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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM HISTÓRIA DA LITERATURA
GALVEZ IMPERADOR DO ACRE: O DISCURSO DO
ROMANCE E A FICCIONALIZAÇÃO DA HISTÓRIA
Dissertação apresentada como
requisito parcial para a obtenção do
grau de Mestre em Letras, na área
de História da Literatura.
Renato Otero da Silva Júnior
Prof. Dr. Carlos Alexandre Baumgarten
Orientador
Data da defesa: 10 de Outubro de 2006
Instituição depositária:
NID – Núcleo de Informação e Documentação da
Fundação Universidade Federal do Rio Grande
Rio Grande, setembro de 2006
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AGRADECIMENTOS
Agradeço sinceramente a realização desta dissertação:
ao professor orientador e amigo Carlos Alexandre Baumgarten,
pelos frutíferos anos de convivência acadêmica e apoio incondicional
que me ofereceu durante o processo de desenvolvimento deste trabalho;
à minha mãe, Dinorá, pelo assíduo acompanhamento a tudo que
venho realizando e também pelas palavras de conforto diante de
momentos adversos.
à minha companheira, Lílian, por suportar e compreender os
momentos em que estive ausente de sua companhia, por reconhecer
que o cumprimento das obrigações de minha vida acadêmica requeria
tal sacrifício.
aos demais familiares e amigos de minha cidade, que muito me
incentivaram e me auxiliaram durante o período de escrita deste
trabalho.
ao corpo docente do programa de s-graduação em História da
Literatura e meus colegas de sala de aula, pelo contínuo aprendizado e
pelas muitas jornadas de discussão intelectual vividas, que muito
contribuíram para minha formação profissional como pessoal também.
à Capes, por oportunizar minha bolsa de estudos assim como de
outros colegas.
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SUMÁRIO
1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS.................................................... 6
2 GALVEZ IMPERADOR DO ACRE SOB A ÓTICA DA TEORIA DO
ROMANCE DE MIKHAIL BAKHTIN............................................... 11
2.1 - Dialogismo, plurilingüismo e polifonia............................... 14
2.2 – Riso, paródia e carnavalização........................................... 26
3 GALVEZ IMPERADOR DO ACRE E A REPRESENTAÇÃO DA
HISTÓRIA................................................................................... 59
3.1 – Literatura e História: entrecruzamentos possíveis.............. 59
3.2 Galvez Imperador do Acre: o romance histórico e a
ficcionalização da História......................................................... 67
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................... 98
5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................... 102
RESUMO
Galvez imperador do Acre, de Márcio Souza, transita por um duplo
caminho: ao mesmo tempo em que revisita capítulo importante da
história do Brasil, estabelece também um diálogo com a tradição
literária do país. O romance, além disso, por sua própria natureza,
apresenta uma série de elementos caracterizadores que o aproximam da
forma romanesca tal como a concebeu Mikhail Bakhtin em seus
estudos sobre onero. Nessa perspectiva, o presente trabalho promove
o estudo do romance do autor amazonense, contemplando-o a partir de
uma também dupla orientação: de um lado, é ele analisado em função
das relações que estabelece entre os campos da ficção e da história; e de
outro, é ele visto enquanto materialização do nero romance, portador
das características atribuídas a ele pelo teórico russo.
RESÚMEN
Galvez imperador do Acre, de Márcio Souza, transita por un camino
doble: al mismo tiempo en que revisita capítulo importante de la
historia de Brasil, establece también un diálogo con la tradición literaria
del país. La novela, más allá de esto, por su propia naturaleza, presenta
una serie de elementos caracterizadores que la acercan a la forma
romanesca tal como la ha concebido Mijail Bakhtín en sus estudios
sobre el género. En esta perspectiva, el presente trabajo promove el
estudio de la novela del autor amazonense, contemplándola a partir
también de una orientación doble: de un lado, es analizada en función
de las relaciones que establece entre los campos de la ficción y de la
historia; y de otro, es vista en cuanto materialización del género novela,
portador de las características atribuidas a él por el teórico ruso.
1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A idéia da realização do presente trabalho está vinculada a
estudo sobre o romance histórico, realizado no último ano do curso de
graduação, que resultou em monografia sobre romance de Moacyr
Scliar.
1
Após, durante a realização do Mestrado em História da
Literatura, a pesquisa inicial foi aprofundada, a partir da leitura da
produção teórica de Mikhail Bakhtin no que tange ao discurso do
romance. Assim, focalizar as principais idéias do teórico russo Mikhail
Bakhtin a respeito da natureza da linguagem e discuti-las quanto a sua
operacionalidade na conformação discursiva do gênero romanesco é o
ponto de partida da presente dissertação.
Importa destacar do ideário bakhtiniano a concepção
dialógica de sujeito que nos oferece, a perspectiva de que a existência de
um sujeito individual um “eu” adquire alguma significação na
medida em que interage, dialoga com um outro sujeito individual, seu
correspondente dialógico um “outro” no círculo de suas relações. A
palavra, ou mais amplamente o discurso, elemento de intermediação
comunicativa entre os diferentes sujeitos, reflete as tendências
ideológicas em conflito da vida social, reproduz também as mais
diversas manifestações culturais que interagem e compõem a cadeia de
signos da realidade.
As idéias antes expostas, além de constituírem a base do
pensamento de Bakhtin, participam posteriormente, também, das
reflexões que o teórico russo desenvolve, ao promover estudos voltados
para a problematização do romance como gênero. Tal problematização
evidencia a afinidade que o discurso romanesco guarda com o discurso
1
O trabalho realizado resultou na seguinte publicação: SILVA Jr., Renato Otero.
História e ficção em A estranha nação de Rafael Mendes. Cadernos Literários,
Programa de Pós-Graduação em Letras/Mestrado em História da Literatura, 9, Rio
Grande: Editora da FURG, 2004. p. 73-83.
ordinário da vida cotidiana, por apresentar atributos como o dialogismo,
a polifonia e uma configuração carnavalizada.
Com base nessas considerações, pretende-se analisar o
romance Galvez Imperador do Acre, de autoria do escritor amazonense
Márcio Souza
2
. A análise objetiva verificar em que medida a obra
corresponde às premissas teóricas de Mikhail Bakhtin, e ainda,
salientar a presença de determinadas marcas estilísticas, discursivas e
de outras espécies que permitam apontar Galvez como narrativa
potencialmente exemplar do gênero romance tal como o concebeu o
teórico russo em seus estudos.
O exame de Galvez Imperador do Acre à luz das idéias
elaboradas por Bakhtin levará em consideração as seguintes obras do
teórico russo: Marxismo e filosofia da linguagem, pois é nesta obra que
Bakhtin lança os fundamentos teóricos que estão na base de sua teoria
sobre o discurso, em especial o questionamento à tradição saussureana
que, ao privilegiar o estudo da langue, negligenciou a parole, que, por
seu dinamismo e permanente atualização é, segundo Bakhtin,
fundamental para a compreensão do discurso em todas as suas
concretizações, inclusive a romanesca; Questões de literatura e estética,
especialmente no que se refere ao capítulo “O discurso no romance”, no
qual Bakhtin aprofunda seus estudos sobre o gênero, definindo sua
natureza e apontando suas marcas essenciais; da mesma obra,
interessam, ainda, os capítulos “Formas do tempo e de cronotopo no
romance”, “Da pré-história do discurso romanesco” e “Epos e romance”,
pela contribuição que trazem para uma metodologia do estudo do
romance; A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais, que, em sua longa introdução aborda,
entre outros aspectos, o riso, o grotesco, o discurso carnavalizado, a
2
A obra, de 1976, é a primeira investida do autor na prosa romanesca, e trata de
assunto recorrente na sua produção intelectual, anterior e posterior à publicação do
romance e presente também em outros gêneros nos quais atuou, como o cinema, o
teatro e o ensaio: a região norte do Brasil, sua condição histórica, seus aspectos
socioculturais peculiares, a sociedade urbana e rural amazônica, enfim, uma série de
elementos temáticos relacionados ao norte brasileiro, tratados invariavelmente através
de um posicionamento intensamente crítico, denunciador e inconformista, por vezes
manifestado sob a forma de um humor descontraído embora não menos reflexivo,
como é o caso explícito do romance Galvez imperador do Acre, por exemplo.
paródia e a ironia como elementos caracterizadores da narrativa
romanesca; Problema da poética de Dostoievski, fundamentalmente em
seu capítulo IV, “Particularidades do gênero, do enredo e da composição
das obras de Dostoievski”, onde Bakhtin define o romance a partir da
evolução/transformação de gêneros antigos do campo do mico-sério,
tais como os diálogos socráticos e a sátira menipéia.
Em um segundo momento, este trabalho direcionará sua
abordagem à elucidação e à discussão da crise do conhecimento
histórico, desencadeadas ainda no século XIX. Tal crise promoveu não
uma crescente descentralização da pesquisa e da escrita
historiográfica, como retirou, gradualmente, do rígido e unilateral
modelo cientificista/positivista de “fazer História”, o posto de paradigma
metodológico supremo para a articulação do saber histórico.
Neste processo de flexibilização da inteligência histórica,
participam várias áreas do conhecimento, que emprestam seus
fundamentos teórico-metodológicos às produções historiográficas em
desenvolvimento, o que faz ampliar ainda mais as perspectivas
interpretativas sobre os fatos estudados por elas. Nesse sentido,
destaca-se a Literatura, que tem participado ativamente das novas
abordagens realizadas pelos historiadores, sendo cada vez mais
evidente o interesse dos mesmos em utilizar recursos estilísticos e
estratégias discursivas próprias das obras de ficção na montagem de
seus relatos historiográficos. A proximidade entre as duas áreas não é
recente, havendo momentos em que a afinidade entre ambas mostrou-
se ora mais, ora menos amistosa. Neste último caso, tem-se como o fato
de que a História, no século XIX, era concebida como uma ciência
autônoma e, acima de tudo, objetiva.
Na Literatura, a apropriação de eventos históricos por parte
das obras ficcionais, elevando-os a objeto temático central das tramas,
ficou relegada aos chamados romances históricos. A produção deste
tipo de escrita, oriunda do culo XIX, mostra-se estritamente
vinculada aos interesses da cultura oficial, apresentando um discurso
conformista e legitimador da palavra historiográfica, hierarquicamente
superior. Em contrapartida ao modelo clássico de ficção histórica,
surgiu com força, mais ou menos na metade do século seguinte,
especialmente na cena literária latino-americana, uma nova modalidade
de escrita romanesca, o novo romance histórico. Na sua estruturação
atua, via de regra, contestando todos aqueles valores presentes no
romance histórico tradicional, ao realizar abordagens diferenciadas
sobre os mesmos fatos históricos tematizados outrora em obras
historiográficas e romanescas vinculadas à cultura oficial e
predominante.
Essas considerações de ordem teórica serão devidamente
aprofundadas ao longo do presente estudo, e interessam na medida em
que se associam diretamente a Galvez Imperador do Acre, porquanto o
romance explora episódio histórico de importância para a História
nacional e dele faz motivo preponderante de sua matéria ficcional.
Buscar-se-á apontar, na seqüência deste estudo, sob que perspectiva a
narrativa de Márcio Souza se orienta na (re)leitura que promove de
acontecimentos antes explorados pelo discurso historiográfico.
A presente pesquisa, na abordagem que realiza sobre a crise
do conhecimento histórico, a relação Literatura/História e o romance
histórico, buscará respaldo em algumas obras de referência que tratam
detidamente dessas temáticas. Sobre a natureza e especificidade do
discurso da História, foram utilizadas como base teórica as idéias de
Hayden White, que constituem, pode-se mesmo dizer, uma poética do
discurso historiográfico. A respeito das muitas relações entre as áreas
da Literatura e da História, recorre-se ao pensamento de autores como
Roland Barthes, Paul Ricoeur, Walter Mignolo, Benedito Nunes, Pedro
Brum Santos, entre outros. Para o estudo do romance histórico
tradicional, Georg Lukacs e sua obra La novela histórica, em que
discute o subgênero e seus elementos caracterizadores a partir da
análise de exemplares produzidos nos séculos XVIII e XIX. O tratamento
diferenciado dado à matéria histórica realizado pelos novos romances
históricos é objeto de estudo de duas obras: Poética do pós-modernismo,
de Linda Hutcheon, particularmente o capítulo “Metaficção
Historiográfica “o passatempo do tempo passado”, e, de autoria de
Seymour Menton, o livro La nueva novela histórica de la América Latina
1979-1992, em especial o capítulo “La nueva novela histórica:
definiciones e orígenes”.
Em síntese, a dissertação observará a seguinte estruturação: o
primeiro capítulo abordará Galvez Imperador do Acre, de Márcio Souza,
a partir da teoria do romance de Mikhail Bakhtin; o segundo capítulo se
encarregará da análise da narrativa do autor amazonense a partir de
sua consideração no âmbito do romance histórico. Por fim, através das
considerações finais, buscar-se-á reunir as principais conclusões
alcançadas no decorrer da pesquisa.
2 GALVEZ IMPERADOR DO ACRE SOB A ÓTICA DA
TEORIA DO ROMANCE DE MIKHAIL BAKHTIN
Para que se pense a respeito da teoria bakhtiniana do
romance
3
é preciso antes relevar certas noções muito mais abrangentes
do que a simples arquitetura teórica formulada por Mikhail Bakhtin,
direcionada estritamente para o gênero romanesco.
Aliás, pela ótica do crítico russo, tal nero vem a ser, ao fim
e ao cabo, a projeção mais pertinente no discurso literário da
construção discursiva existente na realidade concreto-sensorial,
realidade de caráter prosaico, composta de sujeitos permeados
intrinsecamente de manifestações discursivas as mais variadas
possíveis. Sujeitos constituídos não de sua própria e individual
consciência, mas também sujeitos produto da convergência de
múltiplas vozes, linguagens e outras consciências que a partir de uma
interação social constroem um círculo de comunicação interpessoal.
Do que se assinalou anteriormente, depreende-se a noção de
dialogismo condição necessária da existência/concretude da
linguagemdialogismo como termo utilizado para designar a ocorrência
do diálogo, interação comunicativa de um ser humano para com outro
ser humano manifestando-se exteriormente. A linguagem, pois, em sua
forma dialogizada, é logicamente praticada dentro do palco no qual está
inserido o indivíduo e seus convivas. Assim, constitui-se no aparato da
consciência que transcende o confinamento mental em cada indivíduo
para realizar-se plenamente na interação com outras consciências,
atuando ora como agente, ora como paciente comunicativo. Ali são
disponibilizados os signos lingüísticos necessários para o
3
Ver, a propósito: MACHADO, Irene. O romance e a voz: a prosaica dialógica de
Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: Fapesp, 1995. Em seu texto, Irene
Machado desenvolve profundo estudo sobre a teoria do romance concebida por
Mikhail Bakhtin. Tal estudo vem, ao final, acompanhado por um glossário sobre os
principais termos teóricos cunhados por Bakhtin, ao desenvolver seu trabalho a
respeito do gênero romanesco.
estabelecimento da comunicação, os quais as consciências individuais
filtram para uso adequado dentro de seu sistema sócio-interativo. É no
meio, no círculo social seio dos diversos grupos de linguagens,
consciências e ideologias que as consciências individuais são
formadas, apassarem a ser, também elas, partícipes e colaboradoras
no processo de geração e disseminação de signos lingüísticos e
ideológicos de um determinado sistema social. Para resumir a idéia da
influência do meio social na formação da consciência individual, a
sentença de Bakhtin: A consciência individual é um fato sócio-idelógico
4
.
O meio pelo qual se realiza a interação interconsciências, por
onde a consciência de cada indivíduo se manifesta, é a palavra; não a
palavra inteiramente original e autêntica que, proveniente do
pensamento singular do indivíduo, configura-se como espécie de utopia
apregoada por um pensamento idealista; mas a palavra revestida de
carga semântica, ideológica, ocasionada por seu contínuo uso através
dos anos por incontáveis sujeitos-consciência e a respectiva intenção
destes quando na prática comunicativa da palavra no meio social. E por
se prestar como instrumento, ou seja, meio de exteriorização da idéia do
sujeito, a palavra é o fenômeno ideológico por excelência..
5
A palavra, o
discurso e os enunciados invariavelmente se mostrarão
multivocalizados, plurilingüísticos, multifacetados discursivamente,
carregando em si a dinamicidade sígnica da linguagem.
No terreno da literatura, nenhum gênero se apresenta como
mais apto para representar a heterogeneidade presente no nível
profundo da linguagem dos sujeitos-consciência inseridos na realidade
concreto-sensorial do que o gênero romanesco. Por conta disso, a
afirmação de Bakhtin de que o romance, tomado como um conjunto,
caracteriza-se como um fenômeno pluriestilístico, plurilíngüe e plurívoco
6
.
Tais marcas são inerentes à própria realidade, da qual brotam diversos
matizes lingüísticos e ideológicos, ora cruzando-se entre eles, ora
4
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1995.
p. 35.
5
Idem, p.36.
6
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: HUCITEC, 1990. p.
73.
apartando-se na arena social do discurso, mas, acima de tudo,
convivendo simultaneamente no mesmo espaço interacional de
comunicação.
Em Galvez Imperador do Acre, o fenômeno plurilingüístico é
evidenciado, e isto muito claramente, pela própria natureza da
diegese, que, ao discorrer sobre evento fundamental da História
brasileira e sul-americana, reveste-se de vários tons discursivos ao
longo da narrativa. Aquilo que, a princípio, pelo objeto a que se refere o
texto, poderia dar a entender que se teria no escrito o predomínio
absoluto da linguagem objetiva, séria, unívoca, típica das narrativas
históricas tradicionais, logo se desvanece, pela coexistência de diversos
referentes lingüísticos, mescla de linguagens inseridas na atuação
discursiva dos narradores, dos personagens. Desse modo, revela a
transposição, no transcorrer textual do romance, da estratificação
lingüística característica e inerente da linguagem manifestada pelos
agentes da realidade social, concreto-sensorial.
Nessa perspectiva, considerar a aplicação no romance da
linguagem estratificada da realidade significa, por conseguinte, postular
o quanto é relativizado o ponto de vista adotado pelo prosador-
romancista em sua obra literária. Ao contemplar diversos horizontes
ideológicos, a obra assim concebida diverge daquelas do autor-poeta, ou
do compositor de algum outro gênero classificado convencionalmente
como “elevado”. Estes são, tradicionalmente, porta-vozes de um
discurso unilateral, monologado, acabado, voltados para um
posicionamento autoritário, isolados mormente da penetração das
demais vozes e posicionamentos ideológicos, os quais consciente ou
inconscientemente participam da voz de qualquer enunciação praticada
no âmbito social por entes partícipes da vida em sua realidade
imanente.
A partir disso, então, advém a idéia de que o gênero
romanesco deva ser estudado não do ponto de vista estritamente
estético, adotando-se metodologia de cunho mais formalista, como obra
de arte que é, mas, sim, e relevantemente também, estudando-o do
ponto de vista sociológico, como a mais acabada representação
microcósmica da vida que demonstra ser. Mais ainda: a idéia de que
aqueles pressupostos metodológicos de estudo aplicados aos outros
gêneros, aqueles considerados “elevados” como a tragédia, a epopéia e a
poesia, não darão conta plenamente do romance quando a ele
direcionado. E isso ocorre não porque o gênero romanesco difere
destes outros gêneros no tocante à forma, natureza, procedência, mas,
sim, e também pelo próprio caráter discursivo inerente ao romance.
Essa impropriedade se deve à díspar condição lingüística do
romance em relação aos outros gêneros. Enquanto o primeiro trabalha
com as várias linguagens que se entrecruzam na realidade,
independentemente da hierarquia assumida pelos grupos lingüísticos
existentes no desenvolvimento discursivo da realidade, os últimos
trabalham com a linguagem ornamentada e sacralizada do alto escalão
da sociedade em que se desenvolvem. Nessa perspectiva, privam-se o
máximo possível da contaminação lingüística proveniente das zonas
mais “impuras” e “baixas” da civilização, onde a mescla e a livre
proliferação das mais diversas esferas discursivas o conhecem a
normatização e a pomposidade da linguagem, típica dos discursos dos
gêneros “elevados”.
2.1 - Dialogismo, plurilingüismo e polifonia
A defesa da univocidade do sujeito implica depreender a
linguagem como um sistema objetivo, claro, não passível de
contradições, de ilogicidades. Trata-se de um fenômeno que reflete a
verdade, a realidade, como mecanismo humano que traduz
objetivamente os fenômenos indiscutíveis da vida. Seguindo essa linha
de pensamento, a linguagem caracteriza-se como forma indubitável de
representação do real, sem a possibilidade de reconhecimento do
caráter politonal da realidade, que se apresenta entrecortada de vozes
surgidas das mais variadas direções e naturezas. Enfim, a linguagem
explicada por aqueles que sustentam a unilateralidade do discurso,
baseia-se numa visão de cunho racionalista, redutor e homogeneizante.
Não se enquadra, portanto, no âmbito do pensamento unívoco, a noção
de participação ativa da consciência individual determinando a também
condição individual da linguagem de cada sujeito, o reconhecimento da
subjetividade única e intransferível de cada indivíduo e a sua
manifestação via linguagem verbal ou escrita.
Em síntese, a concepção unívoca da linguagem quer dar
conta da língua como norma, torná-la transparente, assimilável,
passível de ser apreendida via regras arbitrárias, defini-la em termos
objetivos, universais e generalizadores.
Em contrapartida ao pensamento unívoco, a concepção
dialógica da linguagem refuta qualquer postulado que aponte e declare
a unicidade lingüística do sujeito enunciador e do sujeito receptor.
Nesse sentido, o dialogismo é a linguagem não como representação do
real, mas como porta-voz da subjetividade humana, como externadora
da constituição psíquica do sujeito em direção a outros psiquismos, a
outras subjetividades, lugar da constituição da subjetividade. É pela
linguagem que o homem se constitui enquanto subjetividade, porque abre
espaço para as relações intersubjetivas e para o reconhecimento
recíproco das consciências.
7
No caso da dialogicidade, percebe-se a linguagem, o
discurso, como campo de encontro das tendências lingüísticas
existentes, convergência do discurso evocado pelos indivíduos do
centro, da norma, da cultura oficial e do discurso periférico dos sujeitos
lingüisticamente desamparados dessa mesma norma. A linguagem
dialogizada é a da confluência dos vários estratos lingüísticos, reflexo
dos também variados estratos sociais, que se debaterão na mentalidade
e nos enunciados do sujeito falante/escritor, implícita ou
explicitamente. Conceber a linguagem como dialogizada significa
também entrever o ato discursivo realizado em uma dupla via: a ação e
reação discursiva, o sujeito manifestante e seu destinatário, e,
invariavelmente, esse outro, o receptor do enunciado, que pode ou
7
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Escritura, leitura, dialogicidade. In: BRAIT, Beth.
Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. p.
284.
não existir de fato, que pode ou o contra-atacar no embate
discursivo.
Isto não se somente no nível da linguagem oral. Qualquer
discurso pressupõe a participação de um receptor/destinatário
correspondente, e como se mencionou, concebido de maneira
implícita ou explícita. Com o discurso escrito não é diferente; ele
pressupõe sempre uma consciência acolhedora de seu texto, que vem
indiretamente inscrita no desenvolvimento formal/conteudístico da
produção textual. O diálogo ocorre desde a concepção do texto, sem que
haja uma efetiva, uma resposta externa e posterior ao procedimento da
leitura. Inserido, entranhado e impresso no discorrer individual de um
texto, o diálogo vem, nessa medida, confirmar a idéia do dialogismo
inerente à linguagem humana, seja qual for a forma manifestante da
língua, oral ou escrita.
A premissa definitiva é a de que estamos lingüisticamente
constituídos. Nossa fala e nossa escrita estão sorrateiramente
imbricadas de outros discursos, níveis de linguagem determinados,
assinalada por alguma ou algumas marcas lingüísticas específicas de
alguma natureza peculiar, etc. A isso se o nome de dialogicidade
interna, a celeuma de línguas, de linguagens que habitam nossa
consciência e que sutil ou manifestadamente são explicitadas quando
exteriorizadas de maneira oral ou escrita.
Mesmo como discurso interior, como discurso não
pronunciado verbalizado ou escrito –, é fato estar a consciência
impregnada de linguagens as mais diferenciadas, de variada ordem,
natureza ou hierarquia: a consciência é plurilíngüe. A observação sobre
este ponto é crucial, uma vez que uma abordagem científica sobre o
aspecto da linguagem em geral, enquanto manifestação da consciência,
muito mais em se tratando da linguagem literária, não pode se
contentar em considerá-la exclusivamente como fenômeno puramente
formal, como técnica estética abstrata; ao contrário, deve-se levar em
consideração, também na apreciação intelectual, o componente
sociológico que perpassa a linguagem, sejam quais forem os meios de
expressão e os fins a que se destinam.
Na consideração acerca de um estudo referente à arte verbal,
Bakhtin aponta a inadequação metodológica de um estudo que trate
abstratamente o discurso, na sua superficialidade formal, sem tocar-lhe
as entranhas semânticas provenientes de seu uso sócio-histórico
continuado no universo da vida diária, concreta, dos falantes. A
conciliação entre a abordagem formal ou formalista e a abordagem de
índole sociológica e histórica na tratativa da matéria verbal é que deve
prevalecer, sem prejuízo ou predominância de uma das partes,
referências metodológicas de singular natureza.
Um estudo que trate do objeto discursivo isolando o aspecto
formal do conteudístico, por mais apurado que seja, dificilmente dará
conta do complexo material que é a linguagem, o discurso, notadamente
quando considerado o discurso da prosa romanesca e sua peculiar
conformação, espaço lingüístico-literário em que o discurso usual,
trabalhado artisticamente, apresenta-se disposto o mais próximo
possível da linguagem que se efetiva na realidade com suas múltiplas
faces, hierarquias, tipos e com os personagens da vida cotidiana de
variados caracteres, também presentes no contexto diário da linguagem
viva.
Em se tratando de nero romanesco, o cotidiano lingüístico
da realidade objetiva é sentido a cada linha de prosa romanesca criada;
a realidade emerge a cada voz manifestada esteticamente pelas
produções literárias de caráter prosaico-romanesco. Cada voz que surge
no âmbito romanesco é uma parcela transplantada, mas viva, da
marcada estratificação social característica da realidade, formada pela
ilimitada miscelânea lingüística proveniente dos indivíduos e suas
origens.
Exemplo notável de romance que organicamente funciona de
maneira multidirecional do ponto de vista discursivo, ou seja, como
produção literária que artisticamente dá vazão a linguagens existentes e
geradas na atmosfera social humana, Galvez Imperador do Acre se
constitui como arena artístico-literária de representação da mecânica
do discurso no contexto sócio-histórico dos indivíduos, que conta a
obra com uma dinâmica de linguagens incessante, com fontes
discursivas heterogêneas cruzando-se, justapondo-se, alternando-se.
No romance, a coexistência de incontáveis estratos
lingüísticos passa, portanto, pela própria conformação étnica dos
espaços geográficos em que habitam as personagens da trama, lugares
de constituição étnica muito heterogênea; lugares que, além de contar
com seus próprios nativos, eles em si, já um pouco estratificados,
contam também com maciça presença estrangeira, influenciando não só
o aspecto lingüístico como o aspecto físico das regiões abordadas pelo
romance. Como exemplo, tem-se o momento em que o personagem
Galvez descreve o ambiente de Manaus, com a impressão de quem
recentemente chegou a lugar desconhecido, o identificando o estilo
arquitetônico da cidade, nem reconhecendo influência inglesa ou
portuguesa em prédios de uma metrópole soberba que, situada em meio
à imensa selva amazônica, abriga e reúne tipos e costumes de variada
proveniência:
Trinta graus. Manchas de água evaporavam das
paredes como restos mortos de chuva. Eu olhava
pela janela a rua movimentada, os bondes
atravessando os paralelepípedos cor de vinho.
Mulheres com chapéus extravagantes flanavam de
braços com seus homens. A cidade coruscava de
eletricidade. Prédios vitorianos ou manuelinos? Uma
igreja inacabada e uma praia de lama fétida. Eu
estava há um mês em Manaus. Sem problemas.
8
Ao tratar de ambiente plurilíngüe, logo se está tratando
também de ambiente pluricultural, descaracterizado do ponto de vista
de uma cultura pura, cultura imanente do contingente humano de um
determinado espaço. O que irá marcar um espaço plurilíngüe é o
sincretismo de forças culturais heterogêneas atuantes em um mesmo
espaço. A cultura local e as culturas exteriores resultam em uma
hibridização identitária relevante, proporcionada, entre outras coisas,
pela turba lingüística com que cada grupo contribui em parte na
8
SOUZA, Márcio. Galvez Imperador do Acre. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 119.
Todas as demais citações do texto de Márcio Souza pertencem à mesma edição.
atmosfera do discurso cotidiano da realidade. O sincretismo citado é,
em Galvez Imperador do Acre, título de trecho que revela bem a forte
interferência de cultura alheia em solo totalmente assimétrico a esta
cultura, a cidade de Manaus. Veja-se a descrição registrada no referido
capítulo:
A presença inglesa em Manaus era tão forte que
havia até fantasmas tradicionais. Num palacete,
numa ponte de ferro, numa determinada hora da
noite, com a precisão do meridiano de Greenwich, era
possível deparar com o lívido espectro de uma
mulher cega, os olhos vazados de vingança, ou a
figura sangrenta de um homem em costumas do
século XVIII. Sir Henry se sentia relativamente bem
naquela cidade. (p. 125)
Na passagem citada, percebe-se um verdadeiro transplante
de um sistema cultural particular, de figuras típicas do imaginário
inglês para um cenário natural que nada lembra a atmosfera britânica,
mas que também não se converte em fato muito extravagante neste
lugar (Manaus) devido à presença marcante de ingleses na metrópole
amazonense. Esta, a princípio, confusa mistura de folclores e culturas,
adquire através da linguagem um dos seus máximos meios de
expressão: a linguagem reflete o entrecruzamento cultural e folclórico
da realidade, realidade estratificada cultural e discursivamente, em que
vivem os diferentes grupos que a compõem e, em tese, específica
identidade lingüística. Esta identidade, em termos práticos, pode ser
difícil de delimitar, pelo fato de misturar-se com a fala e a escrita dos
usuários do discurso de outras linhas culturais, com outros grupos
lingüísticos, de região, de nacionalidade, de idade, de profissão, etc.
A mescla de tipos culturais distintos no romance dá-se até
mesmo em um plano metafísico, transcendental, ultrapassando o
próprio limite da realidade dialogizada concreta e sensorialmente. Basta
que se recorde o trecho entitulado Ballet mystique (o próprio título
uma denominação francesa), em que Luiz Galvez, em Manaus,
rápido esboço de uma sessão espírita testemunhada por ele na sala da
mansão do Major Freire. Na ocasião, o próprio Major Freire diz que tais
sessões não obtinham o sucesso esperado na captura de espíritos
elevados, estes outrora homens superiores, tal como o espírito do
escritor Victor Hugo, relatado por Freire. No ximo, nesses encontros
ocultos, eles captavam índios, pretos velhos, espíritos baixos que
gritavam de horror e diziam obscenidades (p. 123). Percebe-se, a
mesmo em uma esfera vivencial além-mundo, o entrechoque de diversas
manifestações culturais e discursivas, de diferentes níveis e
procedências.
A intenção do grupo espiritista de privilegiar a apreensão de
espíritos nobres como o de Victor Hugo representa bem a condição
intelectual dos integrantes da sessão: pessoas cultas, de ambientes
sofisticados, gostos requintados, pessoas que prezam aqueles
programas culturais eruditos (teatro, ópera, literatura escrita) e neles se
vêem como receptores em potencial do que consideram a cultura nobre,
superior, aquela exclusivamente originária da Europa: a “civilização”.
Em contrapartida, o episódio do ritual espírita reflete,
mesmo que em imagem cômica de um mundo sobrenatural, a
pluriformação cultural, étnica e social do mundo concreto-sensorial dos
vivos, dos seres humanos existentes na forma constitutivamente
material. Por mais que se queira a presença única, monótona do tipo
considerado “sublime” de cultura, de discurso, tal desejo não se
concretiza em termos de realidade, nem em termos de literatura;
somente na perspectiva de gêneros diretos (poesia, tragédia), e, mesmo
assim, com a presença em forma de resquícios do plurilingüismo.
A inevitabilidade do dialogismo nas relações comunicativas é
na literatura mais explicitamente colocado na prosa romanesca, não
importando o modo composicional desta prosa (conto, novela ou
romance). A linguagem única, centralizadora, normativa não encontra
no romance solo fértil, a não ser como objeto de representação,
comparecendo no texto ao lado de outras formas de expressão
lingüística, todas desfilando em de igualdade no discorrer narrativo
da produção ficcional. A prosa romanesca esboça, no plano da
literatura, o funcionamento do sistema lingüístico condizente com a
realidade dos falantes, ouvintes, escritores e leitores; a pauta de seu
discurso é a confluência dos diversos estratos lingüísticos e sociais
entrechocando-se e convivendo mutuamente, arranjados de maneira
similar à dinâmica discursiva do mundo e seus integrantes potenciais.
A palavra é o próprio referencial da escrita romanesca; esta se vale
daquela (a palavra dialogizada) como objeto para representação
artística, não mero instrumento intermediário veiculando algo
preponderante. Pelo contrário, o discurso romanesco sempre se volta
para si mesmo, apóia-se na sua particular arquitetura comunicativa, na
heterogeneidade das vozes manifestadas, componentes dos universos
sociais abordados.
Na prática, Galvez Imperador do Acre é construído mesmo
por uma quantidade relevante de estratos sociais e lingüísticos, em
constante embate dialógico: em pequenos trechos pode-se vislumbrar a
variação brusca da ocorrência destes estratos sócio-discursivos pelos
personagens da trama, como na passagem que segue:
DIÁLOGOS NO JUNO E FLORA
Ouçam uma orquestra de quinze músicos
cansados a executarem numa madrugada de
domingo a Tritsch-tratsh, polca de Strauss.
Galvez – Uma casa seleta.
Trucco – Um caralho de conselho municipal.
Galvez – Me parece o paraíso.
Trucco Será que as meninas não querem
beber?
Galvez – (gritando) Querem beber?
Uma cocotte – Oui, mon copain...
Outra cocotte – Champanha, sim...
Trucco – Veuve Cliequot, safra de 1855.
Galvez – Madre de Dios!
Trucco – Aqui a História se faz nos bordéis.
Galvez – È história sagrada...
Trucco – De política e ricos de bosta.
Galvez – O que há de mau nisso?
Trucco Vamos ser esquecidos. Eles também.
Nem como devassos seremos lembrados.
Galvez – À saúde da Bolívia!
Trucco À saúde da Bolívia! Ninguém
lembrará de nada.
Galvez – E a fotografia?
Trucco Preto e branco... minha cara fica tão
branca que parece que estou empoado...
Uma cocotte Estou com uma coceira no bibiu.
(p.20-21)
Percebe-se, pois, a oscilação vocabular extrema na fala dos
personagens Galvez e Trucco, que vai de uma certa formalidade verbal
ao palavrão, das cocottes que se pronunciam em francês à resposta de
Trucco em português e à exclamação de Galvez na sua língua natal, o
espanhol. E assim é ao longo de todo o romance, não somente nos
diálogos diretos, mas também na narração, que é perpassada pela
heterogeneidade do discurso pronunciado, porque executada
predominantemente pelo próprio Luiz Galvez, que relata no trecho
denominado Mocidade: Fui estudante regular, aprendi a falar francês,
inglês e português (p. 52). O que se atesta, pois, por isso também, é o
grande número de estrangeirismos emitidos por Galvez ou transcritos
por ele quando da fala de alguém ao longo da narração: mardi-gras (p.
99), jungle (p. 102), Art-nouveau (p. 103), El toro loco (p.108), fait-divers
(p. 143), Sexual life beyond Equator (p. 159) e muitos outros exemplos.
o o personagem Luiz Galvez é atravessado por diversas
correntes culturais e lingüísticas, mas também os próprios contextos
em que ele se encontra, está povoado de variadas naturezas étnicas.
Em pensões com serviço francês se pode encontrar uma liga de nações:
moscovitas, árabes, húngaras...(p. 126), a própria moeda utilizada na
casa era estrangeira, a libra.
As manifestações ou expressões culturais e folclóricas que
aparecem no romance também apresentam um caráter híbrido,
retratadas sempre comicamente, mostrando o desamparo da própria
cultura brasileira. Em um episódio, Galvez decide organizar uma
zarzuella (gênero musical originário e típico espanhol) juntamente com o
restante da companhia de ópera francesa no vapor a caminho de
Manaus. Já pelo nome com que a nova companhia fora batizada, tem-se
o primeiro indício do hibridismo característico do grupo: Les
Commediens Tropicales (p. 101). O quadro organizado em homenagem à
Guerra do Paraguai nada tem de brasileiro, a não ser o inusitado
francês, mestre da companhia Blangis, interpretando. Presume-se que
de maneira caricata, seja Duque de Caxias. As composições da tal
zarzuella organizada por Galvez contavam com um monólogo de Molière
e uma copla sobre música de Rossini. Dessa mistura de nacionalidades,
lê-se o comentário sarcástico, ironicamente corrosivo de Luiz Galvez, de
que a zarzuella e todo o quadro organizado eram tão patrióticos.
Entretanto, extremo mesmo quanto à caracterização irônica,
pode-se a mesmo caracterizar como avesso de evento histórico-
cultural, é o episódio da tomada do Acre pelo grupo de Galvez e a
instituição de alguns símbolos típicos franceses no novo governo que se
instala, assim como no cenário natural totalmente destoante do
ambiente parisiense. O seringal e a praça da localidade em que
habitavam o coronel Pedro Paixão e seus seringueiros indicavam um
certo galicismo do contexto de então; ambas tinham o nome de
Versalhes, o que após a observação de Luiz Galvez implicou a sua
iniciativa de tomar Puerto Alonso no dia 14 de julho, data da Revolução
Francesa.
A partir daí, seguem-se outras situações de semelhante
índole plurilíngüe: a frase inscrita na bandeira acreana evoca a mesma
exclamação da Revolução Francesa LIBERDADE, IGUALDADE E
FRATERNIDADE (p. 170); na troca da bandeira boliviana pela bandeira
do Acre, a canção executada é Aida, em alguns de seus versos, o que,
na opinião de Galvez, serviu para dar um tom solene (p. 181) ao
momento; o é diferente na ocasião da cerimônia de coroação de Luiz
Galvez: desde a decoração até as canções, tudo fazia lembrar a
atmosfera européia e seus salões de festa e erudição, se bem que, no
caso da companhia Les Commediens Tropicales, o que se tinha era
muito mais um arremedo da grande cultura européia do que um grupo
organizado e aclamado mundialmente, uma vez que a companhia
apresentava-se em frangalhos.
Quanto à sobreposição da cultura francesa à cultura nativa
acreana ou brasileira, pode-se dizer que a culminância corresponde à
troca do nome da praça de Puerto Alonso, em que a data republicana
brasileira, antigo nome, é trocado pela data 14 de julho, esta não a
data de tomada de Puerto Alonso pelas tropas de Galvez, mas também
uma referência indireta ao feito destacadíssimo do passado histórico
francês. Além de todos os atos inusitados mencionados, a
derradeira e hilária coroação de Galvez, que, fortemente inspirado em
gesto napoleônico, o próprio Galvez põe sobre sua cabeça uma palma de
folhas de seringueira lavrada em prata (p. 189). Aqui, o sarcasmo recai
sobre um objeto que, a princípio, seria utilizado para fins religiosos e
tinha sido enviado como presente pelo governo boliviano para servir de
coroa à virgem padroeira da cidade, uma imagem de gesso em tamanho
natural que estava no altar-mor da igreja (p. 189). Desmoralização
religiosa ou política, o fato é que a coroa com folhas de seringueira,
antes um elemento destinado ao sagrado, serviu como símbolo da
depravada e profana cerimônia de um governo depravado, promíscuo e
inconseqüente como acabou sendo a gestão de Luiz Galvez frente ao
Estado Independente do Acre.
O romance Galvez Imperador do Acre apresenta-se como
uma narrativa repleta de vozes de variados grupos lingüísticos, em
suma, repleta de heteroglossia. Na trama, não disparidade
hierárquica entre estes grupos quando apresentados durante o
discorrer narrativo; o se tem delineada a noção do que seja
linguagem superior e linguagem inferior, ou predominância de uma
delas sobre a outra. O que se tem, isto sim, é uma turba de vozes em
uma arena comunicativa em comum, em processo similar ao
funcionamento discursivo da realidade, que a prosa romanesca traduz
com a maior proximidade possível. Em Galvez Imperador do Acre, como
foi expresso, são esboçadas diversas correntes lingüísticas. Um
exemplo bem local da linguagem da região amazônica diz respeito à
nomenclatura utilizada para chamar os seringais da Amazônia; nativos
(p. 51) é o termo usado. Assim, mostra a voz do habitante amazônico e
do seringueiro, que se faz presente no romance em meio às demais
vozes, próximas ou muito destoantes de sua típica conformação.
Um outro estrato lingüístico que se percebe é o de pessoas
que, mesmo não estando na França, empregam em seu diálogo a língua
francesa, idioma de um país com presença cultural muito marcante no
século XIX e que ao início do século XX se sobressai frente a outras
culturas. Além das pessoas e de seus diálogos, a França consta em
Galvez Imperador do Acre sob várias formas: na cultura, na arquitetura
e na política. Esta presença influente do legado francês no romance se
também através do diálogo direto entre alguns dos personagens, a
mesmo entre personagens que não eram franceses, caso de Galvez e
Major Freire: Freire Voilá comme on apprend à tuer les seringueros./
Galvez – Manaos n’est qu’une ville romantique (p. 123).
Luiz Galvez, quando narrador do romance, é também dotado
de heteroglossia, chegando a incorporar em sua atitude lingüística o
típico falar de um marinheiro, com suas particulares expressões de
domínio e uso mais restrito à classe marinheira:
Quase sem casco, na linha d’água, podia chegar a
qualquer furo mesmo na baixa, desde que o
carregamento de borracha ou castanha
compensasse. Soares, o comandante, orgulhava-se
de nunca ter encalhado, era um especialista em
manobras rápidas, saindo de popa nos repiquetes.
(p. 155)
Em um meio de vida escasso materialmente, de população
paupérrima (exceção feita aos grandes proprietários de seringais,
políticos e estrangeiros empreendedores), com pouquíssimo ou nenhum
nível de instrução, a voz que mais se impõe é a voz dos próprios nativos,
que brota dos ambientes mais simples, modestos e autônomos
lingüisticamente em relação à cultura letrada dos centros políticos e
eruditos, que impõem ou tentam impor um autoritarismo social e
lingüístico. Como mosaico das linguagens da realidade, como
representação literária que apresenta a heteroglossia característica da
realidade, Galvez Imperador do Acre apresenta, como não poderia deixar
de ser, a voz periférica da população do chão de barro, de homens
maltrapilhos, de mulheres maltratadas (p. 181).
Esta voz vem reproduzida em forma de diálogo direto,
estando a falante, uma mulher do povo que estava prestando
esclarecimentos na delegacia de Puerto Alonso, presentificada na
diegese pela narração de sua própria voz no romance. Assim, o estrato
lingüístico popular dos confins da região amazônica é apresentado
diretamente através da fala de uma representante íntegra deste
ambiente discursivo em particular. O título do trecho que se comentou
antes, enfaticamente sarcástico – Diálogos do . Mundo (p. 202)
delineia bem o perfil lingüístico apresentado pela fala da mulher do povo
em comparação ao tipo de discurso empregado por grande parte dos
personagens da trama. Esse discurso, embora muitas vezes perpassado
por um toque irônico, é dotado de explanações, citações que denotam
um certo grau de instrução, erudição (corresponde ao que seria o
primeiro mundo em termos de atmosfera social e lingüística humana, a
Europa).
Enquanto os Diálogos do 3º. Mundo refletem a linguagem
menor, baixa, periférica, descentrada, a linguagem dos personagens
mais enunciadores do romance, embora com variações de estilo, é a
representação de um maior centralismo lingüístico, não-absoluto, pois
na fala destes mesmos personagens comparecem também formas
menos sofisticadas de linguagem, como as exclamações licenciosas que,
por vezes, de maneira brusca, são enunciadas por estes mesmos
personagens em suas falas. Essa o-linearidade estilística presente na
linguagem de quem quer que seja, constantemente marcada no
discurso dos personagens do romance, faz referência à própria condição
humana nas situações concretas de comunicação, sendo estas
carregadas de um plurilingüismo incontido, não acabado, que se
metamorfoseia em outros estratos de linguagem na fala do indivíduo
usuário da língua sem que este tenha muitas vezes domínio e ciência
sobre a natureza de suas próprias palavras.
2.2 – Riso, paródia e carnavalização
Mikhail Bakhtin, ao discorrer sobre o percurso histórico da
palavra romanesca, aponta especificamente para dois fatores: o riso e o
plurilingüismo. Do último citado se tratou antes, embora ainda se
possa referi-lo quando o tema em questão é o discurso romanesco e a
considerável pertinência com que este fator atua para a compreensão do
fenômeno romanesco via teoria bakhtiniana. Contudo, o riso situa-se no
campo do sério-cômico, contrapartida dos chamados gêneros sérios (a
epopéia, a tragédia, a lírica, a retórica clássica) predominantes no
período clássico grego e latino e que eram considerados a essência da
cultura oficial, produzidos pela elite intelectual grega e latina,
absorvidos por esta mesma elite e impostos como norma cultural
vigente às demais camadas populares. As manifestações de cunho
popular não-enquadráveis no padrão da cultura clássica, aquelas
manifestações o exatamente sérias, elevadas, sublimes do ponto de
vista da construção mitológica, artística, ocupavam posição periférica
no quadro das realizações culturais do estágio clássico das civilizações
grega e latina.
Um dos pilares do gênero do sério-cômico é justamente o
riso, que destoando da seriedade unilateral, unívoca dos gêneros-
padrão, acrescenta visão de mundo diferenciada à realidade presente e
ao passado mitológico e histórico que as manifestações artísticas
exploram e expressam. O riso, segundo Bakhtin, organizou as mais
antigas formas de representação da linguagem, que inicialmente não
eram senão qualquer coisa como o escárnio da linguagem e do discurso
de outrem
9
. Portanto, a partir do escárnio da linguagem, entenda-se a
linguagem oficial, normativa, é que emergiu o fenômeno do riso,
paralelo negativo ao discurso rio das autoridades. Para que isso se
fizesse, houve a incorporação do discurso de outrem, revestido de um
escárnio livre, aberto e descomprometido, aplicado à linguagem e aos
gêneros clássicos. Dentre os muitos gêneros do sério-cômico, dois em
especial são explorados por Bakhtin e apontados como fontes primeiras
e influências marcantes daquilo que veio a ser posteriormente o gênero
romanesco, tal como o conhecemos modernamente. Tal gênero não se
apresenta, de forma alguma, acabado, fechado, limitado que o possa
vir a ser diferente do que é nos dias atuais, por exemplo. Esses gêneros
embrionários foram o diálogo socrático e a sátira menipéia.
9
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 5, p. 372.
O diálogo socrático não se inseria nos chamados gêneros
retóricos, sendo considerado, na sua época, nero periférico, às
margens da alta cultura grega. Seu funcionamento consistia, como o
próprio nome aponta, na ocorrência do diálogo oralizado, no confronto
de idéias entre os entes debatedores de pensamentos filosóficos, tendo a
realização deste diálogo, por conseqüência, a produção do
conhecimento, resultado este de esclarecimentos e aclaramentos
recíprocos interconsciências.
Tem-se, então, a negação do princípio do conhecimento
estabelecido monologicamente, ditado por uma solitária consciência em
direção às outras mentes que, passivas, acolhem as idéias proclamadas
submissamente. O simples pensar de que haja alguém ou algo que dite
uma verdade acabada, concluída, não é, no diálogo socrático, pelo
menos em seu estágio mais incipiente, característica. Tal verdade é
buscada e processada por meio da interação de pontos de vista dos
partícipes de cada evento dialógico, com ingredientes de cultura popular
e cosmovisão carnavalesca, por onde a profusão de visões de mundo e
linguagens atua consolidando a o-afirmação da verdade autoritária,
unilateral, vinculada à cultura oficial, concretizando a relativização do
discurso e a pluralidade de estilos que comparecem nas atividades
culturais.
No diálogo socrático, a figura do herói é constituída pela
participação ativa de seu próprio pensamento, de sua consciência, de
sua ideologia. Tanto o próprio Sócrates, precursor deste gênero e
considerado por Bakhtin o primeiro ideólogo
10
, quanto os demais
componentes que participavam, direta ou indiretamente dos diálogos,
todos eles são ideólogos; todos detêm certa autonomia pensante ao
travarem discussão uns com os outros, em um processo de
experimentação da verdade
11
ao qual se submetiam todos os entes
envolvidos.
10
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1981. p. 95.
11
Idem, p. 95.
Outras marcas presentes no diálogo socrático são a situação
no limiar, relatada por alguns dos personagens, e também a ocorrência
de eventos excepcionais, os quais escapam a qualquer lógica. Tais
marcas, acrescentadas ao caráter ideológico dos personagens do diálogo
socrático, indicam considerável mudança na representação do
homem, sendo, a partir de então, a idéia do homem também
representada. O diálogo socrático como nero, de maneira incipiente
esboça uma imagem da idéia do homem, concebida então como algo
inconclusivo, indeterminado, mutável, particularizado da consciência de
cada indivíduo que dialoga com as idéias alheias.
Outro gênero que se apresenta como uma das bases na
evolução da linha dialógica da prosa romanesca é a sátira menipéia,
procedente da cosmovisão caranavalesca em um grau muito maior que
o diálogo socrático, possuindo, além disso, maior índice de comicidade
que o gênero antes citado. A maior liberdade composicional da
menipéia, desprendendo-se de certas limitações histórico-
memorialísticas, presentes e marcantes no diálogo socrático, também a
ela confere o que se poderia chamar de maior proximidade com a prosa
romanesca em seus estágios mais tardios ou até Dostoievski, como nos
apresentam e investigam com maior ênfase os estudos de Mikhail
Bakhtin.
O desembaraço com que a sátira menipéia lida com seus
objetos temáticos é, de fato, muito mais notável do que no gênero
alavancado por Sócrates. Este desembaraço manifesta-se tanto no
tratamento dado às personalidades destacáveis do cenário sociopolítico
e cultural europeu quanto no enquadramento dessas mesmas
personalidades em esferas que o se restringem à realidade sensível,
inteligível, materializada. A sátira menipéia lança mão plenamente do
recurso da fantasia no enfoque de suas criações, e é possível que em
toda a literatura universal não encontremos um gênero mais livre pela
invenção e a fantasia do que a menipéia
12
.
12
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 9, p. 98.
A experimentação da verdade ou de uma idéia da qual se
falou e que se faz presente no diálogo socrático como pano de fundo
dialógico é, na sátira menipéia, o ponto de chegada implícito das
situações fantásticas e extraordinárias que o comuns no discorrer
diegético da menipéia. Nesse sentido, o herói, o importa quem seja,
deve passar por situações de provação e superação que o façam
enfrentar tais experiências excepcionais como forma de busca, provação
e experimentação de uma idéia ou verdade esboçada.
Na sátira menipéia, é característica também a presença de
um convívio harmônico entre elementos de cunho fantástico e de
caráter místico-religioso. Estes aparecem vinculados ao universo do
submundo humano, com seus ambientes muitas vezes escrotos,
desqualificados do ponto de vista do requinte, da comodidade, da
nobreza cantada pelos autores dos chamados gêneros elevados, rios,
considerados os gêneros oficiais da nobre cultura. Nas menipéias, a
produção de idéias, a experimentação da verdade e o desenvolvimento
cognitivo podem perfeitamente transitar pelos espaços que Bakhtin
denominou naturalismo de submundo
13
. Sinalizam, aí, não para a
exclusiva elitização da figura do sábio, do pensador, mas para o
entendimento de que o embate ideológico e seu produto final (até que
surja outro embate) podem ser verificados nas atmosferas profanas,
baixas, vulgares, de natureza material, grosseira e contaminada de
corruptabilidade. A combinação de índices temáticos elevados, de
pensamentos e diálogos filosóficos trabalhados com o chamado
naturalismo de submundo é um traço imprescindível na configuração da
sátira menipéia, vindo a atuar posteriormente no prosseguimento da
linha evolutiva da confecção da prosa romanesca.
Bakhtin também aponta ser o nero da sátira menipéia
responsável pelo surgimento na literatura da exploração dos estados
psicológicos anormais do homem toda espécie de loucura (“temática
maníaca”), da dupla personalidade, do devaneio incontido, de sonhos
extraordinários, de paixões limítrofes com a loucura, de suicídios, etc.
14
13
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 9, p. 99.
14
Idem, p. 100.
Se comparada com os gêneros sérios nesse aspecto, a sátira menipéia
atua desconstruindo a concepção de homem estabelecida pela visão
épica e trágica preponderante no meio artístico oficial grego e latino. Os
desvios mentais e de conduta demonstrados pelo homem representado
na sátira menipéia destoam da pretensa unidade e coesão típicas do
elevado homem trágico e épico. Os conflitos interiores, quase sempre
esboçados externamente através de atos extremos (às vezes patológicos)
praticados pelos personagens na menipéia, desestabilizam a estrutura
pessoal interna e externa do sujeito retratado. Trata-se, assim, de
conceber este homem o mais próximo da realidade tal qual se apresenta
objetiva e subjetivamente. Esse desnudar moral e psicológico das
figuras humanas mostrado na menipéia reflete uma sensibilidade na
apreciação do ser humano, que é coerente com seu próprio estado
comportamental: inexato, irregular, enigmático, variado conforme a
ocasião, o contexto.
Na sátira menipéia consta não um homem que fala, mas
também um homem que dialoga, inclusive consigo mesmo, e com uma
autonomia maior que nos neros sérios, em que o perfil e a atividade
ideológica do indivíduo são pautados pelo movimento ideológico
dominante, pela visão de mundo absolutista, monologizada, conclusiva
e predisposta dada pelo centro regulador da idéia.
Situações excêntricas, com a ocorrência de escândalos e
comportamento discursivo inadequado, são recorrentes na sátira
menipéia, afirmando ainda mais o nero como entidade artística
desorganizadora da ordem, da norma, do formalmente aceito como
padrão de bem-estar pessoal e social. À estável e predeterminada
condição do mundo ditada pelas epopéias clássicas e pelas tragédias
contrapõe-se a menipéia que, com demonstrações de atitudes
desregradas por parte de seus personagens, destrói a estaticidade e a
inabalabilidade do ideal universo concebido pelos gêneros do campo do
sério. A excentricidade no discurso se no emprego da linguagem
“indecente”, “perniciosa” e através da franqueza, do cinismo, da
profanação desmascaradora do elemento sagrado.
Alternâncias de condição social, estados de espírito,
comportamento dos indivíduos são muito comuns na sátira menipéia.
Mas o que impressiona é a maneira brusca com que tais alternâncias se
sucedem, confirmando a concepção de homem e mundo que a menipéia
apresenta e que a prosa romanesca ao longo de sua história irá
consolidar: o princípio de que as coisas e as pessoas têm uma natureza
mutável, oscilante e que são propensas a transformações. o
recorrentes os exemplos de personagens que bruscamente trocam de
status social, que repentinamente ascendem ou decaem, que se
aproximam e se distanciam uns dos outros, etc.
Tema que por vezes freqüenta a sátira menipéia é a utopia
social, sob forma de delírios, sonhos e viagens a países misteriosos. Tal
tema e suas formas de expressão possuem vínculo direto com o
desenvolvimento do fantástico experimental na menipéia, além de
apresentarem índices de comicidade pelo caráter extravagante das
pretensões utópicas apresentadas.
No tocante ao aspecto formal, sobressai-se a singularidade e
a versatilidade da menipéia em empregar gêneros alheios mesclados em
seu corpo textual. A heterogeneidade das modalidades de gênero
observada vai desde a representação de cartas, oratórias, simpósios e
demais gêneros à fusão entre o discurso em prosa e em verso. Cabe
salientar que a reprodução de outros gêneros no desenvolvimento
textual das sátiras menipéias não significa estarem eles explicitados
autenticamente, com a mesma carga semântica que teriam caso
estivessem sendo representados isoladamente, não imersos em um
contexto discursivo heterogêneo, como é o caso da natureza textual da
menipéia. O que se quer afirmar, exemplificando, é que uma poesia,
uma carta ou qualquer outro gênero, quando presente na menipéia e
inserido em seu típico emaranhado textual, não constitui mero meio de
representação. Ao contrário, é objeto de representação, manipulado pelo
autor que o reproduz com circunstancial teor paródico, apresentando-o
com certa distância em relação a seu derradeiro posicionamento
ideológico.
Por fim, a sátira menipéia adota a atualidade em que está
inserida como enfoque no que se refere ao contexto temporal de suas
criações; por conseguinte, mais parecem boletins informativos diários
as suas produções. Este registro próximo da atualidade se faz de
maneira um tanto mordaz, direcionado a eventos, figuras e movimentos
ideológicos integrantes do momento atual da atmosfera social
representada pelas menipéias.
A mordacidade com que o gênero trabalha seus objetos de
discussão e a atualidade deles procedem de um saliente espírito
cômico-carnavalesco de que trata deliberadamente suas temáticas. A
índole desse espírito, quando presente no tratamento conferido às ações
contemporâneas relatadas artisticamente pelas sátiras menipéias,
concebe a realidade e seus integrantes como universos indeterminados,
abertos à evolução.
A capacidade de representar o caráter imprevisível e variado
da realidade, o desenrolar do cotidiano e a revelação de suas
ocorrências nem sempre éticas, agradáveis, aceitáveis. Presentes no
gênero menipéia, comprovam o quanto a elaboração temporal nesse
gênero difere da estática instância temporal configurada pelos neros
retóricos e oficiais; seus quadros de acontecimentos consagrados e
irremovíveis, distantes da realidade presente, não dizem respeito mais
extrinsecamente aos movimentos da vida corrente da gente comum,
vida povoada de atividades simples, discretas, não raramente obscuras,
de personagens muitas vezes anônimos. Em vez disso, gêneros como o
drama e a epopéia cantam os mitos, os feitos “altos” e nobres de seres
especiais, iluminados por divindades míticas em prol de um povo em
sua totalidade.
a tira menipéia mantém um envolvimento íntimo com o
dia-a-dia das pessoas, penetra na vida da comunidade de que trata e
sua rotina considerada grosseira, rotina das castas menores da
sociedade. Contudo, o as aborda exclusivamente, mas direciona, isto
sim, sua atenção, à babel lingüística, cultural e social característica da
realidade, procurando dar conta literariamente do conglomerado
sociocultural heterogêneo condizente com essa realidade, refletido na
linguagem empregada por seus indivíduos sociais, todos expoentes de
um material discursivo variado que, ao ser apresentado sob forma
literária, como no caso da sátira menipéia, e mais tardiamente na
afirmação do nero romanesco, encaminha o campo da literatura à
tratativa de objetos mais humanos e menos ticos. A prosa romanesca
e gêneros associados, como o diálogo socrático e a sátira menipéia,
tocam mais de perto as entranhas sociais e discursivas da complexa
atmosfera social humana, apresentando-se todos esses gêneros muito
mais coerentes, sob o ponto de vista literário, com a não menos
complexa cotidianidade humana, contínua, mas ao mesmo tempo
renovadora, intrigante e imprevisível.
Tanto as marcas presentes no diálogo socrático como
aquelas condizentes com a sátira menipéia prenunciaram o surgimento
e posterior afirmação do nero romanesco no campo literário do
ocidente. Na essência de muitos gêneros antiqüíssimos, como a
menipéia, o diálogo socrático, além de muitos outros contemporâneos a
eles, está o fenômeno do riso de base popular a promover uma visão de
mundo peculiar, diferenciada, destoante da unilateralidade autoritária,
séria e monológica, própria do núcleo ideológico culto, estabelecedor
das normas.
A visão diferenciada de mundo proporcionada pelo riso deve-
se a sua natureza e a sua atitude dessacralizadoras e desmascaradoras
frente ao ser humano e sua realidade circundante. O riso focaliza de
perto, no tempo e no espaço, o universo pessoal e as ações do homem,
que é tratado familiarmente e tem exposto não só seu lado positivo,
agradável, mas também seus desvios de caráter, de conduta e suas
muitas atribulações. Tal grau de aproximação com a realidade e seus
objetos é possível quando se trabalha na própria contemporaneidade
destes, na atualidade viva, corrente, e no contato direto e íntimo com
eles. Nessa atualidade, tem-se o comparecimento de variados tipos
socioculturais, por conseguinte discursivos, competindo em de
igualdade na dinâmica arena discursiva da realidade; são manifestações
heterogêneas do uso do discurso atestando o caráter polifônico da
realidade sobre a qual a prosa romanesca atua literariamente,
representando, em forma de arte, as nuances e matizes da realidade
humana, ideológica e comunicativa.
O riso e suas diferentes modalidades, aplicadas no exercício
literário de gêneros como o diálogo socrático e a sátira menipéia,
estendem-se historicamente e comparecem na posterior instância
literária da prosa romanesca, constituindo uma das principais bases de
sustentação da totalidade formal e semântica do gênero romanesco.
O romance Galvez Imperador do Acre incorpora nitidamente
as modalidades de riso apresentadas pelos gêneros antigos do campo do
sério-cômico em seu texto. Esta obra de ficção de Márcio Souza compõe
seu material diegético à base de muita comicidade livre, desenvolta,
mas desempenhando um criticismo agudo, direcionado ao contexto
social e cultural abordado na trama e seus personagens; o riso funciona
como ferramenta ideológica que percorre a obra do princípio ao fim com
a função de tocar a realidade sem pudores ou restrições éticas, na sua
profundidade e essência, nem sempre exploradas pela literatura
convencional.
Na base, pois, do gênero socrático – um dos gêneros do
sério-cômico precursores da prosa romanesca –, está a conversação
dialógica, o embate de opiniões, de ideologias entre as pessoas, a livre
proliferação dos pontos de vista de debatedores com vistas a uma
resolução cognitiva acerca de um tema discutido. Diante do leitor está
um gênero que prima pela plurivocalidade, pela multitonalidade
ideológica na sua arquitetura discursiva e textual, por onde desfilarão
vozes culturais, as mais distintas, e posicionamentos heterogêneos
diante do mundo e seus fenômenos. Em Galvez Imperador do Acre não
uma voz, partícipe ou o da diegese, que em absoluto impere sobre
as outras vozes, induzindo unilateralmente a uma determinada
verdade, única, exclusiva, consagrada, inconteste.
O fato de o romance não contar com uma voz narradora
permanente do início ao fim, ou uma voz extradiegética (estratégia
narrativa que, caso fosse adotada, poderia simular um distanciamento e
uma pretensa neutralidade do relato em relação a seu objeto), já aponta
no texto marcas de uma intensa atuação plurilíngüe. Faz-se presente,
então, um discurso multifacetado ideologicamente, caracterizado por,
pelo menos, duas vozes, que absorvem e explicitam inúmeras outras.
Essa busca da verdade é construída a partir da confluência de vários
pontos de vista, mosaico de consciências ideológicas afirmando a idéia
da natureza dialógica do discurso.
Dessas duas vozes mais ativas de que se falou pouco, a
primeira é a de um narrador alheio à diegese enquanto atuação como
personagem um brasileiro que andava fuçando as livrarias de Paris e
que adquiriu o manuscrito redigido em português, pela quantia de
cinqüenta francos (p. 14). Tal narrador, no princípio do romance,
discute a trama, o contexto literário em que foi produzida a obra e
apresenta seu personagem central, o narrador posterior que resolve
escrever suas memórias no findar de sua vida. Esse primeiro narrador é
tipicamente extradiegético, mas não deixa de destilar deboche e ironia
em suas primeiras palavras, humanizando seu discurso e
desconstruindo a imagem quase sempre distanciada, conservadora e
acanhada de um narrador em terceira pessoa. Seu atípico
comportamento discursivo é afetado pelo plurilingüismo inerente à
realidade a que pertence, ressoando em sua voz caracteres lingüísticos,
culturais e comportamentais diversos, que atuam na sua consciência de
indivíduo social que é.
A outra voz que percorre a narrativa ativamente é a voz de
Luiz Galvez. Predominante no romance e caracterizada por uma notável
autonomia ideológica, essa voz assume posicionamentos próprios e
imprime, no percurso da trama, sua peculiar visão de mundo, seu
ponto de vista privilegiado na observação dos eventos que narra e dos
quais também faz parte. Na apreciação descritiva e crítica dos eventos
por ele testemunhados e vividos, a pessoa e, conseqüentemente, a fala
de Luiz Galvez são sutilmente perpassadas por diversas correntes
culturais e lingüísticas existentes no círculo sócio-interativo no qual
interage, atuando em sua mentalidade de ser social, não restringindo
sua autenticidade ideológica, seu modo próprio, único e intransferível
de considerar ideologicamente a atmosfera de fenômenos a seu redor e
nele realizando-se.
Tal como o diálogo socrático, nero precursor das
categorias do dialogismo e do herói ideólogo na literatura, o romance
Galvez Imperador do Acre também opera plenamente com tais
categorias. Isso é verificável em seu caráter um tanto libertário
enquanto obra romanesca que é, desprovida de unilateralidade
ideológica e monopólio discursivo, caracteres estes mais facilmente
encontráveis no drama e na lírica, por exemplo, que são gêneros
historicamente vinculados a um poder ideológico central, habitualmente
chamado, no campo artístico, de cultura oficial.
Da chamada sátira menipéia, gênero consideravelmente
influenciado pelo folclore e cosmovisão carnavalesca, Galvez Imperador
do Acre incorpora suas principais marcas características, praticando-as
não exatamente da mesma maneira que a menipéia e outros gêneros
contemporâneos o fazem, mas adaptando-as à sua natureza romanesca
de gênero literário.
Galvez Imperador do Acre vincula-se, igualmente, às
menipéias devido à maciça utilização do elemento cômico. Como foi
referido, verifica-se o uso da comicidade em toda a extensão do
romance, mas mais especificamente se pode apontar a presença do
cômico relacionado ao procedimento formal que a obra toma e no
tratamento dado a seu objeto temático. Quanto ao recurso formal, o
romance é construído como folhetim, segundo palavras do próprio Luiz
Galvez:
Me encontrei ofegante num amplo sótão de teto baixo
e máquinas fora de uso como insólitas esculturas
enferrujadas. Era um sábio local para um encontro
clandestino de romance de folhetim. Eu estava ali
para um encontro clandestino de romance de
folhetim. (p. 45)
Não pude dormir aquela noite. Minha vida nunca
daria uma história séria, era o tema de um folhetim.
E a vida de Belém não passava de uma blague cínica
de um folhetim. (p. 57)
Alcancei os bastidores e sem ao menos saudar
algumas coristas que choravam na coxia, escapei
pela porta dos fundos, como num folhetim. (p. 72)
O modelo de composição que adota o romance, o folhetim, é
muito praticado durante o século XIX, justamente a época de boa parte
da vida de Galvez. Trata-se de uma estratégia largamente difundida pelo
ramo sério da literatura escrita e em grande escala pelos romancistas
históricos desse século, comprometidos com a cultura oficial,
pertencentes à parcela mais enobrecida do gênero romanesco, que
pensa e trabalha ideologicamente o gênero aproximando-o de outros, os
considerados neros elevados; assim, é arquitetado o romance de
maneira unilateral, fechada, monológica. O romance de Márcio Souza
não segue a forma folhetinesca típica da literatura do século XIX, sendo
o elemento cômico notável componente de diferenciação frente ao
modelo de texto folhetinesco tradicional. A transgressão ao referido
modelo tradicional em Galvez Imperador do Acre é percebida logo no
início da trama, na quebra de expectativa do porvir da diegese, marca
imprescindível do folhetim original: Esta é uma história de aventuras
onde o herói, no fim, morre na cama de velhice (p. 13). Tal mudança de
configuração do folhetim, por conseguinte da própria prosa romanesca,
vai ao encontro da idéia manifestada por Bakhtin de que o romance é o
único gênero por se constituir, e ainda inacabado
15
.
Intrinsecamente, trata-se de um gênero sem precisões
formais e conteudísticas definidas, propenso a constantes modificações
de ordem estrutural e semântica: a ossatura do romance enquanto
gênero ainda es longe de ser consolidada, e não podemos ainda prever
todas as suas possibilidades plásticas
16
. Em Galvez Imperador do Acre,
a ruptura com o folhetim convencional é constatada, ainda, na
descontínua temporalidade de seu relato, no não-encadeamento linear
do decurso da narração. Tal procedimento nem sempre permite que um
evento diegético iniciado em determinado capítulo seja imediatamente
concluído no capítulo posterior, o que não contribui para que uma
unidade temporal das ações seja verificada. A coexistência de dois
narradores conduzindo a trama e a maneira brusca e inesperada com
15
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 5, p. 397.
16
Idem, p. 397.
que a alternância dessas duas vozes narrativas ocorre no romance o
traços peculiares de Galvez Imperador do Acre que o se enquadram
nas características do formato tradicional de folhetim. O narrador que
não é Luiz Galvez, cuja aparição se verifica em menor quantidade na
obra, sempre que intervém na narrativa cumpre a função de
desmistificar certas passagens relatadas pelo Galvez narrador e
personagem, ao mesmo tempo em que manifesta sua própria versão a
respeito dessas mesmas passagens. Em tais observações realizadas por
esse narrador, o humor se faz presente invariavelmente como recurso
ideológico desmascarador das supostas certezas que se espera
encontrar em qualquer relato de caráter memorialístico, autobiográfico
e também historiográfico.
Além de constar em elementos da construção formal do
romance, a comicidade apresenta-se, também, ora mais ora menos
explicitamente em sua temática, no modo com esta é trabalhada. A
abordagem realizada por Galvez Imperador do Acre a respeito de
determinados eventos históricos e seus partícipes tem no cômico um
recurso de ponto de vista, um meio para apreciar criticamente os
mesmos, prática discursiva que se constata muito presente na
literatura do século XX. A representação cômica dos objetos temáticos
dispostos se dá, via de regra, através da carnavalização dos mesmos,
ridicularizando sua faceta convencional e séria, atribuindo a eles
caracterização grosseira, grotesca, alegremente avessa ao estado
consagrado e ordinário das coisas.
Em Galvez Imperador do Acre, os personagens, os contextos
e as circunstâncias históricas são esboçados comicamente, mais
precisamente à maneira carnavalesca, o importando o foco da
representação, o status e a legitimidade conferida à ocorrência ou a
uma personalidade histórica representada. Nesse sentido, a falácia do
discurso oficial, encoberta por sua tensão, sua gravidade, seu tom
solene característico (estratégias estas que pretendem evidenciar que
aquilo que se está registrando é verídico), é desmoralizada pelo
romance. Essa desmoralização ocorre através de uma abordagem
diferenciada, descomprometida, flexível estrutural e semanticamente,
sendo o elemento cômico componente assíduo na efetivação de um
tratamento alternativo da matéria romanesca, diferente do tratamento
empreendido pelo ramo considerado oficial e sério da literatura. Nesse
romance de Márcio Souza, há, pois, uma proposta que se aproxima de
um exercício metacrítico, referente ao próprio ato redacional da história,
sua natureza, seu processo. Desenvolvida no próprio tecido romanesco,
dentro da própria arena ficcional, na livre manipulação dos dados
históricos e agentes factuais enfocados que são concebidos ludicamente
(inserção do cômico), tal postura é assumida de maneira explícita,
conferindo certo viés crítico à matéria temática trabalhada, sem perder
de vista a plasticidade e a liberdade de construção ficcional típica da
arquitetura romanesca segundo o preconizado por Mikhail Bakhtin.
A respeito da liberdade de construção ficcional referida,
marca também verificável na sátira menipéia, esta possuidora de uma
excepcional liberdade de invenção temática e filosófica
17
, Galvez
Imperador do Acre apresenta uma fisionomia textual que revela um
anticonvencionalismo da forma e da abordagem temática, libertando-se
de moldes pré-concebidos ou estanques. Como exemplo, pode-se citar a
fragmentação permanente de seu relato, seu desmembramento em
muitíssimos e, às vezes, pequeninos capítulos, vários destes não se
caracterizando como narração, mas constituindo apenas matéria
informativa complementar à diegese.
A presença de diversos gêneros discursivos compondo a
tessitura textual paralelamente ao processo narrativo demonstra como
o romance opera livremente a matéria que lhe serve de corpus ficcional.
Nessa perspectiva reveste-se ele de um potencial criador que prima pela
versatilidade e pelo descompromisso em atender paradigmas de ordem
composicional e temática, como o aspecto da verossimilhança externa,
por exemplo. Pelo contrário, o que importa é desprender-se da ordem
racional e superficial em que os fenômenos se apresentam
rotineiramente; é conceber artisticamente um universo tão coerente
com o que se considera realidade, mesmo que seja fruto de uma
17
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 9, p. 98.
fantasia desenfreada por parte do sujeito criador, capaz de revelar
aspectos do mundo objetivo apesar do inusitado de sua forma de
expressão. Assim, este romance de Márcio Souza dialoga plenamente
com o passado literário, pois apresenta, do ponto de vista artístico e
ideológico, traços característicos que muito lembram a tira menipéia
na sua típica conformação, o que vai plenamente ao encontro da
proposta teórica de Bakhtin sobre a formação do gênero romanesco.
A liberdade de formulação estrutural e diegética proporciona
na obra uma manifestação incontida da fantasia, que vem a possuir em
Galvez Imperador do Acre a motivação de provocar e experimentar uma
idéia filosófica
18
. Uma aventura, uma situação extraordinária é
esboçada com a finalidade de provocar, experimentar determinada
verdade. O exercício da fantasia no texto romanesco muitas vezes
cumpre a função de testar e corroborar um posicionamento ideológico,
uma particular visão de mundo, não importando que limites espaciais e
temporais sejam ultrapassados logicamente para que sejam apreciadas
a ideologia ou a visão de mundo colocada.
Certo é que em Galvez Imperador do Acre não há, acerto
ponto, situações demasiado fantásticas em que personagens transitam
ou habitam universos outros como o paraíso, inferno ou outros espaços
alheios à vida humana na Terra (tal como acontece em algumas
menipéias); também o apresenta deslocamentos temporais extremos,
ou seja, a contextualização de algum evento em época que não esteja de
acordo com a vivência dos personagens e acontecimentos envolvidos.
Contudo, no romance se percebe o quanto a ocorrência de alguns
eventos se encaminha para determinadas conclusões filosóficas. Por
mais inusitadas que pareçam, tais situações conduzem à elucidação de
alguma opinião a respeito de certo tema.
Em Galvez Imperador do Acre, pode-se apontar,
primeiramente, o episódio dos preparativos da festa de aniversário de
dona Irene e sua posterior realização como exemplo prático de
experimentação de uma idéia neste romance de Márcio Souza. Na breve
18
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 9, p. 99.
descrição que faz do contexto da festa e de alguns personagens,
principalmente de dona Irene, o narrador e convidado Galvez vai
moldando sua linha de pensamento que se afirma posteriormente. Após
a caracterização que faz do ambiente pré-festa a personalidade dos
que na cidade de Belém viviam e que na comemoração estavam, seus
hábitos, sua maneira de lidar com seu dinheiro recente e fácil (p. 35) –,
Galvez conclui com seu próprio parecer o que dali pôde apreciar visual e
silenciosamente, resultado de sua observação contemplativa da
atmosfera de extravagância em que se encontrava. A comparação entre
brasileiros e europeus no modo como agiam diante de um acúmulo
material considerável é o motivo da reflexão desencadeada por Galvez. A
ênfase se dá no quanto, entre os “nobres” de Belém, o dinheiro assumia
um caráter caricato; a atmosfera e a conduta daqueles habitantes de
uma terra primitiva (p. 35) eram a prova de que eles não acostumados a
uma rotina de luxúria e bem-estar permanentes, tal como Galvez
pudera presenciar nos grandes centros europeus onde antes convivera e
atuara como diplomata. No velho mundo, o poder - e sua ostentação -
era uma decorrência quase natural (p. 35), um bem acessório
minimamente anunciado a fazer parte da vida das elites, proveniente da
posse contínua de riquezas proporcionada pela aristocracia de sangue
ainda vigente e forte.
No isolado norte do Brasil, ao contrário, a geração recente e
promissora de riqueza e a captação crescente de recursos,
experimentadas com o desenvolvimento do ciclo da borracha, eram
percebidas por Galvez, antes da pomposa festa, como artificiais,
maquiadas caricatamente, vivenciadas por um Teatro de Títeres, título
do capítulo que dá continuidade à descrição pré-festa e onde se iniciam
os apontamentos reflexivos emitidos por Galvez sobre todo o contexto
em que está envolvido. No princípio deste capítulo, a primeira
constatação de Galvez: Eu acredito que o ridículo é sempre interessante
quando praticado com candura, e aquela senhora falante, que recebera o
governador com grande intimidade, era bem capaz de provocar desastres
de etiquetas na mais completa candura (p. 34).
A menção feita à atitude da senhora falante, dona Irene,
exemplifica a conduta geral das pessoas ricas de Belém, até certo ponto
pessoas ingênuas diante da pompa e circunstância que as absorve,
ridículas se não tivessem candura nas suas ações, segundo o
observador Luiz Galvez. Diante do que se lhe apresentava na prática, o
pícaro espanhol vai formulando suas elucubrações, concluindo seu
pensamento com o pronunciamento de uma máxima que trata do
aprendizado que extraiu da situação vivenciada e sua implicação na
realidade: Aprendi que o novo-rico é desagradável porque amplia os
detalhes da miséria (p. 35). Sua máxima nada mais é do que síntese do
capitalismo e suas seqüelas, seu caráter excludente que,
progressivamente, torna abismal a diferença entre ricos e pobres, e
afirma cada vez mais a desproporção quantitativa que entre ambas as
partes se processa, traço inerente à conduta do modelo econômico
capitalista.
Mais adiante na narrativa, Galvez passa por outra provação
que o faz experimentar novas sensações, traduzidas em considerações
de natureza filosófica elaboradas por ele; são impressões particulares
que visam compreender e desvelar os significados possíveis da situação
vivenciada. Segundo palavras do próprio Luiz Galvez, quando se
encontrava abandonado nas margens de uma praia deserta do rio
Amazonas, sente-se ele prisioneiro de uma paisagem (p. 85). Daí então,
empreende uma reflexão que trata da paisagem como representação na
literatura. Valendo-se de fina ironia, Galvez saúda sua condição de
civilizado em meio à bruta e complexa paisagem, quando por ela se via
envolvido embora ainda tratando de questões intelectuais: Ora vejam
como eu era civilizado! Eu estava abandonado na selva e pensava em
problemas literários. Problemas que, por sinal, ainda não consegui
superar (p. 85). Na seqüência, percebe-se um direcionamento das
palavras de Galvez exercendo sutil crítica ao romantismo, movimento
que tem na abordagem do elemento paisagístico um instrumento
ideológico categoricamente utilizado para a afirmação de um valor
identitário. O comentário de Galvez que tem por objeto a literatura,
mais precisamente o fenômeno romântico (embora não o cite
explicitamente) demonstra o repúdio e a desconsideração à ideologia
romântica e seus postulados, exercício metaliterário que não é único em
todo este romance de Márcio Souza. A pouca consideração ao elemento
humano, a superficialidade e o caráter tipicamente ornamental que os
românticos atribuem à natureza são questionados por Galvez durante
sua contemplação diante do ambiente que o cercava:
Sei apenas que a preocupação com a natureza
elimina a personagem humana. E a paisagem
amazônica é tão complicada em seus detalhes que
logo somos induzidos a vitimá-las com alguns
adjetivos sonoros, abatendo o real em sua grandeza
(p. 85)
O capítulo em que esse pensamento de Galvez se manifesta
é nomeado Estilo, denominação ironicamente apropriada à idéia que
contém.
No capítulo seguinte, Pré-História, diante da desolação que o
cerca, na imensidão da mata repleta de folhagens e estando ele
incomunicável com o universo social humano, Galvez formula novas
idéias. Na solidão selvagem, naquele nada amistoso cenário natural,
pensa o espanhol: o que tinham a ver os novos-ricos, as damas, as
cocottes, os vagabundos, os arigós, os religiosos, com aquela parede de
folhas sem beleza? (p. 86).
A expressividade e exuberância daquela floresta, ante o
desconsolado e solitário habitante humano Galvez, é responsável por
uma sentença reveladora do sentimento de pequenez e impotência que
toma conta de si, ele que outrora fora mais altivo e mais capaz em suas
jornadas. Constata-se sua frustração em estar naquele meio natural
primitivo, sendo ele um homem típico dos turbulentos centros urbanos
do razoavelmente desenvolvido século XIX.
Alguém me tinha dito em Belém que a gente fica
mudo na frente da paisagem amazônica. Não é
verdade. Um homem fica humilhado e um sabor
deslumbrante e decadente de pré-história. Sabor que
me trazia irritação. Como filho do mar de Cádiz, eu
havia experimentado esse esmagamento natural.
Mas o mar é clássico e sem minúcias. Ali não havia
ressacas, nem onda, nem sol sobre dorso de
esmeraldas e espuma. A mata é muçulmana. Eu via
no lusco-fusco uma imensa tapeçaria persa. (p. 86)
No minúsculo capítulo posterior, de apenas duas frases,
denominado Sintaxe, a derradeira resignação de Galvez à grandeza e
relevância da paisagem: Na minha inação sentei na areia e deixei a
paisagem invadir a ação. Meu olhar era uma figura de retórica (p. 86).
No curso de Galvez Imperador do Acre, nota-se grande
número de intervenções de variados gêneros discursivos, em que se
alternam também a prosa e o verso, procedimento herdado, igualmente,
da antiga menipéia. Dessa feita, encontra-se mais uma vez, no corpo
textual do romance, um exemplo na prática de proposição teórica
lançada por Mikhail Bakhtin, na triagem investigativa que faz a respeito
da influência de gêneros populares antigos, periféricos do ponto de vista
canônico, na evolução da linha dialógica da prosa literária. O romance
apresenta-se composto por diferentes e específicos estratos de
reprodução da linguagem, formal e semanticamente reproduzidas de
maneira similar, e não igual às convencionais situações de uso desses
estratos. Esta estratégia torna a obra um conglomerado discursivo-
ideológico híbrido, mas um híbrido intencional que deflagra um
confronto, no mínimo bivocal, entre a entidade
emissora/lingüisticamente particular do autor e o material verbo-
ideológico do qual se apropriou para sua representação no texto
romanesco. Comparecem na trama diálogos em formato semelhante
àqueles de uma peça teatral, versos de poemas, textos científicos, o
esboço de uma narrativa autobiográfica do próprio Galvez, cartas e
documentos transcritos inteiros, mais uma gama de outras tantas
manifestações orais e escritas de determinada especificidade na prática
da interação verbal.
A disposição do discurso de outrem, na tessitura de um
exemplar romanesco, indica que o mesmo é constituído por uma
intensa atividade plurilíngüe e pluriestilística, que incorpora a estrutura
dialógica da realidade em seu discurso e converte para o plano literário
a linguagem ordinária da vida. Ao processá-la, concebe artisticamente
uma imagem dessa linguagem, valendo-se de determinados
procedimentos, como a estilização e a paródia. Em Galvez Imperador do
Acre, observa-se significativa presença de gêneros discursivos alheios à
prosa romanesca e amesmo à literatura, configurando-se um maciço
exercício paródico sobre outras entidades discursivas e de estilização de
determinados modelos de transmissão da palavra (estilização como
assimilação e transformação de outros estilos de enunciado).
A primeira e grande manifestação paródica em Galvez
Imperador do Acre diz respeito à voz narradora e depoente de Luiz
Galvez Rodrigues de Aria, pessoa historicamente reconhecida, mas que
no texto é recriada ficcionalmente do ponto de vista discursivo e
ideológico. Através dessa estratégia, a narrativa promove muito riso,
deboche, ironia e troça, aplicados a tudo e a todos. Essa particular
recriação de cunho paródico leva em conta o que a ideologia e a História
oficial pensa e discorre sobre personalidades de importância pública,
que são, em geral, focalizadas com seriedade inabalável, sacralizadas e
revestidas de inteira positividade.
O contraponto da flexível interpretação da figura do Galvez
histórico que se tem no romance também vem assinalado
parodicamente na aparição e na posição ideológica do narrador-editor,
que incorpora a atitude da História e do historiador tradicional, ao
rechaçar versões “engraçadinhas” de um notório evento histórico.
Contudo, esse mesmo narrador-editor, que ao longo da narrativa retifica
algumas versões muito particulares de fatos descritos e vividos por
Galvez, reconhece a participação da fantasia no processo de
textualização das ocorrências históricas, desdenhando em parte o seu
anterior protesto pela falta de seriedade de Galvez no tratamento
dispensado à matéria histórica por ele abordada e narrada.
Outra paródia a ser considerada na trama é de natureza
metaliterária. Aparece ela no início do texto, quando o narrador-editor
diz que casualmente encontra um pacote de manuscritos em um sebo
de Paris e após decide organizá-lo e publicá-lo. Tal situação evoca
procedimento estilístico largamente difundido por romancistas
históricos no culo XIX. Abstraindo a própria pessoalidade da autoria
dos escritos, e omitindo, por conseguinte, sua subjetividade implícita ou
explícita na narração dos eventos, estes romancistas visavam a conferir
aos seus textos maior credibilidade factual. Assim, o recurso à
compatibilidade com os fatos reais (fatos historicamente verídicos de
acordo com a versão oficial dominante) torna-se um procedimento
comum cujo objetivo é estabelecer estreito vínculo com a realidade e o
conhecimento histórico do público leitor. Um dos escritores expoentes
desse procedimento peculiar foi José de Alencar, cultor e pioneiro da
escrita de romances históricos no Brasil, ficcionista que o narrador
abertamente declara como influência para sua atitude, numa
manifestação paródica explícita, praticando o chamado autocriticismo de
gênero. Esse autocriticismo, presente no romance, consiste em
submeter os elementos internos de sua própria organização a um
contínuo processo de revisão crítica
19
.
A atitude paródica metaliterária praticada em Galvez
Imperador do Acre condiz com a natureza particular do gênero a que
pertence, o romance, impensável e impraticável nos neros
considerados elevados como a poesia e a tragédia, que é voltar-se para
si mesmo e auto-revisar-se, estar em processo contínuo de
transformação e renovação de seus aspectos estruturais, semânticos e
de sua conformação lingüística. Tal propriedade especial do gênero
romanesco, agregada a outras, forma a conjuntura estrutural do
gênero, que o se encerra em um ou outro atributo, em virtude de seu
caráter inacabado, sempre em devir, receptível a outras formas de
expressão do discurso, gênero inesgotável nas suas dimensões formais e
conteudísticas. Além disso, caracteriza-se como gênero rico em questões
indagadoras, original do ponto de vista discursivo e artisticamente
prosaico. Entretanto, somente no último século, foi o romance
percebido pela crítica literária como objeto de análise particular, com
autonomia estilística e, portanto, o dotado de mesmos atributos
técnicos e temáticos do discurso poético. Não lhe cabe, assim, a
19
MACHADO, Irene A. O romance e a voz: a prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin. Rio
de Janeiro: Imago; São Paulo: FAPESP, 1995. p. 63.
aplicação dos mesmos todos de apreciação crítica que aqueles
dispostos para o estudo do discurso poético, entre eles as categorias da
estilística tradicional
20
Outra forma discursiva que comparece em Galvez Imperador
do Acre é a xima filosófica, o que contribui para a heterogeneidade
discursiva do romance. Segundo Bakhtin, duas são as possibilidades de
funcionamento dos aforismos e de toda sorte de sentenças introduzidas
no tecido romanesco: podem oscilar entre os puramente objetais (a
“palavra mostrada”) e os intencionais, ou seja, os que se apresentam
como máximas filosóficas, plenamente significativas do próprio autor
(palavra expressa incondicionalmente, sem quaisquer restrições e
distâncias)
21
. O segundo caso manifesta-se claramente no romance de
Márcio Souza. As máximas desenvolvidas são dispostas isoladamente
do restante da trama no que diz respeito à sua configuração formal,
mas se baseiam diretamente nas questões levantadas pelo texto. Em
Galvez Imperador do Acre, Galvez assume as máximas sem valer-se de
um dispositivo alegorizante que viesse a camuflar a posição ideológica
última do autor das mesmas: Aprendi que o novo-rico é desagradável
porque amplia os detalhes da miséria (p. 35); Certamente a miséria
também é imperialista (p. 47).
O nero poético apresenta-se, embora timidamente, entre o
grupo dos gêneros intercalados que figuram em Galvez Imperador do
Acre. Versos presentes no romance Galatéia, de Miguel de Cervantes,
são recuperados pelo romance de Márcio Souza, caracterizando uma
estilização paródica do procedimento antes adotado pelo escritor
espanhol. Aliás, também esses versos dentro de A Galatéia
exemplificam o caráter plurilíngüe e a naturalidade com que gêneros
discursivos de outras espécies penetram na prosa romanesca. Seu
autor, Cervantes, é um dos expoentes ximos da introdução e
organização do plurilingüismo e da dialogicidade interna no romance.
Ao seu discorrer a respeito dos neros que se intercalam na
estrutura do romance, Bakhtin salienta que existe
20
Ver, a propósito: BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 5. p.
21
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 5, p. 125.
um grupo especial de gêneros que exercem um papel
estrutural muito importante nos romances, e às vezes
chegam a determinar a estrutura do conjunto,
criando variantes particulares do gênero romanesco.
São eles: a confissão, o diário, o relato de viagens, a
biografia, as cartas e alguns outros gêneros
22
.
Dos tipos apontados, um deles é o elemento matriz da
engenhosidade formal e semântica de Galvez Imperador do Acre. É por
meio da biografia, mais precisamente da autobiografia, que se tem
arquitetada a diegese, a autobiografia como forma elaborada que o
romance dispõe para assimilar uma determinada realidade,
eventualmente sendo o espaço da textualização tomado por outros
gêneros que não somente a narração autobiográfica de Galvez. A
narrativa que tem por base um auto-relato memorialístico do
personagem é complementada paralelamente por outros discursos,
conformando-se assim na perspectiva da pluricidade discursiva e
ideológica atinente à realidade social da palavra, perspectiva que o
romance, segundo Bakhtin, disponibiliza no terreno artístico.
Destaque paródico do romance, a reprodução de cartas e
outros documentos de modalidade institucional atraem a atenção pela
quantidade com que comparecem no transcorrer da narrativa. Sua
utilização, no romance de Márcio Souza, possui um caráter crítico-
revisionista da História e do conhecimento que dela se construiu. Por
conta disso, ocorre a constante parodização de todo tipo de documento,
de fontes escritas que tenham validade no momento de sua aplicação,
a despeito de servirem como material para textualizar os fatos
sabidamente irrecuperáveis do passado. Tais fontes, pela ótica da
historiografia tradicional, são incontestáveis para apreciar e conhecer a
existência factual do passado histórico.
Como a narrativa focaliza os eventos que envolveram a
disputa e interesse do território acreano por parte das instituições
nacionais do Brasil, da Bolívia, dos Estados Unidos, e mais o arremedo
22
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 5, p. 124.
de grupo revolucionário comandado por Galvez, deve-se ressaltar, para
maior ilustração dos fatos e riqueza informativa, os registros escritos de
ordem burocrática das entidades político-ideológicas interessadas e
participantes do caso. O extremo do deboche na colocação paródica
desses documentos é a presença de algumas ordens de serviço emitidas
ora por Galvez ora pelo Intendente Chefe, o primeiro requisitando ao
segundo bebidas e perfumes para seus soldados, pois povo cheiroso é
povo civilizado (p. 146); e o segundo acatando as ordens de Galvez e
ainda lhe sugerindo a compra de oito caixas de White Horse que se
encontram em oferta no Armazém Guerra (p. 145), sofisticando assim o
paladar etílico dos “bravos” soldados por um preço compensador.
Ainda que os gêneros introduzidos no romance conservem
habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua
originalidade lingüística e estilística
23
, a transposição dos mesmos para
o plano ficcional redimensiona, via processo paródico, certas nuances
semânticas autênticas destes neros quando no uso devidamente
contextualizado e funcional deles nas suas esferas de ação
convencionais.
Outro tópico que se colocou pertinente dentro dos estudos
de Mikhail Bakhtin para uma maior compreensão do fenômeno da
prosa romanesca é a problemática do carnaval e da carnavalização da
literatura. Sobre o carnaval cabe referir que se trata de uma grande e
complexa manifestação cultural ritualística de domínio público, que
apresenta diversos matizes e que varia conforme a época, o povo e os
festejos particulares. A expressão carnavalesca criou e possui uma
linguagem particular de formas concreto-sensoriais simbólicas, que
expressa diversificada e articuladamente uma cosmovisão carnavalesca
una, mas de caráter complexo, penetrando-lhe todas as formas. A
linguagem carnavalesca não pode ser traduzida na sua imanência para
a linguagem verbal nem para qualquer outra linguagem de cunho
abstrato, podendo ser transposta, mas somente em certa medida, para
a linguagem das imagens artísticas, dentre elas a linguagem literária. A
23
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 5, p.124.
essa incorporação do carnaval e de todas suas manifestações na
linguagem da literatura costumou-se chamar carnavalização da
literatura, fenômeno dos mais instigantes a comparecer na linha de
evolução da prosa literária, conferindo-lhe maior complexidade ainda.
Premissas significativas do carnaval são a ausência de um
palco onde o espetáculo é apresentado, assim como a ausência de
categorias específicas de participantes, aqueles que atuam e aqueles
que assistem. No carnaval todos são integrantes ativos da atmosfera
carnavalesca, não se contempla e, em termos rigorosos, nem se
representa o carnaval mas vive-se nele, e vive-se conforme suas leis
enquanto estas vigorarem, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca
24
. A
vida do carnaval possui princípios de organização próprios e se realiza
de modo diametralmente oposto à lógica habitual da realidade cotidiana
extracarnavalesca, a vida séria. Na verdade, o que temos na
ambientação carnavalesca é uma antilógica, baseada na inversão e
anarquização dos valores e das práticas da vida ordenada e
regulamentada da realidade convencional.
O efêmero reinado de Luiz Galvez que o romance apresenta
constitui um universo carnavalesco por excelência. A vida corrente e
rotineira do povoado de Puerto Alonso, sob domínio de Galvez, mostra
um acentuado estado de letargia moral e regulamentatória se
comparada ao padrão de vida comum extracarnaval. Todos compõem,
com o mesmo grau de participação ativa, o quadro animado da vida
carnavalesca instaurado no período mandatário de Luiz Galvez e seus
comandados.
A nova ordem estabelecida pela visão de mundo e ação
carnavalesca ignora os poderes consagrados, as leis e todo tipo de
restrições impostas pela vida cotidiana convencional. Além disso, esta
nova ordem desconsidera qualquer tipo de hierarquia vigente na ordem
habitual da realidade, assim como aquelas manifestações do
comportamento humano que simbolicamente funcionem como
elementos conservadores do sistema hierárquico, tais como as formas
24
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 9, p. 105.
de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc. Durante o mandato de
Galvez, a radical transformação da cidade de Puerto Alonso, - de
pacata que era a turbulenta que se tornou -, acumulando desordens
consecutivas por conta do descontrole emocional dos habitantes
(motivado pelo desenfreado consumo de álcool estimulado por Galvez), é
a concretização, no romance, da ausência de dispositivos legais
inibitórios, comuns na vida ordinária, mas largamente dispensáveis na
vida carnavalesca.
As desigualdades hierárquicas sociais bem como quaisquer
outras demonstrações de desigualdade no campo das relações
interativas humanas são dissolvidas na arena carnavalesca,
eliminando-se as distâncias entre os homens. Estabelece-se assim o
livre contato família entre os homens, categoria peculiar das mais
relevantes da cosmovisão carnavalesca. Abominam-se, dentro do espaço
carnavalizado, as classificações hierárquicas de posição do sujeito no
mundo, como aquelas baseadas na classe, no título, na idade, na
fortuna, etc., e a submissão às instâncias superiores é ridicularizada
pelo caráter excêntrico dessas mesmas instâncias no universo
particular do carnaval, meras figuras decorativas em um mundo às
avessas e adverso a qualquer manifestação de autoridade e
subordinação.
A partir do episódio que o romance descreve da tomada de
Puerto Alonso até o estabelecimento e vigência do Estado Independente
do Acre é que se tem bem delineada em Galvez Imperador do Acre um
exemplar de configuração no plano literário do fenômeno carnavalesco,
sendo apresentados todos os elementos caracterizadores da composição
do fenômeno.
No império de Galvez, todos os cidadãos m livre acesso aos
governantes, ou aos idealizadores daquele insólito governo, os quais não
restringem a proliferação deles na sua esfera de ação. Todos transitam e
exercem sua voz indiscriminadamente na praça pública de Puerto
Alonso, mas ainda mais no barraco do coronel Pedro Paixão,
transformado em Palácio Imperial. O Palácio configura-se como o
grande espaço microcósmico da cosmovisão carnavalesca que
caracterizava todo aquele contexto, lugar ao mesmo tempo sede do
governo e salão recreativo das constantes e dionisíacas festividades que
marcaram aquele reinado especial, festas que contavam com a
participação em massa da população local. Esses dois aspectos do
Palácio Imperial, o burocrático e o festivo, não se excluem, pelo
contrário: completam-se, confundem-se, atuam simultaneamente e
formam um todo ambivalente, sendo, portanto, essencialmente
carnavalesco. Sobre a franca integração entre os partícipes daquele
contexto carnavalizado de Puerto Alonso, cita-se a passagem em que
uma mulher do povo dialoga com um muito sossegado delegado sobre
seu crime conjugal de mutilação do órgão genital do marido. Há, no
caso relatado pela mulher, a intervenção do próprio Galvez, que
decretou a sentença final sobre o ocorrido. grande índice de
familiarização nesse exemplo, em que indivíduos de esferas muito
diferenciadas convivem na mesma arena discursiva; ocorre uma
considerável proximidade entre eles, combinando-se até mesmo os
elementos opostos de cada um, ocorrendo assim as chamadas
mésalliances carnavalescas, combinações bem improváveis que só o
carnaval é capaz de realizar.
Faz-se presente, e com incidência significativa no romance,
uma outra categoria tipicamente carnavalesca associada à
familiarização: a profanação. Compõe esta categoria tudo aquilo que
estiver relacionado com elementos que remetem a uma materialidade,
como a terra e o corpo, também a sexualidade explorada sem pudor
algum, intrínseca e extrinsecamente carnal, e aindecente, e os textos
paródicos carnavalescos que enfatizem temas e textos sagrados. A
atmosfera carregada de promiscuidade que contagia a quase todos na
Puerto Alonso de Galvez é profanadora ao extremo, o havendo espaço
para relacionamentos amorosos sinceros, nem para amizades puras;
constatam-se tão somente orgias intermináveis e insaciáveis, excessos
de toda ordem, e quase não quem escape de tamanha lascívia. Em
lugar antes habitado apenas por acanhados maltrapilhos, assiste-se a
uma revolução sociocultural de dimensões aviltantes, que extrapola
qualquer código moral instituído por força de leis ou convenções típicas
da sociedade local.
Conseqüência de tamanha celeuma no modo de vida dos
habitantes e dos governantes de Puerto Alonso foi a lenta decomposição
do império de Galvez, sacramentada na pomposa e exagerada festa de
reveillon no cenográfico Palácio Imperial, evento de expressão maior do
universo carnavalesco predominante até então e que acabou deixando
um saldo considerável de vítimas: casos de morte, coma alcoólico,
gravidez indesejada, defloramento, desquite, casamento forçado e
desaparecimento formam o quadro de fatalidades decorrentes da
proporção do acontecimento. O poder religioso também é atingido pela
profanação, sendo subjugado pela ridicularização paródica a que alguns
de seus elementos são submetidos. Esse é o caso da coroa feita da
palma de uma seringueira, inicialmente confeccionada para uma
cerimônia de coroação da Virgem padroeira da cidade, mas que acabou
sendo ofertada pelo vigário de Puerto Alonso a Galvez, numa clara
atitude de reverência bufa. Contudo, o maior desdém com relação à
instituição católica é o desembarque de duzentas meninas no trapiche
da cidade, que lembra situação explorada em Pantaleão e as
visitadoras, de Mario Vargas Llosa.
25
O desembarque arrebata todas as
atenções daquele pacato povoado acreano, a ponto da tradicional missa
de domingo não ser celebrada na igreja local. A grave afronta à
instância do sagrado é refletida não na perplexidade, nas fervorosas
orações da devotíssima Dona Vitória, mulher do não menos lascivo
Coronel Pedro Paixão, mas também na sua imediata ação inibitória
25
A afinidade de Galvez Imperador do Acre com este romance de Mário Vargas Llosa
não cessa com a semelhança existente entre as ações narradas pelas duas obras.
Algumas marcas anteriormente apontadas como presentes em Galvez também são
encontradas em Pantaleão e as visitadoras, como, por exemplo, o fato de apresentar
uma narrativa entrecortada por variadas modalidades de registros discursivos, tais
como cartas, documentos oficiais, comunicados e informações veiculados por órgãos
da imprensa, etc. Alíás, a narrativa de Márcio Souza incorpora muitos dos
procedimentos formais e também a postura ideológica adotada em Pantaleão, agindo
em conformidade com a própria tendência predominante na Literatura Latino-
Americana à época de sua aparição, marcada, sobretudo, pelo experimentalismo e por
uma abordagem intensamente reflexiva e crítica sobre a realidade do Continente
latino-americano, que tem no humor, na ironia e na concepção de um universo
diegético extremamente carnavalizado instrumentos utilizados na dessacralização do
discurso estabelecido.
antipecadores. Dona Vitória tornou-se um dos maiores contrapontos ao
clima geral de euforia e regozijo carnal de Puerto Alonso. Acompanhada
de perto de outras donas de casa devotas e também de proprietários de
seringais próximos, insatisfeitos com o rumo desastroso que a economia
da região tomava, lidera a reação contra o mal-sucedido governo de
Galvez. Na trama, Dona Vitória é a personificação mais aproximada da
mentalidade reinante da vida ordinária, e uma das responsáveis por
planejar a derrocada do império do desmedido prazer carnavalesco,
auxiliando na retomada da ordem e do bom senso na vida social de
Puerto Alonso.
Ação que é também destaque do carnaval, a coroação bufa e
o posterior destronamento do rei do carnaval, também no romance se
apresenta, e muito bem configurada, sendo talvez, entre todas, a grande
expressão carnavalesca a comparecer na trama. Essa categoria
carnavalesca se apresenta sob variadas formas nos festejos
carnavalescos de todos os tempos: nas saturnais, no carnaval europeu e
nas festas dos bobos (nesta, em lugar do rei, escolhiam-se sacerdotes,
bufos, bispos ou o papa, dependendo da categoria da igreja)
26
. No ritual
de coroação e destronamento do rei está contida a idéia nuclear da
cosmovisão carnavalesca: a ênfase das mudanças e transformações, da
morte e da renovação. O ritual da coroação-destronamento é
ambivalente biunívoco, apontando para a inevitabilidade e criatividade
da mudança-renovação. Nesse ritual carnavalesco se manifesta a alegre
relatividade de qualquer esfera do poder, posição hierárquica e ordem
social. A ambivalência é marca essencial da coroação-destronamento e
está presente desde o início do ritual, pois no ato da coroação já se
vislumbra a posterior ação destronante. Coroa-se alguém que seja plena
representação contrária de um autêntico monarca, o escravo, o bobo,
um anti-herói, para que seja inaugurado e instaurado o mundo às
avessas do carnaval.
Após a vitória de Luiz Galvez e de seu grupo de comandados
na batalha de Puerto Alonso, celebra-se a gloriosa conquista com a
26
BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. nota n. 9, p. 107.
badalada coroação do líder do golpe, o que ocorreu na praça pública
local, espaço tipicamente carnavalesco de confraternização da massa
populacional, em cerimônia caracterizada pelos mesmos atributos e
rituais da coroação-destronamento carnavalesca.
Luiz Galvez, então, é elevado à condição de imperador
acreano, pondo em suspensão o até então enfadonho cotidiano do
povoado de Puerto Alonso e atuando na renovação e transformação da
ordem social vigente, substituindo-a por uma outra ordem, a ordem da
cosmovisão e da vida carnavalesca. A permanente festa carnavalesca
que caracterizava o império acreano de Galvez se estendia cada vez
mais até culminar na sua ultrajante e fatal dissolução, atendendo assim
a um outro princípio carnavalesco, o princípio da morte, oposta e, ao
mesmo tempo, complementar ao princípio renovador do carnaval. Por
conseguinte, essa morte possibilitou o nascimento de uma nova ordem,
e assim o processo repetindo-se ciclicamente enquanto houver a vida
alternativa carnavalesca a interferir na ordem cotidiana das coisas.
Todas as etapas do processo ritualístico da coroação, os
símbolos do poder monárquico, assim como o traje típico da
(pseudo)realeza tornam-se ambivalentes, são dotados de uma alegre
relatividade que não permite a eles assumirem uma significação única,
estática, afirmativa ou negativa, boa ou ruim, não se absolutizando nem
relacionando-se com um determinado domínio semântico e funcional
da realidade. A triunfante entrada de Galvez na praça pública de Puerto
Alonso ilustra muito bem o caráter ambivalente de um ritual
entronizador carnavalesco, os aparatos de que se vale a comitiva
imperial para desfilar e apresentar a figura da nova majestade a seus
curiosos súditos, montados em tristes pangarés ornamentados para as
Folias de Reis juninas (p. 181), o histriônicos como se fizessem parte
de uma ópera bufa, mas que não se afastam totalmente da solenidade
séria de uma coroação imperial na vida cotidiana ordinária, dada a
natureza relativa que os atos possuem dentro da cosmovisão
carnavalesca.
A coroação-destronamento carnavalesca contém em si
outras categorias do carnaval, como o livre contato familiar, praticado
em Galvez Imperador do Acre, por exemplo, na integração do povo de
Puerto Alonso com as mais célebres figuras míticas e históricas de todo
o mundo. Em suntuoso desfile, realizado a céu aberto no dia de
reveillon, os populares deixam de ser meros espectadores petrificados e
passam também a ser partícipes do grande evento, que oferecia uma
visão operística da História da Humanidade (p. 215):
Quando o último carro alegórico atravessou a
avenida, o povo explodiu numa alegria desenfreada.
Dançavam, casais se beijavam e os velhos e as
crianças choravam. Ninfas, faunos e figuras
históricas confraternizavam com a massa. Vi um
grupo de seringueiros carregar Napoleão em triunfo
(p. 215).
A profanação é outra categoria carnavalesca presente na
cerimônia de coroação-destronamento. A coroação de Galvez tumultua
a cidade de Puerto Alonso a ponto de símbolos cívicos e religiosos serem
corrompidos. Um dos casos citados, o exemplo da coroa utilizada por
Galvez, é um ultraje à Igreja Católica, lugar que originalmente deveria
receber a palma de folhas de seringueira lavrada em prata, esta que
teve como destino definitivo a cabeça imperial e pervertida de Luiz
Galvez. Naquele ambiente acanhado, provinciano, conservador, a legião
estrangeira de desordeiros e licenciosos que invadira Puerto Alonso,
acompanhando Galvez na sua expedição revolucionária, imprime uma
nova rotina social e cultural nos habitantes locais, abalando todas as
estruturas daquele contexto, sendo o plano moral-religioso muito
afetado. A civilização chegara ao Acre, e com ela suas vicissitudes; a
população feminina se entregara aos banhos de igarapé em trajes mais
reveladores, influência das despudoradas francesas, escandalizando a
sociedade local, principalmente o desconfiado e cauteloso meio religioso.
Tudo isso profanou de vez aquele ambiente antes tão acomodado na sua
sossegada rotina de trabalhos incessantes e crenças provincianas.
Irreverente, também, é o escasso índice de brasilidade cívica existente
na vida pública de Puerto Alonso, pois Galvez, ao assumir o império
acreano, decreta arbitrariamente a mudança de nome da única praça
do povoado, nomeando-a 14 de julho, data de sua conquista territorial
daquele lugar, em substituição a 15 de novembro, data que é um dos
maiores ícones de patriotismo devoto que qualquer localidade brasileira
poderia manifestar em apoio moral e cívico a seu país.
Por fim, o processo de destronamento. Este, em Galvez
Imperador do Acre, ocorre em toda sua plenitude ritualística,
encerrando em grande estilo bufo a pequena temporada tragicômica do
império de papel de Galvez e de seus companheiros
operísticos/guerreiros. Contraponto da coroação, o ato destronador
carnavalesco efetua a destituição da figura do rei bufo de seu trono e de
todo seu aparato e símbolos de poder, expondo a figura monárquica
carnavalesca à humilhação e ridicularização bufas. Contudo, a
destituição citada não implica uma negação por completo, destruição
absoluta do processo antes em vigor, mas, antes, aponta para a
mudança, para uma transformação. Nesse sentido, procede-se a uma
nova coroação, nisto consistindo a imagem de morte criadora, própria
da cosmovisão carnavalesca e da alegre relatividade de que é dotada.
Assim como a festa de reveillon no barracão transformado em Palácio
Imperial empenhou-se exageradamente nas comemorações, extravasou
na abundância, na volúpia, na desmedida busca do prazer, através de
orgias sexuais contínuas e excessos alcoólicos, a deposição do
imperador Galvez, personagem maior daquele incessante gozo carnal e
material, sucedeu também em grande estilo: o monarca bufo foi
capturado e ultrajado pessoalmente, no auge da sua euforia, em meio a
várias garrafas de xerez, um dos tantos agentes combustíveis daquela
nação carnavalizadamente erguida, constituída e desintegrada. Esvai-se
assim a alegre ordem carnavalesca instaurada e protagonizada por Luiz
Galvez nas terras distantes e hostis do Acre, para na seqüência outra
ordem vir à tona. É o destronamento encerrando o rito da coroação ao
mesmo tempo em que anuncia a geração de um novo estado de coisas.
3 GALVEZ IMPERADOR DO ACRE E A REPRESENTAÇÃO
DA HISTÓRIA
3.1 – Literatura e História: entrecruzamentos possíveis
A problematização e a crise do conhecimento histórico foram
deflagradas, em definitivo, a partir da segunda metade do século XIX,
com o gradual desgaste do modelo positivista e correntes afins, que
defendiam a cientificidade inerente da matéria historiográfica produzida
pelo historiador competente. Esta crise decorre também da crescente
influência do pensamento e do instrumental metodológico próprios da
Literatura, tanto na aplicação em obras historiográficas mais recentes
quanto em contestações de ordem crítico-teórica por parte de
historiadores não-tradicionais vinculados a novas abordagens contra o
modelo cientificista da escola tradicional da prática historiográfica.
Paralelamente à rigidez disciplinar e acadêmica que
caracteriza os profissionais da História tradicional do século XIX e seu
modo de agir “científico”, que ainda perdura nos dias de hoje como
norma metodológica para o estudo da História, outras áreas do saber
vêm participando do processo cognitivo de assimilação de dados do
passado histórico. Flexibilizaram-se as fronteiras disciplinares,
passando alguns historiadores a adotar a Antropologia, a Economia, a
Psicologia, a Sociologia, a Literatura e outros campos da inteligência e
da cultura como suportes à pesquisa e como recursos interpretativos
dos sucessos históricos estudados.
27
27
Exemplo de obra historiográfica que apresenta traços de literariedade muito
evidentes, particularmente determinados elementos que compõem também a tessitura
de uma obra romanesca, é Formação histórica do Acre, do amazonense Leandro
Tocantins. A narratividade, a representação dramatizada dos fatos e das personagens,
a abordagem extensiva e diversificada da realidade representada, entre outras marcas,
comparecem no trabalho do historiador. A atitude metodológica adotada pelo
historiador nortista é prenunciada na introdução de seu relato, em que Tocantins
tece algumas considerações de natureza teórica a respeito do processo composicional
de sua narrativa, evocando o pensamento de Arnold Toynbee e a historiografia de G.
M. Trevelyan. Na mesma introdução, o historiador registra que o discurso da História
por ele utilizado aproxima-se daquele concebido por G. M. Trevelyan, uma vez que
incorpora estratégias discursivas próprias do campo ficcional.
Mas o que se destaca nas discussões em torno da natureza
do conhecimento histórico e na própria elaboração dos novos materiais
historiográficos é a participação ativa e explicitada de mecanismos
textuais próprios do discurso literário e ficcional.
28
Tem-se verificado
mesmo a inclinação de alguns historiadores em apropriar-se de
procedimentos típicos da teoria literária para articular seus discursos
históricos, levando-os a reconhecer o papel ativo da linguagem, dos
textos e das estruturas narrativas na criação e descrição da realidade
histórica
29
. Em suma, o cenário das ideologias presentes para pensar e
executar a escrita histórica se resume em uma espécie de batalha
historiográfica com ataques de flanco por parte das forças literárias e
cercos defensivos dos tanques disciplinares por parte dos “verdadeiros”
historiadores
30
. Talvez os maiores investidores da crítica historiográfica,
deslocada do eixo tradicional do saber histórico, sejam Hayden White e
Dominick LaCapra. A postulação que essa nova crítica adota sobre a
disciplina histórica diz respeito à presença também de uma
literariedade, de um componente imaginativo na redação da obra
historiográfica, diferindo das produções ficcionais propriamente ditas,
apenas no que se refere ao grau de ficcionalidade e ao objetivo
almejado. A dicotomia fato-ficção permanece intacta e irredutível para
os historiadores tradicionais, que insistem na transparência e
objetividade de seus escritos, acreditando eles que trazem à luz do
presente os eventos do passado na sua quase imanência, através de sua
reprodução em textos que, supõem seus redatores, são
descomprometidos ideologicamente.
28
Não que estes mecanismos nunca tenham participado da articulação textual de
obras historiográficas de períodos anteriores, como aquelas do culo XIX, por
exemplo. Ver, a propósito: WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do
século XIX. Neste trabalho, White propõe realizar uma abordagem, que ele próprio
classifica como formalista, sobre a produção de consagrados historiadores
oitocentistas, tais como Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt. Nesta abordagem,
White tem como pretensão determinar as características discursivas presentes no
texto dos mesmos, relacionando-as com categorias próprias da literatura.
29
KRAMER, Lloyd S. Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio de Hayden
White e Dominick LaCapra. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo:
Martins Fontes, 1995. p. 132.
30
Idem, p. 132.
Atualmente, porém, a crença de que o fato histórico possa
ser recuperado coerentemente por uma obra historiográfica se cada
vez mais rechaçada. Nesse sentido, contesta-se a defesa de um
posicionamento neutro do historiador frente à matéria histórica de que
dispõe para uma posterior textualização que, sem dúvida, contará com
uma seleção arbitrária dos fatos; aponta-se, igualmente, para a
existência de um determinado grau de empatia ou antipatia do
historiador por algum tópico estudado, mesmo que sua intenção em ser
objetivo procure dar conta de mascarar e ocultar sua manifestação
ideológica pessoal implícita na configuração de seu discurso.
A estratégia discursiva do historiador tradicional, ou seja, da
tendência dominante, é conservadora e inflexível na medida em que não
reconhece a participação da imaginação e da ficcionalidade no seu
processo de escrita da história. Em vez disso, o historiador cria
artifícios em sua montagem textual que visam a reprimir qualquer sinal
de manifestação da criatividade e da imaginação na reelaboração
articulada que realiza sobre os fatos históricos os quais pesquisa.
Contudo, sabe-se hoje, que o fato de as narrativas historiográficas
lançarem mão de recursos mais comumente usados pela literatura não
invalida e não prejudica a intenção do trabalho do historiador que é a
recuperação dos fatos de um tempo passado. Em virtude da
impossibilidade de trazer para o corpo do texto todas as evidências
físicas e motivações subjetivas dos episódios históricos investigados,
uma parcela de ficcionalidade e de participação imaginativa, por mais
dissimulada que seja, atuará no arranjo textual das informações
históricas coletadas. Assim sendo, somente dentro de um texto bem
pensado e ordenado arbitrariamente, assimilável e inteligível, tais
evidências reais passadas, intransferíveis no tempo e no espaço, farão
sentido ao escritor e ao leitor de uma realidade temporal e espacial
posterior; daí a constatação de certa similitude com as obras ficcionais
de romancistas e poetas, os quais também atuam atribuindo ao que
originalmente parece problemático e misterioso o aspecto de uma forma
reconhecível, por ser familiar
31
.
Ao tratar do discurso historiográfico, logo se deve pensar
também em uma filosofia da História que percorre sub-repticiamente
um relato de tipo historiográfico, o que a maior parte das vezes passa
despercebido ao leitor em função da própria natureza do texto
elaborado pelo historiador, que o reveste de uma tal maneira como se o
mesmo não tivesse nenhum planejamento consciente e seletivo prévio à
sua estruturação textual final. quem pense as narrativas históricas
e seus objetos de investigação como dotados de unidade e de uma
estrutura coerente; nessa perspectiva está Hayden White. Mas
também quem entenda que a tessitura do relato historiográfico
contenha em si tantas tensões intrínsecas de difícil resolução e que a
tentativa da maioria dos historiadores em estabelecer coerência e
unidade à matéria historiográfica é um ato equivocado e revelador de
uma posição acrítica do historiador. Este, agindo assim, organiza
(idealizando) o passado histórico de maneira coesa e ordenada,
eximindo-se, por conseguinte, de realizar um exame mais apurado
criticamente e relativo deste passado que se sabe repleto de
ambigüidades e incertezas factuais.
Dominick LaCapra investe na defesa de uma historiografia
crítica que ponha em xeque o aspecto de ordem e a pretensão à unidade
que transparece da maioria dos livros de História. Ponto em comum
entre Hayden White e Dominick LaCapra é a consideração de que os
historiadores se valem de estruturas narrativas para a ilustração do
conhecimento histórico adquirido, produzindo um discurso específico
que se diferencie essencialmente dos inúmeros outros discursos
existentes. A despeito das reconhecidas e notáveis diferenças entre o
discurso da História e os demais discursos, LaCapra salienta que a
heterogeneidade desses outros discursos com relação à História não
impede a interação que pode vir a ocorrer entre diferentes disciplinas. O
autor refere ainda que um diálogo franco e freqüente entre saberes que,
31
KRAMER, Lloyd S. Op. cit., nota n. 27, p. 136.
embora de natureza diversa, apresentem um mínimo de compatibilidade
entre si, tende a ser muito produtivo para as partes envolvidas. No que
diz respeito ao historiador, é sabido que este amplia sua erudição
consideravelmente, haja vista que expande o alcance de seu
conhecimento histórico na medida em que métodos e objetos de
investigação de outras áreas atuam na construção de seu saber,
paralelamente à sua própria metodologia e especificidade de objetos a
pesquisar.
Sobre a relação de empatia/antipatia da História com a
Literatura, tem a ver a discussão que se trava também sobre o quanto
de artístico e de científico possui o ofício da disciplina histórica: se
um predomínio absoluto de um dos modos de proceder antes citados,
ou se acontece de a História ser um produto híbrido que alterna
cientificidade e labor artístico na sua conformação geral. Tem-se
verificado, cada vez mais, a adesão de especialistas do saber histórico à
segunda concepção. É importante frisar que o pensamento tradicional
que trata da História somente na perspectiva de ciência vai perdendo
espaço para abordagens mais diversificadas, existindo quem leve muito
em conta, por exemplo, o forte componente literário que perpassa a
configuração do texto historiográfico.
32
Essa literariedade que se sente
agir no processo de escrita da História é que não permite enquadrar a
disciplina histórica na condição estrita de ciência tal como nos moldes
das ciências naturais, por exemplo.
A pretensão da História, - pelo menos a presente na
produção de muitos de seus profissionais -, em acreditar-se puramente
científica, esbarra na própria natureza do trabalho historiográfico, que
supõe a participação ora mais, ora menos explícita da subjetividade do
historiador, de seu ponto de vista reflexivo e crítico na análise e
exposição de seus objetos de estudo, bem como nos resultados
alcançados. São inesgotáveis as possibilidades de interpretação acerca
dos fatos que se está investigando, variando também o estilo a ser
32
Ver, a propósito, entre outros: BURKE, Peter. As fronteiras instáveis entre história e
ficção. In: AGUIAR, Flávio e alii (orgs.) Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o
histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1987, p. 107-114.
empregado para a composição textual sobre determinado evento
histórico pesquisado.
O conhecimento histórico, então, deve ser entendido como
um conhecimento que estuda e apreende relativamente os eventos
passados, revelando-se capaz apenas de dimensioná-los parcialmente.
Tal processo ocorre tanto no sentido da apreciação pessoal por parte do
historiador, - que seu entendimento está restrito somente àquilo que
sua percepção permite captar –, como no sentido da dimensão total dos
fatos. Estes mostram-se inapreensíveis em sua imanência devido à
escassa capacidade de observação do sujeito e por ser esta observação
ideologicamente dirigida. A impossibilidade de se recuperar
integralmente o passado empírico, de transpô-lo, em suas minúcias
factuais e em suas motivações, para um texto oral ou escrito, obriga o
historiador a arranjar esse passado artisticamente, através de uma
narrativa específica que dê conta da versão pessoal que ele tem do
passado investigado. Por conta disso, não se sustenta a rígida dicotomia
que tradicionalmente é apontada entre arte e ciência no que diz respeito
à natureza e ao processamento do saber historiográfico, que ambas
condividem uma longa fronteira cheia de meandros, que é atravessada
pelo trânsito erudito e literário sem grandes impedimentos nem muitas
formalidades
33
. o se pode, também, apontar uma primazia do
artístico e do literário sobre o científico na emolduração da História,
pois o propósito essencial da historiografia, que consiste na explanação
dos acontecimentos passados com o máximo de plausibilidade com
relação às ocorrências factuais em si, reais e concretas outrora, se veria
desfigurado. Mas não como não reconhecer que a historiografia é
uma arte durante boa parte do tempo, e é uma arte por ser um ramo da
literatura
34
.
Fato inconteste é que História e Literatura sempre
possuíram vínculos, embora muitas vezes se quisesse opor
drasticamente as duas áreas, tentando-se ocultar ou não reconhecendo
as semelhanças existentes entre as técnicas estilísticas e os objetos que
33
GAY, Peter. O estilo na história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 167.
34
Idem, p. 168.
caracterizam História e Literatura na composição de suas obras. Vale
lembrar, para exemplo, que a busca e a demonstração da verdade
podem se constituir objeto para a Literatura, muito embora não seja
este o fim maior que motive a realização da maior parte das obras
literárias. Aprende-se com isso, sem perder de vista a essência ficcional
da obra, descomprometida a priori com as verdades inerentes à vida real
e concreta do autor e do leitor. Não se deve, todavia, tomar as verdades
que a ficção expõe da mesma forma como a História procede. Por mais
que se possam encontrar na Literatura verdades verificáveis no
conhecimento acumulado da historiografia, enfatiza-se que as verdades
da ficção são representadas com uma ilimitada liberdade de tratamento
por parte dos ficcionistas que, quando lidam com um determinado
contexto histórico e seus personagens, procedem de maneira ousada e
versátil
35
; tal atitude não é assumida pela maioria dos historiadores,
mais cautelosos do ponto de vista da criação de seus panoramas
históricos, atentos tão somente à busca da verdade mais aproximada
dos fatos em si, procurando reproduzi-los de forma menos vacilante
possível no tocante à recriação imaginária dos mesmos. Neste sentido,
as fontes que procuram recorrer são, via de regra, os documentos e
todos aqueles escritos considerados oficiais, agentes textuais os quais a
historiografia tradicional se vale como elementos de sustentação
comprobatória, de veracidade confiável e inequívoca na apreciação dos
fatos estudados e informados.
Ainda assim, os historiadores não devem abster-se de
manipular seus objetos de estudo de forma maleável, valendo-se, para
tanto, do uso de seu potencial imaginativo na abordagem dos fatos,
ampliando assim a significação dos mesmos. No presente do
historiador, o passado se encontra tão vago e inconsistente que, para
apreendê-lo da maneira mais acabada possível, faz-se necessário
buscar, por meio das sugestões da imaginação, as chaves para seu
melhor entendimento, tornando-o mais compreensível e assimilável
também ao leitor do presente. Inclui-se, nessa postura flexível do
35
Ver, a propósito: GAY, Peter. O estilo na história. São Paulo: Companhia das Letras,
1974, p. 172.
historiador frente a seu objeto, conceber o seu texto como narrativa e
tomar de empréstimo da literatura certos recursos estilísticos, que
dotarão sua escrita de boa estruturação, ritmo fluente e estilo
desembaraçado. Ao valer-se de tal procedimento, o historiador
favorecerá o ato da leitura em termos de familiarização do leitor com
aquilo que lhe é estranho, disperso, longínquo, e inalcançável
objetivamente: o passado na concretude de seus fatos.
Por tudo isso, a tarefa de elaboração de uma obra
historiográfica não é tão simples como pode parecer, como é o caso de,
na maioria das vezes, acreditar-se que o autor o fez mais do que
arranjar textualmente os episódios históricos a partir da mesma lógica
seqüencial dos mesmos quando de sua existência concreta em um outro
tempo. Se o autor consegue realizar tal proeza, de fazer com que seu
texto, diante do leitor, resulte natural e coerente, é porque foi fruto de
árduo trabalho. Para concretizar um trabalho historiográfico que, além
de convincente seja também reconhecido por sua hábil arquitetura, o
historiador deve ter em mente que seu escrito deve possuir clareza,
interesse e prazer estético
36
. Sem esses atributos, um livro de História
resultaria maçante, podendo ser rico do ponto de vista quantitativo das
informações, mas pobre no sentido de estar desprovido de uma
organização estilística capaz de atrair o leitor e envolvê-lo pela
qualidade de texto. O historiador, além disso, deve ter o cuidado de não
privar o leitor das informações necessárias de que deve tomar
conhecimento acerca do assunto tratado. A historiadora norte-
americana Barbara W. Tuchman, perseguidora do ideal do texto
historiográfico concebido plasticamente atraente, defensora da idéia do
historiador como artista, insere-se naquele grupo de historiadores que
nas últimas décadas vêm acenando para uma maior abertura dos
estudos históricos. Esse grupo salienta a importância de se trabalhar a
História flexivelmente, atuando na interação com outros campos do
saber, como, aliás, procede a Literatura com relação à História, por
36
TUCHMAN, Bárbara W. A Prática da História. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1991.
p.40.
exemplo, introduzindo e operando com naturalidade em sua específica
esfera de ação o conhecimento produzido pela historiografia; da mesma
forma, a Literatura também se nutre de elementos da produção
intelectual de outros campos epistemológicos na composição de seu
saber e nem por isso perde sua especificidade, o que a faz ser Literatura
e não outra coisa.
3.2 Galvez Imperador do Acre: o romance histórico e a
ficcionalização da História
A representação da história pela literatura se em quase
todos os gêneros e ainda subgêneros literários. À exceção daquelas
obras que privilegiam a introspecção, a faceta interiorizada do ser
humano como cenário de dramatização e de poeticidade, e também das
produções que tematizam o fantástico, as fábulas, todas as demais
obras, de forma ora mais ora de forma menos explícita, operam com
uma determinada situação histórica, trabalhando-a artisticamente.
Acontece que nem sempre a História e a caracterização de seus eventos
constituem a base sobre a qual se estruturam todos os elementos de
uma obra ficcional, funcionando como motivo nuclear para o qual o
desenvolvimento diegético converge. É o romance histórico um dos
subgêneros da prosa romanesca que se orienta para tal fim na
literatura, de modo direto e específico, refletindo e articulando
ficcionalmente o discurso historiográfico. Nesse subgênero, apresentam-
se duas tendências: a primeira, clássica, tradicional, que se vale do
discurso oficial da História para ratificá-lo na sua composição e escrita
romanesca; e a segunda, reagente, que se volta contra esse mesmo
discurso, praticando releituras críticas dos fatos que a historiografia
oficial predominante dá como verdadeiros e inquestionáveis.
O que se tem constatado no cenário das realizações literárias
dos últimos anos é o crescente interesse demonstrado pelos
romancistas em tematizar o passado histórico, a partir de uma ótica
revisionista. Através de romances históricos, submetem os fatos
passados a versões outras que o aquelas apregoadas pela
historiografia oficial e aceitas, na maioria das vezes, como únicas
verdades possíveis. Contestam também a própria forma tradicional de
romance histórico que se produziu principalmente durante o século
XIX. Essa nova tendência de romances históricos faz-se presente em
grande escala na recente ficção romanesca latino-americana, e em
número significativo no Brasil, pelo menos nas três últimas décadas do
século XX a os dias atuais. Antes de chegar ao estágio em que se
encontra no século XXI, o subgênero, no seu princípio, e depois ainda
por um bom tempo se caracterizou pelo conservadorismo e passividade
em acatar o que a cultura oficial postulava, em especial o discurso
histórico por ela preconizado.
O surgimento do romance histórico se no alvorecer do
século XIX, período fértil em transformações na vida social, política e
econômica européia, marcado pela irrupção da revolução burguesa, a
destituição napoleônica e a incipiente formação dos estados nacionais
autônomos. A disposição de uma nova ordem das coisas, que contou
com a participação ativa de amplas camadas da população européia na
cadeia de eventos que se processava, permitiu que se desenvolvesse nas
massas uma consciência histórica de proporções nunca antes
vivenciadas por elas. Passa-se a compreender a existência humana
como algo historicamente condicionado, e o percurso histórico como
processo que vem a interferir no cotidiano dos indivíduos e em seus
interesses imediatos do presente. Decorrência de tudo isso, um
sentimento de nacionalidade é despertado nas massas, tornando-se
propriedade das mesmas.
Inglaterra e França são os países pioneiros da transição pela
qual a Europa no século XIX começou a experimentar. A Alemanha,
outra grande potência do continente, em contrapartida, contrastava
com o franco desenvolvimento dos países antes citados. O estado
alemão, que se encontrava desintegrado nas suas bases sociais,
políticas e econômicas, buscava na França dispositivos ideológicos e
culturais para a constituição de sua própria cultura, em atitude de
servil imitação do modelo francês. Os patriotas germânicos, insatisfeitos
com a negativa condição estrutural e moral de seu país, além de o
aceitarem a submissão deste ao jugo estrangeiro no campo das idéias,
reagem tenazmente a tal situação. Privilegiando a própria história,
empreendem um retorno a ela no sentido de ressaltar a grandeza
nacional que no passado se encontra, buscando investigar e representar
esse passado de modo a entender também a decadência do presente,
estudar as raízes históricas do país e nelas espelhar-se para retomar a
altivez perdida.
Todavia, convém assinalar que nesse momento histórico,
primórdios do século XIX, o só na Alemanha se busca remontar ao
passado visando à afirmação do sentimento nacional, mas também nos
demais estados do continente europeu ocorre este fenômeno ideológico
singular. As guerras napoleônicas que se alastraram pela Europa e a
posterior dissolução do grande império bonapartista por parte da
revolução burguesa (francesa) mobilizaram as nações do velho
continente na busca da autonomia nacional e independência de cada
povo. É certo que cada estado possuía suas peculiaridades culturais e
sócio-históricas, mas o objetivo comum a todos eles consistia em
despertar o orgulho nacional através da rememoração do passado
histórico vivido, da lembrança daqueles feitos que possibilitaram a
paulatina formação do estado-nação presente, não importando a que
movimento ideológico tais elucubrações em torno do passado levariam:
La invocación de independencia e idiosincrasia
nacional se halla necesariamente ligada a una
ressurrección de la historia nacional, a los
recuerdos del pasado, a la pasada magnificencia, a
los momentos de vergüenza nacional, no importa
que todo ello desemboque en ideologías progresistas
o reaccionarias
37
.
Tanto progressistas como restauradores apresentavam
eminente consciência histórica e procuravam investir na reinterpretação
37
LUKÁCS, Georg. La novela histórica. México: Ediciones Era, 1996. p. 23.
do passado, fosse, no caso dos progressistas, para enfatizar o progresso
advindo de um percurso histórico em constante desenvolvimento que
culmina na revolução burguesa como etapa crucial deste processo;
fosse, aos restauradores, para modelar uma imagem positiva do
passado, em especial da Idade Média, em contraste ao presente
tumultuado e injusto da incipiente era capitalista pós-revolução.
Em meio a todo esse contexto sócio-histórico é que
despontou na cena literária do Ocidente o romance histórico, cujo
grande nome, parâmetro da ficção histórica dentro da História da
Literatura é, na avaliação do crítico Georg Lukács, - estudioso deste
subgênero -, o romancista Walter Scott. A forma clássica de romance
histórico, ditada pelo conjunto da obra de Walter Scott, apresenta
caracteres estéticos e ideológicos que iam ao encontro da intensa
atmosfera historicista que pairava sobre o pensamento europeu
oitocentista. As narrativas desse subgênero se prestavam a legitimar e
intensificar o espírito de nacionalismo muito recorrente no tempo e no
espaço de seu surgimento, além de contribuir para a propagação da
consciência histórica em formação. Com Walter Scott, a representação
literária de alguns eventos do processo histórico europeu é engendrada
com algum teor épico que, somado à intenção de realizar uma captura
objetiva do passado histórico, insere-se no rol das muitíssimas
narrativas de cunho realista que o século XIX produziu. A chamada
epica objetividade
38
com que eram dotadas as obras de Walter Scott
seguia a tendência preponderante da escrita de seu tempo: a
obstinação em buscar e concretizar a realização de registros textuais
que lograssem transmitir, fielmente e na íntegra, os fatos da realidade
objetiva, mais especificamente a realidade total de um país na sua
formação histórica. A dimensão épica das ficções históricas tradicionais
reside no significativo grau de monumentalidade com que eram
providas as ações representadas, na busca incessante de exaltação a
tudo que envolvia a progressiva construção cultural de seu país e de
sua particular identidade na linha evolutiva de sua história.
38
LUKÁCS, Georg. Op. cit. nota n. 34, p. 31.
Os romances históricos de Walter Scott, no que diz respeito
a sua posição ideológica, portam-se moderadamente, o empreendem,
por meio de suas tramas e personagens, uma defesa engajada e
sistemática de alguma classe social ou sistema de governo coetâneo a
sua época de aparição. Seus romances procuram manter-se em uma
posição intermediária, a mais descomprometida possível, e objetivam
prestar-se como testemunhas culturais e fontes textualizadas rias do
percurso histórico do qual são resultados e fazem parte. Esboçam
literariamente, com certa distância crítica, as etapas da História inglesa
em todo seu desenvolvimento, servindo de paradigma, pela excelência
de seu modelo, a outros romancistas do subgênero, no restante da
Europa e no continente americano.
Para a condução de suas tramas, Scott se vale de
protagonistas medianos, em vários sentidos. Jamais exercem o papel de
heróis exacerbados, emocional e externamente, no status que têm
dentro do quadro social da realidade cotidiana da qual fazem parte. Na
configuração, não dos protagonistas, mas também de outros
personagens, concebe-os de maneira que através deles se possam
vislumbrar os conflitos e oposições típicos do processo histórico o qual
integram. Seus personagens sintetizam a condição social da qual são
representantes, refletem os rumos que a corrente histórica tomou e os
valores formados. Se, por um lado, ao romancista inglês faltava
emprestar maior densidade psicológica a seus personagens, por outro
lado, impõe-se a sua exímia capacidade de representar, nas figuras
humanas que compõe ficcionalmente, as forças cio-históricas
atuantes no tempo e no espaço da existência social representada. Pode-
se considerar Walter Scott pioneiro nesta tomada de posição artística e
literária, pois nunca esta tendencia de la creación había ocupado
conscientemente el centro de la representación de la realidad
39
.
A assertiva de que os romances históricos de Walter Scott
possuem traços épicos não implica considerá-los como obras que
objetivam revitalizar o antigo modelo de epopéia. Embora possam ser
39
LUKÁCS, Georg. Op. cit. nota n. 34, p. 35.
feitas algumas correlações entre um e outro modelo, o fato é que as
ficções históricas, como as de Scott, constroem-se de acordo com o
pensamento formado em um estágio amadurecido da história
humana: o seu tempo de produção. Nessa perspectiva, ainda que
freqüentemente pratique reminiscências a períodos incipientes do
desenvolvimento histórico, conferindo-lhes superioridade e certa
mitificação heroicizante que o presente não desfruta, a narrativa de
Walter Scott não se confunde com a epopéia, que conferia um
tratamento elevado ao passado, assumindo uma postura mais afeiçoada
a uma concepção poética da vida.
No romance histórico, o passado e suas marcas, seus
heróis, seus acontecimentos, revelam-se prosaicos e não destaque
individual que desponte em importância na trama a ponto de ser o
centro absoluto para o qual tudo o mais convirja, tal como ocorre no
gênero épico clássico. O herói épico contém em si e representa de forma
microcósmica a noção de totalidade que caracterizava a concepção de
mundo vigente no período histórico em que o gênero épico perdurou.
Função outra exercem os heróis de Scott, que operam dramaticamente
no afã de conciliar os extremos ideológicos que se encontram em
combate na arena social, luta que consiste no próprio objeto do
romance histórico. Por meio dessa representação ficcional das pugnas
entre forças históricas, sociais e ideológicas contrastantes é que se
chega a uma expressão poética a respeito das grandes crises e
transformações que a sociedade experimentou ao largo de sua
formação.
Os heróis romanescos de Scott, figuras que procuram
minimizar o embate de opostos, que se abstêm de manifestar apoio
explícito a um determinado lado de uma contenda, cumprem um dos
elementos basilares da proposta romanesca do escritor escocês: o
caminho médio no tratamento ideológico dos temas que interessam à
ficção histórica. Para que se atendesse a tal exigência, imprescindível foi
a eleição de personagens livremente inventados e/ou desprovidos de
relevância histórica, podendo então o autor lapidá-los de modo a
conferir a eles um equilíbrio de caráter tal que possam conduzir
moderadamente a trama do ponto de vista ideológico. Com isso, a
exposição de personalidades históricas no tecido ficcional fica relegada
a um segundo plano, mas quando ocorre é também desprovida de um
teor sentimental excessivo, seja pró ou contra uma figura humana
representada. Além do mais, as relevantes personagens históricas
focalizadas jamais são vistas pelo ângulo de sua transformação social e
psicológica através do tempo e das circunstâncias históricas. Quando
comparecem em algum momento na trama de seus romances, Scott
apresenta tais personagens de forma pronta, na plenitude de sua
evolução sócio-histórica e, portanto, tal como as conhecemos dos livros
de história tradicionais. Assim como os vultos célebres destes livros, os
personagens prosaicos dos romances de Walter Scott possuem um valor
e uma dimensão extraordinários dentro do cenário histórico em que são
representados, uma vez que dotados de uma grandeza moral e histórica
significativa. Tais características podem ser apontadas como elementos
que ajudaram na popularidade e no sucesso artístico alcançado por
Scott junto ao público leitor de seu tempo e da posteridade. Delas
decorre, também, certo heroísmo revolucionário inerente a algumas
figuras populares e que, por vezes, acaba emergindo, na prática, em
algum indivíduo com a vocação e o preparo de um der natural,
proveniente e representante das classes menos favorecidas de uma
determinada sociedade.
A íntima relação que, nos romances de Walter Scott, é
esboçada entre a vida popular e as crises e as transformações
históricas, a influência destas no desenvolvimento e na estruturação da
vida social em todas as suas camadas e classes, expressas pelo escritor
escocês em seus textos, qualificam-no como literato de destaque no
cânone do subgênero romance histórico. Impõe-se também o talento do
romancista em arquitetar com o máximo de autenticidade histórica,
aliada a sua singular habilidade artística, a complexa inter-relação de
reciprocidade entre os pólos sócio-históricos de cima (classe abastada) e
de baixo (classes menos favorecidas). É nesse permanente intercurso
entre forças sociais heterogêneas que se engendra a totalidade da vida
corrente de uma sociedade. Walter Scott com seu romance histórico
alcançou certa notoriedade por haver compreendido e ter sabido
transmitir a complexidade inerente ao objeto de sua ficção,
esquadrinhando com a rara habilidade pericial de um ponderado
observador as nuances intrassociais de sua sociedade ao longo de sua
evolução histórica. Seus romances históricos jamais se prestam a
discorrer ou fazer referências explícitas sobre o presente imediato da
realidade social em que o ator está inserido; antes, procedem na
realização de uma leitura revivescente do passado, concebendo-o como
etapa preparatória e modeladora do presente, este dado como incerto e
ainda em desdobramento.
Sob variados aspectos composicionais, o romance histórico
tradicional, de Walter Scott e de todo um conjunto de escritores que
vieram posteriormente dar continuidade às possibilidades do modelo de
escrita do escritor escocês, e ainda ampliá-las, apresenta algumas
peculiaridades características
40
:
- Os personagens históricos, quando presentes na ficção, são apenas
citados ou constam como pano de fundo da ação de personagens
notadamente inventados ou de irrelevante significação histórica que,
elevados à função de protagonistas, movem a diegese da narrativa;
- A elaboração temporal destes romances históricos segue o mesmo
molde praticado pelo discurso histórico oitocentista, ou seja, promove
um discurso atento a uma dimensão cronológica linear e obediente à
mesma sucessão temporal dos fatos históricos registrados pelo discurso
historiográfico oficial;
- Os dados fornecidos por este discurso oficial da História, quando
salientados nos romances históricos, são assimilados por estes de
maneira tal qual constam nos anais históricos oficiais, atuando no
sentido de conferir veracidade e autenticidade aos eventos narrados na
diegese do romance histórico tradicional;
- A focalização narrativa empreendida pelo romance histórico sustenta
uma visão distanciada do ente narrador frente aos eventos diegéticos
narrados por meio da narração em terceira pessoa extradiegética,
40
Ver, a propóstio: LUKÁCS, George. México: Ediciones Era, 1996.
procurando atuar, assim como acontece no discurso historiográfico
oitocentista, de maneira a aparentar uma suposta neutralidade e
imparcialidade perante os sucessos narrados, visando com isso a
conferir um caráter impessoal a seu exercício narrativo, para a partir
daí presumir que a verdade por si mesma estivesse a desvelar
narrativamente os fatos históricos ocorridos.
O modelo tradicional de romance histórico despontou e teve
seu apogeu durante o culo XIX. Contudo, começou a declinar ainda
nessa mesma centúria, com o gradual sentimento de desconfiança e
descrédito que comou a se formar em torno do modelo de prática
historiográfica dominante naquele período (do qual a ficção histórica
tradicional é fiel seguidora). Tal modelo era até então considerado como
incontestável e absoluto padrão de excelência teórica para os campos da
historiografia e da Filosofia da História, preconizado especialmente por
intelectuais que mantinham profunda afinidade com o pensamento
positivista. O século XX irrompe na linha evolutiva do tempo, e a crise
do conhecimento histórico se encontra ainda mais acentuada. Nesse
contexto, o discurso historiográfico objetivista do culo anterior, antes
tão soberano e dificilmente questionável, acha-se neste novo século
cada vez mais posto em xeque e preterido em favor de critérios
metodológicos e objetos de estudo os mais heterogêneos possíveis e
descentrados dos interesses da ideologia oficial.
Na Literatura, esta mudança de perspectiva referente aos
estudos historiográficos resultou em avaliação, revisão e revitalização
da História via ficcionalização de eventos e personagens históricos,
realizada através da elaboração de “novos romances históricos”, que
trazem para a atmosfera literária os questionamentos relativos à crise
do conhecimento histórico instaurada em definitivo no decorrer do
século XX. Esta crise, aliás, fez vincularem-se novamente História e
Literatura (se bem que o romance realista e a História do culo XIX
possuíam convicções estéticas e ideológicas muito semelhantes), uma
vez que novamente foram levantadas as muitas relações e
convergências existentes entre os discursos literário e histórico, que
antes eram rechaçadas em virtude da intenção da História
positivista/oitocentista de proclamar-se auto-suficiente em relação às
outras áreas do conhecimento. Essa atitude, por conseguinte, negava à
História a possibilidade de assumir que se vale de certos elementos
próprios da Literatura na sua estruturação e elaboração textual, por
exemplo.
Nesse novo panorama em que se encontra a História no
século XX, a Literatura contribui dimensionando também nas suas
produções os novos rumos encaminhados pelas modernas e
diferenciadas abordagens históricas, especialmente através da
realização de um novo modelo de romance histórico, que subverte
muitas das convenções formais e conteudísticas da ficção histórica
tradicional.
O contexto intelectual latino-americano das primeiras
décadas do século XX foi o momento em que, talvez, os novos e
descentrados direcionamentos tomados pelas pesquisas
historiográficas, e, por conseguinte, a geração de uma consciência
histórica mais reflexiva e menos intransigente, produziram um efeito
mais incisivo em termos de aplicação pela Literatura. As narrativas
romanescas do século XX, que se valem de determinados referenciais
históricos como contexto e temática de suas tramas, procedem não
mais como agentes discursivos corroboradores do discurso histórico
oficial, assimilando-o como verdade preestabelecida, mas promovem, no
plano ficcional, através de inovadoras estratégias textuais, um exercício
crítico e contestatório sobre este mesmo discurso.
O gradual despontar, no século XX, de romances históricos
destoantes e reagentes ao modelo clássico do subgênero do século XIX,
inserem-se no intenso movimento de renovação literária e artística
desencadeado na América Latina a partir, principalmente, das
vanguardas artísticas da década de vinte da centúria passada. Como
proposta basilar destas vanguardas, pode-se apontar o desenvolvimento
de experimentações estéticas mais autônomas, desprendidas e avessas
a convenções formais e estilísticas consagradas pela tradição, dentre as
quais a noção mimética de concepção realista-verista em que as
produções ficcionais buscavam simular a representação da realidade da
experiência objetiva humana. A investida do fenômeno vanguardista na
criação de novas e transgressoras formas expressivas se faz
acompanhar também por um novo olhar, mais atento e mais reflexivo a
respeito da natureza ontológica latino-americana, de sua condição
histórico-cultural peculiar inserida no contexto universal. As narrativas
históricas que se produziram no século passado, foram grandes meios
de representação que traduziram esta nova percepção crítica sobre o ser
latino-americano. Elas problematizaram, com a visão de mundo e a voz
latino-americana, emancipada do antigo colonialismo político e cultural,
a sua condição existencial no passado, mas refletindo também o
presente.
A crítica e a historiografia literária, de um modo geral, têm
apontado El reino de este mundo (1949), de Alejo Carpentier, como obra
ficcional que início efetivamente a uma nova configuração de
romance histórico
41
. Desde então, passaram a ser produzidas
intensamente ficções que investem na problematização da escritura
historiográfica e seus objetos temáticos como mote de seus textos. Tais
obras procuram redimensionar e reinterpretar tudo aquilo que
tradicionalmente tenha sido considerado componente da versão oficial
dos fatos históricos. Nessa perspectiva, promovem através da ficção,
leituras críticas e questionadoras sobre o passado factual arquitetado
unilateralmente pela elite historiográfica e da cultura, a qual pensava
ser esse passado já desvendado e absolutamente incompatível com
outras interpretações possíveis que se quisesse especular e praticar. A
Literatura, quando comparada à História em seu formato tradicional,
mostra-se bem mais receptível em acolher os mais diversos tipos de
discursos existentes, podendo também contemplar na tessitura de seus
textos a mesmo visões de mundo antagônicas entre si. Esta atitude,
impõe-se reconhecer, fez com que a arte literária venha contribuindo e
participando ativamente das discussões que vêm problematizando o
caráter do conhecimento histórico há algum tempo, dispondo, inclusive,
41
Ver, a propósito: MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América
latina, 1979-1992. xico: Fondo de Cultura Económica, 1993. Ver ainda:
BALDERSTON, Daniel (ed.). The historical novel in Latin American. Gaithersburg:
Ediciones Hispamérica, 1986.
de informações históricas não encontráveis no discurso historiográfico
oficial. Mais que isso, a Literatura realiza melhor que sua co-irmã, a
História, a transposição, para o meio escrito, da estrutura multifacetada
e muitas vezes controversa da realidade, pois la literatura tolera las
contradicciones, la riqueza y la polivalencia en que se traduce la
complejidad social y sicológica de pueblos e individuos, lo que no siempre
sucede en el ensayo histórico, en general más dependiente del modelo
teórico e ideológico al que parece referido
42
.
No novo discurso romanesco de vertente histórica que
começou a ser produzido no culo XX, é possível verificar o registro
daqueles mesmos fatos narrados outrora pela História convencional.
Contudo, o tratamento dispensado a tais fatos se realiza desde ângulos
novos, segundo vozes ex-cêntricas, mediante pontos de vista alternativos
ao discurso oficial e predominante. Passa-se a salientar aspectos antes
não explorados por este mesmo discurso (preenchendo os vazios que
eles deixam), o que possibilita uma compreensão mais ampla e bem
menos estereotipada sobre determinada ocorrência histórica. A análise
que o renovado romance empreende em relação à matéria histórica
investigada vai muito além de uma perspectiva objetivista limitadora,
típica da consagrada narrativa realista concebida no curso do século
XIX, principalmente. Ao incorporar livremente certos elementos da
cosmovisão imaginária individual e coletiva humana na elaboração
textual sobre uma realidade histórica que procura representar
literariamente, essa nova narrativa histórica redimensiona o processo
de ficcionalização da história antes consagrado.
O novo romance histórico não titubeia, quando deseja, em
lançar mão de mitos, lendas, arquétipos e diversas outras
manifestações culturais oriundas da criação imaginária humana o-
pertencentes à lógica cartesiana. Aliás, os próprios estudos
historiográficos enveredaram para rumos nada convencionais, haja
vista a recorrente busca que passaram a realizar em fontes que outrora
eram dificilmente reconhecidas como potenciais e valorizadas como
42
AÍNSA, Fernando. Nueva novela histórica y relativización del saber historiográfico.
Casa de las Américas, Havana, n. 202, p. 10, Enero-Marzo, 1996.
objeto de estudo. Cita-se o caso dos folclores, dos ideários míticos, da
cultura popular, do discurso oral, além de outros fenômenos culturais
alternativos e marginalizados, suprimidos por preconceitos ideológicos e
metodológicos que pautavam o movimento historicista do século XIX,
mais especificamente.
A crescente aproximação com outras áreas do
conhecimento e a apropriação pela História de técnicas, metodologias e
objetos de estudo típicos de outras ciências, principalmente do ramo
social (Antropologia, Sociologia, Economia, etc.), permitiu maior
flexibilidade na interpretação do processo histórico de rias culturas.
Além disso, favorecer o alargamento do campo de atuação para
pesquisa, o que proporciona assimilar de maneira diversificada e mais
abrangente possível a complexa engrenagem da vida humana que vem
se constituindo através da torrente histórica dos acontecimentos. Essa
abertura à interdisciplinaridade e a busca de referenciais históricos que
não se restringem ao conteúdo escasso dos relatos documentais oficiais
é marca distintiva também do significativo número de novos romances
históricos escritos a partir da metade do século XX. A antes
predominante narrativa ficcional-histórica de postura conservadora,
que operava nas suas abordagens temáticas tão somente reproduzindo
e legitimando os postulados discursivos pautados pela cultura
historiográfica e literia oficial, gradualmente passa a perder espaço
para um discurso essencialmente autoconsciente, auto-reflexivo,
dialógico, relativista e transgressor do modelo tradicional positivista-
rankeano. Pode-se mesmo afirmar, tranqüilamente, que esta vocación
subversiva de la ficción com respecto a la historia oficial se convierte em
la característica fundamental
43
da obra de grande parte dos
romancistas, do século XX até os dias atuais, valem-se da matéria
histórica textualizada como motivo nuclear de seus textos.
Nesse sentido, a relação Literatura e História é
significativamente redimensionada, pois é plenamente explorada a
potencialidade poética inerente à arte literária no tratamento dos fatos
43
AINSA, Fernando. Op. cit. nota n. 37, p. 11.
históricos registrados e na problematização do saber historiográfico
porquanto este também é provido de uma mecânica discursiva que leva
em conta componentes da subjetividade na sua elaboração textualizada,
ao contrário do que preconizava a outrora irrefutável corrente
objetivista do pensamento histórico. A realização de avaliações
analíticas e reflexivas das representações factuais do passado e os
procedimentos discursivos utilizados pelos novos romances históricos
ocorrem a partir do posicionamento do ficcionista, no tempo presente de
sua escrita, em direção ao passado historicizado por obras que em
outro tempo discorreram sobre determinados eventos históricos.
Produz-se, então, um intenso diálogo com as escrituras historiográficas
e literárias de outros tempos. Revisam-se, repensam-se e questionam-se
as estratégias desses textos e suas supostas verdades, em atitude que
demonstra a franca consciência crítica do novo romance histórico com
relação às configurações textualizadas que se fizeram a respeito do
passado histórico.
Através deste novo tipo de ficção histórica, ora mais ora
menos explicitamente, procura-se enfatizar o quanto qualquer discurso
que se elabore, por mais objetivo e a-passional que possa parecer,
invariavelmente se constrói também a partir de alguma parcela de
motivação ideológica pessoal de seu autor, interferindo no processo de
arranjo formal e da formulação conteudística da matéria transcrita.
Nessa perspectiva, o novo romance histórico trata de salientar o papel
ativo que exercem a linguagem e a participação de estruturas narrativas
específicas na configuração discursiva de qualquer texto dissertativo.
Além disso, também contraria os princípios metodológicos daquela
linha de escritos historiográficos de intenção objetivista, que se pensa
imparcial e acredita ser toda atividade historiográfica isenta de qualquer
influência subjetiva de seu agente textualizador.
O novo romance histórico se impõe na cena literária do
século XX na medida em que transforma os temas convencionais da
historiografia e o modo de abordá-los a partir de sua ótica estética e
ideológica renovadora. Sua perspectiva pluralista, multidiscursiva,
relativizada, é reveladora de sua significativa capacidade estética
potencializadora de significados na interpretação do legado histórico de
um determinado espaço geográfico. No contexto latino-americano é que
se percebe a efervescência do recente subgênero romanesco de cunho
historiográfico a produzir obras que vêm sendo evocadas
reiteradamente pela crítica literária dos últimos anos. Constituem, pois,
exemplos práticos não só de reorientação composicional e temática
atinente ao campo particular do romance, mas também de instituições
ideológicas que vão além de sua existência estética primeira, ao
sinalizarem para uma nova tomada de consciência identitária e cultural
latino-americana. Tal consciência revela-se mais autônoma e
desprendida de velhos vínculos socioculturais que o patriarcado
colonizador ibérico impôs aos mais variados domínios da vida nos
países da América Latina.
No caso brasileiro, também é por volta dos anos 70 do
século XX que começam a despontar os primeiros romances que tratam
de evidenciar o caráter problemático do conhecimento histórico. Tais
romances abordam, em particular, o legado da produção historiográfica
brasileira, os fatos que por ela foram narrados, assim como também
aqueles episódios que a Literatura explorou, especificamente as obras
de viés marcadamente histórico. As constantes especulações do
romance brasileiro das últimas décadas sobre o passado histórico
nacional m se concentrado basicamente em trilhar dois caminhos
44
.
Por um lado, situam-se aquelas narrativas que se detêm na revisão e
reinterpretação dos fatos integrantes do discurso da História oficial do
Brasil; de outro, aquelas obras que investem na releitura do percurso
da historiografia literária nacional. Entre as obras do primeiro grupo,
podem-se citar Galvez Imperador do Acre, de Márcio Souza, e A cidade
dos padres, de Deonísio da Silva; pelo segundo grupo, há algumas
obras de Ana Miranda, como é o caso de Boca do Inferno, A última
quimera e Dias & dia, ou ainda Cães da Província, de Luiz Antonio de
Assis Brasil. O perfil dos protagonistas utilizados serve como um
primeiro dado indiciador sobre qual das linhas temáticas antes
44 BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. O novo romance histórico brasileiro: o caso
gaúcho. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 75-81, jun. 2001. p. 77.
referidas pertence um determinado romance histórico dos últimos anos;
enquanto aqueles romances do primeiro grupo apresentam como
protagonistas algumas personalidades integrantes da História oficial
brasileira, as obras do segundo grupo se destacam por expor a
trajetória pessoal e profissional de algum nome da literatura pátria
como objeto nuclear da diegese. Casos também em que as duas
modalidades temáticas citadas o exploradas simultaneamente no
desenvolvimento da trama, e é o que sucede também, por exemplo, em
Galvez Imperador do Acre. O autor amazonense, valendo-se de um
episódio da história nacional e também sul-americana, - a anexação do
território do Acre pelo Brasil no final do século XIX -, desenvolve uma
narrativa inovadora, podendo mesmo ser considerada revolucionária se
forem levadas em conta as produções literárias nacionais de até então,
redefinindo as fronteiras do gênero a que pertence e procedendo em
plena sintonia com o movimento de profunda renovação da escrita
literária latino-americana que ocorre na cada de 70, em consonância
com o alto número de novos romances históricos que no restante do
continente surgiram nesses mesmos anos.
Galvez Imperador do Acre contém todos aqueles atributos
do novo romance histórico que rompem definitivamente com o
paradigma modelar do subgênero na sua forma clássica. A narrativa
discorre sobre a controvertida passagem do espanhol Luiz Galvez
Rodrigues de Aria pelas terras amazônicas do norte do Brasil, sua
meteórica ascensão ao posto de autoridade máxima do efêmero império
do Acre independente e sua posterior deposição por parte das tropas
bolivianas. O texto se apresenta, desde suas epígrafes, intensamente
marcado pela presença de elementos estilísticos de cunho cômico: o riso
mais escancarado, a atmosfera carnavalizada que por vezes envolve as
ações, a mordaz ironia e outros índices humorísticos. Enfim, o
comparecimento de tais marcas e sua recorrência ao longo de Galvez
Imperador do Acre sinalizam para o descumprimento, por parte do
romance, do modelo-padrão de romance histórico tradicional, este
caracterizado, sobretudo, pela seriedade e pelo comedimento no estilo,
comprometido com o discurso historiográfico oficial, não ousando
quanto ao tratamento estilístico empregado na ficcionalização realizada
sobre a matéria histórica produzida, procedendo apenas no sentido de
ratificar as verdades antes afirmadas pelo discurso oficial
predominante.
A instância da narração, verificável neste romance de
Márcio Souza, tampouco se enquadra no modelo narrativo praticado por
Walter Scott e seus seguidores. O distanciamento da entidade
narradora para com seu objeto, característica do romance histórico
convencional, é suprimido na nova modalidade do subgênero, sendo, via
de regra, o próprio protagonista da trama a discorrer sobre suas ações e
circunstâncias. No caso de Galvez Imperador do Acre, tem-se a
presença de dois narradores que conduzem o andamento da diegese,
ambos pronunciando-se em primeira pessoa. Predominante é a
narração do próprio Galvez, que se realiza a partir de suas memórias,
inclusive na forma que a narrativa assume, fragmentada textualmente,
com capítulos de pouquíssima extensão, possuindo um marcado teor
subjetivo, confessional, procedimento típico de narrativas
autobiográficas. De outro lado, tem-se a minoritária participação
discursiva do narrador-editor, que não somente exerce o papel de
“prólogo” e “epílogo” da trama, como também atua no decorrer da
mesma interferindo na seqüência narrativa de Luiz Galvez,
interrompendo-o sempre que necessário, corrigindo-o a cada momento
em que o nosso herói faltar com a verdade dos fatos (p. 53). Tal atitude
intervencionista e questionadora opera na trama como elemento de
desmistificação da verdade que dois tipos de discurso tradicionalmente
reivindicam para si: o discurso da História e o discurso da
autobiografia. É pela participação deste mesmo narrador-editor que se
a metaficcionalidade dentro do processo narrativo do romance,
quando, por vezes, informações atinentes à estruturação e à natureza
do relato são elucidadas. Este narrador, além disso, faz referências ao
panorama literário dentro do qual a narrativa enquadra-se, como bem
se pode verificar na seguinte passagem: Esta é uma história de
aventuras onde o herói, no fim, morre na cama de velhice. E quanto ao
estilo o leitor há de dizer que finalmente o Amazonas chegou em 1922.
Não importa, não se faz mais histórias de aventura como antigamente (p.
13).
Ao referir personalidades com algum reconhecimento dentro
da história brasileira, Márcio Souza vai, ao mesmo tempo, concebê-las a
partir de uma outra perspectiva, essencialmente dessacralizadora e que
investe na subversão da imagem positiva e imaculada que o discurso da
História costumou atribuir a tais personalidades na representação dos
mesmos. O que se tem em Galvez Imperador do Acre é a exposição da
vida dos mesmos nas situações mais inusitadas por eles vividas, em
que se comportam inadequadamente, desobedecendo em suas atitudes
àqueles princípios da moral e da ética que regulam o comportamento
dentro de uma sociedade. Freqüentes são no romance cenas de
escândalos, de promiscuidades praticadas por “ilustres figuras da
sociedade amazônica, em ambientes públicos ou nos mais privados.
Luiz Galvez transitava tranqüilamente por estes locais e partilhava
muitas vezes dos gozos fáceis que os novos-ricos desfrutavam e que
ainda proporcionavam a quem com eles convivia. No todo da narrativa,
o jornalista espanhol é caracterizado pelo caráter picaresco de sua
conduta diária, em virtude de sua vida desregrada, atitudes
inconseqüentes e displicência moral nas relações sociais com as outras
pessoas. Em suma, o Luiz Galvez Rodrigues de Aria que no romance é
esboçado reúne em si os traços característicos que dizem respeito à
faceta mais carnavalizada do ser humano, na medida em que
freqüentemente age sem maiores pudores, mostrando-se alheio às
restrições que as formalidades da realidade cotidiana impõe.
Em Galvez Imperador do Acre, a representação jocosa de
personalidades históricas alcança a mesmo alguns notáveis da
Literatura brasileira, que, embora o participem ativamente da ação
do romance, têm suas imagens plenamente satirizadas quando citados
em alguma passagem da trama. Casos, por exemplo, de Euclides da
Cunha e de Coelho Neto. O primeiro é mencionado logo no princípio da
narração, por estar vinculado ao parnasianismo e por ser um dos ícones
do estilo empolado e verborrágico de escrita que tanto caracterizou esse
movimento literário. Na abertura do romance, que tem o sugestivo nome
de Floresta Latifoliada, o narrador-editor toma o parnasianismo como
objeto de escárnio, porquanto faz alusão à condição ultrapassada do
movimento poucos anos antes metade do século XX vinculando-a ao
atraso cultural e literário da Amazônia em relação ao restante do Brasil.
Coelho Neto, coetâneo de Euclides da Cunha, cultor de uma escrita
pomposa e eloqüente, também um dos grandes nomes da chamada
belle époque brasileira, é citado na narrativa de maneira um tanto
inusitada, sendo lembrado apenas por ser o “ex-dono” de uma “insigne”
ceroula que fora surrupiada pelo coronel da Guarda Nacional Apolidório
Tristão de Magalhães, na oportunidade em que o escritor maranhense
estivera por alguns dias em visita a Belém, no Pará. O extravagante
coronel paraense tratava como relíquia santa (p. 28) a peça íntima de
Coelho Neto que, em moldura prateada, decorava a parede da biblioteca
numa posição de destaque e veneração (p. 28). No mais, o
aparições mais consistentes de reconhecidas figuras da História
nacional como partícipes da ação romanesca em Galvez Imperador do
Acre, a não ser aqueles sujeitos históricos diretamente envolvidos nas
políticas e militares que brasileiros e bolivianos promoveram pela posse
do território acreano. Estes, quando presentes na trama, o
caracterizados da mesma maneira irreverente e descomprometida com
que Márcio Souza vai concebendo a narrativa nas suas linhas gerais.
Também os ambientes e as situações em que essas figuras históricas se
encontram são representados de maneira bem diversa do encontrado
comumente em livros de História e romances históricos tradicionais,
pois são espaços em que predominam a hipocrisia, o egocentrismo, a
lascívia, relações interpessoais desprovidas de moralidade recíproca,
etc.
A temporalidade que se constata no andamento narrativo
de Galvez Imperador do Acre é tópico que também se enquadra nas
características do novo romance histórico. O constante deslocamento
temporal repentino, para frente ou para trás, durante o processo de
narração é marca saliente neste romance de Márcio Souza. em seu
início, sendo o narrador aquele que detém os manuscritos de Luiz
Galvez, a temporalidade é situada como que no presente da ação,
oportunidade em que o narrador-editor descreve a ocasião em que os
encontra, caracteriza o próprio autor do relato e introduz a narrativa
fazendo a referência histórica da ocupação do Acre efetuada pelos
brasileiros de outra região do país do Nordeste. Além disso, cita as
tribos ocupantes da região acreana que lá habitavam antes da ocupação
dos nordestinos e uma versão sobre a origem do nome do território
acreano. Segue-se a partir daí o relato de Luiz Galvez, que principia no
ano de 1898, quando o espanhol se encontrava com 39 anos de
idade. Mas a narração que parece encaminhar-se para uma trajetória
rumando sempre ao futuro de onde se encontra a ação, por vezes é
interrompida, retornando a um tempo pregresso ao período da ação em
desenvolvimento.
Freqüentes no romance o aqueles capítulos
autobiográficos de Luiz Galvez que subitamente são inseridos no
decorrer da narração. Tais capítulos contemplam os tempos de sua vida
em família, quando rememora amesmo os conflitos belicosos em que
seu pai esteve envolvido, suas aventuras juvenis e, por fim, o começo de
sua carreira como jornalista. Todos esses episódios que entrecortam a
narração abalam sensivelmente o curso da diegese e até desestabilizam
a leitura, mas não chegam a prejudicar a mesma. O que ocorre, tão
somente, é uma reconfiguração do ponto de vista da temporalidade no
modo de contar a história/estória que o romance promove, em que não
mais atuam o conservadorismo e o convencionalismo o típicos das
Histórias e romances históricos tradicionais. Estes, ao conceberem seus
relatos de forma cronologicamente linear, procuravam simular o próprio
tempo histórico, estratégia pretensamente mais apta à persuasão do
leitor, podendo levá-lo a acreditar que aquilo que está lendo segue e
representa fielmente os acontecimentos passados da realidade em sua
imanência factual. Diferentemente, os novos romances históricos
rejeitam tal estratégia discursiva e lançam mão de uma temporalidade
que pertence ao domínio subjetivo daquele que organiza e concebe
textualmente o relato histórico. A participação da subjetividade opera
mesmo no processo de composição daquelas obras de caráter
historiográfico que se pensam neutras e imparciais, pois estas são, do
mesmo modo, produtos de uma mente humana, sendo repletas de
motivações intrínsecas. Desde a investigação e coleta de vestígios
históricos até a divulgação dos mesmos em revistas, livros, romances
históricos, ou seja, durante todas as etapas de construção do
conhecimento histórico, as marcas ideológicas pessoais e a
arbitrariedade do historiador e do romancista são componentes que,
infalivelmente, participam e influem no decorrer do processo de
pesquisa histórica, e não como o reconhecer o papel da
subjetividade na efetivação de todo esse processo.
No romance são praticadas também distorções do discurso
historiográfico oficial, o que via de regra ocorre em obras pertencentes à
categoria do novo romance histórico. Tais distorções o, por vezes,
flagradas na trama pelo narrador-editor, quando ele interfere na
seqüência narrativa e passa a advertir os leitores sobre a desenfreada
inventividade das palavras de Luiz Galvez. Chama ele a atenção do
leitor para a falta de coerência com a verdade dos fatos, que ele
(narrador-editor) apresenta após o discurso “falacioso” do espanhol.
Porém, cabe aqui salientar que as retificações emitidas pelo narrador-
editor sobre o discurso de Luiz Galvez o apenas um recurso paródico
dentro da trama, que teriam a função, caso não fossem instrumentos de
parodização, de atribuir veracidade, plausibilidade ao que está sendo
informado. As informações destas notas corretivas evocam os romances
históricos tradicionais e sua obsessão pelo registro detalhado dos fatos,
sua crença de que podiam, através de suas obras, transmitir fielmente o
passado histórico a seus leitores. Como paródias, as retificações do
narrador-editor não estão a serviço de uma elucidação verídica absoluta
dos fatos, mas operam na trama como sinalizadores de que a
relatividade na apreciação dos fatos históricos é aspecto inerente ao
saber historiográfico, sendo impossível o conhecimento imanente dos
fatos tais como se sucederam realmente. Por conseguinte, qualquer
informação histórica pode ser passível de contestação, revisão e
reavaliação, além de outras versões sobre um mesmo evento poderem
surgir. Ainda sobre as notas do narrador-editor, vale dizer que os
abusos imaginativos de Luiz Galvez ao descrever suas aventuras é,
primeiramente, motivo de repreensão por parte do outro narrador;
contudo, mais adiante, o tom grave de seus primeiros comentários
ameniza-se, dilui-se, quando ele não mais resiste à fantasia que
prepondera nas peripécias de Galvez e ao poder de envolvimento que ela
possui:
Interrompo para advertir que o nosso herói vem
abusando sistematicamante da imaginação, desde
que chegou a Manaus. E como sabe nos envolver!
Para início de conversa, no Acre ele tentou organizar
uma república liberal. E depois, bem, depois,
pensando melhor, para que desviar o leitor da
fantasia? (p. 197)
Sobre a natureza intertextual que é inerente ao novo modelo
de romance histórico, Galvez Imperador do Acre demonstra ilustrar
plenamente esta especial marca estilística do subgênero, ao apropriar-
se de muitos textos de variada procedência e incorporá-los livremente à
matéria ficcional, seja por meio de pidas alusões a personagens
romanescos, ficcionistas e títulos consagrados da História da Literatura,
seja transcrevendo literalmente passagens de algumas obras na sua
tessitura romanesca. Evidenciam-se, por exemplo, referências a
consagradas narrativas ficcionais de aventuras, alguns de seus
personagens, além de uma alusão a Júlio Verne, um dos maiores, senão
maior ficcionista desta linha de escritos. Evoca-se A volta ao mundo em
oitenta dias, de Verne, quando Phileas Fogg é mencionado por Luiz
Galvez. Comparecem também, em breves citações, Gulliver e Robinson
Crusoe. Galvez Imperador do Acre é obra que se inscreve na linha de
romance de aventuras, e dialoga com a tradição deste ramo da escrita
romanesca, uma vez que não recupera elementos ficcionais e
autorais formadores desta tradição ao mencioná-los na trama, mas
também porque, valendo-se de tais elementos, tece algumas
considerações de ordem crítica a respeito da natureza deste tipo de
relato e sobre a condição do sujeito aventureiro. Ao mesmo tempo em
que descreve suas experiências em meio à selva amazônica, as agruras
a que precisou se submeter, Luiz Galvez passa também a desmerecer a
imagem de pessoa privilegiada que as narrativas convencionais
costumaram atribuir a seus heróis aventureiros. Partindo deste
contraponto, estabelece-se o diálogo aberto entre o romance de rcio
Souza e a tradição à qual está vinculado, diálogo realizado de modo
autoconsciente, auto-reflexivo e que ainda leva em conta a presença e a
participação do leitor no processo de existência do texto literário, neste
caso, do romance de aventuras:
Eu estava com os fundilhos molhados de água e vi
que a condição de aventureiro é quase sempre
desconfortável. O aventureiro vive como se estivesse
em fim de carreira. Não existe marasmo e os
contratempos estão sempre escamoteados das
histórias de aventura, pois digo aos leitores que
ninguém passa mais baixo que o aventureiro. Quem
me dera fosse eu um Phileas Fogg na calha do rio
Amazonas fazendo a volta do mundo em oitenta
seringueiras. (p. 87)
Contudo, Galvez Imperador do Acre o se restringe a ser
tão somente uma narrativa ficcional de aventuras, porquanto apresenta
uma estrutura multifacetada, em que comparecem diferentes
modalidades estilísticas de composição romanesca, compartilhando o
mesmo espaço discursivo, o que faz desse romance de rcio Souza
obra de indubitável plurivocalidade textual, plena em dialogicidade e
intensamente intertextual. Galvez imperador do Acre também pode ser
considerada obra que “flerta” com a novela picaresca espanhola, e o
são poucas as marcas presentes no texto que permitem assinalar a
também natureza picaresca desse romance . A trajetória atribulada de
Luiz Galvez pelo norte do Brasil que o romance expõe se através da
narração do próprio protagonista, e o que se vê despontar na mesma é a
caracterização de Galvez, de personalidade extrovertida, comportamento
demasiado insolente, vida agitada, descomprometimento em acatar
valores morais convencionais, etc. Em suma, o espanhol revela-se um
pícaro por excelência, “aprontando das suas” em longínquas terras
tropicais. Acrescenta-se a estas marcas que dizem respeito
particularmente à configuração do personagem de Luiz Galvez, a
estruturação do romance, que se constrói a partir de episódios
fragmentados, rememorações autobiográficas inseridas de súbito na
narração, histórias paralelas, observações de natureza científica,
historiográfica que aparentemente não influem no andamento narrativo
das peripécias de Luiz Galvez, etc. Contudo, mesmo a presença de tais
marcas não faz de Galvez Imperador do Acre obra que se enquadre
plenamente no modelo de novela picaresca tal qual os ibéricos
praticaram a partir do século XIV. Como se mencionou, esse romance
de Márcio Souza prima pela diversidade, possui uma estrutura
multifacetada, que abarca diferentes discursos, estilos os mais diversos,
etc. De qualquer forma, intenso se mostra o diálogo que a narrativa
empreende com a tradição ibérica, ao recuperar determinadas marcas
específicas da novela picaresca e incorporá-las à trama, assim como
através de recorrentes apropriações textuais de autoria de consagrados
escritores espanhóis, tais como Miguel de Cervantes, Calderón de La
Barca e Lope de Vega.
Encontra-se outro exemplo de prática intertextual, em
Galvez Imperador do Acre, nas vezes em que trechos da ópera Aída, de
Giuseppe Verdi, o reproduzidos literalmente no romance,
introduzidos em pequenos e consecutivos capítulos cujas
denominações, já bem sugestivas, evocam diretamente o compositor
italiano e elementos de sua citada produção operística.
Entretanto, dentre os vários pontos de contato,
aproximações, estilizações paródicas e práticas intertextuais que Galvez
Imperador do Acre realiza com relação a diferentes modalidades
discursivas e de gênero, nenhum é tão contundente e assíduo quanto a
reflexão sobre o processo literário brasileiro que o romance efetua: suas
etapas, procedimentos estilísticos, visão de mundo, entre outros
elementos. Logo no princípio da narrativa duas alusões ao ano de
1922, ponto de referência temporal de considerável importância no
percurso histórico de nossa literatura, período de intensa efervescência
cultural no país, de profundas renovações no plano estético e ideológico
da literatura brasileira bem como de outros meios de expressão
artística. A Semana de Arte Moderna de São Paulo, que ocorreu nesse
ano, é o principal evento expositor dos novos ideais artísticos
apresentados pelo movimento modernista dos anos 20, o que faz com
que se vincule ainda mais o ano de 1922 às drásticas mudanças na
configuração das expressões artísticas que se processaram a partir das
primeiras décadas do século XX. O ano de 1922, como data-ícone
colocada pela narrativa, representa microcosmicamente o avanço
cultural, a crescente emancipação intelectual brasileira, a gradual
abnegação artística e ideológica do Brasil para com as produções
culturais típicas da civilização européia”. Em contrapartida a isso, o
contexto específico em que o romance está inserido a região norte do
Brasil da metade do culo XX é visto pelo narrador editor como
estagnado culturalmente, atrasado em comparação ao restante do país,
a metade sul, por exemplo, pioneira dos movimentos brasileiros de
vanguarda artística desencadeados a partir dos anos 20 do mesmo
século. O narrador editor esclarece que com a publicação de Galvez
imperador do Acre a literatura amazônica finalmente deixa pra trás os
resquícios da extravagante escrita parnasiana, passa a conhecer e a
integrar o estágio mais amadurecido do percurso histórico-literário
brasileiro.
A reflexão em torno da Literatura brasileira tem
continuidade quando o mesmo narrador-editor afirma ter encontrado,
por acaso, os manuscritos de Luiz Galvez em um sebo qualquer de
Paris, e que, tal como fizera José de Alencar, em A Guerra dos
Mascates, decide também ele organizar e publicar estes escritos
memorialísticos, fazendo deles um romance. Na verdade, trata-se de um
discurso de acentuado tom paródico, que incide sobre procedimento
composicional largamente difundido pelas narrativas brasileiras do
século XIX. O discurso paródico, do modo como se manifesta em Galvez
Imperador do Acre, possui assim uma dupla orientação: ao mesmo
tempo em que recupera, retoma certos elementos da tradição literária,
revitalizando-a, também investe na renovação de prática discursiva
reiteradamente explorada no campo específico das obras romanescas ao
atribuir a elas novos significados, outros sentidos.
O romance ainda dialoga com a História literária nacional
por apresentar também caracteres de narrativa memoriastica. Sua
configuração, em geral, aproxima-se em muitos aspectos de Memórias
de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Embora as
duas narrativas se diferenciem quanto ao foco narrativo empregado,
(primeira pessoa em Galvez e terceira pessoa em Memórias), ambas
compõem seus relatos a partir de reminiscências biográficas de seus
protagonistas, arquitetando com muito bom humor e picardia o
panorama da época e do contexto social em que estão situados.
Outras afinidades entre as obras:
Assim como Leonardo em Memórias, também o espanhol
Luiz Galvez vai servir de elemento de coesão inter-episódica da trama,
garantindo assim sua unidade estrutural.
Os dois protagonistas apresentam traços de personalidade,
de caráter e de comportamento muito semelhantes. Ambos fazem parte
da seleta categoria de personagens pícaros atuantes na Literatura
Brasileira, formando ao lado de Geraldo Viramundo, de O grande
mentecapto, de Fernando Sabino e Macunaíma, da obra homônima de
Mário de Andrade, o quarteto das maiores figuras picarescas que a
ficção nacional já produziu.
Os pontos de contato entre Galvez Imperador do Acre e
Memórias de um sargento de milícias não se concentram apenas na
figura de seus personagens nucleares. Tal como o romance de Manuel
Antônio de Almeida, Galvez elabora textualmente a realidade de modo
bem prosaico, ao descrever cenas totalmente desprovidas de idealismo e
ao expor aspectos pouco ou nada poéticos da vida social. Tampouco as
duas narrativas se empenham em apresentar idéias moralizadoras,
assim como não pensam o ser humano maniqueisticamente, não
propagam a idéia de que as ações humanas se dividem necessariamente
entre boas e más, que intrinsecamente toda idéia ou ato já contenha em
si um valor ético predeterminado.
Quanto ao estilo empregado, Galvez mantém parentesco
com Memórias na medida em que também opta pelo humorismo e pela
objetividade discursiva em detrimento de uma escrita baseada no
sentimentalismo, elevada e refinada estilisticamente, marcas estas tão
caras ao modelo romântico tradicional. O estilo de escrita jornalística,
sua fluência, que se aproxima da oralidade do cotidiano, faz-se notar
também nas páginas dos dois romances. Mais ainda, chama a atenção
a farta presença, nas duas obras, da linguagem coloquial praticada
pelas camadas mais populares e seu franco e desembaraçado
vocabulário.
o se pode deixar de mencionar o ativo diálogo que Galvez
Imperador do Acre trava com o Romantismo. Durante breves momentos
da narração, Luiz Galvez desenvolve reflexões sobre a relação do
Homem com a natureza que o cerca, dirigindo seus comentários sobre o
modo de representação específico da literatura ao pensar a paisagem
natural, concebendo-a segundo sua própria linguagem e projetando
uma imagem dela de acordo com a poeticidade que lhe é inerente. Suas
palavras repousam sobre a ineficácia ou a insuficiência da literatura ao
tentar traduzir ou compreender tal fenômeno em seu universo
discursivo; mais precisamente: quando essa tentativa de compreensão
se via linguagem hiperbólica, através de um superdimensionamento
poético da imagem paisagística da natureza, fazendo com que outras
referências temáticas sejam deixadas para segundo plano, como, por
exemplo, as indagações a respeito da condição humana, ou a
exploração de episódios que sustentem o Homem como prioridade
temática da representação literária. Sub-repticiamente, o que se está
criticando na narrativa de Márcio Souza é o Romantismo e sua peculiar
conformação estilística, a grandiloqüência presente nas obras
românticas quando estas compõem o quadro descritivo de suas tramas,
o deslumbramento com o cenário natural, que via de regra participa das
narrativas como elemento introdutório da trama, mas que o deixa
de fazer-se presente no restante da narração, imprimindo assim um
“maior colorido” nas ações, contudo ornamentando-as em demasia.
Essa estratégia foi muito explorada pelos românticos tradicionais, esta
ânsia em decorar demais o painel das ações representadas, muitas
vezes chegando a predominar sobre os próprios acontecimentos da
trama. A tudo isso se opõe Luiz Galvez, em desabafo pronunciado em
tom sereno, mas que se revela também cáustico e depreciativo para com
os românticos:
Estou prisioneiro de uma paisagem. A praia era a
terra de ninguém, e comecei a pensar no desafio que
aquela paisagem devia representar para a literatura.
Ora vejam como eu era civilizado! Eu estava
abandonado na selva e pensava em problemas
literários. Problemas que, por sinal, ainda não
consegui superar. Sei apenas que a preocupação com
a natureza elimina a personagem humana. E a
paisagem amazônica é tão complicada em seus
detalhes que logo somos induzidos a vitimá-la com
alguns adjetivos sonoros, abatendo o real em sua
grandeza. (p. 85)
Ainda é possível verificar que Galvez Imperador do Acre tem
com Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade,
consideráveis afinidades estilísticas, especialmente quanto à formatação
estrutural empregada no romance, formado também por curtos
fragmentos narrativos, além da freqüente presença do discurso paródico
e do diálogo com o legado cultural brasileiro.
Galvez Imperador do Acre também se vale plenamente da
palavra dialogizada, irônica, carnavalizada, tal como propõe Mikhail
Bakhtin em seus estudos sobre a especificidade do discurso romanesco,
o que via de regra acontece em todas as obras que integram a categoria
do novo romance histórico. Assim sendo, a narrativa de Márcio Souza
apresenta uma postura essencialmente crítica e contestatória, que
promove sistematicamente, via plano do discurso, o desmascaramento
das instituições sociais brasileiras, bem como das figuras humanas
responsáveis ou diretamente vinculadas a elas, denunciando, em
veemente tom sardônico, a displicência, a hipocrisia e o esfacelamento
moral que residem na base destas entidades burocráticas.
Galvez faz uso exaustivo de um discurso de natureza
carnavalesca, efetuado por meio do comparecimento de diferentes
índices.
A profanação comparece na trama entre os capítulos
Rosário (p. 81) e Inquisição (p. 84). A propósito dessa irreverência,
destacam-se as relações sexuais praticadas entre Luiz Galvez e uma
freira a bordo de um vapor em frenética campanha religiosa. Não
bastasse a transgressão que o ato por si representaria, acrescenta-se
ainda a intensa libido despertada nas freiras que flagraram a inusitada
cena, a ponto de uma delas reproduzir mimeticamente os ruídos do
burburinho sexual durante a reconstituição verbal do fato
(rebaixamento do plano do sagrado ao nível do profano).
Outro índice a fazer-se presente, a coroação bufa, que
aparece em toda sua plenitude quando na trama se acompanha a
conquista do Acre por parte de Luiz Galvez e sua tropa revolucionária.
O ponto alto do feito histórico/histriônico é cerimônia de coroação do
espanhol como imperador daquelas terras, regada por muitas bebidas
alcoólicas, com inúmeras orgias acontecendo e toda uma rie de
eventos desestabilizadores da ordem que concomitantes resultam na
dissolução de qualquer hierarquia instituída. Do mesmo modo, seu
posterior destronamento contém todos os mesmos elementos da
solenidade entronizadora. E tal como um legítimo rei bufo de um festejo
carnavalesco no momento de sua deposição, Luiz Galvez sofre também
a humilhação da retirada em plena praça pública e tem suas vestes
reais despojadas ali mesmo. Encerra-se com isso o ciclo vital daquele
universo carnavalizado, passando então a vigorar uma nova ordem das
coisas com a retomada do controle militar e político do Acre por parte
dos bolivianos.
A carnavalização que comparece em Galvez Imperador do
Acre vem assinalada também nas muitas vezes em que registros
discursivos das mais variadas procedências são reproduzidas ao longo
da narrativa. A farta miscelânea discursiva conta com a presença de
trechos do texto operístico Aída, ximas filosóficas, diálogos teatrais
(visualmente na sua forma impressa), textos que discorrem sobre algum
episódio histórico em especial, repertório da companhia de operetas,
etc. Além do referido, tem-se também a presença recorrente de atas,
despachos, ordens do dia participando da arena discursiva da
narrativa, emitidas por Luiz Galvez aos seus subordinados ou vice-
versa, chegando a constituir capítulos inteiros do romance. Salienta-se
ainda o freqüente uso da linguagem jornalística, manifestada através da
transposição de notícias veiculadas por órgãos da imprensa escrita do
norte brasileiro, preferencialmente jornais. Ao elevar, via discurso
paródico, todas essas formas de manifestação discursiva à categoria de
linguagem literária, Galvez Imperador do Acre está promovendo
também, no plano do discurso, a revogação de qualquer relação de
hierarquia existente.
Por tudo isso que foi possível demonstrar, o resta dúvida
de que Galvez Imperador do Acre constitui exemplar bem acabado do
novo romance histórico, haja vista apresentar pontualmente todas
aquelas marcas que caracterizam o subgênero em sua especificidade.
Ei-las resumidamente
45
:
- consciência de que é impossível recuperar, por meio do discurso, a
verdade inequívoca dos fatos históricos (problematização intensa da
natureza do conhecimento histórico);
- rompimento absoluto com o paradigma de escrita que o romance
histórico tradicional desenvolve;
- intenso caráter metaficcional do relato, comentários freqüentes do
autor sobre o andamento narrativo e também sobre o próprio processo
de criação do texto;
- personalidades históricas são elevadas à condição de protagonistas
das narrativas, assumindo ainda o papel de herói bufo das tramas;
- a temporalidade trabalhada no novo romance histórico não obedece a
uma rígida linearidade cronológica: bruscas digressões, contatos entre
dimensões temporais diferentes, avanços e recuos súbitos no tempo são
comuns no novo modelo de ficção histórica;
- conscientes distorções do discurso oficial da História, manifestadas
através de omissões, exagerações e anacronismos;
45
Ver, a propósito:
MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América
latina, 1979-1992. xico: Fondo de Cultura Económica, 1993. Ver ainda:
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro:
Imago, 1991.
- trabalho intertextual intensamente explorado, a concepção de que o
texto é um mosaico de citações, que suas verdades são obtidas a partir
de vestígios textualizados de outras obras;
- exaustivo uso da paródia no tratamento conferido a fatos, personagens
históricos, recursos estilísticos de natureza literária e historiográfica,
entre outros aspectos;
- participação plena daquelas categorias discursivas que Mikhail
Bakhtin estabelece como inerentes especificamente ao texto romanesco,
tais como a ironia, o dialogismo, a carnavalização, entre outros.
No geral, pode-se apontar o caráter profundamente
inovador, transformador desta obra do escritor Márcio Souza dentro da
tradição literária brasileira no que diz respeito às narrativas ficcionais
de natureza historiográfica. Destoando definitivamente do padrão de
escrita que caracteriza o romance histórico tradicional, o ficcionista
amazonense assimila e sua própria contribuição no sistemático
processo de renovação estética e ideológica que a literatura latino-
americana começou a desenvolver a partir da metade do século XX
neste ramo de produção romanesca. Ao explorar ficcionalmente
importante episódio da trajetória histórica brasileira e sul-americana
segundo uma perspectiva intensamente crítica e auto-reflexiva, Galvez
Imperador do Acre acaba por promover também a reescrita desse
mesmo episódio, pois rompe drasticamente com velhas premissas
historicistas e abre novas possibilidades de interpretação dos sucessos
históricos. Ao apresentar inovadoras perspectivas para estudo e
elucidação dos sucessos históricos, Galvez Imperador do Acre amplia
também o campo de atuação das narrativas históricas.
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois de realizado atento exame crítico sobre o romance
Galvez Imperador do Acre, pode-se seguramente constatar que a referida
obra cumpre na prática com as propostas teóricas sob as quais este
trabalho se orientou.
O romance do autor amazonense dispõe de elementos
caracterizadores que vão ao encontro de todas aquelas noções teóricas
formuladas por Mikhail Bakhtin a respeito da linguagem e sobre as
marcas que especificamente o texto romanesco apresenta. Sua
atmosfera discursiva se compõe das mais diversas espécies de grupos
lingüísticos existentes, em franco processo de intercomunicação, que
não cessa e que não tem a predominância de um tipo lingüístico em
especial que opere normativamente. O palco das ações de Galvez
Imperador do Acre é revestido de uma dialogicidade potencial, refletida
na voz de seus integrantes, que reproduzem discursivamente as
diferentes inclinações culturais e ideológicas dos estratos sociais que ali
convivem e que estão em constante inter-relacionamento e
reciprocidade.
A descentralização do discurso e a heterogeneidade
lingüística presentes no romance propiciam a freqüente ocorrência da
ironia, da troça, do sarcasmo, enfim, do riso em suas mais diversas
possibilidades de realização, atingindo todas as camadas do tecido
ficcional: espaço, personagens, circunstâncias factuais, etc. Esse
desprendimento do discurso sério, elevado, tão caro ao gênero
romanesco é sentido em cada fragmento de Galvez Imperador do Acre.
Atuam ainda no texto de Márcio Souza, mas de um modo um pouco
diferenciado, todas aquelas categorias discursivas de natureza sério-
cômica e também elementos estruturais que se faziam presente nos
diálogos socráticos e na sátira menipéia, considerados por Bakhtin
gêneros prenunciadores da prosa romanesca.
Ainda segundo o teórico russo, as propriedades do gênero
romanesco derivam diretamente do que apresentam os dois gêneros
antes citados. Tal como nos diálogos socráticos, Galvez Imperador do
Acre também se constrói a partir de uma concepção dialógica do
discurso, através da qual se manifestam variados e muitas vezes
antagônicos pontos de vista ideológicos, em constante processo de
busca da verdade. Faz-se presente a “palavra contra a palavra”, como
meio através do qual se pode vislumbrar alguma possibilidade de
encontro com a verdade almejada. Este embate discursivo em Galvez
pode ser exemplificado pela própria instância narrativa adotada pelo
romance: dividido entre um narrador situado fora da ação, o chamado
“narrador-editor”, e o protagonista da trama, Luiz Galvez, o plano da
narração apresenta momentos em que o primeiro chega a contrariar
versões de fatos descritas pelo segundo, numa nítida manifestação de
contraponto dialógico.
Da sátira menipéia, o texto de Márcio Souza se nutre de
muitas de suas marcas caracterizadoras. A franca comicidade típica do
gênero é notadamente manifestada em toda a extensão do romance.
Quanto à forma, pode-se citar, por exemplo, o rompimento com a
técnica folhetinesca tradicional (suprimindo seu suspense característico
tão logo a trama se inicia) e a inserção de registros discursivos de
variada espécie, sem critério algum na tessitura textual. Quanto à
temática, observam-se recorrentes investidas dessacralizadoras que o
texto promove sobre personagens históricos, fatos, entre outros
elementos. Constatam-se ainda em Galvez Imperador do Acre outros
traços que procedem da antiga menipéia: intensa liberdade de
construção ficcional, de invenção temática e filosófica; exploração do
submundo, dos aspectos mais grosseiros da vida social; representação
de cenas de escândalos, comportamento excêntrico, enfim, uma gama
de atitudes contrárias à etiqueta; amplo emprego de gêneros
intercalados ao longo do texto, entre outros.
Galvez Imperador do Acre contempla ainda o fenômeno que
talvez seja aquele que mais dite, em termos de elementos
caracterizadores, a especificidade do romance frente a outros neros: o
carnaval. O romance de Márcio Souza vale-se plenamente da
cosmovisão carnavalesca, da abolição das hierarquias que promove, da
revogação de todas as normas de comportamento vigentes no cotidiano
e ainda de suas particulares categorias, tais como o livre contato
familiar entre os homens, a representação de um novo modo de relações
mútuas do homem com o homem, a excentricidade, a profanação, a
coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval (com
ênfase nas mudanças e transformações, na morte e na renovação). No
decorrer da análise que aqui se empreendeu, foi possível apontar e
exemplificar que a obra em estudo comporta todos esses componentes
que Mikhail Bakhtin apontou como essenciais na conformação do
gênero romanesco, enquadrando-se plenamente na categoria.
Em sua segunda parte, este trabalho procurou expor e
discutir as principais linhas de pensamento existentes no campo da
teoria da produção do conhecimento histórico e também pensar os laços
cognitivos que aproximam História e Literatura. Fez uma abordagem em
torno do romance histórico, subgênero literário que tem como
atribuição maior representar ficcionalmente os eventos históricos
registrados pelo discurso histórico oficial. No romance histórico tais
eventos são, via de regra, elevados à condição de objetos temáticos
nucleares da ação romanesca.
A apreciação crítica que sobre Galvez Imperador do Acre
este trabalho propôs realizar, ao pensar a obra também na condição de
romance histórico, alcançou resultados que permitem seguramente
classificar o referido texto como legítimo representante da nova safra de
ficções históricas que despontaram a partir da metade do culo XX.
Galvez investe em uma abordagem flexível, relativizada e acima de tudo
irreverente sobre os fatos históricos tematizados, que destoa do
discurso oficial da História e também do romance histórico tradicional,
principalmente no que diz respeito aos valores ideológicos e às
estratégias discursivas adotadas.
No cenário brasileiro particularmente, sua aparição é
significativa, uma vez que redimensiona o subgênero em todos os seus
aspectos. Além disso, amplia as possibilidades de exploração da
temática histórica nacional, e ainda aponta para questões de natureza
teórica, na medida em que assume postura crítica e contestatória frente
àquele discurso consagrado pela tradição historiográfica brasileira e
pela tradição em um horizonte cultural mais amplo.
Galvez Imperador do Acre, afora problematizar e promover,
sob o viés da ficção, a reescrita de relevante episódio da história
brasileira, ainda pratica intenso diálogo com a tradição literária do País.
Nesse sentido, realiza também uma releitura do processo histórico da
Literatura Brasileira, ao parodiar procedimentos estilísticos próprios de
algumas modalidades de escrita literária, e evoca, direta ou
indiretamente, movimentos e autores notáveis do sistema literário
nacional.
Seja como novo romance histórico ou ainda como
metaficção historiográfica, segundo denominação da teórica Linda
Hutcheon, Galvez constitui exemplar romanesco plenamente inserido
na nova modalidade de obra ficcional de cunho histórico que, a partir
da metade do século XX, despontou na cena literária. Nessa
perspectiva, rompe absolutamente com o modelo de romance histórico
tradicional, tal como praticado por Walter Scott no século XIX e seus
seguidores, ao articular uma narrativa inovadora, que empreende uma
leitura atualizada da história brasileira, redimensionando-a nas suas
linhas gerais. Sua proposta consiste em ampliar o campo das
possibilidades interpretativas sobre os fatos abordados, desconstruindo
no texto, através do freqüente uso do humor, do cômico e demais
estratégias discursivas, a falácia do discurso objetivo e irrebatível que a
historiografia oficial, invariavelmente, sempre presumiu haver.
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