
Nesse sentido e por conseguinte, cabe lembrar que no caso de
ser admitida a pretensão cautelar deduzida no bojo do processo
principal, enquanto requerimento equivocado de antecipação de
tutela, afastado não está o dever do juiz de, após a apreciação
da medida liminar urgente, ordenar o prosseguimento da
pretensão acautelatória com o rito do Livro III, que lhe é
próprio (prazo de contestação em 5 dias, dilação probatória
voltada aos elementos específicos – fumus e periculum –,
sentença própria proferida tão logo esteja apto o processo a ser
sentenciado, etc.), com o processamento em apenso, art. 809
(determinando o desentranhamento da peça e do despacho que
apreciou a pretensão no bojo do processo principal, autuando-
os em apartado), sendo providencial a determinação de emenda
da petição pelo autor, para bem de cumprir-se os requisitos dos
arts. 801 e 282 do CPC (acrescer o valor da causa, pedido de
citação, juntar documentos indispensáveis ao processamento
autônomo da demanda, etc.), a fim de que a postulação possa
ser, afinal, apreciada por sentença, tão logo, processado o feito
cautelar, que geralmente se vê finalizado antes do principal.
Deve-se respeitar, nesse caso, a autonomia formal da pretensão
cautelar, rito sumário, com os convenientes disso
decorrentes
917
.
Essa visão, embora formalmente inquestionável, não se coaduna
com o real propósito da Reforma, data maxima venia. Ao que parece,
buscam-se, com a adoção do mecanismo da fungibilidade de tutelas,
maiores efetividade e economia processual, conforme, aliás, já afirmado.
O respeito à autonomia formal do processo cautelar, por meio de uma
adequação de ritos, embora afinado à mecanicidade e rigidez das normas
procedimentais positivadas no CPC, pecaria por imputar ao processo
menos agilidade e rendimento. Prezar-se-ia a rotina quase inflexível das
formas processuais, em detrimento da instrumentalidade que se busca
implantar no processo
918
.
917
CARPENA, op. cit., p. 108-109
918
Nessa seara, o entendimento escorreito de João José Custódio Silveira: “Nem se argumente com a
dificuldade procedimental, ressalvando desde já que quando o §º do citado artigo refere deferir a
medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado, não indica a formação de um “incidente”
autônomo – raciocínio que contrariaria o próprio espírito da reforma –, já que optou pela
496
Essa também a posição defendida por Joaquim Felipe Spadoni,
ao analisar a hipótese de o órgão julgador receber o pedido de antecipação
de tutela, como se fosse uma ação cautelar, dando início a um processo
autônomo, ordenando a citação do réu para oferecer sua contestação, e
determinando, finalmente, o recolhimento das custas devidas, além da
autuação em apartado e em apenso. Mostrando-se contrário a essa linha,
assevera o jurista:
Primeiro, porque a intenção do legislador, manifestada
explicitamente nos motivos do projeto de lei que originou o
§7º do art. 273 do CPC, foi o de alcançar a efetividade do
processo com economia processual, que certamente não estaria
sendo atendida com a instauração do processo cautelar.
Ademais, é explícita a manifestação dos autores do anteprojeto
e projeto neste sentido, ao afirmarem que a adoção da
‘fungibilidade’ do procedimento tende a evitar à parte “a
necessidade de requerer, em novo processo, medida cautelar
adequada ao caso”
.
E continua:
Segundo, porque em outras situações excepcionais que a lei
permite ao juiz a concessão de medida cautelar incidente ao
processo principal (p. ex., o arresto previsto no art. 653 do
CPC e o seqüestro de livros, correspondência de bens do
devedor, previsto no art. 12, §4º da Lei de Falências), não se
mostra necessária a instauração de um processo autônomo para
a concessão da tutela cautelar, sendo a mesma apenas uma
decisão incidental ao processo onde se dará a tutela do direito
material alegado pelo autor
919
.
Ademais, é bom lembrar, o art. 797 do CPC já autorizava o
juízo, em situações excepcionais e expressamente autorizadas por lei, a
determinar medidas cautelares sem a audiência das partes. Ao órgão
julgador, em casos tais, é lícito deferir medida cautelar
terminologia “caráter incidental”. Quadra recordar vetusta a admissibilidade da concessão de
medidas acautelatórias no bojo do processo de conhecimento à luz do poder geral de cautela, inclusive
ex-officio. E tão pretérito quanto, lembre-se o posicionamento de Galeno Lacerda admitindo
conjugação de pedido cautelar com principal, ressalva feita às hipóteses que pudessem redundar
tumulto processual”. (SILVEIRA, João José Custódio da. A nova ordem das tutelas emergenciais:
fungibilidade e cumulação de pretensão cautelar no processo de conhecimento. Disponível em
<www.ambito-juridico.com.br>. Acessado em 05/05/2004).
919
SPADONI, op. cit., p. 313.
497
independentemente de ação cautelar. O art. 615, III, do CPC bem
exemplifica a hipótese aludida, permitindo-se ao órgão julgador deferir
medidas acautelatórias urgentes, independentemente de ação autônoma,
bastando o simples requerimento no âmago do processo de execução.
Nesse rumo, e proferindo comentários ao art. 797 do CPC,
Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery enfatizam que o
juiz age de ofício, somente se já houver ação em andamento,
sendo que a autorização contida na norma comentada só
abrange as medidas (e não ações) cautelares incidentais, não
sendo possível ao juiz iniciar, ex officio, ações cautelares
preparatórias ou antecedentes
920
.
Logo, o §7º do art. 273 do CPC veio acrescer o rol de situações
previstas na lei em que o órgão julgador se encontra autorizado a deferir
medidas cautelares, independentemente da propositura e existência de
ação cautelar autônoma
921
. Em sendo assim, uma interpretação sistemática
dos arts. 273, §7º e 797, conduzirá o julgador ao caminho seguro do
sincretismo processual, tornando desnecessária a criação de um outro
processo (cautelar), minimizando a formalidade excessiva, em prol do
estímulo e prática dos ideais de efetividade, economia e
instrumentalidade.
Diga-se, a propósito, a expressão sincretismo vem, a cada dia,
ganhando força na linguagem jurídica, principalmente no que se refere à
relação existente entre os processos de conhecimento e execução – já se
fala, inclusive, em princípio do sincretismo entre cognição e execução
922
.
920
NERY JUNIOR; NERY, op. cit., p. 1084-1085.
921
Se a tutela cautelar evidenciar-se necessária logo na propositura da ação principal, lícito será ao
requerente cumular os pedidos principal e cautelar. A análise dos arts. 292 e 273, §7º, do CPC, abaliza
essa idéia. Veja-se: a.) os pedidos principal e cautelar, respeitados os limites impostos pelo ordenamento
jurídico, normalmente mostram-se compatíveis, coexistindo harmonicamente, mesmo que realizados por
demandas diversas; b.) seguindo a regra geral de competência, o juízo competente para conhecer do
pedido principal será o mesmo que examinará o pleito cautelar; e c.) não há, por fim, falar-se em choque
de procedimentos; pouco importa que o processo de conhecimento tenha um rito diferenciado do
cautelar. Lembre-se, a esse respeito, que o art. 273, §7º, do CPC não faz qualquer referência ao
procedimento cautelar, mas, sim, à medida cautelar. Portanto, pretendeu o legislador inserir a
possibilidade de realização e deferimento de medida cautelar sob uma roupagem diversa daquela dos
procedimentos cautelares.
922
José Miguel Garcia Medina, em obra de peso, reo processo de execução através de uma ótica
evolucionista, salientando tratar-se o sincretismo processual um verdadeiro princípio do processo civil
498
Se utilizada coerentemente, a fórmula do sincretismo certamente
propiciará ao processo maior celeridade à satisfação da tutela
jurisdicional, unificando técnicas até então tidas como quase
inconciliáveis, harmonizando-as como notas de um mesmo acorde ou
cores numa feliz combinação – valendo-se aqui de poético fragmento de
consagrado romance de Morris West.
A outra hipótese, nascida de uma interpretação extensiva do §7º
do art. 273 do CPC, e se porventura aceita, autorizaria o juízo a conceder
antecipação de tutela, mesmo se reclamada no bojo de um processo
cautelar. Poderia o magistrado, ou tribunal, deferir providência de
natureza antecipada satisfativa, rogada em processo cautelar, quando
presentes os respectivos pressupostos para tanto?
Mirando-se na solução da questão, alguns pontos devem ser
discutidos acerca da a) possibilidade de uma interpretação extensiva do
art. 273, §7º, do CPC; b) dos pressupostos que autorizam o deferimento
da tutela antecipada; e c) da necessidade – ou não – de adequação de
procedimentos.
É de se perceber, antes de tudo, que o texto normativo menciona
uma hipótese apenas: a de se permitir fungibilidade de tutelas, quando o
autor requerer medida cautelar como se antecipação de tutela fosse. Não
faz menção à hipótese, não rara ainda hoje, de se pleitear antecipação de
tutela no bojo de um processo cautelar.
Contudo, a doutrina autorizada, em sua maioria, já se ergueu
contra uma possível interpretação literal do art. 273, §7º, do CPC.
Acertadamente, o entendimento prevalecente exalta-se no rumo de que a
fungibilidade de tutelas deve ser vista em mão dupla, admitindo-se,
assim, sua utilização também naquelas situações em que se reclama
antecipação de tutela transvestida em pedido cautelar liminar. Esse,
outrossim, o posicionamento de Cândido Rangel Dinamarco, ao afirmar
não haver fungibilidade em uma só mão de direção
923
.
moderno. (MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil. Princípios fundamentais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002).
923
DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 93.
499
Não se pode, todavia, descurar o fato de que a tutela antecipada
foi projetada para ser utilizada dentro de um processo de conhecimento,
com ritos próprios e distintos daqueles regulados no processo cautelar.
Não seria conveniente criar-se uma figura atípica, um modelo novo não
refletido na legislação processual, oriundo de um cruzamento entre os
processos de conhecimento e cautelar. Pensar assim corresponderia, em
última análise, a revivificar a ação cautelar satisfativa, criação da
jurisprudência para saciar necessidades urgentes de prestação
jurisdicional, numa época em que inexistia o instituto da tutela
antecipada.
Conforme se verá adiante, a admissão do conhecimento da tutela
antecipada, no bojo de um processo cautelar, mostra-se justa desde que,
após tal apreciação, ordene o juiz a emenda da inicial, de modo que o
requerente amolde sua pseudo-ação cautelar ao processo adequado (de
conhecimento). Veja-se que em se reconhecendo essa segunda mão de
direção do art. 273, §7º, do CPC, estar-se-á, em verdade, aceitando-se
uma fungibilidade de processos – fungibilidade esta que, diferentemente
do que ocorre com a fungibilidade de tutelas, depende de atuação do
autor, sendo vedado ao juiz, de ofício, efetivá-la.
Mas como legitimar tal caminho, se a própria lei não o indicou?
Vê-se, hoje, um desapego, cada vez mais expressivo, à literal
interpretação da lei pelos tribunais nacionais; o pensamento positivista
estrito vem, dia-a-dia, cedendo lugar a uma interpretação compromissada
com os princípios – principalmente os constitucionais
924
. O processo civil
não se encontra alheio a essa constatação; ao contrário, os ideais de
efetividade e instrumentalidade vêm embrenhando-se, com vigor, na
924
Nesse sentido, a lição precisa da professora Maria Helena Diniz: “Ao Poder Judiciário está, pois, reservada
a grande responsabilidade de adequar o direito, quando houver omissão normativa ou quando a sua
eficácia apresentar sintomas de inadaptabilidade em relação à realidade fático-social e aos valores
positivos, mantendo-o vivo. O magistrado deverá determinar o direito que há de valer no caso sub
judice, devendo para tanto apurar a existência de norma, determinando seu sentido, e decidir se a lei é
aplicável ou não, ao caso.” (DINIZ, op. cit., 1994. p. 171). Em crítica à interpretação inflexível, José de
Albuquerque Rocha leciona a respeito da lei nova: “No Brasil há o hábito de tratar o Direito apenas do
ponto de vista dogmático, estudando as normas com independência das realidades social, política,
econômica, ideológica e cultural, como se estas fossem metajurídicas. Entendemos ser o Direito parte
da sociedade da qual opera. O adequado entendimento exige o conhecimento da natureza da realidade
social global.” (ROCHA, José de Albuquerque. A lei de arbitragem. São Paulo: Malheiros, 1995. p.
25).
500
ciência processual, servindo verdadeiramente como expedientes
necessários ao combate da patologia – já registrada anteriormente – que
veio a atingir o processo, prejudicando, destarte, a prestação jurisdicional
adequada e tempestiva.
Com efeito, a CF estabeleceu, em seu art. 5º, XXXVI, que “a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito”. Revela-se, daí, o princípio constitucional do direito à ação,
evidenciando, dentre outras conseqüências, ser plenamente possível uma
interpretação extensiva do art. 273, §7º, do CPC, a ponto de permitir a
apreciação de tutela antecipada formulada num processo cautelar. Não se
quer aqui defender a idéia absurda de que as leis processuais são
descartáveis, importando apenas, e sempre, a prestação da tutela
jurisdicional – pensar assim seria negar todo o desenvolvimento da
ciência processual alcançada até hoje. Obviamente não foi essa, nem de
longe, a intenção do legislador constitucional. Pretende-se tão-somente
evidenciar que, em casos onde a urgência reina, o juiz não deverá se ater
apegado demasiadamente à forma; impõe-se a ele, ao contrário,
preocupar-se com o jurisdicionado, buscando avaliar aquela situação
emergencial posta ao seu conhecimento, desprezando, apenas
inicialmente, o rótulo dado à ação. Inicialmente porque após a apreciação
do pedido antecipatório satisfativo – que, nesse contexto, encontra-se
numa roupagem de pedido cautelar –, deverá o juízo – e esse é o ponto
nevrálgico – ordenar a adequação procedimental por parte do autor para,
só depois, determinar a citação do réu. Veja-se que essa postura valoriza a
norma constitucional e não atinge, ao menos mortalmente, as regras
processuais. Afinal, tanto no processo cautelar como no de conhecimento,
existe a possibilidade de apreciação e deferimento de pedido liminar
urgente; por que, então, não apreciar liminarmente um pedido
antecipatório satisfativo, mesmo quando formulado em modelo impróprio
– no âmago de um processo cautelar –, se o juízo, em momento
imediatamente posterior a essa apreciação, poderá determinar o
acertamento do aspecto formal, evitando, assim, eventuais prejuízos ao
réu que – diga-se – sequer fora ainda citado? Nessa perspectiva, é crível a
501
conclusão de que não é aconselhável ao juiz fundamentar sua suposta
impossibilidade de apreciar o pedido antecipatório satisfativo, feito no
bojo de um processo cautelar, com base no argumento de que “a lei
processual não previu tal caminho”, porquanto é a própria Carta Magna
que reza que lei alguma excluirá da apreciação do Poder Judiciário
“ameaça de direito”. Tal fundamentação mostrar-se-ia evasiva e, pior,
manifestamente irresponsável.
Sob outra ótica, autorizado está o julgador a valer-se do
princípio da proporcionalidade, visando justificar os passos seguidos na
trajetória relegada pela lei processual. Obviamente, se sopesados os
interesses em jogo na demanda, poderá o juiz – se aberto às
possibilidades que poderão surgir por meio da utilização do princípio
aludido – decidir, com acerto, qual a melhor solução para o caso concreto:
privilegiar um pedido antecipatório satisfativo urgente, muitas vezes
ligado à própria vida, saúde ou dignidade do requerente, ou, por outro
lado, seguir rigorosamente a direção traçada pelo ordenamento processual,
extinguindo de plano o processo. O apego à primeira opção é, sem dúvida,
a via mais segura.
Portanto, muito embora o legislador tenha previsto apenas uma
hipótese de aplicação à fungibilidade de tutelas, tal mecanismo também
deverá ser utilizado nos casos em que a situação inversa àquela contida no
texto da lei ocorrer
925
. E, para que o órgão julgador defira a antecipação,
total ou parcial, dos efeitos da tutela pretendida, deverão estar presentes
os pressupostos autorizadores da medida – prova inequívoca da
verossimilhança da alegação e fundado receio de dano irreparável ou de
difícil reparação. Pouco importa, destarte, se o pedido de antecipação está
delineado no corpo de uma ação de conhecimento ou cautelar. Por serem
925
José Roberto dos Santos Bedaque, refletindo acerca da ciência processual moderna, leciona que “a
principal missão do prossessualista é buscar alternativas que favoreçam a resolução dos conflitos. Não
pode prescindir, evidentemente, da técnica. Embora necessária para a efetividade e eficiência da
justiça, deve ela ocupar o seu devido lugar, como instrumento de trabalho, não como fim em si mesmo.
Não se trata de desprezar os aspectos técnicos do processo, mas apenas de não se apegar ao
tecnicismo. A técnica deve servir de meio para que o processo atinja seu resultado”. Acrescenta ainda
que “é preciso conciliar a técnica processual como seu escopo. Não se pretende nem o tecnicismo
exagerado, nem o abandono total da técnica. Virtuoso é o processualista que consegue harmonizar
esses dois aspectos, o que implicará a construção de um sistema processual apto a alcançar seus
escopos, de maneira adequada.” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência
do direito material sobre o processo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 44-45).
502
mecanismos diversos de imunização do periculum in mora, os requisitos
peculiares de cada uma das tutelas deverão ser respeitados
independentemente de onde se localizar o pedido de urgência.
Como já dito alhures, os pressupostos ensejadores do
deferimento do provimento antecipatório são mais rigorosos que aqueles
que autorizam a concessão da tutela cautelar.
Por essa razão, e novamente pautando-se nos objetivos maiores
do art. 273, §7º, do CPC (efetividade e economia processual), não deverá
o órgão julgador, de imediato, indeferir o pedido antecipatório contido no
bojo de ação cautelar, mesmo se entender ausentes os requisitos que
autorizem o deferimento da medida. Em casos tais, a lógica e a boa-fé que
se presume deter o postulante, conduz à conclusão de que aquele pedido
originou-se de equívoco, sem qualquer motivação desleal.
Consoante pontifica Joaquim Felipe Spadoni, o juízo,
ao analisar o pedido de tutela urgente, entendendo ser caso de
antecipação de tutela, deverá, antes de indeferir o pedido por
ausência de prova inequívoca, permitir ao autor que emende a
petição, facultando-lhe, então, cumprir o requisito da medida
considerada a adequada para o caso concreto. Acaso não sejam
apresentadas as provas no prazo estipulado, ou se elas forem
insuficientes para os fins de antecipação de tutela, então
poderá o magistrado indeferir o pleito, por falta de um dos
requisitos impostos pelo art. 273 do CPC
926
.
Noutra seara, não se pode descurar que os processos de
conhecimento e cautelar, além de objetivos diversos, possuem ritos
peculiares e diferenciados. O processo de conhecimento, em que se busca
a definição de qual parte detém a razão, necessita de uma análise mais
acurada dos fatos e provas, de modo a garantir a certeza e segurança na
decisão. Já o processo cautelar, por ter função preponderantemente
vinculada ao afastamento do periculum in mora que ameaça a utilidade e
eficiência do processo principal, prescinde da certeza absoluta,
contentando-se com indícios ou probabilidades suficientes para a
concessão da cautela. O primeiro vale-se de cognição exauriente; o
segundo preza-se pela sumária.
926
SPADONI, op. cit., 2003. p. 316.
503
A par disso, prejuízo inexiste para o réu, quando a tutela
cautelar é deferida no bojo de um processo de conhecimento, em
situações condizentes com a hipótese analisada anteriormente
927
. Contudo,
é de se atentar que o mesmo não se dará quando a concessão da
antecipação de tutela se der no âmago de ação cautelar preparatória
928
,
uma vez que, se o procedimento for mantido (cognição sumária), o réu
certamente terá o seu direito de defesa prejudicado.
A sumariedade, conforme anota Victor A. A. Bomfim Marins,
diz respeito à necessidade de urgência. A tutela cautelar, com
efeito, é sempre urgente. A adoção do procedimento comum em
tema de cautelaridade significaria comprometer seriamente a
eficiência do instituto, justamente concebido para evitar
também os perigos advenientes da excessiva demora na
prestação jurisdicional. Por causa disso é que no processo
cautelar não só o rito é sumário, mas também o é a cognição. O
procedimento abreviado proporciona julgamento rápido. O
conhecimento sumário, de sua vez, descomprometido com a
927
Possível seria, para desbancar essa afirmação, questionar-se como se daria a adequação dos efeitos da
apelação de sentença que julgou processo de conhecimento, mantendo decisão concessiva de tutela
cautelar – ou deferindo a cautelaridade na própria sentença –, ou revogando-a – ou mesmo indeferindo
o pedido cautelar naquele momento. Isto porque, o art. 520, IV, do CPC prevê que a apelação será
recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença que decidir o processo cautelar. Ora, se
o processo é de conhecimento, mas o pedido de tutela cautelar foi decidido em seu bojo, como definir
os aspectos relativos aos efeitos da apelação que incidirão em tais casos?
O problema proposto, contudo, comporta solução simples. Basta lembrar, primeiramente, que ambas as
tutelas – antecipada satisfativa e cautelar – correspondem a um mesmo gênero, o das tutelas de
urgências. Em sendo assim, os dispositivos que regulamentam a tutela cautelar podem ser aplicados
subsidiariamente à solução de questões surgidas em decorrência da aplicação da tutela antecipada. De
igual forma, pode-se analogicamente solver problemas nascidos da utilização da tutela cautelar através
de dispositivos, ou soluções jurisprudenciais práticas, advindos para a resolução de conflitos vinculados
com o emprego das tutelas antecipadas, desde que, obviamente, não haja antinomias.
Não é incomum, na praxe forense, a concessão de tutela antecipada na própria sentença. A
jurisprudência e a doutrina, conferindo ao art. 520, VII, do CPC interpretação mais condizente com a
realidade, vêm entendendo que a apelação interposta contra tal sentença será recebida no efeito
devolutivo quanto à parte que concedeu a tutela antecipada, e no duplo efeito quanto ao restante. Por
analogia, pode-se utilizar dessa simples solução nas situações em que o órgão julgador conhecer do
pedido cautelar (julgando-o efetivamente, ou apenas mantendo ou revogando decisão anterior) em
sentença que colocar termo ao processo principal. A apelação interposta contra essa sentença deverá,
pois, ser recebida apenas no efeito devolutivo quanto à parte que impugnar o provimento cautelar,
sendo, porém, recebida nos efeitos legais – em ambos ou apenas no devolutivo, dependendo da natureza
da ação – quanto à porção que se voltar contra a ação principal.
928
Em sendo o pedido antecipatório formulado em ação cautelar incidental, mais sensata a posição de
Joaquim Felipe Spadoni. Leciona ele: “[...] diante de uma petição inicial de ação cautelar e
entendendo que a medida correta é a antecipação de tutela, deverá o magistrado recebê-la como
simples petição incidente do processo principal, não determinando citação ou processamento em autos
apartados. Se assim já estiver autuada, deverá determinar providências para o cancelamento de seu
registro e autuação, além de sua juntada aos autos do processo principal. Independentemente desses
atos cartorários, que podem ser realizados posteriormente, deverá passar à análise do pedido da tutela
urgente, verificando se estão presentes os requisitos que autorizam a antecipação de tutela, para que,
caso positivo, seja deferida e efetivada, dando-se seguimento ao procedimento normal do processo”.
(SPADONI, op. cit., 2003. p. 316).
504
certeza, funda-se em juízo de probabilidade, de
verossimilhança
929
.
A esse respeito, vale dizer, o prazo de contestação no processo
cautelar é de 5 (cinco) dias, diferentemente do que ocorre com o processo
de conhecimento que, por possuir cognição exauriente, fazendo inclusive
coisa julgada material, exige uma defesa com maior expressividade e
amplitude, justificando-se, então, um prazo mais dilatado para a
apresentação da contestação.
Qualquer interpretação legislativa que se preze deve atentar-se
para o texto constitucional e, aqui, está em jogo, principalmente, o
princípio do contraditório. Destoaria dessa realidade a decisão que,
deferindo o pedido antecipatório de tutela no bojo do processo cautelar
preparatório, mantivesse o procedimento cautelar, dando possibilidade à
criação de um rito sumário teratológico – com cognição igualmente
sumária –, já que não previsto em lei, para solucionar situação
manifestamente desarmônica à finalidade do processo cautelar.
Certamente que se deve dar atenção à efetividade e economia processuais;
entretanto, tais ideais não possibilitam o desprezo a um princípio
constitucional caro à sociedade.
Deveras, o processo, em conformidade com a profundidade da
cognição realizada nos seus procedimentos – normalmente vinculada com
a natureza da tutela perseguida –, dará maior, ou menor, abrangência ao
princípio do contraditório – sem nunca o desprezar, porém. A par disso, a
lição lúcida de Araken de Assis:
Com certeza, é preferível fórmula mais branda e equilibrada
para retratar a flagrante situação de desvantagem do autor, em
lugar da cáustica e peremptória afirmativa de que “a demora
sempre beneficia o réu que não tem razão”. Implicitamente que
seja, a frase sugere juízo positivo, a priori, quanto à razão do
autor, e negativo respeitante ao réu, obviamente inadmissível,
na abertura do processo, e sujeito a numerosas e bem
documentadas exceções. E aduba o terreno já fértil da
ideologia favorável à marginalidade do réu, indigno de toda
tutela e desmerecedor das garantias constitucionais, incômodo
figurante processual, cuja participação só atrapalha a
929
MARINS, Victor A. A. Bomfim. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000. v. 12, p. 145.
505
efetividade do processo. Infelizmente, ainda não se inventou o
processo sem réu, tão ao agrado dos epígonos do autoritarismo;
e, felizmente as garantias processuais do réu ainda se situam
no cimo da escala de valores da humanidade
930
.
Destarte, mesmo sendo o processo um instrumento a serviço da
jurisdição, tal não exprime a possibilidade de o juiz, ou tribunal, alterar
os procedimentos nele entabulados ao seu exclusivo talante – tal somente
é possível naquelas situações devidamente previstas em lei, a exemplo da
autorização contida no art. 277, §4º, do CPC. Cada procedimento é criado
por uma razão específica, normalmente ligada à própria tutela substancial
a ser prestada – não detém o órgão julgador o poder de conceber
procedimentos.
O processo cautelar revela-se como um modelo utilizado pelo
órgão julgador para analisar e julgar pedidos acautelatórios urgentes.
Nele, as partes não procuram resolver o conflito de direito substancial que
as aflige. Trata-se de alegações de mera verossimilhança ou
probabilidade, no máximo. A defesa, outrossim, segue a mesma linha,
questionando a existência do fumus boni iuris e periculum in mora;
apenas isso.
A melhor doutrina – repita-se – já vem pacificando o
entendimento de que o §7º do art. 273 do CPC realmente deve funcionar
em mão dupla. Isto é, feito um pedido cautelar no bojo de um processo de
conhecimento, deverá o juiz conhecê-lo e decidir sobre ele
931
; se o pleito
é satisfativo antecipatório, mas realizado num rito evidentemente
cautelar, impõe-se ao órgão julgador, igualmente, examinar tal pedido,
levando-se em consideração, por óbvio, a presença dos requisitos
ensejadores à sua concessão
932
. Contudo, neste último caso, apenas
930
ASSIS, op. cit., p. 42-43.
931
Essa parece ser a posição da professora Teresa Arruda Alvim Wambier. Ensina ela acerca do assunto:
“Esse dispositivo, a nosso ver, tem grande alcance e significa, em última análise, que se podem
formular pedidos de natureza cautelar no próprio processo de conhecimento.” (WAMBIER, Tereza
Arruda Alvim. O princípio da fungibilidade sob a ótica da função instrumental do processo. Revista dos
Tribunais n. 821. São Paulo: Revista dos Tribunais, [s.d.]. p. 46).
932
Conforme sugerido alhures, em caso de não estarem presentes os pressupostos autorizadores da
concessão da tutela antecipada, não deverá o órgão julgador, de logo, indeferir o pedido. Melhor será
ordenar a emenda da inicial como um todo, ressaltando-se inclusive a necessidade de se adequar o
pedido antecipatório aos requisitos que permitem sua concessão, uma vez que provavelmente o
506
poderá assim agir ao receber a petição inicial, antes da citação do réu –
momento em que deverá ordenar, antes (ou após) do conhecimento do
pedido liminar, a emenda da inicial. Jamais poderá o órgão julgador
ordenar a emenda da inicial, ou, ainda, adequar, de ofício, o rito de
cautelar para ordinário, após a citação e apresentação da defesa, sob
pena de lesar direitos constitucionais da parte contrária.
Em que pese esse entendimento, posicionamento diverso
predominou em recente acórdão, proferido no Tribunal de Alçada de
Minas Gerais, em que se negou provimento a recurso de agravo de
instrumento contra decisão que, após deferir pedido de antecipação de
tutela no bojo de um processo cautelar, alterou ex officio o rito cautelar
para o ordinário, mesmo depois de efetivada a citação e apresentada a
defesa. Essa a ementa:
Agravo. Antecipação de tutela para realização de cirurgia
plástica decorrente de cirurgia bariátrica. Conversão do rito
cautelar em ordinário após apresentada contestação.
Cerceamento de defesa. Inocorrência. Inexistência de
irreversibilidade. Presunção.
Diante da conversão do rito cautelar em ordinário e ao exame
da cópia da contestação, tem-se que a ora agravante bem
exerceu o seu direito de defesa, abrangendo, inclusive, a
questão de fundo, tendo requerido provas, pelo que não restou
caracterizado o cerceamento de defesa.
Presumindo-se que já realizada a cirurgia plástica decorrente
ou complementar de anterior cirurgia baríatrica autorizada pelo
Plano de Saúde, deve-se aguardar o provimento final da ação.
Inexistência de informações seguras de que a postergação da
cirurgia não comprometeria o estado de saúde da autora.”
(Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Acórdão n. 426.617-3,
Sexta Câmara Cível, Relatora Juíza Heloíza Combat, julgado
em 11 de dezembro de 2003).
Referido aresto chancelou a possibilidade de o próprio juiz
“emendar” a inicial – ou adequá-la quando quiser, independentemente de
autorização legislativa. Não só isso, porém: autorizou-se tal adequação ex
officio inclusive após a citação e apresentação da defesa, o que, data
venia, vai contra a lógica estabelecida pelo CPC, ferindo, ademais, o
princípio constitucional do contraditório, como frisado alhures.
postulante procurou demonstrar os requisitos que autorizam o deferimento da cautelar que, como se
sabe, são diversos da outra espécie de tutela de urgência.
507
A apreciação de pedido antecipatório, realizado num processo
de natureza cautelar, somente será tecnicamente possível após o órgão
julgador ordenar a emenda da inicial, para adequá-la ao processo de
conhecimento, antes, obviamente, da citação do réu – admita-se, ainda, a
possibilidade de o juiz, ou tribunal, deferir a tutela antecipada e, após,
ordenar a emenda da inicial, antes, todavia, da citação do réu. Se deferiu
a tutela antecipada satisfativa e, após, ordenou a citação, mantendo o rito,
outra alternativa não lhe restará senão a de revogar a decisão; em casos
tais, não há como se defender que o equívoco do postulante apenas se
restringiu ao rótulo da medida de urgência. Em verdade, a desatenção não
foi apenas do autor, mas também do órgão julgador que deixou de apreciar
a natureza da tutela de urgência logo no recebimento da inicial.
A inicial, designada sob a nomenclatura de “ação cautelar”,
estimula o surgimento de um processo pautado por rito e cognição
sumários. Terá o réu, nessas circunstâncias, apenas 5 (cinco) dias para se
defender; ademais, pelo exíguo tempo, a contestação certamente não
abordará todos os pontos que uma ação de conhecimento, com cognição
exauriente, mereceria. Por óbvio, manifesta será a lesão ao princípio do
contraditório – repita-se uma vez mais.
Nelson Nery Júnior, com a precisão que lhe é peculiar, leciona
que o contraditório, como decorrência do princípio da paridade das partes
(igualdade de armas),
significa dar as mesmas oportunidades para as partes e os
mesmos instrumentos processuais para que possam fazer valer
os seus direitos e pretensões, ajuizando ação, deduzindo
resposta, requerendo e realizando provas, recorrendo das
decisões judiciais etc
933
.
Com efeito, se o pedido de antecipação de tutela for apreciado
após a citação e protocolização da contestação, impossível restará a
adaptação de procedimento. O Código de 1973 incorporou, desde seu
advento, a técnica do saneamento difuso do processo, tendo como marco
inicial o ato de conhecimento da peça inicial, sendo que o seu
933
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 7. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002. p. 153.
508
recebimento ocorrerá, somente, se estiverem presentes os pressupostos
processuais e as condições da ação. É justamente nesse primeiro momento
(recebimento da inicial) que o magistrado deverá atentar para o exame dos
requisitos de fundo da peça (art. 282, CPC), documentos indispensáveis à
sua propositura (art. 283) e aos pressupostos processuais e às condições
da ação
934
.
Se a hipótese vertente permitir a emenda, correção ou omissão,
o juiz tem o dever de utilizar-se da regra prevista no art. 284 do CPC e
conceder ao autor o prazo de 10 (dez) dias para cumprir a determinação,
sob pena de indeferimento da inicial
935
. Esse é o momento processual
adequado; citado o réu, e a contestação apresentada, não há mais que se
falar em emenda da inicial.
O processo é, sim, um instrumento; todavia, não pode o órgão
julgador, amparando-se nessa premissa, utilizá-lo como uma verdadeira
armadilha a impedir que o réu defenda-se de maneira satisfatória e
condizente com a realidade por ele vivenciada. Lembre-se da existência
das normas previstas na CF que, indubitavelmente, merecem devido
respeito também na seara processual.
Nem se queira defender que o art. 125, II, do CPC permitiria a
substituição de um rito pelo outro, como, aliás, já decidiu a
jurisprudência. Quando o art. 125, II, do CPC prevê que compete ao juiz
velar pela rápida solução do litígio, não está a conceder-lhe um poder
discricionário tamanho, capaz, inclusive, de alterar procedimentos ao seu
arbítrio. Consoante leciona Antônio Dall’Agnol, o verbo utilizado pelo
legislador – “velar” – significa “estar alerta”, “vigiar”, “zelar”,
denunciando constante preocupação e cuidado
936
. Visa a lei a que se
empenhe o juiz na mais rápida solução da lide; contudo, isso não significa
atropelar direitos processuais e constitucionais manifestos. Pertinente, na
defesa da tese que se prega, a lição de Hélio Tornaghi:
934
FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001. v. II, t. II, p. 295.
935
Ibid., p. 295.
936
DALL’AGNOL, Antônio. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001. v. 2, p.108.
509
O acerto da decisão prima sobre a sua presteza. É preciso que a
ligeireza não se converta em leviandade, que a pressa não
acarrete a irreflexão. O juiz deve buscar a rápida solução do
litígio, mas tem de evitar o açodamento, o afogadilho, a
sofreguidão. Deve ser destro, sem ser precipitado; pontual, sem
imprudência. O juiz inconsiderado é ainda pior que o vagaroso
[...]
937
.
É necessário que se diga, o órgão julgador, depois da inserção
do art. 273, §7º, do CPC, deverá manter-se mais atento, analisando
efetivamente se a peça inicial apresenta todos os seus componentes
obrigatórios – o que, lembre-se, é dever seu – e, em se tratando de ação
cautelar preparatória, se o pedido liminar nela contido não representa, em
verdade, um pleito antecipatório satisfativo. Percebido o defeito –
procedimento inadequado à natureza da causa –, deverá ordenar a emenda
da inicial para que o postulante possa adaptar sua pseudo-ação cautelar ao
procedimento conveniente – admitindo-se, ainda, possa o juízo deferir a
tutela antecipada, se presentes os requisitos, para, após, ordenar a
emenda; nunca, porém, permitir a adequação do procedimento (ou adequá-
lo ele próprio) após a citação e protocolização da defesa.
Deveras, a fungibilidade das tutelas de urgência apresenta-se
como um mecanismo moderno e bem intencionado, a contribuir com a tão
almejada efetividade da prestação jurisdicional, desde que apegado a uma
exegese adequada, de modo a preservar direitos constitucionais inerentes
ao Estado Democrático de Direito. A ampliação dos poderes do juiz, se
escorada nas idéias de instrumentalidade e efetividade, é sempre bem-
vinda; contudo, mister que o magistrado esteja à altura de seu tempo,
preparado e ciente de que o alargamento de poderes acarreta, igualmente,
maiores responsabilidades (principalmente sociais).
4.3.4 A tutela cautelar de antecipação de provas
Sabe-se que o processo é dividido em fases, de modo que,
ordinariamente, há uma fase reservada para a realização das provas.
937
TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975-
1976. p. 382.
510
Contudo, em circunstâncias excepcionais, é possível à parte interessada
postular, por intermédio de um processo próprio e antes da aludida fase
destinada à produção probatória, a coleta de provas necessárias à
convicção do juiz, no julgamento do processo principal
938
.
Busca-se, com isso, pretensão destinada à segurança da prova,
sem, contudo, antecipar-se ao julgamento da pretensão de direito
material. Diante de um periculum in mora que assola, ameaça o resultado
do processo principal – ajuizado ou a ser ajuizado –, o interessado poderá
promover ação cautelar de antecipação de provas, destinada a imunizar o
propenso direito perseguido – ou a ser perseguido –, protegendo-o.
Ressalte-se que essa ação cautelar pode ser ajuizada tanto
antecipada (preparatória) quanto incidentalmente, mas sempre antes da
fase processual específica destinada à colheita da prova que se pretende
ver antecipada.
Conquanto exista alguma controvérsia, essa ação possui
legítima natureza cautelar, sobretudo porque não acelera a prestação
jurisdicional postulada no processo principal, limitando-se a satisfazer
uma necessidade emergencial, destinada a evitar o provável perigo de se
tornar impossível, ou falha, a produção de uma prova específica, acaso se
aguarde a propositura da ação principal, ou a chegada da fase
procedimentalmente adequada para a produção de provas. Não serve essa
tutela cautelar à resolução da crise de direito material (ou a sua
satisfação) discutida no processo principal, mas, sim, meramente, a
assegurar o resultado útil e eficiente do processo em que esse direito
material é discutido ou se tenta sua satisfação.
938
Nas precisas palavras de Ovídio A. Baptista da Silva, na “asseguração cautelar de provas, o que se
pretende é tão-somente documentar algum fato cujo desaparecimento seja provável, a fim de poder-se
depois utilizá-lo como prova.” E continua: “Tendo-se em conta que o procedimento probatório
apresenta, pelo menos, três momentos perfeitamente conhecidos e distintos, que são a proposição, a
admissão e a produção da prova (Moacyr Amaral Santos, Prova Judiciária no Cível e Comercial,
1952, tomo I, §154), temos de concluir que, na chamada instrução preventiva ad perpetuam
memoriam, nenhum desses momentos está inteiramente presente. O juízo sobre a admissibilidade da
prova que corresponde ao momento de sua admissão na causa é reservado ao juiz do processo
principal. De igual modo, sua avaliação dentro do contexto probatório onde ela é produzida, caberá
indiscutivelmente ao juiz da causa principal [...]). E a própria propositura da prova haverá de ser feita
na demanda onde ela deva ser produzida”. (SILVA, Ovídio A. Baptista. Do processo cautelar. 3. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 387).
511
A preventividade, uma das características frisantes de toda
tutela acautelatória, é quase palpável aqui. A ação cautelar de antecipação
de provas não tem por escopo satisfazer pretensões, mas, sim, apenas
assegurar, acautelar o direito subjetivo resistido ou insatisfeito. Busca-se
prevenir uma situação; postula-se evitar que o resultado do processo não
seja útil e efetivo. É caso evidente de “segurança para execução” e não de
“execução para a segurança”.
Essa ação cautelar tem cabimento qualquer que seja a natureza
do processo principal – já proposto ou a ser ajuizado –, detendo
legitimidade para ajuizá-la tanto aquele que é, ou será, autor da ação
principal, quanto aquele outro que é, ou será, réu na mesma ação.
Conquanto não haja necessidade de se respeitar o prazo
entabulado no art. 806 do CPC, mostra-se imprescindível a demonstração
dos requisitos autorizadores do deferimento de qualquer tutela cautelar, a
saber, o fumus boni juris e o periculum in mora. Ressalte-se, contudo,
que, por ser uma medida cautelar, cuja eficácia não restringe ou
constringe bens ou direitos, a doutrina e jurisprudência aceitam menor
rigor na demonstração de tais requisitos.
Por se tratar de uma tutela cautelar típica, o periculum in mora,
caracterizador de toda e qualquer medida acautelatória, encontra-se
delineado de forma específica, nos arts. 847 e 849 do CPC. Aponte-se,
porém, que essa opção legislativa, rumo à especificidade das hipóteses do
periculum in mora, não limita o julgador. E isso porque as situações
concretas, a surgirem no dia-a-dia da vida em sociedade, certamente
extrapolam a criatividade do legislador, de modo que ao juiz deve ser
garantida liberdade de atuação, permitindo-lhe adequar a letra fria da lei à
realidade do mundo sensível.
De qualquer modo, o legislador processual indica que inquirição
de testemunhas, ou o interrogatório da parte, serão antecipados quando: a)
tiver de ausentar-se (art. 847, I); ou b) por motivo de idade ou de moléstia
grave, houver justo receio de que ao tempo da prova já não exista, ou
esteja impossibilitada de depor (art. 847, II). Por outro lado, o exame
pericial poderá ser antecipado, quando houver “fundado receio de que
512
venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos
na pendência da ação” (art. 849).
A sentença produzida nas ações de antecipação de prova é
apenas homologatória. Tão-somente reconhece a eficácia dos elementos
colhidos para produzir efeitos na demanda principal. Ao juiz não é lícito
valorar a prova. Não lhe cabe analisar sua veracidade ou conseqüências
sobre o processo principal. Trata-se de sentença cujo efeito predominante
é constitutivo, porquanto pré-constitui prova judicial a ser utilizada no
futuro. Em verdade, caberá ao juiz, no momento de proferir a sentença do
processo principal, valorar as provas produzidas no processo cautelar
939
.
Proferida a sentença, os autos permanecerão em Cartório (art.
851). Em tendo sido a ação principal proposta, dar-se-á o apensamento
aos autos do processo cautelar nela. Caso contrário, apenas se aguardará a
futura utilização dos elementos produzidos como prova, quando vier a ser
proposta a ação principal. Aos interessados, porém, é lícita a obtenção das
certidões que desejarem (art. 851).
4.3.4.1 A tutela cautelar de antecipação de provas a serviço do
fumante
Não raro fumantes falecem no curso de ações indenizatórias por
eles ajuizadas contra a indústria do fumo, notadamente porque o
tabagismo relegou-lhes o vigor e a saúde.
Tal situação acarreta certamente dificuldades probatórias aos
herdeiros, cuja habilitação, no processo, faz-se necessária como requisito
de seu prosseguimento. Às vezes, a morte se dará antes de iniciada a fase
probatória, de sorte que os fatos constitutivos do direito do falecido autor
não restaram ainda demonstrados; igualmente, nesse momento carecem de
939
Cite-se, a respeito, Pontes de Miranda: “A ação tem a finalidade de suscitar enunciados de fato
(comunicações de conhecimento) sobre temas probatórios, sem qualquer preestabelecimento de sua
atendibilidade [...]. Essa ponte é extremamente importante. Uma coisa é a produção; outra a
admissibilidade; e outra a atendibilidade da prova. As ações do art. 846, raramente alcançam
qualquer resolução judicial sobre a sua admissibilidade (à sentença, não ação principal, cabe apreciá-
la), e só em casos expressamente previstos em lei chegam a algum julgamento sobre a atendibilidade
das provas de que se trata”. (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao código de
processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1976. t. XII, p. 253).
513
provas os fatos extintivos ou impeditivos do direito do autor da ação,
esses que favoreceriam a ré.
Não que a prova dos fatos necessários à obtenção de uma
sentença de procedência esteja fadada ao insucesso, sempre que um
fumante, autor de uma dessas ações, vier a morrer. Ocorre, porém, que as
dificuldades a serem encontradas por aqueles que assumem o pólo ativo
da ação serão certamente maiores, porquanto não vivenciaram diretamente
o problema incutido no mérito da ação.
Sem dúvida que a ação cautelar de antecipação de provas
apresenta-se como um remédio jurídico excepcional para a facilitação dos
direitos do fumante – e, até mesmo, facilitador da defesa da indústria do
fumo –, em ações de tal natureza. Afinal, por meio dela, simplesmente
antecipa-se a fase probatória, permitindo-se a demonstração concreta de
fatos indispensáveis ao julgamento de procedência (ou improcedência).
Contudo, curiosamente, tal técnica não vem sendo utilizada em casos
concretos afetos ao tema [...].
Ao fumante, acometido de grave doença, a ação cautelar
antecipada de prova, previsivelmente, será útil para contribuir com o
sucesso da demanda, embora em muitos casos não seja o autor quem
efetivamente usufruirá de tal êxito, haja vista o avançado estado de
morbidade em que se encontra. De qualquer modo, referido remédio
jurídico será especialmente útil para demonstrar a natureza da
enfermidade que acomete o fumante, bem assim o nexo de causalidade
entre ela e a prática do tabagismo. Nessa seara, a prova pericial –
enriquecida com elementos colhidos de depoimentos testemunhais –
mostra-se, quase sempre, imprescindível. Decerto, o perito terá condições
de concluir, com boa margem de acerto, se o consumo de cigarros foi, ou
não, causa necessária ao estabelecimento da enfermidade no tabagista
[...].
4.3.5 A tutela antecipada a serviço do fumante (ou de seus familiares,
em caso de morte)
514
Já se disse que a tutela antecipada constitui-se numa técnica
processual destinada, num juízo de cognição sumária, a acelerar os
efeitos da tutela jurisdicional final, desde que presentes os requisitos
autorizadores da medida. Tem ela eminente caráter satisfativo; satisfaz
provisoriamente a pretensão de direito material pretendida no processo.
Trata-se de verdadeira “execução para segurança”.
Destarte, pela utilização dessa técnica diferenciada de prestação
provisória da tutela jurisdicional, o juiz, normalmente
940
antes de
completar a instrução e o debate da causa, antecipa uma decisão de mérito
(ou seus efeitos), dando provisório atendimento ao pedido, no todo ou em
parte. Efetivamente, há antecipação de tutela, porque o juiz se adianta
para, antes do momento reservado ao normal julgamento do mérito,
conceder à parte um provimento que, de ordinário, somente deveria
ocorrer depois de exaurida a apreciação de toda a controvérsia e prolatada
a sentença definitiva.
Aponte-se que a idéia sugerida pelo art. 273 do CPC, no sentido
de estar o ato de deferimento da tutela antecipada vinculado a um poder
discricionário do juiz (“o juiz poderá [...]”), é absolutamente falsa. A
tutela antecipada constitui-se num direito subjetivo do próprio
interessado, cujo deferimento obviamente dependerá da prova dos
requisitos delineados pela lei processual, de modo que, estando esses
presentes, o deferimento é inegavelmente obrigatório.
Em ações de responsabilidade civil envolvendo fumantes e a
indústria do fumo, a tutela antecipada, como não poderia deixar de ser,
tem sua serventia – afinal, a saúde e a própria vida são os preciosos
direitos em risco. Aqui, em razão das limitações dessa monografia, apenas
algumas questões vinculadas à tutela antecipada serão enfrentadas,
especialmente aquelas vinculadas à temática em estudo.
940
A expressão normalmente foi utilizada na frase porque o magistrado não se encontra impossibilitado de
conceder tutelas antecipadas em outros momentos, que não no limiar do processo. Consoante se verá
adiante, ao juiz é lícito, inclusive, conceder a tutela antecipada na própria sentença, garantindo ao
interessado o usufruto dos efeitos, parciais ou integrais, da tutela de mérito perseguida,
independentemente da interposição de recurso de apelação contra a sentença de procedência proferida.
515
4.3.5.1 Situações facilitadoras da concessão de tutela antecipada em
demandas que envolvem relações de consumo
É inquestionável que a abertura legislativa, autorizando o
deferimento de tutelas antecipadas de forma genérica, a todas e quaisquer
situações concretas submetidas ao alvedrio do Judiciário – sendo
desimportante a natureza do direito material em discussão no processo de
conhecimento –, representa uma das mais glorificadas conquistas
hodiernas do processo civil.
Atente-se, de início, que a tutela antecipada vulgarizada
encontra fundamento nos arts. 273, I e II, 461, §3º (também aplicável ao
art. 461-A), todos do CPC, e art. 84, §3º, do CDC. Outrossim, não há de
se escusar que, em sendo a demanda proveniente de uma crise material
pautada em relação de consumo, donde se discute a responsabilidade civil
do fornecedor, por suposto acidente de consumo, algumas peculiaridades
devem ser levadas em consideração, quando chegado o momento de
examinar o pedido de antecipação de tutela.
Rememore-se que o consumidor, em ações de responsabilidade
civil oriundas de acidentes de consumo, inicia-se, no processo, já munido
de algumas vantagens processuais. Tais vantagens lhe são conferidas
justamente com o intuito de garantir-lhe a paridade de armas no processo,
na medida em que, naturalmente, é ele, o consumidor, a parte vulnerável
da relação de consumo, já que porta, não raras vezes, inferioridade
técnica e econômica, se comparado ao fornecedor, característica essa não
raramente qualificada com a insígnia de hipossuficiência.
Não há exigência legal de o consumidor demonstrar a
imperfeição que deu origem ao acidente de consumo, nem mesmo
precisará evidenciar a ligação causal entre tal imperfeição e os danos por
ele suportados. Não são esses fatos constitutivos de seu direito. A Lei n.
8.078/90, ao impor que o fabricante não será responsabilizado se
demonstrar que, muito embora haja colocado o produto no mercado, o
defeito inexiste (art. 12, §3º, II), efetivamente inverteu o onus probandi
em favor do consumidor, conferindo-lhe vantagem processual expressa.
516
Noutras palavras, a citada legislação criou, em prol do consumidor,
presunções juris tantum, impondo ao seu adversário judicial o ônus de
desfazer tais presunções, através de provas em contrário.
Talvez soe estranha a idéia de que o consumidor não necessite
demonstrar a imperfeição do produto e nem o nexo causal entre ela e os
danos que suportou. Todavia, essa estranheza logo esmorece, ao se
recordar que o objetivo-mor da Lei n. 8.078/90 foi o de garantir certa
estabilidade nas relações de consumo. Por óbvio que essa estabilidade
idealizada pelo legislador também emana efeitos na relação processual,
donde se encontram inseridas as figuras consumidor e fornecedor. Não é
em decorrência do acaso que o consumidor tem a seu favor alguns direitos
básicos, cuja aplicação é direcionada, quase que tão-somente, ao processo
jurisdicional – exemplos: direito de ver modificadas “cláusulas
contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão
em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente
onerosas”; direito à “efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais
e morais, individuais, coletivos e difusos”; direito da “facilitação da
defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu
favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a
alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias
de experiências”; possibilidade de obter decisão desconsiderando a
personalidade jurídica da empresa Ré, etc.
Decerto, não seria justo atribuir ao consumidor a demonstração
de prova absolutamente técnica, dispendiosa, pois é ele a parte vulnerável
na relação de consumo (CDC, art. 4, I). De igual forma, não soaria justo
impor-lhe o ônus de demonstrar o nexo causal entre essa imperfeição e os
danos que suportou. Assim é que, ao consumidor bastará provar que
efetivamente utilizou o produto, os danos suportados e, por fim, o nexo
causal entre tal utilização e os referidos danos. Consoante afirmado, essa
conclusão resta evidente na análise do art. 12, §3º, II, do CDC, norma
essa que estabelece caber ao fabricante a demonstração da inexistência de
defeito no produto colocado no mercado.
Já se afirmou anteriormente que defeito e acidente de consumo
são expressões sinônimas. Somente há que se falar em defeitos quando a
517
hipótese analisada açambarcar situações alheias àquelas vinculadas, tão-
somente, à mera inadequação de uso do produto, de modo que a utilização
mesma do produto acabe por atingir a própria incolumidade patrimonial,
física e/ou moral do consumidor. Logo, quando o legislador impõe ao
fabricante o ônus de provar a inexistência do defeito no produto, isso para
se ver livre da responsabilidade de indenizar, não está se referindo apenas
à própria imperfeição contida em tal produto, mas também ao nexo causal
entre a utilização dele e os danos acarretados – afinal, a conceituação de
defeito abarca a de vício, os danos, e o nexo de causalidade entre o vício
e os danos. Para se eximir da responsabilidade, poderá o fabricante
demonstrar, por exemplo, que, muito embora o produto seja realmente
portador de uma imperfeição jurídica (vício), não foi essa imperfeição a
responsável pelo resultado danoso.
A constatação de que ao consumidor são conferidas algumas
presunções, em demandas de responsabilidade civil, possui importância
toda especial, a ser levada em consideração no momento de se examinar
uma pretensão de tutela antecipada.
Já se viu que parte considerável da doutrina advoga a tese da
prevalência de uma diferença de graus entre os requisitos a serem
demonstrados para se obter o deferimento de tutelas antecipadas,
diferenças essas variáveis em consonância com a natureza do direito
material perseguido. Nesse rumo, defende-se o entendimento de que a
tutela antecipada fundada no art. 273 do CPC exigiria requisitos de maior
vigor, quando comparados aos requisitos cuja prova se mostra necessária
para o deferimento de tutela antecipada de obrigação específica (arts. 461,
§3.º, 461-A, do CPC e art. 84, §3.º, do CDC). Conquanto equivocada essa
idéia
941
, é de se ter em mente que, independentemente do entendimento
941
Atente-se – recordando-se posição explanada alhures – que, muito embora tenha o legislador se valido
de expressões distintas, isso para estabelecer os requisitos necessários ao deferimento de tutelas
antecipadas fundadas no art. 273, e aqueles necessários ao deferimento antecipado das denominadas
tutelas específicas (art. 461, §3.º, 461-A, do CPC, ou 84, §3.º, do CDC), a melhor interpretação conduz
à idéia de que tais expressões são sinônimas. Ou seja, é incorreto o entendimento de que, para o
adiantamento da tutela jurisdicional de mérito, na ação condenatória de obrigação de fazer, não fazer ou
de dar coisa, a lei exigiria menos do que, para a mesma providência, na ação de conhecimento tout
court (art. 273). Em ambos os casos, o ideal postulado é idêntico: sempre se almeja a aceleração,
parcial ou integral, da tutela jurisdicional pretendida ao final do processo. Assim sendo, não há razão
lógica e jurídica que alicerce a diferenciação de requisitos imposta por parte da doutrina.
518
que se adote, verdadeiramente as presunções alhures apontadas,
certamente servirão a auxiliar o consumidor a obter uma decisão favorável
que antecipe, parcial ou integralmente, a tutela jurisdicional de mérito
perseguida.
Afinal, não se pode olvidar que o CPC, expressamente, entabula
que não dependem de prova os fatos “em cujo favor milita presunção
legal de existência ou de veracidade” (CPC, art. 334, IV). As presunções,
ficções jurídicas ou verdades estabelecidas pela lei, independem de
qualquer prova, muito embora permitam demonstração em contrário,
plenamente capaz de romper a vantagem processual que acoberta o
consumidor.
Assim, não terá o consumidor que demonstrar a imperfeição do
produto, bastando alegá-la. E se essa presunção mostra-se assaz forte
para proporcionar uma sentença de mérito favorável ao consumidor, numa
ação de responsabilidade civil, obviamente que também terá importante
serventia na formação da convicção do juiz, para o deferimento de uma
tutela antecipada. Ora, se a tal presunção possui vigor capaz de alicerçar
uma sentença fundada em cognição exauriente, por que razão não teria ela
vitalidade para estear uma decisão interlocutória, fundada em cognição
sumária?
942
Se basta ao consumidor alegar a imperfeição possivelmente
existente no produto, de igual forma não terá que demonstrar, em sede de
cognição sumária
943
e visando ao deferimento de uma tutela
942
O professor Kazuo Watanabe ensina que “a cognição é prevalentemente um ato de inteligência,
consistente em considerar, analisar e valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes, vale
dizer, as questões de fato e as de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o
fundamento do judicium, do julgamento do objeto litigioso do processo”. (WATANABE, Kazuo. Da
cognição no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 41).
943
Alexandre Freitas Câmara, munindo-se das lições de Kazuo Watanabe, identifica a cognição nos seus
aspectos vertical e horizontal. Esclarece o jurista: “Assim é que, horizontalmente considerada (plano de
extensão), a cognição é plena ou limitada. Será plena quando todos os elementos do trinômio que
constitui o objeto da cognição estejam submetidos à atividade cognitiva do juiz. É o que se dá no
processo de conhecimento. Pense-se, por exemplo, numa “ação de alimentos”, demanda de natureza
condenatória (e pertencente, portanto, às “ações de conhecimento”). O juiz ali analisará questões
prejudiciais (como a relação de parentesco entre demandante e demandado) e, por fim, a pretensão
condenatória manifestada pelo autor em face do réu. De outro lado, a cognição será limitada, quando
alguns destes elementos (de ordinário o mérito da causa) for subtraído da atividade cognitiva, como
ocorre no processo de execução, no qual o juiz, como já afirmado, não julga o meritum causae”. E
continua: “No plano vertical (profundidade ou intensidade), a cognição pode ser exauriente, sumária
ou superficial. Tem-se cognição exauriente quando ao juiz só é lícito emitir seu provimento baseado
num juízo e certeza. É o que normalmente ocorre no processo de conhecimento. A cognição é sumária
519
antecipatória, o nexo causal entre tal presunção e os danos suportados por
ele. Destarte, encontra-se o consumidor numa situação privilegiada,
também quando requerer a tutela antecipada, isso porque, de antemão, já
no limiar do processo, o juiz irá raciocinar, aceitando a existência de uma
imperfeição jurídica no produto em questão, admitindo, também, que os
danos advieram em função de tal imperfeição. Isso significa que parte
substancial do primeiro requisito, indispensável ao deferimento da tutela
antecipada, estará efetivamente demonstrada – prova inequívoca que
convença o juiz da verossimilhança da obrigação (CPC, art. 273), ou
relevância do fundamento da demanda (CDC, art. 84, §3.º).
Logo, ao consumidor caberá demonstrar apenas que utilizou o
produto e que, por decorrência desse uso, suportou alguns danos. Noutras
palavras, deverá provar a utilização do produto, os danos suportados (ou
apenas um ou alguns deles, dependendo do objeto postulado a título de
antecipação de tutela), e o nexo causal entre tal utilização e os danos.
Em casos concretos envolvendo responsabilidade civil por danos
advindos do tabagismo, o fumante, visando obter tutela antecipada que lhe
garanta, por exemplo, o custeamento de algum tratamento de doença
tabaco relacionada, deverá demonstrar: a) que é ou era fumante de uma
determinada marca de cigarros; b) a doença adquirida e que exige
quando o provimento jurisdicional deve ser prolatado com base num juízo de brobabilidade (como no
caso da tutela antecipatória – art. 273 CPC). Por fim, tem-se cognição superficial (ou sumaríssima) em
casos – de resto não muito freqüentes – em que o juiz deve se limitar a uma a uma análise perfunctória
das alegações, sendo a atividade cognitiva ainda mais sumária do que a exercida na espécie que leva
este nome. Tal espécie de cognição é exercida, e.g., no momento de se verificar se deve ou não ser
concedida medida liminar no processo cautelar. Se nesta espécie de processo (utilizando-se aqui da
classificação tradicional dos processos quanto ao provimento jurisdicional pleiteado) a atividade
cognitiva final é sumária (uma vez que o juiz não verifica se existe o direito substancial alegado pelo
demandante, mas tão só a probabilidade dele existir – fumus boni iuris), é óbvio que para verificar se
deve ou não ser antecipada a concessão de tal medida através de liminar não se pode permitir que o
juiz exerça, também aqui, cognição sumária, sob pena de se obrigar o juiz a invadir de forma indevida
o objeto do processo cautelar. Deverá o julgador, portanto, exercer cognição superficial. Ao invés de
buscar o requisito do fumus boni iuris, deverá verificar o juiz a probabilidade de que tal requisito se
faça presente (algo como um fumus boni iuris de bumus boni iuris)”. Finalmente conclui: “Visto isso,
podemos chegar à seguinte conclusão: há processos de cognição PLENA E EXAURIENTE (como os
processos de conhecimento que seguem o procedimento comum – ordinário ou sumário), PLENA E
SUMÁRIA (como no processo cautelar), LIMITADA E EXAURIENTE (como no processo de execução,
em que o julgador não pode examinar o mérito – cognição limitada – mas profere juízo de certeza
sobre as questões preliminares – cognição exauriente), LIMITADA E SUMÁRIA (como na “ação de
separação de corpos”, em que a impossibilidade de se discutir a presença de alguma causa para que se
dissolva o vínculo matrimonial limita a cognição, e a urgência com que se necessita do provimento
implica na sumariedade da atividade cognitiva).” (CÂMARA, Alexandre Feitas. O objeto da cognição
no processo civil. Escritos de direito processual. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001. p. 85-86).
520
tratamento; e c) o nexo causal entre o tabagismo e tal enfermidade. Não
haverá de demonstrar que o cigarro é um produto detentor de imperfeições
jurídicas (defeito de concepção e de informação), e tão-pouco o liame
causal existente entre tais imperfeições e os danos. Tais provas, só que em
sentido inverso, cabem à indústria de tabaco envolvida na demanda.
Não se olvide, ainda, a necessidade de demonstração do
periculum in mora, elemento sempre exigido nas tutelas antecipadas de
urgência, de sorte que, no exemplo apontado, ao autor-consumidor caberá
evidenciar a necessidade de tratamento imediato, em decorrência de risco
de morte ou de prejuízo eminente à sua saúde – no caso de familiares que
dependiam do morto, a prova a ser feita é aquela respeitante à necessidade
premente de alimentos.
Lembre-se que o consumidor não necessita demonstrar de
maneira cabal, os fatos necessários ao cumprimento dos requisitos
preestabelecidos na legislação processual, para obter o deferimento de
uma tutela antecipada. Para a formão de seu convencimento, o juiz, em
sede de tutelas de urgência, utiliza-se de matérias-primas todas especiais:
as probabilidades e verossimilhanças. Decide por meio de cognição
sumária, justamente porque a situação é emergencial, de urgência
extrema, pois, muitas vezes, afeta a própria vida e saúde de uma das
partes, o que apenas vem a justificar o abrandamento da segurança, em
prol da efetividade da tutela jurisdicional.
Assim, visando ao deferimento de uma tutela antecipada, poderá
o fumante valer-se de declarações escritas por terceiros, pontificando que
realmente era fumante e que sua preferência o levava a consumir cigarros
de uma determinada marca fabricada pela ré. Laudos e relatórios médicos
também possuem serventia probatória em sede de cognição sumária,
notadamente na demonstração da doença que o atingira, bem assim para
comprovar o nexo causal entre ela e o tabagismo. De todo modo, em
permanecendo certa insegurança na prova desses fatos, o autor-fumante
detém a possibilidade de requerer uma audiência de justificação prévia
sendo lícito ao próprio juiz designá-la de ofício.
521
4.3.5.2 Situações que comportam a tutela antecipada no tema em
análise
Sumariamente, algumas hipóteses que autorizam o deferimento
de tutela antecipada, em casos judiciais envolvendo o tema em análise,
podem ser descritas e trabalhadas. Sem qualquer intenção de esgotar as
ricas possibilidades que certamente hão de surgir em casos concretos
específicos, a própria natureza das pretensões veiculadas nessas ações,
ajuizadas por fumantes contra a indústria do tabaco, indica que os pedidos
de tutela antecipada seguirão rumo a postulações de adiantamento de
soma em dinheiro.
Isso porque o problema enfrentado afina-se à necessidade de
manutenção da própria saúde do ser humano, ou, não raras vezes, ao
retardamento de sua morte. E, sobretudo em razão da dura realidade
brasileira, o dinheiro revela-se indispensável para o alcance desses ideais.
Seja para garantir um tratamento médico adequado de enfermidades
tabaco-relacionadas (radioterapias, quimioterapias, consultas médicas,
etc.), seja ainda para possibilitar ao fumante a aquisição de remédios
diversos, ou o tratamento da própria dependência pela nicotina – hoje
considerada uma doença crônica –, o dinheiro será, muitas vezes, o
diferencial entre uma vida prolongada e a morte certa.
Mas não só isso. O dinheiro também se mostra imperioso
naquelas situações em que o fumante se torna incapaz para o trabalho, ou,
pior, vem a falecer, deixando sua família em prejuízo iminente, já que
dele era dependente. Essa importância extrema advém do fato de que
ninguém vive em condições mínimas de dignidade quando se encontra
mergulhado numa situação de carência de recursos financeiros. Aqui
também surge a problemática da necessidade de alimentos imediatos,
necessários não só à manutenção da própria vida do fumante, mas também
daqueles que dele são (ou eram) dependentes, alimentos esses que decerto
poderão ser postulados por intermédio da tutela antecipada, focada a obter
adiantamento de obrigação de soma em dinheiro.
Algumas questões, diretamente vinculadas à tutela antecipada
de soma em dinheiro e, por conseqüência, jungidas ao próprio tema aqui
522
desenvolvido, devem ser trabalhadas, de sorte a possibilitar caminhos
seguros ao operador do direito – ou, ao menos, rumos que possam ser
juridicamente seguidos, haja vista a grande controvérsia que as envolve.
Dada a limitação desse trabalho, nesse tópico serão abordados os
seguintes pontos: a) o procedimento para a execução da antecipação de
efeitos da tutela para pagamento de quantia; b) as astreintes, a penhora on
line e a prisão como meios executivos destinados a garantir a execução de
tutelas antecipadas de pagamento de soma em dinheiro; c) a questão da
irreversibilidade; d) a possibilidade de designação de justificação prévia
para formar a convicção do juiz, antes do deferimento de tutela
antecipada de soma em dinheiro; e e) o momento da antecipação.
4.3.5.2.1 O procedimento da execução de antecipação de efeitos da
tutela para o pagamento de quantia
O cumprimento imediato da medida antecipada, mediante ordens
ou mandados expedidos na própria ação de conhecimento, não se
apresenta incompatível com o sistema processual brasileiro, sendo, aliás,
bem apropriado, em se tratando de medida que antecipe prestações de
fazer ou não fazer ou, ainda, de entregar coisa. Descumprindo o
demandado a ordem, poderá o juiz impor-lhe, imediatamente e de ofício, o
seu cumprimento, utilizando-se, se necessário, das providências
coercitivas e sub-rogatórias previstas no §5º do art. 461 do CPC (ou art.
84, §3º, do CDC). Tais providências, a rigor, em nada diferem, quanto ao
conteúdo, das que seriam desenvolvidas para dar cumprimento à sentença
definitiva, cujo objeto da condenação seja uma tutela específica, essa
que, também, não mais está sujeita a ação de execução autônoma (CPC,
arts. 461 e 461-A)
944
.
Por outro lado, complexidades várias surgem quando a
postulação da tutela antecipada dirige-se ao adiantamento de obrigação
de soma em dinheiro, cuja satisfação, no domínio da sistemática
processual, depende, em regra, de atos expropriatórios demasiadamente
944
ZAVASCKI, op. cit., 2004. p. 97.
523
burocratizados e nem sempre compatíveis com a situação de urgência que
envolve o caso concreto
945
.
É notória a constatação de que os cinco Livros responsáveis pela
estruturação do CPC não foram elaborados sob uma ótica voltada à tutela
antecipada vulgarizada, instituto esse que, a propósito, apenas foi
inserido no seu bojo décadas depois de sua publicação. Consciente da
necessidade de conferir maior efetividade à tutela jurisdicional, o
legislador optou pela realização de reformas pontuais no CPC, de modo a
manter sua estruturação originária, mas eliminando certos gargalos que
emperram a máquina judiciária. Sem dúvida que a tutela antecipada
generalizada, passível de ser postulada e deferida nos diversos
procedimentos oriundos do processo de conhecimento – mesmo nos
especiais –, representa uma conquista; todavia, há de se ter em mente a
lição de Teori Albino Zavascki, no sentido de que a
universalização do instituto da tutela antecipada importa
necessidade de adaptação, pela via da hermenêutica, do regime
do processo executivo à nova realidade, tarefa que demanda
permanente engenho e criatividade da doutrina e da
jurisprudência
946
.
Ao término do ano de 2000, o mestre Ovídio A. Baptista da
Silva, em brilhante parecer, produzido em defesa da empresa Souza Cruz
S.A., e juntado aos autos de uma ação coletiva ajuizada pela Associação
de Defesa da Saúde do Fumante (ADESF), advogou a tese de que a
execução de tutelas antecipadas – mesmo aquelas cujo conteúdo é a soma
em dinheiro – deve se dar na própria relação processual do processo de
conhecimento, independentemente do ajuizamento de uma nova ação,
agora de natureza executiva. Naquela oportunidade, o jurista ainda
defendeu que as regras contidas no art. 588, II e III, do CPC – hoje
revogadas pela Lei n. 11.232/2005 – haveriam de ser respeitadas, sendo a
execução provisória o modo adequado de se dar efetividade às decisões
concedidas a título de tutela antecipada.
945
ZAVASCKI, op. cit., 2004. p. 97.
946
Ibid., p. 71.
524
Ovídio A. Baptista da Silva, apesar de entender que o mais
adequado para conjurar o risco de dano iminente ao direito seria a
introdução das injunções utilizadas na common law – autorizando o juiz a
emitir decisão que não simplesmente condenasse, mas, ao contrário,
ordenasse ao devedor o cumprimento da obrigação –, deixou claro, em seu
parecer, que não foi esse o caminho escolhido pelo legislador brasileiro.
Em parte, reputa-se correto o entendimento acima exposto,
notadamente no tocante à desnecessidade de se estabelecer nova relação
processual destinada à execução de decisão que concede a tutela
antecipada. Aliás, encontra-se superada a tradicional sistemática
processual, caracterizada pelo ideal científico de se alocar, em
compartimentos quase que completamente estanques, as atividades
cognitivas e executivas. Hodiernamente, o cumprimento da sentença
concretiza-se mediante a instauração de medidas executivas no mesmo
processo que a originou (o de conhecimento), numa atividade continuativa
mais informal e desburocratizada (execução sincrética ou imediata). Essa
idéia acabou por contagiar, também, as sentenças, cujas obrigações nelas
registradas correspondem à soma de dinheiro, isso em razão de uma
recente reforma advinda com a Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de
2005
947
.
947
Sobre a Lei n. 11.232/2005, especialmente com relação ao cumprimento da sentença, José Rogério Cruz
e Tucci apresenta uma útil síntese: “A saga das reformas do CPC continua. Publicado no dia
23/12/2005, com vacatio de seis meses, foi aprovado novo texto legal em matéria processual. Trata-se
da Lei n.º 11.232, que estabelece a fase de cumprimento das sentenças no processo de conhecimento e,
por via de conseqüência, revoga dispositivos atinentes à execução fundada em título judicial. A
numeração original dos artigos do diploma processual é preservada, mas são justapostas, em
continuação ao artigo 475, letras de “a” a “r”, além de outras modificações, inclusive no que toca ao
clássico conceito de sentença. A despeito de ter sido objeto de exame e debate, entre especialistas, em
encontro realizado em Brasília (agosto de 2002), o certo é que pela enorme repercussão da nova lei no
plano teórico e, sobretudo, no terreno da praxe forense, penso que maior esforço poderia ter sido
envidado para que a comunidade jurídica brasileira participasse da respectiva tramitação legislativa.
A primeira leitura das regras agora introduzidas evidencia que o legislador procura, de modo
obstinado, evitar todos os obstáculos que têm impedido, no bojo do processo in executivis, a
efetividade da jurisdição. Sim, porque, a exemplo da execução da tutela específica, o novel diploma
transporta para o Livro I do CPC a execução de título judicial de natureza condenatória. O Livro II
restringe-se a regras a execução por título extrajudicial. Pois bem, o ato que então colocava termo ao
processo, com ou sem julgamento de mérito, a teor da nova redação do §1º do art. 162, continua sendo
denominado “sentença”, mas passa a ser aquele que “implica alguma das situações previstas nos arts.
267 e 269”. Como o processo de cognição, em primeiro grau, não mais se ultima com a sentença, a
fase decisória constitui agora um momento precedente à execução feita nos “próprios autos”. A
liquidação de sentença é inserida, pelos arts. 475-A a 475-H, no Livro I, sendo caracterizada como um
mero procedimento incidental, que visa à apuração do quantum debeatur, nas suas três modalidades:
liquidação por meio de cálculo, por arbitramento e por artigos. Para não haver qualquer dúvida, a
525
De qualquer modo, até pouco tempo atrás, a execução da
sentença que condenava em pecúnia, ainda era conduzida por meio
daquele sistema tradicional, ex intervallo, numa ação autônoma. Tal
circunstância, não poucas vezes, animava o entendimento segundo o qual
a execução de decisão interlocutória, cujo objeto era a antecipação
provisória de soma em dinheiro, também deveria ocorrer numa nova
relação processual, através de ação executiva própria. Contudo, olvidava-
se que a execução da tutela antecipada, fundada no art. 273, I, do CPC,
guarda sensíveis distinções de uma execução fundada em sentença
judicial, transitada ou não em julgado (execução definitiva e provisória).
A decisão que defere tutela antecipada visa ordinariamente
satisfazer uma situação emergencial, cujo cumprimento não poderia, por
óbvio, respaldar-se, detalhadamente, no custoso e burocrático
decisão que julga a liquidação desafia agravo de instrumento (art. 475-H). Faculta-se, outrossim, a
liquidação em caráter provisório, em autos apartados, enquanto pendente recurso recebido no duplo
efeito. Inadimplido o débito no prazo de 15 dias, a soma da condenação será acrescida da multa no
valor de 10% (art. 475-J). Efetuada quitação parcial, a multa de 10% incide sobre o saldo devedor.
Ademais, no modelo recém traçado, a efetivação forçada da sentença condenatória corresponde à
etapa ou fase derradeira do processo de conhecimento. Desprezada, portanto, uma execução
autônoma e subseqüente, a dinâmica do sincretismo processual é que então passa a governar a nova
sistemática. O art. 475-I é incisivo: “O cumprimento da sentença far-se-á conforme os arts. 461 e 461-
A desta lei, tratando-se de obrigação por quantia certa, por execução, nos termos dos demais artigos
desse mesmo capítulo.” Importa ressaltar que a lei em apreço não mais contempla a oposição de
embargos pelo executado, mas para assegurar a observância da garantia do devido processo legal,
autoriza ao réu deduzir eventual objeção que porventura tenha por meio de impugnação, considerada
também como “mero incidente” dessa fase de cumprimento da sentença. Essa impugnação, segundo a
regra do art. 465-L, tem os seus limites objetivos reduzidos às seguintes alegações: a) falta ou
nulidade de citação no processo de conhecimento; b) inexigibilidade do título, inclusive no caso de o
título judicial estar fundado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional; c) penhora incorreta
ou avaliação errônea; d) ilegitimidade de parte; e) excesso de execução; e f) qualquer causa
impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação,
transação ou prescrição, desde que superveniente ao ato decisório exeqüendo. Seja como for – e esse é
o ponto primordial da nova lei –, em qualquer dessas hipóteses, a impugnação, ex vi do art. 475-M
não suspende a execução, podendo, no entanto, ser atribuído efeito suspensivo ope iudicis, desde que
vislumbrada possibilidade de dano de difícil ou incerta reparação. Mesmo nessa situação, a execução
poderá prosseguir mediante a prestação de caução, por termo nos próprios autos. E isso, porque o art.
475-O, inciso I, continua prevendo a responsabilidade objetiva do exeqüente a arcar com eventuais
danos experimentados pelo executado, na hipótese de a sentença ser “reformada”. Saliente-se, por
outro lado, que a rubrica do Capítulo II do Livro II é alterada para “Dos embargos à execução contra
a Fazenda Pública”, mantida a redação do art. 741, com a introdução de um parágrafo único, que
prevê, para a Fazenda, a possibilidade de opor embargos, com base na inexigibilidade do título, desde
que fundado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo STF, ou fundado em aplicação
ou interpretação da lei ou ato normativo tido pelo STF como incompatível com a CF. Por fim, é
modificada a redação do art. 1.102-C, tão-somente para adequar o procedimento monitório às novas
regras agora inseridas no Livro I do CPC. Aproveito, assim, a oportunidade, para dividir com os
operadores do direito a minha impressão inicial sobre o referido texto legal, limitando-me a tecer
algumas anotações preambulares e pontuais, até porque muitos dos problemas de interpretação
surgirão na seqüência da entrada em vigor da Lei n.º 11.232”. (TUCCI, José Rogério Cruz e. Sentença
condenatório. Tribuna do direito. Ano 13. Fevereiro de 2006. p. 8).
526
procedimento de execução de quantia certa contra devedor solvente (Livro
II), especialmente porque, se assim fosse, faleceria qualquer sentido
lógico-jurídico no próprio ato de deferimento da tutela de urgência, já
que, muito provavelmente, o direito material perseguido, conexo ao
direito de crédito, pereceria. Na execução de sentença judicial (seja ela
definitiva ou não), o ingrediente periculum in mora é inexistente,
evidenciando a ausência de urgência que pudesse motivar o juiz a
priorizar a efetividade, em desfavor da segurança jurídica.
Logo, a melhor interpretação, mesmo antes da publicação da já
citada Lei n. 11.232/2005, é aquela fincada na própria finalidade da tutela
de urgência, donde se obtém a conclusão de que, devido à relevância
emergencial da questão posta ao arbítrio do juiz, a tutela antecipada, que
concede adiantamento de pecúnia, também deve ser executada no bojo do
próprio processo de conhecimento em que foi deferida,
independentemente de ajuizamento de ação executiva própria
948
.
Sob outro foco, e também diante da natureza peculiar da tutela
antecipada, é de se objetar a última conclusão suscitada pelo mestre
Ovídio A. Baptista da Silva. Ou seja, acredita-se não ser adequada a tese
– salvo melhor juízo, nascida de uma interpretação meramente literal – de
que a execução da tutela antecipada devesse seguir obrigatoriamente o
procedimento da execução provisória.
Estar-se-á diante de questão vinculada à confusão existente
entre execução de tutela antecipada de soma em dinheiro e execução
provisória. Esclarece Luiz Guilherme Marinoni que a execução
provisória, da forma como foi tradicionalmente concebida, não supõe a
imperiosidade de realização imediata do direito de crédito, mas apenas a
necessidade de aceleração da atividade executiva para a segurança do
juízo. Tanto isso é verdade que ela – tal como instituída originariamente
pelo CPC – permite a penhora de bem de propriedade do devedor, mas não
948
Essa, porém, não é a posição defendida pelo mestre gaúcho Araken de Assis: “A incompatibilidade da
prática dos atos coercitivos, inerentes à execução digna da sua essência, e a simultânea tramitação da
demanda de rito comum, ordinário e sumário, ou especial, se mostra flagrante e inarredável. Aliás, o
art. 273, §3.º, exorta o prosseguimento dessa última demanda até o julgamento final, convindo evitar
tumulto procedimental. A execução do provimento antecipatório terá seus próprios autos.” (ASSIS,
Araken. Execução da tutela antecipada. Disponível em <www.abdpc.org.br>. Acessado em 02/03/
2006).
527
a sua expropriação. A execução provisória pode ser suspensa – e, em
regra, o é – porque a espera não mais produz prejuízos. Seu objetivo não
é, pois, satisfazer o autor, cuja necessidade de soma em dinheiro é
imediata, senão apenas permitir a segurança do juízo ou a garantia da
viabilidade de futura e eventual realização do crédito. Por sua vez, a
antecipação dos efeitos da tutela de soma em dinheiro não visa à
segurança do juízo ou do direito de crédito, porquanto o autor não pode
esperar, sem dano grave, a realização do direito de crédito.
Contrariamente ao que ocorre na execução provisória, na antecipação de
tutela “parte-se da premissa certa de que a espera produzirá prejuízos,
não sendo suficiente a mera cautela do direito de crédito”
949
.
Mesmo na perspectiva da nova execução provisória, donde se
constata a possibilidade de obtenção plena da realização do direito
declarado na sentença objeto de recurso ainda não julgado (art. 475-O,
III, e seu §2.º, I e II, todos do CPC), muito embora ambas, a tutela
antecipada e a execução completa da sentença impugnada, realizem – e
não apenas acautelem – o direito material perseguido, tal direito, na
execução provisória, não necessita ser realizado tão rapidamente quanto
na tutela antecipada. Afinal, o elemento urgência encontra-se perceptível
no pedido de antecipação de tutela, por ser medida idônea a “impedir
prejuízo irreparável a um direito conexo ao direito de crédito”
950
.
Diante das particulares características da tutela antecipada,
especialmente aquela vinculada ao seu caráter emergencial, é imperioso
um esforço hermenêutico destinado à adequada adaptação e uso da tutela
antecipada de soma em dinheiro, mormente porque o legislador foi silente
ao não estatuir caminhos legais capazes de guiar seguramente o operador
do direito.
E, salvo melhor juízo, o critério mais adequado é aquele
apontado por Teori Albino Zavascki, partindo da premissa de que
antecipar a tutela nada mais significa que antecipar providências
executórias que podem decorrer da futura sentença de procedência. A
antecipação efetiva-se mediante atos tipicamente executivos, atos que
949
MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 264-266.
950
Ibid., p. 266.
528
implicam modificações no status quo, provocando ou impedindo
alterações no mundo dos fatos
951
. Atente-se às suas lições:
É possível, com base nos princípios da adequação das formas e
da finalidade, o seguinte critério definidor do procedimento
para a execução da medida antecipatória para pagamento de
quantia: será cumprida imediatamente, na própria ação de
conhecimento, a medida antecipatória deferida com fundamento
no inciso I do art. 273, expedindo-se as ordens e mandados que
se fizerem necessários; porém, em se tratando de antecipação
deferida com base no inciso II ou no §6º ou, quando concedida
com fundamento no inciso I, for incompatível ou frustrada a
efetivação da medida antecipatória por simples mandado, na
própria ação de conhecimento, caberá ao demandante promover
ação autônoma de execução provisória, com fundamento no art.
588 do Código de Processo Civil, antecedida,
se for o caso,
por ação de liquidação se sentença
952
.
Esse entendimento, o qual efetivamente abona a possibilidade
de transformação de uma obrigação de pagamento em obrigação de fazer,
tem ao seu lado a capacidade de proporcionar efetividade, impedindo
prejuízo irreparável a um direito conexo ao direito de crédito. Todavia,
acredita-se, ao contrário do entendimento advogado por Teori Albino
Zavascki, que, frustrada a efetivação da medida antecipada por simples
mandado, não haveria obrigatoriedade de se ajuizar ação própria, com
fundamento nas normas que regem a execução provisória.
Devido ao caráter emergencial da tutela antecipada, pouco
sentido prático irradia-se da posição doutrinária, cuja idéia mestra é a de
que sua execução deve pautar-se no respeito às normas que regem a
execução provisória. Afinal, a execução provisória é, no mais das vezes,
limitada, possuindo serventia mais adequada ao acautelamento do direito
perseguido do que a sua satisfação propriamente dita. Conquanto a tutela
antecipada abra oportunidade para uma execução fundada em cognição
sumária, é certo que pode efetivamente realizar, parcial ou integralmente,
o direito pretendido pelo autor, mediante uma execução completa. E essa
execução completa há de se realizar sem a necessidade de instauração de
nova relação processual, através do emprego de técnicas mandamentais
951
ZAVASCKI, op. cit., 2004. p. 71.
952
Ibid., p. 98-99.
529
e/ou executivas plenamente adequadas a garantir alteração no mundo
sensível, a ponto de conceder o resultado pretendido ao postulante
953
.
De tal sorte, na execução de tutela antecipada de obrigação
pecuniária, o juiz não apenas condena, senão determina, ordena, podendo,
ainda, se valer de medidas executivas diversas daquelas previstas e
comumente utilizadas no procedimento de execução por expropriação,
isso para garantir a plena satisfação do “bem da vida” perseguido. A
própria Lei adjetiva abaliza tal entendimento, ao indicar, num de seus
dispositivos legais, que a efetivação da tutela antecipada observará, no
que couber e conforme sua natureza, as normas previstas no art. 461,
§§4.º e 5.º (art. 273, §3.º, do CPC).
O raciocínio permanece, mesmo diante da reforma processual
advinda com a Lei n. 11.232. Tal legislação albergou a possibilidade de,
no procedimento da execução provisória, o exeqüente ter por dispensada a
necessidade de ofertar caução, até o limite de sessenta vezes o valor do
salário mínimo e desde que demonstrada sua situação de necessidade, não
só nos casos de créditos alimentares, mas também naqueles afetos a
créditos decorrentes de ato ilícito (art. 475-O, §2.º, I, do CPC). Essa
inovação, embora louvável, não reforça a doutrina que prega o imperativo
de a tutela antecipada ser executada por meio do procedimento de
execução provisória. E isso porque é qualificada a urgência que alavanca
o deferimento e a própria execução de uma tutela antecipada. Por tal
razão, não haveria sentido prático-jurídico em se limitar a atividade
executiva, destinada a satisfazer decisão que concede uma tutela
antecipada, aos meios executivos sub-rogatórios, característicos das
execuções por expropriação (definitiva ou provisória)
954
.
953
Essa idéia ficou ainda mais palatável depois da publicação da Lei n. 11.232, já que o sincretismo
processual atingiu a integralidade do processo de conhecimento, de forma que a sentença, atualmente, é
satisfeita através de uma atividade complementar – uma nova fase, não um novo processo – a ocorrer
no próprio processo de conhecimento. Se, outrora, se mostrava dificultosa uma interpretação que
admitisse a antecipação de efeitos executivos, esses que poderiam vir a ocorrer apenas no âmbito de um
outro processo (o de execução), sequer ajuizado, agora esse empecilho desaparece, na medida em que
todos os atos, de cognição e execução, serão concretizados num só veículo.
954
Se o pedido antecipatório satisfativo envolver alimentos, poderá o postulante se valer, outrossim, dos
meios executórios da execução da prestação pecuniária alimentar. Esse, aliás, o posicionamento preciso
de Araken de Assis: “A execução da prestação pecuniária alimentar dispõe de três meios executórios
diferentes: em primeiro lugar, o desconto em folha (art. 16 da Lei 5.478/68 c/c art. 734 do Cód. De
Proc. Civil); depois, a expropriação de rendas e de aluguéis, a teor do art. 17 da Lei 5.468/68, porque
530
De igual forma, numa análise puramente constitucional, soaria
ilógico pensar que a satisfação provisória, postulada por intermédio de
uma tutela antecipada, encontrar-se-ia restrita à concessão de valores
módicos (sessenta vezes o salário mínimo), como se o legislador pudesse
prever qual o montante suficiente, isso em todas as peculiares crises de
interesses que porventura possam vir a surgir no seio social, a imunizar o
direito perseguido do periculum in mora que o assombra – direito esse
muitas vezes vinculado à própria saúde e/ou vida do postulante. Ora, se a
própria CF reza que a “lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5.º, XXXV), careceria de
qualquer coerência hermenêutica o argumento de que a tutela antecipada
de obrigação de soma em dinheiro, estaria restrita à importância de
sessenta vezes o salário mínimo. Ameaçado o direito e presentes os
requisitos necessários ao deferimento da tutela antecipada, o juiz é
obrigado a deferi-la e executá-la sem limitações. O deferimento de
porcentagem de uma tutela antecipada pode significar a derrocada de todo
o direito cujo encalço se depreende por meio do processo.
Porém, acaso insubsistentes a ordem de adimplemento e as
medidas executivas destinadas a forçar o cumprimento da obrigação (art.
461, §5.º, do CPC), o procedimento a ser seguido pelo exeqüente, na
execução de uma tutela antecipada cuja obrigação é de soma em dinheiro,
será aquele criado para o cumprimento da sentença (arts. 475, I, e segs.,
do CPC), e não o da execução provisória ou o previsto no Livro II do
CPC.
4.3.5.2.2 Meios executórios destinados a garantir a efetividade da
execução de tutelas antecipadas de pagamento de soma em dinheiro
a penhora de dinheiro permite seu levantamento (art. 732, parágrafo único); e, finalmente, à escolha
do credor, a coerção pessoal (art. 733) ou a expropriação (artigos 732 e 735). Qualquer desses meios
é idôneo para executar alimentos indenizativos, aplicando-se eles, outrossim, à execução do
provimento antecipatório. Emitida tal decisão, a vítima poderá pleitear a “atuação” do provimento,
mediante o singelo expediente do desconto (art. 734, parágrafo único). Todavia, nem sempre o autor
do ilícito manterá relação de emprego ou estatutária, ensejando o desconto, que é o mais presto
daqueles mecanismos. Na falta de rendas ou aluguéis penhoráveis (art. 17 da Lei 5.478/68), admite-se
o emprego da coerção pessoal (art. 733); mas, o réu poderá alegar e provar impossibilidade
temporária de cumprimento (p.ex., falta de dinheiro), ou, simplesmente, deixar-se prender (art. 733,
§2º), acontecimentos que remetem o ofendido à expropriação (art. 735: “Se o devedor não pagar os
alimentos provisionais a que for condenado [...])”. (ASSIS, op. cit., 2006).
531
4.3.5.2.2.1 As astreintes
Partindo-se da premissa de que a tutela antecipada de soma em
dinheiro, se executada nos moldes normais da via expropriatória, não terá
a efetividade necessária para evitar o perigo de dano irreparável ou de
difícil reparação, de pronto já se constata a necessidade de utilização de
meios executivos mais agressivos e eficientes, visando ao alcance do
objetivo pretendido.
Insista-se na idéia de que a execução dessa espécie de tutela
antecipada não necessariamente seguirá as regras do processo de
execução por quantia certa – e nem necessariamente deverá abraçar as
novas regras que tratam do cumprimento da sentença (arts. 475, I, e segs.,
do CPC) –, especialmente em razão do caráter eminentemente emergencial
da medida. Acredita-se inexistir sentido em se atravancar a busca da
efetividade e a própria satisfação do direito material, conexo ao crédito
pretendido, escorando-se no argumento de que o procedimento de
execução por quantia certa (ou aquele que regula o cumprimento da
sentença) deve ser obrigatoriamente respeitado também nas execuções de
decisões que antecipam tutelas, já que o CPC não previu rito diverso para
executar pecúnia
955
. De igual maneira, é equivocada a tese que vê absoluta
similitude entre a execução provisória e a execução de tutela antecipada
de soma em dinheiro – e isso notadamente porque a primeira encontra
limitações que não se adéquam à natureza da última, sobretudo pela
955
Mais uma vez, importante a transcrição das lições do mestre Luiz Guilherme Marinoni: “Esse último
modelo executivo (execução por expropriação) não serve para dar efetividade à tutela urgente. Aliás, é
completamente inadequado à necessidade de obtenção de soma em dinheiro de modo urgente. A
Constituição Federal, ao garantir o direito à tempestividade da tutela jurisdicional, também garante o
direito às modalidades executivas adequadas a cada situação conflitiva concreta. Assim, se a execução
da tutela antecipatória baseada em fundado receio de dano através da via expropriatória é inefetiva,
não há como não admitir a sua execução mediante a imposição de multa, inclusive para que a própria
Constituição seja observada.” E finaliza seu entendimento: “A efetividade da tutela antecipatória
pressupõe que ao juiz tenha sido outorgada uma ampla latitude de poderes destinados à determinação
das modalidades executivas adequadas. Não é preciso que o legislador tenha deferido ao juiz,
expressamente, a possibilidade de usar a multa para efetivar a tutela antecipatória. A possibilidade do
seu uso decorre do fato de que a outorga de poder (poder de conceder tutela antecipatória) implica a
outorga de meios para que esse poder possa ser concretizado. Não há procedência em pensar que a
multa só pode ser utilizada se prevista, uma vez que o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva
(no caso à tutela antecipatória) não pode ser desconsiderado quando, diante de determinado caso
concreto, a efetivação da tutela jurisdicional depender de sua utilização.” (MARINONI, Luiz
Guilherme. A efetividade da multa na execução de sentença que condena a pagar dinheiro. Disponível
em <www.professormarinoni>. Acessado em 08/03/2006).
532
urgência caracterizadora das tutelas de urgência e pela sua premente
necessidade de efetividade.
Para Luiz Guilherme Marinoni, escorado nas lições de Luigi
Paolo Comoglio, se
o princípio da efetividade, albergado no art. 5.º, XXXV, da CF,
garante o direito à tempestividade da tutela jurisdicional, ele
também garante [...] o direito às modalidades executivas
adequadas a cada situação conflitiva concreta. Assim, se a
execução da tutela antecipatória baseada em fundado receio de
dano não tem efetividade mediante a via expropriatória, deve
ser admitida, inclusive para que seja observada a Constituição
Federal, a tutela antecipatória de soma por meio da imposição
de multa
956
.
É bem verdade que o legislador não atribuiu, de maneira
expressa, a possibilidade de utilização da multa nas execuções de tutela
antecipada de soma em dinheiro, apenas decretando que a efetivação da
tutela antecipada observará, no que couber, e conforme sua natureza, as
normas previstas nos arts. 588 (revogado), 461, §§4º e 5º, e 461-A, todos
do CPC (art. 273, §3.º, do CPC). Entretanto, a ausência de previsão legal
expressa não anuncia um veto direcionado ao juiz, proibindo-o de se
valer da multa como forma de motivar o devedor a cumprir uma obrigação
pecuniária, deferida em sede de tutela antecipada
957
.
O Estado, ao desautorizar a auto-tutela, assumindo para si o
monopólio da jurisdição, além de constituir para si um dever, edificou
para os integrantes da sociedade o direito de obterem a tutela
jurisdicional de forma adequada e tempestiva, direito esse inserido na
CF/88, notadamente nas linhas mestras que dão contorno ao princípio da
inafastabilidade do Judiciário. Obviamente que essa obrigação de prestar
a tutela jurisdicional de maneira adequada, tornando efetivo o direito
956
Id., 2004. p. 268-269.
957
Luiz Guilherme Marinoni, insistentemente, leciona: “Descabe o argumento no sentido de que a decisão
concessiva de tutela antecipatória não pode ser implementada por meio de técnica executiva mais
incisiva que aquela que serve à sentença. O que justifica a tutela antecipatória é algo absolutamente
diverso daquilo que está à base da sentença condenatória. A tutela antecipatória concedida a partir de
situação de urgência não ‘combina’ com a execução por expropriação, pelo simples motivo de que deve
realizar prontamente – ou sem delongas – o direito. Assim, ao contrário do que se poderia supor, a
decisão concessiva de tutela antecipatória pode ser efetivada por meio executivo não só distinto, mas
também mais incisivo que aquele que serve à sentença”. (Id., 2006).
533
material perseguido, implica a necessidade de se construir procedimentos
diferenciados, sintonizados com a variabilidade dos direitos materiais.
Contudo, é incoerente com os ditames constitucionais a idéia de
que, em não havendo procedimento positivado na legislação processual,
ajustado às necessidades do direito material perseguido, deve o Estado
simplesmente negar a devida prestação jurisdicional. Soa inconstitucional
o argumento de que, em não havendo procedimento positivado,
devidamente ajustado à efetivação da tutela antecipada de soma em
dinheiro, ao Estado caberia unicamente negar a efetividade pretendida,
maniatando-se no procedimento próprio regulado pelo Livro II do CPC –
ou no novo procedimento criado para o cumprimento da sentença, pela Lei
n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005 (art. 475-I e segs., do CPC).
Em sede de tutela antecipada, tutela jurisdicional efetiva é
aquela concedida de maneira quase instantânea, plenamente capaz de
acelerar, parcial ou integralmente, os efeitos executivos da sentença de
mérito. E, por óbvio, o procedimento de execução por quantia certa contra
devedor solvente, ou, aquele, que regula a execução provisória, não serão
capazes de garantir um resultado de tal natureza e vigor.
A multa
958
, desde que direcionada a devedor com condição
patrimonial suficiente ao pagamento do crédito, desponta como meio
958
A jurisprudência de vanguarda já acompanha esse entendimento. Exemplo interessante ocorreu em
Uberaba, MG, onde uma missionária italiana faleceu após consumir um patê de fígado fabricado pela
empresa Sadia S.A. No dia 17 de fevereiro do ano de 2005, a referida mulher teria ingerido o tal patê,
cuja data de validade teria vencido dois dias antes do consumo (15/02/2005). Naquele mesmo dia,
sentiu forte indisposição, ingressando num processo de vômitos; deu entrada no Pronto Socorro do
Hospital São Domingos, localizado naquela mesma cidade. Em 22 de fevereiro, a missionária veio a
óbito em decorrência de botulismo tipo “A”, conforme indicaram os resultados dos exames realizados
no patê e no material orgânico da vítima, pelo Instituto Adolfo Lutz. O filho da missionária, cuja idade
alcançava apenas nove anos, ajuizou ação indenizatória contra a referida indústria de alimentos.
Postulou tutela antecipatória, requerendo o adiantamento de soma pecuniária mensal para lhe garantir a
subsistência. O pedido a título de tutela antecipatória foi acolhido de pronto pelo Juiz da 5ª. Vara Cível
da Comarca de Uberaba, Dr. Wagner Guerreiro. Para garantir o cumprimento da determinação judicial,
foi estabelecida uma multa diária de igual valor para o caso de descumprimento. A decisão se baseou
nas provas de que a morte ocorreu por botulismo e que foi provocada pelo consumo do patê. O juiz
esclareceu, ainda, que o menor está desamparado, sem pai, órfão de mãe, contando apenas com o apoio
de sua guardiã judicial, pessoa de parcos rendimentos. Com a perda da mãe, passou também a
necessitar de acompanhamento psicológico. A Sadia S.A. recorreu ao Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, alegando que “a morte da missionária se deu por sua própria culpa, ao consumir,
imprudentemente, produto vencido.” Contudo, suas argumentações não surtiram efeito. Os
Desembargadores Antônio Sérvulo (Relator), José Flávio de Almeida e Nilo Lacerda negaram
provimento ao agravo de instrumento, mantendo a liminar deferida em primeiro grau de jurisdição, e
isso em consideração ao vasto conjunto de provas em favor do menor e o risco de que lhe seja causada
lesão grave e de difícil reparação, já que se encontra com quadro de saúde agravado e dificuldades
financeiras. (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Agravo de Instrumento n.
1.071.05.122115-1/001, Relator Desembargador Antônio Sérvulo, julgado em 30/11/2005. Informações
obtidas no site <www.espacovital.com.br>. Acessado em 21/02/2006).
534
coercitivo de eficácia comprovada na praxe forense, já que age sobre o
seu espírito, compelindo-o a cumprir a determinação judicial – afinal,
revela-se bem mais interessante pagar o principal sem qualquer acréscimo
oriundo da incidência de multa. Acredita-se que sua utilização ajusta-se
perfeitamente à execução de tutela antecipada de soma em dinheiro.
Porém, deve o juiz atentar-se, ao arbitrar a multa – por requerimento ou
de ofício –, para a necessidade de dar ao réu a oportunidade de adimplir a
obrigação ou justificar o não cumprimento
959
.
4.3.5.2.2.2 A penhora on line
A chamada penhora on line também se apresenta como um
valioso meio executório destinado à efetivação da tutela antecipada de
soma em dinheiro. E é Luiz Guilherme Marinoni quem atenta para essa
situação, indicando ser ela uma alternativa bastante importante para
garantir a necessidade de imediata efetivação da tutela antecipada de
importância pecuniária
960
.
O sistema BACENJUD, popularmente conhecido como penhora
on line, é disponibilizado pelo Banco Central a todos os órgãos do Poder
Judiciário que com ele firmem convênio. Trata-se de um sistema
desenvolvido pelo próprio Banco Central e que lhe possibilita um melhor
959
Não há que se pensar que a utilização da multa tem por condão eliminar a possibilidade de se executar
por expropriação. Nada disso. A multa é mais um meio à disposição da efetividade de tutela
jurisdicional. Atua conjuntamente, somando-se aos demais meios executórios, sempre focando a
satisfação do credor. Nessa trilha, leciona Luiz Guilherme Marinoni que a “multa coercitiva, como é
evidente, não deseja – nem pode – eliminar a execução por expropriação, uma vez que, diante da
própria natureza dessa multa, sempre será possível o descumprimento da sentença e, assim, necessária
a execução por expropriação, uma vez que, diante da própria natureza dessa multa, sempre será
possível o descumprimento da sentença e, assim, necessária a execução por expropriação. O desejo da
multa coercitiva – como acontece em qualquer caso – é o de convencer o demandado a adimplir. E isso
é possível – e pode trazer grandes benefícios – não apenas diante das obrigações de fazer, de não fazer
e de entrega de coisa, mas também em face das obrigações de pagar. Lembre-se, embora não devesse
ser necessário (pois é óbvio), que a multa não deve ser utilizada contra quem não possui patrimônio,
pois logicamente não serve para obrigar a quem não tem dinheiro a pagar. A multa tem efetividade em
relação àqueles que possuem patrimônio – como os bancos, seguradoras, construtoras etc. –, porém
verificam que, diante do sistema processual atualmente estruturado para execução, é muito melhor
calar que pagar. O que se pretende com a multa, em resumo, é evitar que o sistema processual
continue a ser utilizado para alimentar a injustiça. Ora, um sistema processual que estimula o
inadimplemento do infrator em prejuízo do lesado viola os direitos fundamentais, aqui especialmente o
direito de proteção de todo cidadão, e, assim, é flagrantemente inconstitucional. Não ver isso é
continuar estimulando os infratores – e assim os danos –, os quais certamente prosseguirão
entendendo que não é conveniente observar os direitos, pois é muito melhor ser executado.”
(MARINONI, op. cit., 2006).
960
MARINONI, op. cit., 2004. p. 271.
535
aproveitamento de seus quadros de pessoal, já que um expressivo número
de servidores era disponibilizado para a leitura e encaminhamento das
determinações judiciais provenientes de todo o País. A par disso, ganhou
maior agilidade e eficiência no procedimento constritivo, minimizando o
insucesso das diligências
961
.
O bloqueio de créditos disponíveis em contas bancárias tem
evidente amparo na legislação nacional, tanto que sempre foi realizado,
embora demandasse recursos mais morosos, consistentes na expedição de
ofícios ao Banco Central, para identificação da existência de contas
bancárias dos devedores e de disponibilidade de créditos, seguindo-se a
diligência de constrição através de oficial de justiça. Quando a conta se
situava em comarca diversa da área de competência geográfica do
magistrado, fazia-se necessária a expedição de carta precatória para que
outro juízo implementasse a constrição. Toda demora inerente ao
procedimento tradicional, no mais das vezes, acabava por permitir que o
devedor frustrasse a penhora, efetuando o saque de seus depósitos
962
.
Agora, o juiz pode encaminhar ofícios via internet às
instituições financeiras, solicitando informações sobre a existência de
contas bancárias ou aplicações financeiras em nome do devedor,
determinando o bloqueio e/ou o desbloqueio de contas, ou requisitando
outras informações que vierem a ser definidas pelas partes
963
.
Esse meio executivo, a exemplo do que ocorre com a imposição
de multa, apenas surtirá efeito positivo acaso o réu possua patrimônio,
notadamente dinheiro, aplicado ou depositado em contas bancárias.
Entretanto, tal constatação não desabona a importância desse mecanismo,
pois, pelo princípio da responsabilidade patrimonial, o devedor,
efetivamente, sempre responderá por suas dívidas com o patrimônio que
possui. Assim sendo, havendo ausência de patrimônio, a execução restará
frustrada, ao menos temporariamente, não em função da ineficácia do
sistema BACENJUD, mas pela existência de obstáculos políticos inerentes
ao próprio ordenamento jurídico.
961
COUTINHO, Grijalbo Fernandes. Anamantra divulga nota em defesa da penhora on line. Disponível
em <http://www.espcovital.com.br/asmaisnovas06082004x.htm>. Acessado em 15/12/2005.
962
Ibid., 2005.
963
MARINONI, op. cit., 2004. p. 272.
536
Não é coerente se exigir do credor esgotamento de todas as
diligências e alternativas necessárias à localização de bens penhoráveis
no patrimônio do devedor, antes de requisitar – e obter o deferimento de
seu pedido – a penhora on line. Salvo melhor juízo, essa imposição,
mesmo na ação de execução, mostra-se desprovida de fundamento
jurídico,
964
apesar de muitos juízes entenderem de maneira contrária. Em
se tratando de execução de tutela antecipada de soma pecuniária, mais
razão ainda há para afastar essa idéia infundada, justamente em função da
urgência que impregna os casos concretos em que ela é postulada. Ora,
apenas haverá efetividade na execução de tutela de soma em dinheiro,
quando essa soma for prontamente entregue ou disponibilizada ao autor.
Por assim ser, absolutamente correta a decisão que ordena, de imediato,
bloqueios de em contas correntes, ou aplicações financeiras, em nome
daquele que se encontra obrigado a cumprir uma tutela antecipada de
soma de dinheiro, e que, mesmo depois de intimado, se recusa a adimplir
a determinação judicial, cuja efetividade se mostra imprescindível para
garantir um direito anexo ao direito de crédito – direito esse, muitas
vezes, fundamental, a exemplo daquele vinculado a própria vida.
Em se tratando de execução de tutela antecipada de soma em
dinheiro, logo depois de bloqueada a conta bancária ou aplicação
financeira por meio do sistema BACENJUS, deverá o magistrado, de
imediato, ordenar a expedição de alvará autorizando o levantamento,
parcial ou integral, do numerário, nos exatos parâmetros da decisão.
Afinal, o mero bloqueio não serve para satisfazer a pretensão urgente,
tendo força meramente acautelatória; de tal sorte, apenas haverá
efetividade depois que o dinheiro for levantado, entregue e utilizado por
aquele que obteve a concessão da tutela de urgência.
4.3.5.2.2.3 A prisão
Os alimentos têm por finalidade o fornecimento, ao alimentado,
daquilo que for preciso para a manutenção de sua subsistência,
964
MARINONI, op. cit., 2004. p. 272.
537
assegurando-lhe condições mínimas de sobrevivência e dignidade. Essa
manutenção se concretiza, ou pelo fornecimento mesmo de alimentos (in
natura ou obrigação alimentar própria), ou mediante a prestação de meios
destinados a obtê-los (obrigação alimentar imprópria)
965
.
No elenco dos direitos e garantias fundamentais, encontra-se
norma expressa impondo que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a
do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de
obrigação alimentícia e a do depositário infiel” (art. 5.º, LXVII, da
CF/88).
De igual modo, é a própria CF que apresenta conceito de débitos
de natureza alimentícia:
Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles
decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e
suas complementações, benefícios previdenciários e
indenizações por morte ou invalidez, fundadas na
responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em
julgado (art. 100, §1º, da CF/88).
A mera leitura de tais dispositivos conduz à conclusão de que
débitos de natureza alimentar não são apenas aqueles oriundos de vínculo
familiar entre credor e devedor, mas, também, os decorrentes de salários,
vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios
previdenciários e indenizações por morte ou invalidez fundadas na
responsabilidade civil. Ou seja, uma interpretação constitucional da
expressão alimentos evidencia toda sua amplitude, alheia às limitações de
cunho eminentemente parental.
Aliás, é nesse rumo o entendimento do jurista italiano Roberto
de Ruggiero, lição perfeitamente ajustada ao Direito pátrio, quando
afirma que a “obrigação alimentar pode nascer entre estranhos, por
virtude de convenção ou de disposição testamentária ou por efeito de um
delito, ou por virtude da lei entre pessoas ligadas por um determinado
vínculo de parentesco ou de afinidade”
966
.
965
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Atualizado por Paulo Roberto Benasse. Campinas:
Bookseller, 1999. v. 2, p. 74.
966
RUGGIERO, op. cit., 1999. p. 73.
538
Há, sim, uma tendência doutrinária e jurisprudencial restritiva
às obrigações de cunho eminentemente alimentar, para alguns maniatadas
tão-somente a circunstâncias judiciais envolvendo partes adversárias que
possuem algum vínculo familiar. E isso evidentemente ocorre com o
intuito de limitar, ao máximo, a prisão civil por dívidas
967
. De todo modo,
a doutrina e a própria jurisprudência de vanguarda já vêm apresentando
contornos de revolta contra esse entendimento restritivo, contrário à
própria CF.
Repita-se: os alimentos não se limitam apenas ao que seja
necessário à alimentação humana, relacionando-se diretamente à própria
subsistência do alimentado, de modo a albergar o vestuário, a educação, o
tratamento de saúde, enfim, todas aquelas despesas que a pessoa, como
integrante da sociedade, necessita para viver com um mínimo de
dignidade.
Assim sendo, é quase óbvia a constatação de que a indenização,
postulada em ação fundada em ato ilícito, poderá ter caráter alimentar.
Imagine-se, por exemplo, situação em que um homem é levado à morte,
em razão de um acidente de consumo, deixando esposa e filhos que dele
dependiam integralmente. Aqui não há qualquer diferença ontológica
entre a indenização postulada e a condenação de soma em dinheiro, que
967
Luiz Guilherme Marinoni é enfático ao afirmar que os meios executivos indicados nos arts. 733 e 734
do CPC são também utilizáveis como maneira de dar efetividade aos alimentos fundados em ato ilícito.
Esclarece o jurista: “A importância de pensar em direito fundamental à tutela jurisdicional, ao se
abordar a necessidade de meio executivo adequado, reside em que a interpretação da lei deve sempre
privilegiar o direito fundamental. Se o intérprete é obrigado a extrair da norma processual a sua
máxima efetividade – desde que, obviamente, não sejam postos em risco outros direitos dignos de
proteção –, é seu dever buscar o meio executivo capaz de dar efetividade aos alimentos indenizativos.”
E continua: “No CPC, especificamente entre os arts. 732 e 735, é prevista a chamada “execução de
prestação alimentícia”. Sustenta-se que esse procedimento não é aplicável aos alimentos
indenizativos, mas apenas aos alimentos de direito de família. Assim não seria possível, para se dar
efetividade aos indenizativos, o uso da prisão (art. 733, §1.º, CPC) ou o desconto em folha (art. 734,
CPC). Essa última posição entende que a diversidade da fonte dos alimentos pode justificar a
diferenciação dos meios de execução. Mas a conclusão é extraída de premissa falsa, pois a fonte dos
alimentos não importa quando aponta para o mesmo grau de necessidade. Ora, como é absolutamente
lógico, o que deve levar à discriminação dos meios executivos é a necessidade da soma em dinheiro, e
não a fonte dos alimentos. Se a necessidade do credor de alimentos de direito de família é a mesma da
do credor de alimentos indenizativos, e se esse último possui direito fundamental à efetividade da
tutela jurisdicional, é obrigatória a conclusão de que os meios executivos que estão nos arts. 733 e 734
do CPC são aplicáveis aos alimentos fundados em ato ilícito. Frise-se, aliás, que a Constituição
Federal, ao afirmar que a prisão é possível em caso de dívida alimentar (art. 5.º, LXVII, CF), teve a
intenção de deixar evidenciada a possibilidade de se usar a prisão, como meio de coerção, em relação
a qualquer espécie de obrigação alimentar. Tanto é que não fez qualquer alusão à fonte dos alimentos
que por ela poderiam ser beneficiados”. (MARINONI, op. cit., 2006).
539
um parente requer a outro para garantir sua subsistência, em ações de
alimentos. Em ambos os casos, o pedido refere-se a alimentos.
Contudo, é de se saber se a prisão civil poderia ser utilizada
como medida executiva a motivar o cumprimento de tutela antecipada de
pagamento de soma em dinheiro, em ações indenizatórias por ato ilícito.
Na intenção de elucidar esse problema, é curioso observar que o
legislador constitucional estabeleceu que a indenização por morte ou
invalidez, fundada em responsabilidade civil, apenas teria caráter
alimentar, quando fundada em sentença transitada em julgado (art. 100,
§1º, da CF/88). Ora, se a indenização postulada em sede de tutela
antecipada é naturalmente deferida por meio de uma decisão
interlocutória, numa interpretação voltada exclusivamente à literalidade
da lei, não seria ela verba de natureza alimentar, mormente porque a
norma constitucional fala em sentença transitada em julgado, e não em
decisão interlocutória.
Decerto o legislador constitucional não se atentou sobre a
importância da tutela antecipada como instrumento concretizador dos
alimentos, não a levando em consideração ao positivar o art. 100, §1º, da
CF/88. De todo modo, a norma constitucional existe e é bem clara. De
qualquer sorte, não se há que descartar, de plano, a possibilidade de
utilização desse meio coercitivo, próprio à execução de alimentos, na
execução de tutela antecipada de soma em dinheiro, requerida em ação de
indenização, sem antes estar-se defronte ao caso concreto.
É a análise caso a caso que irá permitir ao julgador decidir
sobre a possibilidade de se valer desse vigoroso meio executivo, próprio à
obrigação alimentar, visando à execução de tutela antecipada de soma em
dinheiro. Ser-lhe-á lícito superar a limitação constitucional (art. 100, §1º,
da CF/88) se um direito fundamental, de maior relevância naquele caso
concreto, encontrar-se na eminência de ser afetado. O princípio da
proporcionalidade certamente conduzirá, de maneira ajustada, a decisão
judicial.
Consoante leciona o mestre Luiz Guilherme Marinoni, o
problema da prisão civil deve ser pensado sob uma perspectiva voltada
aos direitos fundamentais. Se realmente se mostra necessário vedar a
540
prisão do devedor que não possui patrimônio – e assim considerar um
direito fundamental –, é absolutamente indispensável aceitar seu uso para
garantir a efetividade da tutela de outros direitos fundamentais. Em não
sendo efetivamente tutelado, o direito perde sua qualidade. Por óbvio que
a
proibição de fazer justiça-de-mão-própria não tem muito
sentido se ao réu for dada a liberdade de descumprir a decisão
que concedeu razão ao autor, pois nesse caso ela estará
fazendo prevalecer sua vontade, como se o Estado não
houvesse assumido o monopólio da jurisdição, cuja atuação
efetiva é imprescindível para a existência do próprio
ordenamento jurídico
968
.
De tal sorte, na execução de tutela antecipada de soma em
dinheiro, cuja natureza é alimentar, será lícito ao juiz, depois de deferida
a tutela antecipada, ordenar que o réu efetue o pagamento ou justifique a
impossibilidade de efetuá-lo, em conformidade com o disposto no art. 733
do CPC. Desatendida a ordem, ou não se escusando o devedor, o juiz
deverá determinar – se o caso concreto comportar – o desconto em folha
de pagamento da importância postulada a título de alimentos, sendo
igualmente possível que determine sejam as prestações cobradas de
alugueres de prédios ou de quaisquer outros rendimentos do devedor, que
serão recebidos diretamente pelo alimentado ou por depositário nomeado
pelo juiz. De igual forma, a multa e a penhora on line são meios
executivos que poderão ser utilizados em tais casos. A prisão é alternativa
última, cabível acaso o réu não atenda à ordem, ou não sendo possível, no
caso concreto, o desconto em folha ou o desconto de alugueres e
rendimentos
969
.
Repita-se: são os contornos do caso concreto que orientarão o
juiz em sua decisão
970
. Caberá ao juiz decidir se o meio executório
968
MARINONI, op. cit., 2004. p. 257.
969
Ibid., p. 279.
970
Aqui se defende a utilização da prisão como meio executivo plenamente apto a realizar o direito
material pretendido a título de tutela antecipatória. A prisão, como conseqüência da desobediência
injustificada da ordem judicial, também tem cabimento, muito embora, nesse caso, perderá ela o caráter
de meio executivo, considerando que o seu objetivo passa a ser repreensivo. Segundo a lição de Jorge
de Oliveira Vargas, “é possível, excepcionalmente, o juiz civil considerar em flagrante delito, por
crime de desobediência, de prevaricação ou do Decreto 201, art. 1.º, XIV, a pessoa que, sem
justificativa plausível, descumpre a sua ordem, pois acima do direito individual daquele que abusa de
seu direito de autonomia da vontade, está o interesse coletivo em fazer com que a jurisdição seja
541
pretendido pelo autor mostra-se adequado a garantir a efetividade da
tutela antecipada, sendo-lhe autorizado optar por meio outro, que não
aquele postulado pelo interessado. Conquanto não haja na lei um catálogo
impondo a ordem a ser seguida no momento de se determinar um meio
executivo, a melhor exegese, certamente, implantará na mente do julgador
a idéia de que a prisão, por ser medida extrema, deve ser colocada como
alternativa derradeira.
4.3.5.2.3 A questão da irreversibilidade
O §2º do art. 273 do CPC indica um outro pressuposto
aparentemente necessário ao deferimento da tutela antecipada, cujo
formato apresenta-se negativamente. Em outras linhas, tal dispositivo
exclui o cabimento da antecipação “quando houver perigo de
irreversibilidade do provimento antecipado”.
Vale dizer, a propósito, que tal irreversibilidade não se refere
ao provimento em si mesmo, mas, sim, aos efeitos dele emanados. Ou
seja, não se antecipará a tutela quando houver perigo de que a concessão
gere efeitos irreversíveis.
Tanto a doutrina, como a própria jurisprudência, comungam com
uma interpretação que abrande o aparente rigor da norma. Não é nenhuma
novidade que a antecipação de tutela afigura-se imprescindível para
salvaguardar o direito perseguido, de modo que, notadamente naquelas
hipóteses em que tal direito é de ordem constitucional (direitos
fundamentais), a circunstância de serem irreversíveis os respectivos
efeitos da tutela antecipada não deve bastar para excluir a possibilidade
de seu deferimento.
O mestre José Carlos Barbosa Moreira apresenta alguns
exemplos interessantes: a) há necessidade urgente de submeter menor a
uma transfusão de sangue, para salvar-lhe a vida, mas um dos pais opõe-
se ao ato, por motivo religioso, e faz-se necessário requerer ao juiz o
eficiente, e que bens ou valores relevantes sejam efetivamente protegidos, ainda que com o sacrifício
da liberdade do renitente”. (VARGAS, Jorge de Oliveira. As conseqüências da desobediência da
ordem do juiz cível. Sanções: pecuniária e privativa de liberdade. Curitiba: Juruá, 2003. p. 184).
542
suprimento da autorização: se não for obtido incontinenti, o provimento já
não será útil. b) O ofendido em sua honra requer a apreensão do jornal
que contém a matéria injuriosa: a não ser que se antecipe a tutela, os
exemplares já terão circulado e causado, no seio da comunidade, a
repercussão nociva à reputação do lesado
971
.
Nessas hipóteses, e em várias outras, a antecipação produzirá
efeitos irreversíveis: não se poderá restituir à fonte o sangue
transfundido; o jornal apreendido não mais circulará utilmente. Contudo,
o não deferimento na tutela antecipada, em tais casos, surtiria efeitos
igualmente irreversíveis – é o que o Ministro Athos Gusmão Carneiro
intitula de irreversibilidade recíproca. Sem a oportuna transfusão de
sangue, o menor provavelmente morreria; não haveria como recolher os
exemplares vendidos do jornal, e muito menos como apagar da mente dos
leitores a impressão já produzida
972
.
Assim sendo, efeitos irreversíveis podem surgir, quer no caso de
conceder-se, quer no de se negar a antecipação. E a atitude mais razoável
– parafraseando José Carlos Barbosa Moreira – certamente consiste em
proceder a uma valoração comparativa dos riscos, balanceando os dois
males, para escolher o menor
973
.
Em tais casos, caberá ao juiz utilizar-se do chamado princípio
da proporcionalidade, segundo o qual, diante de dois interesses
contrapostos, deve-se proteger o interesse preponderante, ainda que isto
gere prejuízo irreversível para o titular do outro interesse, que restou sem
proteção. Somente assim se estará garantindo o direito à tutela
jurisdicional adequada.
Daí porque não se concorda com a posição de Ovídio A.
Baptista da Silva, exposta em parecer elaborado em prol dos interesses da
empresa Souza Cruz S.A., em que deixa transparecer a impossibilidade de
deferimento de tutela antecipada de soma em dinheiro, necessária ao
custeamento de tratamento de saúde de fumante, mormente naqueles casos
971
MOREIRA, op. cit., 2004. p. 83.
972
Ibid., p. 83.
973
Ibid., p. 83.
543
em que o autor litiga sob o pálio da assistência judiciária, na condição de
pessoa carente de recursos materiais. Aponta o mestre que os
pagamentos que forem efetuados, para que ele (o fumante)
custeie o tratamento de saúde, não serão reavidos pela
consulente, no caso de improcedência da ação. A medida
liminar, embora seja, sob o ponto de vista processual, uma
decisão provisória, posto que revogável, produzirá efeitos
definitivos, pela impossibilidade prática de sua reversão
974
.
Sem dúvida que, em casos tais, o magistrado, decidindo de uma
ou de outra maneira, causará a um dos pólos prejuízo irreversível.
Todavia, essa possibilidade de irreversibilidade, sobretudo quando se
estiver diante de situações envolvendo direitos fundamentais, aconselha o
enternecimento da regra da irreversibilidade, de sorte que ao juiz caberá,
mediante a utilização do princípio da proporcionalidade, sopesar os
valores constitucionais contrapostos (direito à segurança jurídica de um
lado, e direito à saúde e/ou à vida de outro) para, então, escolher aquele
cujos efeitos irreversíveis tenham menor importância no contexto social
do caso concreto. E, data venia, encontrando-se presentes os requisitos
autorizadores da medida antecipada de soma em dinheiro, destinada ao
tratamento da saúde de um tabagista, a decisão judicial deve ser positiva,
abrandando o magistrado a regra da irreversibilidade, justamente em
função da supremacia dos valores saúde e vida na ordem constitucional do
País.
4.3.5.2.4 A possibilidade de audiência de justificação prévia para
demonstrar os requisitos autorizadores da tutela antecipada
A audiência de justificação prévia, comum em ações
possessórias (art. 928 do CPC), ações cautelares (art. 804 do CPC), e
ações de usucapião (art. 942, I, do CPC), tem por serventia a colheita de
974
Trata-se de brilhante parecer, não publicado, elaborado pelo mestre Ovídio A. Baptista da Silva,
produzido em defesa da empresa Souza Cruz S.A. e juntado aos autos de uma ação coletiva ajuizada
pela Associação de Defesa da Saúde do Fumante (ADESF). Em complementação do assumo, o jurista
ainda esclarece: “Esta é uma daquelas hipóteses lembradas por Sergio La China, em que o juiz, para
evitar o dano irreparável a uma das partes, acaba produzindo um dano igualmente irreparável a seu
adversário, como se a situação gerasse um “pregiudizio bilaterale alternativo” (Pregiudizio bilaterale
i crisi del provvedimento d’urgenza, Rivista di diritto processuale, 1980, p. 281)”.
544
provas objetivadas a carrear elementos de convicção ao magistrado,
justificando a concessão de um provimento liminar requerido. Nas
palavras do jurista Eduardo Talamini:
A audiência de justificação tem por finalidade conceder ao
autor que requereu a antecipação de tutela a oportunidade de
demonstrar o risco de danos e (ou) a plausibilidade do direito
afirmado, nos casos em que o juiz não reputou viável, desde
logo, a concessão ou indeferimento da medida. É sessão
presidida pelo juiz, em que se produzem provas orais, para fins
de cognição sumária. Oralidade, imediação, concentração e
sumariedade material são seus principais atributos. Sua
finalidade exige que sua designação se dê sempre na data mais
próxima possível
975
.
Seria lícito ao juiz deferir – de ofício ou a requerimento da
parte – audiência de justificação prévia, visando formar seu
convencimento, antes de proferir decisão acerca de pretensão voltada ao
deferimento de tutela antecipada?
Já se afirmou existir previsão legal permitindo ao juiz designar
audiência de justificação prévia, antes de decidir sobre pedido liminar em
processo de cunho cautelar. É o que prevê o art. 804 do CPC, ao afirmar
ser lícito ao juiz conceder, liminarmente ou após justificação prévia, a
medida cautelar. De igual modo, em se pretendendo, por intermédio do
deferimento de uma tutela antecipada, a satisfação provisória de
obrigação de fazer, não fazer, ou dar coisa, poderá o interessado requerer
seja designada audiência de justificação prévia – podendo o juiz marcá-la
de ofício –, isso para demonstrar os requisitos autorizadores da medida,
sendo que qualquer dúvida acerca dessa possibilidade encontra-se
afastada, justamente em função da presença de expressas previsões legais
em tal rumo (arts. 461, §3º, e 461-A, §3º, todos do CPC, e art. 84, §3º, do
CDC).
Por outro lado, se o pedido de tutela antecipada tiver por
alicerce pretensão cujo objeto se fundamenta no art. 273 do CPC, dúvidas
surgirão sobre a possibilidade de designação de audiência de justificação
prévia, notadamente porque o legislador quedou-se silente a esse respeito.
975
TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001. p. 407.
545
De início, aponte-se que a inexistência de regra processual
expressa, autorizando a designação de audiência de justificação prévia,
em ações cujo pedido antecipatório satisfativo escora-se no art. 273 do
CPC, não autoriza a conclusão apressada, no sentido de que estaria o juiz
impossibilitado de designar tal audiência. Em termos legais, omissão não
significa vedação.
Aliás, numa análise focada na idéia da instrumentalidade do
processo, seria inaceitável proibir o juiz de designar uma audiência
preliminar, simplesmente porque a legislação processual é omissa.
Inaceitável, por ser o processo instrumento da jurisdição, meio através do
qual o direito material será efetivamente aplicado.
Destarte, se perceptível, aos olhos do juiz, a necessidade de
deferimento da tutela antecipada, mas, faltando-lhe a convicção
necessária para tanto, nada mais crível do que designar audiência de
justificação prévia – de ofício ou a requerimento da parte –, de sorte a
permitir ao interessado a possibilidade de demonstrar os requisitos
autorizadores da medida de urgência. Esse entendimento reforça-se,
quando o pedido antecipatório afina-se a uma pretensão voltada a garantir
direitos fundamentais cujo perecimento mostra-se evidente (vida, saúde,
liberdade, etc).
De outra parte, não se pode olvidar que a tutela antecipada
inclui-se no gênero tutelas de urgência. Ou seja, as tutelas de urgência
representam o gênero das quais são espécies as tutelas cautelares e
antecipadas. A tutela cautelar corresponde à medida por meio da qual a
ordem jurídica evita que o tempo cause prejuízos ao resultado útil e justo
do processo principal. Trata-se de tutela vinculada ao útil exercício da
jurisdição, de modo a garantir-lhe resultados críveis e aceitáveis. A tutela
antecipada, por sua vez, tem por fito a antecipação, parcial ou integral,
dos próprios efeitos pretendidos na sentença. Aqui o que se entrega ao
interessado é o próprio “bem da vida”, a própria satisfação que ele produz
no plano dos fatos, mesmo que provisoriamente. Em breves palavras, as
primeiras representam medidas de segurança para a execução; as últimas,
medidas de execução para a segurança, conforme leciona o mestre Ovídio
A. Baptista da Silva.
546
Ocorre que ambas as tutelas convergem ao objetivo de impedir
que o tempo danifique direitos. É por essa razão especial que a doutrina
enquadra as duas espécies de tutela num mesmo gênero, o das tutelas
urgentes. Essa a lúcida lição do respeitado processualista Cândido Rangel
Dinamarco:
É inegável, todavia, que tanto as cautelares quanto as
antecipatórias convergem ao objetivo de evitar que o tempo
corroa direitos e acabe por lesar alguma pessoa: mesmo sem
oferecer diretamente ao litigante a fruição do bem ou de algum
benefício que essa fruição poderia trazer-lhe, a tutela cautelar
evita que o processo se encaminhe para um resultado
desfavorável, como aconteceria se a testemunha viesse a faltar
ou o bem penhorável a ser destruído. Daí a legitimidade da
recondução dessas duas ordens de medidas a um gênero só, que
as engloba, ou a uma categoria próxima, que é a das medidas
de urgência
976
.
Para a moderna ciência processual – que é avessa a
conceitualismos e se preocupa primordialmente com o exercício da
jurisdição – possui maior relevância a descoberta dos elementos comuns a
essas duas espécies de tutelas, do que a metafísica busca dos fatores que
as diferenciam
977
.
E é inegável que ambas as tutelas, a cautelar e a antecipada,
apesar de suas visíveis discrepâncias, têm em comum o objetivo de obstar
os males do tempo, donde resulta a extrema semelhança dos dois
institutos
978
. Assim é que parte da doutrina autorizada – atenta ao fato de
que essa comunhão de objetivos existente entre as duas tutelas é muito
mais significativa e perceptível do que as suas diferenças – adota o
entendimento de que a singularidade que as une, autoriza, por analogia, a
aplicação à tutela antecipada de várias das disposições criadas para a
regulamentação do processo cautelar (Livro III). Novamente é de se citar
o magistério do professor Cândido Rangel Dinamarco:
976
DINAMARCO, Cândido Rangel. O regime jurídico das medidas urgentes. Conferência proferida na
Faculdade de Direito Mineira da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como evento
integrante do Seminário em homenagem a Lopes da Costa, aos 15 de junho de 2000. Disponível em
<http://www direitoprocessual.org.br>.
977
Ibid., 2000.
978
Ibid., 2000.
547
Assim, sendo tão intimamente ligados esses dois institutos, ao
menos por analogia devem ser aplicados à tutela jurisdicional
antecipada muitos dos dispositivos destinados diretamente à
tutela cautelar. Sabido que o legislador de 1973, ao elaborar o
Código de Processo Civil, não tinha consciência da distinção
entre cautelares e antecipações, e que o de 1994, ao reformá-
lo, limitou-se a trazer o novo art. 273 sem a preocupação de
delinear por inteiro o instituto, a abrangência geral do disposto
no Livro III é um imperativo hermenêutico das regras de
interpretação histórica, sistemática e teleológica. Só pela
lógica do absurdo se poderia afirmar que algumas dessas
disposições só se aplicam, se a parte optar pela qualificação da
medida como cautelar e não antecipatória, ou que devem dar
tratamentos diferentes a dois institutos tão intimamente
ligados, como irmãos gêmeos quase siameses
979
.
Logo, o instituto da antecipação da tutela deve ser utilizado
sempre com vistas aos dispositivos criados para regulamentar a tutela
cautelar, para, através de uma interpretação sistemática de toda a
legislação processual, dar-lhe o colorido jurídico necessário à integração
do seu perfil. E, partindo-se de tal premissa, nada mais correto do que se
defender a possibilidade de designação de audiência de justificação
prévia, também antes de se decidir acerca de um pedido de tutela
antecipada fundada no art. 273 do CPC.
Finalizando esse tópico, afirme-se haver entendimento
doutrinário defendendo que a audiência de justificação prévia estaria
restrita à demonstração do periculum in mora. Todavia, consoante aponta
Eduardo Talamini, não há fundamento literal nem sistemático que
legitime tal limitação
980
, de modo que ao interessado é permitido provar,
em audiência de justificação prévia, todos os requisitos necessários ao
deferimento da medida antecipada satisfativa pretendida, esteja o pedido
assentado no art. 84, §3º do CDC, ou nos arts. 273, 461, §3º, ou 461-A,
do CPC.
4.3.5.2.5 O momento da antecipação
Por sua própria natureza, a tutela antecipada normalmente será
concedida antes do provimento definitivo de mérito.
979
DINAMARCO, op. cit., 2000.
980
TALAMINI, op. cit., 2001. p. 407.
548
Normalmente não significa sempre. De tal sorte, ao órgão
julgador é lícito deferir a tutela antecipada em 4 (quatro) diferentes
momentos: a) liminarmente; b) após a contestação, por meio de decisões
interlocutórias; c) na própria sentença; e d) após a sentença e na
pendência de recurso.
Consoante o já afirmado, comumente a tutela antecipada será
deferida, ou liminarmente, ou no curso do processo de conhecimento,
antes de proferida a sentença, isso por meio de decisões interlocutórias.
É coerente essa idéia, ao se considerar que a finalidade dessa
técnica é justamente a de acelerar a prestação jurisdicional, antecipando-
se os efeitos executivos da própria sentença de mérito.
Contudo, é perfeitamente possível ao juiz conceder a tutela
antecipada na própria sentença. De início, esse raciocínio pode parecer
deveras incoerente. Afinal, qual seria o objetivo de se antecipar efeitos da
sentença na própria sentença já proferida? Se a sentença foi proferida,
sendo o pedido julgado procedente, o que haveria de se antecipar?
Primeiramente, há de se considerar que não se busca antecipar
apenas a sentença, provimento jurisdicional cujos efeitos limitam-se ao
mundo jurídico. Pretende-se, sim, acelerar os efeitos executivos dessa
sentença, plenamente capazes de resultar em transformações no mundo
dos fatos, satisfazendo, mesmo que provisoriamente, a pretensão do
requerente. Assim, justificar-se-ia o deferimento de tutela antecipada na
própria sentença, permitindo-se ao requerente beneficiar-se dos efeitos
executivos dela emanados, mesmo que haja interposição de recurso de
apelação, e antes mesmo de uma possível execução provisória da
sentença.
Sob outra ótica, sabe-se que a regra prevalecente no
ordenamento processual é a de que o recurso de apelação deve ser
recebido em ambos os efeitos. Entretanto, o art. 520 do CPC excepciona a
norma geral, impondo que será recebida, só no efeito devolutivo, a
apelação interposta contra sentença que confirmar a antecipação dos
efeitos da tutela. Esqueça-se, de início, a interpretação meramente literal,
porquanto, se utilizada, a ilação que dela mais provavelmente se obteria,
certamente seria a de que a tutela antecipada apenas pode ser concedida
549
por decisão interlocutória, jamais por sentença – afinal confirmar a
antecipação soa gramaticalmente diverso de deferir a antecipação
981
.
Logo, o autor, favorecido pela própria sentença com o deferimento da
tutela antecipada, terá em seu benefício a aceleração dos efeitos
executivos de tal decisão, uma vez que, quanto à parte que toca à tutela
antecipada, o recurso de apelação será recebido apenas no efeito
devolutivo.
Lado outro, mesmo após a sentença, e na pendência de recurso,
também será cabível a antecipação de tutela, caso em que a medida será
endereçada ao Tribunal, cabendo ao relator deferi-la, obviamente que se
presentes os seus pressupostos autorizadores. Não é, de maneira alguma,
equivocada essa afirmação; afinal, não há como se prever quando e como
a “ameaça de dano irreparável ou de difícil reparação” surgirá,
despertando a necessidade de se obter uma tutela antecipada.
Ressalte-se, ainda, que, às vezes, o periculum in mora emerge
ameaçador no interregno entre a prolação da sentença e a interposição do
recurso cabível. Em tal hipótese, surge a dúvida: qual é o órgão judicial
competente para apreciar e decidir o pedido de tutela antecipada, o juiz de
primeiro grau ou o Tribunal? Salvo melhor juízo, ecoa mais acertada a
posição daqueles que defendem permanecer a competência com o juiz de
primeiro grau, desde que os autos ainda se encontrem em seu poder, não
tendo sido, ainda, remetidos ao Tribunal.
5 Procedimento de substituição da parte falecida: habilitação
O processo apresenta-se como uma relação jurídica dinâmica,
iniciada por estímulo daquela parte interessada (sujeito ativo) em obter
um provimento jurisdicional que lhe favoreça, e cujo aperfeiçoamento se
981
Interessante notar, nesse ponto, que o direito processual brasileiro convive, hoje, com um paradoxo grave.
Há evidente descompasso entre a eficácia da decisão interlocutória que concede a tutela antecipatória e
a sentença. Aquela, muitas vezes, fundada em juízos de probabilidade – cognição sumária, portanto –, é
imediatamente eficaz, podendo ser atacada por recurso que, via de regra, é recebido sem efeito
suspensivo. A sentença, por sua vez, proferida com base em um juízo de certeza (cognição exauriente),
não é imediatamente eficaz, sendo impugnável por recurso recebido, via de regra, com efeito
suspensivo. Essa situação induz o estudioso à constatação de que a decisão fundada em cognição
sumária pode ser mais eficaz que aquela outra (sentença), fundada em cognição exauriente.
550
completa com a citação do réu, para figurar como sujeito passivo da
demanda.
Ao órgão julgador caberá solver a crise de interesses que aflige
os litigantes, numa atividade procedimental complexa e burocrática,
destinada à busca do convencimento necessário ao julgamento da causa e
à conseqüente pacificação social. Essa atividade se consubstanciará numa
série de atos sucessivos, comandados pelo juiz e sempre com a presença
de todos os sujeitos da relação.
Se um dos sujeitos falece antes de se alcançar a prestação
jurisdicional, o movimento da relação jurídica em curso se inviabiliza,
momento em que, noticiado o óbito no feito e versando a causa sobre
direitos não personalíssimos, o processo é imediatamente suspenso (art.
265, I, do CPC), sendo vedada a prática de novos atos – excetuados
aqueles previstos no §1º do art. 265 e no art. 266, todos do CPC. Nesse
rumo, a precisa lição de Alexandre Freitas Câmara:
Quando ocorre o falecimento de uma das partes, sendo sua
presença essencial para o processo, e sendo intransmissível a
posição jurídica por ela ocupada (por exemplo, quando morre o
devedor de obrigação personalíssima cujo cumprimento se
exigia), não há outra solução que não a extinção do processo,
sem resolução do mérito (com fulcro no que dispõe o art. 267,
IV, do Código de Processo Civil). Não sendo este o caso,
porém, a conseqüência da morte de uma das partes é a
suspensão do processo, com base no que dispõe o art. 265, I,
do CPC
982
.
Da necessidade de se substituir a parte falecida por seus
legítimos sucessores, o legislador processual estabeleceu um
procedimento especial, cuja finalidade é a de examinar a qualidade
daqueles que pretendem assumir o pólo lacunoso, restabelecendo a relação
jurídica processual e, por resultado, permitindo o caminhar normal do
processo. Tal procedimento é denominado de habilitação, e é regido pelos
arts. 1.055 a 1.062 do CPC.
Como afirmado, a habilitação apenas tem lugar nas chamadas
ações não personalíssimas, aquelas que não envolvem direitos
982
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris,
2004. v. II, p. 495.
551
intransmissíveis aos herdeiros da parte, cuja regra é justamente a
transmissibilidade causa mortis dos débitos e créditos (arts. 1784 e 1792
do CC). Em sendo a causa de natureza personalíssima, não há que se falar
em habilitação, de maneira que a morte da parte conduz à imediata
extinção do processo, sem julgamento do mérito, em consonância com o
que dispõe o art. 267, IX, do CPC
983
.
São vários os males acarretados pela prática do tabagismo,
muitos mortais e cujo tratamento apenas prolonga um pouco mais a vida
dos enfermos. Com efeito, em ações condenatórias ajuizadas pelos
fumantes contra a indústria do tabaco, o conhecimento dos contornos e
etapas do procedimento da habilitação se mostra imprescindível,
notadamente porque muitos autores-fumantes infelizmente não
acompanharão o procedimento judicial por eles instaurado até o seu fim.
Deveras, não há maiores dificuldades e controvérsias no estudo
da habilitação.
Em pertencendo o procedimento de habilitação à categoria das
ações incidentes, a competência para processá-la e julgá-la é do juiz da
causa principal (art. 109 do CPC), sendo que ela poderá se dar em
qualquer processo ou fase procedimental. Contudo, pode acontecer que o
processo principal já esteja tramitando no tribunal, seja em grau de
recurso, seja como causa de sua competência originária. Nessa hipótese, o
processamento da habilitação se fará perante o relator e o julgamento
observará o dispositivo do respectivo regimento interno (art. 1.059 do
CPC)
984
.
Quanto à legitimidade, a habilitação pode ser requerida: a) pela
parte, em relação aos sucessores do falecido; e b) pelos sucessores do
falecido em relação à parte. Não prevê a lei – parafraseando Humberto
Theodoro Júnior – a regularização do processo paralisado ex officio, isto
é, promovida por deliberação originária do próprio juiz. E na medida em
que ninguém pode ser compelido a demandar como autor e ninguém pode
983
THEODORO JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil. 32. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004. V. III, p. 295.
984
THEODORO JÚNIOR, op. cit., 2004. p. 296.
552
ser réu sem ser escolhido pelo autor, parece lógica a ausência de
permissibilidade legal ao juiz de assumir a iniciativa de habilitar
compulsoriamente os sucessores dos litigantes primitivos
985
.
O CPC estabeleceu dois tipos de procedimentos para a
realização da habilitação. São eles: a) sob a forma de ação incidente,
correndo em autos próprios e sujeitando-se a uma sentença especial (arts.
1.057 e 1.058 do CPC); e b) sob a forma de habilitação direta nos autos
da causa principal e independentemente da sentença (art. 1.060 do CPC).
A primeira hipótese se reserva àquelas situações em que haja
controvérsia ou resistência (ativa ou passiva) à substituição da parte
falecida, razão pela qual o autor da ação incidental deverá provocar a
abertura de novo feito, através de petição inicial que respeite todos os
requisitos do art. 282, essa a ser distribuída por dependência e autuada em
apenso aos autos principais
986
.
Recebida a petição inicial, o juiz ordenará a citação dos
requeridos para contestarem a ação, isso no prazo de 5 (cinco) dias (art.
1.057 do CPC), citação essa que deverá ser pessoal, exceto se a parte tiver
procurador na causa principal (parágrafo único do art. 1.057 do CPC).
Nesta ação não se pode discutir matéria distinta daquela que lhe
deu causa – a sucessão –, de modo que, tanto a inicial quanto a
contestação devem cingir-se à questão relativa à condição de sucessor do
autor (do processo de habilitação)
987
.
Ao fim do procedimento, tendo havido ou não produção de
provas, inclusive com a possibilidade de audiência de instrução e
julgamento, o procedimento será julgado por sentença, julgamento esse
que tem por fim exclusivo o acolhimento ou não do pedido de habilitação
dos sucessores do litigante morto.
Pode ocorrer de não ser necessária ação especial para a
habilitação, processando-se nos autos da causa principal e
independentemente de sentença (segunda hipótese procedimental), sempre
985
Ibid., p. 296.
986
Ibid., p. 296.
987
WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado
de processo civil. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. v. 3, p. 248.
553
que for promovida pelo cônjuge e herdeiros necessários, e desde que haja
prova documental do óbito e da qualidade de sucessores (art. 1.060 do
CPC)
988
.
Encerrada a habilitação, com ou sem sentença, e reconhecendo o
juiz a condição de sucessor, a suspensão do processo originário,
provocada pela morte da parte, cessa, retomando o seu curso normal (art.
1.062 do CPC), agora com o sucessor no lugar anteriormente ocupado
pelo falecido.
6 O prazo prescricional
Teresa Celina de Arruda Alvim, com a inteligência que lhe é
peculiar, leciona que o Direito atua em diversos “graus de criatividade”
sempre que cria ou transforma algo em jurídico. Os prazos encaixam-se
exatamente num grau em que a criatividade é total. Nessa seara, quase não
haveria que se falar em transformação. Afinal, fora do Direito os prazos
são desinteressantes. Apenas o tempo importa. Assim, o Direito
dimensiona o tempo, criando os tais prazos
989
. Ensina a jurista:
Então, os prazos [...] são alteráveis quanto à sua essência e
reguláveis quanto à sua forma de correr, desde que se
respeitem, com discricionariedade, os parâmetros fornecidos
pelo grau de proteção jurídica emprestado ao interesse a que o
prazo se refere. E nada impede que tudo isto seja fixado a
nível de direito positivo: o prazo tem tal nome, é de x dias, e
corre desta ou daquela forma
990
.
O estudo da prescrição e decadência situa-se na seara dessas
“realidades jurídicas” pertencentes exclusivamente ao Direito. São
realidades exclusivamente jurídicas, notadamente porque não resultaram
de transformações de realidades fáticas previamente existentes
991
.
Entretanto, ao menos de início, o legislador nacional não foi
inteiramente feliz na criação dos prazos relacionados a prescrição e
988
Ibid., p. 248.
989
ALVIM, Teresa Celina de Arruda. Prescrição e decadência. Revista de Processo n. 29. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1983. p. 57-71.
990
ALVIM, op. cit., 1983. p. 57-71.
991
Ibid., p. 57-71.
554
decadência. A redação adotada pelo já revogado CC de 1916, levava a
crer que todos os prazos a que aludiam os arts. 177, 178 e 179 seriam de
natureza prescricional. Consoante pontifica Teresa Celina de Arruda
Alvim, tal idéia mostrava-se inaceitável, sendo certo que se estava diante
de um engano a ser corrigido pelo intérprete, até que a legislação fosse
alterada
992
.
O equívoco foi corrigido. O CC de 2002 sistematizou a matéria
de maneira elogiável, separando-se, em Seções próprias, as normas
referentes a prescrição e decadência. Porém, anteriormente a isso, a
ausência de técnica por parte do legislador, acabou por conduzir a uma
série de estudos doutrinários, muitos profundos e apaixonantes, todos
destinados a definir as situações em que um ou outro conceito deveria ser
utilizado.
O legislador do CDC valeu-se de maior critério científico,
tratando da decadência e prescrição em artigos diversos, mesmo que
inseridos em uma mesma Seção (Título I, Capítulo IV, Seção IV, arts. 26
e 27 do CDC).
Consoante leciona William Santos Ferreira, dúvidas não restam
de que os casos previstos no art. 26 do CDC foram adequadamente
insertos nos casos de incidência do instituto da decadência. E isso porque
– e aqui se valendo do critério elaborado por Agnelo Amorim Filho –
993
é
inconteste que o art. 26, combinado com os artigos sobre o qual tem
incidência, tratam do surgimento de pretensões em que a carga
992
Ibid., p. 57-71.
993
A título de conclusões de seu trabalho intitulado “Critério científico para distinguir a prescrição da
decadência e para identificar as ações imprescritíveis”, Agnelo Amorim Filho leciona: “Reunindo-se as
três regras deduzidas acima, tem-se um critério dotado de bases científicas, extremamente simples e de
fácil aplicação, que permite, com absoluta segurança, identificar a priori, as ações sujeitas a
prescrição ou a decadência, e as ações perpétuas (imprescritíveis). Assim: 1.ª – Estão sujeitas a
prescrição: todas as ações condenatórias e somente elas (arts. 177 e 178 do Código Civil); 2.ª – Estão
sujeitas a decadência (indiretamente, isto é, em virtude da decadência do direito a que correspondem):
as ações constitutivas que têm prazo especial de exercício fixado em lei; 3.ª – São perpétuas
(imprescritíveis): a) as ações constitutivas que não têm prazo especial de exercício fixado em lei; e b)
todas as ações declaratórias. Várias inferências imediatas podem ser extraídas daquelas três
proposições. Assim: a) não há ações condenatórias perpétuas (imprescritíveis), nem sujeitas a
decadência; b) não há ações constitutivas sujeitas a prescrição; e c) não há ações declaratórias
sujeitas a prescrição ou a decadência.” (AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir
a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais n. 300. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1960. p. 7 e segs).
555
constitutiva prepondera, pretensões que visam criar, extinguir ou
modificar uma relação jurídica
994
.
O art. 27, por sua vez, refere-se à prescrição, sendo, inclusive,
expresso a esse respeito. Veja-se a literalidade da norma:
Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão a reparação pelos
danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na
Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a
partir do conhecimento do dano e de sua autoria.
A norma é impecável. Aliás, encontra-se também em
conformidade com a classificação elaborada por Agnelo Amorim Filho, na
medida em que a prescrição atinge apenas a pretensão à reparação de
danos causados ao consumidor pelo fato do produto ou do serviço. Isto é,
a prescrição atinge apenas as pretensões condenatórias oriundas de
acidentes de consumo.
A responsabilidade civil da indústria do tabaco, em virtude de
enfermidades, ou morte, causadas pelo cigarro a fumantes diretos ou
passivos, traduz-se numa relação de consumo, resolvendo-se, a princípio,
pelas normas do CDC.
Com efeito, os consumidores (ou seus familiares, em caso de
falecimento) terão cinco anos, iniciando-se a contagem do prazo a partir
do conhecimento da enfermidade e de sua autoria, para pleitearem
ressarcimento civil pelos danos advindos do tabagismo.
O que se tem discutido é se, depois de decorrido o prazo
prescricional do art. 27 da Lei 8.078/90, as ações promovidas deverão, ou
não, ser julgadas extintas, com julgamento do mérito, em conformidade
com o prescrito no art. 269, IV, do CPC.
A jurisprudência, em sua maioria, tem decidido em favor da
extinção de processos promovidos após o decurso do prazo prescricional,
previsto no CDC. Nesse sentido, o Agravo de Instrumento 104.923.4/5, da
5
a
. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo,
julgado em 25.03.1999, que teve como relator o Desembargador Marco
César:
994
FERREIRA, op. cit., 1994. p. 81-82.
556
Responsabilidade civil. Ação de consumidor contra fabricante
de cigarros, pretendendo indenizar-se por males decorrentes do
tabagismo. Prescrição alegada, com base no art. 27, do CDC,
que se acolhe, não tendo aplicação a norma do art. 177, do CC.
A responsabilidade civil, cujo nexo de causalidade esteja em
relação de consumo, pelo Código de Defesa do Consumidor se
resolve, não podendo ser aplicada a lei geral onde existe lei
especial dispondo sobre a relação jurídica interessante. Agravo
da ré provido, para extinguir o processo ante o reconhecimento
da prescrição, que fora afastada no saneador; indeferido pedido
de suspensão do processo, por morte do agravado, denunciada
apenas após a remessa dos autos à mesa
995
.
Entretanto, essa orientação
996
, nem sempre, será a ideal. É a
análise caso a caso que possibilitará ao juiz extinguir, ou não, o processo,
com julgamento de mérito. Afinal, a prescrição não fulmina o direito,
mas apenas a pretensão. E o art. 27 do CDC estabelece que a prescrição,
em tais hipóteses, atinge, apenas, a pretensão a reparação pelos danos
causados por fato do produto ou do serviço. De tal sorte, em
sobrevivendo o direito, é de indagar se o ordenamento jurídico estabelece
uma outra via para o seu acesso. E a resposta é positiva, na medida em
que o CC também abre caminho à reparação de danos.
Essa a abalizada posição de Willian Santos Ferreira:
Como se vê, o caso é de prescrição, que ao cabo do prazo de
cinco anos atingirá a pretensão do consumidor com base no
CDC, mas não o impedirá de ajuizar outra ação, desde que não
prescrita a prevista no art. 159 do CC, todavia não possuirá as
inúmeras benesses do CDC. Como leciona Nelson Nery Jr.: “do
mesmo modo, a prescrição nada tem a ver com o direito, pois o
direito pode sobreviver à prescrição” [...]
997
.
Luíz Daniel Pereira Cintra, segue o mesmo rumo:
Segundo pensamos, o qüinqüênio prescricional somente alcança
as ações reparatórias que tenham como fundamento os
dispositivos do CDC em relação à responsabilidade pelo fato
do produto. Aliás, di-lo expressamente o art. 27 (“[...] a
995
CÉSAR, Marco. Revista de processo n. 99. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. (trimestral). p.
343-344.
996
Superior Tribunal de Justiça também já seguiu essa orientação. Consultar, a respeito, o REsp n.
304.724-RJ, 3ª. Turma, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, j. 24/05/2005. Disponível em
<http://www.stj.gov.br>. Acessado em 06/02/2006.
997
FERREIRA, op. cit., 1994. p. 92.
557
pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto
ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo” [...])
998
.
A esse respeito, lembre-se que os direitos previstos pelo CDC
não excluem outros, enunciados em leis anteriores, em conformidade com
o que reza o seu art. 7.º. Nessa trilha, o consumidor poderá se valer, em
situações específicas, daquele prazo prescricional de vinte anos,
esculpido no art. 177 do revogado CC, quando a ação tiver sido ajuizada
depois de já decorrido o prazo prescricional previsto na Lei n. 8.078/90
(art. 27).
Noutros termos: apenas se aplicará o prazo prescricional de
vinte anos, previsto no CC revogado, nos casos concretos já ajuizados – e,
portanto, em curso –, e cuja data de distribuição tenha ocorrido há, no
mínimo, dez anos e um dia, contados da data de vigência do CC atual, isso
sempre que a ação tiver sido promovida depois que superados os cinco
anos previstos no art. 27 do CDC, contados a partir do conhecimento da
enfermidade e de sua autoria. Essa conclusão advém de uma interpretação
voltada exclusivamente ao art. 2.028 do CC:
Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando
reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em
vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo
estabelecido na lei revogada.
Em tal caso, a pretensão reparatória apenas será procedente
acaso se amolde às regras e exigências do instituto da responsabilidade
civil definidas pelo CC, situação em que o consumidor (ou seus
familiares, em caso de morte) sequer terá como usufruir das várias
benesses que foram a ele conferidas pelo CDC. Logo, se o consumidor
pretende valer-se do tratamento favorável que a legislação lhe oferece em
relação à responsabilidade decorrente de acidentes de consumo, é
necessário que ele o faça no prazo fixado pela lei
999
.
998
CINTRA, Luís Daniel Pereira. Anotações sobre os vícios, a prescrição e a decadência no código de defesa do
consumidor. Revista de Direito do Consumidor n. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 145.
999
CINTRA, op. cit., 1993. p. 145.O mesmo autor cita um exemplo interessante, após observar que a
inobservância de tal prazo (5 anos) não implica, porém, a impossibilidade absoluta da formulação de
pretensão reparatória em juízo, haja vista que subsistirá ao prejudicado do direito de fazê-lo com base
no CC. Esse o exemplo: “A hipótese é semelhante à da ação contra o construtor e o incorporador por
558
Por fim, atente-se para o fato de que a prescrição, para ser
decretada, não mais exige declaração de vontade por parte do réu. Aliás,
desde a publicação da Lei n. 5.925, de 01 de outubro de 1973, o juiz já
podia, de ofício, conhecer da prescrição, decretando-a de imediato, desde
que a pretensão não se tratasse de direitos patrimoniais. Hoje,
notadamente depois da publicação da Lei n. 11.280, de 16 de fevereiro de
2006, o juiz, independentemente da natureza da pretensão postulada,
poderá, de ofício, conhecer e decretar a prescrição.
defeito prejudicial à solidez e segurança do edifício, em que, conforme percucientemente anotado por
J. Nascimento Franco e Nisske Gondo, o prazo de 5 anos referido no art. 1.245 do CC (revogado), vem
sendo reconhecido, segundo orientação jurisprudencial dominante, como simples garantia,
prescrevendo a ação indenizatória em 20 anos, nos termos do art. 177 do estatuto referido (CC
revogado)”. (Ibid., p. 145).
CONCLUSÕES
1 Substâncias do cigarro
A fumaça do cigarro é uma mescla de, aproximadamente, quatro
mil e oitocentas substâncias cancerígenas, agrotóxicas e, até mesmo,
radioativas.
A nicotina, considerada droga pela Organização Mundial de
Saúde, bem como por outras entidades internacionais de saúde, é a
substância responsável pela dependência do fumante. A dependência pela
nicotina estabelece-se com grande rapidez, mais especificamente no
período de um a três meses.
2 A relação entre o tabagismo e diversas enfermidades
O tabagismo é responsável por 30% das mortes por câncer, 90%
das mortes por câncer no pulmão, 25% das mortes por doenças
coronarianas, 85% das mortes por doença pulmonar obstrutiva crônica e
25% das mortes por doença cerebrovascular, além de estar relacionado
direta ou indiretamente com diversas outras doenças. É, ainda,
considerado a mais devastadora causa evitável de doenças e mortes
prematuras da história da humanidade. O vício de fumar atingiu proporção
561
pandêmica, sendo responsável por quatro milhões de mortes prematuras
anuais em todo o mundo entre aqueles que o cultivam, sendo 2,5 milhões
nos países desenvolvidos e 1,5 milhão nos países em desenvolvimento.
Outras doenças diversas são associadas ao consumo de cigarros,
como, por exemplo, a artrite reumatóide, a tromboangeíte obliterante, a
psoríase, a úlcera no estômago e no duodeno, a osteoartrite, a amigdalite,
a hipertensão, a ambliopia do fumo, a periodontite, o mal de Buerger, a
doença de Peyronie, o câncer do reto e, até mesmo, a gripe.
O tabagismo não apenas acarreta diversas enfermidades, como
ele mesmo é considerado uma enfermidade. E isso justamente pela enorme
dificuldade de se eliminar o vício do organismo do fumante. Já se
acreditou que a força de vontade era suficiente para quem quisesse parar
de fumar. A ciência se encarregou de provar o contrário, ou seja, na
prática, mesmo querendo, é muito difícil abandonar o consumo de tabaco.
Os fumantes passivos também podem vir a adquirir
enfermidades associadas ao tabaco, em virtude do contato com a fumaça
tóxica do cigarro.
3 A relação de consumo firmada entre fumantes e a indústria do fumo
É uma relação de consumo aquela envolvendo fumantes (ativos
ou passivos) e a indústria do fumo, sendo o cigarro (ou outro produto
proveniente do tabaco) o elo que une tais pólos.
O tabagista é um consumidor típico; o fumante passivo, a
coletividade de fumantes, tal como os entes expostos à publicidade do
cigarro, são consumidores por equiparação legal; as empresas que
compõem a indústria do tabaco são fabricantes de produtos; e finalmente,
o cigarro, um produto potencialmente nocivo à saúde.
As fabricantes de cigarro têm, como atividade profissional, a
fabricação de produtos do tabaco, objetivando a sua comercialização. No
Brasil, a Souza Cruz S.A., controlada pelo grupo British American
Tobacco, e a Philip Morris do Brasil, destacam-se como as maiores
fabricantes do produto. Atuam no País, com o mesmo objetivo, outras
empresas, tais como: Cibrasa Indústria e Comércio de Tabacos Ltda.,
562
Cabofriense Indústria e Com. de Cigarros Ltda., Sudamax Indústria e
Comércio de Cigarros Ltda., Indústria de Tabaco Brasileira Ltda.
A utilização genérica da expressão indústria do tabaco, nesse
trabalho, obviamente teve por ideal albergar as fabricantes de cigarros em
geral. Ressalte-se, contudo, que os argumentos utilizados na elaboração
de alguns capítulos – aquele que trata sobre o abuso do direito, por
exemplo –, não se aplicam a todas as fabricantes de tabaco existentes no
planeta, mas, tão-somente, àquelas que se inserem no contexto dos temas
em destaque.
4 Sobre o instituto da responsabilidade civil
A responsabilidade civil corresponde ao dever que alguém
adquire de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever
jurídico; seria um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o
dano decorrente da violação de um dever jurídico ordinário
1000
.
De uma maneira geral – abordando tanto a responsabilidade
subjetiva como a teoria do risco –, são três os pressupostos necessários à
configuração da responsabilidade civil: a) conduta, comissiva ou
omissiva, violadora de dever jurídico primário (com ou sem culpa, em
conformidade com o exigido pela lei); b) dano; e c) o nexo de causalidade
entre os dois primeiros. Especialmente no que toca à responsabilidade
civil pelo fato do produto (acidentes de consumo), a doutrina nacional,
numa onda quase unânime, aponta três pressupostos necessários a sua
configuração: a) o(s) defeitos – cuja presunção favorece o consumidor –;
b) o(s) dano(s); e c) o nexo de causalidade entre a utilização do produto e
os danos suportados pelo consumidor.
Em se tratando de responsabilidade civil por acidentes de
consumo, não haverá de se perquirir sobre a configuração da culpa do
fornecedor, bastando o descumprimento de um dever jurídico primário de
segurança. A ilegalidade ou descumprimento de um dever jurídico de
segurança não diz respeito à licitude ou ilicitude da atividade exercida
1000
CAVALIERI FILHO, op. cit., 2000. p. 22.
563
pelo fornecedor, mas, sim, à presença de vícios ou imperfeições nos
produtos e serviços oferecidos.
As denominadas excludentes de responsabilidade representam
situações de eliminação do nexo causal, evidenciando que o dano
efetivamente ocorreu por outra causa, ou de circunstância que impedia o
suposto agente de cumprir a obrigação à qual estava vinculado.
Em conformidade com a doutrina tradicional, as causas de
exclusão de responsabilidade civil surgem nas seguintes hipóteses: a) fato
exclusivo da vítima ou de terceiro, b) caso fortuito, e c) força maior. Em
se tratando de responsabilidade civil por acidentes de consumo, as
excludentes são: a) a prova de que o produto não foi colocado no
mercado; b) a prova da inexistência do defeito; c) a prova da culpa
exclusiva do consumidor ou de terceiro; e d) a força maior.
5 Os fundamentos da responsabilidade civil da indústria do fumo
pelos danos advindos do tabagismo
A responsabilidade civil da indústria do tabaco, pelos danos
acarretados em razão do tabagismo, encontra duplo fundamento:
responsabilidade pelo fato do produto (art. 12 do CDC) e teoria do risco.
6 A aplicação do Código de Defesa do Consumidor e o direito
intertemporal
No desato de demandas vinculadas ao tema em estudo, é
pertinente à aplicação imediata – e não retroativa – do Código de Defesa
do Consumidor, naquelas situações em que consumidores adquiriram
doenças associadas ao tabaco – ou ainda, vieram a falecer –, após a
publicação do citado Diploma legal, mesmo que tenham principiado o
vício tempos antes da sua vigência.
7 A classificação do cigarro no Código de Defesa do Consumidor
564
O cigarro situa-se entre os produtos potencialmente nocivos ou
perigosos à saúde dos consumidores, enquadrando-se no art. 9º do Código
de Defesa do Consumidor. É um produto inseguro, podendo gerar
acidentes de consumo justamente porque abriga imperfeições, a saber,
vícios de concepção e de informação.
8 O tabagismo e a responsabilidade civil da indústria do fumo pelo
fato do produto
O CDC apresenta-se adequado a alicerçar decisões de
procedência, favorecendo fumantes em ações indenizatórias por eles
movidas contra a indústria do tabaco. Deveras, a responsabilidade civil da
indústria tabaqueira pelos danos que o cigarro causa aos fumantes (ativos
e passivos) encontra fundamento no art. 12 da Lei 8.078/90
(responsabilidade pelo fato do produto). Trata-se de responsabilidade
objetiva, prescindindo, portanto, de demonstração da culpa do fabricante.
Pouco importa o fato de as atividades de fabricação e
comercialização de produtos derivados do tabaco serem lícitas. Isso
porque o fato gerador da responsabilidade civil por acidentes de consumo
escora-se nas imperfeições porventura contidas em produtos e serviços,
capazes de subtrair a segurança que o consumidor legitimamente espera
deles, acarretando-lhe danos não conectados apenas à inadequação (vício
de qualidade ou quantidade), mas atingindo também seu patrimônio
jurídico mais amplo. E o cigarro é um produto imperfeito, detentor que é
de vícios de concepção e informação.
A nicotina é uma substância psicotrópica, uma droga
poderosíssima. É ela uma imperfeição (vício) de concepção que perdura
no cigarro desde a sua criação. Tal substância torna o consumo de
cigarros um comportamento involuntário, tolhendo, em grande parte das
vezes, a capacidade de escolha do fumante, em razão do vício que
provoca.
A outra imperfeição (vício) contida no cigarro está vinculada à
lesão ao direito básico de informação que detém o consumidor. Apenas
recentemente a indústria do tabaco vem informando os consumidores, e
565
isso em razão de determinações específicas impostas a ela pelo Governo
Federal. Contudo, os esclarecimentos ainda são insuficientes.
Verdadeiramente, a indústria do tabaco desrespeita seu dever de
apresentar informações adequadas e claras ao consumidor sobre o cigarro,
com especificação correta das características, composição, qualidade e,
principalmente, sobre os riscos que apresenta. O vício de informação
persiste ainda hoje.
A Lei 8.078/90 possui como objetivo a proteção do consumidor
brasileiro. Diante disso, é óbvio que a realidade econômica, social e
cultural da comunidade nacional deve ser levada em conta, sempre que a
legislação for colocada em prática. Frise-se que no Brasil vivem
aproximadamente 14,6 milhões de analfabetos, ou 11,8% da população de
15 anos ou mais de idade. Também já se constatou haver 32,1 milhões de
analfabetos funcionais ou 26% da população de 15 anos ou mais de idade,
conforme estatística apresentada pelo IBGE, no ano de 2002
1001
. Esses
dados apenas evidenciam o vigor das informações que devem ser
prestadas ao consumidor, de modo a conscientizá-lo sobre a natureza e
riscos do cigarro.
Hodiernamente vê-se um trabalho do Governo Federal
direcionado a educar o consumidor brasileiro, de modo a eliminar, de uma
vez por todas, o vício de informação do cigarro. Ao que tudo indica, esse
objetivo será conquistado. Contudo, mesmo que isso ocorra, não
significará que aqueles já atingidos pelos males do cigarro, vítimas
diretas do aludido defeito informativo, se encontrarão em situação de
desamparo jurídico. Esses, certamente, poderão se valer de ações judiciais
plenamente capazes de conferir-lhes a reparação devida.
9 A Convenção Quatro para o controle do tabaco e a responsabilidade
civil da indústria do fumo
Conquanto tímida a normatização acerca da responsabilidade
civil, inserida no corpo da Convenção Quatro para o controle do tabaco,
1001
Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acessado em 21/06/2006.
566
não houve nela, evidentemente, abono à absurda tese da
irresponsabilidade da indústria do tabaco. Ao contrário, a Convenção
deixou “as portas abertas”, aceitando a possibilidade de indenizações a
fumantes acometidos por doenças tabaco-relacionadas.
10 A responsabilidade civil da indústria do fumo pelo fato do produto
e o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se
manifestar acerca do tema responsabilidade civil da indústria do tabaco.
Na ocasião, discutiu-se qual seria o prazo prescricional a incidir numa
ação indenizatória promovida por um fumante contra a Souza Cruz S/A.:
se aquele estabelecido no art. 27 do CDC (cinco anos), ou se aquele outro,
prescrito no art. 177 do CC de 1916 (vinte anos). Prevaleceu a prescrição
prevista no CDC. Em verdade, esse julgado não tratou apenas do tema
prescrição. Embora tenha sido esse o objeto central dele, seu alcance é
bem mais largo, na medida em que, por reflexo, a mais alta Corte do País
acabou por aceitar a tese de que a relação estabelecida entre fumantes e a
indústria do fumo é, verdadeiramente, uma relação de consumo, e que,
portanto, as ações de indenização movidas pelos primeiros contra a última
devem ser apreciadas com base na teoria da responsabilidade civil pelo
fato do produto.
11 A responsabilidade da indústria do fumo alicerçada na teoria do
abuso do direito
A fundamentação capaz de embasar julgados de procedência
contra a indústria de tabaco não se limita à responsabilidade pelo fato do
produto. A teoria do abuso do direito mostra-se perfeitamente adequada
para alicerçar pretensões judiciais indenizatórias de fumantes (ou de suas
famílias, em caso de morte), sobretudo depois que parte da estratégia da
indústria do fumo, elaborada e posta em prática, décadas e décadas atrás,
veio a lume, com a publicação de milhares de documentos internos a ela
pertencentes.
567
A indústria do tabaco, literalmente, atropelou os limites
estabelecidos pelo Direito, no que tange ao exercício de sua autonomia de
vontade, valendo-se de estratégias tão ardilosas, quanto hediondas, para
garantir o sucesso de vendas dos produtos que fabrica. E tamanho foi seu
êxito que, no início da década de 90, cerca de 1,1 bilhão de indivíduos
usavam o tabaco no mundo; em 1998, esse número já atingia a cifra de
1,25 bilhão
1002
.
A indústria do fumo colocou em ação uma estratégia velada e
ilegal, destinada a socializar um produto nocivo, potencializando sua
venda em todo o mundo, mesmo que em atropelo à lealdade contratual e a
alguns princípios fundamentais caros à sociedade. Mesmo conhecendo a
natureza psicotrópica da nicotina e a existência de produtos cancerígenos
na fumaça do cigarro, omitiu-se quanto a isso, optando por iludir o
consumidor por meio da utilização de técnicas refinadas de marketing,
socializando o cigarro, criando artificialmente uma imagem positiva em
torno do tabagismo.
A estratégia adotada pela indústria do fumo sempre teve mais
um ingrediente ardiloso, válido e por ela utilizado ainda hoje. Além de
iludir o consumidor mediante a disseminação de práticas publicitárias
ilícitas, vale-se do poder psicotrópico da nicotina como forma de garantir
que o consumidor permaneça fiel ao produto, transformando-o num
verdadeiro escravo da nicotina, um doente crônico.
12 A ilicitude da publicidade veiculada pela indústria do fumo
Aquela publicidade – hoje proibida – já veiculada no País, com
o fito de difundir o uso do tabaco, era absolutamente ilícita, já que
destinada a fazer apologia de um produto extremamente prejudicial à
saúde. Aponte-se que a publicidade de produtos potencialmente perigosos
jamais poderá ter características persuasivas. Isso porque, dando ênfase à
persuasão, o produto acaba por aparentar-se pouco ou nada perigoso, e
sua capacidade de aniquilar a saúde dos consumidores é colocada em
1002
Ação global para o controle do tabaco. 1º Tratado Internacional de Saúde Pública. 3. ed. Criação do
Instituto Nacional de Câncer (INCA), 2004. p. 6. Disponível em: <http://www.inca.gov.br>.
568
segundo plano, mesmo com algumas informações sendo apresentadas
sobre sua periculosidade.
13 A licitude da atividade exercida pela indústria do fumo e a
possibilidade de sua responsabilização civil
A grande maioria da jurisprudência que trata do tema funda suas
decisões de improcedência – prejudicando os fumantes, portanto – na
falsa premissa de que a atividade exercida pelas indústrias fumígenas é
lícita e, por tal razão, não haveria que se falar em dever de indenizar. Tal
entendimento afasta-se do próprio objetivo da Lei consumerista, qual
seja, o de atrair para o consumidor maior segurança na utilização de
produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo. Isso porque
as atividades exercidas no mercado de consumo serão sempre – ou quase
sempre – legais. Produzir livros, calças, sapatos, brinquedos, utensílios
domésticos, telefones, computadores, televisores, alimentos, etc., são
atividades lícitas, por óbvio. O ato ilícito surgirá se um desses produtos
for lançado no mercado de consumo, acrescido de uma imperfeição (vício)
capaz de causar danos ao consumidor; poderá advir também de forma
extrínseca, haja vista a ocorrência de alguma imperfeição vinculada ao
dever de informação. Com efeito, a adoção da conclusão de tais julgados,
como regra, no mercado de consumo seria o mesmo que obstar todo o
consumidor lesado por produtos e serviços, adquiridos ou utilizados, de
ser ressarcido; afinal, como dito, a grande maioria das atividades
exercidas no mercado é legítima.
14 A ausência de notoriedade pública acerca das informações sobre a
natureza e riscos do cigarro
A estratégia adotada pela indústria do fumo – identificada
depois que se deu publicidade aos famigerados documentos secretos – não
se limitou à omissão das informações que ela detinha acerca dos
malefícios do fumo à saúde, e sobre a qualidade psicotrópica da nicotina.
Valeu-se a indústria de manobras voltadas a desacreditar estudos e dados
569
científicos sérios, esses que jungiam o consumo de cigarros a várias
enfermidades. Contratou atores cinematográficos, esportistas e outras
celebridades para que divulgassem seus produtos. Utilizou-se de massiva
publicidade insidiosa, direcionada ao aliciamento de crianças e
adolescentes para experimentarem cigarros, transformando-os em
dependentes de nicotina. Essa estratégia, em que a omissão de
informações é apenas uma de suas vertentes, foi edificada com o intuito
de se estabelecer um ambiente propício ao fumante, uma atmosfera
socialmente positiva a pairar sobre o tabagista. A indústria do fumo não
apenas omitiu o que sabia, mas foi bem mais adiante, obrando esforços
para garantir essa atmosfera socialmente positiva, incutindo na mente dos
consumidores controvérsias e dúvidas, literalmente desinformando-os
mediante uma prática publicitária hipócrita e sedutora.
A adequada compreensão dessa requintada estratégia é
imprescindível para se concluir que nunca houve no País, e ainda não há,
uma notoriedade pública de informações sobre os malefícios do cigarro.
Além de a indústria do tabaco ter obrado esforços para evitar tal
notoriedade, a própria carência cultural e econômica da sociedade
demonstra que a população ainda não se encontra adequadamente
instruída a respeito da natureza e riscos do tabagismo.
15 O fumante e o livre-arbítrio
É absolutamente equivocada a idéia de livre-arbítrio do
fumante, muito embora sejam muitas as decisões judiciais de
improcedência que se embasam nela. A análise da estratégia adotada pela
indústria do fumo prova a existência de algumas fortes influências
exteriores, criadas pela própria indústria, com o escopo de garantir que o
consumidor principiasse a fumar e se mantivesse fumando (dependência
pela nicotina). Para que o livre-arbítrio seja exercido plenamente, não
deve haver impedimentos externos ao movimento,
1003
porquanto nessa
hipótese a margem de atuação do alvedrio é eliminada ou, ao menos,
1003
Trecho colhido da Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., disponível em: <http://
geocities.yahoo.com.br/edterranova/raven079.htm>. Acessado em 04/09/2006.
570
reduzida. E é um contra-senso falar em livre-arbítrio sem ampla liberdade
de decisão.
16 A prova dos requisitos que ensejam a responsabilidade civil da
indústria do tabaco
Sumariamente, os requisitos que ensejam a responsabilidade
civil da indústria do fumo, sob um enfoque exclusivamente voltado à Lei
n. 8.078/90, são: a) a prova de que o autor (ou o falecido, em sendo a
família desse quem ajuizou a ação) consome/consumia cigarros fabricados
pela indústria do fumo, ré na ação; b) a prova dos danos (morte,
enfermidades diversas, danos morais); c) a prova do nexo de causalidade
entre o consumo de cigarros e a(s) enfermidade(s) (ou morte do
consumidor); e d) a manutenção da presunção do(s) defeito(s) (presunção
essa que milita em favor do consumidor). Ressalte-se que pertence ao(s)
autor(es) o ônus de provar os requisitos a, b e c, excetuando-se a hipótese
de o juiz deferir a inversão do ônus probatório. O consumidor, em função
de peculiaridade própria da Lei n. 8.078/90, encontra-se dispensado de
demonstrar a existência de defeito(s) – item d – no produto
disponibilizado no mercado, obrando em seu favor a presunção de que ele
efetivamente concretizou-se.
17 A possibilidade jurídica do pedido objetivando a compensação de
gastos efetuados com a compra de cigarros
As despesas com cigarros normalmente advêm de um estado de
dependência, estabelecido no organismo do fumante simplesmente porque
pratica o tabagismo. A indústria do tabaco produz e comercializa um
produto cuja primeira qualidade é a de tornar seu consumidor um doente
crônico, um dependente de nicotina. Se o consumidor passa a adquirir
determinado produto compulsivamente, não por problemas emocionais ou
outros quaisquer, senão em função de uma dependência química instalada
em seu organismo pelo próprio consumo do produto, certamente que a
fabricante de tal produto é responsável pelos gastos despendidos na sua
571
compra. De tal sorte, é juridicamente possível o pedido objetivando a
compensação de gastos efetuados com a compra de cigarros, desde que
limitados aos últimos cinco anos imediatamente anteriores à propositura
da ação.
18 As tutelas de urgência
A técnica das tutelas de urgência – tutelas antecipadas e
cautelares – é de grande utilidade aos fumantes (ou seus familiares, em
caso de morte), em ações indenizatórias por eles ajuizadas em desfavor da
indústria do tabaco.
As tutelas antecipadas e cautelares, embora pertencentes ao
mesmo gênero, possuem diferenças elementares. A primeira objetiva uma
aceleração dos efeitos executivos pretendidos ao final do processo,
concedendo ao interessado, de forma provisória e antes de finalizada a
atividade jurisdicional, parcial ou integralmente, o “bem da vida”
perseguido. A derradeira apenas protege o provável direito dos efeitos
deletérios do tempo, imunizando-o do periculum in mora. Na tutela
antecipada ocorre “execução para a segurança”; na tutela cautelar,
“segurança para a execução”.
Os requisitos exigidos para o deferimento de tutelas antecipadas
e cautelares são diversos. Em verdade, os requisitos necessários para a
concessão de tutelas antecipatórias são mais vigorosos, notadamente
porque o seu deferimento implica o adiantamento dos efeitos executivos
da futura e provável sentença de procedência, ainda a ser proferida, não
se limitando a, apenas, resguardar o provável direito.
19 A ação cautelar de antecipação de provas a serviço do fumante (ou
de seus familiares, em caso de morte)
Sem dúvida que a ação cautelar de antecipação de provas
apresenta-se como um remédio jurídico conveniente, tanto para os
fumantes (ou seus familiares, em caso de morte), como para a própria
indústria do fumo, ré em ações indenizatórias promovidas pelos
572
primeiros. Por meio dela, simplesmente antecipa-se a fase probatória,
permitindo-se a demonstração concreta de fatos indispensáveis ao
julgamento de procedência (ou improcedência).
Ao fumante, acometido de grave doença, a ação cautelar
antecipada de provas previsivelmente será útil para contribuir com o
sucesso da demanda, embora em muitos casos não seja o autor quem
efetivamente usufruirá de tal êxito, haja vista o avançado estado de
morbidade em que se encontra. De qualquer modo, o referido remédio
jurídico será especialmente útil para demonstrar a natureza da
enfermidade que acomete o fumante, bem assim o nexo de causalidade
entre ela e a prática do tabagismo. Nessa seara, a prova pericial –
enriquecida com elementos colhidos de depoimentos testemunhais –
mostra-se, quase sempre, imprescindível. Decerto, o perito terá condições
de concluir, com boa margem de acerto, se o consumo de cigarros foi, ou
não, causa necessária ao estabelecimento da enfermidade, no tabagista.
20 A tutela antecipada a serviço do fumante
Em ações de responsabilidade civil envolvendo fumantes e a
indústria do fumo, a tutela antecipada, como não poderia deixar de ser,
tem sua serventia – afinal, a saúde e a própria vida constituem-se no tema
central do presente trabalho.
A constatação de que ao consumidor são conferidas algumas
presunções, em demandas de responsabilidade civil, possui importância
toda especial a ser levada em consideração, no momento de se examinar
uma pretensão de tutela antecipada. Em casos concretos envolvendo
responsabilidade civil por danos advindos do tabagismo, o fumante,
visando obter tutela antecipada que lhe garanta, por exemplo, o
custeamento de algum tratamento de doença tabaco-relacionada, deverá
demonstrar: a) que é ou era fumante de uma determinada marca de
cigarros; b) a doença adquirida e que exige tratamento; e c) o nexo causal
entre o tabagismo e tal enfermidade. Não haverá de demonstrar que o
cigarro é um produto detentor de imperfeições jurídicas (defeito de
concepção e de informação), e nem tão-pouco o liame causal existente
573
entre tais imperfeições e os danos. Tais provas, só que em sentido
inverso, cabem à indústria de tabaco envolvida na demanda. Não se
olvide, ainda, a necessidade de demonstração do periculum in mora,
elemento sempre exigido nas tutelas antecipadas de urgência.
Atente-se para o fato de que a prova exigida em sede de tutela
antecipada é mais branda, notadamente porque a cognição a ser realizada
pelo juiz é sumária. Essa sumariedade de cognição se justifica em razão
do caráter emergencial da medida.
A própria natureza das pretensões veiculadas em ações ajuizadas
por fumantes, contra a indústria do tabaco, indica que os pedidos de
tutela antecipada seguirão rumo a postulações de adiantamento de soma
em dinheiro.
21 Os meios executivos destinados a dar efetividade a uma tutela
antecipada de soma em dinheiro
A atividade executiva, destinada a satisfazer uma decisão que
concede uma tutela antecipada de soma em dinheiro, não se encontra
limitada aos meios executivos sub-rogatórios, característicos das
execuções por expropriação (definitiva ou provisória). Ademais, essa
atividade executiva deve ocorrer no mesmo processo em que a decisão,
deferindo a tutela antecipada, ocorreu.
As astreintes e a penhora on line são meios executivos que
podem ser utilizados como forma de dar efetividade a uma tutela
antecipada de soma em dinheiro.
Como a indenização postulada em ação fundada em ato ilícito
pode ter caráter alimentar, os meios executórios próprios à execução de
prestação pecuniária alimentar também poderão ser utilizados, como
forma de dar efetividade a uma decisão que defere pedido de tutela
antecipada. Assim é que o desconto em folha (art. 16 da Lei 5.478/68 c/c
art. 734 do CPC), a expropriação de rendas e de aluguéis (art. 17 da Lei
5.468/68), e a própria prisão (art. 733, §1.º, do CPC), terão serventia para
aquele que busca executar uma tutela antecipatória de prestação
pecuniária alimentar.
574
22 A irreversibilidade dos efeitos da tutela antecipada
Encontrando-se presentes os requisitos autorizadores da medida
antecipada de soma em dinheiro, destinada ao tratamento da saúde de um
tabagista, a decisão judicial deve ser positiva, abrandando o magistrado a
regra da irreversibilidade (§2º do art. 273 do CPC), justamente em função
da supremacia dos valores saúde e vida na ordem constitucional do País.
23 A possibilidade de designação de audiência de justificação prévia
nos casos em que o pedido de tutela antecipada funda-se no art. 273 do
Código de Processo Civil
O instituto da antecipação da tutela deve ser utilizado sempre
com vistas aos dispositivos criados para regulamentar a tutela cautelar,
para, através de uma interpretação sistemática de toda a legislação
processual, dar-lhe o colorido jurídico necessário à integração do seu
perfil – afinal, o CPC dedicou todo um Livro (o Livro III) para a
regulamentação do Processo Cautelar. Partindo-se de tal premissa, nada
mais correto do que se defender a possibilidade de o juiz designar
audiência de justificação prévia, também antes de decidir acerca de um
pedido de tutela antecipada fundada no art. 273 do CPC, mesmo que tal
dispositivo se mostre silente sobre tal possibilidade.
24 Os momentos em que a tutela antecipada pode ser deferida
Ao órgão julgador é lícito deferir a tutela antecipada em 4
(quatro) diferentes momentos: a) liminarmente; b) após a contestação, por
meio de decisões interlocutórias; c) na própria sentença; e d) após a
sentença e na pendência de recurso.
25 O procedimento de habilitação
Se um dos sujeitos falece antes de se alcançar a prestação
jurisdicional, o movimento da relação jurídica em curso se inviabiliza,
575
momento em que, noticiado o óbito no feito, e versando a causa sobre
direitos não personalíssimos, o processo é imediatamente suspenso (art.
265, I, do CPC), sendo vedada a prática de novos atos – excetuados
aqueles previstos no §1º do art. 265 e no art. 266, todos do CPC. Da
necessidade de se substituir a parte falecida por seus legítimos
sucessores, o legislador processual estabeleceu um procedimento especial,
cuja finalidade é a de examinar a qualidade daqueles que pretendem
assumir o pólo lacunoso, restabelecendo a relação jurídica processual e,
por resultado, permitindo o caminhar normal do processo. Tal
procedimento é denominado de habilitação, e é regido pelos arts. 1.055 a
1.062 do CPC.
26 O prazo prescricional
A responsabilidade civil da indústria do tabaco, em virtude de
enfermidades, ou morte, causadas pelo cigarro a fumantes diretos ou
passivos, traduz-se numa relação de consumo, resolvendo-se, a princípio,
pelas normas do CDC. Com efeito, os consumidores (ou seus familiares,
em caso de falecimento) terão cinco anos (art. 27 do CDC), iniciando-se a
contagem do prazo a partir do conhecimento da enfermidade e de sua
autoria, para pleitearem ressarcimento civil pelos danos advindos do
tabagismo.
A prescrição não fulmina o direito, mas apenas a pretensão.
Essa a linha do art. 27 do CDC, ao estabelecer que a prescrição atinge,
apenas, a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto
ou do serviço. De tal sorte, em sobrevivendo o direito, mas prescrita a
pretensão, é de indagar se o ordenamento jurídico estabelece uma outra
via para o seu acesso. E a resposta é positiva, na medida em que o CC
também abre caminho à reparação de danos.
O atual CC prevê uma prescrição inferior àquela prevista pelo
CDC – no novo CC, o prazo prescricional para a pretensão de reparação
de danos é de 3 (três) anos (art. 206, §3º, V) –, de modo que, se a
prescrição atingir a pretensão a reparação de danos causados pelo fato do
produto, obviamente que estará também prescrita a pretensão com base no
576
atual CC. O juiz, entretanto, não deverá extinguir, de imediato, ações já
em curso, haja vista que o prazo prescricional do antigo CC – 20 (vinte)
anos – poderá ainda se aplicar àquele caso concreto.
Apenas se aplicará o prazo prescricional de vinte anos, previsto
no CC de 1916, nos casos concretos já ajuizados – e, portanto, em curso –
, e cuja data de distribuição tenha ocorrido há, no mínimo, dez anos e um
dia, contados da data de vigência do CC atual, isso sempre que a ação
tiver sido promovida depois que superados os cinco anos previstos no art.
27 do CDC, contados a partir do conhecimento da enfermidade e de sua
autoria. Essa conclusão advém de uma interpretação voltada
exclusivamente ao art. 2.028 do atual CC.
Atente-se para o fato de que a prescrição, para ser decretada,
não mais exige declaração de vontade por parte do réu. Aliás, desde a
publicação da Lei n. 5.925, de 01 de outubro de 1973, o juiz já podia, de
ofício, conhecer a prescrição, decretando-a de imediato, desde que a
pretensão não se tratasse de direitos patrimoniais. Hoje, notadamente
depois da publicação da Lei n. 11.280, de 16 de fevereiro de 2006, o juiz,
independentemente da natureza da pretensão postulada, poderá, de ofício,
conhecer e decretar a prescrição.
577
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